Ruinas e Olhares Dessacralizadores Na e PDF

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Levantar bem alto um livro!

arquivo, tempo e imagem

Maria Aparecida Barbosa


Meritxell Hernando Marsal
Jair Tadeu da Fonseca
Organização
Levantar bem alto um livro!
arquivo, tempo e imagem
Maria Aparecida Barbosa
Meritxell Hernando Marsal
Jair Tadeu da Fonseca
Organização

Levantar bem alto um livro!


arquivo, tempo e imagem
© 2019 Rafael Zamperetti Copetti Editor Ltda., para a presente edição.

Nesta edição respeitou-se o estabelecido no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado pelo
Brasil em 2009.
Conselho editorial
Álvaro Faleiros |USP|; Andrea Santurbano |UFSC|; Andréia Guerini |UFSC|; Annateresa Fabris |ECA/USP|;
Aurora Bernardini |USP|; Dirce Waltrick do Amarante |UFSC|; Giorgio De Marchis |Università degli Studi
Roma Tre|; Lucia Sá |University of Manchester|; Luciene Lehmkuhl |UFPB|; Mamede Mustafa Jarouche
|USP|; Maria Aparecida Barbosa |UFSC|; Maria Lucia de Barros Camargo |UFSC|; Mariarosaria Fabris
|USP|; Paulo Knauss |UFF|; Pedro Heliodoro Tavares |UFSC|; Rita Marnoto |Universidade de Coimbra|;
Sandra Bagno |Università degli Studi di Padova|; Stefania Pontrandolfo |Università degli Studi di Verona|;
Tania Regina de Luca |UNESP/Assis|
Editor Rafael Zamperetti Copetti
Assistente editorial Fabiana V. Assini
Projeto gráfico, capa e diagramação Paulo Roberto da Silva
Revisão Francisco Degani | Thaís Aparecida Domenes Tolentino
A imagem da capa, de Leila Danziger, integrou a exposição: BILDUNG, 2014 “Há escolas que são gaiolas e
há escolas que são asas”. Curadores: Paulo Herkenhoff & Janaína Melo. Museu de Arte do Rio [MAR], Rio
de Janeiro.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Laura Emilia da Silva Siqueira CRB 8-8127)

Levantar bem alto um livro! Arquivo, tempo e imagem / Maria Aparecida Barbosa, Me-
ritxell Hernando Marsal, Jair Tadeu da Fonseca (organizadores). 1. ed. São Paulo
– Florianópolis : Rafael Copetti Editor, 2019. (Vários autores)
223 p. ; foto ; 16 x 24 cm
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-67569-49-9
1. Sociologia e literatura. 2. História e Literatura. I. Barbosa, Maria Apare-
cida. II. Marsal, Meritxell Hernando. III. Fonseca, Jair Tadeu da.
CDU: 316+82 CDD 869.945

Índices para catálogo sistemático:


1. Sociologia e Literatura
2. História e Literatura
869.945

2019 | 1a Edição Brasileira


Proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio salvo mediante expressa autorização
por escrito da editora.
Todos os direitos desta edição reservados para todos os países à Rafael Zamperetti Copetti Editor Ltda.
Caixa Postal 31202
Consolação | São Paulo | SP | Brasil | CEP 01309-970
Tel. 11 | 9.9930.5058
[email protected] | rafaelcopettieditor.com.br
Foi feito depósito legal.
Impresso no Brasil | Printed in Brazil
A Literatura é o mais fundamental dos direitos humanos,
um arquivo de todos os esforços da humanidade em se humanizar.
Todos os ensaios literários deste livro, do silêncio de
Bartleby, passando por falimentos e mimetismos, dissidências,
exílios e gestos, reúnem a arché da palavra a sua atualidade. Por
uma secreta alquimia, as personagens são ficcionais mas seus
conflitos e situações reais. Não por acaso, retornam aqui, as obras
fundacionais da escrita, pois quem, senão Homero, restituiu-nos
uma cidade e um mundo de que até mesmo as ruínas haviam
desaparecido? A literatura é o poder de ressuscitar os mortos.
Assim, se a compreensão do valor da literatura desaparece
das Instituições que deveriam protegê-la e perpetuá-la, eis o
que atesta o esgotamento da própria idéia de cultura. Como
escreveu Adorno, literatura exige amor. Crise da cultura é crise
na capacidade de amar.
Esta obra nos devolve a companhia dos grandes autores,
reavendo a dimensão ética da leitura e da literatura. Nela, a
literatura é uma iniciação à arte de viver, um talismã contra a
desventura do presente.
Olgária Chain Féres Matos
Sumário

Apresentação | A linha de pesquisa Arquivo Tempo Imagem


e o livro.....................................................................11
Maria Aparecida Barbosa e Ana Luiza Andrade

Bartleblysmos: silêncios, não-escritos e literaturas póstumas,


de Walser a Manganelli.....................................................................21
Andrea Santurbano

Ruínas e olhares dessacralizadores na escrita de Antonio


Delfini................................................................................................ 35
Patricia Peterle

No princípio era a ordem...................................................................53


Erdmut Wizisla

Mimetismo — por uma crítica agenciadora.......................................57


Maria Aparecida Barbosa

O visível-invisível de Giorgio Bassani...............................................67


Aurora Conde Muñoz

A sombra do mentiroso. Donald Trump entende mal The verdict


of the people, de George Caleb Bingham..........................................97
Uwe Fleckner

Escola de Viena. História da Arte com consequências:


Hans Sedlmayr................................................................................107
Maria Männig

Dissidências estéticas andinas para não andar pela vida.


“Sem khepi para a viagem, sem mãe para amar, sem kuka
para o canto”...................................................................................125
Elizabeth Monasterios Pérez
Quando os mortos podem falar: a política discursiva de
Gamaliel Churata.............................................................................141
Meritxell Hernando Marsal

Santiago de dois peregrinos: Federico García Lorca e


Sara Gómez em busca do oriente cubano.......................................155
Lourdes Martínez-Echazábal

A “documentarurgia” agit-pop de Santiago Alvarez........................183


Jair Tadeu da Fonseca

O gesto como figura no pensamento..............................................195


Fabian Goppelsröder

Uma série de despertar gestos em João Cabral, Cícero Dias e


Clarice Lispector (Notas sobre Arquivo, Tempo e Imagem)............209
Ana Luiza Andrade e Djulia Justen

Sobre os autores.............................................................................223
Apresentação

A linha de pesquisa
Arquivo, Tempo e Imagem e o livro

Nossa linha de pesquisa — Arquivo, Tempo e Imagem e o livro — é uma linha


muito benjaminiana, ou seja, ela tem como fio condutor o pensamento de Walter
Benjamin, no sentido de priorizar os teóricos da modernidade, a memória, ou
seja, a problemática do arquivo no tempo, e do próprio tempo na modernidade,
e, com isso, as passagens da palavra à imagem. Ou seja, os modos de produção
da modernidade, que desde as relações entre literatura e artes plásticas
foram afetados diretamente com a reprodutibilidade técnica e ao passarem
da manufatura à indústria, implicam nas passagens à cultura de massas, da
literatura às formas fragmentadas, ou à fotografia, da literatura ao cinema ou
às montagens. Ora, essas passagens envolvem as relações entre literatura e
indústria cultural. As formas do livro são colocadas em questão. Há bibliotecas
virtuais e bibliotecas reais, há livros best-seller e livros como objetos de arte.
Evidentemente, há tanto questões de valor quanto estéticas relacionadas aqui
e pensando nas estéticas nós estamos falando do aparato estético dos sentidos
humanos, o olhar, o paladar, o tato, a audição, o olfato que são profundamente
afetados com as mudanças de modos de produção. E o quanto este aparato
mudou através das transformações sofridas pelos modos de produção. Isto,
evidentemente, também implica nos estudos culturais. Essa linha de pesquisa,
portanto, caracteriza-se pelas transformações, pelas modificações, pelos
desdobramentos, pela transitoriedade, em suas relações com a literatura. Essas
mudanças também levam em conta a as novas velocidades, a maquinização do
ser humano moderno... E por isso, também levam em conta os gestos residuais
que remontam aos modos de produção mais arcaicos.

O Livro
E aqui, a propósito dos gestos, vale citar o de Lúcio Cardoso em seu
protesto ao erguer um livro contra o céu, ao chamar a atenção aos poetas e a
um Brasil doente:
Todos os poetas são filhos das tempestades. (Cardoso, 2012, p. 255-256)
Quem quiser constatar o Brasil que apodrece aos poucos, basta viajar
e assistir chegar do sertão mineiro, por exemplo, um daqueles sinistros
vagões de vidraças descidas, com um rebanho pálido, amontoados uns
sobre os outros, e protegidos por um cartaz exterior que diz “Moléstias
contagiosas”. [...] É tempo de nos transformarmos em abismo, antes
de temê-lo tanto. À beira estamos, desde que nascemos, e agora é
preciso que afirmemos, ainda que seja pela morte, pela violência ou
pelo sacrifício, que conquistemos a nossa possibilidade de existir.
Teremos que encontrar a nossa própria forma de governo. Teremos
de encontrar uma solução pessoal através do mais extenso e profundo
dos choques. Não há valores a salvar, porque ainda temos que criar os
nossos verdadeiros valores. Sim, agora sei o que responder: é por isso
que me bato, pelo advento dessa consciência reivindicadora, pelo Brasil
realmente na posse dos seus males e de seu destino. Sei também que
esta tragédia nos erguerá, porque o nada não engendra o nada, mas a
proximidade da destruição cria a necessidade da defesa. Sejamos sim,
um vasto vagão de moléstias contagiosas, um veículo imenso que exala
os vapores mortais da revolta e da violência — mas em movimento.
(Rancière, 2009, p. 18)

Lúcio Cardoso escreve o texto acima durante a era Vargas. É uma


convocação ao ato, ao levante, à liberação do ódio perante a podridão que
toma conta do país. Mais recentemente, percebe-se que fatos tais quais voltam
à tona, e semelhantes “moléstias contagiosas” incitam nosso ódio, sobrepujam
a nossa paciência, destemperam nossa inércia. Assim escreve Cardoso na
superfície de seu diário sobre a reação a uma situação calamitosa no Brasil.
Superfície que é pele, que é partilha do sensível (Rancière, 2009, p. 18).
Didi-Huberman em seu livro Cascas relata a sua excursão ao campo de
concentração de Auschwitz-Birkenau, e ao referir-se a “coisas de superfície”
para “inscrever os farrapos de nossas memórias”, registra melancolia e revolta
e, inclusive, o meio de arquivá-los:

Coisas que caem de nosso pensamento e que denominamos livros.


Coisas que caem de nossos dilaceramentos, cascas de imagens e textos
montados, fraseados em conjunto. (Didi-Huberman, 2017, p. 73)

Em sua busca na memória, como um arqueólogo, literalmente


caminha no livro com o desejo de revolver a terra (Benjamin, 1995,
p. 239), para escutá-la, e olha intensamente para ela pois, segundo ele:

12
Birkenau continua um sítio arqueológico. É pelo menos o que resta
para ver, ali onde quase tudo foi destruído: por exemplo, chão fissurado,
ferido, varado, rachado. Escoriado, dilacerado, aberto. Desagregado,
estilhaçado pela história, um chão que berra. (Benjamin, 1995, p. 239)

Esta terra ferida em que pisava vai coincidir com o lugar das árvores
de bétulas, a matéria prima do papel ou a página do livro que escreve: em
todo o caso, lugar impregnado da memória do genocídio nazista dos judeus,
levando-o a perscrutá-la por algum sinal que pudesse ter ficado do que ali se
passou, com o desejo melancólico de desenterrar os mortos que ali caíram.
Um sítio que conclama nossa indignação, nos enche de inconformismo, e é
parte de nosso passado. Mas o livro é, antes de tudo, feito de cascas de bétulas
(origem da palavra Birkenau) tipo de árvore da região, e que sendo do mesmo
material do papel do livro (celulose) poderia ser considerado, com Gagnebin,
um “pequeno túmulo de palavras” (Gagnebin, 2006, p. 112). Não à toa o seu
nome é, de fato, Cascas(Didi-Huberman, 2017, p. 27). O sentimento odioso
contra o nazismo estende-se, pois, tanto a livros descritos como “pequenos
túmulos” em seus gestos de levante (Didi-Huberman, 2017, p. 73), como o
sentimento que move Lúcio Cardoso, em princípio, ao acenar o seu livro como
uma faca diante de uma Minas inerte (Cardoso, 2012, p. 729-730).
Num gesto de protesto e advertência, queremos nos posicionar através
deste livro, em nosso gesto de erguê-lo hoje, qual o de Lúcio Cardoso, contra
uma política que tem buscado sufocar todo o setor educacional no Brasil.
Estamos convencidos de que um livro pode servir de símbolo da urgência e
da premência do despertar, feito o gesto solidário e inconforme que o escritor
Lúcio Cardoso certa vez empreendeu: o gesto de erguer o livro como uma
espada desembainhada apontando com toda a clareza à prioridade da educação.

Levantar bem alto um livro!

Publicamos este livro sobre os projetos de pesquisa que desen-


volvemos em literatura, estética, teoria literária e teoria da arte. E contamos
com a participação de parceiros sediados em outras instituições acadêmicas
nacionais e internacionais, num diálogo que transcende muros e fronteiras!
E este livro é um protótipo; haverá outros, para os quais você, professor-
pesquisador, está convidado a se manifestar!
Partimos do topos sócio-político que nos confronta atualmente
para reelaborar com esta iniciativa modos que nos permitam continuar no
desempenho da tarefa educacional. Assim, não obstante a opressão, gritamos

13
em negrito e itálico o objetivo de levantar bem alto em síntese verbal: que somos,
acreditamos, trabalhamos, constituímos, legamos. É um gesto de protesto e
advertência da universidade brasileira, cujo labor diário de comprometimento
com a ciência no pensamento acerca da condição existencial, entretece ciência
e poesia.

Quando poderíamos imaginar que retrocederíamos a tal


ponto?
A tentativa do Presidente Bolsonaro de festejar o golpe militar de
1964 como revolução e de abordá-lo como tal, configura uma das inúmeras
iniciativas do novo governo de questionar as conquistas sociais e políticas
das últimas décadas, ou rigorosamente de aboli-las. A tentativa de mudar a
história, de tentar esquecer um período que duramente nos ensinou a valorizar
a democracia, como o da ditadura, coloca em risco nossas conquistas. O estado
constitucional democrático do Brasil está em perigo, bem como o respeito aos
direitos humanos. Nosso livro se contrapõe a esse gesto.
Os direitos humanos estendem-se ao acesso ao capital estético, à
educação e à cultura. Com Rancière nós queremos compreender a escrita
não primeiramente como aquisição de uma competência, mas sim como ato
político e gesto de uma “constituição estética da comunidade”. Enfatizamos
uma vez mais o postulado ético da prioridade da educação, e sempre com
vistas à acepção formulada de uma “partilha do sensível” na comunidade.
As palavras-chaves que dinamizam nossas discussões correspondem
ao cerne de concentração da linha de pesquisa “arquivo, tempo e imagem” do
Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa
Catarina, espaço de interação entre pesquisadores em diversos níveis, que por
meio de atividades diversas e de pesquisas em suas especificidades, exercem
aqui a plena liberdade da reflexão e expressão do pensamento democrático que
condiz à produção universitária em seu pleno direito de opinar.
Esta edição se abre com o capítulo “Bartlebysmos”, de Andrea
Santurbano, que configura uma teia de textos literários aparentemente
insubordinados aos ditames da palavra significante ou mimética; essa
literatura, ao que tudo indica, suspende um compromisso de operância
comunicadora e se desvia dos sentidos unificadores na medida em que
nega a si mesma e se confina à condição de uma operação, sim, não de um
niilismo, que busca, todavia, acionar usos diferentes da linguagem. E é com
e n-essa linguagem que considera nosso estar no mundo, mas que se permite
deslocamentos e expansões em movimentos do pensamento numa abertura

14
a tantos sentidos quanto permita o mundo, que Patrícia Peterle, ao tratar na
sequência do livro da escrita de Delfini, cunha uma postulação de espaço
para a poesia no desconforto ante revezes limitadores.
Talvez seja mister voltarmos um olhar inquisidor ao critério que
dispõe o arquivo, o acervo da(s) história(s), e indagar das mistificações e das
fantasmagorias imbuídas de um poder que não lhes cabe. O pesquisador dos
trabalhos de Brecht e Benjamin, Wizisla, vem questionar os critérios rígidos
do arquivista e defender a criatividade na ordenação dos objetos estéticos.
Pensando as tessituras da linguagem prefiguradora do pensamento
mítico e poético, a pesquisa de Maria Aparecida quer compreender a crítica
interagente, em que o corpo se funde aos objetos do entorno de diversos
modos, mesmo pelo mimetismo, para a possibilidade de transformar
o mundo. Lendo a literatura de Bassani, Barthes e Sebald, Aurora Conde
Muñoz investiga a imagem fugaz e salvífica da memória, aquela que teria
a capacidade de recuperar uma pós-memória. Como a linguagem e o olhar
apreendem dessa imagem poderosa, as virtualidades e dinâmicas silenciadas,
que poderiam proporcionar sentido à identidade individual, conferir
reconhecimento ao Eu?
E as imagens coletivas que a história registra? Basta um olhar mais
cauteloso, uma leitura mais atentiva para trazer à tona as ideologias incrustadas
nessas imagens, nessas personalidades que se arraigaram plenas de poder e
sedução.
A um fiasco na celebração de posse do Presidente Donald Trump aponta
Uwe Fleckner, chamando a atenção na pintura escolhida a compor o pano de
fundo do espetáculo da nação estadunidense a uma série de particularidades
que põem a nu sentimentos hostis e qualidades desvirtuosas da nação
americana. Numa outra colaboração a este livro manifesto, de Maria Männig,
a política igualmente irrompe reveladora, quando formuladas questões sobre
o percurso de um bastião da historiografia da arte, que irradiou com muita
influência num espectro de gerações. Hans Sedlmayr se manteve incólume nos
treze anos da ditadura nacional-socialista, nos anos 1950 conquistou uma aura
de referência com suas polêmicas publicações que cerceiam até os dias atuais a
abertura a dissidências modernistas.
No capítulo seguinte, Elizabeth Monasterios Pérez expõe a inerência
do anticolonialismo nas linguagens andinas com seus discursos plurilíngues,
cujas práticas estéticas de insubordinações epistêmicas redundam em rupturas
do conceito hegemônico de cultura universal latino-americana. Seguindo

15
nessa circunscrição latino-americana mas abrindo-se para tempos imemoriais,
Meritxell Hernando Marsal aborda a política discursiva da literatura de
Gamaliel Churata, escritor que recupera vozes de seres vivos, mortos, míticos,
provindos das montanhas andinas e do Lago Titicaca, uma força torrencial de
vozes vitalizadoras das culturas indígenas latino-americanas.
São ilustrações capazes de fazer emergir a potência do conjunto coral,
em embate contra a arbitrária ideia de univocidade.
Martinez-Echazábal elege o poema “Iré a Santiago”, composto pelo
poeta Federico Garcia Lorca, quando de sua estada em Cuba (1930), e o
documentário homônimo (de 1964) da cineasta cubana Sára Gomez, com
a finalidade de salientar a história e a identidade da diáspora africana no
Caribe. Nas expressões desses dois peregrinos que logram se aprofundar na
espiritualidade cubana, se descortinam buscas estéticas que invertem um
registro simplista de discurso latino-americano.
No acervo desse cinema independente do documentário cubano, Jair
Fonseca indica no cinema independente, mas do capitalismo, de Santiago
Alvarez uma disposição para escancarar as estratégias de manipulação do
material, imagens, vozes, música e outros elementos. Isso permite em escala
bem mais alargada transpor esse questionamento frente aos artifícios da
construção de uma História.
Buscando compreender e ressignificar o papel do corpo e da sensuali-
dade em nossa existência, inserindo essas questões essencialmente humanas
em nosso conhecimento pelo nosso trabalho de pesquisa, nos reorientamos
através das reflexões de Goppelsroeder, sobre o gesto humano. Pensando
igualmente o gesto na literatura, Ana Luiza e Djulia ilustram a contribuição
dos estudos literários para o despertar ao agir, executar e proceder.

Maria Aparecida Barbosa


Ana Luiza Andrade

Referências
BENJAMIN, Walter, “Escavando e recordando”. In: Obras Escolhidas II Rua de
mão única. Trad. Rubens Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo:
Brasiliense, 1995.
CARDOSO, Lúcio. Diários. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

16
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad. André Telles. Entrevista Hana Feldman.
São Paulo: Editora 34, 2017.
GAGNEBIN, Jeanne Marie, “O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”. In:
Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34 Letras, 2006, p. 112.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Trad. Mônica Costa
Neto. São Paulo: Editora 34, 2009.

17
Bartleblysmos: silêncios, não-escritos e
literaturas póstumas, de Walser a Manganelli

Andrea Santurbano

Ao pensar na renovada sensação de mistério que a cada vez as mortes suscitam


ou, se quisermos, no fatídico minuto de silêncio, logo percebemos como
este silêncio esteja muito distante de uma ideia de ausência, de privação, de
recolhimento. Ao contrário, ele irrompe como um lugar mental carregado
de potencialidades, como um acúmulo de pensamentos e sensações que
exatamente por serem móveis, exatamente por não serem resolvidos em uma
forma definitiva e vexatória, mantêm, por assim dizer, o privilégio do absoluto
em seus movimentos significantes e centrífugos.
E é justamente em torno a estes eixos, a saber, o paradoxo do silêncio
e a virtualidade do não escrito, ou melhor, de uma escrita que subverte e
desestabiliza a ordem do discurso, que rompe suas relações com o representável
— Roland Barthes dizia que a tarefa da arte era “inexprimir o exprimível”
(Barthes, 2009, p. 18) e não exprimir o inexprimível, ou seja, “em arrebatar
à língua do mundo, que é a pobre e poderosa língua das paixões, uma fala
outra, uma fala exata.” (Barthes, 2009, p. 18) —, que buscarei concentrar
minhas reflexões nestas páginas. É nesse viés que proponho problematizar
a potencialidade do campo semântico ligado a expressões como “últimas
palavras”, “sentimento do fim” e “condição póstuma”, quando relacionadas
a uma literatura que se coloca como espaço de contestação da linguagem
comum e das retóricas do “verdadeiro”, e como espaço de contraposição ao
ruído desconexo da nossa tagarelice cotidiana.1 É possível, então, começar pelo

As expressões indicadas se referem a algumas das questões tratadas em minha conferência


1

no evento internacional “Le parole ultime. Il senso della fine. La condizione postuma della
letteratura” [As palavras últimas. O sentimento do fim. A condição Póstuma da literatura],
realizado em dezembro de 2017, na Università “G. d’Annunzio”, Chieti-Pescara.
escritor italiano Giorgio Manganelli, cuja complexa trama escritural coloca
em discussão qualquer regime de verdade e, consequentemente, zomba dos
discursos vazios das organizações sociais. A respeito do escritor de Centúria,
Andrea Gialloreto fala de uma espécie de “energia positivamente antissocial” e
de um incremento de “potencialidade de produção de sentido em alternativa
à experiência e a seus dados” (Gialloreto, 2013, p. 205), aspectos que estão
implícitos no jogo e na “mentira” que permeiam e alimentam a urdidura da
linguagem manganelliana.
Nesse sentido, seria possível entender literatura “póstuma” a partir dos
interstícios de uma voz neutra que não cala e se perpetua sempre num antes ou
depois do significado, articulando-se em uma língua feita de “rumor” (como
diz Barthes) ou de um “falar sem palavras” (como diz Blanchot). Silêncio,
evidentemente, será uma palavra central neste raciocínio. Para o Manganelli
de Rumori o voci [Ruídos ou vozes], o “silêncio não é a diminuição a zero
do ruído, mas algo diferente, um alhures com relação ao ruído”2 (Manganelli,
1987, p. 33). E Maurice Blanchot, em O livro por vir, antecipa-o em itinerários
semelhantes, vaticinando que o dia em que a luz da literatura tiver que se
extinguir não será devido ao silêncio, mas à retirada do silêncio, a um “rasgão”
na textura do silêncio. Segundo o pensador francês, é através de um novo ruído
que se anunciará uma era sem palavras (Blanchot, 2005, cap. IV).
Tempos e movimentos nesse tipo de rapsódia podem iniciar, deixando
de lado suas grandes obras, desde os breves contos de Franz Kafka, que nos dão
importantes paradigmas conceituais: me refiro, por exemplo, mas obviamente
não só, a “A partida” e a “O silêncio das sereias”. Já nestes textos, de fato, afloram
algumas das coordenadas que serão essenciais em certa literatura ao longo do
século XX. Em “A partida”, para começar, encontramos aquele “Dei ordem de
irem buscar meu cavalo ao estábulo. O criado não me compreendeu” (Kafka,
2002, p. 76); ou seja, a marca de um curto-circuito e portanto — parece-me
poder afirmar — de uma incomunicabilidade, de uma insignificância, às quais
a própria linguagem literária se condena quando se baseia em uma impossível
aderência mimética, em uma conexão relacional com uma realidade
tortuosa em seu absurdo cotidiano. Qual seria a direção? “Fora daqui”, diz
o protagonista,3 acrescentando: “é mesmo uma viagem verdadeiramente
imensa” (Kafka, 2002, p. 53). Esta passagem provavelmente significa para a

“[...] silenzio non è diminuzione a zero del rumore, ma qualcosa di diverso, un altrove
2

rispetto al rumore”.
Definição que dará a Umberto Curi ensejo para um longo ensaio, “Via di qua. Imparare a
3

morire” [Fora daqui, Aprender a morrer”. Torino: Bollati Boringhieri, 2011.

22
literatura, além de para o destino e pensamento do homem, tomar o impulso
para sair de uma espécie de inoperância. Já em “Silêncio das sereias”, faz-se
interessante o paradoxo de um Ulisses que se tapa os ouvidos com cera, com
o objetivo de se livrar do canto das sereias, mas desconsiderando que elas têm
“uma arma mais terrível que seu canto: seu silêncio”. Entretanto, Kafka sugere
no final que Ulisses “notou realmente que as sereias silenciaram e a elas opôs e
aos deuses, como uma espécie de escudo, a dissimulação acima mencionada”
(Kafka, 2017). Portanto, de um lado o herói astuto que navega espertamente
na prosa do mundo; do outro um imaginário mitográfico que nos remete a
heróis trágicos como Orfeu, que afunda nos abismos da noite e sabe que o
olhar para o objeto do desejo, se bem que fatal, lhe é indispensável. São os
eventos-limite, os “limiares”, que movem a quête, possibilitada apenas por um
movimento de recusa de uma ordem do sentido e do discurso, mesmo com o
risco de anulamento e de um desvio em direção a territórios anti-humanistas,
permeados pelo sentido do fim.
Escreve Manganelli: “Não sei absolutamente o que sejam os valores da
vida, mas sei que não há nenhum valor na vida que não comece pela morte”4
(Manganelli, 1989, p. 213). A literatura eleva-se, portanto, a lugar privilegiado
no momento em que enxerta seu sentido nesse movimento de perpetuação de
um sussurro ininterrupto, suspendendo infinitamente a experiência da morte
e fazendo dessa morte a própria impossibilidade de morrer (pode-se pensar,
por exemplo, no caçador Gracchus de Kafka). Entra assim em jogo a ideia de
bartlebysmo — indicada no título ­—, ou seja, a retração do homem diante de uma
experiência consumível, além de narrável. Nessa linha, não se pode deixar de
lembrar que Franco Rella chama o lugar ocupado pelo personagem de Melville
de “inerte afasia” (Rella, 2011, p. 23) e há que se perguntar se é realmente inerte
ou se essa falta de agir não é uma “potência de não”, como sugere Giorgio
Agamben. O não agir, como também o não escrever, constituiria um gerador
de uma potência que ainda não se tornou ato. Nesse sentido, a reconstrução
de Rella, voltada para a exigência de reatribuir uma responsabilidade ao
pensamento, para ele em sério perigo, suscita alguma perplexidade, basta
lembrar de sua recusa diante da filiação que Borges estabelece entre Kafka e
Bartleby: o escritor argentino, com sua habitual argúcia paradoxal, sugeriu de
fato que teria sido Kafka quem produzira retroativamente um personagem
como Bartleby. Por que Rella não aceita esta ligação? Por que para ele, em Kafka
— permito-me resumir — haveria uma luta e não uma rendição. Contudo,

“I valori della vita non so assolutamente cosa siano, ma so che non c’è nessun valore nella vita
4

che non cominci dalla morte”.

23
embora o efeito produzido pela leitura de Kafka seja possivelmente este, de
uma tensão alucinante, de um lúcido tremor, pode-se dizer, ao meu ver, que
também são claramente indicados os limites da linguagem (e, por conseguinte,
de um pensamento que se acomoda incautamente). Isto ocorre por meio de
uma escrita indecidível, que se refuta a cada passo, que parece dizer e logo se
contradizer, que vê se afastar sempre a hipótese de um significado unívoco e
que por isso inquieta: não por acaso — e chegaremos lá daqui a pouco — Kafka
foi um grande apreciador de Robert Walser. O famoso enigma do “diante da
lei” indica uma “vigência sem valor”, uma letra morta que cria vínculos, como
a palavra literária que enuncia, afirma e que no entanto permanece vazia ao se
esquecer de seus limites e de seus paradoxos. Nessa complexa constelação, cabe
retomar mais um conceito recentemente trabalhado por Roberto Esposito,
segundo o qual

[o] único tipo de linguagem que “salva” as coisas é o literário. E isso


se dá não por este guardá-las em seu ser, mas por ter como óbvio que,
atribuindo-lhes o sentido, as destrói. [...] Se a linguagem comum deixa
as coisas separadas das palavras, a da literatura faz das palavras coisas
novas, que justamente vivem do nada nelas inserido. A literatura assume
as coisas em sua gênese e em seu destino último (Esposito, 2016, p. 68).

Em suma, tudo isto também significa chamar o pensamento à sua


responsabilidade — aliás, em modo privilegiado — e certamente não ver nos
vários Foucault, Blanchot e Bartleby um atalho para o niilismo, e na falta de
ação uma infrutífera inoperância.’
Como se sabe, Enrique Vila-Matas é autor de uma obra magistral sobre
o bartlebysmo, Bartleby e companhia, fazendo desta figura um multifacetado
e inteligente manifesto. Bartlebysmo que apresenta pelo menos uma dupla
acepção: de um lado, de referência aos interstícios do não dito ou escrito, de
escrita somente potencial e por isto carregada de significâncias imanentes em
sua latência; do outro, de pulsão negativa da escrita que conduz para um não
ao mundo, para um nada, mas um nada que se torna essencial ao pensamento.
Sobre Bartleby, o escrivão, Manganelli afirmou: “é um livro estupendo
e é um livro em que o sórdido, o negativo, o protetivo e o casto coincidem
completamente. Há este milagre das contradições. Mas nenhum milagre das
contradições é exequível sem a garantia do negativo”5 (Manganelli, 2001,

“[...] è un libro stupendo ed è un libro in cui il sordido, il negativo, il protettivo e il casto


5

coincidono completamente. C› è questo miracolo delle contraddizioni. Però nessun miracolo


delle contraddizioni è eseguibile senza la garanzia del negativo”.

24
p. 72). Então, novamente duas questões fundamentais são trazidas à baila,
uma escrita ao negativo e uma escrita “contraditória”, abertas em muitas
direções, que nunca se resolvem numa síntese ou numa possível reconciliação
dos opostos. Esta ideia de não escrito também está subentendida em outra
obra de Manganelli, Nuovo commento [Novo Comentário], ou seja, glosa a
um livro que não existe. A ideia do não escrito é fundamental na medida em
que aproxima a dimensão ontológica do livro, sua ausência, a um sistema
teológico, vale dizer de uma imanência que pode inclusive dispensar as
limitações de uma presença física.6 Manganelli recupera ainda o tema do
não livro em outros textos, como por exemplo Encomio del tiranno [Elogio
do tirano]:

Caro editor, não faço ideia do que te ofereci. Não é um relato, e é o


resumo de um relato somente se concordamos que se possa extrair um
resumo de um livro que nunca foi escrito, e que nunca será escrito. Se
é possível fazer um resumo de tal livro, isso também quer dizer que é
possível escrever uma resenha sobre ele? Pode ganhar prêmios? Pode
ser traduzido? Merecer alguma menção na história ou, pelo menos, na
crônica literária? Dentre os livros não escritos deste século, nos parece
particularmente digno de nota o “ ”; pois é, não tem título. Ou talvez o
título desse livro seja na realidade o título do livro que não foi escrito e
nunca será?7 (Manganelli, 1990, p. 88)

Em outro artigo publicado no póstumo Il rumore sottile della prosa


[O ruído sutil da prosa], Manganelli insiste:

Um escritor autor de não-escritos, de não-livros, de não-inéditos não


porque ainda não editados, mas sim porque o grau do inédito já vai
além de suas ambições; e, acrescentarei, essas ambições não são tênues
e humilhadas, mas temerárias e arrogantes; pois autores de livros todo
o mundo conhece, e seus livros repousam nos arquivos da história,

6
Um comentário sobre esse livro de Giorgio Manganelli, na esteira da leitura proposta,
encontra-se em O fogo e o relato, de Giorgio Agamben, publicado pela Boitempo, em 2018.
7
“Caro editore, non so che cosa mai io ti abbia offerto. Non é un racconto, ed é il riassunto
di un racconto solo se siamo d’accordo che si possa dare riassunto di un libro mai scritto, e
che non verrà mai scritto. Se può farsene un riassunto, vuol dire che quel libro non scritto
lo si può anche recensire? Può vincere premi? Essere tradotto? Entrare a qualche titolo nella
storia o almeno nella cronaca della letteratura? Tra i libri non scritti di questo secolo, ci pare
particolarmente degno di menzione il “ ”; già, non ha titolo. O forse il titolo di questo libro
é in realtà il titolo del libro che non é stato scritto e non lo sarà mai?”

25
já classificados e julgados; mas os não-livros ocupam o espaço sem
fronteiras do futuro.8 (Manganelli, 1994, p. 48)

A ideia de literatura trazida até aqui também joga no campo das


distopias (e Manganelli o faz com sua habitual sarcástica ironia) de um
pensamento novecentista fortemente crítico em relação a um sujeito
consciente e inteiro; uma literatura, portanto, que deseja se ressignificar ou
plurissignificar, libertando-se de sua inoperância, aliás, zombando desta
inoperância. Se considerarmos o próprio Beckett, parece antes que ele, longe
de querer liquidar a literatura, desejasse lhe atribuir a possibilidade de carregar
e, ao mesmo tempo, se salvar do absurdo e do desastre do mundo. E isto
porque esta ideia “póstuma” de literatura também contempla, no meu modo
de ver, imagens de recordações, ruínas e escombros da história. Voltando a
Manganelli, em Ti ucciderò, mia capitale [Te matarei, minha capital], no conto
“Senso di colpa e senso della storia” [Sentimento de culpa e sentimento da
história], há a negação da história, enquanto insensato acúmulo de repartições
e busca de uma ordem moral e providencial. Entre outras coisas, Salvatore
Nigro reporta no posfácio a esse livro, Il laboratorio di Giorgio Manganelli
[O laboratório de Giorgio Manganelli], uma redação inicial que esclarece
ainda melhor essa ideia que não está muito distante de uma espécie de apelo
anti-idealista e benjaminiano:

Nós estamos e há muito entranhados naquela ridícula mitologia dos


idealistas, com seu teologizar de história, de espírito do mundo e outras
bobagens. Trágicas bobagens, todavia, por meio das quais estamos e
muito mal perdendo o sentido de ser algo de diferente daquela matriz
da qual saímos.9 (Manganelli, 2011, p. 367)

Mas a dimensão póstuma é de algum modo especular a uma condição pré-


existencial. Desprovido de literatura, o universo humano pode se demonstrar
despido e indefinível, entretanto a presença da literatura não pode curá-lo ipso

“Uno scrittore autore di nonscritti, di nonlibri, noninediti non già perché editi, ma perché
8

il grado dell’inedito é già oltre le sue ambizioni; e, aggiungerò, non sono, codeste ambizioni
tenui e umiliate, ma temerarie e arroganti; giacché autori di libri tutti ne conoscono, e i loro
libri giacciono negli archivi della storia, ormai classificati e giudicati; ma i nonlibri occupano
lo spazio senza confini del futuro”.
“Noi siamo e da tanto invischiati in quella buffa mitologia degli idealisti, col loro teologizzare
9

di storia, di spirito del mondo e siffatte sciocchezze. Tragiche sciocchezze, tuttavia, attraverso
le quali noi stiamo e malamente perdendo il senso di essere qualcosa di diverso da quella
matrice da cui siamo usciti”.

26
facto, pode no máximo torná-lo consciente dessa insensatez, remexendo os
limites entre loucura e sanidade. Jogando um pouco com algumas sugestões
literárias, se poderia falar em uma loucura inútil, antes, e de outra necessária,
depois. Em o Discorso dell’ombra e dello stemma [Discurso da sombra e do
brasão] Manganelli inventa a brilhante parábola do mundo nos tempos da não
literatura. Assim se inicia o capítulo V:

Os longos milênios — hoje é um dia suavemente invernal, ornado pelas


ternas mortalhas de uma luz nórdica — em que — esta luz não me
consola mas evidentemente tenta fazê-lo, e isto me entristece e enternece
— não existiu literatura — o céu tem um sabor de derrota que me exorta
a respeitá-lo — foram os anos da loucura inútil. Por gerações, por mil
gerações, o mundo não pôde existir: habitamos — o espanto ficou na
semente dos nossos antepassados — um mundo esfarelado, desfeito,
consumido, no qual as auroras se amontoavam em um espaço não maior
do que meu punho, a chuva não parava, não começava, e o dilúvio era
o rosto evidente do deserto. Todos sabiam que o que não existia — a
literatura — era inútil, mas justamente por isso estavam tomados pela
loucura. Pode-se viver sem uma coisa necessária, já que, sendo necessária,
de algum modo é conhecida; mas uma coisa inútil não é conhecida,
não é conhecível, não é mensurável, e portanto sua conclusão será a
demência não aplacável. A não-literatura agiu como agem alguns fungos,
que alucinam, desfiguram, matam. Os pedaços de mundo se cobriram
de gritos e alucinações; acendeu-se o fogo; as facas de pedra cortaram
carne animal, humana, a mesma carne daquele que fabricara, em paciente
insensatez, a faca. Pode-se matar por carência de sonetos, morre-se com os
olhos revirados de horror se não nos é fornecida a necessária quantidade
de prosa.10 (Manganelli, 1982, p. 33-34)

“I lunghi millenni — oggi è un giorno morbidamente invernale, ornato delle tenere gramaglie
10

di una luce nordica — in cui — questa luce non mi consola ma palesemente cerca di farlo, e
questo mi intristisce e intenerisce — non esisté letteratura — il cielo ha un sapore di sconfitta
che mi esorta a rispettarlo — furono gli anni della follia inutile. Per generazioni, per mille
generazioni, il mondo non poté esistere: abitammo — lo spavento è rimasto nel seme dei
nostri antenati — un mondo sbriciolato, sfatto, consunto, nel quale le albe si ammucchiavano
in uno spazio non maggiore del mio pugno, la pioggia non cessava, non cominciava, e il
diluvio era il volto palese del deserto. Tutti sapevano che ciò che non esisteva — la letteratura
— era inutile, ma appunto per questo erano in preda alla follia. Si può vivere senza una cosa
necessaria, giacché, essendo necessaria, in qualche modo è nota; ma una cosa inutile non è
nota, non è conoscibile, non è misurabile, e dunque la sua conclusione sarà la demenza non
placabile. La nonletteratura agì come agiscono taluni funghi, che allucinano, stravolgono,
uccidono. I pezzi di mondo si coprirono di urla e di allucinazioni; si accese il fuoco; i coltelli
di pietra tagliarono carne animale, umana, la stessa carne di colui che s’era fabbricato, in

27
E a propósito de loucura e de demência, se em Manganelli está traçado
um “antes”, Robert Walser, em Der raüber [O bandoleiro], traça idealmente um
“depois”, entendido no sentido de um mundo contaminado por tanta literatura
edificante, a ponto de se tornar nauseantemente prosaico:

Dirijo às pessoas sãs o seguinte apelo: vamos, não leiam sempre e


apenas livros sadios, aproximem-se também à assim chamada literatura
patológica, da qual talvez poderão extrair a verdadeira edificação. As
pessoas sadias deveriam sempre, em certo modo, arriscar alguma coisa.
De outra forma, raios, com que objetivo ser sãos? Só para morrer um
dia de demasiada saúde? Sorte malditamente desolada...11 (Walser,
2008, p. 76)

Winfried Georg Sebald, por sua vez, a propósito de Der raüber de


Walser, comenta em Il passeggiatore solitario [O caminhante solitário]: “neste
romance póstumo, escrito por assim dizer já no além, acendem-se em Walser
algumas iluminações sobre o seu particular estado psíquico e sobre a essência
da alienação mental, que ninguém em literatura — pelo que sei — jamais
teve”12 (Sebald, 2006, p. 14).
Walter Benjamin havia captado desde 1929, ou seja, antes dos micro-
gramas e de todas as sucessivas implicações, este particular procedimento na
escrita do escritor suíço:

O soluço é a melodia das tagarelices de Walser. O soluço nos mostra


de onde vêm os seus amores. Eles vêm da loucura, e de nenhum
outro lugar. São personagens que têm a loucura atrás de si, e por isso
sobrevivem numa superficialidade tão despedaçadora, tão desumana,
tão imperturbável. Podemos resumir numa palavra tudo o que neles
se traduz em alegria e inquietação: todos eles estão curados. Mas não
compreenderemos jamais como se processou essa cura, a menos que
nos aventuremos no seu Branca de Neve. (Benjamin, 2005, p. 52)

paziente stoltezza, il coltello. Ci si può uccidere per carenza di sonetti, si muore con gli occhi
stravolti dall’orrore se non ci viene fornita la necessaria quantità di prosa”.
“Rivolgo alle persone sane il seguente appello: suvvia, non leggete sempre e soltanto libri sani,
11

accostatevi anche alla letteratura cosiddetta patologica, dalla quale potrete forse trarre vera
edificazione. Le persone sane dovrebbero sempre, in certo qual modo, rischiare qualcosa.
Altrimenti, corpo di mille fulmini, a che scopo mai essere sani? Solo per morire un giorno di
troppa sanità? Sorte maledettamente desolata…”.
“[...] in questo romanzo postumo, scritto per così dire già dall’aldilà, si accendono in Walser
12

alcune illuminazioni sul suo particolare stato psichico e sull’essenza dell’alienazione mentale,
che nessuno in letteratura — per quanto ne so io — ha mai avuto”.

28
Em Robert Walser, naquelas longas tiradas discursivas de seus
muitos personagens (de Jakob von Gunten aos irmãos Tanner) percebe-
se um procedimento depois também caro a Kafka, de uma língua e de um
pensamento que parecem desistir de uma pretensão absoluta de significado,
indo supostamente em uma direção, para depois, logo depois, voltarem atrás
e desmentirem o que foi apenas dito. Faz sentido, portanto, a lenda de que
Walser nunca relia nem corrigia o já escrito. Certamente em Kafka, esta trama
de contradições ou incongruências produz um sentido alienador de sutil
angústia, enquanto em Walser há, como dissemos, uma plácida inconsistência,
que quase nos projeta para uma ausência material de matriz fabular.
Paralelamente, o teatro do mundo, das relações humanas, é desencarnado
com gracioso desencanto. O peso do mundo e de uma língua afirmativa e
enunciadora perde sua insolência. Por esta série de motivos, uma figura como
a de Walser só pode ser central no bartlebysmo.
Outro autor que deve ser incluído nesta categoria é Guido Morselli
— e aqui gostaria de assinalar as potencialidades de desenvolvimento de
um discurso que o aproxima a Walser, a partir de alguns elementos como o
autoisolamento ou a autointernação, o uso obstinado de papel heterogêneo
e reciclado (que indica formas de resistência e de profanação, no sentido
agambiano, de reapropriação, assumindo em Walser a forma extrema dos
microgramas), a relação com a Suíça enquanto espaço poroso percorrido
por camadas históricas, geográficas, sociais e culturais, entre urbanismo e
natureza (relação que compreende a ação de percorrer os lugares abertos e as
cidades como se fossem simulacros ou sítios arqueológicos, como se fossem
receptáculos de história ou uma espécie de arqueologia do pensamento), e,
para concluir, o relevante interesse de ambos escritores por uma figura como
Walther Rathenau, que se faz personagem em seus livros.
O silêncio subjacente a essas experiências narrativas, associável,
como mencionado, a uma espécie de rumor, de murmúrio, de personagens
extravagantes e inconsistentes, quando não totalmente desprovidos de
identidade, vai tecendo uma trama sonora em contracanto a uma expectativa
de sentido, ao ditado da palavra. O significado, nesse caso, torna-se berro,
grito obsceno, desajeitado, um “urro”, como escreve Manganelli no citado
Rumori o voci:

[...] neste caso de congruência do urro e do significado, ou talvez da


objetiva coerência do mundo como lugar da retrocriação do urro,
pretendo dizer que o urro cria o que você, muito tempo antes de chegar

29
a esta cidade, e esta noite, em momentos de obscenidade intelectual,
chamava de real.13 (Manganelli, 1987, p. 114)

Mas o silêncio encontra sua perfeita caixa de ressonância em uma espécie


de suspensão da experiência de morte, conforme o mencionado no início.
Talvez se tenha falado muito pouco de um episódio da vida de Manganelli,
ou seja, da circunstância que o leva a um passo do fuzilamento no final da
segunda guerra mundial. Situação muito semelhante à vivida por Blanchot,
revisitada e incorporada ao espaço da literatura, muitos anos depois, em
O instante da minha morte, por interposta pessoa:

Permanecia, todavia, como no momento em que o fuzilamento estava


iminente, o sentimento de leveza que não conseguirei traduzir: liberto
da vida? o infinito que se abre? Nem felicidade, nem infelicidade. Nem a
ausência de temor e talvez já o passo / não-passo para-além. Sei, imagino
que este sentimento inanalisável mudou o que lhe restava de existência.
(Blanchot, 2003, p. 20-21)

É sabido como a obra de Manganelli se module em várias articulações


metamórficas que remetem a um estado de suspensão, de estados pré-natais
a outros de post-mortem; e, ainda, como a visão “cosmogônica” do escritor é
percorrida por territórios indistintos entre o aquém e o além, traçando uma
“geografia teológica”, segundo a definição que recebem no póstumo La palude
definitiva [O pântano definitivo]. Segundo Michele Mari, falar dos mortos
“Dall’ inferno [Do inferno], de Palude definitiva [Pântano definitivo] ou de La
Notte [A Noite] significa falar do nada, mas de um nada paradoxalmente cheio,
habitado, sonoro”14 (Mari, 2000, p. 25).
“La letteratura come menzogna” [A literatura como mentira] é a marca
registrada de Manganelli: com isto, ele corta relações com a significância de
um universo referencial. Eis então que a literatura também é absolutamente
tudo, é um antídoto para a ensurdecedora tagarelice do mundo, para suas idées
reçues, seus discursos hegemônicos, e assim por diante. “O notável é que na

“[...] in questo caso di congruenza del bercio e del significato, o forse della obiettiva coerenza
13

del mondo come luogo della retrocreazione del bercio, intendo dire che il bercio crea ciò che
tu, molto tempo prima di approdare a questo borgo, e questa notte, in momenti di oscenità
intellettuale, chiamavi il reale”.
“Dall’ inferno, dalla Palude definitiva o dalla Notte significherà sì parlare del nulla, ma di un
14

nulla paradossalmente pieno, abitato, sonoro”.

30
literatura o engano e a mistificação são não apenas inevitáveis, mas também
formam a honestidade do escritor, a parte de esperança e de verdade que existe
nele”, reafirma Blanchot em Literatura e o direito à morte (Blanchot, 2011,
p. 320).
Manganelli, Walser e os outros autores citados ao longo dessas páginas,
ainda que diferentes entre si, desarticulam os estatutos da escrita narrativa e de
suas relações com o mundo representado, revisitam suas formas de enunciação,
de comando. Neles, o espaço do silêncio assume novas características. Cantava
Chico Buarque em Cálice: “Quero lançar um grito desumano / Que é uma
maneira de ser escutado / Esse silêncio todo me atordoa / Atordoado eu
permaneço atento” (Buarque; Gil, 1973). Versos que evocam o período da
ditadura militar, mas Barthes nos dizia nesses mesmos anos que o fascismo
da língua consiste em obrigar a dizer e não a calar. Aliás, é justamente um
grito inumano que abrira idealmente o século breve, isto é, o Grito de Edvard
Munch. Escreve ainda Blanchot:

Não se trata portanto de negar o humanismo, à condição de reconhecê-


lo ali aonde recebe seu modo menos enganoso: nunca nas zonas de
autoridade, do poder e da lei, da ordem, da cultura e da magnificência
heróica e nem tampouco no lirismo de boa companhia, mas sim tal
como foi levado até o espasmo do grito. (Blanchot, 2007, p. 271)

E talvez o sentido último, a perspectiva pós-humanista que nos propõem


os silêncios e os não-escritos dos autores aqui apresentados, seja este: partir
novamente de um grito desesperado e libertador, que se oponha à prepotência
do homem social. Por meio de um sussurro, mas também com a potência do
silêncio, na certeza, em todo o caso, de que será só com a linguagem, mesmo
muda, da literatura que sobreviveremos à morte.

Tradução de Francisco Degani

Referências
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São Paulo: Boitempo, 2018.
BARTHES, Roland. Ensaios críticos. Lisboa: Edições 70, 2009.

31
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica. Arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São
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32
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WALSER, Robert. Il brigante. [Der raüber; O bandoleiro]. Trad. italiana Margherita
Belardetti. Milano: Adelphi, 2008.

33
Ruínas e olhares dessacralizadores na
escrita de Antonio Delfini

Patricia Peterle

O novo escritor deve ser hipócrita e desajeitado.


Interessar-se um pouco por tudo não se importar com
o mundo inteiro. Estar frequentemente apaixonado,
também romântico. Rir no final. Dar, no fundo,
o triunfo do trágico.1
Antonio Delfini, Diari [Diários]

A relação com o tempo parece ser desde sempre uma preocupação nas
manifestações humanas e, sobretudo, naquelas consideradas artísticas, como é
justamente a literatura. O homem, queira ou não, está inserido progressivamente,
desde criança, em uma densa e complexa rede de relações que vão da família
à escola, aos amigos, às leituras escolhidas, aos modos de vida. À medida que
se delineia, esta mesma rede se torna cada vez mais tentacular, constituída
por experiências e cerziduras de memória e reminiscências. Rede que também
está para conhecimentos, símbolos, posturas e comportamentos, em resumo
hábitos que nos são transmitidos, misturados a novos contatos e experiências;
enfim, coisas, pensamentos, maneiras de se comportar e de fazer que, no mais
das vezes, mesmo se não percebemos, são plasmáveis e “se hospedam” dentro
de nós. Trata-se, com efeito, da relação entre a história privada, aquela mais
íntima, e aquela mais coletiva, ou seja, fios que cozem as tramas de uma vida.2

1
Il nuovo scrittore dev’essere ipocrita e maldestro. Interessarsi un po’ a tutto fregarsene del
mondo intero. Essere appassionato spesso, anche romantico. Ridere alla fine. Dare in fondo
il trionfo del tragico.
2
A revisão desse texto foi feita pela autora no dia 15 de maio de 2019, data emblemática das
manifestações em todo o país contra o corte de verbas e o ataque que o atual governo vem
já é mais de um”3 (Nancy, 2013, p. 33). “Mais de um” significa reconhecer as diferenças,
as alteridades – que no Brasil de hoje parecem estar ameaçadas.
Escreve Jean-Luc Nancy: “fazer mundo é fazer reenvio (renvoi), relação, de
As relações não são e não podem ser lineares, justamente porque são composições
sentido e de não-sentido, de presença e de ausência, de um e de múltiplos.
mistas, Mundo
urdidas édemais
afetos, de percepções,
de um, é não-um. de Umrecordações
mundo já équemaisnosdedesviam de um2013,
um”3 (Nancy, caminho
p. 33). “Mais deao
que só aparentemente, um” significa
longe ou de reconhecer as diferenças,
fora, pode parecer as alteridades
minimamente — que
ordenado. Paletas
no Brasil de hoje parecem estar ameaçadas.
de recordações Assensações que são
relações não se misturam,
e não podem se embaraçam,
ser lineares, plenas de imagens
justamente porque esão
vozes
composições
deslocadas, mistas,
descoradas, urdidasque
desfiadas de afetos, de percepções,
se intersecam depaletas
a outras recordações
cujo que
fundonosé tão
desviam de um caminho que só aparentemente, ao longe ou de fora, pode
intenso parecer
que podeminimamente
até se apresentar todo preto,
ordenado. comode
Paletas numa das inúmeras
recordações imagens
sensações do se
que artista
misturam,
sul africano se embaraçam,
William Kentridge emplenas
Roma, deàsimagens
margense vozes deslocadas,
do Tibre. Não pordescoradas,
acaso as várias
desfiadas que se intersecam a outras paletas cujo fundo é tão intenso que pode
cenas do Mural de Kentridge, realizado em 2016 entre as Pontes Mazzini e Sisto na capital
até se apresentar todo preto, como numa das inúmeras imagens do artista sul
italiana,africano
e fadadoWilliam
ao desparecimento
Kentridge em pela própria
Roma, técnica utilizada,
às margens do Tibre.confluem talvezas
Não por acaso numa
várias cenas do Mural de Kentridge, realizado em 2016 entre as Pontes Mazzini
imagem, que não deixa de ecoar-evocando nela mesma todas as outras. Vejamos três
e Sisto na capital italiana, e fadado ao desparecimento pela própria técnica
fotografias:
utilizada, confluem talvez numa imagem, que não deixa de ecoar-evocando
nela mesma todas as outras. Vejamos três fotografias:

fazendo contra as universidades públicas e contra a educação. A universidade é um espaço


de produção de conhecimento, de inovação e de debate, mas também de reflexão sobre nosso
estar no mundo.
fare mondo è fare rinvio (renvoi), rapporto, di senso e di non-senso, di presenza e di assenza,
3

di uno e di molteplici. Mondo è più di uno, è non-uno. Un mondo è già più di uno.

36

3
fare mondo è fare rinvio (renvoi), rapporto, di senso e di non-senso, di presenza e di assenza, di uno e di
molteplici. Mondo è più di uno, è non-uno. Un mondo è già più di uno
É a própria
É a própria poluição,poluição, a poeira
a poeira urbana queurbana
dá vidaque dá vida
a esses a esses
desenhos. desenhos.
Acima as três
Acima as três fotografias reproduzem fragmentos da obra fragmentada e
É
fotografiasa própria
reproduzem
anacrônica poluição,
de a poeira
fragmentos
Kentridge. urbana
Nadaúltima que dá vidaechama
obra fragmentada
reprodução aanacrônica
essesadesenhos. oAcima
bloco, as
de Kentridge.
atenção o três
Na
quadrado
última reprodução
fotografias todo
reproduzemchamapreto com uma
a atenção
fragmentos escrita:
o bloco,
da o “(quello
quadradoche
obra fragmentada nonpreto
todo recordo)”,
e anacrônica com ou seja,
deuma o Na
escrita:
Kentridge.
que não me lembro. Aqui o não lembrar não é um aniquilamento, anulação,
“(quelloreprodução
última che non recordo)”,
chama aouatenção
seja, o que não me
o bloco, o lembro.
quadrado Aqui o não lembrar não éescrita:
um
esquecimento total ou uma espécie de anestesia geraltodo preto
anestética com
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parece
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“(quello che non
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recordo)”,
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ou seja, odesde
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Aqui
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lembrar não é um
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– que parece rondar
aniquilamento, a atmosfera
anulação, brasileiratotal
esquecimento desdeouo uma
segundo semestre
espécie de 2018,geral
de anestesia mas aponta,
anestética
37
–sobretudo,
que parece para a força
rondar da memória,
a atmosfera para adesde
brasileira sobreposição,
o segundopara as concreções
semestre de 2018,que vão
mas se
aponta,
formando. Não
sobretudo, para se trata,da
a força portanto,
memória, de para
uma asimples interrupção.
sobreposição, para A
as de Kentridgeque
concreções é uma
vão se
interrupção que não rompe, mas que suspende e, ao mesmo tempo, é a possibilidade da
formando. Não se trata, portanto, de uma simples interrupção. A de Kentridge é uma
continuidade dessa narrativa sem fio de imagens que fazem parte da capital romana, da
interrupção que não rompe, mas que suspende e, ao mesmo tempo, é a possibilidade da
sobretudo, para a força da memória, para a sobreposição, para as concreções
que vão se formando. Não se trata, portanto, de uma simples interrupção.
A de Kentridge é uma interrupção que não rompe, mas que suspende e, ao
mesmo tempo, é a possibilidade da continuidade dessa narrativa sem fio de
imagens que fazem parte da capital romana, da cultura italiana, mas que cruza
as fronteiras nacionais e chega até nós do outro lado do oceano. O bloco preto,
negrume produzido pela própria cidade, resíduos do viver urbano, remete a
tudo, a aposta está, assim, na potência e não o no ato. Depósitos e concreções,
fruto de acontecimentos e de encontros, do vivido que nos fazem perceber em
determinadas situações que “o surgir do mundo, é um evento excepcional. O
mundo é extraordinário” (Nancy, 2013, p. 33).
A ordem nessa mistura do humano pode se demonstrar limitante,
ofuscante, até mesmo um modo de anestesiar o viver e o sentir. Cesuras,
cortes, fissuras, cisões, contratempos são necessários e fundamentais para
não sermos capturados por um ritmo homogêneo, esvaziador e avassalador;
são, por outro lado, exatamente os elementos inquietantes que podem nos
fazer sentir estranhos diante do mundo exterior e interior. Elementos que, ao
mesmo tempo, nos conectam a nós mesmos (um nós, no século XX, cada vez
mais lábil e frágil, às vezes até irônico). De um lado, estilhaços de um passado
que não existe mais — “A verdadeira imagem do passado passa por nós de
forma fugidia”. (Benjamin, 2016, p. 11) —, do outro, as incertezas sobre o
futuro: dois aspectos que constituem o amalgama do presente ou fronteira dos
tempos, para lembrar a emblemática imagem do anjo da história de Walter
Benjamin. De fato, ao tempo homogêneo e vazio prefere-se aquele imbricado,
pleno de “agoras”, não tranquilizador, fugaz, que é capaz de oferecer aberturas,
colocando o próprio presente no centro da atenção. Não interessa mais uma
visão nostálgica do passado e nem uma outra voltada para o futuro, que vive
projetando. A questão está no “aqui e agora”, no tempo presente, e com os
fantasmas que o acompanham. Não é uma relação fácil. Este confronto coloca
em jogo — no aqui e agora — esperanças, ideias de salvação e resignações,
dúvidas e certezas. Não mais uma totalidade e uma visão totalizante.
Ruínas, portanto, de um “eu”, sempre mais fragmentado nas experiências
do século XX, cuja possibilidade de sobrevivência se mantém quase sempre no
fio da navalha, em equilíbrio precário, sendo no mais das vezes fruto do estar
com, da partição e, portanto, do estar junto aos outros (contato e contágios)
— “afeição da coisa e coisa afeiçoada”4 (Nancy, 2013, p. 37). Ruínas até de

affezione della cosa e cosa affetta.


4

38
uma linguagem que, em meio ao desmoronamento, aos fragmentos, somente
se desarticulando e esfarelando tem a possibilidade de ter uma voz (ou melhor
vozes): “o ser é uma paixão, não uma ação”5 (Nancy, 2013, p. 33). Cacos, enfim,
de uma realidade sempre mais complexa e impossível de “agarrar”, alinhar,
ordenar.
Todas essas questões estão presentes na narrativa de um estranho escritor
italiano, Antonio Delfini (1908-1963), que teve uma trajetória errante. A trilha
inóspita percorrida pelo pungente Antonio Delfini esbarra e se choca com a
“suspensão dos motivos usuais”6 (Delfini, 2014, p. 104), que pode se deslocar
em “um encontro sem esperança”7 (Delfini, 2014, p. 104), para retomar os
versos do poema “Quello che penso è un segreto” [O que penso é um segredo]
(16 de novembro de 1958).
O escritor de Modena, sarcástico, rebelde, cáustico, já estava ativo desde
1930, com Ritorno in città [Retorno à cidade] (1931), onze breves textos sem
uma meta, uma espécie de perambulação despreocupada. Nas palavras de
Gianni Celati8 para a edição de 2008 de Ritorno in città, publicada pela Einaudi,
“é um livro de prosinhas no gênero dos poemas em prosa de Baudelaire (Spleen
de Paris, 1864) e das perambulações do Rimbaud adolescente. Passeios com
visões de vida quaisquer, frases muito modestas, jogadas em tonalidades
coloristas e humorais”9 (Delfini, 2008, p. VI).
Il ritorno della Basca [O retorno da Basca] talvez seja a obra prima de
Antonio Delfini, publicada em 1938. A obra foi reimpressa em 1956, com o
título Il ricordo della Basca. Dieci racconti e una storia [A recordação da Basca.
Dez contos e uma história], acrescido de um novo texto “Una storia” [Uma
história], que tem um papel fundamental porque, além de fornecer dados
sobre a gênese do volume, é, ao mesmo tempo, uma reflexão do escritor sobre
sua relação com a escrita e com a língua. Portanto, propomos nestas páginas,

l’essere è una passione, non un’azione.


5

sospensione dei motivi consueti.


6

un incontro senza speranza.


7

Celati (1937) é um dos maiores prosadores italianos atuais. Há poucos ensaios sobre sua
8

obra no Brasil. Faz-se aqui referência a dois recentes ensaios: TESTA, Enrico. “Vozes trazidas
por alguma coisa”: a solidão da linguagem; PETERLE, Patricia. “O ver ruinoso e os escutar
residual em Gianni Celati”, ambos publicados em SANTURBANO, Andrea, PETERLE,
Patricia. Resíduos do humano. Sao Paulo: Rafael Copetti, 2018, p. 7-30 e 31-46.
è un libro di prosette sul genere dei poemi in prosa di Baudelaire (Spleen de Paris, 1864) e dei
9

vagabondaggi adolescenziali di Rimbaud. Passeggiate con visioni di vita qualsiasi, frasi molto
dimesse, giocate su tonalità coloristiche e umorali.

