A Concepção Mítica de Lugar Sagrado e A Territorialidade
A Concepção Mítica de Lugar Sagrado e A Territorialidade
A Concepção Mítica de Lugar Sagrado e A Territorialidade
Belo Horizonte - MG
2018
JOSÉ ROBERTO LIMAS DA SILVA
INTRODUÇÃO........................................................................................................................03
1-LUGAR - CATEGORIA GEOGRÁFICA ONDE O SAGRADO SE
MANIFESTA............................................................................................................................07
INTRODUÇÃO
1
SACK, 1983, p. 56 apud HOLZER, Werther.Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e
lugar, Território e meio Ambiente, p. 82. Revista Território, ano II, Nº 3, p.77-85, 1997. p. 82.
2
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 20.
3
OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis; Vozes, 2007. p. 20.
4
HOLZER, 1997, p. 84.
5
Referente à Mircea Eliade.
4
resulta da apropriação e controle por parte de um determinado agente social”6, mas que possui
uma estrutura impregnada de significados, símbolos e imagens.
6
ROSENDAHL, Zeny. Território e Territorialidades: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião.
Anais do X encontro de geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005. Universidade de São Paulo. p.
12933.
7
Autora de diversas obras que enfocam a geografia e a religião como: Hierópolis – O sagrado e o urbano;
Espaço e religião: uma abordagem geográfica; Religião, identidade e Território. Também é pesquisadora do
CNPQ, Coordenadora do NEPEC do departamento de Geografia da UERJ.
8
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco. Atua nas áreas de História, patrimônio Cultural e
o Sagrado.
9
Mircea Eliade foi um professor, historiador das religiões, mitólogo, filósofo e romancista romeno. Nascido em
1907 e falecido 1976, foi autor de obras importantes na área de Ciências da Religião, como o Sagrado e o
Profano: a essência das religiões.
10
Rudolf Otto foi um eminente teólogo protestante alemão e erudito em relações comparadas. Autor do livro “o
sagrado”, publicado em 1917.
11
CASTILHO, Maria Augusta. Cristianismo e territorialidade. Os espaços sagrados no cotidiano dos fiéis
católicos. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 39-58, 2010. p. 45.
5
Feitas estas considerações sobre a relevância desta pesquisa, bem como de seus
objetivos, podemos dizer que temos um problema de pesquisa estabelecido, que é descobrir
como o pensamento mítico acerca de lugar sagrado estrutura a territorialidade. A nossa
pesquisa se aterá a uma abordagem metodológica descritiva, privilegiando uma investigação
bibliográfica, sobretudo, por se tratar de uma teorização geral sobre o assunto.
Nestas considerações iniciais, não será prematuro dizer que acreditamos que esta
pesquisa nos levará a reconhecer que a forma de ocupação do espaço reflete a ideia que se tem
da sacralidade deste espaço. Também, pensamos que será possível indicar que a distribuição
espacial das atividades antrópicas é influenciada, diretamente, pela concepção que se tem de
espaço sagrado.
12
Um dos principais especialistas e teóricos da geografia cultural. Ele também fundou em 1992 a
revista Geografia e culturas. Autor de várias obras na área de geografia cultural.
13
Rogério Haesbaert da Costa é um geógrafo brasileiro contemporâneo. Professor da Universidade Federal
Fluminense desde 1986, é um dos nomes mais conhecidos da área da Geografia Humana no Brasil.
14
Yi- Fu Tuan é um geógrafo americano de origem chinesa. Professor nas universidades do Novo México,
Toronto, Minnesota e Wisconsin. Ele se especializou em geomorfologia, mas abandonou esse assunto para
dedicar-se à história da geografia e, mais tarde, ao estudo da experiência dos homens em seu ambiente. Destaca
as obras Topofilia (1974) e Espaço e lugar (1977).
15
SIANI, Sérgio Ricardo et al. Revista de administração da UNIMEP, São Paulo v. 14, n. 1, p. 193 – 219, 2016.
6
ocupação do espaço. Pensamos, portanto, ser uma temática original, no sentido de perguntar
e, até certo ponto, sugerir que o conceito de lugar sagrado está por detrás de toda
territorialidade.
Quando se pensa o espaço, não parece sábio divorciá-lo de quem o concebe como tal
e, portanto, neste sentido, o espaço não deve ser separado do homem. Desta forma, o espaço
físico é fruto de uma construção subjetiva, ou seja, “a realidade do rio, da montanha, da terra
não é uma realidade subsistente, mas validada, instituída; é o mito que valida e constrói a
realidade”19. É o homem quem significa (dá significado) o espaço. A construção de
espacialidades objetivas e subjetivas (físicas e simbólicas) pode ser determinada pelo
pensamento mítico, uma vez que ele é “um construto intelectual” 20, portanto, uma
racionalização daquilo que, ainda, é desconhecido, a partir de um conhecido. Por isto, o
espaço habitado e explorado (objetivo) é mítico no seu simbolismo e sacralidade imediata,
tendo em vista que esta formulação afetivo/simbólica é feita a partir do lugar onde vive este
homem.
16
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: A perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel,
1983. p. 96.
17
ROSENDAHL, Zeny. Construindo a geografia da religião no Brasil. Revista Espaço e Cultura, Rio de Janeiro,
n. 15, p. 01-13, 2003. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index. php/espacoecultura/index>.
Acesso em: 16 de jun. 2017.
18
TUAN, 1983, p. 99.
19
DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo:Perspectiva, 2011. p. 58.
20
TUAN, 1983, p. 112.
