Língua, Linguagens, Discurso
Língua, Linguagens, Discurso
Língua, Linguagens, Discurso
Linguística e para-linguístka
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ANÁLISE DE DISCURSO - MIGUEL PmiEux
ANÁLISE DÊ DiSCURSO - MlCHEL PÉCHRUX
pio, o domínio à-a.poiítica e o ^produção cientifica, constata-se como o resultado da adjunção de três sufixos (-amos, -emos,
que, nestes dois domínios, as palavras podem mudar de sentido -ávamos) ao radical fal do verbo falar5. Consideremos, além
de acordo com as posições sustentadas por aqueles que as empregam. disso, o termo intercalado — ar . Percebe-se que apenas um dos
Nestas condições, cabe perguntar: trata-se ainda de um problema três sufixos assinalados pode ser combinado com fal-ar, pois as
puramente linguístico? Em caso contrário, como redefinir, a pro- formas fa-lar-amos e fa-lâr-vamos7 \ não realizadas em português,
pósito de exemplos deste tipo, a relação entre a ciência linguística constituem um "bârbarismo", isto é, um erro que conduz a uma
e o domínio da História, tal como concebida por Marx, e cuja forma inexistente na língua.
exploração teórica e prática continua nos dias de hoje? O nível sintatico, enfim, remete às regras que, em. urna língua
determinada, regem a construção das frases pelo encadeamento
Fonologia, morfologia, sintaxe, semântica das palavras. Trata-se, neste caso, de evitar erros na construção
finológica correspondem regras que autorizam ou interditam esta verbais que, em português, correspondem a tempos diferences e que não corres-
pondem aos tempos do exemplo dado em francês. [NT]
ou aquela combinação de fonemds. Vou limitar-me a traduzir da mesma forma como foi produzida a análise em francês,
isto é, sem recorrer a terminologia teórica, pois o texto originai é mn artigo de
O nível morfológico tem por objeto o estudo das formas de divulgação cientifica, publicado em jornal e, em função disso, a análise feita não
que as palavras de uma dada língua se revestem. Seja, por exem- visava a especialistas e sim a. sujeitos leigos. O objetívo do exemplo é mostrar da
forma mais simples possível o funcionamento morfológico da língua. [NT]
pio, as três íoïm^s - falamos, falemos, falávamos - consideradas
Em francês, a forma não realizada é par-ler-âmes. [NT]
Em francês, "Vous faire moi rigoIer"[NT
4 Em francês o par opositívo é kmpe / rampe[NT],
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ANÁLISE DE DISCURSO - MlCHËl. PKCHKUX ANÁLÍSE DE DiSCU&SO - MlCHEL PËCHEUX
condições, a semântica seria o prolongamento e o coroamento dições sócio-históricas não é, de forma alguma, secundário, mas
dos níveis inferiores da linguística. constitutivo das próprias significações: como se observou com
toda a propriedade, falar é totalmente diferente do que produzir
A linguística e as outras ciências humanas um exemplo de gramática. Por conseguinte, pode-se esperar "am-
pliar" a teoria linguística pelo viés de uma semântica geral (ciência
geral das significações), que liberaria a linguística do "grilhão10
Há, entretanto, um índice que mostra que a questão não é formal" da gramática? Veremos agora como se tentou realizar esta
tão simples, pois enquanto a fonologia geral aplica-se ao estudo tarefa e examinaremos as consequências daí resultantes.
d-a fonologia do francês, do inglês, do árabe, etc. (o mesmo
ocorrendo com a morfologia e a sintaxe), é difícil conceber o
Linguística e estudo das linguagens
que seria a semântica do francês, do inglês, do árabe, etc: tudo
Notemos, para começar, que é absurdo recriminar a
ocorre como se a correspondência entre teoria geral e o estudo
linguística por se restringir a seu objeto: toda disciplina cÍen-
particular de uma dada língua desaparecesse no nível da se-
tífica se constituí pela exclusão de seu campo daquilo que, até
mântica. Entretanto, ela não se libera de todo dado concreto :
então, a obcecava, no sentido literal do termo. Desta forma,
simplesmente, ela vai buscá-los em outro lugar; por exemplo, na
a linguística excluiu de seu campo as questões do sentido,
sociologia, na psicologia, na história, na literatura, etc-, que lhe
da expressão das significações contidas nos textos. Ora, estas
fornecem o concreto, mas recortado diferentemente do concreto
questões, que não deixam de ser formuladas (atualmente são
linguístico de uma dada língua nacional. Observar-se-á, sem
sobretudo as diferentes "ciências sociais", citadas acima, que,
dúvida, que estes componentes "sociais" e literários não estão
direta ou ind-iretamente, delas se ocupam), insistem junto à
ausentes dos domínios fonológico (r guturaT' dos meios urbanos
linguística para serem resolvidas com os meios teóricos de que
/ r "vibrante" ainda presente no interior9), morfológico (variações
esta última dispõe; e o modo como a linguística resiste ou cede
históricas de prefixos e sufíxos, criação de palavras novas ligadas
a esta demanda se traduz definitivamente na relação que esta
ao aparecimento das estradas de ferro..-ou do socialismo) e sín-
ciência mantém com seu exterior específico e que ela mesma
tático (será que a gramaticalidade não varia, pelo menos nestas
expressa pela oposição língua-fala. Ao conceito (científico) de
zonas de fronteira, em função de dados sócio-históricos?). Trata-
língua se opõe, pois, a noção de fala, representando o modo
se apenas (salvo, talvez, para o último ponto), de propriedades
como cada indivíduo usa a língua, maneira única pela qual
secundárias do ponto de vista. linguístico, das quais não compete
ccada sujeito falante" manifesta sua liberdade dizendo aquilo
à teoria gerai dar conta.
