Saude Desejo Pensamento

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 88

Sumário

Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Ficha Catalográfica
Desejo e Pensamento
Pensamento Sedentário
Pensamento Nômade
Questões do Público
Referências
Post Scriptum
Posfácio
Luiz Fuganti
Luiz Fuganti

O PENSAMENTO
NÔMADE

Saúde, desejo, pensamento


Direitos autorais
Luiz Antono Fuganti,
2017 ©

Edição:
Linha de Fuga Edições Ltda, São Paulo, 2017

Capa:
Larissa Meneghini

Aquarela:
Miguel Paladino

Miolo:
Lobo

Editoração EPUB
Fernando Ribeiro

Atendimento ao leitor: [email protected]


Site: www.luizfuganti.com.br.
CIP-Brasil. Catalogação na Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Fuganti, Luiz, 1960-

O Pensamento nômade: saúde, desejo e pensamento [livro eletrônico] / Luiz Fuganti. -- São Paulo : Linha de fuga, 2016. 916 Kb ; ePUB.

Bibliografia.
ISBN 978-85-93382-00-0

1. Biopolítica 2. Desejo (Filosofia) 3. Diferença (Filosofia) 4. Filosofia 5. Sujeito (Filosofia) I. Título. II. Série.

16-08811 CDD-102

Índices para catálogo sistemático:


1. Ensaios filosóficos 102
DESEJO E
PENSAMENTO
Os dois caminhos: o caminho da forma e o caminho do acontecimento

O tema que propomos desenvolver e problematizar é complexo. Por isso, selecionamos alguns
planos de construção de um horizonte de valores que se oculta e opera sob noções como as de saúde, de
desejo e de pensamento, e que acabaram por tornar-se pressupostos essenciais e inquestionáveis
‘naturalmente’ adquiridos e aceitos pelos ‘bons costumes’ para compor e legitimar os estratos do corpo
de saber do Ocidente.

Os planos e estratificações que iremos abordar constituem, portanto, a base de muitas das
principais concepções elaboradas pelas civilizações brancas e cristalizadas ao longo de suas bizarras
aventuras, no que concerne ao desejo, à saúde e ao pensamento. O sentido destas noções não se deixa
revelar senão na desmontagem de um processo tecido por múltiplas séries de saberes e de forças que
ora convergem, ora divergem, ora caminham paralelas.

Partimos das formações sociais que se servem dos mitos, enquanto estes se efetuam nas funções de
soberania dos Estados bárbaros - formações sociais mágico-religiosas do tipo despóticas -, passando pela
emergência do Ocidente, caracterizada por alguns elementos e traços que compõem a cidade grega,
cuja emergência no século VI a.C. inaugura aquilo que entende-se por modo ‘civilizado’ de ser. Com
os gregos da polis começa um novo modo de viver e de pensar, gestado simultaneamente nessa nova
formação social e política, cujo modelo investido por poderes e saberes continua estranhamente nos
garantindo ‘saúde’ (ou seria antes nossa doença de pele ocidental?) até os nossos dias.

As formações de Saber e as composições de Poder que daí decorrem continuam a nos afetar,
coexistem e determinam nosso modo atual de existir, isto é, de sentir, agir e pensar.

Com esse recorte no tempo e no espaço destacamos, simultaneamente, um acontecimento


polarizador, divisor de águas, e o campo de combate onde se efetua o nascimento de um novo tipo de
valores. Nesse sentido focalizamos alguns aspectos da obra platônica que colaboraram decisivamente
para a solidificação de um modo de viver e de pensar calcado na moral, na lei, na razão e no estado.
Esse estilo de vida, aliado a inovações como as trazidas por Kant e Hegel no campo teórico, ainda é (e
cada vez mais) o dos nossos contemporâneos.
Além de Platão, passaremos rapidamente por alguns traços da obra de Aristóteles que também
contribuíram efetivamente para desenhar a imagem sedentária do Homem de Razão e produzir os
mecanismos de assujeitamento das paixões pela desqualificação do desejo.

Em contrapartida, tentaremos situar algumas linhas de desejo e de pensamento que foram


sistematicamente repelidas e malditas pelos homens adeptos do bom senso e do senso comum. São
linhas livres, que escapam às organizações de esquadrinhamento da vida e minam os sistemas de
captura do desejo e do pensamento; são os caminhos nômades inventados e palmilhados pelos
pensadores pré-socráticos, por alguns sofistas, cínicos e megáricos, pelos ensinamentos e experiências
dos estóicos gregos e pela imanência spinozista. Nesse contexto situaremos também algumas das
veementes e rigorosas críticas de Nietzsche à tradição filosófica implantada a partir de Sócrates e
Platão.

Quanto à noção de saúde, entendemos que é apenas sintoma, efeito do modo como se
relacionam o desejo e o pensamento, uma vez que o problema da saúde e da doença do corpo e da
alma depende dessa relação. Por isso, servindo-nos dos antigos gregos, daremos maior atenção ao
problema da relação entre esses dois elementos. Tal caminho parece impor-se na medida em que
gostaríamos de esboçar a emergência, nessa época, de algumas zonas e cortes, algumas formas e
composições de forças que instituíram novas fronteiras, construíram novas superfícies, traçaram novas
repartições e limites para o desejo e para o pensamento.

Nesse sentido, podemos então tomar duas vias - duas orientações - para pensar a relação desejo e
pensamento.

Uma é a tradicional, a via sedentária a do senso comum aquela que triunfou no Ocidente e que
se deixa ver através das lentes formais do estado, da razão e da moral.

A outra toma o caminho da afirmação da vida para além da forma-Deus e da forma-Homem,


para além do Juízo; é a via do Acontecimento como realidade plena ou devir nômade.

Vejamos primeiro a via dos ‘bons costumes’, a mais familiar - tão familiar que o pensamento
racional ocidental toma-a freqüentemente por natural.
PENSAMENTO
SEDENTÁRIO
Quando, na Grécia do século VI a.C., emergiu um novo tipo de Estado nomeado democrático ou
civilizado que pretendeu por diversas vezes se opor ao antigo Estado despótico ou bárbaro surgiu
também o que poderíamos chamar de pilares da tradição ocidental. Inventou-se uma nova maneira de
viver e de pensar, um modo bastante original de o homem se organizar, se relacionar e agir com os
outros e com o universo, muito diferente das formações anteriores (as dos mundos chamados
selvagens ou primitivos e dos mundos despóticos bárbaros).

Contudo, apesar da originalidade dessa nova formação social grega - dita civilizada, num sentido
restrito, que dará nascimento ao cidadão, animal político que se relaciona pela força do argumento
racional - não se pode afirmar que aconteceu uma ruptura total com os modos de poder e de
organização das antigas sociedades. De fato, essa nova formação social traz consigo, em suas múltiplas
linhas de composição, camadas de signos e blocos de atitudes que já fundamentavam as formações
anteriores, numa espécie de memória ressonante. O passado e o presente interagem, coexistem. Ou,
como diria Bergson, o passado é. Em outras palavras, os mundos selvagens e bárbaros não estão fora do
mundo grego civilizado, não foram relegados a uma exterioridade sumária de um passado que foi, mas
apenas reagem sobre o presente e reinvestem, com máscaras diferentes, o novo jogo social de forças.

Mito e Razão

Um dos modos pelos quais essa memória arcaica se conserva no presente é através do discurso
mítico. Esse discurso circula em fragmentos de narrativas coletivas, alimentando uma memória que,
de outro modo, estaria perdida para a nova formação social que agora também se constitui por um
novo regime de signos ou de saber. É isso o que particularmente nos interessa nesse contexto: a
memória que retorna pelo movimento de repetição manifestado na estrutura do discurso mítico.

E é nesse retorno que, curiosamente, vemos se desfazer outra mistificação criada pelo Ocidente
moderno. Ao contrário do que geralmente se crê, o mito não se opõe a um tipo de pensamento
racional - ao menos não àquele inaugurado em plena decadência das cidades-Estado gregas: o
pensamento socrático-platônico-aristotélico, que busca ‘naturalmente’ a verdade como razão
transcendente e superior à natureza física e aos corpos que a compõem. Podemos afirmar, como
exemplo privilegiado, que o mito, e particularmente o mito de soberania, é o fundamento de toda a
filosofia platônica e constitui, pela mesma razão, as bases epistemológicas e metafísicas do modo de

pensar do Ocidente, mais do que nunca hoje presentes na razão e nas ciências1*.

Detenhamo-nos na doutrina platônica por um momento.

Platão e a divisão dos mundos

Platão divide o mundo em dois. Ele instaura uma separação no seio do ser, operando, com seu
método da divisão, uma diferença de natureza entre dois planos. De um lado concebe um plano
divino constituído por Idéias, mundo supra-celeste das essências ou puras formas inteligíveis, lugar dos
modelos superiores que implicam uma realidade verdadeira que existe em si e permanece imutável,
eternamente idêntica a si mesma, apreendida apenas pelo pensamento. De outro, concebe um plano
dos corpos sensíveis, mundo terreno das aparências, da matéria, das imagens que se refletem nos corpos
sub-lunares, lugar dos fluxos, das mudanças e devires que tornam-se sempre diferentes do que são,
região inferior apreendida pela experiência sensível e que, no melhor dos casos, conquista uma
realidade segunda, isto é, torna-se cópia, caso deixe-se ordenar e medir à semelhança do mundo
modelar das alturas.

Desejo e pensamento platônicos

Mas como se dá a relação entre esses dois mundos? Como transpor o abismo cavado entre o Ser e
o Devir? Pode-se dizer que a relação entre os dois planos é estabelecida pelo desejo e pelo
pensamento. Mas este desejo ou amor não é qualquer amor, nem este pensamento qualquer
pensamento. Platão definirá, sobretudo no Fedro e no Banquete, qual é a natureza do amor, do
demônio Eros, perguntando-se pelo seu ser verdadeiro e, a partir disso, definirá também seu
verdadeiro objeto, comum ao objeto do pensamento: a Verdade. É a relação com a verdade que
estrutura a erótica platônica e a distingue dos outros discursos e práticas do amor correntes na Grécia
clássica, os quais se estruturavam na relação com o poder. Essa erótica também substituirá, na sua
filosofia, o modo como tradicionalmente a verdade era produzida.
Os três mestres da verdade na antiguidade grega

Na Grécia arcaica, período histórico que antecedeu o nascimento das cidades-estado, a produção
da verdade esteve ligada a três tipos de discursos ou de delírios: o do poeta, o do adivinho (ou profeta)
e o do rei de justiça (ou sacerdote). É surpreendente e ao mesmo tempo fantástico para nós,
acostumados que estamos a opor a verdade à loucura, constatar que para esses gregos a verdade era
produzida justamente pela loucura. Um homem louco era aquele possuído por um deus. E é nessa
condição que o poeta pode expressar, pelo discurso inspirado, a verdade do passado, pois está possuído
pela deusa Mnemósyne cuja presença, em tal tempo passado, permite-lhe dar testemunho da verdade
(narrativa dos grandes acontecimentos míticos e das façanhas heróicas que traçaram e estabeleceram a
atual ordem divina, cósmica e humana e que, portanto, constituem a sua verdade), através dessa
palavra que se apossa do poeta. Também o adivinho pode expressar a verdade do futuro porque está
possuído pelo deus Apolo, cuja presença no tempo futuro permite-lhe dar testemunho da verdade do
que acontecerá, e que se revela nesse discurso ou delírio que se apossa do adivinho. Do mesmo modo,
o sacerdote dionisíaco pode expressar a verdade oculta do presente porque está possuído pelo deus
Dionísio, cuja presença, no presente oculto, permite-lhe dar testemunho da verdade escondida,
inacessível aos homens comuns, que se manifesta através da fala delirante deste homem divino e

purificador2.

Um novo mestre da verdade

Mas Platão inventará, já no período decadente da Grécia clássica, um quarto discurso


propriamente filosófico e um novo personagem. É o delírio erótico ou verdadeiro delírio, que inspira
agora o filósofo autêntico ou o verdadeiro amante. O filósofo pode falar a verdade porque está
possuído por Eros (que é definido no Banquete como um semideus, isto é, um comunicador
intermediário entre os deuses e os homens). O discurso erótico quer, portanto, ser a ponte sobre o
abismo criado entre os deuses e os homens, entre os modelos e as cópias, entre o ideal e o corporal. O
que é peculiar em Platão é o modo como ele problematiza o amor, o amante e seu objeto. Ele quer
definir a essência do amor e, servindo-se dela, identificar e autenticar aquele que está possuído por
este amor verdadeiro, elegendo-o como verdadeiro amante. É através desse estranho amor articulado
com a Verdade que Platão apontará o caminho que sobe, aquele que conduz às alturas e leva a alma a
reencontrar sua origem, sua pátria junto às puras realidades inteligíveis. É no mínimo estranha, pelo
menos até Platão, esta maneira de produzir a verdade, apesar da sua semelhança estrutural com os
esquemas anteriores do delírio e da inspiração. Além disso, o modo de produção da verdade, com o
surgimento da polis, encontra seu modelo clássico e racional na maneira como o campo jurídico
organiza e regula seus processos a partir do nascimento do inquérito e da testemunha, onde a verdade
é reapresentada e demonstrada por relações mediatas de causa e efeito, extraídas de um discurso
meramente humano, e não revelada imediatamente pelo discurso inspirado. Sob essa luz, parece-nos
que há simultaneamente, em Platão, um arcaísmo e uma invenção no que diz respeito à sua erótica e

à autenticidade de quem diz a verdade (o mestre da verdade)3.

Função política no uso dos prazeres

Tradicionalmente, é comum pensar-se que o amor tem por objeto corpos belos (ainda que, como

demonstrou Foucault4, essa relação também tenha sido problematizada pelos gregos, mas sob a ótica
da honra, da phylia e da cidadania), assim como é comum atribuir-se aos amantes um desejo físico
que buscam satisfazer. De modo geral, não é a natureza do desejo que, neste caso, é questionada, mas
o seu uso. Os gregos pensavam e problematizavam o desejo e os prazeres pelo uso que se fazia deles. O
que importava era a maneira de ser e de se conduzir nessas relações, não o ser do amor. Dependendo
de sua conduta, o indivíduo poderia conquistar, através do domínio de si domínio de suas paixões a
liberdade e o direito de exercer o poder no oikos e na po1is, ou fracassar, tornando-se escravo de si
mesmo, submisso aos seus desejos materiais e dominado por outros. O modo de se conduzir no amor
e nos prazeres constituía uma prova, uma passagem para as práticas políticas e para a liberdade.

A essência platônica do amor

Platão dirá e eis a sua invenção que não é na conduta, mas na natureza ou verdade do desejo que
está o principal problema e a verdadeira prova de sabedoria e de liberdade. Um desejo que tem por
objeto outros corpos é propriedade dos corpos ou da parte corruptível da alma e não um verdadeiro
amor cujo ser une a parte imortal da alma com a verdade incorpórea. Nesse sentido, percebemos
claramente a introdução de um corte entre desejo e pensamento. É que, para Platão, se os corpos e o
desejo dos corpos pertencem ao mundo efêmero do devir, o pensamento, ao contrário, é propriedade
da parte racional e permanente de nossa alma, com origem divina e portanto imortal. O desejo
mundano tem por objeto os corpos corruptíveis, mas o objeto do pensamento, aquilo que o
pensamento deseja, é a Idéia eterna e verdadeiramente real. É por isso que Platão buscará o ser do
amor ou o verdadeiro desejo que, precisamente por ser verdadeiro, está colado à parte racional da
alma, constituindo a condição para que ela conheça seu verdadeiro objeto. Estabelecer-se-á assim uma
ligação inédita entre desejo e pensamento, pela relação que ambos devem ter com a verdade.

Questionando a erótica de sua época, Platão deslocará os problemas que ela colocava,
perguntando-se primeiramente não mais sobre a maneira de se conduzir no amor, mas sobre o próprio
ser do amor, buscando definir assim o amor verdadeiro. Também definirá o verdadeiro amante,
aquele que ama com esse amor verdadeiro e contemplativo, servindo-se do mito, cujo modelo
imanente fornece o critério de seleção e autenticação dos pretendentes a amante. Além disso, o
próprio objeto do amor será deslocado; o amante não mais visará um corpo belo em particular mas,
partindo do reflexo da beleza no corpo sensível, elevar-se-á até a universalidade da beleza em si
mesma, inteligível em sua verdade própria e purificada de toda mistura corpórea. É a partir desses
deslocamentos operados por Platão segundo Foucault que o Ocidente construirá toda uma
hermenêutica do homem de desejo. O desejo, no seu ser, tornar-se-á objeto de interpretação e de
maldição, seja nas práticas confessionais que emergirão com os padres cristãos e que buscam arrancar
as verdades recônditas da alma para salvá-la, seja nas terapêuticas praticadas pela psiquiatria e pela
psicanálise que visam, na primeira, a cura da alma do louco definido como doente mental e, na
segunda, a cura da alma edipiana portadora de um desejo inconsciente interpretado como incestuoso
e parricida, isto é, culpado.

Condição de acesso à verdade

Para Platão, a condição de acesso à verdade será determinada pela natureza do amor que o
indivíduo conquista em sua ascese purificadora e nas práticas do domínio de si que o constituem
como sujeito moral (pode-se fazer o paralelo com Freud ao pensar as provas de acesso à cultura pelo
indivíduo). Por outro lado, são as impressões, traços ou marcas sensíveis, produzidas pelo corpo belo
na relação de amor (Eros) que excitarão a alma (psique) virtuosa, doando-lhe asas e plumas para
libertar-se dos corpos terrestres e voar para as alturas. Nessa viagem para o alto, a alma reencontra ou
reconhece as formas puras, belas e harmoniosas, as realidades verdadeiras, identificadas como causas
supremas da ordem, do equilíbrio, dos efeitos de beleza e harmonia que refletem através de todo o
universo corpóreo. Assim, a relação entre este mundo dos corpos e o outro mundo das Idéias se dará
pelo verdadeiro amor - amor pela verdade. É esta erótica purificada que tornar-se-á então o motor do
pensamento e do sujeito do conhecimento, capaz de elevar o homem virtuoso para conhecer, ou
melhor, reconhecer as puras formas ou Idéias. O processo de conhecimento platônico é um sistema
que se orienta para o alto e que opera pelo reconhecimento ou recognição de uma Idéia imutável,
eterna, realidade acabada já mais ou menos contemplada pela alma antes da encarnação, tal como é
descrito no Fedro, conforme o mito da circulação das almas. Nesse sentido, para Platão, pensar jamais
significa produzir ou inventar uma realidade nova, pois o valor de verdade só pode ser atribuído a um
conhecimento que imite ou reproduza por semelhança as relações internas do modelo inteligível e
imutável.

Embora Platão separe pensamento e desejo, curiosamente ele inventa um novo desejo, o amor
verdadeiro que pertence ao homem purificado e liberto dos prazeres corporais. O verdadeiro filósofo é
este homem virtuoso, apaixonado por marcas sensíveis que o conduzem às Idéias e ao Bem. Ele é o
verdadeiro amante, capaz de encontrar a verdadeira beleza, expressão da justa medida, do limite
eterno, da razão interna constitutiva de todas as coisas. Ele é um mestre da verdade que sabe conduzir
os apaixonados para seu verdadeiro objeto. É o filósofo apaixonado que conduz o pensamento e o
desejo em direção ao único objeto digno de amor e de conhecimento - o objeto desencarnado,
incorporal, o Ideal. Para Platão, o homem virtuoso (que o mundo moderno substituiu pelo homem
saudável e legislador e que encarna uma pura forma de lei) é aquele que purifica sua alma das
misturas corpóreas e liga seu desejo não a outros corpos, mas às Idéias eternas. O verdadeiro amor é,
pois, um grande desejo de imortalidade, desejo de eternidade, desejo do Além. A verdade não pertence
mais a um tempo particular como na Grécia arcaica (apesar deste tempo ser mítico), mas está fora do
tempo, transcende a dimensão temporal para entrar no domínio do eterno. A verdade platônica
pretende se aplicar tanto ao presente como ao passado e ao futuro, mas se diz anterior ao próprio
tempo, quer situar-se fora do devir, excluir a metamorfose e isolar-se como ser absoluto.

O Ideal da saúde da alma e do corpo

Mais do que na saúde, é na erótica masculina, como diz Foucault, que os gregos formularam a
exigência das mais rigorosas austeridades: um ideal de renúncia, princípio de abstinência indefinida
com alto valor espiritual. Mas é com Platão que esse ideal ganha um sentido novo, estruturando toda
uma nova maneira de pensar e de viver. O ideal do limite – a justa medida, a permanência, as paradas
e os repousos, o equilíbrio dos elementos corpóreos e a ordem fechada das imagens anímicas é
exaltado como oriente exemplar. A doença seria propriamente a desmesura, expressa na hybris, no
devir louco e subversivo da matéria triunfando sobre a forma, como fonte de esquecimento das Idéias.
Sob esse olhar puritano, a doença manifesta-se como o desequilíbrio dos elementos no corpo e das
imagens na alma, provocado pela ligação excessiva ou faltosa do desejo ao devir corpóreo. As doenças
passam a ser vistas como frutos dos vícios e da escravidão do homem às suas paixões inferiores. Um
corpo saudável, equilibrado e harmonioso é aquele que obedece às ordens dietéticas ditadas pela alma
racional - um corpo comedido. E uma alma racional verdadeira é aquela que, conduzida pelo
verdadeiro amor (amor às Idéias), relembra, reconhece e imita essas essências inteligíveis, aplicando
suas ordens a si mesma e aos atos do corpo. Uma alma sadia tem ritmo sincrônico e medida
matemática; está atrelada aos modelos eternos, ligada às formas fixas e aos seres estáticos para
comandar os corpos mutantes. É sobretudo a virtude, a temperança, que fornece os paradigmas da
ordem e das justas proporções constitutivas da saúde da alma e do corpo.