39
das leituras de Il ricordo della Basca à Poesie della fine del mondo [Poemas
do fim do mundo], refletir sobre o mundo “ruinoso” de Antonio Delfini, em
que a única possibilidade de existência é dada exatamente pelas fendas, pelas
fraturas.
Para Delfini, a vida se desenvolve mediante o conjunto de pequenas
coisas inexplicáveis, indizíveis no momento em que a realidade passa a ser vista
como parte do absurdo, do sonho, do desejo, da preguiça. Em um breve artigo
antes da publicação de Ricordo della Basca, intitulado “La vita” [A vida], de
1933 (republicado depois no volume já citado, com introdução e organização
de Gianni Celati em 2008, que reúne alguns dos textos mais emblemáticos
desta escrita que escuta as palavras), afirma o escritor: “A realidade está em
grande parte no absurdo, naquela imaginação que está a um passo de se tornar
realização, mas quem nunca irá se tornar. No fundo, na vida a realidade existe
e não existe”10. (Delfini, 2008, p. 46). O “frescor” da prosa delfiniana, marcada
e colocada em evidência por Celati, vem justamente do estar à escuta do que
acontece ao redor, do viver, das experiências vividas que se mesclam em um
estilo ao qual não interessa definir o perfil das coisas e seu lugar no mundo,
mas sim sua relação e suas tensões (existir e não existir). Uma ordem possível
apenas e somente a partir de uma desordem, motivo pelo qual essa escrita
só pode se distanciar do mimetismo, apresentando-se em uma linguagem
plasmável, que se dobra e desdobra em um continuum.11 Celati admite, como
leitor, a existência de uma “música sutil”, por assim dizer escorregadia, cujos
efeitos são de espera, suspensão e imprecisão. Não por acaso, exatamente no
início de “Una storia”, o texto escrito para a segunda edição de Ricordo della
basca, se leia:

Se tivesse tido outros amigos, ou não tivesse tido nenhum, teria me


tornado um grande narrador, antes da queda do fascismo; e depois teria
permanecido assim. Mas é mais provável que se eu não tivesse tido os
amigos que tive, eu nunca teria escrito um conto ou quase um (Delfini,
2008, p. 7)12

La realtà è in gran parte nell’assurdo, in quell’immaginazione che è a un passo per diventare


10

realizzazione, ma che non la diventerà mai. Nella vita in fondo la realtà esiste e non esiste.
Ver o número 6 da revista “Riga”, dedicado a Antonio Delfini, organizado por Marco Belpoliti
11

e Andrea Parazzi em 1994.


Se avessi avuto altri amici, o non li avessi avuti affatto, sarei diventato un grande narratore,
12

prima della caduta del fascismo; e dopo lo sarei rimasto. Ma é più probabile che se non avessi
avuto gli amici che ho avuto, io non avrei mai scritto un racconto o quasi un racconto.

40
E em um trecho mais adiante, é o próprio Delfini a afirmar a
impossibilidade da representação:

Para mim, naquela época, fazer o bufão na cidade era como escrever
livros que deveriam ficar. Com esse propósito, confesso que houve um
período em que me pus secretamente à procura de um cronista que
fixasse em páginas escritas o tempo e o efeito das minhas façanhas…
mas não encontrei. (Delfini, 2008, p. 19)13

Pensar em uma crônica dos acontecimentos urbanos, circunscrevê-los


em um determinado tempo, fixar seu “efeito”, revela-se, assim, uma tentativa
fracassada. As experiências do vivido, os eventos, uma vez terminados, não
pertencem mais à esfera da visão racional — se é possível falar de racional
­—, capaz de ver de modo detalhado todos os contornos e todas as figuras que
dele fazem parte. Não é possível, portanto, tirar uma espécie de fotografia
mediante o ordenado uso das palavras e da sintaxe — a língua fascista que fala
Roland Barthes. As coisas do vivido fogem, escorregam entre os elementos
da linguagem, a qual não sustenta o desafio proposto pela tentativa de captar
e fixar. E esta falência deve-se ao fato de que os momentos vividos são sem
dúvida irrecuperáveis em sua originalidade, justamente porque já pertencem
ao passado, à memória — seus traços principais sofrem forçosamente um
processo de deformação, se tornam carcomidos. Deformação deriva de
a recuperação, por si só, já significar uma confluência de tempos, com um
pressuposto olhar para passado que se concretiza somente no momento
presente: este é o encontro dos tempos, para retomar Benjamin. Ou seja,
partições de silêncios e vozes, tensões que podem se desdobrar em certas
aberturas que deixam transparecer fragmentos, estilhaços de tempos, de
linguagens, densos nós, que se materializam por meio de várias formas do
sentir (os sentidos). Daqui, então, as composições e as montagens que fazem
ressoar alguma coisa. Não é por acaso, então, que não são poucos os escritos
de Delfini que apresentam a problemática do tempo como argumento central,
desarrumando-o e embaralhando-o. “La modista”[A modista], escrito em
1933, é sem dúvida um bom exemplo, particularmente interessante para esta
discussão são o início e o final do conto, que começa assim:

Per me, in quell’epoca, fare il buffone in città era come scrivere dei libri che dovevano restare.
13

A questo proposito confesso che ci fu un periodo in cui mi misi segretamente alla ricerca
di un cronista che fermasse in pagine scritte il tempo e l’effetto delle mie gesta… ma non lo
trovai.

41
A senhora Elvira havia passado dos sessenta anos. Sentada em uma
poltrona macia florida, com cômodos braços, reclinava a cabeça. Parecia
estar perdida lá onde lhe era fácil ir, mas doloroso voltar. Quantas vezes,
à noite, nos anos de juventude não se sentara, exausta, naquela poltrona?
Olhava então o amplo leito com a grande coberta branca com renda. A
coberta estava um pouco gasta. Mas isso não importava. (Delfini, 2008,
p. 97)14

Palavras que introduzem a figura de Elvira, a modista.15 Como muitas


vezes acontece nos contos de Delfini, uma primeira parte introdutória vem
seguida por outra (ou outras) que em geral apresenta uma espécie de retorno,
uma recuperação de um momento do tempo passado. Essa transição em
alguns contos, como “Il maestro” [O maestro], é assinalada graficamente por
um asterisco e espaços em branco inesperados na página pelo leitor. O tempo,
no entanto, está mais do que presente nestas linhas da “Modista”, a partir do
momento que Elvira é descrita como uma mulher de certa idade, mais de
sessenta anos, sentada em uma confortável poltrona com a cabeça reclinada,
como se tivesse o pensamento distante. Descrição, esta, confirmada pela

La signora Elvira aveva passato la sessantina. Seduta su di una poltrona morbida a fiorami,
14

dai comodi braccioli, reclinava la testa. Pareva dovesse perdersi laddove le era facile andare
ma doloroso tornare. Quante volte, la notte, negli anni giovanili non si era seduta, esausta,
in quella poltrona? Guardava allora l’ampio letto dalla grande coperta bianca coi pizzi. La
coperta si era un po’ sciupata. Ma questo non importava allora.
Diz Delfini a propósito desse conto “Antes de me deitar escrevi algo por minha conta. É
15

inútil que eu lembre o que escrevi. Muitas vezes escrevia longas páginas para adaptar meu
pensamento (que me parecia não existir) ao período, à sintaxe e à gramática de Leopardi.
Pode ser que naquela noite tenha escrito a primeira linha de um conto que depois se
intitularia La modista. E talvez esta primeira linha eu a tenha escrito alguns anos antes ‘A
senhora Elvira havia passado dos sessenta anos. Sentada em uma poltrona macia florida,
com cômodos braços, reclinava a cabeça. Parecia estar perdida… etc.’ O que é certo é
isto: a ideia daquela primeira linha eu retirara da reprodução de um quadro de Cézanne,
publicada lá por 1930 em um jornal artístico polêmico que se chamava Belvedere. Parece
que aquele retrato se assemelhasse um pouco com minha avó” [Prima di coricarmi scrissi
qualcosa per conto mio. È inutile che io ricordi che cosa scrivessi. Spesso scrivevo lunghe
pagine per adattare il mio pensiero (che mi pareva non esistesse) al periodo, alla sintassi e
alla grammatica di Leoapardi. Può darsi che quella sera scrivessi la prima riga di un racconto
che doveva poi intitolarsi La modista. E forse questa prima riga l’avevo scritta qualche anno
prima «La signora Elvira aveva passato la sessantina. Seduta su di una poltrona morbida a
fiorami, dai comodi braccioli, reclinava la testa. Pareva dovesse perdersi… ecc.» Quello che
è certo è questo: l’idea di quella prima riga l’avevo tratta dalla riproduzione di un quadro di
Cézanne, apparso verso il 1930 in un giornale artistico polemico che si chiamava Belvedere.
Mi pare che quel ritratto assomigliasse un poco a mia nonna]. (Delfini, 2008, p. 25-26).

42
frase seguinte, que enfatiza que era “fácil” se perder em certos pensamentos/
recordações, sendo, todavia, doloroso, depois, voltar. Se a exaustão agora
acolhida pela poltrona é fruto dos anos, antes, na juventude, era devido a um
outro tipo de cansaço, talvez ligado à energia e euforia. A descrição do olhar
de Elvira para a cama e a grande coberta de renda fecha a cena de abertura.
A coberta era grande, mas estava — como ela — gasta, ou seja, marcada pelos
anos, pelo cansaço. Esta narração se interrompe, é suspensa para poder dar
espaço à do personagem, em sua história íntima e privada (“Com trinta anos
não tinha ainda se casado [...]; [...] com dezessete, saiu sozinha para passear
com um jovem estudante de medicina”16) (Delfini, 2008, p. 99), e será retomada
só depois, no final, nas últimas quinze linhas que encerram o conto:

[...] levantou-se lentamente. Grande e pesada, com um largo e longo


saiote cinzento com listras pretas, e uma blusa escura toda trabalhada que
cheirava a armário fechado com biscoitos esquecidos dentro. Caminhava
mal pelo quarto. Conseguiu chegar à mesinha de trabalho com o coração
que lhe batia muito forte e lhe fechava a garganta. Olhou-se de longe e
de relance no espelho da parede: como era alta e que olhos negros tinha!
Na gaveta da mesinha havia um pedaço de papel de farmácia. Tinha
algo escrito. Talvez: “Que belas pernas senhora, ” ou “Esta noite vou lhe
ver, beijos.” Leu longamente. Depois devagarinho voltou a se sentar na
poltrona macia florida. Sobre a cama, a coberta branca com renda estava
amarelada e dava mau cheiro só de olhá-la. Sufocava-se. A senhora Elvira
não podia voltar atrás no tempo. (Delfini, 2008, p. 104)17

Indícios da difícil relação de Elvira com seu passado e com seu presente
são dados ao leitor pelos atributos “grande” e “pesada”, ligados a todo um
campo semântico da caducidade e precariedade que aos poucos é construído
narrativamente: “saiote cinzento com listras pretas”, “cheirava a armário

16
A trent’anni non si era ancora sposata [...]; [...] a diciassett’anni, andò sola a passeggio con un
giovincello studente di medicina.
[...] si alzò lentamente a piedi. Grossa e pesante, con una larga lunga sottana grigia a strisce
17

nere, ed una camicetta scura tutta lavorata che odorava di armadio chiuso coi biscotti
dimenticati dentro. Camminava male per la stanza. Riuscì ad arrivare al tavolinetto da
lavoro che le batteva il cuore così forte e le si serrava la gola. Si guardò in lontananza e di
sfuggita, nello specchio a muro: com’era alta e che occhi neri aveva! Nel cassetto del tavolino
c’era un pezzo di carta di drogheria. Qualcosa c’era scritto. Forse: “Che belle gambe signora,”
o “Stasera verrò da te, bacioni.” Lesse lungamente. Poi piano piano tornò a sedersi sulla sua
poltrona morbida a fiorami. Sul letto la coperta bianca coi pizzi era ingiallita e dava cattivo
odore soltanto a guardarla. Si soffocava. La signora Elvira non poteva tornare indietro
nel tempo.

43
fechado”, “caminhava mal”. No duro embate consigo mesma, mediado pelo
espelho, torna-se para ela demasiado duro olhar para sua imagem refletida —
fazer as contas com a vida e consigo mesma —, por isso se olha “de longe e de
relance”, colocando em foco as qualidades de seu corpo que suspendiam toda
aquela atmosfera ruinosa e “amarelada”. De fato, a altura e a cor dos olhos exilam
objetivamente tudo o que está ao seu redor e lhe dão a oportunidade, com o
gesto de abertura da gaveta, de reviver um passado no presente, permitindo-lhe
assim reavivar em si certas emoções. Antes da direta e esmagadora afirmação da
última frase, aquela da impossibilidade de voltar atrás no tempo, como que quase
numa última tentativa de sobrevivência, acontece algo de paradoxal: Elvira, alta
e com os belos olhos negros, abrindo a gaveta da mesinha, por um instante se dá
esta possibilidade em sua impossibilidade, quando lê em um pedaço de papel de
farmácia, aparentemente insignificante, alguma coisa que lhe parece dar vida. Lê
longamente, come se quisesse eternizar aquele instante. A realidade de Elvira, no
entanto, se mostra muito mais dura justamente por seus contrastes.
O tempo para Delfini não pode se apresentar de modo linear, seus efeitos
são intensos e corrosivos, por isso se mostra desfiado, esgarçado. Isto porque
Delfini não fala de um tempo puro ou absoluto, ele dirige sua atenção para o
próprio ter lugar do tempo, ou seja, para o fazer experiência do tempo. Gesto
possível somente se são admitidas a dispersão e fragmentação, assim como o
eu é sempre outro de si, lacerado, come no caso de Elvira. Relação complexa,
mas válida, até para refletir sobre o eu-Delfini que é sempre muitos outros de
si: “o eu-Delfini está sempre presente na escrita; mas esta identificação entre
eu narrante e autor é expediente teatral, que se ressignifica continuamente no
jogo de espelhos entre arte e vida”18 (Barbolini, 1989, p. 162).
O gesto de Delfini de penetrar na língua, em si mesmo e, em alguns
casos, em outros, é um misturar de papéis, fazer-se zombarias, rir de si mesmo,
operar armadilhas, obviamente com uma ponta de sarcasmo e ironia e muita
melancolia (balbucios, silêncios, solidões). Sua busca é a incessante busca por
uma língua que sempre escapa, como dois amantes19 que se dão um ao outro,
mas ao mesmo tempo subtraem-se um do outro:

l’io-Delfini è sempre presente nella scrittura; ma questa identificazione tra io narrante e


18

autore è espediente teatrale, che si risignifica continuamente nel gioco di specchi fra arte e
vita.
“No amor, há mistura sem assimilação nem laceração. Há corpo: um no outro e de um ao
19

outro, sem incorporação nem de-corporação. ‘Amor’ significa mistura de dois que zombam
de todas as armadilhas de um” (Nancy, 2013, p. 63). É interessante, neste ponto, ver a ligação
proposta por Giorgio Agamben entre a poesia amorosa do século III e a Basca. (Agamben,
2014).

44
Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos
dele. para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e
mesmo inaparente — tão inaparente que o seu nome o possa conter
inteiro. E depois, mesmo no meio do mal-estar, dia após dia não ser
mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único,
essa coisa, permanece para sempre exposta e murada. (Agamben, 1999,
p. 51).

Em sua escrita Delfini se desnuda, desnuda a língua, a língua da poesia,


escolhe tons antilíricos, sem dúvida mais baixos, clivados, para falar de um
desconforto e do esfacelamento que tem diante de si. Come destaca também
Pier Paolo Pasolini, Delfini é um poeta livre de sua época, “apesar das muitas
marcas que ela deixa explicitamente nele”20 (Pasolini, 1999, p. 2279), sabe
aproveitar a “amargura”, o “cansaço”, o “delírio fecundo” que tem dentro de
si. Uma escrita que nasce sob o signo de uma infinita tristeza e do profundo
desconforto, como se lê nas páginas de seu conto mais famoso, Il ricordo
della Basca: “[...] a mulher tornava-se uma fantasia de um sorriso e de uma
fisionomia para se colocar em um céu de um tempo passado ou de um tempo
por vir. E não era tudo: estas imagens deviam ser figuradas em ato de absoluta
familiaridade” (Delfini, 1963, p. 25).21 Além da possível história e desilusão
amorosa com Isabella/Isabel, a relação exposta nessas páginas, na verdade, é
a tortuosa e complexa relação com a língua. O encontro de Giacomo Disvetri
com a Basca é fulminante, marcado desde o momento em que ele ouve de
longe uma língua estranha, outra, para então conseguir identificar e entender
alguma coisa só depois de ouvir o termo entonces: “aquela única palavra que
reunia em si a poesia e a sabedoria da maior biblioteca do mundo?!” (Delfini,
1963, p. 95).22
As páginas de Delfini não falam do encontro em si, mas de uma
lembrança,23 da percepção de “aquela voz como algo de extremamente

malgrado le tante tracce che essa lascia su di lui esplicitamente.


20

[...] la donna diventava una fantasia di un sorriso e di una fisionomia da collocarsi in un cielo
21

di un tempo passato o di un tempo avvenire. E non era tutto: queste immagini dovevano
essere figurate in atto di assoluta famigliarità.
quella sola parola che racchiudeva in sé la poesia e la saggezza della più grande biblioteca del
22

mondo?!
Articular o passado, novamente com as palavras de Benjamin, “Significa apoderarmo-nos de
23

uma recordação (Erinnerung) quando ela surge como um clarão num momento de perigo”.
(Benjamin, 2016, p. 11).

45
familiar e abandonado. Da voz rostos iam-se formando pouco a pouco [...]”
(Delfini, 1963, p. 193).24 É de fato a voz da poesia, familiar e estranha ao
mesmo tempo, próxima e distante, inapreensível como a garota Basca, que fala
em uma língua outra. Um som estranho e alheio. Uma lembrança impossível
de um tempo que existiu e não existe mais: o que permanece são restos,
remendos recozidos e representações que não se realizarão, mas necessárias
à imaginação diante do “terror que temos de perder aquilo que forma a nossa
vida” — implacável é o andar do tempo, nas palavras do poeta-narrador.
Nesse sentido, o que está em jogo “não é a representação [(re)présentaction],
mas a vinda. A imagem vem, e a imagem é a faculdade de suscitar ou
acolher esta vinda”25 (Nancy, 2013, p. 35). Diante desta força arrebatadora, a
única possibilidade é ficar em silêncio, visto que se está absolutamente sem
palavras diante da língua (Agamben, 2014). É a lembrança, portanto, com
toda sua precariedade e fragilidade, que restitui a coisa esquecida, sendo o
esquecimento, por sua vez, sua própria potencialidade, desde o momento em
que se oferece a ocasião de alcançar não o vivido, mas algo que nunca existiu,
o “esquecimento como parte da consciência” (Agamben, 1999, p. 58).
A possibilidade de escrever nisso tudo se apresenta somente se plasmado
pelo sonho em uma língua outra, como sugere a conclusão do mesmo conto
de Delfini. Nessa perspectiva, o gesto-dançante de escrever é a tentativa de
agarrar ou manter esta lembrança, mesmo se, como se vê no final, este talvez
esteja condenado desde o início. Nas palavras de Alfredo Giuliani,

Escrever para “inventar” a vida e se defender da realidade; experimentar


a vida, vivê-la sem anteparos literários, para depois reencontrá-la na
distância-vizinhança da lembrança, porque só a lembrança, (que é o
espaço do esquecimento, a paleta preta) [o quadrado preto de William
Kentridge] flutua na dupla dimensão do vivido e do inventado. (Giuliani,
1984, p. 43)26

quella voce come qualcosa di estremamente famigliare e abbandonato. Dalla voce si venivano
24

via via formando delle sembianze [...].


non è la rappresentazione [(re)présentaction], ma la venuta. L’immagine viene, e l’immagine
25

è la facoltà di suscitare o accogliere questa venuta.


Scrivere per “inventare” la vita e difendersi dalla realtà; esperimentare la vita, viverla senza
26

schermi letterari, per poi ritrovarla nella distanza-vicinanza del ricordo, perché solo il
ricordo, (che è spazio della dimenticanza, la tavolozza nera) [il quadrato nero di Willian
Kentridge] fluttua nella duplice dimensione del vissuto e dell’inventato.

46
Ou nas palavras do autor: “Horrível história se apresentava à verdade
pela experiência da vida. Ou como mais bela a vida inventada que desejava me
inventar! Como mais doce ainda, porém, a experiência vivida, quando volta a
ser, vinte anos depois, uma vida inventada!” (Delfini, 1963, p. 21).27
Ainda levado pelo amor, a corrosiva postura e olhar de Delfini
conseguem captar os sinais do inumano e o trágico da realidade, do desumano,
que não é mais o avesso do humano, mas outra coisa mais letal. Talvez aqui
esteja uma importante chave de leitura que pode levar a indícios concernentes
à radical rejeição, por parte do autor de Modena, das pazes com o “bom gosto”,
esmagador e homologante, traço, este sim, pertencente ao desumano. A escrita
de Delfini traz à luz os fracassos, os restos, as ruínas do humano. Seu trabalho
com a língua, a experiência da palavra que também é uma experiência de
conhecimento, inverte algumas cartas na mesa. É exatamente nos resíduos,
nos mínimos ângulos, no grito e no silêncio, na suspensão da língua, nas
franjas desta mesma língua — somente perdendo-se nela e perdendo-a — que
ele encontra uma possibilidade de falar, de olhar através de uma minúscula
fenda e ver a força das cinzas depois do processo de carbonização. Ainda
no testemunho de “Una storia” se lê: “Há uma razão pela qual nunca farei
as pazes com o bom gosto. Porque até o desumano pode ter bom gosto. E eu
pretendo, com todas as forças morais que ainda me restam, romper qualquer
relação com o desumano”. (Delfini, 1963, p. 91).28 O termo desumano, como
bem destaca o poeta e narrador, não corresponde nem ao humano nem ao
inumano. Retomando mais uma vez suas palavras,

[...] quando mais nada corresponde à verdade do passado ou do porvir, e


o presente vive sem relações e sem confrontos [...]. Quando o desumano
impera, não há ser humano que possa viver humanamente [...]. Porque
no período desumano, o inumano encontra saúde e vive muitíssimos
anos; enquanto o humano pode no máximo sobreviver, para logo
encontrar a morte: de modo que no espaço de duas ou três gerações o
mundo será exclusivamente de inumanos. (Delfini, 1963, p. 91)29

Orribile storia si presentava alla verità per l’esperienza della vita. O come più bella la vita
27

inventata che volevo inventarmi! Come più dolce ancora, però, l’esperienza vissuta, quando
torna a essere, vent’anni dopo, una vita inventata!
C’è una ragione per cui non farò mai pace col buon gusto. Perché anche il disumano può avere
28

del buon gusto. E io intendo, con tutte le forze morali che ancora mi rimangono, di rompere
ogni rapporto col disumano.
[...] quando più niente corrisponde alla verità del passato o dell’avvenire, e il presente vive
29

senza rapporti e senza confronti [...]. Quando il disumano impera, non c’è essere umano

47
Sabe-se que a relação entre vivido e a matéria poética em Delfini é cheia
de tensões, é o próprio autor que fala de uma vida que deveria e poderia viver,
mas que nunca pôde viver (Delfini, 1963, p. 82), “imagem de um passado
inexistente”30 (Delfini, 1963, p. 74). Um gesto que só pode ser incompleto,
marcado, por sua vez, pela “indeterminação de vivido e poetado” (Agamben,
1995, p. XV). Nesse sentido, vislumbra-se nessa escrita um exercício poético-
crítico, em que o tempo dos escombros — também humanos — não se limita
só aos sinais concretos das ruínas como testemunhos de um passado, mas
também se abre para a suspensão de tempos, aqueles já passados, aqueles que
não existem mais e aqueles do “agora”; e basta um olhar, um encontro, devido
a uma exposição e a uma disposição, para disparar uma tensão recíproca,
uma partilha e um compartilhamento. A realidade que se revela nas coisas
pequenas, no detalhe quase imperceptível, que uma vez acontecido, mediante
os sentidos, pode fazer irromper pensamentos e sensações. Uma escrita que
não pretende narrar uma história e cuja potencialidade vem justamente deste
mesmo espaço do vazio, da aporia, que escreve sem ter “nada para dizer ou
para contar”.31 Ou, como se lê em um verso dele: “é meu dever escrever a má
poesia”.32 Junto à eventualidade há a inapreensão, traço que se apresenta desde
os primeiros contos e se reafirma em outros momentos:

porque havendo na vida milhares e milhares de coisas importantes


já conhecidas (sem contar as desconhecidas) eu não admitia perder
tempo continuando uma experiência já certa, com o perigo de perder
a eventualidade de uma coisa que de outra forma não teria podido
conhecer de jeito nenhum. (Delfini, 1963, p. 12)33

E é aqui que se pode pensar na linguagem, espaço por excelência do


se expor. E se pensamos na literatura, ela é um espaço de entendimento, de

che possa vivere umanamente [...]. Perché nel periodo disumano, l’inumano trova salute e
vive lunghissimi anni; mentre l’umano può al massimo vivacchiare, per trovare ben presto
la morte: in modo che nel giro di due o tre generazioni il mondo saranno esclusivamente di
inumani.
immagine di un passato inesistente.
30

nulla da dire o da raccontare.


31

è mio dovere scrivere la mala poesia.


32

perché essendovi nella vita migliaia e migliaia di cose più importanti già conosciute (senza
33

contare quelle sconosciute) non ammettevo di perdere tempo a continuare un’esperienza


ormai scontata, col pericolo di perdere l’evenienza di una cosa che altrimenti avrei potuto
non conoscere affatto.

48
presenças, de um confrontar-se, do perder-se e do se encontrar, em resumo, do
nascimento e da morte. O que interessa é também o jogo de se entrelaçar, de
trocar até os papéis, talvez na tentativa de recuperar uma identidade já perdida
e impossível de agarrar ou de atestar esta mesma perda e, por consequência,
o vazio deixado. Ruínas, portanto, de um “eu”, cuja possibilidade só existe se
compartilhada com os outros; ruínas também de uma linguagem, que só se
desarticulando, esfarelando-se é capaz de “falar” sem “cantar”.
Estas considerações não se afastam de uma das possíveis leituras
transversais da produção poética de Delfini, mesmo se neste caso
dessacralizadora. Em Poesie della fine del mondo [Poesias do fim do mundo]
(1961), a ideia da poesia ligada a certa concepção de vida, é virada de ponta
cabeça exatamente porque, como diz o título de um dos poemas, datado de
1959, “L’unica via possibile é la morte” [A única coisa possível é a morte]:
“A única via possível é a morte. / A realidade de um diário imaginário / é
a segunda estrada: é o abecedário” (Delfini, 2013, p. 116).34 O convite de
Delfini, declarado em outras composições, aperfeiçoado pela busca de si
mesmo, é o de matar, de destruir,35 gesto que diz respeito à própria voz: “É
a minha voz que morre”36 (Delfini, 2013, p. 101). Voz que se torna grito.
Morte, destruição, assassinato, “nenhuma esperança: delineia-se, de fato,
todo um campo semântico indicado pelo termo “fim” presente no título do
livro. Fim que poderia ser um início: “o sentido ‘consiste’ na ausência de
origem e fim”37 (Nancy, 1993, p. 43). Junte-se a isto a desconfiança em certa
poesia, em certa imagem de escrita e, por consequência, em certa imagem
de poeta, já sentida por Delfini nos contos de 1938: [...] o baixo para o qual
deslizo, é um elevadíssimo altiplano.” (Delfini, 1963, p. 8).38 O escrever, de
fato, será por fim visto como um modo de tocar, de envolver, sem objetivos
preestabelecidos:

Ainda não havia me resignado (e isso é natural) a renunciar a todas as


outras carreiras sonhadas quando jovem. Se tivesse renunciado a elas
com o pensamento, e sobretudo com sonho, não teria sido mais um

L’unica via possibile é la morte. / La realtà di un diario immaginario / é la seconda strada: é


34

il sillabario.
A este propósito ver os poemas “È inutile distruggere gli anni” [É inútil destruir os anos] e
35

“Quel che dichiaro è l’invito” [O que declaro é o convite]. (Delfini, 2013, p. 110-111).
È la mia voce che muore.
36

il senso “consiste” nell’assenza di origine e fine.


37

[...] il basso verso il quale scivolo, non é che un elevatissimo altipiano.


38

49
escritor, mas simplesmente um pseudo-literato ignorante. Para mim,
ser escritor significava abraçar, sem qualquer interesse premeditado,
todas as possibilidades da vida, além da possibilidade de inventar outras
possibilidades. (Delfini, 1963, p. 36)39

A escrita de Delfini é, portanto, paradoxal, e se concretiza, como se


tentou demonstrar, em um frágil equilíbrio, abrindo fissuras e problemáticas
que a marcam e a inserem em uma certa tendência do século XX.
Daqui talvez outros indícios para entender sua “má poesia”: palavras
como indícios de vida e ao mesmo tempo vida que toma forma das palavras.
Experiência da palavra e da linguagem, vida entendida como fábula, para
retomar um texto de Foucault, que teceu ainda mais os fios da palavra. Nesse
sentido, como bem nota Giorgio Agamben, os eventos biográficos de Delfini
não conseguem exaurir o vivido: “vida é o que se gera na palavra” (Agamben,
2014).
A consciência, se bem que amarga, é de não poder apreender nem o
tempo nem as coisas. O tempo não se detém, mesmo voltando e sendo verdade
num passado mutável, já que no instante em que volta, foge: “Você sabe querido
velho que nunca / nunca existiu. / No entanto existe”.40 (Nancy, 1993, p. 43) A
aporia destes versos perpassa a escrita de Delfini, já que “o sentido se dá, se
doa, se abandona”(Nancy, 1993, p. 43).41
É exatamente no momento do boom econômico (para alguns, indício
de crescimento e conquista, para outros, como Pasolini, de “mutação
antropológica”) que Delfini, por sua vez, reafirma certo cunho negativo.
Em sintonia com o próprio Pasolini, mas ainda antes dele, Delfini consegue
argutamente captar, com suas penetrantes lentes, as profundas mutações
do chamado bem-estar, fazendo com que seu pequeno mundo, um tanto
provinciano, se torne um microcosmo de toda a península:

Voltava a aparecer, em 1935, o caráter vulgar, usurário e delinquente de


grande parte daqueles italianos da cidade que, falsos enamorados da
vida, e conscientes de sua pobreza sem América, pretendem de alguma

Non mi ero rassegnato ancora (e ciò è naturale) a rinunciare a tutte le altre carriere sognate
39

da giovane. Se vi avessi rinunciato col pensiero, e soprattutto con sogno, non sarei più stato
uno scrittore, ma semplicemente uno pseudo-letterato ignorante. Per me fare lo scrittore
significava abbracciare, senza alcun interesse premeditato, tutte le possibilità della vita, oltre
alla possibilità di inventare altre possibilità.
tu sai caro vecchio che mai / mai non c’é stato. / Eppure c’é.
40

il senso si dà, si dona, si abbandona.


41

50
forma fazer a vida e o futuro com o banheiro, o automóvel, as putas e as
jóias. (Delfini, 1963, p. 73).42

Em resumo, como reafirmado várias vezes por Delfini, narrar uma


história, extrair dela o real, nunca foi uma tarefa nada fácil e certa:
Ainda não acredito
Ainda não acredito, é uma sombra
A realidade que arrebatou a família o nome a lembrança.
A realidade não existe — não existe o burguês
passou um tempo mais longo do que um mês.
Eu não sou um poeta — não quero ficar sozinho.
E a realidade — a velada mentirosa realidade — está sozinha comigo.
Roma, 11 de novembro de 1959 (Delfini, 2013, p. 177)43

Tradução de Francisco Degani

Referência
AGAMBEN, Giorgio. “Introduzione” [Introdução]. In: Poesia della fine del mondo
e Poesie escluse [Poemas do fim do mundo e Poemas excluídos]. Daniele Garbiglia
(Org.). Macerata: Quodlibet, 1995.
AGAMBEN, Giorgio. A ideia da prosa. Trad. João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999.
AGAMBEN, Giorgio. Categorias italianas. Estudos de poética e literatura.
Florianópolis: Editotra da UFSC, 2014.
Antonio Delfini, Autore ignoto presenta, racconti scelti e introdotti da Gianni Celati,
Torino, Einaudi, 2008, p. VI.
BARBOLINI, Roberto. Il riso di Melmoth: metamorfosi dell’ immaginario dal sublime
a Pinocchio. [O riso de Melmoth: metamorfoses do imaginário dao sublime a
Pinocchio]. Milano: Jaca Book, 1989.

Tornava fuori, nel 1935, il carattere sozzo, strozzinesco e delinquenziale di gran parte di
42

quegli italiani cittadini che, falsi innamorati della vita, e consci della loro povertà senza
America, intendono comechessia farsi la vita e l’avvenire col bagno, l’automobile, le troie e i
gioielli.
Ancora non ci credo // Ancora non ci credo, é un’ombra / La realtà che travolse la famiglia
43

il nome il ricordo. / La realtà non esiste — non esiste il borghese / é passato un tempo più
lungo di un mese. / Io non sono un poeta — non voglio star solo. / E la realtà — la velata
menzognera realtà — é sola con me... // Roma, 11 novembre 1959.

51
BENJAMIN, Walter. O anjo do passado. Trad. João Barrento. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2016.
DELFINI, Antonio. I racconti [Os contos]. Milano: Garzanti, 1963.
DELFINI, Antonio. Il Ricordo della Basca. [A recordação da Basca]. Firenze: Parenti,
1938.
DELFINI, Antonio. Il ricordo della Basca. Dieci racconti e una storia [A recordação da
Basca. Dez contos e uma história]. Pisa: Nistri-Lischi, 1956.
DELFINI, Antonio. Poesie della fine del mondo, del prima e del dopo [Poemas do
fim do mundo, do antes e do depois]. Irene Babboni (Org.). Prefácio Marcello Fois.
Torino: Einaudi, 2013.
GIULIAN, Alfredo. Autunno del Novecento: cronache di letteratura [Outono do
século XX: crônicas de literartura]. Milano: Feltrinelli, 1984.
NANCY, Jean-Luc Nancy. La partizione delle voci [A partição das vozes]. Alberto
Folin (Org.). Padova: Il poligrafo, 1993.
NANCY, Jean-Luc, Prendere la parola [Tomar a palavra]. trad. Italiana Roberto
Borghesi e Costanza Tabacco. Posfácio Flavio Ermini. Bergamo: Moretti & Vitali
Editori, 2013.
PASOLINI, Pier P. “Una lettera a Guttuso su Delfini e il Premio Viareggio” [Uma
carta a Guttuso sobre Delfini e o Prêmio Viareggio]. In: Saggi sulla letteratura e
sull’arte [Ensaios sobre literatura e sobre arte]. Milano: Mondadori, 1999.

52
No princípio era a ordem

Erdmut Wizisla

Que a ordem é algo altamente subjetivo, qualquer criança sabe. Onde


um se situa com uma certeza sonâmbula, o outro vê apenas o caos. O excesso
de ordem pode parecer pedante. Uma biblioteca, na qual os livros estão
colocados em três fileiras, uma atrás da outra, pode parecer de difícil manejo;
ela apenas é desordenada, se a colocação dos livros não tem base em um sistema
reconhecível. Mas o que quer dizer “reconhecível”? Não seriam os critérios de
sistematização igualmente subjetivos?
É conhecida a “certa enciclopédia chinesa”, criada por Jorge Luís Borges
e citada por Michel Foucault em As palavras e as coisas, que deveria contar
um esquema de ordenação para todos os animais da Terra: “a) pertencentes ao
imperador, b) animais embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias,
f) fabulosos, g) cachorros em liberdade, h) incluídos na presente classificação,
i) os que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel
finíssimo de pêlo de camelo, l) et cetera, m) os que acabaram de quebrar a
bilha, n) os que de longe parecem moscas.” (Borges apud Foucault, 1999, p. IX)
Igualmente aleatórios poderiam parecer os grupos de classificação
do arquivo da Academia de Artes de Berlim. Como são diferenciados os
“acervos do espólio” dos “acervos para o arquivo”? Qual é a diferença entre as
“notas de trabalho” e o “acervo de materiais”? Quando se fala de documentos
“biográficos” e quando de documentos “pessoais”? E “trabalhos de outros
autores”?
Quando um arquivo é organizado, acima de tudo está a sistematização.
Antes que possa ser registrado, o material entregue ao arquivo deve
primeiramente encontrar uma estrutura. Fala-se de “pré-seleção”. Durante
o processo de registro, o material organizado é documentado e atribuído a
um grupo classificatório. No processo de vistoria e descrição, a atribuição
encontrada é comprovada ou corrigida, especificada ou deixada em aberto.
A classificação é como um andaime que, em casos concretos, deve ser erguido
e, durante o processo de registro, deve ser modificado e ampliado.
Para a ordenação são necessários coragem e tato. No fundo, temos a
ver com uma situação que basicamente não pode ser destrinchada. Processos
criativos não se deixam classificar. Isso também vale, com uma certa limitação,
para os testemunhos desse processo: as pistas do trabalho artístico. A arte é
por excelência aquilo que não pode ser rubricado, mas quando não se organiza
aquilo que dela resta, ela se torna inacessível. Não há ordenação que seja justa
com o trabalho criativo, mas não há alternativas à ordenação. A mão que
ordena, as figuras intervenientes das arquivistas e dos arquivistas, são o pré-
requisito para que a obra, ou a parte dela que foi entregue ao arquivo, fique
à mão. Para que sua formação seja pesquisada e compreendida. Para que, na
posteridade, seja estudada, compreendida e passe por uma nova recepção.
Estaria se negligenciando o âmago da arte, caso se pressupusesse que ela se
encaixe em um esquema. Uma rejeição da ordenação, por outro lado, seria
uma declaração de capitulação. Entre esses dois polos se movimenta a ação das
pessoas responsáveis pelos arquivos e pelos espólios.
Que elas trabalham aquilo que lhes é confiado no contexto do seu tempo,
com o conhecimento de outros espólios artísticos, é sabido por elas. Elas refletem
as mudanças. O que hoje é um componente imprescindível da classificação
de um espólio literário pode em pouco tempo tornar-se uma posição vaga.
Aquilo no que hoje em dia ninguém pensa talvez venha a se tornar corrente
em poucos anos. Uma constelação especial é a recepção do espólio, porque a
ordenação que foi feita pela pessoa de quem se está construindo um acervo
tem um efeito imediato. Ela deve ser reconhecida e questionada, ela pode ser
descartada ou assumida. No caso do escritor Volker Braun, cujo espólio foi
adquirido pelo arquivo literário da Academia no ano de 2015, as arquivistas
encontraram uma prática de arquivamento altamente refletida, polida por
décadas. Braun havia construído complexos para suas peças, trabalhos
em prosa, volumes de poesias e ensaios. Neles se encontravam reunidos os
testemunhos completos do surgimento, encenação, publicação e recepção de
uma obra: trabalhos iniciais, fontes, ilustrações, notas, versões, impressões,
caderno de programação, fotos da encenação, resenhas, correspondências com
editoras, diretores, teatros e órgãos de censura, assim como outras anotações
pessoais. O autor enriquecia continuamente esses convolutos extremamente
extensos; às vezes as complementações eram possíveis décadas depois do
início do trabalho, por ocasião da nova encenação de uma peça ou quando
artigos ou ensaios científicos sobre um trabalho antigo apareciam.

54
Os complexos construídos por Volker Braun ultrapassavam os
princípios do arquivamento. O comum teria sido dissolvê-los e separar
materiais de arquivo específicos e ordená-los de acordo com seus grupos
de classificação formais: as obras, os materiais de trabalho, documentos
impressos etc. Contudo, aqui se ameaçaria não apenas a perda de informações,
mas também a própria ação sistemática do artista. Assim, os princípios de
registro foram interpretados como parte do processo criativo. Os complexos
foram preservados e foram ordenados em outros grupos de classificação pré-
estabelecidos. Onde a manutenção dos complexos deixou lacunas nos grupos
de classificação comuns, referências cruzadas eletrônicas do arquivo de dados
ajudaram.
Quem já presenciou como Volker Braun demonstrava dificuldades
em espremer um novo documento em uma pasta suspensa utilizada por
ele antigamente, registrará com alívio a decisão de manter a estrutura de
arquivamento do autor. Ela espelha não apenas o pensamento ordenador de
um autor, mas conduz o pensamento para a obra individual e as condições
da possibilidade de seu surgimento e recepção. Preferencialmente, o arquivo
deveria ter acolhido também o armário do arquivo.
Um precisa do caos e se deixa inspirar por coisas entulhadas e
desaparecidas e pela possibilidade de reencontrar algo esquecido. O outro não
consegue ter uma única ideia sem ordem externa. Nem sempre as abordagens
de ordenação são reconhecíveis. Classificações são propostas. Aqueles que
as utilizam são aconselhados a não as encarar como imutáveis, mas tratá-las
como suporte para tornar, através de alterações, o específico de um material
recebido em algo reconhecível.
O arquivo é a articulação entre a ordem e a fantasia, entre o registro e a
criação. Quem consegue suportar essa tensão nunca vai considerar grupos de
classificação bizarros, mas sim transmissores de conteúdo, informação, beleza
e contextualização interna. O trabalho de arquivistas não é criativo no sentido
de um processo de criação de arte, mas ele dá forma e é imprescindível. Ele
assegura o âmago do trabalho artístico, cria realidade e possibilita o futuro.

Referências
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
Trad.: Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

55
Mimetismo — por uma crítica agenciadora

Maria Aparecida Barbosa

da abertura de um espaço
onde o sujeito que escreve não pára de desaparecer.
Michel Foucault

Introdução
Roger Caillois escreveu em 1938 o livro O Mito e o homem em que sugere que,
com as devidas adaptações, as leis e ações biológicas que regem comportamentos
e funções orgânicas de alguns seres vegetais e animais possuem analogias
com características do organismo humano. Essas leis não condicionam os
comportamentos humanos, senão sua representação. Similaridades biológicas
naturais entre humanos com vegetais e animais — que vão da Giftmädchen1 à
silhueta antropomórfica do louva-deus etc. — permitem condicionamentos
da imaginação do artista, que intervêm nas imagens do pensamento. Essas
imagens não atuam como vínculos determinantes dos detalhes concretos,
mas como orientações e tendências “virtualidades diretivas” da fabulação dos
mitos: “preformam tão somente as linhas de força que cristalizarão aqueles em
temas e em motivos, recorrendo até à saciedade ao particular e ao anedótico,
empregando as estruturas impostas pelas noções históricas e à organização
social” (Caillois, 19, p. 103). Essas tessituras delicadas da manifestação humana

1
Cautília, estadista indiano do século II/IV, fala da estratégia militar que consistia em injetar
paulatinamente veneno em moças que eram entregues a inimigos, um procedimento análogo
ao das bombas biológicas. (Kautilya. 1915; Hertz, 1905).
permitem pensar na composição de poesia como um procedimento que opera
numa instância comum entre o sujeito e o seu mundo.
A dificuldade que a filosofia, a ontologia especificamente, encontra
em distinguir pessoas/coisas/corpos gera uma ampla discussão atualmente
desenvolvida no domínio da Ética, do Direito, da Biopolítica, no que concerne
às intermitências Ente/Ni-ente (Esposito, 2016).
Motiva este artigo a eventualidade do mimetismo do sujeito com os
objetos de que trata; o evento do mimetismo do sujeito com seu entorno numa
atitude agenciadora.
A poesia, bem como a respectiva leitura crítica da poesia, se situa e se
move igualmente nessa intrincada filigrana das ambiguidades, dos sentidos
dúbios dos espaços indecidíveis que a literatura engendra. Os estudos de
Carl Einstein2 originalmente publicados em francês na Revista ilustrada
Documents — Doctrines Archéologie Beaux-arts Ethnographie (1929-1930),3 “O
Rouxinol”, “André Masson, estudo etnológico” e “Notas sobre o Cubismo” é
que conduzem esta reflexão.
O primeiro ensaio consiste numa denúncia contra os lugares comuns
metafóricos/simbólicos/alegóricos: Carl Einstein não distingue a taxonomia
dessas três figuras, deplora-as conjuntamente quanto ao uso mecânico de
motivos. A palavra rouxinol, por exemplo, poderia ser substituída por rosa,
por seios, uma ou outra serviria para ornamentar uma ideia vaga petrificada na
poesia. “As palavras são em geral petrificações que provocam em nós reações
mecânicas” (Einstein, 2016, p. 27).4 Aos animais sem defesa, plantas e árvores
atribui-se valores morais perfeitos, dos quais é o sujeito, no espelhamento, que
se gaba. Einstein denuncia a esquematização do mundo numa lírica ou escrita
que esconde a feiura do próprio homem: “é assim que a alma humana é feita
de estrelas, rosas, crepúsculo etc., vale dizer que se esquematiza o mundo sem
defesa e que se projeta seu eu idealizado” (Einstein, 2016, p. 28). Esses motivos

A Arte do Século 20 1. As Premissas constituem o prefácio, uma sorte de rotunda para as


2

questões fundamentais que orientam o polêmico livro A Arte do Século 20. O ambicioso
projeto de Carl Einstein (1885-1940) sobre a expressão poética modernista em forma de
pintura e escultura, espraiando-se à poesia escrita, referente às três primeiras décadas do
século 20, teve sua primeira edição em 1926 pela Propyläen de Berlim, à qual se seguiram
reedições revisadas e ampliadas em 1928 e 1931. Com base na edição de 1931, a Editora
Cultura e Barbárie publicou em 2016 essa introdução à crítica de Carl Einstein.
De cujo comitê de redação ele participava.
3

Os dadaístas rompem com as correspondências semânticas e escrevem poemas com


4

subversões paranomásticas, adjetivo referente à figura retórica do emprego de palavras com


significados diferentes que se escrevem e se pronunciam de forma igual ou assemelhada.

58
ornamentais seriam meios de se “evitar a reflexão e as perturbações psíquicas”
(Einstein, 2016, p. 28).
Nossa formação religiosa e positivista dificulta a apreciação do
imaginativo como dominante. Somos tímidos para o imaginativo, pois ele
não consolida o estável, ele move, agita, altera as hierarquias de valores. As
forças alucinatórias foram outrora a expressão de um dogmatismo religioso
(pensemos nos milagres), político, por conseguinte. Um exemplo dessas
corroborações recíprocas do divino e do político é o crucifixo dependurado
em paredes das instituições públicas: a figura divina postada num patamar
elevado confere ao político institucional o caráter igualmente divino.
O modernismo formula através da inquietação dos artistas a grande
questão nas artes plásticas, concernente aos motivos: o ceticismo quanto à
identidade dos objetos.
Grosso modo, é possível distinguir na relação do sujeito/artista com o
objeto estético dentro do modernismo aspectos diferenciados. Perfaço uma
digressão para considerar alguns desses aspectos. A “sociedade utilitária
advinda da Revolução Industrial [com] a ascensão da classe média [...]
parecia não deixar mais lugar para o poeta” (Wilson, 2004, p. 262). Marx
chama o encantamento com as mercadorias de fetiche. Os sinais de fastio,
de “decadentismo”, expressam-se nos espaços interiores diegéticos cheios
de artefatos, nas descrições de atmosferas. O poeta Stefan George compôs
o poema “Meu jardim não precisa de luz ou calor” (Mein Garden bedarf
kein Licht und keine Wärme), em que o jardim é criado artificialmente na
fantasia, as plantas e os perfumes são desprovidas de vitalidade. Mas outra
possibilidade dentro dessa relação é a recuperação da vida em comunidade.
Grupos de artistas optam por pintar ao ar livre, por viver em comunidade
como os expressionistas de Dresden: Die Brücke. Os artistas da Künstlerkolonie
Worpswede, fundada em 1889 no vilarejo a 18 km de Bremen, se afastam dos
salões e das escolas formais e optam pela vida em contato com a natureza.
O estudo Worpswede sobre a vida alternativa e a convivência com os artistas
é um fator de relevo para as pesquisas que Rainer Maria Rilke desenvolve
para a Dinggedicht (poesia-coisa) tanto quanto o foi o estudo posterior das
esculturas Rodin, em Paris. Trata-se de uma mudança de viés para uma ordem
antropológica.

59
de viés para uma ordem antropológica.

MASSON, André. l’ Équarrisseur (1928) — Imagem disponível dia 19/03/2019


André. l’Équarrisseur (1928) – Imagem disponível dia 19/03/2019 n
no site : <http://pt.wahooart.com/@@/6WHJWV-Andr%C3%A9-
Aim%C3%A9-Ren%C3%A9-Masson-Os-knackers>.
ooart.com/@@/6WHJWV-Andr%C3%A9-Aim%C3%A9-Ren%C3
Masson-Os-knackers

MASSSON, André.MASSSON,
[da sérieAndré. [da série “Érotique”,
“Érotique”, lithographie]
lithographie] —
– Imagem disponível dia
Imagem disponível dia 19/03/2019 no site:
19/03/2019 no site
<https://www.expertisez.com/magazine/andre-masson-et-l-erotisme>.
https://www.expertisez.com/magazine/andre-masson-et-l-erotisme

60
MASSSON, André. [da série “Érotique”, lithographie] – Imagem disponível dia
19/03/2019 no site
https://www.expertisez.com/magazine/andre-masson-et-l-erotisme

MASSON, André. “Benjamin Peret”, 1925. Imagem disponível dia 19/03/2019


ASSON, André. “Benjamin Peret”, 1925. Imagem disponível dia 19/03/2019 no
no site: <http://hyperallergic.com/wp-content/uploads/2016/07/masson-
http://hyperallergic.com/wp-content/uploads/2016/07/masson-Benjamin-Peret-
Benjamin-Peret-Automatic-Drawing.jpg>.

Automatic-Drawing.jpg
O segundo ensaio de Einstein, “André Masson, estudo etnológico”, tece
primeiramente uma extensa crítica genérica antes de introduzir a pintura de
O segundo ensaio(1896-1987).
André Masson de Einstein,
Inicia com“André Masson,
a comparação estudo etnológico”,
entre as experimentações
gramaticais paragone que têm lugar no início dos anos 1930, e zomba dos
eiramente escritores
uma extensa críticaatrás
que “capengam” genérica antes
dos pintores. deum
Dando introduzir a pintura
basta à preguiça da de A
criação, diz que importa valorizar blocos de “a-causalidade” nessa realidade
son (1896-1987). Inicia com
através de alucinações a comparação
inusitadas, entre
a fim de cindir as experimentações
as hierarquias da realidade. gramat
“Os exemplos de iluminação divina não são imitados no surrealismo, as visões
gone que têm lugar
de hoje no iníciopelo
se caracterizam dosfato
anos
que1930, e zomba
todo dado históricodos escritores
está fora que “capeng
de questão”
(Einstein, 2016, p. 21).
dos pintores. Dando um basta
Essa negação à preguiça
da história da sagrado
e do caráter criação, diz que
coincide comimporta valorizar bl
as rupturas
de paradigmas propostas por Benjamin no ensaio “O Surrealismo — o último
a-causalidade” nessadarealidade
instantâneo inteligênciaatravés deRimbaud,
europeia”: alucinações inusitadas,
Lautréamont, a fim de cind
Apollinaire
teriam engendrado uma revolta contra o catolicismo. “A superação verdadeira
arquias da realidade. “Os exemplos de iluminação divina não são imitados
61
e criativa da iluminação religiosa não se alcança de modo algum pelas drogas.
Ela se dá por meio de uma iluminação profana, uma inspiração materialista
e antropológica, para a qual o haxixe, o ópio e o que mais fosse serviriam de
propedêutica” (Benjamin, 1986, p. 107).
Embora esse ensaio de Benjamin não superestime o surrealismo, nem
mesmo Paysan de Paris, de Aragon, e Nadja, de Breton, teriam atingido o
potencial pleno dessa iluminação, para ele, esses romances “fazem detonar as
energias da ‘atmosfera’ que estão latentes nessas coisas”. Eles trocam a visão
histórica pela visão política, por exemplo com o emprego da cidade de Paris em
analogias inauditas sob uma ótica dialética: “o cotidiano como impenetrável, e
o impenetrável como cotidiano” (Benjamin, 1986, p. 109).
Einstein indica a correlação que quanto mais a natureza está impregnada
de causalidade menos é utilizável do ponto de vista psicológico. Consciência e
causalidade ainda são apreciadas no surrealismo, mas elas dificultam processos
espontâneos. A alucinação e a maneira livre de se inteirar com os objetos,
essas, sim, seriam as brechas para a liberdade de expressão que de fato levam à
transformação da realidade.
Constata-se uma aproximação entre a alucinação e a atividade sexual
(Nietzsche idealizou o instinto). Mas é preciso se afastar de concepções
subjetivas, dos lugares-comuns. O que se busca, na verdade, é o retorno à
criação mitológica, a recuperação do arcaísmo psicológico (mas não o imitativo
das formas). O êxtase, a escrita automática e outros meios animam camadas
recônditas, inconscientes, como a infantil, por exemplo.
A consciência racional é reprimida e “sob o signo da revolta” passa-
se à alucinação. A escrita espontânea, o psicograma, facilita o procedimento
extático. Os objetos podem ser vistos com reserva e à distância, ou valorizados
como sintomas, partes do observador.5

Adorno revê o surrealismo, que tanto nas colagens quanto na escrita automática teria conseguido
5

a linguagem livre das intromissões da consciência. É cético, todavia, quanto à espontaneidade


dessas associações, que tampouco o seriam nos processos analíticos de associação. Para ele
seria uma proposta por demais difícil e trabalhosa, no ensaio ele acentua, isso sim, o escândalo
da autoextinção e da prevalência dos objetos em montagens que chama de naturezas-mortas.
Insiste em dizer que as imagens recuperadas da infância são fetiches da mercadoria: “as imagens
infantis da modernidade são a quintessência daquilo que a Neue Sachlichkeit cobria como
um tabu, porque relembrava sua própria essência reificada e sua incapacidade de lidar com
o fato de que sua racionalidade permanecia irracional. O surrealismo recolhe o que a “Nova
Objetividade” recusa aos homens. (Adorno, 2003, p. 135-140)

62
O ápice do breve estudo de Carl Einstein é quando ele se detém na identifi
ica em que o homem e os objetivos passam a formar uma unidade. Dentro d
osições que deixam de lado as classificações taxonômicas e biológicas, que suc
O ápice do breve estudo de Carl Einstein é quando ele se detém na
xtase, o “eu” desaparece
identificação emquesintonia
totêmica em o homem com o objeto.
e os objetivos passamMax Ernst
a formar uma fez oper
unidade. Dentro dessas composições que deixam de lado as classificações
hantes na taxonômicas
pintura, unindo homens,
e biológicas, plantaseme êxtase,
que sucedem pássaros:
o “eu”nadesaparece
pintura em“As Tentaçõ
sintonia com o objeto. Max Ernst fez operações semelhantes na pintura, unindo
Antônio”,homens,
nas gravuras do livronader
plantas e pássaros: Vogel
pintura bei Georges
“As Tentações de SantoBraque
Antônio”,und
nas Max Ern
gravuras do livro der Vogel bei Georges Braque und Max Ernst.6

ERNST, Max. Die Versuchung des hl. Antonius, 1945. Tela, 109 x 129 cm; Lehmbruck
ST, Max. Die Versuchung des Imagem
Museum, Duisburg. hl. Antonius,
disponível no1945.
dia 18 de Tela,
março de109
2018 x 129 cm; Lehmb
Museum, Duisburg. Imagem disponível no dia 18 de março de 2018 no site
no site: <http://kultur-online.net/node/2609>.

http://kultur-online.net/node/2609
A exogamia faz referência a cruzamentos de espécies diferentes. Nas
civilizações primitivas os indivíduos almejavam a expansão de suas identidades
através das transmutações extáticas. O livro que Carl Einstein publicou em
A exogamia
1915, faz referência
Negerplastik a cruzamentos
— Escultura de espécies
negra, apresenta diferentes.
ilustrações e estudos deNas civiliz
antigos trajes-máscaras africanas, que eram objetos para estimular o eclipse
tivas os indivíduos almejavam a expansão de suas identidades através
mutações extáticas.
Na pintura deOMax
6 livro que
Ernst as Carlrochosas
formações Einstein publicou
circundantes 1915, Negerpla
emtentaculares
são extensões
acopladas com asas quirópteras ou ornitópodes. Em muitas obras o artista recorria às aves
tura negra, apresenta
como mescladasilustrações e estudos
a figuras humanas, de antigos
e com essa exogamia conferiatrajes-máscaras
às figuras resultantes africana
movimento, flexibilidade, ao mesmo tempo imbuía um aspecto de furor e pavor às situações
do quadro. As compleições antropomórficas e ornitológicas radiculares estão fincadas com
objetos para estimular o eclipse do sujeito visionário e a entrada em seu cor
garras retorcidas. Com seu quadro surreal das lancinantes enfermidades psíquicas que
grassavam no final da Segunda Guerra, Max Ernst questionou os motivos da arte europeia
7
nimal, uma pedra, uma planta. Esses movimentos de mimetismo são bem dist
no auge do colapso de seus valores e princípios.

m lembrar, da antropofagia cultural. 63

Ao estudar a arte de André Masson, adiante, Einstein faz ver que quan
mismo do training extático é excessivo, o traçado do desenho se resume às fo
do sujeito visionário e a entrada em seu corpo de um animal, uma pedra, uma
planta.7 Esses movimentos de mimetismo são bem distintos, é bom lembrar,
da antropofagia cultural.
Ao estudar a arte de André Masson, adiante, Einstein faz ver que quando
o dinamismo do training extático é excessivo, o traçado do desenho se resume
às formas de linhas, em decorrência da velocidade alucinatória. “Às vezes a
velocidade das alucinações é tal que se utilizam somente linhas. Em outros
quadros, as formas encontram uma ordem tectônica, para que o pintor com
essa defesa evite ser destruído pelo dinamismo de suas alucinações” (Einstein,
2016, p. 23). Há de se considerar essa exacerbação do dinamismo para efeito
de análise dos poemas mais enfáticos do modernismo, em que as rupturas
no eixo paradigmático resultam em série paratática.8 É essa identificação que
funde em training extático o homem com plantas, estrelas, pedras, e em que os
limites dos objetos esmaecem, que Einstein enaltece em Masson.

“Notas sobre o cubismo”


O terceiro ensaio coloca indagações acerca dos métodos da crítica
artística. A história da arte e a ciência da arte não passariam de calendário
com generalizações sem contorno que passa ao largo das observações técnicas
e formais. Essa é a questão de que se ocupa Benjamin em História da literatura
e a ciência da literatura. A autonomia da Literaturwissenschaft troca a ênfase
histórica e se aproxima do princípio das ciências naturais, de “compilar e
guardar”. No tempo da doutrina positivista isso redundou em compêndios
com “gigantesco cortejo triunfal de vultos alemães ideais” (Benjamin, 2017,
p. 17) a “pesquisa tornara-se um mero ofício amador num culto em que os
‘valores eternos’ são celebrados segundo um rito” (Einstein, 2016. p. 19).
O ensaio de Carl Einstein vê o método psicológico igualmente com
ceticismo, nenhuma de suas variantes seria capaz do domínio da obra de arte
em sua condição aberta por um lado à psicologia da gênese da produção,
ao outro do espectador. Tampouco os critérios de julgamento que sucedem

Roger Cailllois estuda a “Mimicry”/o mimetismo no livro Os homens e os jogos, referindo-se


7

as brincadeiras infantís de “ser o outro”.


Numa oração, a parataxe é a figura de estilo que consiste na sequência de frases simples e
8

curtas, justapostas, sem conjunção coordenativa ou subordinação entre as orações. A mais


famosa parataxe é a célebre “Vim, vi, venci.”, com que o Imperador Romanos Júlio César teria
descrito sua missão de batalha. Outro exemplo é o verso dos Lusíadas, de Camões: “Rompe,
corta, desfaz, abola e talha.”

64
por fórmulas e terminologias arbitrárias ou paráfrases líricas espirituosas
lograriam a propriedade técnica.
O próprio Einstein lega a sua prática de crítica estética correspondente ao
espírito da síntese ativa e direta, sem subterfúgios. Na discussão do surrealismo,
ele reforça a argumentação de que o animismo do entorno e dos objetos, essa
força vivificante dos quadros imaginativos de estrutura inventada, que está
igualmente presente na escrita como na pintura, não advém de espíritos. A
força vivificante da poesia provém das contingências do homem, um autor
ativo que, ao invés de ser escravo de fórmulas e formas, agencia o universo.

Referências
ADORNO, Theodor W. “Revendo o Surrealismo”. In: Notas de Literatura 1. Tradução
Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.
BENJAMIN, Walter. Tradução Helano Ribeiro. História da literatura e ciência da
literatura. São Paulo, 7LETRAS, 2016.
______. “Surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia”. Tradução
Celeste Ribeiro de Souza et alii. In: ______. Documentos de cultura, documentos de
barbárie. São Paulo: Cultrix Edusp, 1986, fls. 106-115.
CAILLOIS, Roger. El mito y el hombre. Tradución del francês Ricardo Baeza. Buenos
Aires: Sur, 1939.
EINSTEIN, Carl. Documents 1929 Carl Einstein. Tradução Tajashi Wakamatsu.
Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2016.
FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?” In: ______. Ditos & Escritos. Estética:
literatura, pintura, música e cinema (v. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2001.
HERTZ, Wilhelm. Die Die Sage vom Giftmädchen. Cotta, 1905.
KAUTILYA. Arthashastra. Trad. R. Shamasastry. Bangalore: Government Press, 1915.
WILSON, Edmund. O Castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870
a 1930. Tradução José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

65
O visível-invisível de Giorgio Bassani

Aurora Conde Muñoz

Muitas vezes me perguntei por que L’Airone [A Garça], de Giorgio Bassani


criava em mim a sensação de que alguma coisa neste livro era radicalmente
atual, antecipasse em larga escala uma escrita posterior, não apenas italiana.
A resposta veio por acaso neste inverno, quando, durante uma aula,
utilizei os primeiros parágrafos de outro romance, muito mais recente do que
L’Airone, ou seja, Austerlitz, de Winfrid G. Sebald, que é de 2001. Repentinamente
aquela cena inicial, em que animais empalhados, na Nocturama do zoo de
Bruxelas,1 vivem em um microcosmo perfeito, imóvel e dominado por uma
luz artificial, com grandes olhos que observam tensamente e sem descanso
aquele seu mundo, suscitou em mim uma associação imediata com Bassani e
com a centralidade que o visual tem na prosa bassaniana.
Também, pensando somente em L’Airone, o texto que se analisará
neste ensaio, acredito ter entendido o porquê dos animais embalsamados
(“empalhados”, diz Bassani) que aparecem nos dois romances, com uma
importante função simbólica, e dos quais parto nesta análise.

