O Duplo Nas Visoes de Mundo Do Pos-Morte PDF
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ReflexõesInterdisciplinaresSobreoMedievo
Aline Dias da Silveira
Mariana Paolozzi
(Organizadoras)
SER, TEMPO E ESPAÇO
Reflexões Interdisciplinares Sobre o Medievo
Série Dissertatio Filosofia
Pelotas, 2018
REITORIA
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A Série Dissertatio Filosofia, uma iniciativa do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Filosofia (sob o
selo editorial NEPFIL online) em parceira com a Editora da Universidade Federal de Pelotas,
tem por objetivo precípuo a publicação de estudos filosóficos relevantes que possam contribuir
para o desenvolvimento da Filosofia no Brasil nas mais diversas áreas de investigação. Todo o
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Os direitos autorais dos colaboradores desta obra estão de acordo com a Política
Editorial do NEPFil online.
VI
SUMÁRIO
Introdução
VIII
INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
12
INTRODUÇÃO
e provocar com sua obra, mas para além disso, está em jogo também o
impacto que causa no leitor contemporâneo, a partir de sua própria
bagagem e subjetividade.
Da imagem literária passamos ao imaginário fílmico. Poderíamos
dizer que nosso pensamento se articula através de imagens em constante
movimento, como um filme em nossas mentes? Por outra perspectiva, seria
o imaginário fílmico a moderna expressão e projeção de nossos
pensamentos, sentimentos, expectativas e frustrações? Essas questões
orientam o trabalho de Rodolpho Bastos no capítulo “A Presença de Maria
no Filme “O Rei Dos Reis!”: sobre o imaginário feminino”. O historiador
retorna à discussão a respeito do imaginário como categoria historiográfica
e se utiliza da análise diacrônica para compreender, nos elementos do
pensamento eclesiástico medieval, as origens de imaginários sobre o
feminino no século XX, presentes em filmes religiosos.
No capítulo seguinte, Rodrigo Prates de Andrade nos traz uma
interpretação inovadora do tempo experimentado no medievo no capítulo
“Graças Divinas, Feitos Sagrados: o Llibre dels Feyts e a Experiência Cristã
do tempo”. Distanciando-se de generalizações correntes sobre o tempo
cristão teleológico medieval, Rodrigo Prates de Andrade aponta para a
importância dos feitos, da ação humana, em acordo com a rememoração
ritualística dos antepassados, onde predestinação é o mesmo que
repetição, ou renovação da aliança divina, trazendo sacralidade aos feitos,
lançando-os, assim, à eternidade.
Para finalizar, podemos dizer que as análises apresentadas neste
livro consideram tempos e espaços diversos como convergentes, isto é,
coexistindo. De modo que o espaço ao qual aludimos não pode ser limitado
como em um contêiner, mas é múltiplo e complexo, fazendo jus ao tempo
ao qual nos referimos. Espaço político, social, físico, imaginativo,
memorialístico, ritualístico ou sagrado, se quisermos. Longe estamos do
espaço estático. Este é o espaço da ação humana.
Diante de todas essas reflexões, perguntas e discussões, nos
parece que o tempo humano é constituído pela confluência de diversas
experiências e que sua representação linear seria uma forma simplificadora
de processos bem mais complexos, isto é, apenas uma aparência ou
maquiagem que nos traz o sentimento de controle ou segurança sobre o
transcorrer dos acontecimentos. Dividi-lo é tão somente um artifício didático
que não pode ser naturalizado, sob a pena de, a partir dessa divisão,
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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1
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OS POEMAS DE BOÉCIO E A ORDEM DO UNIVERSO
Por outro lado, é certo que o texto nunca se afasta da doutrina cristã
recebida e aceita, e no conjunto dos princípios e opiniões encontra-se um
sistema que não pode ser outra coisa senão cristão. Contudo, nas mesmas
evidências literárias do texto, tanto os poemas como as prosas demonstram
uma inspiração explicitamente pagã, pois não só a mitologia e a cultura
greco-romana são invocadas a cada passo, como se reconhecem muitas
idéias da filosofia não-cristã, nomeadamente de Platão, de Aristóteles, do
neoplatonismo, do pitagorismo, e do estoicismo. Há, pois, dois ambientes
mentais, que são distintos nas prosas e nas poesias; ao todo são trinta e
nove poemas e trinta e nove prosas, que ao longo da obra se alternam,
como se fossem dois textos muito diferentes entrelaçados, que se
completam, mas que podem ser estudados em separado.
O espaço
Dos 39 poemas cantados pela Filosofia há 33 onde se encontram
referências, diretas ou alegóricas, à geografia e à astronomia. Nomes de
entidades mitológicas que simbolizam seres físicos. São citados cerca de
vinte entidades, que se repetem ao longo do livro: Febo (Apolo, ou o sol) é o
mais invocado (15 vezes); os ventos aparecem quase todos: Aquilão,
Austro, Boreas, Coro, Noto, Zéfiro; muitas estrelas e constelações: Lúcifer,
Vesper, e Héspero, Sírius, Câncer, Capricórnio, Arcturo (o Guardião) e a
Ursa. São nomeados, ainda, outros seres mitológicos não relacionados com
o espaço: as Musas, Camenas, Ceres, Baco, Cópia, Febe, Orfeu e Eurídice,
a filha do Sol (Circe), o Deus alado (Mercúrio), e uma extensa enumeração
dos seres infernais e perigosos: Cerbero, Hidra, Aquelóo, Polifemo (etc IV,
7). Há também referências geográficas: Trácia, Tule, Frígia, Líbia, Índia; os
montes Nerito e Etna e o Aquemênia (na Pérsia); os rios Tejo, Eufrates, e
Tigre; e os mares Tirreno e Vermelho. Há uma centena de referências a
nomes gerais de acidentes geográficos e da astronomia: céu, estrelas, sol,
lua, éter, astros, terra, mar, nuvens, praia. Estes são frequentemente
citados em parelhas de opostos ou de complementos – o que simboliza a
totalidade: noite/dia, luz/trevas, terra/céu, terra/mar, cavernas/céu, sol/lua,
estrelado/terrestre, terra/ar. Usa-se vários nomes comuns para indicar o
mar: mare, oceanus, pontus, pelagus, littora, salum e da mesma forma os
astros: astra, sidera, stellae.
A análise destas referências permite-nos dizer que Boécio não está
invocando divindades, mas usando seus nomes como alegoria para dar
uma repercussão de cultura clássica ao seu texto; ele constrói todo um
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OS POEMAS DE BOÉCIO E A ORDEM DO UNIVERSO
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sempre em mudança (II, 3) é mais certo ainda que o que muda varia
segundo uma concordância estável (II, 8). Se alguma coisa é forçada a
desviar-se do seu curso normal sempre procura voltar a ele, porque a ele
está ligada por um laço indissolúvel (III, 2). Tão fixa é a relação entre as
coisas que as leis do universo podem ser expostas em números: assim ele
fazia quando era mais jovem e estudava a luz do sol, as fases da lua, e o
curso das estrelas, dominando-as ao reduzi-las a números: Comprensam
numeris victor habebat (I, 2, 12) pois é desse modo que o próprio “Criador”
vincula os elementos com leis matemáticas: Tu numeris elementa ligas (III,
9, 10). O número, isto é, a lei da exatidão é a norma perfeita, definida,
inquebrável, eterna, e é ele que governa o mundo. É por isso que os astros
seguem o seu curso sem perturbação, sem se intrometer nas órbitas uns
dos outros, sem alterar o seu caminho, sem errar, e assim o fazem num
ciclo eterno (IV, 6, 5-15).
A atração universal
Não é possível harmonizar tal rigidez na ordem do mundo com a
idéia de um pacto social (socia fide) entre os seres moventes do cosmo e
da natureza, a não ser que se explique melhor a constituição do pacto. Ora,
mais do que “fidelidade“, o que estreita os laços do universo é o amor: o
que regula a luz do dia e a sucessão das noites que contém os mares, e os
limites das terras, o que liga, rege e impera, é o amor:
Hanc rerum seriem ligat
Terras ac pelagus regens
Et coelo imperitans amor (II, 8, 13-15)
A palavra amor e os seus derivados, indicando a relação harmoniosa
entre os elementos do universo, aparece pelo menos cinco vezes nos
poemas:
Imperitans amor (II, 8, 15)
Amat invicem (II, 8, 17)
Amor quo coelo regitur (II, 8, 29)
Alternus amor (IV, 6, 17)
Communis amor (IV, 6, 44)
A leitura é bastante evidente: por um lado o amor impera e rege, ou
seja, exerce as funções do pacto e da lei que ordenam o mundo e pode,
portanto, identificar-se com eles. Por outro lado, representa uma ação
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OS POEMAS DE BOÉCIO E A ORDEM DO UNIVERSO
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OS POEMAS DE BOÉCIO E A ORDEM DO UNIVERSO
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REFLEXÕES SOBRE A NOÇÃO DE PESSOA EM BOÉCIO
2 “natura est earum rerum quae, cum sint, quoquo modo intellectu capi possunt”; “natura est
uel quod facere uel quod pati possit”; “natura est motus principium secundum se, non per
accidens”; “natura est unam quamque rem informans specifica differentia”.
3 Conforme nota 82 de “Contra Êutiques e Nestório”, p.223.
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REFLEXÕES SOBRE A NOÇÃO DE PESSOA EM BOÉCIO
racionais
sensíveis
irracionais
(cavalo; boi)
viventes
não viventes
(pedra)
Deus
(imutável; impassível)
racionais
irracionais
(alma vegetativa e sensitiva dos animais)
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
4 BOÉCIO, 2005, p.163: “[...] neque in non uiuentibus corporibus personam posse dici
manifestum est (nullus enim lapidis ullam dicit esse personam), neque rursus eorum
uiuentium quae sensu carente (neque enim ulla persona est arboris), nec uero eius quae
intellectu ac ratione deseritur (nulla est enim persona equi uel bouis ceterorumque animalium,
quae muta ac sine ratione uitam solis sensibus degunt); at hominis dicimus personam,
dicimus Dei, dicimus angeli”.
5 BOÉCIO, 2005, p.282: “Quocirca si persona in solis substantiis est atque in his
rationabilibus, substantiaque ominis natura est nec in uniuersalibus sed in indiuiduis constat,
reperta personae est definitio: “naturae rationabilis indiuidua substantia”.
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REFLEXÕES SOBRE A NOÇÃO DE PESSOA EM BOÉCIO
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REFLEXÕES SOBRE A NOÇÃO DE PESSOA EM BOÉCIO
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3
Introdução
A etimologia da palavra utopia remete-nos ao grego, cujo prefixo u
pode indicar uma negação ou dar o sentido de variedade. O substantivo
topos, que compõe a palavra, é claramente a referência a algum lugar.
Dessa forma, pesquisadores que tratam do tema das utopias costumam
defini-la, etimologicamente, com o não-lugar ou outro lugar, que não é o
aqui e nem o agora1. Por esse motivo, as expressões utópicas são muito
apropriadas para a problematização das aporias do tempo e do espaço.
Essa é a pretensão do ensaio apresentado aqui, o qual foi originado de uma
palestra proferida em nove de novembro de 2016 na Universidade Estadual
de Santa Catarina2. A abordagem que daremos ao tema cruza perspectivas
da teoria da história, da filosofia e da literatura, em uma análise direcionada
para o período que se convencionou chamar medieval, mas que ampliará
sua lente para o fenômeno na longa duração.
Dessa forma, não partiremos da ilha “Utopia” de Thomas Morus do
século XVI3, mas das ilhas célticas irlandesas de séculos mais recuados:
A viagem de Bran começa no dia em que encontra um ramo de
prata coberto de flores brancas. Bran mostra o ramo mágico a seus
irmãos e é surpreendido ao ver surgir uma mulher vestida de
maneira estranha. Ela falou de maravilhas a descobrir, situadas do
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
autor, mas precisava ser encontrada. Se a utopia já não podia mais ser
estabelecida nem na nossa Terra presente nem no além, era preciso recuar
para o futuro. Finalmente, teria se encontrado o espaço de desafogo para o
qual a imaginação, infinitamente reproduzível como o tempo, podia fluir
livremente6.
No entanto, o respeitável historiador dos conceitos não olhou com a
devida argúcia para as experiências utópicas medievais. Ao examinar
alguns pontos das considerações de Reinhart Koselleck apresentadas
acima, através de exemplos do pensamento medieval, encontramos outra
perspectiva de como o tempo também é um elemento crucial nas
construções utópicas medievais, a questão de origem que precisa ser
colocada seria: de qual experiência de tempo estamos falando?
