Julia Lopes de Almeida - A Herança
Julia Lopes de Almeida - A Herança
Julia Lopes de Almeida - A Herança
A HERANÇA
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Personagens
ALMEIDA, Julia Lopes. A h - Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro –
Fevereiro/2011
GETEB – A Herança
Sala ampla de trabalho; uma porta ao fundo e uma larga janela gradeada, também ao fundo,
emoldurada de trepadeiras em flor; sobre o jardim, uma porta à esquerda e duas portas à
direita; mobília elegante e simples; uma mesa de trabalho com jornais, figurinos, cesta de
costura, etc. À esquerda uma estante baixa com livros; um retrato de homem suspenso na
parede; à direita, entre as duas portas, um espelho sobre um guéridon. Elisa, toda de luto, com
uma corrente, de que pendem chaves, na cintura, cose perto da mesa, tossindo de vez em
quando. Conserva-se só em cena, por algum tempo, até que entra Rita.
Cena 1º
RITA E ELISA
RITA: Mamãe está te chamando. Já sei porque é. Esqueceste-te de fazer o pudim de laranja!
(grita para dentro) Elisa está acabando de fazer minha blusa, mamãe! (para Elisa) Anda
depressa. Que amolação!
ELISA: Já tenho os dedos picados...
RITA: Todas as costureiras têm os dedos picados...
ELISA: Mas eu não sou costureira. Coso só para fazer as vontades...
RITA: Não fales, que é para não perder tempo. Digam o que disserem, quando a gente conversa
atrapalha o serviço. Eu já tenho experimentado conversar enquanto estou ao piano, e nunca
pude tocar três compassos em seguida sem confundir o que estou dizendo com o que estou
fazendo. É uma atrapalhação. Entretanto, há certas pessoas que estão tocando (imita o
exercício do teclado) e estão com a cara virada para o lado, a dizer coisas...
ELISA: E...
RITA (examinando a cabeça de Elisa): Talvez não saibas uma coisa... e é que estás ficando com
os cabelos brancos... Ninguém dirá que só tens vinte e cinco anos! Olha, tio Joaquim tem
sessenta e ninguém lhe vê nem um fio de cabelo branco... é verdade que se ninguém lhe vê
nem um fio de cabelos brancos é porque ele os pinta...(continua a examinar Elisa) Mas
agora dize-me: que mania é essa de usares sempre o retrato de maninho no peito? Todo
mundo sabe que ele foi teu marido. Não acho isso nada elegante... é indiscreto.
D. CLEMENTINA (de dentro): Elisa!
ELISA (levantando-se com modo impaciente e entregando a blusa a Rita): Aí está, se não ficar
ao teu gosto, desculpa. (Sai).
Cena 2º
Cena 3º
D. CLEMENTINA E JOAQUIM
JOAQ: Isso...
D. CLEM (vivamente): Não me interrompas!
JOAQ: Era só para lembrar-te que o elogio em boca própria...
D. CLEM: Ora, Joaquim! Não me faças perder a paciência com essas tolices... (pausa) que era
mesmo que eu estava dizendo?
JOAQ: Não me lembro...
D. CLEM: É sinal de que estavas prestando muita atenção! Ah, já sei! Falava da minha
responsabilidade de mãe de família.
JOAQ: É um assunto estafado!
D. CLEM: É o mais nobre da terra... e que me obriga a zelar pela saúde de minha filha e de
minha sobrinha...
JOAQ: Sim, na do irmão não falas...
D. CLEM: Era só o que faltava, que eu tomasse conta de uma pessoa mais velha do que eu!
JOAQ: Mas que o não parece!
D. CLEM: No juízo, realmente, pareces muito mais moço! E a prova é que te peço para ires de
propósito indagar do médico se a convivência da Elisa pode ser prejudicial às outras e tu não
me trazes solução.
JOAQ: Mas trouxe-te o médico!
D. CLEM: Porque não me disseste isso logo de uma vez! E onde ele está?
JOAQ: Ficou lá no vestíbulo conversando com o Chico, que o esperava na passagem para fazer
uma consultinha de graça! Lá o deixei de língua de fora. É pavorosa, a língua do Chico. Já a
viste?
D. CLEM: Ora, é como as dos outros!
JOAQ: Estás muito enganada. Nem imaginas! O que teu cunhado tem na boca... não é língua...
D. CLEM: Temos outra. Então que é? Já agora quero saber.
JOAQ: Uma coisa assim como uma folha de cajueiro muito larga, com malhas cor de ferrugem,
dor de cobre, dor de zinabre, sobre um fundo ouro-velho veiado de verde... e de branco... não
reparaste na minha palidez quando entrei? Era de espanto!