8
O entendimento que se tem neste sentido é que “o mundo que nos rodeia, o mundo no
qual são sentidas a presença e a ação do homem – as montanhas que ele escala, as regiões
povoadas e cultivadas, os rios navegáveis, as cidades, os santuários – tudo isto tem um
arquétipo extraterreno (...)”21. Desta forma, o processo de ocupação da terra (habitação,
exploração do solo etc) é mediado por uma elaboração mítica e simbólica, que é a responsável
pela configuração daquele espaço, sendo este espaço uma materialização de um modelo
mítico.
a) Territorialidade
21
ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. São Paulo: Mercúrio, 1992. p. 21.
22
HOWARD, Eliot foi um ornitólogo inglês.
23
BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDHAL, Z.
(Orgs.). Geografia cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p.83-131. p. 97.
24
ELLIOT, Howard, apud BONNEMAISON, 2002, p. 99.
9
um meio de criar e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter”25 determinado
espaço. Nesse primeiro momento, “a territorialidade é compreendida muito mais pela relação
social e cultural”26 do que pelos aspectos físicos/materiais, especialmente porque a
territorialidade pode ser “uma estratégia político-cultural”27 com vistas à legitimação da
ocupação de determinado espaço.
b) Território
Cabe-nos, apenas, diferenciar estes dois aspectos, uma vez que o social é político,
econômico, objetivo e linear; enquanto o cultural é simbólico, ideológico e subjetivo. É
necessário, portanto, que o território seja percebido nestas duas esferas, pois ele materializa
realidades sociais e culturais. Sendo assim o território não deve ser pensado ignorando sua
dimensão social (política/jurídica) uma vez que ele pode ser definido como “uma determinada
porção da superfície terrestre apropriada por um grupo humano (...). Dessa forma, o território
25
HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia, Rio de Janeiro,
Ano IX, n. 17, p. 19-45, 2007.
26
BONNEMAISON, 2002, p. 99
27
HAESBAERT, 2007, p. 25.
28
BONNEMAISON, 2002, p. 97.
10
é posto, como um espaço que alguém possui, é a posse que lhe dá identidade” 29. Igualmente,
sua dimensão cultural precisa ser admitida, uma vez que a territorialidade está estribada num
discurso recheado de mitos, símbolos e heróis; e é esta territorialidade que organiza o
território.
29
ROCHA, José Carlos. Diálogo entre as categorias da geografia: espaço, território e paisagem. Caminhos de
Geografia, Uberlândia, v. 9, n. 26, p. 128 – 142, 2008.
30
BONNEMAISON, 2002, p. 112.
31
A origem do povo hebreu é contada a partir do Livro de Gênesis, capítulo 12, na Bíblia Hebraica.
32
A Catalunha é composta por quatro províncias: Barcelona, Girona, Lérida e Tarragona. A capital e a maior
cidade é Barcelona, o segundo município mais povoado de Espanha e o núcleo da sétima área urbana mais
populosa da União Europeia.
33
BALFOUR, Sebastian & QUIROGA, Alejandro. España Reinventada: Nación e Identidad desde la Transición.
Barcelona, Península, 2007.
34
Recentemente, a comunidade autônoma da Catalunha, que hoje faz parte da Espanha, promoveu o maior
referendo já realizado na região para consultar a população catalã sobre sua independência ou permanência em
relação à Espanha. De acordo com o governo catalão, o resultado do pleito foi de 90% dos votos a favor da
separação e 7,8% dos votos contrários - o restante votou nulo ou branco
(https://www.vix.com/pt/mundo/550725/um-novo-pais-o-que-acontecera-se-catalunha-se-separar-mesmo-da-
espanha).
11
Desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica,
pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de térreo-
territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da
terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com
esta dominação, ficam alijados da terra, ou no „territorium‟ são impedidos de
entrar35.
Finalizando estas breves considerações sobre o território, precisa ficar claro que o
território nunca deve ser concebido isoladamente na sua dimensão cultural/simbólica, mas
sempre envolvendo sua dimensão social/material. Isto decorre do fato de que “ao contrário da
territorialidade, ele sempre envolve uma dimensão material-concreta”36.
c- Lugar
Podemos começar caracterizando o lugar pelo seu sentido etimológico, que significa
espaço ocupado, localidade, posição etc. Isto, de imediato, demonstra que o lugar é um espaço
fixo e limitado. Logo o lugar se apresenta como um espaço conhecido e, numa perspectiva
fenomenológica, um espaço relacional. Assim ele é o palco das relações sociais, onde
funciona como um “microcosmo, onde cada um de nós se relaciona com o mundo e o mundo
se relaciona conosco”37. Dentro desta compreensão, o lugar é fruto de uma elaboração afetiva,
de tal maneira que há uma correspondência entre o homem e o lugar carregada de sentimentos
(saudades, lembranças, afetos).
35
HAESBAERT, 2007, p. 20.
36
HAESBAERT, 2007, p. 27.
37
RELPH, Edward, 2012, apud RODRIGUES, Kelly. O conceito de lugar: a aproximação da geografia com o
indivíduo. IX Encontro Nacional da ANPEGE, 2015, p. 5039.
38
BONNEMAISON, 2002, p. 108.
12
“possuem características próprias” 39, ou seja, que tem existência real, seja no plano material,
seja no cultural.
Por isto, o lugar é um espaço uno, limitado e que faz parte da vivência do indivíduo. O
lugar é sempre uma experiência cognoscível sem sobressaltos ou mistérios, pois ele é uma
parte conhecida e reconhecida da existência do indivíduo. Todos sabemos que o homem
“somente pode estabelecer raízes profundas em uma pequena parte do mundo” 41, que
chamamos de lugar.
