Introdução A Analise Real Ime Usp PDF
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Em cursos de cálculo, algumas ideias são apresentadas de modo intuitivo e informal. His-
toricamente, foi desse modo, intuitivo e informal, que certos conceitos foram criados. Entretanto,
alguns avanços na teoria passaram a exigir maior precisão e rigor para que certas questões fossem
esclarecidas, o que aconteceu de modo gradual a partir de 1820. A esse estudo mais rigoroso e
profundo dos números e suas funções damos o nome de Análise Real.
Neste curso iremos estudar números reais, limites, continuidade, funções dadas por inte-
gral, séries numéricas e séries de funções.
Decidi escrever estas notas pela dificuldade que tenho sentido em adotar um único livro-
texto que aborde todo o conteúdo programático da disciplina MAT0315, e da forma que considero
adequada para os alunos da disciplina, a saber, não extremamente rigoroso, por ser um primeiro
contato com o assunto, mas já avançando um pouco nessa direção.
Além das ideias da análise matemática, estas notas de aula têm também uma meta
especial, que é mostrar, sempre que possível, a relação entre conhecimentos estudados em análise
real e tópicos de matemática elementar ministrados nas aulas no ensino básico.
Algumas partes destas notas têm a forte influência do livro Calculus, de Michael Spivak [7]
que, em minha opinião, aborda os vários conceitos de forma clara e objetiva, evitando truques
artificiais. Muitos alunos não conseguem se beneficiar de sua qualidade porque, infelizmente, ele
não foi traduzido para o português.
Outro autor que admiro bastante, mas que apresenta um nível de rigor mais avançado
é Walter Rudin. A leitura de seu livro [6] exige maior maturidade. Gosto muito também do
livro do Prof. Ávila [1], que foi escrito tendo em mente a formação de futuros professores
de Matemática. Esse livro contém valiosas notas históricas que tornam sua leitura bastante
interessante e agradável.
Os livros do Prof. Guidorizzi se tornaram referências nacionais em cursos de cálculo.
Por terem uma abordagem abrangente, os volumes 1 e 4 ([2], [3]) tratam de tópicos que nos
interessam e são referências bastante importantes em nosso curso.
Acredito que um professor de matemática deva perceber e transmitir a seus alunos a
Matemática não apenas como um conhecimento científico, mas também como uma conquista
social e cultural. Muitos problemas relevantes para a humanidade foram solucionados com
1
idéias originais envolvendo a criação de conceitos e o desenvolvimento de novas técnicas. O
conhecimento e a reflexão sobre tais questões no passado permite que se tenha uma noção da
real dificuldade do assunto a ser trabalhado em sala de aula. Estas notas pretendem explorar
também esses aspectos.
Além disso, ter clareza de que a Matemática foi desenvolvida ao longo de muitos séculos e
contou com a contribuição de muitos homens é uma lição a ser passada também para os alunos,
que, com isso, conseguem perceber um lado mais humanizado, realista e desmistificado da Mate-
mática. As invenções e descobertas vieram como consequência de reflexões sobre problemas que
precisavam de solução e, na maioria dos casos que conhecemos, surgiram como aprimoramentos
de ideias de outros. O conhecimento de parte dessa imensa construção que ainda está sendo
feita faz diferença na vida profissional dos professores e, como consequência, na formação de
seus alunos.
2
Capítulo 1
Números Reais
De acordo com Walter Rudin, em seu livro “Princípios de Análise Matemática”, uma
discussão satisfatória dos principais conceitos de análise devem estar baseados em um conceito
de número definido de forma precisa.
Não é objetivo deste curso discutir axiomas da aritmética. Por isso, iremos assumir
conhecidos o conjunto N = {1, 2, 3, . . .} dos números naturais, o conjunto Z dos números inteiros
e o conjunto Q dos números racionais.
Entretanto há algumas questões delicadas relacionadas ao conjunto dos números racionais
np o
Q= : p, q ∈ Z, q 6= 0 que precisam ser esclarecidas.
q
3
27 33 3 3 · 52 75
c) = 2 2 = 2 = 2 2 = = 0, 75
36 2 ·3 2 2 ·5 100
6 2·3 2 2 · 22 8
d) = 2 = 2 = 2 2 = = 0, 08
75 5 ·3 5 5 ·2 100
O leitor atento deve ter notado que, depois de simplificada ao máximo, se a fração resul-
p
tante q
tem denominador q que se fatora em potências de 2 ou de 5, então, multiplicando-se por
potências de 2 ou de 5 convenientes, esse denominador pode ser transformado em uma potên-
cia de 10. Consequentemente, esse racional tem uma representação decimal finita, isto é, uma
representação na forma decimal com uma quantidade finita de casas decimais depois da vírgula.
Recorde que se n0 é um número natural e d1 , d2 , . . . dk são algarismos pertencentes ao
conjunto {0, 1, 2, . . . , 9} então a representação decimal do número x dado por
d1 d2 dk
x = n0 + + 2 + ··· + k
10 10 10
é x = n0 , d1 d2 . . . dk .
Por exemplo, a representação do número
9 7 0 4 6
x = 14 + + 2+ 3+ 4+ 5
10 10 10 10 10
p
• O que acontece se o denominador de uma fração irredutível q
tiver um fator primo diferente
de 2 ou 5?
1 3 2455
= 0, 333 . . . = 0, 2727 . . . = 0, 272777 . . .
3 11 9000
Note que as reticências escritas acima são imprecisas. Elas indicam que as casas decimais
“continuam”, mas não informam precisamente como é a continuação. Por esse motivo, quando
4
sabemos que a continuação é periódica, colocamos uma barra sobre a parte que se repete. Assim,
a notação mais precisa dos exemplos acima é:
1 3 2455
= 0, 3 = 0, 27 = 0, 2727
3 11 9000
Entretanto, a experiência, por maior que seja, não nos permite enunciar um resultado
geral sem uma argumentação que seja válida para todos os casos. Vamos então procurar um
p
argumento que garanta que se um número racional, escrito na forma irredutível como , é tal
q
que q contém algum fator diferente de 2 e de 5, então a representação decimal desse número
será infinita e periódica.
Observe que não é possível multiplicar denominador e numerador por um número inteiro
de forma a transformar o denominador em uma potência de 10. Por quê?
