Introdução A Analise Real Ime Usp PDF

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Notas de aula - MAT0315 - Introdução à Análise Real

Em cursos de cálculo, algumas ideias são apresentadas de modo intuitivo e informal. His-
toricamente, foi desse modo, intuitivo e informal, que certos conceitos foram criados. Entretanto,
alguns avanços na teoria passaram a exigir maior precisão e rigor para que certas questões fossem
esclarecidas, o que aconteceu de modo gradual a partir de 1820. A esse estudo mais rigoroso e
profundo dos números e suas funções damos o nome de Análise Real.
Neste curso iremos estudar números reais, limites, continuidade, funções dadas por inte-
gral, séries numéricas e séries de funções.
Decidi escrever estas notas pela dificuldade que tenho sentido em adotar um único livro-
texto que aborde todo o conteúdo programático da disciplina MAT0315, e da forma que considero
adequada para os alunos da disciplina, a saber, não extremamente rigoroso, por ser um primeiro
contato com o assunto, mas já avançando um pouco nessa direção.
Além das ideias da análise matemática, estas notas de aula têm também uma meta
especial, que é mostrar, sempre que possível, a relação entre conhecimentos estudados em análise
real e tópicos de matemática elementar ministrados nas aulas no ensino básico.
Algumas partes destas notas têm a forte influência do livro Calculus, de Michael Spivak [7]
que, em minha opinião, aborda os vários conceitos de forma clara e objetiva, evitando truques
artificiais. Muitos alunos não conseguem se beneficiar de sua qualidade porque, infelizmente, ele
não foi traduzido para o português.
Outro autor que admiro bastante, mas que apresenta um nível de rigor mais avançado
é Walter Rudin. A leitura de seu livro [6] exige maior maturidade. Gosto muito também do
livro do Prof. Ávila [1], que foi escrito tendo em mente a formação de futuros professores
de Matemática. Esse livro contém valiosas notas históricas que tornam sua leitura bastante
interessante e agradável.
Os livros do Prof. Guidorizzi se tornaram referências nacionais em cursos de cálculo.
Por terem uma abordagem abrangente, os volumes 1 e 4 ([2], [3]) tratam de tópicos que nos
interessam e são referências bastante importantes em nosso curso.
Acredito que um professor de matemática deva perceber e transmitir a seus alunos a
Matemática não apenas como um conhecimento científico, mas também como uma conquista
social e cultural. Muitos problemas relevantes para a humanidade foram solucionados com

1
idéias originais envolvendo a criação de conceitos e o desenvolvimento de novas técnicas. O
conhecimento e a reflexão sobre tais questões no passado permite que se tenha uma noção da
real dificuldade do assunto a ser trabalhado em sala de aula. Estas notas pretendem explorar
também esses aspectos.
Além disso, ter clareza de que a Matemática foi desenvolvida ao longo de muitos séculos e
contou com a contribuição de muitos homens é uma lição a ser passada também para os alunos,
que, com isso, conseguem perceber um lado mais humanizado, realista e desmistificado da Mate-
mática. As invenções e descobertas vieram como consequência de reflexões sobre problemas que
precisavam de solução e, na maioria dos casos que conhecemos, surgiram como aprimoramentos
de ideias de outros. O conhecimento de parte dessa imensa construção que ainda está sendo
feita faz diferença na vida profissional dos professores e, como consequência, na formação de
seus alunos.

Martha Salerno Monteiro


IME-USP

2
Capítulo 1

Números Reais

O que realmente sabemos sobre os números reais?

De acordo com Walter Rudin, em seu livro “Princípios de Análise Matemática”, uma
discussão satisfatória dos principais conceitos de análise devem estar baseados em um conceito
de número definido de forma precisa.
Não é objetivo deste curso discutir axiomas da aritmética. Por isso, iremos assumir
conhecidos o conjunto N = {1, 2, 3, . . .} dos números naturais, o conjunto Z dos números inteiros
e o conjunto Q dos números racionais.
Entretanto há algumas questões delicadas relacionadas ao conjunto dos números racionais
np o
Q= : p, q ∈ Z, q 6= 0 que precisam ser esclarecidas.
q

1.1 Representação Decimal de Números Racionais


Como todos devem se lembrar, é ensinado no Ensino Fundamental que se o denominador
de uma fração é uma potência de dez, então esse número pode ser representado na forma decimal.
3 84 75
Por exemplo, as frações ; e podem ser escritas na forma decimal respectivamente
10 1000 10
como 0, 3 ; 0, 084 e 7, 5.
Observemos também os exemplos:
2 2·2 4
a) = = = 0, 4
5 5·2 10
3 3·5 15
b) = = = 0, 15
20 20 · 5 100

3
27 33 3 3 · 52 75
c) = 2 2 = 2 = 2 2 = = 0, 75
36 2 ·3 2 2 ·5 100
6 2·3 2 2 · 22 8
d) = 2 = 2 = 2 2 = = 0, 08
75 5 ·3 5 5 ·2 100
O leitor atento deve ter notado que, depois de simplificada ao máximo, se a fração resul-
p
tante q
tem denominador q que se fatora em potências de 2 ou de 5, então, multiplicando-se por
potências de 2 ou de 5 convenientes, esse denominador pode ser transformado em uma potên-
cia de 10. Consequentemente, esse racional tem uma representação decimal finita, isto é, uma
representação na forma decimal com uma quantidade finita de casas decimais depois da vírgula.
Recorde que se n0 é um número natural e d1 , d2 , . . . dk são algarismos pertencentes ao
conjunto {0, 1, 2, . . . , 9} então a representação decimal do número x dado por

d1 d2 dk
x = n0 + + 2 + ··· + k
10 10 10

é x = n0 , d1 d2 . . . dk .
Por exemplo, a representação do número

9 7 0 4 6
x = 14 + + 2+ 3+ 4+ 5
10 10 10 10 10

é x = 14, 97046. O número n0 = 14 é a parte inteira de x e a sequência de algarismos 97046 que


fica depois da vírgula é a parte decimal de x.

p
• O que acontece se o denominador de uma fração irredutível q
tiver um fator primo diferente
de 2 ou 5?

A prática e familiaridade com o algoritmo da divisão (isto é, a conta de dividir que


aprendemos na escola), nos permite perceber que, nesse caso, quando dividimos p por q, iremos
obter uma conta “que nunca acaba”, ou seja, a representação decimal é infinita!
Por exemplo,

1 3 2455
= 0, 333 . . . = 0, 2727 . . . = 0, 272777 . . .
3 11 9000

Note que as reticências escritas acima são imprecisas. Elas indicam que as casas decimais
“continuam”, mas não informam precisamente como é a continuação. Por esse motivo, quando

4
sabemos que a continuação é periódica, colocamos uma barra sobre a parte que se repete. Assim,
a notação mais precisa dos exemplos acima é:

1 3 2455
= 0, 3 = 0, 27 = 0, 2727
3 11 9000

Entretanto, a experiência, por maior que seja, não nos permite enunciar um resultado
geral sem uma argumentação que seja válida para todos os casos. Vamos então procurar um
p
argumento que garanta que se um número racional, escrito na forma irredutível como , é tal
q
que q contém algum fator diferente de 2 e de 5, então a representação decimal desse número
será infinita e periódica.
Observe que não é possível multiplicar denominador e numerador por um número inteiro
de forma a transformar o denominador em uma potência de 10. Por quê?
Bem, isso é consequência do Teorema Fundamental da Aritmética, conhecido pelos alunos
desde o Ensino Fundamental. Esse teorema nos ensina que “qualquer número natural pode ser
escrito como produto de fatores primos, de modo único a menos da ordem dos fatores”. Sendo
assim, qualquer potência de 10 se fatora, de modo único, como produto de potências de 2 e
potências de 5.
Portanto, se o denominador de uma fração irredutível tem algum fator diferente de 2 e
de 5 não será possível encontrar uma fração equivalente cujo denominador seja uma potência de
10. Sendo assim, a representação decimal desse racional será infinita!

1 2 6
Exercício 1.1.1 Determine a representação decimal de cada um dos números , ,... .
7 7 7
7 9 10
Exercício 1.1.2 Determine a representação decimal de , , .
11 11 11
1
Exercício 1.1.3 O número 17
tem representação decimal finita, infinita periódica ou infinita e
não periódica?

• Depois de observar o que aconteceu nos exercícios acima, você já conseguiu perceber uma
argumentação para o caso geral ?

Você deve ter observado que, na divisão de 1 por 7, encontramos os restos 3, 2, 6, 4, 5, 1

5
e, a partir desse ponto, os restos começam a repetir: 3, 2, 6, 4, 5, 1, 3, 2, . . .

1, 0 | 7
3 0 0, 142857 . . .
2 0
6 0
4 0
5 0
1
..
.

1
Portanto, = 0, 142857.
7
Na divisão de 7 por 11, aparecem apenas os restos 4 e 7, nessa ordem, que irão se repetir
indefinidamente. Obtemos o quociente 0, 63.
No caso geral, podemos dizer que, se um racional se escreve, na forma de fração irredutível,
p
como q
e q contém algum fator distinto de 2 e de 5, então:

(i) é impossível transformar o denominador em uma potência de 10, o que torna a represen-
tação infinita;

(ii) os possíveis restos da divisão de p por q são 1, 2, 3, . . . , q − 1. (Note que o resto da divisão
nunca é igual a 0.)

Portanto, sendo uma divisão infinita e apenas uma quantidade finita de restos possíveis, a
partir de algum momento, algum resto irá se repetir. A partir daí, irá aparecer um período no
quociente.
Assim, concluímos que a representação decimal de um número racional, se não for finita,
será necessariamente periódica.

Com a discussão acima podemos concluir que a representação decimal de qualquer


número racional é finita ou é infinita e periódica.
Um dos problemas de se lidar com infinitas casas decimais é operar com eles. Por exemplo,
como somar ou multiplicar dois números com infinitas casas? Se for possível transformar em
fração, o problema fica resolvido.