que nunca será ouvido uma segunda vez". Entretanto, esta
O caso é compieramente diferente para a semântica. Com liberdade aparece, de imediato, submetida a leis, não apenas
efeito, o laço que liga as "significações" de um texto a suas con- no sentido de coerções Jurídicas (que limitam a liberdade de
expressão), mas também no sentido de determinações sócio-
Esta oposição entre o "r" urbano e o "r" interiorano, própria do francês, também
históricas desta liberdade da fala: é-se, assim, levado a pensar
pode ser verificada no Português do Brasil. Só que, no nosso caso, não se trata da
oposição "gurural / vibrante". No Brasil, teremos o "r" gutural", urbano,e o r
retrofiexo, típico da fala caipira, tal como praticada no interior de S.Paulo e de Ï O Em francês, o termo usado foi "cancre" que significa colar de ferro utilizado para
Minas, por exemplo.[NT] prender um criminoso. [NT]
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ANÁUSE DK DISCURSO - MiCHEL PECHEUX ANÁLISE DE DiSCURSO - MlCHEL PÉCHEUX
que, em uma determinada época e em um "meio social dado , A linguística serve, desta forma, de caução a um empre-
a "fala", sob suas formas políticas, literárias, académicas, etc. endimento "de análise geral do inteligível humano"12, isto é, a
se organiza necessariamente em "sistemas" regidos por leis. E uma impossível ciência da realidade, ao lado ou melhor acima das
é, definitivamente, este par ideológico liberdade + sistema que ciências existentes. Para caracterizar rapidamente a natureza impos-
recobre o termo fala; o segundo sentido da palavra linguagens sível desta nova ciência das ciências, diremos que ela decorre da
(no plural)11, ao designar a existência de uma pluralidade de relação que é aqui estabelecida entre o dado concreto, empírico,
sistemas (sistema da narrativa, do drama, etc.), constitui, por extraído do que os anglo-saxões chamam de vida quotidiana, e
conseguinte, uma tentativa de resolver esta contradição, rea- os conceitos supostamente capazes de descrevê-lo.
11 Ver acima, na definição da linguística, o primeiro sentido dado a este cermo. 12 Cf. a Apresentação do número 4 da Revista "Communicarions"
ANÁLISE DE DISCURSO - MiCHEL PÊCHRUX ANÁUSE Dl: DiSCURSO - MlCHEL PÊCHEUÏ;
Lugar de uma "teoria do discurso" no materialismo dialético pelo termo enunciaçao, pela qual se efetua a tornada deposição
do "sujeito falante" em relação às representações das quais ele
é o suporte14. Alguns linguistas e pesquisadores especializados
Mas é preciso, de imediato, dissipar outro possível equí-
no estudo de textos começam a trabalhar sobre este ponto15,
voco. Não devemos deduzir, do que acaba de ser exposto, que a
decisivo para o futuro das relações entre a linguística (ou teoria
língua, enquanto realidade autónoma desaparece, que a própria
da língua) e o que foi designado aqui pelo nome provisório
gramática não passa de objeto da luta de classe (!) . Na realidade, é
de "teoria do discurso", e que constitui de direito um seíor do
mais conveniente conceber a língua- (objeto da linguística) como
materialismo histórico destinado, provavelmente, a um grande
a base sobre a qual processos se constróem; a base linguística
desenvolvimento.
caracteriza, nesta perspectiva, o funcionamento da língua em re-
laçao a si própria, enquanto realidade relativamente autónoma; e
é preciso, por conseguinte, reservar a expressão processo discursivo
(processo de produção do discurso) ao funcionamento da base Tradução: Freda Indursky (UFRGS)
linguística em relação a representações (cf. exposto acima) postas
em jogo nas relações sociais. ISÈO permite compreender porque
formações ideológicas muito diversas podem se constituir sobre
uma única base (resposta ao problema: uma só língua/várias
culturas).