Bem, isso é consequência do Teorema Fundamental da Aritmética, conhecido pelos alunos
desde o Ensino Fundamental. Esse teorema nos ensina que “qualquer número natural pode ser
escrito como produto de fatores primos, de modo único a menos da ordem dos fatores”. Sendo
assim, qualquer potência de 10 se fatora, de modo único, como produto de potências de 2 e
potências de 5.
Portanto, se o denominador de uma fração irredutível tem algum fator diferente de 2 e
de 5 não será possível encontrar uma fração equivalente cujo denominador seja uma potência de
10. Sendo assim, a representação decimal desse racional será infinita!
1 2 6
Exercício 1.1.1 Determine a representação decimal de cada um dos números , ,... .
7 7 7
7 9 10
Exercício 1.1.2 Determine a representação decimal de , , .
11 11 11
1
Exercício 1.1.3 O número 17
tem representação decimal finita, infinita periódica ou infinita e
não periódica?
• Depois de observar o que aconteceu nos exercícios acima, você já conseguiu perceber uma
argumentação para o caso geral ?
5
e, a partir desse ponto, os restos começam a repetir: 3, 2, 6, 4, 5, 1, 3, 2, . . .
1, 0 | 7
3 0 0, 142857 . . .
2 0
6 0
4 0
5 0
1
..
.
1
Portanto, = 0, 142857.
7
Na divisão de 7 por 11, aparecem apenas os restos 4 e 7, nessa ordem, que irão se repetir
indefinidamente. Obtemos o quociente 0, 63.
No caso geral, podemos dizer que, se um racional se escreve, na forma de fração irredutível,
p
como q
e q contém algum fator distinto de 2 e de 5, então:
(i) é impossível transformar o denominador em uma potência de 10, o que torna a represen-
tação infinita;
(ii) os possíveis restos da divisão de p por q são 1, 2, 3, . . . , q − 1. (Note que o resto da divisão
nunca é igual a 0.)
Portanto, sendo uma divisão infinita e apenas uma quantidade finita de restos possíveis, a
partir de algum momento, algum resto irá se repetir. A partir daí, irá aparecer um período no
quociente.
Assim, concluímos que a representação decimal de um número racional, se não for finita,
será necessariamente periódica.
6
Veremos adiante como justificar a validade de um “processo prático” de transformar dízi-
mas periódicas em frações. Trata-se de multiplicar a dízima por uma potência de 10 conveniente
de modo a cancelar a parte decimal. Por exemplo, se x = 1, 582, então x = 1 + 0, 5 + 0, 082.
Logo, 10x = 10 + 5 + 0, 82. Também
1567
Logo, 1.000x − 10x = 1582 + 0, 82 − [15 + 0, 82] = 1582 − 15 = 1567. Portanto, x = .
990
Esse processo funciona, mas será preciso entender por quê! Note que uma dízima é, na
∞
X 9
verdade, uma soma infinita de frações decimais (por exemplo, 0, 9999 . . . = ) e nós ainda
n=1
10n
não aprendemos a lidar com somas infinitas de números.
Exercício 1.1.4 Em cada caso, encontre uma fração cuja representação decimal é a dízima
periódica dada:
a) 0, 4
b) 0, 250
c) 3, 04
d) 0, 221
e) 4, 00167
7
1.2 O que são números irracionais?
Dados dois pontos A e B, o conjunto dos pontos da reta determinada por A e B e situados
entre A e B, é chamado segmento AB e é denotado por AB. O comprimento desse segmento
será denotado simplesmente por AB.
No caso que que AB e CD são comensuráveis, o segmento EF é uma unidade comum, de modo
que EF cabe m vezes em AB e n vezes em CD.
Com a notação usada nos dias de hoje, poderíamos escrever
AB mEF m
= =
CD nEF n
ou seja, se os segmentos AB e CD são comensuráveis então a razão entre seus comprimentos é
um número racional.
Os gregos antigos já haviam notado que existem segmentos incomensuráveis, ou seja,
segmentos para os quais não existe uma unidade comum. Por exemplo, o lado AB e a diagonal
AC de um quadrado não são comensuráveis.
De fato, se existisse EF tal que AB = mEF e AC = nEF , com m e n inteiros, então
(AB)2 (mEF )2 m2
= =
(AC)2 (nEF )2 n2
m2
Logo, (AB)2 = (AC)2 .
n2
Por outro lado, pelo Teorema de Pitágoras, tem-se
m2
(AC)2 = (AB)2 + (BC)2 = 2(AB)2 = 2 (AC)2
n2
n2
o que equivale a = 2, ou seja, n2 = 2m2 .
m2
Mas tais números naturais m e n não existem! De fato, sendo n um número natural,
o Teorema Fundamental da Aritmética garante que n pode ser escrito, de modo único, como
produto de fatores primos, n = pk11 pk22 . . . pkr r . Portanto, n2 = (pk11 pk22 . . . pkr r )2 = p2k1 2k2 2kr
1 p2 . . . pr .
Assim, na decomposição de n2 , cada fator primo aparece uma quantidade par de vezes.
8
O mesmo acontece com m2 , ou seja, m2 se escreve, de modo único como um produto de
fatores primos e cada fator aparece uma quantidade par de vezes.
Isso significa que a igualdade n2 = 2m2 é impossível, já que na decomposição do número
2m2 há uma quantidade ímpar de fatores iguais a 2 e, portanto, não pode ser igual a n2 .
Concluímos assim que o lado e a diagonal de um quadrado não são comensuráveis. Equi-
valentemente, provamos o seguinte resultado:
Os números racionais podem ser representados geometricamente por pontos de uma reta,
que chamamos usualmente de “reta numérica”. De fato, escolhemos um ponto O chamado origem,
que representa o número 0. Escolhemos um outro ponto P , distinto de O, para representar o
número 1. Tomando-se o comprimento do segmento OP como unidade de medida, marcamos
os demais pontos que representam os números racionais. Com isso, todo número racional r é
representado por um ponto R da reta. Dizemos que o número r é a abscissa do ponto R.
Observe que entre dois racionais quaisquer (mesmo muito próximos) sempre existe outro
a+b
racional entre eles. De fato, se a e b são racionais então m = 2
é racional e satisfaz a < m <
b. (Verifique! ) Mesmo assim, a reta numérica não é totalmente preenchida com os números
racionais, ou seja, existem pontos na reta numérica que não representam números racionais.
