Christine Ranier Gusman - Tese
Christine Ranier Gusman - Tese
Christine Ranier Gusman - Tese
em Ciências.
São Paulo
2017
Christine Ranier Gusman
Orientadora:
Coorientador:
São Paulo
2017
Gusman, Christine Ranier
ix, 83f.
Coordenador do Curso de Pós Graduação: Prof.ª Dr.ª Zila Van Der Meer Sanchez
iii
CHRISTINE RANIER GUSMAN
Presidente da banca:
Banca examinadora:
iv
Dedicatória
v
Agradecimentos
“Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de
si, levam um pouco de nós”
Antoine de Saint Exupéry
Ao Marcio e nossos três amores, Lívia, Armando e Francisco, por terem, cada um à sua
maneira, abdicado temporariamente de suas prioridades e seus projetos para viabilizar
esta tese, por compreenderem as ausências impostas pelo trabalho de campo e pelo
amor que me amparou durante essa trajetória. Amo vocês.
À Prof.ª Dr.ª Wilza Vieira Villela, minha orientadora, pela forma como acolheu e
conduziu minhas limitações e potencialidades, pela paciência infinita com minha
ansiedade, meus advérbios e conectivos, por ter acreditado nesse trabalho. Sou outra
pessoa depois de você. Gratidão.
Ao Prof. Dr. Douglas Antonio Rodrigues, meu coorientador, guia fundamental durante
todo trabalho de campo e os primeiros contatos com o povo Krahô. Suas palavras de
incentivo chegavam sempre em momentos oportunos e fortaleceram minha caminhada.
Muito obrigada.
À querida amiga Daphne Rattner. Mesmo a vida tendo nos proporcionado encontros tão
rápidos e passageiros deixou marcas e redirecionamentos profundos na minha
trajetória profissional, e essa tese é a materialização deste fato. Serei sempre grata pela
sorte em tê-la no meu no caminho e por poder me amparar na sua luta para fortalecer
as mulheres tocantinenses.
À minha mãe, Solange Ranier, pela doação incondicional e irrestrita de amor, tempo,
abrigo, colo, chamego e da melhor comidinha do mundo. Mulher linda e forte, esteio da
vida, o que seria de mim sem você? Amo até o infinito e além!
À doce e amada tia Elizabeth Ranier Martins do Valle. Você sempre será minha
principal referência, meu espelho, minha inspiração. Seu legado profissional é
belíssimo. Mesmo que um dia, por motivo de força maior, você não saiba mais quem eu
sou, eu saberei sempre quem você é.
Aos queridos irmãos Ranier Gusman: Giulian, Tom e Audrey. Foi delicioso poder
conviver de novo com vocês, seus filhotes e cônjuges durante uma fase desse trabalho.
vi
Vocês renovaram minhas energias: virei madrinha de novo, ganhei uma sobrinha linda
de presente, comemoramos conquistas. Como é bom ter irmãos! Obrigada por serem
meus! Amor que não se mede!
Ao primo-irmão Eduardo Ranier Martins do Valle. Seu apoio foi fundamental a essa
tese, sua companhia e seu jeito de ser continuarão a ser fundamentais na minha vida.
Ããããhnnn...tapas!
Aos amigos Daniela Rosante e Paulo Batista, ou tia Dani e tio Nesk, e seus pequenos
Valentim e Maria. Pela amizade e apoio na caminhada do trabalho, especialmente pela
parceria na criação de nossos filhos, compartilhando caronas, birras, dever de casa,
amor e valores. Vocês sempre serão necessários na nossa vida. Gratidão!
À amiga Nathália Zorzi, por ter me acolhido de forma tão carinhosa durante o trabalho
de campo. Espero poder retribuir tamanha generosidade. Obrigada querida!
vii
Resumo
Esta tese é o resultado de um estudo que pretendeu colocar em análise as estratégias do
Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais e suas repercussões para um grupo de
mulheres Krahô. A entrega do kit da parteira é um ícone do programa, uma presunção de que
uma nova prática alinhada ao saber hegemônico terá início a partir de então. Nesse sentido, o
estudo buscou analisar como as mulheres Krahô compreendem sua participação no programa e
se apropriam e ressignificam os objetos do kit da parteira no contexto do parto domiciliar. A tese
está estruturada em formato de quatro artigos, cada qual representando momentos distintos do
estudo. Os dois primeiros são anteriores ao trabalho de campo e frutos de questionamentos
vivenciados tanto na etapa de desenvolvimento do programa de parteiras quanto no percurso
para aprovação nos comitês de ética. Os dois últimos são provenientes do trabalho de campo e
contaram com a antropologia e o método etnográfico como suportes principais. Os trâmites para
aprovação ética do estudo mostraram-se tortuosos e excessivamente burocráticos, a
experiência indicou que é nos processos singulares e subjetivos que as posturas éticas ou não
éticas podem ser experimentadas, a despeito do que possa estar registrado em formulários. Os
resultados apontam um descompasso entre o discurso e a prática de valorização do saber
tradicional e um nítido viés etnocentrado do programa ao ofertar instrumentos fora da lógica de
cuidado das mulheres e pressupor um impacto nos indicadores de saúde a partir da aquisição
do saber hegemônico. Os objetos foram apropriados e ressignificados no cotidiano das aldeias,
mas não encontraram um lugar claro no contexto do parto domiciliar. Traços de violência
simbólica emergiram e a categorização das mulheres Krahô como “parteiras” trouxe impactos e
prejuízos na relação social de algumas mulheres. Sugere-se o resgate da dimensão intercultural
na formulação e execução de políticas públicas direcionadas a esse público como um caminho
profícuo, sob pena de se engendrar num ciclo alienado e alienante, desperdiçando recursos e
adiando discussões importantes como o fortalecimento da rede de atenção à saúde no entorno
das mulheres indígenas.
Palavras-chave: Saúde de Populações Indígenas; Parteira Leiga; Parto Domiciliar; Saúde da
Mulher; Política de Saúde.
viii
Abstract
This thesis is the result of a study that sought to analyze the strategies of the Working with
Traditional Midwives Program and its repercussions on a group of Krahô women. Midwife kit
delivery is an icon of the program, a presumption that a new practice aligned with hegemonic
knowledge will begin there after. Thus, the study sought to analyze how Krahô women view their
participation in the program and take ownership of and resignify midwife kit objects in the home
birth context. The thesis is structured in four papers, each representing different moments of the
study. The first two occurred prior to fieldwork and result from issues raised during the
development stage of the midwifery program and throughout the process of approval by ethics
committees.The last two stem from fieldwork and were mainly supported by anthropology and
the ethnographic method. The procedures for the ethical approval of the study were tortuous and
overly bureaucratic. Experience has indicated that ethical or unethical stances can be
experienced in the singular and subjective processes, regardless of what may be recorded in
forms. Results point to a mismatch between the discourse and the practice of recognizing
traditional knowledge and a clear ethnocentric bias of the program when offering tools outside
the rationale of women care and assuming an impact on health indicators from the acquisition of
hegemonic knowledge. The objects were appropriated and resignified in the daily life of villages,
but they failed to find a clear place in the context of home birth. Symbolic violence traits emerged
and the categorization of Krahô women as "midwives" brought impacts and losses in the social
relationship of some women. We suggest reviving the intercultural realm in the formulation and
implementation of public policies directed to this public as a profitable pathway, under penalty of
engendering an alienated and alienating cycle, wasting resources and delaying important
discussions such as the strengthening of the health care network around indigenous women.