Quando o autor afirma que “os espaços utópicos haviam sido
ultrapassados pela experiência”7 não considera que as utopias anteriores ao
século XVIII apresentam outro espaço e outro tempo em um conjunto
intrínseco, como o desdobramento do pensamento mítico e religioso, sem
depender necessariamente da incipiente ou incompleta percepção
geográfica que comumente é atribuído ao período.
Quem pode garantir que a cartografia medieval, seja ela maravilhosa
ou não, tivesse consciência de seus limites? Para seguir além com a
problematização: na afirmação “Finalmente, haviam encontrado o espaço
de desafogo para o qual a imaginação, infinitamente reproduzível como o
tempo, podia fluir livremente”, o autor desconsidera a diversidade incontável
de espaços da mirabilia medieval. Se a considerasse, creditaria a “infinita
reprodução” projetada para o futuro à adoção do sistema cartesiano e a
consequente secularização e tecnicização do saber na Europa, pois esta é
a grande ruptura com a visão de mundo medieval e não o fim da era das
descobertas de novas terras.
Esta secularização é considerada e refletida por Marcos Antônio
Lopes e Renato Moscateli na introdução da obra “História de países
imaginários: variedades dos lugares utópicos”. Os autores atestam a
influência do cristianismo na construção das utopias ocidentais8 e
identificam o momento em que o processo histórico das construções
utópicas passa a apresentar desdobramentos que se pretendem
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PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE O TEMPO E O ESPAÇO NAS UTOPIAS MEDIEVAIS
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE O TEMPO E O ESPAÇO NAS UTOPIAS MEDIEVAIS
12 Jacques Le Goff define, a partir das fontes medievais europeias, três categorias de
elementos do imaginário medieval: mirabilis, magicus e miraculum . (LE GOFF, 1994, p. 49)
13 Agostinho de Hipona, confissões, XI, 26.
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
para além do tempo físico. Não por acaso, a aporia do tempo foi tema de
teses de filósofos do século vinte, como Edmund Husserl, Martin Heidegger
e Hanna Arendt, que se ocuparam do tempo como a principal constituinte
da consciência do ser e tiveram forte influência da obra agostiniana.
A temporalidade da utopia
De acordo com Martin Heidegger em “Ser e Tempo” (2006, 1ª edição
1927), por exemplo, a temporalidade em si não possui uma única medida,
pois é formada da articulação de quatro constituintes temporais: A
disposição (Befindlichkeit), decaída (Verfallen), compreensão (Verstehen),
linguagem (Rede)14. De forma que, essa última constituinte, a linguagem, é
aquela que articula todas as outras, de maneira a torná-las inteligíveis.
Aplicando a ideia de temporalidade heideggeriana às utopias, essas seriam
formas da linguagem dos anseios e também a articulação da temporalidade
do desejo humano. Então, se poderia, talvez, conjecturar que a utopia, este
outro lugar, também constitui o ser e sinaliza para ele um espaço que
transcende sua experiência de tempo e espaço cotidiano. Esta
transcendência do ser, guiada pelo desejo de outro tempo e outro espaço,
pode alçá-lo para outra percepção da experiência, rompendo com o
cotidiano. Nesse instante, a utopia torna-se um motor da história. E, se a
utopia constitui o ser, não pode deixar de haver utopias, pois como afirma
Rüsen, “o inédito, no trabalho da constituição de sentido da consciência
humana, consiste justamente em que nela pode ocorrer um ato de
transcendência de tudo o que é dado”15.
Como fenômeno histórico, as utopias podem ser compreendidas
como expressões/linguagens que articulam desdobramentos de anseios
humanos num processo de longa duração. Abrir-nos para esta percepção é
um importante caminho metodológico, pois a observação da experiência do
tempo e do espaço, considerando suas aporias, pode nos auxiliar a
entender as transformações históricas e do pensamento humano de forma a
evitar generalizações.
Referências
AGOSTINHO DE HIPONA. Confissões. São Paulo: Paulus, 2002.
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PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE O TEMPO E O ESPAÇO NAS UTOPIAS MEDIEVAIS
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4
1 "Tornou-se evidente, a partir daí, que o estudo da obra dos Antigos é obrigatório pela Lei
religiosa, pois que a intenção de seus escritos e o propósito deles são o mesmo propósito
que a Lei pressupõe para se enraizar.” (Averróes, Discurso decisivo, parágrafo 13º)
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
2 2002, p.248.
3 LE GOFF, 2013, p.65.
4 1991, p.15.
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AS PERSPECTIVAS DO TEMPO NO MEDIEVO E SUAS FUNÇÕES
5 2013, p.85.
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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AS PERSPECTIVAS DO TEMPO NO MEDIEVO E SUAS FUNÇÕES
trabalho, pois os desejos não são outra coisa a não ser o que esperamos ou
projetamos diante de uma situação presente, aliada ao espaço de
experiência adquirido com o passar do tempo.
Além disso, quando falamos de tempo através de sua relação com a
natureza na categoria do trabalho, não é possível classificá-lo através de
uma cronometragem submetida ao trabalho como nos tempos modernos,
uma vez que a relação tempo-trabalho era percebida muito mais de uma
forma cíclica, atrelada, por vezes, mais às estações do ano que uma
obrigação de cumprir em determinado dia determinadas tarefas, através de
uma contagem do tempo. É por isso que não se pode descaracterizar, de
uma forma geral, os anseios presentes dentro do período que se
convencionou chamar de Idade Média através do controle do tempo, uma
vez que este último torna-se uma categoria complexa dentro de outra esfera
das exigências medievais. Ainda no que diz respeito à correspondência
sobre tempo e trabalho, Le Goff complementa:
No Ocidente medieval, a unidade do tempo de trabalho é o dia,
inicialmente o dia de trabalho rural, que se encontra na terminologia
metrológica - o diário da terra - e, à sua imagem, o dia do trabalho
urbano, definido pela referência ao tempo natural, do levantar ao
pôr do sol, e marcado aproximadamente pelo tempo religioso,
aquele das horae canonicae, extraído da Antiguidade Romana8.
Sendo assim, ao escrever sobre o dia como tempo de trabalho
nesse momento, é perceptível que Le Goff não se preocupa em falar das
pausas ou do tempo de descanso, e, exatamente por isso, verifica-se que
esse tipo de trabalho estava diretamente atrelado com a vida social, cultural
e religiosa, pois, objetivamente, a vida do camponês estava condicionada
ao trabalho e ela não devia estar separada dele como se fosse uma
obrigação à parte. Percebe-se também que a visão sobre a realização das
tarefas é percebida como natural, fazendo parte da condição de ser um
camponês. Resquícios dessa situação perduraram por muito tempo e
perduram nas comunidades rurais e vilarejos, como se pode observar na
obra de Thompson, referindo-se a um período posterior ao de Le Goff, mas
ainda em regiões da Europa ocidental: “As relações sociais e o trabalho são
misturados - o dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tarefa -
e não há grande senso de conflito entre o trabalho e o passar do dia”9. Ou
8 2013, p.64.
9 1998, p. 272.
51
SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
10 1991, p. 116.
11 1991, p. 63.
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AS PERSPECTIVAS DO TEMPO NO MEDIEVO E SUAS FUNÇÕES
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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AS PERSPECTIVAS DO TEMPO NO MEDIEVO E SUAS FUNÇÕES
13 SILVEIRA, 2016.
14 Jean-Claude Schmitt, ao questionar se era possível uma história religiosa da Idade Média
trouxe contribuições para o entendimento da ordo medieval ao tratar da análise
hermenêutica da “religião”. Ver SCHMITT, J-C. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo:
Ensaios de antropologia medieval. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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AS PERSPECTIVAS DO TEMPO NO MEDIEVO E SUAS FUNÇÕES
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
Caminho, 1991.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2006.
LE GOFF, Jacques. Para uma nova Idade Média. São Paulo: Vozes, 2013.
PERNOUD, Régine. Luz sobre a Idade Média. Portugal: Publicações
Europa-América, 1997.
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo. Ensaios de
antropologia medieval. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
SILVEIRA, Aline Dias da. “Problematizações sobre o tempo e o espaço nas
Utopias Medievais”. Palestra. Florianópolis: Universidade do Estado de
Santa Catarina, 2016.
______. “Relação corpo, natureza e organização sociopolítica no Medievo:
revelação, ordem e lei”. In: NODARI, Eunice Sueli; KLUG, João (orgs.).
História Ambiental e Migrações. São Leopoldo: Oikos, 2012.
STREFLING, S. R. “A atualidade das confissões de Santo Agostinho”. In:
Teocomunicação, v.37, n.156, Porto Alegre, 2007. p.259-172.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
58
5
Introdução
Compreender qual seja a relação entre rei e lei ao tempo medieval
constitui desafio significativo ao historiador do direito inserido na
contemporaneidade. Este observa à sua volta uma profusão de leis e
códigos criados por vontades políticas que se pretendem confiáveis e
constantes – mas que, na prática, terminam por oscilar ao sabor de
contingências sempre mais velozes que o labor legislativo. Afigura-se
estranho a esse historiador pensar a lei como expressão de um universo
objetivamente ordenado, alheio à vontade humana e sua volubilidade,
ancorando-se antes em elementos estáveis como o consenso e a tradição.
O desafio ganha maiores proporções quando se toma por referência
o espaço de domínio dos carolíngios – em que, por conta dos estreitos
laços de cooperação entre reis e bispos, observa-se um movimento de
identificação entre a unidade político-jurídica carolíngia e a ecclesia do
populus christianus. O universo ordenado adquire fronteiras cristãs – e,
nesse passo, o rei, em matéria de política e direito, prefere valer-se do
conselho de sacerdotes – a ponto de ter sua própria conduta revestida de
aspectos sacerdotais. A um historiador acostumado à configuração
moderna de separação entre Estado e organizações religiosas, nada mais
inaudito. E, no entanto, é esse o caso de Carlos, o Calvo (823-877) –
monarca carolíngio que, desconfiado da aristocracia laica e dos próprios
familiares, aproveita-se da perícia política e jurídica de membros do
episcopado franco, entre eles, o célebre Hincmar (806-882), Arcebispo de
Reims, para condução de seu reinado.
SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
1 2009, p. 243.
2 ARQUILLIÈRE, 1972, p. 164.
3 ARQUILLIÈRE, 1972, p. 162.
61
SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
se, entre outras acepções, a reinos posteriormente incorporados ao território carolíngio (caso
da Aquitânia e da Itália, p. ex.) ou a locais que, sem possuir rei, eram habitados por um povo
identificável (caso da Saxônia, p. ex.). Em outras palavras, esses usos do termo parecem
reforçar uma relação de polaridade entre francos e não francos; são acepções que remetem
a partes, não ao todo do império carolíngio. O termo “ecclesia” supera esse tom
particularista, adotando acepção vocacionada ao universal (ainda que se trate de uma
universalidade “concreta”).
13 Jong (2003) postula a equivalência entre os dois termos, sancta ecclesia e populus
christianus, ao lançar mão do seguinte trecho dos Anais dos Reinos Francos (c. 791), em
que Carlos Magno jura, perante francos, saxões e frísios, reparar o mal cometido pelos
ávaros: “[...] propter nimiam malitiam et intollerabilem, quam fecerunt Avari contra sanctam
ecclesiam vel populum christianum”.
14 Por “agostinismo político” compreende-se a teoria formulada por Arquillière (1972)
segundo a qual ideias de Agostinho teriam sido apropriadas de forma distorcida por certos
papas alto-medievais – entre eles, Gregório, o Grande, e Nicolau I – para fundamentar a
ascensão da Igreja, enquanto poder institucional, sobre o Império (ou “Estado”, para utilizar o
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
que o papa postula existirem dois elementos a reger o mundo, o poder real (regalis potestas)
e a autoridade sacerdotal (auctoritas sacra pontificum). Ato contínuo, Gelásio insiste em que
os sacerdotes possuem fardo mais pesado em comparação com os reis (tanto gravius est
pondus sacerdotum), dado que os primeiros são responsáveis por prestar contas a Deus
sobre a conduta dos últimos. Representantes da historiografia político-religiosa de meados
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
do século XX (por exemplo, Ullmann) tendem a verificar nesse trecho um dos pontos de
partida da chamada “ideologia hierocrática” (ULLMANN, 2010, p.25); em outras palavras,
segundo esses autores, tratar-se-ia de passagem a embasar a submissão religiosa – e
política – do rei com relação ao clero. Contudo, interpretações mais recentes, a observar o
excerto em conjunto com o contexto de seu autor, vêm a desencorajar a “perspectiva
hierocrática”, postulando tratar-se antes de estratégia de defesa da ortodoxia católica, e
particularmente da diocese romana, sem pretensões políticas (isto é., o papa não tem a
intenção de tomar para si o controle do poder temporal). Para mais, vejam-se, por exemplo,
Cottrell (1993), Ronzani (2011) e Martins (2014).