Por exemplo, sobre a reta numérica construa o quadrado OP QR que tem o segmento
OP como um de seus lados e diagonal OQ. (Faça uma figura! ) Colocando a ponta seca de um
compasso sobre O, podemos transportar o ponto Q até o ponto Q0 determinado pela intersecção
da circunferência de centro O e raio OQ com a reta numérica. Supondo OP = 1, tem-se que a
√
abscissa de Q0 é 2, que não é um número racional, conforme foi demonstrado anteriormente.
Assim, verificamos que se representarmos o conjunto dos racionais na reta numérica, ficam
alguns “buraquinhos” 1 .
O conjunto dos números reais pode ser pensado como o conjunto de todas as abscissas
dos pontos da reta numérica. Essa interpretação geométrica é bastante natura, e intuitiva. Por
não ter falhas, o conjunto dos números reais é completo. Como tornar precisa essa ideia?
1
Veremos em breve que a quantidade de buraquinhos é infinita.
9
Como veremos, a completude de R é o principal motivo de seu importante papel em
análise.
√ √ √
3
Exercícios 1.2.3 1. Prove que 3, 6e 2 são irracionais.
√
2. Prove que se n ∈ N, então n é irracional, exceto se n = m2 , para algum m natural.
√ √ √ √
3. Prove que 2 + 6 é irracional. Idem para 2 + 3.
√
4. Se p é um número primo e n é número natural maior que 2, sabemos que n p não é racional.
Por quê?
√
5. Dados n e m números naturais, então ou n
m é natural ou não é racional. Por quê?
√ √ √
6. Sejam n e m números naturais tais que n · m não é racional. Prove que n + m não
é racional.
7. Decida de cada afirmação dada é verdadeira ou falsa. Se for verdadeira, prove. Se for
falsa, mostre um contra-exemplo.
(a) Uma fração irredutível cujo denominador é um número primo tem representação
decimal infinita e periódica.
√
(b) Se p e q são números primos distintos então pq não é racional.
10
1.3 Uma estrutura importante
A seguir iremos explorar as propriedades dos conjuntos Q e R para poder compreender o
que difere um conjunto do outro. Veremos nesta aula que ambos têm uma estrutura em comum,
conhecida como “corpo ordenado”.
Quando entramos na escola, rapidamente temos contato com “as quatro operações”. Mas
. . . o que é uma operação? Uma operação em um conjunto A é uma função que, a cada par de
elementos de A associa um novo elemento também pertencente a A.
Desde nossa infância aprendemos duas operações muito importantes, a adição e a multi-
plicação, inicialmente no conjunto dos naturais e depois suas extensões para os conjuntos dos
inteiros e dos racionais.
Dependendo dos conjuntos e das operações, algumas propriedades são satisfeitas, e assim
ficam determinadas algumas “Estruturas Algébricas”. Dentre essas estruturas, nos interessa a
de corpo.
(A4) Para cada x ∈ K existe em K um elemento oposto, indicado por −x tal que x + (−x) = 0.
(M4) Para cada x ∈ K tal que x 6= 0 existe um elemento inverso, indicado por x−1 ∈ K tal que
x · x−1 = 1.
11
Observemos que o conjunto N = {1, 2, 3, · · · } dos números naturais satisfaz apenas os
axiomas (A1), (A2), (A3), (M1), (M2), (M3) e (D). O conjunto Z dos inteiros, satisfaz todos os
axiomas, exceto (M4). O conjunto Q satisfaz os nove axiomas e, portanto, é um corpo.
Os axiomas (A1) e (M1) garantem que a adição e a multiplicação de uma quantidade
finita de números estão bem definidas, isto é, não há ambiguidade. Por exemplo, x + y + z
denota tanto (x + y) + z como x + (y + z), já que são iguais. Da mesma forma, x + y + z + w =
((x + y) + z) + w = (x + (y + z) + w) = x + ((y + z) + w) = x + (y + (z + w)) = (x + y) + (z + w).
A subtração é definida como x − y = x + (−y) e a divisão é dada por x ÷ y = x · y −1 .
Com esses nove axiomas, é possível provar outras importantes propriedades que costu-
mamos ensinar aos alunos e que são essenciais para se resolver equações. Vejamos algumas:
Como consequência de (P3), vemos que não existe um número 0−1 que satisfaz 0·0−1 = 1.
a
Consequentemente, não existe , ou seja, divisão por 0 é sempre indefinida.
0
12
Pode acontecer que a = 0 e b = 0. Essa possibilidade não é excluída quando dizemos
“a = 0 ou b − 0”. Em matemática, a palavra “ou” é sempre usada no sentido de “um ou outro,
ou ambos”.
A propriedade (P4) é usada frequentemente na resolução de equações. Por exemplo,
se quisermos resolver a equação (x2 − 7x + 10) cos x = 0 podemos, por (P4), concluir que ou
x2 − 7x + 10 = 0 ou cos x = 0. A primeira equação é equivalente a (x − 5)(x − 2) = 0, cujas
π
soluções são x = 5 ou x = 2 e a segunda equação tem soluções da forma 2
+ kπ, com ∈ Z.
Portanto, as soluções da equação (x2 −7x+10) cos x = 0 são x = 5 ou x = 2 ou x = π2 +kπ, k ∈ Z.
Assim, o fato que o produto de dois números negativos é positivo é uma consequência dos
axiomas de corpo.
Um outro exemplo da propriedade distributiva é o funcionamento do algoritmo de mul-
tiplicação entre dois inteiros, que aprendemos na escola. Por exemplo, as contas
2 3
2 3 × 5 4
× 4 9 2
9 2 1 1 5
1 2 4 2
13
são nada mais do que uma maneira prática de escrever as propriedades distributivas das multi-
plicações de 4 unidades por 3 unidades e 2 dezenas, na primeira conta:
(D) (A1)
23 · 4 = (20 + 3) · 4 = 20 · 4 + 3 · 4 = 80 + 12 = 80 + (10 + 2) = (8 + 1) · 10 + 2 = 90 + 2 = 92
(c) −(−a) = a.
x2 = xy
x2 − y 2 = xy − y 2
(x − y)(x + y) = (x − y)y
x+y = y
2y = y
2 = 1.