Keywords: Health of Indigenous Peoples; Midwives Practical; Home Childbirth; Women´s
Health; Health Policy.
ix
Sumário
Dedicatória……………………………………………………………………………….........................………….v
Agradecimentos…………………………………………………………………………….............................……vi
Resumo…………………………………………………………………............................……………………….viii
Abstract…………………………………………….............................……………………………………………..ix
1. INTRODUÇÃO…………………………………………………............................…………………………….1
2. PRIMEIRO ARTIGO………………….…………………………………............................………………...….4
2.1 Referência/Periódico…………………….............………………….............................................…….…4
2.2 Situação…………………………………………………………………………...................................…...4
2.3 Texto……………………………………………………………................................………………..….….5
3. SEGUNDO ARTIGO................................................................................................................................19
3.1 Referência/Periódico…………………………………………………………..................................….…19
3.2 Situação……………………………………………………………………………................................….19
3.3 Texto………………………………………………………………................................………………..…20
4. TERCEIRO ARTIGO...............................................................................................................................41
4.1 Referência/Periódico…………………………………………………………...................................……41
4.2 Situação……………………………………………………………………………................................….41
4.3 Texto………………………………………………………………................................………………..…42
5. QUARTO ARTIGO..................................................................................................................................62
5.1 Referência/Periódico…......…………………………………………………….................................……62
5.2 Situação……………………………………………………………………………................................….62
5.3 Texto………………………………………………………………................................……..……………63
6. CONCLUSÕES.......................................................................................................................................80
7. REFERÊNCIAS.......................................................................................................................................82
1
1. INTRODUÇÃO
ainda analisar o tipo de apoio material recebido do serviço de saúde, já que alguns itens
do kit se desgastam ou terminam. Além disso, para se chegar aos objetos, antes seria
preciso chegar às mulheres e suas impressões e leituras do PTPT, abrindo
possibilidades de explorar o alcance do objetivo do programa que trata do
reconhecimento, valorização e resgate do trabalho da parteira, no contexto da
população estudada.
A tese se estrutura a partir de quatro artigos, dois já publicados, um no prelo e
outro em processo de avaliação. O percurso metodológico dos artigos seguiu caminhos
distintos, sendo os dois primeiros frutos de experiências pré-campo. Nos demais se
optou pela metodologia qualitativa amparando-se na antropologia social e suas
ferramentas etnográficas.
O primeiro artigo retrata a trajetória do PTPT no Tocantins e caracteriza a
população alvo do programa no estado. Discute as inquietações iniciais frente ao
diagnóstico da situação do parto domiciliar no estado e os desafios para a inclusão de
parteiras tradicionais no SUS.
O trâmite burocrático para aprovar a pesquisa nas instâncias competentes e
responsáveis pelas questões éticas culminou na publicação do segundo artigo. Trata-se
de um relato de experiência que problematiza a pesquisa com povos indígenas e a
burocratização da ética, debatendo algumas implicações práticas para os envolvidos
nas pesquisas sociais.
O terceiro e quarto artigos são produtos da experiência vivida em campo e
abordam as questões mais centrais da tese como o impacto do PTPT nas relações
sociais da aldeia, as expectativas e frustrações relatadas pelas mulheres e seus
parentes, a apropriação e o uso dos objetos do kit da parteira e outras matizes dos
discursos e ações do programa no cotidiano das mulheres.
Os artigos estão apresentados por ordem de publicação/submissão.
4
2. PRIMEIRO ARTIGO
2.1 Referência/Periódico
Gusman CR, Viana APAL, Barbosa MAB, Pedrosa MV, Villela WV.
Inclusão de parteiras tradicionais no Sistema Único de Saúde no Brasil:
reflexão sobre desafios. Rev Panam Salud Publica 2015; 37 (4-5): 365-
370. / Revista Panamericana de Salud Publica
2.2 Situação
Publicado
5
2.3 Texto
Christine Ranier GusmanI; Ana Paula de Andrade Lima VianaII; Margarida Araújo Barbosa
MirandaIII; Mayane Vilela PedrosaIII; Wilza Vieira VillelaIV
IFundação Universidade Federal do Tocantins (UFT), Curso de Enfermagem, Palmas (TO), Brasil.
IIGrupo Curumim, Recife (PE), Brasil
IIISecretaria de Estado da Saúde do Tocantins, Área Técnica de Saúde da Mulher, Palmas (TO), Brasil
IVUniversidade Federal de São Paulo, Departamento de Medicina Preventiva, São Paulo (SP), Brasil
RESUMO
O presente artigo apresenta uma experiência de trabalho com parteiras tradicionais realizada no
estado do Tocantins, Brasil, entre 2010 e 2014, no âmbito do Projeto Diagnóstico da Situação
do Parto Domiciliar no Tocantins e Cadastramento de Parteiras Tradicionais, vinculado ao
Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais (PTPT), do Ministério da Saúde. O projeto
objetivou uma articulação entre o parto e o nascimento domiciliares assistidos por parteiras
tradicionais e os sistemas locais de saúde. No estado, identificaram-se 67 parteiras atuantes.
Durante oficinas de capacitação, 41 parteiras tradicionais, dentre as quais 39 indígenas,
discutiram suas realidades, dificuldades e soluções frente a um cotidiano com muitas
adversidades. Essas parteiras foram ainda capacitadas no uso de instrumentos biomédicos e
na condução da reanimação neonatal. A partir dessas experiências, surgiu o questionamento
sobre a real efetividade da estratégia para incluir as parteiras tradicionais no SUS. O presente
artigo discute esse tema com apoio na literatura pertinente. A carência de estudos sistemáticos
acerca do impacto das ações do PTPT no cotidiano das parteiras, incluindo os desfechos
perinatais e o remodelamento das práticas de saúde em populações rurais, ribeirinhas,
quilombolas, de floresta e indígenas, implica lacunas importantes no que diz respeito à
efetividade desse tipo de iniciativa.
Palavras-chave: Saúde de Mulher; Parteira Leiga; Parto Domiciliar; Políticas Públicas; Sistema
de Saúde; Brasil.
ABSTRACT
The present article describes an experience with traditional birth attendants carried out in the
state of Tocantins, Brazil, between 2010 and 2014. The experience was part of a diagnostic
project to survey home deliveries in the state of Tocantins and set up a registry of traditional
birth attendants for the Health Ministry's Working with Traditional Birth Attendants Program
(PTPT). The project aimed to articulate the home deliveries performed by traditional birth
attendants to the local health care systems (SUS). Sixty-seven active traditional birth attendants
6
were identified in the state of Tocantins, and 41 (39 indigenous) participated in workshops.
During these workshops, they discussed their realities, difficulties, and solutions in the context of
daily adversities. Birth attendants were also trained in the use of biomedical tools and neonatal
resuscitation. Based on these experiences, the question came up regarding the true
effectiveness of the strategy to include traditional birth attendants in the SUS. The present article
discusses this theme with support from the relevant literature. The dearth of systematic studies
focusing on the impact of PTPT actions on the routine of traditional birth attendants, including
perinatal outcomes and remodeling of health practices in rural, riverfront, former slave, forest,
and indigenous communities, translates into a major gap in terms of the knowledge regarding
the effectiveness of such initiatives.
Key words: Women's health; midwives, practical; home childbirth; public policies; health
systems; Brazil.
INTRODUÇÃO
O SUS, por ter seus princípios ancorados na cidadania e na justiça social, supõe
um processo contínuo de construção e desconstrução de práticas, embates e debates,
disputas, conflitos e interesses. Assim, não causa espanto a proposta de valorização do
parto domiciliar e de parteiras tradicionais e sua inclusão no SUS, mas é inevitável
pensar em que termos essa inclusão é possível.