Um ideal ascético de transcendência e de renúncia ao corpo e ao pensamento


imanente à natureza

Mas por que tal orientação? Por que a vida deve ser ordenada de fora? Por que o desejo e o
pensamento devem ser modelados, limitados e subjugados desta forma? Seria por esta constituir a
única orientação verdadeira? Mas então o que significa a verdade? Ou, para falar como Nietzsche, o
que significa a vontade de verdade? O que quer o homem que quer a verdade?
Ora, é evidente que tal homem já desqualificou este mundo como ilusório e efêmero, como um
mundo incapaz de ordenar-se por si só, como um mundo com potência para a perversão e, por isso
mesmo, devendo seguir a ordem transcendente de um outro mundo verdadeiramente real, o outro
mundo do além, o mundo supracelestial do ser, da verdade e das permanências. Platão desconfia da
ordem imanente à própria vida. Ele teme, acima de qualquer coisa, o devir que traz consigo a
possibilidade do caos, o devir que tudo arrasta, que depõe todas as permanências, rompe todas as
medidas, ultrapassa todos os limites, esfacela toda fixidez, dissolve as marcas, destrói todas as verdades
absolutas ou diques que pretendem paralisar o tempo e o movimento. Platão é um paranóico
perseguido por fluxos, é um animal piedoso que pretende proibir as metamorfoses em nome de um
obscuro Bem. Situando-se o contexto político, social e histórico no qual Platão vive, compreender-se-á
o que está sendo dito. Com um pressentimento quase desesperador da degradação universal, ele busca
obsessivamente os meios para conter a derivação caótica do tempo desde que Cronos abandonou o
governo do mundo. Um combate deve ser travado para restabelecer o domínio das permanências, das
boas cópias, das justas medidas capazes de codificar e regular as relações entre os homens e restituir a
ligação destes com o divino Bem. No horizonte platônico, um barco iça suas velas mas é acossado por
ventos de todas as velocidades e direções. O mundo para Platão é como uma nau em mar aberto e
revolto, vagueando sem timoneiro, à deriva. É preciso repor o timoneiro - um rei filósofo -, o único
com sabedoria para pastorear os homens com equilíbrio, ordem e justiça; o único com coragem e
conhecimento suficientes para comandar o indivíduo, a família e a cidade, restituindo a ordem ideal
que conduz ao bem comum e à harmonia cósmica. As figuras do rei, do político, do filósofo e do
guerreiro unem-se para conter a degenerescência do devir, codificá-lo e regulá-lo. Entre a lembrança
da grande ordem modelar e os fluxos turbilhonantes da matéria, o sábio asceta estica o fio da moral
fixando com ele os limites. Um grande paralisador da vida é o mestre da verdade, um doce paranóico
inimigo dos devires, cavaleiro da paz, escravo da morte.

Uma separação do pensamento e da vida é o que Platão está operando na esteira de Sócrates,
construindo uma máquina de pensar fundada no negativo e reduzindo o pensamento à razão e ao
reconhecimento; ele denuncia os corpos indóceis como obstáculo à razão e à virtude, reduzindo a vida
à vida reativa. Platão reorienta o desejo e o pensamento que os pré-socráticos haviam dirigido para as
profundidades elementares da matéria, a physis. Ele os dirige para as alturas das formas puras, funda
uma crença - a crença nas essências inteligíveis como valores supremos, que existem separadas dos
corpos sensíveis - e opera uma hierarquia de sentidos apreendidos ao mesmo tempo como causas da
ordem universal e paradigmas das condutas humanas. Pensar seria contemplar as Idéias para conhecê-
las, isto é, reconhecê-las, seja por ascensão a elas sem mediação, seja por elevação mediada pela
dialética. Pensar é obedecer com a alma (pensamento fundado no negativo); agir é obedecer com o
corpo, cumprir o dever prescrito pela alma racional (vida submetida à regulação reativa).

Como deixar de se surpreender? Como, de repente em um dado momento do curso da história


dos homens, o desejo e a vida podem ser capturados de forma tão espantosa por uma suposta realidade
ideal? Como não se assombrar diante de um pensamento que volta as costas à própria vida e quer
subjugá-la à moral ou a um objeto tão etéreo como o Bem? Por que a vontade de um corpo pode
querer ligar-se ou dirigir-se rumo a um outro mundo pretensamente mais real e mais verdadeiro que o
próprio corpo da vida ou vontade da terra?

Para Nietzsche, não há qualquer dúvida de que este outro mundo é fictício. Entretanto, segundo
ele, não é fictícia a vontade que o quer. O mundo das Idéias é uma quimera, mas a vontade de Platão -
que o busca com todas as forças - é uma realidade concreta. E é por causa desta concretude da
vontade, aliada à ficção, que um efeito real é produzido nos corpos. Se assim não fosse, a obra
platônica seria apenas um conto de fadas para dissuadir crianças travessas. Acontece, todavia, que ela
triunfou no Ocidente e comanda imperceptivelmente nossa subjetividade. Platão ainda é demasiado
nosso. A ficção é um ponto de vista particular eleito como verdade universal; é um mito elevado
simultaneamente a um estatuto de estrutura ontológica e lógica, ordem cósmica e lei humana com
utilidade universal para reger os corpos aqui de baixo. Em outros termos, nossas existências e nossos
atos - que compõem este universo corpóreo - são ou devem ser apenas entidades segundas, isto é,
imagens ou cópias dos modelos permanentes que constituem o ser eterno das alturas, do além-mundo.

Identidade e semelhança no método da divisão de Platão

Dois são os princípios que atravessam o sistema teórico de Platão. Eles submetem o pensamento
e formam os dois pólos do método da divisão: princípio de identidade e princípio de semelhança - um
opera no mito, o outro na dialética. Mito e dialética não se opõem, diz Deleuze, mas sim
complementam um ao outro para fornecer a unidade necessária ao método da divisão. É com este
método que Platão empreende a separação dos dois mundos - o Ideal e o material -, movido por um
objetivo profundo: operar as distinções necessárias para separar o trigo do joio, o puro do impuro, o
autêntico do inautêntico, a forma da matéria, a Idéia da imagem, o Modelo do simulacro. Platão quer
fazer a seleção, peneirar as misturas e separá-las. Pela prática da dialética, ele atinge as definições que
diferenciam os seres. Entretanto, estas definições específicas são ainda demasiado genéricas, redes
com malhas abertas demais. Muitos animais passam através delas sem serem apanhados. Todos
acreditam caber na definição e todos pretendem o status de direito prescrito por ela. Define-se o
verdadeiro político como pastor dos homens, mas indivíduos de funções variadas pretendem um cargo
de político, produzindo um efeito de semelhança, semelhança à definição. Assim também o
verdadeiro amante e todas as funções privilegiadas. Não é, afirma Deleuze, uma dialética da
contradição, mas da rivalidade. Para levar a divisão a seu termo uma vez que não se trata da divisão de
gêneros em espécies, como queria Aristóteles, mas da separação do puro e do impuro Platão, cheio de
ironia, introduz a narrativa mítica, pois é o mito que fornece um modelo com um critério seletivo
interno. Impõe, então, uma prova capaz de selecionar os pretendentes, possibilitando efetivar a divisão
e completando a tarefa que a dialética tinha começado. É pela linha mítica que o pensamento
platônico plantará as raízes do fundamento ontológico e fornecerá a medida ontológica imanente ao
mito, necessária para a autenticação da Idéia identidade da Idéia com ela mesma e para a seleção da
boa cópia ou do verdadeiro pretendente semelhança da imagem com a Idéia.

Percebe-se que a divisão é então deslocada. Ela não recai mais sobre objetos de planos distintos
como, por exemplo, entre modelo e cópia, forma e matéria, Idéia e imagem divisão superficial que
estava aí apenas para exigir uma divisão mais profunda e mais sutil , mas entre dois tipos de imagens
no plano material: a imagem dotada de semelhança ( boa imagem ou ícone) e a imagem sem
semelhança (má imagem, diferença pura ou simulacro). Esta diferença entre dois tipos de imagens é a
mesma para os tipos de desejo ou amor, porque é sobretudo moral (a moral contra a estética) e não
epistêmica. A seleção se cumprirá então por um processo eletivo de acordo com a matéria ou imagem
mais ou menos dócil, mais ou menos obediente, mais ou menos próxima ao modelo, conforme seu
grau de semelhança a ele. No Político, quando se trata de encontrar o comandante autêntico dos
homens o verdadeiro político , Platão nos diz que somente a Cronos - o deus, o mito - cabe a
qualidade primeira de pastor dos homens. É ele o modelo. O homem só possuirá essa qualidade, na
melhor das hipóteses, em segundo lugar, como boa cópia ou imagem dotada do máximo de
semelhança ao modelo. A má imagem (o tirano ou o sofista, por exemplo) pretenderá esse lugar por
usurpação, subvertendo o modelo, simulando uma aparência ou semelhança apenas exterior, através
da ilusão produzida pelo distanciamento. Daí a caça implacável ao sofista, falso amante com desejos
perversos, aquele que parece ser capaz de tudo mas que não o é verdadeiramente, pois não passa pela
prova do pai. As duas divisões, a superficial e a profunda, submetem simultaneamente o pensamento e
o desejo.

O discurso mítico fundador do critério da verdade é, como dizíamos no início, um resíduo da


estratificação da sociedade micênica herdada pelos gregos. E Platão é um nostálgico. A saudosa
soberania desfeita do Ánax micênico (o déspota divino) se insinua de modo sutil nos cantos platônicos
em louvor à ordem do Um, do Uno e do Bem. O mundo micênico era uma formação despótica
mágico-religiosa que relacionava a verdade à Voz divina do soberano sujeito absoluto de enunciação ,
inscrita no discurso mítico e nas práticas do ritual correspondente à eficácia e à renovação de tal
soberania. O mito de soberania era fonte inexaurível de vida e dons naturais, assim como era fonte da
ordem divina, natural e humana. Não há dúvida de que há uma forte ascendência desses valores sobre
a obra de Platão. A narrativa mítica é sempre circular e faz retornar o mesmo tantas vezes quanto for
repetida. O que se repete é sempre o combate e a vitória de um deus, o instaurador da ordem, sobre os
monstros que representam o caos. A estrutura do mito possibilita a repartição dos valores e dos
sentidos e a distribuição dos destinos humanos e divinos. E Platão busca um fundamento, um critério
imutável, uma prova cuja passagem com êxito permita atribuir qualidades e comandar os destinos,
limitar os pensamentos e submeter os desejos. É no mito que ele encontrará o fundamento-prova,
uma estrutura ideal, pois esta é sempre a mesma, traz consigo uma identidade e um modelo
imanentes. Em sua obra, o mito e o princípio de identidade são portanto inseparáveis. Tal princípio é
constitutivo do ser da Idéia. Toda realidade da Idéia deriva da concepção de que seu ser só é
verdadeiramente ser por permanecer eternamente idêntico a si mesmo, isto é, seu ser jamais muda ou
participa do devir dos seres corruptíveis. Jamais torna-se algo diferente do que é. E é nesse sentido,
segundo Platão, que a Idéia é circular, o movimento próprio à eternidade. Nesse sentido também a
verdade platônica é sempre tautológica. O que podemos afirmar de uma Idéia é que ela é sempre
idêntica a si mesma, por exemplo: a Justiça é justa, a Beleza é bela etc. A tautologia das proposições
encerradas na identidade da Idéia gerou o problema das atribuições resolvido por Platão no Sofista,
com a introdução do princípio de alteridade - o grande gênero do Outro que, como acreditamos,
inaugura o pensamento por analogia, dispositivo sutil de depreciação da vida e negação da potência
ontológica do pensamento. Toda a fixação da identidade da pessoa ou do eu humano é herdeira desta
doutrina porque a parte divina da alma humana é uma forma pura ou uma Idéia que, para ser divina e
imortal, implica o princípio de identidade. O chamado Eu profundo, tão decantado por muitos de
nossos contemporâneos, assim como o Ego tão reivindicado pela psicanálise, seriam tal forma, tal
prisão, tal ficção!

Mas estariam todas as coisas submetidas à Identidade da Idéia? Platão gostaria de ver todos os
seres e todos os atos deles limitados e disciplinados sob a regência dos modelos correspondentes.
Todavia ele, pela boca de Sócrates, pergunta no Parmênides se haveria também Idéias ou modelos
para coisas tão indignas como um fio de cabelo, a lama ou uma sujeirinha alojada sob a unha.

Essa questão revela a perturbação que Platão sente diante da possibilidade de haver também uma
Idéia eterna para as diferenças puras que ele condena e relega ao plano mais inferior da matéria,
desprovidas de fundamento e fonte dos simulacros. O mesmo desconforto se manifesta quando Platão
busca definir o sofista: mestre das máscaras e dos simulacros, embusteiro e falsário. Nessa tentativa é o
próprio Platão, como nota Deleuze, o primeiro a nos indicar a reversão do platonismo. A vertigem que
ele sente ao se debruçar sobre o abismo da matéria enlouquecida e seu horror à queda no ‘sem fundo’
são causados pela ausência total de qualquer fundação do devir ou do tempo, pelo esfacelamento de
qualquer identidade da Idéia (como no caso da diferença pura) ou mesmo semelhança da imagem a
algum modelo, pelo deslocamento infinito de toda origem ou fim último do real.

Se a diferença pura é maldita, é porque, além de negar tanto o modelo como a cópia, produz um
efeito simulado de semelhança, isto é, uma semelhança exterior construída sob a ilusão das distâncias
entre o simulador e o observador, capaz de parecer sem ser, capaz de enganar. Eis a fonte do erro e do
falso. Eis todo o mal que ameaça o trono da verdade e a ordem cósmica e humana.

Bastaria, contudo, o princípio de identidade para apoderar-se do devir? Se ele fosse considerado
suficiente, poderíamos fazer pouco caso da obra platônica, talvez lê-la como um conjunto de dramas
literários capazes de nos divertir. Mas é com o princípio de semelhança que ela desenvolve toda a sua
potência e pretensão de governar o devir. É por esse princípio que o devir, segundo Platão, pode e deve
ser subjugado. É pelo grau de semelhança que se determina a ordem e o valor dos seres, sua
hierarquia, seu lugar no cosmos. Se nosso mundo terreno é o do domínio da matéria ou das imagens,
tais imagens, para serem reguladas ou codificadas, devem submeter-se por imitação ou semelhança à
ação da Idéia, devem tornar-se cópias dos modelos, devem possuir um desejo de verdade, um
verdadeiro amor.

Para quem conhece o catecismo cristão, como observa Deleuze, fica fácil compreender. Reza ele:
somos feitos à imagem e à semelhança de Deus, mas pelo pecado perdemos a semelhança, perdemos a
existência moral, estamos reduzidos à existência estética, ou seja, tornamo-nos imagens sem
semelhança ou simulacros; nosso desejo perverteu-se como desejo de outras imagens e separamo-nos
de Deus ou da Verdade. Só o homem virtuoso é capaz de reconquistar a semelhança.

Para Platão, a degradação universal está em curso e o único meio de contê-la é obrigar a imagem
ou o devir a imitar a Idéia. Por exemplo: para todos os atos justos deste mundo, haveria a Idéia de
justiça - que é justa em si mesma - à qual deveríamos imitar para poder participar dela. Do mesmo
modo, para todos os homens haveria a Idéia de homem, o objeto geral ao qual todos os objetos
particulares desse mundo deveriam se espelhar e conformar-se, a fim de conquistarem uma conduta
purificada e atingirem a verdade universal e eterna. O homem virtuoso, então, é aquele que submete
suas partes inferiores, os desejos e as forças corporais domínio de si e imita o modelo, cumpre a
vontade da Idéia. Este modelo que existe em si estaria, portanto, fora de nós. A ordem real seria
exterior à vida (e esta seria ilusória, se não se deixasse regular e limitar por tal ordem). Assim, as idéias
são o que os corpos devem imitar. Vamos chegar a elas através do pensamento, conduzido pela
inspiração do delírio erótico próprio do verdadeiro amante. O pensamento dotado de asas pelo desejo,
pelo demônio Eros, não deve voltar-se para este mundo da imperfeição, para os corpos passageiros,
para a vida, para o próprio desejo corpóreo, senão para subjugá-los; do contrário, partiria suas asas e
cairia no mundo obscuro das cavernas e do esquecimento. Deve voar para as alturas, para o reduto
seguro das Idéias incorpóreas, refletir-se na luz dos modelos perfeitos do além e retomar a memória da
origem para melhor dirigir este mundo. Só obterei um ato belo se imitar a Idéia de Beleza, desde que
eu imite internamente esta Idéia e não imite externamente outra coisa (por exemplo, um corpo belo).
Porque a semelhança não vai de uma imagem a outra imagem, mas de uma imagem a uma Idéia. E
assim para todos os entes, para todas as atividades ou práticas.
Ocorre ao desejo, pois, ligar-se ao mundo supraceleste, mundo fictício das alturas e fundamento
de toda representação, cujo edifício vai ser construído e desenvolvido por Aristóteles sobre as bases
platônicas da Identidade e da Semelhança. A partir daí, o homem contrairá o hábito de sobrevoar e
julgar o corpo, ao invés de habitá-lo e vivê-lo. A perseguição ao corpo e à vida, que no início fundava-
se numa decisão apenas moral, ganhará então justificação racional e metafísica.

Eis uma maneira de pensar onde se separam as essências das coisas, as idéias dos corpos, os seres
dos devires. As palavras distanciam-se dos corpos, expressando a eminência da teoria sobre a prática,
imitando o logos divino, significando as essências eternas. O discurso ganha eminência sobre os afetos
e as coisas, pois expressa os significados ideais que os substituem ou os representam. Mesmo que em
Platão isso não esteja tão explícito, podemos dizer - como ocorrerá de uma maneira um pouco
modificada em Aristóteles - que a palavra justa significa a essência e a essência, por sua vez, confunde-
se com o real ideal (em Aristóteles a essência 1ógica representa o real individual).

O próprio corpo, o desejo corpóreo ou os afetos devem agora ser julgados por essas idéias, formas
ou modelos universais, tomados como valores superiores à vida.

Nietzsche insurge-se veementemente contra tal visão de mundo, afirmando que o Ocidente
atolou a vida no pântano do niilismo - um valor de nada que o mundo e a vida tomam. Esse valor
emerge pela invenção de uma ficção, pela condensação da crença num mundo ideal e perfeito. Um
valor superior, portanto, ao mundo terreno demasiado inexato, à vida claudicante do mundo sub-lunar
inferior. Porque, se a vida é devir, para Platão ela nunca é verdadeiramente real, idêntica a si mesma.
Ela está sendo, se tornando alguma coisa diferente de si.

O modelo é, eis a única realidade, mas a vida devém, eis toda ilusão. Então o que se deve
aniquilar, recalcar ou, no melhor dos casos, regular e subjugar constantemente é o desejo das
multiplicidades e diferenças do mundo, pois a vida nele é imperfeita. Se a vida tem alguma realidade,
deve-a às Idéias. Para Platão, é a alma o princípio e o motor da vida. Assim, imperfeita e devedora que
é, nunca atingirá plenamente este modelo de perfeição, senão quando tiver se libertado enquanto
alma pura e aniquilado completamente o corpo. A liberdade só é possível com a morte do corpo. Em
nome da ficção do Bem, das Idéias, do mundo ideal ou de Deus, deprecia-se a vida, reduz-se a vida à
mera ilusão das aparências, condena-se toda existência como culpada. Inventa-se a própria aparência,
o simulacro, aquele que apenas parece ser, mas carece, na verdade, da realidade de ser. Eis o
ressentimento contra a existência.

Mas por que a vida deveria ser julgada dessa forma ou de qualquer outra forma? É porque - diz
Nietzsche - tal julgamento e tal ódio à vida são apenas sintomas de um devir reativo de corpos
envelhecidos e decadentes, corpos impotentes e vencidos. Impossibilitados de criar e de afirmar o
devir porque estão separados de seu poder imanente e resignados à determinação externa de suas vidas
ressentem o tempo e o fluxo efêmero de todas as coisas como contrários à imortalidade e à eternidade;
querem vingar-se da vida ressentindo-se contra a morte e principalmente contra os corpos ativos,
aqueles que estão colados ao próprio tempo ou ao devir e não conhecem a ficção da morte nem do
fim. É porque os corpos débeis e impotentes não suportam a alegria da metamorfose e sentem-se
ameaçados pela velocidade, pela ligeireza, pela leveza, pela dança, pela ousadia das forças ativas que
deslizam numa superfície de encontros corpóreos sem dever nem lei. Assim, a vontade de nada
(vontade do além-mundo), a vontade de negar (vontade de negar este mundo) produzem o céu das
alturas, esta teia de aranha vingativa, tornando a realidade aparência ilusória e a ficção, realidade
absoluta. Contudo, afirma Nietzsche, a vida no fundo não se deixa julgar, pois somente ela pode
avaliar, já que é a única fonte de todos os valores valores que ela cria, mas também destrói, porque é
soberana diante dos artifícios que inventa, é a grande legisladora silenciosa e solitária.

Aristóteles e a construção da representação racional

Com Aristóteles não é muito diferente. Ele abaixa as idéias platônicas, afirmando que as formas
não pertencem a outro mundo, mas à nossa alma. Aristóteles funda a psicologia e inventa outro
mecanismo no qual as idéias não são mais conhecidas pela contemplação da origem ou ascensão
dialética como em Platão, mas concebidas por abstração da razão sobre a matéria sensível. Mantendo
a divisão original socrático-platônica, ele conserva a eminência da alma separada do corpo e concebe
o sobrevôo da razão sobre os indivíduos - sobrevôo que tem agora a altura da alma do homem,
representante e juiz do mundo.

Aristóteles, portanto, preserva o corte entre desejo e pensamento e concebe um outro mecanismo
de relação entre eles. Para melhor compreendermos tal mecanismo é preciso lembrar rapidamente
sua doutrina tripartite da alma. Antes disso, porém, podemos distinguir sumariamente três planos em
seu sistema: o mundo físico existente, composto de indivíduos ou substâncias; a alma incorpórea lugar
dos seres de razão ou conceitos que espelha ou representa o mundo; a linguagem que manifesta ou
significa as idéias da alma.

Para Aristóteles, o Bem é atingido quando conquistamos a ciência universal e encontramos a


unidade racional da alma, que transcende a diferença dos povos, das cidades, das línguas e dos
indivíduos. Mas para que o homem se torne racional (ou, como ele diz, para que o homem atualize a
capacidade de raciocinar, adormecida nele enquanto possibilidade lógica) é preciso ser antes um
homem virtuoso. É isso que leva Nietzsche a concluir que o sujeito especulativo pressupõe o sujeito
moral. E é aí que Aristóteles introduz um novo artifício: a categoria psicológica de intencionalidade.
Por quê? Porque ele visa a razão universal. Seria impossível cumprir tal objetivo sem a boa intenção.
Vejamos: Aristóteles sabe que a linguagem é equívoca, isto é, as palavras comportam múltiplos
sentidos. Mas se a linguagem é o instrumento que expressa ou significa a razão (pois sem ela a razão
seria muda e perderia a eficácia de comando), tal linguagem deve ser purificada, selecionada e
codificada, eliminando sua equivocidade para operar somente com termos de significados unívocos. O
sentido unívoco é o bom sentido, o bom senso que só pode ser pensado pelo homem de boa intenção.
É por boa intenção (intenção de fazer o Bem) que o homem se decide pelo bom sentido, único e
universal. Só o homem de bom senso, de boa intenção, é capaz de operar com uma linguagem pura e
unívoca, tornando assim possível a coerência lógica entre as proposições e silogismos expressos por tal
linguagem. Esse é um dos modos pelo qual Aristóteles exclui o sofista de toda verdade, mal-
intencionado por não aceitar a univocidade da linguagem lógica, pois desqualifica qualquer ponto de
vista privilegiado ou bom sentido que poder-se-ia erigir como verdadeiro ou universal, imparcial ou
neutro.

