A Concepção Mítica de Lugar Sagrado e A Territorialidade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

JOSÉ ROBERTO LIMAS DA SILVA

A CONCEPÇÃO MÍTICA DE LUGAR SAGRADO E A TERRITORIALIDADE.

Belo Horizonte - MG
2018
JOSÉ ROBERTO LIMAS DA SILVA

A CONCEPÇÃO MÍTICA DE LUGAR SAGRADO E A TERRITORIALIDADE.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de Geografia do Instituto de Geociências
da Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel
em Geografia.

Orientador: Professora Dra. Maria Luiza Grossi Araújo

Belo Horizonte – MG.


2018
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................03
1-LUGAR - CATEGORIA GEOGRÁFICA ONDE O SAGRADO SE
MANIFESTA............................................................................................................................07

1. 1 Definindo as categorias de territorialidade, território e lugar............................................08


1. 2 O lugar como categoria a priori na geografia....................................................................12
1. 3O lugar, espaço onde o sagrado se manifesta......................................................................14
2- O LUGAR SAGRADO FUNDA O CONCEITO DE TERRITORIALIDADE..................16
2. 1 O simbolismo do lugar central: agente irradiador de territorialidade...............................17
2. 2 o lugar sagrado e a territorialidade urbana.........................................................................19
2. 3 O surgimento do território como fruto da territorialidade gerada no lugar sagrado..........21
3- OS SIMBÓLICOS DA PÓS-MODERNIDADE E A CONSTRUÇÃO DE NOVAS
TERRITORIALIDADES..........................................................................................................24

3. 1 O conceito de lugar, em face dos novos paradigmas simbólicos da pós-modernidade.....25


3. 2 Os paradigmas simbólicos pós-modernos e os conceitos de territorialidade e território...28
3. 3 Os paradigmas simbólicos pós-modernos e a ideia de território-mundo...........................31
CONCLUSÃO..........................................................................................................................34
REFERÊNCIAS........................................................................................................................37
3

INTRODUÇÃO

A presente proposta de pesquisa busca, essencialmente, estabelecer relações entre a


concepção de lugar sagrado e territorialidade. Nesse sentido, procura descobrir como o
pensamento mítico/simbólico atua na construção das relações de poder com o espaço.
Considerando que a territorialidade aponta para a “tentativa de um indivíduo (x) ou grupo de
influenciar, afetar, controlar objetos, pessoas e relacionamentos (y) pela delimitação e pela
afirmação de seu controle sobre uma área geográfica"1, havemos de convir que,
invariavelmente, este controle decorre de uma esfera de poder, que pode ser político,
econômico e/ou religioso.

Nossa abordagem focalizará o impacto de uma destas instâncias de poder, que é a


esfera do sagrado (mítico/religioso) que se manifesta no espaço. O conceito de sagrado
adotado nesta pesquisa parte do ponto de vista de que o sagrado é um modo de existência
assumido “pelo homem ao longo da história”2. Neste sentido, o sagrado “não nasce da
experiência religiosa”3, ele apenas se manifesta, pois ele é um elemento constitutivo do
mundo simbólico do ser. Haveremos de adotar, em termos espaciais, a categoria lugar como
espaço de manifestação do sagrado, onde é gestada a territorialidade, que por sua vez,
configura o território, levando, também, em conta que os lugares são “constituintes essenciais
do território”4.

Na caracterização do território, será necessário demonstrar que a manifestação do


sagrado (hierofania, na expressão Eliadiana5), embora, aconteça na categoria lugar, esta
manifestação estabelece a territorialidade e configura este território, e neste sentido, a
caracterização do território não se limitará ao aspecto jurídico-político ou econômico, mas
enfatizará especialmente, seu aspecto cultural, tendo em vista que a abordagem
religiosa/sagrada está, melhor, contemplada na vertente cultural. Podemos, neste sentido,
pensarmos em território como um “dado segmento espacial, via de regra, delimitado, que

1
SACK, 1983, p. 56 apud HOLZER, Werther.Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e
lugar, Território e meio Ambiente, p. 82. Revista Território, ano II, Nº 3, p.77-85, 1997. p. 82.
2
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 20.
3
OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis; Vozes, 2007. p. 20.
4
HOLZER, 1997, p. 84.
5
Referente à Mircea Eliade.
4

resulta da apropriação e controle por parte de um determinado agente social”6, mas que possui
uma estrutura impregnada de significados, símbolos e imagens.

Na investigação das relações entre a ideia de lugar sagrado e o estabelecimento de


territorialidades, o foco desta pesquisa se deterá, primeiramente, na concepção mítica de lugar
sagrado por parte das sociedades arcaicas, em seguida se debruçará sobre o estabelecimento
das territorialidades decorrentes desta concepção. O tema espaço e religião tem sido objeto de
estudo de pesquisadores, tanto no campo disciplinar da Geografia, quanto das Ciências da
religião. Como exemplo do primeiro campo, temos eminentes pesquisadoras como Zeny
Rosendahl7 e Maria Augusta de Castilho8; no segundo campo, temos Mircea Eliade9 e Rudolf
Otto10, como pesquisadores, já consagrados de longa data.

A relação entre espaço e religião se evidencia na forma como o espaço é assumido,


uma vez que a ocupação dele reflete uma cosmovisão. Por isto, “a vida de uma coletividade
envolve crenças que se revelam nas condutas e se materializam nas formas espaciais do
cotidiano vivido”11. Portanto, a ocupação espacial pode revelar uma forma de interpretação
simbólica/mítica/religiosa daquele espaço.

A presente pesquisa tem como objetivo principal investigar como os mecanismos


simbólicos, presentes no lugar, atuam na construção das territorialidades. Daí, decorrem
outros objetivos como: i)entender a mentalidade mítica acerca da ordenação do lugar sagrado;
ii)compreender como este lugar sagrado estabelece as territorialidades; iii)identificar, na
modernidade, paradigmas simbólicos responsáveis pela criação de territórios.

6
ROSENDAHL, Zeny. Território e Territorialidades: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião.
Anais do X encontro de geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005. Universidade de São Paulo. p.
12933.
7
Autora de diversas obras que enfocam a geografia e a religião como: Hierópolis – O sagrado e o urbano;
Espaço e religião: uma abordagem geográfica; Religião, identidade e Território. Também é pesquisadora do
CNPQ, Coordenadora do NEPEC do departamento de Geografia da UERJ.
8
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco. Atua nas áreas de História, patrimônio Cultural e
o Sagrado.
9
Mircea Eliade foi um professor, historiador das religiões, mitólogo, filósofo e romancista romeno. Nascido em
1907 e falecido 1976, foi autor de obras importantes na área de Ciências da Religião, como o Sagrado e o
Profano: a essência das religiões.
10
Rudolf Otto foi um eminente teólogo protestante alemão e erudito em relações comparadas. Autor do livro “o
sagrado”, publicado em 1917.
11
CASTILHO, Maria Augusta. Cristianismo e territorialidade. Os espaços sagrados no cotidiano dos fiéis
católicos. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 39-58, 2010. p. 45.
5

Feitas estas considerações sobre a relevância desta pesquisa, bem como de seus
objetivos, podemos dizer que temos um problema de pesquisa estabelecido, que é descobrir
como o pensamento mítico acerca de lugar sagrado estrutura a territorialidade. A nossa
pesquisa se aterá a uma abordagem metodológica descritiva, privilegiando uma investigação
bibliográfica, sobretudo, por se tratar de uma teorização geral sobre o assunto.

Na consecução desta pesquisa serão privilegiados os autores e pesquisadores da


geografia na sua vertente cultural, tendo em vista os propósitos deste trabalho. Podemos
elencar como teóricos principais nesta pesquisa os seguintes autores: Zeny Rosendahl, Paul
Claval12, Rógerio Haesbaert13, Yi-Fu Tuan14 e Mircea Eliade. Com relação ao paradigma
metodológico, que norteará a pesquisa, este será o fenomenológico, e sua escolha se dá em
função de dois fatores. Primeiro, por ser tratar de uma área de estudos voltada para a
geografia cultural de base fenomenológica; segundo porque a abordagem do sagrado e do
religioso não seria satisfatoriamente explorada dentro dos modelos positivista/neo-positivista
ou dialético/marxista e sim, do fenomenológico, especialmente porque o estudo do sagrado
não suporta a abstração do objeto do mundo do sujeito. Neste sentido, a abordagem
fenomenológica é aquela que promove o encontro entre o objeto (o sagrado) e o sujeito (o
homem), oferecendo a possibilidade de se “compreender a experiência vivida das pessoas de
um modo que as outras metodologias não o fazem”15.