No Tocantins, as parteiras e mulheres por elas atendidas formam um grupo
altamente vulnerável em função de etnia, cor da pele, escolaridade ou renda. No
estado, as indígenas, ditas "vulneráveis" pelas inúmeras privações e riscos a que estão
expostas, representam a maioria das parteiras tradicionais e suas parturientes.
Portanto, cabem algumas considerações quanto a essa especificidade.
Se as parteiras tradicionais historicamente estiveram à margem do sistema
formal de cuidado à saúde, pode-se dizer que as mulheres indígenas que conduziam
partos foram, por muito tempo, absolutamente invisíveis. Nem mesmo ações sanitárias
desenvolvidas na região Amazônica pelo SESP referem tais especificidades étnico-
culturais. Embora a interação com a população indígena tenha sido inevitável, não se
observa em documentos oficiais qualquer menção às particularidades que diferenciam
13
material para o parto (citado 28 vezes) e não remuneração (citado 27 vezes) - três
dimensões fundamentais quando se pensa em inclusão nos serviços de saúde e
reconhecimento do trabalho.
O isolamento geográfico e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde são os
grandes responsáveis pela existência, ainda hoje, de parteiras tradicionais, o que torna
coerente a principal queixa apresentada por elas. No entanto, não se pode tratar com
simplicidade a questão. As dificuldades em garantir o transporte no caso de a
gestante/parturiente/puérpera necessitar de encaminhamento ao serviço de saúde se
traduziram em frequentes relatos angustiados e impotentes ao longo do treinamento:
"Só quando passa um carro por aqui", "A gente pede o carro, mas às vezes, leva 2 dias
pra chegar". Se aliarmos a essa situação as dificuldades pontuadas em relação à
comunicação com os serviços de saúde (como por exemplo: telefones públicos que
nem sempre funcionam, uso de telefone celular de terceiros, comunicação por bilhetes,
idas até o serviço a pé ou de bicicleta), temos um quadro preocupante e ainda distante
do ideal de garantia das condições mínimas para inclusão no SUS.
A remuneração tem sido uma reivindicação constante nos encontros, porém até
o momento não há propostas concretas e sua viabilidade ainda é um impasse.
Um detalhamento da estrutura dos serviços de saúde no estado seria necessário
para avaliar com mais profundidade as nuances da inclusão de parteiras e mulheres no
SUS. Estudos que detalham a estrutura dos serviços de saúde e seus principais
desafios no estado do Tocantins são escassos. Uma pesquisa 18 que pretendeu avaliar
a Estratégia Saúde da Família na região Norte apresentou uma lista com 13
dificuldades/críticas apontadas por 346 profissionais da saúde. As cinco mais
frequentes foram: referência e contrarreferência inexistente/ineficaz; demanda
excessiva de atendimento; falta de infraestrutura; precárias condições de trabalho; e
falta de medicamento/equipamento/recursos materiais.
Considerando esse cenário, pode-se dizer que dificilmente as ações educativas
promoverão a devida inclusão de parteiras tradicionais e mulheres no SUS. Entretanto,
mesmo diante das dificuldades apresentadas, as ações educativas parecem ocupar um
lugar interessante - o de potencializar direitos. Compartilhar vivências pode facilitar a
criação de movimentos coletivos em prol do interesse que se descobre não solitário.
15
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
6. Sousa ABL, Schweickardt JC. O Sesp nunca trabalhou com índios: a (in)visibilidade
dos indígenas na atuação da Fundação Serviços de Saúde Pública no estado do
Amazonas. Hist Cienc Saude- Manguinhos. 2013;20(4):1635-55.
17
7. Silva TMA, Ferreira LO. A higienização das parteiras curiosas: o Serviço Especial de
Saúde Pública e a assistência materno-infantil (1940-1960). Hist Cienc Saude-
Manguinhos. 2011;18(1):95-112.
8. Santos BS. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Rev Crit
Cienc Soc. 2008;80:11-43.
9. Leão MRC, Riesco MLG, Schneck CA, Angelo, M. Reflexões sobre o excesso de
cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres. Cienc Saude Coletiva.
2013;18(8):2395-400.
10. Nagahama EEI, Santiago SM. A institucionalização médica do parto no Brasil. Cienc
Saude Coletiva. 2005;10(3):651-7.
11. Diniz SG, d'Oliveira AFPL, Lansky S. Equity and women's health services for
contraception, abortion and childbirth in Brazil. Reprod Health Matters. 2012;20(40):94-
101.
13. Ferreira LO. A emergência da medicina tradicional indígena no campo das políticas
públicas. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2013;20(1):203–19.
14. Projeto Valorização e Adequação dos Sistemas de Parto Tradicionais das Etnias
Indígenas do Acre e do Sul do Amazonas. Relatório etnográfico final. Florianópolis:
Instituto de Pesquisa e Documentação Etnográfica - Olhar Etnográfico; 2007. Disponível
em: http://sis.funasa.gov.br/portal/publicacoes/pub1626.pdf Acessado em junho de
2014.
17. Sesia PM. "Women come here on their own when they need to": prenatal care,
authoritative knowledge, and maternal health in Oaxaca. Med Anthropol Q.
1996;10(2):121-40.
18. Cordeiro H, Romano VF, Santos EF, Ferrari A, Fernandes E, Pereira TR, et al.
Avaliação de competências de médicos e enfermeiros das Equipes de Saúde da
Família da Região Norte do Brasil. Physis. 2009;19(3):695-710.
18
3. SEGUNDO ARTIGO
3.1 Referência/Periódico
Gusman CR, Rodrigues DA, Villela WV. Trâmites éticos, ética e burocracia
em uma experiência de pesquisa com população indígena. Saude soc.
2016; 25 (4): 930-942. / Saúde e Sociedade
3.2 Situação
Publicado
20
3.3 Texto
RESUMO
INTRODUÇÃO
510/20161. Essa resolução trata das especificidades éticas das pesquisas que utilizam
metodologias advindas dessa área de conhecimento. Entretanto, toda a descrição da
experiência se dá anterior a essa resolução e, por considerar que esta não é uma
conquista definitiva e acabada, entende-se que o compartilhamento da vivência poderá
colaborar com as discussões no campo da ética e dos fluxos operacionais que
pretendem garanti-la no transcorrer das pesquisas.
Em que pese a necessária existência, importância e seriedade dos órgãos
responsáveis pela aprovação de pesquisas no país, há que se considerar o impacto da
desarticulação entre os órgãos, da morosidade e da falta de clareza de algumas
questões conceituais no andamento de pesquisas de caráter social.
No Brasil, antes da publicação da Resolução 510/2016, pesquisas em/com seres
humanos (independente da área de conhecimento, técnica ou método) deveriam seguir
as normativas da Resolução nº 466/20122. Ressalta-se, entretanto, que populações
indígenas não foram contempladas na resolução mais atual. Assim, pesquisas
envolvendo essas populações estão incluídas em “áreas temáticas especiais”, sendo a
aprovação do projeto condicionada à apreciação nas instâncias: Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP) local, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), Fundação
Nacional do Índio (Funai), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), além de consulta às lideranças indígenas; caso haja interesse em
acessar conhecimento tradicional, inclui submissão ao Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional.
O novo olhar que a sociedade internacional lança sobre a dignidade humana
após o fim da Segunda Guerra Mundial conduziu à necessidade de se instituir
normativas protetoras aos sujeitos participantes das pesquisas. Nesse sentido, o
Código de Nuremberg, de 1947, criado para colaborar no julgamento dos crimes
nazistas, e a Declaração de Helsinki, que estabelece diretrizes para pesquisas clínicas
desde 1964, representam marcos e têm amparado documentos e resoluções que
tratam de ética em pesquisa em diversos países3.