A presunção de que o lugar é uma categoria a priori se funda no fato dele ser uma
categoria a partir de onde pensamos as demais categorias. Não se pretende, aqui, adentrar em
discussões filosóficas sobre o alcance da expressão a priori. Apenas entendemos que esta
expressão parte de causas já definidas sem haver a necessidade de comprovações (a
posteriori), bastando para isto uma argumentação racional. Logo, se pretende demonstrar que
o lugar é uma categoria “a priori”, por causas já conhecidas e admitidas.
Porque podemos afirmar que o lugar é uma categoria a priori? Primeiramente, porque,
evidentemente, pensamos o mundo a partir da nossa subjetividade e nossas vivências. Neste
sentido, é a partir do lugar onde moramos/vivemos que elaboramos nossa cosmovisão (onde
estão inseridas, inclusive, as outras categorias geográficas). Sabemos que a “essência do lugar
é a de ser o centro das ações e das intenções, onde são experimentados os eventos mais
39
ROCHA, 2008, p. 135.
40
TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio de Janeiro: Difel,
1980, p. 117.
41
TUAN, 1980, p. 115.
13
significativos de nossa existência” 42, desta forma é a partir do lugar que sentimos a vida e
pensamos o mundo.
Entendemos que não podemos pensar as categorias mais abrangentes como território,
paisagem, região e o próprio espaço se não partirmos de um ponto fixo, de um local. Não se
pode compreender o todo se não partirmos da parte onde está inserido o sujeito observador.
Desta forma, o lugar “é uma entidade única, um conjunto especial que tem história e
significado”45 e é a partir desta significação que o lugar possibilita afirmarmos que o lugar é
um pequeno mundo, onde pensamos o grande mundo.
42
HOLZER, Werther. O lugar na geografia humanista. Revista Território, Rio de Janeiro, ano IV, p. 67 – 78,
1999.
43
HOLZER, 1999, p. 67.
44
HOLZER, 1999, p. 70.
45
HOLZER, 1999, p. 70.
46
RELPH, Edward. Place and placelessness. London: Pion, 1976.
47
TUAN, 1975, apud HOLZER, 1999, p. 71.
14
(cultural e espacial). Não obstante, existem outras abordagens que poderão caracterizar o
lugar somente nos seus aspectos simbólicos, no entanto, não é a intenção desta pesquisa
seguir este caminho.
Por fim, podemos dizer que a compreensão do espaço só é razoável a partir do vivido,
do experimentado. A ideia de que podemos compreender o mundo e as coisas, abstraindo os
objetos do espaço, ignorando seu lócus, suas relações e suas essências individuais, tem
demonstrado ser um grande equívoco, desde o enfrentamento do positivismo pela
fenomenologia husserliana, no início do século XX. Além do mais, quando falamos de
lugares, “estamos falando da significação do espaço para cada indivíduo”, pois não podemos
explicar o espaço, a vida, os objetos e as relações senão a partir do indivíduo. Neste sentido, o
indivíduo só pode viver no lugar, ademais a ideia de uma topofilia (topos e filos na língua
grega, significam respectivamente, lugar e amor/afeição) só é possível a partir do lugar, uma
vez que ela (a topofilia) exige um “tamanho compacto, reduzido às necessidades biológicas
do homem e as capacidades limitadas dos sentidos”48, uma vez que você não pode
amar/gostar/apreciar aquilo que sua sensoriedade não alcança.
48
TUAN, Yi-fu, 1980, p. 117.
49
Teofania significa manifestação de Deus (do substantivo theós e do verbo faneroo).
15
modo de ser a outro”50. Portanto, a manifestação do sagrado é local, porque significa uma
“rotura operada no espaço”51, criando um lugar sagrado.
O lugar, como já foi comentado, é uma elaboração afetiva que acontece numa
espacialidade estruturada e resumida. É dentro desta espacialidade enxuta que “os mitos
religiosos e políticos mudam a natureza de parcelas do espaço: existem fontes, florestas,
árvores e serras que viram sagradas, enquanto os seus arredores permanecem profanos”52.
Quando a hierofania irrompe em dado lugar, este lugar passa a ser dotado de um caráter
mágico, transcendente. A manifestação do sagrado no lugar não o descaracteriza
espacialmente, mas reveste-o de um simbolismo, de uma transcendência, ou seja, “a pedra
sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente
porque são hierofanias, porque revelam (...) o sagrado, o ganz andere” 53.
50
ELIADE, 2010, p. 30.
51
ELIADE, Mircea, 2013, p. 26.
52
CLAVAL, Paul. A volta do cultural na geografia. Mercator, ano 01, número 001, p. 19 – 27, 2002.
53
ELIADE, Mircea, 2010, p. 18.
54
“Ganzandere” é uma expressão inspirada pelas ideias do teólogo protestante Rudolf Otto (1869-1937) e que
aparece na introdução do clássico “O Sagrado e o profano: a essência das religiões” de autoria de Mircea Eliade
(professor Paulo Mazem).
55
CASTILHO, 2010, p. 45.
16
56
CASTILHO, 2010, p. 45.
57
BORDIEU, Pierre, 1989, apud CASTILHO, 2010, p. 45.
58
ELIADE, Mircea, 2010, p. 166.
59
CLAVAL, Paul. Epistemologia da Geografia. 2 ed. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2014, p. 234.