Nestas considerações iniciais, não será prematuro dizer que acreditamos que esta
pesquisa nos levará a reconhecer que a forma de ocupação do espaço reflete a ideia que se tem
da sacralidade deste espaço. Também, pensamos que será possível indicar que a distribuição
espacial das atividades antrópicas é influenciada, diretamente, pela concepção que se tem de
espaço sagrado.

Por fim, podemos dizer que a presente pesquisa se justifica e se reveste de


importância, em face da escassez de pesquisas e material bibliográfico sobre o tema proposto.
Ademais, espera-se que a pesquisa possibilite leituras novas sobre os modelos atuais de

12
Um dos principais especialistas e teóricos da geografia cultural. Ele também fundou em 1992 a
revista Geografia e culturas. Autor de várias obras na área de geografia cultural.
13
Rogério Haesbaert da Costa é um geógrafo brasileiro contemporâneo. Professor da Universidade Federal
Fluminense desde 1986, é um dos nomes mais conhecidos da área da Geografia Humana no Brasil.
14
Yi- Fu Tuan é um geógrafo americano de origem chinesa. Professor nas universidades do Novo México,
Toronto, Minnesota e Wisconsin. Ele se especializou em geomorfologia, mas abandonou esse assunto para
dedicar-se à história da geografia e, mais tarde, ao estudo da experiência dos homens em seu ambiente. Destaca
as obras Topofilia (1974) e Espaço e lugar (1977).
15
SIANI, Sérgio Ricardo et al. Revista de administração da UNIMEP, São Paulo v. 14, n. 1, p. 193 – 219, 2016.
6

ocupação do espaço. Pensamos, portanto, ser uma temática original, no sentido de perguntar
e, até certo ponto, sugerir que o conceito de lugar sagrado está por detrás de toda
territorialidade.

Os capítulos desta pesquisa estão distribuídos de forma didática e histórica, buscando


a coesão dos assuntos e a compreensão histórica (ao longo do tempo) da relação entre espaço
sagrado e territorialidade. O primeiro capítulo busca caracterizar o lugar, como categoria
geográfica, onde o sagrado se manifesta. O segundo capítulo vai teorizar sobre as bases
conceituais para justificar o lugar sagrado como fonte de territorialidade. O terceiro e último
capítulo demonstrará que, ainda hoje, existem paradigmas simbólicos/míticos que determinam
territorialidades. Neste sentido, a modernidade científica, não conseguiu suprimir a ideia de
lugar sagrado.
7

1 LUGAR - CATEGORIA GEOGRÁFICA ONDE O SAGRADO SE MANIFESTA

A leitura que a modernidade científica-positivista faz da compreensão mítica do


espaço, pertence a um contexto pré-científico, regido pelos mitos e pelo simbolismo religioso.
Não obstante, a nossa modernidade científica não pode negar que “o conhecimento que temos
como indivíduos e como membros de uma determinada sociedade permanece muito limitado,
seletivo e influenciado pelas paixões da vida”16. Daí decorre uma questão a ser enfrentada,
que é o fato de que o homem sempre idealiza/imagina um espaço mítico na lacuna deixada
pela incapacidade de ser preciso e seguro no conhecimento da totalidade. Ademais, não se
deve conceber uma ciência que estuda as relações do homem com o seu meio (caso da
Geografia), que deixe de propor “uma compreensão do homem, não somente em sua
percepção do mundo, mas também pelo imaginário que elabora acerca do seu meio” 17. Haverá
sempre realidades que lhe escapam à compreensão objetiva, mormente, as realidades espaciais
que se estendem além da visão física, e desta forma, “os pequenos mundos da experiência
direta são bordejados por áreas muito mais amplas conhecidas indiretamente através dos
meios simbólicos”18.

Quando se pensa o espaço, não parece sábio divorciá-lo de quem o concebe como tal
e, portanto, neste sentido, o espaço não deve ser separado do homem. Desta forma, o espaço
físico é fruto de uma construção subjetiva, ou seja, “a realidade do rio, da montanha, da terra
não é uma realidade subsistente, mas validada, instituída; é o mito que valida e constrói a
realidade”19. É o homem quem significa (dá significado) o espaço. A construção de
espacialidades objetivas e subjetivas (físicas e simbólicas) pode ser determinada pelo
pensamento mítico, uma vez que ele é “um construto intelectual” 20, portanto, uma
racionalização daquilo que, ainda, é desconhecido, a partir de um conhecido. Por isto, o
espaço habitado e explorado (objetivo) é mítico no seu simbolismo e sacralidade imediata,
tendo em vista que esta formulação afetivo/simbólica é feita a partir do lugar onde vive este
homem.

16
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: A perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel,
1983. p. 96.
17
ROSENDAHL, Zeny. Construindo a geografia da religião no Brasil. Revista Espaço e Cultura, Rio de Janeiro,
n. 15, p. 01-13, 2003. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index. php/espacoecultura/index>.
Acesso em: 16 de jun. 2017.
18
TUAN, 1983, p. 99.
19
DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo:Perspectiva, 2011. p. 58.
20
TUAN, 1983, p. 112.
8

O entendimento que se tem neste sentido é que “o mundo que nos rodeia, o mundo no
qual são sentidas a presença e a ação do homem – as montanhas que ele escala, as regiões
povoadas e cultivadas, os rios navegáveis, as cidades, os santuários – tudo isto tem um
arquétipo extraterreno (...)”21. Desta forma, o processo de ocupação da terra (habitação,
exploração do solo etc) é mediado por uma elaboração mítica e simbólica, que é a responsável
pela configuração daquele espaço, sendo este espaço uma materialização de um modelo
mítico.

Feitas estas considerações introdutórias e, antes de adentrarmos questões mais


viscerais desta relação mítica que o homem trava com o espaço, convém que definamos quais
categorias geográficas priorizaremos neste trabalho. Tendo em vista que a nossa pesquisa
privilegiará as questões que envolvem a territorialidade, o território e o lugar, nada mais justo
que caracterizemos, particularmente, cada uma deles.

1. 1 – Definindo as categorias de territorialidade, território e lugar.

a) Territorialidade

O conceito de territorialidade na geografia é emprestado da zoologia. A ideia de


territorialidade remonta a experiência do ornitólogo Elliot Howard22, que percebeu que “os
pássaros delimitavam determinado território, cuja posse determina, a seguir, a hierarquia
social e o acesso ás fêmeas”23. Ainda de acordo com Howard, a territorialidade podia ser
definida como “a conduta característica adotada por um organismo para tomar posse de um
território e defendê-lo contra os membros de sua própria espécie”24.

Tomando este modelo de territorialidade animal, percebe-se que a territorialidade


humana está fundada num conceito parecido, ou seja, determinado grupo social se apropria de
certos espaços, estabelecendo as suas fronteiras e as regras para a utilização daquele espaço.
A ideia de posse e de dominação, certamente, é uma característica distintiva da
territorialidade. Deduz-se destas características que a territorialidade é uma esfera de poder
que cria e mantém determinado território. Neste sentido, “a territorialidade (...) não é apenas

21
ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. São Paulo: Mercúrio, 1992. p. 21.
22
HOWARD, Eliot foi um ornitólogo inglês.
23
BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDHAL, Z.
(Orgs.). Geografia cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p.83-131. p. 97.
24
ELLIOT, Howard, apud BONNEMAISON, 2002, p. 99.
9

um meio de criar e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter”25 determinado
espaço. Nesse primeiro momento, “a territorialidade é compreendida muito mais pela relação
social e cultural”26 do que pelos aspectos físicos/materiais, especialmente porque a
territorialidade pode ser “uma estratégia político-cultural”27 com vistas à legitimação da
ocupação de determinado espaço.

O conceito de territorialidade, herdado da biologia/zoologia, enfatiza a ideia de uma


territorialidade inata. Desta forma, a territorialidade é um comportamento humano presente
em todos os grupos sociais. As representações simbólicas presentes na cultura fornecem o
substrato teórico na elaboração desta territorialidade, que confere identidade ao grupo social
representado. Portanto, “toda cultura se encarna, para além de um discurso, em uma forma de
territorialidade”28.

b) Território

Podemos partir do ponto de vista de que o território é uma materialização de uma


territorialidade, logo ele dá visibilidade a esta. Pensando assim, fica fácil concluir que é pela
existência de uma territorialidade que se cria um território. Logo, não existe território à
margem da territorialidade. Convenciona-se dimensionar o território nas esferas cultural,
econômica, social e natural, mas pensamos que não é uma ideia inteligente, visto que
fragmentaríamos demais sua estrutura. Acreditamos que as dimensões cultural e social
resumiriam bem sua estrutura. Neste sentido, o aspecto cultural merece ser lembrado, como
também, o aspecto social, uma vez que o território é produto de uma formulação simbólica e é
o palco das relações sociais.

