A História Contemporânea de África É o Pan - Africanismo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 9

"A história contemporânea de África é o

Pan- Africanismo"

Entrevista de Anne Bocandé a Amzat Boukari-Yabara

Rejuvenescer o pan-africanismo. É o que propõe o investigador Amzat Boukari


na sua obra publicada por La Découverte, Africa Unite! Uma história do
pan-africanismo. Africultures foi ao seu encontro.
Evocou o pan-africanismo como um conceito filosófico, um movimento
sociopolítico ou uma doutrina de unidade política. Qual é a definição de
pan-africanismo?

O pan-africanismo nasceu em fins do séc. XVIII, mais ao menos ao mesmo tempo


que o liberalismo e o socialismo. É, assim, uma ideologia muito antiga, que se
distingue das outras duas pela sua consciência histórica, pela sua identidade
"geográfica". O pan-africanismo está ligado a um continente, a um espaço. O
pan-africanismo é o equivalente em África ao conceito de Ocidente na Europa. A
Austrália, a América do Norte e a Europa Ocidental agrupam-se num mesmo
imaginário dito "ocidental" que mostra que a divisão do mundo é, na realidade, o
reflexo da circulação dos homens e das ideias. Da mesma forma, é pan-africana
toda a sociedade que conserva uma identidade africana na sua evolução, na sua
relação com o outro e na sua relação com a ideia de emancipação.
Por outro lado, há um aspecto historiográfico: quando se diz que a história da África
contemporânea começa em 1885 com a conferência de Berlim ou em 1960 com as
independências, isso não faz sentido nenhum. Interessava-me mostrar que o
pan-africanismo nasceu ao mesmo tempo que o liberalismo e o socialismo, que
estão ligados à Revolução francesa, à Revolução americana, à industrialização, etc.
A história contemporânea de África é o pan-africanismo. Tem exactamente a
mesma profundidade histórica. Portanto, em consequência, se se quiser escrever a
história de África, tem de se partir do pan-africanismo.
Observa que se trata de uma história ligada a um continente, a um espaço,
mas não necessariamente a uma cor de pele. Quer dizer?

O pan-africanismo começou por ser um pan-negrismo, um sentimento de


solidariedade entre os pretos deportados para as Américas no quadro do tráfico
transatlântico. Este crime contra a humanidade acompanhou a expansão do
capitalismo, quer dizer, do sistema mais aperfeiçoado de exploração e dominação
global do homem pelo homem, portanto, do sistema que está na origem do mundo
tal como o conhecemos hoje. O racismo - que estigmatiza e assimila a pele preta à
condição servil nas Américas - teve por resposta uma auto-identificação, desta vez
positiva, dos Pretos com África, mas uma África que era mais imaginada do que
representada. Esta imaginação vem das passagens da Bíblia sobre a Etiópia ou das
narrativas dos escravizados, e dará mais tarde origem aos escritos do
Renascimento de Harlem e da Negritude.
Aliás, as dificuldades internas do Haiti a seguir à independência arrancada em 1804,
ou ainda o fracasso da colônia afro-americana da Libéria, criada em 1847, vão
mostrar que não basta partilhar a mesma cor de pele para construir uma sociedade
harmoniosa ou um projecto político comum. Assim, a denúncia da colonização de
África sob os imperialismos europeus nos anos 80 do séc. XIX vai levar os militantes
afro-americanos e caribenhos a sobrepor a sua própria condição de segregados ou
de colonizados à dos Negros que viviam num continente que redescobriram por
intermédio dos primeiros historiadores africanos-americanos. África passa então do
imaginário a uma entidade política concreta, quando se espalha a notícia da vitória
da Etiópia sobre a Itália, em Adwa, em 1896.
Etiópia, Haiti, Libéria... Cria-se um espaço, e, em 1900, em Londres, na presença de
militantes pretos mas também de simpatizantes brancos, a conferência pan-africana
sublinha, pela fórmula muito subtil de DuBois, que o grande problema do séc. XX
não será a cor da pele, mas a "linha de cor". O que nos é possível e que devemos
fazer consoante se esteja de um ou do outro lado dessa linha? É esta reflexão que
mobilizou os militantes pan-africanistas em torno de figuras como Marcus Garvey e
Tovalou Houenou ou, mais tarde, Amílcar Cabral e Steve Biko.
Em Angola, na África Austral, na Argélia, de facto, por toda a África onde a
independência resultou de uma luta armada, a questão da linha de cor foi abolida
pela luta. Grupos mestiços e muitos Brancos a título individual, realizaram por vezes
esforços mais consequentes a favor da libertação e da unificação do continente que
alguns grupos negros cooptados pelas forças colonialistas ou neocolonialistas. Na
medida em que a divisão do mundo em continentes é por si mesma muito
problemática e discutível, é, portanto, a consciência histórica que determina a
relação com o espaço, que permanece o portador até hoje dessa "linha de cor".