6
Veremos adiante como justificar a validade de um “processo prático” de transformar dízi-
mas periódicas em frações. Trata-se de multiplicar a dízima por uma potência de 10 conveniente
de modo a cancelar a parte decimal. Por exemplo, se x = 1, 582, então x = 1 + 0, 5 + 0, 082.
Logo, 10x = 10 + 5 + 0, 82. Também

1.000x = 100 · (10x) = 100 · [15 + 0, 82 + 0, 0082] = 1500 + 82 + 0, 82

1567
Logo, 1.000x − 10x = 1582 + 0, 82 − [15 + 0, 82] = 1582 − 15 = 1567. Portanto, x = .
990
Esse processo funciona, mas será preciso entender por quê! Note que uma dízima é, na

X 9
verdade, uma soma infinita de frações decimais (por exemplo, 0, 9999 . . . = ) e nós ainda
n=1
10n
não aprendemos a lidar com somas infinitas de números.

Exercício 1.1.4 Em cada caso, encontre uma fração cuja representação decimal é a dízima
periódica dada:

a) 0, 4

b) 0, 250

c) 3, 04

d) 0, 221

e) 4, 00167

7
1.2 O que são números irracionais?
Dados dois pontos A e B, o conjunto dos pontos da reta determinada por A e B e situados
entre A e B, é chamado segmento AB e é denotado por AB. O comprimento desse segmento
será denotado simplesmente por AB.

Definição 1.2.1 Dois segmentos AB e CD são comensuráveis se existirem um segmento EF


e dois números naturais m e n tais que AB = mEF e CD = nEF .

No caso que que AB e CD são comensuráveis, o segmento EF é uma unidade comum, de modo
que EF cabe m vezes em AB e n vezes em CD.
Com a notação usada nos dias de hoje, poderíamos escrever
AB mEF m
= =
CD nEF n
ou seja, se os segmentos AB e CD são comensuráveis então a razão entre seus comprimentos é
um número racional.
Os gregos antigos já haviam notado que existem segmentos incomensuráveis, ou seja,
segmentos para os quais não existe uma unidade comum. Por exemplo, o lado AB e a diagonal
AC de um quadrado não são comensuráveis.
De fato, se existisse EF tal que AB = mEF e AC = nEF , com m e n inteiros, então
(AB)2 (mEF )2 m2
= =
(AC)2 (nEF )2 n2
m2
Logo, (AB)2 = (AC)2 .
n2
Por outro lado, pelo Teorema de Pitágoras, tem-se
m2
(AC)2 = (AB)2 + (BC)2 = 2(AB)2 = 2 (AC)2
n2
n2
o que equivale a = 2, ou seja, n2 = 2m2 .
m2
Mas tais números naturais m e n não existem! De fato, sendo n um número natural,
o Teorema Fundamental da Aritmética garante que n pode ser escrito, de modo único, como
produto de fatores primos, n = pk11 pk22 . . . pkr r . Portanto, n2 = (pk11 pk22 . . . pkr r )2 = p2k1 2k2 2kr
1 p2 . . . pr .

Assim, na decomposição de n2 , cada fator primo aparece uma quantidade par de vezes.

8
O mesmo acontece com m2 , ou seja, m2 se escreve, de modo único como um produto de
fatores primos e cada fator aparece uma quantidade par de vezes.
Isso significa que a igualdade n2 = 2m2 é impossível, já que na decomposição do número
2m2 há uma quantidade ímpar de fatores iguais a 2 e, portanto, não pode ser igual a n2 .
Concluímos assim que o lado e a diagonal de um quadrado não são comensuráveis. Equi-
valentemente, provamos o seguinte resultado:

Proposição 1.2.2 Não existe um número racional cujo quadrado é igual a 2.

• O conjunto dos números racionais tem falhas!

Os números racionais podem ser representados geometricamente por pontos de uma reta,
que chamamos usualmente de “reta numérica”. De fato, escolhemos um ponto O chamado origem,
que representa o número 0. Escolhemos um outro ponto P , distinto de O, para representar o
número 1. Tomando-se o comprimento do segmento OP como unidade de medida, marcamos
os demais pontos que representam os números racionais. Com isso, todo número racional r é
representado por um ponto R da reta. Dizemos que o número r é a abscissa do ponto R.
Observe que entre dois racionais quaisquer (mesmo muito próximos) sempre existe outro
a+b
racional entre eles. De fato, se a e b são racionais então m = 2
é racional e satisfaz a < m <
b. (Verifique! ) Mesmo assim, a reta numérica não é totalmente preenchida com os números
racionais, ou seja, existem pontos na reta numérica que não representam números racionais.
Por exemplo, sobre a reta numérica construa o quadrado OP QR que tem o segmento
OP como um de seus lados e diagonal OQ. (Faça uma figura! ) Colocando a ponta seca de um
compasso sobre O, podemos transportar o ponto Q até o ponto Q0 determinado pela intersecção
da circunferência de centro O e raio OQ com a reta numérica. Supondo OP = 1, tem-se que a

abscissa de Q0 é 2, que não é um número racional, conforme foi demonstrado anteriormente.
Assim, verificamos que se representarmos o conjunto dos racionais na reta numérica, ficam
alguns “buraquinhos” 1 .
O conjunto dos números reais pode ser pensado como o conjunto de todas as abscissas
dos pontos da reta numérica. Essa interpretação geométrica é bastante natura, e intuitiva. Por
não ter falhas, o conjunto dos números reais é completo. Como tornar precisa essa ideia?
1
Veremos em breve que a quantidade de buraquinhos é infinita.

9
Como veremos, a completude de R é o principal motivo de seu importante papel em
análise.
√ √ √
3
Exercícios 1.2.3 1. Prove que 3, 6e 2 são irracionais.

2. Prove que se n ∈ N, então n é irracional, exceto se n = m2 , para algum m natural.
√ √ √ √
3. Prove que 2 + 6 é irracional. Idem para 2 + 3.

4. Se p é um número primo e n é número natural maior que 2, sabemos que n p não é racional.

Por quê?

5. Dados n e m números naturais, então ou n
m é natural ou não é racional. Por quê?
√ √ √
6. Sejam n e m números naturais tais que n · m não é racional. Prove que n + m não
é racional.

7. Decida de cada afirmação dada é verdadeira ou falsa. Se for verdadeira, prove. Se for
falsa, mostre um contra-exemplo.

(a) Uma fração irredutível cujo denominador é um número primo tem representação
decimal infinita e periódica.

(b) Se p e q são números primos distintos então pq não é racional.

10
1.3 Uma estrutura importante
A seguir iremos explorar as propriedades dos conjuntos Q e R para poder compreender o
que difere um conjunto do outro. Veremos nesta aula que ambos têm uma estrutura em comum,
conhecida como “corpo ordenado”.
Quando entramos na escola, rapidamente temos contato com “as quatro operações”. Mas
. . . o que é uma operação? Uma operação em um conjunto A é uma função que, a cada par de
elementos de A associa um novo elemento também pertencente a A.
Desde nossa infância aprendemos duas operações muito importantes, a adição e a multi-
plicação, inicialmente no conjunto dos naturais e depois suas extensões para os conjuntos dos
inteiros e dos racionais.
Dependendo dos conjuntos e das operações, algumas propriedades são satisfeitas, e assim
ficam determinadas algumas “Estruturas Algébricas”. Dentre essas estruturas, nos interessa a
de corpo.

Definição 1.3.1 Um corpo é um conjunto K munido de duas operações, chamadas de adição


e multiplicação satifazendo os seguintes axiomas:

(A1) A adição é associativa: (x + y) + z = x + (y + z), ∀x, y, z ∈ K.

(A2) A adição é comutativa: x + y = y + x, ∀x, y ∈ K.

(A3) Existe um elemento 0 tal que 0 + x = x, ∀x ∈ K.

(A4) Para cada x ∈ K existe em K um elemento oposto, indicado por −x tal que x + (−x) = 0.

(M1) A multiplicação é associativa: (xy)z = x(yz), ∀x, y, z ∈ K.

(M2) A multiplicação é comutativa: xy = yx, ∀x, y ∈ K.

(M3) Existe um elemento 1 tal que 1x = x, ∀x ∈ K.

(M4) Para cada x ∈ K tal que x 6= 0 existe um elemento inverso, indicado por x−1 ∈ K tal que
x · x−1 = 1.

(D) Distributiva: x(y + z) = xy + xz, ∀x, y, z ∈ K.

11
Observemos que o conjunto N = {1, 2, 3, · · · } dos números naturais satisfaz apenas os
axiomas (A1), (A2), (A3), (M1), (M2), (M3) e (D). O conjunto Z dos inteiros, satisfaz todos os
axiomas, exceto (M4). O conjunto Q satisfaz os nove axiomas e, portanto, é um corpo.
Os axiomas (A1) e (M1) garantem que a adição e a multiplicação de uma quantidade
finita de números estão bem definidas, isto é, não há ambiguidade. Por exemplo, x + y + z
denota tanto (x + y) + z como x + (y + z), já que são iguais. Da mesma forma, x + y + z + w =
((x + y) + z) + w = (x + (y + z) + w) = x + ((y + z) + w) = x + (y + (z + w)) = (x + y) + (z + w).
A subtração é definida como x − y = x + (−y) e a divisão é dada por x ÷ y = x · y −1 .
Com esses nove axiomas, é possível provar outras importantes propriedades que costu-
mamos ensinar aos alunos e que são essenciais para se resolver equações. Vejamos algumas:

(P1) cancelamento na adição: Se a + c = b + c então a = b.


Suponha a + c = b + c. Então:

(A3+A2) (A4) (A1) (hipótese)


a = a + 0 = a + [c + (−c)] = (a + c) + (−c) =
(A2) (A4) (A3+A2)
= (b + c) + (−c) = b + [c + (−c)] = b + 0 = b

(P2) cancelamento na multiplicação: Se c 6= 0 e ac = bc então a = b.


Demonstração: exercício.

(P3) o produto de qualquer número por 0 é 0


Se a é um número qualquer do corpo K então a · 0 = a · (0 + 0) = a · 0 + a · 0. Podemos
escrever
0+a·0=a·0+a·0

e, usando o cancelamento (P1), chegamos a 0 = a · 0.