Cabe-nos, apenas, diferenciar estes dois aspectos, uma vez que o social é político,
econômico, objetivo e linear; enquanto o cultural é simbólico, ideológico e subjetivo. É
necessário, portanto, que o território seja percebido nestas duas esferas, pois ele materializa
realidades sociais e culturais. Sendo assim o território não deve ser pensado ignorando sua
dimensão social (política/jurídica) uma vez que ele pode ser definido como “uma determinada
porção da superfície terrestre apropriada por um grupo humano (...). Dessa forma, o território

25
HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia, Rio de Janeiro,
Ano IX, n. 17, p. 19-45, 2007.
26
BONNEMAISON, 2002, p. 99
27
HAESBAERT, 2007, p. 25.
28
BONNEMAISON, 2002, p. 97.
10

é posto, como um espaço que alguém possui, é a posse que lhe dá identidade” 29. Igualmente,
sua dimensão cultural precisa ser admitida, uma vez que a territorialidade está estribada num
discurso recheado de mitos, símbolos e heróis; e é esta territorialidade que organiza o
território.

Partindo desta ambivalência do território é que compreendemos como ele é capaz de


assegurar uma identidade ao grupo que lhe pertence, uma vez que “os grupos, as etnias e os
povos existem por sua referência a um território”30, ou seja, os grupos sociais tendem a se
desintegrar quando não estão ancorados num território. Neste sentido, a nação de Israel ilustra
bem esta relação: povo e território. A história dos hebreus 31 começa com a promessa da terra
prometida (região da Palestina), onde se estabeleceria como nação, sendo que depois de
estabelecida, passa por guerras, sofrendo seguidos cativeiros ao longo dos séculos,
reassumindo seu território, somente, após a segunda guerra mundial.

Uma exceção interessante nesta relação território e grupo social é a situação da


Catalunha32 que não possui território com o status de Estado (juridicamente, falando), mas
que possui uma identidade cultural própria dentro do território da Espanha, tendo um
sentimento nacionalista diferente do resto da Espanha, sendo que este nacionalismo “elaborou
mitos, rituais, símbolos que deram vida a um imaginário que competia com a identidade
nacional espanhola (...)”33. Desta forma, a Catalunha tem um componente simbólico
identitário/nacionalista, mas se submeteu a uma privação do território, não obstante,
atualmente, tem florescido o desejo de se ter um território próprio. 34

Retomando o debate sobre os aspectos cultural e social, encontramos em Haesbaert a


seguinte impressão sobre o território:

29
ROCHA, José Carlos. Diálogo entre as categorias da geografia: espaço, território e paisagem. Caminhos de
Geografia, Uberlândia, v. 9, n. 26, p. 128 – 142, 2008.
30
BONNEMAISON, 2002, p. 112.
31
A origem do povo hebreu é contada a partir do Livro de Gênesis, capítulo 12, na Bíblia Hebraica.
32
A Catalunha é composta por quatro províncias: Barcelona, Girona, Lérida e Tarragona. A capital e a maior
cidade é Barcelona, o segundo município mais povoado de Espanha e o núcleo da sétima área urbana mais
populosa da União Europeia.
33
BALFOUR, Sebastian & QUIROGA, Alejandro. España Reinventada: Nación e Identidad desde la Transición.
Barcelona, Península, 2007.
34
Recentemente, a comunidade autônoma da Catalunha, que hoje faz parte da Espanha, promoveu o maior
referendo já realizado na região para consultar a população catalã sobre sua independência ou permanência em
relação à Espanha. De acordo com o governo catalão, o resultado do pleito foi de 90% dos votos a favor da
separação e 7,8% dos votos contrários - o restante votou nulo ou branco
(https://www.vix.com/pt/mundo/550725/um-novo-pais-o-que-acontecera-se-catalunha-se-separar-mesmo-da-
espanha).
11

Desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica,
pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de térreo-
territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da
terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com
esta dominação, ficam alijados da terra, ou no „territorium‟ são impedidos de
entrar35.

As dimensões dadas por Haesbaert ao território são a material e a simbólica, que


podem ser traduzidas em social e cultural (conforme proposto, anteriormente). O território
sempre representa ou materializa um poder, seja ele oriundo do social/material/político, seja
ele oriundo do cultural/simbólico/mítico. Dada esta estruturação do território, ele atua na
esfera do funcional, como recurso, matéria prima entre outros, em função da sua dimensão
social. Como atua, também, fornecendo sentido, significado e ideologia, dada a sua dimensão
cultural.

Finalizando estas breves considerações sobre o território, precisa ficar claro que o
território nunca deve ser concebido isoladamente na sua dimensão cultural/simbólica, mas
sempre envolvendo sua dimensão social/material. Isto decorre do fato de que “ao contrário da
territorialidade, ele sempre envolve uma dimensão material-concreta”36.

c- Lugar

Podemos começar caracterizando o lugar pelo seu sentido etimológico, que significa
espaço ocupado, localidade, posição etc. Isto, de imediato, demonstra que o lugar é um espaço
fixo e limitado. Logo o lugar se apresenta como um espaço conhecido e, numa perspectiva
fenomenológica, um espaço relacional. Assim ele é o palco das relações sociais, onde
funciona como um “microcosmo, onde cada um de nós se relaciona com o mundo e o mundo
se relaciona conosco”37. Dentro desta compreensão, o lugar é fruto de uma elaboração afetiva,
de tal maneira que há uma correspondência entre o homem e o lugar carregada de sentimentos
(saudades, lembranças, afetos).

O lugar sempre evocará a subjetividade do indivíduo. Percebe-se que “a esperança das


pessoas gira em torno de determinados lugares carregados de histórias e símbolos” 38. Por isto
a análise da categoria lugar só e possível a partir do indivíduo, mas isto não deve pressupor
que os lugares são criações do sujeito, mas devem ser considerados como espaços locais que

35
HAESBAERT, 2007, p. 20.
36
HAESBAERT, 2007, p. 27.
37
RELPH, Edward, 2012, apud RODRIGUES, Kelly. O conceito de lugar: a aproximação da geografia com o
indivíduo. IX Encontro Nacional da ANPEGE, 2015, p. 5039.
38
BONNEMAISON, 2002, p. 108.
12

“possuem características próprias” 39, ou seja, que tem existência real, seja no plano material,
seja no cultural.

Dentre as categorias geográficas (lugar, região, território, paisagem), o lugar é a


categoria que faz um corte no espaço e no tempo, possibilitando formulações afetivas de
ordem pessoal, criando um ambiente de comunhão com o indivíduo. Este recorte da realidade
realizado pelo lugar explica porque

a afeição não pode se estender a todo um império, porque frequentemente este é um


conglomerado de partes heterogêneas, mantidas e unidas pela força. Ao contrário a
região natal (pays) tem continuidade histórica e pode ser uma unidade fisiográfica
(um vale, litoral ou afloramento calcáreo) pequena o suficiente para ser conhecida
pessoalmente40.

Por isto, o lugar é um espaço uno, limitado e que faz parte da vivência do indivíduo. O
lugar é sempre uma experiência cognoscível sem sobressaltos ou mistérios, pois ele é uma
parte conhecida e reconhecida da existência do indivíduo. Todos sabemos que o homem
“somente pode estabelecer raízes profundas em uma pequena parte do mundo” 41, que
chamamos de lugar.

1. 2 – O lugar como categoria a priori da geografia

A presunção de que o lugar é uma categoria a priori se funda no fato dele ser uma
categoria a partir de onde pensamos as demais categorias. Não se pretende, aqui, adentrar em
discussões filosóficas sobre o alcance da expressão a priori. Apenas entendemos que esta
expressão parte de causas já definidas sem haver a necessidade de comprovações (a
posteriori), bastando para isto uma argumentação racional. Logo, se pretende demonstrar que
o lugar é uma categoria “a priori”, por causas já conhecidas e admitidas.

Porque podemos afirmar que o lugar é uma categoria a priori? Primeiramente, porque,
evidentemente, pensamos o mundo a partir da nossa subjetividade e nossas vivências. Neste
sentido, é a partir do lugar onde moramos/vivemos que elaboramos nossa cosmovisão (onde
estão inseridas, inclusive, as outras categorias geográficas). Sabemos que a “essência do lugar
é a de ser o centro das ações e das intenções, onde são experimentados os eventos mais

39
ROCHA, 2008, p. 135.
40
TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio de Janeiro: Difel,
1980, p. 117.
41
TUAN, 1980, p. 115.
13

significativos de nossa existência” 42, desta forma é a partir do lugar que sentimos a vida e
pensamos o mundo.