O primeiro documento a estabelecer diretrizes éticas em âmbito nacional para
pesquisas envolvendo seres humanos foi a Resolução 196/1996, do Conselho Nacional
de Saúde (CNS)4, atualizada em junho de 2013, com a publicação da Resolução
22
PERCURSO METODOLÓGICO
ser construído para que os entraves e as dificuldades de cada etapa pudessem guiar o
recorte dos assuntos e as discussões.
Simultaneamente à vivência com o sistema CEP/Conep, a troca de informações,
correspondências e documentos com a Funai passou a alimentar o diário. Nesse caso,
as tentativas de compreender o funcionamento da estrutura organizacional dessa
fundação, o fluxo de informações entre o órgão e a Conep e as atribuições dos setores
por onde o projeto de pesquisa tramitava culminaram no levantamento de informações
por meio de artigos, decretos, normativas, ligações telefônicas e solicitações no portal
da transparência on-line.
O objetivo deste estudo não é apenas compartilhar as informações levantadas ao
longo do percurso, mas, sobretudo contribuir para o debate das especificidades das
pesquisas não biomédicas no Brasil, os entraves burocráticos envolvidos e algumas
consequências práticas para o trabalho de campo, partindo de nossa experiência. É
importante esclarecer que não há pretensão em aprofundar reflexões epistemológicas
da bioética, sendo essa uma primeira limitação do manuscrito. Além disso, a
complexidade do sistema CEP/Conep (e suas inúmeras particularidades regionais),
bem como as instáveis políticas direcionadas à Funai não permitem que a experiência
relatada possa ser considerada como um parâmetro para as pesquisas de caráter social
com populações indígenas.
vínculo que vai sendo construído são elementos que certamente definirão o número de
sujeitos. Além disso, o tempo para a realização e conclusão do estudo não é o mesmo
para criar e aperfeiçoar os vínculos, o que faz o planejamento (como número de
aldeias, quais e quantos sujeitos serão visitados/entrevistados) ser constantemente
revisto.
Outro desafio diz respeito ao TCLE, cuja inadequação nas pesquisas sociais vem
sendo amplamente debatida8,9,10,11 desde o surgimento da Resolução 196/1996. Pode-
se dizer que uma das principais conquistas da nova resolução é a ampliação das
técnicas e registros para a obtenção do consentimento esclarecido; entretanto, a
submissão do projeto é anterior ao novo documento. Tal como postulado inicialmente e
mantido na Resolução 466/2012, o TCLE prevê que os participantes da pesquisa sejam
informados e esclarecidos sobre todas as consequências possíveis de seu ingresso na
pesquisa, incluindo riscos a que estarão expostos, medidas de proteção e benefícios
previstos, cabendo ao pesquisador se responsabilizar pela minimização desses riscos e
a reparação de danos eventuais. É um documento que deve ser produzido e assinado
por ambas as partes antes do início de qualquer pesquisa que envolva seres humanos.
Nota-se que o modelo de proteção em que está ancorado o TCLE é o da pesquisa
clínica e experimental, pressupondo um risco iminente à saúde das pessoas.
Para Diniz12, uma reconfiguração do modelo contratual do TCLE seria
fundamental uma vez que, excetuados casos excepcionais, pesquisas sociais envolvem
riscos similares às relações sociais cotidianas, sendo consideradas de risco mínimo.
De acordo com Víctora8, o TCLE na pesquisa qualitativa deveria estar menos
voltado a repetir o modelo de riscos e benefícios das pesquisas biomédicas, priorizando
o comprometimento do pesquisador na contextualização dos dados coletados no
processo interpretativo. Em nossa experiência, grande parte da reformulação do TCLE
solicitada pela Conep esteve relacionada com a descrição dos riscos, modos de
prevenção, danos possíveis e sua eventual reparação. Passados alguns meses do
início do trabalho de campo, observamos que, embora a preocupação ética deva estar
o tempo todo ao lado do pesquisador, as nuances de conduta e o que pode ou não ser
um risco ou dano toma realmente corpo após a entrada em campo. Ademais, sem
dúvida, o senso crítico e ético pesa tanto ou mais quando se está fora dele. Parece-nos
27
que a forma como o pesquisador lida com os vínculos formados (até mesmo depois de
encerrado o trabalho de campo), a escolha dos dados a serem divulgados e a maneira
de interpretá-los podem impactar os sujeitos de forma mais direta que qualquer risco
pressuposto inicialmente.
Depois de concluídos os ajustes no TCLE, o documento ficou extenso o que
tornou desafiador o encontro inicial com as lideranças, já que a linguagem escrita não
prevalece na cultura indígena e parte considerável do povo Krahô não detém domínio
pleno da língua portuguesa. Assim, o TCLE pareceu inconveniente para um primeiro
encontro, no qual o diálogo e a necessidade de descobrir um pouco mais sobre o outro
era nitidamente mais urgente e importante para ambas as partes. Juntos numa roda de
conversa, a tentativa de leitura formal do TCLE não foi cogitada, pois criaria um
ambiente artificial e poderia comprometer a confiança. Assim, a estratégia foi concluir a
tarefa lançando o conteúdo do termo de maneira informal na roda. Ficou evidente o
pouco interesse pelo documento e pelo que nele estava escrito, o desejo era saber do
outro, era falar sobre si mesmo, falar sobre o coletivo das aldeias, das habilidades, das
crianças e dos animais que também entraram na roda.
Esse parece ser um dos maiores progressos da nova resolução. Desde que a
pesquisa se enquadre nos parâmetros de uma pesquisa social, o art. 4º 1 esclarece que
o consentimento pode ser obtido e registrado em qualquer das fases de execução da
pesquisa, bem como retirado a qualquer momento, sem prejuízo ao participante. Traz
ainda que o consentimento e o assentimento podem ser realizados por meio de
expressão oral, escrita, linguagem de sinais (ou outros) e passa a considerar válida
diversas formas de registro, como o escrito, sonoro, magnético (ou outras). Não está
claro se pesquisas com populações indígenas poderão usufruir da nova resolução
parcialmente ou se continuarão vinculadas à resolução anterior.
1
No original: “este complejo proceso de reivindicación de sus derechos individuales y colectivos, les ha
permitido afirmarse como sujetos políticos”.
33
outras etapas e assumir certo controle sobre as atividades de pesquisa está claramente
descrito no relatório, tal como no item 110, do subeixo 2.1:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
explicitamente. Os autores ponderam que o achado não permite afirmar que tenha
havido falhas nos procedimentos éticos, apenas que não foram apontados. Essa lacuna
supõe que a discussão da ética em pesquisas sociais é campo em construção. Além
disso, pede um amplo debate e um olhar diferenciado e cuidadoso sobre uma forma de
pesquisar onde não cabe a neutralidade; ao contrário, pressupõe uma relação de
confiança e a criação de vínculo entre as partes. Nesse sentido, quando um artigo
suprime os aspectos e dilemas éticos vivenciados na trajetória da pesquisa perde-se a
oportunidade de ampliar a discussão relacionada aos conceitos de dano, reparação,
risco ou não risco nas pesquisas sociais. Um horizonte favorável à ressignificação da
ética nas pesquisas ganha contornos muito mais visíveis, o que torna o
compartilhamento dessas informações em artigos científicos uma condição bastante
relevante para o aprofundamento da questão e a caminhada nessa seara.
REFERÊNCIAS
11. VÍCTORA, C. et al. (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói,
RJ: UFF, 2004.
12. DINIZ, D. A pesquisa social e os comitês de ética no Brasil. In: FLEISCHER, S.;
SCHUCH, P. (Org.). Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília,
DF: UnB: Letras Livres, 2010. p. 183-192.