Como consequência de (P3), vemos que não existe um número 0−1 que satisfaz 0·0−1 = 1.
a
Consequentemente, não existe , ou seja, divisão por 0 é sempre indefinida.
0

(P4) se um produto é 0 então um dos fatores é 0.


Suponha ab = 0. Se a 6= 0 então, pelo axioma M4, existe a−1 e a−1 · (ab) = a−1 · 0. Usando
M1 e P3, obtem-se (a−1 · a) · b = 0 e, por M3, conclui-se que b = 0.

12
Pode acontecer que a = 0 e b = 0. Essa possibilidade não é excluída quando dizemos
“a = 0 ou b − 0”. Em matemática, a palavra “ou” é sempre usada no sentido de “um ou outro,
ou ambos”.
A propriedade (P4) é usada frequentemente na resolução de equações. Por exemplo,
se quisermos resolver a equação (x2 − 7x + 10) cos x = 0 podemos, por (P4), concluir que ou
x2 − 7x + 10 = 0 ou cos x = 0. A primeira equação é equivalente a (x − 5)(x − 2) = 0, cujas
π
soluções são x = 5 ou x = 2 e a segunda equação tem soluções da forma 2
+ kπ, com ∈ Z.
Portanto, as soluções da equação (x2 −7x+10) cos x = 0 são x = 5 ou x = 2 ou x = π2 +kπ, k ∈ Z.

(P5) regras de sinais: (−a)b = −(ab) = a(−b) e (−a)(−b) = ab.


Para poder entender como demonstrar a regra de sinais (você nunca teve curiosidade de
saber por que elas valem?) precisamos entender o significado do que se quer provar. Por
exemplo, para provarmos que (−a)b = −(ab), o que vamos fazer é provar que “(−a)b é o
oposto de ab”. Agora fica fácil: de acordo com o axioma A4, basta somar ab e ver que o
(D) P3
resultado é nulo. De fato, como (−a)b + ab = [(−a) + a] · b = 0 · b = 0, concluímos que
(−a)b é o oposto de ab.

A igualdade −(ab) = a(−b) é provada de modo análogo. (Faça como exercício!)

Finalmente, como (−a)(−b)+[−(ab)] = (−a)(−b)+(−a)b = (−a)[(−b)+b] = (−a)·0 = 0,


temos que {(−a)(−b) + [−(ab)]} + (ab) = 0 + (ab). Com isso, obtemos (−a)(−b) = ab.

Assim, o fato que o produto de dois números negativos é positivo é uma consequência dos
axiomas de corpo.
Um outro exemplo da propriedade distributiva é o funcionamento do algoritmo de mul-
tiplicação entre dois inteiros, que aprendemos na escola. Por exemplo, as contas

2 3
2 3 × 5 4
× 4 9 2
9 2 1 1 5
1 2 4 2

13
são nada mais do que uma maneira prática de escrever as propriedades distributivas das multi-
plicações de 4 unidades por 3 unidades e 2 dezenas, na primeira conta:
(D) (A1)
23 · 4 = (20 + 3) · 4 = 20 · 4 + 3 · 4 = 80 + 12 = 80 + (10 + 2) = (8 + 1) · 10 + 2 = 90 + 2 = 92

e, na segunda conta, completando com o produto de 5 dezenas por 3 unidades e 2 dezenas:


(D)
23 · 54 = 23 · (5 · 10 + 4) = 23 · 5 · 10 + 23 · 4 = . . .
(D)
= 115 · 10 + 90 + 2 = (115 + 9) · 10 + 2 = 1242

• Por que o resultado da multiplicação de 5 por 23 fica descolado para a esquerda?

Exercícios 1.3.2 1. Prove:

(a) Se a + b = a então b = 0. (Isto mostra que o elemento neutro da adição é único!)

(b) Se a + b = 0 então b = −a.

(c) −(−a) = a.

(d) Se a 6= 0 e ab = a então b = 1. (O que isto mostra?)

(e) Se a 6= 0 e ab = 1 então b = a−1 .

(f) Se a 6= 0 então (a−1 )−1 = a.


a ac
(g) Se b 6= 0 e c 6= 0 então = .
b bc
a c ad + bc
(h) Se b 6= 0 e d 6= 0 então + = .
b d bd
(i) Se a 6= 0 e b 6= 0 então (ab)−1 = a−1 b−1 .

2. O que está errado na seguinte “demonstração”? Se x = y então

x2 = xy
x2 − y 2 = xy − y 2
(x − y)(x + y) = (x − y)y
x+y = y
2y = y
2 = 1.

14
1.4 Corpos Ordenados
As próximas propriedades que iremos estudar lidam com desigualdades. Esta seção
contém uma tradução livre de uma parte do capítulo 1 de [7].

Definição 1.4.1 Um corpo ordenado é um corpo K em que é possível definir um subconjunto


P que satisfaz os seguintes axiomas:

(O1) Tricotomia: Para cada número x, exatamente uma das seguintes afirmações é verdadeira:

(a) x = 0,

(b) x ∈ P,

(c) −x ∈ P.

(O2) Se x e y pertencem a P então x + y pertence a P.

(O3) Se x e y pertencem a P então x · y pertence a P.

Além disso, definimos:

x>y se x − y ∈ P;
x<y se y − x ∈ P;
x≥y se x > y ou x = y;
x≤y se x < y ou x = y.

Em particular, x > 0 se e somente se x ∈ P. Os números x que satisfazem x > 0 são chamados


positivos e os números x que satisfazem x < 0 são chamados negativos.
Note que as desigualdades x < y (x é menor do que y) e y > x (y é maior do que x) são
equivalentes.
Dos axiomas (O1), (O2) e (O3) decorrem algumas propriedades importantes, tais como:

(PO1) Se a e b são números quaisquer de K então exatamente uma das afirmações é verdadeira:
a = b ou a > b ou a < b.

15
(PO2) Propriedade transitiva: Se a < b e b < c então a < c.
De fato, como b − a ∈ P e c − b ∈ P, por (O2) tem-se que (b − a) + (c − b) = c − a ∈ P.
Ou seja, a < c.

Notação 1.4.2 Se as duas desigualdades a < b e b < c são válidas simultaneamente, podemos
escrever abreviadamente a < b < c.

(PO3) Compatibilidade da ordem com a adição: Se a < b então a + c < b + c, qualquer que seja
c ∈ K.
De fato, se a < b então b − a ∈ P. Logo, (b + c) − (a + c) ∈ P, ou seja, a + c < b + c.

(PO4) Compatibilidade da ordem com a multiplicação: Se a < b e c > 0 então ac < bc.
Como b − a ∈ P e c ∈ P, então, por (O3), tem-se que (b − a)c = bc − ac ∈ P, ou,
equivalentemente, ac < bc.

(PO5) Se a < 0 e b < 0 então ab > 0.


Como a < 0, tem-se que 0 − a = −a ∈ P. Analogamente, −b ∈ P. Portanto, por (O3),
(−a)(−b) = ab ∈ P, ou seja, ab > 0.

Como consequência de (O3) e de (PO5), tem-se que x2 > 0, para todo x 6= 0.


Um outro fato também importante é que, como 1 = 12 , tem-se que 1 > 0. Observe
que esse fato não é óbvio: estamos lidando com corpos ordenados abstratos. O símbolo 1
representa o elemento neutro da multiplicação e o símbolo 0, o elemento neutro da adição e, até
este momento, não conhecíamos uma relação de ordem entre eles! Note também que, até este
momento, por meio dos axiomas só conhecemos os números 0 e 1.
(def)
Na desiqualdade 0 < 1, podemos somar 1 dos dois lados e obter 0 + 1 < 1 + 1 = 2.
De modo análogo, fazendo o mesmo com cada nova desigualdade, iremos obter 2 < 3; 3 < 4,
etc. Também, somando-se o oposto de 1 de cada lado, obtemos −1 < 0, −2 < −1, e assim por
diante. Isso justifica o que os professores precisam ensinar no Ensino Fundamental sobre ordem
dos números inteiros e sua representação na reta numérica:

- x
. . . −2 −1 0 1 2 3 ...

16
Exercícios 1.4.3 Prove as afirmações

1. Se a < b então −a > −b.

2. Se a > 0 então a−1 > 0.

3. Se 0 < a < b então 0 < b−1 < a−1 .

4. Se a > 1 então a2 > a.

5. Se 0 < a < 1 então a2 < a.


√ a+b
6. Se 0 < a < b então a < ab < 2
< b. (A média geométrica é menor do que a média
aritmética.)

Agora que sabemos que o inverso de um número positivo é um número positivo, podemos
1
tomar todas as desigualdades já estabelecidas e multiplicar cada uma por 2
(que é positivo), não
alterando o resultado, obtendo: · · · − 2 < − 32 < −1 < − 21 < 0 < 1
2
<1 < 32 < · · · . Repetindo o
processo com outros inversos de números já definidos, podemos acrescentar mais e mais valores
racionais na reta numérica.
Os axiomas e propriedades da ordem também permitem resolver inequações:

Exercícios 1.4.4 Resolva as inequações identificando os axiomas utilizados em cada passagem:

1. (x − 1)(x − 3) > 0.
x−1
2. < 2.
2−x
1 1
3. + > 0.
x 1−x

Definição 1.4.5 Para cada número x definimos seu módulo ou valor absoluto da seguinte ma-
neira: 
 x, se x ≥ 0,
|x| =
 −x, se x < 0.

17
Vale à pena observar que, representando-se x na reta numérica, |x| pode ser interpretado
como a distância de x até a origem e, analogamente, fixado um número a, |x − a| representa a
distância de x até a.

Teorema 1.4.6 (Desiqualdade Triangular)

|x + y| ≤ |x| + |y|, quaisquer que sejam x e y.

Demonstração. Há várias demonstrações em diversos livros. Escolhi esta, que é um pouco longa,
porém elementar.
Vamos considerar 4 casos:

1. Se a ≥ 0 e b ≥ 0, então a + b ≥ 0, pelo axioma (O2). Portanto, |a + b| = a + b = |a| + |b|.


(Note que, neste caso, vale a igualdade.)