Pensando, objetivamente e lançando mão da história da geografia, sabemos que o


nascedouro da geografia foi local, sobretudo pelas limitações tecnológicas da época. Não
bastasse, no dizer de La Blache (citado por RELPH, 1976), “a geografia é a ciência dos
lugares (...).”43. Não obstante, não queremos justificar, através deste argumento, que o lugar é
uma categoria a priori, uma vez que o contexto da palavra lugar tem uma dimensão mais
abrangente. Queremos nos valer dos aspectos mais culturais, uma vez que o lugar é, antes de
tudo, uma elaboração afetiva, porque “o lugar encarna as experiências e aspirações das
pessoas”44.

Entendemos que não podemos pensar as categorias mais abrangentes como território,
paisagem, região e o próprio espaço se não partirmos de um ponto fixo, de um local. Não se
pode compreender o todo se não partirmos da parte onde está inserido o sujeito observador.
Desta forma, o lugar “é uma entidade única, um conjunto especial que tem história e
significado”45 e é a partir desta significação que o lugar possibilita afirmarmos que o lugar é
um pequeno mundo, onde pensamos o grande mundo.

Pensando na relação espaço e lugar, entendemos que “o espaço é amorfo e intangível e


não uma entidade que possa ser diretamente descrita e analisada” 46, por isso, não podemos
conhecer objetivamente o espaço, sendo que isto só é possível pela mediação do lugar, por ser
“um espaço estruturado”47. As coisas e as pessoas (tecnicamente, objetos) só podem ser
estudadas e conhecidas a partir do lugar, porque é o lugar que organiza e dimensiona o
espaço, à medida que ele (o lugar) representa uma fragmentação deste espaço. Podemos dizer,
filosófica e poeticamente (embora, seja um risco nos trabalhos científicos, ainda reféns do
positivismo comtiniano) que os lugares são as praças, onde o tempo e o espaço se enamoram.

Ainda, na defesa da aprioricidade do lugar, não queremos limitar o lugar, nem de


longe, aos aspectos culturais, porque ele representa, também, uma unidade espacial/física. A
abordagem de lugar nesta pesquisa trabalhará com as duas dimensões da categoria lugar

42
HOLZER, Werther. O lugar na geografia humanista. Revista Território, Rio de Janeiro, ano IV, p. 67 – 78,
1999.
43
HOLZER, 1999, p. 67.
44
HOLZER, 1999, p. 70.
45
HOLZER, 1999, p. 70.
46
RELPH, Edward. Place and placelessness. London: Pion, 1976.
47
TUAN, 1975, apud HOLZER, 1999, p. 71.
14

(cultural e espacial). Não obstante, existem outras abordagens que poderão caracterizar o
lugar somente nos seus aspectos simbólicos, no entanto, não é a intenção desta pesquisa
seguir este caminho.

Por fim, podemos dizer que a compreensão do espaço só é razoável a partir do vivido,
do experimentado. A ideia de que podemos compreender o mundo e as coisas, abstraindo os
objetos do espaço, ignorando seu lócus, suas relações e suas essências individuais, tem
demonstrado ser um grande equívoco, desde o enfrentamento do positivismo pela
fenomenologia husserliana, no início do século XX. Além do mais, quando falamos de
lugares, “estamos falando da significação do espaço para cada indivíduo”, pois não podemos
explicar o espaço, a vida, os objetos e as relações senão a partir do indivíduo. Neste sentido, o
indivíduo só pode viver no lugar, ademais a ideia de uma topofilia (topos e filos na língua
grega, significam respectivamente, lugar e amor/afeição) só é possível a partir do lugar, uma
vez que ela (a topofilia) exige um “tamanho compacto, reduzido às necessidades biológicas
do homem e as capacidades limitadas dos sentidos”48, uma vez que você não pode
amar/gostar/apreciar aquilo que sua sensoriedade não alcança.

1. 3 – O lugar, espaço onde o sagrado se manifesta.

Antes de considerações específicas acerca do lugar como espaço onde o sagrado se


manifesta, entendemos que a ideia de território, como espaço onde o sagrado se manifesta,
não é razoável, dado a sua extensão e estruturação jurídica-política, bem como o fato de que a
hierofania se manifesta em dado lugar do espaço, não numa porção desconhecida pelo sujeito,
nem na totalidade do espaço, mas numa perspectiva local e particular.

Partindo da rejeição do território como espaço onde se manifesta o sagrado e não


negando que o sagrado manifesto em dado lugar irradiará sua ação santificadora ao território,
reafirmamos que estamos discutindo, neste momento, onde se manifesta o sagrado, não a
propagação do sagrado, porque a “teofania49 consagra um lugar pelo próprio fato de torná-lo
„aberto‟ para o alto, ou seja, comunicante com o Céu, ponto paradoxal de passagem de um

48
TUAN, Yi-fu, 1980, p. 117.
49
Teofania significa manifestação de Deus (do substantivo theós e do verbo faneroo).
15

modo de ser a outro”50. Portanto, a manifestação do sagrado é local, porque significa uma
“rotura operada no espaço”51, criando um lugar sagrado.

O lugar, como já foi comentado, é uma elaboração afetiva que acontece numa
espacialidade estruturada e resumida. É dentro desta espacialidade enxuta que “os mitos
religiosos e políticos mudam a natureza de parcelas do espaço: existem fontes, florestas,
árvores e serras que viram sagradas, enquanto os seus arredores permanecem profanos”52.
Quando a hierofania irrompe em dado lugar, este lugar passa a ser dotado de um caráter
mágico, transcendente. A manifestação do sagrado no lugar não o descaracteriza
espacialmente, mas reveste-o de um simbolismo, de uma transcendência, ou seja, “a pedra
sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente
porque são hierofanias, porque revelam (...) o sagrado, o ganz andere” 53.

Portanto, a sacralidade é decorrência da manifestação do sagrado, que pode e deve ser,


primeiramente, entendida sob um viés teológico, significando a manifestação do totalmente
diferente (ganz andere)54, tratando-se de uma experiência em que algo misterioso, grandioso,
tremendo, extraordinário se manifesta. Logo este lugar adquire uma mística, uma condição
mágica, uma supremacia religiosa, um status espiritual, uma vocação sagrada. As experiências
de manifestação do sagrado estão sempre associadas a lugares específicos, como exemplos,
Moisés no Monte Sinai (recebimento do decálogo), Cristo no monte da transfiguração,
Maomé no lugar chamado de Jabal Al-Nur ou "a Montanha da Luz”, o apóstolo Paulo no
caminho de Damasco etc.

Não raramente o comportamento social de determinada comunidade reproduz uma


ética retirada de uma manifestação do sagrado, porque “a vida de uma coletividade envolve
crenças que se revelam nas condutas e se materializam nas formas espaciais do cotidiano
vivido”55. E a forma espacial que pode ser vivida esta experiência é o lugar, que é o espaço
existencial, onde estão as pessoas, as coisas e as relações. E neste sentido, o lugar é onde se
tecem as teias simbólicas da territorialidade, como veremos no próximo capítulo.

50
ELIADE, 2010, p. 30.
51
ELIADE, Mircea, 2013, p. 26.
52
CLAVAL, Paul. A volta do cultural na geografia. Mercator, ano 01, número 001, p. 19 – 27, 2002.
53
ELIADE, Mircea, 2010, p. 18.
54
“Ganzandere” é uma expressão inspirada pelas ideias do teólogo protestante Rudolf Otto (1869-1937) e que
aparece na introdução do clássico “O Sagrado e o profano: a essência das religiões” de autoria de Mircea Eliade
(professor Paulo Mazem).
55
CASTILHO, 2010, p. 45.
16

2 O LUGAR SAGRADO FUNDA O CONCEITO DE TERRITORIALIDADE

Partindo do ponto de vista de que há consenso acerca da aceitação da categoria lugar


como espaço, onde o sagrado se manifesta, acreditamos que o lugar sagrado estabelece uma
áurea mítica e simbólica no seu entorno, uma verdadeira esfera de poder. Neste sentido, esta
escala de poder funda conceitualmente a territorialidade, que “seria um espaço de
representação e apropriação simbólica de determinado espaço sagrado”56.