Ao cair da noite, caminhei pelo parque e acabei enfim por dar ainda uma olhada no
1

Nocturama [...]. Levou algum tempo até que meus olhos se acostumassem à penumbra
artificial e eu pudesse distinguir os diversos animais que levavam suas vidas sombrias atrás
do vidro, à luz de uma lua pálida. Não me lembro mais ao certo quais animais vi então no
Nocturama de Antuérpia. [...] De resto, dos animais mantidos no Nocturama só me ficou
na lembrança que alguns deles tinham olhos admiravelmente grandes e aquele olhar fixo
e inquisitivo encontrado em certos pintores e filósofos que, por meio de pura intuição e
do pensamento puro, tentam penetrar a escuridão que nos cerca. Aliás, passou-me então
pela cabeça, creio, esta pergunta: se a luz elétrica era acesa para os habitantes do Nocturama
quando a noite de verdade caía e o zoológico era fechado ao público, para que quando o dia
raiasse sobre aquele seu universo em miniatura, de ponta-cabeça, eles pudessem adormecer
com certo grau de tranqüilidade (Sebald, 2008, p. 8-9).
São óbvias as diferenças entre os dois romances, mas certamente é
interessante a coincidência de ambos os escritores ao escolherem esses animais
como metáfora — como tentarei demonstrar — de algo muito mais complexo
e profundo.
Abro um breve parêntesis para esclarecer que a força simbólica da figura
embalsamada, talvez surja, pelo menos em Bassani, do cão Bendicò do final de
O Leopardo, texto bem conhecido por ele, como se sabe, e do qual ele próprio
captou muitas nuances que outros não viram. O trecho ao qual me refiro,
mesmo se muito conhecido, sempre vale lembrar:

Duas coisas apenas podiam talvez parecer insólitas: no canto oposto


ao leito avantajavam-se quatro enormes arcas de madeira pintadas de
verde, cada uma com um volumoso cadeado; e, diante delas, no chão,
um montão de pelica em mau estado. [...] E se bem se olhasse o tal
montículo de pelica carunchosa, notar-se-iam duas orelhas espetadas,
um focinho de madeira negra, dois olhos atónitos de vidro amarelo:
era Bendicó, há quarenta e cinco anos morto, há quarenta e cinco anos
embalsamado, ninho de teias de aranha e da traça, odiado pelos criados
que há dezenas de anos pediam que o deitassem ao lixo. [...] − Annetta
− disse −, este cão está realmente cheio de caruncho e de pó: é demais.
Leva-o, deita-o fora. Quando arrastavam a carcaça para fora, os olhos de
vidro fixaram-na com a humilde repreensão das coisas que se rejeitam,
que se querem anular. Poucos minutos depois, o que restava de Bendicó
foi arrojado para o canto do pátio que o carro do lixo visitava todos
os dias. Durante o voo, janela abaixo, a sua forma recompôs-se um
instante: dir-se-ia dançar no ar um quadrúpede de longos bigodes, e a
destra anterior erguida parecia amaldiçoar. Depois, a paz tornou a cair
sobre um montículo de poeira lívida. (Lampedusa, 1979, p. 270-279)

Parece verossímil pensar que a força simbólica (e visual) de Bendicò,


reduzido à palha seca (frágil espectro dos “nós fomos os leopardos…”), não
escapasse a Bassani. Mesmo porque, concretamente, a redução do cão a um
“montículo de pelica”, e sobretudo seus grandes olhos amarelos e vítreos (que
também coincidem com os grandes olhos dos animais embalsamados de
Sebald), tenha causado um certo impacto no escritor. As duas imagens, de
fato, reaparecem — se bem que com um sentido completamente diferente —,
no final de L’Airone:

A raposa, por exemplo [...] virava de lado o focinho arreganhado como


se o tivesse acabado de virar naquele instante; e de seus olhos amarelos,
cheios de ódio [...] o “Giornale dell’ Emilia” pousado sobre o edredom

68
de seda verde à altura do minúsculo montinho de pelos negros de Lilla
[...]...2 (Bassani, 1998, p. 854)

É claro que o cão empalhado de Lampedusa e os animais embalsamados


de Bassani vão em direções opostas e que a distância entre os dois textos é
absoluta, mesmo se, parece também claro que o texto do siciliano tenha
deixado notáveis traços, ao menos formais, no texto do ferrarense.
Menor, ao contrário, é a diferença entre L’Airone e Austerlitz. Já está
comprovado que Sebald conhecesse, e apreciasse, os romances de Bassani,3 mas
algumas escolhas coincidentes em ambos, a meu ver, devem ser verificadas para
além das eventuais influências de um sobre o outro, em uma comum adesão, e
frequentação, dos grandes mestres da literatura contemporânea. Por exemplo,
é dado de fato que ambos foram leitores muito atentos de Flaubert, cujo célebre
papagaio empalhado, Lulù, de Um coração simples, talvez seja a matriz de
todos os empalhados da literatura posterior. De fato, é frequentemente citado
— inclusive no L’Airone, como mostrarei —, exatamente pela força simbólica
que tem no texto de Flaubert.
Em Sebald e Bassani os animais embalsamados (vindos, talvez, do
imaginário de Flaubert) aparecem em momentos decisivos — em Sebald
exatamente no início do romance —, da viagem angustiosa, delirante, dos
protagonistas de seus textos. De dois sujeitos, estranhados e perdidos, em
uma trágica deriva em busca de sua identidade. Dois sujeitos “mortos” de fato,
presos em uma espiral espaço/temporal lacerada e artificial que os mantém
suspensos e paralisados em um grande vazio e que os impede de “sentirem-se”
vivos.4
Em ambos — mesmo se em termos obviamente diferentes —, esta
“estranheza” em relação à vida, surge de outro vazio, da interrupção traumática
da unidade que sustenta sua consciência identitária e que os priva — e no

2
La volpe per esempio [...] girava di lato il muso digrignante come se, di girarsi, finisse proprio
allora, in quell’attimo; e dai suoi occhi gialli, pieni di odio [...] il ‘Giornale dell’ Emilia’ posato
sulla trapunta di seta verde all’altezza del minimo mucchietto di pelo nero della Lilla [...].
3
Existem muitos especialistas em Sebald que destacam a importância de suas leituras de
Bassani e o fato de que os textos de Romanzo di Ferrara [O romance de Ferrara] aparecem
na biblioteca de Sebald, trabalhados, sublinhados e anotados. Cito, como único exemplo,
um artigo de Olaf Müller (“Affinità elettive. Sulla ricezione delle opere di Bassani nei paesi
di lingua tedesca” [Afinidades eletivas. Sobre a recepção das obras de Bassani nos países de
língua alemã]) publicado nos Cahiers d’études italiennes.
4
São muito semelhantes os espaços marcados de Nocturama e da loja dos animais
embalsamados, nesse sentido.

69
caso de Bassani, a questão é prioritária —, de uma memória que lhes permita
sentirem-se parte de algo maior: de uma história.
São suas franquezas mentais, os vazios interiores que os transformam —
na visão que têm de si mesmos —, em dois fragmentos isolados e desvinculados
da perspectiva do futuro e, ao mesmo tempo, os colocam dentro e fora do
real: da vida que passa, sob seus olhos, paralela e alheia, monstruosamente
visível além de um vidro, à distância: “Mais uma vez era como se entre ele e
as coisas que via se levantasse uma espécie de delgada e transparente placa de
vidro. Todas as coisas lá e ele aqui, olhando uma por uma e maravilhando-se”.
(Bassani, 1998, p. 713)5
Em L’Airone, o vazio jaz no fundo da consciência neurótica e doente de
Limentani, e em seu vão esforço para ocultar os muitos buracos (as manques
fondamentales) que, na realidade, não encobrem completamente as frustrações
e os autoenganos. O nada com o qual em certo ponto da vida, ele se depara
— e isso também coincide com o personagem Austerlitz — é, em essência,
causado por seu passado que, para ele equivale a um acúmulo de fragmentos
falimentares, dos quais Limentani foge por meio de uma permanente negação,
que gera traumas, medos, vazios. Limentani recusa-se obsessivamente a se
assumir em seu devir existencial e, portanto, recusa em bloco todo o passado,
aterrorizado pela possibilidade de se confrontar com ele.6 Seu medo do
passado é também seu medo do futuro: da morte, que o angustia a ponto de
não querer concebê-la (nem “pronunciar”), mas que domina o texto e sustenta
seu sentido.
O que fracassa na consciência de Limentani, que o “separa” da vida e faz
dele um estranho em relação a si mesmo, é o procedimento pós-memorial e,
mesmo sem citar, refiro-me obviamente aos estudos e à definição dados a esse
respeito por Marianne Hirsch, particularmente em seu ensaio Family Frames
[Retratos de Família] (2012).

Ancora una volta era come se fra lui e le cose che vedeva si levasse una specie di sottile
5

e trasparente lastra di vetro. Le cose tutte di là; e lui di qua, a guardarle ad una ad una e
a meravigliarsene”. Mesmo se não será desenvolvido neste ensaio, gostaria de destacar a
muito provável influência que, em imagens como a citada, tem em Bassani outro autor bem
conhecido por ele, ou seja, Mallarmè. A imagem de um vidro que separa o indivíduo do real,
está nitidamente contida na célebre lírica “Les fenêtres”.
Exemplo evidente disso é a longa e complexa história da tentada reaproximação ao primo.
6

Mas certamente a recusa mais substancial e determinante em relação à existência e a si mesmo


está enfatizado na cena inicial do romance, em que Limentani observa com estranhamento
o próprio rosto e corpo, e antecipa, de modo tragicômico, a fuga em relação a tudo, aquele
“escapulir de mansinho”, como diz Bassani, não apenas da casa em que vive.

70
do abismo cego e obscuro que descompõe e engole uma part
a, impedindo-o de dar continuidade e sentido à toda sua vida.
(ou seja, as fotografias e até mesmo os fotogramas em film
A questão da pós-memória é indiscutível em relação a Austerlitz e
erá), conseguem restaurar nele o passado – como no caso de L
o símbolo do
também parece muito presente em L’Airone, devido à relevância que nos dois
abismo
romances cego
é dada e obscuro
às relações que descompõe
familiares e engole uma
e muito significativamente parte
à figura da da memór
é o símbolo do abismo cego e obscuro que descompõe e engole uma parte da memória
otagonista,mãe.
impedindo-o de dar continuidade e sentido à toda sua vida. Nem as ima
motivos –, negado e enterrado em uma zona irrecuperável d
No caso de Jacques Austerlitz, é exatamente a perda da lembrança
protagonista, impedindo-o
materna
de dar continuidade e sentido àseustoda sua vida. Nem as image
ais reais (ou seja,—as suafotografias
incapacidade edeaté recriá-la
mesmoe reconhecer
os fotogramas traços,em
o rosto…
filmes da mãe
spedaçada de modo definitivo. A ponto de impedi-lo, com
mais reaisde(ourecompor
seja, assuafotografias
imagem —,eé até o símbolo
mesmodoosabismo
usterlitz verá), conseguem restaurar nele o passado – como no caso de de
descompõe e engole uma parte da memória do
cego e obscuro
fotogramas
protagonista,
em filmes
impedindo-o
que da mãe, q
Limentani –
Austerlitz dar
verá), conseguem
continuidade restaurar
e sentido nele
à toda suaovida. Nem –
passado ascomo
imagensnomais
casoreais
de Limentani
(ou –, m
não só a mãe, mas a si mesmo, em uma foto sua de criança.
or outros motivos –, negado
seja, as fotografias e até e enterrado
mesmo em uma
os fotogramas zonadairrecuperável
em filmes de sua ident
mãe, que Austerlitz
por outrosverá),
motivos –, negado
conseguem e enterrado
restaurar em —
nele o passado uma zona
como irrecuperável
no caso de Limentanide—,sua identida
rida e despedaçada
mas por outros demotivos
modo—,definitivo. A ponto
negado e enterrado em uma de impedi-lo, como veremo
ferida e despedaçada de modo definitivo. A ponto de zona irrecuperável
impedi-lo, comode
veremos,
sua identidade ferida e despedaçada de modo definitivo. A ponto de impedi-
conhecer não
reconhecerlo,não
sósóaveremos,
como mãe, mas
a mãe, mas
aasisimesmo,não sóem
mesmo,
de reconhecer em
uma foto
umamas
a mãe, foto sua
a sisua de em
criança.
de criança.
mesmo, uma foto
sua de criança.

Imagens no romance de Sebald (2004).


Imagens no romance de Sebald (2004)
Imagens no romance de Sebald (2004)
Em Bassani, a imagem final da mãe tem uma função em certo sentido
Imagens no romance de Sebald (2004)
semelhante. Limentani consegue, depois de sua longa jornada marcada por
Emum angustioso
Bassani, sentimento
a imagem de perpétua
final da mãe cegueira,
tem umacomo veremos
função mais adiante,
em certo sentido semelhan
Em Bassani, a imagem
ver sua mãe, finale da
interiorizá-la mãe temmas
reconhecê-la, umanãofunção em certo
no presente, e simsentido
em semelh
Limentaniumaconsegue,
projeçãodepois de sua
dela morta. Estalonga jornada
visão da marcada
mãe reafirma — porporcomparação
um angustioso
— a sentimen
mentani consegue,
separação edepois dedesua
a exclusão longa jornada
Limentani marcada
de uma vida que (comoporlheum angustioso
parece ser a sentim
de perpétuavida
cegueira, como veremos mais adiante, ver sua mãe, interiorizá-la
de sua mãe, e esta é a comparação) seja também uma história. Construída e reconhe
eBassani, a imagem
perpétua cegueira, como final damais
veremos mãe tem ver
adiante, uma
suafunção em certo
mãe, interiorizá-la sen
e recon
la, mas não no presente, e sim em uma projeção dela morta. Esta visão da mãe reafirm
, mas não no presente, e sim em uma projeção dela morta. Esta visão da mãe rea
71que (como l
consegue, depois
– por comparação de sua longa
– a separação jornada
e a exclusão marcada
de Limentani por
de uma vidaum angus
por comparação
parece – asua
ser a vida de separação e éa aexclusão
mãe, e esta de Limentani
comparação) deuma
seja também umahistória.
vida que (com
Construí
cegueira,
arece
no tempo,
como
ser a vida de suadeveremos
povoada mãe, e esta émais
recordações
adiante,
a–comparação) verobjetos
seja
transformadas
sua mãe,
emtambém uma
– que,
interioriz
história. Const
ao contrário
o tempo, povoada de recordações – transformadas em objetos – que, ao contrár
no tempo, povoada de recordações — transformadas em objetos — que, ao
contrário da rejeição com que Limentani estabeleceu sua relação com o mundo,
representam a sobrevivência do passado no presente, a aceitação da existência
enquanto processo de perdas e transformação, no sentido mais complexo —
talvez bergsoniano — do termo. A cena é bem conhecida:

Com a mão sobre a maçaneta voltou a olhá-la. Rodeada por tudo o que
tinha de mais seu e de mais íntimo, a cachorrinha idolatrada em contato
quase direto, e depois as fotografias de família, o pergaminho da casa de
Savoia emoldurado em prata, os frascos multicores dos medicamentos,
as estojos de couro dos óculos, o minúsculo paralelepípedo dourado do
despertador Zenith, os livros em uma prateleira, os últimos exemplares
de “Vie d’ Italia” em outra prateleira, o “Giornale dell’ Emilia” pousado
sobre o edredom de seda verde à altura do minúsculo montinho de pelos
negros de Lilla, etecetera, etecetera, continuava a lhe sorrir. Bianca, lá
embaixo, reclusa em seu casulo de luz. (Bassani, 1998, p. 854)7

Ao contrário do que aconteceu com sua mãe, perfeitamente integrada


“lá, no casulo de luz” que emana de seu contexto — os objetos/amuletos que
a colocam em contato com as fases mais antigas, anteriores, de sua existência,
Limentani observa de um ângulo externo: está na soleira da porta. Mas vê
sua mãe com a perspectiva que viu os animais embalsamados: em um
tempo suspenso, “limpa” (como os animais embalsamados na loja, que eram
“lustrados”), circundada por relíquias de morte (o passado), que a fazem “ela
ainda era bela, belíssima”:

No leito, com os dois travesseiros de linho às costas, com aquela graciosa


liseuse de lã azul que lhe cobria as costas e o peito, mas, sobretudo,
limpa, os macios cabelos de algodão um pouco mais brancos do que
o frágil pergaminho do rosto, ela ainda era bela, belíssima. Perfeita.
(Bassani, 1998, p. 850)8

Con la mano sul saliscendi tornò a guardarla. Circondata da tutto quello che aveva di più suo
7

e di più intimo, la cagnetta idolatrata a contatto quasi diretto, e poi le fotografie di famiglia,
la pergamena del nodo di Savoia incorniciata d’argento, i flaconi multicolori delle medicine,
le custodie di pelle degli occhiali, il minuscolo parallelepipedo dorato della sveglia Zenith,
i libri in uno scaffale, le ultime annate delle ‘Vie d’ Italia’ in un altro scaffale, il ‘Giornale
dell’ Emilia’ posato sulla trapunta di seta verde all’altezza del minimo mucchietto di pelo
nero della Lilla, eccetera eccetera, seguitava a sorridergli. Bianca, laggiù, reclusa nel suo
bozzolo di luce.
A letto, coi due cuscini di tela di lino dietro la schiena, con quella graziosa liseuse di lana
8

azzurra traforata che le copriva le spalle e il seno, ma pulita, soprattutto, i soffici capelli di

72
Por isso eu dizia que a mãe está substancialmente morta; uma vez que a
imobilidade de sua “perfeita beleza” é mimeticamente equiparada às estáticas
— e vazias —, mas para Limentani irresistivelmente fascinantes e salvíficas,
dos animais embalsamados, aos quais a mãe — apesar do tom paradisíaco
do trecho, sem dúvida se assemelha, coma Bassani assinala sutilmente
com detalhes como o rosto de “pergaminho” ou o muito significativo “ela
também”.
A centralidade da visão da mãe em Bassani — que certamente não é
secundária, se ocupa todo o final de L’Airone —, e das fotografias da mãe de
Austerlitz, encontram um paralelismo e uma explicação indireta que justifica
seu uso nos dois textos, no ensaio A câmera clara, de Roland Barthes, em que,
como se sabe, sua longa reflexão sobre a fotografia, alcança maior profundidade
exatamente a partir das imagens de sua mãe.
Barthes, em seu ensaio — como Bassani no romance —, também se
detém no comentário de algumas fotografias em que sua mãe está rodeada
pelos objetos que a haviam acompanhado a vida toda, objetos metonímicos
neste caso, que naquelas fotos, para Barthes, refletem, mas ao mesmo tempo
definem, a essência do sujeito:

é preciso que, bem mais tarde, eu reencontre em algumas fotos os objetos


que ela tinha sobre sua cômoda, uma caixa de pó-de-arroz de marfim
(eu gostava do ruído da tampa), um frasco de cristal bisotado, ou ainda
uma cadeira baixa que hoje tenho perto de minha cama, ou ainda os
tecidos de ráfia que ela dispunha sobre o sofá, as grandes sacolas de que
ela gostava [...]. (Barthes, 1984, p. 97-98)

O que me parece ainda mais interessante, é que Barthes também, em


outras fotos, percebe na imagem da mãe a emanação de uma determinada luz,
assim como Bassani em seu romance:

Todavia, nessas fotos de minha mãe, havia sempre um lugar reservado,


preservado: a claridade de seus olhos. Não era, no momento, mais que
uma luminosidade toda física, o traço fotográfico de uma cor, o azul
esverdeado de suas pupilas. Mas essa luz já era uma espécie de mediação
que me conduzia para uma identidade essencial, o gênio da face amada.
(Barthes, 1984, p. 100)

bambagia appena più bianchi della fragile cartapecora del viso, anche lei era bella, bellissima.
Perfetta.

73
Nem a luz, nem os objetos que acompanham aquela imagem amada,
servem para Barthes reconhecer sua mãe, e as imagens que ele vê dela, e sobre
as quais discorre e analisa —, são entendidos como retratos mudos, estranhos
à verdadeira essência da mãe, ou à sua lembrança.9
Barthes, como se sabe, finalmente consegue recuperar uma fotografia
que evoca nele a “verdade” de sua mãe, que restaura — em sua memória —
sua verdadeira essência, que lhe permite fazer coincidir uma imagem com
sua lembrança: é uma foto dela menina. Ou seja, da mãe captada em um
fragmento do passado que “vivencialmente” Barthes não experimentou, não
compartilhou com ela; do qual, portanto, deveria se sentir excluído. Mas é
exatamente esta imagem que desencadeia nele a dinâmica da memória (a pós-
memória) em que a imagem fixa, rígida, imóvel de um instante anterior —
em todos os sentidos — ao sujeito que a contempla, se transforma em ponte
cronológica que põe em movimento as lembranças sob a ampla perspectiva
mais uma vez pós-memorial:

Eu também não podia omitir de minha reflexão isto: eu descobrira essa


foto ao remontar o Tempo. Os gregos entravam na Morte caminhando
para trás: o que tinham diante deles era o passado. Assim, remontei uma
vida, não a minha, mas a de quem eu amava. [...] cheguei, remontando
três quartos de século. (Barthes, 1984, p. 106-107)

As lembranças pós-memoriais que, mesmo não vividas, dão perspectiva


e sentido à história narrada pelas nossas consciências e pelos outros a nós
mesmos. São elas que abastecem de uma identidade, de um sentido de
pertencimento — por mais que sejam “espelhantes”, “outras”, caleidoscópicas
—, a história que coloca em perspectiva e, portanto, dá sentido à identidade
individual, ao reconhecimento do Eu. É exatamente isso que falta a Limentani
e a Austerlitz, justamente por causa de sua incapacidade de estabelecer —
ou restabelecer — a dinâmica da memória e os pontos com o passado, até
(e sobretudo) por sua incapacidade de reconhecer a imagem, ou seja, a primeira
essencial aparência do real. Talvez o único referente que permite estabelecer
sua própria existência.
Exatamente em confronto com o valor conclusivo dado por Barthes
às fotografias que, a meu ver, explicam-se o sentido e a amplitude simbólica
dos animais embalsamados de Bassani e se esclarece, ao menos em parte, os

Creio ser inútil destacar o quanto estas reflexões são interessantes relativamente a Austerlitz
9

e L’Airone em relação à imagem da mãe.

74
motivos na base da escolha dessa estranha metáfora como desencadeadora da
epifania invertida de Limentani:

A Fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano em


uma foto). O efeito que ela produz em mim não é o de restituir o que
é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo
de fato existiu. [...] Toda fotografia é um certificado de presença. Esse
certificado é o gene novo que sua invenção introduziu na família das
imagens. [...] Talvez tenhamos uma resistência invencível para acreditar
no passado, na História, a não ser sob forma de mito. A Fotografia, pela
primeira vez, faz cessar essa resistência: o passado, doravante, é tão
seguro quanto o presente, o que se vê no papel é tão seguro quanto o
que se toca. É o advento da Fotografia — e não, como se disse, o do
cinema — que partilha a história do mundo. (Barthes, 1984, p. 123-130)

Os embalsamados, como as fotografias, são seres que antes foram animais


“de verdade”, fato testemunhado por sua tangibilidade. Mas, na verdade, são
bem diferentes de uma fotografia, como Bassani sabe perfeitamente, justamente
porque estão vazios: esvaziados de tudo o que antes (ou seja, o próprio passado)
corrompe, destrói. São uma carcaça, o espectro de uma imagem, “limpos e
belos” no presente: sem futuro, sem passado. Portanto sem uma história, nem
alguém que queira contá-la por eles. Salvo a história que Limentani constrói
sobre eles e por eles, transformando-os assim em seu entorno pós-memorial,
fazendo deles os espelhos de si mesmo: uma coletividade finalmente sentida
próxima, própria: “[...] só ele, talvez — pensava —, era capaz de entender
realmente a perfeição daquela sua beleza final e não perecível”. (Bassani,
1998, p. 835).
Se o seu vazio e sua “aparência” são um inquietante — talvez doentio
— apelo permanente da morte, (não por acaso, Limentani inicialmente sente
repugnância por eles), da perspectiva do frustrado processo pós-memorial,
eles têm, entretanto, uma eficácia perfeita. E seu uso no romance remete ao
verdadeiro sentido daquele tantas vezes discutido “realismo” de Bassani e às
suas escolhas simbólicas, às correlações que sua escrita propõe, a meu ver bem
mais complexos.

Os realistas, entre os quais estou, e entre os quais eu já estava quando


afirmava que a Fotografia era uma imagem sem código — mesmo que,
evidentemente, códigos venham infletir sua leitura —, não consideram
de modo algum a foto como uma “cópia” do real·- mas como uma
emanação do real passado: uma magia, não uma arte. Perguntar se a
fotografia é analógica ou codificada não é um bom caminho para

75
análise. O importante é que a foto possui uma força constativa, e que
o constativo da Fotografia incide, não sobre o objeto, mas sobre o
tempo. Na Fotografia, de um ponto de vista fenomenológico, o poder de
autentificação sobrepõe-se ao poder de representação”. (Barthes, 1984,
p. 132)

As observações de Barthes me permitem voltar à relação de Bassani com


as imagens, fotográficas e pictóricas, por meio das quais o escritor enquadra a
realidade. É muito conhecido o longo trecho que Bassani dedica a um quadro
de Mario Cavaglieri em um artigo que escreveu sobre ele em Di là dal cuore10
[Além do coração] (e que talvez devesse ser lido pensando também no início
de “Passeggiata prima di cena”11 [Passeio antes do jantar]):

Observe-se por exemplo esta sua tela de 1915 [...] que nunca me canso
de olhar. A vasta sala, há pouco, estava imersa na sombra e no silêncio.
Depois entrou alguém — um velho empregado, provavelmente —, o
qual, depois de colocar sobre a grande mesa maciça uma bandeja com
licor e os copos, foi abrir uma das duas janelas lá no fundo, que dão para
o jardim. Neste momento, algo ou alguém deve tê-lo chamado por um
momento em outro lugar. E a sala de jantar está de novo vazia; mas com
aquela luz da tarde de agosto [...] com aquela luz verde e amarela que
penetra violenta através da janela escancarada. Com esse raio, esse jorro,
tudo na chambre hantée ganhou vida. O vermelho fauve das poltronas, o
cinza pérola dos espelhos, o marrom da mesa de nogueira e das cadeiras
de couro, o delicado violeta que a luz, misturando-se ao pouco escuro
restante, adensa lá no fundo, atrás da veneziana deixada fechada, e,
mais, atrás das cortinas da janela-porta central: cada objeto acumulado
entre estas paredes de um conforto secular, de um gosto ainda seguro,
resplandece, a qualquer momento, efêmero e imortal. Tudo, sim, ainda
está perfeito, aqui dentro. [...].12 (Bassani, 1998, p. 1097-1098)

Livro que reúne os ensaios de Bassani [N. T.].


10

Conto do livro Cinque storie ferraresi [N. T.].


11

Si osservi per esempio questa sua tela del ‘15 [...] che non mi sazio mai di guardare. La vasta
12

sala, poco fa, era immersa nell’ombra e nel silenzio. Poi é entrato qualcuno — un vecchio
domestico, probabilmente —, il quale, deposto sul gran tavolo massiccio un vassoio col
rosolio e i bicchieri, é andato ad aprire una delle due finestre là in fondo, che danno sul
giardino. A questo punto, qualcosa o qualcuno debbono averlo richiamato per un momento
altrove. Ed ecco la sala da pranzo di nuovo vuota; ma con quella luce da pomeriggio di agosto
[...] con quella luce verde e gialla che penetra violenta attraverso la finestra spalancata. A quel
raggio, a quel fiotto, tutto nella chambre hantée ha preso vita. Il rosso fauve delle poltrone,
il grigio perla degli specchi, il marrone del tavolo di noce e delle sedie di pelle, il delicato

76
O sentido do texto de Bassani, a operação interpretativa que faz sobre
a tela, é tão evidente a ponto de não ter quase necessidade de comentário,
salvo talvez, para destacar como a seus olhos a imagem que olha um passado,
um fragmento de um tempo espaço anterior (e ausente) adquire vida e
movimento, só se desencadeia um ato de imaginação posterior, “escritural” em
seu caso. O quadro é para ele uma imagem completamente igual, neste sentido,
às fotografias analisadas por Barthes e, em boa medida, às suas conclusões
teóricas.
A pintura, assim como a fotografia — nisso exatamente como para
Barthes, mas exatamente ao contrário do muito mais niilista, pós-moderno,
Sebald — é para Bassani um vestígio indiscutível de passado; uma imagem
muda e morta em sua forma, que, no entanto, pode se tornar sonora e viva
nos movimentos que ao seu redor a mente realiza. Não é o quadro, nem a foto
(como também não é a escrita) que exaure o sentido (o que Barthes define
como “genius”) da própria imagem, mas são as virtualidades (as memórias
silenciadas, as lembranças...) que elas encerram e resgatam, que abrem uma via
de comunicação direta com o passado.
Como se sabe, para Bassani, essa viagem através do tempo, a recuperação
do passado, o diálogo com os mortos para reativar sua voz e presença, se
traduz em sua prosa dedicada a completar as histórias truncadas, perdidas, e
é a própria essência de sua escrita: representa sua finalidade decisiva, sintetiza
sua concepção da função e da grandeza, também ética, da arte:

Geo Josz está morto, foi para onde não se volta, viu um mundo que só
um morto pode ter visto. Milagrosamente volta, porém, volta aqui. E os
poetas, eles, o que fazem senão morrer e voltar aqui para falar? [...] A
novidade, a originalidade de Edgardo Limentani está principalmente em
ter entendido que o único modo, para ela, de sobreviver, é se matar. Ele
se mata, pois dentro não tem mais nada, nada de nada [...] É por isso que
falo dele. Do que quer que falemos, nós poetas, senão de personagens
desse tipo, que se assemelham a nós? E por qual motivo escrevem, os
poetes, senão para voltar ao mundo?13 (Bassani, 1998, p. 1344-1347)

viola che la luce, mescolandosi al poco buio residuo, addensa laggiù, dietro l’imposta rimasta
chiusa, e, più, sotto i tendaggi della finestra-porta centrale: ogni oggetto accumulato fra
queste pareti da un agio secolare, da un gusto ancora sicuro, splende, da qualche momento,
effimero e immortale. Tutto, sì, é ancora perfetto, qua dentro [...].
Geo Josz é morto, é andato là donde non si torna, ha visto un mondo che soltanto un morto
13

può aver visto. Miracolosamente torna, però, torna di qua. E i poeti, loro, che cosa fanno se
non morire, e tornare di qua per parlare? [...] La novità, l’originalità di Edgardo Limentani,

77
A escrita abre a possibilidade de ver algo que não se pode mais ver, que
coincide com uma imagem parcial (como os quadros ou as fotografias) de uma
parte da realidade, não do real, se é que existe.
As imagens nos romances de Bassani (particularmente em L’Airone) são,
frequentemente, construídas com o recurso simbólico, e mais simplesmente
estilístico, por determinada luz, por muitos tipos de luz, que em infinitas variantes,
“iluminam” fragmentos do passado por e no presente. É a luz que permite dar
perspectiva e forma ao que, uniforme e irreconhecível, jaz na escuridão.
Essas luzes são as frestas pelas quais entrar no escuro, e a composição
que elas criam permite extrair um todo dos fragmentos que, por sua vez, são
por elas iluminados. Como explica Bassani, analisando o quadro de Mario
Cavaglieri, no qual “entra”, para extrair do jogo de luzes o contexto verossímil
da história que a imagem lhe sugere, mas não está representado na imagem.
É esta a capacidade que Limentani perde, e é exatamente a angústia
do fracasso ao estabelecer um vínculo entre imagem e real o que, com
extraordinária sensibilidade em relação ao impacto do visual sobre o sujeito
contemporâneo, Bassani propõe em L’Airone e que resolve com uma singular
estratégia narrativa toda construída sobre a visibilidade; e talvez seja isso que
torna o texto enormemente atual, como eu sugeria no início:

Pouco antes de Codigoro, na altura do cemitério, um muro negro


e compacto de vapores, surgiu-lhe improvisamente diante do capô,
obrigou-o a pisar com violência no pedal do freio. Névoa não, não lhe
parecia que fosse névoa. Talvez não se tratasse mais do que de uma
nuvem baixa, que um sopro de vento teria sido suficiente para dispersar.
Entretanto — às três e um quarto da tarde! —, era como se já fosse
noite. Aquele ar límpido que o havia circundado até um instante atrás
pertencia a um passado muito distante, tão remoto de não se acreditar.14
(Bassani, 1998, p. 783)

sta soprattutto nel suo aver capito che l’unico modo, per lui, di sopravvivere, é quello di
uccidersi. Si uccide, lui, che dentro non ha più niente, niente di niente [...] E’ per questo che
io ne parlo. Di che cosa vuoi che parliamo, noi poeti, se non di personaggi di questo tipo,
che assomigliano a noi? E per quale motivo scrivono, i poeti, se non per tornare al mondo?
Poco prima di Codigoro, all’altezza del camposanto, un muro nero e compatto di vapori,
14

presentandoglisi improvvisamente davanti al cofano, lo obbligò a pigiare con violenza sul


pedale del freno. Nebbia no, non gli pareva che fosse nebbia. Forse non si trattava che di
una nuvola bassa, che un soffio di vento sarebbe stato sufficiente a disperdere. Nel mentre,
però — alle tre e un quarto del pomeriggio appena! —, era come se fosse già notte. Quell’aria
tersa che lo aveva circondato fino a un attimo fa apparteneva a un passato lontanissimo, così
remoto da non crederci.

78
No romance, o que marca o conflito do protagonista entre o visual
(a imagem) e a consciência, quase nunca é uma luz unitária, reveladora (aquela
que pelas palavras de Bassani sobre o quadro já citado de Cavaglieri equivale
à vida).15 Bem ao contrário, o texto é recheado de fragmentos que acumulam
luzes neuróticas, violentas, relampejantes que não iluminam, mas precisamente
criam a angústia do brevíssimo clarão, que não permite a visão unitária, nem
total, do contexto, mas insinua sua inquietante presença.
L’Airone é um romance escuro, desfocado, no qual a luz projeta, com
muita frequência, sombras espectrais, associáveis à incoerente iluminação
dos sonhos, dos pesadelos, que se somam às luzes neuróticas, violentas,
relampejantes que marcam a progressiva cegueira do protagonista. Bassani
usa ao longo de todo o texto um verdadeiro arsenal de luzes “momentâneas”,
artificiais que, como flash em um quarto escuro, são só clarões instantâneos
em um espaço (um real) imerso em alguma coisa ainda mais escura do que a
escuridão, ou seja, a incapacidade de ver.
Não é por acaso que Limentani esteja circundado e perdido em uma
densa, metafórica, névoa que, alternando-se à mais soturna escuridão, o
acompanhará por todo o texto, desde o início: “A sala, nesse meio tempo,
enchera-se de uma névoa densa e morna”16 (Bassani, 2000), escreve Bassani no
final do primeiro capítulo, por sua vez dominado por uma notável escassez de
iluminação e no qual as luzes mais nítidas servem, na verdade, para construir
efeitos de contraluz:

Por fim, assim que acendeu a luz e, sentado na cama, foi lentamente
olhando ao seu redor, tomado por um imprevisto sentimento de
humilhação ficou tentado a deixar para lá, a não partir. [...] Talvez
dependesse do frio da sala, ou talvez da luz muito fraca que vinha do
lustre central. [...] A porta do apartamento térreo ocupado pela família
Manzoli abrira-se. Saía dela outra luz (muito menos viva do que a que
entrava pela janela da cozinha) contra a qual logo se perfilou uma figura
curva e encapotada.17 (Bassani, 1998, p. 703-705)

Também quase nunca se trata uma luz “real”, física, fato enfatizado pela confusão que muitas
15

vezes Limentani sente justamente por causa da luz que o circunda, que ele não consegue
reconhecer e que o obriga a consultar continuamente o relógio para ver que horas são.
La stanza si era riempita nel frattempo di una nebbia fitta e tiepida.
16

Infine, non appena ebbe acceso la luce e, seduto sul letto, si fu lentamente guardato attorno,
17

colto da un improvviso senso di avvilimento fu tentato di lasciar perdere, di non partire. [...]
Dipendeva forse dal freddo della stanza, o magari dal lume troppo debole che pioveva giù dal
lampadario centrale [...] La porta dell’appartamento terreno occupato dalla famiglia Manzoli

79
O escuro ou — como apenas citado — a incapacidade de ver, é o que
envolve todos os momentos essenciais do romance; uma escuridão rompida
apenas por aquelas luzes estridentes, forçadas, estranhantes a que me referi,
e que mesmo assim nunca conseguem quebrar a substancial escuridão. É no
escuro que Limentani, no início do romance, entra no quarto da mulher não
amada; é no escuro que sai de casa para enfrentar, ainda no escuro, os vagos
e intransitivos encontros com os fatos nucleares da própria existência, sempre
negados: a juventude, a casa, a profissão, a religião, a política, o sexo, a família,
as relações sociais... Selecionei alguns exemplos, entre ou muitíssimos possíveis
que se sucedem no romance:

Talvez dependesse do frio da sala, ou talvez da luz muito fraca que vinha
do lustre central [...] o escuro armário que ocupava [...] boa parte da
parede da esquerda [...] um pequeno espelho oval, tão opaco que não
servia para nada [...].18 (Bassani 1998, p. 704-705)
Nesse meio tempo, entrara com a impressão [...] de penetrar em uma
caverna, em uma toca [...] Estava no centro de uma saleta de média
grandeza, imersa em uma escuridão quase completa.19 (Bassani, 1998,
p. 731)
Com a escuridão e com a névoa, a probabilidade de ser notado [...] era
de se considerar quase nula.20 (Bassani, 1998, p. 738)
Cortado em transversal o escuro, flutuante lago de gás que submergia a
praça [...].21 (Bassani, 1998, p. 784)
A janela em forma de vigia, pouco acima do ponto de luz da lampadinha,
era completamente cega. Um disco negro, apagado e opaco.22 (Bassani,
1998, p. 797)

si era aperta. Ne usciva dell’altra luce (assai meno viva di quella che filtrava dalla finestra
della cucina) contro la quale venne subito a profilarsi una figura curva e infagottata.
Dipendeva forse dal freddo della stanza, o magari dal lume troppo debole che pioveva giù
18

dal lampadario centrale [...] lo scuro armadio che occupava [...] buona parte della parete di
sinistra [...] un piccolo specchio ovale, così opaco che non serviva a niente [...].
Frattanto era entrato con l’impressione [...] di penetrare in una caverna, in una tana [...] Si
19

trovava al centro di una saletta di media grandezza, immersa in un buio quasi completo.
Col buio e con la nebbia le probabilità di essere notato [...] erano da considerarsi pressoché
20

nulle.
Tagliato di traverso il buio, fluttuante lago di gas che sommergeva la piazza [...].
21

La finestra in forma di oblò, di poco sottostante al punto di luce della lampadina, era
22

completamente cieca. Un disco nero, spento e opaco.

80
Na luz pálida da loja via-se com dificuldade que era pintada de amarelo.
Era uma enorme massa escura. Algo de cego e informe, destituído de
qualquer função [...].23 (Bassani, 1998, p. 820)

É num escuro intenso, numa escuridão, que Limentani sente bestial e


apavorante que — e que em uma solução narrativa e realmente extraordinária,
tenta quebrar com o uso de uma lanterna —24 entra para ver a filha; mas
sobretudo é em direção ao escuro, para o qual se dirige ao dar início à sua
viagem “no coração das trevas”: “E dali a pouco teve a sensação de entrar
em um poço, descia lentamente pela escura escada helicoidal que levava até
embaixo...25 (Bassani, 1998, p. 718).
Naturalmente, deve-se notar que aos contrastes cegantes, “alucinantes”
das luzes que relampejam no escuro, também se acrescentam — técnica
usada em toda a prosa de Bassani — interessantes jogos cromáticos, nos
quais predominam os amarelos e a ampla gama dos vermelhos. O vermelho,
particularmente trabalhado no texto, adota infinitas equivalências simbólicas,
das mais canonicamente associadas ao corpo, ao sexo, à morte, a outras muito
mais originais: “Das fissuras das venezianas fechadas filtrava a luz avermelhada
das famílias pobres. (Bassani 1998, p. 826).26
Todo L’Airone se sustenta sobre a dominante isotopia da visão, em uma
complexa e sutil filigrana semântica, diretamente em relação com o ato e o
sentido do ver, seja o real (a vista), seja o figurado (a compreensão e o domínio
da alteridade externa). E todo esse complexo, quase obsessivo aparato de apelo
ao visual, se concentra — não podia ser de outra forma — sobre os olhos.
Não por acaso, no episódio central em que Limentani e a garça estabelecem a

Nella luce scialba del negozio si capiva a stento che fosse verniciato di giallo. Era una enorme
23

massa scura. Qualcosa di cieco e informe, destituito di qualsiasi funzione [...].


“E subito [...] tirò fuori una torcia elettrica e mosse verso la porta della camera della figlia.
24

Spense la luce del corridoio, accese la torcia elettrica, abbassò il saliscendi, penetrò piano
piano nella stanza [...] (Bassani, 1998, p. 717). E logo [...] pegou uma lanterna e se dirigiu para
a porta do quarto da filha. Apagou a luz do corredor, acendeu a lanterna, abaixou o trinco,
entrou devagarinho no cômodo [...].
E di lì a poco ebbe la sensazione di calarsi dentro un pozzo, scendeva lentamente per il buio
25

scalone elicoidale che portava fin giù...


“Dalle fessure delle imposte chiuse filtrava la luce rossastra delle famiglie povere”. Não
26

é o caso de aprofundar aqui a questão das equivalências simbólicas dos cromatismos em


Bassani, mesmo se o tema certamente não é menor. Com relação à gama dos vermelhos
(e dos amarelos), há notáveis exemplos tanto em O jardim dos Finzi Contini, quanto em todos
os contos de Cinque Storie Ferraresi.

81
sua estranha transferência, eles estão “cara a cara” de “modo a trocar durante
muito tempo aquele olhar” (Bassani, 1998, p. 778).27
Os olhos — assim como a luz — sofrem dramáticas mutações ao longo
do texto: desde aqueles sonolentos que, incolores, são o instrumento da
constatação da impossibilidade de autorreconhecimento na parte inicial, até
aqueles que estabelecem um vínculo — na realidade falimentar como se revela
no final do romance — com a filha.28
São sempre os olhos que em um dos momentos mais angustiantes e
intensos do texto enfatizam o extremo mal-estar, o início da crise definitiva
de Limentani.
Móveis, inquietos, vivos, os globos dos olhos quase lhe doíam. Dentro
da cavidade das órbitas parecia que se tivessem entocados dois pequenos
animais, inchados de sangue a ponto de estourar e todavia ansiosos por
ingurgitar mais: dois pequenos, ávidos monstros, igualmente prontos
para disparar e se lançar como os efêmeros enxames de fagulhas, as
vírgulas coleantes de luz que convergiam para eles de todos os lados.29
(Bassani, 1998, p. 798).

Os olhos também são o símbolo em que se concentra o ceticismo de


Limentani em relação à religião no episódio em que, na igreja em que ele entra,
lê um estranho texto em um jornal de paróquia que se inicia com a frase: “Você
nunca olhou com atenção uma toupeira?” (o sublinhado é meu):

“modo di ricambiare abbastanza a lungo quello sguardo”.


27

Esse vínculo será retomado totalmente alterado no final do romance como se pode facilmente
28

constatar nos dois fragmentos que reproduzo: “E mentre la contemplava [...] stupito come
sempre che specie fosse così bella, così viva, così forte (quel viso assomigliava forse un po’ al
suo: negli occhi — che però erano più grandi, erano grandissimi!” [E enquanto a contemplava
[...] como sempre surpreendido de como ela era tão bonita, tão viva, tão forte (aquele rosto
talvez se assemelhasse um pouco ao seu: nos olhos — que, no entanto, eram maiores, eram
enormes] (Bassani, 1998, p. 718); “…E perché tornasse a provare anche nei confronti di sua
figlia, rimasta là, a fissarlo al di sopra dell’orlo del cucchiaio coi suoi begli occhi di un blu
cupo, selvatico, il consueto, amaro senso di estraneità, quasi di repulsione, che gli aveva
sempre impedito di considerarla sua, di volerle bene” […] E porque voltasse a sentir em
relação à filha, que estava ali, olhando-o por sobre a borda da colher com seus belos olhos de
um azul escuro, selvagem, o habitual, amargo sentimento de estranheza quase de repulsão,
que sempre o impedira de considerá-la sua, de lhe querer bem] (Bassani, 1998, p. 843).
Mobili, inquieti, vivi, i bulbi degli occhi gli facevano quasi male. Dentro la cavità delle orbite
29

sembrava che si fossero rintanate due piccole bestie, gonfie di sangue da scoppiare e tuttavia
smaniose di ingurgitarne ancora: due piccoli, avidi mostri, altrettanto pronti a scattare e ad
avventarsi quanto gli effimeri sciami di scintille, le virgole guizzanti di luce che convergevano
verso di loro da ogni lato.

82
Você nunca olhou com atenção uma toupeira?”, leu, iniciando do
alto e apertando as pálpebras para decifrar as minúsculas letras em
itálico das primeiras linhas. “Tem as patas anteriores semelhantes a
bolas, das quais se serve para escavar a terra à sua frente como você
faria com uma colherzinha [...] Os olhos pequeníssimos estão quase
totalmente escondidos nos pelos [...] Pense: terá se tornado assim
sozinha, adaptando seu corpo à vida subterrânea? [...] Mas um Deus
infinitamente grande pode se preocupar com seres tão pequenos? Não
escute a voz do materialismo ateu! Olhe tudo o que ao seu redor com
o olho transparente e bom do filho de Deus” [...]. Chegara ao fim da
página: a terceira “O louro?”, pensou. “O que tem a ver o louro?”. Virou
a página. Estava vazia. Não tinha nada mais para ler.30 (Bassani, 1998,
p. 829-831)31

A mutação definitiva dos olhos — em uma construção narrativamente


perfeita, a meu ver — encontra-se justamente no final do romance, alinhada
com a definitiva transformação do próprio Limentani. Os olhos conseguem
ver o real em um olhar finalmente unitário, um olhar que equivale a um ato de
reconhecimento — posterior no texto ao de autorreconhecimento. Limentani
“acredita” estar finalmente vendo tudo (ele mesmo e os outros) em um modo
que vai além da superfície do real, ou seja, de possuir um verdadeiro olhar
“circular”, como escreve Bassani, e talvez possamos dizer que também nos
inclui. Vale a pena, neste sentido, enfatizar a magnífica ambiguidade que
Bassani estabelece com o deslizamento semântico do “envolveu todos” no
fragmento a que me refiro:

“Ha mai osservato con attenzione una talpa?” lesse, iniziando dall’alto e stringendo le
30

palpebre per decifrare le minute lettere corsive delle prime righe. “Ha le zampe anteriori
simili a delle pale, di cui si serve per scavare la terra davanti a sé come faresti tu con un
cucchiaino [...] Gli occhi piccolissimi appaiono nascosti quasi del tutto nella pelliccia [...]
Pensi: sarà diventata così da sola, adattando il suo corpo alla vita sotterranea? [...] Ma un Dio
infinitamente grande può prendersi cura di esseri talmente da poco? Non ascoltarla la voce
del materialismo ateo! Guarda piuttosto tutto ciò che ti circonda con l’occhio trasparente e
buono del figlio di Dio” [...]. Era arrivato in fondo alla pagina: la terza. “La cocorita?”, pensò.
“Cosa c’entra la cocorita?” Voltò pagina. Era vuota. Non c’era niente altro da leggere.
Voluntariamente reproduzi o final do que lê Limentani — e que coincide com o final do
31

capítulo — para ressaltar a aparição incompreensível da caturrita. Que me fez pensar, como
dizia no início, na citada Lulù de Um coração simples (“todos os papagaios se chamam
louro”, escreve Flaubert), que nesse conto é confundida com o Espírito Santo pela delirante
e moribunda protagonista. Parece-me que a citação de Bassani — se, como penso ter
entendido, realmente o é — não possa ser mais adequada. E demolidora.

83
1998,
Volto, p. 842-843)
brevemente, aos olhos para abrir um último paralelo com Sebald. Sa
ebald teve obsessão durante toda sua vida por imagens fotográficas e pictó
Volto,
seus brevemente,
numerosos aos olhos
amigos para Jan
pintores, abrirPeter
um último
Tripp, paralelo com com
foi coautor Sebald.
ele Sa
Sd
Os havia tomado de surpresa. Nives e sua mãe na extremidade da mesa,
ebaldtexto
imo teveintitulado
obsessão durante
Rory e o contador toda
Prearo
Unreconted, suaumvida
no meio,
publicado diantepor imagens
do outro:
póstumo fotográficas e pictó
todos o olhavam
em 2003.
com olhos cheios de espanto, todos imóveis como estátuas. Estranho.
seus
Nestenumerosos
texto, Sebaldamigos
Estranho pintores,
e engraçado
escreve breves Jan
[...] Envolveu Peter
todos
poemas, Tripp,
com uma
quase foicircular.
só olhada
haicais, coautor com ele
que remetem à séd
32

(Bassani, 1998, p. 842-843)


imoem
ras texto intitulado
preto e branco Unreconted,
que o amigo publicado
Peter Tripp póstumoe que
em 2003.
Volto, brevemente, aos olhos para abrir umcriou
último paraleloapresentam
com Sebald. olhos. M
Sabe-se
Nestepertencem
texto, que Sebald
Sebald teve obsessão
escreve brevesdurante toda suaquase
poemas, vida porhaicais,
imagens fotográficas
que remetem à sé
s olhos a personagens famosos,
e pictóricas. Entre seus numerosos amigos pintores, Jan Peter Tripp, foi coautor
ras em preto
comeele
branco que o amigo
de um belíssimo Unreconted,
Peter Tripp
texto intitulado crioupublicado
e que apresentam
póstumo em olhos. M
2003.
s olhos pertencemNesteatexto,
personagens famosos,
Sebald escreve breves poemas, quase haicais, que remetem
à série de gravuras em preto e branco que o amigo Peter Tripp criou e que
apresentam olhos. Muitos desses olhos pertencem a personagens famosos.

Outros, entretanto, são de pessoas ligadas à esfera íntima de Sebald: sua


filha, ele mesmo, seu cão; duas dessas imagens estão reproduzidas no início de
Austerlitz, acompanhando o fragmento inicial do Nocturama e correspondem
Outros, entretanto, são de pessoas ligadas à esfera íntima de Sebald: sua
aos olhos de Wittgenstein. filh
o, seu cão; duas dessas imagens estão reproduzidas no início de Aust
Outros, entretanto, são de pessoas ligadas à esfera íntima de Sebald: sua filh
o, seu cão; duas
Li aveva
32
coltidessas imagens
di sorpresa. La estão
Nives e sua madre reproduzidas
alle estremità início de Aus
noe il ragionier
del tavolo, la Rory
Prearo nel mezzo, l’una di fronte all’altro: tutti lo guardavano con occhi pieni di meraviglia,
immobili tutti quanti come statue. Strano. Strano e buffo [...] Li comprese tutti assieme in una
sola occhiata circolare.
veva colti di sorpresa. La Nives e sua madre alle estremità del tavolo, la Rory e il ragionier
zzo, l’una di fronte all’altro: tutti lo guardavano con occhi pieni di meraviglia, immobili tutti
84
tatue. Strano. Strano e buffo […] Li comprese tutti assieme in una sola occhiata circolare.
veva colti di sorpresa. La Nives e sua madre alle estremità del tavolo, la Rory e il ragionier
zzo, l’una di fronte all’altro: tutti lo guardavano con occhi pieni di meraviglia, immobili tutt
tatue. Strano. Strano e buffo […] Li comprese tutti assieme in una sola occhiata circolare.
Imagem de Austerlitz (Sebald, 2008, p. 9).

Estes olhos veem algo que não vemos. Separados do contexto do rosto
— e de qualquer outro contexto —, lançam olhares que com diversas nuances,
na verdade parecem seguir uma linha de pensamento, para de algum modo
exprimi-la. Imagens distantes e interiores que estes olhares conseguem captar
através de um ato de concentração e de inteligência (no sentido mais complexo
do termo) que lhes permite romper a impalpável, mas trágica, onipresença do
escuro:

[...] e aquele olhar fixo e inquisitivo encontrado em certos pintores e


filósofos que, por meio de pura intuição e do pensamento puro, tentam
penetrar a escuridão que nos cerca. (Sebald, 2008, p. 9)

Jan Peter Tripp é um pintor que pertence à corrente do hiper-realismo


fotográfico, talvez por isto tão amado por Sebald, que nessa corrente
encontrou a “quadratura do círculo”, ou seja, a fusão entre a fotografia —
essencial para ele — e a pintura, mas sobretudo artistas que em suas obras,
na reprodução aparentemente mimética, ultra detalhada do real, exibem o
caráter inapreensível, fugaz, como é para Sebald o indefinível, enganador nada
da realidade.
Outros artistas do hiper-realismo pictórico, não representantes do
fotorrealismo, usam a luz, e particularmente a luz artificial, em suas obras.
Luzes que no mais das vezes reforçam seu caráter “mediado”, jogando com
as refrações em espelhos, vidros, vitrines, águas…, mas também, paredes:

85
mimética consciência visual de uma realidade inq
acrílicos, muito realistas (hiper-realistas, não vale a p
apenas da que
superfícies lisas precisa
permitemperspectiva ótica.consciência visual
ter uma imediata e mimética
de uma realidade inquietante: são telas, muitas vezes acrílicos, muito realistas
(hiper-realistas, não vale a pena destacar), mas, olhando bem, apenas da
precisa perspectiva ótica.

uma realidade inquietante: são telas, muitas vezes


alistas, não vale a pena destacar), mas, olhando bem,
.

Nas imagens, obras de Estes

Textos visuais que nos colocam diante de ins


cenas do cotidiano congeladas em suas ações, povoad
objetos como casas, ruas, lojas…) anônimos, mas com
perfeitamente reconhecíveis, que a tela parece reprodu
Nas imagens, obras de Estes e Hopper
ens, obras
pordemeio
Estes
doecomplexo
Hopper uso da luz refletida, mediada, q
em
86 um instante abstrato, isolado, assinalando a am
aparentemente
ocam diante fixam
de instantes em seu permanente
fragmentários devir, ou s
de realidade,
radicalmente realistas (hiper-realistas, exatamente) ca
Textos visuais que nos colocam diante de instantes fragmentários
de realidade, cenas do cotidiano congeladas em suas ações, povoadas de
sujeitos (e muitas vezes de objetos como casas, ruas, lojas…) anônimos, mas
comuns e como tais, de alguma forma, perfeitamente reconhecíveis, que a
tela parece reproduzir com minuciosa precisão. Mas é por meio do complexo
uso da luz refletida, mediada, que na verdade, essas obras, captam em um
instante abstrato, isolado, assinalando a ambiguidade do tempo/espaço, que
aparentemente fixam em seu permanente devir, ou seja, o fato de que essas
imagens radicalmente realistas (hiper-realistas, exatamente) captam com
intensidade só o reflexo de um segmento mínimo que indica um contexto
perdido. Assinalando, na verdade, o transcorrer do tempo em seu escandir-
se em instantes, em seu inquietante jogo de realidade (as imagens e suas
representações) e de uma bem mais substancial irrealidade (o que uma única
imagem não consegue captar). A união entre os dois opostos se realiza apenas
com a intervenção de uma narração externa: a imaginação (a memória em
sentido muito amplo) do receptor, que subjetivamente completa o significado,
e também a história que ampara e circunda aquele instante.
Assim esses quadros criam a melancólica sensação de serem observadores
de um real do qual se está “fora” e que se contempla refletido, partido, separado
em relação à possibilidade de reconstrução total, evocadora e familiar. Certo
hiper-realismo — talvez muito mais do que outras correntes pictóricas, ao
menos contemporâneas, conseguiram fazer — cria a sensação de vago vazio,
não trágica, mas melancólica (e penso na definição de Paul Ricoeur) de serem
observadores externos à história que os miméticos fragmentos, hiper-realistas,
dessas telas revelam e ocultam ao mesmo tempo.
Bassani também recorre permanentemente a uma técnica e a soluções
narrativas que com as minuciosas, aparentemente hipermiméticas “descrições”
— o que não o são — intensificam o mesmo sentimento melancólico de re-visão
de algo perdido: um tempo e um espaço do qual se está distante e excluído, que
se mostra somente por meio de fragmentários segmentos refletidos, projetados.
Em L’Airone, a questão é posta em termos inversos, mas não diferentes,
porque o “mal” que destrói Limentani é a substituição da nostalgia que a
fugacidade do real e do passado produz, com a neurose, que o leva a rejeitar
aqueles instantes do passado, a não querer pertencer a “aquelas telas”, aos
espaços e aos tempos da própria memória e do próprio presente, em que
acredita não haver espaço para ele. Seus olhos doentes percebem tragicamente
inalcançável aquela vida inundada de uma luz falsa.

87
Bassani é, nesse sentido, um hiper-realista, talvez porque seja aluno de
Roberto Longhi. De um lado, tem a plena consciência — e confiança — no
valor absoluto da imagem, que constitui a base da relação com o real, e bem
sabe que o código que pressupõe a interpretação desta realidade, é a luz: algo
de subjetivo e mutável, que faz da imagem um referente de realidade, mas
também uma abstração e permanente dinâmica.
As ideias/força de Longhi — as essenciais, comuns a quase todas suas
análises, e particularmente aquelas conhecidíssimas sobre o valor da luz
em Caravaggio, em Lotto… —, por ele mesmo associadas a certas técnicas
literárias,33 são a base da percepção visual, e, portanto, da técnica de escrita de
Bassani. São talvez os “olhos de Longhi” que Bassani adota para construir uma
parte de sua escrita, de suas imagens, o que Pasolini definiria “profilmicas”.34

Su questo punto, insomma, il Caravaggio dovette meditare in un secondo tempo, quando


33

cioè, su quell’iniziale impianto di scena mondana che anche la scelta dei colori vividi mostra
legato allo spirito dei primi anni (il giovinetto piumato visto di fronte è probabilmente lo stesso
modello della Buona Ventura), procedette a rinforzare via via ombre e luci fino a un colmo
drammatico che richiama l’immagine poetica dello Eliot... (rispondenza significativa, anche
se casuale, tra un pittore della fine del Cinquecento e un poeta neoelisabettiano…) [“Sobre
este ponto, enfim, Caravaggio precisou pensar em um segundo tempo, isto é, quando sobre
aquela inicial estruturação de cena mundana que também a escolha das cores vivas mostra
ligado ao espírito dos primeiros anos (o jovem emplumado visto de frente é provavelmente o
mesmo modelo de Buona Ventura), começou a reforçar cada vez mais sombras e luzes até um
máximo dramático que remete à imagem poética de Eliot... (correspondência significativa,
mesmo se casual, entre um pintor da final do século XVI e um poeta neo-elizabetano…)].
(Longhi, 1973, p. 831-839).
Apesar de muito longo, desejei reproduzir um célebre trecho seu, justamente sobre Longhi
34

e Caravaggio, convencida como estou que os dois amigos (Pasolini e Bassani) falassem
frequentemente dessas questões entre si e que o impacto das lições de Longhi seja nitidamente
reconhecível neles, mesmo se muito diferentes as linguagens artísticas: “Tutto ciò che io posso
sapere intorno al Caravaggio è ciò che ne ha detto Longhi. È vero che il Caravaggio è stato
un grande inventore, e quindi un grande realista. Ma che cosa ha inventato il Caravaggio?
(… Secondo: ha inventato una nuova luce [...] quotidiana e drammatica) [...] La terza cosa
che ha inventato [...] è un diaframma (anch›esso luminoso, ma di una luminosità artificiale
che appartiene solo alla pittura e non alla realtà) che divide sia lui, l›autore, sia noi, gli
spettatori, dai suoi personaggi, dalle sue nature morte, dai suoi paesaggi. Questo diaframma,
che traspone le cose dipinte dal Caravaggio in un universo separato, in un certo senso morto,
almeno rispetto alla vita e al realismo con cui quelle cose erano state percepite e dipinte,
è stato stupendamente spiegato da Roberto Longhi con la supposizione che il Caravaggio
dipingesse guardando le sue figure riflesse in uno specchio. Tali figure erano perciò quelle
che il Caravaggio aveva realisticamente scelto, negletti garzoni di fruttivendolo, donne del
popolo mai prese in considerazione, ecc., e inoltre esse erano immerse in quella luce reale di
un› ora quotidiana concreta, con tutto il suo sole e tutta la sua ombra: eppure… eppure dentro
lo specchio tutto pare come sospeso come a un eccesso di verità, a un eccesso di evidenza, che

88
Em L’Airone, a meu ver, Bassani alterna sua melancólica voz “à maneira
de Hopper”, longhiana, com uma técnica violenta e agressiva, muito próxima
do fotorrealismo, do hiper-realismo e de suas reviravoltas vertiginosas. Ou
seja, Bassani se concentra na função e possibilidade do uso da luz, para, na
verdade, reproduzir a “caracteriologia mortuária” de que falou Pasolini,
retirada das lições de Longhi. Mas — esta é a sua novidade — não para criar o
distanciamento melancólico e no fundo “gentil” que é geralmente associado à
sua escrita, mas uma violenta e insanável cisão entre o sujeito e o mundo, que
talvez ele intua como condição ontológica contemporânea.
Lido sob esta perspectiva, o trecho — por si só belíssimo — da
aproximação de Limentani à loja do embalsamador, adquire um valor
extraordinário:

Avançava devagar, deixando-se levar pelas pernas para o centro da


praça, e nesse meio tempo o espaço circunstante e tudo compreendido
nele [...] tomavam pouco a pouco um aspecto diferente, lentamente
se modificavam [...] preferiu virar à direita, em direção à vitrine
cintilante [...]. Entendera há já algum tempo: tratava-se da oficina do

lo fa sembrare morto. [...] Ciò che mi entusiasma è la terza invenzione del Caravaggio: cioè il
diaframma luminoso che fa delle sue figure delle figure separate, artificiali, come riflesse in un
specchio cosmico. Qui i tratti popolari e realistici dei volti si levigano in una caratteriologia
mortuaria; e così la luce, pur restando così grondante dell›attimo del giorno in cui è colta, si
fissa in una grandiosa macchina cristallizzata.” [Tudo o que eu sei sobre Caravaggio é o que
Longhi disse dele. É verdade que Caravaggio foi um grande inventor, e, portanto, um grande
realista. Mas o que inventou Caravaggio? (... Segundo: inventou uma nova luz [...] cotidiana
e dramática) [...] A terceira coisa que inventou [...] é um diafragma (este também luminoso,
mas de uma luminosidade artificial que pertence apenas à pintura e não à realidade) que
divide tanto ele, o autor, como nós, os espectadores, de seus personagens, de suas naturezas
mortas, de suas paisagens. Este diafragma, que transpõe as coisas pintadas por Caravaggio em
um universo separado, em certo sentido morto, pelo menos em relação à vida e ao realismo
com que aquelas coisas haviam sido percebidas e pintadas, foi estupendamente explicado por
Roberto Longhi com a suposição de que Caravaggio pintasse olhando suas figuras refletidas
em um espelho. Essas figuras eram as que Caravaggio havia realisticamente escolhido,
desleixados rapazes, verdureiros, mulheres do povo nunca levadas em consideração, etc., e
além disso elas estavam imersas naquela luz real de uma hora cotidiana concreta, com todo
o seu sol e toda a sua sombra: e… e dentro do espelho tudo parece como que suspenso como
um excesso de verdade, um excesso de evidência, que o faz parecer morto. [...] O que me
entusiasma é a terceira invenção de Caravaggio, isto é, o diafragma luminoso que faz de suas
figuras separadas, artificiais, como que refletidas em um espelho cósmico. Aqui os traços
populares e realistas dos rostos se levigam em uma caracteriologia mortuária; e assim a luz,
mesmo permanecendo tão escorrida pelo instante do dia em que foi captada, se fixa em uma
grandiosa máquina cristalizada] (Pasolini, 1999).