2. Se a ≤ 0 e b ≤ 0, então a + b ≤ 0 (Por quê?). Portanto, |a + b| = −(a + b) = (−a) + (−b) =


|a| + |b|. (Neste caso também vale a igualdade.)

3. Se a ≥ 0 e b ≤ 0: Como a ≥ 0, então |a| = a e, como b ≤ 0, |b| = −b. Logo, |a|+|b| = a−b.


Por outro lado, não sabemos se a + b é positivo ou negativo. Vamos separar em 2 casos:

- Se a + b ≥ 0, então |a + b| = a + b ≤ a − b, já que b ≤ 0 e −b ≥ 0.

- Se a + b ≤ 0, então |a + b| = −(a + b) = −a − b ≤ a − b, já que −a ≤ a.

Portanto, se a ≥ 0 e b ≤ 0, vale |a + b| ≤ |a| + |b|. (Se b < 0, então |a + b| < |a| + |b|.)

4. Se a ≤ 0 e b ≥ 0. (Exercício.)


Definição 1.4.7 Se x ≥ 0, x é o único número positivo cujo quadrado é x.
√ √ √ √ √
Por exemplo, 4 = 2; 49 = 7; 2 = ... 2 (Sabemos que 2 é irracional. Erra quem
√ √
escreve 2 = 1, 41, pois 1,41 é uma aproximação de 2. O valor exato só pode ser indicado
usando-se o símbolo da raiz.)

Vamos observar: se x = −3 então x2 = 9 e x2 = 3 = | − 3|. Será que é sempre assim?

18

Proposição 1.4.8 Para todo número a, vale que |a| = a2 .

Demonstração. Exercício.

Exercícios 1.4.9 1. Expresse cada sentença abaixo sem o símbolo de valor absoluto:

(a) |x| − |x2 |

(b) |x| − |x3 |

(c) |a + b| − |b| (Não se assuste se a resposta não couber em uma linha. Mesmo assim,
ela pode ser organizada e objetiva.)

2. Determine todos os valores de x para os quais vale cada desigualdade:


(a) |x − 2| = 1 (b) |x − 2| < 1
(c) |x − 2| > 1 (d) |x − 1| + |x + 1| < 2
(e) |x − 1| + |x + 1| > 2

3. Prove que |x| − |y| ≤ |x − y|. (A demonstração pode ser bem curta, se você escolher um
caminho conveniente.)

4. Seja b positivo. Prove que |a| ≤ b se e somente se −b ≤ a ≤ b.

5. Seja b positivo. Prove que |a| ≥ b se e somente se a ≤ −b ou a ≥ b.


6. Prove que se |x − x0 | < 2
e |y − y0 | < 2 , então |(x + y) − (x0 + y0 )| < .

Notação 1.4.10 O mínimo entre dois números a e b é denotado por min{a, b}.

A sentença “x < min{a, b}” significa que x < a e x < b (simultaneamente). Nos exercícios
abaixo em que o mínimo aparece, você irá precisar de uma desigualdade em algum ponto de sua
argumentação e a outra desigualdade em outro ponto.

Exercícios 1.4.11 (Exercícios retirados de [7], capítulo 1)


n  o 
1. Prove que se |x − x0 | < min , 1 e |y − y0 | < , então |xy − x0 y0 | < .
2(|y0 | + 1) 2(|x0 | + 1)
n |y | |y |2 o 1 1
0 0
2. Prove que se y0 6= 0 e |y − y0 | < min , , então y 6= 0 e − < .

2 2 y y0

19
3. Troque os pontos de interrogação por expressões que envolvem , x0 e y0 , de modo que a
conclusão seja verdadeira:
x x
0
“se y0 6= 0, |y − y0 | <? e |x − x0 | <?, então então y 6= 0 e − < .”

y y0
Observe que este exercício é consequência dos dois anteriores.

Algumas respostas. Exercícios 1.4.9

(1a) x − x2 , se x ≥ 0; −x − x2 , se x ≤ 0.
(1c) a, se b ≥ 0 e a ≥ −b; −a, se b ≤ 0 e a ≤ −b;
−a, se b ≤ 0 e a ≤ −b; a + 2b, se b ≤ 0 e a > −b.
(2a) x = 1 ou x = 3; (2b) 1 < x < 3.
(2c) x < 1 ou x > 3 (É impossível escrever a resposta em uma sentença!)
(2d) Não existe x. (O argumento geométrico é mais simples neste caso.)
(2e) Qualquer x diferente de 1 e de −1.

20
1.5 Conjuntos Limitados

Definição 1.5.1 Sejam K um corpo ordenado e A ⊂ K um subconjunto não vazio. Dizemos


que A é limitado superiormente se existir um elemento M ∈ K tal que a ≤ M, ∀a ∈ A. Tal
elemento M é chamado majorante ou cota superior de A.

De modo análogo, dizemos que o conjunto A é limitado inferiormente se existir um


número N ∈ K tal que a ≥ N, ∀a ∈ A. O número N é chamado minorante ou cota inferior de
A.
Se um conjunto não vazio A é limitado superior e inferiormente, dizemos simplesmente
que A é limitado. Nesse caso, existem M e N tais que N ≤ a ≤ M, ∀a ∈ A.

Exemplos 1.5.2 1. No corpo ordenado Q, o conjunto A = {11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37},
formado pelos números primos entre 10 e 40 é limitado e os números 10 e 40 são respecti-
vamente um minorante e um majorante de A.

2. No corpo ordenado Q, considere o subconjunto


n1 o n 1 1 o
B= : n ∈ N = 1, , , . . .
n 2 3
1
Como ≤ 1, ∀n ∈ N, vemos que B é um conjunto limitado superiormente, e 1 é um majo-
n
rante de B. O conjunto B é também limitado inferiormente e 0 é um de seus minorantes,
já que todos os elementos de B são positivos.

Observe que os números 5, 10, 100, etc, também são majorantes de A, assim como
−1, −π, −5 são minorantes de A.

Se A é um conjunto limitado superiormente e M é um majorante de A então todo número


R maior do que M também é majorante de A, já que se a ≤ M, ∀a ∈ A e M < R então a
propriedade transitiva garante que a ≤ R, ∀a ∈ A.

2. Considere o conjunto B = {2n : n ∈ N} = {2, 4, 6, 8, . . .} ⊂ Q.

Como o conjunto B é formado apenas por números positivos, B é limitado inferiormente


e 0 é um de seus minorantes.

21
Sabemos intuitivamente apenas que B não é limitado superiormente, já que, qualquer que
seja o número M > 0 que se tome, por maior que seja, existirá um elemento de B maior
do que M . Em breve veremos como provar essa afirmação.

n
3. Considere o conjunto C = {− n+1 : n ∈ N} = {− 21 , − 23 , − 43 , . . .} ⊂ Q. Como n
n+1
> 0, ∀n,
n
temos que − n+1 < 0, ∀n ∈ N. Logo, C é limitado superiormente e 0 é um majorante de C.
n n
Por outro lado, como n < n + 1, ∀n ∈ N, temos n+1
< 1, ∀n ∈ N. Logo, − n+1 > −1, ∀n ∈
N, o que nos permite concluir que C é limitado inferiormente e −1 é um minorante de C.

Em muitas situações pode ser útil conhecer o menor dos majorantes ou o maior dos
minorantes de um conjunto. Esses números recebem nomes especiais.

Definição 1.5.3 Seja A um subconjunto não vazio e limitado de um corpo ordenado K. O


menor dos majorantes de A (se existir) é chamado supremo de A. O maior dos minorantes de
A (se existir) é chamado ínfimo de A.

Assim, um número s é supremo de A (escrevemos s = sup A) se e somente se:

(a) (s é majorante de A): a ≤ s, ∀a ∈ A;

(b) (s é o menor majorante de A): se M é um majorante de A, então s ≤ M .

De modo análogo um número i é um ínfimo de A (i = inf A) se e somente se

(c) i ≤ a, ∀a ∈ A e

(d) se K ≤ a, ∀a ∈ A, ou seja, se K é um minorante de A, então K ≤ i.

Exercício 1.5.4 Mostre que se s e t são supremos de um conjunto A então s = t. Em outras


palavras, o supremo de um conjunto, se existir, é único. O mesmo vale para ínfimo.

Vejamos alguns exemplos.

Exemplo 1. Em Q, considere o subconjunto A = {x ∈ Q|x < 4}.

É claro que A é não vazio (por exemplo, 2 ∈ A) e é limitado superiormente: M = 4 é um


majorante de A, já que x < 4, ∀x ∈ A. Para provar que 4 é o supremo de A, basta mostrar
que 4 é o menor dos majorantes de A.

Para provarmos que s = 4 satisfaz (b), vamos mostrar, equivalentemente que s = 4 satisfaz:

22
(b’) se x < s então x não é majorante de A, isto é, existe a ∈ A tal que x < a.

Seja x ∈ Q tal que 0 < x < 4. Vamos mostrar que x não é majorante de A. De fato,
x+4
tome m a média aritmética entre x e 4, m = 2
. Então m ∈ Q e m < 4 (de fato,
x+4
x<4⇒x+4<8⇒ 2
< 4). Portanto, m ∈ A. Logo, x não é majorante de A, já que
x < m. (Confira esta última igualdade!)

Note que A não é limitado inferiormente e, portanto, não admite ínfimo.


n n o n1 2 3 o
Exemplo 2. Em Q, considere o subconjunto B = |n ∈ N = , , ,... .
n+1 2 3 4
B é claramente não vazio. Vamos provar que B é limitado: de fato, como 0 < n < n + 1,
n
∀n ∈ N, então 0 < < 1, ∀n ∈ N. Ou seja, 0 é um minorante e 1 é um majorante de
n+1
B.

Vamos provar que sup B = 1. Para isso, basta tomar b < 1, b ∈ Q e provar provar que
n0 n0
existe um natural n0 tal que n0 +1
> b. Como n0 +1
∈ B, poderemos então concluir que b
não é majorante de B, o que nos permite concluir que 1 é o supremo de B.
n0 b
Rascunho. (b < n0 +1
⇔ bn0 + b < n0 ⇔ b < n0 (1 − b) ⇔ n0 > 1−b
.)