D. CLEM: Não percas tempo com essas baboseiras e dize-me para que veio o doutor.
JOAQ: Ora essa! Para examinar a Elisinha!
D. CLEM: Não bastaria mandar-me de lá a sua opinião?
JOAQ (mudando de tom): Não. Com doença tão séria não se brinca.
D. CLEM: Doença tão séria! Tão séria... quem sabe o que ela tem! Pela minha parte, estou até
convencida de que naquelas tossinhas e fraquezas entra um pouco de manha.
JOAQ: Estás sendo injusta. Que razões tens para dizer isso?
D. CLEM: As que só os cegos não querem ver...
JOAQ: Parece tão boa moça, coitada!
D. CLEM: Também era só o que lhe faltava, ser má! Nem tem ocasião para isso! Mas também
sempre gostaria que me dissessem quais são suas virtudes notáveis!
JOAQ: Foi uma excelente enfermeira do marido, e olha que aturar as impertinências de um
tuberculoso, dia e noite, é alguma coisa.
D. CLEM: Entendo que ela não fez mais do que o seu dever. Não se casasse. Eu aturei mais o
meu marido.
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D. CLEM: Qual amor! Ele era um rapaz inexperiente, seduziram-no. A tia, que lhe servia de
mãe, queria desfazer-se dela, para ir sozinha com seu mister para os Estados Unidos...
(parando para meditar um pouco). Quem sabe? Talvez fizesse bem à Elisa uma viagem aos
Estados Unidos...
JOAQ: Se queres que eu a leve, da-nos dinheiro para as passagens e o resto, e é já. Com o
dinheiro dos outros sou capaz de ir até ao fim do mundo.
D. CLEM: Se eu fosse rica... mas bem saber que o não sou, e é por isso que certas observações
tuas até me ofendem. Olha, quer creias, quer não, a verdade é que ainda devo a meu cunhado
perto de vinte contos. A herança do meu pobre filho, consumi-a em reformar a casa velha da
Penha e em resgatar a hipoteca desta. Se vivemos com fartura, não vivemos com luxo e hei
de me ver embaraçada para dar um dote à Ritinha...
JOAQ: Isso é que é um feitiço!
D. CLEM: A Ritinha?
JOAQ: Não, o dote.
D. CLEM: Ela não precisa disso para agradar.
Cena 4º
DOUTOR: Senhora D. Clementina, aqui me tens às suas ordens. O senhor seu irmão já me
informou de tudo e espero tranqüilizá-la.
D. CLEM: Obrigada, doutor. O que lhe peço é que seja absolutamente franco. Minha nora não
sabe que mandei chamá-lo para vê-la. Como é um pouco esquisita de gênio, poderia
esquivar-se a um exame mais demorado. O senhor a convencerá do que for preciso.
DR.: Eu sempre temi pela saúde daquela senhora, quando a via tão agarradinha ao marido, tão
sem precauções para a defesa da sua vida... mais de uma vez a adverti do perigo a que se
expunha. Foi uma enfermeira rara, uma verdadeira heroína...
D. CLEM: Creio que ela não fez mais do que cumprir o seu dever de boa esposa – e ninguém lhe
nega essa qualidade.
DR.: Perfeitamente... Em todo caso, afirmo-lhe que ela poderia ter cumprido esses deveres com
um pouco mais de previdência e de egoísmo. Em tais casos, a ciência exige hoje das
enfermeiras todas as precauções...
D. CLEM: Por falar em precauções, doutor, o que me impressiona é a ideia de que a convivência
da Elisa, caso ela esteja atingida por essa moléstia, seja prejudicial à Ritinha e à Bemvinda.
São todas moças e vivem tão unidas...
DR.: Esperemos que não haja motivo para sustos...
JOAQ: E se houver?
DR.: A prudência aconselharia uma separação... grandes cuidados... (para D. Clementina) Ela
não tem família?
D. CLEM: Não... ninguém... outra pergunta, doutor: é de opinião que se ela estiver mesmo
afetada dessa moléstia, deverá servir-se de louça à parte...
JOAQ (interrompendo): Essa moléstia! Essa moléstia! Dize logo: tuberculose! Não sei porque
não se hão de tratar as coisas pelos seus nomes!
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DR. (respondendo à D. Clementina): Todo cuidado nesse caso é pouco, como eu já disse. Mas,
esperemos que o mal não seja tamanho... (Bemvinda entra).
D. CLEM (vendo entrar Bemvinda): Olha, Bemvinda, o doutor está aqui dizendo que vocês não
devem nunca beber pelo mesmo copo de que Elisa se tiver servido, nem comer pelo mesmo
prato.