A alma que tem três partes vegetativa, sensitiva e intelectiva se expressa pela linguagem. As
paixões, o desejo, os sentimentos e as sensações pertencem às duas partes inferiores da alma
(vegetativa e sensitiva). A razão pertence à parte superior, isto é, à alma intelectiva. As partes
inferiores, nas quais incluem-se o desejo e os afetos, expressam-se pela linguagem cotidiana, equívoca
e impura, mergulhada na multiplicidade dos sentidos. A parte superior ou racional pressupõe um
ascetismo lingüístico (uma linguagem superior que opere com termos unívocos), capaz de purificar a
expressão, para que as verdades coerentes e unificadoras da lógica do bom senso possam ser
comunicadas e possam vencer a multiplicidade afetiva. Eis, portanto, uma nova maneira de subjugar
o corpo e o desejo: por um lado, condenar o desejo como inferior e gerador de multiplicidades
desequilibradas e desmesuradas, produtor de interesses parciais que instauram a desordem e o caos;
por outro lado, proclamar a razão como neutra, imparcial e universal, como causa do equilíbrio, da
concórdia e da ordem unificadora que desemboca no Bem. O homem de juízo é aquele dotado de
bom senso e senso comum. Por um lado, servindo-se do bom senso torna-se capaz de julgar pela razão,
a partir de um sentido fixado como verdadeiro do passado ao futuro, do diferenciado ao
indiferenciado, do múltiplo ao unificado , afirmando ou negando a pertinência de atributos próprios
ou essenciais às coisas, segundo a ordenação a este bom sentido. Por outro, servindo-se do senso
comum (órgão unificador dos atos, pensamentos e experimentações e que se manifesta quando
alguém diz eu quando a consciência do eu pretende-se sempre a mesma, sendo o mesmo eu que anda,
dorme, come, trepa, pensa, defeca, ama, percebe, sente, imagina...), atribui identidade ou
permanência não só a si mesmo, como também aos indivíduos do mundo; desse modo, o homem
constrói a outra face do juízo, fundada nas permanências ou identidades que se atribuem aos objetos.
O homem de juízo é um classificador - classifica a multiplicidade para reduzir suas diferenças
acidentais à diferença específica e à identidade do gênero, isto é, para reduzi-las à unidade universal
da razão. Em Aristóteles, a saúde do corpo implica o meio-termo ou justa medida que condiciona a
distribuição dos seus elementos e equilibra-os numa proporção mediana, excluindo os extremos
(excessos ou faltas); a conquista da justa proporção e do termo médio implica a temperança e o
governo da razão sobre o corpo. Do mesmo modo, a saúde da alma pressupõe a boa intenção, desejo
‘imparcial’ de universalidade, e a submissão do pensamento ao bom senso e ao senso comum, que o
tornam capaz de julgar. A doença, em ambos os casos, ocorre na ausência do meio-termo, no vício das
práticas individuais desligadas do Bem e na prodigalidade de sua desmesura ímpia. É claro que seria
preciso esclarecer e desenvolver mais largamente as noções de saúde e doença situando-as no contexto
grego. Mas seria necessário outro espaço (e outro tempo) para tratá-las devidamente. De qualquer
modo, os gregos, incluindo apesar de tudo Platão e Aristóteles (este último era filho de um médico),
possuíam uma visão de tal problema bem mais nobre do que nós, os modernos. O indivíduo,
constituído por qualidades e elementos primários, era sempre abordado em sua integridade física e
anímica. As disciplinas que emergiram a partir do século XVIII tais como descrevem-nas Foucault e
Canguilhem que tratam da saúde do corpo e da alma, comportam uma sordidez e um cinismo nunca
vistos até então na história do homem.

Nessa abordagem sumária da primeira linha, procuramos esboçar alguns traços do pensamento
que está na base das crenças e práticas tradicionais do Ocidente e que continua alimentando e
pretendendo justificar uma máquina que nos parece cada vez mais doente e moribunda. Pior do que
isso: uma máquina que fabrica a doença e que, ao contrário do que crêem muitos marxistas, dela se
alimenta (como dizem Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo, o capitalismo nunca morreu de
contradições) - uma máquina de morte.

Mas seria uma grande ingenuidade acreditar que bastariam alguns filósofos moralistas, fechados
em suas academias elaborando sistemas ideais e ‘bem-intencionados’, para que tais concepções
ganhassem a adesão do corpo social e conquistassem o Estado por simples questão de verdade. Já é um
sintoma de doença contagiosa a simples emergência de tais moralistas, pois o que eles querem é curar,
ou melhor, purificar e preservar da contaminação da decadência um corpo social cujo sentido de
mundo começa a desmoronar e submergir e cujas relações de forças começam a escapar ao controle
do corpo fechado de suas regras, desfazendo o estrato ou o tecido de seu mundo. É um tal contexto
que torna possível uma adesão social a tais doutrinas, as quais são suficientemente verdadeiras (a
verdade que merecem) para que possam encarnar e constituir o corpo do Estado. É mais ou menos
como o neurótico e o psicanalista: é porque a vontade do neurótico existe (por incrível que possa
parecer um nada de vontade existir) que nasce a demanda do psicanalista e da psicanálise. No caso
grego é porque a vontade do beócio - protótipo ideal do homem médio - existe que é preciso um rei
filósofo puritano ou um juiz racional cheio de bom senso para governá-lo, salvá-lo e preservá-lo na
segurança do termo médio, longe do excesso e da falta. Em outras palavras, estes sistemas filosóficos
são já sintomas de acontecimentos e transformações atuais no conjunto das forças de um corpo social.
No momento oportuno, surgirão forças para se apropriar dessas idéias e crenças que, se bem-
sucedidas, manifestarão sua utilidade ao traçarem limites, ao prescreverem códigos, recortarem
domínios com o objetivo de reformar, aperfeiçoar e conservar um regime social que interessa a tais
forças.

Nota: Esse discurso mítico, difuso na cultura grega, atualiza e repete traços essenciais da mitologia constitutiva da
formação social micênica, que exprimia sua soberania através de um poder mágico-religioso, codificando suas
relações por um regime de signos cujo valor máximo encarnava a vontade do comandante único, um déspota ou rei
divino, o Ánax micênico. Sua vontade constituía-se como Significante-mor e centro fixo e motor da cadeia significante,
determinando os conteúdos ou significados a serem extraídos e sobrepostos no campo social, oportunamente, por
intérpretes sacerdotais e escribas, encarregados da regulação e aplicação dos significados garantidores da ordem
cósmica e humana. Essa formação social micênica, tida como bárbara, anterior à divisão Oriente/Ocidente, está na
origem e na fronteira da sociedade grega civilizada e, portanto, se comunica com a origem do próprio Ocidente.

Nota: Cornford, F. M. Principium sapientiae e Detienne, M. Les maîtres de verité dans la Grèce archaique.

Nota: 3 Foucault, M. As verdades e as formas jurídicas; Gernet, L. Droit et institutions en Grèce antigue e Joly, H. Le
renversement platonicien.

Nota: Foucault, M. História da sexualidade, vol. II.


PENSAMENTO
NÔMADE
Pré-socráticos e a aliança do corpo e do pensamento

Passemos para a outra linha que, ao contrário da primeira, expressa a união, as bodas entre o
desejo e o pensamento. Segundo Nietzsche, é na aurora da filosofia grega (século VI a.C.) que se
revela e celebra a aliança fecunda entre o pensamento e a vida. Para os pensadores pré-socráticos, o
pensamento é inseparável de um modo de vida livre e de um corpo ativo e apaixonado pelos
elementos. Seria impossível para eles filosofarem por via abstrata, separando-se do corpo, pois o
próprio corpo é feito de elementos que constituem também os objetos do pensamento. O objeto e a
causa do corpo e o objeto e a causa do pensamento são um só: a natureza (physis). Não há separação
entre natureza e sobrenatureza. Tudo é natureza - inclusive o domínio do sobrenatural ou da esfera
invisível dos deuses. Costuma-se ver em Sócrates e Platão o começo da filosofia propriamente dita. No
entanto Nietzsche vê aí apenas o começo da decadência da filosofia no Ocidente. E, ao contrário de
toda a crença cultivada pelo Ocidente, ele vê nos pré-socráticos não os balbucios imaturos, mas a
aurora e o futuro sadio da filosofia, a ascendência de uma linhagem nobre de um tipo de homem cujo
modo de vida expressa a grande unidade, a grande saúde, a grande aliança entre o corpo e o
pensamento - unidade que conjura todo o corte, toda a hierarquia e a eminência da alma sobre o
corpo e estabelece uma relação recíproca duplamente positiva. Por um lado a vida ativando o
pensamento, por outro o pensamento afirmando a vida. Ora o passo de uma, ora o passo do outro.
Jogo lúdico do tempo brincando com seus elementos, como uma criança que move as peças de seu
jogo – governo de criança, como diz Heráclito. Ora um lance da vida, ora um lance do pensamento.
Ora a vida ultrapassando os limites do pensamento, ora o pensamento ultrapassando os limites da
vida. Ora os encontros ou misturas de corpos desterritorializando as maneiras de pensar, ora os atos
afirmativos de pensamento desterritorializando os modos de agir. Jogo alegre, ativo e afirmativo do
tempo, que acontece no seio da diferença dos corpos, distância necessária à liberdade ativa dos devires
e afirmada pela potência autônoma do pensamento. Jogo leve e alegre da dança dos fluxos nômades
que acontece no campo do Acaso, longe, à boa distância da segurança das fixações sedentárias da razão
negativa e das vidas reativas.
É por isso que tal modo de existir, ser e pensar pressupõe espíritos livres, libertos de toda moral,
razão e religião, espíritos generosos e doadores de vida e de novos sentidos para esta, que se encontram
bem acima das avarentas leis humanas. Vidas que não possuem como valores principais a segurança, a
conservação, a regulação, as regras, as leis, os hábitos. Espíritos desprendidos e ousados nos quais
reinam as forças ativas e criadoras, isto é, potências artísticas que amam os perigos, as aventuras, o
desconhecido, o imprevisível, as misteriosas surpresas do estranho.

Assim o pensamento, em vez de reprimir, negar ou acusar a vida, potencializa-a. Libera o poder
do inconsciente, em vez de prescrever-lhe uma estrutura - a arapuca da consciência moral, a má
consciência. Torna-se inimigo das alturas. Se o pensamento deve julgar a vida - como acreditam
funcionários de Estado como Sócrates, Platão e Aristóteles, e todo o Ocidente que se espelha ou se
afina com tais crenças e instituições –, se deve separar-se dela para funcionar bem e atingir a verdade,
já que o corpo é seu obstáculo e fonte de erro, para os pré-socráticos - este outro pensamento da aurora
grega -, ao contrário, não se pode pensar se não houver corpo ativo, assim como não se pode agir se
não houver pensamento afirmativo. Vida ativa e pensamento afirmativo só podem andar de mãos
dadas. Se quiserem permanecer como tais, não podem se largar jamais. Spinoza retomará contra
Descartes, contra os teólogos e os moralistas esta maneira pré-socrática de viver e de pensar dizendo
que, se o corpo padece, o pensamento padece junto e vice-versa e, se o corpo age, o pensamento
também age e vice-versa. A aurora pré-socrática é também a aurora da filosofia nômade. Pensadores
como Heráclito e Empédocles nos dão um testemunho vivo no tipo de encontro que fazem com seus
elementos, seus momentos e lugares apreendidos como acontecimentos extremos, onde, como diz
Deleuze comentando o método de Nietzsche, a mesma fronteira é simultaneamente experimentada
como anedota da vida e aforismo do pensamento, acontecimento que se atribui ao corpo e sentido que
atravessa a linguagem. Tais pensadores souberam viver debruçados sobre o abismo, no limiar extremo
onde vida e pensamento constróem um laço poderoso, capaz de transpor limites e de demolir os
muros demasiado estreitos da vida sedentária, para empreender a grande viagem em direção ao
desconhecido, ao imprevisível que o deus Acaso reserva. Nietzsche redescobre esta maneira perigosa e
excitante de viver ainda nas cavernas, nas profundidades dos elementos, nos labirintos da terra e do
fogo. Vê aí também uma orientação diferente e um novo elemento privilegiado para o pensamento.
Pensar significa agora não mais contemplar idéias, mas cavalgar os elementos produtores de sentido.
Não mais a ascendência às alturas ideais e estáticas platônicas, mas o mergulho na profundidade
elementar dos fluxos turbilhonantes da terra. A grande doença para o pré-socrático seria separar
pensamento e corpo. A grande saúde realiza-se com as suas bodas.

Assim como a filosofia socrático-platônica é herdeira de um tipo de sacerdote grego (o xamã)5, os


inimigos desta mesma filosofia - os sofistas, megáricos, cínicos e, mais tarde, estóicos e epicuristas -
são herdeiros, na medida em que são também filósofos da natureza, dos pensadores pré-socráticos.
Essas duas correntes divergentes se estabelecem paralelamente no tempo (séculos V e IV a.C.) e
coexistem no espaço da cultura grega, travando um combate cujos protagonistas se expressam nas
figuras polarizadas da razão sedentária e do pensamento nômade.

Em resumo, os pré-socráticos manterão a vida e o pensamento absolutamente unidos.


Parmênides, por exemplo, o primeiro a usar a palavra ser no sentido ontológico, afirma no seu poema:
o ser e o pensamento são um só. E na medida em que aparecem as doutrinas de Sócrates, Platão e
Aristóteles (séculos V e IV), vão emergir também ensinamentos e experiências nômades contra elas,
verdadeiras máquinas de guerra que combatem as formas sedentárias de vida e de saber. Sofistas,
cínicos, megáricos e mais tarde estóicos e epicuristas não se deixarão capturar pelas prescrições
totalizadoras das cidades-Estado, nem tampouco pela moral individual do cidadão e pelos códigos que
organizarão a família. Eles vão procurar, ao contrário, inventar novos modos de subjetivação e de
domínio de si. Construirão uma ética com base nas potências singulares da vida e do pensamento.
Pensarão a natureza como multiplicidade de forças liberta das leis humanas e indiferente a elas, e o
homem como uma natureza ligada à profundidade dos elementos, livre das ordens transcendentes e
pretensamente absolutas das alturas.

Superfície: uma nova dimensão para o desejo e o pensamento

Um grande não às alturas é o que une esses guerreiros nômades. Se a orientação pré-socrática
recai sobre a profundidade dos elementos da physis, guardando ainda certa unidade, os sofistas e os
cínicos fazem explodir a multiplicidade dos pontos de vista. Não há para eles verdade absoluta. Tudo
emerge e se institui segundo a diversidade das perspectivas e a mutação dos referenciais. Essa maneira
de pensar privilegia as relações, os seres em relação, destitui as formas fixas e os seres em si das alturas
como vazios de sentido e de valor. As relações ou agenciamentos que os seres efetuam acontecem
sempre nas superfícies das coisas.

Antístenes e os estóicos gregos

É Antístenes - o cínico, precursor dos estóicos - que fará uma primeira investida no sentido de
destacar uma nova fronteira para o ser e uma nova orientação para o pensamento. Mas esse novo
traçado com relação ao ser só será realizado pelos estóicos. São eles - Zenão, Cleanto e Crisipo - que
liberam claramente uma nova dimensão autônoma e própria para a vida e para o pensamento, onde
nunca havia se encontrado uma: a superfície. Não que eles tenham abandonado a dimensão da
profundidade. Mas agora a própria profundidade irá rebater-se e dobrar-se sobre a superfície ganhando
com isso um novo sentido e uma nova condição. É como se o ser tivesse duas faces autônomas: uma
profunda, outra superficial, ambas em perpétua relação ou em pressuposição recíproca. A
profundidade é constituída pelos corpos, a superfície pelos acontecimentos puros ou incorporais. A
profundidade é ser: só os corpos existem. A superfície é extra-ser: os acontecimentos não existem, mas
não deixam de ser reais - eles são realidades virtuais, subsistem como atributo dos corpos e insistem
como sentido na linguagem.

Nota: Dodds, E. R. Os gregos e o irracional e Joly, H. Le renversement platonicien.


QUESTÕES DO
PÚBLICO
Na última discussão, apareceu essa questão de altura, superfície e profundidade com Donzelot.
Quando ele fala sobre o método no livro Polícia das Famílias, discute a partir das alturas e pretende
trabalhar desde a profundidade e a superfície para ver como se organizam os corpos. Seria isso?

Parece-me que o problema que Donzelot coloca, em relação ao método, é o modo de libertar a
pesquisa histórica de dois equívocos. Um é o discurso transcendente da história clássica que pretende
explicar as transformações pela história das idéias, dos códigos e das organizações, a partir de sentidos e
valores grandiosos e últimos como a narrativa que se instala nas alturas do Estado, sobrevoa o mundo
individual sem dele poder dar conta. O outro equívoco é o dos que procuram explicar as transformações
pela história das mentalidades — explicação psicológica dos acontecimentos sociais e políticos que se
apóia num modelo falso de inconsciente, numa falsa profundidade. Nesse sentido, Donzelot destitui
tanto a altura história das idéias como também essa falsa profundidade história das mentalidades e
elabora um método capaz de apreender as singularidades próprias ao que acontece na superfície das
relações ou dos agenciamentos práticas discursivas e corporais e que explicam as emergências de novas
instituições (como o nascimento do setor social, que no caso é a polícia das famílias) e de novas
tecnologias de regulação. Na realidade, parece-me que Donzelot destitui dois tipos de altura: uma que
permanece como altura transcendente aos corpos; outra que é projetada para o interior do indivíduo e,
introjetada por este, constitui uma falsa profundidade, a da mente psicológica.

Platão e Aristóteles utilizam a via das alturas. Qual a sua relação com a profundidade?

Eles querem recalcar a profundidade mais e mais e organizar uma superfície inteiramente
submetida à ordem dos modelos, através da parte boa da matéria, isto é, da parte dócil da matéria que se
deixa regular e limitar para tornar-se boa imagem ou cópia. Platão concebe a profundidade como uma
matéria louca e rebelde a parte má da matéria ou das imagens , um devir enlouquecido que nega tanto o
modelo das alturas como a cópia das superfícies reguladas; a profundidade é um fluxo desmesurado, a
hybris, que quer insinuar-se na superfície em forma de simulacro, ameaçando dissolver a ordem das
cópias, os limites, as regulações harmônicas da superfície organizada e voltada para o Bem. É por isso
que ele quer recalcar a profundidade e acorrentá-la nos confins das cavernas da terra e dos oceanos, tal
como os titãs encarnação do caos e do mal o foram. Nietzsche dirá, ao contrário, que nunca se penetra o
suficiente, pois atrás de uma caverna existem infinitas outras e o que se descobre nesse mergulho não é a
desordem, a ilusão, a irrealidade como quer Platão, mas a exuberante riqueza e a fantástica realidade
deste mundo, reino do acaso e do imprevisível.

Diferente de Platão, os pré-socráticos se ligam apaixonadamente aos elementos puros e corpóreos - o


fogo, o ar, a terra, a água etc. Os estóicos se inspiram neles, descartam o outro mundo do além e afirmam
que só os corpos existem no presente cósmico. Para eles não há um outro mundo real-Ideal das alturas na
forma de modelo e este mundo da matéria, não há o além superior e o aquém defeituoso, como acontece
com Sócrates, Platão e Aristóteles. Só os corpos existem.

Mas entendamos o que os estóicos chamam corpo. Os nosso órgãos, nosso corpo organizado e
individuado, são já efetuação de outros corpos elementares ou afetivos, corpos sem órgãos. Os corpos
elementares são distribuídos em dois grandes princípios: matéria passiva que resiste e qualidades ativas
que agem sobre a matéria. O corpo, portanto, é definido como lugar de duas potências: paixão e ação. É
similar ao que Spinoza, no século XVII, dirá do corpo, compreendendo-o como potência de afetar e
potência de ser afetado. Ou Nietzsche, no século XIX, quando afirma que para haver um corpo é preciso
pelo menos uma composição de força ativa e força reativa.

Qual seria, nesse caso, a essência de um corpo? Para os estóicos a essência será uma qualidade
ativa, mas essa qualidade não é uma estrutura formal ou lógica, não é um modelo matemático universal
e sem vida, que possa existir separado da matéria - como Crisipo denuncia com relação às Idéias
platônicas e aos conceitos aristotélicos. Os estóicos pensarão a filosofia e a vida em termos biológicos ou
vitais e não em termos matemáticos e mecânicos, como Platão e Aristóteles. A essência de um corpo é
definida como uma potência, uma tensão ou, servindo-se do exemplo biológico da semente e do ovo, ela é
definida como um germe. Ora, todo germe quer germinar, expandir-se, efetuar-se, produzir frutos (seres)
no devir. Todo corpo possui a sua própria essência, única, singular, nunca genérica ou específica, mas
diferente de todas as outras e até diferente de si mesma, na medida em que se desenvolve no tempo - nos
dois sentidos simultâneos do tempo, passado e futuro. É por isso que a filosofia estóica privilegia as
diferenças e destitui as Idéias universais ou as Identidades dos objetos gerais. Assim, se todo corpo possui
sua própria essência individual, não há lugar para os modelos genéricos que viriam de fora dar-lhe um
limite. O limite do corpo é sempre exterior a ele, mas como efeito móvel ou flutuante de uma potência
produtiva interna que se quer cada vez mais longe de seu começo. O que essa potência quer é sempre agir
nas fronteiras, ultrapassar seus próprios limites, suas próprias formas, inventando novas multiplicidades,
novas maneiras de ser numa superfície em devir, distendendo sempre mais o arco tenso do passado-futuro.

Assim o ser anômalo de que nos fala Canguilhem6 nem normal, nem anormal, mas que escapa a toda
referência normativa vive sempre na extremidade (formas extremas) de sua espécie (formas médias), vive
na margem cuja travessia conduz à invenção de uma nova forma de vida. Assim também o peixe de Leroi-

Gourhan,7 que deriva das águas e salta para os pântanos, produzindo os anfíbios e répteis. Do mesmo
modo o Zaratustra de Nietzsche, que transmuta todos os valores humanos e conduz o niilismo de sua
espécie ao extremo, tornando-se prenúncio e ponte para o super-homem. Ou o homo sapiens de Bergson,
que ultrapassa a inteligência orgânica do homo faber e devém intuição pura, pensamento sem órgão,
liberto do cérebro e da abstração sensível.

Como os estóicos pensam o homem?