89
embalsamador [...] Mas não importava. Sem que a ideia lhe desse o
mínimo sentimento de repulsa, continuou a permitir que as pernas o
levassem, um passo depois do outro, até lá, a mais ou menos um metro
de distância da grande placa de cristal. Parou ali, fascinado.35 (Bassani,
1998, p. 833)

O modo minucioso com que Bassani suspende a cena, com que a


narração “congela” a imagem, logo após o instante em que Limentani toca a
placa de cristal com a testa, sentindo o terrível frio que se estende até o leitor
— e que domina como sensação o resto do capítulo —, abre ao mais horrível
abismo; é uma alucinação que enfatiza e estabelece definitivamente a cisão
insanável entre realidade e irrealidade de Limentani, já de fato “morto”, incapaz
de tecer uma narração que una os dois polos que se notavam em relação às
telas hiper-realistas. Apesar da aparência de extrema realidade da cena, assiste-
se à completa decomposição de um universo mental em pedaços:

[...] entupida de objetos dispostos em uma desordem apenas aparente, a


vitrines resplandecia na sua frente como um pequeno, assolado universo,
contíguo, mas inatingível. Ele bem sabia: havia a placa de vidro, no
meio, que o fazia assim. Então como a placa, embora tão límpida que
parecia quase invisível, lhe devolvia um pouco de sua imagem (apenas
uma sombra, é verdade, mas incômoda), com o objetivo de apagar
completamente esta leve sombra residual, e de se iludir que a própria
placa não existisse, aproximou-se ainda mais, até quase tocar o vidro com
a fronte, sentindo o frio mais frio que o ar da noite tocar seu rosto. Atrás
do vidro o silêncio, a imobilidade absoluta, a paz.36 (Bassani, 1998, p. 834)

Procedeva adagio, lasciandosi portare dalle gambe verso il centro della piazza, e nel frattempo
35

lo spazio circostante e ogni cosa compresa dentro di esso [...] prendevano a mano a mano
un aspetto diverso, lentamente si modificavano [...] preferì piegare a destra, verso la vetrina
scintillante [...] Lo aveva capito da un pezzo: si trattava della bottega dell’imbalsamatore [...]
Ma non importava. Senza affatto provare all’idea il minimo senso di repulsione, continuò a
permettere che le gambe lo conducessero un passo dopo l’altro fino là, a sì e no un metro di
distanza dalla grande lastra di cristallo. Si arrestò sui due piedi, affascinato.
[...] stracolma di oggetti disposti in un disordine soltanto apparente, la vetrina gli splendeva
36

dinanzi come un piccolo, assolato universo a sé stante, contiguo ma inattingibile. Lo sapeva


bene: c’era la lastra, in mezzo, a renderlo tale. E allora siccome la lastra, quantunque così
tersa da risultare pressoché invisibile, gli rimandava qualcosa della sua immagine (appena
un’ombra, é vero, però fastidiosa), allo scopo di cancellarla completamente, questa lieve
ombra residua, e di illudersi che la lastra medesima non esistesse, si avvicinò ancora di più,
fin quasi toccare il vetro con la fronte, a sentirsi sfiorare il volto dal freddo più freddo dell’aria
della sera. Di là dal vetro il silenzio, l’immobilità assoluta, la pace.

90
Limentani está finalmente no silêncio, na imobilidade absoluta, na paz
(estou citando) naquele outro espaço, além do vidro, que vê — pela primeira
vez — alucinado, confundindo completamente o real com o irreal, em um
universo que lhe parece perfeito em sua estaticidade:

[...] Vivos de algum modo também os pássaros de uma vida que não
corria mais nenhum risco de se deteriorar, brilhantes, mas sobretudo
muito mais belos do que quando respiravam e o sangue corria veloz
em suas veias, só ele, talvez — pensava — fosse capaz de entender
verdadeiramente a perfeição daquela sua beleza final e não perecível, de
apreciá-la a fundo.37 (Bassani, 1998, p. 835).

É realmente ali que termina sua não-viagem alucinada, angustiada da


morte para a morte; e há algo de cômico, de ridículo e grotesco e ao mesmo
tempo de terno e pungente no trecho, (não por acaso, creio, Bassani cita os
esquilos e Walt Disney); talvez porque aqueles animais embalsamados sejam
um evidentíssimo trompe l’oeil; muito semelhantes, como dissemos não iguais,
às fotografias sobre as quais muito refletiu Barthes, que Limentani confunde
com o verdadeiro. Aliás, com a própria verdade. E de fato, como o texto não
deixa de esclarecer, Limentani “vê” estes animais embalsamados, e depois todo
o resto, em um estado de êxtase: está, na realidade, no mínimo fora de si.

Então tentou se olhar como se olhara naquela mesma manhã no espelho


do banheiro [...] como se poucas horas tivessem sido suficientes para
espalhar sobre eles o pó de anos e anos, sentia lentamente surgir dentro
dele, ainda confuso mas rico de misteriosas promessas, um pensamento
secreto que o libertava, que o salvava. [...] De vez em quando sacudia a
cabeça. Como se tornava estúpida, ridícula, grotesca a vida, a famosa
vida, olhando-a de uma vitrine de embalsamador!38 (Bassani, 1998,
p. 836-837)

[...] Vivi ad ogni modo anche gli uccelli di una vita che non correva più nessun rischio
37

di deteriorarsi, tirati a lucido, ma soprattutto diventati di gran lunga più belli di quando
respiravano e il sangue correva veloce nelle loro vene, lui solo, forse — pensava —, era in
grado di capirla davvero la perfezione di quella loro bellezza finale e non deperibile, di
apprezzarla sino in fondo.
Cercò allora di guardarsi come si era guardato quella mattina stessa nello specchio del bagno
38

[...] come se poche ore fossero state sufficienti a spargere su di essi la polvere di anni e anni,
sentiva lentamente farsi strada dentro se stesso, ancora confuso eppure ricco di misteriose
promesse, un pensiero segreto che lo liberava, che lo salvava. [...] Ogni tanto scuoteva il capo.
Come diventava stupida, ridicola, grottesca la vita, la famosa vita, a guardarla dall’interno di
una vetrina di imbalsamatore!

91
A euforia posterior à cena da loja do embalsamador — uma euforia
grotesca, inversamente proporcional ao angustiante tom trágico que foi
proposto até aquele momento no texto —, surge toda da inversão de um ponto
de vista, baseado em uma ilusão, em um novo autoengano, mas desta vez —
talvez esteja aqui a chave do tom tragicômico do final do romance — tomado
por verdadeiro e diretamente relacionado a uma imagem: um trompe l’oeil que,
se observado apenas em superfície, sem a intervenção “mágica” da arte, não
consegue superar seu caráter enganador:
Uma imagem é precisamente uma abstração do mundo, em duas
dimensões: é o que subtrai uma dimensão ao mudo real e, exatamente
por isso, inaugura o poder da ilusão. [...] a ilusão realista, mimética,
hologramática termina com o jogo da ilusão pela via do jogo da
reprodução, da reedição do real; não mira mais do que o extermínio do
real por seu duplo [...] Ao contrário, o trompe-l’oeil, por exemplo, que
retira uma dimensão aos objetos reais, torna mágica a presença deles
[...] O trompe-l’oeil é o êxtase do objeto real em sua forma imanente e
acrescenta ao encanto formal da pintura, o encanto espiritual do apelo,
da ilusão, do engano das formas.39 (Baudrillard, 2006, p. 28)

Creio que L’Airone coloque este problema e tenha no final, na base de


seu significado, também uma notável reflexão, metatextual, sobre a função da
arte em um mundo como o que Bassani tem diante de si quando o escreve —
L’Airone é de 1968 —, já muito distante do mundo sobrecarregado de ética do
primeiro pós-guerra, em violenta mudança, e que se dirige para a era mais
dura do materialismo contemporâneo. Bassani nos coloca diante de um sujeito
alucinado que tem com relação à vida (e à morte) a perversa confusão de que
fala Barthes a respeito das fotografias de cadáveres, ou seja, uma tendência
a confundir o real com o vivo e com o verdadeiro, fato próprio da estética e
da arte do realismo e daquele neorrealismo ao qual, no fundo, Bassani nunca
pertenceu como ele mesmo parece indicar em L’Airone:
Na Fotografia, a presença da coisa (em um certo momento passado)
jamais é metafórica; quanto aos seres animados, o mesmo ocorre com

Un’immagine é precisamente un’astrazione del mondo, in due dimensioni: é quello che


39

sottrae una dimensione al mondo reale e, proprio per questo, inaugura il potere dell’illusione.
[...] l’illusione realista, mimetica, ologrammatica finisce con il gioco dell’illusione per via del
gioco della riproduzione, della riedizione del reale; non punta ad altro che allo sterminio del
reale dal suo doppio [...] All’inversa il trompe-l’oeil, per esempio, che toglie una dimensione
agli oggetti reali, rende magica la presenza di essi [...] Il trompe-l’oeil é l’estasi dell’oggetto
reale nella sua forma immanente ed aggiunge all’incanto formale della pittura, l’incanto
spirituale del richiamo, dell’illusione, dell’inganno delle forme.

92
sua vida, salvo quando se fotografam cadáveres; e ainda: se a fotografia
se torna então horrível, é porque ela certifica, se assim podemos dizer,
que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma coisa
morta. Pois a imobilidade da foto é como o resultado de uma confusão
perversa entre dois conceitos: o Real e o Vivo: ao atestar que o objeto
foi real, ela induz sub-repticiamente a acreditar que ele está vivo, por
causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor absolutamente
superior, como que eterno. (Barthes, 1984, p. 118)

Bassani coloca todas as luzes, todos os olhares captados pelos olhos do


romance para traçar uma linha de demarcação nítida entre estes dois conceitos.
O real é escuro, sem sentido, desolador, ilusoriamente iluminado por clarões
de luz neon, fria, plana, doente, unidimensional… e esconde uma verdade
irrecuperável (o verdadeiro) para quem — como o simbólico Limentani —
quer estabelecer uma coincidência e uma adesão perfeita entre realidade
tangível — instantânea — e vida, entre o visível “constatável” e o sentido da
existência, invisível e captável somente além da superfície plana que os hiper-
realistas (não os realistas…) enfatizam.
O real, como sustenta Barthes, não é necessariamente vivo. Somente a
irradiação de sua “vivacidade” (de novo Mallarmé…) pode sê-lo. Esta irradiação,
a verdadeira imagem — a imagem que emana dos quadros de Cavaglieri, de
alguns pintores ou de algumas fotografias ou de alguma escrita, não entra —
senão através do paradoxo grotesco — na vitrine dos embalsamados, nem
pode assumir a aparência banal — “e seca, como um ramo”, pode-se pensar
— dos objetos em uma loja.
Esta irradiação, para Bassani, se constrói sobre imagens que só a arte
consegue restaurar e recuperar do passado para e no presente, garantindo e
preservando a dinâmica desta refração que é a única consciência, a única realidade
à qual pode se agarrar o Sujeito. Não se colocando, como um animal empalhado,
na vitrine de uma loja, ou em um Nocturama, mas buscando — como faz a
garça no texto — una continuidade entre a vida e a morte, ou seja, quebrando
o vidro que enfatiza a estranheza do real e do mundo: “Por que ali, fechados
naquela sala, atrás de placa da janela, pareciam tão estranhos e inalcançáveis?
[...] Parecia-lhe estar diante de um quadro emoldurado. Impossível entrar nele.
Não havia lugar, espaço suficiente”.40 (Bassani, 1998, p. 827)

Come mai lì, chiusi in quella stanza, dietro la lastra della finestra, apparivano talmente
40

estranei e irraggiungibili? [...] Gli pareva di trovarsi davanti a un quadro in cornice.


Impossibile entrarci dentro. Non c’era posto, spazio sufficiente.

93
A garça morre por acaso, como todos, observando, com melancolia,
talvez com o que Bassani define às vezes como um “remorso”: a vida e o real ao
qual desde sempre, até no ato extremo da morte, como todos nós, está ligado
— ou talvez separado — por uma sutil, frágil, oculta, dúvida. Uma dúvida
da qual se tenta fugir escondendo-se nas frágeis imagens que no fundo são
a única ilusão — o aparente refúgio — relativo à possibilidade de exista uma
terra firme:

E apesar de ferido, apesar de fraco pelo sangue perdido, e conse-


quentemente desejoso mais que nunca de sentir ali, abrigado do vento,
o último calor do sol, a um dado momento pensara que lhe convinha
de alguma forma e rápido “trocar de lugar”. O longo baixio lá, recoberto
densamente de plantas mais ou menos da mesma cor de suas penas, e no
conjunto bastante altas para lhe permitir caminhar dentro sem se deixar
ver, talvez representasse o que de melhor para seu caso. Esconder-se lá
dentro, no entanto, à espera da noite já próxima. E depois, depois olhar.
Porque nem se sabia se o baixio era circundado completamente pela
água. Quem sabe se por trás não estivesse ligado de algum modo com a
terra firme.41 (Bassani, 1998, p. 779)

Tradução de Francisco Degani

Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon
Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
BASSANI, Giorgio. Opere. Milano: Mondadori (I Meridiani), 1998.
BAUDRILLARD, Jean. El complot del Arte. La ilusión y la desilusión estéticas. Buenos
Aires: Ammorortu, 20006.

E benché ferito, benché indebolito dal sangue perduto, e di conseguenza desideroso più che
41

mai di godersi lì, al riparo del vento, l’ultimo tepore del sole, a un dato momento aveva
pensato che gli conveniva comunque e subito ‘cambiare zona’. La lunga barena, là, ricoperta
fittamente di piante più o meno dello stesso colore delle sue penne, e nell’insieme abbastanza
alte da permettergli da camminarci dentro senza lasciarsi scorgere, forse rappresentava ciò
che meglio faceva al suo caso. Nascondersi là dentro, intanto, in attesa della notte ormai
vicina. E dopo, dopo stare a vedere. Perché non era neanche detto che la barena fosse
circondata dall’acqua completamente. Chissà che dietro non fosse collegata in qualche modo
con la terraferma.

94
HIRSH, Marianne. Family Frames: Photography, Narrative and Postmemory. South
Carolina, US: Createspace Independent Pub, 2012.
TOMASI DI LAMPEDUSA, Giuseppe. O leopardo. Trad. Rui Cabeçadas. São Paulo:
Abril Cultural, 1979.
LONGHI, ROBERTO. Da Cimabue a Morandi. Milano: Mondadori, 1973.
PASOLINI, Pier Paolo. “La luce di Caravaggio”. In: Saggi sulla letteratura e sull’arte,
v. II. Milano: Mondadori (I Meridiani), 1999.
SEBALD, W. G. Austerlitz. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.

95
A sombra do mentiroso.
Donald Trump entende mal The verdict of the
people, de George Caleb Bingham

Uwe Fleckner

Sempre após as eleições presidenciais nos Estados Unidos, a posse do político


mais poderoso do mundo ocidental é encenada durante vários dias numa
cerimônia tão festiva quanto midiática. A cada quatro anos, uma intensa
sequência de atos altamente simbólicos (juramento, discursos, culto, desfile
e outros) determina as festividades inaugurais, com as quais o presidente
norte-americano, novo ou reeleito, demonstra sobretudo ao público do país as
diretrizes políticas do seu mandato: palavras, gestos e música, protagonistas,
figurantes, requisitos e cenários arquitetônicos contribuem para um evento
cuidadosamente coreografado. Há décadas é utilizada durante essa festividade
também uma obra de arte, isso para a decoração do Inaugural Luncheon [Almoço
inaugural], a que o congresso convida o novo presidente ao National Statuary
Hall do Capitólio, em Washington. A tradição de convidar para um almoço o
presidente recém-empossado e sua família, juntamente com personalidades de
destaque dos âmbitos político, jurídico e religioso, remonta do final do século
XIX, embora somente tenha se estabelecido como cerimonial regular em 1953,
quando da posse de Dwight D. Eisenhower. Desde 1985, começando com o
segundo mandato de Ronald Reagan, que escolheu Autumn on the Hudson
River [Outono no rio Hudson] (1860), de Jasper Francis Cropsey (Washington
National Gallery of Art), uma pintura é selecionada como pano-de-fundo da
mesa posta com requinte, um profano altar pictórico, para com isso entabular
uma associação visual à identidade política e ao vínculo do novo presidente
com a pátria e a Nação.1

1
Cf. <http://www.senate.gov/artandhistory/art/common/collection_list/inaugural_luncheons.
htm>. Acesso em: 10 set. 2018.
Curioso observar que, para esse fim, os presidentes indicam frequen-
inclusive de ser além
temente, especialmente
de retratostransportadas
históricos dedeseus
outras cidades anoWashington
antecessores cargo, comopara tais
George
ocasiões, comoWashington, Thomas
o View of the Jefferson
Yosemite e John
Valley [VistaAdams, paisagens
do vale de motivos
Yosemite] (1865), pintura
americanos e não, o que seria de se esperar, pinturas históricas com temas
de Thomas Hill –daescolhida
elevados história por Barack
nacional. 2 Obama em
Algumas 2009,
obras o que inclusive
tiveram representadeuma
ser decisão
especialmente transportadas de outras cidades a Washington para tais ocasiões,
muito consciente e aliás programática a favor desse quadro do pintor norte-americano
como o View of the Yosemite Valley [Vista do vale Yosemite] (1865), pintura de
(imagem 1).3 Hill — escolhida por Barack Obama em 2009, o que representa uma
Thomas
decisão muito consciente e aliás programática a favor desse quadro do pintor
norte-americano (imagem 1).3

Thomas Hill: View of the Yosemite Valley, 1865, óleo sobre tela, 137,2 x 180,3 cm,
New York, New-York Historical Society.
Thomas Hill: View of the Yosemite Valley, 1865, óleo sobre tela, 137,2 x 180,3 cm, New
York, New-York Historical Society.
George Bush escolheu em 1989 a pintura de Rembrandt Peale George Washington (Patriae
2

Pater), de 1824, (Washington, U.S. Senate Collection); Bill Clinton escolheu em 1993 Thomas
Obama visava
Jefferson, rememorar
de Thomas Sully, do Abraham Lincoln,
ano de de 1856 em cujo
(Washington, U.S.mandato o Yosemite
Senate Collection), para Valley
seu segundo mandato ele apresentou em 1997, além desse retrato a pintura John Adams,
foi o primeiro território
de Eliphalet Frazerdos Estados
Andrews, Unidos
de 1881 a ser declarado
(Washington, U.S. Senate de proteção
Collection); ambiental.
George W. As
Bush escolheu em 2001 West Front, Steps of the Capitol, de 1902, quadro de Colin Campbell
solenidades para(Bank
Cooper a posse de Obama
of America sucederam
Art Collection) com
e para seu alusões
segundo ao seu
mandato reputado
em 2005, antecessor,
Wind River,
Wyoming de 1870, de autoria de Albert Bierstadt (Denver, American Museum of Western
cujo bicentenário
Art — Thede nascimento
Anschutz foi comemorado
Collection); naquele
Barack Obama escolheu paraano, e a sublime
seu primeiro mandatopaisagem
em de
2009 View of the Yosemite Valley, de 1865, de Thomas Hill (New York, New-York Historical
Hill configurava
Society) eno contexto
para o lema
o segundo, inaugural
em 2013, A New
Niagara Falls Birth
do ano of Freedom
de 1856, do pintor [O renascimento
Ferdinand
Richardt (Washington, U.S. Department of State, Diplomatic Reception Rooms).
da liberdade], ou seja, uma citação do célebre Gettysburg Address com que Lincoln no
3
Sobre a vida e a obra do artista cf. Thomas Hill. The Grand View (org. por Marjorie Dakin
Arkelian), catálogo da exposição, Oakland Museum et al. 1980-1981; Direct from Nature. The
Oil Sketches of Thomas Hill (org. por Janice T. Driesbach), Yosemite Association, Yosemite
National Park / Crocker Art Museum, Sacramento, 1997.

98
em 1997, além desse retrato a pintura John Adams, de Eliphalet Frazer Andrews, de 1881 (Washington,
U.S. Senate Collection); George W. Bush escolheu em 2001 West Front, Steps of the Capitol, de 1902,
quadro de Colin Campbell Cooper (Bank of America Art Collection) e para seu segundo mandato em 2005,
Wind River, Wyoming de 1870, de autoria de Albert Bierstadt (Denver, American Museum of Western Art
– The Anschutz Collection); Barack Obama escolheu para seu primeiro mandato em 2009 View of the
Obama visava rememorar Abraham Lincoln, em cujo mandato o
Yosemite Valley foi o primeiro território dos Estados Unidos a ser declarado
de proteção ambiental. As solenidades para a posse de Obama sucederam
com alusões ao seu reputado antecessor, cujo bicentenário de nascimento foi
comemorado naquele ano, e a sublime paisagem de Hill configurava no contexto
o lema inaugural A New Birth of Freedom [O renascimento da liberdade], ou
seja, uma citação do célebre Gettysburg Address com que Lincoln no dia 19 de
novembro de 1863, em meio à Guerra de Secessão, conclamou à liberdade, à
igualdade e à unidade nacional.4

Ilusão populista
O passado recente é capaz de mostrar quão delicada pode ser a
utilização de uma pintura se isso se dá por mero cálculo político e se pauta
pelo conteúdo programático do quadro eleito, sem que a escolha seja balizada
por um olhar treinado em iconografia. Sucedeu que, para Donald Trump,
visando a composição de sua posse, foi selecionada uma pintura, que ao que
tudo indica deveria ser entendida como documento de uma política popular
de um passado nacional supostamente melhor — e como prognóstico de
um futuro nos mesmos termos. A 20 de janeiro de 2017 a National Statuary
Hall expôs The Verdict of the People [O veredito do povo] (1854), de George
Caleb Bingham, curiosamente a primeira pintura de gênero (isto é, gênero de
pintura tido como mais popular) na série das pinturas oficiais apresentadas
(imagens 2-3).5

4
Cf. Uwe Fleckner, “A new birth of freedom. Thomas Hill’s ‘View of the Yosemite Valley’ as
a politicized landscape between nature conservation and national consciousness”, In: Uwe
Fleckner, Yih-Fen Hua e Shai-Shu Tzeng: Memorial Landscapes. World Images East and
West, Berlin e Boston 2019 (Mnemosyne. Schriften des Internationalen Warburg-Kollegs)
[no prelo].
5
Sobre a obra do artista cf. Maurice E. Bloch, The Paintings of George Caleb Bingham. A
Catalogue Raisonné, Columbia 1986.

99
curiosamente a primeira pintura de gênero (isto é, gênero de pintura tido como mais
popular) na série das pinturas oficiais apresentadas (imagens 2-3).5

Presidente Donald Trump e Vice-Presidente Mike Pence com suas esposas, durante o Inaugural
Presidente Donald
Luncheon (comTrump
o quadroe The
Vice-Presidente Mike
Verdict of the People, Pence Caleb
de George com Bingham
suas esposas, durante o
ao fundo),
InauguralU.S.
Luncheon (com Statuary
Capitol, National o quadro The
Hall, Verdict
2017. of the/ AFP
[Molly Riley People,
/ Gettyde George Caleb
Images].
Bingham ao fundo), U.S. Capitol, National Statuary Hall, 2017. [Molly Riley / AFP /
Getty Images]

4
Cf. Uwe Fleckner, “A new birth of freedom. Thomas Hill’s ›View of the Yosemite Valley‹ as a politicized
landscape between nature conservation and national consciousness”, In. Uwe Fleckner, Yih-Fen Hua e
Shai-Shu Tzeng: Memorial Landscapes. World Images East and West, Berlin e Boston 2019 (Mnemosyne.
Schriften des Internationalen Warburg-Kollegs) [no prelo].
5
Sobre a obra do artista cf. Maurice E. Bloch, The Paintings of George Caleb Bingham. A Catalogue
Raisonné, Columbia 1986.

George Caleb Bingham: The Verdict of the People, 1854, óleo sobre tela, 117 x 140 cm, Saint
George CalebLouis MuseumThe
Bingham: Verdict
of Art. of the
[Universität People,Kunstgeschichtliches
Hamburg, 1854, óleo sobre tela, 117 x 140 cm,
Seminar].
Saint Louis Museum of Art. [Universität Hamburg, Kunstgeschichtliches Seminar]
100
Nesse quadro, uma multidão se apinha sob a bandeira americana numa cidade
provinciana, onde um orador, circundado por homens de um comitê eleitoral, lê os
resultados de uma votação recém-apurada: o voto do povo (conforme o título do quadro)
Nesse quadro, uma multidão se apinha sob a bandeira americana numa
cidade provinciana, onde um orador, circundado por homens de um comitê
eleitoral, lê os resultados de uma votação recém-apurada: o voto do povo
(conforme o título do quadro) é anunciado. As pessoas, encostadas umas às
outras, postam-se em grupos, discutem, gesticulam; estão agitadas, em parte
triunfantes, em parte abatidas. Em primeiro plano um homem se encontra
caído no chão — certamente pintado de acordo com o modelo anatômico
de uma conhecida escultura antiga, “Gaulês moribundo” (Roma, Museu do
Capitólio), ou seja, conforme a representação de um perdedor aniquilado. O
homem sem face está supostamente bêbado, o cabelo em desalinho, o chapéu
jogado na poeira da rua.
O quadro integra uma série de três obras, em que diversos episódios
de eleições democráticas nos Estados Unidos são tematizados, perpassados
por sutis alusões a motivos políticos relativos a localidades provincianas:
The County Election [A eleição do condado] (1851-1852), Stump Speaking
[Discurso do cepo] (1853-1854), que mostra o discurso demagógico de um
candidato em campanha e, finalmente, The Verdict of the People. As três
pinturas abordam experiências que o próprio artista pode ter feito, uma
vez que ele não somente atuava como pintor, mas também como político.
Em 1846 ele tentara sem sucesso ser eleito deputado estadual do Missouri,
o que finalmente conquistou dois anos mais tarde, como representante
convicto do Partido Whig e defensor do sufrágio universal. Até sua morte
em 1879 Bingham desempenhou então diversas funções públicas, entre
elas State Treasurer do Missouri e presidente do Kansas City Board of Police
Commissioners.6
Ao anunciar no dia 16 de dezembro de 2016 a escolha do quadro
de Bingham para a solenidade inaugural, Roy Blunt, presidente do Joint
Congressional Committee on Inaugural Ceremonies [Comitê Parlamentar
Conjunto para Cerimônias de Abertura], destacou, aludindo certamente
às turbulências recentes da eleição anterior, que a imagem representaria de
maneira convincente as tensões inerentes à jovem democracia americana
dos anos 1850. Mas, mais que tudo, salientou a força integrativa da pintura:
“Todos estão aqui — os agricultores, trabalhadores, comerciantes, ocidentais,
crianças, políticos, imigrantes, veteranos, mulheres e afro-americanos. Eles
são exultantes, desanimados, confusos, argumentativos, joviais e intensamente

6
Acerca dos aspectos políticos do artista ver: Groseclose, 1978, p. 5-19; Husch, 1987, p. 5-22;
Rash, 1991, p. 26-47.

101
sérios”.7 Tal descrição, todavia, é uma ilusão populista, pois a atitude dos
eleitores representados burlescamente, de modo algum coincide com a
expressão intensely serious [intensamente sérios]. Com exceção da multidão,
predominante na pintura, composta de homens brancos das classes média
e alta (únicos naquela época com direito ao voto), podem ser vistos apenas
uns poucos meninos, um único escravo negro, empurrando uma carrocinha
com louça e uma garrafa; além de serem identificáveis à direita da pintura,
na rotunda, umas poucas mulheres em cima de uma sacada, onde também
tremula uma bandeira com a inscrição Freedom for Virtue / Restriction for
Vice [Liberdade à Virtude / Restrição ao Vício]. Esse lema do Movimento
Temperança é tensionado na composição, através de uma junção diagonal do
ângulo superior direito com o inferior esquerdo, pela figura do trabalhador
negro, lembrando que nos debates políticos da época não raramente a luta
contra o abuso do álcool se vinculava à luta contra a escravidão, igualmente
considerada imoral (Humphrey, 1828). Com essa imagem George Caleb
Bingham se posiciona de maneira mais ou menos explícita a favor da abolição
da escravatura; dentro de um conflito que nos próximos anos dividirá cada vez
mais o país.
Em suma, aqui se narra um país poucos anos antes da deflagração da
Guerra Civil, o que é um aspecto delicado dessa escolha de pintura, certamente
não levado em conta por Trump nem por seus apoiadores. A intenção foi com
certeza político-patriótica de conjurar com o quadro a unidade nacional dos
Estados Unidos e encená-lo como documento da vontade incondicional do
povo. A supostamente necessária devolução do poder ao povo americano foi
um dos argumentos mais fortes ad populum da campanha presidencial de
Trump. Mas ambas as intenções provocaram naturalmente protesto, quando
a decisão pela obra de Bingham se tornou pública. O Saint Louis Museum of
Art, proprietário do quadro, recebeu uma petição — ainda que fracassada
— no sentido de recusar o pedido de empréstimo, considerando que o novo
presidente justamente não atingira a maioria numérica dos votos e que suas
misoginia e xenofobia e seu racismo não combinariam com o conteúdo da
pintura (Barone, 2017).

7
Everyone is here — the well-to-do farmers, laborers, merchants, westerners, kids, politicians,
immigrants, veterans, women, and African Americans. They are elated, dejected, confounded,
argumentative, jovial, and intensely serious. (Kennicott, 2017).

102
Uma imagem denunciadora
O significado genuíno dessa imagem escapou não somente ao presidente recém-
empossado e à sua equipe, mas também aos adversários de Donald Trump. Justo ao lado
do anunciante da apuração é possível identificar a figura de um homem – mais do que
Uma imagem denunciadora
claramente – que, pelo lápis ou pena de escrever enfiada atrás da orelha, é explicitamente
O significado genuíno dessa imagem escapou não somente ao presi-
mostrado como um dos responsáveis pela contagem dos votos. Sua cabeça já de todo
dente recém-empossado e à sua equipe, mas também aos adversários de
Donald Trump.
caricatural Justo
projeta umaaosombra
lado denunciadora
do anunciante sobreda apuração
o mural, que – énãopossível
por acasoidentificar
mais ou
a figura de um homem — mais do que claramente — que, pelo lápis ou pena
menos na secção
de escrever enfiada áurea da largura
atrás do quadro
da orelha, é –explicitamente
se apoia à coluna mostrado
que sustenta ocomo edifícioum
dos responsáveis pela
representativo, sem contagem
dúvida dos
a prefeitura da votos.
cidade. OSua cabeça
detalhe já dedenuncia
da imagem todo caricatural
a traição
projeta uma sombra denunciadora sobre o mural, que — não por acaso mais
na medida
ou menos naemsecção
que a super-comprida sombra do
áurea da largura donariz evidencia
quadro — que
se aapoia
vitória àeleitoral
coluna aquique
sustenta o edifício
comemorada representativo,
foi conquistada à custa sem dúvida
de mentira a prefeitura da cidade. O detalhe
e traição.
da imagem denuncia a traição na medida em que a super-comprida sombra
É fácil imaginar
do nariz evidencia que os comentários
a vitória ácidos que
eleitoral aquio quadro poderia terfoi
comemorada provocado no dia à
conquistada
custa de mentira e traição.
da posse de Donald Trump, se os críticos do político tivessem observado mais
É fácil imaginar os comentários ácidos que o quadro poderia ter
provocado no diaa pintura
acuradamente da posse de Donald
absolutamente Trump,
satírica se os críticos
de Bingham (imagemdo4).político tivessem
observado mais acuradamente a pintura absolutamente satírica de Bingham
(imagem 4).

A & T Designs: Chaveiro com os dizeres “Donald Trump is the real liar” [Donald Trump é o
real mentiroso], 2016, metal e polyester, Ø 5,7 cm, propriedade particular.
[Universität Hamburg, Kunstgeschichtliches Seminar].

Certo é que a cena minudente de The Verdict of The People, cuja tradição
de gênero se deixa remontar aos quadros respectivos da pintura holandesa de
gênero do século XVII, parece mostrar a descrição popular de um dia de eleição

103
numa cidade interiorana dos Estados Unidos em meados do século XIX. No
entanto, malogra a intenção de Trump de testemunhar por meio de uma obra
como esta seu vínculo com o povo norte-americano e de se colocar do lado dos
“forgotten men and women of our country” [homens e mulheres esquecidos
de nosso país], segundo afirmou no discurso de vitória a 8 de novembro
de 2016. Novamente as minorias ignoradas daquele país, não obstante sua
lamentável condição social, se revelam como fantasma eficiente, tantas vezes
instrumentalizado pela propaganda política desde o New Deal (Gage, 2016). Em
todo o caso, George Caleb Bingham conferiu ao seu quadro uma iconografia
satírico-crítica que definitivamente não tem como público destinatário a
“gente miúda” representada, porém uma classe média e alta, intelectual, que
debocha da conduta ludibriadora do establishment provinciano, bem como da
conduta burlesca do eleitorado, como antes já o tinham feito os destinatários
burgueses das pinturas holandesas de gênero em relação ao desajeito de
camponeses, empregadas domésticas e mendigos. De maneira jocosa se celebra
aqui convencimento da distinção social sob a perspectiva de uma camada da
população que se julga superior, frívolo sentimento de superioridade que se
desenvolveria no observador atual do curioso equívoco de Donald Trump
— e de muitas outras de suas gafes (com frequência calculadas) —, se as
consequências reais de sua política não resultassem em rupturas dramáticas
nos sistemas sociais, nas relações internacionais e políticas de segurança, na
assistência médica, na proteção ambiental, na política imigratória e cultural.
Em face de um populismo reacionário em todos os setores políticos, o que se
reflete a nível mundial, democracia, tolerância e liberdade, que apesar de todos
os problemas não solucionados desde sempre eram tidos como virtudes dos
Estados Unidos, correm o risco de cair por terra como o homem embriagado
no primeiro plano da composição de Bingham.

Tradução de Werner Heidermann


e Maria Aparecida Barbosa

Referências
BARONE, Joshua. “Museum Under Fire Over Loan for Trump”. The New York Times,
New York, 6 jan. 2017.
CASPER, Scott. “Politics, Art, and the Contraditions of a Market Culture. George
Caleb Bingham’s “Stump Speaking”. American Art. Chicago, v. 5, n. 3, p. 26-47, 1991.

104
GAGE, Beverly. “Who is the ‘Forgotten Man’ ?”. The New York Times, New York, 9
nov. 2016.
GROSECLOSE, Barbara. “Painting, Politics, and George Caleb Bingham”. The
American Art Journal. Chicago, v. 10, n. 2, p. 5-19, 1978.
HUMPHREY, Heman. Parallel Between Intemperance and the Slave-trade. New York:
J. S. and C. Adams, 1828.
HUSCH, Gail. “George Caleb Bingham’s ‘ The County Election’. Whig Tribute to the
Will of the People”. The American Art Journal. Chicago, v. 19, n. 4, p. 5-22, 1987.
KENNICOTT, Philip. “The Controversy Behind the Painting That Will Hang at
Trump’s Inaugural Luncheon”. The Washington Post. Washington, DC, 13 jan. 2017.
RASH, Nancy. The Painting and Politics of George Caleb Bingham. New Haven: Yale
University Press, 1991.

105
Escola de Viena.
História da Arte com consequências:
Hans Sedlmayr

Maria Männig

Por que se deve escrever sobre Hans Sedlmayr?


Uma pessoa que tão claramente reivindicou para si a marca “Escola de Viena”
é Hans Sedlmayr. Somente durante o período do Nacional-Socialismo o
austríaco se oferece como aluno de Wilhelm Pinder e procura desse modo
integração, no duplo sentido da palavra, a um dos mais proeminentes
representantes da História da Arte alemã-imperial. Antes e depois de seu
interlúdio em Munique, porém, Sedlmayr baseia sua carreira científica sob
a autoridade de Max Dvořàk. Isto, no entanto, ele vivenciou apenas por um
semestre. O que mostra quão frágeis são em seu âmago tais construções da
tradição. Por seu verdadeiro mestre, Julius von Schlosser, Sedlmayr é inscrito
como representante promissor de uma nova geração na tradição aparentemente
quase dinástica da Escola de Viena (Schlosser, 1934, p. 145-210). Para ela,
como também para toda a História da Arte, Hans Sedlmayr deixou, contudo,
um difícil legado, cuja força polarizadora surte efeito até hoje.
A problemática pode ser exemplarmente ilustrada na seguinte afirmação
de Derrida: “Se a legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente,
unívoca, se ela não pedisse e desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não
se teria nunca o que herdar” (Derrida, 1994, p. 33). No caso de Sedlmayr,
as dificuldades de interpretação residem principalmente no cruzamento de
modernidade e visão de mundo reacionária. O espólio no arquivo estadual
de Salzburg é altamente fragmentado, o que dificulta ainda mais o acesso à
obra. A maioria dos documentos dos anos 1930 e 1940 foram postumamente
destruídos. Contudo, partes do Making Of podem pelo menos ser reconstruídas.
Mas em que isso nos ajuda e por que afinal se deve escrever sobre Sedlmayr?
Por um grande público, Sedlmayr tornou-se conhecido principalmente
pela publicação de Verlust der Mitte [Perda do meio] em 1948 (Sedlmayr,
1948). O primeiro simpósio em Darmstadt [Darmstädter Gespräch], em
1950, ofereceu à autorrepresentação experiente em retórica do intelectual de
direita uma plataforma proeminente com apelo midiático, e palco aos seus
escritos controversos. Verlust der Mitte proporcionou não apenas aos cidadãos
e cidadãs de cultura, mas também aos historiadores e historiadoras da arte,
argumentos para não precisarem se ocupar com a arte mais recente. Graças a
Verlust der Mitte, a História da Arte pôde permanecer na medida do possível
imune à arte contemporânea até os anos 1980. Também convém acrescentar,
no entanto, que a abordagem sistemática de Sedlmayr marca até hoje de forma
latente a historiografia da arte moderna. Ela se estabeleceu no inconsciente da
cultura acadêmica.
Faz uns trinta anos que este inconveniente historiador da arte, que
certamente se inclui entre os mais controversos representantes da disciplina,
morreu. História da Arte desenvolve-se dependente do objeto principalmente
em retrospecto e, de tal modo não é, certamente, uma desvantagem olhar
para trás também para seus atores, de certa distância temporal, contanto que
eles sejam o objeto da investigação. Mais surpreendente ainda é que, durante
seu tratamento, o tema tenha crescentemente ganhado em explosividade
e atualidade. Assim, o panorama político nos últimos quatro anos,
durante os quais eu me ocupei intensamente de Sedlmayr, se transformou
consideravelmente. Ainda que, por exemplo, em 2010, a completamente
deslocada tese do ocidente de Guido Westerwelle tenha provocado um efeito
cascata de refutações (Westerwelle, 2010), movimentos como o Pegida e seus
rebentos puderam finalmente ancorar novamente de forma ampla esse topos,
de modo que nem notícias nem sátiras conseguem evitá-lo.
Diante de uma figura como Hans Sedlmayr, gostaria de afirmar que
continuidades relevantes são visíveis. O pensador da jovem República alemã
inspirou habilmente um inventário de ideias que na verdade deveriam ter sido
tabus para a jovem democracia. O movimento funciona, naquele tempo e como
hoje, com recurso a fontes pretensamente menos incriminatórias, ou seja,
aquelas que datam de antes da época do Nacional-Socialismo. Característico
disso são os conceitos que escondem, tal como o de “vanguarda conservadora”
(Jongen, 2014) que, por exemplo, Marc Jongen desenvolveu para o partido
Alternativ für Deutschland (AfD) recorrendo a Spengler, Schmitt e Nietzsche
— e também a Marx.

108
Por outro lado, a apologia a Sedlmayr pelo fundador do partido AfD,
Alexander Gauland, no jornal Die Welt, indica que Sedlmayr continua sendo
um importante modelo para o espectro conservador de direita (Gauland,
2008). O autor ameniza Sedlmayr ao não querer qualificá-lo segundo a
insígnia de seu partido, mas, ao invés disso, procura derivar sua argumentação
do “velho misticismo imperial” (Gauland, 2008) [Reichsmystik]. O que esse
“velho misticismo imperial” significa, permanece no mínimo vago.
Esse artifício funciona mesmo 60 anos depois do fim da guerra.
Naquele momento, como agora, as terminologias nacional-socialistas eram
indubitavelmente tabus. Desse modo, textos de Hitler ou Goebbels não
servem como base de argumentação, mas são fonte de inspiração para aqueles
autores que podem ser qualificados eufemisticamente como “revolucionários
conservadores” e, de fato, como a Nova Direita da República de Weimar (Breuer,
1993). Oswald Spengler, o autor de Untergang des Abendlands [O declínio do
Ocidente] não se deixou instrumentalizar pelo NSDAP [Partido Nacional-
Socialista dos Trabalhadores Alemães] (Spengler, 1963). Isso é louvável, mas,
no entanto, este fato sozinho não liberta o intelectual precursor do Nacional-
Socialismo de sua responsabilidade política. A posterior canonização dos
atores da chamada “revolução conservadora”, que Armin Mohler realizou em
seu livro homônimo, sugeriu finalmente nada menos que a opção por uma
versão melhor do Terceiro Reich. Com isso criou-se um mito que está ativo
até hoje.

Percurso de um crítico cultural


A obra de Sedlmayr deve ser situada no contexto da crítica cultural de
língua alemã. Contornos históricos e filosóficos foram dados a esse conceito
difuso especialmente por Georg Bollenbeck e Ralf Konersmann (Bollenbeck,
2007; Konersmann, 2008). A crítica cultural é o ponto de fuga dos receios
ao progresso para o qual convergiram ideologias e movimentos políticos,
bem como artísticos, na primeira metade do século XX. Trata-se de crítica
civilizatória em sua forma radicalizada, que se contrapõe aos valores do
Iluminismo. Re-mistificações devem juntar novamente o que se despedaçou.
Esse esoterismo manifesta-se de diferentes formas. No caso de Sedlmayr, ele é
corrigido catolicamente, o que se pode ver claramente em suas duas principais
obras, Verlust der Mitte e Die Entstehung der Kathedrale [A origem da catedral]
(1950) (Sedlmayr, 2001). O que no primeiro caso funciona como despedida
para o rompimento entre o ser humano e Deus, termina no segundo em uma

109
ficção do passado com ornamento folclórico. Se até agora na pesquisa o foco
recaiu nos escritos sobre a modernidade ou sobre a idade média, o olhar
sobre a obra completa permaneceu até agora uma lacuna. Seguindo a dialética
de Sedlmayr, Verlust der Mitte e Die Entstehung der Kathedrale são por isso
relacionados um ao outro produtivamente, o que pode ser apenas esboçado
nesse ensaio (Männig, 2017). Como modernidade, idade media e barroco
pode-se definir genericamente o perfil da época com que Sedlmayr se ocupa.
Ao lado desse anticânone seguem-se outras correntes anticlássicas, como o
maneirismo e o rococó.
Sedlmayr polariza por si só como pessoa pelo seu passado político.
O fato de que se tratava de um nacional-socialista assumido costuma ser
derrubado com o argumento de que no fim das contas todos deveriam ter
participado ou de que se deve separar a pessoa política do cientista. O que
chama a atenção é que a recepção de Sedlmayer no pós-guerra, em comparação,
esteve caracterizada de maneira decisivamente mais crítica do que na segunda
metade do século XX. O fato de que o Sedlmayr político tenha se tornado
mais uma vez tema somente após a virada do milênio elucida mais ainda que
algo nesse meio tempo fora suprimido (Aurenhammer, 2002, p. 161-194; Ders,
2004, p. 11-54). Se removermos a objetiva, fica incontroverso que dentro de
sua rede acadêmica de intelectuais de direita ele teria se destacado como um
“defensor da anexação”. Como catedrático em Viena, ele chamara a atenção
pela pronta obediência ao regime nacional-socialista.
O papel de seu mentor, Julius von Schlosser, é controverso. Ele é
considerado humanista distante de qualquer atividade nacional-socialista. É,
portanto, difícil imaginar que ambos puderam ter defendido posições políticas
contrárias. O texto programático de Schlosser sobre a Escola de Viena pode
ser lido politicamente como confissão nacionalista-alemã. Schlosser entrou na
discussão relativamente tarde através de uma foto que o mostra com a insígnia
do partido NSDAP (Lersch, 1990, p. 113-115). Só há pouco tempo um projeto
de pesquisa sobre nomes de ruas de Viena trouxe à luz o fato de que, em 1941,
uma rua no 21º distrito foi renomeada como Schlossergasse em homenagem ao
historiador da arte morto em 1938 (Autengruber, 2014, p. 30-31). A pesquisa
recente nos arquivos não trouxe, contudo, documentos a esse respeito. Essas
lacunas biográficas, todavia, podem ser preenchidas por indícios.1 Assim,
o fato em especial de que o “escultor do estado” nacional-socialista, Josef

Segundo o relatório de pesquisa, Schlosser foi classificado entre as pessoas com “lacunas
1

biográficas relevantes de origem democrática e política”. Ver Rathkolb/Autengruber/Nemec/


Wenninger, 2013, p. 14-304.

110
Thorak, produziu um busto do historiador da arte, pode ser considerado
mais um indício de que Schlosser possivelmente fazia parte também do
movimento de direita na Universidade de Viena. Considerando a partir dessa
perspectiva, aparece como cinismo histórico que o busto de Schlosser feito
por Thorak se encontre desde 1955 no pátio de arcadas da Universidade de
Viena, justamente ao lado do busto de Sigmund Freud, que lhe foi adaptado
estilisticamente (Maisel, 2007, p. 77). O ano de 1955 não é somente o ano da
primeira documenta, neste momento entra em vigor também o acordo estatal
austríaco. Ele sela o que ficou conhecido como “tese da vítima”, por meio da
qual se podia escapar do acerto de contas com o passado nacional-socialista.
Sedada dessa forma, a Segunda República ofereceu às redes de direita um solo
fértil para se desenvolverem. Especialmente por isso, a Áustria experimentou
uma deriva à direita antes dos outros países europeus, quando o FPÖ passou a
governar na virada do milênio.
Membro ilegal do NSDAP, Sedlmayr tornou-se emérito à força e foi
impedido de publicar por meio da lei de proibição 47, no início de 1946.
O ex-professor catedrático recorreu da decisão. Após ter sido classificado
como “levemente culpado”, Verlust der Mitte pôde ser publicado. Seguiu-se
a isso um tempo de reabilitação acadêmica, que terminou com o chamado
para a Universidade Ludwig-Maximilian em Munique. Contudo, a teoria de
Sedlmayr completar-se-ia em Salzburg. Foi onde ele conseguiu praticamente
terminar suas teses, já formuladas na Viena dos anos 1930, como, por exemplo,
na forma da lei de conservação de centros antigos. Seu caminho de purificação
leva o historiador da arte do off acadêmico a uma espécie de status sagrado, do
qual ele pôde desfrutar na Salzburg dos anos 1970.
Considerando a obra de Sedlmayr do ponto de vista analítico-discursivo,
não se pode diferenciar explicitamente entre a pessoa política e o cientista. Ao
contrário: justamente a penetração recíproca de ideologia e prática científica é
o tema de uma discussão como esta. E a complexidade da relação das categorias
“moderno e antimoderno” está no centro da discussão.

Verlust der Mitte — um making of


A definição da crítica cultural de língua alemã de Georg Bollenbeck
serve como estrutura teórica da pesquisa (Bollenbeck, 2007). Com isso pode-se
mostrar que a crítica cultural de Sedlmayr orienta-se normativamente na ideia
de obra de arte total, como pode ser ilustrado por construções recentes. Apesar
de sua afinidade com o gótico ou, sobretudo, com o barroco, o historiador

111
da arte permanece comprometido com ideais que do ponto de vista atual
carecem de qualquer fundamento histórico. Trata-se de projeções que por sua
vez retratam em perspectiva histórica o século XIX e o início do século XX.
Em Verlust der Mitte, Sedlmayr contrapõe ao presente “doente” uma
saída escatológica. O futuro criado por ele pode ser caracterizado através de
uma reconexão a estruturas autoritárias. Pressuposto para esse tipo de teoria
artística foi a invenção da psicologia e psiquiatria. As pesquisas sobre histeria
introduziram, na segunda metade do século XIX, uma mudança de paradigma
importante. Com isso, juntamente com o corpo, a alma também se tornou
passível de adoecer. Max Nordau e Sigmund Freud representam precisamente
dois antípodas desse ramo de pesquisa vanguardista, que o médico da histeria,
Jean-Martin Charcot, estabelecera em Salpêtrière. Ambos se destacaram
independentemente um do outro como críticos culturais.
Max Nordau interconectou crítica artística ao discurso médico, mais
precisamente à nova especialidade da psiquiatria. Daí resultou — com
consequências enormes — a “arte degenerada”, que criou o ensejo para a
perseguição de artistas e apropriação de suas obras. Verlust der Mitte se apoia
diretamente em Entartung [Degeneração] de Max Nordau (Nordau, 1892/1893).
Foi, sobretudo, ele quem marcou o padrão do discurso de Sedlmayr. Com o
conceito de “Degeneração”, cunhado por ele permanentemente no bestseller
homônimo de 1892/1893, a escrita sobre a arte se radicaliza.
Metodologicamente, Sedlmayr faz referência com a “análise profunda” a
ninguém menos que Sigmund Freud. Com a postura de um médico, Sedlmayr
“coloca” as obras de arte no divã. O trauma diagnosticado por ele — assim
ele pode ser mostrado de acordo com o modelo estrutural da psicologia de
Freud — consiste na rebelião do ser humano contra Deus. O conflito entre o
eu (= ser humano) e o sobre-eu (= Deus) ocorre externamente com Sedlmayr,
não interna ou psiquicamente. Sintomas de doenças internas são apenas a
consequência dessa cisão.
Sedlmayr defrauda esses dois autores judeus. Para isso, uma referência
dramática a Oswald Spengler configura o pano de fundo para a argumentação.
O Declínio do Ocidente, de Spengler, foi o último grande bestseller da crítica
cultural que o fim da primeira guerra mundial orquestrara. Sedlmayr associa
sua obra a esse sucesso de modo programático. Ele adapta em partes a
morfologia da história de Spengler. Se por um lado ele incorpora seu modelo
de quatro fases do desenvolvimento histórico, por outro ele faz decididamente
face ao fatalismo de Spengler.
Segundo Nordau, cedo ou tarde a arte tornar-se-á supérflua por razões
inerentes a seu desenvolvimento. Da mesma maneira, Spengler acredita que

112
o declínio de qualquer cultura já está necessariamente programado nela. Em
oposição, Sedlmayr insiste na possibilidade de uma renovação religiosamente
artística. Além disso, podemos mostrar com Spengler quão atrativos eram para
a crítica cultural os modelos de pensamento da História da Arte da Escola de
Viena, formulados especialmente por Alois Riegl e Max Dvořàk. Assim, o fato
de Sedlmayr recorrer à filosofia da história de Spengler, que parece história
do estilo, aparece como uma consequência lógica. Trata-se de um re-entry de
padrões de discurso utilizados na crítica cultural e de História da Arte. Como
uma espécie de reação em cadeia, podemos observar, transmitem-se as figuras
de pensamento da crítica cultural de geração para geração, ao passo que são
respectivamente atualizadas.
O que foi escrito e pesquisado no entorno direto de Sedlmayr, ao lado
da dimensão teórica, desempenha seu papel, naturalmente. Um colega que
também contribuiu nesse sentido foi Emil Kaufmann. Sedlmayr ocupou seus
campos de pesquisa após a emigração de Kaufmann. A re-leitura do texto de
Emil Kaufmann Von Ledoux bis Le Corbusier [De Ledoux até Le Corbusier]
revela, contudo, seu fundo evidente de crítica moderna (Kaufmann, 1933).
Diferentemente do que fora até então afirmado, não se pode falar de nenhuma
revaloração fundamentalmente negativa de Kaufmann por Sedlmayr
(Nerdinger; Philipp, 1990, p. 13-40). Até a resenha escrita por Kaufmann sobre
Verlust der Mitte afirma em princípio a monografia de Sedlmayr, enquanto a
crítica comedida faz alusões ao passado político do autor (Kaufmann, 1950,
p. 275).
De modo especial, a comparação do ensaio Vermutungen und Fragen
zur französischen Kunst [Suposições e questões sobre a arte francesa], de
1938, com o artigo Die Kugel als Gebäude — oder: das Bodenlose [A esfera
como prédio — ou: o sem chão], de 1939, mostra a radicalização ideológica
que as teses de Sedlmayr experimentaram no curso da “anexação” da Áustria
(Sedlmayr, 1960, p. 322-341). As declarações sobre História da Arte não
podem aqui ser separadas das declarações políticas. No ensaio Kugelhaus [Casa
esférica] exprime-se um antisemitismo latente combinado com a esperança
na renovação nacional-socialista. Especialmente a demolição da Kugelhaus
de Dresden, que provocou uma reverberação na mídia, poderia ter sido um
catalisador para os pensamentos de Sedlmayr.
No que tange às considerações de Sedlmayr sobre a pintura, a Macchia
de Bruegel é central (Sedlmayr, 1934, p. 159). Na preparação do processo,
Schlosser aconselhara Sedlmayr, historiador da arquitetura como atividade
primária, a ampliar seu espectro temático. Os suplementos do trabalho de
qualificação submetido foram discutidos intensivamente na avaliação e

113
posteriormente etiquetados como tese de livre-docência (Aurenhammer, 2002,
p. 189). O texto pode ser enquadrado na recepção-maneirismo, um elemento
fundamental da Escola de Viena, que possuía uma predileção pelos chamados
estilos tardios [Spätstile]. Em princípio, Sedlmayr adapta a interpretação
vanguardista preparada por Riegl e Dvořàk, mas aplica-lhe, contudo, uma
virada negativa de crítica moderna. Sedlmayr orienta-se no Surrealismo
para a sua interpretação de Bruegel. O instrumento de análise de Sedlmayr,
a Macchia, emprega as leis das formas [Gestaltsgesetze], deduz delas, contudo,
imediatamente um sentido iconológico-iconográfico. Bruegel é estilizado em
1934 como um precursor da modernidade, uma interpretação que é ampliada
em Verlust der Mitte.
A contra-leitura com a monografia de Ernst Jünger Der Arbeiter.
Herrschfat und Gestalt [O operário. Domínio e Forma] (Jünger, 1932) permite
entender em que medida a Macchia de Bruegel deva ser enquadrada no
discurso do realismo social [neusachlich] e com isso no modernismo literário.
Jünger se orienta também na Teoria da Gestalt. Contudo, deve ser negada a
suposição de que o recurso à psicologia da Gestalt significa automaticamente
inovação científica e fundação empírica, como sempre foi sugerido na pesquisa
sobre Sedlmayr. Fora da pesquisa empiricamente-centrada, como foi praticada
pelos psicólogos da Gestalt de Berlim em torno de Wertheimer, a teoria da
Gestalt encorajou um esteticismo inescrupuloso, que se manifesta, sobretudo,
na Kosmogonie de Christian von Ehrenfels (1916). Ehrenfels, o fundador da
Teoria da Gestalt, reformulou o ramo da pesquisa em sentido normativo e de
crítica cultural — um ato que Jünger e Sedlmayr conseguem compreender, e
que se tornou evidente durante o período do nazismo.
Em 1936/1937 Sedlmayr proferiu uma palestra sobre A arte austríaca,
que levou em conta também os séculos XIX e XX. O momento político
é relevante pelo fato de serem abertas, no verão de 1937, tanto a 1a grande
exposição de arte alemã como também a mostra “arte degenerada”. As
seções desenvolvidas no manuscrito sobre pintura podem ser consideradas,
juntamente com a Macchia, como a primeira tentativa de elaborar as ideias
para Verlust der Mitte. São caracterizadas por metáforas infernais, que foram
difundidas pela crítica cultural nacionalista no círculo de Schulze-Naumburg.
Sedlmayr comprou Die Säuberung des Kunsttempels [A purificação do templo
da arte], de Wolfgang Willrich, diretamente após sua publicação em 1937, livro
que trata da preparação conceitual da mostra de Munique. O livro poderia ter
inspirado Sedlmayr a acrescentar em Verlust der Mitte instruções de leitura
sobre as reproduções, como também eram dispostas na primeira edição da
exposição “arte degenerada”.