Contrariamente a muitas ideias feitas, explica que o pan-africanismo nasceu


no Haiti, ou seja?

Na realidade, o pan-africanismo nasceu nas Américas, mas o seu conceito político,


quer dizer, a unidade dos povos africanos num conjunto federal, existe desde há
muito mais tempo em África, através, por exemplo, dos reinos e impérios
saelo-sudaneses. O Gana, o Mali, o Songhay, tinham estruturas políticas e sociais
pan-africanas, que agrupavam um mosaico de povos em alianças sofisticadas.
Entretanto, Santo Domingo era, em 1791, a colónia mais rica das Américas, com
uma mão-de-obra servil africana que representava 90% da população. A revolução
conduzida nesse momento por Africanos de diversas origens assinala sobretudo
uma viragem histórica: a primeira abolição imposta por escravizados aos amos, o
fim de um sistema de exploração económica que se vai reciclar sob a forma da
dívida da independência imposta pela França ao Haiti, e o nascimento do segundo
Estado de origem africana que, a seguir à Etiópia, conheceu desde a sua criação
uma continuidade histórica e jurídica.
Confrontados com uma ordem mundial hostil, os militantes haitianos deram-se conta
de que a sua liberdade nada era sem a liberdade de toda a zona das Caraíbas, de
África e talvez até de outros lugares, se pensarmos na naturalização, a partir de
1805, de soldados polacos e alemães que tinham desertado das fileiras
bonapartistas para se juntarem aos combatentes africanos. Ao apoiarem as lutas de
emancipação ou a resistência encarnadas por Simão Bolivar, José Marti ou Ménélik,
os militantes haitianos como Anténor Firmin e Benito Sylvain mostraram que a
história do nascimento do seu país, e portanto do pan-africanismo, devia ser uma
força à altura de devolver ao mundo o seu equilíbrio. Assim, presentemente, para lá
da questão das reparações, muitos militantes pan-africanistas defendem que o Haiti,
actualmente membro observador da União Africana, seja verdadeiramente investido
por projectos de emancipação para além daqueles que se referem ao
humanitarismo neoliberal e militarista.

Como explicar a relativa ausência, até agora, de documentação em francês?

A bibliografia que existe é maioritariamente em língua inglesa. Existe um título da


colecção Que sais-je muito antigo, de Philippe Decraene, muito datado, com
bastantes erros, bem como algumas obras como as de Oruno Lara. De início,
propus uma reactualização do pan-africanismo, em edição de bolso. Quando os
editores de La Découverte receberam o manuscrito, quiseram alguma coisa com
mais peso, que pudesse ser uma referência na matéria e colmatar precisamente
esta lacuna historiográfica. Quando fiz pesquisa para o doutoramento, trabalhei com
as figuras do pan-africanismo. Trabalhei principalmente com fontes anglófonas,
encontrei os militantes envolvidos na unidade africana, e tive ocasião de me dirigir à
União Africana em Adis-Abeba. Pude então confrontar a lógica institucional e a
lógica militante, quais eram as contradições menores e maiores. E envolvi-me
pessoalmente num movimento, a Liga Pan-africana - Umoja (LP-U) [movimento
pan-africanista criado em França em 2012, NDR].
Tive ocasião de conhecer figuras históricas, pouco conhecidas, algumas entretanto
falecidas. É em sua homenagem que me dispus a escrever esta obra. E também
para reconciliar as gerações. Há muitos nomes do pan-africanismo entoados pelos
jovens de modo encantatório, mas por detrás disso não existe forçosamente
substância. Com este livro, pretendia-se portanto dar uma linha orientadora a esta
história, elaborar uma reflexão sobre a necessidade de reconduzir o pan-africanismo
a uma lógica militante, internacionalista, e de rejuvenescer conceitos um pouco
malbaratados pelos acontecimentos que resultam da relação de forças desfavorável
a África.
Tudo o que é científico e cultural, a partir do momento em que afecta África, tem
necessariamente um alcance político e ideológico. E era necessário reinscrever o
pan-africanismo na história das ideias, das lutas sociais, políticas e culturais. O
pan-africanismo é um movimento muito fragmentado devido à sua própria evolução
e à desigualdade dos saberes entre aqueles que o reivindicam. Há quem domine as
definições do pan-africanismo e das lógicas anexas, como o marxismo, o
socialismo, etc. E há outros que apenas o aparentam, e alguns são claramente
impostores.