18 JONG, 2003, p.1263.
19 Ao defender a complementaridade entre os ministérios real e episcopal, Jong reporta-se
expressamente ao constante nas atas do Concílio de Paris de 829 (c. 93, 26, p. 679), em
que, após o deslize político de Luís, o Pio, e os abusos cometidos pelo episcopado, ambos
tiveram que restabelecer os limites de suas respectivas funções.
20 Sobre a construção de “nova” memória histórica como estratégia de legitimação da
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
propõe raciocínio que conduz, no limite, à legitimidade da deposição do rei pelo episcopado.
Hincmar, no entanto, não chega a indicar expressamente tal conclusão. Nelson (1977, p.
273) explica esse “refreamento” nos seguintes termos: “Hincmar drew back from the
assertion that bishops had power to depose the consecrated king who broke his profession,
although his own treatment of liturgy and law had seemed to prepare the way for precisely
that. It is not hard to understand why Hincmar hesitated to put forward a revolutionary claim,
for which neither biblical history nor ecclesiastical tradition afforded any precedent, and
whose political implications in this time of waning royal authority have been seen […] as too
dangerous for Hincmar to risk exposing.”.
23 Sobre a administração da justiça em meio aos carolíngios, vejam-se Fouracre (1995) e
Nelson (2010). As anotações de Albertoni (2002) também são úteis nesse sentido.
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
por exemplo, além de arcebispo, era missus sob Carlos, o Calvo, cargo a
compreender atividade difusora da lei, fiscalizadora e judicante) e mune o
monarca de materiais que vão de textos exegéticos até pareceres jurídicos.
Não é possível falar em cesaropapismo, pois tanto o rei como o episcopado
debruçam-se sobre questões em que o espiritual e o temporal estão
entrelaçados; ambos, aliás, são reciprocamente passíveis de censura caso
se desviem de seu ministério – pois o ministério é função objetivamente
considerada, é parte de um cenário objetivo, não é imposição de um
segmento sobre outro. Não é demais reiterar, assim, que o monarca e o
episcopado compõem ministérios complementares – dentro do cenário
ordenado da ecclesia carolíngia.
Tendo sido razoavelmente delineado aquilo que seja o ministério do
rei carolíngio em termos gerais, dentro da ordem em acepção político-
religiosa (isto é, ordem como ecclesia), resta delimitar com maior precisão a
relação entre rei e lei nesse contexto. Volta-se, pois, ao direito.
Em resposta à diversidade de povos enfeixados política – e
juridicamente – pelo império, o ordenamento jurídico carolíngio distingue-se
por preservar os ordenamentos populares. Em outras palavras, o patrimônio
consuetudinário de cada população instalada nos domínios imperiais (e aí é
possível apontar não apenas francos, mas também lombardos, saxões,
bávaros etc.) manteve-se – ou antes teve o aval da estirpe reinante para
manter-se – vigente. Em compasso com tal medida está a prática jurídica
de considerar cada pessoa segundo o ordenamento de seu regnum de
nascimento – prática que a literatura costuma encarar, lançando mão de
analogia, como concretização do princípio da personalidade do direito24. Por
conta desses traços, verifica-se que o ordenamento jurídico carolíngio é um
ordenamento de convivência entre diferentes leges – aqui compreendidas
em acepção grossiana, de compilados escritos de costumes – e
consuetudinis de tradição oral. Mas não só.
Ao lado dessas diversas manifestações consuetudinárias, os
carolíngios propõem uma outra expressão de normatividade, as capitulares,
instrumento, pode-se dizer, de coesão jurídica do império. Com o termo,
faz-se referência a documentos de procedência real que apresentam uma
série de breves capítulos de caráter prescritivo sobre um ou mais temas,
sendo que sua vigência se refere a todo o império ou a localidades
específicas, segundo o caso. A literatura costuma classificar tais textos em
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
abrangendo-se aí tanto clérigos como laicos –, veja-se, por todos, McKitterick (1977; 1989).
28 PADOA-SCHIOPPA, 2007, p.50.
29 NELSON, 1990, p.280; ALBERTONI, 2002, p.233-234.
30 CORTESE, 2000, p.128; PADOA-SCHIOPPA, 2007, p.50-51.
31 NELSON, 1986, p.106-107.
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
32 2007, p. 63.
33 CORTESE, 2000, p.139.
34 Sobre o consenso carolíngio enquanto expressão de interações políticas entre desiguais,
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
as well as power, of what Balandier has called, in another context, ‘the dialectic of
contestation and conformity’ – is what is represented, quite literally, in the terminology of
‘consent’, ‘consultation’, ‘counsel and aid’ in the capitularies of Charles the Bald.”.
35 Sobre o aspecto consensual da lex carolíngia, a refletir um contexto étnico e histórico,
segundo Grossi (2014, p. 113-114), veja-se: “[é] nessa perspectiva que devem ser
interpretadas as constantes referências – que os monarcas inserem prolixamente nas leges
– à efetiva, ou suposta, convocação de uma assembleia mais ou menos ampla de notáveis e
à expressão pública de seu consentimento; fruto não de uma inconcebível sensibilidade
democrática, mas da profunda certeza de que a produção do direito é um fato ‘constitucional’
relacionado ao ethnos, pois necessariamente diz respeito ao seu patrimônio consuetudinário.
[...] Quer se trate de verbalizações de um fato ocorrido ou de simples fachada formal, em
ambos os casos surge a convicção de que fixar o direito – ao menos aquele intimamente
ligado ao ethos [sic] – não é tarefa apenas do príncipe.”.
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
de uma das personagens eclesiásticas mais cultas e politicamente ativas do século IX, tendo
sido prolífico em escritos de caráter teológico e jurídico. É consagrado arcebispo em 845,
dois anos depois da assinatura do Tratado de Verdun (843), a dividir o império carolíngio em
três partes, correspondentes aos filhos então sobreviventes de Luís, o Pio (Lotário; Luís, o
Germânico; e Carlos, o Calvo). Segundo tal disposição, a arquidiocese de Hincmar resta
inserida no chamado Reino da França Ocidental, sob comando de Carlos, o Calvo. É de se
reparar que a atmosfera de incerteza e anarquia junto às camadas aristocráticas laicas do
território recém-demarcado revela-se favorável à aproximação entre o rei franco e o
arcebispo de Reims – este objetivando a paz e a conservação das dioceses sob sua guarda,
aquele o apoio e o conselho de uma das figuras politicamente mais fortes e juridicamente
mais letradas de seu reino. De fato, Hincmar, ademais de possuir grande erudição em
matéria teológica (é famosa, nesse sentido, sua polêmica com Godescalco sobre a graça),
interessava-se fortemente pelo direito – traço atestado pela riqueza de textos jurídicos a
compor sua biblioteca e, sobretudo, pela sua atuação concreta enquanto jurista. Esse último
aspecto pode ser verificado tanto em seu tratamento de problemas jurídicos estritamente
eclesiásticos (por exemplo, o processo que culmina na deposição episcopal de seu sobrinho,
Hincmar de Laon), quanto em seus pareceres sobre questões político-jurídicas relativas à
corte carolíngia, destacando-se aí sua produção escrita destinada a Carlos, o Calvo (entre os
textos de tal quilate, De Regis Persona et Regio Ministerio). Para maiores detalhes sobre a
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
45 Veja-se a versão original do capítulo 16: “Quod reges regum Domino serviant, etiam leges
dando pro ipso. Quod non solum in his, quae praemisimus, reges Regi regum serviant
Domino, sed et leges dando pro ipso, Augustinus in epistola ad Bonifacium demonstrat
dicens (epist. 50): ‘Serviant, inquit, reges terrae Christo, etiam leges ferendo pro Christo.
Quomodo ergo reges Domino serviunt in timore, nisi ea quae contra Domini jussa fiunt,
religiosa severitate prohibendo atque plectendo? Aliter enim servit quia homo est, aliter quia
etiam rex est. Quia homo est, ei servit vivendo fideliter: quia vero etiam rex est, servit leges
justa praecipientes et contraria prohibentes convenienti vigore sanciendo. Sicut servivit
Ezechias, lucos et templa idolorum, et illa excelsa, quae contra Dei praecepta fuerunt
constructa, destruendo (IV Reg. XVIII). Sicut servivit Josias, talia et ipse faciendo (IV Reg.
XXV). Sicut servivit rex Ninivitarum, universam civitatem ad placandum Dominum
compellendo (Jon. III). Sicut servivit Darius, idolum frangendum in potestatem Danieli dando,
et inimicos ejus leonibus ingerendo (Dan. XIV). Sicut servivit Nabuchodonosor, omnes in
regno suo positos a blasphemando Deum lege terribili prohibendo (Dan. III). In hoc itaque
serviunt Domino reges, inquantum sunt reges, cum ea faciunt ad serviendum illi, quae non
possunt facere nisi reges.’”.
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
Hincmar, com o capítulo, está a mostrar que o rei é peça importante para a
formação das leges, elementos normativos “novos” – na medida, é claro,
em que o imaginário medieval permite pensar o “novo” em âmbito jurídico.
Para tratar do assunto, a envolver tanto a lei temporal em si quanto o
papel do rei com relação a ela, Hincmar emprega citação de Agostinho,
pinçando momento eminentemente pragmático da bibliografia agostiniana:
as cartas da polêmica com os donatistas.
Nesses escritos, como é sabido, Agostinho defende a pertinência
das leis imperiais que vieram a desencorajar a adesão de fiéis à seita
(herética) dos donatistas. Tais disposições (presentes, por exemplo, no
“Édito de Unidade” [405], do Imperador Honório), em imprimindo sobre o
donatismo o selo da heresia, impuseram a seus adeptos sanções como
multa, impossibilidade de desempenho de cargo público, impossibilidade de
defesa de patrimônio em processo e impossibilidade de disposição de bens
por meio de testamento – a descontar a pena de morte para casos mais
graves. Embora o proceder, notadamente coercitivo, estivesse distante dos
hábitos da Igreja (no sentido da pastoralidade, da polêmica estritamente
verbal etc.), Agostinho viu nele utilidade – e mesmo necessidade – à
medida que poderia ser mais eficaz em frear certo segmento extremista dos
donatistas, os circumcelliones, que usavam da violência contra ministros e
fiéis católicos. E seu pensamento não se detém apenas na defesa da
Igreja46: Agostinho termina por perceber na coerção legal uma forma
aceitável de correção (e/ou disciplina) da vontade desviante, ou seja, uma
ferramenta útil (embora, é claro, não suficiente) no processo de conversão
religiosa. Esse último aspecto, da coerção, será revisitado mais adiante. Por
ora, é de se ressaltar que as medidas levadas a efeito pelo imperador
trouxeram um duplo benefício à Igreja: por um lado, fez arrefecer incômoda
ameaça doutrinária e, no limite, física; por outro, conferiu suporte à
ortodoxia católica, deu mais evidência à sua mensagem (ou Verdade, se
quiser seguir os termos agostinianos). É nesse sentido, voltando ao tema
específico das leis religiosas e da salvaguarda da ortodoxia, que Agostinho
diz que bons reis servem a Cristo também fazendo leis em seu favor.