114
A Catedral — uma Pathosformel do Modernismo
Die Entstehung der Kathedrale apareceu como a segunda grande
monografia de Sedlmayr no pós-guerra, que sem dúvida está à sombra do
escandaloso sucesso de Verlust der Mitte. Por repetidas vezes o autor enfatizou
que esse livro seria verdadeiramente sua principal obra.
Desvinculada de sua função sagrada, a catedral serve desde o final do
século XVIII como espaço de projeção para visões artísticas. Denomino, com
Aby Warburg, essa forma projetiva da catedral como uma “Pathosformel do
modernismo”. O caso da Catedral de Colônia mostra como o modernismo
da indústria criou finalmente uma imagem medieval idealizada como contra-
modelo ao presente, então percebido como deficitário, funcionando, desse
modo, também como parte do campo da crítica cultural. A Igreja Votiva de
Viena, a maior construção sacra genuinamente neogótica do mundo, deve ser
considerada como reflexo direto da Dombauhütte, conjunto de oficinas para a
constante preservação e restauração da Catedral de Colônia.
Entstehung der Kathedrale, de Hans Sedlmayr, reabilitou, em 1950,
segundo a tese, os mais importantes topoi do século XIX. Sua representação da
catedral como obra de arte total implica, em primeiro lugar, o gênio artístico e,
em segundo lugar, situa a catedral no contexto de uma arquitetura “germano-
cristã”.
De maneira experimental, as imagens medievais que circularam no tempo
de Sedlmayr podem ser sistematizadas com um conceito contemporâneo. São
as categorias de Riegl, de tátil e óptico, que podem ser aplicadas como modelo
às direções conflitantes na preservação de monumentos. Aqui representa
Ruskin a linha orientada para a conservação.
Tendo Riegl em mente, expressa-se aqui o princípio tátil, com o foco na
pátina e em uma condição de visualização [Anschauungsstituation] orientada
à “visão aproximada” [Nahsicht]. Por outro lado, Viollet-le-Duc seria, nesse
sistema, o óptico. Sua perspectiva purificadora representa o óptico, que visa
uma impressão geral orientada a um efeito de distância.
No âmbito da arquitetura urbana é possível também diagnosticar
uma tendência que se desenvolve no sentido de uma visão distante-óptica
no classicismo e historicismo, e que se distingue da posição de uma visão
aproximada-tátil da Reformarchitektur [Arquitetura de Reforma]. A Igreja
Votiva de Viena ilustra como elementos românticos foram empregados no
historicismo. Sendo assim, estava previsto inicialmente para a construção
da Igreja Votiva um lugar exposto em uma elevação, consonante com as

115
catedrais em formas góticas nas pinturas de Schinkel, apresentadas também
em conformações paisagísticas imponentes, como junto ao mar ruidoso ou
em uma paisagem de colinas arborizadas. Apenas uma decisão posterior
transferiu o projeto para a Ringstraße, onde se tornou, em compensação, o
ponto de partida do conceito geral. A configuração original da Igreja Votiva em
um amplo espaço urbano aberto por parques está hoje destruída pelo traçado
das vias e pela estação de metrô Schottentor. Camillo Sitte concebeu depois
uma remodelação não realizada na forma de arcada, a qual teria colocado a
igreja neogótica, segundo o autor, em uma condição de visualização de visão
aproximada, apropriada à idade média. A arquitetura da Ringstraße de Viena,
em especial, está estreitamente ligada à fase inicial da Escola de História
da Arte de Viena. Rudolf von Eitelberger, o primeiro professor titular, teve
participação decisiva na concepção dos edifícios representativos. Camillo
Sitte, por sua vez, era aluno de Eitelberger.
Sedlmayr atém-se, portanto, a esses fundamentos imperiais quando
ele procura — levado pela euforia nacional-socialista — influenciar o
planejamento urbano no Estado totalitário nos anos após 1938. Em seus textos
urbanísticos voltou-se contra o urbanismo abstrato, como o que foi favorecido
por protagonistas do modernismo como Otto Wagner ou Le Corbusier, e do
mesmo modo contra uma preservação musealizante de monumentos.
Partindo de planos atuais, que deveriam modificar massivamente a
paisagem urbana de Viena, Sedlmayr propõe “proteger” o centro antigo de
Viena por meio da construção de uma “Cidade de Hitler” [Hitlerstadt] na
região do distrito Leopoldstadt2 que preenchesse todas as necessidades de uma
cidade moderna. O projeto ficaria a cargo do segundo distrito de Viena, o qual
Sedlmayr qualificou sem rodeios de “Cidade dos Judeus” [Judenstadt].
Tanto os conceitos provenientes da conservação do centro antigo,
combinados com a preservação da paisagem, remetem para a sua atividade
posterior em Salzburg a partir de 1964. Ao mesmo tempo, encontram-se
aqui fortes referências a um modernismo fascista. A “boa forma”, reconhece
Sedlmayr, tanto na forma de anel, quase ideal da forma circular da planta de
Viena, cujo centro consiste na Catedral de São Estêvão, como também na
elevação. Em ambos os casos, a torre de São Estêvão é, como ponto mais alto,
o centro ideal.
Para colocá-lo em cena, Sedlmayr reativa um projeto de avenidas
do final do século XIX que, vindo do segundo distrito, deveria abrir um

2
Segundo distrito de Viena [N. T.].

116
caminho no centro antigo em direção à Catedral. Correspondentes projetos
de grande escala foram realizados ao mesmo tempo na Itália fascista ou, sob
Hitler, planejados para Berlim, bem como realizados em Linz e Nürnberg. Os
critérios de “moderno” e “antimoderno”, como pode-se argumentar, são aqui
suspensos; ressentimento e pensamento progressista concorrem para uma
completa simbiose diante da realidade de total dominação.
Entstehung der Kathedrale pode ser examinada tendo em vista três níveis
de significados. O primeiro nível refere-se à catedral como forma projetiva
romântico-histórica, que Sedlmayr assimilou. Em particular, a literatura
artística do Romantismo serve ao autor para o desenvolvimento de sua tese.
Com isso, ele se volta contra o Positivismo. Apesar de criticar o protagonista
do neogótico francês, Viollet-le-Duc, sua representação integral idealizada lhe
serve como modelo. Sedlmayr não consegue superar o historicismo que ele
mesmo critica.
O dispositivo gótico romântico é reativado e ressignificado no
expressionismo. Esclarecedor nesse contexto é, sobretudo, a leitura que
Sedlmayr faz de Worringer, que até agora ainda não tinha sido considerada
na pesquisa. Wilhelm Worringer provocou, com sua dissertação Abstraktion
und Einfühlung [Abstração e Empatia], uma síntese febril de gótico e abstração
que notoriamente foi recebida com entusiasmo pela vanguarda artística
(Worringer, 1996). A perspectiva a-histórica de Worringer, seu método
intuitivo e a localização do gótico em uma “vontade formal germânica”
marcaram a História da Arte e são exemplares para Sedlmayr.
Em relação à imagem da idade média forçada no nacional-socialismo,
dedica-se a pesquisa, sobretudo, à mística da luz de Sedlmayr e ao Graal
do Romantismo. Nota-se que o tema da tese da Nova Jerusalém, que
Sedlmayr apresenta como objeto central em Entstehung der Kathedrale, foi
substancialmente alimentado pelo mito do Graal. Essa associação pode
ser percorrida desde a Nova Jerusalém, o Templo do Graal e Catedral até o
romantismo. Essa hipótese foi novamente retomada nos estudos literários dos
anos 1930. Na mediação dos materiais míticos medievais, o germanista Otto
Höfler, que lecionava em Munique, desempenhou um papel importante. O
admirador de Wagner tinha se oferecido ao Nacional-Socialismo de maneira
muito particular com sua tese dos povos germânicos. Após o fim da guerra,
Höfler desempenhou um papel relevante na transferência de Sedlmayr para
Munique, ao passo que ele mesmo pôde continuar com sua carreira em
Viena.
Também para os protagonistas da Neues Bauen, a catedral serviu como
ponto arquimediano de visões artísticas. A interpretação de Le Corbusier da

117
catedral, no início, está fortemente orientada ao mais importante representante
inglês do neogótico, John Ruskin. Na França, o arquiteto integra — em sucessão
a Viollet-le-Duc — o Funcionalismo que lá se desenvolveu. Nos anos 1920, Le
Corbusier se distancia veementemente do expressionismo alemão neogótico,
na medida em que este “romanizava” o gótico. Eu seu relato de viagem Quand
les cathédrales étaient blanches [Quando as catedrais eram brancas], as catedrais
da França servem para a acentuação do inovador, o que pode ser associado
ao âmbito do Estilo Internacional. Le Corbusier pode ser considerado como
inimigo íntimo de Sedlmayr. Sedlmayr confrontou-se intensivamente com os
numerosos escritos dele. Ao mesmo tempo, o próprio francês por opção foi
marcado pela crítica cultural de língua alemã, servindo ao regime de Vichy
de forma inglória. O caráter de manifesto vanguardista e o conteúdo crítico-
cultural misturam-se nos escritos de Le Corbusier.
A crítica institucional expressa em Vertlust der Mitte condensa-se
na metáfora cunhada por Hölderlin da “Igreja estética”. Ao lado da vasta
Iconoclastia, a Revolução Francesa também pôs em marcha o tratamento
museal de obras de arte. Da aliança entre destruição e conservação resultou
uma atitude de expectativa artístico-religiosa. Como símbolo material
da “Igreja estética” aparece o conjunto secularizado do mosteiro Gallerie
dell’Academia, em Veneza. Dois acontecimentos relacionados diretamente
um ao outro constituem o propósito dessa instituição para a salvaguarda
de imagens: o edifício, destituído de sua função pela secularização, torna-
se repositório de objetos de culto que igualmente tornaram-se inutilizados
e expropriados. Na dimensão europeia, semelhantes conceitos de dupla
utilização podem ser observados em muitos casos por volta de 1800, até que o
Museu seja efetivamente inventado como tarefa de construção [Bauaufgabe].
A narrativa de perda fatal do fim da unidade entre religião e arte
encontra sua nítida expressão em Europa, de Novalis, discurso que só foi
publicado postumamente (Novalis, 1910). Este influenciou outros textos
proeminentes, como o impregnado de nacionalismo-étnico Rembrandt als
Erzieher [Rembrandt como educador], de Julius Langbehn (1890), bem como
os manifestos do modernismo artístico, como Geheimes Europa [Europa
Secreta], de Franz Marx (1914), até a monografia de história da arte tingida de
Nacional-Socialismo de Hubert Schrade (1936), Schicksal und Notwendigketi
der Kunst [Destino e Necessidade da Arte], e Verlust der Mitte. Passível de
crítica é que a pretensa autenticidade, que Sedlmayr queria conquistar através
de sua investigação, apenas toma e recombina esquemas de interpretação
existentes, obstruindo assim o conhecimento em torno da realidade medieval.
Qualifico como o paradoxo crítico-cultural o fato de Sedlmayr recorrer à

118
projeção gótica do Romantismo, uma época que molda o ponto de partida de
sua narrativa de perda.

Barroco de Salzburg
Mas em que medida o cânone anticlássico de Sedlmayr, que abarca a
modernidade, a idade média e barroco, tem conotação ideológica implicada?
A crítica cultural motivada etnicamente (por Langbehn, Spengler, Schrade),
em especial, denunciou o renascimento como importação cultural estrangeira
que se opunha à arte alemã. Os ensaios sobre o Barroco de 1936 e 1938
mostram como Sedlmayr reformata a pesquisa austríaca sobre o Barroco de
maneira “alemã-imperial” [reichsdeutsch]. Baseado na personalidade artística
de Johann Bernhard Fischer von Erlach, Sedlmayr enfatiza tanto o caráter
alemão quanto o caráter imperial de sua arquitetura.
Sedlmayr passa a última parte de sua vida em Salzburg, onde o partido
verde austríaco se constitui ao seu redor. Com Sedlmayr como porta-voz,
realiza-se ali um extenso conceito de preservação de monumentos e paisagens na
forma de uma lei para conservação do centro antigo [Altstadterhaltungsgesetz].
Sedlmayr, no entanto, recusa até o fim uma reconciliação com o modernismo.
Se seus textos urbanísticos dos anos 1930 estavam carregados de expectativas
nacional-socialistas do futuro próximo, agora Sedlmayr ocupa uma posição
resignada. Nos textos tardios de Salzburg encontram-se novamente elementos
da crítica urbana de Spengler, bem como as teses de Schultze-Naumburg,
portanto o ideário nacionalista-étnico que, conservado tempo suficiente,
pode então aparecer de novo atraente. Hoje distancia-se o partido de seu pai
fundador.
Minha crítica à representação da arte de Sedlmayr diz respeito, sobretudo,
à sua grande qualidade, ao seu caráter imersivo. Trata-se de reconstituições
da “verdadeira” obra. Principalmente em Entstehung der Kathedrale, o autor
fornece reconstruções multissensoriais e ambientais do que, segundo seu
parecer, seria a catedral. Essa densidade sensitiva, o historiador da arte alcança
à custa de detalhes históricos. Considerando o próprio horizonte temporal de
Sedlmayr, evidencia-se que imersões em arquitetura e mídias foram criadas
minuciosamente na virada do século. As grandes exposições do final do século
XIX e princípio do século XX, bem como monumentos — tal como a Igreja
Votiva —, foram concebidos como espaços de imersão.
Espectadores e espectadoras foram transferidos a uma espécie de
realidade virtual. Esse modelo pode ser transportado para o método de

119
Sedlmayr, cujo objetivo era “despertar” as obras de arte mediante um
procedimento linguístico-reprodutivo.
Encontrar semelhantes modelos de interpretação e de avaliação
universais e supra-históricos para obras de arte é provavelmente o mais sedutor
objetivo da investigação histórica da arte. Com base no “caso” de Sedlmayr,
paradigmas fundamentais da historiografia da arte no século XX podem, por
conseguinte, ser isolados e colocados à disposição.

Com Sedlmayr para a arte visual


Costuma-se menosprezar a influência de Sedlmayr. Seus alunos, por
exemplo, Werner Hoffmann, para mencionar apenas um, continuaram a
desenvolver suas teses. Em especial, a história da arte da modernidade é
impregnada consciente ou inconscientemente por Sedlmayr. Com ele, a
História da Arte era um hotspot que atraiu, entre outros, Michael Baxandal
(Ver Nujic, 2016).
Umberto Eco dedicou a Sedlmayr uma glosa, na qual ele submete
Verlust der Mitte a uma crítica mordaz, em uma espécie de resenha dupla com
Understanding Media, de Marshall McLuhan. Eco atestou aos dois publicistas
altamente ativos o Cogito Interruptus. Seu erro de raciocínio consiste na falta
de diferença entre o símbolo e o que é simbolizado. Se Verlust der Mitte é o
lado negativo da moeda, então Understanding Media se comporta de acordo
com a técnica e o progresso. Ninguém menos que Nam June Paik, o pai da
arte visual, ouviu a palestra Entstehung und Frühzeit von Kirchengebäuden,
[Origem e primórdios das igrejas] de Sedlmayr em Munique, uma palestra
com a qual este associou a seus preparativos para Die Entstehung der
Kathedrale. Ninguém esperava que o já reconhecido e tradicionalmente bem-
formado coreano fosse andar feito louco com o rótulo Fluxus de acordo com
padrões de certa parcela da classe média. Talvez se pudesse perguntar se nas
instalações de vídeo de Paik não existem reflexos de Sedlmayr? Zen for TV
provê ao aparelho de televisão, o principal meio de cultura de entretenimento
ocidental, a impressão da espiritualidade do oriente distante. A atenção dos
espectadores concentra-se na linha iluminada, o olhar estreita-se, a postura
consumista é assim dispensada. O closed-circuit da TV Buddha apresenta
à figura meditativa sua imagem mental no monitor. Esse retorno à própria
cultura, que envolve o artista no ocidente com um sopro de esoterismo, é parte
do conceito de sucesso de Paik. De forma semelhante funciona o recurso de
Kandinsky com pintura icônica russa. Da mesma maneira resulta a ficção

120
Catedral de Sedlmayr, a partir da ideia de que se possa fortalecer e empregar o
próprio passado ou a cultura contra o suposto estrangeiro de maneira a criar
identidade. Essa ilusão de um simples código binário é tão tentadora, que
continuará tendo conjuntura. Atualmente organizações e partidos populistas
de direita servem-se desse pensamento ilusório.
Não raramente, a historiografia da arte é confrontada com a acusação
de se ocupar demais consigo mesma. Contudo, deve-se considerar que as
condições fundamentais teóricas se sedimentam com o tempo. Os espectros
da teoria devem ser desmascarados como tais. Derrida caracteriza esses
fundamentos afastados do presente como “fantasmas”: um conceito que, apesar
de toda imprecisão, tem a capacidade de caracterizar a diferença de estruturas
de teoria mais antigas. Nesse sentido, entende-se o presente texto tanto como
crítica fundamental quanto apropriação atualizadora. Indo além do trabalho
sobre a pessoa de Sedlmayr, ele mostra que é igualmente importante e difícil
se colocar diante das contradições da modernidade. Por isso hoje vale a pena
pensar e escrever sobre Sedlmayr.

Tradução Claudia Regina Peterlini


e Fabrício Coelho

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123
Dissidências estéticas
andinas para não andar pela vida.
“Sem khepi para a viagem, sem mãe para
amar, sem kuka para o canto1”

Elizabeth Monasterios Pérez

Este artigo pretende ser uma reflexão sobre os desafios que as práticas estéticas
andinas propõem para a universalidade da arte ocidental. Reflexão que provoca,
considerando que faz apenas um par de décadas que falar de “estética andina”
estava fora de lugar, fundamentalmente porque não se resolvia o dilema de
como levar ao campo estético expressões culturais alheias ao “espírito” da
arte ocidental e, portanto, confinadas ao âmbito do folclore, ao artesanato,
ao indigenismo, ou à arte popular. E, no entanto, apesar de presos nessa
dificuldade conceitual, os estudos andinos foram capazes de desestabilizar a
universalidade da arte ocidental toda vez que insistiram na “formosura” de
uma montanha, de um chullpar,2 do desenho de um tecido, ou das inquietantes
esculturas líticas da arquitetura pré-hispânica. De que lugar epistemológico
surge a força com que uma cultura sobrevivente e chacoalhada pela história
escrita consegue incidir tão significativamente na percepção que temos da
beleza? Que lógica teimosa converte uma montanha ou pedra antiga em coisas
belas? A seguir, discutirei a lógica destas formas de beleza em diálogo com o

O subtítulo provém da obra El pez de oro (Churata, 1957, p. 437) e faz referência a três
1

componentes vitais na vida dos sujeitos andinos: o Khepi [qhepi], que em aimará e quéchua
designa a trouxa de tecido que serve para se carregar nas costas e levar desde um bebê, até
roupa, comida e os instrumentos de trabalho; a Pachamama, que não precisa explicação; e a
Kuka, que em aimará e quéchua significa “coca”.
2
Chullpar: voz aimará que Churata usa para referir-se a cemitério. [N. T.].
conceito de “limite”, entendido como possibilidade de transgressão, de renegar
o confim, de assediar as bordas, para entrar em cheio no campo do que rompe
consensos hegemônicos.
Para começar, surge a necessidade de precisar algumas coisas: com quais
instrumentos conceituais vamos pensar essas insubordinações epistemológicas
e como vamos vinculá-las com as dissidências estéticas nas quais se inscrevem
as práticas andinas? A filosofia moderna tem uma oferta interessante por meio
do trabalho de Eugenio Trias (Barcelona, 1942-2013), que no final do século
XX desenvolveu um pensamento conhecido precisamente com o nome de
Filosofia do Limite.3 Por sua pertinência para as discussões que propõe este
artigo, revisarei de forma geral seus postulados e os contrastarei com a ideia
de “limite” que deriva da obra do escritor e filósofo andino Gamaliel Churata,
que permite teorizar essa disposição “andina” para perceber a beleza ali onde
outros olhos veem somente acidentes geográficos, pedras, artesanato popular
ou primitivismo. Concluirei minhas reflexões relacionando as propostas
estéticas de Churata com um romance boliviano construído com base em
formas de beleza irreverentes: Cuando Sara Chura despierte [Quando Sara
Chura despertar] (Juan Pablo Piñeiro, 2003).

A Filosofia do Limite
O ponto de partida da Filosofia do Limite é muito simples e descansa
em uma crítica à razão moderna. Trias afirma que a Idade da Razão, ao exigir
que tudo quanto a excede fica banido da realidade, nos acostumou a pensar
o “limite” em termos de muralha que se levanta para impedir o passo além.
Desconstruir essa percepção convencional do “limite” para propor outra,
expressada no que será uma Filosofia do Limite, é o aporte deste filósofo.
Trias começa admitindo que existem aspectos da realidade aos quais a
razão não pode chegar, pelo simples fato de serem prévios a ela. Esses aspectos
insubordinados manifestam-se no próprio fundamento da vida, na própria
existência, que para Trias constitui uma experiência tão particular, soberana
e livre, que entra em cheio no terreno do assombro, do misterioso que não
podemos conhecer através da razão. Em seguida, estabelece que a existência

3
Os postulados primários deste pensamento estão formulados na Lógica del límite [Lógica do
limite] (1991), La edad del espíritu [A idade do espírito] (1994), Los limites del mundo [Os
limites do mundo] (1985), La razón fronteriza [A razão fronteiriça] (1999), e Ciudad sobre
ciudad [Cidade sobre cidade] (2001).

126
do ser humano se produz por meio de experiências que podemos pensar como
antagônicas: a experiência do mundo material e a experiência do mundo
interior (que constitui um mistério para a razão). Entre estas duas experiências
se manifestaria o “limite” ou lugar onde habita o ser humano, que Trias define
como um ser fronteiriço entre o físico e o metafisico, o sagrado e o profano, a
realidade e sua sombra. Mas além de surgir como a casa do ser, o “limite” surge
também como o lugar onde o humano conhece a beleza, porque é percorrendo
esses labirintos que se dividem entre a razão e o mistério que se produz o
encontro com a experiência estética. Claramente, a Filosofia do Limite recolhe
com o mesmo interesse o império da razão e o desafio do mistério para
chegar à intimidade desse dado humano que é o sujeito e a hermenêutica da
experiência estética.
Chama a atenção que uma filosofia inicialmente pensada desde uma
crítica da razão moderna, não só a deixe intacta (e desejável), mas que além
disso reproduza o dualismo inaugural da razão ocidental, expressado na
distinção feita por Platão entre o mundo material das aparências (sempre
mudando e submetido à percepção particular) e o mundo inteligível,
verdadeiro e ideal das Ideias, que além de eternas, são universais e
hierárquicas, sendo a mais elevada a Ideia do Bem, seguida pela Beleza,
Justiça, Virtude etc. Em Platão este dualismo ontológico (que assentou as
bases da metafísica) se soluciona na ação do demiurgo que, dono da Ideia,
se compromete em levá-la à matéria ou em conseguir que esta a imite. A
filosofia moderna de Trias também parte de um dualismo ontológico, em seu
caso expressado na relação que acontece entre a razão (que permite conhecer
o mundo da matéria) e o mistério (que dificulta o circuito racional). Mas
diferentemente da dialética platônica, que opera por translação ou imitação,
a de Trias opera por tensão e permite conceitualizar um espaço fronteiriço
entre a razão e o mistério. Esse é o espaço do “limite”, a morada do “ser
fronteiriço” e o lugar onde se produziria a experiência estética.
Provocativo, o trabalho de Trias recebeu em 1995 o Prêmio Internacional
Friedrich Nietzsche, considerado o Nobel da filosofia. A partir de então sua
Filosofia do Limite é percebida em escala global como “síntese capaz de traçar,
em forma de ideia filosófica, o esboço vivo do que existe” (Trias, 1983, p. 13).
Assusta tanto desejo de universalidade, tanta pretensão de verdade... mas
sobretudo tanta confiança na capacidade de tradição filosófica ocidental para
dar conta de “tudo que existe” (incluída a beleza) mediante uma dialética que
começa como tensão e conclui como síntese. Diante de esta variante hegeliana
cabe propor-se algumas perguntas: Será possível pensar fora da razão moderna
e da síntese hegeliana? Será possível uma estética enunciada fora do controle

127
dos valores universais? É aqui onde o trabalho de Gamaliel Churata e a episteme
andina tem muito que aportar, por mais essencialista, incômoda ou fracassada
que às vezes resulte a possibilidade de escapar ao roteiro da razão moderna.

Churata e a episteme andina


Convém, antes de aproximar-se a Churata, estabelecer que começamos
dialogar com um escritor nascido no final de século XIX (1897) que está
pensando a partir de um americanismo anti-hispanista, anti-colonialista,
nutrido de epistemologia andina e em diálogo crítico com a antiguidade
clássica. Sua linguagem, portanto, é particularmente complexa. De um lado
atualiza expressões hoje em desuso (América, homem americano, Castela),
mas bastante atuais durante as primeiras décadas do século XX. De outro
lado, interpela a antiguidade clássica e, simultaneamente, legitima a andina
de referente quéchua-aimará. O resultado é um discurso conceitualmente
plurilíngue que se traduziu em um pesadelo para o leitor dos meados do
século XX e um enorme desafio para o do XXI. Essas provocações estão
plenamente elaboradas em um trabalho monumental publicado em La Paz,
no ano de 1957, com o título de El pez de oro. Retablos del Laykhakuy [O
peixe de ouro. Retábulos de Laykhakuy]. Neste livro, Churata se coloca
precisamente o desafio de pensar fora da razão moderna, fora dos valores
universais e fora da síntese hegeliana. Nem sempre consegue, nem sempre
convence, mas o potencial teórico de suas formulações e a coerência com que
interpela o dualismo platônico merecem a maior atenção. Anos de produtivo
ativismo cultural em diferentes lugares do mundo andino (Puno, Potosí, La
Paz) lhe ensinaram que o ritmo interno desse mundo possuía uma lógica
própria com capacidade de intervir tanto em assuntos de estética como em
debates de ética e de política. Essa aprendizagem o levou a elaborar o que
seguramente é uma das primeiras reflexões de estética andina, disseminada
ao longo de toda sua obra,4 mas particularmente expressada em um dos

Além de El pez de oro e uma extensa produção ensaística e jornalística disseminada


4

em revistas e periódicos peruanos e bolivianos, a obra de Churata inclui em torno de 15


manuscritos inéditos cuja difusão já foi iniciada. Em 2010 Riccardo Badini publicou, em
edição crítica e anotada, o primeiro destes manuscritos (Resurrección de los muertos
[Ressurreição dos mortos]). Um segundo manuscrito (Khirkhilas de la sirena [Khirkhilas
da sereia]) foi publicado por Paola Mancosu, também em edição crítica e anotada, em 2015.
Atualmente, um grupo de churatistas formado nos congressos de JALLA está trabalhando na
edição dos inéditos que faltam.

128
jeito, nesta equação, também não é uma existência metafísica ou fronteiriça, é mui
ais uma existência que surgindo de um “espasmo germinal”, entra no mundo presa a
uño (peito) que lhe deu vida e o converte em “animal lácteo”. O surpreendente é qu
primeiros
hurata não está fragmentos
dizendo de El
que esta pez deda
teoria oro, com o subtítulo:
“Germinação “Germinação
como como
estética” é exclusiva da
estética” (p. 36-43).
lturas andinas. Ao contrário,
Chama seuque
a atenção argumento propõe
para se referir que “ninguém
à disciplina engendra
que fala do belo, fora de
Churata antepõe um verbo de ação (germinação), que lhe permite vincular
esmo”, e como
a zonacaso exemplar
do intelecto com acoloca
zona deoreprodução
olhar emdaEl Greco,
vida. apontando
Churata postula queque somen
é no “rebrotar da carne”, na germinação, onde se expressa a formosura, e
errado ao ñuño de Castela pôde ter parido El Entierro del Conde de Orgaz. Esta mençã
que não existe momento mais “germinal” que o marcado pelo grito de quem
nasce.
El Greco nos Essecom
deixa “primeiro
uma borbulhar” emparenta
inquietante a entranha
pergunta: “Algoda qualespanhol?
mais se nasceu e aNem Loyol
potência estética que dela deriva. Churata propõe que a beleza nunca é mais
m Felipe II” (Churata,do1957,
comovedora p. 38).seu criador a forja aferrado(a) ao ñuño (peito)
que quando
que lhe deu vida.

El Entierro del Conde de Orgaz, El Greco (1586–1588). Óleo, 480 × 360 cm.
l Entierro del Conde de Orgaz, EldeGreco
Paróquia (1586–1588).
Santo Tomé Óleo, 480 × 360 cm. Paróqui
de Toledo, Espanha.

de Santo Tomé de Toledo, Espanha


A partir desta observação começa a ter forma uma noção de beleza
diferente da platônica e por sua vez diferente também da que oferece a Filosofia
do Limite. Aqui a beleza (que Churata prefere chamar “formosura”, porque
Churata sabia
entende queque pensardedessa
o conceito forma
“beleza” polemizava
não existe com anão
no léxico andino) tradição clássica.
é algo que Alé
sso, queria que sua lição de estética questionasse essa tradição em seu momen
129
nstitutivo, ou seja, em sua formulação platônica. Escutemos Churata em sua primei
terpelação ao discípulo de Sócrates, ao que se dirige com o vocábulo latino Plato:
se dá, não é uma Ideia com valor universal, muito menos uma abstração onde
se deve chegar ou que se deve imitar. Aqui a formosura se engendra, se esculpe
com sexo, sua forma de ser é o parto que dá vida. O sujeito, nesta equação,
também não é uma existência metafísica ou fronteiriça, é muito mais uma
existência que surgindo de um “espasmo germinal”, entra no mundo presa ao
ñuño (peito) que lhe deu vida e o converte em “animal lácteo”. O surpreendente
é que Churata não está dizendo que esta teoria da “Germinação como estética”
é exclusiva das culturas andinas. Ao contrário, seu argumento propõe que
“ninguém engendra fora de si mesmo”, e como caso exemplar coloca o olhar
em El Greco, apontando que somente aferrado ao ñuño de Castela pôde ter
parido El Entierro del Conde de Orgaz. Esta menção a El Greco nos deixa com
uma inquietante pergunta: “Algo mais espanhol? Nem Loyola; nem Felipe II”
(Churata, 1957, p. 38).
Churata sabia que pensar dessa forma polemizava com a tradição
clássica. Além disso, queria que sua lição de estética questionasse essa
tradição em seu momento constitutivo, ou seja, em sua formulação platônica.
Escutemos Churata em sua primeira interpelação ao discípulo de Sócrates, ao
que se dirige com o vocábulo latino Plato:

Observe-se o rosto do homem que assiste ao [...] nascimento do seu


primeiro filho [...] nesse momento o pobre homem é um deus que
se assusta de Deus... o mais assustador de tudo isto é saber que a
formosura só pode vir em gametas, e que é o homem o indutor do
drama, ele... sacerdote da germinação. Como, fora desta, poderá
entender-se prelazia na ordem estética? O único mandamento da
beleza viva: engendrar! Entendes, Plato? Para o americano de América:
engendrar! engendrar! Engendrar até a profundeza do Tawantinsuyu.5
(Churata, 1957, p. 41)6

“Obsérvese el rostro del hombre que asiste al [...] nacimiento de su primer hijo [...] en tal
5

momento el pobre hombre es un dios que se espanta de Dios… lo más espantable de todo
esto es saber que la hermosura sólo puede venir en gametos, y que es el hombre el inductor
del drama, el... sacerdote de la germinación. ¿Cómo, fuera de ésta, podrá entenderse prelatura
en el orden estético? El único mandamiento de la belleza viva: ¡engendrar! ¿Entiendes, Plato?
Para el americano de América: ¡engendrar! ¡engendrar! Engendrar hasta la profundidad del
Tawantinsuyu”.
Em El pez de oro existem várias interpelações diretas a Platão e cada uma desafia aspectos
6

diferentes do seu pensamento. A maioria destas interpelações estão formuladas a partir


de uma estrutura lógica similar à que acabo de citar e sempre concluem com a irreverente
pergunta: “Entendes, Plato?” [“¿Entiendes, Plato?”]. Por vezes, no entanto, as perguntas são
mais incisivas. Calibram com requintada ironia o efeito que poderia estar causando seu

130
O questionamento de Churata à estética platônica cumpre vários
objetivos teóricos. O primeiro e fundamental é apresentar sua teoria geral da
Germinação como Estética. O segundo é provocar a estética hegeliana que,
instituída em princípios platônicos, estabelece uma distinção entre o “belo
natural”, que remete à matéria, e o “belo artístico”, que é produto da ação
humana em contato com o espírito — entendendo que esse espírito é sempre o
europeu. Fica assim desautorizado o ingresso de formosuras não ocidentais ao
campo estético, solucionada a soberania do humano sobre o não-humano, e
legitimada a soberba de converter em ontológico e universal o comportamento
de uma só cultura: a ocidental. Montanhas e chullpares caem na categoria
do “belo natural”; enquanto tecidos, estelas líticas, musicalidades indígenas
etc. resultam em artesanato, arqueologia, folclore e curiosidades locais. Um
terceiro objetivo é estabelecer que o ñuño para o qual os escritores americanos
teriam que voltar os olhos está na ancestralidade cultural (o Tawantinsuyo para
o caso Andino). Churata não sente que sua época — nem a que o antecedeu
— tenham optado por vincular-se esteticamente a este ñuño. Um exame
crítico do processo histórico-cultural americano lhe informa que apesar de
raras exceções (Guamán Poma no século XVI, Tupac Katari em XVIII,7 Jorge
Icaza, José María Arguedas, Cardoza Aragón no século XX), o ñuño ao que os
escritores americanos vêm se aferrando é o de Castela. Surpreender ao escritor
americano preso ao ñuño espanhol e ainda pretender que esteja produzindo
literatura americana enlouquece de indignação Churata:

[...] se poderá compreender que se América perdeu toda esperança


de expressar-se em um idioma com pátria, mais que ocioso, é cretino,
falar de Literatura Americana. Deve falar-se de Literatura Espanhola
da América, e com mais propriedade de Literatura Espanhola às claras;
pois se na Espanha se fala de Literatura Espanhola de Bascos; Catalães,
Aragoneses, é porque existem bascos, catalães, aragoneses, que pensam
e sentem, e produzem, em línguas aborígenes, e em modo agonal.8
(Churata, 1957, p. 25)

discurso (“O que? Te feriram; choras, Plato?...” [“¿Qué? ¿Te hirieron; lloras, Plato?...”]) ou
exigem respostas (“Responde Plato!” [“¡Contesta Plato!”]).
Aqui Churata faz referência às cartas de Tupac Katari ao brigadeiro Segurola durante o cerco
7

de La Paz, em 1781. Sobre isso, consultar meu livro La vanguardia plebeya del Titikaka [A
vanguarda plebeia do Titikaka]. (Monasterios Pérez, 2015, p. 297 e ss).
“[…] se podrá comprender que si América ha perdido toda esperanza de expresarse en un
8

idioma con patria, más que ocioso, es cretino, hablar de Literatura Americana. Debe hablarse
de Literatura Española de América, y con más propiedad de Literatura Española a secas; que
si en España se habla de Literatura Española de Vascos; Catalanes, Aragoneses, es porque hay

131
A acidez verbal com a qual Churata discute o tema da colonialidade
americana tem sido (e ainda é) um dos maiores obstáculos para a compreensão
da sua obra, pois cria o estereótipo de um discurso irritante, mas ingênuo
e extravagante em seus postulados. Aqui se deve insistir no teor reflexivo
da intervenção de um escritor que se propõe criar uma virtualidade para a
tradição filosófica ocidental. Inevitavelmente, a cada arranque de indignação
segue-se uma descarga teórica suficiente para desestabilizar a universalidade
do conhecimento e reorientar o curso da cultura nos Andes. Voltando à citação
anterior, nota-se que uma vez exposto o “cretinismo” de falar em literatura
americana enquanto nossos escritores estejam aferrados a ñuños estrangeiros,
Churata articula uma lúcida teorização da condição postiça do escritor
americano. Entende que este, submergido nas periferias americanas e com
o peso alienante do determinismo colonial, se rende facilmente aos prazeres
estéticos que chegam de ñuños estrangeiros. Não lamenta o contato com eles,
mas sim o feitiço desestabilizador que a “mundolatria” transatlântica (assim
entende o circuito transculturador) exerce sobre o artista local desavisado. Esse
feitiço, nos diz Churata, conseguiu consolidar na América a universalização
de princípios estéticos platônicos e determinar o curso de nosso processo
cultural, mas NÃO cancelou a possibilidade de uma reversão. El pez de oro é
justamente a possibilidade de uma reversão estética nos Andes. Escutemos a
Churata elaborando suas razões:

À mundolatria, que prende por ação oceânica em seus grupos artísticos,


o desapego hoje cardeais, seguirá uma arte de gênese, de luxuria e
ensediamento na pátria láctea; pois ali se verá que a pátria láctea não
pode ser suprimida e tudo o que se fez foi obrigá-la a permanecer na
espreita, entrincheirada e ansiosa. O artista sentirá a vontade criadora
de uma mulher genésica (acontecerá espécie de matriarcado mental)...
Vibrantes e repletos os seios, as curvas pélvicas serpenteantes, cheia
de prenhez da mesma tentação da flor da terra, essa mulher lhe dará
o instinto de eurritmia,9 o delíquio do deleite, a tortura da ternura; lhe
dará a adução do ser, de SER-ELA, que é MULHER-TERRA. A beleza

vascos, catalanes, aragoneses, que piensan y sienten, y producen, en lenguas aborígenes, y en


temple agonal [...]”. (Churata, 1957, p. 25)
Eurritmia é o nome de uma forma artística performativa criada em 1911 pelo filósofo
9

austríaco Rudolf Steiner (1861-1925). Alude à ação de mover-se de forma tão harmoniosa,
que por meio desse movimento possa expressar-se uma relação harmônica entre o pensar
e o sentir do individuo e o pensar e sentir do mundo exterior. Esta forma de arte tem suas
origens na antroposofia desenvolvida por Steiner no início do século XX.

132
será sua plenitude germinal e a filosofia das causas e os fins, mera
genética no pólipo lácteo; pois o ponto lácteo é o ponto da euforia do
Ser. (Churata, 1957, p. 40)10

Faz falta um verdadeiro esforço conceitual para digerir a narrativa de


Churata, porém, ainda mais, faz falta uma dose de democracia cultural para
dimensionar o horizonte de desigualdade a quem se atém à leitura quando a
desqualifica por “extravagante”. Bastaria lembrar os impropérios do Primeiro
Manifesto Dadaísta (“medicastros literários preocupados por melhorar um
mundo mutilado”), ou as provocações do Manifesto Comunista (“todo o sólido
se desvanece no ar”), Surrealista ou Ultraísta (“jovens, rompamos de uma vez
nossa introversão e afirmemos nossa vontade de superar os precursores”), para
entender que a linguagem de Churata era, em maior parte, uma linguagem
de Manifesto. Era uma linguagem de inspiração vanguardista, e como tal,
apresentava agressiva e traiçoeiramente seu programa de trabalho, expressado
em uma estética anti-hispanista, antiplatônica e radicalmente desconectada
de ‘ ismos’ europeus.11 Hoje sabemos que o valor de um Manifesto (como
geralmente de qualquer inovação artística) está menos em seu momento
de rebeldia do que em sua capacidade de permanência no tempo, de saber
permanecer para intervir na sensibilidade de épocas posteriores. A aparição,
ao final do século XX e início do século XXI, de alguns romances bolivianos
particularmente perturbadores, uma vez que ativam estéticas antiplatônicas,
anti-hispanistas e anticolonialistas, sugere que o paradigma aberto por
Churata poderia não ter perdido vigência para seguir intervindo na ficção
andina. Independentemente de os autores destes romances cultivarem ou
não um diálogo com Churata, essa “arte de luxuria e ensediamento na pátria
láctea” que o autor de El Pez de oro tinha anunciado faz mais de cinquenta anos
e vinculado a uma mulher genésica cheia de prenhez e convocada a instaurar

“A la mundolatría que prende por acción oceánica en sus grupos artísticos, el desasimiento
10

hoy cardinales, seguirá un arte de génesis, de lujuria y afincamiento en la patria láctea; pues
allí se verá que la patria láctea no puede ser suprimida y todo lo que se hizo fue obligarla a
permanecer en acecho, encrucijada y zozobra. El artista sentirá la voluntad creadora de una
mujer genésica (sobrevendrá especie de matriarcalismo mental)... Vibradores y apelotonados
los senos, serpentinas las curvas pélvicas, henchida con preñeces de la misma tentación de
flor de la tierra, esa mujer le dará el instinto de la euritmia, el deliquio del deleite, la tortura de
la ternura; le dará la aducción del ser, de SER-ELLA, que es MUJER-TIERRA. La belleza será
su plenitud germinal y la filosofía de las causas y los fines, mera genética en el pólipo lácteo;
pues el punto lácteo es el punto de la euforia del Ser.”
Um estudo dedicado ao vanguardismo churatiano pode ser visto em meu livro La vanguardia
11

plebeya del Titikaka.

133
erializado na literatura andina escrita na Bolívia com linguagem, estilo e age
pria. Um romance em particular deu a esta literatura um “instinto de deleite”
tamente postula para a beleza campos de ação diferentes dos pensados por Pla
um instinto de eurritmia e deleite, parece ter-se materializado na literatura
ficados porandina
Hegel e aperfeiçoados
escrita pela Filosofia
na Bolívia com linguagem, do Limite.
estilo e agenda própria.Me refiro a Cuando S
Um romance
em particular deu a esta literatura um “instinto de deleite” que abertamente
ra despierte, de Juan
postula para aPablo
beleza Piñeiro
campos de(2003).
ação diferentes dos pensados por Platão,
certificados por Hegel e aperfeiçoados pela Filosofia do Limite. Me refiro a
Cuando Sara Chura despierte, de Juan Pablo Piñeiro (2003).

Cuando Sara Chura despierte…


Cuando Sara Chura despierte…

Capa da primeira edição.

Capa da primeira edição


Estamos diante de um romance que decidiu expressar a beleza na
imagem de uma giganta de braços robustos e curvas infinitas. Essa giganta
mede mais de três metros, e seus olhos profundamente negros olham fixamente, ‘n’
como olham os cegos e loucos. O narrador a apresenta primeiro “como uma
irrealidade em movimento”, ébria, cercada de folhas de coca e encomendando
a um paxp’aku12 de nome César Amato — que além disso é detetive — a missão
m estudo dedicado ao vanguardismo churatiano pode ser visto em meu livro La vanguardia ple
itikaka.
Em sua pesquisa sobre o romance, Meritxell Hernando Marsal observa que “[u]ma possível
12

definição para paxp’aku é a de Rubén Vargas em seu artigo-entrevista sobre o romance: “uma

134
de buscar, encontrar e fazer desaparecer uma praga ancestral responsável pela
falta de sentido no mundo, para que ela, triunfante, doadora de sentidos, possa
despertar o dia da festa do Grande Poder. Nunca sabemos se o charlatão-
detetive aimará termina com sucesso a sua missão, ficamos com a feliz suspeita
de que “algo está se transformando no mundo” e que...

Quando Sara Chura despertar estará mais linda que nunca. Vestirá doze
saias de diferentes cores e descerá com seu cortejo triunfal pela avenida
Mariscal Santa Cruz, no dia da Entrada do Senhor do Grande Poder
do ano 2003. Às cinco da tarde, em seus cabelos brancos nadarão duas
sereias de prata e em seu sorriso se adivinhará a tristeza acumulada por
tantos anos de silêncio. Levará um cetro antigo na mão direita e na outra
mão uma terna espiga de quinoa dourada. Suas costas estarão cobertas
por um têxtil ancestral puquina e seus grandes peitos serão decorados
por borlas feitas de lã de vicunha vermelha. Seus pés, curtidos de tanto
caminhar, calçarão sandálias simples de borracha. Toda a cidade,
banhada por uma luz amarela, terá cheiro de koa e palosanto no dia que
Sara Chura despertar.13 (Piñeiro, 2003, p. 90-91).

O obséquio que este romance faz para a literatura andina é a ficcio-


nalização de um enorme personagem feminino que em circunstâncias
convencionais seria percebido como monstruoso, mas que dentro da lógica do
relato percebemos como formoso. Esta mulher descomunal possui a capacidade
de articular falas e desejos antigos. Churata diria que chega “empapada” de
nuño. A escritora e crítica literária boliviana Blanca Wiethüchter acrescentaria
que a linguagem de Sara Chura é uma “linguagem que faz lembrar” [recordante]
porque dota o discurso de histórias profundas. Em todo caso, o que seduz no
personagem é o que ele faz com essas histórias, pois longe de levá-las ao terreno
das ideias abstratas, ou da ontologia ou a metafisica (como fariam Platão,

palavra aimará intraduzível, e que em uma paupérrima aproximação poderia se referir a


‘charlatão’” (Hernando Marsal, 2011, p. 164).
“Cuando Sara Chura despierte estará más hermosa que nunca. Vestirá doce polleras de
13

distintos colores y bajará con su cortejo triunfal por la avenida Mariscal Santa Cruz, el día
de la Entrada del señor del Gran poder del año 2003. A las cinco de la tarde, en sus cabellos
blancos nadarán dos sirenas de plata y en su sonrisa se adivinará la tristeza acumulada por
tantos años de silencio. Llevará un cetro antiguo en la mano derecha y en la otra mano una
tierna espiga de quinua dorada. Su espalda estará cubierta por un ancestral textil puquina
y sus grandes pechos serán adornados por borlas hechas de la lana de una vicuña roja. Sus
pies, curtidos de tanto caminar, calzarán unas sencillas sandalias de caucho. Toda la ciudad,
bañada por una luz amarilla, olerá a koa y palosanto el día que Sara Chura despierte”. (Piñeiro,
2003, p. 90-91).

135
Hegel e Trias), leva-as ao terreno da agricultura, as converte em sementes com
que se dispõe a semear outra vez o mundo, desta vez incluindo todos os tempos
no banquete da civilização. Abre-se assim a possibilidade de uma interessante
reversão estética nos Andes, porque esse “entregar-se ao ñuño próprio” que
evidentemente produz o romance não deriva em purismos ancestrais. A partir
de uma perspectiva narrativa, estabelece relações tão criativas e igualitárias
com todos os mundos, que a nenhum lhe cabe o papel de maravilhar ao outro,
basicamente porque cada um está maravilhado consigo mesmo. Para o artista
local, isto significa ter detido o feitiço deslocador que por séculos exerceu a
“mundolatria oceânica” sobre escritores incautos e desprevenidos. O único
feitiço que agora sustenta o discurso é o que abre caminho entre as curvas e os
movimentos de uma entidade feminina gigantesca, amplamente suspeitada,
esperada e convocada por multidões que habitam a cidade de La Paz e sabem
que quando Ela (ela-Sara/ela-cidade) finalmente despertar, o sentido voltará
ao mundo. Dois eventos extraordinários marcarão esse retorno: um raio fará
voar em mil pedaços a Igreja de São Francisco (ícone da evangelização no
Novo Mundo). Junto com ela, a praga ancestral do colonialismo explodirá
estrepitosamente, liberando uma infinidade de “cabecinhas” que vistas de perto
serão os nascidos em um Tempo sem sentido. Quando despertar, Sara Chura
tomará em suas mãos enormes essas infinitas cabecinhas e fazendo sulcos no
solo as semeará novamente para que brotem em um Tempo diferente, como
brotou a primeira batata (Piñeiro, 2003, p. 129-130).
Como deixar de associar este ato de reprodução da vida com os
postulados que Churata propunha em sua teoria da “Germinação como
estética”? Em ambos os casos “a vontade criadora de uma mulher genésica
[...] vibrantes e repletos os seios, as curvas pélvicas serpenteantes” permitem
que o acontecimento do belo se desvincule do âmbito dos valores abstratos e
universais para se vincular a ciclos germinais de lógica agrária, cuja formosura
está em garantir a continuidade da vida. Em Sara Chura, é o semear da batata
o ritual que garante essa continuidade. A isso, se soma o carácter de celebração
que o romance concede ao acontecimento do belo, pois a tão procurada
germinação da semente ocorrerá em dia de festa, durante a Entrada do Senhor
do Grande Poder, quando Sara Chura despertar e desfilar pelo centro da
cidade jogando folhas de coca, álcool branco e estrelas de sal benzidas por
todos guardiões do Altiplano (Piñeiro, 2003, p. 90-91). Esse dia, às cindo da
tarde, sua imensa humanidade estará mais linda que nunca, vestirá doze saias
de diferentes cores, levará um cetro antigo na mão direita e na outra mão uma
tenra espiga de quinoa dourada e descerá com seu cortejo triunfal pela avenida
Mariscal Santa Cruz.

136
Esta opção do narrador de situar o seu relato no futuro tem sido lida
como sintoma do horizonte de possibilidade em que se desenvolve o romance.
Seria possível complementar essa leitura anotando que em Sara Chura os usos
do futuro configuram uma temporalidade quebrada, uma vez que o sentido
de futuridade (privilégio epistemológico da modernidade) chega carregado de
ancestralidade: “Sara levará um cetro antigo na mão direita e na outra mão
uma tenra espiga de quinoa dourada. Suas costas estarão cobertas por um
têxtil ancestral puquina” (Piñeiro, 2003, p. 90). Tão necessária coexistência do
futuro com o passado desafia abertamente a hegemonia da temporalidade da
civilizatória moderna, inclinada sempre a desentender-se do passado, fundar-
se no presente e projetar-se em futuros articuladores de utopias modernas
como o “desenvolvimentismo” e o “progresso”. Complexa em sua composição,
a temporalidade deste romance chega “empapada” de passado, com capacidade
de ser presente, vontade de produzir futuro e habilidade de construir pontes
em direção a outros tempos e processos civilizatórios, incluídos o moderno e
ocidental (depois de tudo, o romance não deixa de ser um relato detetivesco,
nem de dialogar intensamente com a literatura ocidental, ou de integrar-se
à linguagem da internet). De tudo isso pode-se deduzir que Cuando Sara
Chura despierte poderia ser muito mais que uma simples aposta literária
pachamamista.14 Poderia ser uma proposta literária na qual o Tempo da
ancestralidade milenária andina e o Tempo da centenária modernidade
debatem criativamente suas diferenças.15 Poderia também ser o primeiro
romance boliviano que concebe o campo estético desde uma metáfora agrícola
e empurra a ficção literária a interpelar a sensibilidade civilizatória moderna,
democratizando suas obsessões. Uma dessas obsessões é justamente a ideia do
“limite”, ausente como conceito nas línguas andinas. Em um dos capítulos de
El pez de oro significativamente titulado “Pachamama”, Churata nos ajuda a
entender porque o conceito de “limite” não existe nelas. Se ampara, para isso,
de uma apóstrofe lírica com o ñuño americano, a Pachamama:

Debates recentes colocaram o termo pachamamismo em discussão. Foi Pablo Stefanoni quem
14

primeiro o identificou como uma “pose de autenticidade ancestral” que “pode ser útil para
seduzir aos turistas revolucionários em busca do exotismo familiar latino-americano e mais
ainda boliviano [...] mas não parece capaz de agregar nada significativo como construção
de um novo Estado, de surgimento de um modelo de desenvolvimento, de discussão de
um modelo produtivo viável ou de novas formas de democracia e participação popular”
(Stefanoni, 2010, p. 1).
Uma discussão crítica das relações entre ancestralidade milenária e modernidade centenária
15

pode ver-se no trabalho filosófico aimará Simón Yampara, especialmente no seu artigo
“Cosmovivencia Andina. Vivir y convivir en armonía integral — Suma Qamaña”.

137
Nada está além da sua força [...]. Parte em uma direção e chega a todas.
Avança no infinito, e se o infinito se limita, você é, ilímite, o limite do
infinito; mas não é finita, porque não tem princípio; e apesar de que o
homem não compreende hoje, terá que descobrir que aquilo que teve
início não existe. Em você só o permanente é coisa. Você é todo sem
unidades. E como fora de você nada existe, você não preenche, mas você
está.16 (Churata, 1957, p. 162-163)

O “estar”, essa categoria ontológica tão pouco trabalhada pela filosofia


ocidental devido ao privilégio outorgado ao “ser”, encontra em Churata uma
vigorosa reflexão filosófica. O ñuño do qual Churata se “empapa” não é força
destinada a preencher o que estava vazio, nem existência sujeita à lógica dos
princípios e dos fins. O ñuño está, permanece, carece de limite porque não
responde à lei dos princípios e finais. O ñuño é ilímite. Como Sara Chura,
ele está, hoje, ontem, amanhã e sempre. Assim o entende o paxp’aku César
Amato em uma das suas últimas locuções, quando já depois de muitos anos,
e convertido ele mesmo em ancestral, outros repetem a mesma jornada: são
convocados por Sara para buscar, encontrar e fazer desaparecer a “praga
ancestral” responsável pela falta de sentido da vida. Em coisa de um segundo
compreende o paxp’aku (que continua sendo detetive além de ancestral) que
a materialidade de Sara é sua permanência, seu estar. Comovido, já fora de
tempo-relógio e da lógica convencional, lhe fala por última vez com palavras
plurais:

Depois de muitos anos, um grupo como o nosso repetirá o ritual e então


o Tempo nos Andes terá retornado como se nada tivesse acontecido.
E nós, ansiosos, com os pés curtidos de tanto caminhar, chegaremos
até onde está você para que nos cubra com seu tecido e nos devolva ao
tempo.17 (215)

16
“Nada está más allá de tu fuerza [...]. Partes en una dirección y a todas llegas. Avanzas
en el infinito, y si el infinito se limita, eres tú, ilímite, el límite del infinito; pero no eres
finita, porque no tienes principio; y aunque el hombre no comprende hoy, tendrá que
enterarse que aquello que principio tuvo no existe. En ti sólo lo permanente es cosa. Eres
todo sin unidades. Y como fuera de ti nada hay, tú no llenas, sino estás”. (Churata, 1957,
p. 162-163)
“Después de muchos años, un grupo como el nuestro repetirá el ritual y entonces
17

el Tiempo en los Andes habrá regresado como si nada pasara. Y nosotros, ansiosos,
con los pies curtidos de tanto caminar, llegaremos donde estás tú para que nos
cubras con tu tejido y nos devuelvas al tiempo”. (Piñeiro, 2003, p. 215)

138
Podemos agora propor que tanto a jornada do paxp’aku como a proposta
de uma Germinação como Estética se distinguam de dialéticas platônicas,
hegelianas e também da proposta por Trias, primeiro porque se distanciam
de dualismos conceituais, e em segundo lugar porque ao fazê-lo ativam uma
ontologia relacional que poderia caracterizar-se como dialética do ESTAR.
Para Churata, para Piñeiro, e para os personagens que criam, desvincular-se
de esse ESTAR equivale a andar pela vida sem khepi para a viagem, sem mãe
para amar, sem kuka para o canto.

Tradução de Mary Anne Warken Sobottka

Referências
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Retábulos de Laykhakuv]. La Paz: Editorial Canata, 1957.
______. Resurrección de los muertos [Ressurreição dos mortos]. Riccardo Badini
(Org.). Lima: Asamblea Nacional de Rectores, 2010.
______. Khirkhilas de la sirena [Khirkhilas da sereia]. Paola Mancosu, ed. La Paz:
Plural Editores, 2015.
HERNANDO MARSAL, Meritxell. “Más allá de la hibridez: la ciudad ch’ ixi de Juan
Pablo Piñero” [Mais além da hibridez: a cidade ch’ ixi de Juan Pablo Piñero]. Estudos
de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, 38, p. 163-172, 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/elbc/n38/2316-4018-elbc-38-163.pdf>.
MONASTERIOS PÉREZ, Elizabeth. La vanguardia plebeya del Titikaka. Gamaliel
Churata y otras beligerancias estéticas en los Andes [A vanguarda plebeia do Titikaka.
Gamaliel Churata e outras beligerâncias estéticas nos Andes]. La Paz: IFEA / Plural
Editores, 2015.
PIÑEIRO, Juan Pablo. 2003. Cuando Sara Chura despierte [Quando Sara Chura
despertar]. La Paz: OFFAVIM, 2003.
STEINER, Rudolf. 1916. The Philosophy of Freedom: A Modern Philosophy of Life
Developed by Scientific Methods [A filosofia da Liberdade. Uma moderna filosofia da
vida desenvolvida por métodos científicos]. Hoernlé and Hoernlé, trads. London and
New York: G. P. Putnam’s Sons, 2016.
STEFANONI, Pablo. 2010. “¿Adónde nos lleva el Pachamamismo?” [Para onde nos
leva o Pachamamismo?]. Página Siete [Página Sete]. La Paz, 27 de abril de 2010.
Reproduzido em Tabula Rasa, 2011, n. 15, p. 261-264. Disponível em: <http://www.
scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1794-24892011000200014&lng=en
&tlng=es>.

139
TRIAS, Eugenio. Filosofía del futuro [Filosofia do futuro]. Barcelona: Editorial Ariel.
1983.
YAMPARA HUARACHI, Simón. 2011. “Cosmovivencia Andina. Vivir y convivir en
armonía integral — Suma Qamaña” [Cosmovivência Andina. Viver e conviver em
harmonía integral — Suma Qamaña]. Bolivian Studies Journal, n. 18, p. 1-22, 2011
Disponível en: <http://www.scielo.br/pdf/elbc/n38/2316-4018-elbc-38-163.pdf>.

140
Quando os mortos podem falar: a política
discursiva de Gamaliel Churata1

Meritxell Hernando Marsal

El pez de oro [O peixe de ouro], uma das principais obras do escritor peruano
Gamaliel Churata, publicada no seu exílio na Bolívia em 1957, se apresenta sob
o poder do layka ou xamã. Desde o subtítulo, este personagem aparece para o
leitor como mediador privilegiado: o que é oferecido no livro são os “Retablos
del laykhakuy”, isto é, os retábulos do caminho do xamã. Portanto, o que vai ser
contado em cenas, em quadros situados em nichos simultâneos, é um itinerário
mágico. Helena Usandizaga assinalou esta característica ao definir a estrutura
da obra como “um texto-caminho: trata-se de uma busca a partir de elementos
culturais que são assumidos um pouco ironicamente [...] porque são tratados
mais como dispositivos de busca do que como saber adquirido”2 (Usandizaga,
2012, p. 94). Esta pesquisadora tem sublinhado o caráter ritual da obra, sua
forma de convocação xamânica (Usandizaga, 2012, p. 81) que desenvolve uma
estrutura interativa de reciprocidade (Usandizaga, 2012, p. 95). É precisamente
esse elemento que me interessa destacar no presente artigo. Se pensarmos na
projeção da obra de Gamaliel Churata, naquelas características que tornam

1
Este artigo foi desenvolvido dentro do projeto de pesquisa “Discursos nas margens da
literatura latino-americana contemporânea”, que visa refletir sobre discursos não canônicos
e os desafios que propõem à instituição literária, acerca de sua configuração e seus limites.
No presente trabalho pesquisa-se a política de proliferação de vozes de Gamaliel Churata,
que escapa da representação das culturas indígenas para destacar suas formas de recepção e
escuta.
2
Os textos de Gamaliel Churata e sua fortuna crítica são traduzidos ao português no corpo do
artigo pela autora do mesmo. Em nota será consignado o original: “un texto-camino: se trata
de una búsqueda a partir de elementos culturales que se asumen un poco irónicamente [...]
porque se tratan más como dispositivos de búsqueda que como saber adquirido”.
atuais seus textos, essa é uma das mais destacadas. Trata-se da construção
de um discurso descentrado, onde a autoridade do narrador pulveriza-se
em vozes diversas e de distinta natureza: humanos como o psicanalista e os
conquistadores, animais como os peixes do lago e o cachorro Thumos, vivos
como o livreiro Clemente e mortos como o Hiwa Hila, seres míticos como o
Puma de ouro e o Peixe de ouro, divinos como o mesmo Deus e a Pachamama,
ou mortais, como o próprio Churata. Todos podem ser ouvidos articulando
o texto em uma disposição reticular ou, em vínculo estreito com as práticas
culturais andinas, em forma de tecido. O agenciamento enunciativo não é só
plural, mas móvel e exterior: desloca-se na procura da palavra alheia.
Uma das grandes questões da obra, ou melhor, um dos fundamentos
literários que a obra questiona, é o gênero do discurso. Essa controvérsia
procede precisamente da mudança constante do ponto de vista. A proliferação
de vozes inabilita o texto para o romance, pois a trama se perde e junto com
as vozes pulveriza-se o enredo. O que se oferece são uma série de motivos
culturais revisitados, não uma história a ser contada. A presencia de várias
vozes aproxima a obra ao teatro. O próprio Churata reforça esse argumento
colocando uma lista de Dramatis Personae no começo, com o subtítulo
“Retábulo”, que remete ao Retablo de las maravillas, um teatro de fantoches
que Miguel de Cervantes insere em Dom Quixote, e com várias afirmações
metateatrais.3 Porém, mais que um texto para a cena, trata-se de uma cena
textualizada, isto é, ao ler se fazem presentes os vários quadros, mas sem uma
encenação como objetivo (talvez a companhia peruana Yuyachkani conseguisse
realizar a montagem de El pez de oro, mas seria necessária uma adaptação
complexa). Numa direção parecida, o pesquisador Arturo Vilchis colocou a
possibilidade de que o texto de Churata se tratasse de um roteiro radiofônico.
Nesta proposta, acrescenta-se ao intercâmbio da enunciação o vínculo com as
tecnologias da comunicação, que colocariam a obra em busca de sua recepção:
“Chegar à população popular, àqueles que não estavam familiarizados com

Churata assinala, por exemplo, a importância do espectador na encenação: “Mas nem em


3

O PEIXE DE OURO (nem em símbolo) seria possível uma existência sem um público para
quem existe e o qual o alimenta menos com sua admiração do que com sua vontade. Em
todo drama, o drama é tanto do autor que o ordena como do público que convive com
ele, e é preciso que ele se faça existência em cada um dos espectadores para que atinja as
engrenagens vitais” [“Mas ni en EL PEZ DE ORO (ni en símbolo) sería posible una existencia
sin un público para quien existe y el cual le alimenta menos con su admiración que con su
voluntad. En todo drama, el drama es tanto del autor que lo ordena como del público que lo
convive, y es preciso que él se haga existencia en cada uno de los espectadores para que hiera
los resortes vitales” ] (Churata, 1957, p. 137).

142
a leitura, frente ao fato de um alto índice de analfabetos, pois, ainda que
falassem o idioma espanhol, não o liam. Gamaliel tenta uma forma intrépida
de comunicação entre indivíduos não bilíngues, indígenas, mestiços, obreiros
mineiros e setores sociais emergentes”4 (Vilchis, 2008, p. 121). El pez de oro,
segundo o pesquisador mexicano, é caracterizado por uma “leitura falada
como exigência do texto e como uma prática social”5 (Vilchis, 2008, p. 118).
Desta forma, o jogo de vozes não é fixo e se o sujeito da enunciação se desloca,
também o faz o enunciatário e, em última instância, o/a leitor/a ou ouvinte,
configurando um evento dinâmico e virtualmente aberto à alteridade.
Esta configuração poli-lógica está estreitamente vinculada aos temas
chave da obra, o canto e a morte, e a sua natureza ritualística. Em um dos
episódios mais relevantes do livro, o canto, e com ele o impulso de composição
da obra, surge do massacre da comunidade de Khalakampana decretada
pelo gamonal, o latifundiário: “Ali nasceste, trino; dessa pilha putrefata,
nasceste, trino meu, Inka”6 (Churata, 1957, p. 78). Esta frase parece indicar
o surgimento do canto a partir da morte e, ao nomear o Inka, também indica
sua transcendência histórica, isto é, a profundidade em direção ao passado
que tem o canto. Isso coloca uma série de questões complexas: “A morte do
Peixe de ouro (que é filho, Inka e a própria comunidade andina, se é pensado
em um sentido coletivo) levaria à sua necessária atualidade/atualização no
canto? Como opera esse sujeito histórico e coletivo nesse contexto discursivo?
O canto constitui, então, uma produção do trabalho de luto?
A obra de Eduardo Viveiros de Castro me permitiu uma aproximação
a essas questões. O apelo ao antropólogo brasileiro para pensar a obra de
Churata deve-se a que, apesar das múltiplas distâncias (cronologia, formação,
projeto, contexto), ambos se engajaram numa tarefa similar, a de “atingirmos
um tipo e um grau de compreensão dos pensamentos indígenas que estejam à
altura de sua complexidade, sutileza e sofisticação” (Viveiros de Castro, 1986,
p. 13). A descrição que Viveiros de Castro faz dos cantos xamânicos arawetés
pode nos aproximar da organização da política discursiva de El pez de oro e
dos desafios que implica. Não se trata, é claro, de uma procura do idêntico,
mas de uma comparação dentro do sistema de pensamento ameríndio, pois,

“Llegar a la población popular, aquellos que no estaban familiarizados con la lectura, ante el
4

hecho de un alto índice de analfabetos, porque, aunque hablaban el idioma español, no lo


leían. Gamaliel intenta una forma intrépida de comunicación entre individuos no bilingües,
indígenas, mestizos, obreros mineros y sectores sociales emergentes”.
“una lectura hablada como exigencia del texto y como una práctica social”.
5

“Allí naciste, trino; de ese montón putrefacto, naciste, trino mío, Inka”.
6

143
como assinala este autor, “as unidades sociológicas, linguísticas ou culturais do
continente cada vez mais se mostram como incidências combinatórias de uma
estrutura que, sobre operar com um mesmo repertorio simbólico, articula
diferencialmente as mesmas questões” (Viveiros de Castro, 1986, p. 31).
A polifonia que caracteriza El pez de oro está também no cerne do
canto araweté. O xamã (re)produz um canto, é a sua voz que se escuta na
noite, mas as palavras não são suas: “A música dos deuses é um solo vocal,
mas é, linguisticamente, um diálogo ou uma polifonia, onde diversos
personagens aparecem de diversas maneiras. Saber quem canta, quem diz o
que para quem, é o problema básico” (Viveiros de Castro, 1986, p. 548). Os
procedimentos de citação são fundamentais nesses cantos, pois permitem ao
sujeito da enunciação falar o que outros falaram, de maneira que se produz
um contínuo deslocamento da palavra: “Assim, a forma típica de uma frase é
uma construção dialógica complexa: o xamã canta algo dito pelos Maí, citado
pelo morto, referente a ele (xamã), por exemplo… Quem fala, assim são os três:
Maí, morto, xamã, um dentro do outro” (Viveiros de Castro, 1986, p. 549).
Na obra de Churata também proliferam os interlocutores. O eu e o tu
são os pronomes básicos que articulam o texto e o configuram em forma de
diálogo, mas não é possível atribuir a esses pronomes uma referência estável;
dessa maneira os pronomes pessoais adquirem significados múltiplos. A escrita
atualiza discursos, mas não os apropria nem veicula a partir de um narrador.
Churata, como o xamã,7 apresenta múltiplas vozes, fragmentos de diálogo,
narrações, gritos, onomatopeias, desafios de uma primeira pessoa a uma
segunda pessoa que não é identificada, e o/a leitor/a deve atribuir/imaginar a
todos eles uma entidade. “‘O xamã é como um rádio’, dizem. Com isto querem
dizer que ele é um veículo, e que o corpo-sujeito da voz está alhures, que não
está dentro do xamã” (Viveiros de Castro, 1986, p. 543), esclarece Eduardo
Viveiros de Castro. Esta imagem remete, por um lado, à ideia de Arturo Vilchis
da concepção radiofônica de El pez de oro, como estrutura que organiza a
obra e sua recepção; mas além disso, coloca a intervenção do extraordinário
na comunidade. Se quem articula é o xamã, quem fala está em outro lugar.
Nesse sentido, o xamã “é um mediador, que, ubíquo mas sempre distinto do

Mauro Mamani afirma em relação à referência ao layka desde o subtítulo: “Assim visto, o
7

autor do livro seria um bruxo, um layqa; isto faz com que El pez de oro assuma róis míticos,
que expõe visivelmente em seu conteúdo [...] Churata, na posição de bruxo, criou um livro
bruxo: El pez de oro”. [“Así visto, el autor del libro sería un brujo, un layqa; esto hace que El
pez de oro asuma papéis míticos, que en su contenido expone visiblemente [...] Churata, en la
posición de brujo, creó un libro brujo: El pez de oro” ] (Mamani, 2012, p. 67).