17
Não somente isto, “para entender os objetivos da ação humana, tem-se de supor ser
possível a comunicação com outros mundos. Os geógrafos têm de estudar o papel desses
outros mundos na diferenciação do sagrado e do profano, e na construção das categorias do
bem e do mal” 61. A negligência em analisar as motivações irracionais/simbólicas
(íntimas/subjetivas) do indivíduo empobrece a compreensão da ação do homem na construção
de seus espaços, pois
Esta pesquisa, tendo em vista, sua abordagem cultural, reafirma a ideia de que o homo
religiosus está presente de forma latente ou efetiva na vida do homem moderno, não obstante,
a secularização e o desencantamento do mundo, preconizado por Weber. Por isto, este homem
religioso (ainda que latente na sua psiquê), acredita que “existe uma realidade absoluta, o
sagrado, que transcende este mundo (...)”63 e isto, independentemente do período histórico.
Esta transcendência, nem sempre, está claramente expressa na sociedade, mas se manifesta na
“procura de sentidos que compartilham os homens, e o esforço que sempre fizeram para se
elevar, pela consciência, fora do quotidiano, do contingente, a fim de encontrar um
significado para a sua experiência”64. Desta forma, resta-nos, apenas, compreender como esta
territorialidade é tecida em face do lugar sagrado
60
CLAVAL, 2014, 234.
61
CLAVAL, 2002, p. 26.
62
CLAVAL, 2014, 233.
63
ELIADE, 2010, p. 164.
64
CLAVAL, 2014, p. 233.
65
Neste capítulo quando falamos de espaço sagrado estamos falando de lugar sagrado e vice-versa. Eles são
usados intercambiavelmente tendo em vista que o espaço sagrado se refere sempre há um espaço específico,
reduzido e separado do todo (que é exatamente, o lugar). Ademais, busca se, minimamente, certa elegância
literária evitando o repetismo do termo lugar.
18
O que a compreensão mítica do espaço sagrado demonstra é que a vida das sociedades
arcaicas estava organizada em torno dos lugares sagrados e, portanto, pode-se considerar a
territorialidade uma decorrência desta leitura mítica. Esta organização espacial denuncia duas
realidades espaciais: a sagrada e a profana. O espaço sagrado é o organizado e conhecido que
serve de fronteira ao resto do mundo. O espaço sagrado é o centro, a realidade, enquanto o
profano é a periferia, o desconhecido. Os dois espaços demonstram a dicotomia que os
envolve, a descontinuidade que os marca. O próprio termo sagrado/santo (kadosh na língua
hebraica e hagios na língua grega) significa separado, distinto dos demais. Diante desta
dicotomia, fica demonstrada “duas modalidades de existência assumidas pelo homem ao
longo de sua história”71.
66
ELIADE, 1992, p. 23.
67
A experiência da construção de Brasília na região central (centro-oeste) do Brasil é bastante significativa, neste
sentido.
68
Por sociedades arcaicas, aqui consideramos o mundo antigo,desde os Sumérios na Mesopotâmia (4.000 A.C),
até o fim da idade média, no século XV.
69
ELIADE, 1992, p. 23.
70
ELIADE, 2010, p. 26.
71
ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996,
p. 28.
19
A ideia de centro está associada à distinção que se deve fazer ao restante do espaço,
sendo que as hierofanias (manifestações do sagrado) “anularam a homogeneidade do espaço e
revelaram um ponto fixo”76. E é esse ponto fixo que nos permite “entender o comportamento
religioso em relação ao espaço em que se vive”77. Neste sentido, admitimos que o homo
religiosus é uma herança consciente ou inconsciente que o homem moderno não é capaz de
eliminar, sobretudo porque é uma inerência histórica presente na cultura. Sendo este homem,
moderno ou pós-moderno, agente e paciente desta teia simbólica presente na cultura, ele
jamais se encontrará em estado de puro secularismo ou dessacralização. “Em outras palavras,
o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem
religioso, mas esvaziado dos significados religiosos”78.
não podemos perder de vista que, entre, os antigos, o que constituía o vinculo de
toda sociedade era um culto. Assim como um altar doméstico mantinha reunidos ao
redor os membros da família, assim também a cidade era a reunião dos que tinham
os mesmos deuses protetores e executavam o ato religioso no mesmo altar 79.
72
ROSENDAHL, 1996, p. 37.
73
O zigurate era uma forma de templo babilônico, construído na forma de degraus, podendo atingir grandes
alturas.
74
ROSENDAHL, 1996, p. 39.
75
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 72.
76
ELIADE, 2010, p. 31.
77
ELIADE, 2010, p. 39.
78
ELIADE, 2010, p. 166.
79
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 163.
20
Fica evidente que no pensamento de Coulanges (acima), a cidade era concebida como
“uma pequena igreja completa, com deuses, dogmas e culto” 80, sendo organizada a partir do
seu local de culto (santuário). Pode, até, parecer grosseira e distante esta concepção de
delimitação de espacialidades, mas convém notar que este pensamento mítico foi o substrato
para o pensamento racional, bem como, o pensamento pré-científico foi o chão para a futura
cientificidade. Portanto, “esta vida pré-científica seria o mundo da vida que seria o
fundamento para o mundo cientificamente verdadeiro e o compreende na sua concreção
universal”81.