13. CARTA aberta dos cientistas brasileiros à Exma. Sra. Presidente da República
Dilma Rousseff sobre o atraso na pesquisa clínica no Brasil. Jornal Folha de
S.Paulo, São Paulo, 6 ago. 2015. Poder, A7.
15. BATISTA KT, ANDRADE RR, LAURENTINO N. O papel dos comitês de ética em
pesquisa. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 150-
155, 2012.
20. ARRUDA , R. Dilma reduz estrutura da Funai e tem menor demarcação de terras
desde 1985. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 fev. 2015. Disponível em: <
http://bit.ly/2eLE8ab >. Acesso em: 8 out. 2015.
4. TERCEIRO ARTIGO
4.1 Referência/Periódico
4.2 Situação
No prelo
42
4.3 Texto
RESUMO
Este artigo analisa o impacto do Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais no cotidiano
de um grupo de mulheres indígenas Krahô. Trata-se de um estudo etnográfico que utilizou a
observação e o diário de campo como suportes principais, além de entrevistas pontuais e dados
secundários. O trabalho de campo ocorreu entre agosto de 2015 e dezembro de 2016 e
envolveu dez mulheres de oito aldeias diferentes. Os resultados apontam uma desconexão
entre o objetivo principal do Programa, centrado na valorização e no resgate do saber da
parteira, e a realidade no cotidiano das aldeias. Muito embora o programa tenha como público-
alvo mulheres que já atuam empiricamente no cenário do parto, houve o entendimento de que
as mulheres “tornaram-se parteiras” após o curso. Por consequência, a falta de pagamento e a
expectativa frustrada de contratação por parte do “governo” foram interpretadas como descaso.
Os resultados indicam um viés etnocentrado do Programa, focado na difusão do saber científico
e na entrega de materiais fora da lógica de cuidado do grupo em análise. Estudos que avaliem
o impacto das ações do Programa em outros contextos, inclusive não indígenas, podem
contribuir para os ajustes necessários e a efetiva valorização do trabalho dessas mulheres.
Palavras-chave: Parteira Leiga; Parto Domiciliar; Saúde de Populações Indígenas.
ABSTRACT
This article analyses the impact of the Working with Traditional Midwives Program on the daily
routine of an indigenous ethnic group. It is about an ethnographic study that used observation
and field diary as main supports, besides punctual interviews and secondary data. The field work
occurred between August 2015 and December 2016 and involved ten women of eight different
villages. The results point to a disconnection between the Program’s main objective, which is
focused on appreciating and rescuing midwife knowledge , and the daily reality of the villages.
Although the Program has targeted women whom already work empirically on the birth setting,
there was a generalized acknowledgement in the villages that the women “became midwives”
43
after undertaking the course. Consequently, the lack of payment and the frustrated expectation
that “government” would hire them, though never assumed, were interpreted as neglect. The
results indicate an ethnocentric bias of the Program, focused on disseminating scientific
knowledge and delivering materials that are out of the logic of the group under analysis. Studies
that evaluate the impact of the Programs’ actions in other contexts, including non-indigenous
ones, may contribute to the necessary adjustments and the effective appreciation of these
women’s work.
Keywords: Midwives; Home Childbirth; Health of Indigenous People.
INTRODUÇÃO
MÉTODOS
Esse artigo é parte de um estudo mais amplo que pretendeu conhecer alguns
desdobramentos práticos do PTPT no cotidiano das mulheres Krahô. Para tanto,
adentrar os meandros da antropologia social, sobretudo das ferramentas etnográficas,
foi imprescindível. Utilizou-se de metodologia qualitativa e apoiou-se no conceito de
cultura trazido por Geertz6 (p.15), a compreendendo “como uma ciência interpretativa à
procura do significado”.
As observações, falas e situações que emergiram em campo foram
categorizadas tematicamente e confrontadas com discursos dos estudos voltados à
educação em saúde, políticas públicas, saúde da mulher, saúde indígena e do campo
da saúde coletiva no que diz respeito ao impacto e eficácia das ações do PTPT no
cotidiano das mulheres.
Um esclarecimento em relação à escolha das mulheres Krahô como sujeitos do
estudo é necessário. Embora mulheres de outras etnias indígenas tenham participado
das oficinas, as pertencentes ao povo Krahô foram maioria. Ademais, a localização
geográfica não mostrava impedimento para as incursões necessárias. Dentre as 28
aldeias registradas no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) – Tocantins em 2015,
oito fizeram parte da pesquisa. A escolha se deu pela proximidade entre elas, pelos
vínculos que foram sendo criados e por indicação de G., um técnico de enfermagem,
morador de Itacajá, que trabalha no território indígena há mais de 14 anos e domina a
língua nativa, tendo participado do PTPT como acompanhante e intérprete. A agenda
do trabalho de campo dependeu dos acordos pactuados com as mulheres e da
disponibilidade de G.
46
RESULTADOS E DISCUSSÃO
do SasiSUS11. Desde 1999, a assistência à saúde chega aos povos indígenas através
de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), Polos Base, Casas de Saúde
Indígena (Casais), Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) e postos de
saúde. Esse modelo de atenção é um desdobramento de movimentos surgidos na
década de 1980, pautados pela busca do direito à diferença e ao multiculturalismo. Tem
como um divisor de águas a 1ª Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio,
ocorrida oito meses após a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986.
O evento descortinou a discussão sobre modelo de atenção à saúde indígena e a
necessidade da participação desses povos na formulação de políticas públicas 12.
Não significa dizer que a estrutura ofertada pelo subsistema passou a atender às
necessidades de saúde dos povos indígenas de forma satisfatória, tampouco que tem
incorporado as reivindicações em sua plenitude. Diversas são as nuances para se
refletir sobre atenção à saúde indígena no Brasil e há um complexo debate em torno da
funcionalidade, resolutividade e adequação do SasiSUS, inclusive com indicativos de
que ainda se mantêm numa condição periférica na agenda da Política Nacional de
Saúde, haja vista ter passado por distintas estratégias políticas e operacionais ao longo
dos anos5 .
A assistência ao povo Krahô é coordenada pelo DSEI-Tocantins e executada por
profissionais lotados no Polo Base situado no município de Itacajá-TO. Conta com uma
base de apoio no município de Goiatins-TO, um hotel em Itacajá que abriga indígenas
em tratamento hospitalar ou em trânsito para tratamento de saúde, 10 postos de saúde
em aldeias estratégicas que oferecem suporte à aldeias vizinhas, 17 agentes indígenas
de saúde (AIS), 17 agentes indígenas de saneamento (AISAN), uma técnica indígena
de enfermagem e três EMSI, compostas por cinco profissionais (médico, enfermeiro,
cirurgião dentista, técnico de enfermagem e auxiliar saúde bucal), sendo cada equipe
responsável por uma microárea.
Os dados epidemiológicos e de serviços são coletados pelo Sistema de
Informações da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), alimentado de forma
descentralizada pelos distritos, polos e aldeias11. Diferente de outros sistemas abertos
de informação no país, nos quais o acesso às informações a qualquer cidadão é livre, o
SIASI fica disponível apenas a gestores da saúde e trabalhadores da saúde indígena.
49
Para fins dessa pesquisa, os dados foram obtidos junto à Área Técnica de Saúde da
Mulher do DSEI-Tocantins, mediante solicitação formal e após autorização da SESAI.
Os dados revelam uma população de 3.159 pessoas vivendo em território
indígena krahô em 2015, destes, 56 identificados como não indígenas. Não houve
registro de óbito materno entre os anos de 2011 a 2015 e não foi possível levantar
números específicos referentes aos óbitos neonatais, pois os dados repassados são
gerais, o que dificulta a exposição e análise no contexto do artigo.