144
que comunica, comunica o que está separado” (Viveiros de Castro, 1986,
p. 602). Dessa forma, os cantos configuram o rito central da vida social, onde
os mortos e os deuses podem falar.
O modo de existência dos mortos é sua presença no canto (Viveiros
de Castro, 1986, p. 510). Dessa maneira poderíamos pensar a produção do
canto a partir da morte que aparece na obra de Gamaliel Churata. Mais do
que uma presença fantasmal ou uma lembrança que se canta como uma
elegia, a morte supõe a vida no canto. Uma forma musical da existência que
promove, então, uma atividade efetiva, que se realiza em canções e relatos.
Helena Usandizaga assinala a relação da música com o Mundo de Baixo, num
intercâmbio ativo e material: “a conexão com a expressão e a criação se realiza
a partir da ascendência e a descendência, e através da música: os antepassados
transmitem a sua língua e o Peixe de ouro é o depositário e a fonte desse saber
aquático, antigo e obscuro; desse canto que o Khori-Challwa faz renascer com
sua vinda”8 (Usandizaga, 2012, p. 75).
A função política da arte estaria vinculada aqui à ação prática dos
mortos: “No coração dos chullpares [sepulcros ancestrais] está o império do
sangue e percebe-se sua imortalidade. Ferve com torrentes ardentes, fala com a
língua de todos nossos mortos, agita-se com as suas vidas, sofre com os sonhos,
reclama seus direitos”9 (Churata, 1957, p. 97). Disso, Churata deduz uma
enunciação no passado: “Se não se está enquanto se esteve, o único espacial
é o tempo passado do verbo. Ser é pretérito”10 (Churata, 1957, p. 92). Nesse
sentido político, questionador da progressão irrecuperável do tempo, típica
da modernidade11, pode-se articular a particular posição verbal de Churata
com a concepção da história de Walter Benjamin, que postula a necessidade
de realizar “um salto de tigre em direção ao passado” (Benjamin, 1996, p. 230),
de conectar o presente com o pretérito para “fazer explodir do continuum da

8
“la conexión con la expresión y la creación se hace desde la ascendencia y la descendencia, y
a través de la música: los antepasados transmiten su lengua y el Pez de oro es el depositario
y la fuente de este saber acuático, antiguo y oscuro; de ese canto que el Khori-Challwa hace
renacer con su advenimiento”.
9
“En el corazón de los chullpares está el imperio de la sangre y se percibe su inmortalidad.
Bulle con torrentes ardorosos, habla con la lengua de todos nuestros muertos, se agita con sus
vidas, duele con los sueños, reclama sus derechos”.
10
“Si no se está sino en cuanto se estuvo, lo único espacial es el tiempo pasado del verbo. Ser es
pretérito”.
11
Mauricio Zabalgoitia também relaciona o projeto de escrita de Churata com o de Benjamin
a partir da técnica da montagem e assinala a supressão da ideia de progresso em ambos os
autores.

145
história” (Benjamin, 1996, p. 230) e reclamar “um presente que não é transição,
mas pára no tempo e se imobiliza” (Benjamin, 1996, p. 230).
Churata elabora a atividade efetiva dos mortos em sua concepção do
Ahayu-watan, definido em seu glossário como “A alma estava presa”12 (Churata,
1957, p. 539), e do Chullpa-tullu, que é “o esqueleto, mas o esqueleto vivo”13
(Churata, 1957, p. 540). Nele, o fluxo da vida permanece: “Talvez a alma não seja
o sangue, mas está nele; nos ossos, nos nervos, em suma, está no movimento e é
o movimento [...] O chullpa-tullu possui existência; o movimento que originou
no corpo humano não desapareceu, se é o movimento em si. Veremos que as
dez vezes centenária ossatura se anima, voa, canta, chora, ama, padece: vive”14
(Churata, 1957, p. 91). Alma e vida são definidas na obra de Churata como
fluxo dinâmico, como permanência na fluidez e na corrente da história, como
voz que perdura e pode ser recuperada no canto. Na conferência realizada
no cinema Puno, em 30 de janeiro de 1965, para explicar a sua obra, a figura
do Chullpa-tullu adquire um sentido coletivo: “E se os homens não morrem,
os povos que são formação de homens, também não podem morrer, [...] o
Tawantinsuyu, como declarou o arqueólogo francês Meutroux, é um morto-
vivo nos cumes andinos, e renasce, pois vai ser ali onde nasceu: o Titikaka”15
(Churata, 1971, p. 34).
Dessa maneira, a morte aparece como acontecimento produtivo, ponto
estratégico numa cadeia de transformações. Assim, a morte do filho produz o
canto, e a morte do Peixe de ouro, que é também o Inka, produz seu regresso
como instituição política no capítulo “Morrer de América”. O episódio de
canibalismo do Puma de ouro, que devora a Sereia e o filho de ambos, o Peixe
de ouro, entra nesse processo de renovação. Eduardo Viveiros de Castro explica
essa lógica em termos de uma dupla afirmação: “a diferença vivos/mortos não
pode, para os Tupi-Guarani, ser concebida como oposição simples, formal ou
real. [...] Há uma positividade da morte, paradoxal porque não implica uma
visão da vida como negatividade. [...] os Tupi-Guarani arriscam uma dupla

“El alma fue atrapada”.


12

“el esqueleto, mas el esqueleto vivo”.


13

“Acaso el alma no sea la sangre, mas está en ella; en sus huesos, en su nervadura, en suma, está
14

en el movimiento y es el movimiento [...]. El chullpa-tullu posee existencia; el movimiento


que originó en el cuerpo humano no ha desaparecido, si es el movimiento en sí. Veremos que
la diez veces centenaria osatura se anima, vuela, canta, llora, ama, padece: vive”.
“Y si los hombres no mueren, los pueblos que son formación de hombres, tampoco pueden
15

morir, [...] el Tawantinsuyu, como sostuvo el arqueólogo francés Meutroux, es un muerto-


vivo en las cumbres andinas, y si renace, pues será allí donde nació: el Titikaka”.

146
afirmação: isso e aquilo, o vivo e o morto, o eu e o Outro” (Viveiros de Castro,
1986, p. 28).
Em Churata essa lógica inclusiva define-se como estética: a germinação
que postula como o fundamento de toda sua obra inclui a vida e a morte,
pois a morte é germe, semente em túmulo: “Os mortos voltam para o sangue
dos vivos, tal como a semente que procura o caminho do sulco, como ensina
a Cátedra do Khori-Puma; pois os mortos são sementes”16 (Churata, 1957,
p. 105). O canto, a arte, são produzidos como fluxo de vida que permanece: “Se
olharmos para a arte vital do homem a enxergaremos transfundida de núcleos
germinais. A beleza não é abstração em si; é latido, orgasmo. Faz mãe daquilo
que toca: engendra”17 (Churata, 1957, p. 40). A germinação como estética
transforma a figura feminina num modelo. Esta definição, que poderia parecer
redutiva às funções biológicas, sustenta-se na atribuição de uma posição, mais
que de uma essência. Também para os arawetés, descritos por Viveiros de
Castro, a vida é uma condição feminina:

O “homem-deus” Araweté é um homicida, não um xamã. É neste


sentido que, duplamente não-celestes, e duplamente desvinculadas da
morte — essa província masculina —, as mulheres encarnam a vida,
e a condição humana, e serão por isso os mortos (as mortas) ideais,
comida dos deuses. O xamã — o valor funcional do atributo “xamã” —,
estando entre a vida e a morte, mas do lado dos vivos, ocupa assim uma
posição intermediária entre o mundo mortal, individual e póstumo do
guerreiro e o mundo vital, presente e coletivo da feminilidade. (Viveiros
de Castro, 1986, p. 604)

Churata fica do lado da vida, incluindo a morte nela. A oposição vida


e morte apaga-se na continuidade vital. A arte não é, portanto, uma arte
agônica, arte do fim, mas todo o contrário: “E eis que o homem, e sua arte,
não tem outro caminho senão a maturidade, nem outra forma de ser senão o
parto”18 (Churata, 1957, p. 41). Churata define sua própria atividade literária
nessa vontade germinal, que seria o “Vanguardismo do Titikaka (o fato mais

“Los muertos vuelven a la sangre de los vivos, tal la semilla que busca el camino del surco,
16

como enseña la Cátedra del Khori-Puma; pues los muertos son semillas”.
“Si vemos al arte vital del hombre le sabremos transfundido de núcleos germinales. La belleza
17

no es abstracción en él; es latido, orgasmo. Hace madre de cuanto toca: engendra” (Churata,
1957, p. 40).
“Y es que el hombre, y su arte, no tienen otro camino que la madurez ni otra forma que ser
18

que el parto”.

147
curioso da Literatura do Peru nos últimos tempos, segundo L. A. Sánchez),
que de ‘vanguardista’, no sentido europeu, tinha poucas, ou nenhuma,
condescendências. Eram literatura e movimento de entranha hominal, de
adesão humana”19 (Churata, 1957, p. 19). Aqui Churata vincula a necessária
vitalidade da arte com um projeto coletivo. Nesse sentido é categórico: “Não
há literatura sem homem”20 (Churata, 1957, p. 18).
Assim, para retornar às questões que colocavam o surgimento do canto
do massacre histórico e social, da morte concreta e coletiva, pode-se afirmar a
permanência vital e histórica dos povos, já que a morte não os anula, mas supõe
uma transformação, de movimento a movimento produtor, de plenitude vital
a semente. Na sua condição seminal a morte fermenta o canto e as vozes dos
mortos se escutam nele. Dessa maneira, o canto, a arte, nutrem-se da condição
humana e adquirem transcendência histórica. A literatura responde ao ser
humano e, portanto, a uma agência coletiva. A política discursiva de El pez de
oro revela aqui sua razão de ser. Mais do que uma aglomeração de discursos
sem um agente claro, ou uma superposição aparatosa de falas diversas, as
vozes de El pez de oro representam a coletividade que constitui o ato literário e,
portanto, uma receptividade plural (radiofônica) e em construção. Isso explica
o final aberto da obra: “Aqui está a áurea mensagem de EL PEZ DE ORO:
— América, adentro, mais adentro; até a célula!”21 (Churata, 1957, p. 533).
O outro elemento que se destaca desta formulação da arte é que, apesar
de uma muito viva discussão psicanalítica dentro da obra, a presença da morte
não configura o canto como um trabalho do luto, cuja condição é a aceitação
da perda, mas completamente o contrário, trata-se de uma morte afirmada
e incorporada ao ato criativo. Acredito que essa caraterística tenha muita
força para a recepção atual de Churata, pois não concebe uma arte do fim da
história: “Aqui ninguém morreu. Aplique este princípio à história, ao que se
chama de história [...] Não há senão uma história, em caverna, em vivência
circular, ainda que haja muitas pseudo-histórias. Não existe sequer o ‘eterno
retorno’, pois o que está retornando eternamente não tem meios de retornar,

“Vanguardismo del Titikaka (el hecho más curioso de la Literatura del Perú en los últimos
19

tiempos, según L. A. Sánchez), que de ‘vanguardista’, en el sentido europeo, tenía pocas, o


ninguna, condescendencias. Eran literatura y movimiento de entraña hominal, de adhesión
humana”.
“No hay literatura sin hombre”.
20

“He aquí el áureo mensaje de EL PEZ DE ORO: —¡América, adentro, más adentro; hasta la
21

célula!”.

148
porque não se foi”22 (Churata, 1957, p. 115). Se o trabalho do luto prefigura
um desprendimento do morto como a condição para a vida, o seu contrário,
a melancolia, afirmaria um apego doente ao passado enclausurado. Porém,
essa também não é a opção de Churata. Cada uma dessas reações à morte é
nutrida pela desilusão, a perda das certezas que anula o tempo compartilhado.
Churata, ao modo araweté, ao afirmar a uma e a outra, a perda e a persistência
num tempo não progressivo, inaugura outra opção. Marcos Natali assinala essa
fissura na crítica política da nostalgia, realizada pela modernidade e entendida
tanto por Freud como por Marx como regressiva: “A crença de que os mortos
não são acessíveis aos vivos é necessária para a existência da nostalgia como
categoria diagnóstica e como crítica política; é ela que permite que se exija
o desapego em nome da realidade. [...] se não houver desencantamento e
ateísmo, então outro território conceptual emerge” (Natali, 2006, p. 62-63).
A complexa operação filosófica que Churata realiza, numa multiplicidade
de discursos que apelam a Platão, a Freud, a Cristo, para afirmar uma estética
germinativa em consonância com a figura do layka ou xamã, estabelece uma
batalha contra a desilusão moderna. O Wawaku, figura mítica que aparece
no capítulo “Morrer de América”, não é só o monstro do medo, mas o da
impotência, e contra essa névoa da perda da esperança, tão característica da
segunda metade do século XX em que a obra foi publicada, Churata libera
suas vozes. Se a falha do indigenismo foi, segundo Antonio Cornejo Polar,
o “ato de apropriação” realizado pelo seu discurso ao “se autoassumir como
representante e porta-voz das massas indígenas”23 (Cornejo Polar, 2003, p. 189),
a proliferação de discursos em El pez de oro e seu vínculo com o pensamento
andino viabilizaria um caminho possível para a alteridade, o caminho do layka.
A formulação de Eduardo Viveiros de Castro aponta para a trans-
cendência da multiplicação de enunciadores na voz do xamã: “Tudo se passa
como se a palavra Araweté fosse sempre a palavra de um outro” (Viveiros de
Castro, 1986, p. 65), o que configura uma “posição face ao discurso, onde citar
é um modo oblíquo de afirmar, mas distanciando a palavra de qualquer centro,
fazendo-a emanar sempre de um outro, numa recursividade infinita” (Viveiros
de Castro, 1986, p. 65). Esta exterioridade da palavra define o sujeito que fala
como movimento:

“Aquí nadie ha muerto. Aplique usted este principio a la historia, a eso que se llama
22

historia [...] No hay sino una historia, en caverna, en vivencia circular, aunque hay muchas
pseudohistorias. No hay siquiera el ‘eterno retorno’; porque lo que está retornando
eternamente, no tiene medios de retornar, puesto que no se ha ido”.
“autoasumirse como representante y portavoz de las masas indígenas”.
23

149
não se trata do jogo especular de reflexos e inversões entre Eu e Outro,
com sua pulsão implícita de simetria geométrica e estabilidade de forma,
mas de um processo de deformação topológica contínua, onde Eu e
Outro, Ego e Inimigo, o vivo e o morto, o homem e o deus, o devorado e
o devorador, estão entrelaçados — aquém ou além da Representação, da
substituição metafórica e da oposição complementar. Movemo-nos em
um universo onde o Devir é anterior ao Ser, e a ele insubmisso. (Viveiros
de Castro, 1986, p. 27-28)

Em Churata, a definição de um sujeito da enunciação é, de um


modo similar, móvel. A palavra é dada a vários interlocutores que ensaiam
posições opostas no discurso. No capítulo “Paralipómenos Orko-pata” um
interlocutor expõe sua filosofia vital a um amigo, depois de 37 anos de espera;
a identificação deste enunciador com o autor é sugestiva, mas não certa; no
capítulo “Pacha Mama”, além da voz irônica do narrador, são as próprias
palavras de Colombo no seu diário que aparecem citadas, junto com a voz de
seus companheiros, da Mãe Terra, das constelações... As vozes se multiplicam
em modo conversacional, que inclui sempre um interlocutor, esse tu presente
constantemente na obra. Dessa forma, o capítulo “Espanholadas” começa
com uma pergunta significativa: “Quem és hoje, mestre?”24 (Churata, 1957,
p. 167). Essa identidade conversacional e em movimento está definida
pelo próprio Churata na obra com a equação: “Ego = tu-multo” (Churata,
1957, p. 349). Aqui, a identidade se define como alteridade não genérica,
mas próxima e coletiva. Marco Thomas Bosshard vincula essa noção de
identidade à relação de reciprocidade que organiza a vida andina e destaca a
correspondência entre o individual e o plural: “Esse ato de sentir o outro ou
de sentir-se no outro é constitutivo para a concepção do eu de Churata como
parte integral de um coletivo. Deve-se entender o ego como um tu múltiplo
[...] que coincide com o Universo [...] o que permite a Churata universalizar
sua experiência individual”25 (Bosshard, 2014, p. 126). Indo além do grito
modernista de Rimbaud “Eu é outro”, Churata afirma que os outros, isto é, os
vários tu, são o eu, o que implica uma identidade plural, e ao mesmo tempo
discursiva e posicional, não essencialista.

“¿Quién eres hoy, maestro?”.


24

“Este acto de sentir al otro o de sentirse en el otro es constitutivo para la concepción del yo
25

de Churata como parte integral de un colectivo. El ego ha de entenderse como un tú múltiple


[...] que coincide con el Universo [...], lo que permite a Churata universalizar su experiencia
individual”.

150
Isso faz, por um lado, que a posição de sujeito enunciador possa estar
ocupada por uma variedade de seres. Quem pode fazer uso da palavra em El pez
de oro? Numa concepção próxima ao multinaturalismo definido por Viveiros
de Castro, o discurso e, portanto, a condição de sujeito (isto é, a capacidade de
intencionalidade consciente e de agência) (Viveiros de Castro, 2002, p. 372), é
oferecido a distintas naturezas: mortos, vivos, animais, deuses, fantasmas do
passado como os conquistadores, pura pestilência como o Wawaku, filósofos
e psicanalistas etc.: impera a dialogia e a multiplicidade discursiva. Por outro
lado, os pronomes também levam para a tomada de posição. Churata assinala
ao longo da obra, mas com contundência no final: “Se é índio ou não se é”26
(Churata, 1957, p. 532). O índio coloca-se aqui como uma perspectiva política,
uma possibilidade de ser e programa de ação. A definição de perspectivismo
feita por Viveiros de Castro resulta esclarecedora:

O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo.


O relativismo cultural, um multiculturalismo, supõe uma diversidade
de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza
externa, uma e total, indiferente à representação; os ameríndios opõem
o oposto: uma unidade representativa ou fenomenológica puramente
pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real.
Uma só ‘cultura’, múltiplas naturezas’; epistemologia constante,
ontologia variável — o perspectivismo é um multinaturalismo, pois
uma perspectiva não é uma representação. (Viveiros de Castro, 2002,
p. 379)

Se uma perspectiva não é uma representação talvez o que está colocando


Churata nessa definição não essencialista do índio e muito mais radical do que
o indigenismo tradicionalmente propôs, seja se colocar num lugar, assumir
uma virtualidade, atuar politicamente desde essa posição. Nesse sentido,
Elizabeth Monasterios Pérez destaca a radicalidade da proposta vanguardista
“plebeia” de Churata: “Percebendo as culturas andinas como realidades
historicamente despedaçadas por efeitos da conquista, colonização e as formas
de neocolonização do século XX, os integrantes dessa vanguarda insurrecta
conceberam a legitimação da razão andina, nos seus mitos e rituais, como
um ato de emancipação não só de Europa, mas também das elites americanas
republicanas”27 (Monasterios Pérez, 2008, p. 558).

“Se es indio o no se es”.


26

“Understanding Andean cultures as realities historically torn apart by the effects of conquest,
27

colonization, and twentieth-century forms of neocolonization, the members of this insurgent

151
A afirmação que dá título este artigo alude à possibilidade de que
o subalterno adote a posição de sujeito superando aquelas narrativas que
pretendem sua representação. A resposta de Churata é esta virtualidade de
enunciados que se abre “radialmente” a um interlocutor, isto é, a uma escuta,
como coloca a própria Gayatri Spivak ao definir seu conceito de tradução:
“Mas a tradução fundadora entre as pessoas é um ouvir atentamente, com
afeto e paciência, a partir da normalidade do outro, o suficiente para perceber
que o outro, silenciosamente, já fez esse esforço” (Spivak, 2005, p. 58).

Referências
BENJAMIN, Walter. Mágia e técnica. Arte e política. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet.
São Paulo: Brasiliense, 1996.
BOSSSHARD, Marco Thomas. Churata y la vanguardia andina. Lima: CELAP;
Latinoamericana Editores, 2014.
CHURATA, Gamaliel. El pez de oro. La paz: Canata, 1957.
______. Antología y valoración. Lima: Instituto puneño de cultura, 1971.
CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire. Ensayo sobre la heterogeneidad socio-
cultural en las literaturas andinas. Lima: CELAP; Latinoamericana Editores, 2003.
FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. vol. XIV. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
MAMANI MACEDO, Mauro. Quechumara. Proyecto estético-ideológico de Gamaliel
Churata. Lima: Fondo Editorial Universidad de Ciencias y Humanidades, 2012.
MONASTERIOS PÈREZ, Elizabeth. “Uncertain Modernities: Amerindian
Epistemologies and the Reorienting of Culture”. In: Sara Castro-Klaren (Org.). A
companion to Latin American Literature and Culture, p. 553-570. Malden; Oxford:
Blackwell Publishing, 2008.
NATALI, Marcos Piason. A política da Nostalgia. Um estudo das formas do passado.
São Paulo: Nankin, 2006.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. “Tradução como cultura”. In: Ilha do desterro 48,
p. 41-64, 2005.
USANDIZAGA, Helena. “Introducción”. In: Gamaliel CHURATA. El pez de oro.
Madrid: Cátedra, 2012.

avant-garde conceived the legitimization of Andean reason, including its myths and rituals,
as an act of emancipation from Europe as well as from the Latin American republican elites”.

152
VILCHIS, Arturo. Arturo Pablo Peralta Miranda. Travesía de un itinerante. México:
Editorial América Nuestra — Rumi Maki, 2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed, 1986.
______ . A insconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
ZABALGOITIA HERRERA, Mauricio. Fantasmas de la nueva palabra.
Representación y límite en las literaturas de América Latina. Barcelona: Icaria, 2013.

153
Santiago de dois peregrinos:
Federico García Lorca e Sara Gómez em
busca do oriente cubano

Lourdes Martínez-Echazábal

Peregrino (do lat. Peregrīnus)


De acordo com o dicionário Oxford,1 peregrino, numa primeira acepção,
refere-se à pessoa que “vai visitar um lugar sagrado, geralmente caminhando,
por motivos religiosos.” Este seria o caso dos peregrinos que fazem o Caminho
de Santiago para visitar o túmulo do Apóstolo Santiago, o Hajé ou peregrinação
a Meca, ou outros locais sagrados ou santuários. Diz-se também da pessoa
(ou personagem) que percorre um caminho de busca espiritual ou que “anda
ou viaja por terras estrangeiras”. Também é usado para referir-se a aves que
migram, entre elas, as andorinhas.
Os peregrinos deste trabalho, porém, não viajam a Santiago de
Compostela, mas a outra Santiago, a de Cuba, terra estrangeira para ambos, e
cujo percurso, como se verá, os leva a caminhos radicalmente diferentes entre
si. No entanto, apesar das diferenças, ambos são guiados por uma devoção
poética, e é a partir daí que ambos empreendem a viagem ao epicentro da
nacionalidade e da espiritualidade cubanas. As memórias dessa viagem foram
inscritas, respectivamente, em um poema2 e em um documentário poético.3

<https://es.oxforddictionaries.com/definicion/peregrino>.
1

Ver Anexo 1.
2

Ver link na bibliografia.


3
Nas páginas que se seguem, embarco em minha própria viagem junto a
Federico García Lorca (1898-1936)4 e Sara Gómez (1942-1974).5

“Eu sempre disse que iria a Santiago...”


Federico García Lorca

Em 7 de março de 1930,6 Federico García Lorca chega a Havana depois


de uma estada de quase nove meses em Nova Iorque.7 Desde Nova Iorque o
poeta já confessa sentir um grande fascínio pela cultura negra e pelos negros.8
Detalhe importante, este, pois sugere a presença de certa negrofilia ocidental
típica das vanguardas artísticas durante o período entre guerras. Referindo-se
à etapa nova-iorquina de Lorca e sua grande admiração por esse universo, Ian
Gibson, um dos seus biógrafos mais importantes, observa que os negros, cujo
“ímpeto primitivo” e “fundo espiritual incorruptível” o poeta não demorou a
reconhecer e a admirar profundamente, além de sua espontaneidade, energia,
música e sexualidade despreocupada, vão prolongar o simbolismo dos ciganos
de seu romanceiro, mas num contexto muito mais amplo” (Gibson, 2009,
p. 204-205). Presumivelmente, Gibson refere-se ao contexto americano e, mais
especificamente, ao contexto nova-iorquino e a seguir pelo cubano.
Portador de sentimentos contraditórios, por um lado, recém-saído
de seu admirado Harlem, onde “o lúdico tem um sotaque de inocência que
o torna perturbador e religioso” (García Lorca, 1996, III, p. 166-167), e,
por outro, de uma desolada, industrial e desumanizada Nova Iorque, uma

4
<https://www.cervantes.es/bibliotecas_documentacion_espanol/biografias/ tokio_federico_
garcia_lorca.htm>.
5
<https://www.ecured.cu/Sara_Gómez>.
6
1930 foi um ano frutífero para a cultura cubana: em fevereiro, Langston Hughes nos visita,
e durante sua estada em Cuba ele conhece Nicolás Guillén. Coincidentemente, no mesmo
dia em que Langston Hughes volta para Nova Iorque, Federico García Lorca chega a Havana
depois de uma estada em Nova York de quase nove meses, e onde, de acordo com Romare
Bearden, Hughes e Lorca eram amigos (Bearden, 1978, p. 656-677). Em abril de 1930,
inspirado na amizade e conselhos do poeta estadunidense, Nicolás Guillén publica sua
Motivos de Son.
7
F. G. Lorca chega a Nova Iorque em 25 de junho de 1929, e foge dela, indo para Havana (via
Miami) em 4 de março de 1930. Aqui me refiro a sua partida de Nova Iorque como fuga,
seguindo a terminologia do autor na nona parte do livro de poemas Poeta en Nova York:
“Huída de Nueva York”.
8
É muito provável que esse fascínio venha da atração de Lorca pela cultura cigana, tão típica
e ao mesmo tempo tão marginalizada da cultura andaluz e espanhola, assim como a cultura
negra americana tem sido em seus respectivos países.

156
megalópole moderna e sem coração, onde “nenhuma pessoa sequer tem
tempo de olhar para uma nuvem ou dialogar com uma daquelas delicadas
brisas que teimosamente envia o mar...” (García Lorca, 1996, III, p. 165), onde
“o amanhecer chega e ninguém o recebe em sua boca / porque ali não há
amanhã nem esperança possível” (García Lorca, 2008, p. 72) e a quebra da
bolsa lhe dá “cadáveres de suicidas na calçada,” e “gemidos de trabalhadores
desempregados” (García Lorca, 1996, p. 525; 2008, p. 42), desembarca Lorca
no porto de Havana, Cuba, e se entrega a uma cidade voltada para o mar que
lhe abre portas, corpos e corações.
Ao desembarcar em Havana, a cidade imaginária e invisível de sua
infância começa a tomar forma, e o poeta passa a se sentir “em casa” (González
Esteva, 2000, p. 16). E não só porque em Havana Lorca encontra “o amarelo
de Cádiz com uma nota a mais, o rosa de Sevilha quase um carmim, e o verde
de Granada com uma ligeira fosforescência de peixe” (García Lorca apud em
González Esteva, 2000, p. 15), mas porque, como nos diz Gibson, Lorca “já
arrastava muita Cuba dentro [dele] antes de desembarcar” (Gibson, 2009,
p. 231). Quando criança, ele acrescenta, o poeta “ouvira com grande atenção
as habaneras (ou havaneiras) que cantavam em Fuente Vaqueros [...] [vira]
os exóticos rótulos interiores das caixas de habanas [sic] que seu pai recebia
diretamente da ilha” (Gibson, 2009, p. 231). Quer dizer que como cidadão da
metrópole, Cuba já tinha uma vida própria em seus sonhos e fantasias. E a todos
esses sonhos e fantasias, a toda essa rica imaginação poética, somam-se agora
os negros e a cultura negra americana. Não há dúvida de que Lorca encontrou
nos negros e, em particular nos negros cubanos, um paralelo com os ciganos.
Nos negros cubanos Lorca encontrou, em suas próprias palavras, “negrinhos
sem dramas que reviram os olhos e dizem ‘nós somos latinos’” e em seus ritmos,
confessa o poeta, “as típicas [sic] do grande povo andaluz” (García Lorca, 1996,
III, 173). Em contraste com sua experiência nova-iorquina, experiência em
que depressão, alegria e ansiedade se misturam, em Cuba o poeta é feliz. Tão
agradável foi a sua estada na ilha que ele escreveu aos seus pais: “Esta ilha é
um paraíso. Se eu me perder, procurem por mim em [...] Cuba” (García Lorca,
1997, p. 686). Deve-se notar aqui que além das múltiplas acepções do verbo
pronominal — perder-se — o verbo perder-se também é usado no vernáculo do
castelhano para significar a imersão no mundo dos prazeres da carne ou outros
prazeres, pecados ou vícios, muitas vezes prazerosos, que alteram a conduta
racional e [hétero] normativa do ser humano. Portanto, seria praticamente
impossível ler esta frase de Lorca levando em conta apenas a denotação do
verbo perder-se.

157
Curiosamente, durante sua estada de três meses nessa outra ilha-
paraíso, Lorca escreve apenas um poema9 — poema que, não por único, deixa
de ser importante. O poema é Son de negros de Cuba.10 O poema começa com
a promessa de uma viagem: “Quando chegue a lua cheia irei a Santiago de
Cuba, irei a Santiago...”. E assim ele fez; no último dia de maio de 1930 o poeta
granadino cumpre sua promessa e “em um carro de água negra” embarca em
sua viagem-peregrinação a Santiago de Cuba, capital histórica da ilha, nódulo
fundacional da mitologia nacional e da espiritualidade insular.11 No entanto,
como afirma Manuel Iturria Savón, “a visita de Lorca a Santiago, à qual dedicara
seu famoso poema foi uma incógnita para os cubanos, incluindo o povo
santiagueiro” (Iturria Savón, 2006, p. 24). Por isso, é necessário perguntar: por
que se interessou o poeta por Santiago [de Cuba]?
Sabe-se que a viagem de Lorca a Santiago de Cuba responde a um convite
do escritor e crítico dominicano Max Henríquez Ureña, quem, na época,
residia em Santiago de Cuba, e era professor de literatura na Escola Normal de
Professores de Santiago, e presidente da filial da Instituição Hispano-Cubana
de Cultura naquela cidade. Lorca aceita o convite, e na Escola Normal de
Santiago profere a conferência intitulada A mecânica da nova poesia. Mas tem
mais. Lembremo-nos de que Max Henríquez Ureña morou em Nova Iorque
durante três anos e, como Lorca, chegou a Cuba vindo de lá. Por isso, é possível
conjecturar sobre os laços afetivos criados por experiências e sentimentos
comuns, especialmente pela condição de peregrinos compartilhada por ambos,
e assinalada pelo périplo nova-iorquino-cubano, assim como o amor que
compartilhavam pela poesia. Visto desta forma, essas conjecturas ajudariam a
esclarecer, ao menos parcialmente, a incógnita que para muitos representou a
viagem de Lorca a Santiago de Cuba.
Seu poema Son de negros de Cuba, mais conhecido como Iré a Santiago,
pelo verso ou refrão que, como no son,12 repete-se muitas vezes no poema,
é uma ode à ilha escrita no estilo negrista da época, um poema que, como
corretamente apontou Cabrera Infante, nos dá “uma visão um pouco alienada,
distante, das possibilidades poéticas do negro e seus dialetos. Exótica seria a

9
Ver o texto do poema completo incluído no final deste trabalho.
10
Embora ele apenas escreva um poema, se dedica a escrever uma peça teatral, El público.
Segundo Gibson, “é quase certo que a maior parte do drama que terminou naquele verão em
Granada foi composto em Cuba (Gibson, 2009, p. 235)”.
11
Assim como Santiago de Compostela é para a mitologia espanhola e peninsular.
12
O son é um estilo musical que pode ser considerado genuinamente cubano. Seu nascimento
ocorreu no final do século XVIII, na zona montanhosa de Serra Maestra, no oriente de Cuba.

158
palavra ...” (Cabrera Infante, 2006, p. 96-97. Meu sublinhado.). Através do uso
da metonímia, Lorca cria o Son de negros de Cuba, ode à ilha (de Cuba) na
qual Santiago (de Cuba), sua primeira capital, se torna Cuba, e Cuba torna-
se Santiago (“Oh Cuba! Oh curva de suspiro e barro! / Irei para Santiago”).
Essa relação metonímica é possível, dadas certas imagens que nos remetem à
condição colonial e pós-colonial da ilha e que se expressa, entre outras, através
da evocação da memória dos rótulos internos das caixas de charutos do pai,
isto é, das logomarcas contidas neles, ou mesmo dos anéis que envolvem os
charutos. De outra forma, a que se referem os seguintes versos do poema: “a
cabeça loira de Fonseca” ou “a rosa de Romeu e Julieta”?13 A invocação deste
produto colonial, juntamente com o uso de imagens que evocam o ritmo e
musicalidade em um ambiente e estado natural, à margem da modernidade
industrial, reafirmam a visão fetichista e exótica, como diria Cabrera Infante,
que para Lorca representavam [Santiago de] Cuba, os negros e sua cultura.
Em Son de negros de Cuba, lemos o menino-poeta que, com sua imagi-
nação na bagagem, empreende uma viagem de ultramar e traduz em poesia o
imaginário forjado na metrópole de sua infância, imaginário reforçado pelo
deslumbramento vanguardista que, em sua vertente mais requintada, foge da
civilização abraçando a vida ingênua e a natureza exótica. Pela mesma razão,
Son de negros de Cuba só pode nos dar uma representação parcial da (Santiago
de) Cuba e da cultura negra. Visto desta maneira, talvez se possam explicar a
memória antecipada do andaluz — “Eu sempre disse que iria para Santiago” —
e a viagem a Santiago em 1930, como a realização desse sonho ou premonição.
A este imaginário — e sabemos que o de Lorca estava desbordante — o poeta
incorpora o negro e sua música.
Com Son de negros de Cuba, F. G. Lorca foge de uma ilha tenebrosa
(Manhattan) para outra deslumbrante (Cuba), “cheia de ruídos, sons e ares
doces, que deleitam e nunca ferem”.14 Fecha assim, sob o som do son, o livro
Poeta en Nova York, escrito entre 1929 e 1930, e publicado pela primeira vez

Em relação ao primeiro verso, ver: <http://purotabaco.com/prueba/2017/08/13/fonseca-


13

marcas/?age-verified=bcab5d6a19>. Em relação ao segundo, refere-se à famosa marca de


charutos, Romeu e Julieta, que por sua vez, capta em sua logomarca, a cena II do ato II,
do drama shakespeariano. Nesta cena, Julieta reflete sobre o pertencimento e a identidade
atribuída pelo nome, e se lamenta por seus respectivos sobrenomes, ou seja, por pertencerem
respectivamente às famílias Montesco (Romeu) e Capuleto (Julieta). E é nessa cena que diz:
“Se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume!” Eu acho que o verso
de Lorca faz referência direta à marca cubana de charutos e esta, por sua vez, ao drama
shakespeariano.
As palavras de Caliban no terceiro ato, cena dois, de A tempestade por William Shakespeare.
14

159
em 1940, quatro anos após sua morte. Son de negros de Cuba”, de acordo com
Cedeño Pineda e Castañeda, “por ser fabuloso, teria ficado lá, se seu gênio não
tivesse inflamado a música.” Mas como não iria inflamar a música, e outras
artes, aqueles versos carregados pelo poeta do cante jondo que se encanta — e
se perde — no son cubano!15
É um fato que o poema de Federico García Lorca, Iré a Santiago, tem
servido como inspiração para compositores e intérpretes, de Roberto Valera
(1969) a Ana Belén (1998) e Compay Segundo (1998). No entanto, que eu
saiba, ainda não se estudou a importância do poema do granadino para a
cineasta havaneira Sara Gómez cinco anos antes da estreia da famosa primeira
adaptação musical de Iré a Santiago, de Roberto Valera, em 1969.16

Sara Gómez e Iré a Santiago


Sara Gómez (1943-1974), essa outra peregrina a que se refere o título
deste ensaio, inicia sua carreira como assistente de direção de Tomás Gutiérrez
Alea no Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC) em
1961. No ano seguinte já tem quatro notas em seu crédito — Plaza Vieja,
El solar, Historia de la piratería, Solar habanero — para a série didática de
documentários, Enciclopedia popular. Mas não é sobre estes, nem sobre o resto
do seu trabalho17 que me ocuparei nestas páginas, mas sobre aquele com o qual
Gómez prestou homenagem a F. G. Lorca e a Santiago (de Cuba), e através
do qual a jovem cineasta empreende sua própria peregrinação. Me refiro ao
documentário de 1964, Iré a Santiago.
Até agora, material crítico sobre Iré a Santiago é praticamente inexistente;
na verdade, não só este, mas toda a obra documental de Sara Gómez tem sido
pouco estudada.18 A falta de informação sobre ela nos meios acadêmicos
(a maioria dos trabalhos sobre Gómez se concentra no longa-metragem De
cierta manera), torna-se uma faca de dois gumes: de um lado, limita a produção
crítica e de conhecimento a este respeito, enquanto que, por outro lado,
possibilita, me possibilita, um espaço mais livre e criativo para reflexão. Este

Ver García Lorca (1997, p. 686), e o artigo de Varona (1998) citado na bibliografia. Disponível
15

em: <http://www.letralia.com/47/en01-047.htm>.
Composição para música coral.
16

Em sua curta mas prolífica carreira, Sara Gómez dirigiu 18 documentários e um longa-
17

metragem. Ver o Anexo 2 no final deste trabalho.


Ver Carricante (2013), Del Valle (2013), Diéguez (2013) e Martiatu (2011).
18

160
trabalho é baseado na ideia de que, assim como o poeta andaluz, Sara Gómez
empreendeu uma jornada-peregrinação à capital oriental da ilha, guiada por
um duende lúdico e travesso que, embora semelhante ao do granadino, foi
substancialmente diferente.
O trabalho documental de Sara Gómez poderia ser dividido entre
documentários com características pedagógicas (principalmente aqueles que
foram direcionados à Enciclopedia Popular do ICAIC durante o ano de 1962);
documentários histórico-folclóricos (por exemplo, Y tenemos sabor, 1967);
aqueles de natureza social crítica, isto é, obras que abordaram temas e questões
contemporâneas na época de sua criação há mais de meio século (como é o
caso de En la otra isla, 1968 e Mi aporte, 1972, entre outros).19 E, finalmente,
(Iré a Santiago, 1964 e Crónicas de mi familia 1967), em que a cineasta coloca
em xeque — e ao mesmo tempo memorializa — a família: em primeiro lugar,
a família cubana e seus mitos de origem e identidade, e em Crónicas..., sua
própria família. Não obstante, atrevo-me a assegurar que não existe em toda
sua obra outra que desdobre a uma sensibilidade poética e o espírito lúdico —
senão lúbrico — que transborda Iré a Santiago (1964). De fato, segundo Gerardo
Fulleda León, Iré a Santiago, é um dos mais impressionantes documentários
filmados em Cuba, naqueles anos [1964], “por sua qualidade, rigor e riqueza
criativa” (Fulleda León, 1999, p. 43), enquanto Michael Chanan o considera
“talvez o documentário mais surpreendente de todos os tempos produzidos
em Cuba no estilo de ‘cinema grátis’ inglês [“talvez o mais impressionante
documentário ‘cinema livre’ jamais produzido em Cuba” (Chanan, 2004,
p. 341)].
Toda vez que vejo Iré a Santiago, sorrio e repito: Sara deve ter se
divertido muitíssimo fazendo esse trabalho! Mas cuidado, essa observação não
significa que seja um documentário descuidado e infundado, no qual imagens,
música — especialmente música — e o roteiro, como componentes integrais
da arte cinematográfica, não estão extremamente bem pensados, selecionados
e felizmente articulados no processo de produção, edição e direção. Muito ao
contrário! Quando aponto o caráter lúdico do documentário Iré a Santiago,
me refiro concretamente a dois componentes que resumem esse aspecto do
trabalho. Por um lado, me refiro ao discurso paródico (tanto o visual quanto
o da comentarista) e, por outro, o tom. O discurso paródico de Iré a Santiago
é simultaneamente autorreferencial e crítico; está matizado por um gesto que
chamaríamos de desconstrucionista — embora a noção derridiana date do

Para uma discussão sobre Mi aporte (1972), ver “Temporality and Identity in Sara Gomez’s
19

Documentaries” de Susan Lord.

161
final dos anos 1960, isto é, é posterior ao documentário de Gómez (1964),
pelo que pode ser mais correto pensar em uma influência barthiniana, e nos
referirmos a esse gesto como desmistificante. No que se refere ao tom, não há
dúvida que é sarcástico, incisivo, às vezes beirando o deboche. Com ele, Sara
procurou incidir no lado oculto, o lado invisível das verdades mais cotidianas.
Graças a ambos, Gómez intervém em três registros muito importantes, que
são o histórico, o revolucionário triunfalista (de 1959 e início dos anos 1960),
e o da indústria turística. Da mesma forma, o documentário leva a cabo
uma revisão implícita de certos conceitos fundadores e/ou fundacionais da
cubanidade (como por exemplo, a noção de transculturação) manipulados
pela tradição mitificadora — e necessariamente mistificadora — endêmica aos
três discursos citados.
Em Iré a Santiago, como veremos mais adiante, se estabelece claramente
o interesse da jovem cineasta pela história e identidade da diáspora africana
no Caribe, particularmente em Cuba. Ao focalizar estas expressões culturais e/
ou religiosas da diáspora africana em Cuba e trazê-las para a tela, Sara Gómez
realiza um valioso trabalho documental e de arquivo, enquanto coloca sobre
a mesa uma reflexão teórica amparada pelo impulso subliminar que nos dá a
sétima arte.

Iré a Santiago: Documentário em seis atos


Para a análise, organizei o documentário em seis atos ou seções divididas
igualmente por um intermedio mixto. São eles:
I) Identidade;
II) Santiago y los franceses;
III. O palimpsesto histórico santiaguero;
■ a.C. [antes de Castro]
Intermedio mixto
■ d.C. [depois de Castro]
IV. El santiaguero y la santiaguera;
V. Recomendaciones para el turista;
VI. Julho e carnaval: Cuba trabaja [mas também] se divierte.
As pautas para sua estrutura resultam, em alguns casos, das observações
que faz como introdução a comentarista do documentário, como nas seções
entre aspas e marcadas em negrito. O resto são produto da minha própria

162
colheita, tendo em conta a mise en scène, incluindo nela, como deveria ser, a
música.
A música, com seu ritmo, tom e sotaque, serve de pano de fundo para
o tema da identidade e, portanto, desempenha um papel muito importante Iré
a Santiago. Desde o início, quando os acordes do Son de la loma (interpretado
pelo santiagueiríssimo Trío Matamoros)20 acompanha a tomada em primeiro
plano de uma estrofe do poema de Lorca escrita como se estivesse grafitada
num muro da capital oriental, e cujo refrão Iré a Santiago servirá de título
o para o documentário de Gómez, até as tomadas finais em que se alternam
os planos médios com um plano sequência, através dos quais saboreamos
uma performance doumentão
e imagens em cada famoso
dos “atos” Pello
criando, destaelforma,
Afrokán e seutanto
uma sinergia contagiante ritmo
visual como
Mozambique, a música (a popular e a ritual) estabelece uma concordância
2122
contextual.
entre roteiro e imagens em cada um dos “atos” criando, desta forma, uma
sinergia tanto visual como contextual.

ImpossívelAto
20
evitar a associação do nome Matamoros, com o de Santiago, também conhecida
I: Identidade
como Santiago Matamoros. Conta a lenda que o Apóstolo miraculosamente apareceu para
Em Iré a Santiago, o Son de negros … de Lorca torna um son mulato, em um son
lutar junto às tropas cristãs na batalha de Clavijo, daí o apelido Matamoros.
de la loma, que é seguido pela canção do compositor Ernesto Grenet, Drume negrito,
Em 1963, Pedro Izquierdo (Pello el Afrokán) invadiu a cena musical cubana com seu
21

interpretada
contagiante pelo Mozambique”.
“ritmo Quinteto Instrumental de Músicapopularidade
A esmagadora Moderna, comtantoFrankde Emilio
Pelloao piano de seu
quanto
recém-criado ritmo/dança,
e Tata Güines na tumbadora,foi um
para fenômeno
finalmente muito controverso
fechar aquela devido
primeira à irreverência
sequência com o de
sua performance, particularmente para a classe média e a burguesia cubana há apenas quatro
clássico danzón Tres lindas cubanas de Antonio María Romeu. O primeiro – Son de la
23
anos da Revolução. Recordemos que Pello el Afrokán irrompe no palco não só com seu ritmo
loma – acompanha
contagiante, Mozambique,a apresentação dos créditos
que nos lembra o paísdoafricano
documentário (edição,
e reforça líricacâmera, som,
e musicalmente a
presença da África
comentário, em Cuba
produção, (e, implicitamente,
fotografia e, finalmente, talvez,
roteiro ae presença de Cuba
direção), todos na África
escritos à mãoatravés
de suas várias missões e intervenções), mas também com um elenco de bailarinas loiras e/
(como a estrofe do poema de F. G. Lorca), qual grafite na pedra, seja na medida de uma
ou brancas “do tipo cubano” que dançam com e para Pello el Afrokán — o africano? Sem
parede-muro
dúvida, ou nos degraus
um fenômeno da célebre
sociológico de corteescada da rua Padre Pico, em Santiago de Cuba,
fanoniano.

163
palco não só com seu ritmo contagiante, Mozambique, que nos lembra o país africano e reforça lírica e
musicalmente a presença da África em Cuba (e, implicitamente, talvez, a presença de Cuba na África
através de suas várias missões e intervenções), mas também com um elenco de bailarinas loiras e/ou brancas
“do tipo cubano” que dançam com e para Pello el Afrokán – o africano? Sem dúvida, um fenômeno
sociológico de corte fanoniano.
23
O Danzón ou Danzón cubano. É um ritmo e uma dança de origem cubana, que forma parte da música
tradicional cubana. Sua origem musical provém de outro gênero cubano chamado de duas formas
diferentes: habanera ou havaneira, e dança criolla. O danzón data de 1879.
Ato I: Identidade
Em Iré a Santiago, o Son de negros... de Lorca torna um son mulato, em
um son de la loma, que é seguido pela canção do compositor Ernesto Grenet,
Drume negrito, interpretada pelo Quinteto Instrumental de Música Moderna,
com Frank Emilio ao piano e Tata Güines na tumbadora, para finalmente
fechar aquela primeira sequência com o clássico danzón22 Tres lindas cubanas
de Antonio María Romeu. O primeiro — Son de la loma — acompanha a
apresentação dos créditos do documentário (edição, câmera, som, comentário,
produção, fotografia e, finalmente, roteiro e direção), todos escritos à mão
(como a estrofe do poema de F. G. Lorca), qual grafite na pedra, seja na medida
de uma parede-muro ou nos degraus da célebre escada da rua Padre Pico, em
Santiago de Cuba, para ser finalmente assinada pela roteirista e diretora —
para ser —
Sarita finalmente assinada
ao longo de umpelaposte
roteirista fica ao–pé
quee diretora Sarita – ao longo
da escada daderua
um Pico.
poste que
fica ao pé da escada da rua Pico.

Alémdo do
Além gestogesto
pouco pouco convencional
convencional que
que acompanha acompanha
a apresentação a apresentação
dos créditos, 24

dos
outrocréditos,
23
outro que
aspecto importante aspecto
mostraimportante quela mostra
o caráter avant avant
o caráter da
lettre e contestador obra la
de lettre e
Gómez como diretora trabalhando dentro da ICAIC, é o uso de uma mulher como
22
O Danzón
voiceover ou Danzón
narrator cubano. É
ou, mais um ritmo ecomentarista.
apropriadamente, uma dança de origem cubana,
Referindo-se a estaque forma parte
figura
da música tradicional cubana. Sua origem musical provém de outro gênero cubano chamado
duas comentarista
pelodenome formas diferentes: como narrador
e não habanera voice-over,
ou havaneira, e dança que a priori
títulocriolla. assume
O danzón dataumde 1879.
sujeito
23 do sexo masculino
Recordemo-nos de que que detém
estamos emautoridade
Cuba, emepistemológica, Gómez
1964, e que apesar rompe revolucionário,
do ímpeto com a
no sentido
norma renovador
estabelecida e cosmopolita
do narrador daqueles
voiceover como anos,
figurano que diz respeito
desincorporada à sétimados
e distante arte, Cuba
apenas começava a experimentar com um cinema de vanguarda. Até então, os filmes que
sujeitos que apresenta ou da situação que descreve, e que, pelo mesmo motivo, dentro de
um enquadramento clássico-patriarcal, inscreve sua autoridade etnográfica na narrativa
164
visual.
Também deve-se observar que este documentário ela assina Sarita e não Sara
Gómez, como ela normalmente assinaria o resto de sua obra. Este gesto, nada gratuito,
junto à forma pouco convencional de apresentar os créditos [grafite, ressemantização
contestador da obra de Gómez como diretora trabalhando dentro da ICAIC,
é o uso de uma mulher como voiceover narrator ou, mais apropriadamente,
comentarista. Referindo-se a esta figura pelo nome comentarista e não como
narrador voice-over, título que a priori assume um sujeito do sexo masculino
que detém autoridade epistemológica, Gómez rompe com a norma estabelecida
do narrador voiceover como figura desincorporada e distante dos sujeitos que
apresenta ou da situação que descreve, e que, pelo mesmo motivo, dentro de
um enquadramento clássico-patriarcal, inscreve sua autoridade etnográfica na
narrativa visual.
Também deve-se observar que este documentário ela assina Sarita e
não Sara Gómez, como ela normalmente assinaria o resto de sua obra. Este
gesto, nada gratuito, junto à forma pouco convencional de apresentar os
créditos [grafite, ressemantização (feminista?) das formas de apresentação
a través de um narrador voiceover feminina, assinatura íntima e informal
etc.] afirma, desde já, o carácter contestatório, vanguardista e lúdico da obra
cinematográfica de Sara Gómez.
Junto com o roteiro, a música também traz um forte toque identitário ao
documentário. O son e o danzón acompanham as cenas populares, que , qual
parênteses, enquadram esse primeiro ato, por assim dizer, do documentário
em que somos testemunhas dos gestos da gente que trabalha, que toma o
ônibus, que se movimenta pela cidade; nós testemunhamos o mercado de rua
e os vendedores ao lado do famoso carrinho de frutas e carnes que param
nas esquinas ou deambulam pela cidade. Interpelados pelas imagens, gestos
e música, passamos a fazer parte de uma audiência que cerca um mágico
ambulante que, como um menestrel moderno, entretém o público que o rodeia
no Parque Céspedes. Nós os vemos e eles olham para nós: os santiagueiros
olham para a câmera, olham para nós, alguns a reconhecem, surpresos, outros
a evitam, muitos a ignoram e outros nem a veem. E nós, o público implícito,
principalmente não-santiagueiro — havaneiro como os realizadores, eu ousaria
dizer — ao vermos essas cenas reconhecemos, nos reconhecemos e, como se
estivéssemos sendo arrastados por nosso próprio duende, nos juntamos a essa
jornada-peregrinação, ávidos de conhecimento sobre essa gente e essa terra

foram feitos eram históricos, ou comédias como Las doce sillas de Tomás Gutiérrez Alea.
A produção cinematográfica mais relevante naqueles anos, em termos de manipulação e
edição de câmeras e montagem, foi o documentário da diretora francesa Agnès Varda Salut
les cubains, 1963, e o filme do diretor soviético Mikhail Lalatozov, Soy Cuba, 1964. As duas
obras foram filmadas em Cuba, principalmente com equipamentos estrangeiros e atores
(profissionais e não profissionais) cubanos.

165
tão familiar quanto estranha-estrangeira que é Santiago de Cuba para o resto
dos habitantes da ilha, mas principalmente para o/a havaneiro/a.
No minuto 1:53, a música (Son de la loma) dá lugar à voz da comentarista.
Como são os santiagueiros?, parece perguntar uma voz ausente à qual a
comentarista, qual ventríloqua do “mito [Santiago de] Cuba”, responde: “Sim,
dizem que somos de uma ilha onde a terra treme e os mulatos cheiram a erva
fresca. Aqui nos acostumamos com o calor bebendo o suco fermentado das
raízes ...” (1:53-2:03).24 Isto, enquanto a câmera segue um jovem carregando
uma caixa cheia de garrafas de refrigerantes, que poderia ser Pru, uma bebida
típica de Santiago de Cuba feita a partir do suco fermentado de ervas e raízes,
destinado a combater o calor — já que não a sede — mas que tendo a pensar
que se trata de uma caixa de refrigerante comercial, e que a cena está justamente
destinada a enfatizar o trecho entre o dito e o feito.
Neste primeiro ato de Iré a Santiago, a comentarista continua sua
descrição de como dizem que são os santiagueiros, e, portanto, como somos
e como nos vemos, da identidade atribuída à identidade assumida: “Rimos e
falamos em voz alta com agressividade e orgulho, nossa mímica é exagerada e
graciosa (02:32-02:38)... não há dúvida sobre nossa condição antilhana [leia-se
mulata]” (3:30).25
A partir da representação coletiva do espaço público e bagunceiro que
representa a rua, o son cede sua musicalidade jovial ao espaço mais íntimo
dos velhos, da tradição, da família, do lar, onde não falta — não pode faltar
— a cadeira de balanço, também conhecida como sillón (poltrona). Segue-se
uma sequência de várias tomadas de pessoas de diferentes idades e gênero
balançando-se em suas cadeiras de balanço. A cadeira de balanço reina nos
lares, porque, como nos diz a comentarista, acompanhada dos primeiros
acordes da canção (de ninar) do maestro Ernesto Grenet, Drume negrita: “Na
minha ilha a sesta é um balanço de vime e madeira” (3:00-3:03. Grifo meu).
Deve-se notar que na narração que acompanha as primeiras sequências
do documentário, assim como no poema de Lorca,26 estabelece-se uma

Pelos referentes mencionados (tremores de terra, suco fermentado das raízes), “sabemos”
24

que se refere a Santiago de Cuba.


Sobre o deslocamento do sujeito masculino desincorporado, isto é, do narrador voiceover a
25

que me referi anteriormente, observamos que, ao passarmos de eles (são) para nós (somos),
a comentarista se incorpora dentro ao referido contexto, não como uma observadora
participante, mas como um sujeito constitutivo e integral do contexto que descreve.
Ver os versos 18 e 36 do poema de Lorca, e até mesmo o próprio título: Son de negros de
26

Cuba. Grifo meu.

166
relação metonímica que administra a relação entre a parte e o todo, isto é,
entre Santiago-cidade, a primeira capital da ilha, berço da nacionalidade e
espiritualidade insular, Cuba-ilha, espaço simbólico da nação e Antilhas-
arquipélago, arco de ilha que as acolhe e as contém. Nesta cartografia do espaço
insular, Santiago se percebe e se apresenta como um útero que se autogera, que
a gera (a ilha) e a contém, enquanto é contida por ela e por esse outro conjunto
de ilhas que são conhecidas por “West Indies, em inglês. Em castelhano, as
Antillas” (Guillén, 1980, p. 62-71): “Não há dúvida sobre nossa condição
antilhana [diz a comentarista]. Mas tudo isso é quase uma lenda, este mito de
Cuba construída em um son [em um son de negros?]. O que acontece é que
Santiago está lá, e então é verdade: Cuba é uma ilha das Antilhas...”.
Do balanço da cadeira, através de um plano geral, a câmera nos leva
para o espaço interior da casa e da família, ou seja, o lar, que neste caso é um
lar negro. E pela primeira vez no cinema cubano (o segundo seria um par de
anos mais tarde em seu documentário Crónicas de mi família 1966) a família
negra, o lar negro, aparece ocupando um papel digno e em um quadro do
qual sempre tinha sido excluído.27 Refiro-me, é claro, ao enquadramento da
cena, seja ela cinematográfica, televisiva, teatral, ou mesmo dentro do marco
reduzido da literatura, e especialmente daquilo que no período entreguerras
foi pensado e apresentado como exaltação e valorização do negro, o negro
e sua cultura, e da qual o poema de Lorca, Son de negros de Cuba, é um
exemplo a considerar. Na verdade, a narradora usa a palavra lar em vez de
casa para referir-se ao lugar onde habitamos em família e, novamente através
da conjugação do verbo no plural, nos diz: “nossos lares são acolhedores para
receber o compadre, o irmão...” (3:05-3:10). Portanto, pode-se perguntar se
o possessivo que qualifica os lares propõe a parte — neste caso o lar negro
— pelo todo, ou seja, pelo lar santiagueiro, ou mesmo cubano ou se, pelo
contrário, o lar cubano se constitui e se apresenta através do lar negro-
santiagueiro. Se assim for, a cena destacaria a importância que Gómez atribui
ao lar negro como eixo fundacional não apenas da família santiagueira, mas
também da “família cubana”. Seja qual for o caso, a verdade é que na cena
anterior, que dura apenas 35 segundos, imagem, discurso e a música(lidade)
são apresentadas em perfeita harmonia, criando uma cena singular, única até
então na história do cinema cubano.

A apresentação da família “negra” na literatura cubana faz sua estreia com a primeira versão
27

do romance de Cirilo Villaverde, Cecilia Valdés (Havana, 1839), seguida da versão definitiva,
publicada em Nova Iorque em 1882. Não obstante, Cecilia Valdés apresenta uma família
negra fragmentada pela violência sexual do sistema colonial, escravista e patriarcal.

167
No entanto, quase no final deste primeiro ato, a comentarista retorna em
seu próprio discurso para desmentir tudo isso o que de nós dizem (e dizemos)
tão reiteradamente músicos, poetas, narradores/as e guias turísticas, e afirma:
“[m]as tudo isto é quase uma lenda. Este é o mito Cuba construído em um
son” (3:29-3:33). No entanto, ela volta e corrige; lança mão desse gesto sempre
desdobrado pela brincadeira entre sim e não, porque, aparentemente, a própria
Santiago equilibra-se em equilíbrio tênue sobre esse mito, encarregando-se
assim de recuperá-lo, e de afirmar isso que seguramente subjaz todo mito, toda
lenda. Assim, a comentarista explica em tom de brincadeira: “O que acontece
é que Santiago está lá, e então é verdade, Cuba é uma ilha das Antilhas... e
mulato... mulato é um estado de espírito” (3:35-3:43). Mais uma vez, através da
intervenção da comentarista, afirma-se a importância fundacional de Santiago
na construção da identidade insular-nacional-antilhana, já que é Santiago
— e não Havana ou outras regiões do país — que contribui com o sotaque
caribenho para essa ilha, que é hispanófila e orientefóbica.28

Ato II: Santiago y los franceses


“Um século e meio mais tarde [da Revolução Haitiana, e a subsequente
imigração de colonos franceses e seus escravos para Santiago de Cuba], Santiago
já não tem franceses nem na Calle del Gallo (Rua do Francês), nem cafezais
franceses, mas Santiago fica com a tumba, que eles chamam de francesa”. (5:15)

Sara Gómez
Não obstante a ausência de franceses (brancos e negros) enfatizada
pela citação anterior, esta seção do documentário abre com uma tomada que
segue o funeral de Esperanza, a presidenta de uma sociedade de franceses, em
1964. Por meio de sua inclusão no documentário, Sarita explora a identidade
histórica francesa em Cuba, bem como a atual identidade cultural francesa-
santiagueira-cubano-antilhana. A partir do foco no rito fúnebre e outras
expressões culturais derivadas dos escravos que chegaram com seus senhores

Na medida em que os orientais fora do que antes era a província do Oriente são chamados
28

“palestinos”, sobretudo na região oeste da ilha (nas antigas províncias de La Villas, Matanzas,
Havana e Pinar del Río, mas particularmente em Havana), onde desde os anos setenta têm
se movido de forma alarmante. Tanto que em meados da década de noventa o grupo musical
Van Van lançou uma canção em que avisam e ao mesmo tempo afirmam que “Havana não
aguenta mais”.

168
do Haiti, Sarita parece colocar em xeque a identidade francesa em Santiago (de
Cuba).