O conceito mítico de espaço sagrado é inaugural e epistemologicamente fundacional
para a noção de territorialidade, pois, o lugar sagrado para as sociedades arcaicas
representavam o ponto central e fixo, a partir do qual se desenrola o processo de organização
da comunidade. Para a mentalidade mítica, o mundo se organiza a partir do lugar sagrado, e é
“por esta razão que o homem religioso sempre se esforça por estabelecer-se no centro do
mundo”82. O conceito de territorialidade se estabelece a partir desta concepção, sendo assim, a
territorialidade significa o alcance da influência religiosa do lugar sagrado sobre a ocupação e
a forma de exploração do meio. Um exemplo interessante é a ocupação da palestina pelos
hebreus em 1400. A.C., com a posterior construção do Templo Sagrado em Jerusalém (800 A.
C), sendo que, a partir de então, todo hebreu precisava comparecer três vezes por ano no
templo, a fim de participar das festas religiosas (Páscoa, Tabernáculos e Pentecostes) 83. Neste
período eles eram orientados acerca da Torah (Lei Mosaica) 84, que era um código de leis que
norteava a vida religiosa e civil da nação. Neste sentido, o lugar sagrado determinava a vida
social e econômica da nação, especialmente nas questões voltadas para a posse e uso da terra.
Outro exemplo interessante é a forma como as cidades antigas eram fundadas, sendo
que, elas sempre se formavam a partir de um evento mítico/simbólico/religioso. Desta forma,
“a primeira preocupação do fundador é escolher o lugar da nova urbe. Mas essa escolha, que é
grave e da qual se crê depender o destino do povo, é sempre entregue à decisão dos deuses” 85.
Portanto, a leitura mítica/religiosa da vida determinava as relações políticas, sociais e
econômicas na urbe (cidade), deixando claro que o fundamento de toda territorialidade estava
80
COULANGES, 2009,p. 171.
81
HUSSERL, Edmund. A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental: uma introdução à
filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 107.
82
ELIADE, 2010, p. 26.
83
“Três vezes no ano, todo varão entre ti aparecerá perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher, na
Festa dos Pães Asmos, e na Festa das Semanas, e na Festa dos Tabernáculos; porém não aparecerá de mãos
vazias perante o SENHOR” - (Deuterônomio 16. 16, Bíblia Sagrada).
84
Lei de Moisés, que norteia a vida religiosa e civil dos hebreus. O Judaísmo é baseado neste tratado.
85
COULANGES, 2009, p. 152.
21
86
COULANGES, 2009, p. 175.
87
COULANGES, 2009, p. 167.
88
ROSENDAHL, 1996, p. 18.
22
89
BONNEMAISON, 2002, p. 97.
90
ELIADE, 1992, p. 22.
91
ELIADE, 1992, p. 25.
92
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 115.
93
DURKHEIM,Émile. As formas elementares da vida religiosa. 2. Ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 504, 505.
23
sendo que “os grupos, as etnias e os povos existem por sua referência a um território (...)”94. É
o território que dá visibilidade à relação simbólica com o lugar sagrado, existindo, “portanto,
uma leitura da história a partir da relação vivida e quase carnal que os homens travam com
seu território”95.
Outro fator importante de ser mencionado, com relação à teia simbólica que envolve a
criação e delimitação de um território, é a questão dos laços identitários e relacionais porque
“o território é, primeiramente, uma determinada maneira de viver com os outros; em inúmeros
casos seus limites geográficos são os das relações cotidianas”96. Apesar da particularização da
ideia de território feita por Bonnemaison (acima), podemos estender esta compreensão para a
criação dos modernos Estados Ocidentais, quando nas suas Cartas Constitucionais vemos
como princípios basilares, uma moralidade oriunda do judaísmo/cristianismo, em face destes
povos serem de uma tradição religiosa cristã, refletindo assim, na constituição (jurídica e
cultural) de seus territórios a sua moralidade cotidiana. Portanto, observamos que a
mentalidade mítica/simbólica se apresenta como uma experiência recorrentena vida do ser
humano, sendo assim, tentaremos observar (no próximo capítulo) vestígios desta concepção
na construção de territorialidades na pós-modernidade.
94
BONNEMAISON, 2002, p. 112.
95
BONNEMAISON, 2002, p. 117.
96
BONNEMAISON, 2002, p. 126.
24
Neste sentido, precisamos concordar com Dardel, embora sua defesa apaixonada da
sacralidade da terra possa soar como uma ingenuidade 100 para a tecnológica e secularizada
geração pós-moderna. Não obstante, vamos as suas considerações:
97
SANTOS, Milton. Território e Dinheiro. In: Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF. Território,
Territórios. Niterói: PPGEO-UFF/AGB-Niterói, RJ, p.17 – 38, 2002.
98
CLAVAL, Paul. O território na transição da pós-modernidade. Revista GEOgraphia, Rio de Janeiro, Ano 1,
Nº 2, p. 7 – 26,1999.
99
MORIN, EDGAR. O Método 1: a natureza da natureza. 2 ed. Lisboa/Portugal: Publicações Europa-América,
1977. p. 86.
100
É possível que a geração de nossos bisnetos considere uma ingenuidade, também,o fato de vivermos
assustados com as muitas doenças, que assediam nossa geração, através dos microorganismos que estão
espalhados na terra, no ar e, até, nos nossos corpos. Então, apesar de alguém, um dia, nos considerar ingênuos,
isto não muda o fato de que estes microscópicos seres são forças reais que atacam o homem (no dizer de Dardel)
pós-moderno. Por isto, penso que vale a pena levar a sério o mito/o desconhecido/o mistério.