BEMV (admirada): Por que?
DR. (para D. Clementina, em ar de censura): Minha senhora...
D. CLEM: Ordens de médico não se discutem. Sê discreta, mas não te esqueças destas
recomendações. Assim como não devem beijá-la, principalmente na boca. Não é verdade,
doutor, que o beijo é um perigo?
DR.: Às vezes...
JOAQ: Sim... dos quinze aos trinta anos... digamos mesmo, aos quarenta...
BEMV (para o doutor, com interesse): Que doença tem a Elisinha?
DR.: Talvez nenhuma. Se mandassem chamá-la?
D. CLEM: Vai chamá-la, Bemvinda e deixa-a aqui só com o doutor. Eu, vou lá para dentro.
Muito sofre uma dona de casa. É só o que lhe digo...
DR.: E não me diz novidade nenhuma. É o eterno queixume!
D. CLEM: Aceita um cafezinho?
DR.: Não, obrigado.
D. CLEM: Licor? Uma limonada? (ele diz que não com a cabeça) Nem limonada?
DR.: Nem licor. (Elisa entra, D. Clementina sai).
JOAQ (indo buscar o chapéu e a bengala): A minha companhia é agora demais; cá os deixo à
vontade. Logo à noite procurá-lo-ei em sua casa, doutor. Até logo, sim?
DR.: Até logo (Joaquim sai, Elisa e o médico ficam um instante em silêncio, um em face do
outro).
Cena 5º
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DR.: Nunca vi uma enfermeira tão abnegada... mas desses dias não lhe devem ter ficado
saudades...
ELISA: Por que?
DR.: Noites mal dormidas... impertinências aturadas... vigilância de todos os minutos... um
inferno!
ELISA: Como se engana! Um paraíso, em comparação da saudade que ficou. Depois, ao menos,
naquele tempo de sacrifícios e de sustos, eu me sentia amada por alguém... oh, não me
obrigue a falar, doutor, não me obrigue a dizer coisas que eu não quero dizer... realmente...
conversar comigo... para que? Eu já perdi o hábito da conversação, se é que o tive alguma
vez...
DR.: Bem, mas eu não lhe peço que me conte os seus segredos, mas que me fale da sua saúde...
ELISA: Uma e outra coisa estão tão ligadas... (tosse).
DR.: Tenho-a ouvido tossir...
ELISA: É nervoso...
DR.: Deve ser. Mas, diga-me: não sente mais nada?
ELISA: Sim.
DR.: O que?
ELISA: Uma tristeza imensa! Às vezes parece que me sufocam, que todo o meu sangue está
desfeito em lágrimas, aqui, na garganta... depois, passa, como tudo que é cisma, e eu fico
boa... mas irritada... impaciente... não sei como!
DR.: E... febre?
ELISA: Talvez... ao cair da noite... uns arrepios... a sensação de mudar de pele, como as
cobras...(ri)
DR.: Continua a habitar o mesmo quarto em que morreu seu marido?
ELISA: O mesmo.
DR.: Diga-me: em solteira...
ELISA (mudando para um tom leve e alegre): Em solteira eu era forte e alegre; estudava meu
curso na Escola Normal e as fadigas de espírito,que atormentavam as minhas colegas,
pareciam-me leves a mim. Quer que lhe diga? Eu estava até muito convencida de ser
inteligente e de pela minha inteligência chegar um dia a ser alguém! Estudava, estudava,
estudava, com o sentido nos meus exames, e os meus exames animavam-me a prosseguir na
carreira com verdadeiro entusiasmo. Imagine: no fim estava a minha independência, o meu
futuro assegurado... uma escola risonha, muito asseada, muito disciplinada, cheia de crianças
inocentes a quem ia servir de mãe espiritual... Oh! Eu tinha uma verdadeira vocação para
mestra! (suspira, muda de tom). Faltava pouco tempo para completar o meu curso quando
me casei... Meu marido opôs-se a que eu continuasse a estudar... (baixo) Foi um desastre...
(outra vez alegre). Fale-me do meu tempo de solteira, doutor, se me quiser ver rir! (ri-se,
tosse).
DR.: Mas por que não completa esse curso agora que está livre? Seria pelo menos uma
distração...
ELISA (pensativa e grave): Seria um crime: (pausa) A minha saúde não em permitirá nunca
mais conviver com crianças... ah, eu não me iludo, nunca mais... (fica com o olhar perdido
no vácuo, com expressão dolorida. O Doutor disfarça a sua comoção).
DR.: Permite-me que a ausculte?