Seja b < 1 (podemos supor b > 0) e escolha n0 ∈ N tal que

b
n0 > (1.1)
1−b
n0
Então, b < n0 +1
∈ B, o que mostra que b não é majorante de B.

Observação. A rigor, é necessário provar que tal n0 existe. Adiante, em 1.7.1, iremos
demonstrar que o conjunto N não é limitado2 .

Definição 1.5.5 Seja A um conjunto de números. O maior elemento de A, se existir, é chamado


de máximo de A e, de modo análogo, o menor elemento de A, se existir, é o mínimo de A. Esses
números são indicados, respectivamente, por max A e min A.

Exemplos 1.5.6 1. Se A = {2, 4, 6, 8, 10} ⊂ Q então min A = 2 e max A = 10.


2
Se você acredita que isso é óbvio e que não precisa ser demonstrado, talvez você esteja sendo influenciado
demais por seu conhecimento intuitivo. Nós estamos “passando a limpo” o conhecimento sobre números, com
base em axiomas e teoremas. Todas as afirmações precisam de justificativas rigorosas.

23
2. Se A = { 12 , 14 , 16 , 18 , 10
1
} ⊂ Q então min A = 1
10
e max A = 12 .

3. Se A = {x ∈ Q : 1 ≤ x ≤ 5} então min A = 1 e max A = 5.

4. Se A = {x ∈ Q : 1 ≤ x < 5} então min A = 1 e não existe max A. (Por quê?) Note que A
tem supremo e sup A = 5.

É interessante observar que, para determinarmos o máximo de um conjunto, olhamos para


os elementos pertencentes ao conjunto e, quando precisamos determinar o supremo, olhamos para
fora do conjunto (para o conjunto dos majorantes). O mesmo acontece com mínimos e ínfimos.

Exercícios 1.5.7 Determine, se existirem, o máximo, mínimo, supremo e ínfimo de cada con-
junto dado.

1. A = {x ∈ Q : −2 < x ≤ 7}

2. B = {x ∈ Q : x2 + 5x + 6 ≤ 0}

3. C = {x ∈ Q : x2 + 5x + 6 < 0}

n
4. D = { 1+n : n ∈ N}

1
5. E = { 1+x 2 : x ∈ Q}

24
1.6 O Conjunto dos Números Reais
Provamos anteriormente (veja 1.2.2) que “não existe x racional tal que x2 = 2”. É

importante compreender que essa afirmação é diferente de “ 2 é irracional”, já que esta última

pressupõe a existência de um número, denotado por 2, cujo quadrado é 2. Nós não provamos
que esse número existe!
Nosso próximo objetivo será descobrir:

• Que propriedade distingue o conjunto dos racionais e o conjunto dos reais?

Vamos observar mais um exemplo:

Exemplo 1.6.1 Em Q, considere o subconjunto C = {x ∈ Q : x ≥ 0, x2 < 2}


Temos:

1) C é não vazio, já que, por exemplo, x = 1 pertence a C: 1 ∈ Q, 1 ≥ 0 e 12 < 2.

2) C é limitado: De fato, todo x em C satisfaz 0 ≤ x < 3.

3) C não admite supremo! De fato, os majorantes de C são os elementos do conjunto D =


{x ∈ Q : x ≥ 0, x2 ≥ 2}. Vamos provar que D não tem um menor elemento, ou seja, que
não existe o menor dos majorantes de C:

Seja p ∈ D qualquer. Como provamos que não existe racional cujo quadrado é igual a 2,
sabemos que p2 > 2.
p2 − 2
Defina q = p − ∈ Q. Sendo p2 − 2 > 0, temos que q < p. Também temos:
p+2

p2 − 2 p2 + 2p − (p2 − 2) p+1
q =p− = =2 > 0.
p+2 p+2 p+2

Logo, 0 < q < p.


p2 − 2
Além disso, q 2 − 2 = 2 > 0 (confira as contas! ).
(p + 2)2
Portanto, q ∈ D. Assim, provamos que para todo p em D existe q também em D tal que
q < p. Ou seja, o conjunto D não tem mínimo. Isso garante que C não tem supremo (em
Q).

25
Axioma do Supremo. Todo subconjunto de K não vazio e limitado superiormente
admite um supremo em K.
O exemplo 1.6.1 acima nos mostrou que o conjunto Q não satisfaz o axioma do supremo.
Veremos que é o axioma do supremo que distingue os conjuntos R e Q, já que R satisfaz esse
axioma.
O teorema a seguir será apenas enunciado. Há duas demonstrações, ambas bastante
longas e trabalhosas, para este teorema. Cada uma das demonstrações consistem em construir,
a partir de Q, um conjunto maior, R, que tem todas as propriedades desejadas. O conjunto
construído contém Q, não apenas como subconjunto, mas como subcorpo, isto é, as operações
de adição e multiplicação definidas em R, quando aplicadas a elementos de Q, coincidem com
as operações usuais de Q. É possível provar também que o conjunto dos racionais positivos são
elementos positivos de R.

Teorema 1.6.2 Existe um corpo ordenado que tem a propriedade do supremo. Além disso,
esse corpo contém Q como subcorpo.

No final do curso iremos ver uma das construções do conjunto dos números reais, suas
operações e a estrutura de ordem e provaremos que ele satisfaz todos os axiomas de corpo
ordenado, além do axioma do supremo. É também possível demonstrar que R é o único corpo
ordenado que satisfaz a propriedade do supremo, a menos de isomorfismo.
Intuitivamente, o axioma do supremo é o que garante que R pode ser identificado com
os pontos da reta orientada, sem deixar buraquinhos. Por esse motivo, é possível caracterizar o
conjunto dos números reais como sendo o único “corpo ordenado completo”.

Os elementos de R são chamados números reais. Também dizemos que um número real
é irracional se não for racional, isto é, se for um elemento do conjunto R − Q.

Exercícios 1.6.3 1. Decida de cada afirmação dada é verdadeira ou falsa. Se for verdadeira,
prove. Se for falsa, mostre um contra-exemplo.

(a) A soma de um número racional com um irracional é irracional.

(b) A soma de dois números irracionais é irracional.

(c) O produto de um número racional com um irracional é irracional.

26
(d) O produto de dois números irracionais é irracional.

2. Determine um número irracional entre 0, 001 e 0, 002.

3. Dê exemplos de infinitos irracionais entre 1 e 2.

4. Obtenha o supremo e o ínfimo de cada um dos subconjuntos:


n
n + (−1)n (−1)n
    X 
1
A= :n∈N , B= :n∈N e C= :n∈N
n n k=1
2k

Justifique sua resposta.


( n
)
X 9
5. Prove que o supremo do conjunto ∈ Q | n ∈ N = {0, 9; 0, 99; 0, 999; . . .} é
k=1
10k
igual a 1. Interprete.

Nos próximos exercícios, A e B são dois subconjuntos não vazios de R.

6. Prove que se A ⊆ B, então inf B ≤ inf A ≤ sup A ≤ sup B.

7. Sendo A + B = {a + b : a ∈ A, b ∈ B}, mostre que sup(A + B) = sup A + sup B e que


inf(A + B) = inf A + inf B.

8. Se A é limitado inferiormente, mostre que −A = {−x : x ∈ A} é limitado superiormente


e sup(−A) = − inf A

9. Suponha que a ≤ b para todo a ∈ A e todo b ∈ B. Prove que sup A ≤ inf B. Prove ainda
que sup A = inf B se, e somente se, qualquer que seja  > 0, existem a ∈ A e b ∈ B tais
que b − a < .

10. Seja A um subconjunto não vazio e limitado superiormente de R. Prove que b = sup A se
e somente se b é majorante de A e para todo  > 0 existe a ∈ A tal que b −  < a ≤ b.

27
1.7 Algumas Consequências da Propriedade do Supremo
Foi mencionado anteriormente, sem demonstração, que N não é limitado. Vamos provar
tal afirmação.

Teorema 1.7.1 O conjunto N não é limitado superiormente.

Demonstração. Suponha, por absurdo, que N seja limitado superiormente. Como N é um


subconjunto não vazio de R, N admite um supremo α ∈ R, tal que n ≤ α, ∀n ∈ N. Logo,
n+1 ≤ α, ∀n ∈ N, já que n+1 ∈ N. Mas esta última desigualdade equivale a n ≤ α−1, ∀n ∈ N, o
que significa que α−1 é um majorante de N, menor do que o supremo α, o que é uma contradição.

O teorema 1.7.1 é equivalente ao teorema a seguir, que é chamado por muitos autores de
propriedade arquimediana.

Teorema 1.7.2 Se x e y são dois números reais e x > 0, então existe pelo menos um número
natural n tal que nx > y.

Demonstração. Exercício.

1
Corolário 1.7.3 Para cada x > 0 existe um natural n tal que < x.
n
1
Demonstração. Suponha, por absurdo, que tal n não exista. Isso significa que ≥ x, qualquer
n
1 1
que seja n ∈ N. Portanto, n ≤ , ∀n ∈ N. Mas isso significa que é um majorante de N, o que
x x
contradiz o teorema 1.7.1.

A seguir, daremos uma demonstração rigorosa para o importante e intuitivo fato que
entre dois reais quaisquer sempre existe um racional.

Proposição 1.7.4 Se a, b ∈ R e a < b então existe r ∈ Q tal que a < r < b.

28
Demonstração. Como b − a > 0, a propriedade arquimediana garante que existe um natural
n tal que n(b − a) > 1. Além disso, usando novamente a propriedade arquimediana, existem
naturais s e t tais que s > na e t > −na. Portanto, −t < na < s. Logo, existe pelo menos um
inteiro m entre −t e s, tal que m − 1 ≤ na < m. Temos:

na < m ≤ 1 + na < nb
m m
Como n > 0, tem-se a < < b, o que prova a proposição, sendo r = .
n n


Definição 1.7.5 Um conjunto A é denso em R se entre dois números reais distintos existe um
elemento de A.