Platão, Aristóteles e o Ocidente inteiro humanizam a natureza e divinizam o homem. Louvam um


homem separado da natureza que habita as alturas superiores da representação. Em contrapartida, os
estóicos desumanizam a natureza e naturalizam o homem divinizado. Assim o homem também é a
natureza. Sua essência deixa de ser uma forma divina para tornar-se uma força da natureza. Entre a
natureza e o homem não há mais distância. Para os estóicos, o homem, sob o ponto de vista do ser, não é
superior a outros animais – por exemplo, não tem uma vida mais perfeita do que a de uma ameba, não é
mais ou menos perfeito ou real do que uma pulga ou uma gota d’água. Acontece que sempre se imaginou
o homem como a ‘fina flor’ da criação! Uma fina flor que gosta muito de defecar e que tem espalhado
muita merda na natureza! Pior ainda, o homem é o único animal dentre todos que está separado do que
pode, o único que não efetua plenamente suas potências porque criou para si muros e barreiras através de
sua rede de valores negativos e de sentidos reativos. Nessa via, e pelo respeito que temos aos animais, é
preciso dizer que o homem impotente se revela o mais miserável e inferior dentre os seres vivos. Qualquer
carrapato leva suas potências ao máximo. É fácil constatar que o homem médio conserva sua vida nos
graus mais baixos de intensidade, atrelado a valores vis que impõe a si próprio, prisioneiro de um círculo
vicioso gerado pelo movimento estéril de sua impotência. A grande máscara do impotente se instala nele
sob a forma de juiz, quando se refugia na razão representativa para justificar sua moralina.

No caso de Aristóteles os desejos de abstração, de representação e de moralização seriam


produção de uma linha, de um tipo econômico de vida, de um tipo de organização política. No caso
estóico, como eles pensam a relação entre a moral e a natureza?

Para os estóicos gregos, a natureza não é moral, nem regida por lei alguma, nem tampouco
governada por um plano divino, transcendente, nem por modelo algum. Se há uma lei, esta lei é
imanente à própria natureza. Tudo o que se pode falar é que a natureza movimenta-se produzindo
misturas. Só os corpos existem, mas existem em mistura contínua. E se os corpos se misturam e se
penetram mutuamente, eles estão em relação permanente, estão sempre produzindo encontros. Tudo que
existe, portanto, são corpos compostos de qualidades ativas e matéria passiva, ou seja, potência de afetar
outros corpos (qualidades ativas) e potência de ser afetado, de receber ação de outros corpos (matéria
passiva). Estas potências são em devir, estão em encontros, estão sendo afetadas e afetando. O afeto é o
encontro, ou melhor, se efetua no encontro. Assim o fogo quando penetra o ferro: o primeiro avermelha o
segundo, mas sem haver perda de natureza de cada um - eles permanecem fogo e ferro, irredutíveis. Ou
como a água colocada e depois retirada de um vaso. Ou ainda como uma gota de azeite colocada e
depois retirada de um oceano. Desse modo, cada parte dos corpos em mistura coexiste, sem que um
destrua a natureza do outro. Estas são as chamadas, pelos estóicos, boas misturas, nas quais os corpos
não perdem a sua natureza, não se desintegram. As más misturas são os encontros que nos envenenam,
nos decompõem, destróem a nossa natureza. Desse modo, só há encontros que nos alimentam ou
compõem com nossa natureza e encontros que nos envenenam ou decompõem. Isso funda uma ética do
ponto de vista das partes da natureza, mas não uma moral. A diferença entre ética e moral é que a moral
prescreve o que se deve crer, pensar e fazer, sob um modelo ideal e perfeito do Bem; a ética, diversamente,
convida a agir e a pensar segundo o que um corpo pode, de acordo com a potência da natureza que o
atravessa. Mas se do ponto de vista das partes da natureza podemos falar em ética, do ponto de vista
exclusivamente da natureza não existe qualquer parcialização do acaso que se possa considerar melhor
ou pior, isto é, não há bom ou mau encontro. Qualquer mistura é perfeita e expressa a composição
plenamente adequada do processo de encadeamento universal das causas. Por exemplo: o incesto, o
crime, o canibalismo ou a antropofagia - tudo isso é admissível na natureza, ou melhor, para a natureza
isso não existe. Temos um quadro vivo dessas misturas infernais nas tragédias de Sêneca. O sábio estóico
é amoral e impassível diante das tragédias humanas. Ele sabe que tudo o que ocorre na profundidade da
natureza é absolutamente perfeito.
Resumindo, a moral acredita que existe o bem e o mal em si: o Bem e o Mal. Logo, se algo te
envenena, é considerado mal em si; se algo te alimenta, é bom em si mesmo. Os estóicos, ao contrário,
afirmam que nenhuma coisa é boa ou má em si mesma. É boa ou má unicamente sob o ponto de vista
das partes que estão em jogo num encontro. Um veneno para uma parte pode ser alimento para outra e
isso varia também de acordo com o momento e o lugar, isto é, num determinado momento algo pode ser
venenoso para um corpo, noutro tempo torna-se alimento para esse mesmo corpo. Bom e mau dependem
sempre da relação (onde não existe objeto geral ou lei absoluta), e a relação se desenha na superfície - é o
lugar dos acontecimentos. Daí a necessidade da ética como potência de selecionar os encontros que nos
fortalecem e evitar os que podem nos enfraquecer. A ética é seleção de superfície para melhor expandir a
profundidade.

A ética para os estóicos é uma potência ativa que emerge no corpo, para administrar a própria vida
de dentro, e não um conjunto de proibições e deveres introjetados pelo indivíduo, a partir dos modelos e
prescrições produzidos por instâncias externas como um Deus severo, um Estado sisudo ou um pai
prepotente. A ética é um saber das práticas ou das condutas que está colada à potência ou ao germe que
se desenvolve em nós. Ela é uma dimensão individual que se instala entre a profundidade das misturas
corpóreas e a superfície dos acontecimentos incorporais e que governa ou administra os afetos através dos
encontros com os outros corpos. Um encontro, portanto, pode ser bom ou mau à medida que nos fortaleça
ou enfraqueça.

E os encontros que nos alimentam e também nos envenenam?

Esta é uma grande questão e, para tratá-la devidamente, precisaríamos de mais tempo. Mas você

poderá entender este problema lendo o livro IV da Ética de Spinoza,8 no qual ele define a servidão
humana mais ou menos assim: sou servo na medida em que sei o que quero mas sempre faço o que não
quero. Esta dualidade interior entre o querer e os atos, que caracteriza a servidão, se manifesta na
ausência de uma ética, isto é, na impotência do homem para governar seus sentimentos. É que o homem
submetido aos sentimentos não depende de si mesmo, mas da sorte dos encontros. Está ao sabor do acaso,
cujo poder sobre ele o constrange freqüentemente a fazer o pior, mesmo quando ele quer o melhor. Como
diz Spinoza, a servidão se instala no homem quando sua alma flutua ao sabor da fortuna.

Os estóicos dizem que a ética vai administrar a vida?


A ética é uma força interna que se duplica, ou melhor, constitui-se num combate interno de forças
que forjam uma dobra, uma volta para si mesmo, um domínio de si; é uma potência interna que
conquista uma dimensão autônoma e que se instala como uma dobra ligando superfície e profundidade.
Esta dimensão interna é produto da própria potência e do pensamento de um corpo, e é nesse sentido que
a ética vai administrar e orientar os afetos do corpo. É a nossa natureza profunda e desdobrada que
administrará a si mesma, que saberá avaliar e selecionar os encontros que a fortalecem ou não nas
relações consigo e com os outros.

Mas para constituir uma ética e tornar-se capaz de selecionar os encontros é preciso pensar. E
pensar não é imaginar. Não se compreende pela imaginação. É preciso ultrapassar a imaginação, a
consciência e os órgãos, porque as próprias imagens já são nossa consciência como produto, e nossos
órgãos são produtos dos afetos profundos. Aqui - como diz Artaud - o corpo não tem órgão e não se
submete a eles, e o pensamento não se submete à consciência ou à imaginação. As imagens são a nossa
própria consciência, mas elas não entendem nada, são apenas marcas que recebemos em nossos
encontros. Quando não ultrapassamos a imagem ou a marca - afirma Spinoza - não entendemos a
natureza do outro corpo que nos marcou nem a do nosso próprio corpo. Como diz Nietzsche, a
consciência é inteiramente ignorante para avaliar ou interpretar, ela não pensa, pois é apenas um
sintoma do estado das relações de forças. A única coisa que a imagem ou a consciência revela é o estado
em que o corpo está e nada mais. Se permanecermos na imaginação, o sentimento de um encontro poderá
ser bom ou ruim ao sabor do delírio e, dependendo desse parecer, vai ocorrer a aceitação ou não do
encontro, mas sem termos potência e liberdade para decidir de fato, uma vez que não há entendimento
real. É desse modo, enquanto prisioneiros da imaginação, que somos constrangidos a agir pelo que o
acaso nos impõe. Como são freqüentes entre os homens as ‘decisões’ precipitadas! ‘Pensa-se’ um encontro
como sendo bom, mas o tempo subitamente o desmascara, mostrando o quanto era nocivo Ou vice-versa.

As marcas vão surgir de um encontro. De onde vem o entendimento, se não vem disso?

O entendimento vem da nossa potência de avaliar e interpretar as relações que efetuam e


exteriorizam nossa profundidade. Pensar é pensar as causas e estas são quantidades de energia, graus de
potência que produzem e se expressam nos modos de efetuação. A profundidade das causas ou dos afetos
se expressa na superfície e ilumina os acontecimentos que se produzem nesta. A superfície é tecida pelas
relações e povoada pelos acontecimentos. O entendimento tem por objeto o modo de ser, isto é, a maneira
como um afeto virtual pode se atualizar. Pensar é problematizar as relações afetivas ou o modo de ser dos
afetos e selecionar a forma ou a máscara que o efetua com maior sucesso, que o conduz mais longe, ao
máximo de sua potência de expansão. O entendimento jamais vem das marcas - estas constituem, no
máximo, índices ou pistas que conduzem aos estados de corpo -, mas vem da luminosidade própria da
profundidade que brilha com toda intensidade na superfície dos encontros. A potência seletiva - a
capacidade de selecionar os encontros que nos fortalecem e de evitar os que nos enfraquecem - constitui
uma verdadeira economia de energia ou uma autêntica economia do desejo, comandada pelo pensamento
afirmativo. A impecabilidade de um guerreiro - diz Don Juan, nas obras de Castañeda - consiste em não
desperdiçar energia, mas canalizá-la para investi-la nas coisas mais nobres da vida. Isso se consegue, não
por uma linguagem de idéias abstratas, não por um juízo da razão que sobrevoe os acontecimentos, mas
por uma vontade que quer o acontecimento, que quer algo no que acontece, a intensidade que duplica e
multiplica um corpo aumentando sua potência de afetar e ser afetado. Essa capacidade de seleção vem
do pensamento real do corpo como multiplicidade de afetos virtuais (causas ativas) e dos encontros que
ele faz como maneiras de atualizar e realizar esses afetos. Nietzsche dá um critério prático de seleção: ao
querer um acontecimento, queira-o de modo a desejar que ele se repita infinitas vezes, queira o seu eterno
retorno. Este desejo é o desejo de um corpo sem órgãos puro campo afetivo de intensidades e de um
pensamento sem marcas, livre da consciência.

O que é o desejo?

O desejo é causa ativa. Ele é encontro das causas, é aliança das qualidades ativas. Só há desejo
quando acontece o agenciamento dessas potências afetivas. O desejo é o próprio agenciamento ou
relação. É por isso que você pode afirmar que ao desejo nada falta, seus objetos não são fantasmas, nem
tampouco ele os produz. O desejo não é uma consciência da falta marcada por um signo, que revelaria a
presença da ausência do objeto desejado. O desejo não é Édipo, não é uma asma infinita, uma
sofreguidão sem-fim que emerge no nada da falta. Ao desejo nada falta, ele é pleno de si mesmo, pois não
existe previamente ao seu objeto, mas nasce simultaneamente com seu duplo objeto. O desejo emerge no
meio, é um elemento relacional, uma liga de fluxos. Se ele tem objeto, este é o próprio fluxo. O desejo não
se aloja na ‘substância’ de qualquer dos termos ligados por ele.

Na medida em que você agencia um encontro bom...


... então tem desejo. Se você não faz agenciamento, não há desejo. Essa potência dos corpos para
agenciar e para se efetuar é o que os torna livres. Ela quer ligar-se à pluralidade do mundo, tem paixão
por multiplicidades, pois é isso que a enriquece, a diferencia, a multiplica. A liberdade de um corpo
revela-se na potência que tem para atualizar seus afetos, para ser a causa e a fonte deles. A liberdade não
consiste em evitar o mal e ligar-se ao bem, pois - como nota Spinoza - não nos ligamos a alguma coisa
porque é boa, mas alguma coisa é boa porque nos ligamos a ela, desde que estejamos no entendimento. A
liberdade tampouco consiste em uma idéia abstrata como aquela contida nos ideais que a Revolução
Francesa proclamou no final do século XVIII - liberdade, igualdade e fraternidade. Tais ideais não
passam de mecanismos de dominação e captura do desejo e das diferenças. Sade e também Klossowsky,
referindo-se aos valores da Revolução Francesa, observam que pretende-se submeter o desejo e o
pensamento a uma vontade geral de lei que quer limitar e proibir as potências individuais. Não é a
ascensão do indivíduo que se institui aí, mas o ressentimento e a vingança contra sua possível soberania
efetiva.

Os homens não são iguais. O que os torna admiráveis e interessantes são suas diferenças. A
fraternidade é um sentimento humanista, piedoso, um amor pelas fraquezas e impotências do próximo, o
que revela, no fundo, a piedade que sentimos por nossas próprias debilidades. Ela mascara a vontade de
um contágio geral para fazer triunfar a fraqueza, porque no atual estado de civilização já não se pode
suportar um indivíduo ativo, livre, forte e soberano. O Estado soube interromper o processo da cultura pré-
histórica. E o Estado dito democrático não é exceção. A liberdade que este proclama é uma idéia que
procura esconder, em sua abstração, o veneno que carrega. Os liberais apregoam que ela é inseparável do
direito à propriedade. E os juristas e moralistas pretendem que a liberdade de um homem termine onde
comece a de outro. Que engodo! A liberdade não tem nada a ver com outrem, ela remete a um campo de
imanência das potências do próprio corpo. E para completar, vem Kant nos dizer que só somos livres
quando nos identificamos a uma pura forma de lei, isto é, quando nos tornamos sujeitos legisladores.
Mas que sujeito é esse que precisa interiorizar um imperativo categórico e tornar suas ações
desinteressadas? Não vemos aí mais que um escravo miserável da moral, uma bela alma assujeitada em
seus desejos e pensamentos, que acredita que a natureza e seu próprio corpo são puro caos e que a razão
que traz na alma deve ordená-los. A questão da propriedade reputada como essencial à liberdade nos
indica o sintoma de alguém que está separado de seu poder e busca uma escora na segurança da posse
exterior, já que o interior está encerrado e neutralizado pela moral.
Segundo os estóicos, a liberdade se concretiza quando um corpo efetua sua potência ou suas
qualidades e se mantém impassível diante do que acontece. Em Platão, essas qualidades eram
propriedades dos modelos. As Idéias modelos em si têm algo que a elas é atribuído a priori. Elas possuem
as qualidades puras em primeiro lugar. Os estóicos, diversamente, afirmam que essas qualidades são
potências primeiras, livres, que atravessam nosso próprio corpo forças desprovidas de modelo ou de pai -,
são nosso próprio corpo e não pertencem a nenhuma Idéia ou a um modelo genérico. São qualidades
microfísicas e não metafísicas. Os estóicos fundam uma microfísica e uma ética, em contraposição ao
pensamento da metafísica, da representação e da moral. Não há mais uma moral do dever, mas uma
ética do poder. Um corpo não deve imitar um modelo ou obedecer a um fim, ele faz aquilo que pode e que
o torna alegre, aquilo que aumenta sua capacidade de agir e pensar. Esta seria uma ética do desejo e do
pensamento nômades.

E a propriedade?

A propriedade significa, nesse caso, você ter a sua vida nas próprias mãos; a vida e não um objeto
material ou uma qualidade copiada. Então deixa de ser propriedade no sentido ordinário, uma vez que a
posse é posse da sua natureza; se você não é essa natureza, se você não se colar a ela e não tomá-la em
suas próprias mãos, você não existe por si, mas acaba assujeitado e sobredeterminado por outras potências
mortíferas. Os estóicos não concebem essas qualidades ativas separadas da matéria passiva. Ao contrário
de Platão e Aristóteles, para os quais a alma está separada do corpo, os estóicos sabem que uma essência
não pode se efetuar se não estiver ligada a uma matéria. Como observa Bergson, o espírito vive na
matéria. Mas tal matéria não é uma possibilidade para receber formas como em Aristóteles, mas uma
potência de resistência e de composição.

Voltando ao dinamismo dos corpos, dizíamos que eles se misturam, se encontram. Esses encontros
deixam marcas. É preciso entender melhor esse processo e para isso seria bom falarmos alguma coisa
sobre a concepção estóica da alma e do conhecimento. Aquilo que dizíamos da essência do corpo, na
verdade é a própria alma para os estóicos. Eles a definem como um sopro vital, um pneuma, um elã, uma
tensão do fogo primordial, mas de modo algum estaria separada do corpo. A alma é corpo - eis a
transmutação radical a que os estóicos submetem a filosofia. Todas as virtudes da alma também passam
a ser vividas e compreendidas como corpo. Antístenes, o cínico, já se deliciava encolerizando Platão, ao
afirmar que a virtude era um corpo. Um argumento de Crisipo, para reforçar tal atitude, dizia que a
vergonha é corpo, pois o homem que a sente enrubesce; do mesmo modo o medo, pois o homem tomado
pelo temor empalidece e treme. E contra as doutrinas de Platão e Aristóteles, afirmava que a alma o
pneuma é um corpo, caso contrário, não teria nenhuma influência sobre ele e as virtudes nada poderiam,
pois o corpo só pode ser movido por algo da mesma natureza que ele, isto é, outro corpo.

Aquilo que é marcado no corpo é a própria alma ou pneuma. Num encontro de corpos, a alma de
um sofre a impressão da ação do outro e vice-versa, assim como um sulco produzido na cera aquecida.
Essa impressão ou marca é o que os estóicos chamarão de representação sensível das imagens. Esta
representação é inteiramente corpórea e trará, a cada impressão, uma imagem compreensiva. Noutros
termos, a aparência deixa de ser puramente negativa, como em Platão, para trazer consigo uma certa
sabedoria, um tipo de conhecimento. É que alguma coisa se revela nessa aparência, algum sentido que
emana da profundidade do corpo que dela é causa. Seria uma primeira instância de conhecimento
conhecimento do corpo sensível. Uma outra distinção é pensada por eles com relação à razão. Esta é
concebida também como corpo e diz respeito às noções comuns que criamos na posse da representação
racional. Tais noções referem-se à síntese das experiências vividas que produzimos. São frutos de uma
razão da experiência que se repete e da qual tiramos ensinamentos, noções comuns.

Mas os estóicos não param aí; eles descobrirão uma nova fronteira, a superfície, e encontrarão o
objeto próprio do pensamento para essa nova dimensão: a ciência dos acontecimentos. Aí está seu grande
gênio e originalidade. Os estóicos vão fundar a superfície não mais física, mas metafísica que, porém,
não se confunde com a altura. Quando dizem que os corpos se encontram, dizem também que eles são
causas - não causas uns dos outros, mas causas de efeitos de outra natureza que os corpos, efeitos
incorporais. Os seres, quando se encontram, geram uma centelha, fazem emergir um extra-ser, algo que
não existe porque só o que existe são os corpos mas que não deixa de ser real; algo que se atribui aos
corpos mas que não se confunde com as qualidades corpóreas ou estados de corpos; algo que não se pode
tocar mas que o pensamento é capaz de apreender; algo que não é 1inguagem mas que, como diz
Deleuze, funda a expressão e vive através dela.

Tais entidades sem existência são atributos ou acontecimentos incorporais, são realidades virtuais
que atravessam o tempo inatual, avançando sempre em direção ao passado e ao futuro, simultaneamente;
um tempo que sempre se esquiva ao presente e que os estóicos denominam Aion. Para termos uma breve
noção do atributo incorporal, diremos que ele tem duas faces: uma que se atribui ao corpo como
acontecimento e outra que se expressa na linguagem como sentido. Vejamos um exemplo com relação à
linguagem: suponhamos que um brasileiro se encontre na Alemanha e, não compreendendo a língua
alemã, ouça a palavra stuhl (cadeira); ele tem a representação sensível ou a imagem visual da cadeira,
sabe o que é uma cadeira, mas nada compreende da palavra que ouviu além do seu som cadenciado,
porque o som também é um corpo; então ele tem também a representação sensível da palavra, mas apenas
como um som corpóreo, uma imagem sonora ou significante; o que falta a ele é o significado, ou seja,
algo que não se confunde com o significante sonoro corporal, mas que o torna compreensível; e o que
constitui o significado é o sentido incorporal, que difere em natureza tanto em relação ao corpo, como em
relação à linguagem. É este atributo incorporal que permite compreendermos, por exemplo, uma palavra.
Ele é sempre aquilo que acontece ao corpo e torna-se expresso na linguagem. Se eu digo: “Malaquias está
correndo”, e alguém diz “peguem o Malaquias!”; reparem bem, esse alguém não disse “peguem o
correndo!”, mas “peguem o Malaquias”, que está correndo. O que seria o correndo? Seria uma ‘entidade’
incorpórea, um extra-ser; não um ser, mas uma maneira de ser, um acontecimento que se atribui ao ser e
lhe dá sentido. Esta diferença de natureza entre o corpo e o acontecimento que se atribui a ele será
condição de todo pensamento que mantém a irredutibilidade das diferenças puras e das multiplicidades
qualitativas. Esta diferença constitui a realidade da distinção formal. Os corpos são dotados de
múltiplos atributos incorporais. Mas essencialmente são dois os incorporais puros: o vazio e o tempo. O
vazio é infinito e circunda eternamente os corpos. Um dos argumentos estóicos para provar a realidade do
vazio é o de que, se não fosse real, os corpos não se moveriam; e no entanto afirmam que, apesar do vazio
ser real, ele não existe. Do mesmo modo, o tempo que eles chamam Aion não existe, mas é real. O tempo
é uma linha infinita nas duas extremidades do passado e do futuro e se atribui eternamente aos corpos.
Só o presente existe no tempo, porque é o presente dos corpos. Só os corpos ocupam um lugar no vazio e
existem no tempo presente no Cronos. Na relação do corpo com o vazio incorporal puro vai emergir um
efeito incorporal: o lugar. Na relação do corpo com o tempo incorporal puro vai emergir outro efeito
incorporal: o acontecimento. Lugar e acontecimento são eternos atributos dos corpos. Não há sequer um
só corpo nesse universo que não seja envolvido por esses dois atributos incorporais, isto é, que não esteja
ocupando um lugar (aqui) e que não esteja acontecendo (agora) hic et nunc. São as duas maneiras de
ser fundamentais de um corpo. Esses incorporais sofrem uma multiplicação, uma parcialização, quando
são atravessados pela multiplicidade de forças e tensões que compõem o universo corpóreo. É fácil
compreender isso quando se pensa nos infinitivos: amar, andar, dormir, brincar, cantar, dançar, cair,
saltar etc. Todas estas expressões são maneiras de ser, acontecimentos incorporais que se atribuem aos
corpos e que atravessam a linguagem como sentidos expressos. São as parcializações ou os múltiplos
sentidos do único acontecimento que é o tempo.