O fato desta territorialidade adquirir, eventualmente, ares político/jurídicos não a


esvazia de sua concepção ligada ao espaço sagrado, uma vez que “o sagrado é fundamental
para o homem, na medida em que para ele a alma é imortal, e para viver bem na terra e
apresentar-se puro diante de Deus após a morte carnal esse homem serve-se de símbolos, ritos
para a celebração de festas e cerimônias religiosas”57. E, ainda que o homem moderno (e pós-
moderno) possa se sentir indiferente ou totalmente descrente desta vida sagrada, não poderá
se libertar da herança antropológica e histórica que permeia sua natureza humana, mesmo não
sendo expressa ou demonstrada em ações religiosas. O homo religiosus precede o homo
laicus. E esta herança bendita/maldita é irremovível da natureza do homem, uma vez que na
proporção que

o homem a-religioso se constitui por oposição a seu predecessor, esforçando-se por


se „esvaziar‟ de toda religiosidade e de todo significado trans-humano. Ele
reconhece a si próprio na medida em que se „liberta‟ e se „purifica‟ das
„superstições‟ de seus antepassados. Em outras palavras, o homem profano, queira
ou não, conserva, ainda os vestígios dos significados religiosos. Faça o que fizer, é
um herdeiro58.

A territorialidade, entendida como este apropriamento simbólico de determinado


espaço (mas que se materializa na estruturação do território) evidencia claramente que ela é
fruto de uma ideia legitimadora, construída simbólica/mítica/sagrada/religiosamente. A
manifestação do sagrado em determinado lugar desencadeia a territorialidade, uma vez que a
cultura do sagrado manifesto no lugar possibilita uma teia de valores e significados, sendo que
estas “culturas não representam somente um gênero de vida, uma maneira de viver e de
sobreviver; são também uma arte de viver, e mesmo, além disso, uma razão de viver”59. O
sagrado oferece significado para a vida, possibilitando uma organização das ideias e do

56
CASTILHO, 2010, p. 45.
57
BORDIEU, Pierre, 1989, apud CASTILHO, 2010, p. 45.
58
ELIADE, Mircea, 2010, p. 166.
59
CLAVAL, Paul. Epistemologia da Geografia. 2 ed. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2014, p. 234.
17

pensamento acerca da vida. “Essa ordem de pensamento baseia-se em crença, mito e


valores”60.

Não somente isto, “para entender os objetivos da ação humana, tem-se de supor ser
possível a comunicação com outros mundos. Os geógrafos têm de estudar o papel desses
outros mundos na diferenciação do sagrado e do profano, e na construção das categorias do
bem e do mal” 61. A negligência em analisar as motivações irracionais/simbólicas
(íntimas/subjetivas) do indivíduo empobrece a compreensão da ação do homem na construção
de seus espaços, pois

todos os homens compartilham uma experiência fundadora porque têm o sentimento


de que, sob o real ou acima dele, esconde-se uma realidade mais fundamental. Se
esta lhes fosse totalmente oculta, não desempenharia nenhum papel na sua
existência. Mas a experiência do sagrado permite conhecê-la – e essa experiência
está associada a certos lugares62.

Esta pesquisa, tendo em vista, sua abordagem cultural, reafirma a ideia de que o homo
religiosus está presente de forma latente ou efetiva na vida do homem moderno, não obstante,
a secularização e o desencantamento do mundo, preconizado por Weber. Por isto, este homem
religioso (ainda que latente na sua psiquê), acredita que “existe uma realidade absoluta, o
sagrado, que transcende este mundo (...)”63 e isto, independentemente do período histórico.
Esta transcendência, nem sempre, está claramente expressa na sociedade, mas se manifesta na
“procura de sentidos que compartilham os homens, e o esforço que sempre fizeram para se
elevar, pela consciência, fora do quotidiano, do contingente, a fim de encontrar um
significado para a sua experiência”64. Desta forma, resta-nos, apenas, compreender como esta
territorialidade é tecida em face do lugar sagrado

2.1 – O simbolismo do lugar central: agente irradiador de territorialidade

Uma questão interessante na elaboração do pensamento mítico, com relação à


territorialidade, é a ideia de centralidade cósmica do espaço sagrado 65. Na presente pesquisa,

60
CLAVAL, 2014, 234.
61
CLAVAL, 2002, p. 26.
62
CLAVAL, 2014, 233.
63
ELIADE, 2010, p. 164.
64
CLAVAL, 2014, p. 233.
65
Neste capítulo quando falamos de espaço sagrado estamos falando de lugar sagrado e vice-versa. Eles são
usados intercambiavelmente tendo em vista que o espaço sagrado se refere sempre há um espaço específico,
reduzido e separado do todo (que é exatamente, o lugar). Ademais, busca se, minimamente, certa elegância
literária evitando o repetismo do termo lugar.
18

este conceito de espaço/lugar sagrado, como centro irradiador de territorialidade, é definitivo


na compreensão do processo de ocupação e exploração do espaço, nos seus aspectos
econômico e cultural. Considerando que o tema deste capítulo é explicar como o lugar
sagrado gera o conceito de territorialidade, pontua-se, aqui, que o lugar sagrado como centro,
é um conceito fundante, apesar de ser produto de uma mentalidade arcaica, onde, “apenas o
que é sagrado existe de maneira absoluta”66. Não obstante o distanciamento histórico e
científico destas sociedades, havemos de convir que as instituições modernas, que
representam as esferas de poder, buscam sempre uma centralidade (seja física, seja simbólica)
dentro de um espaço geográfico/político 67. Portanto, vamos encontrar nas sociedades
arcaicas68 o simbolismo do centro de diversas maneiras, como “a montanha sagrada – onde o
céu e a terra se encontram – está localizada bem no Centro do mundo (...). Cada templo e
palácio – e, por extensão, toda cidade sagrada ou residência real – é considerado como uma
montanha sagrada, sendo visto, portanto, como um centro”69. Neste sentido, para a
mentalidade arcaica, a manifestação do sagrado no espaço, “funda ontologicamente o
mundo”70, ou seja, o espaço é significado (adquire sentido) pela hierofania (manifestação do
sagrado).

O que a compreensão mítica do espaço sagrado demonstra é que a vida das sociedades
arcaicas estava organizada em torno dos lugares sagrados e, portanto, pode-se considerar a
territorialidade uma decorrência desta leitura mítica. Esta organização espacial denuncia duas
realidades espaciais: a sagrada e a profana. O espaço sagrado é o organizado e conhecido que
serve de fronteira ao resto do mundo. O espaço sagrado é o centro, a realidade, enquanto o
profano é a periferia, o desconhecido. Os dois espaços demonstram a dicotomia que os
envolve, a descontinuidade que os marca. O próprio termo sagrado/santo (kadosh na língua
hebraica e hagios na língua grega) significa separado, distinto dos demais. Diante desta
dicotomia, fica demonstrada “duas modalidades de existência assumidas pelo homem ao
longo de sua história”71.

66
ELIADE, 1992, p. 23.
67
A experiência da construção de Brasília na região central (centro-oeste) do Brasil é bastante significativa, neste
sentido.
68
Por sociedades arcaicas, aqui consideramos o mundo antigo,desde os Sumérios na Mesopotâmia (4.000 A.C),
até o fim da idade média, no século XV.
69
ELIADE, 1992, p. 23.
70
ELIADE, 2010, p. 26.
71
ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996,
p. 28.
19

As implicações desta interpretação mítica do espaço se percebem no processo de


construção das cidades da antiguidade. É facilmente percebido o fato de que “a religião estava
em toda parte”72, na quantidade de templos e santuários que existiam nas cidades antigas,
como nas centenas de zigurates73 da cidade de Babilônia, por exemplo. Faz-se necessário
explicar que o espaço sagrado, na perspectiva da compreensão mítica/pré-científica, não é,
necessariamente, um componente da paisagem, mas “um elemento de produção do espaço”74.
Por isto, quando pensamos no simbolismo do centro como lugar que desencadeia a
territorialidade, “devemos saber que, nas coisas mais importantes, os conceitos não se
definem jamais por suas fronteiras, mas a partir do seu núcleo” 75.

A ideia de centro está associada à distinção que se deve fazer ao restante do espaço,
sendo que as hierofanias (manifestações do sagrado) “anularam a homogeneidade do espaço e
revelaram um ponto fixo”76. E é esse ponto fixo que nos permite “entender o comportamento
religioso em relação ao espaço em que se vive”77. Neste sentido, admitimos que o homo
religiosus é uma herança consciente ou inconsciente que o homem moderno não é capaz de
eliminar, sobretudo porque é uma inerência histórica presente na cultura. Sendo este homem,
moderno ou pós-moderno, agente e paciente desta teia simbólica presente na cultura, ele
jamais se encontrará em estado de puro secularismo ou dessacralização. “Em outras palavras,
o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem
religioso, mas esvaziado dos significados religiosos”78.