No que diz respeito ao local e tipo de parto nota-se uma mudança a caminho. Em
2012, dos 134 partos registrados, 90 foram apontados como domiciliares e 44 em
ambiente hospitalar, cesarianas somaram sete desse total. Em 2015 uma nítida
inversão no lugar de nascimento, dos 156 partos registrados, 56 foram domiciliares e
100 conduzidos em ambiente hospitalar, destes 11 foram cesarianas. A persistência da
baixa taxa de cesariana mesmo com um aumento expressivo dos nascimentos
hospitalares, deve-se ao fato do hospital de Itacajá não realizar esse procedimento.
Caso a cesariana seja necessária, as mulheres são encaminhadas a outros municípios,
sendo Pedro Afonso-TO o mais próximo deles, distante 107 Km. Esse trajeto
compreende um trecho de 50 km de estrada não pavimentada, implicando numa
viagem de aproximadamente duas horas. Quanto à mudança no local de nascimento, o
evento que coincide com a inversão dos números, é o aporte significativo de médicos
nos 34 DSEIs com o início do “Programa Mais Médicos” do MS a partir de 2013 que
trouxe 340 médicos para a saúde indígena13 .
A indicação de que o parto aconteça no hospital tem sido um pedido frequente
do médico da EMSI que cobre a área visitada. Na avaliação de G., o elevado número
de gestações em idade precoce entre os Krahô leva o médico a entender que é um
“risco muito grande” ter esse kraré (criança) na aldeia, o que o levaria a indicar o parto
hospitalar a praticamente todas as gestantes. Apesar disso, a aldeia foi apontada como
o local preferencial para o parto por uma parcela significativa das mulheres
participantes do PTPT e parentes com quem o vínculo foi estabelecido, mas
lamentavam que as mulheres mais jovens não estivessem mais querendo “ganhar o
kraré” na aldeia.
50
Embora o hospital seja reconhecido por alguns como um lugar importante para
“salvar a mulher e o kraré”, é também um lugar temido.
Nota-se que a distância das aldeias em relação à cidade pode ser um fator
relevante quanto ao local de nascimento. Na aldeia mais próxima e mais populosa,
distante 5 km, os partos domiciliares são raros e nas rodas de conversa com as
mulheres mais jovens a manifestação pelo desejo em ter o filho na cidade prevaleceu.
Essa configuração não se repetiu de forma tão clara em outras aldeias, todas distantes
entre 30 e 60 km da cidade. Nessas, o parto domiciliar aparecia frequentemente como a
opção mais cômoda, mais segura, melhor:
Eles não vêm, não sentam perto da gente assim...como você. (M2)
52
Embora movimentos não verbais possam ser intuitivos e, até certo ponto,
involuntários, esse comentário fez perceber a preciosidade da postura e do não dito,
especialmente numa situação em que a compreensão verbal não era plena.
As dificuldades de linguagem já haviam sido percebidas durante as oficinas do
PTPT, entretanto, com o uso das metodologias ativas de aprendizagem, de argila,
desenhos, bonecos e respeito ao tempo e à forma de se expressar de cada uma, fruto
da experiência de anos da pessoa que conduzia as oficinas, parecia algo relativamente
superado e não tão relevante naquele cenário. As colocações de M1 dão a dimensão
do quão complexo pode ser esse processo:
...porque a kupẽ falou: você é muito inteligente, vai ter asa pra avoar, vê as
coisa...quando eu cheguei, eu passei uma semana com aquela coisa no meu
peito, pensando o que era inteligente...o que era asa pra avoar? Depois que meu
pahi (cacique) explicou e eu entendi que era uma coisa boa. (M1)
No curso nós estudô de tudo, fez boneca, ganhô material, aprendeu. Gostei. (M1)
aldeias distintas estavam reunidos em uma única aldeia para a competição. Assim,
certa tensão se instalou quando G. chamou as mulheres e seus maridos para conversar
sobre a pesquisa. As cobranças quanto ao salário que, no entendimento deles, as
mulheres deveriam estar recebendo, o fato de terem passado uma semana ausentes e
de terem retornado sem dinheiro às aldeias foi imediatamente colocado. A
pesquisadora foi tomada como a agente que deveria garantir a dignidade de volta,
providenciando o retorno financeiro. Após longas conversas, que ultrapassaram aquele
momento, foi possível realizar os esclarecimentos que permitiriam fluir a pesquisa.
Todavia, até o final do trabalho de campo era comum ouvir as perguntas sobre o
pagamento e a contratação das parteiras. Não era tarefa fácil tentar respondê-las.
Como dizia G.:
Quando o governo chama pra fazer um curso, sempre tem um cargo e tem
salário. É assim com o agente de saúde indígena, com o barqueiro, com o
professor...(G.)
Então deveria ser com a parteira. Os apelos foram muitos. Com a menção
honrosa em mãos, entregue durante o seminário que fechou o PTPT, M1 coloca:
Voltou sem poré (dinheiro)! Por que paga pra kupẽ e não paga pra mehin (o índio
Krahô)? O poré nunca volta pra mehin, só circula entre os kupẽ! Por que o kupẽ pode
ganhar salário no hospital e mehin tem que fazer de graça? (P2-marido)
55
Quando voltô pra aldeia, todo mundo pensava que tinha poré, as pessoas...tá todo
mundo sabendo que fez o curso de parteira. Então fala: você fez o curso, é
parteira, tem que pegar o kraré! Quando a N. era cacique ela falou assim pra
’´M3’: você tem que pegar o kraré da minha filha, tá ganhando poré! ’´M3’ falou que
não tinha poré, mas N. saiu falando que a ’´M3’ era mentirosa, porque tava sim
56
ganhando poré! Ela ficou muito chateada, por isso que ela não gosta de falar do
curso e já falou que sem poré não quer saber do negócio de parteira. (M2)
Deixa a gente fazê do jeito que já vinha fazendo. Porque chama de parteira, todo
mundo sabe que tem um salarinho e nós não tamo tendo...então só pra ter o
nome de parteira não é bom. (M3)
Eu tive foi sozinha, no mato, chamei meu marido pra ajudar a cortar o umbigo e
falei, você não fez? Agora me ajuda aqui! (M2)
Não é comum prestarem assistência ao parto fora do seu círculo familiar, fato
que só ocorre quando alguém vem solicitar ajuda em decorrência de alguma dificuldade
que possa estar ocorrendo. O contato com o kaprô (sangue) de outra pessoa faz
adoecer e torna a pele amarelada. Esse é um cuidado que até mesmo as mais jovens
precisam observar quando estão menstruadas, devendo ser as últimas a se banharem
no rio. Além disso, caso algo saia errado durante o parto, a mulher pode sofrer
acusações de feitiçaria ou ter sua reputação comprometida. Assim, a lógica em
determinar uma ou duas pessoas na aldeia que sejam referência na assistência ao
parto domiciliar, como idealizado pelo PTPT, não parece ser adequada à organização
social Krahô. De fato, houve notória dificuldade no momento de cadastrar as mulheres
indígenas que participariam do PTPT, já que algumas afirmavam ter assistido a um
único parto. Optou-se então por cadastrar aquelas que se declarassem dispostas a
assistir um parto quando chamadas, numa média de duas por aldeia. Geralmente era a
liderança quem indicava as mulheres, o que fez com que muitas outras não
compreendessem porque não haviam sido chamadas:
Eu peguei mais kraré que M4, mas ninguém veio conversar comigo. (P3 – irmã)
Trata-se de assumir que o equívoco está para além dos critérios de seleção, está
no reconhecimento de que a proposta de intervenção não foi sensível à conformação
sociocultural do povo Krahô.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
58
REFERÊNCIAS
3. Gusman CR, Viana APAL, Barbosa MAB, Pedrosa MV, Villela WV. Inclusão de
parteiras tradicionais no Sistema Único de Saúde no Brasil: reflexão sobre desafios.