ELISA: Para que? Não acha justo que eu tivesse herdado alguma coisa do meu marido?
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Cena 6º
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RITA: É impossível!
BEMV: Para mim, essa palavra não existe.
RITA: Ah não? Então casa-te com o Maurício...
BEMV: Da melhor vontade. Só há uma dificuldade: é que ele ainda não se declarou! Não sei o
que está esperando... pois não é por falta de eu lhe proporcionar as ocasiões... apesar de
tudo, tenho tanto medo!
RITA: Medo?!
BEMV: E um desejo doido!...
RITA: Na verdade, neste mundo não há nada melhor que uma declaração de amor!
BEMV: Ias contar hoje a do Luiz, quando titia chegou... conta agora, que estamos sós! O Luiz é
um rapaz de tanto talento... deve ter dito palavras lindas!
RITA (com enlevo): Disse!
BEMV: Eu imagino! Ele é poeta!
RITA: Um grande poeta!
BEMV: Falou em verso? Como foi?
RITA: Eu te conto, (olha em roda para verificar se estão bem sós, põe-se em atitude apaixonada
e depois de se fazer um pouco esperar) - “Eu gosto muito da senhora!” (com mais
veemência) “Eu gosto muito... muito da senhora!” (fica-se em êxtase).
BEMV: Só?
RITA (ainda em êxtase): Só...
BEMV: E tu... que lhe respondeste?
RITA: Nada...
BEMV: Que eloquência!
RITA: Que perturbação!
BEMV: Então, o negócio é mais fácil do que eu supunha. E a cara dele?
RITA: Não sei... tremi... corei... fechei os olhos... (arremeda o gesto, pausa) e, quando os abri...
BEMV (que tem tirado sorrateiramente a carta do peito de Rita): Já a Bemvinda estava com a
carta na mão! (foge rindo, Rita persegue-a).
RITA: A minha carta... eu quero... a minha carta!
BEMV (sempre defendendo a carta): Podes querer!
RITA: Má!... (persegue Bemvinda, entra D. Clementina): Foi uma traição! Má!...
D. CLEM (com uma costura que vem pôr sobre a mesa): Que é isso, meninas?
RITA (parando): É brincadeira, mamãe.
BEMV: Não é tão brincadeira, titia, quer que lhe conte? (Rita faz um gesto súplice, riem-se).
D. CLEM: Dispenso... pois só o que lhes digo é que vai chover e não vem cá ninguém. Mal
empregado jantar. E o doutor?
RITA: Que doutor?
BEMV (repentinamente triste): É verdade!
D. CLEM: O Dr. Seabra que veio examinar a Elisa.
RITA: Eu não sabia. Mas ele aí vem, olhe.
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Cena 7º
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Cena 8º
D. CLEM (depois de um largo silêncio): O doutor não lhe proibiu essas leituras?
ELISA: Não...
D. CLEM (vagarosamente): Pois admira... porque isso de ler muito só pode servir para
prejudicar a saúde e atrapalhar as ideias.
ELISA: Passam-se semanas que eu nem pego num livro!
D. CLEM (rindo-se): Semanas! Não se passa um dia que eu não a veja ler!... falo para seu bem.
Por mim pouco me importa que leia ou que deixe de ler...
ELISA: Obrigada... (um intervalo de silêncio).
D. CLEM: Sabe quantos ovos vieram hoje do galinheiro?...
ELISA: Não...
D. CLEM (com estranheza): Ora essa!
ELISA: Não os contei... não tive tempo.
D. CLEM: Foi pena... (depois, resmungando). Só eu tenho tempo para tudo... (continua a coser e
Elisa a ler, pausa). O médico não a aconselhou a tomar ovos?
ELISA: Sim, parece que falou nisso...
D. CLEM: Parece!... parece! Se nem disso você tomar conta, estamos bem aviados! (pausa) E
vinho?... quantas caixas temos ainda de vinho do Porto?
ELISA: Duas...
D. CLEM (com espanto): Só?! Parece impossível, senhores, nunca vejo ninguém aqui beber
vinho do Porto e ele some-se... como por encanto! (Elisa faz um ligeiro gesto de
contrariedade; pausa. D. Clementina procura a tesoura, corta a linha e depois continua)
tem recebido notícias de sua tia?
ELISA: Não... (deixa cair o livro sobre os joelhos e fica meditativa).
D. CLEM: No entanto, ela dizia-se tão sua amiga, hein? Vão lá entender essas coisas... (Elisa
sorri com ironia; pausa) Sabe onde achei hoje a chave da despensa?
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Fevereiro/2011
GETEB – A Herança
ELISA: Não...