14
1.4 Corpos Ordenados
As próximas propriedades que iremos estudar lidam com desigualdades. Esta seção
contém uma tradução livre de uma parte do capítulo 1 de [7].
(O1) Tricotomia: Para cada número x, exatamente uma das seguintes afirmações é verdadeira:
(a) x = 0,
(b) x ∈ P,
(c) −x ∈ P.
x>y se x − y ∈ P;
x<y se y − x ∈ P;
x≥y se x > y ou x = y;
x≤y se x < y ou x = y.
(PO1) Se a e b são números quaisquer de K então exatamente uma das afirmações é verdadeira:
a = b ou a > b ou a < b.
15
(PO2) Propriedade transitiva: Se a < b e b < c então a < c.
De fato, como b − a ∈ P e c − b ∈ P, por (O2) tem-se que (b − a) + (c − b) = c − a ∈ P.
Ou seja, a < c.
Notação 1.4.2 Se as duas desigualdades a < b e b < c são válidas simultaneamente, podemos
escrever abreviadamente a < b < c.
(PO3) Compatibilidade da ordem com a adição: Se a < b então a + c < b + c, qualquer que seja
c ∈ K.
De fato, se a < b então b − a ∈ P. Logo, (b + c) − (a + c) ∈ P, ou seja, a + c < b + c.
(PO4) Compatibilidade da ordem com a multiplicação: Se a < b e c > 0 então ac < bc.
Como b − a ∈ P e c ∈ P, então, por (O3), tem-se que (b − a)c = bc − ac ∈ P, ou,
equivalentemente, ac < bc.
- x
. . . −2 −1 0 1 2 3 ...
16
Exercícios 1.4.3 Prove as afirmações
Agora que sabemos que o inverso de um número positivo é um número positivo, podemos
1
tomar todas as desigualdades já estabelecidas e multiplicar cada uma por 2
(que é positivo), não
alterando o resultado, obtendo: · · · − 2 < − 32 < −1 < − 21 < 0 < 1
2
<1 < 32 < · · · . Repetindo o
processo com outros inversos de números já definidos, podemos acrescentar mais e mais valores
racionais na reta numérica.
Os axiomas e propriedades da ordem também permitem resolver inequações:
1. (x − 1)(x − 3) > 0.
x−1
2. < 2.
2−x
1 1
3. + > 0.
x 1−x
Definição 1.4.5 Para cada número x definimos seu módulo ou valor absoluto da seguinte ma-
neira:
x, se x ≥ 0,
|x| =
−x, se x < 0.
17
Vale à pena observar que, representando-se x na reta numérica, |x| pode ser interpretado
como a distância de x até a origem e, analogamente, fixado um número a, |x − a| representa a
distância de x até a.
Demonstração. Há várias demonstrações em diversos livros. Escolhi esta, que é um pouco longa,
porém elementar.
Vamos considerar 4 casos:
- Se a + b ≥ 0, então |a + b| = a + b ≤ a − b, já que b ≤ 0 e −b ≥ 0.
Portanto, se a ≥ 0 e b ≤ 0, vale |a + b| ≤ |a| + |b|. (Se b < 0, então |a + b| < |a| + |b|.)
4. Se a ≤ 0 e b ≥ 0. (Exercício.)
√
Definição 1.4.7 Se x ≥ 0, x é o único número positivo cujo quadrado é x.
√ √ √ √ √
Por exemplo, 4 = 2; 49 = 7; 2 = ... 2 (Sabemos que 2 é irracional. Erra quem
√ √
escreve 2 = 1, 41, pois 1,41 é uma aproximação de 2. O valor exato só pode ser indicado
usando-se o símbolo da raiz.)
√
Vamos observar: se x = −3 então x2 = 9 e x2 = 3 = | − 3|. Será que é sempre assim?
18
√
Proposição 1.4.8 Para todo número a, vale que |a| = a2 .
Demonstração. Exercício.
Exercícios 1.4.9 1. Expresse cada sentença abaixo sem o símbolo de valor absoluto:
(c) |a + b| − |b| (Não se assuste se a resposta não couber em uma linha. Mesmo assim,
ela pode ser organizada e objetiva.)
3. Prove que |x| − |y| ≤ |x − y|. (A demonstração pode ser bem curta, se você escolher um
caminho conveniente.)
6. Prove que se |x − x0 | < 2
e |y − y0 | < 2 , então |(x + y) − (x0 + y0 )| < .
Notação 1.4.10 O mínimo entre dois números a e b é denotado por min{a, b}.
A sentença “x < min{a, b}” significa que x < a e x < b (simultaneamente). Nos exercícios
abaixo em que o mínimo aparece, você irá precisar de uma desigualdade em algum ponto de sua
argumentação e a outra desigualdade em outro ponto.
19
3. Troque os pontos de interrogação por expressões que envolvem , x0 e y0 , de modo que a
conclusão seja verdadeira:
x x
0
“se y0 6= 0, |y − y0 | <? e |x − x0 | <?, então então y 6= 0 e − < .”
y y0
Observe que este exercício é consequência dos dois anteriores.
(1a) x − x2 , se x ≥ 0; −x − x2 , se x ≤ 0.
(1c) a, se b ≥ 0 e a ≥ −b; −a, se b ≤ 0 e a ≤ −b;
−a, se b ≤ 0 e a ≤ −b; a + 2b, se b ≤ 0 e a > −b.
(2a) x = 1 ou x = 3; (2b) 1 < x < 3.
(2c) x < 1 ou x > 3 (É impossível escrever a resposta em uma sentença!)
(2d) Não existe x. (O argumento geométrico é mais simples neste caso.)
(2e) Qualquer x diferente de 1 e de −1.
20
1.5 Conjuntos Limitados
Exemplos 1.5.2 1. No corpo ordenado Q, o conjunto A = {11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37},
formado pelos números primos entre 10 e 40 é limitado e os números 10 e 40 são respecti-
vamente um minorante e um majorante de A.
Observe que os números 5, 10, 100, etc, também são majorantes de A, assim como
−1, −π, −5 são minorantes de A.