Tomada
Tomada do funeral
do funeral de Esperanza,
de Esperanza, contemporânea
contemporânea das filmagens dodas filmagens
documentário do
documentário
(em 1964). De fato, (em 1964).
na foto Deaparece
abaixo fato, Sarita
na foto abaixo
no meio das aparece
pessoas que Sarita no meio das
acompanham
pessoas que acompanham o enterro (4:49).
o enterro (4:49).
É bem sabido que durante a revolta em São Domingos, mais tarde
É bem sabido que durante a revolta em São Domingos, mais tarde conhecida como
conhecida como a Revolução Haitiana, milhares de colonos franceses brancos
a Revolução Haitiana, milhares de colonos franceses brancos e seus descendentes mulatos
e seus descendentes mulatos chegaram ao leste de Cuba, trazendo consigo seus
chegaram aoNos
escravos. lestearredores
de Cuba, trazendo consigoeles
de Santiago seusestabeleceram
escravos. Nos arredores
um sistemade Santiago
de cafezais
eles estabeleceram um sistema de cafezais que eles chamavam
que eles chamavam franceses. A Santiago também chegaram seus sobrenomes, franceses. A Santiago
sua culinária,
também chegaram sua música
seus e sua dança,
sobrenomes, entresua
sua culinária, outras
músicapráticas culturais
e sua dança, entre eoutras
religiosas,
que
práticas culturais e religiosas, que ao longo dos anos acabaram transculturando-se, ou por
ao longo dos anos acabaram transculturando-se, ou seja, acabaram
cubanizar-se
seja, acabaram por embora eles
— cubanizar-se aindaeles
– embora as ainda
chamem de francesas.
as chamem de francesas.A Apartir
partir desse
segmento do documentário, fica claro que, para Gómez, a identidade não é um
desse segmento do documentário, fica claro que, para Gómez, a identidade não é um
conceito unitário, preconcebido, mas que admite mudanças, adaptações, um
conceito unitário, preconcebido, mas que admite mudanças, adaptações, um conceito
conceito sempre em processo de criação, elaboração e mudança. Ser é nomear;
sempre
ser é umem processo
processo de criação, elaboração e mudança.
de singularização Ser é nomear;
e diferenciação ser qual
pelo é um processo
a identidade
éde construída
singularizaçãoaoe diferenciação
nomear/se; pelo portanto, nomear/se
qual a identidade é ser. Visto
é construída desta forma,
ao nomear/se;
enquanto, de acordo
portanto, nomear/se com desta
é ser. Visto o script,
forma, no auge de
enquanto, deacordo
1964,com já onão havia
script, franceses
no auge
“nem
de 1964, na jáRua
nãodohavia
Francês (Calle
franceses “nemdelna
Gallo)”,
Rua doosFrancês
descendentes
(Calle deldeGallo)”,
escravos os ainda
descendentes de escravos ainda conservam umas sociedades e a dança que eles chamam,
quer dizer, qualificam, de franceses e francesa, respectivamente.
169
conservam umas sociedades e a dança que eles chamam, quer dizer, qualificam,
de franceses e francesa, respectivamente.
A partir desta sequência fica claro que Iré a Santiago estabelece
nitidamente o marcante interesse da jovem cineasta pela história e identidade
da diáspora africana dentro do próprio Caribe, particularmente em Cuba, bem
como pelo seu interesse pelos mitos e, sobretudo, pelos rituais diaspóricos
que persistem e se manifestam em suas vertentes transculturadas (seja o já
mencionado enterro de Esperanza, a presidenta de uma sociedade de franceses
ou, posteriormente, a espetacular rodagem de uma iniciação de Abakuá em
longa-metragem, De cierta manera), bem como outras expressões culturais
como a conga santiagueira, com a sua incorporação única do chamado trompete
chinês, da tumba francesa ou do próprio carnaval (santiagueiro). Ao focar
essas expressões culturais e/ou religiosos da diáspora africana em Cuba e trazê-
las para a tela, repito, Sara Gómez executa um valioso trabalho documental
e de arquivo, ao mesmo tempo que colocando sobre a mesa uma reflexão
teórica sobre os processos de criolização/criollización ou transculturação29
que estes mitos, rituais e outras expressões culturais da diáspora africana
experimentaram como resultado de diversos processos históricos que através
do tempo moldaram as sociedades da Bacia do Caribe e suas ilhas.

Ato 3: O palimpsesto histórico santiagueiro


História a.C. (antes de Castro — e depois de Colombo!)
“A história sempre começa na baía”. Ou seja, na baía, em sua superfície,
como um palimpsesto, foi escrita a história de Santiago (e, portanto, a de
Cuba) desde esse início, cifrado pelo descobrimento e posterior fundação do
primeiro assentamento na ilha a cargo de Diego Velázquez de Cuellar, em
1514. Na primeira parte deste terceiro ato, Gómez analisa a história de Santiago
(de Cuba) antes do triunfo da Revolução de 1959. Por suas águas desfilam
conquistadores e piratas, navios negreiros e navios de guerra, escritores e
músicos, revoltas e guerras, até um dia...

Intermedio mixto
Esta cena, ou intermedio mixto, como a comentarista a chama, irrompe
na narrativa histórica com um tom misterioso que acaba colocando a cena

Ver Stuart Hall (2003) e Martínez-Echazábal (1996).


29

170
no âmbito do sobrenatural ou místico — do real maravilhoso, por assim
dizer. Começa com a tomada de uma barca em que se lê o nome: Virgen de la
Caridad. Esta imagem é seguida pela tomada de uma praia onde — além dos
malabarismos do editor — uma mulher aparece e desaparece em meio a restos
de quebra-mares maltratados pelo tempo. Em cortes rápidos, a mulher aparece
e desaparece intermitentemente, até que no último corte a vemos entrando no
mar.30 A cena está a cargo da comentarista que nos diz, com um tom de voz
que acentua o suspense e o caráter mítico da história que se narra e se projeta:
“comenta-se, mas ainda não se confirmou, que todas as tardes aparece, em Las
Múcaras, uma mulher de maiô e lenço listrado amarrado na cabeça que deseja
comunicar-se” — esta parte da narração voice-over pode aludir tanto a um
referente mítico indicado pelo mito de origem da Virgem da Caridade quanto
à clandestinidade, da qual o rumor e a incerteza são parte ideal (integrante?),
bem como antecipar a chegada do Redentor barbudo e o começo da história.
Seja qual for o caso, após esta breve intervenção, ou intermedio mixto que
invade o histórico com a maravilha, e que parece indicar a espiritualidade
do santiagueiro (e em geral do cubano), sua alegada propensão ao mito e à
lenda, Gómez nos devolve ao discurso histórico, desta vez com as pretensões
de grandeza triunfalista.

História d.C. (depois de Castro)


A primeira tomada desta segunda parte do terceiro ato abre com um
plano panorâmico geral de umas montanhas que supomos fazer parte da
cordilheira da Serra Maestra. Com um tom grandiloquente, que irrompe
em meio ao som de uma marcha solene, a comentarista diz: “Mas a história
começou de novo em Santiago”, e imediatamente a câmera nos oferece uma
tomada em plano médio de um desfile liderado por uma banda militar que
toca música solene. A banda é seguida por um contingente de enfermeiras, e a
seguir, um de estudantes carregando duas coroas de flores (creio que a fita que
adorna uma delas leva o nome de Frank País, o que me leva a deduzir que são
oferendas a ser depositadas no túmulo do mártir como parte da comemoração
do aniversário de seu assassinato, ocorrido em Santiago em 30 de julho de

Pode-se sugerir que a imagem da mulher alude, por um lado, à lenda de La Caridad de
30

Cobre, que foi encontrada no mar por três pescadores; e, de outro, para Ochún, a deusa
Lucumí venerava em Cuba, ou ambos, se levarmos em conta o registro sincrético-religioso
do povo cubano.

171
1957).31 Não obstante a afirmação sobre o começo da história com o fracassado
ataque ao Quartel de Moncada em 26 de julho de 1953, a referência a Frank
País e o uso da cláusula adverbial “de novo” parece indicar que, subjacente a
essa “nova história”, Santiago ainda preserva traços de histórias passadas.
Neste ponto do documentário (8:50), não há dúvida de que Santiago
está se preparando para comemorar o dia 26 de julho e o início da história,
portanto a música solene que acompanha as imagens do desfile está de acordo
com a ocasião. Mas devemos lembrar que em julho não só se comemora o
início da insurgência castrista, mas também o dia de Santiago (25 de julho),
santo padroeiro da cidade, e que, além disso, em julho acontece o carnaval,
uma festa pagã que, ao contrário do carnaval tradicional, é celebrada no verão
e escapa tanto à mitologia religiosa quanto política. Assim, a música solene dá
lugar a um changüí 32 que afirma: “Santiago se encheu, Santiago se encheu de
guajiros, Santiago se encheu”.
E assim, a partir de suas montanhas marrons, e sobre esse mito Cuba
“construído em um son” (ou em um changüi),33 a história de Santiago [e] de
Cuba começa de novo. No entanto, “Sarita” garante que outras histórias não
sejam apagadas sob o fluxo esmagador do discurso triunfalista da revolução
de 1959 com suas pretensões messiânicas, mas que, ao contrário, perdurem
legíveis e em seu lugar — embora sous rature — sobre a superfície prateada da
baía ou, mais propriamente, do celuloide.

Ato IV: El santiaguero y la santiaguera


Dois personagens — um homem e uma mulher — caminham,
separadamente, pelas ruas de Santiago de Cuba e, por acaso ou não, se
encontram em uma cafeteria da cidade. O flerte começa e na próxima cena nós
os vemos compartilhando uma mesa ao ar livre. Estas cenas são acompanhadas
por outro changüí, cuja letra repete: “agora sim ... porque provou do melado
que a santiagueira tem”. Estas sequências captam, em imagens frescas, aspectos

<https://www.ecured.cu/Frank_Pa%C3%ADs>.
31

<https://www.ecured.cu/Changü%C3%AD>.
32

O Changüí. É o gênero musical que mais se aproxima do son; é oriundo da zona mais central
33

do arquipélago cubano e pode ser catalogado como célula genuína desse gênero. O começo
do Changüí em Guantánamo remete ao século XIX, onde famílias inteiras iniciaram e
mantêm esta tradição desde aproximadamente 1860. Disponível em: <https://www.ecured.
cu/Guantánamo_(municipio)>.

172
do patrimônio humano de Santiago de Cuba: a espontaneidade de seu povo,
a alegria, a despreocupação e a sensualidade do santiagueiro. Também nos
apresenta como o que para os cubanos, especialmente para os cubanos da
região ocidental da ilha, são os “tipos típicos” (dignos da aliteração) de Santiago
de Cuba, enquanto destaca a importância do patrimônio humano ao lado do
arquitetônico, ecológico-geográfico e religioso-cultural.

Ato V: Recomendaciones para el turista


Começa com um plano contrapicado do Castillo del Morro. O son “Seis
perlas cubanas” acompanha esta tomada: “quando chego a Camagüey ... Oriente
me chama “. O resto do ato com o seu “recomendações para o turista” alterna
planos picado e contrapicado de atrações turísticas singulares em Santiago de
Cuba e seus arredores: Puerto Boniato, La Gran Piedra, a Catedral, a Calle
Pico. Por causa da própria geografia montanhosa de Santiago e seus arredores,
todos estes lugares estão localizados no topo de uma pedra ou montanha que
o visitante tem que subir para acessá-los. Com frescor e humor, a comentarista
enfatiza que a jornada através do patrimônio ecológico-geográfico de Santiago
não deve ignorar o patrimônio humano,34 cognitivo e popular. Por isso,
recomenda ao turista que, se for a Santiago, não deixe de subir a uma casa
santiagueira, e lembra que “Santiago também tem uma universidade e em julho
tem carnavais”. Vale a pena notar que o lembrete é acompanhado por um plano
frontal do edifício principal da Universidade de Santiago de Cuba, seguido
por outro plano frontal de um personagem disfarçado de maneira sui generis,
e cuja fantasia inclui um capuz com duas antenas, cada uma coroada por
uma cascavel. Também chama a atenção, pelo absurdo contraste com o traje,
seus óculos de sol brancos, bem como o croquete que vai comendo enquanto
caminha e olha descontraidamente para a câmera. A tomada termina com
um comentário sem sentido e aparentemente fora do lugar — “Se quer saber
de Lilith, ligue para 30-5566”. Mas não tão fora de lugar se considerarmos o
contexto carnavalesco em meio ao qual o comentário ocorre, bem como o
sotaque lúdico generalizado de Iré a Santiago. Finalmente, o carnaval encena a
inversão da lógica cartesiana.
Em suas “recomendações” Gómez recorre lugares comuns ao discurso
da indústria do turismo (o Morro, La Gran Piedra, a Catedral, etc.), mas

De fato, o Ato IV La santiaguera y el santiaguero já antecipa a importância do patrimônio


34

humano para um conhecimento mais abrangente de Santiago de Cuba.

173
para expandi-las e incluir lugares como a casa santiagueira, espaço íntimo,
considerado à margem das atrações turísticas, a universidade, um espaço
que produz saberes especializados e de conhecimento, e o carnaval, um ritual
através do qual o povo de Santiago de Cuba realiza sua tradição e cultura
popular, Gómez os coloca dentro de um patrimônio local (e nacional) digno
de ser conhecido, explorado e valorizado pelo visitante, juntamente com
patrimônio histórico e ecológico-geográfico. Assim, em 1964, Sara Gómez
interfere no registro do discurso da indústria turística ao expandir a noção do
que Ato
podeVI: Julhoabarcar
e deve e carnaval: “Cuba
as áreas trabalhapara
de interesse e se odiverte”
turista ou viajante que vai
a Santiago.
A citação anterior, tirada de um banner que aparece em uma das tomadas deste
ato,
Ato VI: Julho e carnaval: “Cuba trabalha e se diverte”

A citação anterior, tirada de um banner que aparece em uma das tomadas


destedeveria ser lido:
ato, deveria ser“Cuba trabalhatrabalha
lido: “Cuba [mas também] se diverte”.
[mas também] De fato,Deemfato,
se diverte”. nossa
em nossa
sociedade sociedade
moderna, moderna,
trabalho trabalho e entretenimento
e entretenimento são apresentados são como
apresentados
atividades
como atividades antagônicas, ou pelo menos pertencentes a dois registros
antagônicas,
diferentes.ouEste
pelonão
menosé opertencentes a dois registros
caso, no entanto, diferentes.
em [Santiago de] Este
Cubanão é o caso,
durante o no
carnaval,
entanto, pelo menos
em [Santiago isso parece
de] Cuba duranteindicar Sara pelo
o carnaval, Gómezmenoscomisso
o uso dessa
parece cena.Sara
indicar
O ato final abre com uma tomada de rua de um grupo de músicos que tocam
Gómez com
ritmos deoascendência
uso dessa cena. O atoEsta
haitiana. finalé seguida
abre comporuma
uma tomada
tomadade autorreferencial
rua de um grupo de
que devolve a imagem do cinegrafista (Mayito) refletida por um dos muitos
músicos que tocam ritmos de ascendência haitiana. Esta é seguida por uma tomada
espelhinhos que estão decorando um manto ou capa em que se lê “Los vikings”
(chama a atenção
autorreferencial o uso doaSpanglish),
que devolve imagem doreferindo-se, talvez, uma
cinegrafista (Mayito) das comparsas
refletida por um dos
ou grupos que compõem o carnaval santiagueiro. A seguir vem uma série
muitos espelhinhos
de cenas de rua,queainda
estãodiurnas,
decorando um manto
onde ou capa
as pessoas em quecompartilham
dançam, se lê “Los vikings”
e
se divertem. A transição entre a festa diurna e a noturna é marcada
(chama a atenção o uso do Spanglish), referindo-se, talvez, uma das comparsas ou grupospor um

que compõem o carnaval santiagueiro. A seguir vem uma série de cenas de rua, ainda
174
diurnas, onde as pessoas dançam, compartilham e se divertem. A transição entre a festa
diurna e a noturna é marcada por um clipe de desenho animado onde vemos o Mr. Magoo
(conhecido em Cuba como Señor Magú)36 abrindo uma garrafa de “Champagne
clipe de desenho animado onde vemos o Mr. Magoo (conhecido em Cuba
como Señor Magú)35 abrindo uma garrafa de “Champagne Añeja”(uma vez
que não é Ron Añejo) ao ritmo de uma conga típica santiagueira (como
vemos, nem mesmo esse personagem de Hollywood consegue escapar da
criollización/crioulização!) e imediatamente a câmera nos apresenta algumas
tomadas breves das pessoas arrollando (dançando) na rua ao ritmo da conga.
A próxima tomada é feita acompanhada de outro corte musical. Nesta, a conga
cede a vez a Pello el Afrokán e seu elenco de mulatas loiras e brancas trigueiras
(sim, leram corretamente!), que entram no palco dançando seu recém-lançado
ritmo mozambique (1963). O mozambique também acompanha as tomadas
de um carro alegórico que leva músicos e bailarinas. Se destaca no meio delas
uma mulata santiagueira (me aventuro a dizer que é a mesma “santiagueira”
do Ato 4) que dança no centro do carro alegórico. Depois de um breve trajeto
composto de várias tomadas de danças e comparsas, a câmera nos retorna —
novamente o jogo de espelhos — à imagem da santiagueira, cuja dança a Ochún
liga a santiagueira à deusa Lucumí. A canção termina, sua última palavra é
“Mozambique”, significante que, junto com a dança de Ochún, nos remete à
África — e para as raízes africanas da nacionalidade cubana e santiagueira —
enquanto na tela lemos a palavra “Fim”.

Conclusão
Em princípio, Iré a Santiago move-se das cenas de rua para o espaço
mais íntimo do “lar” negro, para a partir de aí seguir seu percurso lúdico que
acentua, questiona, desmistifica e corrige o discurso histórico tanto em sua veia
burguesa quanto na triunfalista revolucionária. Da mesma forma, de maneira
divertida, o documentário dialoga com o discurso da indústria do turismo
e enfatiza não apenas a importância do patrimônio ecológico-geográfico
mas também do patrimônio humano e da herança cultural e intelectual de
Santiago de Cuba, para finalmente voltar ao espaço aberto e democrático da
rua e seu patrimônio popular. E é no espaço da rua que Santiago se manifesta
em plenitude durante um dos mais importantes rituais da cidade: o carnaval
santiagueiro.

Mr. Magoo é um personagem de desenho animado criado pelo cartunista John Hubley
35

nos Estados Unidos da América. Devido à influência do cinema e, em geral, da cultura


estadunidense, na Cuba dos anos 1950 e no início dos anos 1960, Mr. Magoo era um
personagem conhecido na ilha. Para mais informações sobre Mr. Magoo, Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Mr._Magoo>.

175
Não há dúvida de que através desta peregrinação tanto visual quanto
auditivo-musical, Gómez destaca o lugar fundacional e o legado histórico-
cultural de Santiago de Cuba para a nação cubana. Santiago de Cuba, como
o outro Santiago (de Compostela) que faz parte da mitologia ibérica, torna-se
então um lugar de origem, afirmação e peregrinação às raízes da nacionalidade
e espiritualidade insular, iconicamente destinada aos cubanos pela Virgem da
Caridade do Cobre e por Ochún, a deusa Lucumí. Espiritualidade e lenda a que o
documentário faz referência poética através da cena referida como “Intermedio
mixto” e, mais obliquamente, através da última cena do documentário em que
a santiagueira dança ao ritmo de mozambique, mostrando uma gestualidade
corporal que identifica a sua dança com a dança ritual de Ochún. Mesmo
que estas cenas representem uma referência implícita ao Cachita-Ochúm, à
importância da tradição oral, ou a religiosidade híbrida do povo santiagueiro e
cubano, ou simplesmente uma alusão à chamada predisposição da imaginação
caribenha à lenda e ao mito, a verdade é que elas ressaltam a importância do
discurso da espiritualidade a coloca lado a lado com o discurso histórico.
Finalmente, não podemos esquecer que esta peregrinação, por assim
dizer, nos confronta com imagens contemporâneas, juntamente com uma
história de colonialismo e opressão que necessariamente inclui o seu inverso
— pirataria, resistência contra a escravidão, insurgência, criollización/
crioulização, mitos e ritos transculturados. Enfrenta-nos, enfim, com uma
Santiago de Cuba, antilhana, caribenha, com uma Santiago complexa e,
sobretudo, muito distante daquela outra Santiago e que outra Cuba, imaginada,
exótica e unidimensional — “Harpa de troncos vivos, caimão, flor de tabaco!”
— que o imaginário colonial desse outro peregrino de além-mar nos legou em
um son.

Tradução de Maria Isabel de Castro Lima

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Filmografia de Sara Gómez


■ 1962: Plaza Vieja, documental de 8 minutos para la Enciclopedia popular, no 28.
■ 1962: Solar habanero, documental de 10 min. para la Enciclopedia popular, no 31.
■ 1962: Historia de la piratería, documental de 10 min. para la Enciclopedia popular,
número especial.
■ 1962: El solar, documental de 10 min. para la Enciclopedia popular, número
especial.
■ 1964: Iré a Santiago, documental de 15 min.
■ 1965: Excursión a Vuelta Abajo, documental de 10 min.
■ 1966: Guanabacoa: crónica de mi familia, documental de 13 min.
■ 1967: ...Y tenemos sabor, documental de 30 min.
■ 1968: En la otra isla, documental de 41 min.
■ 1968: Una isla para Miguel, documental de 22 min.

178
■ 1969: Isla del tesoro, documental de 10 min.
■ 1970: Poder local, poder popular, documental de 9 min.
■ 1971: Un documental a propósito del tránsito, documental de 17 min.
■ 1971: De bateyes, documental de 20 min. (inédito).
■ 1972: Atención prenatal, documental de 10 min.
■ 1972: Año uno, documental de 10 min.
■ 1972: Mi aporte, documental de 33 min.
■ 1973: Sobre horas extras y trabajo voluntario, documental de 9 min.
■ 1974: De cierta manera, ficción de 79 min.; con dramaturgia de Tomás Gutiérrez
Alea y Julio García Espinosa (que se encargarían de terminar de filmarla).

Como assistente de direção


■ 1964: Cumbite, ficción de 82 min.; dirigida por Tomás Gutiérrez Alea.
■ 1965: El robo, ficción de 99 min.; dirigida por Jorge Fraga.

179
Anexo 1
Anexo 1 “Son” 37
“Son”36

De acordo com Luis Morillo Vilches, “no el manuscrito original, el poeta escreveu primeiro
36

Son de negros de Cuba, mas depois riscou e deixou apenas a primeira palavra, Son. Assim foi
publicada na revista Musicalia”. No entanto, em diferentes edições de suas Obras Completas,
aparece como Son de negros de Cuba.

180
Anexo 2
“Son de negros de Cuba
Cuando llegue la luna llena
iré a Santiago de Cuba,
iré a Santiago,
en un coche de agua negra.
Iré a Santiago.
Cantarán los techos de palmera.
Iré a Santiago.
Cuando la palma quiere ser cigüeña,
iré a Santiago.
Y cuando quiere ser medusa el plátano,
iré a Santiago.
Iré a Santiago
con la rubia cabeza de Fonseca.
Iré a Santiago.
Y con la rosa de Romeo y Julieta
iré a Santiago.
¡Oh Cuba! ¡Oh ritmo de semillas secas!
Iré a Santiago.
¡Oh cintura caliente y gota de madera!
Iré a Santiago.
¡Arpa de troncos vivos, caimán, flor de tabaco!
Iré a Santiago.
Siempre he dicho que yo iría a Santiago
en un coche de agua negra.
Iré a Santiago.
Brisa y alcohol en las ruedas,
iré a Santiago.
Mi coral en la tiniebla,
iré a Santiago.
El mar ahogado en la arena,
iré a Santiago,
calor blanco, fruta muerta,
iré a Santiago.
¡Oh bovino frescor de calaveras!
¡Oh Cuba! ¡Oh curva de suspiro y barro!
Iré a Santiago.

181
Anexo 3
“Toada de negros em Cuba”37
Quando chegar a lua cheia,
irei a Santiago de Cuba,
Irei a Santiago.
Num carro de água negra
Irei a Santiago.
Cantarão os tetos de palmeira.
Irei a Santiago.
Quando a palma quer ser cegonha,
Irei a Santiago.
Quando quer ser medusa a bananeira,
Irei a Santiago,
Irei a Santiago.
Com a ruiva cabeça do Fonseca,
Irei a Santiago.
E com a rosa de Romeu e Julieta,
Irei a Santiago.
Oh Cuba! Oh ritmo de sementes secas!
Irei a Santiago.
Oh cintura quente e gota de madeira!
Irei a Santiago.
Harpa de troncos vivos. Caimão. Flor de tabaco.
Irei a Santiago.
Sempre tenho dito que irei a Santiago.
Num carro de água negra.
Irei a Santiago.
Meu coral na treva,
Irei a Santiago.
O mar afogado na areia,
Irei a Santiago.
Calor branco, fruta morta,
Irei a Santiago.
Oh bovino odor de canavieiras!
Oh Cuba! Oh curva de suspiro e barro!
Irei a Santiago.

Retirado de: Federico García Lorca. [tradução de Manuel Bandeira]. In: revista Poesia
37

Sempre, n. 7, Rio de Janeiro — Fundação Biblioteca Nacional, 1996.

182
A “documentarurgia” agit-pop de
Santiago Alvarez1

Jair Tadeu da Fonseca

I went and took a look


In my old history book
It’s there in black and white
For all to see 2

Quem não conhece o cinema cubano, dificilmente acreditaria que há um


documentário, experimental e oficial ao mesmo tempo, sobre os funerais de
Ho Chi Minh em 1969, em homenagem ao líder revolucionário vietnamita
e também contra a guerra, cuja trilha sonora inclui a música psicodélica
da banda de rock norte-americano Iron Butterfly, bem como um trecho
de uma canção de Silvio Rodriguez, da Nova Trova Cubana, interpretada
por Omara Portuondo, que viria a fazer parte do grupo Buena Vista Social
Club, celebrizado pelo filme de Wim Wenders. Trata-se de 79 primaveras,
dirigido por Santiago Alvarez (1919-1998), documentarista cubano, cuja obra
vastíssima, em quantidade e qualidade, é pouco conhecida em outros países,
embora atualmente acessível, em parte, pela internet.

1
Uma primeira versão deste texto foi publicada na revista Devires — Cinema e humanidades,
da Fafich-UFMG, v. 1, n. 1 (2003), com o título de “A dramaturgia agit-pop de Santiago
Alvarez”.
2
“Now” é uma variante jazzística americana de “Hava Nagila”, canção folk hebraico-ucraniana,
de autoria anônima e coletiva, cuja primeira letra fixa foi composta por Abraham Zevi
Idelsohn. Consta dos créditos autorais da versão gravada pela cantora e atriz negra Lena
Horne, em álbum de 1964 intitulado Here’s Lena Now! a seguinte autoria: Adolph Green,
Betty Comden, Jule Styne, com arranjos de Lennie Hayton e Ray Ellis.
Um dos poucos cineastas a quem Jean-Luc Godard dedica sua(s)
História(s) do cinema (1998), junto ao brasileiro Glauber Rocha e ao norte-
americano John Cassavetes, Alvarez só iniciou sua prolífica carreira a partir
dos quarenta anos de idade, tendo feito, antes disso, entre outras coisas,
trabalhos braçais e estudos nos Estados Unidos, realizado militância de
esquerda e trabalhado no arquivo de discos de uma rádio cubana — atividades
realizadas antes da revolução, que podem ajudar a compreender aspectos
importantes de sua obra, como veremos. Em cerca de trinta anos, realizou
por volta de 600 cinejornais, das 1.500 edições do Noticiário ICAIC Latino-
Americano, coordenado por ele, tendo dirigido 96 filmes e alguns vídeos. Esse
vasto cinema de massas, de caráter oficial ou oficioso, é também um cinema
de vanguarda, realizado por um documentarista capaz de confessar, contra a
crença na suposta objetividade do gênero:

Creio que a gente deve se meter dentro das coisas. Eu não creio na
objetividade de ninguém, nem de nada [...]. Eu sou sempre muito
subjetivo. Eu sou muito parcial… Faz falta levar por dentro um cenário
de experiências acumuladas, de inquietudes e angustiosas vivências…
Daí que a angústia, o desespero, a ansiedade sejam recursos inerentes
a toda motivação de qualquer cineasta do Terceiro Mundo. (Dorr, s.d.,
p. 10)

O que mais chama a atenção em todo o vasto trabalho de Alvarez é


justamente sua qualidade, da qual trataremos. Afinal, “a quantidade está
na qualidade”, como afirma Glauber, em seu documentário-ensaio, ou
antidocumentário, Di, a respeito do que chamou de “montagem nuclear”.
Esta, inclusive, pode ser relacionada ao método de Alvarez na realização
de seus filmes. Neles, muitos materiais diversos são utilizados, como numa
economia de dispêndio, e não só por sua variedade, mas pelo que têm de
qualitativamente necessário. A experimentação estética não é um gratuito jogo
de linguagem, nem se deve a um mero uso de efeitos técnicos; corresponde
a uma experimentação política, que não deixa de ser lúdica e apresentar sua
dimensão subjetiva.
Apesar do apoio estatal recebido, a falta de certos recursos caracteriza
também seu trabalho, que soube transformar urgência e precariedade em
alta criatividade. Não se trata de traçar uma linha direta entre a situação
político-social e o estado das artes; entretanto, é possível perceber no
cinema novo cubano, que nasce com a revolução, um balanço análogo ao da
nascente sociedade de Cuba: ambos, cinema e sociedade, exigem a ousadia

184
da improvisação e o cuidado do planejamento. Inclusive, os primeiros
momentos pós-revolucionários costumam propiciar efervescência cultural
e artística, antes que, com a institucionalização de regimes políticos, haja o
risco de emperramento burocrático, de acomodação, e surjam os entraves do
autoritarismo. Lembremo-nos da situação das artes na extinta União Soviética,
em cujos primórdios houve correspondência entre vanguarda artística e
vanguarda política: no cinema, por exemplo, surgiram Eisenstein e Vertov;
na poesia, Maiakóvski e Khlébnikov. Mesmo não tendo passado por algo
como o stalinismo, o processo político cubano teve seu ímpeto transformador
diminuído com as dificuldades de estabelecimento e consolidação do regime,
e o violento combate que lhe deram os Estados Unidos. Diversas atividades de
Cuba, inclusive as artísticas e cinematográficas, se ressentiram disso a partir
de 1970.
John Mraz identifica duas fases na obra de Alvarez, sendo que a dos
anos 1960 seria caracterizada pela criatividade revolucionária, enquanto que
a partir daí haveria um decréscimo na ousadia artística do cineasta, devido
à institucionalização do regime revolucionário (Mraz, 1990, p. 131-149). Um
exemplo disso seria a maior presença da figura de Fidel Castro nos filmes
feitos a partir de 1970, reforçando a institucionalidade através do culto à
personalidade, justamente quando diminuem os ousados efeitos estilísticos
que caracterizavam a obra anterior de Alvarez, na qual a imagem do líder
revolucionário era uma entre muitas outras. Entretanto, é preciso relativizar a
rígida divisão feita por Mraz entre as duas fases identificadas no trabalho do
cineasta, pois certos recursos da primeira fase continuaram a ser utilizados na
segunda. Por exemplo, em um de seus últimos trabalhos, Imagens do futuro
(1992), e o primeiro a ser feito em vídeo, porque em Cuba não havia filme
virgem para os documentários, Alvarez junta música iorubá a um discurso de
Fidel, o que causou grande espanto. Dizendo aos seus companheiros que não
havia enlouquecido, explicou-lhes, segundo sua mulher Lázara Herrera: “Fidel
é um grande bruxo, e essa é a música que me soa na cabeça” (Herrera, 1999,
p. 57). Quanto ao “culto à personalidade”, Alvarez respondeu em um debate na
Espanha que “o mal é cultuar-se a gente que não o merece” (Labaki, s. d., p. 77).
O primeiro ato do Governo Revolucionário da República de Cuba,
no campo da cultura, foi a criação do ICAIC (Instituto Cubano de Arte e
Indústria Cinematográficas), logo após a tomada do poder, no início de 1959.
O novo cinema cubano congregou cineastas muito diversos entre si, todos
mais ou menos partícipes de um esforço coletivo de construção de uma nova
sociedade, e que não abriam mão da independência e excelência estéticas de
seus filmes, nem eram obrigados a isso. Tomás Gutiérrez Alea, Julio García

185
Espinosa, Humberto Solás, Manuel Octavio Gómez, Sara Gómez, entre outros,
criaram, ao lado de Santiago Alvarez, um dos cinemas mais fortes e ousados
da América Latina, surpreendendo o mundo por não rezarem por nenhuma
cartilha realista-socialista, mesmo porque esta não existia em Cuba. Por isso, foi
possível a um cineasta como Guillén Landrián realizar Coffea Arábiga (1968),
um documentário pop-tropicalista sobre o café, experimental e irreverente até
as raias do absurdo.
Retomando o dado do início deste artigo, notamos que o cinema de
Alvarez, que pode ser considerado politicamente dogmático, é esteticamente
antidogmático e aposta na hibridez de recursos e elementos significantes
para acentuar sua posição, tornando mais clara a significação dos filmes. Não
há aposta na ambiguidade do significado, como no filme de Guillén, acima
referido. Através do controlado alargamento significante, em Alvarez temos
o ortodoxo que resulta do heterodoxo e do paradoxo. Outro de seus filmes
mais importantes, Now (1965), constrói-se em torno de uma canção norte-
americana (de protesto, neste caso), para tratar das lutas pelos direitos civis
dos negros nos Estados Unidos e da brutal repressão por eles sofrida. O curta,
de apenas cinco minutos, mostra que se as políticas desse país e muito de seu
modus vivendi são condenáveis isso não significa que vários aspectos de sua
cultura popular ou pop não sejam relevantes. Santiago Alvarez apropria-se de
elementos da cultura norte-americana para atacar as políticas e alguns aspectos
da vida social e cultural nos Estados Unidos. Citemos a fórmula legal que os
norte-americanos gostam de repetir em alguns de seus filmes criminais: “Tudo
o que você disser pode ser usado contra você”. O documentarista cubano volta
contra o capitalismo algumas de suas armas.

Agit-pop e arte pobre


Observamos uma importante relação entre o pop e o cinema de Alvarez,
que cabe considerar. Pois o termo pop tanto pode ser abreviatura de popular,
qualificando a cultura de massa, quanto principalmente pode significar
explosão, instantaneidade e urgência — características importantes do cinema
de Alvarez, o qual participa estética e politicamente da atmosfera mundial
dos anos 1960, em que o pop surge como forma e informação privilegiadas
dos signos em circulação no período. O pop torna-se uma das linguagens
artísticas internacionais mais entranhadas na vida das pessoas, graças ao
desenvolvimento dos media, no momento em que o imperialismo inicia o
que passamos a chamar de globalização. Rádio, imprensa, cinema, TV, discos,

186
quadrinhos, moda, publicidade e mesmo algo da literatura dos anos 1960
mostram que o pop não está restrito às galerias de arte. Está no ar dos tempos
e no comportamento cotidiano.
Entretanto, se nos Estados Unidos, e na Europa, o pop surge como
complemento estético da sociedade de consumo, como seu apanágio e
seu remate em arte, no caso do Brasil o pop é suplemento estético de uma
sociedade de consumo ainda incipiente, dependente e excludente, e no caso de
Cuba é suplemento estético de uma sociedade de pós-consumo, anticonsumo
e falta de consumo. Vindo suprir, no campo artístico, as lacunas e distâncias
entre o grand mond do consumo internacional, que se estende a setores locais,
e o vasto mundo de privações e injustiças vividas localmente pelas grandes
maiorias, as apropriações do pop na América Latina exploram justamente
essas lacunas e distâncias, assumindo a falta e o dilaceramento como atitudes
críticas, às vezes de zombaria.
No pop norte-americano e no europeu a dimensão crítica, se existe,
quase sempre é anulada pela frieza e assepsia com que a arte se coloca junto
à série social, como se fora neutra. Na sociedade da superprodução e do
consumo, supostamente “para todos”, finalmente a mercadoria revela-se
como fetiche, através da arte pop, duplicando-se o fenômeno: a representação
da mercadoria, ironicamente, é mais uma mercadoria. Parodiando aqui a
legenda colocada por René Magritte em sua pintura de um cachimbo (“isto
não é um cachimbo”), podemos dizer a respeito da obra de Andy Warhol que
“isto não é uma lata de sopa, mas ainda é uma mercadoria”. O pop pobre da
América Latina, sendo mais diretamente politizado, contamina-se por outros
aspectos do político-social, fazendo o fetiche da mercadoria, mostrada como
objeto sórdido, não asséptico, voltar-se contra o feiticeiro, que é o mercado
capitalista em seu jogo de inclusão e exclusão, jogo escamoteado pelos truques
sedutores da prestidigitação publicitária. É importante perceber que as formas
disparatadas do grotesco, tão características do Tropicalismo, “uma variante
brasileira e complexa do Pop, na qual se reconhece um número crescente de
músicos, escritores, cineastas, encenadores e pintores de vanguarda” (Schwarz,
1978, p. 71), assumem papel alegórico e também têm importante função na obra
sessentista de Alvarez, sendo que ambas as manifestações, ou contrafações, do
pop na América Latina mostram-se como práticas artísticas e contradiscursos,
cujos produtos artísticos revelam tanto prazer quanto asco no trato com os
materiais que são apropriados para a realização da obra.
No Tropicalismo, a ambiguidade ocorre, entre outras coisas, porque se
combate o consumo dentro do consumo, principalmente se considerarmos
suas canções, enquanto que em Alvarez esse combate ocorre com a produção

187
de objetos que não se propõem como mercadorias, mas nascem da apropriação
pirata de fragmentos do pop internacional na composição de algo diferente.
Surge um cinema que se caracteriza por ser um produto híbrido da vanguarda
(política e estética) e do pop, que poderíamos chamar de agit-pop, a partir do
nome abreviado dado às atividades revolucionárias de agitação e propaganda
marxistas: agit-prop. “Sou um agitador profissional. Considero-me um
panfletário que, antes de tudo, tem uma concepção política de tudo o que
faz”, diz Alvarez, em uma entrevista (Dorr, s. d., p. 11). Seu cinema realiza
o consumo do consumo, sendo este não mais compreendido no sentido de
um aproveitamento de produtos que visa alimentar o processo capitalista;
trata-se da devoração estética do consumo, da destruição também política
desse processo para fomentar um outro processo, produtivo: um consumo
anticapitalista, que afirma o valor de uso contra o valor de troca, voltando o
fetiche contra o feiticeiro da mercadoria.
No caso de Now, há uma anedota muito significativa a respeito disso.
Ao realizar o curta, Alvarez pediu autorização à cantora norte-americana
Lena Horne, para utilizar a canção de mesmo nome, por ela gravada em 1963.
Concedida a autorização, o diretor simplesmente ignorou a cobrança da taxa
feita pela companhia que detinha os direitos sobre a canção, argumentando que
ela pertenceria “ao povo” (Mraz, 1990, p. 149). É muito comum a afirmação de
que Now é um precursor do videoclipe, de modo que, ironicamente, seria então
um velho militante comunista cubano o patrono de um importante veículo
da música pop, da canção tornada mercadoria para consumo principalmente
da juventude mundial. De fato, trata-se de um cineclipe, uma colagem de
imagens de procedências diversas, coreografadas segundo o ritmo blues-
rock-soul-pop jazzístico de uma versão engajada da antiga canção hebraico-
ucraniana Hava Nagila, feita pelo vibrafonista Lionel Hampton e interpretada
pela cantora Lena Horne. O nome da canção, “Now”, dá título ao filme, e seu
ritmo também corresponde à urgência política requerida pelos sofrimentos
e lutas dos afro-americanos em uma sociedade racista e violenta. O tempo
do filme corresponde aproximadamente ao da canção, e o curioso é que Now
surgiu dos Noticieros do ICAIC, braço audiovisual do Estado. Portanto, visaria
informar (e mais do que informar) os cubanos sobre as lutas dos negros contra
o racismo e a injustiça social existentes nos Estados Unidos, fazendo isso
justamente por meio audiovisual, sem a tradicional narração com voz off, ou
over, através da qual se “explicaria” o que a tela mostra e, aí, o que nela se
mostra seria ilustração da fala.
Em toda a obra de Alvarez, quase não há esse recurso narrativo tão
comum nos documentários e ainda mais nos noticiários. Imagens e sons, por

188
si, significam e cuidam de informar e convencer o público. No caso de Now,
as três letras do título surgem, ao final do filme, como se fossem escritas à bala
de metralhadora, pois ouvimos os tiros e vemos, por um efeito, os buracos
dos projéteis. Quando há intertítulos nas películas, estes servem à informação,
à agitação e à propaganda e principalmente surgem na tela como imagens.
Em 79 primaveras, por exemplo, os intertítulos “encenam” o que afirmam,
como quando se lê e se vê uma frase de Ho Chi Minh (“que a divisão do
campo socialista não escureça o futuro!”), a qual se fragmenta, sendo que os
pedaços se recompõem depois. Entre esses dois momentos, há uma sequência,
magistral, em que o filme não só mostra imagens fílmicas da guerra do Vietnã,
mas as despedaça, através de trucagens, como se a própria película estivesse
em um combate violento.

A “documentarurgia” poético-didática
Conforme se sabe, o audiovisual é muito convincente em sua tarefa
de “ganhar” o espectador, conduzindo sua atenção, e o laconismo verbal de
muitos filmes do cineasta cubano é compensado por sua veemência, precisão
e beleza cinematográficas, justamente em uma cultura, como a de Cuba,
marcada pelo verbalismo, pela força da palavra. Entretanto, outros aspectos
dessa cultura alimentam a obra de Alvarez, como sua musicalidade, seu gosto
pelo movimento coreográfico e pela graça do gesto espontâneo e significativo.
Sem dúvida, Santiago Alvarez é um dos maiores mestres mundiais do ritmo
cinematográfico. Seu sentido rítmico articula, desarticula e rearticula os
elementos imagéticos e sonoros, tornando-os elementos “dramáticos”, sendo
que um joga com/contra o outro na “cena” documental. Num processo de
intertextualização radical, Alvarez filma fotos, textos e desenhos (inclusive
de revistas e jornais), e utiliza, de diversas maneiras, trechos de outros
filmes, fazendo deles “personagens” de seus documentários, graças ao ritmo
da montagem, da colagem e da trilha sonora. Uma interessante concepção
dramatúrgica de documentário é fornecida pelo próprio cineasta, mas a
analogia que ele faz com o teatro é apenas metafórica, pois seu cinema
parte dos noticiários, que inicialmente eram politemáticos e passaram a ser
monotemáticos, conforme Alvarez explica em entrevista a Amir Labaki.

O noticiário monotemático vem quase a ser um documentário.


Existe uma “documentarurgia”, uma dramaturgia do documentário,
que tem suas origens no noticiário. Quando um noticiário deixa

189
de estar subdividido em várias notícias e se produz somente uma
informação mais estruturada e profunda, ela se converte em noticiário
monotemático, e ao ser monotemático reflete uma das características do
cinema documentário (Labaki, s. d., p. 44).

O trabalho com um único tema faz com que o diretor explore as


potencialidades “dramáticas” desse tema, a ser trabalhado para além dos
limites do noticiário e do documentário tradicionais. Mesmo em um filme
como Cerro pelado (1966), em que há menos planos de inserção, trucagens
e colagens, tão comuns nas películas de Alvarez, a dramatização é evidente
na montagem musical do documentário. O cineasta cubano não desenvolve
teoricamente a interessante perspectiva supracitada, mas convém alertar
que a dramaturgia de seus documentários evidentemente não consiste na
dramatização de situações, através de atores, por exemplo. Ela é como uma
mise-en-scène de elementos documentais (como imagens fotográficas ou
cinematográficas de John Kennedy, por exemplo), que contracenam com
outros elementos, “dramáticos”, tornados documentais (como uma cena de
um filme de aventuras, em que um homem dispara uma flecha), de modo a
tratar do assassinato do presidente norte-americano em L.B.J., de 1968. O todo
compõe o “drama” documental, em que uma foto não apenas pode mostrar
um gesto, mas principalmente tornar-se ela mesma um “gesto” dramático do
documentário. Outros desses gestos são os diversos tipos de música, ruídos e
demais elementos que compõem as colagens de seus filmes: letreiros, grafismos,
desenhos, pinturas e trucagens diversas têm papel dramático equivalente ao
das imagens humanas flagradas em filmes ou fotos. Mraz denomina “forma
dramática” ao estilo de montagem que caracteriza o trabalho de Alvarez na
década de 1960, a partir do “princípio dramático” da montagem eisensteiniana,
segundo o qual o dramático no cinema resultaria da colisão e justaposição de
planos independentes (Mraz, 1990, p. 133).
Note-se o efeito de dramatização propiciado pela atividade de recortar
fragmentos e colá-los em outro espaço, numa apropriação de recursos pop que
é outra atividade pop, desautomatizadora do ponto vista estético e político:
em Cómo, por qué e para qué se asesina un general (1971), que já denuncia a
participação da CIA nas atividades de desestabilização do governo de Salvador
Allende, no Chile, dois anos antes do golpe brutal que instalaria a ditadura
no país, fotos de mulheres seminuas, tiradas da revista Playboy, sugerem
a sedução artificiosa, que faz parte das tarefas do serviço secreto norte-
americano no cumprimento de sua missão a qual também inclui o assassinato
político, como nos filmes de espionagem, à la 007. Esse sinistro aspecto

190
encoberto é sugerido pela inserção no filme de trechos de um documentário
científico sobre aranhas venenosas, sendo que uma delas aparece em close-
up realizando suas atividades peçonhentas. Tais imagens, ritmadas por uma
música climaticamente aliciante, surgem com e sem legendas informativas,
com alguma locução off, e se intercalam a imagens de noticiários, de jornais e
entrevistas com Salvador Allende. O didatismo e a objetividade propostos pelo
título do filme não excluem o experimentalismo agit-pop, que até os reforça,
graças ao papel dramático jogado pelos elementos experimentais. Estes, que
de outro modo pareceriam estranhos em um documentário tradicional, além
de sua função dramática, são convocados também por sua eficácia poética,
constituindo-se em metáforas cinematográficas.
O documentário de Alvarez é também poético, como aponta Amir
Labaki ao se referir às “rimas imagéticas” e à montagem metafórica, tão
presentes em seus filmes e que também remeteriam a Eisenstein (Labaki,
s. d., p. 15). Há muitos exemplos de continuidade gráfica entre planos diferentes
estabelecida por esse processo poético metafórico e metonímico de instauração
dramática da significação na obra de Alvarez. Identificamos, em Now, um
plano de um documentário nazista em que aparece uma suástica negra sobre
o círculo branco de um estandarte, enquanto no plano seguinte há a imagem
do rosto de uma criança negra, ferida, com um esparadrapo branco na testa,
o qual remete, por seu formato em cruz, à suástica. Em vez de dizer que o
racismo norte-americano tem caráter fascista, e de mostrar isso simplesmente
como se fosse possível, o documentário demonstra isso, criando tal relação
visual e graficamente, concretizada metafórica e metonimicamente pelas duas
imagens justapostas. Mais adiante, no filme, outro plano confirmará, numa
síntese, o que se quer demonstrar: dois encapuzados da Ku Klux Klan, secular
organização de brancos racistas dos Estados Unidos, aparecem numa foto ao
lado de uma bandeira com a suástica. Depois, uma foto mostra seu sinistro
ritual, em que uma cruz é queimada e, junto a outras imagens, surge a de um
corpo de um negro carbonizado em um linchamento.
Confirmando-se que em Now não se fez uma colagem a esmo, apenas
segundo o ritmo da canção e o tema geral do documentário, observe-se o
valor poético (e político) das metáforas e metonímias visuais que compõem o
filme. Nosso olhar é atraído pelas expressões dos rostos e corpos nas cenas de
revolta e repressão mostradas, mas o que o filme sutilmente mais explora são
os detalhes das mãos, principalmente na sequência final. Os trechos de outros
filmes e as fotos que a compõem foram escolhidos provavelmente porque nelas
as mãos dos negros aparecem de diversas formas significativas: abertas em
desamparo, cruzadas em desespero, amarradas para o linchamento, enlaçadas

191
em solidariedade, levantadas e fechadas em manifestação, unidas por correntes
em protesto. No fim, são justapostas as fotos de um homem, uma criança e uma
jovem com os punhos cerrados, sendo que a última aparece com o braço erguido.
Em Hanoi Martes 13 (1967), um primeiro plano mostra os delicados
movimentos da mão de uma dançarina ao som de uma música suave, ao qual
se segue um plano estrondoso de bombardeio. Após a sequência, e as duras
consequências, do ataque, vemos uma mulher alimentar um cachorrinho junto
às ruínas de um templo. Dentro dele, está caída no piso a mão de uma estátua,
e uma escultura religiosa tem uma das mãos erguida à altura do peito; a outra,
que falta à escultura, percebe-se, é a que apareceu antes, e seu gesto remete
ao da mão da dançarina. Não é difícil associar essas imagens às mãos das
pessoas que aparecem no documentário, passeando, divertindo-se, comendo,
trabalhando, atirando, dando sinais de desespero, socorrendo as vítimas.
Também são poéticos os usos das formas redondas dos objetos, como
os grandes e belos chapéus dos vietnamitas mostrados em relação às manilhas
usadas na feitura de abrigos antiaéreos, às rodas de bicicletas, aos pratos, às tigelas
e panelas. Nesse filme, Alvarez documenta, in loco, o primeiro bombardeio norte-
americano a Hanói, feito com duzentos aviões B-52. Através da câmera de corda
do cinegrafista Iván Nápoles, e sem gravador, pois não havia, registra-se a dura
vida cotidiana de um povo paupérrimo e delicado, mas forte, em luta contra a
agressão da maior potência econômica e militar do mundo. Ao som da música
de Leo Brouwer, cubano que utilizou instrumentos vietnamitas para fazer a
trilha sonora do filme, a elegância e a dignidade com que o cineasta mostra a
elegância e a dignidade desse povo, em um momento tão terrível de sua vida,
fazem de Hanoi Martes 13 uma obra única sobre a guerra: “Tanta violência, mas
tanta ternura”, diríamos com o poeta Mário Faustino.

A ficção que há dentro de toda realidade


Alvarez, apesar de seu cinema ser aparentemente pouco “literário”,
embora seja certamente poético, afirma gostar mais de ler romances do que de
ver filmes (Labaki, s. d., p. 90) e, para realizar um de seus raríssimos trabalhos
de “ficção”, o curta El sueño del pongo (1970), fez a adaptação de um conto
baseado na tradição indígena, quéchua, escrito por José María Arguedas,
escritor e poeta peruano que se suicidou pouco tempo antes, em 1969, havendo
pouca diferença entre os recursos experimentais de seus documentários e essa
experiência baseada em obra literária, exceto pela leitura do texto de Arguedas,
na voz de uma criança. Alvarez explica sua dedicação ao documentário em

192
termos de urgência social, política, poética e existencial: “Quero participar
do que faço. Faço cinema documental porque a ficção demora. Se eu fizesse
normalmente algo que dura dois ou três anos, eu morreria” (Labaki, s.d.,
p. 95). Em outro depoimento, afirma:

Como aventureiro nato e neto que sou, sem prejuízos de concepções


sobre o que isto possa significar para alguns teóricos, a ficção que há
dentro de toda realidade me atrai mais que a ficção que possa estar
dentro da própria ficção. Descobrir o desconhecido e compartilhar esse
descobrimento; registrar o conhecido, enriquecê-lo, dominá-lo, mesclá-
lo e transformá-lo em uma nova dimensão dessa realidade… buscar algo
extraordinário, extraído do mais ordinário, observar o que os outros
olham e não percebem, tratar de transmitir a essência do acontecimento
e não somente sua descrição… O roteiro de meus documentários não
sou eu que ponho, quase sempre o põe o inimigo...” (Dorr, s. d., p. 11)

Algum “inimigo” poderia afirmar sobre os filmes de Alvarez que eles


pouco concedem voz ao outro, pois neles se trataria de defender posições fixas e
predeterminadas, ainda que de modo e forma pouco ortodoxos. Apesar de esse
cinema militante correr o risco de ser acusado de descambar para a univocidade
do poder, quando quer ser o porta-voz de uma coletividade uníssona, percebe-
se através dele que um documentário não pode simplesmente “conceder” voz
a alguém, mesmo porque isso significaria que quem a detém é o realizador
do filme, seu diretor. Este, seja em que tipo de documentário for, mesmo no
mais polifônico, é quem escolhe quem fala, ou se move; ele é quem determina
e orienta a participação do outro no documentário, desde a filmagem, e define
sua inserção final e seu lugar na fita, através da montagem ou edição. Mas é
preciso que esse outro esteja ali e haja alguma comunhão, ou algum conflito,
com ele, para que se faça o filme. É significativo que o último documentário
cinematográfico de Alvarez, Perdedores? (1991), sobre os atletas derrotados
nos Jogos Panamericanos, realizados em Cuba, coincida com o fim do
Noticiário ICAIC Latino-Americano, devido à crise econômica desencadeada
pela decadência e fim da União soviética e do bloco socialista europeu, sendo
que isso poderia permitir uma leitura alegórica do documentário, cujo título é
marcado por uma interrogação inconformista.
Caso raro de um “cinema de autor” que é também cinema estatal
oficioso, os filmes de Avarez escancaram o que outros tipos de documentários
e noticiários normalmente escamoteiam: sempre se toma uma posição, ou mais
de uma, e não há documentário ou noticiário que não nasça da manipulação
de seu material — imagens, efeitos, letreiros, vozes, música e outros sons

193
orquestrados, submetidos a um ritmo, ou a vários. Sobrevive ao seu tempo
quem é contemporâneo dele, quem é capaz de tomar-lhe o pulso, sentir seus
ritmos, torná-los próprios. Por isso, os filmes de Alvarez, tão urgentes e colados
à época, às condições e aos lugares de seu compromisso e missão, podem ser
vistos hoje com deslumbramento e ainda atiçar a inteligência dos espectadores,
por seu discernimento, sua paixão.

Referências
CASTILLO, Luciano; HADAD, Manuel. Una entrevista inédita: Santiago Alvarez
(1919-1998): El documental como una actitud ante la vida. Cine Cubano, La Habana,
n. 145, p. 46-51, julio-septiembre 1999.
DORR, Nicolás. Introducción y epílogo a un soliloquio de Santiago Alvarez sobre
dramaturgia y poesía. Cine Cubano, La Habana, n. 138, p. 11, s. d.
HERRERA, Lázara. Un hombre y nada más. Cine Cubano, La Habana, n. 145, p. 52-
60, julio-septiembre 1999.
LABAKI, Amir. O olho da revolução: o cinema-urgente de Santiago Alvarez. São
Paulo: Iluminuras, s.d.
MRAZ, John. Santiago Alvarez: from dramatic form to direct cinema. In: BURTON,
Julianne (Org.). The social documentary in Latin America. Pittsburgh: University of
Pittsburgh Press, 1990, p. 131-149.
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: ______. O pai de família e
outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 61-92.

Referências filmográficas
ALVAREZ, Santiago. 1965. Now. Cuba, 35mm, P&B, 6 min.
ALVAREZ, Santiago. 1966. Cerro Pelado. Cuba, P&B, 35 min.
ALVAREZ, Santiago. 1967. Hanoi Martes 13. Cuba, 35mm, P&B e cor, 38 min.
ALVAREZ, Santiago. 1968. L.B.J. Cuba, cor, 18 min.
ALVAREZ, Santiago. 1969. 79 primaveras. Cuba, P&B, 25 min.
ALVAREZ, Santiago. 1970. El sueño del pongo. Cuba, P&B, 8.19 min.
ALVAREZ, Santiago. 1971. Cómo, por qué e para qué se asesina un general. Cuba, P &
B, 36 min. ALVAREZ, Santiago. 1991. Perdedores? Cuba, cor, 11 min.
GODARD, Jean-Luc. Histoire(s) du Cinéma. Paris: Gaumont, 1998 (Coffret de 4
videocassetes, cor, P&B, 4h24 min.).
LANDRIÁN, Guillén. 1968. Coffea Arábiga. Cuba, P&B, 18 min.

194
O gesto como figura no pensamento

Fabian Goppelsröder

Introdução
Nos últimos anos, o gesto se estabeleceu como objeto e conceito da
filosofia, dos estudos.culturais e das ciências sociais. No gesto, em especial,
parece condensar-se o desejo virulento — de diferentes disciplinas e contextos
de pesquisa — por uma nova compreensão do papel do corpo e da sensualidade
para a relação humana com o mundo, a cognição e o conhecimento. Uma
reorientação pragmática das humanidades coloca sob os holofotes questões
envolvendo as atividades de agir, executar e proceder. E, junto com elas, a
questão do gesto.
O gesto se estabeleceu como objeto e conceito da filosofia, das artes,
dos estudos culturais e das ciências sociais de uma maneira que parece trilhar
diretamente para as disciplinas clássicas, ampliando suas fronteiras com novas
perspectivas de pesquisa.1
O responsável pelo sucesso desse fenômeno que por longo tempo foi
negligenciado é obviamente a reação ao engessamento linguístico e à falta de

1
Ver, entre outros, Schmitt, 1991; Bremer, Roodenburg, 1991; Flusser, 1994; Müller, 1998;
McNeills, 1995 e 2005; Kendon, 1997 e 2004; Egidi, 2000; Chastel, 2000; Bickenbach,
Klappert, Pompe, 2003; Rösch, 2005; Görling, Skrandies, Trinkaus, 2009; Wulf, Fischer-
Lichte, 2010; Richtmeyer, Goppelsröder, Hildebrandt, 2014.
Fundada em 2002, a International Society for Gesture Studies (ISGS) [Sociedade Internacional
para os Estudos do Gesto], que edita a revista Gesture [Gesto], juntamente com o Berlin
Gesture Center [Centro Berlinense do Gesto], que existe há vários anos, dão testemunho
da institucionalização criteriosa da pesquisa envolvendo o gesto, do mesmo modo como
a revista Geste [Gesto], editada em Paris pela Association gestuelle [Associação Gestual],
também se empenha pelos aspectos mais marginais, não canônicos, do assunto.
consciência da presença, que podem ser entendidos como duplo legado do “giro
linguístico”. Contra a hegemonia da linguagem verbal e da proposição deve
reconquistar espaço a peculiaridade da comunicação corporal; em oposição à
referência simbólica, devem ser retomadas as dimensões do significado que se
manifestam esteticamente e pela plenitude presencial.2
Se, por um lado, o gesto foi por muito tempo considerado justamente
pela Linguística apenas como um acompanhamento não-verbal da linguagem
em palavras, por outro, seu significado antropológico fundamental está sendo
considerado somente no âmbito de uma reflexão sobre a multimodalidade da
comunicação humana.3
Trata-se de uma abordagem que, pela ótica transdisciplinar, confere um
novo peso ao discurso gestual no campo específico dos estudos culturais e das
ciências sociais. A pesquisa sobre performatividade, emprestada da filosofia da
linguagem de Austin pelos estudos culturais, que a reinterpretaram, lança mão
do gesto para buscar alcançar um nível na execução, que não pode ser atingido
proposicionalmente e nem determinado pela incorporação discursiva do ato,
mas que pode gerar significado por si mesmo e à sua maneira.4 Os gestos
são entendidos como um “desempenho cultural relacionado a um contexto”
(Wulf, Fischer-Lichte, 2010, p. 9-17). Dessa maneira, eles resistem a uma
codificação geral, destituída de diferenciações de situação, e tocam a questão
da singularidade da percepção sensorial.
Com isso, porém, a discussão envolvendo o gesto também se conecta com
o debate não menos virulento acerca do significado cultural e epistemológico
da imagem.5 O caráter de oposição, a atividade autocentrada e a vitalidade do

Ver em particular as recorrentes intervenções de Dieter Mersch (2002a, 20023b, 2010).


2

E também os filósofos da Presença Steiner (1989) e Gumbrecht (2004) situam-se nesse


contexto. Conferir também Goppelsröder, Beck (2014) e Sternagel, Goppelsröder (2016).
Ver, entre outros, Adam Kendon, 2010, p. 21-41. Para mais detalhes consultar Tomasello,
3

2008. Fundamentais neste contexto são os trabalhos de Leroi-Gourhan (1964-1965).


Dentre a extensa bibliografia existente sobre o tema, ver, por exemplo, Hempfer, Volbers,
4

2011, assim como Fischer-Lichte, 2012.


Nos últimos anos, a relevância epistêmica da imagem, como uma “lógica peculiar do
5

pictórico”, despertou um debate no contexto da emergente “ciência pictórica” e da chamada


“iconic turn” (ou virada icônica), que, não obstante todos os importantes impulsos que
acarretou, corre permanentemente o risco de atrelar seus argumentos demais às mídias. Meu
projeto busca justamente explorar o gesto como uma possibilidade de relacionar este outro
conhecimento não tanto a um único suporte de arte, mas à dimensão anistética das artes
como tal, pensando esse conhecimento em primeira linha como baseado na prática em vez
de orientado pela mídia.

196
visual não são mais expressas enquanto incorporação estética do autêntico, e
sim no seu papel constitutivo para a compreensão do mundo. A “externalidade
dos fenômenos imagéticos” já não pode ser retornada “para uma imanência
do significado linguístico” defende Gottfried Boehm em 1978 (Bohem, 1978,
p. 444-471), buscando com isso especialmente uma apreciação das formas de
produção de sentido e de organização laterais da imagem, que ele, recorrendo
a sua concepção do diferencial icônico, estende em última análise também ao
gesto (Bohem, 2007, p. 19-33). Mas é justamente o ponto de partida do próprio
Boehm, ancorado na hermenêutica filosófica, que também evidencia não
tratar-se aqui da contraposição de diferentes mídias, umas disputando contra
as outras — imagem versus texto, assim como visualidade contra linguagem –;
o que está em jogo, isso sim, é a questão de uma outra episteme, presente no
gestual passando por todas as mídias.
Observando-se a discussão sobre o gesto atualmente em curso, percebe-
se duas coisas: primeiro, o gesto é um conceito poderoso, capaz de abrir novas
perspectivas transdisciplinares e, em particular, consegue formular de modo
inovador e incisivo a questão acerca do papel constitutivo do sensorial para
a relação humana com o mundo, e para nossa percepção e conhecimento.
Em segundo lugar, no entanto, a fala do gesto permanece peculiarmente
inacessível. A obviedade com que a palavra é usada disfarça o fato de que não há
efetivamente um conceito uniforme do gesto — e é possível que nem não possa
haver. O gesto nem se limita a ser fenômeno nem constitui simplesmente um
conceito filosófico passível de definição. Ele ocupa um espaço intermediário que
ainda aguarda ser especificado com mais precisão. Ao invés de compreender o
gesto apenas como um movimento do corpo humano, iremos propor a seguir
que ele deve ser encarado como uma figura de pensamento, como um recurso
visual e cinestésico, que de uma maneira própria permite e põe em movimento
processos de pensamento e de percepção.

I
O que significa entender o gesto como um recurso a serviço da
constituição do conhecimento e da percepção? Em que medida uma figura do
pensamento pode incorporar uma organização de conhecimento filosófico-
metodológico incompreensível pelos moldes das categorias convencionais? De
que maneira ela pode interligar os aspectos anistéticos e teóricos, a intuição e
o conceito?