2. 2 – O lugar sagrado e a territorialidade urbana

A leitura mítica/simbólica/religiosa das sociedades arcaicas se percebe, sobretudo, na


vida urbana e

não podemos perder de vista que, entre, os antigos, o que constituía o vinculo de
toda sociedade era um culto. Assim como um altar doméstico mantinha reunidos ao
redor os membros da família, assim também a cidade era a reunião dos que tinham
os mesmos deuses protetores e executavam o ato religioso no mesmo altar 79.

72
ROSENDAHL, 1996, p. 37.
73
O zigurate era uma forma de templo babilônico, construído na forma de degraus, podendo atingir grandes
alturas.
74
ROSENDAHL, 1996, p. 39.
75
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 72.
76
ELIADE, 2010, p. 31.
77
ELIADE, 2010, p. 39.
78
ELIADE, 2010, p. 166.
79
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 163.
20

Fica evidente que no pensamento de Coulanges (acima), a cidade era concebida como
“uma pequena igreja completa, com deuses, dogmas e culto” 80, sendo organizada a partir do
seu local de culto (santuário). Pode, até, parecer grosseira e distante esta concepção de
delimitação de espacialidades, mas convém notar que este pensamento mítico foi o substrato
para o pensamento racional, bem como, o pensamento pré-científico foi o chão para a futura
cientificidade. Portanto, “esta vida pré-científica seria o mundo da vida que seria o
fundamento para o mundo cientificamente verdadeiro e o compreende na sua concreção
universal”81.
O conceito mítico de espaço sagrado é inaugural e epistemologicamente fundacional
para a noção de territorialidade, pois, o lugar sagrado para as sociedades arcaicas
representavam o ponto central e fixo, a partir do qual se desenrola o processo de organização
da comunidade. Para a mentalidade mítica, o mundo se organiza a partir do lugar sagrado, e é
“por esta razão que o homem religioso sempre se esforça por estabelecer-se no centro do
mundo”82. O conceito de territorialidade se estabelece a partir desta concepção, sendo assim, a
territorialidade significa o alcance da influência religiosa do lugar sagrado sobre a ocupação e
a forma de exploração do meio. Um exemplo interessante é a ocupação da palestina pelos
hebreus em 1400. A.C., com a posterior construção do Templo Sagrado em Jerusalém (800 A.
C), sendo que, a partir de então, todo hebreu precisava comparecer três vezes por ano no
templo, a fim de participar das festas religiosas (Páscoa, Tabernáculos e Pentecostes) 83. Neste
período eles eram orientados acerca da Torah (Lei Mosaica) 84, que era um código de leis que
norteava a vida religiosa e civil da nação. Neste sentido, o lugar sagrado determinava a vida
social e econômica da nação, especialmente nas questões voltadas para a posse e uso da terra.
Outro exemplo interessante é a forma como as cidades antigas eram fundadas, sendo
que, elas sempre se formavam a partir de um evento mítico/simbólico/religioso. Desta forma,
“a primeira preocupação do fundador é escolher o lugar da nova urbe. Mas essa escolha, que é
grave e da qual se crê depender o destino do povo, é sempre entregue à decisão dos deuses” 85.
Portanto, a leitura mítica/religiosa da vida determinava as relações políticas, sociais e
econômicas na urbe (cidade), deixando claro que o fundamento de toda territorialidade estava

80
COULANGES, 2009,p. 171.
81
HUSSERL, Edmund. A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental: uma introdução à
filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 107.
82
ELIADE, 2010, p. 26.
83
“Três vezes no ano, todo varão entre ti aparecerá perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher, na
Festa dos Pães Asmos, e na Festa das Semanas, e na Festa dos Tabernáculos; porém não aparecerá de mãos
vazias perante o SENHOR” - (Deuterônomio 16. 16, Bíblia Sagrada).
84
Lei de Moisés, que norteia a vida religiosa e civil dos hebreus. O Judaísmo é baseado neste tratado.
85
COULANGES, 2009, p. 152.
21

baseado na compreensão do lugar sagrado, que poderia ser um santuário, um templo, um


monumento sagrado. Desta forma podemos asseverar que o conceito fundante da
territorialidade estava entrincheirado com a leitura religiosa/mítica que se fazia daquele
espaço. Por isto, no contexto das sociedades arcaicas, “cada cidade fora fundada com ritos
que, segundo os antigos tiveram como efeito estabelecer dentro de suas fronteiras os deuses
nacionais”86.

A compreensão mítica do mundo e das coisas produziu nas sociedades arcaicas um


modelo religioso, baseado em crenças locais e circunscritas a uma região específica,
diferentemente da atualidade, quando as religiões extrapolam fronteiras (como é o caso do
Cristianismo e do Islamismo). As sociedades arcaicas possuíam deuses territoriais que
produziam uma religiosidade nacional/local e exclusivista. Não havia o interesse em fazer
proselitismo, pois aquela divindade estava comprometida, apenas, com os naturais da terra, e
isto era tão verdadeiro que “a cidade que possuísse uma divindade não queria que ela
protegesse os estrangeiros e não permitia que ela fosse adorada por eles” 87.

Portanto, em relação ás sociedades arcaicas e sua compreensão mítica, que


denominamos de pré-científica, podemos afirmar que a gênesis da ideia de territorialidade é a
busca de uma relação de domínio e influência sobre determinado espaço, com vistas ao uso
exclusivo de um grupo social. Neste sentido, a territorialidade é a manifestação de uma esfera
de poder, exercendo controle sobre determinado espaço e, certamente, a primeira instância
deste poder se deu (historicamente, falando) no âmbito do sagrado/mítico/simbólico/religioso.
Desta forma, “é conveniente partir da experiência religiosa, quando se deseja compreender a
distribuição dos homens, o controle das paisagens e a organização do espaço afetado pela
fé”88.

2. 3– O surgimento do território como fruto da territorialidade gerada no lugar sagrado.

Entende-se que o território é produto de uma territorialidade elaborada na cultura, uma


vez que “a territorialidade emana da etnia, no sentido de que ela é, antes de tudo, a relação
culturalmente vivida (...) cujo traçado no solo constitui um sistema espacial – dito de outra

86
COULANGES, 2009, p. 175.
87
COULANGES, 2009, p. 167.
88
ROSENDAHL, 1996, p. 18.
22

forma, um território”89. Logo o território materializa uma territorialidade construída a partir


da cultura e, mais especificamente, na ideia do sagrado contida no lugar.

Pode-se dizer que a demarcação de um território é considerada um ato criador. O


território surge então como um ato de posse de uma região sacralizada pela associação com
um arquétipo celestial (mítico). Por isto, “o processo de povoação de uma nova região, não-
cultivada e desconhecida, equivale a um verdadeiro ato de Criação e seu estabelecimento
como território só é considerado real quando se realiza um ritual de tomada de posse” 90. Um
exemplo significativo é a tomada de posse das terras conquistadas pelos espanhóis e
portugueses, que sempre era feito em nome de Jesus Cristo e da Igreja. A primeira missa,
celebrada no Brasil, é outro exemplo deste ritual de posse e conquista de um território.

O território, visto como produto de uma apropriação/valorização simbólica de um


grupo em relação ao seu espaço vivido, exige um substrato teórico legitimador de suas
fronteiras. Sendo assim, o lugar sagrado (religiosa ou culturalmente, falando) funciona como
“o umbigo do mundo, o ponto em que começou a Criação”91. Então, é a partir deste
umbigo/centro do mundo/lugar sagrado que as fronteiras do território são estabelecidas, e
neste sentido, “a fronteira, esse produto de um acto jurídico de delimitação, produz a
diferença cultural do mesmo modo que é produto desta”92, ou seja, as fronteiras são produto
do sagrado, da mesma forma que o circunscreve (limita) àquele espaço.

Quando enfatizamos o sagrado como gerador de territorialidade, não limitamos o


sagrado á uma manifestação religiosa, mas contemplamos todos os aspectos
mítico/simbólicos do sagrado, sem reduzi-lo a uma experiência religiosa. Daí decorre o fato
de que “não pode haver sociedade que não sinta a necessidade de conservar e reafirmar, a
intervalos regulares, os sentimentos coletivos e as ideias coletivas que constituem a sua
unidade e a sua personalidade”93. Sendo que estes sentimentos e ideias coletivas são
produzidas no arcabouço da cultura, através dos mitos e dos símbolos.

