EDUARDO GALEANO Veias Abertas Al p1 4 e 40 Ate 43

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AS VEIAS ABERTAS DA

AMÉRICA LATINA

EDUARDO GALEANO

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Galeano, Eduardo
As Veias Abertas da América LAtina: tradução de
Galeano de Freitas, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
(estudos latino-americano, v.12)
Do original em espanhol: Las venas abiertas da
America Latina

Este livro não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzido para fins não
comerciais no todo ou em parte, além de ser liberada sua distribuição, preservan-
do o nome do autor.

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Francisco levantou para ela um castelo, com um jardim de plantas exóticas e cascatas
artificiais; em sua honra dava opíparos banquetes regados pelos melhores vinhos, bailes
noturnos de nunca acabar e funções de teatro e concertos. Ainda em 1818, Tijuco festejou
o grande casamento do príncipe da corte portuguesa. Dez anos antes, John Mawe, um
inglês que visitou Ouro Preto, assombrou-se com sua pobreza: encontrou casas vazias e
sem valor, com letreiros que as colocavam infrutuosamente à venda, e comeu comida
imunda e escassa71.Tempos atrás tinha explodido a rebelião, que coincidiu com a crise na
comarca do ouro. Joaquim José da Silva Xavier, o Tíradentes, tinha sido enforcado e
despedaçado, e outros lutadores pela independência tinham partido de Ouro Preto rumo
ao cárcere ou ao exílio.