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4. Ferreira LO. Entre discursos oficiais e vozes indígenas sobre gestação e parto no
alto juruá: A emergência da medicina tradicional indígena no contexto de uma
política pública [tese]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina;
2010.
13. Brasil. Ministério da Saúde. Sesai terá reforço de mais médicos para assistência em
aldeias [internet]. 2015 Jun [acessado 2016 Dez 12]. Disponível em:
http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-
ministerio/principal/secretarias/secretariasesai/noticias-sesai/18247-saude-indigena-
recebe-reforco-de-mais-medicos-paraassistencia-em-aldeias
14. Martins APV. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio
de Janeiro: Fiocruz; 2004.
15. Rodhen F. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de
Janeiro: Fiocruz; 2009.
16. Carneiro RG. Dilemas antropológicos de uma agenda de saúde pública: Programa
Rede Cegonha, pessoalidade e pluralidade. Interface 2013; 17 (44): 49-59.
19. Melatti JC. Ritos de Uma Tribo Timbira. São Paulo: Ática; 1978.
21. Parteiras Indígenas são certificadas e recebem kits em último dia de encontro no
Jordão. Notícias do Acre [periódico da internet] 2016 Ago 18 [acessado 2016 Out
22]. Disponível em: http://www.agencia.ac.gov.br/parteiras-indigenas-sao-
certificadas-erecebem-kits-em-ultimo-dia-de-encontro-no-jordao/
61
22. Parteiras indígenas: mulheres de sete municípios serão qualificadas pela SESAU.
Roraima em foco [periódico da internet] 2014 Dez 4 [acessado 2016 Out 22].
Disponível em: http://www.roraimaemfoco.com/parteiras-indigenas-mulheres-de-
setemunicipios-serao-qualificadas-pela-sesau-2/
25. Saber das parteiras tradicionais pode virar patrimônio imaterial. Brasil 247 [periódico
da internet] 2015 Nov 25 [acessado 2016 Dez 10]. Disponível em:
http://www.brasil247.com/pt/247/amapa247/206735/Saber-das-parteiras-
tradicionaispode-virar-patrim%C3%B4nio-imaterial.htm
28. Sésia PM. Women come here on their own when they need to: Prenatal Care,
Authoritative Knowledge, and Maternal Health in Oaxaca. Medical Anthropology
Quarterly 1996; 10 (2): 121-140.
30. Ferreira LO. A emergência da medicina tradicional indígena no campo das políticas
públicas. Hist. cienc. saude-Manguinhos 2013; 20(1): 203-219.
5 QUARTO ARTIGO
5.1 Referência/Periódico
Gusman CR, Rodrigues DA, Villela WV. Apropriações e usos dos objetos
do curso de parteiras tradicionais no cotidiano das mulheres Krahô. Em
análise. / Cadernos de Saúde Pública
5.2 Situação
Submetido/Em análise
63
5.3 Texto
RESUMO
O artigo analisa a apropriação dos objetos do kit da parteira por mulheres indígenas da etnia
Krahô após a participação no Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais. Trata-se de
um estudo qualitativo de natureza etnográfica que utilizou o diário de campo e a observação
participante como principais suportes, além de dados secundários e entrevistas pontuais.
Participaram do estudo dez mulheres de oito aldeias diferentes e a coleta de dados ocorreu
entre agosto de 2015 a dezembro de 2016. Os resultados evidenciaram que os itens presentes
no kit da parteira foram apropriados e utilizados de diferentes formas no cotidiano da aldeia, na
maioria das vezes desvinculados do contexto do parto. O estudo aponta que existe um viés
etnocentrado no programa, materializado na entrega de objetos fora da lógica de cuidado das
mulheres, o que pode ser tomado como um exemplo de violência simbólica. Sugere-se o
resgate da dimensão intercultural na formulação e execução de políticas públicas direcionadas
a esse público como um caminho profícuo, sob pena de se engendrar num ciclo alienado e
alienante, desperdiçando recursos e adiando discussões importantes como o fortalecimento da
rede de atenção à saúde no entorno das mulheres indígenas.
Palavras-Chave: Saúde de Populações Indígenas; Parteira Leiga; Parto Domiciliar
INTRODUÇÃO
METODOLOGIA
RESULTADOS E DISCUSSÕES
“Finada minha mãe me ensinou: não tem material, só espera o kraré (criança),
lava, corta o umbigo, enrola no pano e dá pra mãe” (M5)
Laraia16 (p.90) coloca que “a coerência de um hábito cultural somente pode ser
analisada a partir do sistema a que pertence”. Assim, foi apenas com o trabalho de
campo em andamento há algum tempo que o lugar da tesoura, da flecha e da embira
68
pôde ser compreendido. Também foi preciso tempo para surgir a abordagem mais
coerente, as perguntas mais relevantes e a observação distanciada de valores
etnocentrados.
Embora não tenha sido possível presenciar um parto na aldeia, as conversas
indicaram que os únicos “materiais” que as mulheres dispostas a “pegar kraré” mantêm
em casa é o pano, tecido de algodão que precisa ser comprado fora da aldeia, e um
tipo de bambu. A embira, uma fibra vegetal resistente extraída de folhas, tem muitas
funções na aldeia e é quase sempre a escolha preferencial para amarrar o cordão
umbilical. É retirada no momento em que se precisa, uma vez que há diversas moitas
com a fibra no entorno. Outra opção para laquear o cordão umbilical é a tira de algodão,
feita artesanalmente em poucos minutos a partir da extração de um chumaço de
algodão, com frequência plantado no fundo das casas.
Não é de uma flecha indígena presente no imaginário coletivo que vem o
instrumento para o corte do cordão, mas de um tipo de bambu, este sim guardado em
casa, que se extrai uma pequena lasca cortante a qual chamam flechinha.
Nesse contexto, a tesoura não conseguiu encontrar o seu lugar no parto, ao
menos não da maneira idealizada. Para algumas mulheres é utilizada nas mais diversas
tarefas da aldeia, para outras o instrumento já não existe mais. A tesoura se encontrava
intacta, dentro do recipiente de inox que foi entregue, apenas na aldeia mais distante,
porque nesse caso os dois kits haviam sido entregues e guardados no posto de saúde
e nunca usados, e no kit de M1, que disse ter intenção de usá-la no parto. M1 que havia
assistido a quatro partos após o curso foi a única a apresentar a bolsa do kit
relativamente preservada e com a maior parte dos materiais presentes. Entretanto, o
uso da tesoura nos partos que assistiu não ficou claro; o bambu do qual se extrai a
flechinha era mantido em casa.
Dentre as mulheres que ainda possuíam a tesoura, três afirmaram que poderiam
vir a utilizar num parto caso fosse preciso, mas nenhuma conseguiu descrever o
processo de descontaminação ensinado no curso. As falas se resumiam a lavar, secar
e guardar ou eram vagas, sem explicar o ensinado:
69
As noções de limpo, sujo e contaminado que surgiram nas conversas nada têm a
ver com os conceitos microbiológicos da biomedicina. Um exemplo é a descrição de M7
e P10 (marido) de como deve ser o pano que envolve o kraré ao nascer: limpo, novo,
como veio da loja, sem ninguém ter utilizado, nem ter sido lavado antes.