Assim, os efeitos incorporais não são seres, são maneiras de ser. Então um corpo pode, porque dotado
de uma infinidade de atributos incorporais, viver e efetuar a sua natureza de diversas maneiras. Não se
pode dizer que um funcionário público, para dar um exemplo banal, tenha uma vocação inata para a
função que exerce. Na verdade, isso é apenas um atributo incorporal fixado nele, um código e um sentido
de mundo produzidos e cristalizados em seu corpo por um outro corpo, o corpo do Estado.

Os estóicos vão dizer que só os corpos agem e padecem. Se os atributos incorporais não são
obviamente corpos, eles nem agem nem padecem, ou seja, são impassíveis. Logo, os incorporais não são
modelos capazes de prescrever o que um corpo deve ou não fazer.

Podemos ver o tombo das Idéias platônicas e das formas aristotélicas. Elas caem das alturas para a
superfície e se tornam estéreis. São engolidas pelo devir do tempo que as embaralha na dupla abertura de
sua linha, destituindo o bom senso e elegendo o paradoxo como paixão do pensamento. Assim elas
perdem a eminência de modelos juntamente com sua função de ditar o que um corpo deve fazer. Perdem,
sobretudo, a função de representar e substituir as coisas assim como seu estatuto de causas da ordem e
essência dos seres. Qualquer idéia ou forma é apenas uma maneira de um corpo ser, um modo de
expressão da potência do corpo. Tudo para os estóicos acontece entre forças. São as forças que se
apoderam de outras nos encontros que fazem e impõem um sentido de efetuação para as forças
dominadas.

Poderíamos dizer que os atributos seriam uma possibilidade dos corpos?

Esta questão é um pouco complicada, pois Aristóteles também fala em possibilidade. Na verdade, os
estóicos liberam outra coisa: a virtualidade. Esta é real, não possível. Para Aristóteles - que confunde
existência e realidade - o real existe e o possível é um não-existente, eles estão em planos distintos. Os
estóicos, diversamente, afirmam que o virtual - que também não existe atualmente - não é menos real do
que a realidade atual do corpo. Mas se a noção de possibilidade facilitar o entendimento pode-se usá-la,
desde que seu uso seja limitado ao campo do existente.

O sentido do poder ser não necessariamente é?


Se você o entende como possibilidade do ser, ele não é necessário, é um possível que pode se realizar
ou não. Mas se você o entende como uma potência virtual do ser, então ele é necessário como realidade.
Essa realidade, contudo, não implica sua atualidade, sua efetuação no presente dos corpos, uma vez que
pode permanecer como realidade virtual. O sentido virtual ou uma determinada maneira de ser só ganha
atualidade se ocorrer um agenciamento de corpos, isto é, se emergir o desejo. Sem agenciamento, a
virtualidade não passa à existência. Toda produção de realidade vem da invenção que agencia desejo e
pensamento. Como diz Bergson, se não inventamos, estamos fadados à reprodução. A produção só
acontece com agenciamentos inéditos.

Sejam eles bons agenciamentos ou não?

Haverá produção sob o ponto de vista das partes - somente nos bons agenciamentos, pois neles ocorre
um acoplamento, uma composição e não uma decomposição. Sob a perspectiva das partes a composição
produz seres e a decomposição produz deveres (não-seres). Nesse sentido, só há composição na medida em
que você fizer bons encontros, encontros alegres. Em outros termos, ligue-se às paixões alegres e não às
tristes, porque são elas que vão liberar a ação em nós, tornando-nos ativos e criadores. Entidades como o
Estado, a família, as igrejas, as instituições moralistas de um modo geral, despertam em nós paixões
tristes, querem-nos impotentes, dependentes e obedientes, para servirmos voluntariamente aos seus
interesses. É a finalidade mesma destas estruturas. Um homem livre, potente e alegre não serve a
nenhuma entidade externa e, sobretudo, torna-se o inimigo mais poderoso de tais instituições. Nenhum
atributo incorporal é fixado nele para assujeitá-lo. Ele é artista e por isso mesmo cria seus próprios
atributos como maneiras alegres e intensas de viver.

Um mundo próprio não existe antes de ser inventado. Tais atributos emergem e desaparecem como
brinquedos na efemeridade da passagem, do devir. Nenhum atributo incorporal pode narrar a natureza
de um corpo. A identidade do sujeito é destroçada. E esse é, como diz Deleuze comentando Nietzsche, o
mais inocente dos crimes, a mais alegre das destruições. As Idéias não narram mais a nossa natureza,
elas tornam-se modos de o ser realizar-se, uma vez que o corpo é atravessado por uma multiplicidade de
atributos incorporais capazes de efetuar a sua natureza. Por exemplo: fui criança, adolescente, sou adulto
agora e vou me tornar velho, mas nenhum destes estados ou passagens caracterizam uma identidade da
minha natureza, pois eles são apenas extra-seres, puras maneiras de efetuação do corpo, e não se
confundem com o ser profundo do corpo. O corpo cria suas próprias maneiras de se atualizar como regras
singulares de passagem, para falar ao modo de Hume, e não como leis imutáveis e universais. O Estado,
a razão ou a ciência, a moral ou a lei, pretendem sempre definir e limitar a essência de alguma coisa por
idéias modelares e fixação de atributos o caráter e essa coisa deve ser conduzida a obedecer tal definição
para que funcione segundo os interesses de quem a classificou. Se a coisa agir contrariamente à
definição, transgredindo os limites impostos por ela, vai acabar caindo na maldição. Assim acontece
quando ouvimos atribuições tais como fora da lei, imoral, criminoso, louco, ladrão, irracional, doente
mental, perverso, marginal, excêntrico, desajustado, incestuoso, adúltero e tantas outras conhecidas. São
as práticas do poder instituído numa sociedade, que pretendem fixar o corpo a um atributo incorporal,
congelá-lo numa máscara que melhor sirva aos interesses dominantes, capturando assim a vida,
separando-a do que ela pode. Aquele que acreditar está perdido! E os homens freqüentemente acreditam,
porque eles não ultrapassam o domínio da consciência, da imaginação e dos órgãos, não entram num
real entendimento. Os homens que se submetem e acreditam nisso definitivamente não pensam. Talvez,
no máximo, eles tenham razão, mas a razão é uma instituição fundada na imaginação e que só
funciona porque está ancorada e assegurada por forças políticas reativas, por uma máquina de morte
montada para produzir os corpos que a fazem funcionar desse modo. E enquanto funcionar assim, o
homem estará num beco sem saída. Diz D. H. Lawrence: o espírito santo da vida o terá abandonado
para investir em seres menos contaminados e com mais futuro sobre a terra.

A esperança é uma paixão triste?

Sim. Segundo Spinoza, as duas paixões mais estimuladas pelo Estado são a esperança e o medo. A
esperança nasce de uma crença inconstante na emergência de um futuro favorável mas duvidoso. É
evidente que o indivíduo que espera não age. Ele é impotente para produzir o próprio futuro. A esperança
e o medo são, sem dúvida, paixões tristes. E se constituem nas piores paixões, na medida em que são
estimuladas e provocadas pelo Estado como mecanismos de captura e controle do desejo, na articulação
com a recompensa e o castigo. O Estado ameaça: se você não obedecer, tudo se desorganizará, vão ocorrer
catástrofes, advirão a fome, as pestes e o caos, enfim, o medo dos castigos o invadirá, e, de fato, você deve
temê-los; se você obedecer, pode ter esperança que as recompensas virão. O temor dos castigos e a
esperança das recompensas - são essas as paixões tristes que mais servem aos Estados e às religiões. O
Estado determina os prêmios para os submissos e os castigos para os transgressores. Esse mecanismo
funciona montado no reconhecimento. Logo, todo homem que está submetido ao reconhecimento, que
suplica elogios para viver, é prisioneiro das recompensas e dos castigos. E quão nossa ainda é essa
estrutura!

Nietzsche irá se insurgir contra outra paixão que ele acredita ser ainda mais sórdida e triste: a
piedade, o sentimento que mais produz doença, que mais enfraquece e, além disso, mata. Assim morreu
Deus, sufocado pelo seu amor piedoso para com os homens fracos. Até um ser como Zaratustra,
anunciador do super-homem, hesita e corre o maior de todos os perigos quando é tomado de piedade pela
debilidade dos homens superiores que o assediam em sua caverna. É que, para Nietzsche, o humano em
nós deve morrer, deve ser destruído, para que a vida ativa e afirmativa triunfe. E a piedade, que é o
contrário da crueldade tão exaltada em sua obra, quer preservar a doença, a miséria, a fraqueza,
prolongando as existências moribundas sobre a terra. O que caracteriza o homem são seus valores
negativos e sua vida reativa, prisioneira da conservação e sobretudo da culpa. A natureza humana,
exaustivamente definida por filósofos e teólogos, para Nietzsche não passa de um mal-entendido, uma
grande fraude, um erro demasiado longo. Tal natureza humana é uma ficção que ganhou corpo pela
concretude do ressentimento e da má consciência. Foi uma vontade de negar que inventou um Deus-
Pessoa e foram as forças reativas que antropomorfizaram a natureza, depreciando-a e aniquilando a vida.
Quando Nietzsche diz que é preciso destruir o homem, um amontoado de mal-entendidos é evocado
numa tagarelice sem fim. Mas é sempre o mesmo sintoma - o da piedade que se agarra à fraqueza para
salvá-lo. Destruir o homem não significa dar um tiro na cabeça, mas combater o que há de reativo e
negativo em nós, transmutar os valores humanos para libertar a natureza em nós, libertar o nosso
inconsciente do ressentimento (‘a culpa é tua’) e da má consciência (‘minha máxima culpa’), Édipo
moderno. As três figuras que constituem os vários momentos do niilismo humano são, para Nietzsche, o
ressentimento, a má consciência e o ideal ascético, seus inimigos definitivos.

E as crianças?

A criança é pura potência de afetar e ser afetada. Ela está aberta para as multiplicidades do mundo.
Mas em nossa sociedade, a criança está, desde o nascimento, prisioneira do círculo papai-mamãe-Édipo
da família nuclear burguesa. A primeira doença que se inocula na criança é Édipo. Seu pecado original?
Sentimentos parricidas e incestuosos.
Além disso, há o que Donzelot chamou de polícia das famílias, o setor social com suas assistentes,
seus conselheiros, seus notáveis filantropos, que estão em conexão direta com a máquina política do
Estado, da escola, das creches, da Igreja, da medicina, da instituição jurídica. Toda essa parafernália
procura envolver a criança numa rede de produção de subjetividade introjetando valores, fixando nela
atributos incorporais, determinando funções, com o objetivo de construir uma alma submissa e um corpo
docilizado a serviço dos interesses em jogo. De fato, é próprio da sociedade moderna a invenção de
dispositivos os mais sutis com a função de produzirem almas e corpos disciplinados e controláveis. O
próprio conceito de criança, sua ‘definição’, sua ‘essência’ - como nota Philippe Ariès -, é uma invenção
recente que tem uma função precisa: conduzi-la ao status de homem com vontade livre e senso de
responsabilidade pelos seus atos, sem perder de vista o atributo que lhe foi fixado e ao qual está
‘predestinado’.

E a educação da criança?

Seria um grande avanço se perdêssemos a ilusão com a educação, pelo menos com o tipo de práticas
pedagógicas instituídas em nossa sociedade. Parece evidente que a educação é uma peça chave na
máquina de morte montada pelo conjunto de saberes do Ocidente. Porque se a educação fosse uma
prática para tornar os espíritos livres, não estaria centrada na obediência, mas no pensamento. Na escola
não se ensina e nem se informa coisa alguma, passam-se apenas palavras de ordem que, como diz
Canetti, trazem consigo uma sentença de morte.

É o que Canetti diz dos aguilhões que a mãe passa para o filho...

Sim, também. Porque a educação já começa com a mãe que, nesse caso, é cúmplice do sistema de
regras sociais. Ocorre então que um ser ainda indefeso, que está aberto a toda multiplicidade de afetos,
que quer mergulhar no universo que o envolve, que tem sede de aventuras e descobertas, vai começar a se
fechar em uma forma absolutamente morta, através da qual ele atravessará e esmagará sua vida para que
a máquina funcione.

E uma educação feita via pensamento?

Uma educação centrada no pensamento não prescreve regras absolutas nem proibições definitivas.
Ela orienta e desperta a vida, estimula as multiplicidades, não para esmagá-las, mas para exercitar o
corpo e o pensamento a vivenciar os seus limites e ultrapassá-los. Uma tal educação deseja que a vida
seja forte, que o corpo e o pensamento aumentem suas potências de agir e pensar e aprendam o quanto
antes a conviver com os perigos e desejar o desconhecido. Ela lapida as potências da vida para expandi-
las. Exercita o corpo e o pensamento para conhecer cada vez mais o que podem e superar o que ainda não
podem. Tal prática pedagógica se é que ainda a podemos chamar assim, já que em nada se assemelha à
prática educacional estabelecida procura afirmar as diferenças, criando o desejo e o amor pelo distante,
amor pelo devir, amor pelas aventuras, pela viagem nômade que se faz não no espaço, mas no tempo. Ela
prepara o corpo e o espírito para enfrentar as turbulências do acaso e os riscos do imprevisível, coisas que
só as vidas nômades conhecem e têm força para enfrentar, porque são capazes de respeitar e admirar tudo
que é estranho, as diferenças e as intensidades livres, os mistérios e as maravilhas da vida.

Uma educação centrada no pensamento afirmativo da vida é sobretudo cruel, ao contrário da


pedagogia piedosa e vingativa. É cruel com o corpo e com o espírito, não porque quer arruiná-los mas, ao
contrário, porque quer vê-los fortes, ousados e poderosos, deseja vê-los capazes de enfrentar qualquer
acontecimento e de caminhar livres, com a sabedoria alegre do riso. Talvez tudo o que tal educação deseje
seja preparar vidas que se tornem capazes de rir. Só as vidas corajosas riem de fato e jamais se
arrependem ou se ressentem do seu passado - porque não temem o acaso, tampouco o acusam, não querem
dividi-lo covardemente entre o Bem e o Mal. É possível que um homem de tal calibre se encontre com a
loucura, mas não deixaria de ser uma ‘grande loucura’ ou, para usar as palavras de Nietzsche, uma
‘grande saúde’. Tentar ligar outra vez o desejo e o pensamento, não com piedade, mas com crueldade.

Essa educação ainda está por ser inventada. É preciso restabelecer a fabulação. Não a esperança. O
Fabular! Ousar uma vida diferente, arriscar novas maneiras de viver e de pensar. Fabular nada tem a ver
com fabricar ilusões. A concretude da vida, sobretudo das vidas alegres, começa pela potência simulacro.
É preciso começar a habitar realmente este universo. É preciso que os homens acordem. Não todos, é
claro, mas pelo menos alguns, porque sabemos que muitos talvez a maioria vão continuar dormindo,
pior, desejam continuar dormindo; e com relação a estes, não os perturbemos, desejemos que seu sono seja
leve, porém definitivo. Mas para quem experimenta, em vigília, o fantástico no real, sim, estes
compreendem a palavra invenção. Sabem que não há mundo pronto. O mundo que os homens chamam
real não existe. A realidade não é algo acabado cujo peso devemos carregar. Mundo real? É preciso que o
inventemos. A realidade é produção desejante, não acomodação resignante. A adaptação a uma suposta
realidade já configurada é uma tendência própria daqueles que gostam de se conservar, de se preservar, de
se proteger; é a inércia preferida pelos corpos impotentes cujo desejo faliu e que precisam se garantir
contra o devir, na estupidez do modo de vida burguês. As vidas ativas, ao contrário, não acreditam na
adaptação a uma suposta unidade ou substância do real, mas na criação de multiplicidades singulares
moventes, onde nenhum fundamento paralisador subsiste. Elas se movem no seio da metamorfose eterna,
enquanto artistas sem identidade. O indivíduo deixa de ter uma substância - o eu pessoal é demolido, o
nome próprio emerge para designar intensidades nômades. Eu não sou eu, sou nós, sou uma natureza
múltipla, sou uma pluralidade de forças, uma composição de afetos diversos que tecem o corpo. Nessas
condições, dissolvem-se a identidade do eu e a semelhança ao tu.

Não somos iguais perante qualquer lei nem tampouco semelhantes uns aos outros. Tudo o que nos
cabe como artistas é afirmar nossa própria diferença e as diferenças de tudo o que nos cerca ou nos afeta.
Não há uma lei transcendente à vida que ordene nosso ser ou nossa maneira de agir à qual devemos
obedecer. Tudo o que a vida e o acaso exigem de nós é que sejamos fortes, isto é, que saibamos selecionar
nossos encontros e produzir, a partir de nós mesmos, os agenciamentos que nos fortaleçam para que
sejamos dignos da beleza desse universo, para que possamos jogar com desenvoltura e liberdade e criar
novas constelações, novos caleidoscópios, novas diferenças, novos brinquedos.

Se o desejo não tem identidade, ele tem essência?

Sem dúvida. A essência de alguma coisa é sempre um grau de potência, nas palavras de Spinoza. E
esta potência se repete nos encontros - a cada encontro que ela faz, manifesta sua intensidade, dando um
brilho próprio e singular a cada acontecimento, produzindo a diferença na superfície das relações. Essa
potência de repetição da essência lhe confere uma certa eternidade. Tanto para os estóicos como para
Spinoza, os afetos são eternos. As diferenças manifestam-se no modo como os afetos virtuais se atualizam.
Bergson dirá o mesmo ao conceber as potências virtuais como complicadas e embricadas umas nas outras,
só se diferenciando e explicitando suas linhas divergentes nos movimentos de atualização do devir. Então
a diferença se revela no modo ou no grau de intensidade com que o ser atravessa uma matéria,
acontecimento que altera a distribuição a dominação, as convergências e as divergências das linhas de
forças dos corpos. Tudo o que revela uma mudança nas relações de forças chama-se acontecimento. Do
modo como um corpo se encontra com outro emerge uma maneira de ser, uma diferença brilha com
realidade nova. A natureza ou essência de um corpo, sua profundidade, permanece a mesma ao longo de
sua duração mas ela não é mais uma forma matemática ou um conceito abstrato das alturas, e sim um
grau de potência da profundidade. O que difere sempre é o modo de efetuação na superfície, que
transforma a própria visão da profundidade e que faz com que eu me apreenda cada vez mais diferente
do que era: é o paradoxo da distância e da identidade infinita entre o meu passado e o meu futuro. A
essência é um germe, um ovo que repete sua profundidade nas diferenças da superfície, no devir do tempo.

A incorporação das semelhanças na maneira de ver os corpos é causada pela educação?

É causada por toda uma instituição de práticas e saberes inaugurada pelos gregos e que fez tradição
no Ocidente. Nós imaginamos que a identidade na idéia e a semelhança na percepção são naturais.
Olhamos para uma árvore e para outra e acreditamos que são semelhantes a uma ‘árvore genérica’ -
desprezamos como simples acidentes suas diferenças, as singularidades que as constituem e que as
tornam seres absolutamente únicos. Familiarizamo-nos tanto com o pensamento por identidade e por
semelhança que vemos esses elementos como dados naturais da alma e da percepção. Esse modo de
pensar e perceber as coisas é o mesmo que nos leva a considerá-las substituíveis, pois facilmente
encontramos equivalentes que as tornam passíveis de trocas genéricas. Esses traços são próprios do
sistema da representação; tão próprios e concretos que os encontramos nas diversas formas políticas que o
Estado assume. Para quem racionaliza desse modo é perfeitamente natural que alguém possa falar em
nome de outros, representá-los por delegação de poderes. Assim também a psicanálise - quando substitui o
desejo por trocas simbó1icas sublimadas quer falar em nome do inconsciente. Mas a verdade é que a
semelhança, a identidade, a equivalência e a troca são invenções e não dados naturais da alma, são
artifícios que uma máquina política produziu para constituir os extratos próprios ao bom funcionamento
de suas relações internas. São mecanismos de regulação e de codificação das relações entre os homens, os
quais determinam os modos de agir e pensar. São recortes da superfície que um tipo de sociedade desenha
para regular a si própria, para conter-se nos limites que ela pode suportar. Os Estados - essas máquinas
de morte - fixam, com esses artifícios, atributos incorporais, congelam agenciamentos, recortam o espaço e
o tempo dos corpos, esquadrinham o inconsciente e o desejo, obrigam-lhes a tomar consciência dos seus
lugares, dos seus tempos, dos seus limites, deveres e obrigações, encerrando-os numa cadeia de marcas
simbó1icas e sensíveis cadeias que a psicanálise tanto admira que esmagam os devires alegres da vida.

Como situar a psicanálise nisso tudo?


Do ponto de vista estritamente capitalista, para ser breve, a psicanálise é um sistema de
sobrecodificação do desejo, um sistema que veio para abocanhar o pedaço escorregadio de mercado que a
psiquiatria deixava escapar por não conseguir fixar uma relação de contrato entre o médico ‘homem
lúcido e responsável’ e o paciente ‘animal delirante e incoerente’ , transformando a relação entre
terapeuta e paciente numa operação lucrativa bem-sucedida. Sob a perspectiva do Estado, a psicanálise é
um composto de dois regimes de signos: o que Deleuze e Guattari chamam de paranóico-interpretativo
(Mito) e passional-reivindicativo (Lei). Esse é um aspecto que exigiria uma exposição muito mais
prolongada. Mas o que posso dizer rapidamente e que seria preciso fazer para melhor compreender esse
aspecto é um investimento no campo histórico. George Dumézil produziu uma obra grandiosa e de
extremo rigor sobre as formações e o dinamismo dos mitos, deuses e heróis indo-europeus. Compreendendo
suas estruturas e funções múltiplas ele destaca invariavelmente três funções que sintetizam a formação
de um povo indo-europeu: a função de fecundidade e abundância (deuses dos frutos da terra); a função
de guerra (deuses e heróis guerreiros); e a função de soberania (mitos de fundação).

Ele encontrará essas três funções de base repetindo-se nos mitos e heróis de todos os povos indo-
europeus. Mas é particularmente na função de soberania que duas potências complementares se
manifestam, as quais vão formar as duas cabeças do Estado: o poder violento de fundação (mitos de
fundação para os tempos de conquistas) e a ordenação pacífica da lei ou do contrato (potências de
regulação para os tempos de paz). Podemos captar esses dois pó1os complementares do Estado implicados
também na filosofia platônica: o mito (narrativa de fundação) e a dialética (regulação 1ógica). No
Ocidente sempre se pretendeu que o mito e a razão se opusessem. Deleuze demole de vez essa tolice. Mito
e razão formam os dois pó1os do Estado, seja despótico ou democrático. Eles atravessaram e
introduziram-se naquilo que costumou-se chamar no Ocidente de razão e moral. E foi neste sentido
também que Nietzsche afirmou que os filósofos que o Ocidente sempre venerou foram burocratas ou
funcionários do Estado.