CONTRIBUIÇÃO DO OURO DO BRASIL AO PROGRESSO DA INGLATERRA

O ouro começou a correr no exato momento em que Portugal assinava o Tratado de


Methuen, em 1703, com a Inglaterra. Esta foi, a coroação de uma enorme série de privilé-
gios conseguida pelos comerciantes britânicos em Portugal. Em troca de algumas vanta-
gens para seus vinhos no mercado inglês, Portugal abria seu próprio mercado, e o de sua
colônias, às manufaturas britânicas. Dado o desnível de desenvolvimento industrial já
então existente, a medida implicava uma condenação à ruína para as manufaturas locais.
Não era com vinho que se pagavam os tecidos ingleses, mas com ouro, com o ouro do
Brasil, e neste processo ficariam paralíticos os teares de Portugal. Portugal não se limitou
a matar o embrião de sua própria indústria, mas também, de passagem, aniquilou os
germes de qualquer tipo de desenvolvimento manufatureiro no Brasil. O reino proibiu o
funcionamento de refinarias de açúcar em 1715; em 1729, declarou como crime a abertura
de novas vias de comunicação na região mineira; em 1785, determinou o incêndio aos
teares e fiadores brasileiros.
Inglaterra e Holanda, campeãs de contrabando de ouro, que juntaram grandes for-
tunas no tráfico ilegal da carne negra, açambarcam por meios ilícitos, segundo se calcula,
mais da metade do metal que correspondia ao imposto do “quinto real” que deveria
receber, do Brasil, a coroa portuguesa. Porém a Inglaterra não recorria somente ao comér-
cio proibido para canalizar o ouro brasileiro em direção a Londres. As vias legais também
lhe pertenciam. O auge do ouro, que implicou o fluxo contínuo de grandes contingentes de
população portuguesa para Minas Gerais, estimulou agudamente a demanda colonial de
produtos industriais e proporcionou, ao mesmo tempo, meios para pagá-los. Da mesma
maneira que a prata de Potosí repicava no solo espanhol, o ouro de Minas Gerais só
passava de trânsito por Portugal. A metrópole converteu-se em simples intermediária. Em
1755, o marquês de Pombal, primeiro ministro português, intentou a ressurreição de uma
política protecionista, mas já era tarde: denunciou que os ingleses haviam conquistado
Portugal sem os inconvenientes de uma conquista, que abasteciam a duas terças partes de
suas necessidades e que os agentes britânicos eram donos da totalidade do comércio
português. Portugal não produzia praticamente nada, e tão fictícia era a riqueza do ouro
que até os escravos negros que trabalhavam nas minas da colônia eram vestidos pelos
ingleses.72
Celso Furtado fez notar73 que a Inglaterra, que seguiu uma política clarividente em
matéria de desenvolvimento industrial, utilizou o ouro do Brasil para pagar importações
71. Augusto de Lima Júnior, op. cit.
72. Allan K. Manchester, British Preeminence in Brazil: its Rise and Fall, Chape Hill, Carolina do
Norte, 1933.
73. Celso Furtado, op. cit.
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essenciais de outros países e pôde concentrar inversões no setor manufatureíro. Rápidas e
eficazes inovações tecnológicas puderam ser aplicadas graças a esta gentileza histórica de
Portugal. O centro financeiro se transladou de Amsterdã para Londres. Segundo as fontes
britânicas, a entrada de ouro brasileiro alcançava 50 mil libras por semana em alguns períodos. Sem
esta tremenda acumulação de reservas metálicas, a Inglaterra não teria podido enfrentar,posterior-
mente, Napoleão.
Nada ficou, no solo brasileiro, do impulso dinâmico do ouro, salvo os templos e as
obras de arte. Em fins do século XVIII, embora ainda não se tivessem esgotado os diaman-
tes, o país estava prostrado. A renda percapita dos três milhões de brasileiros não superava
os 50 dólares anuais no atual poder aquisitivo, segundo os cálculos de Furtado, e este era
o nível mais baixo de todo o período colonial. Minas Gerais caiu verticalmente numa
grande onda de decadência e ruína. Incrivelmente, um brasileiro agradece o favor e sus-
tenta que o capital que saiu de Minas “serviu para a imensa rede bancária que propiciou o
comércio entre nações e tornou possível levantar o nível de vida dos povos capazes de
progresso”74. Condenados inflexivelmente à pobreza em função do progresso alheio, os
povos mineiros “incapazes” ficaram isolados e tiveram que se resignar a arrancar seus
alimentos das pobres terras já despojadas de metais e pedras preciosas. A agricultura de
subsistência ocupou o lugar da economia mineira75. Em nossos dias, os campos de Minas
Gerais são, como os do Nordeste, reinos do latifúndio e dos “coronéis de fazenda”, teimo-
sos bastiões do atraso. A venda de trabalhadores mineiros às fazendas de outros estados é
quase tão freqüente quanto o tráfico que os escravos nordestinos padecem. Franklin de
Oliveira percorreu Minas Gerais há pouco tempo. Encontrou casas de pau a pique, povoa-
dos sem água nem luz, prostitutas com idade média de treze anos na estrada do Vale do
Jequitinhonha, loucos e famélicos à beira do caminho. Conta-o em seu recente livro A
tragédia da renovação brasileira. Henri Gorceix disse, com razão, que Minas Gerais tinha um
coração de ouro num peito de ferro,76 porém a exploração de seu fabuloso quadrilátero
ferrífero corre por conta, atualmente, da Hanna Mining Co. e a Bethlehem Steel, asso-
ciadas no projeto: as jazidas foram entregues em 1964, ao fim de uma sinistra história. O
ferro, em mãos estrangeiras, não deixará mais do que o ouro deixou.
Só a explosão de talento ficou como recordação da vertigem do ouro, para não
mencionar os buracos das escavações e as pequenas cidades abandonadas. Portugal não
pôde, tampouco, resgatar outra força criadora que não fosse a revolução estética. O con-
vento de Mafra, orgulho de Dom João V, levantou Portugal da decadência artística: em
seus carrilhões de 37 sinos, seus vasos e seus candelabros de ouro maciço, cintila ainda o
ouro de Minas Gerais. As igrejas de Minas foram bastante saqueadas e são raros os objetos
sacros, de tamanho portátil, que nelas perduram, mas ficarão para sempre, alçadas sobre
as ruínas coloniais, as monumentais obras barrocas, os frontispícios e os púlpitos, os
retábulos, as tribunas, as figuras humanas, que desenhou, talhou e esculpiu Antônio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o filho genial de uma negra escrava e um artesão famoso.
Já agonizava o século XVIII quando Aleijadinho começou a modelar em pedra um conjun-
to de grandes figuras sagradas, ao pé do santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em
Congonhas do Campo. A euforia do ouro era coisa do passado: a obra se chama Osprofetas,
mas já não havia nenhuma glória por profetizar.Toda a pompa e alegria tinham-se des-
vanecido e não sobrava espaço para nenhuma esperança. O dramático testemunho final,
grandioso como um enterro para aquela fugaz civilização do ouro nascida para morrer,foi
74. Augusto de Lima Júnior, op. cit. O autor sente uma grande alegria pela "expansão do imperi-
alismo colonizador, que os ignorantes de hoje, movidos por seus mestres moscovitas, qualificam
de crime".
75. Roberto C. Simonsen, História Econômica do Brasil (1500-1820), São Paulo, 1962.
76. Eponina Ruas, Ouro Preto. Sua história, seus templos e monumentos, Rio de Janeiro, 1950.
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deixado aos séculos seguintes pelo artista mais talentoso de toda a história do Brasil. O
Aleijadinho, desfigurado e mutilado pela lepra, realizou sua obra-prima amarrando o
cinzel e o martelo em suas mãos sem dedos e arrastando-se de joelhos, cada madrugada,
rumo a sua oficina.
A lenda assegura que na igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, de
Minas Gerais, os mineiros mortos celebram ainda missa nas frias noites de chuva. Quando
o sacerdote se volta, levantando as mãos do altar-mor, se vêem os ossos do rosto.