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48 Veja-se a versão original do capítulo 27: “Quod leges a principe justo sunt in quolibet
vindicandae. Item idem sanctus Innocentius in Decretis suis ad eumdem (epist. 11): ‘Illud,
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
inquit, sciscitari voluisti, an preces dictantibus liberum concedatur, utique post baptismi
regenerationem, a principibus poscere mortem alicujus, vel sanguinem de reatu: quam rem
principes nunquam sine conditione concedunt, sed ad judices commissa ipsa vel crimina
semper remittunt, ut, causa cognita, vindicentur quaecunque quaesitori fuerint delegata: aut
absolutio, aut damnatio pro negotii qualitate profertur, et dum legum in impios exercetur
auctoritas, erit dictator immunis.’ Et hinc sanctus Cyprianus (lib. de Abus. saec., c. 12):
‘Duodecimus, inquit, abusionis gradus est populus sine lege, qui dum edicta et legum scita
contemnit, per diversas errorum vias eundo perditionis laqueum incurrit. Utique multae
perditionis viae tunc inceduntur, cum una regalis via, lex Dei videlicet, quae neque ad
dexteram neque ad sinistram declinat, per negligentiam deseritur. Igitur populus sine lege,
populus sine Christo est. Non fiamus ergo sine Christo in hoc tempore transitorio, ne sine
nobis Christus esse incipiat in futuro.’ Et Christus Dei virtus et Dei sapientia dicit: Per me
reges regnant, et conditores legum justa decernunt (Prov. VIII, 15). Et sanctus Augustinus in
libro de vera Religione leges principum servandas ostendit (cap. 30): ‘In istis, inquiens,
temporalibus legibus, quanquam de his homines judicent cum eas instituunt, tamen cum
fuerint institutae atque firmatae, non licebit judici de ipsis judicare, sed secundum ipsas.’ Igitur
aut a populo promulgatae justae leges servandae, aut a principe juste ac rationabiliter sunt in
quolibet vindicandae.”.
49 Confira-se: “[...] Sed pro patre nati sunt filii, a quibus secundum legem Romanam, quam
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
devendo ela ser obedecida universalmente, cf. “De Ordine Palatii” (881)50.
Todos esses momentos servem para demonstrar que, embora a lei
dependa do rei para existir, uma vez estabelecida, ela possui uma
autoridade própria, objetiva, a impedir a legitimidade de juízos arbitrários
ulteriores – mesmo do próprio monarca.
Após o trecho de S. Inocêncio, Hincmar apresenta citação de “De
duodecim abusivis saeculi”, em que declinada a décima segunda situação
abusiva verificada no mundo (saeculum): o povo sem lei. Com o termo, faz-
se referência ao desprezo das leis temporais (éditos, decretos etc.), que
desemboca em uma situação de incerteza e errância. Nesse sentido, é
interessante verificar que tal quadro das “muitas vias da perdição” é
contrastado com a via única da realeza (una regalis via) – imediatamente
equiparada à lei divina (lex Dei). Embora se possa verificar no dito tão-
somente um louvor à lei que provém de Deus através das Escrituras (no
sentido de que ela é real, nobre etc.), também parece possível pensar que
se faz menção ao ministério do rei, em que o monarca, em dando fim à
situação errática do “povo sem lei” por meio da confecção e imposição das
leis temporais, atua de modo consonante com o justo divino. Visto que o
ministério real é divino (o poder do rei deriva, afinal, de Deus), há margem
para conjecturar que a lei temporal estabelecida pelo monarca também
mereceria a alcunha de lex Dei, em sentido lato. Reforça essa última
interpretação a referência de Hincmar, sucessiva à citação de “De
duodecim”, a Provérbios, 8, 15, “Per me reges regnant, et conditores legum
justa decernunt”. Note-se que o vocábulo “conditores” pode bem significar
aquele que cria como aquele que preserva a lei. O bom rei, em síntese, é
aquele que, agindo no lugar de Deus (isto é, sendo um seu agente),
estabelece e mantém leis temporais que guardam coerência com a fé cristã,
refletindo, assim, a justiça divina51. Daí que povo sem lei seja considerado
povo sem Cristo – raciocínio que, de resto, aliando organização político-
jurídica e religião, apresenta plena compatibilidade com a concepção
feliciter rex erunt et correx erunt, actio quae ab auctore inchoata est, ut ab haeredibus per
agenda est: quique ita praedecessorum suorum bene statuta debent in omnibus conservare,
sicuti sua constituta a suis successoribus cupiunt conservari.” (cf. De divortio Lotharii) [grifo
nosso].
50 Veja-se: “Cum enim dicitur, nulli liceat leges nescire, vel quae sunt statuta contemnere,
nulla persona in quocunque ordine mundano excipitur quae hac sententia non constringatur.”
(DE ORDINE PALATII, VIII).
51 Esse raciocínio é, de resto, apoiado por Devisse (1962, p. 75).
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
ordem jurídica, a servirem de requisitos necessários a um juízo que se proponha justo. Daí
que seu uso esteja vinculado, por exemplo, ao empenho do soberano em respeitar as
disposições estabelecidas, a forma e o procedimento requeridos.
54 Veja-se a versão original do capítulo 25: “Regem iniquorum correctorem esse oportere.
Hinc sanctus Cyprianus in nono Abusionis gradu dicit (cap. 9): ‘Regem correctorem
iniquorum esse oportet: debet furta cohibere, adulteria punire, impios de terra perdere,
parricidas et perjurantes vivere non sinere’. Et item idem (cap. 11): ‘Undecimus gradus
abusionis est plebs sine disciplina, quae dum disciplinae exercitationibus non servit, Deum
absque disciplinae rigore non evadit. Sicut enim tunica totum corpus tegitur praeter caput, ita
disciplina omnis Ecclesia, praeter Christum, quia Ecclesia et sub disciplina ejus protegitur et
ornatur. Ipsa vero tunica contexta desuper fuerat per totum, quia eidem Ecclesiae disciplina a
Domino de coelo tribuitur et integratur. Tunica enim corporis Christi disciplina Ecclesiae est.
Qui autem extra disciplinam est, alienus a corpore Christi est. Non scindamus igitur illam, sed
sortiamur de illa. Non solvamus quidquam de mandatis Christi, sed unusquisque in quo
vocatus est, in eo permaneat apud Deum.’”.
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
55 Veja-se a versão original do capítulo 32: “Quod boni regis sit et virga districtionis, et manna
dulcedinis. Caeterum Dominus, qui peccantes diu ut convertantur exspectat, et non
conversos durius damnat, et pia mater Ecclesia, juxta quod scriptum est: Virga tua et baculus
tuus ipsa me consolata sunt (Psal. XXII, 4), virga percutit, et baculo sustentat, docens ut in
boni rectoris pectore sit virga districtionis, sit et manna dulcedinis: sit districtio virgae quae
feriat, sit et consolatio baculi quae sustentet; sit amor, sed non emolliens; sit vigor, sed non
exasperans; sit zelus, sed non immoderate saeviens; sit pietas, sed non plus quam expediat
parcens. Ad exemplum Moysi (Exod. XXXII), et amet pie, et saeviat districte. Nam cum
Israeliticus populus ante Dei oculos pene inveniabilem contraxisset offensam, pro eodem
populo se opposuit. Ad eumdem vero populum veniens, paucorum vitam gladio exstinxit, qui
vitam omnium etiam cum sua morte petiit: dans rectoribus discretis exemplum, ut
recognoscentibus et vere confitentibus ac poenitentibus parcant, et incorrigibiles atque in
peccato perseverantes damnent, sicut Petrus Ananiam et Saphiram, et Simonem Magum
(Act. V), qui crurifragio periit, sicut in Hegesippi historia legitur, et Paulus publice peccantem
tradidit Satanae (I Cor. V), et Helimam caecitate percussit (Act. XIII).”.
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esse viés que Ele atua como “consolador” da Igreja (é nesse sentido, ao
menos, que o referido versículo parece ser interpretado por Hincmar). Esse
proceder, de Deus para com a Igreja, segue o texto, serve de ensinamento
para o monarca, que deve, em sua atuação, imitá-lo – cultivando “em seu
coração” (in boni rectoris pectore) o dualismo análogo da “chibata do
castigo” e do “maná da doçura”, e ainda outros elementos. No elencamento
destes, é interessante verificar o teor “moderado” do discurso de Hincmar: o
bom rei deve nutrir amor, mas sem amolecer (“amor, sed non emoliens”);
vigor, sem ser áspero (“vigor, sed non exasperans”); zelo, sem ser
imoderadamente cruel (“zelus, sed non immoderate saeviens”); piedade,
mas não mais do que convém ao se poupar alguém (“pietas, sed non plus
quam expediat parcens”). Moisés também é utilizado como exemplo a
ilustrar o dualismo bastão-báculo ao dizer Hincmar que o bom monarca
opõe-se ao povo que ofende a Deus (colocando, subentende-se, em plena
atividade o seu “bastão”); por outro lado, quando perante o “verdadeiro
povo”, o “bastão” passa a atuar sobre poucos – e isso com a aprovação dos
próprios governados “sob báculo”.
Ao cabo do capítulo, Hincmar novamente coloca o dualismo bastão-
báculo nos termos da abertura, fazendo referência ao dever real de
paciência para com os penitentes e condenação para com os perseverantes
no pecado. Novas remissões a personagens bíblicas são feitas nesse
sentido, mas é possível concluir que, no limite, todos os exemplos reportam-
se à analogia principal que é aquela do monarca com relação a Deus.
Desse modo, tendo em vista que Deus, como expressamente dito, utiliza
seu “bastão” e seu “báculo” em contexto eclesial, há margem para
compreender que o rei também o faria. O tom simultaneamente pragmático
e escatológico das menções ao populus vem a reforçar tal entendimento.
Uma vez mais, assim, a hipótese de Jong, de uma ecclesia como sinônimo
da unidade do populus franco (e cristão), parece plausível.
Repare-se que, ao mesmo tempo em que representado como
detentor de grande poder, o monarca também é imbuído de
responsabilidades proporcionais. É o que se vê no capítulo final de “De
Regis Persona” (33: “In pluralitate peccantium vindicta propter difficultatem
negligenda vel differenda”, isto é, “Em meio à pluralidade dos pecados a
punição por causa das dificuldades do negligenciar ou do dispersar”) 56, em
56 Veja-se a versão original do capítulo 33: “In pluralitate peccantium vindicta propter
difficultatem negligenda vel differenda. Et si forte quis dixerit, competenter vindicta in una
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persona fieri potest, in pluralitate autem peccantium, propter difficultatem, vindicta aut
negligenda aut differenda esse videtur: contradicit eis sanctus Innocentius in Decretis suis, ad
Macedones episcopos (epist. 11, cap. 6): ‘Pervideat ergo dilectio vestra, hactenus talia
transisse, et advertite quod utique, ut dicitis, necessitas imperavit, in pace jam Ecclesias
constitutas non posse praesumere: sed ut saepe accidit, quoties a populis aut a turba
peccatur, quia in omnes propter multitudinem non potest vindicari, inultum soleat transire.
Priora ergo dimittenda dico Dei judicio, et de reliquo maxima sollicitudine praecavendum.’ Et
hinc item in Decretis apostolicae sedis: ‘Si, inquiunt, omnes sacerdotes et mundus assentiat
damnandis, damnatio consentientes involvit, non praevaricationem consensus absolvit. Non
enim crimen minuitur, sed accrescit, cum generale fit ex privato. Hoc enim Deus omnium
judicavit, qui mundum peccantem generali diluvio interemit.’ Ecce de quibus exiguitatem
meam sublimitas sapientiae vestrae consuluit. Habetis sacrae Scripturae et doctorum
catholicorum sententias: haurite nunc aquas in gaudio de fontibus Salvatoris, id est doctrinam
ex verbis eorum, quibus idem Salvator dicit: Qui credit in me, sicut dicit Scriptura, flumina de
ventre ejus fluent aquae vivae. Hoc autem, inquit Evangelista, dixit de spiritu quem accepturi
erant credentes in eum (Joan. VII, 38, 39): qui quod eodem spiritu inspirante hauserunt,
scribendo ad nostram notitiam manaverunt.”.
57 Confira-se o trecho: “[...] Justitia vero regis est, neminem injuste per potentiam opprimere,
sine personarum acceptione inter virum et proximum suum juste judicare, advenis et pupillis
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et viduis defensorem esse, furta cohibere, adulteria punire, iniquos non exaltare, impudicos et
histriones non nutrire, impios de terra perdere, parricidas et perjurantes vivere non sinere,
ecclesias defendere, [...]” [grifo nosso].
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Introdução
Neste capítulo nos propomos a pensar como se configura o duplo no
pós-morte de acordo com a cultura de presença medieval. Preocupamo-nos
aqui com o recorte histórico medieval dos séculos XIII e XIV e,
principalmente, com as modalidades de imaginação e do fazer imaginar de
um espaço cósmico associado ao pós-morte, onde espaço, tempo e ser são
desconstruídos e reconstruídos novamente, como em uma grande marcha
cósmica de morte e nascimento.