Em face do já dito, o território não é fruto, primeiramente, de uma delimitação


político/jurídica, mas de uma construção mítico/simbólica oriunda da cultura, traduzida na
forma de territorialidade. Em função disto, o território materializa uma relação simbólica,

89
BONNEMAISON, 2002, p. 97.
90
ELIADE, 1992, p. 22.
91
ELIADE, 1992, p. 25.
92
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 115.
93
DURKHEIM,Émile. As formas elementares da vida religiosa. 2. Ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 504, 505.
23

sendo que “os grupos, as etnias e os povos existem por sua referência a um território (...)”94. É
o território que dá visibilidade à relação simbólica com o lugar sagrado, existindo, “portanto,
uma leitura da história a partir da relação vivida e quase carnal que os homens travam com
seu território”95.

Outro fator importante de ser mencionado, com relação à teia simbólica que envolve a
criação e delimitação de um território, é a questão dos laços identitários e relacionais porque
“o território é, primeiramente, uma determinada maneira de viver com os outros; em inúmeros
casos seus limites geográficos são os das relações cotidianas”96. Apesar da particularização da
ideia de território feita por Bonnemaison (acima), podemos estender esta compreensão para a
criação dos modernos Estados Ocidentais, quando nas suas Cartas Constitucionais vemos
como princípios basilares, uma moralidade oriunda do judaísmo/cristianismo, em face destes
povos serem de uma tradição religiosa cristã, refletindo assim, na constituição (jurídica e
cultural) de seus territórios a sua moralidade cotidiana. Portanto, observamos que a
mentalidade mítica/simbólica se apresenta como uma experiência recorrentena vida do ser
humano, sendo assim, tentaremos observar (no próximo capítulo) vestígios desta concepção
na construção de territorialidades na pós-modernidade.

94
BONNEMAISON, 2002, p. 112.
95
BONNEMAISON, 2002, p. 117.
96
BONNEMAISON, 2002, p. 126.
24

3 OS SIMBÓLICOS DA PÓS-MODERNIDADE E A CONSTRUÇÃO DE NOVAS


TERRITORIALIDADES

A leitura simbólica do espaço é atemporal, pois se mudam ou ressignificam os


símbolos, os mitos e os heróis, mas a visão mítica/sagrada/religiosa permanece. Ora, se a
territorialidade é medida por fatores sociais e culturais e o território materializa esta relação
entre espaço e sociedade, não há como se desvencilhar de uma visão simbólica perene.
Sobretudo, porque “o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e dos sistemas
de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como território usado. O território
usado é o chão mais a identidade”97. E a identidade do sujeito só pode ser construída a partir
de um processo simbólico, porque “a identidade é conferida pelo meio ou por alguns dos
elementos do meio que nós escolhemos. Nós ingressamos num mundo de signos – e de
consumo cultural”98.

A geografia, legítima detentora da análise da relação sociedade e natureza, não pode se


esquivar de seu passado mítico, pois a ideia de objetivar/naturalizar/mecanizar esta relação
não contempla a complexidade da teia simbólica que envolve o homem e o meio. Não
podemos esquecer que a concepção positivista de ciência, herdeira do racionalismo iluminista,
produziu a crença arrogante e ingênua de que existe uma forma de conhecimento objetivo que
seja infalível, imaginando “que as observações sempre eram o reflexo das coisas reais, e toda
subjetividade (identificada com o erro) podia ser eliminada através da concordância e da
verificação das experiências” 99. Neste sentido a geografia, especialmente, por transitar entre
as ciências sociais (homem/sociedade) e naturais (espaço físico) deve se valer de sua herança
subjetiva/simbólica, se quiser ter êxito na interpretação da relação sociedade e natureza.

Neste sentido, precisamos concordar com Dardel, embora sua defesa apaixonada da
sacralidade da terra possa soar como uma ingenuidade 100 para a tecnológica e secularizada
geração pós-moderna. Não obstante, vamos as suas considerações:

97
SANTOS, Milton. Território e Dinheiro. In: Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF. Território,
Territórios. Niterói: PPGEO-UFF/AGB-Niterói, RJ, p.17 – 38, 2002.
98
CLAVAL, Paul. O território na transição da pós-modernidade. Revista GEOgraphia, Rio de Janeiro, Ano 1,
Nº 2, p. 7 – 26,1999.
99
MORIN, EDGAR. O Método 1: a natureza da natureza. 2 ed. Lisboa/Portugal: Publicações Europa-América,
1977. p. 86.
100
É possível que a geração de nossos bisnetos considere uma ingenuidade, também,o fato de vivermos
assustados com as muitas doenças, que assediam nossa geração, através dos microorganismos que estão
espalhados na terra, no ar e, até, nos nossos corpos. Então, apesar de alguém, um dia, nos considerar ingênuos,
isto não muda o fato de que estes microscópicos seres são forças reais que atacam o homem (no dizer de Dardel)
pós-moderno. Por isto, penso que vale a pena levar a sério o mito/o desconhecido/o mistério.
25

Nas sociedades ditas primitivas e na maior parte das sociedades antigas e medievais,
a ligação do homem com a terra recebeu na atmosfera espaço-temporal do mundo
mágico-mítico, um sentido essencialmente qualitativo. A geografia é mais do que
uma base ou um elemento. Ela é um poder. Da terra vêm as forças que atacam ou
protegem o homem, que determinam sua existência social e seu próprio
comportamento, que se misturam com sua vida orgânica e psíquica, a tal ponto que é
impossível separar o mundo exterior dos fatos propriamente humanos.101

Levando em conta essa comunhão visceral entre homem e natureza, que não se limita
a aspectos orgânicos, mas que contempla aspectos subjetivos também, vamos nos ater aos
paradigmas simbólicos de nossa contemporaneidade e sua construção de territorialidades.
Inicialmente, vamos analisar a categoria geográfica lugar, que é exatamente onde se estrutura
a teia simbólica da territorialidade.

3. 1 – O conceito de lugar, em face dos novos paradigmas simbólicos da pós-


modernidade.
Não será demais lembrar que, ao longo desta pesquisa, a categoria lugar é vista como
categoria a priori na geografia, uma vez que “os fatos da geografia são fatos do lugar” 102. Não
há de se pensar em geografia se não a partir do lugar. Sendo assim, queremos estender o
conceito de lugar, considerando os modernos arranjos espaciais, bem como, o fato de que o
homem pós-moderno é dinâmico e desloca grandes distâncias em curto espaço de tempo. Esta
é uma questão tensa para o estabelecimento de um conceito de lugar, uma vez que “a situação
de um homem supõe um espaço onde ele se move; um conjunto de relações e de trocas e
distâncias que fixam de algum modo o lugar de sua existência”103. Diante desta intensa
mobilidade humana, precisamos avançar na compreensão de lugar, não o vendo, apenas,
como um local estático, mas como um espaço móvel e dinâmico.

Nesta empreitada de libertar o lugar da condição estática/locacional e atribuir a ele


significado translocal, precisamoster o cuidado de não esquecermos que o lugar é o
ancoradouro das experiências, ou seja, “o lugar encarna as experiências e aspirações das
pessoas”104. Desta forma, não podemos reduzir o local a uma subjetivação, matando o seu
aspecto físico/local/estático. O lugar é o substrato das experiências, não a experiência em si,

101
DARDEL, 2011, p. 48.
102
SAUER, 1983, Apud HOLZER, 1999, p. 68.
103
DARDEL, 2011, p. 14.
104
HOLZER, 1999, p. 70.
26

logo ele é o espaço/mundo das vivências 105. Se não podemos reduzir o local às vivências e
experiências, havemos de convir que as experiências e vivências no mundo pós-moderno se
manifestam em espaços variados, fragmentados e distanciados.

Considerando, ainda, que o lugar não é um espaço amorfo e homogêneo, uma vez que
ele materializa um espaço significativo, separado (ideia de santo/sagrado) e emblemático, este
mesmo lugar, na pós-modernidade, é concebido qualitativamente e não pelas coordenadas
geográficas. Assim, todo lugar é sagrado/mítico/religioso quando ele é o substrato das
vivências significativas (trabalho, lar, lazer, culto etc). A espacialidade física continua sendo
essencial, entretanto, o lugar se torna significativo pela experiência vivida, porque são “as
pessoas que lhe dão significado”106 e não a sacralidade/simbolismo inerente ao lugar,
diferentemente do conceito de hierofania (para os povos da antiguidade), onde “uma irrupção
do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o
torna qualitativamente diferente”107.