Uma vez estabelecida essa definição, a proposição 1.7.4 poderia ter sido enunciada da
seguinte maneira: Q é denso em R.

1.7.1 Existência de raízes


A existência de raízes de números reais positivos é um fato muito usado, mas precisa ser
provado. O exercício a seguir consiste em demonstrar passo a passo o seguinte:

Teorema 1.7.6 Para todo número real a > 0 e todo natural n existe um único real b tal que
bn = a.

Exercício 1.7.7 (Demonstração do teorema acima).


Fixados a > 0 e n ∈ N, considere o subconjunto A = {x ∈ R | x > 0 e xn < a}.
a
1. Mostre que A é não vazio. (Sugestão: considere o número a+1
)

2. Mostre que A é limitado superiormente. (Sugestão: tome M = 1 + a)

3. Conclua que existe (em R) o supremo de A, que será chamado de b. Verifique que b > 0.

O próximo passo é provar que bn = a, ou seja, que b é a raiz procurada. Para isso, nos
próximos itens usaremos o resultado a seguir, cuja demonstração fica a seu cargo:

xn − y n = (x − y)(xn−1 + xn−2 y + · · · + y n−1 ) < (x − y)nxn−1 , ∀x, y ∈ R | 0 < y < x.

29
4. Suponha que bn < a. Mostre que existe 0 < h < 1 tal que (b + h)n < a e b + h ∈ A.
Conclua que isso não pode ocorrer.

5. Suponha que bn > a. Mostre que existe 0 < r < b tal que se x satisfaz (b − r) < x < b,
então xn > a. Conclua que isso não pode ocorrer.

6. Conclua que bn = a e prove a unicidade.

Observe que a existência de raízes se baseia na existência do supremo.

1.7.2 E a sala de aula?


Tendo em vista que as representações decimais dos números racionais são finitas ou
infinitas e periódicas, costumamos encontrar a definição de número irracional como sendo um
número cuja representação decimal é infinita e não periódica. Também encontramos a definição
de que o conjunto dos números reais é a reunião dos racionais com os irracionais. Assim, um
número irracional positivo é da forma α = a, c1 c2 c3 . . . , em que a é um inteiro positivo (a ≥ 0)
e cj é um número inteiro entre 0 a 9 (cj é a j-ésima casa decimal de α), e com a restrição que
essa sequência de algarismos cj não seja periódica.
Um aluno poderia perguntar: “Como é feita a adição de dois números como esse?” “E a
multiplicação?”
É possível operar com números que têm infinitas casas decimais? Por exemplo, seria

possível somar ou multiplicar 2 por π escritos na forma decimal?
Uma outra dúvida, ainda mais básica, que pode surgir é “como saber se um número é
irracional?” Por mais casas decimais que possamos escrever, nunca teremos certeza se há ou
não uma sequência de casas decimais formando período a partir de algum ponto. Assim, apenas
observar as casas decimais não nos permite garantir se um número é ou não racional. Isso precisa
ser muito claro para o professor e, caso um aluno pergunte, tem que ser esclarecido para ele
também. Em geral, a demonstração de que um número é irracional é feita por absurdo, e nem

sempre é fácil. Já vimos como demonstrar que certos números da forma n x são irracionais.
Veremos adiante a demonstração de que o número e é irracional. A demonstração de que π é
irracional é muito trabalhosa e só foi feita no século XVIII, apesar desse número ser conhecido
desde a antiguidade.

30
41387
Exercício 1.7.8 Depois de quantas casas decimais começa a parte periódica do número ?
99000

Exercício 1.7.9 Dê um exemplo de um número racional em que o período só aparece depois


de 10 casas decimais.

Exercício 1.7.10 Dê um exemplo de um número racional em que o período só aparece depois


de 100 casas decimais.

O restante desta seção é opcional, embora bastante interessante, em minha opinião.

• Uma definição alternativa para o conjunto R.

Vamos admitir que os números da forma α = a, c1 c2 c3 . . . , em que a é um inteiro positivo


e cj é um número inteiro de 0 a 9, estejam bem definidos, isto é, vamos admitir que é possível
c1 c2 c3
calcular a soma infinita a + + + 3 + ...
10 100 10
A esses números daremos o nome de número real positivo.
1 4 1 5 9
Por exemplo, o número π pode ser escrito como 3 + + 2 + 3 + 4 + 5 + ...
10 10 10 10 10
Observe que os racionais cuja representação decimal é finita são tais que cj = 0, a partir
1 4 0 0
de um certo índice. Por exemplo, 3, 14 = 3 + + + 3 + 4 + . . . , ou seja, cj = 0 para
10 100 10 10
j ≥ 3.
Também é interessante saber que o número 3,14 é uma aproximação de π, bem como
3,15. O primeiro é uma aproximação por falta e o segundo, por excesso. Aproximações por falta
são facilmente obtidas, bastando “truncar” o número, isto é, apagar as casas decimais a partir
de algum ponto.
Sempre que aproximamos, cometemos um “erro de aproximação”. No caso do exemplo
acima, tanto 3,14 como 3,15 são aproximações de π com erro menor do que 0,01. Se precisarmos
de uma aproximação com erro menor, basta acrescentar mais casas. Assim, 3,1416 é uma
aproximação por excesso, com erro menor do que 10−4 .
Sabemos também que, como 0, 9 = 1, também é verdade que 0, 49 = 0, 5; 0, 8369 = 0, 837
e assim por diante. Para evitar ambiguidades, vamos considerar os números α definidos acima,
com a restrição que a sequência de algarismos c1 , c2 , . . . não tenha, a partir de um certo ponto,
só algarismos 9.

31
Com essa definição, um número real é um objeto bem concreto.
Esboçaremos, em forma de exercício, uma maneira de obter a estrutura de corpo ordenado:

1. Se α = a, c1 c2 c3 . . . e β = b, d1 d2 d3 . . ., defina α < β se a < b, ou se a = b e existe um n tal


que cj = dj para 1 ≤ j < n e cn < dn .

(a) Dê exemplo de um par de números irracionais α < β que diferem apenas na terceira
casa decimal.

(b) Mostre que o conjunto de números assim definidos e com essa relação de ordem
satisfaz a propriedade do supremo.

2. Seja α = a, c1 c2 c3 . . . e defina o número racional αk = a, c1 c2 . . . ck , ou seja, αk é o racional


obtido pelo truncamento de α a partir da k-ésima casa decimal. Note que dado um racional
da forma r = a, c1 c2 . . . ck , podemos considerar o número real r0 = a, c1 c2 . . . ck 0 0 0 . . ., ou
seja, r0 = a, c01 c02 c03 . . ., sendo c0n = cn para todo índice n tal que 1 ≤ n ≤ k e c0n = 0, se
n > k.

Assim, podemos definir a soma e o produto de dois reais da seguinte maneira: Para
α = a, c1 c2 c3 . . . e β = b, d1 d2 d3 . . ., defina

α + β = sup{(αk + βk )0 : k ∈ N} e α · β = sup{(αk · βk )0 : k ∈ N}

É possível verificar que todas as propriedades de corpo estão satisfeitas (o que dá um


enorme trabalho). Como exercício para poder perceber quais são as dificuldades envolvi-
das, prove apenas o axioma (A3): para cada número real α existe um oposto (−α) tal que
α + (−α) = 0.

Para um aluno do ensino médio, o que podemos dizer é que a soma e o produto de
dois números reais podem ser obtidos por meio de aproximações com quantas casas decimais
desejarmos. Veja, por exemplo, uma aproximação por falta, com 5 casas decimais, da soma:
31
99
+ π ≈ 0, 31313 + 3, 14159 = 3, 45472. O valor correto é maior, já que é uma aproximação por
falta, e o erro cometido é menor do que 10−5 .
Também é importante ensinar para os alunos que, quando fazemos contas, mesmo com
uma calculadora, usamos sempre números racionais para aproximar os irracionais. As calcula-
doras usam muitas casas decimais, mas sempre há um erro de aproximação! Quando queremos

32
uma resposta exata, sem aproximações, deixamos indicado, como por exemplo, nas fórmulas
ensinadas: a área do círculo de raio r é A = πr2 ; o volume da esfera de raio r é V = 43 πr3 ;

3
sen π3 = 2
; etc.

1.8 Intervalos
Alguns subconjuntos de números reais desempenham um papel bastante importante na
compreensão de certas ideias da análise. Dentre eles destacam-se os intervalos.
Se a e b são números reais tais que a < b, definimos:
o intervalo fechado [a, b]: [a, b] = {x ∈ R : a ≤ x ≤ b};
o intervalo aberto ]a, b[ = {x ∈ R : a < x < b};
e os intervalos ]a, b] = {x ∈ R : a < x ≤ b} e [a, b[ = {x ∈ R : a ≤ x < b}.
O comprimento de qualquer um desses invervalos é, por definição, a diferença b − a.
O primeiro resultado relacionados a intervalos é conhecido como Propriedade dos Inter-
valos Encaixantes.

Teorema 1.8.1 Sejam [a1 , b1 ], [a2 , b2 ], [a3 , b3 ],. . . , [an , bn ], . . . intervalos tais que

[a1 , b1 ] ⊃ [a2 , b2 ] ⊃ [a3 , b3 ] ⊃ . . . ⊃ [an , bn ] ⊃ . . .

Então a intersecção de todos os intervalos é não vazia.


Se, além disso, o comprimento dos intervalos tender a zero conforme n cresce, ou seja,
se lim (bn − an ) = 0, então existe um único ponto a pertencente a todos os intervalos, ou seja,
n→∞
\∞
[an , bn ] = {a}.
n=1

Demonstração. Considere o conjunto A = {a1 , a2 , a3 , . . .} dos números reais que são as extre-
midades direitas de cada intervalo. Como os invervalos estão encaixados, temos

a1 ≤ a2 ≤ a3 ≤ . . . ≤ bn , ∀n

Assim sendo, o conjunto A é não vazio e limitado superiormente e cada bn é majorante de A.


Pela propriedade do supremo, existe sup A = α.