Para Michel de Certeau, entende-se por crença “não o objeto do crer
[...], mas o investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-
la considerando-a verdadeira – noutros tempos, uma ‘modalidade’ da
afirmação e não o seu conteúdo”1 . A modalidade de afirmação se constrói
perante o movimento de ideias que se moldam pela oralidade, pela
materialidade de que dispõe o sujeito e, principalmente, pelo seu imaginário
simbólico.
Este conceito nos ajuda a entender as modalidades e as práticas de
crença e ao pensar a Idade Média ele se encontra, também, no imaginário
deste período, já que a crença no mundo medieval estava inserida na
articulação interdependente entre sociedade, natureza, ser humano e
cosmos. Visando este contexto, notamos que as ideias e as crenças não
são constituídas de sentidos diferentes, mas que ambas compõem uma
sintonia e uma presença no mundo medieval, os quais culminam em um
conceito que nos parece mais apropriado: visões de mundo. No medievo,
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6 Esta obra não possui tradução brasileira. Sugestão de leitura: ALIGHIERI, D. De vulgari
eloquentia. Testo bilingue (latino-italiano) a cura di Sergio Cecchin. Torino: UTET, 1988.
7 Aconselhamos a leitura da seguinte versão: ALIGHIERI, Dante. Monarchia. Roma: Instituto
1988.
9 Aconselhamos a leitura da seguinte versão: ALIGHIERI, Dante. Vita Nuova. Firenze:
tradução e notas por Italo Eugenio Mauro. Edição bilíngue. 15ª Ed. São Paulo: Editora 34,
2008.
11Há treze epístolas produzidas por Dante Alighieri e foram escritas entre 1304 e 1320. As
doze primeiras foram atribuídas ao poeta florentino e, em alguns casos,a décima terceira, a
qual é destinada a Can Grande della Scala e se enquadra em outro ramo dos estudos de
epístolas de Dante, sendo em alguns momentos duvidosa a sua autoria. Compartilhamos de
que as treze epístolas foram escritas por Dante, conforme Umberto Eco (2012) e Lansing
(2010) Scartazzini (1896). Para saber mais sobre as epístolas de Dante recomendamos a
leitura da seguinte obra: LANSING, Richard. The Dante Encyclopedia. New York: Routledge,
2010.
12 “Nove fiate già appresso lo mio nascimento era tornato lo cielo de la luce quasi a uno
medesimo punto, quanto a la sua própria girazione, quando a li miei occhi apparve prima la
gloriosa donna de la mia mente” (V.N., II).
13 Esta expressão foi criada pela Historiografia Moderna da Literatura Italiana para designar
um grupo de poetas pertencentes ao século XIII e XIV que possuíam uma temática e estilos
parecidos. O nome provém de um verso do Purgatório de Dante (Purg. XXIV, 54). Foram
inseridos nesse grupo os poetas Guido Cavalcanti, Cino da Pistoia, Gianni Alfani, Dante
Alighieri, dentre outros.
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que escreverá algo que jamais foi escrito sobre uma mulher, “Sì che, se
piacere sarà dico lui a cui tutte le cose vivono, che la mia vita duri per al
quanti anni, io spero di dicerdi lei quello che mai non fue detto d'alcuna” 14.
A “Commedia” foi escrita durante o exílio15 do poeta, assim como
outras de suas obras. O exílio de Florença possibilitou que Dante
conhecesse novas ideias e viajasse por outras cidades na região da
Toscana medieval e na região onde se encontra Paris. Foi em 1304 que
Dante iniciou o primeiro volume, Inferno, e em 1321 finalizou as três partes
de sua obra, no mesmo ano em que morreu em Ravena devido à malária
que contraiu. A “Commedia” é dividida em três partes: Inferno, Purgatório e
Paraíso. A união delas foi denominada pelo poeta como Commedia e no
século XIV foi nomeada como “Divina Comédia” por Giovanni Boccaccio 16
(1313-1375), nome pelo qual ficou muito conhecida.
A história narrada carrega um conteúdo enciclopédico que se
manifesta durante a jornada do próprio Dante, personagem de sua obra,
que caminha enquanto ser vivo pelos ambientes do pós-morte medieval,
sendo guiado pelo espírito do poeta romano Virgílio e, posteriormente, por
sua musa Beatriz e por São Bernardo. As ideias de Dante eram
alimentadas pelas visões de mundo de seu contexto histórico, figuradas
enquanto percepções e crenças coletivas, ou seja, sendo os resultados das
experiências sociais do próprio ser.
Nossa metodologia elenca formas de entender as visões de mundo
do pós-morte com a preocupação de nos ater à “Divina Comédia”. Faz-se
necessário identificar as palavras utilizadas pelo poeta em sua obra, as
quais constroem imagens na mente daquele que lê, ouve e, principalmente,
daquele que escreve. Essas imagens serão por nós entendidas como
14 “De forma que, se prazer trará a ele no qual todas as coisas vivem, que a minha vida dure
o quanto for necessário, pois espero dizer dela o que jamais foi dito de mulher alguma” (V.N.,
XLII) (tradução do autor).
15 Em 1302 Dante foi exilado de Florença, sua cidade natal, devido desentendimentos de
ordem política que implicavam as relações de poder de dois partidos antagônicos que se
revezavam no comando da cidade de Florença, eles eram conhecidos como guelfos brancos
e guelfos negros, após os negros se desassociarem dos gibelinos. Dante foi acusado de trair
Florença e condenado a pagar uma multa altíssima, a qual ele se negou. Dessa forma foi
exilado de sua cidade sendo condenado à morte caso voltasse.
16 Recomenda-se a obra: BOCCACCIO, Giovanni. La vita di Dante. Introdução, notas e
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
presente, o passado e o futuro. No exemplo ele insere o futuro como uma expectativa “antes
de iniciar, minha expectativa se estende pela melodia como um todo” (AGOSTINHO, XI,
XXVIII).
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eles leões, panteras, e outros animais que possuíssem garras, pelos, dentes afiados e
fossem quadrúpedes. Porém, o termo Bestiário passou a dar presença a outros animais
como peixes, aves, pedras e híbridos. Foi a partir do século XII que eles foram produzidos
com mais intensidade, principalmente, na Inglaterra e na França. Os Bestiários também
podem estar inseridos em Súmulas ou, de acordo com o termo moderno, Enciclopédias, as
quais buscavam construir uma obra dotada de todo conhecimento disponível. Nelas o termo
Bestiário passa a designar um determinado capítulo que trata de animais. Nesta categoria se
enquadra a obra “Etimologias”, de Isidoro de Sevilha, produzida no século VII; “Il Tesoro”, de
Brunetto Latini, escrita no século XIII; outros Bestiários muito conhecidos são: “Bestiaire” de
Philippe de Taon (século XII), “Bestiário de Aberdeen” (século XIII) e o “Bestiário” francês de
Pierre de Beauvais (século XIII).
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O DUPLO NAS VISÕES DE MUNDO PÓS-MORTE MEDIEVAL
22 Gumbrecht se utiliza da palavra “magicamente” para demonstrar seu exemplo, sendo que
no período medieval havia uma distinção que envolvia os termos “miraculus”, “magicus” e
“mirabilis”. De acordo com Le Goff, “O sobrenatural propriamente cristão, aquilo a que
justamente poderia chamar-se o maravilhoso cristão, é o que procede do miraculosus;[...]”
(LE GOFF, 2010, p.19). O termo “magicus” pode acarretar a manifestação de um
sobrenatural maligno, o que rapidamente “deslizou para o lado do mal, para o lado de
Satanás.” (LE GOFF, 2010, p.19).
23 GUMBRECHT, 2009, p.52.
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quanto mais beatitude a alma possui, menos conexão com seu corpo ela
transmitirá e mais luz sentirá. É uma leveza de espírito e neste ambiente,
como nos outros, sentimos que o duplo se desconectou de seu corpo físico.
A alma pode se modelar, apesar de que a imagem que a alma figura é
ainda próxima daquela de seu antigo corpo.
Quando Dante encontra com algumas almas, ele demonstra
conhecê-las quando se aproxima, principalmente porque ele as reconhece,
se não pela voz então pela sua sombra. O aparecer das almas dita quem
elas são, o instante em que se encontram. Neste ambiente, é mais difícil
encontrarmos indícios de movimento para compreendermos a eternidade ali
disposta, “pois os episódios são muito mais discursivos do que narrativos, a
descrição espacial possui pouca variação e essa ocorre em função de
menor ou maior intensidade de luz”51.
Se pensarmos em ambientes como o Purgatório, veremos que há
uma possibilidade de crescimento espiritual. As almas no Purgatório estão
em transição, sua passagem depois da morte às endereçou para um
ambiente de purgação, daí seu nome. Ali elas sofrem pelas escolhas com a
possibilidade de em algum momento se emanciparem e se levantarem aos
Paraísos: “[...] ora o segundo reino vou cantar / Onde a alma humana
purga-se e auspicia /Torna-se digna de ao céu se elevar”52. Nesse caso, o
tempo é uma necessidade da alma que deve se situar nesse espaço e
sofrer a danação temporal de seus atos para então alcançar o Paraíso.
O Purgatório é um ambiente encontrado na superfície terrestre,
como descrito anteriormente. Nesse caso ele está sujeito à comunicação
com os astros e à luminosidade do sol. Perante esses elementos, a alma
enquanto duplo, ou seja, desprendida de seu corpo físico, é sentida na
descrição das almas e, principalmente, quando Dante se surpreende ao
notar que apenas a sua sombra está aparente, um indício de que as almas
não possuem sombra quando tocadas pela luminosidade solar:
O Sol, que atrás de mim via chamejar,
rompido era, pra frente, na figura
de seus raios que em mim vinham parar.
Para o lado me virei, na conjetura
apavorada do abandono, quando
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Nápoles. Estácio foi autor dos poemas “Tebaide” e “Aquiléide”, escritos no século I.
61 Purg. XXV, 44-45.
62 Purg. XXV, 53.
63 Purg. XXV, 52-55.
64 Purg. XXV, 68-72.
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ideia presente nos antigos também elucida a mente de Dante que percebe
nessa revelação antiga uma possível presença de mundo e de vivência,
aprendendo com Platão, Aristóteles, Agostinho, Avicena, Averróis, Tomás
de Aquino ideias sobre a alma e o tempo, as quais passam a se revelar na
realidade primordial do cosmos, na eternidade do pós-morte dantesco.
Sendo assim, a alma se encontra em um ambiente de eternidade, no
qual o acontecimento é voltado a um eterno instante como uma confluência
entre temporalidade; o passado fora pré-figurado sendo a figuração o agora,
o presente; já o futuro é a sombra constituída no presente, sua figuração
está dentro do instante. No pós-morte estes tempos fluem para um mesmo
momento e passam a ser presenciados em um instante eterno,
principalmente no Inferno e no Paraíso, pois são a revelação figural de tais
elementos.
Referências
ALIGHIERI, Dante. Vita Nuova. Firenze: Edizioni G. Barbera, 1965.
______. Monarchia. Roma: Instituto dell’Enciclopedia Italiana, 1978.
______. Convivio. Milano: Einaudi, 1988.
______. De vulgari eloquentia. Testo bilingue (latino-italiano) a cura di
Sergio Cecchin. Torino: UTET, 1988.
______. A Divina Comédia.1ª Edição (1998). Prefácio por Carmelo Distante,
tradução e notas por Italo Eugenio Mauro. Edição bilíngue. 15ª Ed. São
Paulo: Editora 34, 2008.
AGOSTINHO. A cidade de Deus. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1990.
______. Confissões. São Paulo: Paulus, 2002.
AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Editora Ática, 1997.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol.1. Rio de Janeiro:
Petrópolis, 1986.
BOCCACCIO, Giovanni. La vita di Dante. Introdução, notas e apêndice de
Francesco Macri-Leone. Florença: G. G. Sansoni, 1888.
CARONE, Modesto. “Prefácio”. In: AUERBACH, E. Figura. São Paulo:
Editora Ática, 1997.
114
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1 ALIGHIERI, 2011.
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imediata entre céu e terra, determinada pelo divino, que, futuramente, seria
a realidade verdadeira.