Na sua obra, refere-se diversas vezes à fissura entre a intelectualização do


movimento e o interesse popular no pan-africanismo?

Isso continua a estar presente, e faz parte dessa história, nomeadamente se


continuarmos a marginalizar os artistas. Os artistas fizeram a ponte entre popular e
político. Daí o título de Africa Unite, saído da canção de Bob Marley. Com este livro,
tratava-se modestamente de passar as fronteiras um pouco por todo o lado nos
países do Sul.

Muitas das figuras presentes nesta obra são personalidades anglófonas,


nomeadamente afro-americanas. Corresponde à realidade do
pan-africanismo?

Existem também referências contemporâneas no meio francófono: Thomas Sankara


continua a exercer um fascínio extraordinário junto dos jovens. Na África Ocidental
há muitas clivagens. Os historiadores e militantes políticos Cheikh Anta Diop e
Joseph Ki-Zerbo apoiam o projecto federal de Nkrumah, mas há quem se oponha.
Assim, Senghor era a favor, como Houphouët-Boigny, da manutenção de relações
privilegiadas com a França, em oposição à vontade de ruptura total defendida por
dirigentes e militantes desaparecidos muito cedo, entre 1958 e 1961, como Um
Nyobe, Boganda, Lumumba ou Fanon.
Hoje, na reprodução de figuras pan-africanas, as sociedades africanas têm um
atraso de duas ou três gerações a recuperar. Existem igualmente experiências mais
íntimas no Benin, no Mali, no Congo, que são mais localizadas. No Benin por
exemplo, existem projectos para o regresso de caribenhos, nomeadamente a família
Jah, que conheci, ou o Instituto do Professor Honorat Aguessy em Ouidah. Há,
portanto, para lá das grandes figuras, intimidade com o pan-africanismo.

Contudo, como se explica a relativa ausência de figuras francófonas em


comparação com as referências anglófonas?

Em 1919, aquando do Congresso Pan-africano organizado em Paris pelo deputado


francês do Senegal Blaise Diagne, a pedido do militante negro americano DuBois,
deu-se a ruptura entre francófonos e anglófonos. Desde essa data, os francófonos
têm estado ausentes dos congressos pan-africanos. E na altura das
independências, a ruptura, a aparência de ruptura que se viu no meio anglófono,
não ocorreu no movimento francófono, que ficou alinhado com Paris, com o
referente da metrópole. No espaço anglófono existe uma diversidade de
experiências: a situação africana, a situação afro-caribenha, a situação negra
americana, a situação jamaico-britânica…
Toda essa diversidade de situações provocou o debate, a circulação de ideias, e
também a reflexão, a teorização e uma outra relação com a cultura política. Dado
que o modelo britânico está imbuído de uma tradição monárquica parlamentar e
multiculturalista enquanto o modelo francês é republicano, centralizado e
assimilacionista, as leituras divergem relativamente à herança colonial. O que
permite sair deste paradigma pós-colonial que confunde a análise comparada,
nomeadamente do ponto de vista da história política de África e das Caraíbas, é
precisamente a introdução do pan-africanismo como critério de análise das
interacções.
Evidentemente que houve centelhas como a Présence africaine [casa editora, Paris
/ Dakar, NDR], os congressos da Sorbonne, figuras meteóricas como Frantz Fanon,
figuras censuradas como Aimé Césaire, que não são historiadores como tal, mas
que não deixam de ser referências, inclusive para o mundo anglo-saxónico. Existe,
portanto, esse retraimento, esse carácter subversivo que faltou nas situações
africanas e afro-francesas, e igualmente uma repressão que eliminou diversas
figuras, e movimentos como a FEANF [Federação dos estudantes africanos em
França, NDR], no final dos anos 50, que teriam podido criar essa dinâmica.
Sublinhemos igualmente uma lógica de predação ao nível do pensamento, que faz
com que muitos intelectuais africanos francófonos sejam constrangidos a exilar-se
ou a fazer cedências do ponto de vista ideológico para sobreviver.

Existe um pan-africanismo lusófono?