25
Nas sociedades ditas primitivas e na maior parte das sociedades antigas e medievais,
a ligação do homem com a terra recebeu na atmosfera espaço-temporal do mundo
mágico-mítico, um sentido essencialmente qualitativo. A geografia é mais do que
uma base ou um elemento. Ela é um poder. Da terra vêm as forças que atacam ou
protegem o homem, que determinam sua existência social e seu próprio
comportamento, que se misturam com sua vida orgânica e psíquica, a tal ponto que é
impossível separar o mundo exterior dos fatos propriamente humanos.101
Levando em conta essa comunhão visceral entre homem e natureza, que não se limita
a aspectos orgânicos, mas que contempla aspectos subjetivos também, vamos nos ater aos
paradigmas simbólicos de nossa contemporaneidade e sua construção de territorialidades.
Inicialmente, vamos analisar a categoria geográfica lugar, que é exatamente onde se estrutura
a teia simbólica da territorialidade.
101
DARDEL, 2011, p. 48.
102
SAUER, 1983, Apud HOLZER, 1999, p. 68.
103
DARDEL, 2011, p. 14.
104
HOLZER, 1999, p. 70.
26
logo ele é o espaço/mundo das vivências 105. Se não podemos reduzir o local às vivências e
experiências, havemos de convir que as experiências e vivências no mundo pós-moderno se
manifestam em espaços variados, fragmentados e distanciados.
Considerando, ainda, que o lugar não é um espaço amorfo e homogêneo, uma vez que
ele materializa um espaço significativo, separado (ideia de santo/sagrado) e emblemático, este
mesmo lugar, na pós-modernidade, é concebido qualitativamente e não pelas coordenadas
geográficas. Assim, todo lugar é sagrado/mítico/religioso quando ele é o substrato das
vivências significativas (trabalho, lar, lazer, culto etc). A espacialidade física continua sendo
essencial, entretanto, o lugar se torna significativo pela experiência vivida, porque são “as
pessoas que lhe dão significado”106 e não a sacralidade/simbolismo inerente ao lugar,
diferentemente do conceito de hierofania (para os povos da antiguidade), onde “uma irrupção
do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o
torna qualitativamente diferente”107.
105
Filósofos, como Husserl, usam a expressão mundo das vivências, com o sentido de lugar das experiências, do
vivido, do experimentado.
106
TUAN, 1979, apud HOLZER, 1999, p. 70.
107
ELIADE, 2010, p. 30.
108
HOLZER, 1999, p. 70.
27
Esta tentativa de configuração sistêmica do lugar se explica pelo fatodeste sujeito estar
descentrado, desconexo da realidade histórica passada, manifestando um comportamento
“disperso e alienado de qualquer totalidade possível”110. Neste sentido, as experiências
dispersas e fragmentadas são alocadas e organizadas em micro-lugares111, numa tentativa de
estruturação de seu mundo particular, construindo uma teia sistêmica de sentidos. O indivíduo
passa a portar em si mesmo, de forma sistêmica, a memória de diversos lugares, sendo que o
comportamento deste indivíduo na sociedade demonstra a fluidez destes espaços/lugares
míticos/simbólicos/sagrados.
109
PASCAL, apud MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 9.
110
OLIVEIRA, Cleide Maria de. Vestígios do sagrado na pós-modernidade. NUMEN, Revista de estudos e
pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. II, n. 1 e 2, p. O9-31, 2005. p. 18.
111
Adotamos a palavra micro-lugar e não microlugar porque não há consenso ortográfico. Usamos o termo
para definir espacialidades físicas flutuantes, ou seja, não estáticas. Este micro-lugar pode ser o lar, a igreja, o
trabalho etc.
112
GAUTHIER, 2004, Apud OLIVEIRA, 2005, p. 20.
113
ELIADE, Mircea. Mito e a realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 164, 165.
114
ELIADE, 2010, p. 170.
28
histórico. Neste sentido, o lugar funciona como o laboratório, onde são fabricados estes
mitos, símbolos e heróis.
115
MARTIN, 1994, Apud CLAVAL, Paul. O território na transição da pós-modernidade. Revista GEOgraphia,
Rio de Janeiro, Ano 1, Nº 2, p. 7 – 26,1999.
116
O lugar é a categoria privilegiada em nossa pesquisa, onde os símbolos, os mitos e os heróis são forjados.
29
eixo monumental leste/oeste é o corpo. Brasília é um pássaro que pousou na terra, uma nova
Jerusalém descendo do céu de Deus”117. Isto sem mencionar que o traçado da cidade é o de
uma cruz, símbolo caro para os cristãos.
Não obstante, pensamos que possa surgir algum questionamento sobre a atualidade do
pensamento mítico/simbólico/religioso, argumentando que as territorialidades das sociedades
tradicionais (antigas) não encontram eco na modernidade e, mormente, na pós-modernidade,
em face do declínio ou pelo desmoronamento das ideologias e filosofias históricas, “sobre as
quais repousavam as sociedades ocidentais”118. A isto poderia ser acrescentado o fato de que
na pós-modernidade, a fragmentação histórica, a sociedade líquida, a rejeição do absoluto e da
tradição são marcas evidentes. Neste sentido, haveria na pós-modernidade, “pouco esforço
aberto para sustentar a continuidade de valores, crenças ou mesmo de descrenças”119.
Diante deste quadro de incertezas, pensava-se, inclusive, que as culturas locais, as
tradições, os mitos seriam diluídos na cultura globalizante de viés econômico-político. E neste
sentido, muitos julgaram que o desaparecimento da maior parte dos traços que promoviam a
infinita variedade do mundo tradicional anunciasse a erosão das diferenças culturais, mas “o
que se observa hoje são sociedades onde os problemas de identidade são mais envolventes do
que nunca”120.