33
Como α é um majorante de A, temos an ≤ α, para todo n. Por outro lado, como an < bn ,
para todo n, podemos concluir que α ≤ bn , ∀n. (Prove!) Logo, para cada n, vale an ≤ α ≤ bn ,
T
o que mostra que α ∈ [an , bn ].
Além disso, no caso em que lim (bn − an ) = 0, podemos ver facilmente que α será o único
n→∞
T
número real pertencente à intersecção. De fato, se β ∈ [an , bn ], teremos |β − α| ≤ (bn − an ), ∀n.
Fazendo n crescer indefinidamente, concluímos que β = α.

Observação 1.8.2 Sem a condição lim (bn − an ) = 0, tomando-se γ = inf{b1 , b2 , b3 , . . .}, vemos
n→∞
que a intersecção de todos os intervalos será o intervalo [α, γ].

Exercício 1.8.3 Prove:

1. que existe inf{b1 , b2 , b3 , . . .}.

2. a validade da afirmação dada na observacao 1.8.2 acima.

Veja que para provarmos que o conjunto dos números reais satisfaz a propriedade dos
intervalos encaixantes, precisamos usar o fato que R tem a propriedade do supremo. Ocorre
que as duas propriedades são equivalentes. Ou seja, sabendo que uma delas é satisfeita, pode-se
demonstrar a outra.

Exercício 1.8.4 Admitindo que um corpo ordenado K satisfaz a propriedade dos intervalos
encaixantes, prove que K satisfaz o axioma do supremo.

34
1.9 Conjuntos Infinitos
Há uma certa confusão sobre quantidades infinitas. Não é raro encontrarmos exem-
plos equivocados de conjuntos infinitos, como “a quantidade de grãos de areia na praia” ou a
“quantidade de estrelas no céu”. Acontece que essas quantidades, embora muito grandes, são
finitas!
Um exemplo de conjunto infinito é o conjunto dos números naturais: mesmo tomando-se
um número natural n muito grande, sempre existe outro maior, por exemplo, seu sucessor n + 1,
ou também o dobro de n, 2n, ou ainda seu triplo 3n.
No final do século XIX apareceu a necessidade de compreender melhor os conjuntos in-
finitos, motivada pelo estudo de funções integráveis. Sabemos que se uma função limitada tem
uma quantidade finita de descontinuidades, ela é integrável. E se a quantidade de descontinui-
dades for infinita? Em alguns casos, a função ainda é integrável, em outros, não! A questão da
integrabilidade será estudada por nós mais adiante, mas foi mencionada neste momento para
sabermos a motivação que levou os matemáticos a estudar conjuntos infinitos.

• Existem diferentes tipos de infinito!

Desde crianças aprendemos a contar... O que é contar ?


Se dermos a uma criança um pacote com 5 lápis e pedirmos a ela que conte, no fundo o
que ela faz é estabelecer uma bijeção entre os lápis e o conjunto {1, 2, 3, 4, 5}.
Uma outra situação corriqueira é comparar quantidades de dois conjuntos. Imagine que
estamos em uma sala com muitas cadeiras e várias pessoas. Se alguém perguntar se há mais
cadeiras ou mais pessoas, não há necessidade de se contar quantas são as cadeiras, quantas são
as pessoas. Ao invés disso, podemos pedir a todos que se sentem. Se sobrarem cadeiras vazias,
há mais cadeiras. Se sobrarem pessoas em pé, há mais pessoas! Assim pudemos responder
rapidamente à pergunta feita, sem a necessidade de contar cada conjunto.
Do ponto de vista da matemática, o que foi feito?
Ao pedirmos para as pessoas que se sentem, estamos estabelecendo uma função que a
cada pessoa associa a cadeira onde ela se sentou. Se essa função for bijetora, o número de
cadeiras e de pessoas é o mesmo! A função é injetora, pois estamos subentendendo que só pode
ter uma pessoa em cada cadeira. Se a função não for sobrejetora, há cadeiras sobrando.

35
Alguém poderia argumentar sobre a possibilidade de haver pessoas em pé. Nesse caso,
não está estabelecida uma correspondência que a cada elemento do domínio associa um no
contra-domínio. Consequentemente, a função não estaria bem definida.
O que é feito no estudo de conjuntos infinitos é basicamente encontrar uma função bijetora
para comparar o conjunto alvo de nosso estudo com outro já conhecido.

É necessário esclarecer que a terminologia usada neste tópico pode diferir levemente de
um livro para outro. Neste texto adotaremos as mesmas definições encontradas no livro do
Rudin [6].

Definição 1.9.1 Se existir uma função bijetora entre dois conjuntos A e B, dizemos que os
conjuntos têm a mesma cardinalidade e escrevemos A ∼ B.

Note que a relação A ∼ B é uma relação de equivalência, isto é, satisfaz as propriedades:

(i) A ∼ A (propriedade reflexiva)

(ii) Se A ∼ B então B ∼ A (propriedade simétrica)

(iii) Se A ∼ B e B ∼ C então A ∼ C (propriedade transitiva)

Por esse motivo, se dois conjuntos têm a mesma cardinalidade, dizemos que eles são
equivalentes (segundo Cantor ).

Exercício 1.9.2 Verifique que, de fato, a relação “A tem a mesma cardinalidade que B” é uma
relação de equivalência.

Definição 1.9.3 Para cada n ∈ N seja Fn = {1, 2, 3, . . . , n}.

(a) Um conjunto A é finito se existir uma função bijetora de Fn em A, para algum n. Dizemos,
nesse caso, que A tem n elementos. Consideramos o vazio um conjunto finito.

(b) A é infinito se A não for finito.

(c) A é enumerável se A ∼ N.

(d) A é não enumerável se A não for finito nem enumerável.

36
(e) A é no máximo enumerável se A for finito ou enumerável.

Exemplos 1.9.4 (a) O exemplo mais simples de conjunto enumerável – e o que serve de modelo
para essa ideia – é o conjunto N dos números naturais.

(b) O conjunto P = {2, 4, 6, . . .} dos números pares também é enumerável. Neste caso, é fácil
ver que a função f : N → P dada por f (n) = 2n é bijetora.

(c) O conjunto Z dos números inteiros é enumerável. De fato, podemos pensar na função que
leva N em Z associando os números naturais aos inteiros na seguinte ordem:

0, 1, −1, 2, −2, 3, −3, . . .

Essa função pode ser dada por



n

2
se n é par ,
f (n) =
 − n−1
2
se n é ímpar .

Fica a cargo do leitor verificar que f é uma função bijetora.

Definição 1.9.5 Uma sequência é uma função cujo domínio é N. Se f : N → A, denotamos


f (n) = an , dizemos que os valores an são os termos da sequência e que (a1 , a2 , a3 , . . .) é uma
sequência em A.

As notações (an ), ou (an )n∈N são usadas para indicar a sequência cujos termos são
a1 , a2 , a3 , . . ..
Note que uma sequência é uma lista seus termos em uma certa ordem: o elemento indicado
por a1 é o primeiro, o elemento a2 é o segundo, e assim por diante.
Os termos a1 , a2 , a3 , . . . não precisam ser dois a dois distintos. Por exemplo, a sequência
(1, 2, 4, 8, 16, . . . , 2n , . . .) formada pelas potências de 2 tem todos os seus termos distintos entre
si. Já a sequência (1, 2, 1, 2, . . .) dada por f (n) = 1, se n é ímpar e f (n) = 2, se n é par, é uma
sequência cujos termos se repetem no conjunto {1, 2}.
Como um conjunto enumerável é a imagem de uma função bijetora definida em N, po-
demos compreender um conjunto enumerável como a imagem de uma sequência formada por
termos distintos dois a dois, ou ainda, que os elementos de um conjunto enumerável podem ser
organizados em uma sequência.

37
Cabe agora uma observação muito importante. Quando lidamos com conjuntos finitos,
se um conjunto A é um subconjunto próprio de B, isto é, se A está contido em um conjunto B
e é diferente de B, então B tem uma quantidade de elementos menor do que A. Entretanto, os
exemplos acima mostram que com conjuntos infinitos pode acontecer A ⊂ B, A 6= B e A ∼ B:
o exemplo 1.9.4(b) mostrou que P ⊂ N e P ∼ N; o exemplo 1.9.4(c) mostrou que N ⊂ Z e
N ∼ Z.
Como esse fato caracteriza os conjuntos infinitos, alguns autores adotam a seguinte defi-
nição: um conjunto C é infinito se for equivalente a algum de seus subconjuntos próprios.

Teorema 1.9.6 Todo subconjunto infinito de um conjunto enumerável é enumerável.

Demonstração. Sejam A um conjunto enumerável e B ⊂ A um subconjunto infinito.


Como A é enumerável seus elementos podem ser colocados em uma sequência a1 , a2 , a3 , . . .
de termos distintos dois a dois (ai 6= aj se i 6= j).
Vamos construir uma sequência (nk )k∈N da sequinte maneira:
Defina n1 como o primeiro natural tal que an1 ∈ B.
Tome n2 como sendo o menor natural que é maior do que n1 tal que an2 ∈ B.
Tendo encontrado n1 , n2 , . . . , nk−1 tome nk como sendo o menor natural que é maior do
que nk−1 tal que ank ∈ B.
Como B, por hipótese, é um conjunto infinito, B pode ser visto como uma sequência

B = (an1 , an2 , an3 , . . . , ank , . . .)

É claro que esses termos são distintos dois a dois. Assim obtemos uma função bijetora f : N → B
dada por f (k) = ank . Logo, B é enumerável.

A ideia que esse teorema nos apresenta é que os conjuntos enumeráveis são conjuntos do
“menor tipo de infinito”, já que nenhum conjunto não enumerável pode ser subconjunto de um
enumerável.

38
Definição 1.9.7 Sejam E1 , E2 , E3 , . . . conjuntos.

[
A reunião de todos esses conjuntos, denotada por En , é o conjunto U formado pelos
n=1
elementos x tais que: x ∈ Ej , para um ou mais índices n.

\
A intersecção desses conjuntos, denotada por En , é o conjunto P tal que
n=1

x ∈ P ⇐⇒ x ∈ Ej , para todo n.