Mas é bem mais surpreendente constatar que a própria psicanálise trará também, no bojo de suas
concepções e práticas, esses dois pó1os do Estado, nossos velhos conhecidos. Só que agora fazendo-os
operar de forma bem mais sutil. O Estado moderno reinventado pelo capitalismo não é, como bem
demonstrou Foucault, uma entidade exterior à sociedade e aos corpos que a compõem. O Estado está
dentro de nós, habita microterritórios, habita nosso próprio corpo. Ele interiorizou-se na forma de cógito
do desejo, capturando nosso inconsciente e dividindo-o em sujeito de enunciação e sujeito de enunciado.
Quando digo Eu, é o Estado que fala em mim. Há um texto de Deleuze - acredito que pouco conhecido
até entre os seus leitores - no qual ele fez a crítica à psicanálise a partir de uma perspectiva
completamente diferente da crítica tradicional, onde afirma que, para impedir que alguém fale em seu

próprio nome, basta que o façamos dizer ‘eu’9. Onde havia inconsciente, lá deve-se instalar o Eu
consciente, sujeito adestrado e legislador do desejo: assim reza o psicanalista. A psicanálise é um sistema
de burocratização, só que desta vez privado - burocracia do espírito. Um mito de fundação da falta e uma
lei de pacificação e submissão eterna: Édipo (mágico-religioso) e a superação do complexo (o ego, a lei) a
besta e o homem, o inconsciente culpado e a consciência redentora e legisladora. O déspota e o
democrata em nós, ou ainda o paranóico e a histérica. Que belo par! O que quer então a psicanálise?
Ela quer introjetar o Estado em nós o Édipo incestuoso e parricida (representante do desejo inconsciente)
e o Ego consciente redentor e redimido (superação do complexo pela lei). Um mito e uma lei, tudo pela
abolição do desejo, tudo pelo suicídio coletivo.

E o que se passa quando se pensa o inconsciente?

É justamente o que estou dizendo. A psicanálise, pelo menos a que leva a sério suas fórmulas
ortodoxas, odeia o inconsciente, odeia o desejo. Ela desqualifica e acaba por destruir - como diz Deleuze -
os agenciamentos maquínicos do desejo e os agenciamentos coletivos de enunciação. O inconsciente só se
produz por agenciamentos, porém essa produção é sempre a de uma realidade nova, criando jogos
revolucionários - e não fantasmas alucinados a partir de um suposto complexo já vivido e não-superado.
A psicanálise só pensa o inconsciente como produtor de fantasmas, atos falhos, conflitos idiotas. Ela tem
como inimigo o desejo, este perversor polimorfo das estruturas totalizantes. Ela roga para que entremos na
cultura, abandonemos ou sublimemos (o que dá no mesmo) esse desejo ‘criminoso’ e introjetemos a Lei, a
Falta, tornemo-nos castrados. Joga o Édipo e a Lei para estruturar o inconsciente; afirma que os
verdadeiros conteúdos do desejo são pulsões parciais infantis que se repetem disfarçadas de inocentes,
mas sua expressão verdadeira só acontece no Édipo. O inconsciente é o desejo, mas o desejo, diz a
psicanálise, é Édipo que quer matar o pai e comer a mãe. Ele é acusado como incestuoso e parricida,
reputado criminoso, declarado culpado. Então, para fazer o animal tornar-se humano e entrar na
Cultura, é preciso fazê-lo reconhecer seu Édipo, aceitar a castração e submeter-se ao domínio da Lei.
Essa tentativa é ainda mais estúpida e infame quando se procura - como no livro Édipo Africano - enfiar
o Édipo à força entre os selvagens, mesmo às custas da substituição do pai pelo tio, avô ou irmão mais
velho, mesmo que seja na forma eufemizada de estrutura virtual.

Como tudo isso cheira a sordidez e vilania! Porém - contra-argumentam alguns psicanalistas -, isso
é uma metáfora, uma estrutura imaginária e simbó1ica, papai-mamãe-Édipo é uma estrutura
significante. Acontece que suas práticas não são metafóricas. Quando elas fazem aceitar o Édipo
culpado, o desejo de fato já foi banido, abolido, decepado.

Não há como esconder: a psicanálise tem como inimigo número um o próprio desejo. As
interpretações arbitrárias de Freud, que revelam sempre o mesmo propósito edipianizante, ou as de
Melanie Klein, com seus trenzinhos fálicos e estações vaginais, entre outros, são testemunhos incontestes.
Há uma grande dose de covardia em todas essas atitudes diante da riqueza e da grandiosidade do
inconsciente. Freud acreditava que era preciso impor uma ordem ao inconsciente, uma organização vinda
de fora. Não aceitava a idéia de que o desejo pudesse ter ou produzir sua própria ordem imanente.

Mas a vida não deseja como Édipo, nem a Cultura o supera pelo regime da Lei ou pela proibição do
incesto, pois não há, no fundo da natureza humana, qualquer Édipo para ser superado e o incesto só
existe como artifício de expansão de uma raça - a não ser para os prisioneiros da consciência e dos órgãos.
Será que Freud apenas se equivocou com alguns conceitos, tendo criado outros muito proveitosos, do
mesmo modo que Hegel (como é pensado por alguns marxistas) com sua filosofia da morte? O Édipo
universal é inventado como expressão da natureza do desejo, como se ele narrasse a história de todos os
desejos. Deleuze pergunta: “Vocês não têm vergonha de construírem assim a criança? E de utilizarem
desse modo o Édipo?”. O desejo é revolucionário, quer sempre mais conexões, isto é, produções de
realidades novas. E o que quer a psicanálise? Quer impedi-lo! Quanto menos agenciamentos de desejo
houver, mais a psicanálise se alegra e torna-se bem-sucedida.

Jung fala de Édipo?

Jung se liga às alturas místicas, aos modelos cósmicos, assim como Freud se liga às falsas
profundidades para estruturar o inconsciente. Jung busca arquétipos cósmicos nas alturas platônicas.
Não é menos decepcionante. Talvez Reich (para não falar de Otto Rank) seja um dos poucos
psicanalistas cuja nobreza não o abandonou, pois ele procura formular uma economia desejante
produtora e fundar uma psiquiatria materialista. Não dá conta - uma vez que lhe faltam algumas noções
fundamentais -, mas ao menos avança de modo significativo no sentido da libertação do inconsciente.

E Lacan?

Com todo o respeito que possamos ter por sua obra, ele é ainda mais pretensioso, mais burocrata. É
Lacan quem pretende dar uma estrutura absolutamente científica para a psicanálise, com o objetivo de
torná-la uma ciência oficial capaz de operar a serviço do Estado. Isso não havia ocorrido antes, pelo
menos não de modo tão explícito.

Como situar, neste contexto, o materialismo histórico não-economicista - estou pensando no


marxismo que não tem uma leitura economicista do materialismo histórico.

Não podemos situá-lo em bloco. Se este materialismo pensa a economia e a história como
movimentos imanentes ao desejo, então pode ser uma maneira de pensar muito interessante. Mas não
acredito que haja nele esta preocupação. Marx liberou para nós noções extremamente ricas por exemplo
os conceitos de produção e de processo , ferramentas preciosas para pensarmos a história, a natureza e a
sociedade. No entanto, o marxismo é atravessado por uma série de conceitos bastante reacionários - não
só os herdados de Kant e Hegel, como também os que ele mesmo produziu, constituindo um sistema de
sobrecodificação, uma nova arapuca para o desejo e o pensamento. Isso é particularmente claro quando
se pensa no método dialético. Se o materialismo histórico segue um movimento dialético, ele é
necessariamente, em sua essência, um processo niilista e reativo, pois a dialética pressupõe que a negação
e a afirmação constituam dois pólos de um mesmo plano. Não há dialética se o negativo não estiver no
interior do espírito ou de um processo histórico, isto é, se a morte não for constitutiva do movimento do
devir. Pode-se pensar sobre o parentesco entre essa concepção e o instinto de morte de Freud, ou entre ela e
a teoria termodinâmica da entropia na química e na física.

Na verdade o marxismo e a psicanálise tornaram-se as duas grandes burocracias da modernidade -


pouco importa que uma seja pública e a outra privada. Mas quando se compreende que o negativo é
apenas uma maneira de ser da afirmação mais profunda, é apenas uma das infinitas maneiras de ser da
afirmação, a dialética desaparece como a noite desaparece com a aurora solar. Nietzsche dirá que a
essência daquilo que os homens denominam História só emerge e se realiza com o aparecimento do
homem reativo e niilista. O motor da História para ele é o niilismo, não a luta de classes. Então o
objetivo da História e do processo dialético não é o de atingir um indivíduo superior, livre e soberano,
como produto maduro da atividade da cultura. A História não é o aparecimento da cultura, mas a sua
interrupção. Ela jogou o processo ativo do passado pré-histórico e sua vontade afirmativa de futuro numa
noite escura, recalcou-os como sombras projetadas por sua falsa luz, por sua falsa atividade e sua falsa
afirmação. Na realidade o objetivo da História - ou pelo menos aquilo que ela vai atingir efetivamente -
não é a autonomia dos indivíduos livres, fortes e soberanos, mas a crescente dependência de um homem
fraco tornado reativo, sem vontade de futuro, um homem entediado e aniquilado (como personagens dos
filmes de Fassbinder). Essa coleção de homens constitui o nosso mundo atual, o mundo dos nadas de
vontade. Homens como esses não sabem mais onde se encontram a fonte da vida, as usinas de energia,
não sabem o que os fortalece; são incapazes de evitar e conjurar o que os enfraquece, estão em um beco
sem saída, resignados com sua impotência e com os rumos decadentes e estúpidos que toma a sua
civilização.

Só começaremos a nos fortalecer quando começarmos a pensar, quando formos capazes de nos tornar
seletivos. Qualquer um que produzir seus processos com o seu ser inteiro, sem meios-quereres, estará
fatalmente no pensamento afirmativo e nos devires ativos da vida. Uma cozinheira pode fazer os
manjares mais saborosos quando se entrega plenamente à sua ocupação, com pensamento e intensidade,
doando vida e contagiando os convivas, como no belo filme A Festa de Babette. Ou como a lavadeira da
qual nos fala D. H. Lawrence, que se alegra com a brancura de um lenço bem lavado. São atos simples,
puras afirmações, sem a mácula do negativo na essência.

class="fuganti"Não importa o que se faça, importa que este fazer seja atravessado pelo pleno
pensamento, isto é, que nos tornemos o próprio tempo - o tempo próprio dos processos -, ao invés de
apenas termos tempo para gastar. Desse modo aumenta-se a potência de agir, intensifica-se a vida.
Assim desejo e pensamento realizam suas bodas para potencializar a vida, não para aniquilá-la.

A mesma coisa acontece quando se trata de estudar. Temos muitos temas que levantamos aqui sem
desenvolvê-los como seria preciso, devido às limitações que um encontro como este nos impõe e também às
nossas próprias limitações ainda não superadas. É matéria para a vida. Se com isso conseguimos, ao
menos por um breve momento, afetar, produzir deslocamentos e estranhamentos, arrancar o pensamento
dos lugares comuns, balançar as crenças que já têm raízes podres, sensibilizar para os caminhos da arte,
despertar o desejo de estudar e pensar, temos motivos para nos alegrar. A única forma digna de estudar é
fazê-lo com afeto e com entendimento das causas. Quando você entende, encontrando o problema e
colocando-o no campo de imanência do qual emerge, nem Aristóteles - por exemplo - é chato ou
inacessível, porque pode-se fazer do encontro com suas motivações um jogo, de onde se extrai humor, o
riso próprio que cada acontecimento nos oferece. Eis um modo propriamente alegre de transmutar e
compor com o passado. Não é um eu que ri, mas sempre uma quarta pessoa do singular. Nada melhor do
que libertar-se de Aristóteles entendendo-o e obrigando-o a desmontar a máquina que ele próprio
construiu a partir de uma perspectiva que acreditava privilegiada, fazê-lo falar de vários outros pontos de
vista e experimentá-lo numa prova, ver o quanto suas verdades podem suportar sem serem destruídas.

O entendimento é a fonte privilegiada da alegria e a alegria é a fonte propulsora da ação: tal é o


jogo lúdico daqueles que pensam e experimentam. Pode-se multiplicar os bons encontros sem sair do
lugar. Então ler ou estudar deixa de ser uma carga, uma obrigação. Lembremo-nos mais uma vez dos
ensinamentos de Nietzsche: o verdadeiro afirmador, diz ele, não é aquele que pronuncia um sim a
qualquer realidade, dispondo-se a carregá-la sem ao menos selecioná-la ou avaliar seu peso. Este só pode
ser o sim do asno, um sim indiferente e resignado. O sim dionisíaco, ao contrário, traz consigo um não
destruidor, um não capaz de anular o poder de uma realidade que é simples produto do negativo e
obstáculo à criação e de abrir caminho para que a realidade positiva se produza, dando lugar aos devires
ativos.

No seu Zaratustra, Nietzsche nos apresenta três metamorfoses do espírito: como o espírito se
transforma em camelo, como o camelo se transforma em leão e como o leão se transforma em criança.
Antes de mais nada, o camelo é Cristo, pois Cristo é aquele que diz sim a todo poder do negativo que
impera, ele não opõe resistência a nada. Suporta humildemente tudo como dever ou obrigação, quer-se
como a natureza mais virtuosa e passiva para carregar os valores em direção ao outro mundo de Deus, ‘o
mundo verdadeiro’. Mas assim acabar-se-á num deserto, vazio de vida, com a natureza afirmativa
abolida, faminto e sedento. É então que o camelo vira leão, aquele que diz não a todos os senhores e ao
último deus, o sagrado Não que destrói todos os ‘nãos’ que a negação já fez, que acaba com todos os
velhos valores humanos e divinos e abre caminho para a criação do novo. Nesse ponto acontece a
metamorfose do leão em criança - é o momento do advento do grande sim, o Sim sagrado de um ser que
vive sob o signo da inocência e do esquecimento, por isso pode criar. “Um novo começo, um jogo, uma
roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer sim” é a criança. “Aquele que está

perdido para o mundo conquista seu mundo”10.

Quem acredita nos ‘nãos’ que estão sempre nos rondando, na Moral, no Édipo, na Lei, no Estado?
Somente os tolos, os espíritos de suportação que gostam de carregar os valores estabelecidos, dizem sim a
todos esses ‘nãos’. Quem pode libertar e efetuar suas próprias potências? Aquele que for capaz de
entender, desmontar e destruir os valores estabelecidos como superiores à vida. Nenhum valor pode ser
superior à vida; é ela que inventa todos os valores. Pode-se chamar a isso reversão do platonismo, reversão
do cristianismo, mas também reversão de nós mesmos. Só desse modo podemos conquistar a autêntica
afirmação imanente à própria vida, a afirmação seletiva que nos torna inventores. A invenção nada tem a
ver com o trabalho do negativo do qual nos fala Hegel - trabalho carrancudo, pesado e triste. A invenção
é necessariamente um movimento de leveza, um jogo alegre, uma explosão de riso. Todo moralista espera
melhorar o mundo pela virtude, deseja fazer triunfar a parte controlável do acaso submissa à razão.
Porém o artista, este já perdeu toda esperança. Ele não espera, ele produz o novo, ele inventa com rigor o
seu próprio mundo sem dividir o acaso, afirmando-o por inteiro, assim como afirma o devir e a
multiplicidade como única substância.

Isso pode ser ligado aos textos de Canguilhem sobre o anômalo, sobre os valores de saúde?

Sem dúvida. O anômalo traça uma linha de fuga com relação a todas essas estruturas que
encarnam o ‘não’ à vida e um modelo de saúde. Ele vive no limiar da forma específica, abandonou as
formas médias da espécie para viver no limite extremo onde a potência cresce pelas bordas, ultrapassa sua
própria natureza e inventa um novo modo de viver e de pensar.

Qual o ensinamento profundo que o anômalo nos dá? O de que podemos inventar linhas de fuga
em vez de darmos nosso sangue para fazer funcionar uma máquina de morte ou aprisionar o desejo nas
redes dos códigos normatizadores. É preciso perder as ilusões que ainda temos em relação às instituições.
Talvez tenhamos que nos tornar pessimistas ao extremo para que uma positividade autêntica possa
nascer. No Ecce Homo, Nietzsche afirma que toda vez que deixou de ser pessimista sua energia atingiu
os graus mais baixos de vitalidade. Tal afirmação é paradoxal, mas apenas na aparência. Quando nos
tornamos pessimistas apenas deixamos de investir no que já está velho e caduco. Economizamos energia
para investi-la na invenção e na produção de novos mundos, o que tem como conseqüência a destruição
dos signos instituídos, o assassinato dos valores estabelecidos.

Sejamos dignos da vida, tornemo-nos traidores e assassinos dos valores caros a esta sociedade atual.
Se compreendermos e afirmarmos realmente a vida, seremos naturalmente traidores da família, do Édipo,
do Estado, do Eu e de Deus. É preciso sobretudo trair o Eu, porque este é um vaidoso trapaceiro que quer
se apoderar de nós. A mais alta trapaça é a que o Eu faz com o nosso corpo, com o nosso desejo. É ele o
grande embusteiro, a grande mentira à qual os homens ainda se apegam como se fosse a coisa mais
preciosa desse mundo. É ele que impede que encontremos a nossa verdadeira singularidade, o nosso
verdadeiro nome próprio, a nossa verdadeira diferença, aquilo que nos faz únicos, aquilo que pensa e age
em nós. Só seremos livres quando colocarmos o Eu de joelhos e depusermos a consciência e os órgãos dos
seus postos usurpados de comando.

Nota: Canguilhem, G. O normal e o patológico.

Nota: Leroi-Gourhan, A. O gesto e a palavra, vol. 1.

Nota: Spinoza, B. Oeuvres complètes (Éthique).

Nota: Refere-se ao texto Quatro proposições sobre a Psicanálise, in SaudeLoucura, no. 2.

Nota: Nietzsche, F. Assim falou Zaratustra, livro I, trad. Mário Silva, Ed. Civilização Brasileira.
REFERÊNCIAS
Ariès, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1981. Aristote.
Ouevres complètes. Trad. J. Tricot, Paris, Vrin, 1981.

Aubenque, P. Le problème de l’être chez Aristote. Paris, PUF, 1962.

Bergson, H. Oeuvre complète. Paris, Pléiade, 1984.

Brehier, E. La théorie des incorporels dans l’ancien stoicisme. Paris, Vrin, 1982.

Canetti, E. Massa e poder. Distrito Federal, Melhoramentos/UnB, 1984.

Canguilhem, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1978.

Cornford, F. M. Principium sapientiae. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1ª ed.1952.

Deleuze, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro, Graal, 1988.

_________ Lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 1982.

_________ Quatro Proposições da Psicanálise, in SaudeLoucura, vol. 2. São Paulo, Hucitec, 1990.

_________ e Guattari, F. Mille plateaux. Paris, Minuit, 1980.

____________________ O anti-Édipo, Rio de Janeiro, Imago, 1976.

Detienne, M. Les maîtres de verité dans la Grèce archaique, Paris, FM, 1981.

Dodds, E. R. Os gregos e o irracional. Lisboa, Gradiva, 1988.

Donzelot, J. A polícia das famílias. Rio de Janeiro, Graal, 1980.

Dumézil, G. Mythe et épopée. Paris, Gallimard, 1968.

Foucault, M. História da sexualidade, vol. II, Uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal, 1984.

__________ A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, PUC/RJ, 1979.

Gernet, L. Droit et institutions en Grèce antique. Paris, Flammarion, 1982.


Goldschmidt, V. Le système stoicien et l’idèe de temps. Paris, Vrin, 1985.

Joly, H. Le renversement platonicien. Paris, Vrin, 1985.

Leroi-Gourhan, A. O gesto e a palavra, vol . 1 e 2 . Lisboa, Edições 70, 1983.

Nietzsche, F. Oeuvres complètes. (ed. Critique) - dirigida por M. Gandillac e G.Deleuze. Paris,
Gallimard, 1980.

Platon. Oeuvres complètes. vol. I e II. Paris, NRF, 1950.

Spinoza, B. Oeuvres complètes. Paris, Pléiade, 1954.

Vernant, J. P. As origens do pensamento grego. São Paulo, Difel, 1986.

___________Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo, Difel/Edusp, 1973.


POST
SCRIPTUM
DO CANSAÇO E DO CONFORMISMO EM NOSSOS DIAS e DA
NECESSIDADE DE UM MÉTODO PARA UM PENSAMENTO CRÍTICO-
CRIATIVO

O sentido das práticas e o valor dos conceitos iluminam-se no limite extremo de suas fronteiras
que, quando transpostas, os fazem mudar de natureza ou desaparecer. Nesse corte inaugural
desenham-se novos horizontes ou modos de perceber e sentir. Distribuem-se fluxos de desejo ou novos
modos de querer. Conjugam-se vetores de potências que diferem em natureza, mas são integrados em
novos centros de poder e novas formas de saber. Essas novas sínteses ou esses novos modos de atualizar
e integrar modificações virtuais são constituintes daquilo que chamamos invenções de uma sociedade.
Assim, para pensar e problematizar essas práticas e concepções nas suas especificidades por aquilo que
as tornam o que são, é preciso instalar-se nos cortes de valores e distribuição de sentidos que as
produzem.

A operação genética e crítica do pensamento implica um encontro que só acontece na exata


distância que nos liga e separa, a um só tempo, do corte que inaugura o modo ocidental de pensar,
sentir e desejar.

Um distanciamento focal

Se realmente queremos exercer a crítica sobre os modos de julgar, conhecer e desejar que
herdamos de uma época – ou seja, os mesmos modos de produzir sentido e valor que estão na base do
nosso sistema de julgamento, cujo ideário seguimos cegamente investindo de modo ainda mais sutil,
não mais como objeto ideal e transcendente mas como forma interior e transcendental, constituinte
de nossa subjetividade mesma — precisamos conceber quais os pressupostos, como e por quê são
desejados e sob quais pressões de existência criam uma resposta coletiva ao diagrama-problema de uma
formação social. A crítica torna-se cada vez mais urgente quando vemos que, a partir do tipo de
modernidade inaugurada com Kant — e sua falsa crítica — e com a gicantesca fábrica de
assujeitamento das mentes e de organização reativa dos corpos instalada no seio do capitalismo,
apenas seguimos reformulando as formas de depreciar os modos de viver realmente ativos,
encontrando um miserável gozo no menor ato de julgamento.