Atualmente, percebe-se, claramente, discursos e movimentos identitários em várias
partes do globo, que buscam fugir do “contágio dos modos de pensamento que se condena, do
jeito arrebatador de comportamentos e atitudes que reprovamos moralmente, da poluição á
qual nos expomos ao permanecermos em ambientes impuros”121. Tais discursos revelam a
construção de elementos míticos/simbólicos/religiosos expressos em palavras como
comportamentos, moralmente, impuros, que são valores absolutos, recheados de religiosidade.
O que dizer dos nacionalismos e regionalismos evidenciados na criação de partidos políticos
de viés nacionalista e intolerantes á presença de elementos estrangeiros (xenófobos)? Tudo
isto indica uma reação à cultura globalizante e massificante. Observa-se que
117
TUAN, 1980, p. 198.
118
CLAVAL, 1999, p. 20.
119
OLIVEIRA, 2005, p. 18.
120
CLAVAL, 1999, apud DEUS, José Antônio. Linhas interpretativas e debates atuais no âmbito da Geografia
Cultural, universal e brasileira. Caderno de Geografia, Belo Horizonte, v. 15, n. 25, p. 45-59, 2005. p. 46.
121
CLAVAL, Paul, 1999, p. 22.
30
sua região, sua memória, sua nação, sua cultura étnica, seu gênero ou, em algumas
ocasiões, sua opção identitária, constitutiva de um sistema de valores alternativos 122.
122
CASTEL, 1998, apud DEUS, 2005, p. 53.
123
SACK, 1983, p. 56 apud HOLZER, Werther, 1997, p. 82.
124
CLAVAL, 1999, p. 18.
125
DIÓGENES, Glória Maria dos Santos. Cartografias da cultura e da violência: Gangues, galeras e o movimento
hip hop. Uma tese de doutorado apresentado ao departamento de pós-graduação da UFCE, Fortaleza, 1998. p.
207.
126
CLAVAL, 1999, p. 18.
127
A dissertação “Cartografias da cultura e da violência: Gangues, galeras e o movimento hip hop” é uma
pesquisa interessantíssima para se entender a lógica das territorialidades das gangues urbanas. O eixo da
pesquisa buscou identificar o imaginário das gangues acerca da violência e suas construções culturais e dentre
estas, a ideia de territorialidade.
128
DIÓGENES, 1998, p. 200.
129
IMPLACÁVEL, Dom. A intolerância Religiosa nas favelas do Rio de Janeiro. Disponível em:
<https://jornalggn.com.br/fora-pauta/a-intolerancia-religiosa-nas-favelas-do-rio-de-janeiro>. Acesso em: 18 de
jul. 2016.
31
colares afro e roupas brancas”130. Todos estes fatos demonstram a presença do simbólico no
estabelecimento de territorialidades e neste sentido, para haver a dominação de determinado
território precisa haver a construção/desconstrução/reconstrução do simbólico/sagrado.
A criação dos estados nações (espaços delimitados política e juridicamente), na
modernidade, demonstra, também, como a territorialização é fruto de uma elaboração
mítica/simbólica, que incorpora os sentimentos de “pertencimento e de territorialidade”131,
demonstrada através de símbolos nacionais como a bandeira, o hino, a língua, a história
comum. Não obstante, a riqueza simbólica dos territórios-nações, a globalização atual gera
um clima de desassossego em face da possibilidade de uma desterritorialização, através da
absorção de culturas locais e regionais, substituindo-as por uma cultura-mundo.
Entretanto, a ideia de uma desterritorialização(em face da globalização
política/econômica/cultural) parece ingênua, pois “o mundo não está nem des-espacializado,
nem desterritorializado. Primeiro, porque a aparente desmaterialização ou perda de referência
espacial nas relações sociais indica, na verdade, quase sempre, uma condensação/densificação
geográfica das relações (...)”132. Portanto, esta fluidez dos territórios demonstra que a sua
delimitação é fruto de uma territorialidade que privilegia os aspectos qualitativos dos lugares
míticos/simbólicos. E neste sentido, não está havendo desterritorialização na pós-modernidade
e sim multi-territorialização, mas igualmente construída a partir de territorialidades fundadas
nos mitos/símbolos pós-modernos, construídos a partir dos micro-lugares (escola, igreja,
família, trabalho etc).
130
IMPLACÁVEL, 2016.
131
CLAVAL, 1999, p. 19.
132
HAESBAERT, Rogério. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 19,
n. 1, p. 11 – 24, 2003. p. 20.
32
universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência
humana”133.
A pergunta que se faz, na pós-modernidade é: se é possível produzir uma cultura que
represente toda a humanidade, ou seja, será que os mitos, símbolos e heróis são universais?
Entendemos que o pensamento mítico/simbólico é inerente ao ser humano e está presente em
todos os grupos sociais. Mas, “estaríamos vivenciando um processo radicalmente novo de
territorialização, pelo menos no que diz respeito à escala planetária, com a formação de uma
nova identidade territorial (...)”?134 Pensamos que não, especialmente por acreditar que a
identidade territorial é construída a partir da territorialidade, e está só pode ser produzida no
lugar.