De forma mais geral, o fascínio do reino do oltretomba dantesco não
está no que se pode revelar, na visão que se lhe terá revelado, mas na
vivência do sentir. O certo é que, no momento da leitura, o que se vê não é
uma miscelânea de textos antigos ou modernos, mas a junção de conceitos
e imagens que habitaram, e ainda habitam, o coração da humanidade. O
“Inferno” desenhado por Dante, por exemplo, não contradiz
substancialmente a figuração herdada da Antiguidade, a quem deseja
voluntariamente filiar-se, escolhendo como seu guia Virgílio, autor da
“Eneida”.
Na Comédia de Dante, Virgílio tem o papel de guia numa região
controlada pelo ciclo natural – o inferno que fica no centro da terra e
o purgatório em sua saída. A partir deste ponto Virgílio deixa Dante;
quem o guia é a própria Beatriz, pois Virgílio jamais poderá
contemplar a visão beatífica. Na terra sua visão pode avançar até a
idéia de renovação, mas nunca irrompeu na de ressurreição2.
Assim como Enéias, o herói desses versos, o poeta que narra
“Divina Comédia” desce ao inferno para conhecê-lo, e é lá que encontra as
principais personagens da história da Itália, passada e presente, cujo juízo é
filtrado pelos valores da igreja, a saber: os pecados capitais, a venalidade, a
concupiscência. Dante poeta confere forma ao inferno, em cujo centro
inferior, como uma pirâmide invertida, coloca Lúcifer, imperador do mundo
subterrâneo e senhor de todo o mal.
Partindo do princípio de que o ‘mal’ está acorrentado no fundo do
inferno, o autor usa o termo ‘comédia’ para intitular seu poema no sentido
que ele tem para a cultura medieval. Dizendo comédia ele não quer referir-
se ao teatro ou a um tipo de espetáculo, mas às distinções de língua e estilo
elaboradas pela retórica. Ele define a comédia como: um gênero de
narração poética. Na concepção aristotélica, a comédia procura imitar os
homens piores e a tragédia melhores do que, em geral, eles são. Para
Dante autor, o termo comédia refere-se ainda a uma obra que começa
infeliz e termina em felicidade. Por isso a narrativa começa no “Inferno”,
onde se encontram as almas atormentadas e se encerra no “Paraíso”, lugar
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3 1982, p.50.
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foi o primeiro a ousar sonhar uma língua literária unida que, mais tarde, se
transformaria no italiano. Ele escreveu em dialeto toscano, o dialeto que ele
falava, e este formou a base da língua italiana de hoje, graças à sua
escolha. Somente este fato já faria da “Divina Comédia” uma obra de
grande importância. Dante é considerado o pai do idioma italiano porque
reconhece a supremacia do vulgar sobre o latim, em uma realidade cultural
de plurilinguismo que se apresenta durante a Idade Média. O vulgar que ele
propõe é uma língua literária substancialmente toscana, de derivação
siciliana, a língua da sua poesia. O conflito linguístico vulgar/latim,
demonstrado em suas reflexões, reflete diretamente o conflito político entre
uma concepção laica de Estado e uma concepção eclesiástica, e propõe
que a Itália só poderia ter uma identidade político-cultural se seus
intelectuais adotassem o vulgar italiano e os valores que este exprimia não
só poética, mas também politicamente. Através da leitura da “Divina
Comédia”, o leitor culto italiano teria, pela primeira vez, a clara sensação de
pertencer a uma civilização que, mesmo resguardadas suas características
individuais, possuía bases comuns.
Ainda refletindo sobre a abrangência da “Divina Comédia”, pode-se
afirmar que o texto aqui em questão é comumente chamado por seus
comentadores, ao longo de sete séculos, como a ‘enciclopédia do Medievo’,
isso porque Dante, com suas experiências de estudioso, de filósofo e de
crente em Deus, construiu uma obra que contém todos os elementos da
cultura da sua época. Pelas suas experiências pessoais e pelo caminho
trilhado por seu protagonista, ele criou uma síntese perfeita da visão
cósmica da Idade Média, na forma de uma composição artística perfeita, um
“clássico da literatura”. Para Italo Calvino:
Os clássicos são livros que exercem uma influência particular
quando se impõem como inesquecíveis e também quando se
ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como
inconsciente coletivo ou individual. [...] Os clássicos são aqueles
livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras
que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na
cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na
linguagem ou nos costumes). [...] Os clássicos são livros que,
quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos
de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos11.
11 1991, p.10-12.
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12 1989, p. 152.
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vezes, no decorrer do poema, o poeta fala da missão que lhe foi atribuída
por Deus, que lhe permitiu viver esta experiência do além, conhecer as
consequências do pecado, purificar seu espírito, como exemplo para
aqueles que buscam a salvação de suas almas e a salvação de toda a
sociedade civil e religiosa.
Os símbolos centrais na “Divina Comédia” são, de um lado os
números já mencionados: o três com referência à Trindade, e o nove com
referência à Beatriz, e, por outro, a própria viagem ultraterrena que é, em si
mesma, alegórica: ela é entendida como um longo processo de purificação,
durante o qual toda a humanidade (que é simbolizada através da figura de
Dante-protagonista) pode atingir a salvação eterna guiada pela filosofia.
Virgílio está presente no poema para simbolizar a filosofia, a ciência
humana, a autoridade imperial e a providência que se aproxima. O paraíso
terrestre representa a felicidade terrena, enquanto Beatriz simboliza a graça
de Deus e também a sabedoria final da teologia. A descida de Beatriz ao
inferno leva consolo a Dante e a toda a humanidade. A figura da mulher
perfeita, doce, graciosa, piedosa e especialmente o conhecimento de
Beatriz, que possui todas as virtudes, na vida de Dante era também um
tema central. Mesmo os seus poemas, escritos no famoso “Dolce Stil
Nuovo”, falam desta mulher celestial. Na “Commedia”, é Beatriz quem se
faz de guia para o protagonista desde a soleira do paraíso até o Empíreo, e
foi ela quem mandou Virgílio para ajudar Dante no caminho precedente.
Pensando, então, na simbologia que envolve a figura de Beatriz, a
“Divina Comédia” poderia ser entendida como a descrição da conquista da
fé partindo-se dela mesma. Cada canto do poema seria uma progressão fiel
aos preceitos de fé, que parecem crescer em concordância com a obra.
Sem as manifestações de fé, das quais Dante tinha conhecimento, não se
poderia chegar à narrativa final de seu poema. E, sem alcançar a beleza
que o poeta almejava, a tentativa de escrever a “Divina Comédia” seria vã.
A beleza da obra em Dante dá sentido à existência e até mesmo às suas
próprias convicções morais, filosóficas e religiosas, vinculadas às questões
de fé conhecidas no seu tempo.
Já Virgílio é escolhido para ser um dos guias do autor porque, como
poeta, já havia descrito o reino dos mortos e também porque, na “Eneida”,
acreditava-se ter ele preanunciado a vinda de Cristo. Virgílio foi um grande
poeta da antiguidade e autor de várias obras, entre as quais está a
“Eneida”, obra que, segundo Dante Alighieri, o teria inspirado na escrita da
“Divina Comédia”. A “Eneida” conta a história da fundação de Roma por
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
sua doutrina, ou por sua moralidade, mas muito mais por sua excelência
poética.
Mário Praz, sobre Dante, faz a seguinte afirmação:
Já em 1892, Janitscheck escrevera que “Giotto descobriu em
pintura a natureza da alma, tal como Dante a tinha descoberto em
poesia”, e em 1923 Hausenstein concluíra que “São Tomás de
Aquino, Dante e Giotto são a expressão teológica, poética e
figurativa, respectivamente, do mesmo pensamento”. Para
Rosenthal, a arte de Giotto, como a poesia de Dante, “representa o
momento mais alto de um processo de individualização”, o qual
consiste “de um lado, no surgimento e progresso da chamada
naturalidade, e de outro na progressiva corporificação do
sobrenatural numa única vida humana”, processo que se supõe ter
começado na França por volta de meados do século XII e ter-se
concluído na Itália nos primórdios do século XIV13.
Primordial, neste caso, é que o poeta viu seus personagens em seus
dramas humanos, numa atmosfera de desespero, sentimento que também
nos aflige na cena de Paolo e Francesca. E o comportamento do poeta,
diante do narrado pelos personagens ‘infernais’, é o da simpatia e, ao
mesmo tempo, da condenação em relação aos seus personagens,
querendo, com isso, atuar uma altíssima missão ética.
Todos estes sentimentos contraditórios, aliados a uma capacidade
de utilizar e inventar soluções estilísticas e verbais tão eficazes, fazem da
“Divina Comédia” uma verdadeira obra-prima mundial. Para conhecer
Dante, saber o que foi sua vida e sua obra, compreender as suas ações,
penetrar na sua mente e no seu coração, não basta ler uma ‘introdução’
que, para falar do poeta, poderia ser, inclusive, um livro. Seria necessário,
para uma apresentação digna, que o intérprete dividisse com ele não
somente seu gênio criativo, ou pelo menos sua paixão pela unidade, um
pouco da paixão monumental que continuamente o solicita. Não, o melhor
que se pode dizer e que pode fazer um leitor de Dante, é convidar os mais
jovens que ele para lerem a obra, uma página após a outra, na sequência,
como cada um vive sua própria vida, um dia atrás do outro. Ler até o fim,
sem pular nada, mesmo que com isso advenha o cansaço. Ler o poema
como um mundo que esteja totalmente em suas mãos. Lê-lo como uma
obra ‘aberta’ e não como um bloco unitário pré-estabelecido em relação a
13 1982, p. 70.
133
SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
Referências
ALIGHIERI, Dante. Divina comédia. Tradução de Xavier Pinheiro. São
Paulo: Atena Editora, 2003. Disponível em:
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/divinacomedia.pdf
______. Lettera a Cangrande. Trad. De Maria Adele Garavaglia. Biblioteca
dei classici italiani di Giuseppe Bonghi. Disponível em:
http://www.classicitaliani.it/dante/cangran.htm
AUERBACH, Erich. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 1997.
BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
CALVINO, Italo. Lezioni Americane: sei proposte per il prossimo millenio.
Milano: Garzanti, 1988.
______. Por que ler os clássicos. Trad. de Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
134
A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
135
8
Introdução
O cinema, embora apreciado como objeto de entretenimento, lazer e
como uma produção artística, também precisa ser compreendido como
produto de uma indústria e, como tal, precisa ser vendido. O sucesso das
bilheterias define os enredos que valem o investimento e aqueles que
jamais devem ser veiculados novamente. Assim, as películas exibidas na
grande tela, sobretudo nas produções hollywoodianas, devem conquistar o
seu espectador através de enredos, atuações, trilha sonora e imagens
(além de outras características) nele veiculadas, que precisam encontrar
respaldo e diálogo com o pensamento (ou pensamentos) de uma
determinada sociedade, datada e histórica.
Esse pensamento, que iremos denominar de imaginário, é aquilo
que Robert Muchembled (2001) denominou como um fenômeno coletivo,
que se constrói sobre a realidade e produzido pelos múltiplos canais
culturais que irrigam uma sociedade, não se configurando em um tipo de
véu metafísico divino. O imaginário seria uma espécie de maquinaria
escondida sob a superfície das coisas, poderosamente ativa, que cria
sistemas de explicação e motiva igualmente ações individuais e coletivas.
Bronislaw Baczko (1985), por sua vez, destaca que os imaginários
sociais constituem pontos de referência nas produções simbólicas,
produzidas pelos grupos sociais em que se percepciona, divide e elabora
suas próprias finalidades. Por meio dos imaginários sociais que uma
coletividade designa sua identidade e sua representação de si, define os
papéis e as posições sociais, exprime e impõe crenças comuns, constrói
códigos de “bom comportamento”.
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
2 2006, p. 62.
3 Fonte de todo mal, no sentido de as mulheres estarem comumente representadas como
mais propícias a pecar, onde os demônios encontraram um terreno mais fértil entre as
mulheres do que os homens. Segundo a obra do Malleus Maleficarum, o demônio não
conseguindo manipular os homens, utilizará as mulheres, que entrando em seus corpos, vão
realizar todos os tipos de malefícios a humanidade. Ver maiores informações em: KRAMER,
Henrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Rio de Janeiro: rosa dos tempos,
1997.
4 TERTULIANO apud DALARUN, 1990, p.35.
5 CLUNNY apud DALARUN, 1990, p. 35.
139
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
8 1990, p. 42.
9 DALARUN, 1990, p.55.
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15 1985, p.325.