Há muito pouca coisa, pouca documentação sobre o pan-africanismo no mundo


lusófono. Mas nesse espaço há uma juventude muito migrante, potencialmente
muito consciente dos desafios que se colocam, devido ao facto de os pais terem em
grande parte sido formados no quadro dos movimentos de libertação. As
ex-colónias portuguesas têm a particularidade de ser mais dispersas
geograficamente do que os outros territórios colonizados, e, de repente, após as
guerras civis, principalmente em Angola e em Moçambique, passou-se sobretudo à
escrita de histórias nacionais em detrimento das regionais ou pan-africanistas. Há
assim um défice a esse nível. Défice que não pode ser colmatado unicamente pelo
facto de o Brasil, que alberga a mais importante diáspora africana, se ter
comprometido a financiar os volumes da História Geral de África em português. Por
fim, existe um movimento pan-africanista embrionário em Lisboa, que parece
bastante isolado mas dinâmico. O mundo lusófono constitui com efeito um desafio
muito interessante.

Quais são os desafios, na Europa, do pan-africanismo ?


A Europa foi sempre um lugar de encontro, de intercâmbio, mas também de
repressão. O desafio consiste em criar novos espaços, novas formas de libertação,
numa perspectiva internacionalista. A Europa está confrontada com um certo
número de crises, mas mantem uma política de predação sobre o continente
africano, e a opinião pública sobre África oscila entre a imagem de um continente
onde só há desgraças e o de um espaço emergente. E temos a interrogação de
todas as diásporas africanas aqui presentes, que se colocam a questão da
integração ou do regresso.

Justamente, em vez de pan-africanismo, vários intelectuais e não só


reivindicam de preferência uma identidade afro-europeia ou afropolitana. O
que pensa disso?

As identidades afro-europeias e afropolitanas parecem-me acompanhar


completamente a moda actual, ou seja, são simultaneamente decepcionantes e
estimulantes. São grandemente apolíticas e extra-africanas, e parecem-me noções
de classe, de divisão intelectual do trabalho ou de separação económica e social
entre os africanos, consoante têm ou não liberdade para ir e vir entre África e a
Europa. A condição afropolitana pode fazer lembrar a dos "evoluídos", dos africanos
julgados mais "civilizados" pelo poder colonial, segundo os critérios desse mesmo
poder. Temos assim o risco de falar de afropolitanismo sem estudar as análises de
DuBois sobre a teoria da "dupla consciência" ou de Fanon sobre o factor cosmético
de identidade e de alienação em Pele Negra Máscaras Brancas. Continuando na
análise de DuBois, os Afropolitanos serão os 10% de africanos dos quais se pensa
que, por atingirem um estatuto económico e social muito bom, desempenharão o
papel de elevar os restantes? Não creio, não é o caso. O pan-africanismo, apesar
das críticas que procuram mostrá-lo como um projecto utópico ou exclusivo, contém
esta ideia de agrupamento e de solidariedade que me parece necessária para
enfrentar o individualismo de um mundo em crescente ocidentalização.
Mais uma vez, não se trata de nos opormos, mas de fazer com que as identidades
que evocam a reconciliação ou o hibridismo como "afro-europeu" não sejam
simplesmente novas formas de assimilação, de aculturação e de dominação num
mundo onde sabemos que a cultura dominante continua a ser frequentemente a da
economia ou a do sistema ideológico dominante.
Numa entrevista concedida recentemente a uma revista francesa, a escritora
nigeriana Chimananda Ngozi Adichie rejeita aliás essa etiqueta que lhe querem
colar, afirmando " Africana sim, Afropolitana de certeza que não". E explica que não
vê necessidade de criar uma categoria para um tipo de pessoas que sempre existiu.
A história do pan-africanismo é feita de homens e mulheres de origem africana que
nunca deixaram de viajar, de ligar mundos e de cruzar identidades. É a história do
pan-africanismo que contém as camadas de sedimentação maioritariamente
africanas e acessoriamente não-africanas sobre as quais as identidades
afro-europeias e afropolitanas afloram, mas de maneira superficial.

Qual é o desafio do pan-africanismo em África?

Em termos de estratégia e de filosofia políticas, não se pode utilizar uma ideologia


estrangeira para lutar contra outra ideologia estrangeira; não se pode utilizar o
socialismo para combater o liberalismo. Não faz sentido nenhum. É preciso, pelo
contrário, utilizar uma ideologia que seja conforme à trajectória histórica das
populações visadas, para se chegar a uma libertação alternativa. E essa reflexão é
eminentemente importante, porque nesta relação com o ultraliberalismo, África é
objecto de um consenso sino-ocidental de dia, e de uma intensa guerra económica
de noite. Para sair dessas alternativas, qualquer uma delas um impasse, temos de
nos voltar para o pan-africanismo.

Você também pode gostar