Sendo assim, as leis da globalização da economia não são da mesma natureza da
globalização da cultura, exatamente pelo elemento simbólico, que é tecido ao nível do lugar e
não a partir do território, ou seja, a cultura não começa no território, ela, apenas, se torna
visível no território. Neste sentido, julgo por oportuno diferenciar novamente as duas
categorias. “O termo território, de maneira geral, é utilizado para indicar domínio ou gestão de
uma determinada área. Nesse caso, não pode ser confundido com lugar, que pressupõe
afetividade, pertencimento, topofilia (...)”135. Portanto, quando pensamos em globalização
como a “reunião de processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras
nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações” 136, numa perspectiva de
homogeneização econômica e cultural, precisamos esclarecer que tal homogeneização, com
vistas a ideia de um território-mundo, tem enfrentado grandes resistências, senão vejamos:
a) O acesso às demais culturas pode reforçar valores e crenças locais, quando confrontados
com outros modelos culturais, considerados eticamente inadequados para aquele grupo,
fortalecendo assim os laços identitários locais. No Reino Unido, por exemplo, em face da
presença significativa de Africanos e Asiáticos, despertou um racismo cultural, sendo que esta
“atitude defensiva produziu uma „inglesidade‟ (englishness) reformada, um „inglesismo‟
mesquinho e agressivo e um recuo étnico, numa tentativa de escorar a nação e reconstruir uma
identidade que seja una, unificada, e que filtre as ameaças da experiência social”; 137
133
CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica: Ensaio sobre o homem. São Paulo: Mestre Jou, 1977. p. 50.
134
HAESBAERT, Rogério; LIMONAD, Ester. Território em tempos de globalização. etc..., espaço, tempo e
crítica. N° 2(4), VOL. 1, P. 39 – 52, 2007. p. 50.
135
BERTOL, Lurdes Rocha; ALMEIDA, Maria Geralda. Cultura, mundo-vivido e território. IN; Simpósio
Nacional sobre Geografia, Percepção e Cognição do Meio Ambiente, Londrina: Universidade Estadual de
Londrina, 2005, p. 01 – 13. p. 10.
136
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 67.
137
HALL, 2006, p. 85.
33
138
HAESBAERT, Rogério; LIMONAD, Ester, 2007, p. 48.
34
CONCLUSÃO
Levando em consideração tudo que foi escrito até aqui e caminhando para o
encerramento desta pesquisa, precisamos nos perguntar se o problema levantado pela pesquisa
foi solucionado, ou seja, se a concepção mítica de lugar sagrado vai estabelecer
territorialidades em qualquer circunstância histórica e cultural. Também não deve ser
esquecido que esta pesquisa se propôs a demonstrar como os mecanismos simbólicos,
presentes no lugar, constroem as territorialidades. E nesse sentido, precisa ser respondido se
tal objetivo foi alcançado.
O capítulo primeiro serviu, também, para definir o lugar como única possibilidade de
manifestação do sagrado e de onde se estrutura os mecanismos simbólicos que forjam a
territorialidade. A manifestação do sagrado/simbólico/mágico no lugar cria uma esfera de
poder e domínio de determinado grupo social sobre dada espacialidade, isto é territorialidade.
E é a partir desta territorialidade que se configura (legitima) o território. Diante disto, o
capítulo primeiro responde em parte o problema de pesquisa, mostrando que é na categoria
geográfica, lugar, que se manifesta o simbólico/sagrado/mágico, construindo territorialidades.
Entretanto, esta elaboração simbólica está centrada na presença de mitos, heróis e deuses na
cultura dos povos da antiguidade e, portanto, precisa ser demonstrado se esta elaboração
simbólica/mítica ainda perdura em tempos modernos e pós-modernos, marcado pelo avanço
da racionalização científica, bem como, a dessacralização e desencantamento do mundo. O
capítulo primeiro, neste sentido, não responde a essa última questão139.
139
O capítulo três cuida de resolver esta questão.
35
140
ROSENDAHL, 1996, p. 18.
36
Por fim, sem querermos ser pretensiosos, acreditamos que a proposta da nossa
pesquisa acerca do processo simbólico/sagrado na construção da territorialidade, goza de
razoável credibilidade. Pensamos que esta abordagem é original e apropriada, uma vez que a
territorialidade não é uma decorrência do território, mas a causa do território. Assim, são os
processos simbólicos que são os responsáveis por toda territorialidade, que desembocará na
estruturação do território. Se isto é verdade como estamos pontuando, acreditamos que a
distribuição espacial de uma sociedade precisa ser interpretada, primariamente, a partir dos
aspectos culturais e, somente num segundo momento, pelos determinismos geográficos,
políticos e econômicos. Novas pesquisas, mais aprofundadas, merecem ser feitas neste sentido
e, quem sabe, encontraremos respostas interessantes para as questões ligadas à violência
urbana, à intolerância religiosa e à segregação econômica de nosso País.
141
CASSIRER, 1977. p. 50.
37
REFERÊNCIAS
BERTOL, Lurdes Rocha; ALMEIDA, Maria Geralda. Cultura, mundo-vivido e território. IN;
Simpósio Nacional sobre Geografia, Percepção e Cognição do Meio Ambiente, Londrina:
Universidade Estadual de Londrina, 2005, p. 01 – 13.
BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDHAL,
Z. (Orgs.). Geografia cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p.83-131.
DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva,
2011.
DEUS, José Antônio. Linhas interpretativas e debates atuais no âmbito da Geografia Cultural,
universal e brasileira. Caderno de Geografia, Belo Horizonte, v. 15, n. 25, p. 45-59, 2005.
DIÓGENES, Glória Maria dos Santos. Cartografias da cultura e da violência: Gangues,
galeras e o movimento hip hop. Uma tese de doutorado apresentado ao departamento de pós-
graduação da UFCE, Fortaleza, 1998.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 2. Ed. São Paulo: Paulus,
2008.
ELIADE, Mircea. Mito e a realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
______________. O mito do eterno retorno. São Paulo: Mercúrio, 1992.