197
Uma primeira iniciativa para responder justamente a essas perguntas
pode ser encontrada na obra tardia de Maurice Merleau-Pontys. No final da
terceira seção do seu último ensaio publicado em vida, O olho e o espírito, ele
afirmou: “essa filosofia por fazer é a que anima o pintor, não quando exprime
opiniões sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se faz gesto, quando,
dirá Cézanne, ele ‘pensa por meio da pintura’” (Merleau-Ponty, 2013, p. 28).
Esta observação é uma conexão certeira da crítica de Merleau-Ponty à visão de
mundo intelectual com sua demanda, fundamental nas suas reflexões desde
o início, por uma nova filosofia. O pensamento dualista no geral nada mais
seria do que a reação encabulada à constatação de que o mundo não pode ser
liquefeito e vazado para o âmbito do inteligível sem que haja perdas,6 e que o
sentido, que dele brota de maneira imanente, não pode ser abstraído do “tufo
vivo da percepção” (Merleau-Ponty, 1999, p. 68). A fim de rastreá-lo no campo
experiencial de sua origem, a filosofia, enquanto atividade humana, deve encarar
sua própria finitude, deve colocar sob sua mira o logos in statu nascendi.
O significado disso Merleau-Ponty desenvolve principalmente em sua
análise da pintura de Paul Cézanne. O trabalho de Cézanne não pode ser
abordado com a ajuda das alternativas, supostamente inevitáveis, de sentidos
versus intelecto, ou pintor que vê versus pintor que pensa.7 Cézanne não pensa
a paisagem. A paisagem pensa a si mesma nele. Ele celebra o mistério da
visibilidade em vez de refletir sobre ele e análisá-lo a fim de eliminá-lo de seu
campo de visão. E é precisamente nisso que consiste seu caráter modelar. De
modo análogo, também a filosofia não deve ser teoria. Ela tem que transformar-
se em gesto.
Descartar a afirmação de Merleau-Ponty, tachando-a de metafórica,
equivaleria a perder de vista seu real sentido. Pois, embora ele parta da análise
da percepção, e com isso, claramente contraponha uma filosofia do corpo à
tradição intelectualista, ele não torna o corpo um adversário da mente. Pelo
contrário, também essa oposição precisa ser superada. O gesto torna-se
paradigma do pensamento não objetivador. O gesto tira a nitidez da fronteira
entre o signo e o significado, permanecendo no ambíguo e “tufo vivo da
percepção”, que é anterior à separação entre intelecto e sensualidade, e mantém
dentro desse emaranhado o que estiver relacionado a ele.

Ou, como mais tarde formulará a Filosofia da Percepção: “Chegamos à sensação quando,
6

refletindo sobre nossas percepções, queremos exprimir que elas não são absolutamente
nossa obra” (Merleau-Ponty, 1999, p. 66).
“Cézanne não acreditava que tinha que optar entre a sensibilidade e o pensamento, ou entre
7

caos e ordem.” (Merleau-Ponty, 1994, p. 39-59).

198
Assim, depura-se um emprego da palavra que decisivamente é distinto
do entendimento usual do gesto. Sem uma definição exata e sem determinação
final, torna-se uma espécie de catalisador e até uma condição para a
possibilidade de se pensar a nova filosofia, tal como Merleau-Ponty almejava.
O gesto marca-a como aquela em que se expressa a integração pré-conceitual
do homem no mundo.
No entanto, é precisamente sob este aspecto — e essa é a hipótese — que
a escolha do termo por Merleau-Ponty não é obra do acaso. Já a antiga retórica
não entendia o gesto, conforme se aprende em manuais, como uma execução
de um movimento padronizado da mão ou do corpo. Para ela, o gesto é
mais do que a produção de um efeito para reforçar aquilo que se diz, pois a
preocupação maior dela é com a formação abrangente do indivíduo. Somente
no contexto deste projeto filosófico-educacional o corpo se torna relevante
enquanto nível complementar de expressão. Os gestos estão ligados ao ethos
do falante. Somente quando ele desenvolve os movimentos, a postura, o uso do
corpo em conformidade com sua própria natureza, o efeito retórico pode ser
alcançado (Quintilian, 2011, p. 679; ver também Goppelsröder, Mersch, 2017).
O orador é parte integrante de um contexto mais amplo e apenas em harmonia
com ele seu discurso é convincente. Filosoficamente, o gesto transforma-se
numa cena na qual essa integração irredutível se manifesta como conditio
humana. Ele não é um mero signo, cujo significado elimina a performance,
e nem é simplesmente um evento físico-fisiológico. O gesto é o que estou
procurando abordar como uma figura de pensamento. Não se trata de uma
figura de linguagem nem de figura sententiarum no sentido técnico. Para
além da representação otimizada de ideias prévias, a figura de pensamento
é basilar para o autodesenvolvimento, a autorevelação de um pensamento
que não é mais um processo compreendido como abstrato, desvinculado
dos sentidos, mas como algo consistente e genuinamente sensorial. Jean-
François Lyotard formulou o conceito da figure de la pensée para circunscrever
a camada de movimento não representativo dentro de um discurso como
uma figuração temporária e pré-conceitual (Lyotard, 1971, p. 62).8 Ele toca

Exceto em Lyotard, a figura do pensamento, enquanto conceito filosófico-metodológico, até


8

agora quase não foi trabalhada. É verdade que, justamente com o advento do pós-modernismo
e da desconstrução, é possível encontrar a referência a “figuras” e “figurações” de conhecimento
e, por consequência, pelo menos retoricamente, a transição de fatos concretos para constelações
dinâmicas. Contudo, um exame exaustivo das possibilidades metodológicas e epistêmicas da
figura de pensamento ainda está por ser feito. Uma primeira abordagem mais básica do assunto
pode ser encontrada em André Reichert, 2013. Já em 2008, no volume 16 da revista Trajekte
[Travessias] publicada pelo “Center for Literary and Cultural Research” [Centro de Pesquisa

199
assim em uma dimensão que não se limita apenas a sensações que seriam
opostas ao intelecto, mas que deve ser entendida como a atitude em relação
ao mundo ainda não formatada conceitualmente. Contudo, no seu peculiar
entrelaçamento de natureza e cultura, de presença direta e codificação indireta,
de livre individualidade e prescrição do hábito, o gesto é figura de pensamento
de uma maneira especialmente paradigmática. E, como tal, está longe de ser
mero movimento da mão ou mero sinal de um movimento assim. O gesto
torna-se o motor de um pensamento, cuja dinâmica instaura o movimento não
direcionado no lugar do padrão lógico final.
Ao fazê-lo, parece conferir relevante sustentação ao excedente expe-
rimentado pelo ser humano na sua relação com o mundo, excedente esse que
caracteriza aquilo que chamamos de experiência estética. Frente a esse pano de
fundo o gesto enquanto figuração de um pensamento não proposicional seria
uma formação dinâmica de conhecimento no jogo de seus aspectos.

II
Até onde vimos, a determinação filosófico-metodológica do gesto como
uma figura de pensamento — que ainda a ser desenvolvida —, anda de mãos
dadas com a revisão e reavaliação das várias discussões que giram em torno
do gesto e que compreendem desde a antiga retórica até a sociologia e filosofia
da arte dos séculos XIX e XX. De forma sistématica é possível distinguir
especialemente três linhas de abordagem do gesto:
a) gesto como linguagem (universal) não verbal. Particularmente no
âmbito da retórica são elaboradas as primeiras tabelas e repertórios
de gestos.9 A partir do Renascimento,10 projetos de classificação

Literária e Cultural], houve uma tentativa de equacionar a questão de forma sistemática. De


fato, podem servir de apoio para uma melhor delimitação do conceito de figura de pensamento
especialmente os ensaios que vão desde Ernst Müller até Johann Heinrich Lambert, desde
Margarete Vöhringer até a “Figura Serpentina” e de Olaf Breidbach até “ramificações”. Mas
também são importantes para esta parte do projeto pensadores como Gilles Châtelet, cujo livro
Les Enjeux du mobile, publicado em 1993, que traça uma explícita linha de conexão entre a
figura de pensamento e o gesto. Ou ainda Hans Blumenberg com seu Paradigmen zu einer
Metaphorologie [Paradigmas a uma metaforologia], editado em 1997 como livro, e ainda
Theorie der Unbegrifflichkeit, surgido em 2007.
Veja-se, a título de súmula da retórica da Antiguidade a Institutio Oratoria, de Quintiliano,
9

especialmente o Livro 11.


10
Os séculos XVI e XVII parecem ter sido, também neste campo, uma época fértil, ao menos
na Itália, França, Espanha e Inglaterra (conf. Peter Burke, “The language of gesture in early

200
abrangentes se tornam mais importantes: Giovan Battista della
Porta (1586)11 ou Charles Le Brun (1698)12 suspeitam haver uma
conexão entre a expressão mímica e a constituição ou caráter do
respectivo indivíduo. O mais tardar com a Fisionomia, de Johann
Caspar Lavater(1772),13 essa perspectiva ganha uma asserção
sistemática e basilar. Algo muito semelhante está em Francis
Bacon (1620)14 e John Bulwer (1644),15 que em seus estudos sobre
a gesticulação defendem uma linguagem corporal universal. Até
mesmo A expressão das emoções no homem e nos animais, de
Charles Darwin, ainda segue essa mesma tradição com sua tese da
herança da expressão física.16
b) gesto no contexto do interesse pelo que foi incorporado. A crescente
atenção dada ao corpo no século XIX também fez aumentar o
interesse pelo tema do gesto. A experiência de ser determinado
por algo de escalão superior, que estipula ações e reações ao corpo
conforme cada situação, as quais são realizadas independentemente
da vontade concreta de quem age, promove um modo de pensar
em que a dimensão do social não é projetada pelo homem, mas,
muito pelo contrário, pela inserção do homem no social.17 Friedrich
Nietzsche se opõe filosoficamente à ideia de uma ética universal e
descreve a moralidade como um cânone de valores incorporado
por meio da socialização e, portanto, contingente de uma sociedade
particular (Nietzsche, Obras vol. 5, p. 245-412). Mas mesmo o
estudo de Andrea de Jorio La mimica degli antichi investigata nel
gestire napoletano [A mímica dos animais investigada no gesticular
napolitano], de 1832, apresenta em última análise o entendimento

modern Italy”[ A linguagem do gesto no início da Itália moderna]. In: A Cultural History of
Gesture[A história cultural do gesto], p. 71-83, p. 74).
Giovan Battista della Porta, De humana physiognomonia [Sobre a fisionomia humana], 1586.
11

Charles Lebrun, A Method to learn to Design the Passions [Um método para aprender a
12

desenhar as paixões], 1698.


Johann Caspar Lavater, Von der Physiognomik [Da fisionomia], 1772.
13

Francis Bacon, Novum Organum, 1620.


14

John Bulwer, Chronologia or the Natural Language of the Hand [Cronologia ou a linguagem
15

natural da mão], 1644.


“…muitas das nossas mais importantes expressões não fora aprendidas”. (Darwin, 2009)
16

Ver a recentemente criada Sociologia e as congêneres áreas da Antropologia e Psicologia


17

Social.

201
do gesto sob uma ótica cultural, o que subsequentemente será
decisivo.18
c) Gesto no contexto do interesse artístico pelo corpo.19 Também no
campo da arte uma atenção redobrada é dada ao corpo (em
movimento) no final do século XIX. O desenvolvimento da pintura
desde Delacroix, mas especialmente do pós-impressionismo aos
primeiros quadros abstratos, é impulsionado pela ideia de uma
pintura “musical”, capaz de ser expressiva sem expressar algo.
Experimentações com cor e luz, a reestruturação do espaço pictórico
e novas formas de produção artística caracterizam essa arte, que é
fascinada pelo inerente movimento do real. Desenvolvimentos
técnicos parecem gerar possibilidades para transformar a dinâmica
e o movimento em objetos do trabalho.20 É no máximo a partir
nesse momento que o gestual deixa de ser encarado em primeira
linha como movimento expressivo e passa efetivamente a ser visto
como movimento. Dos gestos na arte chega-se à arte como gesto.21

Em especial Marcel Mauss, Les techniques du corps [As técnicas dos corpos], de 1936, é
18

relevante sob esse aspecto. Assim como estudos de fôlego, como Norbert Elias, Über den
Prozeß der Zivilisation [Sobre o processo de civilização], editado pela primeira vez em 1939,
ou as pesquisas de Mary Douglas, sedimentaram essa compreensão do gesto no seu caráter
cultural. E mesmo projetos como o de Desmond Morris, que elaborou o catálogo de gestos
internacional Gestures: Their Origin and Distribution [Os gestos suas origens e significado]
(de 1979), podem alcançar seu propósito de tradução generalizada dos gestos reunidos em
todo o mundo somente por intermédio da mais precisa especificação segundo significado,
ação, condições e região.
Frente aos dois anteriores, esta terceira vertente é um fenômeno essencialmente discursivo
19

em menor escala. Por isso desempenham um papel igualmente importante para a análise
tanto as abordagens auto-reflexivas no campo das práticas artísticas quanto as interpretações
retrospectivas de certos desenvolvimentos perceptíveis nesses anos. Referências filosofi-
camente importantes neste contexto são, entre outros, Giorgio Agamben, Mezzi senza fine.
Note sulla politica [Meios sem fim. Notas sobre política], 1996 e Potentialities. Collected essays
in philosophy [Potencialidades. Coletânea de ensaios em filosofia], 1999; Georges Didi-
Huberman, Limage survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg [A
imagem sobrevivente. História da Arte e tempos dos fantasmas segundo Aby Warburg], Paris
2003 e Le Danseur des Solitudes [O dançarino das solidões], Paris 2006.
Étienne-Jules Marey e Edward Muybridge exemplificam, com sua cronofotografia, esse
20

propósito.
Hans Ulrich Reck tentou isso em uma primeira aproximação, conf. seu ensaio “Zeigen in
21

Bildern, mit Bildern, als Bilder. Von Gesten in Bildern zur Kunst als Geste — Eine Skizze”
[Mostrar em fotos, com imagens, como imagens. De gestos em fotos a arte como um gesto —
um esboço] (Wulf, Fischer, 2010, p. 125-131).

202
Já esse resumido apanhado acerca do discurso gestual histórico
não descreve nenhum dos tipos em que se distinguem os gestos entre si,
contentando-se em enfatizar diferentes aspectos, que já não mais se limitam ao
movimento expressivo do corpo humano — embora tenham nele o seu ponto
de partida. O gesto é menos objeto de reflexão do que núcleo de condensação
de discursos específicos. E desde o início pode ser descrito como uma figura
de pensamento apta a transformar as categorias de conhecimento estáticas em
dinâmicas.

III
Apesar da longa história do “discurso gestual histórico”, pode-se
perceber ao longo do século XIX até as primeiras décadas do XX uma escalada
discursiva da potência peculiar ao gesto.22 A mudança na prática artística
dos gestos na arte para a arte como gesto vem acompanhada por uma auto-
reflexão medial que vai se tornando explícita em diferentes graus. Nessa auto-
reflexão a busca por um conhecimento genuinamente aistético condensa-se
de novo e de novo na figura de pensamento do gesto. Da enérgica cosmovisão
de Heinrich von Kleist à estética científica de Charles Henry; da “poésie
pure” [poesia pura] de Stéphane Mallarmé à troca de tema por James Joyce,
que empregou a “digestion” como princípio em seu “Ulisses”; da experiência
estética de John Dewey à fórmula patética de Aby Warburg, ao “Moisés”, de
Michelangelo, de Freud ou às reflexões de Walter Benjamin sobre o gesto no
drama trágico barroco — busca de um modelo de conhecimento novo, que
conecte teoria e prática, assim como a questão da relevância epistêmica da
experiência estética, revela-se como um — ou talvez como o — grande anseio
dessa época. Um anseio que ainda se evidencia até mesmo em um filósofo como
Ludwig Wittgenstein enquanto centro de gravidade do seu pensamento tardio
(Goppelsröder, 2007, p. 405-413). A concepção de Wittgenstein da linguagem
como jogo altera o foco, transformando o ato material de comunicação, a
performance concreta no espaço-tempo, em suma, a fala enquanto interação

Giorgio Agamben reconhece na virada do século XIX para o XX a era de uma sociedade que
22

perdeu a naturalidade de seus gestos e, precisamente por isso, desenvolveu uma obsessão por
gestos (veja-se Giorgio Agamben, “Notas sobre o gesto” (Agamben, 2015, 51-62). Isadora
Duncan, Loïe Fuller ou Sergei Diaghilev, mas também Marcel Proust, a poesia do Art
Nouveau e, não menos importante, o emergente filme mudo dão testemunho dessa obsessão
por gestos, segundo Agamben. Em Friedrich Nietzsche ele reconhece os sismógrafos desses
terremotos culturais que ainda eram subterrâneos.

203
gestual em ponto nevrálgico. Um gesto do economista italiano Piero Sraffa
deu o impulso, como o próprio Wittgenstein se expressou, para as “idéias mais
substanciais” de sua filosofia tardia e, de fato, todas as mudanças decisivas,
desde o Tractatus até as Investigações filosóficas, encontram-se conectadas com
a orientação básica deste último pelo gestual: a preocupação com a “ordinary
language” [linguagem comum], a tarefa do projeto de um sistema fechado de
linguagem e, com ele, a reabilitação filosófica da imprecisão, a substituição da
definição pelo conceito de semelhança genealógica. Expressões da linguagem
verbal não ganham mais seu sentido enquanto representação, mas como
movimento, como um lance em um jogo de linguagem. Em meio a uma
forma de viver tão concreta, técnicas culturais específicas produzem aquele
conhecimento evidente que faz com que elas pareçam, ao mesmo tempo,
objetivas e universais. O problema metodológico daí resultante refere-se
diretamente a Wittgenstein: como, afinal, ainda é possível, em uma linguagem
não representacional, filosofar sobre a linguagem?
A “batalha de Wittgenstein contra a teoria” (Monk, 2000, p. 326) desde
os anos 1930 diz respeito a esse problema. A filosofia — de acordo com
a convicção de Wittgenstein — nunca pode ser teoria, porque se refere aos
pressupostos da teoria; ela não executa simplesmente um jogo de linguagem
que funciona, mas o questiona. Ela tem que arrombar o jogo de linguagem,
no qual o filósofo sempre se encontra envolvido, de dentro para fora, a fim
de tornar exposta para si mesma sua condicionalidade. Nada além disso é o
que Wittgenstein pratica em sua filosofia tardia. Com suas perguntas, seus
experimentos de pensamento literalmente inacreditáveis, ele esforça-se menos
por uma argumentação impecavelmente coesa e mais pela irritação do leitor.
Seu objetivo é abalar as certezas cotidianas envolvendo um conhecimento tido
como inquestionavelmente verdadeiro.
Se inicialmente o gesto foi encarado como fonte e âncora do jogo de
linguagem em funcionamento, agora ele passou a mostrar-se como exato
oposto: o gesto transformou-se na possibilidade de arrebentar discurso
preestabelecidos e de irritar. De fato, ambos os aspectos estão relacionados:
a linguagem fundada em gestos só pode irritar gestualmente a si mesma.
Nisso reside a solução do problema metodológico acima formulado. A prática
filosófica da irritação não é nenhuma peculiaridade de um homem peculiar,
mas a continuação lógica de uma filosofia erigida em torno da figura de
pensamento — e não do fenômeno ou do conceito — do gesto: o gesto irritante
impõe aquela desordem, que sozinha permite a efetivação do discernimento
filosófico.

204
O gesto transforma-se, para Wittgenstein, no veículo de seu pensamento,
o qual constrói a ponte sobre a fenda que separa inteligibilidade e sensualidade,
e o pensamento — bem no espírito de Merleau-Ponty — torna-se, ele próprio,
um gesto (Goppelsröder,2007).

Conclusão
Como meio constitutivo de conhecimento e percepção, o gesto ganha
relevância sob dois aspectos: primeiro, ele permite pensar e desenvolver
uma formação de conhecimento dinâmica, que não se submete aos critérios
clássicos de saber voltados à homogeneidade lógica, à estabilidade e à
imobilidade. Crucial para isso é a posição intermediária do gesto, que não
pode ser reduzido ao movimento do corpo, nem pode ser completamente
abstraído dele. Em vez de optar por um lado ou outro na dicotomia entre
corpo e mente, a figura de pensamento conjuga ambos os pólos em uma
interação epistemologicamente produtiva. Em segundo lugar, é justamente a
ênfase na figuração — na condição de prática epistemicamente fundante do
nosso pensamento e percepção — que permite formular de novo a questão
envolvendo o conhecimento especificamente artístico assim como também
literário. Isso não seria entendido inicialmente como um modelo alternativo
ao teórico ou científico, mas como uma parte constitutiva de toda a produção
de conhecimento (Mersch, 2015 e Mersch, 2002, p. 101-126).

Tradução de Karin Volobuef

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208
Uma série de despertar gestos em João Cabral,
Cícero Dias e Clarice Lispector
(Notas sobre Arquivo, Tempo e Imagem)

Ana Luiza Andrade


Djulia Justen

O gesto, entre a palavra e a imagem


Começa-se a definir o caráter intervalar da linguagem do gesto na
passagem entre a legenda e a imagem, entre a sua (i)mobilidade imagética
e a palavra. Quando um corpo exibe um gesto de resistência, a dialética do
gesto se entende então, dentre os gestos (in)voluntários como um gesto no
próprio limiar do corpo, um gesto sensível que se produz a partir do exílio de
si mesmo. Um gesto exilado é, no entanto, íntimo e coletivo, singular e plural,
ao mesmo tempo. E daí, propor-se o despertar de um gesto dialético no que
se refere ao ato significante no gesto (in)significante que se insurge contra um
racional imposto, cartesiano, um gesto que segundo Agamben mostra uma
medialidade sem fim. (Agamben, 2015, p. 51-61)
Deste modo, o gesto que se escreve é também inscrito ao se buscar
na memória mais sensível do corpo, explicando-se analiticamente pela
arqueologia de seu saber. Por isso, ao se encontrar consigo mesmo expressa,
em sua intimidade, o mais coletivo dos desejos, interferindo no gesto político
e cultural. Trata-se aqui, antes de tudo, do gesto que trabalha os vazios do
esquecimento tanto quanto o conteúdo memorialístico no seu desejo de salvar
da morte os objetos que produz, as coisas ameaçadas de desaparecimento.
Gesto escritor e leitor ao se buscar no toque, no som, no cheiro, no olhar. Gesto
que é resíduo de outro gesto, que é resto e ruína ao se mostrar como palavra,
como letra, como som.
Mais ainda, gesto que se dá no tempo da história e fora dela, gesto
anacrônico. Gesto que se dá na escrita e fora dela, em seus vazios, seus silêncios.
Gesto interrompido, intervalar. Gesto poético, gesto ao acaso, lance de dados,
gesto que é prosa e poesia. Gesto de olhar, gesto que se desmonta em outros
gestos, ou que, descontinuado, é linguagem cinemática. E que continuado é
dança. Distanciado, gesto brechtiano, crítico, político, teatral, imagético. Daí
que o gesto de despertar coincide ao próprio despertar do gesto.

O gesto em palavras n’O Auto do Frade de João Cabral


e em imagem, em Cícero Dias: um meio em suspenso
De qualquer modo, a esta imobilidade do gesto carregada de tensão,
Agamben qualifica como uma “especial temporalidade messiânica” e não linear
do gesto, desencadeando uma incessante repetição deles. Gesto que os entrega
à sua cognoscibilidade, sem qualquer finalidade, mas que compreenderia
a apreensão e a contração de um tempo infinito (como em Nietzsche, apud
Agamben).1 É nesta contração que há um demorar no instante da morte,
segundo Derrida sobre Blanchot no momento do fuzilamento, onde se
concentra uma “insistência e persistência do instante, [e] demorando, ela,
a memória, esperava ou retardava, a memória dessa leveza, do momento
da leveza, do sentimento da leveza; demorava como demora ainda hoje.”
(Derrida, 2015, p. 98) Em outras palavras, esta “iminência de uma morte que
já aconteceu” torna-se um devir em perpétuo inacabamento.
Vem à lembrança, com essa “iminência de uma morte que já aconteceu”
em O auto do frade de João Cabral de Melo Neto (De Melo Neto, 2003), a
imagem de seu gesto de levante no momento da morte, gesto que tanto o poeta
quanto o pintor Cícero Dias buscam captar.2 João Cabral inicia seu poema
dramático com o corpo adormecido de Frei Caneca que se acorda para o
gesto final, e termina com o corpo depois de fuzilado, sendo jogado na frente
da igreja para que o carreguem clandestinamente para dentro dela. Há um
contraste entre o sono de Frei Caneca que dorme profundamente “como uma
criança dorme” na prisão de sua cela, e o efeito evocador da lei nas palavras “É

Agamben, Giorgio.“Para uma ontologia e uma política do gesto.” Flanagens. Disponível em:
1

<flanagensblogspot.com.br>. Acesso em: 1o abr. 2018.


Tanto o painel de pinturas de Cícero Dias sobre o revolucionário Frei Caneca quanto o
2

poema O auto do Frade de João Cabral de Melo Neto dedicado a ele, encontram-se no hall de
entrada do Forte das Cinco Pontas em Recife, Pernambuco, um em frente ao outro.

210
a lei que monta o espetáculo”, surgido de uma conversa entre o provincial e o
carcereiro. Mas o acordar de quem sai da prisão se faz aos poucos:

— Acordo fora de mim


como há tempos não fazia,
Acordo claro, de todo,
Acordo com toda a vida,
com todos cinco sentidos
e sobretudo com a vista
que dentro desta prisão
para mim não existia.
Acordo fora de mim:
como fora nada eu via,
ficava dentro de mim
como vida apodrecida.
Acordar não é de dentro,
acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira.
Mesmo quando alguém acorda
para um fiapo de vida,
...

É o corpo adormecido de Frei Caneca a dizer “Acordo fora de mim” por


que não se reconhece, exilado que está de si mesmo, pois precisa estar com os
seus para haver entre eles um reconhecimento. Porém seu corpo se ergue da cela
para o espetáculo que o espera fora dela. E o seu viver demora a intensidade
dos últimos passos para o seu fim, entre as memórias que o despertam para
fora, no corpo em comunhão com os outros de seu povo, e os seus últimos
instantes. (E é este o meio combativo que permanece em suspenso.) Ora, o que
este corpo diz com esta rápida (des)aparição é o que não deve ser escutado,
e por isso ele (principalmente seu gesto) é rapidamente escondido, o que
também parece condizer ao gesto político que carrega consigo. O silêncio
que nunca se poderá preencher, o gesto que não deve ser reconhecido. O
vazio do esquecimento. Trata-se do gesto político de levante para essa outra
independência de que fala Evaldo Cabral de Melo (De Melo, 2001). Um gesto

211
intolerável para os inquisidores já que o espetáculo deles serve à lei imposta
que tem que continuar.
Por isso a imagem do Frei Caneca de Cícero Dias, como a famosa,
de Goya,3 leva este gesto único: de braços para o alto ante os soldados no
confronto do ato de fuzilamento,4 camisa branca e calça amarela, é gesto de
desafio e de levante que condiz com o de despertar do Frei Caneca de João
Cabral em O Auto do Frade, quem, nesta imobilidade entre dois tempos
messiânicos permanece, portanto, no lusco-fusco, para lembrar aquilo que,
na história, como um pirilampo, ora se apaga, ora se acende (Didi-Huberman,
2011), na iluminação momentânea de um movimento de libertação histórico:
o gesto de levante de um corpo que, com a história de seu povo, ora renasce ora
se dissolve: (des)lembrança.

A torção: o gesto em suspenso, inconforme, entre o


mito e a história
Ora, este gesto recalcado que, com o despertar da morte como num
sono, levanta com ele os enfeitiçados de outros mundos gésticos soterrados,
deixa aparecer, entre a história e a arte, um mundo cultural que se acreditava
morto, a ressurgir das cinzas. Muito a propósito, para reacender a memória de
outros gestos suspensos no ar, entre a vida e a morte, como o de Frei Caneca,
mas agora adstritos ao sentido estético, destaca-se outro gesto citado por
Agamben, que também aparece a pairar no ar a exemplo do pastor de São
João, quando se refere ao cajado suspenso no ar, de um pastor, que fica no
“intervalo messiânico entre dois instantes”, equivalentes ao tempo do mito e ao
tempo da história. A respeito disso Agamben cita as palavras de São João entre
parêntesis: “eu vi as coisas como que suspensas e então, repentinamente, tudo
retomou seu curso” (Agamben, 2005, p. 152-153).
Não seria coincidência, a propósito deste gesto de interrupção em
pauta, ler o gesto anacrônico do pintor Cicero Dias no famoso e imenso painel
de 12 metros de extensão por dois metros de largura, (pintado de 1926-1929)
exposto no chamado “salão revolucionário” em 1931 na 38a edição do Salão
Nacional da Escola de Belas Artes, uma semelhança ao gesto de São João

3
Gesto de braços para o alto do soldado francês de Goya diante do pelotão de fuzilamento: o
3 de maio de 1808.
4
Cícero Dias cita Goya, o pintor do quadro do 3 de maio de 1808 em Madrid, na imagem e no
gesto que se mostra à feição do soldado de Goya, em Frei Caneca.

212
citado por Agamben, ao descrever, quase nas mesmas palavras, sua visão do
Recife: “Eu vi o mundo... e ele começava no Recife”. Gesto de suspensão. Gesto
de demora, de tensão, de torção. E depois disso tudo retomou, de fato, o seu
curso. Mas isso não foi bem compreendido naquela época, nem por Mario
de Andrade... (receoso do que poderia repercutir no momento pós-revolução
de 1930.) (Gomes de Lima, 2001, p. 65). Lá estavam também os trabalhos de
Anita Malfati, Di Cavalcanti, Lasar Segal, Ismael Nery, Tarsila do Amaral,
Guignard, Portinari, Teruz. De acordo com Mario Helio Gomes de Lima, “a
fina flor da arte moderna brasileira.” Mas Mario de Andrade visitou-o em seu
engenho em 1929, dedicou-lhe os Poemas da Negra (Gomes de Lima, 2001,
p. 59), e alguns de seus quadros participam de sua coleção (Batista; Soares de
Lima, 1998, p. 63-67).
No entanto, assim como o gesto do pastor de São João com o cajado
no ar, ou seja, com o pincel suspenso, o pintor interrompe com seu gesto os
trabalhos ao redor, reverberando essa descontinuidade recifense em meio ao
transcorrer das vanguardas modernistas naquele momento no Rio de Janeiro.
Ou seja: imprime a sua inclusão inscrita nas palavras do painel qual parada
indicando fantasmata, abrindo espaço no meio ao provocar um sentido
“infamiliar” (Freud, 2019) com este cenário de pinturas que flutuam à memória
mais remota: painel de figuras rupestres, cenário de um barrento esverdeado
remetendo tanto ao “barrento de uma infância que logo aflora” (De Melo Neto,
2003, p. 357) dos versos de João Cabral ao se referir ao nordeste açucareiro dos
inícios, como aos da própria arte. Pois em meio aos gestos destruidores das
vanguardas de 22, o gesto faz “precede[r] quase de modo profético quase todo o
movimento” (Agamben) neste descontínuo de intratável leveza, concentrando
o tempo infinito em uma única tensão desconcertante: o momento em que
mostra seu exórdio na suspensão do entorno para rememorar suas imagens
surrealistas ou surnudistas,5 flutuantes no fundo barrento também evocador
das pinturas rupestres alusivas à pré-história da arte e alertando, com a
“especial temporalidade messiânica” e não linear, para a potencial e incessante
repetição deles. O gesto em série. Este gesto inconforme indicador de uma
torção que obriga a olhar para trás, “oportunidade revolucionária na luta pelo
passado reprimido” como na torção intencionada do anjo de Klee lido por
Benjamin (Benjamin, 2013, p. 19), seria aquele que os entrega, então, à sua
cognoscibilidade...

Gilberto Freyre define o surrealismo de Cícero Dias como “surnudismo” (Gomes de Lima,
5

2001, p. 59).

213
Eu vi o mundo... Ele começava no Recife
(Cícero
Eu Dias. In: Batista;
vi o mundo... Soares denoLima,
Ele começava 1998).
Recife.
(Cícero Dias. In. Batista; Soares de Lima, 1998).
O gesto em Clarice Lispector: tempo de despertar
4. O gesto em Clarice Lispector: tempo de despertar
Seguindo a série dos gestos de despertar e, ao mesmo tempo, do
Seguindo a série dos gestos de despertar e, ao mesmo tempo, do despertar de um
despertar de um gesto dialético em suspenso com João Cabral e Cícero Dias,
gesto
seriadialético
possívelem suspenso
também com João um
vislumbrar Cabral e Cícero
gesto Dias, seria
de despertar possível Lispector
em Clarice também
a partir da
vislumbrar um performance de um
gesto de despertar relógioLispector
em Clarice chamado Sveglia
a partir de “O relatório
da performance de umda
coisa”chamado
relógio Sveglia deEste
e suas versões. 6
gesto é da
“O relatório alegórico
coisa” e esuas
performativo 6
versões . Esteenquanto gesto de
gesto é alegórico
despertar para e do tempo.
e performativo enquanto gesto de despertar para e do tempo.
Por isso, este gesto de despertar se destaca pela performance textual
Por isso, este
da narrativa, num gesto de despertar
minucioso se destaca
jogo pela performance
de montar, desmontar textual da narrativa,
e remontar pelo
menos
num três vezes
minucioso jogo de(ou seja, desmontar
montar, em três versões)
e remontaraopelo
longo do três
menos percurso literário
vezes (ou seja, emde
Clarice, percurso em que se pode discernir um gesto de desmonte de
três versões) ao longo do percurso literário de Clarice, percurso em que se pode discernir outros
gestos e, em síntese, desvendar um procedimento que se descortina como
um gesto de desmonte de outros gestos e, em síntese, desvendar um procedimento que se
uma forma de leitura do tempo ao se montar, implicando também na própria
descortina como umaJáforma
(des)montagem. em de leitura do
Origem do drama
tempo aotrágico
se montar, implicando
alemão, Waltertambém
Benjaminna
trata (des)montagem.
própria de um tempo Já descontínuo,
em Origem do fragmentado,
drama trágicofeito de Walter
alemão, brechasBenjamin
e de fissuras
trata
deque não cessam
um tempo de irromper,
descontínuo, e o feito
fragmentado, modo de lê-loe de
de brechas seria através
fissuras da montagem
que não cessam de
irromper, e o modo de lê-lo seria através da montagem e seus movimentos (implicando
em desmontagem e remontagem)7. Daí se imbricam as perguntas: não se destacaria, já
então,
6
um gesto
Minha de despertar
pesquisa através da forma Momentos
de tese SVEGLIAMAQUIA, do própriodetexto ao convocar
Despertar para
em Clarice o tempo
Lispector, sob
orientação da professora Dra. Ana Luiza Andrade, se debruça nos limiares destas três versões
6
da narrativa sobre Sveglia, de Clarice Lispector, a citar: “Objecto-relatório-mistério”, de 1971,
Minha pesquisa de tese SVEGLIAMAQUIA, Momentos de Despertar em Clarice Lispector, sob orientação
“Um anticonto”, de 1972, “O relatório da coisa”, de 1974, além de relacionar o despertar e
da professora Dra. Ana Luiza Andrade, se debruça nos limiares destas três versões da narrativa sobre
suadeexperiência
Sveglia, temporal
Clarice Lispector, com
a citar: outros textos clariceanos.
“Objecto-relatório-mistério”, A pesquisa
de 1971, está em andamento
“Um anticonto”, de 1972, “O e
temdaprevisão
relatório coisa”, dede conclusão
1974, além de para julhoo de
relacionar 2020. eNeste
despertar texto, contudo,
sua experiência temporal a com
fim de apresentar
outros textos
sobre oAgesto
clariceanos. de despertar
pesquisa clariceano,
está em andamento privilegiarei
e tem previsão deaconclusão
versão depara
“O relatório da coisa”,
julho de 2020. Onde
Nestedetexto,
contudo, a fim dedeapresentar
estivestes sobre o gesto
noite (Lispector, de despertar clariceano, privilegiarei a versão de “O relatório da
1992).
coisa”, de Onde estivestes de noite (Lispector, 1992).
7
“Mas na construção alegórica as coisas olham para nós sob a forma de fragmentos” (Benjamin, 2004, p.
214
202).
e seus movimentos (implicando em desmontagem e remontagem).7 Daí se
imbricam as perguntas: não se destacaria, já então, um gesto de despertar
através da forma do próprio texto ao convocar para o tempo e suas fissuras e
quebras, através da montagem textual que lhe é inerente, apelando aos nossos
olhos e aos nossos ouvidos para aquilo que insiste em se repetir, em voltar
outra vez senão com diferenças? Há de se notar também uma dupla via que
se forma entre o formato do texto e seu personagem principal, o relógio. E daí
que, sendo o texto em questão uma montagem de fragmentos e o relógio um
mecanismo feito de fragmentos, não se trataria aí mais uma vez de encenar
disjunções temporais de um texto-relógio e de um relógio-texto?
Em outro nível, indo de encontro às instâncias narrativas e seus
enunciados, é notável que a voz narrativa fala e conversa com o relógio,
tornando-o de certa forma um personagem com um nome muito singular. “A
marca é Sveglia, o que quer dizer acorda. Acorda para o que, meu deus? Para
o tempo. Para a hora. Para o instante” (Lispector, 1992, p. 73). Carregando
uma marca como as das mercadorias, o relógio tem um nome. Através dele, é
possível chamá-lo, afinal é pelo nome que chamamos as coisas. Se como objeto,
o relógio já de saída alegoriza o tempo, o seu nome enquanto um significante
destaca um gesto em forma de chamado: acorda! desperta! Pergunta-se a
voz narrativa “Acorda para o que, meu deus?” e a si mesma responde “Para
o tempo. Para a hora. Para o instante.” Um gesto de despertar para o tempo
através de um nome que apela, assim como o mostrador de um relógio exibe
as horas, para cada instante do seu transcorrer: tempo de vida, de morte,
instante que não cessa de irromper a cada segundo, tempo infinito em um
átimo, produzindo aberturas temporais que desconcertam, como o intervalo
“messiânico” entre tempos, correlato anacrônico ao despertar para o tempo.
Neste caminho aberto desde a leitura do enunciado do texto seria
possível vislumbrar um encontro da narrativa clariceana com o despertar e
sua constelação elaborados por Walter Benjamin no percurso teórico-político-
crítico de sua obra. Afinal, desde os fragmentos de Passagens, encontra-se que
“O agora da cognoscibilidade é o momento de despertar” (Benjamin, 2018,
p. 804, N 18,3) e “O momento de despertar é o agora da cognoscibilidade”,8 o
que permite compreender que estas frases viram e se reviram como uma luva,
em que os fins e os começos se unem a ponto de levar à seguinte constatação:
o despertar é um momento, e o agora é o instante de despertar. Este agora

7
“Mas na construção alegórica as coisas olham para nós sob a forma de fragmentos” (Benjamin,
2004, p. 202).
8
No mesmo Konvolut N do Passagens, N 3,1, N 3a 3, N 9,7, N 18,4, volume 2.

215
traz em si a cognoscibilidade, uma potencialidade de se repetir, de vir a ser
de novo a cada instante, o que permite reconhecer o que já estava em si, em
potência, e o que faltava para o gesto benjaminiano de “esfregar os olhos”9
e ver o que não era possível ser visto, mas que estava ali a chamar para o seu
reconhecimento. Em suma, este gesto de despertar benjaminiano envolve um
trabalho de tempos e de memória.
Em outro ponto da narrativa clariceana destaca-se o gesto de despertar
através do chamado, do apelo, mas de outra forma: a partir de um diálogo
entre a voz narrativa e Sveglia enquanto um personagem que tem uma fala,
que produz um enunciado. “Sveglia: acorda, mulher, acorda para ver o que
tem que ser visto. É importante estar acordada para ver.” (Lispector, 1992,
p. 74) Em primeiro lugar se poderia observar que enquanto personagem, o
relógio emite uma voz. Um objeto tem voz? Ou esta frase colocaria em cena a
nossa habilidade de escutar para despertar, de escutar o chamado do que quer
que seja, desde que se esteja disponível e atento a ouvir, como apresenta Jean-
Luc Nancy em seu ensaio “À escuta?” (Nancy, 2014) A voz narrativa apela a
este objeto como provedor do despertar. “Acorda-me, Sveglia, eu quero ver a
realidade, mas a realidade parece sonho” (Lispector, 1992, p. 74).
Neste ponto, começa-se a desenhar neste gesto performático do
despertar clariceano uma dialética do despertar. Em um primeiro aspecto, é
possível notar que o diálogo de chamados monta uma instância singular: o
limiar do despertar que é trânsito, passagem. De outro modo, e partindo desta
instância de passagem, tem-se em cena a dialética do despertar como a tese
que traz em si mesma a sua contradição, a sua antítese: de que para acordar é
preciso estar dormindo e de que apenas dormindo é possível despertar. Mas
também o apelo evocado pela voz narrativa denota um jogo de avessos que
se cruzam como os lados de uma moeda, ou como o dentro e o fora de uma
luva: um acordar para ver a realidade, mas esta parece um sonho. Ou seja, será
que quando estamos de olhos abertos estamos de fato acordados? E quando
dormimos será que não estamos de algum modo despertos?
Esta dialética do despertar clariceana e também benjaminiana enfatiza
certo sentido político no gesto de despertar. Afinal, não seria a anestesia da
vida contemporânea, com seus choques e suas transições rápidas e alcance do
toque em uma tela de celular, que nos mantém adormecidos diante do cenário
aterrador que nos rodeia? Não seria os mecanismos de fake news e de ódio
que cegam os olhos e se tornam tão entorpecentes quanto as drogas a nos

Expressão retoma o Konvolut N 4,1, volume 2, p. 770 desta edição.


9

216
anestesiar e adormecer para não ver o horror e o perigo que nos ronda e que
conduz a perder cada vez mais direitos sociais duramente conquistados com
tanta luta? (Buck-Morss, 2018).

O gesto de despertar a memória sensível do corpo


É preciso relembrar-nos que a passagem clariceana “Já ouvi Sveglia
por telefone dar o alarma. É como dentro da gente, a gente acorda de dentro
para fora” (Lispector, 1992, p. 75) nos remete de volta aos versos cabralinos do
início:

Acordar não é de dentro,


acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira.
Mesmo quando alguém acorda
para um fiapo de vida.

É neste “fiapo de vida” que sai de dentro da prisão de si mesmo para


fora “pois acordar é ter saída”, fiapo em cuja contração há um “demorar no
instante da morte”, coincidente ao do corpo do condenado, como este de Frei
Caneca, e análogo ao aludido por Derrida sobre Blanchot, onde se concentra
uma temporalidade monádica: aí todos os tempos se entrecruzam.
Vem então, a propósito deste limiar do corpo no tempo, ou deste
intervalo que chega a espacializar o tempo limiar que se abre entre sonho
e vigília, o termo réveil, ou “despertar” em francês, que ao ser desmontado
(rêve/éveil) revela-se uma palavra-valise da qual surgem os vocábulos sonho,
rêve, e o chamado, éveil, que importam tanto ao texto clariceano como ao
texto cabralino, quando os sentidos do corpo atendem ao chamado (éveil)
para um despertar que se “dissolve” no sonho (rêve), e o sonho fica como
um “refugo” na evidência do primeiro (Didi-Huberman, 2010, p. 189). Da
mesma forma, a palavra valise ex-velha, a partir da escuta de uma pronúncia
mais brasileira do nome italiano do relógio Sveglia, trazendo o aturdimento
do au tour dit, ou o que se passa pelo exterior, ao qual Jacques Lacan chama
nossa atenção a propósito (Lacan, 2003), aqui se refere ao nosso despertar
para o envelhecimento, um dos efeitos do passar do tempo num relógio que
marca também o ciclo biológico. Ora, este passar do tempo cuja intensidade
chega à própria morte, pois “Sveglia — se a gente não toma cuidado — mata”

217
(Lispector, 1992, p. 80) corresponde então ao átimo tão decisivo quanto o
que fica entre parêntesis em Blanchot: “(envelhece-se depressa)” (Blanchot,
2003, p. 13). Por isso, o Frei Caneca cabralino (des)obedece ao ciclo ex-velha
de Sveglia, o relógio clariceano, pois, como já mencionado, seu viver demora
a intensidade dos últimos passos ou sons (batidas do coração coincidentes ao
tic-tac do relógio?) para o seu fim, entre as memórias que se despertam no
corpo (ou na máquina) e os seus últimos instantes.
Daí a grande abertura a partir dos limiares críticos dos gestos, em seu
caráter intervalar de despertador. O distanciamento crítico, seja ele brechtiano
(entre legenda e imagem) ou freudiano (entre o familiar e o infamiliar),
ocorre como gesto político de resistência, pois libera a leitura que “abre a
esfera do ethos como esfera peculiar do humano” (Agamben, 2015, p. 59). O
espaço anacrônico entre imagem e palavra, assim como o tempo que se abre
entre mito e história, ou entre som, palavra e imagem, instaura o gesto como
medialidade em seus vazios, suas torsões de (des)recalque. Como no gesto
de pintar/escrever de Cícero Dias e como nos outros gestos desta série, eles
não só suspendem o despertar, mas o (des)continuam. Provocam questões
entre literatura e outras artes, o que contribui, em última instância, para a
ressignificação de um pensamento de resistência.
Clarice Lispector, ao meditar sobre o tempo, nos alerta sobre a urgência
do despertar. Como “técnica primitiva”, dividida entre o sujeito e o objeto de
que se ocupa, e que a preocupa, dobra-se sobre o tempo sem tempo da literatura
e o tempo do relógio em seu mecanismo, entre a alegorização de um tempo
de despertar e um tempo que subjuga, entre as suas funções técnicas e a sua
disfunção orgânica. O gesto de desmontar o objeto que cronometra para ver o
seu funcionamento, o seu “de dentro”, assim como faz com a barata em A paixão
Segundo GH, permite-lhe revelar a sua disfunção, a doença de nosso tempo: a
impossibilidade do despertar de um mundo anestesiado pelo sonho fugaz de
um capitalismo de consumo manipulador. Um sonho, um sono profundo e um
desalento. O clamor deste relógio nos convoca ao gesto de levante ou o gesto
de resistência de um corpo político. Pois entre o chamado imperativo “Acorda!
Desperta!!!” disfarçado na marca italiana de “Sveglia” encarnado no objeto que
alegoriza o tempo de despertar, e o gesto cotidiano de sua dona que o desliga,
que adia esse tempo, como se faz quando uma coisa incomoda ao sono ou
mesmo ao sonho como forma de fuga, é o que caracteriza nosso gesto. Nós
que não resistimos e procrastinamos. Mas, por isso, nos perdemos no tempo.
Mas ele insiste em nos avisar, a cada toque do seu alarme intermitente, que o
tempo se esgota. Escutar o toque urgente desse despertador constitui agora a
nossa grande preocupação política, o nosso ato de resistência, sob o risco de

218
esgotarmos o tempo que nos resta entre um e outro toque, e não termos sequer
outra chance de adiamento.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. “Notas sobre o gesto”. In: Meios sem fim Notas sobre a política.
Trad. Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autentica, 2015.
______. Infância e História Destruição da Experiência e Origem da História. Tradução
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p. 152-153.
BATISTA, Marta Rossetti; SOARES DE LIMA, Yone: Apresentação José Mindlin.
2. ed. Coleção Mario de Andrade, São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros,
Universidade de São Paulo, 1998.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Ed. Alemã Rolf Tiedemann. Org. Willy Bolle.
Colaboradores Olgaria Chain Féres Matos. Trad. do alemão Irene Aron. Trad. Do
francês Cleonice Paes Barreto Mourão. Posfácios Willy Bolle e Olgária Matos. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2018.
______. O anjo da história. Organização e Tradução de João Barrento. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
______. Origem do drama trágico alemão. Obras Escolhidas de Walter Benjamin.
Edição, apresentação e tradução de João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
BLANCHOT, Maurice. O instante de minha morte. Tradução de Fernanda Bernardo.
Porto: Campo das Letras, 2003.
BUCK-MORSS, Susan. Mundo de Sonho e Catástrofe. Tradução Ana Luiza Andrade,
Rodrigo de Barros e Ana Carolina Cernicchiaro. Florianópolis: Editora da UFSC,
2018.
DE MELO NETO, João Cabral. “Psicanálise do açúcar”. In: Educação pela pedra,
Obras Completa Volume único, Edição organizada por Marly de Oliveira com a
assistência do autor. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
______. O auto do frade, in Obra Completa, Edição organizada por Marly de Oliveira
com a assistência do autor. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
DE MELO, Evaldo Cabral. Frei do Amor Divino Caneca São Paulo: Editora 34 Letras,
2001.
DERRIDA, Jacques. Demorar Maurice Blanchot. Trad. Flavia Trocoli e Carla
Rodrigues. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos e o que nos olha. Tradução de Paulo
Neves. São Paulo: Editora 34, 2010.

219
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Tradução Vera Casa
Nova e Marcia Arbex. Revisão Consuelo Salomé. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
FREUD, Sigmund. O Infamiliar. Tradução Pedro Heliodoro. Obras Incompletas de
Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
GOMES DE LIMA, Mauro Hélio. Cícero Dias Uma vida pela pintura, (Coord.).
Waldir Simões de Assis Filho. Curitiba: Simões de Assis Galeria de Arte, 2001.
LACAN, Jacques. “O aturdito”. In: Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LISPECTOR, Clarice. “O relatório da coisa”. In: Onde estivestes de noite. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992.
NANCY, Jean-Luc. A escuta. Trad. Fernanda Bernardo. Belo Horizonte: Chão da
Feira, 2014.

220
Sobre os autores

Ana Luiza Andrade


É professora de literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em
Literatura Luso Brasileira e Hispano-Americana pela University of Texas at Austin
(1982) e dois pós-doutorados pela Universidade de São Paulo (2005, 2010) na
atualização da pesquisa sobre Osman Lins. Além da publicação e organização de livros,
traduziu Susan Buck-Morss, Dialética do Olhar (Editora da UFMG, 2002) e Mundo
de Sonho e Catástrofe (EdUFSC, 2017). Lidera o Núcleo de Estudos Benjaminianos
(UFSC) desde 2002.

Andrea Santurbano
É professor de Língua e Literatura Italiana na Universidade Federal de Santa Catarina.
Doutora em Estudos Comparados pela Università “G. d’Annunzio”, Chieti-Pescara
(1998) e pós-doutorado pela Università di Roma “Tor Vergata” (2015). É responsável
pelo Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana (NECLIT) e coeditor
da revista “Mosaico italiano” (Rio de Janeiro: Editora Comunità). Atua nas áreas de
Literatura Comparada e de Literatura italiana.

Aurora Conde Muñoz


É professora titular de Filologia Italiana, do Doutorado em Estudos Literários da
Universidad Complutense de Madrid — UCM. Participa de diferentes grupos de
pesquisa tais como Escritura e imagem. A Europa da escrita e A Europa da escritura.
Seu interesse de pesquisa passa pelos seguintes eixos: literatura, artes plásticas e
cinematográficas; escritura e imagem; morte e escritura na ficção pós-moderna;
literatura comparada, com especial atenção para o pensamento acerca da relação entre
literatura contemporânea e as artes plásticas.

Claudia Peterlini
É graduada em Letras-Alemão na Universidade Federal de Santa Catarina (2019) e
em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2008).
Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade (UFSC, 2012) e atualmente
é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal
de Santa Catarina. Dedica-se principalmente ao estudo das expressões literárias em
língua alemã do século XX, sobretudo a obra crítica e literária do germanista e escritor
W. G. Sebald.
Djulia Justen
Psicanalista, doutoranda em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina,
onde também cursou o mestrado, ambos sob a orientação da profa. dra. Ana Luiza
Andrade. Foi professora adjunta na Associação Luterana de Ensino Bom Jesus/Ielusc
(2014 e 2015). Atualmente, é integrante do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos
Benjaminianos (NEBEN) da UFSC e ministrante do Curso de Formação em Psicanálise
de Maiêutica Florianópolis — Instituição Psicanalítica.

Elizabeth Monasterios Pérez


É professora de Literatura Latino-Americana da University of Pittsburgh, co-editora do
Bolivian Studies Journal (Library of Congress). Doutora em Literatura pela University
of Toronto (1992). Membro fundadora das Jornadas Latino-Americanas de Literatura
e professora convidada para o Programa de Pós-Graduação em Literatura Latino-
Americana, na Latinoamericana na Universidad Mayor de San Andrés. Pesquisa:
estudos andinos, estudos bolivianos, epistemologias indígenas, modernismo e
vanguarda, teoria cultural do colonialismo e anti-colonialismo.

Erdmut Wizisla
É diretor do Arquivo Bertolt Brecht e do Arquivo Walter Benjamin (Akademie der
Künste, Berlim), professor honorário na Philosophischen Fakultät der Humboldt-
Universität, em Berlim, membro do Poets, Essayists, Novelists — Zentrum Deutschland
(PEN-Zentrum Deutschland). Estudou Germanistik, em Berlim, e desenvolveu sua
tese de doutorado sobre Walter Benjamin e Bertolt Brecht. Autor e editor de livros
sobre Brecht, Weigel, Benjamin e Uwe Johnson, além de ensaios sobre a história
literária alemã contemporânea.

Fabian Goppelsröder
É pesquisador no Peter Szondi-Institut für Allgemeine und Vergleichende
Literaturwissenshaft, da Freie Universität Berlin. Doutora pela Stanford University
(2011) sobre histórias de calendário e fait-divers; pós-doutorado pela Deutsche
Forschungsgemeinschaft in Potsdam sob o título Sichtbarkeit und Sichtbarmachung.
Hybride Formen des Bildwissens (2014). Publicações sobre visualidade, Wittgenstein e
arte, nos âmbitos Estética, Poética e Filosofia da mídia.

Fabrício Coelho
É bacharel em Geografia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2003) e
mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008),
onde desenvolveu a dissertação “Ensaio sobre a tradução da conferência Einleitende
Betrachtungen über die Verschiedenartigkeit des Naturgenusses und eine Wissenschaftliche
Ergründung der Weltgesetze, de Alexander von Humboldt”. Atualmente é graduando
do curso Letras — Alemão e doutorando em Estudos da Tradução na UFSC.

224
Francisco Degani
É tradutor literário e pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Literatura
da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em literatura italiana pela
Universidade de São Paulo (2014). Traduziu Alessandro Manzoni, Os noivos (Nova
Alexandria, 2012); Luigi Pirandello, Novelas inéditas (Nova Alexandria, 2017),
Giambattista Basile, O conto dos contos (Nova Alexandria, 2018), entre outros.
Organizador da coleção “Estudos Italianos” da editora Nova Alexandria. É membro
do Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana (NECLIT/UFSC) e
pesquisador do Dicionário de Literatura Italiana Traduzida no Brasil (UFSC—USP).

Jair Tadeu da Fonseca


É professor de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisa as
relações entre a literatura e outras artes, como o cinema e a canção popular, com ênfase
nos estudos latino-americanos, e as culturas lusófonas. Entre as publicações de livros
e capítulos: Jean-Luc Godard: História(s) da Literatura (Relicário, 2014), juntamente
com Mauricio S. Vasconcelos, “Imaculada Kangussu. Macunaíma, literatura, cinema
e filosofia”, na Antologia de textos estéticos (Civilização Brasileira, 2015). É também
cancionista.

Karin Volobuef
É professora assistente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (1984), mestre em
Letras/Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo (1991), e doutora
em Letras/Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo (1996). Atua
principalmente nos seguintes temas: E. T. A. Hoffmann, Romantismo, conto de
fadas, fantástico e romance fantasia (Fantasy Novel). Participa do grupo de pesquisa
“Literatura do Eu: subversões românticas”.

Leila Danziger
É artista plástica, professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. Suas pesquisas desenvolvem-se em
meios diversos (técnicas de impressão e de apagamento, fotografia, vídeo, instalação,
escrita) e orientam-se pelos atritos entre a memória familiar e as construções da
memória de violências extremas. Entre suas exposições individuais recentes estão
Navio de emigrantes, Caixa Cultural São Paulo (2019) e Brasília (2018); Ao sul do
futuro, Museu Lasar Segall, São Paulo (2018).

Maria Aparecida Barbosa


É professora de literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Realizou pós-
doutorado sobre Modernismo na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (2012).
Traduziu obras literárias em língua alemã para o português (E.T.A. Hoffmann, K.
Schwitters, C. Einstein, etc.). Pesquisa sobre as resenhas literárias de Walter Benjamin

225
e sobre a poesia de Ivan Goll. Faz parte da European Network for Avant-Garde and
Modernism Studies, da Carl Einstein Gesellschaft e da Associação Brasileira de Estudos
Germanísticos (ABEG).
Maria Isabel de Castro Lima
É professora do Curso de Letras Inglês e do Programa de Línguas (Extensão Inglês
e Espanhol) na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Licenciada em
Letras pela Universidade Federal de São Carlos (2004), mestre em Literatura pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Desenvolve trabalhos de tradução
e revisão acadêmicas, por exemplo para a Revista Estudos Feministas, a Revista
Internacional de Pesquisa em Educação Matemática, e congressos: Fazendo Gênero e
Mundos de Mulheres.

Maria Männig
É pesquisadora da visualidade estética, mantenedora, desde 2012, do blog ART [in]
CRISE, premiado pela Gesellschaft zur Förderung von Kunst, bem como do jornal
online NEUE Kunstwissenschaftliche Forschungen. Estudou Artes na Wiener Akademie
der bildenden Künste, História da Arte na Universität Wien, tem mestrado em História
da Arte e Teoria da Mídia na HfG Karlsruhe. Dedicou-se à pesquisa crítica da obra
de Hans Sedlmayr, o que resultou no livro Hans Sedlmayrs Kunstgeschichte — eine
kritische Studie.
Mary Anne Warken
É tradutora, professora de espanhol e doutoranda do Programa de Estudos da
Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (Bolsista/CAPES). Bacharel em
Língua Espanhola e Literaturas de Língua Espanhola (2014) e mestre em Tradução
Literária (2017), pela UFSC. Pesquisa a obra de Nicanor Parra e desenvolve pesquisas
relativas ao estudo da variação do espanhol chileno e literatura chilena. No doutorado,
dedica especial atenção aos estudos de tradução do texto poético desenvolvidos na
América do Sul.

Meritxell Hernando Marsal


É professora no Departamento de Língua e Literaturas Estrangeiras da Universidade
Federal de Santa Catarina, atua nos Programas de Pós-Graduação em Literatura e
Estudos da Tradução. Doutora em Letras na área de Língua e Literatura Espanhola
e Hispano-Americana na Universidade de São Paulo (2010). Sua pesquisa se volta
à literatura latino-americana contemporânea e à tradução, com atenção para os
discursos não canônicos, que pela língua, pensamento ou lugar de fala obrigam a uma
transformação da concepção do literário.
Olgária Chain Féres Matos
É graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1970), mestre em Filosofia
— Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) (1974) e doutora em Filosofia pela

226
Universidade de São Paulo (1985). Atualmente é professora titular aposentada da
Universidade de São Paulo e professora titular no Departamento de Filosofia da
EFLCH-Unifesp. É Coordenadora da Cátedra Edward Saïd (Unifesp). Tem experiência
na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos
seguintes temas: tempo, filosofia, razão, democracia e história.

Patricia Peterle
É professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras e dos Programas
de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-
doutora pela Università degli Studi di Genova (2015), e em História pela Universidade
do Estado de São Paulo — Assis (2012). Tem experiência nas áreas de Literatura
Comparada e Literatura Italiana, atuando principalmente nos seguintes temas: século
XX, poesia, categorias do contemporâneo, biopolítica, políticas do (in)comum,
poéticas do comum (contágios e contatos), ética e estética. É membro do Núcleo de
Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana.

Thaís Aparecida Domenes Tolentino


É doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal
de Santa Catarina (Bolsista CAPES), integrante do projeto de pesquisa “Amizades
intelectuais. Poétiza e crítica literária com Walter Benjamin” e do grupo de pesquisa
“Crítica Literária Materialista/UEM”. Graduada em Letras/Inglês e mestrado na área
Literatura e Historicidade (2013). Pesquisa o teatro brasileiro moderno e suas relações
com a teoria do teatro épico alemão.

Uwe Fleckner
É professor no Departamento de Estudos Culturais da Universität Hamburg e diretor
da Warburg-Haus. Estudou História da Arte, Filosofia e Germanística, e desenvolveu
pesquisa de doutorado na Universität Hamburg (1991). Possui inúmeros livros
publicados sobre arte e teoria da arte: Carl Einstein und sein Jahrhundert: Fragmente
einer intellektuellen Biographie (De Gruyter Akademie Forschung, 2006), Kunst in der
Stadt. Skulpturen in Berlin 1980-2000 (Nicolai Publishing & Intelligence GmbH, 2002),
dentre outros.

Valéria Sabrina Pereira


É professora adjunta na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
e atua na área de Língua e Literatura Alemã. Em 2006, defendeu seu mestrado sobre o
papel das personagens femininas em A canção dos Nibelungos e A saga dos Volsungo e,
em 2011, concluiu a tese sobre Das Echolot, de Walter Kempowski, um “diário coletivo”
sobre a Segunda Guerra, ambos na Universidade de São Paulo. Atualmente, pesquisa a
influência da ficção científica na literatura contemporânea.

227
Werner Heidermann
É professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina e membro dos Programas
de Pós-Graduação em Linguística e em Estudos da Tradução da UFSC. Graduado
em Deutsche Philologie e Philosophie (1981), doutor em Letras (1988) e pós-doutor
(2012) pela Universität Münster/Alemanha. Trabalhou na University of Jordan, em
Amã (1989-1992), na Universität zu Köln/Alemanha (1993 — 1995) e na Universidade
Federal de Minas Gerais (1996).

228
Este livro foi editorado com a fonte Minion Pro e Roboto. Miolo em papel pólen
soft 80 g; capa em cartão supremo 250 g. Impresso na Imprensa Universitária
da UFSC em sistema de impressão offset. Tiragem 500 exemplares.
Num gesto de protesto e advertência, queremos nos posicio-
nar através deste livro, em nosso gesto de erguê-lo hoje, qual
o de Lúcio Cardoso, contra uma política que tem buscado
sufocar todo o setor educacional no Brasil. Estamos conven-
cidos de que um livro pode servir de símbolo da urgência e
da premência do despertar, feito o gesto solidário e incon-
forme que o escritor Lúcio Cardoso certa vez empreendeu:
o gesto de erguer o livro como uma espada desembainhada
apontando com toda a clareza à prioridade da educação.

Levantar bem alto um livro!

9 788567 569482 9 788567 569499

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