21
Sabemos intuitivamente apenas que B não é limitado superiormente, já que, qualquer que
seja o número M > 0 que se tome, por maior que seja, existirá um elemento de B maior
do que M . Em breve veremos como provar essa afirmação.
n
3. Considere o conjunto C = {− n+1 : n ∈ N} = {− 21 , − 23 , − 43 , . . .} ⊂ Q. Como n
n+1
> 0, ∀n,
n
temos que − n+1 < 0, ∀n ∈ N. Logo, C é limitado superiormente e 0 é um majorante de C.
n n
Por outro lado, como n < n + 1, ∀n ∈ N, temos n+1
< 1, ∀n ∈ N. Logo, − n+1 > −1, ∀n ∈
N, o que nos permite concluir que C é limitado inferiormente e −1 é um minorante de C.
Em muitas situações pode ser útil conhecer o menor dos majorantes ou o maior dos
minorantes de um conjunto. Esses números recebem nomes especiais.
(c) i ≤ a, ∀a ∈ A e
Para provarmos que s = 4 satisfaz (b), vamos mostrar, equivalentemente que s = 4 satisfaz:
22
(b’) se x < s então x não é majorante de A, isto é, existe a ∈ A tal que x < a.
Seja x ∈ Q tal que 0 < x < 4. Vamos mostrar que x não é majorante de A. De fato,
x+4
tome m a média aritmética entre x e 4, m = 2
. Então m ∈ Q e m < 4 (de fato,
x+4
x<4⇒x+4<8⇒ 2
< 4). Portanto, m ∈ A. Logo, x não é majorante de A, já que
x < m. (Confira esta última igualdade!)
Vamos provar que sup B = 1. Para isso, basta tomar b < 1, b ∈ Q e provar provar que
n0 n0
existe um natural n0 tal que n0 +1
> b. Como n0 +1
∈ B, poderemos então concluir que b
não é majorante de B, o que nos permite concluir que 1 é o supremo de B.
n0 b
Rascunho. (b < n0 +1
⇔ bn0 + b < n0 ⇔ b < n0 (1 − b) ⇔ n0 > 1−b
.)
b
n0 > (1.1)
1−b
n0
Então, b < n0 +1
∈ B, o que mostra que b não é majorante de B.
Observação. A rigor, é necessário provar que tal n0 existe. Adiante, em 1.7.1, iremos
demonstrar que o conjunto N não é limitado2 .
23
2. Se A = { 12 , 14 , 16 , 18 , 10
1
} ⊂ Q então min A = 1
10
e max A = 12 .
4. Se A = {x ∈ Q : 1 ≤ x < 5} então min A = 1 e não existe max A. (Por quê?) Note que A
tem supremo e sup A = 5.
Exercícios 1.5.7 Determine, se existirem, o máximo, mínimo, supremo e ínfimo de cada con-
junto dado.
1. A = {x ∈ Q : −2 < x ≤ 7}
2. B = {x ∈ Q : x2 + 5x + 6 ≤ 0}
3. C = {x ∈ Q : x2 + 5x + 6 < 0}
n
4. D = { 1+n : n ∈ N}
1
5. E = { 1+x 2 : x ∈ Q}
24
1.6 O Conjunto dos Números Reais
Provamos anteriormente (veja 1.2.2) que “não existe x racional tal que x2 = 2”. É
√
importante compreender que essa afirmação é diferente de “ 2 é irracional”, já que esta última
√
pressupõe a existência de um número, denotado por 2, cujo quadrado é 2. Nós não provamos
que esse número existe!
Nosso próximo objetivo será descobrir:
Seja p ∈ D qualquer. Como provamos que não existe racional cujo quadrado é igual a 2,
sabemos que p2 > 2.
p2 − 2
Defina q = p − ∈ Q. Sendo p2 − 2 > 0, temos que q < p. Também temos:
p+2
p2 − 2 p2 + 2p − (p2 − 2) p+1
q =p− = =2 > 0.
p+2 p+2 p+2
25
Axioma do Supremo. Todo subconjunto de K não vazio e limitado superiormente
admite um supremo em K.
O exemplo 1.6.1 acima nos mostrou que o conjunto Q não satisfaz o axioma do supremo.
Veremos que é o axioma do supremo que distingue os conjuntos R e Q, já que R satisfaz esse
axioma.
O teorema a seguir será apenas enunciado. Há duas demonstrações, ambas bastante
longas e trabalhosas, para este teorema. Cada uma das demonstrações consistem em construir,
a partir de Q, um conjunto maior, R, que tem todas as propriedades desejadas. O conjunto
construído contém Q, não apenas como subconjunto, mas como subcorpo, isto é, as operações
de adição e multiplicação definidas em R, quando aplicadas a elementos de Q, coincidem com
as operações usuais de Q. É possível provar também que o conjunto dos racionais positivos são
elementos positivos de R.
Teorema 1.6.2 Existe um corpo ordenado que tem a propriedade do supremo. Além disso,
esse corpo contém Q como subcorpo.
No final do curso iremos ver uma das construções do conjunto dos números reais, suas
operações e a estrutura de ordem e provaremos que ele satisfaz todos os axiomas de corpo
ordenado, além do axioma do supremo. É também possível demonstrar que R é o único corpo
ordenado que satisfaz a propriedade do supremo, a menos de isomorfismo.
Intuitivamente, o axioma do supremo é o que garante que R pode ser identificado com
os pontos da reta orientada, sem deixar buraquinhos. Por esse motivo, é possível caracterizar o
conjunto dos números reais como sendo o único “corpo ordenado completo”.
Os elementos de R são chamados números reais. Também dizemos que um número real
é irracional se não for racional, isto é, se for um elemento do conjunto R − Q.
Exercícios 1.6.3 1. Decida de cada afirmação dada é verdadeira ou falsa. Se for verdadeira,
prove. Se for falsa, mostre um contra-exemplo.
26
(d) O produto de dois números irracionais é irracional.
9. Suponha que a ≤ b para todo a ∈ A e todo b ∈ B. Prove que sup A ≤ inf B. Prove ainda
que sup A = inf B se, e somente se, qualquer que seja > 0, existem a ∈ A e b ∈ B tais
que b − a < .
10. Seja A um subconjunto não vazio e limitado superiormente de R. Prove que b = sup A se
e somente se b é majorante de A e para todo > 0 existe a ∈ A tal que b − < a ≤ b.