Exemplos 1.9.8 1. Para cada n ∈ N, tome En = {1, 2, . . . , n}. Observe que cada En é um
conjunto finito: E1 = {1}, E2 = {1, 2}, E3 = {1, 2, 3} etc.

[ ∞
\
Temos: En = N; En = {1}.
n=1 n=1


[ ∞
\
2. Para cada n ∈ N, defina En = {n}. Temos: En = N; En = φ.
n=1 n=1

Teorema 1.9.9 Seja E1 , E2 , . . . , En , . . . uma sequência de conjuntos enumeráveis e seja U =



[
En . Então U é enumerável.
n=1

Demonstração. Primeiramente vamos observar que, como E1 ⊂ U , U é infinito.


Os elementos de cada En podem ser colocados em uma lista infinita, já que En é enume-
rável. Assim, vamos considerar a matriz
 
e11 e12 . . . e1n ...
 
e e22 . . . e2n . . .
 21 
 . .. .. .. .. 
 .. . . . .
 
 
em1 em2 . . . emn . . .
 
.. .. . . .. ..
. . . . .

em que a primeira linha é formada por todos os elementos do conjunto E1 , a segunda linha,
pelos elementos de E2 , e assim por diante.
Os elementos da matriz são os elementos do conjunto U . Para mostrar que U é um
conjunto enumerável, teríamos que escrever os elementos de U em uma lista sem repetições.
Como não sabemos quais termos se repetem na matriz, é possível escrever tal lista! Para

39
contornar essa dificuldade, vamos colocar os elementos da matriz em uma sequência (que pode
ter repetições),
s : e11 , e21 , e12 , e31 , e22 , e13 , e41 , e32 , e23 , e14 , . . .

Observe que a sequência s tem uma regra de formação: primeiramente começamos com o termo
e11 , depois os termos cuja soma dos índices é 3, a saber, e21 e e12 , depois termos cuja soma dos
índices é 4: e31 , e22 e e13 e assim por diante.
Como conseguimos escrever todos os elementos da matriz em forma de uma sequência,
existe uma função de N no conjunto U , que associa os números 1, 2, 3, . . . , respectivamente
a e11 , e21 , e12 , e31 , e22 , e13 , e41 , e32 , e23 , e14 , . . . Como a primeira linha da matriz já é um conjunto
enumerável, logo infinito, os termos da sequência s formam um conjunto enumerável.
Assim, U é um subconjunto infinito do conjunto enumerável formado pelos termos da
sequência s. Pelo teorema 1.9.6, U é enumerável.

Corolário 1.9.10 A reunião finita de conjuntos enumeráveis é um conjunto enumerável.


n
[
Demonstração. Se U é o conjunto do teorema anterior, tem-se que a reunião finita F = Ek ⊂
k=1
U é um subconjunto infinito de um conjunto enumerável. Logo, F é enumerável.


n
[
Corolário 1.9.11 Se E1 , E2 , . . . , En são conjuntos finitos ou enumeráveis, então R = Ek é
k=1
no máximo enumerável.

Demonstração. De fato, se cada Ek for finito, então R será um conjunto finito. (Por que? )
Se algum Ek for enumerável, como Ek ⊂ R, a reunião R será um conjunto infinito. Logo,
enumerável.

Teorema 1.9.12 Sejam A e B conjuntos enumeráveis. Então o produto cartesiano

A × B = {(a, b) : a ∈ A, b ∈ B}

é enumerável.

40
Demonstração. Para cada a ∈ A fixado, considere o conjunto Ba = {(a, b) : b ∈ B}. Esse
conjunto é equivalente a B e, portanto, enumerável.
[
Mas observe que A × B = Ba , ou seja, A × B é uma reunião enumerável de conjuntos
a∈A
enumeráveis. Portanto, pelo teorema 1.9.9, A × B é enumerável.

Exercício 1.9.13 Prove que se A é enumerável, então o conjunto das n-uplas

An = {(a1 , a2 , . . . , an ) : aj ∈ A}

é enumerável.
Dica: use indução.

Corolário 1.9.14 Q é enumerável.

p
Demonstração. Seja x ∈ Q. Então x = q
: p, q ∈ Z, q 6= 0.
Seja f : Z × Z∗ → Q que, a cada par (p, q) associa o número x = pq .
É claro que f é uma função. Seu domínio é um conjunto enumerável (por que? ) e,
claramente, f é sobrejetora.
Como a imagem de um conjunto enumerável ou é um conjunto finito, ou é um conjunto
enumerável, basta mostrarmos que a imagem de f não é finita. (Note que f não é injetora, já
que, por exemplo, f (1, 2) = f (2, 4) = f (3, 6).)
Mas a imagem de f contém todos os números inteiros, pois, se n ∈ Z então n = f (n, 1).
Portanto, Q é enumerável.

Teorema 1.9.15 O intervalo [0, 1] não é enumerável.

Demonstração. Suponha, por absurdo, que [0, 1] seja enumerável. Como esse conjunto contém
n1 o
o conjunto infinito A = : n ∈ N , vemos que [0, 1] é também infinito.
n

41
Seja {x1 , x2 , x3 , . . .} uma enumeração de [0, 1]. Podemos escrever cada xj na forma de-
cimal infinita e, para evitar repetições vamos escolher as representações decimais que não ter-
minam com infinitos algarismos iguais a 9. Por exemplo, o número 0, 5 será representado como
0, 5000 . . . e não 0, 49999 . . .. Assim,

x1 = 0, a11 a12 a13 . . .


x2 = 0, a21 a22 a23 . . .
.. ..
. .
xn = 0, an1 an2 an3 . . .
.. ..
. .

(ai1 , ai2 , ai3 , . . . ∈ {0, 1, 2, . . . , 9} são os algarismos da representação decimal de xi )


Vamos agora definir o número b = 0, b1 b2 b3 . . . da seguinte maneira:

b1 = 5, se a11 6= 5 e b1 = 6, se a11 = 5;
b2 = 5, se a22 6= 5 e b2 = 6, se a22 = 5

e assim por diante. Ou seja, bn = 5, se ann 6= 5 e bn = 6, se ann = 5, para cada n.


O exercício de revisão 7 abaixo ajuda a entender por que tal b existe. (b é o número real
nP o
n bj
dado por b = sup j=1 10j ∈ Q : n ∈ N .
Mas veja que interessante: o número b é diferente de x1 , pois, por construção, sua primeira
casa decimal é diferente da primeira casa decimal de x1 (b1 6= a11 ).
O número b também é diferente de x2 , pois b2 6= a22 , . . . Para cada n, o número b é
diferente de xn , pois bn 6= ann .
Mas isso contradiz o fato de {x1 , x2 , x3 , . . .} ser uma enumeração de [0, 1], já que encon-
tramos um número b ∈ [0, 1] que não estava nessa lista!

Corolário 1.9.16 R é não enumerável.

Corolário 1.9.17 R − Q é não enumerável.

42
Exercícios de revisão

1. Prove que 12 é irracional.

2. Prove que log3 2 é irracional.



3. Prove que se p, q ∈ N e p e q são primos então pq é irracional. (Encontrado em [1], 2.1).

4. Prove que se x e y são irracionais tais que x2 − y 2 é racional não nulo, então x + y e x − y
√ √ √ √
são ambos irracionais. Por exemplo, 5 + 3 e 5 − 3. (Encontrado em [1], 2.1).
n n
o
5. Seja A = (−1)
n−1
: n ∈ N, n ≥ 2 . Determine, caso existam, o supremo, o ínfimo, o máximo
e o mínimo de A. Justifique.

9 9 9
6. Observe que o número racional 0,999 pode ser escrito como 10 + 100 + 1000 . De modo geral,
Pn
0, 99 . . . 9} = k=1 109k .
| {z
n
nP o
n 9
Considere o conjunto D = k=1 10k : n ∈ N . Prove que sup(D) = 1. Interprete.

7. Seja (ak )k∈N uma sequência de algarismos (ak ∈ {0, 1, 2, . . . , 9}) e considere os números
a1 a2 an
sn = 10
+ 102
+ ··· + 10n
.

(a) Cada número sn é racional ou irracional?

(b) Mostre que o conjunto E = {sn : n ∈ N} é não vazio e limitado superiormente.

(c) Conclua que s = sup(E) é um número real entre 0 e 1.

8. Seja A ⊂ R um conjunto não vazio e limitado inferiormente. Defina −A = {−x : x ∈ A}.


Prove que − inf(A) = sup(−A).

9. Prove que se a, b ∈ R e a < b então o intervalo [a, b] é um conjunto não enumerável.

10. Um número real r é dito algébrico se r é raiz de um polinômio com coeficientes inteiros.
1 √ √ 5
(a) Verifique que os números 2, , 2, 267 são algébricos, encontrando funções po-
13
linomiais que têm esses números como raízes.
√ √ √ √
(b) Verifique que 2 + 3 e 2(1 + 5) são algébricos. (Você irá precisar de equações
de grau 4).

43
(c) Prove que o conjunto P (Z), de todos os polinômios com coeficientes inteiros, é enu-
merável.

(d) Seja {p1 , p2 , p3 , . . . , pn , . . .} uma enumeração de P (Z). Seja An o conjuntos das raízes
reais de pn . Conclua que o conjunto A formado por todos os números algébricos, é
enumerável.

(e) Um número real é dito transcendente se não é algébrico. Mostre que o conjunto dos
números transcendentes é não-enumerável.

44
Referências Bibliográficas

[1] Geraldo Ávila. Análise Matemática para Licenciatura. Edgard Blucher Ltda, 3 edition, 2006.

[2] Hamilton Guidorizzi. Um Curso de Cálculo, volume 1. LTC Editora, 2001.

[3] Hamilton Guidorizzi. Um Curso de Cálculo, volume 4. LTC Editora, 2001.

[4] Elon Lages Lima. Análise Real. IMPA, CNPq, 1997.

[5] Ivan Niven. Números: racionais e irracionais. SBM, 1984.

[6] Walter Rudin. Princípios de Análise Matemática. Ed. Ao Livro Técnico S.A., 1971.

[7] Michael Spivak. Calculus. Addison Wesley, 1967.

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