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16 Existe a partir da década de 1990 produções desse gênero que exibe Maria como
personagem central dos filmes que contam a história de vida de seu filho. É sobre o
surgimento dessa cinematografia e o imaginário que motiva a produção de tais filmes o tema
de tese de doutorado do autor, sob a orientação da Profa. Dra. Aline da Silveira Dias pelo
Programa de Pós Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
146
A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
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19 2004, p.31.
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
Fonte: O Rei dos Reis. Produção de Samuel Bronston, 1961 – Distribuição MGM/UA – Home
Video.
20 Pois conforme os ensinamentos da Igreja, mesmo grávida Maria manteve-se virgem até o
fim de seus dias, pois foi receptáculo do filho de Deus, fruto de obra divina e não de
conjunção carnal. Lembrando que a imagem da virgem pura e recatada é a tentativa de
desfalcar o diabo no mundo, sendo ela a única privada do estigma do pecado original, sendo
o modelo feminino, capaz de levar esperança, salvação e redenção às mulheres. Ela
representa a forma de vida e conduta moral idealizada, modelo que deve ser espelhado
pelas filhas de Eva.
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Fonte: O Rei dos Reis. Produção de Samuel Bronston, 1961 – Distribuição MGM/UA –
Home Video.
Por sua vez, esses elementos também convergem com uma
tradicional canção/oração brasileira, de domínio público, sobre a Mãe de
Cristo, intitulada “Mãezinha do céu”, cantada e regravada por inúmeros
artistas e padres, como Padre Marcelo Rossi: “Mãezinha do céu / eu não sei
rezar / Só sei te dizer / que eu quero te amar / Azul é teu manto / branco é
seu véu / Mãezinha, eu quero te ver lá no céu / Mãezinha eu quero te ver lá
no céu” 22.
Ainda conforme a segunda aparição de Maria (Figura 3),
observamos que ela está na porta de algum lugar, a espera de alguém, ou
melhor, seu marido, o que justifica sua expressão de quem procura por
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
23 BÍBLIA, Êxodo, 20: 17. Importante salientar que essa mesma passagem, de forma quase
idêntica, também se encontra no livro do Deuteronômio capítulo 5, versículo 21.
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
livra dessa maldição, graças a sua Mãe que o concebeu longe do pecado
carnal sexual.
Durante a fase adulta de Jesus, João Batista vai a sua casa e só
encontra sua Mãe, pois o mesmo se encontrava no deserto. Maria, que
estava a fazer pão (figura 5), cumpria assim uma função social típica
atribuída às mulheres, que era cuidar do lar. Tal característica corrobora a
influência do imaginário social vigente, pois a mulher deve cuidar do espaço
doméstico e privado, enquanto os assuntos públicos são conferidos ao
homem. Percebe-se uma certa influência do pensamento social da época,
até então conservador.
João pontua que Jesus deve pregar em Jerusalém e não no deserto,
mas Maria atua como porta-voz de seu filho, afirmando que quando a hora
certa chegar, ele assim fará. João menciona que percebe tristeza na fala de
Maria e ela responde que também fala com alegria. Destaque para as
lágrimas em seus olhos, ou seja, uma reação esperada do papel social
tradicional da mãe que pressente e teme a saída de casa dos filhos.
Fonte: O Rei dos Reis. Produção de Samuel Bronston, 1961 – Distribuição MGM/UA –
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
26 De acordo com Baldock (2009, p. 204) “Ao longo dos séculos, a imagem popular de Maria
Madalena ficou tão enfeitada que a pessoa apresentada nos Evangelhos mal é reconhecida:
em um extremo ela se torna a "prostituta arrependida”; no outro, a amante ou esposa de
Jesus e mãe de seus filhos [...]. Até onde os autores dos evangelhos se atêm, Maria
Madalena pertencia ao grupo de mulheres que foram curadas por Jesus e lhe proviam
sustento com seus bens pessoais, a ele e a seus discípulos.. No caso de Maria, ela foi
curada de ‘sete demônios’”.
27 1990, p.50.
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
de seus olhos uma única e singela lágrima, afinal, a mulher deve ser
comedida e evitar escândalos – deve manter-se reservada, mesmo em
sofrimento.
Em seguida, Jesus transfere a tutela de Maria, que outrora foi
passada para ele devido a morte de José, seu Pai, para João. Entende-se
aqui que a mulher necessita ser guardada, controlada e protegida, pois é
incapaz de se estabelecer sozinha, sem auxílio masculino.
Ainda podemos interpretar essa cena de duas formas: A primeira, diz
respeito a Jesus, que transfere a tutela de Maria, que outrora foi passada
para ele devido à morte de José, seu Pai, para João. Ela é tratada como
uma herança ou um bem patrimonial que, na morte de seu dono, passa
para outro, o que também remete a passagem do livro do Êxodo (20:17), já
citada, que coloca a mulher como posse do homem.
A segunda incide sobre a possibilidade de fragilidade de Maria,
porque ela, enquanto mulher já viúva e, agora com o filho morto, estaria
mais fragilizada socialmente, sozinha e que “precisaria” de alguém para
cuidar dela. De qualquer forma, as duas situações apresentam a mulher,
representada pela mãe de Jesus, como incapaz de conduzir seu próprio
destino, uma vez que está presa ao homem, seu protetor e possuidor de
sua liberdade.
Ao pé da cruz Maria permanece até seu filho morrer. Após descerem
com o corpo de Jesus, ele é colocado nos braços de sua mãe. Mais tarde
ela acompanha os apóstolos e outras mulheres, inclusive Madalena,
enquanto carregam o corpo de Jesus até o túmulo. Colocado no sepulcro e
fechado, Maria e os demais vão embora.
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
Fonte: O Rei dos Reis. Produção de Samuel Bronston, 1961 – Distribuição MGM/UA –
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O filme “O Rei dos Reis” (1961), tem Jesus Cristo como protagonista,
e nele, Maria é sempre apresentada como esposa de José e a mãe de
Cristo, colocada à margem das decisões, manifestando-se poucas vezes de
maneira direta, a exemplo dos seus pressentimentos maternais. Todos
esses são elementos de um imaginário conservador, composto tanto por
elementos sociais e históricos quanto canônicos, que o filme (re)produz e
veicula para os espectadores. Dessa forma, compreende-se que a
combinação das passagens dos evangelhos e de elementos tradicionais
referentes ao feminino – dona de casa, instinto materno, ausência de voz no
cenário das decisões, compostura e comedimento dentre outros –
possibilitam apontar “O Rei dos Reis” (1961) mais do que um filme religioso,
sendo um filme fruto de sua época.
Em suma, Maria exibe as marcas que uma sociedade patriarcal
destina à mulher, anulando a participação feminina nas decisões políticas
ou posições de liderança e poder, sujeitas às imposições masculinas que
são legitimadas pelas escrituras e os ministros da Igreja. Ou seja, é um
imaginário social referente ao feminino que encontra legitimidade na
tradição conservadora e dogmática do Cristianismo. Pois, “como acontece
em todas as Igrejas dos santos, estejam caladas as mulheres nas
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A PRESENÇA DE MARIA NO FILME “O REI DOS REIS” E O IMAGINÁRIO FEMININO
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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9
Meu senhor São Tiago [sic] me reprova, e diz que sem obras a fé
está morta. Nosso Senhor quis cumprir essas palavras em nossos
feitos, pois, embora sem obras a fé não valha nada, quando ambas
se unem dão fruto, fruto que Deus deseja receber em sua mansão.
Assim, apesar de ser bom o princípio de nosso nascimento, nossas
obras tinham a necessidade de levá-los à sua perfeição, embora
não nos faltasse a fé em nosso Criador e em Suas obras, tampouco
preces à Sua Mãe para que rogasse por nós a Seu querido Filho, a
fim de que nos perdoasse os erros que Lhe fazíamos, pois a fé que
nós tínhamos nos levou à verdadeira saúde1.
Remetendo-se ao evangelho de Tiago, nestas primeiras palavras
legadas no “Llibre dels Feyts”, obra de caráter autobiográfico ditada na
década de 1270 pelo rei ibérico, o tempo se desdobrara a partir da ação de
seus agentes, não fora papel do Deus cristão em si mover a história. Esta
encontrara sua realização e mobilidade nas obras dedicadas ao Senhor
pelos homens e mulheres abençoados pela graça divina. Contudo, por que
os escrivães do rei retomaram uma teologia tiaguina dos primeiros anos do
cristianismo? Voltemo-nos agora a duas concepções centrais às
experiências temporais aqui analisadas, presentes tanto em Tiago quanto
na narrativa de Jaime I, as relações entre fé e obra:
Meus irmãos, tende por motivo de grande alegria o serdes
submetidos a múltiplas provações, pois sabeis que a vossa fé, bem
provada, leva à perseverança; mas é preciso que a perseverança
produza uma obra perfeita, a fim de serdes perfeitos e íntegros sem
nenhuma deficiência. Se alguém dentre vós tem falta de sabedoria,
peça-a a Deus, que a concede generosamente a todos, sem
recriminações, e ela ser-lhe-á dada, contanto que peça com fé, sem
duvidar, porque aquele que duvida é semelhante às ondas do mar,
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GRAÇAS DIVINAS, FEITOS SAGRADOS: O LLIBRE DELS FEYTS E A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DO TEMPO
impelidas e agitadas pelo vento. Não pense tal pessoa que vai
receber alguma coisa do Senhor2.
Escrita entre os séculos I e II e.c. por um judeu-cristão balizado tanto
em uma tradição veterotestamentária e judaica quanto helenística, a
“Epístola de Tiago” se voltara para uma permanente fidelidade cristã
(VOUGA, 1996). A “Epístola” demonstrara um deslocamento da provação
para a fé e da fé para a constância. Uma constância que deveria ser
perfeita, que não hesitasse, pois aquele que hesita, que é inconstante, não
receberia nada do Deus cristão. A resistência na fé, a perseverança,
produziria uma obra pia em si (VOUGA, 1996). Como os mártires do
cristianismo primitivo que resistiram ao poder mundano e perseveraram ao
crerem e permanecerem fiéis a Cristo – pelo exercício da prática cristã, de
uma fé permanente, o Senhor ofereceria suas graças. Mil anos após a
pregação de Tiago, na exegese realizada no “Llibre dels Feyts”, o rei
conquistador reafirmara a necessidade de uma fé absoluta em Deus e em
suas obras, uma fé que o levara a verdadeira saúde. Uma salut que se
referira não ao caráter físico da pessoa, mas a uma saúde espiritual
centrada em uma prática cristã de virtudes e de afastamento dos vícios.
E quando nos levaram de volta para a casa de nossa mãe, ela ficou
muito alegre com esses prognósticos ocorridos conosco. Mandou
então que fizessem doze velas, todas do mesmo peso e tamanho,
as fez acender ao mesmo tempo, e a cada uma deu o nome de um
dos apóstolos. Além disso, prometeu ao nosso Senhor que nós
receberíamos o nome daquela que mais durasse. E como durou
mais a de são Jaume, quase três dedos de altura a mais que as
outras, por isso e pela graça de Deus nós temos o nome de
Jaume3.
A própria escolha do nome do monarca denotara a participação de
Deus no tempo – a vela do apóstolo Tiago tivera a maior duração, como se
o tempo não a corrompesse ou o fizesse a passos curtos. Tiago, como
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
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GRAÇAS DIVINAS, FEITOS SAGRADOS: O LLIBRE DELS FEYTS E A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DO TEMPO
pois nosso pai não teve mais ninguém de nossa mãe, e que viemos
a vós muito cedo, pois éramos um jovem de seis anos e meio, e
encontramos Aragão e Catalunha conturbados, pois uns estavam
contra os outros, e não se acordavam em nada, pois o que uns
queriam, os outros não queriam. E havia má fama pelo mundo por
causa dessas coisas que tinham acontecido. Este mal nós não
podemos reparar a não ser de duas maneiras, isto é, pela vontade
de Deus, que nos endereça em nossos assuntos para que façamos
tais coisas, e se vós e nós fizermos isso com prazer, para que a
coisa seja tão grande e boa que a má fama que está entre vós
termine, porque a claridade das boas obras desfaz a escuridão4.