27
1.7 Algumas Consequências da Propriedade do Supremo
Foi mencionado anteriormente, sem demonstração, que N não é limitado. Vamos provar
tal afirmação.
O teorema 1.7.1 é equivalente ao teorema a seguir, que é chamado por muitos autores de
propriedade arquimediana.
Teorema 1.7.2 Se x e y são dois números reais e x > 0, então existe pelo menos um número
natural n tal que nx > y.
Demonstração. Exercício.
1
Corolário 1.7.3 Para cada x > 0 existe um natural n tal que < x.
n
1
Demonstração. Suponha, por absurdo, que tal n não exista. Isso significa que ≥ x, qualquer
n
1 1
que seja n ∈ N. Portanto, n ≤ , ∀n ∈ N. Mas isso significa que é um majorante de N, o que
x x
contradiz o teorema 1.7.1.
A seguir, daremos uma demonstração rigorosa para o importante e intuitivo fato que
entre dois reais quaisquer sempre existe um racional.
28
Demonstração. Como b − a > 0, a propriedade arquimediana garante que existe um natural
n tal que n(b − a) > 1. Além disso, usando novamente a propriedade arquimediana, existem
naturais s e t tais que s > na e t > −na. Portanto, −t < na < s. Logo, existe pelo menos um
inteiro m entre −t e s, tal que m − 1 ≤ na < m. Temos:
na < m ≤ 1 + na < nb
m m
Como n > 0, tem-se a < < b, o que prova a proposição, sendo r = .
n n
Definição 1.7.5 Um conjunto A é denso em R se entre dois números reais distintos existe um
elemento de A.
Uma vez estabelecida essa definição, a proposição 1.7.4 poderia ter sido enunciada da
seguinte maneira: Q é denso em R.
Teorema 1.7.6 Para todo número real a > 0 e todo natural n existe um único real b tal que
bn = a.
3. Conclua que existe (em R) o supremo de A, que será chamado de b. Verifique que b > 0.
O próximo passo é provar que bn = a, ou seja, que b é a raiz procurada. Para isso, nos
próximos itens usaremos o resultado a seguir, cuja demonstração fica a seu cargo:
29
4. Suponha que bn < a. Mostre que existe 0 < h < 1 tal que (b + h)n < a e b + h ∈ A.
Conclua que isso não pode ocorrer.
5. Suponha que bn > a. Mostre que existe 0 < r < b tal que se x satisfaz (b − r) < x < b,
então xn > a. Conclua que isso não pode ocorrer.
30
41387
Exercício 1.7.8 Depois de quantas casas decimais começa a parte periódica do número ?
99000
31
Com essa definição, um número real é um objeto bem concreto.
Esboçaremos, em forma de exercício, uma maneira de obter a estrutura de corpo ordenado:
(a) Dê exemplo de um par de números irracionais α < β que diferem apenas na terceira
casa decimal.
(b) Mostre que o conjunto de números assim definidos e com essa relação de ordem
satisfaz a propriedade do supremo.
Assim, podemos definir a soma e o produto de dois reais da seguinte maneira: Para
α = a, c1 c2 c3 . . . e β = b, d1 d2 d3 . . ., defina
α + β = sup{(αk + βk )0 : k ∈ N} e α · β = sup{(αk · βk )0 : k ∈ N}
Para um aluno do ensino médio, o que podemos dizer é que a soma e o produto de
dois números reais podem ser obtidos por meio de aproximações com quantas casas decimais
desejarmos. Veja, por exemplo, uma aproximação por falta, com 5 casas decimais, da soma:
31
99
+ π ≈ 0, 31313 + 3, 14159 = 3, 45472. O valor correto é maior, já que é uma aproximação por
falta, e o erro cometido é menor do que 10−5 .
Também é importante ensinar para os alunos que, quando fazemos contas, mesmo com
uma calculadora, usamos sempre números racionais para aproximar os irracionais. As calcula-
doras usam muitas casas decimais, mas sempre há um erro de aproximação! Quando queremos
32
uma resposta exata, sem aproximações, deixamos indicado, como por exemplo, nas fórmulas
ensinadas: a área do círculo de raio r é A = πr2 ; o volume da esfera de raio r é V = 43 πr3 ;
√
3
sen π3 = 2
; etc.
1.8 Intervalos
Alguns subconjuntos de números reais desempenham um papel bastante importante na
compreensão de certas ideias da análise. Dentre eles destacam-se os intervalos.
Se a e b são números reais tais que a < b, definimos:
o intervalo fechado [a, b]: [a, b] = {x ∈ R : a ≤ x ≤ b};
o intervalo aberto ]a, b[ = {x ∈ R : a < x < b};
e os intervalos ]a, b] = {x ∈ R : a < x ≤ b} e [a, b[ = {x ∈ R : a ≤ x < b}.
O comprimento de qualquer um desses invervalos é, por definição, a diferença b − a.
O primeiro resultado relacionados a intervalos é conhecido como Propriedade dos Inter-
valos Encaixantes.
Teorema 1.8.1 Sejam [a1 , b1 ], [a2 , b2 ], [a3 , b3 ],. . . , [an , bn ], . . . intervalos tais que
Demonstração. Considere o conjunto A = {a1 , a2 , a3 , . . .} dos números reais que são as extre-
midades direitas de cada intervalo. Como os invervalos estão encaixados, temos
a1 ≤ a2 ≤ a3 ≤ . . . ≤ bn , ∀n
33
Como α é um majorante de A, temos an ≤ α, para todo n. Por outro lado, como an < bn ,
para todo n, podemos concluir que α ≤ bn , ∀n. (Prove!) Logo, para cada n, vale an ≤ α ≤ bn ,
T
o que mostra que α ∈ [an , bn ].
Além disso, no caso em que lim (bn − an ) = 0, podemos ver facilmente que α será o único
n→∞
T
número real pertencente à intersecção. De fato, se β ∈ [an , bn ], teremos |β − α| ≤ (bn − an ), ∀n.
Fazendo n crescer indefinidamente, concluímos que β = α.
Observação 1.8.2 Sem a condição lim (bn − an ) = 0, tomando-se γ = inf{b1 , b2 , b3 , . . .}, vemos
n→∞
que a intersecção de todos os intervalos será o intervalo [α, γ].