Não se pretende colocar em discussão a questão do risco microbiológico, mas
abordar como os diferentes saberes manifestam-se na prática. Importa reconhecer que
outras racionalidades, além da científica, estão presentes no cuidado e se amparam em
suas próprias lógicas. M1, por exemplo, não se convenceu sobre a importância do
contato pele a pele durante o nascimento:
“Não gostei desse negócio de colocar o kraré no colo da mãe na hora que nasce.
Precisa fechar a anca. Depois que nasce, eu coloco ela deitada de lado com as
perna fechada pra ajudar o corpo a fechar de novo...eu que seguro o kraré”. (M1)
O kit da parteira foi oficialmente incluído como uma demanda do SUS a partir da
Portaria 1.459/2011, que instituiu a Rede Cegonha; um programa de assistência à
gestação, parto e maternidade no Brasil cujos objetivos são melhorar a qualidade da
assistência, organizar a rede de atenção e reduzir a mortalidade materna e infantil 18. O
programa gerou controvérsias em seu lançamento, alimentadas principalmente pelo
termo ou figura da “cegonha” em substituição à mulher e pela timidez com que tratou a
questão do aborto19,20,21, matérias que não serão trabalhadas aqui. Para a composição
do kit, a portaria descreve uma lista com 30 itens e uma bolsa para acondicionar os
materiais. A entrega deste material é frequentemente noticiada como o ápice dos
cursos de parteiras, como demonstra o título da reportagem do site de notícias do
governo do Acre: “Parteiras indígenas são certificadas e recebem kits em último dia de
encontro no Jordão”22. A foto que estampa a reportagem traz um ambiente
comemorativo, com balões ao fundo, pessoas uniformizadas e uma mulher indígena
posando com o certificado e a bolsa, enquanto outras assistem e aguardam sua vez.
Configura, portanto, um prêmio conquistado, entregue àquelas que tiveram acesso ao
curso. Há um valor simbólico nessa entrega, já que o kit e o certificado se tornam, na
conjuntura do curso, a materialização do saber e da prática dominante. Ainda que
possa ter valor utilitário para muitas mulheres ou mesmo que algumas já utilizem tais
objetos em sua prática, a mensagem é de que a legitimação para usar o que já usavam
ou fazer o que já faziam só pôde ser admitida ao final, depois de cumprida a carga
horária do curso.
A experiência tocantinense foi semelhante, mas ao invés de um certificado, uma
menção honrosa fechou um seminário em que autoridades estiveram presentes. Para
M1, que, assim como as demais, não domina a linguagem escrita, a menção foi
entendida como um título de parteira. Contribuiu para esse entendimento o ritual solene
de entrega da menção. M1 plastificou seu impresso e com ele em mãos argumentou:
“Pensamo que agora era emprego de parteira, agora virô parteira” (M1)
71
pessoas adoeçam em decorrência desse contato. Ainda assim a luva não foi
preservada somente para essa finalidade, o estoque de luvas (100 unidades por kit)
havia terminado para sete mulheres, que a utilizaram também no manuseio de
pimentas, no recolhimento do lixo e para a diversão das crianças. Além disso, M3 e M6
admitiram que preferem não utilizá-la no parto mesmo sabendo que ficarão fracas e
amareladas pelo contato com o kaprô, argumentam insegurança para segurar o kraré e
temem acidentes.
Falas que demonstrassem resistência ao uso dos objetos não foram rotineiras,
mas apareceram. O exemplo mais claro foi o desabafo de M6 na última conversa:
“Minha nora vai ganhar kraré na aldeia e eu vou pegar meu neto. Não vou usar o
material do kupẽ (não índio, o branco) não! Não é do kupẽ não! Vou usar as
coisas daqui mesmo...pra soltar a companheira (placenta)... eu sei muita coisa
pra fazer parto...remédios do mato...” (M6)
“Meu filho pegou a bolsa emprestada pra ir na cidade e quando voltou estava
muito suja....aí eu deixei meu neto cortar a alça pra fazer a baladeira (estilingue)”.
(M7)
cumpria sua função, mas não vinculada ao pré-natal ou à avaliação do bem estar fetal,
e sim num movimento de afeto.
Para M2 o kit não se mostrou importante. Sua filha estava prestes a ganhar kraré
e havia deixado a roça onde morava para aguardar o nascimento do neto. Não trouxe a
bolsa ou qualquer material do kit com ela, apenas pediu a G. que no dia seguinte lhe
trouxesse algumas luvas. Quando questionada sobre o kit, disse:
“Um dia a casa que ficava aqui nessa aldeia caiu e o material estava lá...sobrou
pouca coisa e o que sobrou está na roça, onde eu moro agora” (M2)
“O kraré nasceu na estrada, dentro do carro “da saúde’, eu que peguei o kraré,
mas ele nasceu roxinho...eu chupei com a boca mesmo porque não tinha levado
aquele negócio...aquele balãozinho (ambu), sabe?...ele viveu, mas morreu no dia
seguinte...foi muito triste” (M7).
74
o Kit Parteira foi uma surpresa para a Secretaria, pois não foram pedidos os
aparatos obstetrícios da medicina branca, mas sim chaleiras, espumas e outros
objetos que, sob um olhar etnocêntrico, como diria Pierre Clastres, são
consideravelmente inusitados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
4. Martins APV. Visões do feminino:a medicina da mulher nos séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2004.
7. Silva TMA, Ferreira LO. A higienização das parteiras curiosas: o Serviço Especial
de Saúde Pública e a assistência materno-infantil (1940–1960). HistCiencSaude-
Manguinhos 2011;18:95–112.
8. Ferreira LO. Entre discursos oficiais e vozes indígenas sobre gestação e parto no
alto juruá: A emergência da medicina tradicional indígena no contexto de
78
10. Gusman CR, Viana APAL, Barbosa MAB, Pedrosa MV, Villela WV. Inclusão de
parteiras tradicionais no Sistema Único de Saúde no Brasil: reflexão sobre
desafios. Rev Panam Salud Publica 2015; 37: 365-370.
12. Sésia PM. Women come here on their own when they need to: Prenatal Care,
Authoritative Knowledge, and Maternal Health in Oaxaca. Medical Anthropology
Quarterly 1996; 10:121-140.
14. Gusman CR, Rodrigues DA, Villela WV. Paradoxos do Programa de Parteiras
Tradicionais no contexto das mulheres Krahô. Ciên. saúde coletiva. No prelo
2017.
16. Laraia R. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1993.
22. Parteiras Indígenas são certificadas e recebem kits em último dia de encontro no
Jordão. Notícias do Acre [periódico da internet] Disponível em:
<http://www.agencia.ac.gov.br/parteiras-indigenas-sao-certificadas-e-recebem-
kits-em-ultimo-dia-de-encontro-no-jordao/> (acessado em 22/out/2016).
26. Thomaz JRSC. Cunhã, Maraneyma, EcobéaéEcoaba. In: Anais do XIV Simposio
Baiano de Pesquisadoras(es) sobre Mulheres e Relações de
Gênero, 2008; Salvador.Disponível
em:<http://www.neim.ufba.br/site/arquivos/file/anais/anaisiniciacaocientifica.pdf>
(acessado em 06/jul/2017).
6. CONCLUSÕES
7. REFERÊNCIAS
2. Martins APV. Visões do feminino:a medicina da mulher nos séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2004.
4. Ferreira LO. Entre discursos oficiais e vozes indígenas sobre gestação e parto no
alto juruá: A emergência da medicina tradicional indígena no contexto de uma
política pública [tese]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa
Catarina; 2010.
6. Sibley LM, Sipe TA, Barry D. Traditional birth attendant training for improving
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