O REI AÇÚCAR E OUTROS MONARCAS AGRÍCOLAS

AS PLANTAÇÕES, OS LATIFÚNDIOS E O DESTINO

A busca do ouro e da prata foi, sem dúvida, o motor central da conquista. Porém, em
sua segunda viagem, Cristóvão Colombo trouxe as primeiras raízes de cana-de-açúcar,das
ilhas Canárias, e as plantou nas terras que hoje ocupa a República Dominicana. Uma vez
semeadas, brotaram com rapidez, para o grande regozijo do almirante1. O açúcar, que se
cultivava em pequena escala na Sicília e nas ilhas Madeira e Cabo Verde e se comprava, a
preços altos, no Oriente, era um artigo cobiçado pelos europeus, que até nos enxovais das
rainhas chegou a figurar como dote. Vendia-se nas farmácias, era pesado por grãos2.
Durante pouco menos de três séculos a partir do descobrimento da América, não houve,
para o comércio da Europa, produto agrícola mais importante que o açúcar cultivado
nestas terras. Ergueram-se os canaviais no litoral úmido e quente do Nordeste do Brasil;
posteriormente, também as ilhas do Caribe - Barbados, Jamaica, Haiti, Guadalupe, Cuba,
Dominicana, Porto Rico -, Veracruz e a costa peruana foram sucessivos cenários propícios
para a exploração, em grande escala, do “ouro branco”. Imensas legiões de escravos
vieram da África para proporcionar, ao rei açúcar, a força de trabalho numerosa e gratuita
que exigia: combustível humano para queimar. As terras foram devastadas por esta planta
egoísta, que invadiu o Novo Mundo arrasando as matas, desgastando a fertilidade natural
e exigindo o húmus acumulado pelos solos. O longo ciclo do açúcar deu origem, na Amé-
rica Latina, a prosperidades tão mortais como as que engendraram, em Potosí, Ouro Preto,
Zacatecas e Guanajuato, os furores da prata e do ouro; ao mesmo tempo, impulsionou
com força decisiva, direta ou indiretamente, o desenvolvimento industrial da Holanda,
França, Inglaterra e Estados Unidos.
A plantação nascida da demanda de açúcar no ultramar era uma empresa movida
pela ânsia de lucro de seu proprietário e posta ao serviço do mercado que a Europa ia
articulando internacionalmente. Por sua estrutura interna, entretanto, levando em conta
que em boa parte se bastava a si mesma, alguns de seus traços predominantes eram
feudais. Utilizava, por outro lado, mão-de-obra escrava. Três idades históricas distintas -
mercantilismo, feudalismo, escravidão - combinavam-se assim numa só idade econômica
e social, porém era o mercado internacional que estava no centro da constelação de poder,
integrado desde cedo pelo sistema de plantações.
Da plantação colonial, subordinada às necessidades estrangeiras e financiada, em
muitos casos, do exterior, provém em linha reta o latifúndio de nossos dias. Este é um dos
gargalos da garrafa que estrangulam o desenvolvimento econômico da América Latina e

1. Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, La Habana, 1963.