Sob as formas ditas superiores do desejo e do pensamento, autônomas ou normativas,


constituintes da Forma-Homem, do sujeito do conhecimento e do sujeito moral, condiciona-se e
compromete-se o conjunto das soluções que respondem a essa problemática, dentro dos limites de um
dever-ser universal que nada mais pode fazer do que soldar a existência à Lei. Sob o teto celeste dessas
formas superiores e seus limites constitutivos colocamos apenas os problemas que, nessa clausura,
somos capazes de conceber e que são, ao mesmo tempo, sintomas daquilo que uma sociedade pode
suportar. Eis as zonas cegas da crítica dos Valores. É por isso que os ‘melhores espíritos de nosso
tempo’ não podem vislumbrar problema algum ao enterrarem as próprias cabeças nesse ideário da
Norma como princípio de realidade e, por que não dizer, como medida de sua sanidade mental.
Mesmo as respostas da fenomenologia, do existencialismo e do estruturalismo são tributárias desse
conformismo moderno. E ainda hoje não é dessa fonte que retiramos o critério que normatiza a saúde
ou doença de nossa mente e de nosso corpo?

Vemos cada vez mais um acolhimento estranho e piedoso aos pensadores da diferença, o uso
conformista da obra de Foucault e até bizarras tentativas de sobrecodificar a esquizoanálise de
Deleuze e Guattari em proveito de uma psicanálise ou clínica não-ortodoxa que anularia a crítica
mais contundente, com um propósito claramente reformista de conservar o essencial das instituições,
das relações sociais e políticas, ou seja, das técnicas de controle da vida. Enfim, o que essas posturas
‘pós-modernas’ deixam entrever mesmo é seu ceticismo em sua complacente conivência com a Lei —
pois sem ela a troca não prospera, já que em última instância o que conta mesmo é o Mercado, o qual
não exprime senão um outro tipo de embriaguez para encobrir o cansaço produzido por esse nosso
jeito moderno de sermos niilistas. Mas diante desse apego reformista à Forma-Homem e desses
investimentos refinados travestidos de liberação; diante desse ‘gosto democrático’ pela normatização;
diante de uma civilização que não vislumbra outro caminho senão o da instituição da Lei como
forma inelutável da verdadeira liberdade — Estado de Direito positivo que nos defenderia dos
totalitarismos, fascismos e terrorismos; diante desse quadro todo de decadência das mais nobres forças
do homem, será que realmente queremos e somos capazes de ver aí não a saída ou melhora
progressiva da condição humana mas, ao contrário, um grito autoritário de desespero que demanda
um biopoder ou uma sociedade de controle sobre a vida?

Não é simples a tarefa de encontrar e desnudar, sob os valores do presente, prolongamentos e


repetições de memórias de longa duração que atravessam épocas. Sem esse distanciamento da imagem
ocidental do pensamento — o que também implica um novo modo de sentir, perceber e produzir o
real — vemos mal como as máscaras do Ideal e da Verdade continuam a desqualificar
silenciosamente modos intensivos de vida e maneiras afirmativas de pensar. Vemos mal como esses
modos de investir em identidades, semelhanças e continuidades extrínsecas constituem, na realidade,
não modos superiores, livres e saudáveis de ser, mas formas violentas e veladas de captura do desejo e
subordinação das diferenças, que continuam imperceptivelmente a nos comandar e nos controlar à
distância.

Nada fazemos enquanto não transmutamos os limites em limiares e os fundamentos e


finalidades em acontecimentos, para então nos lançarmos num movimento intensivo, real e sem a
mediação do juízo, um movimento cujos modos de passar, experimentar e produzir realidade se
tornam primeiros, prioritários ou imediatos, abrem uma ordem direta e mais sutil, profunda e
imanente do real — comum ao corpo, ao pensamento e a toda natureza naturante -, que não passa
pela lógica da representação dicotomizadora do pensamento e do corpo, pela pobreza dos modos de
significação expressos na linguagem humana. A lógica formal e seus juízos pressupostos de valores e
de conhecimento -juízos sintéticos a priori - não ultrapassam, apesar da sua pretensão ou intenção do
contrário, o plano da doxa ou da opinião, sempre subordinada à paixão ou às determinações
extrínsecas de nossa essência. Só conquistamos uma lógica imanente do sentido das forças e da
criação de valores quando afirmamos os comandos reais e necessários — sem centro de poder —
intrínsecos à autoprodução do real, descortinando sua motivação até nos modos humanos de captura,
percorrendo os gradientes intensivos desses autênticos domínios de passagem que podem produzir,
quando transpostos, modificações irreversíveis a um corpo social e cultural. Percebemos aqui a
emergência, ali a freqüência, lá a reprodução de um horizonte comum que ressoa em todas as
maneiras de viver de um povo ou sociedade. Apreendemos seus modos de reagir ou responder aos
problemas que um meio existencial coloca e/ou de ressentir àqueles que não podem suportar.
Podemos sentir e dimensionar o conjunto da bolha em que nos colocamos, que nos envolve e
com a qual ainda não conseguimos romper? Não será só então, na percepção desse círculo vicioso,
que poderemos produzir efetivamente em nós a transição — como condição necessária, mas ainda
não suficiente — para outro modo de desejar e de pensar, além do limite ou da fissura esquizofrênica
de uma época que poderia nos fazer sucumbir, num desejo inteiro de transpô-la?

Captando como estes modos de viver e valorar dobram o existir sobre si mesmo e se enclausuram
ao desejar sua própria conservação e segurança no interior e na duração dessa dobra, implicamo-nos
no que nos torna cúmplices dessa clausura, instalamo-nos diretamente sobre uma rede de linhas de
força que nos seduz ou ameaça, tomamos nossa vida num acontecimento-problema — um falso
problema quando nosso modo de viver e pensar é um investimento e uma resposta aos modos de saber
e poder estabelecidos pelo diagrama de forças dominante e um verdadeiro problema quando nosso
modo de vida desinveste o velho diagrama de poder e de reconhecimento e usa sua contração de
energia sem desperdício ou distração, para apreender as linhas ativadoras que fazem aumentar a
capacidade de existir e de acontecer. Logo, quando concentramos ou intensificamos o que se
apresenta como essencial em nós, essa pura presença que nos sustenta sem a âncora das significações
imaginárias ou simbólicas e sem o anteparo do grande Outro — constituinte do espelho da
representação que reconhece ou renega, atribui-nos ou destitui-nos de realidade como existentes,
quando, portanto, é nossa própria potência, na sua auto-sustentabilidade, que age e pensa em nós sem
carecer de autorização ou autenticação -, só então distinguimos rigorosamente o investimento
intensivo de nosso desejo do investimento intencional, focamos na produção de novos modos de viver,
sentir, agir e pensar, e nos reinventamos em cada aumento de potência, em cada criação de novas
superfícies de ressonância, em cada amplificação intensiva de nossos modos de nos lançar, jogar e
transmutar.

Quando o pensamento confunde-se com as próprias linhas de construção de uma motivação de


mundo entrevemos, pelas direções que essas linhas traçam e as formalizações do espaço e do tempo
que se interpõem entre corpos e pensamentos, novos fins ou modos de dizer sim e não a nós mesmos,
isto é, às diferenças essenciais que nos constituem e que nos fazem viver ativamente. Um novo
horizonte de valores se levanta, sobrepondo-se a uns e fazendo submergir outros. Tudo o que
realmente importa é a conquista das qualidades ativas que se destacam, nos encontros, como matérias
expressivas das e nas relações, mas que só se tornam atos imanentes de vidas que criam seu próprio
destino quando as esculpimos singularmente ou fazemos delas criações expressivas e necessárias de
passagem para uma potência crescente. Passagens de crescimento. É assim que tais qualidades
atualizam e preenchem o horizonte relacional da potência ou essência.

Nesse preenchimento acontece também, na coexistência de um segundo tempo, o retorno que


faz consumir o resultado da ação, isto é, o consumo de intensidades ativadoras da potência de viver e a
produção de afetos alegres ou modos livres de passar que daí decorrem. É esse o conteúdo do devir que
se produz em nós, que retorna sobre nós modificando nosso modo de desejar. É na cumplicidade desse
modo de vida que se faz aumentar ou diminuir nossa capacidade de desejar, sentir, pensar e de nos
dispor à experimentação. Por isso sempre que projetamos, dando as costas ao devir, caímos em velhas
memórias e, quando acreditamos que inovamos, ainda uma vez são apenas recaídas e sombras
refletidas — incluindo as zonas cegas e as crenças implicadas em seus contornos e contrastes — a nos
esposar romanticamente!

Precisamos reinventar o desejo de um corpo livre e pleno, libertá-lo simultaneamente do sujeito


e do objeto, da memória subjetiva e do ideal significante. É assim que a própria fonte do desejo
retorna e nos atravessa como acontecimento desejante, desejando em nós, sem os choramingos
pedintes da falta de objeto de gozo ou culpabilizações impotentes do fantasma da castração. Só há
desejo como elemento ativo, intenso, não-intencional. O desejo é potência sempre em ato, portanto
sempre preenchido pela capacidade de acontecer. O desejo é o acontecimento que faz crescer a
presença do real no encontro de um elemento diferencial imanente com seu horizonte absoluto, ao
mesmo tempo comum como plano de natureza, e singularizante como plano de composição,
horizonte afirmativo de sua diferenciação intrínseca, portanto motor modificador de si mesmo.
Acontecimento ou devir do próprio querer, que modifica simultaneamente as expressões da essência
do pensamento incorporal e os conteúdos do corpo pleno, um devir-de-si e um devir-mundo na tessitura
necessária dos territórios existenciais que lhe correspondem. Jamais carecendo do mundo que o
prostraria como um ser aí, um ser no mundo, um ser para a morte! A qualidade que necessariamente
preenche o desejo ou atualiza a potência é a medida de sua imanência ou transcendência, de sua
plenitude ou ilusão do gozo impossível. É ela que qualifica o sentido e o valor da distância necessária.
Revela a baixeza ou a nobreza do elemento ou qualidade da potência que produz esse mundo e que
faz crescer ou esgotar os corpos que o compõem. É a afirmação da distância expressa na diferença de
potencial que cria e põe nossos próprios valores em variação — forçando-nos a repensar a época em
que vivemos — que ao mesmo tempo explica e constitui o valor ou a qualidade do pensamento e do
desejo implicados, dobrados naquela motivação. Tais motivações produzidas, determinadas por sua
vez a serem dominantes, movem investimentos de mundos, que acabam por fortalecer ou adoecer os
corpos e as mentes.

É portanto nessa distância — ora avaliada negativamente como ausência ideal, ora
afirmativamente como presença do virtual — que se desconstróem e descortinam as linhas diferenciais
de devires reativos às multiplicidades ou às diferenças ativas ou intensivas. São esses devires reativos
que, banhados naquela ausência, criam o ser supostamente incriado e fundante, legitimador dessas
práticas e conceitos de saúde, desejo e pensamento com significação em si ou ideal. Assim, sob a
pretensa verdade estabelecida como princípio de realidade daquilo que uma época evoca como
critério de saúde ou doença — seja do corpo ou da mente -, se desvelam sentidos, não como causas
mas como efeitos de tipos de forças que lhes impõem uma direção excludente, e valores, como
sintomas de qualidades negativas de vontades dominantes ou que querem dominar. Dessa maneira, o
falso império do Significante — que se constitui na própria ausência como referência e sempre se
refugia numa origem supostamente perdida — é desmascarado pelo Meio como um sintoma ou um
resultado, localizado e datado, emergente segundo (e até terceiro) de um diagrama de afetos coletivos
— jamais o seu fundamento primeiro. Por isso somente essa distância nos torna capazes de captar,
fora das próprias limitações do pensamento envolvido no interior de uma formação social, a
emergência dos atos que fazem frente aos acontecimentos extremos que a colocam à prova, como
respostas ou remédios a problemas vitais para um corpo coletivo que se esgota ou adoece.

Dessa perspectiva imanente aos desejos e interesses implicados em cada prática saltam linhas de
atualização constitutivas desses atos que fazem nascer, num determinado momento e lugar, formas de
Saber e práticas de Poder. É por esse deslocamento necessário no oriente do desejo de um socius -
acontecimento inaugural ou terminal no seio de uma cultura -, no encontro problemático de blocos
de desejos e conjuntos de costumes divergentes, na tangente de suas curvaturas ou dobras, que ao
mesmo tempo se inscreve a Memória desse corpo como condição fronteiriça de sua duração e
repetição e se flagra as linhas disjuntivas que a fazem divergir de si mesma. É por essas linhas que se
concentram suas forças, como também se coloca em fuga todo um corpo social. Nessa fronteira ou
divisor de águas desenham-se os novos horizontes, atos escultores de novos estilos de vida. E enquanto
forem capazes, como produções históricas, de reproduzirem-se a si mesmos nas condições de
existência daquele tipo de vida que ali se constituiu, continuarão vivos.

Uma aproximação por imanência

Problematizar a qualidade do ato de pensar e do ato de desejar do homem, da qual depende a


saúde dos corpos, das mentes e das sociedades, também envolve um exame minucioso, uma
aproximação, um mergulho imanente na atmosfera da formação social em questão.

Para captar tais atos formadores e suas qualidades é preciso habitar sua motivação inerente.
Posicionar-se no próprio motor dessas práticas e conceitos, que nos torna seus cúmplices e provedores
de combustível afetivo, sem o qual não se sustentaria. Pois esse motor é simultaneamente constituinte
e constituído por conjunções de desejos e crenças, conexões afetivas entre acontecimentos vitais e
imbricamentos de mundos em mutação. São dessas conjunções e conexões de materiais afetivos, de
funções produtivas e de atos de desejo que surgem tais campos de realidade, os quais delimitam aquilo
que é investido como princípio de realidade de uma época, isto é, definem o que pode ser considerado
critério de realidade dos modos de existir — real, necessário, possível, impossível, utópico,
fantasmático, delírio ou quimera. Assim começamos a traçar o esboço do eixo que orienta e
dimensiona a formação das idealidades como identidades de origem e semelhanças derivadas,
diferenças e oposições, e a formação das funções especializadas ou de seus meios e agentes de
produção e consumo — tais como subjetividades, individualidades e coletividades. Enfim,
começamos a vislumbrar seu modos de submeter e domesticar a diferença medindo, comparando e
reconhecendo, em sua cumplicidade e co-engendramento com aquelas práticas e conceitos
emergentes. De que estofo é feita essa caixa de ressonância que faz coincidir os diversos centros de
poder, tornando-os concêntricos, e integra as diversas formas de saber por similitudes e analogias,
alinhando ambos numa serialidade segmentar e dicotomizante, encaixando-os em blocos co-
ordenados de espaço-tempo e traçando uma linha de continuidade extensiva sobre um mesmo plano?
Qual a natureza desse Mesmo ou Idêntico que distribui ordens, estabelece hierarquias, ressoa em
todos os seus agentes e freqüenta ou comunica-se com todas as peças de seu maquinismo?

Esse posicionamento imanente do pesquisador que se implica — não por ser um militante
engajado mas por estar envolvido no próprio diagrama de forças que pesquisa, não para se tornar uma
autoridade competente pretendente a um posto de comando, um sábio especialista ou conhecedor
erudito, mas porque quer fazer de si um homem livre no meio em que vive — põe-no em condições
de encontrar o campo de imanência das vontades dominantes de um corpo social, suas motivações e
visões singulares, operando em ato a criação de realidades multidimensionais. Essas motivações
trabalham por dentro das relações e registram-se no relacional das forças, muito além ou aquém dos
limites de uma suposta permissão ou prescrição de um código moral ou de uma verdade neutra
extraída como norma de um objeto ideal ou princípio organizador, o que delimitaria uma postura
isenta e imparcial de um suposto sujeito científico desinteressado, pacífico, civilizado, não-violento.
Ao contrário, tal forma e tal desinteresse não passam de resultados a posteriori - sintomas dessa
motivação que na verdade é cheia de interesses passionais ocultos e violências, barbáries e terrores
dissimulados -, emergindo de um campo de forças e se rebatendo sobre ele, consolidando a
estratificação do mesmo e tomando como primeiro o efeito ilusório que opera a troca da causa pela
imagem sensível e pelo signo dizível.

Sob a identidade de cada sujeito, sob a semelhança de cada objeto de conhecimento, sob a
estrutura ideal de cada ente significante valorado e tornado dominante, há movimentos mais finos de
desejo e crença que imperceptivelmente os determinam a tal dominância. Vontades e visões, desejos e
crenças operam subterraneamente, ou melhor, na superfície impalpável de nossa sensibilidade
corpórea e de nossa percepção do tempo. São eles que tecem, no horizonte temporal, as linhas ideais
de nossas maneiras de ser e constróem, no espaço, territórios que condicionam a experimentação de
novas práticas de liberdade, saúde ou bem-estar. Portanto, essas maneiras e práticas são apanhadas no
momento e movimento próprios de seu engendramento. Não são deduzidas de estruturas universais
constantes, de formas fixas ideais e ausentes, eternas na essência e pressupostas pela existência, nem
mesmo auferidas de arquétipos ou estruturas virtuais inconscientes que nos fariam reconhecer o fato
de o real atual ser fragmentário e múltiplo, mas mais para lamentá-lo do que para afirmar a dimensão
plenamente autônoma da multiplicidade e da diferença enquanto diferença. Isso nos faria supor uma
unidade ou uma totalidade perdida mas suficiente como Memória central, sem a qual não haveria
continuidade, propriedade e nem vínculo com o princípio de realidade suposto. Clamando e
investindo assim um critério de julgamento — imanente apenas pela Falta — ‘evoluindo’ do
transcendente ao transcendental, estabeleceríamos a legitimidade intrínseca de um verdadeiro sistema
de julgamento e da verdadeira interpretação, com seus cientistas superiores autorizados a contemplar,
interpretar, refletir e comunicar os significantes primeiros da natureza humana. Como quando se diz
‘vocês ainda não chegaram no Significante!’ ou então, para sentenciar ‘o transcendental não é o
transcendente!’.

Tudo o que não há é plano prévio e original de saber a ser acessado — mesmo por um puro
sujeito asceta — ou formas em si a serem descobertas por um intérprete da verdade. Que nos importa
o nível de sutileza ou de trapaça de tal plano?!

As diferenças de potencial, os tempos heterogêneos, os fluxos materiais intensivos não se deixam


reduzir a oposições dialéticas ou relações diferenciais entre elementos significantes — que seriam
desenvolvidas por um teórico do pensamento instalado na lógica interior das cadeias de significação
operando, no movimento aparente do devir, a subordinação das multiplicidades no enquadramento
interno de uma representação pura. Ao contrário, há sempre interesses intensivos e parciais de modos
de vida irredutíveis a ordens normativas a priori - mesmo os interesses daqueles que reclamam uma
ordem neutra cujos estilos mutantes de operar e fazer a diferença criam e ocupam territórios,
distribuem funções e demandas, engendram estratégias de alianças e redes de conexões.

São esses investimentos intensivos de desejo que fazem variar permanentemente, como variam
os meios ou ferramentas do homem, seus filtros feitos de pedaços de signos, seus modos de selecionar
movimentos, gestos, ações e paixões, ordenar e hierarquizar atos, vozes e sentidos. São esses
investimentos que sustentam as constantes de um sistema ou minam seus estratos de saber. São os
movimentos intensivos que criam, alimentam ou destróem um regime de cognição ou de signos com
seus regimes de reflexão. São as variações da potência de um corpo individual, grupal ou social, os
movimentos e tempos dos desejos, sempre heterogêneos, que criam maneiras singulares de produzir
interpretações e sentidos – e fazem dos signos, por suas qualidades de repetição e difusão por contágio,
posições e fronteiras de vetores afetivos de toda uma coletividade. Mesmo que num segundo tempo
tais valores e sentidos produzidos se rebatam sobre as variações do desejo e criem a ilusão de serem
eles mesmos causas da ordem quando são, na verdade, condições de estratificação.

Quando efeitos incorporais são investidos, sustentados e ligados entre si por um campo de forças
que faz deles uma atmosfera de atração e repulsão de afetos — um plano de confiança ou afetivo
agenciador dos saberes que doravante se investem – é que as formas tornam-se eficazes para instaurar
cortes, iluminar objetos e enunciar sentidos. É nessa zona de concretização que toda a força se faz
corpo e o pensamento se exprime como voz. É na extremidade do espaço e do tempo, fronteira onde o
virtual se dobra, que se rebatem e se revelam as luzes cegas e as vozes mudas que atravessam nossas
existências. A parte cega da luz, a parte muda da voz e o inesgotável devir escavam vácuos entre o
sensorial e o motor, esculpem passagens e direções entre os corpos e os preenchem com consumos de
intensidades e percepções, dilatam seus tempos ao contemplar e contrair ritmos, tensionam e
desdobram dimensões de entretempos e não-lugares, suspendem, fazem correr fluxos e precipitar
ações. Assim formam-se superfícies onde se concentram, registram e distribuem energias, se
condensam e coordenam vínculos estabelecendo, enquanto campo de efeitos ligados, desejados e
acreditados, uma camada multidimensional semiótica, uma zona de continuidade extensa de signos
como fator de integração formal de um diagrama intensivo de poder informal e descontínuo,
enquadrando e distribuindo tais energias em sujeitos de desejo e objetos significantes.

É nesse movimento aparente que a vida pode ser capturada e pendurada pela cabeça no teto da
intencionalidade ideal, enquanto é desqualificada. É no mau encontro ou no mau uso do acaso e no
sentido piedoso da dor tomada como um mal que a vida torna-se sofredora daquilo que lhe acontece,
perdendo a velocidade e o sentido alegre da dor, negando a dimensão inesgotável do real virtual em
vez de nele viver e dele se alimentar — destituindo-se da capacidade de jogar com os devires e
atolando-se e atracando-se com as marcas e traumas existenciais, vida rastejante e sisuda, reduzida ao
efeito do que lhe acontece e prisioneira do estado de corpo e da consciência passional. Por isso a
demanda ressentida e fantasmática da reparação das injustiças sofridas e da permanência provedora do
resgate do ser ou do eu assim decaído é investida por esse mesmo eu e pelos que vivem dele como
contrapartida desse movimento depreciativo da existência no tempo, posicionando o desejo na direção
de uma forma superior e imutável de ser que a requalificaria na mesma proporção que credita poder a
essa Instância Provedora. O motor desse desejo de eternidade é abastecido pelo sentimento de perda da
fonte da potência — fronteira comum do virtual, fonte única do aumento real da capacidade criadora
de modos diferenciais e singulares de existência. É no mesmo movimento reativo que separamos
nossas vidas da dimensão inesgotável do real virtual e que investimos nosso desejo e nosso pensamento
na consolidação de um plano ideal de representação do infinito, o qual irá, a um só tempo, julgar-nos
e legitimar-nos destituindo nossa vida de realidade auto-sustentável e mergulhando-a na falta e na
dependência, para num segundo momento poder ofertar sedutoramente a compensação de um ‘alegre
resgate’ num plano ou realidade que a transcende.

Os sentidos fecham-se em significados interiores da consciência, fixando-a numa origem formal,


ligando-a à memória do Um e fixando-a a um Fim, projeto do Todo. Os valores pretendem constituir-
se como referências a priori e em emissários superiores de significações dominantes — seja de um
Deus ou de um Estado — e firmar-se como veículos transmissores de ordens formais, dando
combustível e vida própria aos signos que seguem erigindo e retroalimentando modelos como
entidades provedoras de recompensa e castigo.