Neste discurso pronunciado no ano de 1228 nas Cortes Gerais em
Barcelona, que culminara na convocação da conquista de Maiorca, Jaime I
perante os seus vassalos os lembrara de seu nascimento e como fora a
própria vontade de Deus que o trouxera para o mundo. Também os
lembrara dos conturbados anos iniciais de seu reinado, permeados pelas
revoltas dos nobres da Catalunha e Aragão que constituíram o ambiente de
uma guerra civil que se perpetrara até então. Mas principalmente, lembrara
seus vassalos da necessidade de boas obras, e como estas boas obras
poderiam clarear aqueles anos obscuros.
As palavras de Tiago e do conde-rei ecoaram a necessidade de uma
mobilidade, na qual a práxis aliada a constância assumira uma centralidade
na vida cristã. De acordo com Tiago: “Com efeito, aquele que ouve a
Palavra e não a pratica assemelha-se a um homem que, observando seu
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GRAÇAS DIVINAS, FEITOS SAGRADOS: O LLIBRE DELS FEYTS E A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DO TEMPO
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SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
porque a união dele aos seus feitos fora um fruto que o Deus cristão
desejara? Ao prosseguir sobre estes questionamentos em sua vida, o rei
afirmara que:
E como Nosso Senhor Jesus Cristo, que sabe todas coisas, sabia
que nossa vida se prolongaria tanto que uniríamos as boas obras à
nossa fé, fazia-nos tanta graça e mercê, que por mais que fôssemos
pecadores de pecados mortais e veniais, não quis que tivéssemos
desonra ou dano com os quais pudéssemos nos envergonhar, na
corte ou em outro lugar, nem quis que morrêssemos até que
tivéssemos concluído isso. E era tamanha a mercê que Ele nos
brindava que sempre fazia nossos inimigos nos honrar, tanto com
feitos quanto com palavras, e nos deu boa saúde em nossa pessoa
durante nossa vida. E se algumas vezes nos dava doenças, o fazia
como castigo, de maneira semelhante a um pai que castiga seu
filho, pois disse Salomão que quem perdoa a seu filho as varas do
castigo mal lhe faz, e não parece desejar-lhe bem, embora Nosso
Senhor nunca nos corrigira tão fortemente para nos dar dano.
Assim, agradecíamos a hora em que Ele nos castigava e o castigo
que nos fazia, e ainda mais agora que entendemos melhor que o
fez por nosso bem7.
Deus sabe de todas coisas – sabia da longa vida de Jaime I, sabia
que o rei uniria boas obras a sua fé. O Senhor igualmente oferecera graças
ao Conquistador, na forma de saúde, de doenças, de feitos e palavras. O
Senhor não coloca provas aos seus servos. Se para Tiago toda ação de
Deus é bondosa, todo ato divino visa a salvação do ser8, por outro lado, o
conde-rei avançara na concepção tiaguina e afirmara que mesmo o castigo
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divino era em sua essência um ato de bondade, como a ação de um pai que
por meio de correções ensina o bom caminho ao seu filho. Como veremos
adiante, a exegese do Conquistador sobre a provação enquanto ato divino
corroborara a própria sacralidade de seus feitos.
O Deus cristão como ser atemporal e eterno detinha o conhecimento
do passado, do presente e do futuro, mas também a sua regência. Contudo,
se Deus sabia que o rei faria coisas boas, ele poderia não tê-las feitos? Por
que era sua função? Para alcançar a perfeição ele deveria unir estas obras
com a fé, era sua vocação estabelecida pela graça divina. A experiência
temporal desenvolvida na narrativa do monarca fora marcada por uma
ordem do tempo cristã suportada em outro debate para além da fé e das
obras: a relação entre a presciência de Deus e suas graças. Uma
experiência do tempo suportada nos escritos sagrados e que tivera como
uma de suas principais autoridades a figura de Agostinho de Hipona (354-
430).
Deus é eternidade e imutabilidade, ou seja, ao contrário do caráter
humano que está suscetível ao tempo e a mudança (AGOSTINHO, 1980).
De acordo com o pensamento agostiniano a eternidade pertence a Deus e,
aos homens e mulheres, fora ofertado um tempo que se transforma, mas
também sobre o qual o Senhor atua. Em “Confessiones” o bispo cristão
retomara esta distinção entre a eternidade e o tempo:
Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo
que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é
impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum
passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam
d’Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração
do homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel
determina o futuro e o passado, não sendo ela nem passado nem
futuro?9.
Na concepção agostiniana, o tempo emanara da eternidade e
caminhara para ela – uma eternidade que também pudera ser
experimentada no presente. A experiência temporal de Agostinho marcada
pelo triplo presente e pela relação entre a mutabilidade do tempo e
imutabilidade da eternidade – que conforme Le Goff fora muitas vezes
simplificada, deformada e misturada – ecoara por uma parcela considerável
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sua mobilidade visara a perfectibilidade. Ao agir por meio das graças, Deus
visara a salvação do ser que, por sua vez, somente seria salvo ao atuar na
realidade pelas graças e pelo constante movimento da vontade livre (VAHL,
2015).
Entre Tiago e Agostinho chegamos neste momento em algumas
considerações parciais. O fim enquanto horizonte de expectativas não fora
um caráter imobilizador do tempo – ao contrário, ele impulsionara a prática
cristã. Em sua obra doutrinária, Agostinho relembrara aos seus leitores para
que não cressem que somente o batismo lhes garantiria um lugar na
eternidade. O caminho à salvação estava na retitude cristã. Agostinho
retomara os fundamentos da “Epístola de Tiago” ao reafirmar que a fé é
morta quando se afasta de uma práxis cristã. Em sua mutabilidade, homens
e mulheres poderiam alcançar uma perfectibilidade ao ter como fim a
verdadeira perfeição que é Deus. Séculos depois, Jaime I dera novos ares
para estas experiências cristãs do tempo:
E lembramos bem uma sentença que nos recordam as Sagradas
Escrituras e que diz “Omnis laus in fine canitur”, que quer dizer: a
melhor coisa que o homem pode ter é o fim de seus anos. E a
compaixão do Senhor da glória fez em nós essa semelhança pela
qual se cumpre a palavra de são Santiago, já que em nossos
últimos anos ele quis cumprir que a obra concordasse com a fé. […]
Dessa forma, conhecendo que esta é a verdade e tudo mais é
engano, nós quisemos dar, pensar e endereçar nosso pensamento
e nossas obras aos mandamentos de Nosso Salvador, e assim
deixamos as vanglórias desse mundo para conseguir Seu reino,
pois Ele nos diz no Evangelho: “Qui vult venire post me, abneget
semetipsum, et tollat crucem suam et sequatur me”, mas desejo
também dizer em romance: quem deseja ir atrás d’Ele, que
abandone sua vontade pela Sua. E como ainda lembramos as
grandes graças que muitas vezes Ele nos fez nos tempos de nossa
vida e, maiormente, no fim de nossos dias, desejamos deixar nossa
vontade pela Sua16.
16JAUME I DE ARAGÃO, 2010, p. 48. Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo da Costa
do original: “E membra’ns bé una paraula que ens retrau la sancta Escriptura, que diu: Omnis
laus in fine canitur, que vol dir aitant que la mellor cosa q l’hom pot haver si és a la derreria
dels seus anys. E la mercé del Senyor de glòria há feit a nós en aquesta semblança, perquè
es cumple la paraula de sent Jacme: que a la derreria de nostres anys volc complir que l’obra
s’acordàs ab la fe. [...] E nós coneixent que aquesta era la veritat e l’àls, monçònega,
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volguem la nostra pensa e les nostres obres donar, e pensar e dreçar als manaments de
nostre Salvador, e lexam les vanes glòries d’aquest món per conseguir al seu regne. Car ell
nos diu en l’Evangeli: Qui vult venire post me, abneget semetipsum et tollat crucem suam et
sequatur me. E vol tant dir en romanç que qui vol venir aprés d’ell, lleix la sua voluntat per la
sua. E membra’ns encara a nós les grans gràcies que ell moltes vegades nos havia feites en
temps de nostra vida, e majorment a la derreria dels nostres dies, volguem lleixar la nostra
voluntat per la sua”. (JAUME I DE ARAGÃO, 2008, p. 25-26).
17 2014, p.67.
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20 JAUME I DE ARAGÃO, 2008, p.51. Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo da Costa
do original: “E així féu-se el matrimoni, e fo lo seu nom crescut, que hac nom la reina Dona
Maria”. (JAUME I DE ARAGÃO, 2008, p. 26-29)
21 JAUME I DE ARAGÃO, 2010, p. 55. Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo da Costa
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22JAUME I DE ARAGÃO, 2010, p. 53. Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo da Costa
do original: “E aquella nuit que abdós foren a Miravalls volc nostre Senyor que nós fóssem
engerants. E quan la reina, nostra mare, se sentí prenys, entrà-se’n a Montpesller. E aquí
volc nostre Senyor que fos lo nostre naiximent en casa d’aquells de Tornamira, la vespra de
nostra Dona Sancta Maria Candeler. E nostra mare, sempre que nós fom nats, envià’ns a
Sancta Maria, e portaren-nos en los braces; e deïen matines en l’església de nostra Dona; e,
tantost con nós meseren pel portal, cantaren Te Deum laudamus. E no sabien los clergues
nos deguéssem entrar allí, mas entram quan cantaven aquell càntic. E puis llevaren-nos a
Sent Fermí. E, quan aquells qui ens portaven entraren per l’església de Sent Fermí, cantaven
Benedictus Dominus Deus Israel” (JAUME I DE ARAGÃO, 2008, p. 30).
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23JAUME I DE ARAGÃO, 2010, p. 54. Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo da Costa
do original: “E aenant, nós jaent en lo bressol, tiraren per uma trapa sobre nós un cantal, e
caec prop del bressol, mas nostre Senyor nos volgué estorçre que no moríssem”. (JAUME I
DE ARAGÃO, 2008, p. 31).
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eles realizar estas boas obras que tinham como princípio e fim a eternidade
e a salvação.
A seguir seu discurso perante seus vassalos nas Cortes Gerais em
Barcelona, Jaime I afirmara que:
Assim, nós vos rogamos encarecidamente por duas razões: a
primeira por Deus, a segunda pela natureza que temos convosco,
que vós nos aconselhais e ajudais em três coisas: a primeira, que
nós possamos colocar nossa terra em paz; a segunda, que
possamos servir a Nosso Senhor nesta viagem que desejamos
fazer ao reino de Maiorca e às outras ilhas que pertencem a ele; e a
terceira, que deis conselho, de maneira que possamos cumprir a
honra de Deus24.
Nesta passagem, o conde-rei relembrara seus vassalos de suas
obrigações para com ele, afinal, era o princípio daquelas relações feudo-
vassálicas que eles aconselhassem seu rei natural. E em contrapartida, o
Conquistador elevaria a fama e a honra de seus vassalos ao impulsioná-los
àquele empreendimento (VIANNA, 2010). De maneira semelhante, ao
conquistar Maiorca os cristãos também cumpririam suas obrigações
enquanto servos do Senhor. Mas para materializar este empreendimento,
eles deveriam estabelecer a paz em sua terra. Para que a luz pudesse
reinar, para que a honra de Deus fosse cumprida, a escuridão deveria
cessar. A ação a ser realizada no reino insular era imbuída de um caráter
divino e natural – preenchida pelo passado da tradição feudo-vassálica e
pela eternidade do Senhor – pois tinha como fim a restituição da
universalidade do cristianismo, mas também da fama de aragoneses e
catalães. Aquelas terras no meio do mar, ocupadas pelos muçulmanos,
retornariam às mãos de Cristo.
Martínez Romero assinalara um aspecto interessante sobre a
imagem literária de Jaime I: ele era uma espécie de segundo fundador da
linhagem catalã, assemelhara-se ao próprio Cristo. Filho de uma Maria
santa, tivera como missão dada pelo próprio Deus salvar suas terras. O
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aquesta visió havia vista lo li havia dit en penitència, e per cert que ho havia vist; e pesà molt
al frare quan no el dix que el rei de Navarra era. E per açò devets vós conhortar, el rei e
vosaltres, car nostre Senyor restaurarà tan gran mal e defendrà que no pusca venir. E dic-
vos açò per conhortar”. (JAUME I DE ARAGÃO, 2008, p. 370-371).
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Lúlio” (Ramon Llull), 2010.
197
SER, TEMPO E ESPAÇO: REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES DO MEDIEVO
198
GRAÇAS DIVINAS, FEITOS SAGRADOS: O LLIBRE DELS FEYTS E A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DO TEMPO
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