2. Caio Prado Júnior, Historia económica del Brasil, Buenos Aires, 1960.
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um dos fatores primordiais da marginalização e da pobreza das massas latino-americanas.
O latifúndio atual, mecanizado em medida suficiente para multiplicar os excedentes de
mão-de-obra, dispõe de abundantes reservas de braços baratos. Já não depende da impor-
tação de escravos africanos nem da encomenda indígena. Ao latifúndio basta o pagamento
de diárias irrisórias, a retribuição de serviços em espécies ou o trabalho gratuito em troca do
usufruto de um pedacinho de terra; nutre-se da proliferação de minifúndios, resultado de
sua própria expansão, e da contínua migração interna de legiões de trabalhadores que se
deslocam, empurrados pela fome, ao ritmo de safras sucessivas.
A estrutura combinada da plantação funcionava, e assim funciona também o lati-
fúndio, como um coador armado para a evasão de riquezas naturais. Ao integrar-se no
mercado mundial, cada área conheceu um ciclo dinâmico; logo, pela competição de outros
produtos substitutivos, pelo esgotamento da terra ou pela aparição de outras zonas com
melhores condições, sobreveio a decadência. A cultura da pobreza, a economia de subsis-
tência e a letargia são os preços que cobra, no transcurso dos anos, o impulso produtivo
original. O Nordeste era a zona mais rica do Brasil e hoje é a mais pobre; em Barbados e
Haiti, residem formigueiros humanos condenados à miséria; o açúcar converteu-se na
chave-mestra do domínio de Cuba pelos Estados Unidos, ao preço da monocultura e do
empobrecimento implacável do solo. Não só o açúcar. Esta é também a história do cacau,
que iluminou a fortuna da oligarquia de Caracas; do algodão do Maranhão, de súbito
esplendor e súbita queda; das plantações de seringueira na Amazônia, convertidas em
cemitérios para os operários nordestinos recrutados em troca de moedinhas; das fazendas
de sisal, em Yucatán, onde os índios yaquis foram enviados ao extermínio. É também a
história do café, que avança deixando desertos, e das plantações de frutas no Brasil,
Colômbia, Equador e nos desditosos países centro-americanos. Com melhor ou pior sorte,
cada produto tem-se convertido num destino, muitas vezes fugaz, para os países, regiões
e homens. O mesmo itinerário seguiram, certamente, as zonas produtoras de riquezas
minerais. Quanto mais cobiçado pelo mercado mundial, maior é a desgraça que um produto traz
consigo ao povo latino-americano que, com seu sacrifício, o cria. A zona menos castigada por esta
lei de ferro, o rio da Prata, que lançava couros e depois carne nas correntes do mercado
internacional, não pôde, todavia, escapar à jaula do subdesenvolvimento.

O ASSASSINATO DA TERRA NO NORDESTE DO BRASIL

As colônias espanholas proporcionavam, em primeiro lugar, metais. Muito cedo


descobriram-se, nelas, os tesouros e os veios. O açúcar, relegado a um segundo plano, foi
cultivado em São Domingos, depois em Veracruz, mais tarde na costa peruana e em Cuba.
Entretanto, até meados do século XVII, o Brasil foi o maior produtor mundial de açúcar.
Simultaneamente, a colônia portuguesa da América era o principal mercado de escravos:
a mão-de-obra indígena, muito escassa, extinguia-se rapidamente nos trabalhos forçados,
e o açúcar exigia grandes contingentes de mão-de-obra para limpar e preparar os terrenos,
plantar, colher e transportar a cana e, por fim, moê-la e purgá-la. A sociedade colonial
brasileira, subproduto do açúcar, floresceu na Bahia e Pernambuco, até que o descobrimento
do ouro transferiu seu núcleo central para Minas Gerais.
As terras foram cedidas, pela Coroa portuguesa, em usufruto, aos primeiros grandes
senhores de terra do Brasil. A façanha da conquista tinha de correr paralelamente à
organização da produção. Somente doze “capitães” receberam, por carta de doação, todo
o imenso território colonial virgem,3 para explorá-lo a serviço do monarca. Todavia, foram
3. Sergio Bagú, Economia de la sociedad colonial. Ensayo de história comparada de Améri-
ca Latina, Buenos Aires, 1949.
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