D. CLEM: Em cima da mesa da cozinha, à disposição dos criados...
ELISA: Naturalmente, esqueci-me quando fui tirar o açúcar para o café...
D. CLEM: Esses esquecimentos são muito prejudiciais...
ELISA: É que eu estava pensando em vir acabar a blusa da Ritinha...
D. CLEM (repreensiva): Quando se faz um serviço, é bom não se pensar em outro.
ELISA (nervosa): Mas isso acontece a qualquer...
D. CLEM (azedando-se): Qual acontece! Olhe, eu seria muito vagarosa, mas o que lhe afirmo é
que a mim nunca me sucediam desses desastres.
ELISA (com ironia): Nem todos podem ser perfeitos.
D. CLEM (cada vez mais impaciente): É por isso que agora nada chega. Só arrobas de açúcar
vieram quatro esse mês! Quatro! É espantoso!
ELISA: Também é bom lembrar que se fizeram taxadas de doce para um semestre!
D. CLEM: Havemos de ver isso... um semestre! (pausa) Desde que não sou eu quem toma conta
da casa, os gêneros voam!
ELISA (impaciente): Pois eu não os atiro pela janela fora!
D. CLEM (irritada): Também, era o que faltava!
ELISA: Talvez faltasse ainda alguma coisa!
D. CLEM (levantando-se colérica e olhando espantosa para Elisa, que também se levanta): Que
mais pode faltar, faça o favor de me dizer?
ELISA (desesperada): Isto! (arranca da cintura o molho de chaves e arremessa-o para cima da
mesa. Entram Rita e Bemvinda, que observam tudo do fundo, com espanto).
D. CLEM (imperativamente, com desespero): Basta de loucuras!
ELISA (desafogando-se): Não! Basta de humilhações. Não posso mais! Fique sabendo que a
mulher de seu filho entrou nesta casa como pessoa da família e não para criada de servir.
Desde o princípio eu percebi tudo, tudo!
D. CLEM: Mas é o que eu digo. Ela está doida!
ELISA: Não! Não estou doida, deixe-me falar! A verdade é esta. Seu filho era rico, e a senhora
pensava que eu me tivesse fascinado pelo dinheiro, sem perceber que se algum de nós
sacrificava alguma coisa ao outro era eu, eu, que por imposição dele interrompi os meus
estudos, cortei o meu futuro, todas as minhas ambições! No entanto, a senhora lamentava
que ele se tivesse casado com uma rapariga pobre e desconhecida...
D. CLEM: Mas isso é uma calúnia! Eu não disse nada a ninguém!
ELISA: Se não o disse, pensou-o; e de um modo tão claro que tudo percebi! Mais tarde então,
quando viram que o meu pobre marido estava tísico, tudo mudou; começaram a tratar-me
com doçura, quase amorosamente, para animar-me a ser eu sozinha a enfermeira do
tuberculoso! Mas, desde o momento em que ele fechou os olhos para sempre, deixei de ser
uma utilidade, para voltar ao meu papel de outra, uma criatura estranha à família e por isso
mesmo pesada e importuna... pouco a pouco, porém, foram achando jeito de aplicar-me em
diversos serviços, com que eu pagasse o pão que comia. Ah, eu não estou inventando!
Percebi tudo, e calei-me. Passei assim a ser uma espécie de governante do lar em que de fato
tinha fortuna, que eu não herdei, para herdar só a sua moléstia e o seu nome, que já agora
entrarão comigo para o registro do hospital e para a vala comum de cemitério!
D. CLEM (fora de si): Mas ela não sabe o que diz.
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GETEB – A Herança
ELISA: Sei! Olhe, por aquela porta, por onde entrei com meu marido num dia azul, sairei
sozinha num dia de tempestade. Vim para a felicidade que não encontrei, vou para o
imprevisto, que talvez me socorra! Não me olhem assim aterradas. Fiquem nos seus lugares.
Eu volto para o meu, com a minha herança! (Sai com um ataque de tosse pelo fundo,
batendo com a porta. Há um instante de perplexidade).
RITA (correndo para D. Clementina,d e mãos postas): Mamãe... Mamãe!
(Ouve-se roncar a trovoada; ficam todas suspensas, com o ouvido à escuta).
BEMV (corre à janela, depois de ter ido até D. Clementina, como à espera de uma ordem):
Elisa!... Elisa!...
D. CLEM (deixando-se cair numa cadeira, com o rosto alterado, e o olhar fixo no retrato do
filho): Meu filho... meu filho... eu não tive culpa...
BEMV (à janela): Elisa!... Elisa!...
(Cai o pano)
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