Isso convence? Isso funciona por troca. Continuamos atolados e atrelados à recompensa e ao
castigo! Isso submete mais por sedução do que por repressão, mais pela paz do que pela guerra, mais
por oferta de crédito do que por cobrança de dívida. Esquizofrenia das moedas de crédito e dos meios
de pagamento! Capturas — mais do que compras de ações, legitimação e inclusão, mais do que
destruição. Eis todo o nosso humanismo! — a humanização das práticas, das relações sociais, morais,
econômicas, políticas etc. Porém, antes desse condensado de formalizações, uma orquestração de
forças reativas determina tais sentidos e valores a serem dominantes, e por exprimirem certas
qualidades para integrar relações de poder eleva-os ao status de universais. Desse modo tornam-se
aptos a capturar funções e operar extrações de energia, condensando centros de poder ao mesmo
tempo em que separam o corpo e o pensamento do que podem. Mas essa aptidão pressupõe o próprio
diagrama de forças que sustenta esses universais e alimenta esse estado de coisas coletivo. Tal eficácia
é diretamente investida pelos focos de poder que, também e ao mesmo tempo, apostam e investem na
separação da vida de suas potências, criando redirecionamentos de funções e objetivos estratégicos de
extração e integração — a real fonte eletiva das significações dominantes como pontos privilegiados
de subjetivação.
É assim que se constituem modos de concentração de poder, com suas caixas de ressonância e
correias de transmissão que possibilitam sua reprodução e expansão. É no e pelo devir intenso — isto
é, na extração de sua energia e na cumplicidade de sua entrega e captura — e não pelo ser (ou devir
extenso) que se criam, na extensão dos corpos e no tempo dos pensamentos, campos de realidade
dominantes e modos gregários de pressão seletiva na reação ao meio então constituído. É no e pelo
devir intensivo das forças que se polarizam, direcionam, distribuem tipos de energia, investem,
codificam, conservam, multiplicam posturas e atitudes, formatam-se corpos, cristalizam-se discursos e
produzem-se territórios, sejam individuais, grupais ou sociais. É por esse devir intenso que se traçam,
na extensão, territorialidades e modos de produzir sensibilidade, codificações e conscientizações,
rostos e paisagens, atravessados por motivos os mais silenciosos, imperceptíveis e muitas vezes
inconfessáveis. São esses motivos intensivos de crescimento dos centros de poder e a regulação e
transmissão de suas ordens ou sentenças de morte e de vida, de bloqueio e de passagem, que modelam
subliminarmente os modos de viver, determinando a saúde e a doença, o admirável e o execrável de
cada sociedade.

Operar, portanto, uma gênese desses conceitos e costumes, imanente aos movimentos de vida
que os engendram, implica em orientar-se não em relação ao mundo, mas dirigir-se num devir-mundo,
devir-de-si-no-devir-do-mundo. Orientar-se não por direções exclusivas do tempo ou por um sentido
único como bom senso de uma relação entre objeto-exterior, sujeito-interior e ser-devir. Nem tampouco
seguindo uma ‘interioridade espiritual’ a partir da distância ideal relativa à eminência do Ser ou Plano
de Consciência separado do devir, tornado neutro porque lugar universal da Verdade, mas traçar eixos
acentrados e dimensões não comparáveis de multiplicidades de si e de multiplicidades de mundo,
cavalgar um devir de si no encontro com um devir de mundo. Captar simultaneamente as unidades de
composição como linhas relacionais e as diferenças de potencial, sem as quais nosso desejo e
pensamento escoariam e se confundiriam num mergulho de abolição no indiferenciado. Somente
essas linhas e diferenças nos fazem encontrar, derivar e comungar singularmente com as misturas
parciais que nos preenchem e produzem os afetos coletivos de uma época sem unificá-las, totalizá-las
ou cair no indiferenciado. Não há outro rigor!

O pensamento jamais é rigoroso e exato na lógica da representação. É preciso encontrar o rigor


da intuição — não da intuição vaga ou ordinária que nos levaria a descobrir verdades ocultas
desinvestidas pelos demais pensadores, mas o rigor da intuição que opera na imanência de qualquer
ato de pensamento, a intuição que sabe encontrar, extrair, inventar e produzir linhas de passagem que
se tornam o próprio ser do devir, a necessidade do acaso, a essência do acidente, a unidade não do Uno
que submete o múltiplo, mas da afirmação unívoca e direta das multiplicidades enquanto
multiplicidades, irredutíveis a qualquer transcendência unificadora na origem ou totalizadora no fim,
multiplicidades simultaneamente qualitativas de composição de potências e intensivas de ativação de
forças, nem extensas, nem numéricas ou estatísticas, mas puras diferenças vivas e operantes, sem
apelo a muletas ou referências transcendentes.

Nesse mergulho, onde são as diferenças de tempos e variações de velocidade que nos possuem,
atravessam e modificam, retomamos a ligação mais íntima com a própria potência de acontecer da
natureza — núpcias de devires. Enquanto natura naturante, potência necessária de criar, a natureza
age e produz o homem através do próprio homem e de seus modos de coletividade, compõe uma real
ordem produtiva de causalidade intensiva. Na afirmação do devir algo atravessa a potência e a faz
saltar — é a diferença irredutível da vida ativa que chega na borda de si e mostra o diferencial
inalienável e incomparável que só os tipos realmente livres compõem. Esses tipos compõem modos de
jogar sem regras prévias, ao concentrar-se no crescimento e na fabricação de modalidades diferenciais
de retorno ou de memória virtual de futuro, criando assim a condição de continuidade intensiva ou de
repetição do jogo aberto através das novas plataformas de lançamento da vida que gera — lançando-a
novamente mas num novo começo, sempre diferente e ainda mais tensionado — um cavalgar
ativamente o tempo, devindo flechas do próprio tempo sem perder a auto-sustentabilidade. Esse modo
de vida contrasta, por efeito, com o modo de vida dos tolos reduzidos à sobrevivência ou à vontade de
poder e de riqueza — esses indigentes que quanto mais têm ou conquistam e alardeiam seu suposto
sucesso mais se atolam silenciosamente no seu esgotamento, que demora pra mostrar suas garras mas
que os puxa invariavelmente para baixo, tira-lhes o foco pondo-os dispersos no cativeiro das imagens e
dos signos, dos espelhos da fama e da memória impotente do que terão sido um dia, quando a fase
supostamente ativa da vida já os tiver abandonado, apegados às marcas que nada mais testemunham
do que estados impotentes de desejo, separados do presente-devir, no qual nunca estiveram serenos.

Mas sempre é tempo do vivo se por a viver — devir-criança de toda idade, diria Deleuze.
Reencontro do horizonte ou superfície de cada vivente, na relação com o fora imediato e mais atual
que o envolve e o preenche necessariamente. Assim apreendemos a construção em ato, não da
condição de possibilidade da experiência, mas da condição da experimentação real. Sem essa fronteira
na qual dentro e fora se tocam topologicamente nenhuma experimentação real se dá, nenhum
acontecimento se efetua. Tudo o que importa ou gera valor e sentido se passa entre o que vive em nós
e aquilo que nos faz viver — horizonte a um só tempo móvel, absolutamente singular, diferente e
diferencial de si mesmo e imanente ao ser comum de cada modo de realização. É a visão de algo
absoluto e necessário no que acontece enquanto acontece. Desse modo saímos da condição de
espectadores passivos e sofredores dos acontecimentos da vida para tomar parte ativa nela. Em vez de
descrever e representar a realidade da vida e da natureza, participamos ativamente da sua produção.

É também dessa maneira que ultrapassamos os modos de conhecer por representação.


Conquistamos um modo superior de pensamento que se libera em nós como potência de pensar em
ato, cuja ordem e conexão de atos — como diria Spinoza — é a mesma que a ordem e a conexão dos
corpos, de suas ações e de suas paixões, e cujo critério de verdade não faz mais parte das condições do
Juízo, mas se sustenta de modo autônomo naquilo que o pensamento pode, aberto às relações de força
entre o necessário e o impossível. É esse modo afirmativo de pensar que faz do pensador um crítico de
sua época e ao mesmo tempo um criador de novos modos de existir, de produzir e de dispor o tempo,
além de torná-lo um co-criador dos atos passados e das linhas de força que continuam se repetindo e se
diferenciando no presente. Por isso o pensador que não pensa por representação não é uma
testemunha da história. Sua forma de atestar por idéias o nascimento dos modos de se relacionar
numa determinada sociedade é a mesma que exprime o próprio diagrama formador dessa sociedade, o
qual ressurge expresso nos atos que preenchem ou atualizam seu meio virtual de imanência.

Meio tecido na ponta móvel de um presente intenso que se exprime e se realiza no ato diferencial,
o qual nos espera e faz sinal ao tocar o mínimo limiar sensível da matéria que o alimenta e renova
com a extremidade pensável do tempo que o faz durar, repetir e continuar. Atmosfera viva de
efetuações de um devir que se condensa e se torna mais lento na curvatura do tempo que o dobra
sobre si mesmo. São os dobramentos singulares dos movimentos vitais traçando os limiares das
próprias relações do desejo e do pensamento e as fronteiras de seu campo de forças. E nele — no meio
- apreende-se aquilo que produz a si mesmo ou que de si deriva, a produção do real enquanto se
realiza. Todo um maquinismo da vida, alternando-se em modos de liberação ou asfixia, encerramento
ou escapadas do querer e do pensar. São essas orientações, esses planos e dimensões da realidade que
geram os sistemas de pensamento com suas estruturas de saber e organizações de poder, e não o
inverso.

Pensar é simultaneamente afirmar o princípio diferencial dos seres, seus modos individuantes, e
criar modos de ser que, a partir de uma postura acolhedora dos devires ativos ou dos afetos
potencializadores que nos atravessam, conduzam a vida a ultrapassar suas próprias configurações
existenciais e finitas – conquista do infinito a cada instante presente, dilatação da espessura mínima
desse presente como fonte inesgotável do próprio devir e do ser do devir.
POSFÁCIO
Propusemos aqui pensar e problematizar noções e práticas referentes à saúde, ao desejo e ao
pensamento, ligando-as à sua mais remota emergência, isto é, às origens do pensamento ocidental.
Entretanto não fazemos essa ligação a partir de valores de origem, eleitos universais ou verdades em si,
culturalmente consolidados e elevados ao status de referências ideais e transcendentes à vida,
sobrevoando os modos de ser em sociedade, mas pela apreensão de um campo de imanência dos
modos de desejar e valorar, que fazem a consistência das formações sociais, econômicas e políticas de
uma época. É na emergência de certas modalidades de devires humanos que se cria, em cada contexto
espaço-temporal, um campo de forças no qual se originam modos singulares de universalizar ideais e
normatizar práticas, quando então desejos e crenças se tecem e se concretizam. Portanto, ao distinguir
as linhas de forças que inauguram e sustentam uma formação social, constitutivas de seu
fortalecimento e/ou enfraquecimento, compreendemos também seus modos de colocar os problemas
e de criar respostas para o seu crescimento, os acontecimentos determinantes que fazem a diferença
no seu modo de conduzir a vida, que distribuem novas demandas e organizam novas funções, enfim, o
conjunto de correlações racionais, formais e funcionais, o plano de integração desse campo de forças
que, no caso das sociedades gregas, abriu as portas para o que se convencionou chamar de Pensamento
Ocidental.

Pensar como se construiu a imagem ocidental do pensamento e seus paradigmas acerca desses
três conceitos e dessas três práticas – saúde, desejo e pensamento - implica posicionar-se na zona de
imanência dessa mesma realidade. Não é desdobrando dialeticamente as formas enterradas nas
camadas da história e do tempo que encontraremos um fio de continuidade que nos conduzirá a uma
verdade de um ser primeiro e nos recolocará na boa direção de um sentido último, final e absoluto do
devir e da História. Não nos faz falta o útero e a terra natal. Não queremos nos recolher no Ser.
Queremos traçar o modo como se produz uma geopolítica das intensidades e seus devires. Queremos
encontrar ou fabricar as pontes que atravessam fronteiras, que fazem devir o sentido da passagem e
transmutar o valor ou a potência de seus elementos constituintes. O singular não tem desejo de
eternidade porque tem potência de se repetir diferenciando-se nos condensados de espaço-tempo que
traça e faz emergir.

É decisivo para a mudança radical do nosso destino apreender, através da imanência do devir, o
emergir da própria transcendência do ser. Entender como se criaram valores separados, desejados
como superiores ao sentido da Terra. Apanhar as fontes do Juízo que não mais parou de engessar a
vida em formas universais legitimando, por paralogismos, julgamentos depreciativos da natureza.
Operar a gênese de um modo humano de existir que inventou para si um tipo de vida moral e
racional e que conduziu muitas vezes o desejo e o pensamento a negarem a si mesmos e desejarem
sua própria servidão ou repressão como se tratassem de sua salvação ou liberdade.

Mas se pensar é encontrar a essência do que se faz enquanto se faz, confundindo o ato de
conceber com o próprio ato de criar; se é produzir realidades inéditas ao mesmo tempo em que se as
apreende; se é abrir caminhos que se bifurcam no limiar de efetuação e tangenciam ou tocam a
própria realidade virtual como sustentáculo da existência atual; se é fazer correr o desejo ao mesmo
tempo para o passado e para o futuro como promessa, espreita ou espera vitalizadora, intensificadora
do existir; se assim é, devemos perguntar então: como, em que condições, sob o jugo de quais forças ou
poderes o pensamento, em determinados momentos e lugares, se dobrou, fabricando para si a gaiola da
interioridade? Sob quais coações ele espiritualizou-se enquanto entrava em sua própria prisão, para
melhor segregar o corpo e seduzir o desejo? Como, sendo assim capturado por seus próprios planos de
representação de verdades, vistas por ele como superiores, condenou-se a contemplar modelos para
depois refleti-los, reconhecer ordens e hierarquias racionais para depois projetá-las e reproduzi-las na
vida e no corpo, julgando-os, julgando-se e sendo julgado ao introjetar deveres reativos nos devires
ativos da própria existência?

Tudo isso seria para nos salvar ou aperfeiçoar nossa existência? Para nossa segurança e para o
desenvolvimento inelutável do humano? Como se a Lei, como puro valor em si ou forma superior de
um dever ser, fosse necessária para a vida em sociedade, esquecendo que todo ideal como entidade é
ficção e disposição de captura, portador de sentenças de morte e inoculador de falta. Como então foi
possível que certas formações de saberes esquadrinhassem a vida e conduzissem o pensamento nessas
vias circulares e sem saída, paralisando ou submetendo toda a sua força de geração, seu movimento de
criação de realidade e separando sua potência de todo ato imanente do pensar? E como ainda não
terminou essa aventura bizarra que continua através de toda a cumplicidade de nossos modos de viver
e pensar? Como o pensamento encerrou-se na muralha da representação com seus modos de
contemplar, refletir e comunicar, perdendo seu ato mais puro, a expressão imediata de si como
acontecimento grávido de singularidades - na borda do tempo mais atual que nos toca ou escapa e que
não pode ser representado?

Esquecemos que aquilo a que se nomeia sujeito do conhecimento, objeto do conhecimento,


teoria do conhecimento, valores universais, divinos ou humanos, verdade, consciência etc, que a
imaginação humana credita à dimensão incriada dos céus como formas em si ou entes imutáveis a
serem no máximo descobertos, precisou antes, ao contrário, ser inventado. Esquecimento que nos
rouba a inocência quando tomamos tais invenções por leis eternas e insondáveis, pois essa mesma
inclinação ao congelamento no Ser implica, em contrapartida, a declinação de toda a existência como
devedora. E como a dívida é de existência, torna-se dívida infinita de desejo. Capitulamos então, como
reféns de uma insuficiência incurável cujo modelo se alimenta da imagem que fazemos da dor, da
falta, da finitude e da morte.

Perdemos a capacidade de experimentar, de produzir realidades. E quanto mais distantes dessa


capacidade, mais a falta e a morte se fazem dominantes. Por isso precisamos depositar nossas
esperanças numa realidade superior já pronta. Mas já nem sabemos por onde passa tal realidade, nem
como joga seu jogo em nós, através de nós. Descolamos nossos atos de nossas potências e cremos
recebê-los de fora - seja de um Deus ou da Lei de um Estado - quanto na verdade somos determinados
necessária e extrinsecamente por tais atos. Mesmo e principalmente quando este Estado é tomado por
um Estado de Direitos do Homem com sua lei superior transcendental, cabeça dos chamados Estados
democráticos modernos. Assim pretende-se preencher o horizonte de qualquer desejo com um puro ato
formal de uma ‘lei rainha’ que quer reinar sobre qualquer que seja o seu conteúdo concreto, mas
abstrai e dissimula intrinsecamente seu conteúdo real, o poder com seu diagrama de forças que a
sustenta! Eis o cinismo elegante de nossa modernidade!

O Juízo do Homem, com seus sistemas de representação da verdade, joga seu jogo no campo
ilusório e supersticioso do livre-arbítrio, cujo valor de liberdade não passa de sombra de uma
ignorância inerente a toda consciência. Esta, que é consciente dos desejos e das ações de um corpo e
de uma mente, ignora a imanência dos atos que necessariamente determinam tal corpo e tal
pensamento a desejar, agir e pensar. O homem atual pretende instalar-se no trono da Verdade, outrora
ocupado por Deus e pelas igrejas. E, do alto desse puro-dever-ser, sobrevoa e controla o corpo, em
nome de uma suposta liberdade ‘transcendental superior’ da consciência.
Podemos criar novos modos de ser que, a partir de uma postura ética e estética, convidem a vida
a ultrapassar seus próprios limites passionais e morais, reencontrando a realidade do infinito em nós?

É por isso que precisamos pensar a formação deste pensamento. É para poder desconstruí-lo ao
mesmo tempo em nós e fora de nós. Desconstruindo-nos como sujeitos assujeitados desinvestimos os
objetos idealizados. E na medida em que nos perdemos do mundo e das velhas referências projetadas
que nos formatavam por introjeção, ganhamos a ocasião de tocar e habitar as zonas (ou vácuos) e os
tempos (ou hiatos) de produção de nós mesmos (autoprodução) que estavam encobertos por todos os
supostos fundamentos do Real e suas teorias.

É então que criamos a condição de produzir-nos como realidades autônomas singulares, sem
fundamento no sujeito ou projeção num referente ou Significante Ideal. A reinvenção da capacidade
de produzir continuamente a nós mesmos, como toda natureza viva, só acontece quando encontramos
modos próprios de expressão imediata, quando rasgamos o véu da opinião moral e utilitária e as
cristalizações de uma memória passiva e ressentida, não nos deixando substituir por mediadores
formais ou legais que legitimariam nossos modos coletivos de entrar em relação. E só encontramos
modos próprios de expressão e produção quando conectamo-nos diretamente com a ordem imanente
da própria natureza naturante, como potência absolutamente infinita de Acontecer.

Tornar-se singular de tanto afirmar o ser comum (afirmativo do plural), gerar e ser gerado por
estofos de uma outra consistência - a do tempo próprio dos nossos processos vitais e de seus modos de
devir. Com o cultivo e investimento no aumento da capacidade de sermos afetados; com a invenção
de novas formas mais sutis de perceber, que nascem com a presença e a percepção daquilo que
percebe em nós e através de nós, que nos faz perceber o imperceptível; com um novo modo de criar
sensações, compor com corpos sutis e abrir a sensibilidade às regiões jamais freqüentadas do corpo;
com o aumento da presença virtual - mas real - das naturezas incorporais ou modos singulares de
passagens, que só podem acontecer no encontro do atual com o virtual em nós; com um novo modo
de começar e terminar pelo meio; com tudo isso certamente crescemos e nos fazemos mais fortes,
tornamo-nos usinas de modificações imperceptíveis e incapturáveis. O meio imanente é o princípio de
toda emergência, sustentabilidade e crescimento das potências que se efetuam em nós, produzindo a
nós mesmos e a tudo que depende apenas de nós. Superfície tensionante e tensionada, dimensionada
para hospedar novas plataformas de lançamento da vida. Somos simultaneamente meios, fontes e
alvos de movimentos necessários, por isso implacáveis quando nos confundimos com eles. E quando
efetuamos e criamos tempos próprios de acontecimento, nossas jogadas são necessariamente ativas e,
portanto, alegres, pois são feitas de singularidades efetivamente livres. Para esposar a fatalidade do
inesperado, sem sermos indignos do que nos acontece, é preciso não um bom comportamento, mas
velocidade - velocidade daqueles que chegam como uma tempestade. Como deixar de fora da roda do
devir, de modo absoluto, todo poder e saber instituídos que nos separam da vida e, do seio da própria
imobilidade estratégica ou suspensão dos mecanismos sensório-motores, fluir imperceptivelmente,
sem oferecer alvo ao inimigo? Sob os fundamentos, aquém do juízo, ao lado e sobre a ordem, além do
céu ideal, entre as memórias e os projetos, nos vácuos dos becos sem saída, tecer linhas de acontecer
que criam para nós o ser da passagem.
LUIZ
FUGANTI
Luiz Fuganti é filósofo, autor de uma obra que há trinta anos é cada vez mais demandada.

Como pensador nômade da filosofia da diferença, atua criando e ministrando palestras, cursos e
consultorias para grupos e pessoas de diversas áreas - incluindo, arte, ciências médicas, sociais, da
infância, justiça, educação, políticas públicas, ética, política e cidadania. Realiza também sessões de
terapia individual e em grupo, tanto presencial quanto online, com foco na esquizoanálise.

Desde a juventude, enquanto cursava a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, encontrou


aliados para seu pensamento inquieto, e foi profundamente tocado pelos pensamentos filosóficos de
Nietzsche, Deleuze e Spinoza; e acabou por mergulhar de vez na filosofia. Em seu mestrado, propôs
uma investigação inédita sobre o pensamento medieval, em Duns Scot. Em 1986 começou a criar
diversos cursos livres de filosofia, entre eles, a "Formação do Pensamento Ocidental", "Educação para
a Potência" e "Ética como Produção de Si".

É idealizador da Escola Nômade de Filosofia, - um movimento nômade de pensamento e


práticas de criação de si, atuando na implementação de movimentos éticos e estéticos em arte e
cultura.

Como pensador da saúde, um dos focos principais de sua atuação é problematizar uma
instrumentalização para a prática da esquizoanálise, desconstruindo noções e práticas presentes em
um tipo de clínica que enquadra o 'paciente' em formas de assujeitamento. Nessa perspectiva,
participou da formação dos agentes de saúde mental que atuaram na primeira intervenção
antimanicomial do Brasil, ocorrida na Casa de Saúde Anchieta, na cidade de Santos. Realizou na
África, em Moçambique, no ano de 2005 um ciclo de conferências focadas em três temáticas: A
Grande Saúde; Ética e Política e Arte e Produção de Si.

Acesse mais conteúdos no site www.luizfuganti.com.br.

Você também pode gostar