Veja que para provarmos que o conjunto dos números reais satisfaz a propriedade dos
intervalos encaixantes, precisamos usar o fato que R tem a propriedade do supremo. Ocorre
que as duas propriedades são equivalentes. Ou seja, sabendo que uma delas é satisfeita, pode-se
demonstrar a outra.
Exercício 1.8.4 Admitindo que um corpo ordenado K satisfaz a propriedade dos intervalos
encaixantes, prove que K satisfaz o axioma do supremo.
34
1.9 Conjuntos Infinitos
Há uma certa confusão sobre quantidades infinitas. Não é raro encontrarmos exem-
plos equivocados de conjuntos infinitos, como “a quantidade de grãos de areia na praia” ou a
“quantidade de estrelas no céu”. Acontece que essas quantidades, embora muito grandes, são
finitas!
Um exemplo de conjunto infinito é o conjunto dos números naturais: mesmo tomando-se
um número natural n muito grande, sempre existe outro maior, por exemplo, seu sucessor n + 1,
ou também o dobro de n, 2n, ou ainda seu triplo 3n.
No final do século XIX apareceu a necessidade de compreender melhor os conjuntos in-
finitos, motivada pelo estudo de funções integráveis. Sabemos que se uma função limitada tem
uma quantidade finita de descontinuidades, ela é integrável. E se a quantidade de descontinui-
dades for infinita? Em alguns casos, a função ainda é integrável, em outros, não! A questão da
integrabilidade será estudada por nós mais adiante, mas foi mencionada neste momento para
sabermos a motivação que levou os matemáticos a estudar conjuntos infinitos.
35
Alguém poderia argumentar sobre a possibilidade de haver pessoas em pé. Nesse caso,
não está estabelecida uma correspondência que a cada elemento do domínio associa um no
contra-domínio. Consequentemente, a função não estaria bem definida.
O que é feito no estudo de conjuntos infinitos é basicamente encontrar uma função bijetora
para comparar o conjunto alvo de nosso estudo com outro já conhecido.
É necessário esclarecer que a terminologia usada neste tópico pode diferir levemente de
um livro para outro. Neste texto adotaremos as mesmas definições encontradas no livro do
Rudin [6].
Definição 1.9.1 Se existir uma função bijetora entre dois conjuntos A e B, dizemos que os
conjuntos têm a mesma cardinalidade e escrevemos A ∼ B.
Por esse motivo, se dois conjuntos têm a mesma cardinalidade, dizemos que eles são
equivalentes (segundo Cantor ).
Exercício 1.9.2 Verifique que, de fato, a relação “A tem a mesma cardinalidade que B” é uma
relação de equivalência.
(a) Um conjunto A é finito se existir uma função bijetora de Fn em A, para algum n. Dizemos,
nesse caso, que A tem n elementos. Consideramos o vazio um conjunto finito.
(c) A é enumerável se A ∼ N.
36
(e) A é no máximo enumerável se A for finito ou enumerável.
Exemplos 1.9.4 (a) O exemplo mais simples de conjunto enumerável – e o que serve de modelo
para essa ideia – é o conjunto N dos números naturais.
(b) O conjunto P = {2, 4, 6, . . .} dos números pares também é enumerável. Neste caso, é fácil
ver que a função f : N → P dada por f (n) = 2n é bijetora.
(c) O conjunto Z dos números inteiros é enumerável. De fato, podemos pensar na função que
leva N em Z associando os números naturais aos inteiros na seguinte ordem:
As notações (an ), ou (an )n∈N são usadas para indicar a sequência cujos termos são
a1 , a2 , a3 , . . ..
Note que uma sequência é uma lista seus termos em uma certa ordem: o elemento indicado
por a1 é o primeiro, o elemento a2 é o segundo, e assim por diante.
Os termos a1 , a2 , a3 , . . . não precisam ser dois a dois distintos. Por exemplo, a sequência
(1, 2, 4, 8, 16, . . . , 2n , . . .) formada pelas potências de 2 tem todos os seus termos distintos entre
si. Já a sequência (1, 2, 1, 2, . . .) dada por f (n) = 1, se n é ímpar e f (n) = 2, se n é par, é uma
sequência cujos termos se repetem no conjunto {1, 2}.
Como um conjunto enumerável é a imagem de uma função bijetora definida em N, po-
demos compreender um conjunto enumerável como a imagem de uma sequência formada por
termos distintos dois a dois, ou ainda, que os elementos de um conjunto enumerável podem ser
organizados em uma sequência.
37
Cabe agora uma observação muito importante. Quando lidamos com conjuntos finitos,
se um conjunto A é um subconjunto próprio de B, isto é, se A está contido em um conjunto B
e é diferente de B, então B tem uma quantidade de elementos menor do que A. Entretanto, os
exemplos acima mostram que com conjuntos infinitos pode acontecer A ⊂ B, A 6= B e A ∼ B:
o exemplo 1.9.4(b) mostrou que P ⊂ N e P ∼ N; o exemplo 1.9.4(c) mostrou que N ⊂ Z e
N ∼ Z.
Como esse fato caracteriza os conjuntos infinitos, alguns autores adotam a seguinte defi-
nição: um conjunto C é infinito se for equivalente a algum de seus subconjuntos próprios.
É claro que esses termos são distintos dois a dois. Assim obtemos uma função bijetora f : N → B
dada por f (k) = ank . Logo, B é enumerável.
A ideia que esse teorema nos apresenta é que os conjuntos enumeráveis são conjuntos do
“menor tipo de infinito”, já que nenhum conjunto não enumerável pode ser subconjunto de um
enumerável.
38
Definição 1.9.7 Sejam E1 , E2 , E3 , . . . conjuntos.
∞
[
A reunião de todos esses conjuntos, denotada por En , é o conjunto U formado pelos
n=1
elementos x tais que: x ∈ Ej , para um ou mais índices n.
∞
\
A intersecção desses conjuntos, denotada por En , é o conjunto P tal que
n=1
x ∈ P ⇐⇒ x ∈ Ej , para todo n.
Exemplos 1.9.8 1. Para cada n ∈ N, tome En = {1, 2, . . . , n}. Observe que cada En é um
conjunto finito: E1 = {1}, E2 = {1, 2}, E3 = {1, 2, 3} etc.
∞
[ ∞
\
Temos: En = N; En = {1}.
n=1 n=1
∞
[ ∞
\
2. Para cada n ∈ N, defina En = {n}. Temos: En = N; En = φ.
n=1 n=1
em que a primeira linha é formada por todos os elementos do conjunto E1 , a segunda linha,
pelos elementos de E2 , e assim por diante.
Os elementos da matriz são os elementos do conjunto U . Para mostrar que U é um
conjunto enumerável, teríamos que escrever os elementos de U em uma lista sem repetições.
Como não sabemos quais termos se repetem na matriz, é possível escrever tal lista! Para
39
contornar essa dificuldade, vamos colocar os elementos da matriz em uma sequência (que pode
ter repetições),
s : e11 , e21 , e12 , e31 , e22 , e13 , e41 , e32 , e23 , e14 , . . .
Observe que a sequência s tem uma regra de formação: primeiramente começamos com o termo
e11 , depois os termos cuja soma dos índices é 3, a saber, e21 e e12 , depois termos cuja soma dos
índices é 4: e31 , e22 e e13 e assim por diante.
Como conseguimos escrever todos os elementos da matriz em forma de uma sequência,
existe uma função de N no conjunto U , que associa os números 1, 2, 3, . . . , respectivamente
a e11 , e21 , e12 , e31 , e22 , e13 , e41 , e32 , e23 , e14 , . . . Como a primeira linha da matriz já é um conjunto
enumerável, logo infinito, os termos da sequência s formam um conjunto enumerável.
Assim, U é um subconjunto infinito do conjunto enumerável formado pelos termos da
sequência s. Pelo teorema 1.9.6, U é enumerável.
n
[
Corolário 1.9.11 Se E1 , E2 , . . . , En são conjuntos finitos ou enumeráveis, então R = Ek é
k=1
no máximo enumerável.
Demonstração. De fato, se cada Ek for finito, então R será um conjunto finito. (Por que? )
Se algum Ek for enumerável, como Ek ⊂ R, a reunião R será um conjunto infinito. Logo,
enumerável.
A × B = {(a, b) : a ∈ A, b ∈ B}
é enumerável.
40
Demonstração. Para cada a ∈ A fixado, considere o conjunto Ba = {(a, b) : b ∈ B}. Esse
conjunto é equivalente a B e, portanto, enumerável.
[
Mas observe que A × B = Ba , ou seja, A × B é uma reunião enumerável de conjuntos
a∈A
enumeráveis. Portanto, pelo teorema 1.9.9, A × B é enumerável.
An = {(a1 , a2 , . . . , an ) : aj ∈ A}
é enumerável.
Dica: use indução.
p
Demonstração. Seja x ∈ Q. Então x = q
: p, q ∈ Z, q 6= 0.
Seja f : Z × Z∗ → Q que, a cada par (p, q) associa o número x = pq .
É claro que f é uma função. Seu domínio é um conjunto enumerável (por que? ) e,
claramente, f é sobrejetora.
Como a imagem de um conjunto enumerável ou é um conjunto finito, ou é um conjunto
enumerável, basta mostrarmos que a imagem de f não é finita. (Note que f não é injetora, já
que, por exemplo, f (1, 2) = f (2, 4) = f (3, 6).)
Mas a imagem de f contém todos os números inteiros, pois, se n ∈ Z então n = f (n, 1).
Portanto, Q é enumerável.
Demonstração. Suponha, por absurdo, que [0, 1] seja enumerável. Como esse conjunto contém
n1 o
o conjunto infinito A = : n ∈ N , vemos que [0, 1] é também infinito.
n
41
Seja {x1 , x2 , x3 , . . .} uma enumeração de [0, 1]. Podemos escrever cada xj na forma de-
cimal infinita e, para evitar repetições vamos escolher as representações decimais que não ter-
minam com infinitos algarismos iguais a 9. Por exemplo, o número 0, 5 será representado como
0, 5000 . . . e não 0, 49999 . . .. Assim,
b1 = 5, se a11 6= 5 e b1 = 6, se a11 = 5;
b2 = 5, se a22 6= 5 e b2 = 6, se a22 = 5
42
Exercícios de revisão
√
1. Prove que 12 é irracional.
4. Prove que se x e y são irracionais tais que x2 − y 2 é racional não nulo, então x + y e x − y
√ √ √ √
são ambos irracionais. Por exemplo, 5 + 3 e 5 − 3. (Encontrado em [1], 2.1).
n n
o
5. Seja A = (−1)
n−1
: n ∈ N, n ≥ 2 . Determine, caso existam, o supremo, o ínfimo, o máximo
e o mínimo de A. Justifique.
9 9 9
6. Observe que o número racional 0,999 pode ser escrito como 10 + 100 + 1000 . De modo geral,
Pn
0, 99 . . . 9} = k=1 109k .
| {z
n
nP o
n 9
Considere o conjunto D = k=1 10k : n ∈ N . Prove que sup(D) = 1. Interprete.
7. Seja (ak )k∈N uma sequência de algarismos (ak ∈ {0, 1, 2, . . . , 9}) e considere os números
a1 a2 an
sn = 10
+ 102
+ ··· + 10n
.
10. Um número real r é dito algébrico se r é raiz de um polinômio com coeficientes inteiros.
1 √ √ 5
(a) Verifique que os números 2, , 2, 267 são algébricos, encontrando funções po-
13
linomiais que têm esses números como raízes.
√ √ √ √
(b) Verifique que 2 + 3 e 2(1 + 5) são algébricos. (Você irá precisar de equações
de grau 4).
43
(c) Prove que o conjunto P (Z), de todos os polinômios com coeficientes inteiros, é enu-
merável.
(d) Seja {p1 , p2 , p3 , . . . , pn , . . .} uma enumeração de P (Z). Seja An o conjuntos das raízes
reais de pn . Conclua que o conjunto A formado por todos os números algébricos, é
enumerável.
(e) Um número real é dito transcendente se não é algébrico. Mostre que o conjunto dos
números transcendentes é não-enumerável.
44
Referências Bibliográficas
[1] Geraldo Ávila. Análise Matemática para Licenciatura. Edgard Blucher Ltda, 3 edition, 2006.
[6] Walter Rudin. Princípios de Análise Matemática. Ed. Ao Livro Técnico S.A., 1971.
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