Esta diferenciação na forma como as vivências são experimentadas é a responsável


pela ampliação do conceito de lugar, na pós-modernidade. Os lugares das vivências
significativas passam a ser arquipélagos de uma mesma espacialidade
mítica/simbólica/sagrada, um verdadeiro mundo da vida (lebenswelt na língua Alemã, berço
do existencialismo fenomenológico de Husserl e Heidegger). Grosseiramente, a soma dos
micro-lugares significativos (escola, igreja, família, trabalho etc), produz um macro-lugar
afetivo/simbólico/mítico/sagrado. Neste entendimento, admitimos que “todos os lugares são
pequenos mundos”108 significativos, ou seja, dotados de sentido.

Este lugar abrangente, somatório de todos os demais lugares, se espacializa em


qualquer micro-lugar. Onde a experiência/vivência significativa está acontecendo, este é o
lugar sagrado/mítico. Então, este macro-lugar é cada parte e todas as partes ao mesmo tempo.
Nesta compreensão é apropriado citar Pascal:

Como todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e


imediatas, e todas são sustentadas por um elo natural e imperceptível, que liga as
mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem

105
Filósofos, como Husserl, usam a expressão mundo das vivências, com o sentido de lugar das experiências, do
vivido, do experimentado.
106
TUAN, 1979, apud HOLZER, 1999, p. 70.
107
ELIADE, 2010, p. 30.
108
HOLZER, 1999, p. 70.
27

conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as


partes109.

Esta tentativa de configuração sistêmica do lugar se explica pelo fatodeste sujeito estar
descentrado, desconexo da realidade histórica passada, manifestando um comportamento
“disperso e alienado de qualquer totalidade possível”110. Neste sentido, as experiências
dispersas e fragmentadas são alocadas e organizadas em micro-lugares111, numa tentativa de
estruturação de seu mundo particular, construindo uma teia sistêmica de sentidos. O indivíduo
passa a portar em si mesmo, de forma sistêmica, a memória de diversos lugares, sendo que o
comportamento deste indivíduo na sociedade demonstra a fluidez destes espaços/lugares
míticos/simbólicos/sagrados.

Encontramos, atualmente, em alguns grupos sociais as marcas de uma busca pela


experiência do sagrado, do sobrenatural, do transcendente em lugares, notadamente, profanos.
Um exemplo são as Raves, que são “festas cosmopolitas que misturam cultura e música tecno,
drogas e uma multidão de jovens adolescentes ansiosos por emoção – como uma forma de
acesso ao sagrado que se abre pela transgressão da ordem cultural e pela ritualização dessa
experiência”112. A busca pelo transcendente, pelo sagrado em um lugar profano, na pós-
modernidade (científica e laica), demonstra que a pós-modernidade conserva, ainda, o “anseio
de transcender o nosso próprio tempo, pessoal e histórico, e de mergulhar num tempo
estranho”113.

A dimensão do simbólico, do mítico, do sagrado parece ser inerente a condição de


humano, “em suma, a maioria dos homens „sem religião‟ partilha ainda das pseudo-religiões e
mitologias degradadas. Isso, porém, não nos surpreende, pois, como vimos, o homem profano
descende do homo religiosus e não pode anular sua própria história (...)”114. Portanto, o que
mudou não é a mentalidade mítica/simbólica/religiosa do homem, mas a forma como os mitos
e símbolos são elaborados, sendo um produto cultural, contextualizado ao seu período

109
PASCAL, apud MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 9.
110
OLIVEIRA, Cleide Maria de. Vestígios do sagrado na pós-modernidade. NUMEN, Revista de estudos e
pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. II, n. 1 e 2, p. O9-31, 2005. p. 18.
111
Adotamos a palavra micro-lugar e não microlugar porque não há consenso ortográfico. Usamos o termo
para definir espacialidades físicas flutuantes, ou seja, não estáticas. Este micro-lugar pode ser o lar, a igreja, o
trabalho etc.
112
GAUTHIER, 2004, Apud OLIVEIRA, 2005, p. 20.
113
ELIADE, Mircea. Mito e a realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 164, 165.
114
ELIADE, 2010, p. 170.
28

histórico. Neste sentido, o lugar funciona como o laboratório, onde são fabricados estes
mitos, símbolos e heróis.

Esta elaboração simbólica construída em diversos micro-lugares constitui um


imaginário simbólico bastante denso e abrangente que redundará numa territorialidade difusa
e complexa. Diante disto, precisamos analisar a territorialidade como uma instância de poder
que se constrói, primariamente, a partir de um indivíduo em busca de identidade e de sentido
num mundo globalizado e massificante.

3. 2: Os paradigmas simbólicos pós-modernos e os conceitos de territorialidade e


território

O território dá visibilidade ao sentimento de identidade, caracterizado por memórias,


lembranças, afetos, que são construídos nos “lugares, ‟nas porções‟ da natureza em que estão
enraizados os seus potenciais (...) e a sua relação tecida entre a história e o espaço fornece
uma base aparentemente material á identidade: ela lhe proporciona um território” 115. Sendo
assim, o território é um ancoradouro de identidades. Por isto, a identificação com o espaço é,
notadamente, simbólica, uma vez que é gerada subjetiva/afetivamente e não
objetiva/racionalmente. Isto é evidente pelo fato de um mesmo lugar116 despertar diferentes
sentimentos naqueles que residem ali, mas todos os sentimentos e afetos são construtores
desta identidade ou identificação com o lugar.
A formação do território, então, é uma decorrência deste processo identitário forjado
no lugar (categoria geográfica a priori), que é um espaço simbólico, mítico, sagrado,
representativo. A identidade do grupo social, desta forma, não é estruturada objetivamente,
mas mediada pela presença de mitos, histórias, memórias etc. É este sentimento identitário
elaborado no lugar que confere uma territorialidade, que se consuma na ordenação do
território.
Um exemplo interessante da presença do mítico/simbólico na estruturação de
territórios recentes é a construção de Brasília (capital do Brasil). Percebe-se nela a presença
de vários elementos simbólicos, pois o plano piloto da cidade, muitas vezes, é comparado
“com a forma de um pássaro ou de um avião. As asas norte e sul são zonas residenciais e o

115
MARTIN, 1994, Apud CLAVAL, Paul. O território na transição da pós-modernidade. Revista GEOgraphia,
Rio de Janeiro, Ano 1, Nº 2, p. 7 – 26,1999.
116
O lugar é a categoria privilegiada em nossa pesquisa, onde os símbolos, os mitos e os heróis são forjados.
29

eixo monumental leste/oeste é o corpo. Brasília é um pássaro que pousou na terra, uma nova
Jerusalém descendo do céu de Deus”117. Isto sem mencionar que o traçado da cidade é o de
uma cruz, símbolo caro para os cristãos.
Não obstante, pensamos que possa surgir algum questionamento sobre a atualidade do
pensamento mítico/simbólico/religioso, argumentando que as territorialidades das sociedades
tradicionais (antigas) não encontram eco na modernidade e, mormente, na pós-modernidade,
em face do declínio ou pelo desmoronamento das ideologias e filosofias históricas, “sobre as
quais repousavam as sociedades ocidentais”118. A isto poderia ser acrescentado o fato de que
na pós-modernidade, a fragmentação histórica, a sociedade líquida, a rejeição do absoluto e da
tradição são marcas evidentes. Neste sentido, haveria na pós-modernidade, “pouco esforço
aberto para sustentar a continuidade de valores, crenças ou mesmo de descrenças”119.
Diante deste quadro de incertezas, pensava-se, inclusive, que as culturas locais, as
tradições, os mitos seriam diluídos na cultura globalizante de viés econômico-político. E neste
sentido, muitos julgaram que o desaparecimento da maior parte dos traços que promoviam a
infinita variedade do mundo tradicional anunciasse a erosão das diferenças culturais, mas “o
que se observa hoje são sociedades onde os problemas de identidade são mais envolventes do
que nunca”120.
Atualmente, percebe-se, claramente, discursos e movimentos identitários em várias
partes do globo, que buscam fugir do “contágio dos modos de pensamento que se condena, do
jeito arrebatador de comportamentos e atitudes que reprovamos moralmente, da poluição á
qual nos expomos ao permanecermos em ambientes impuros”121. Tais discursos revelam a
construção de elementos míticos/simbólicos/religiosos expressos em palavras como
comportamentos, moralmente, impuros, que são valores absolutos, recheados de religiosidade.
O que dizer dos nacionalismos e regionalismos evidenciados na criação de partidos políticos
de viés nacionalista e intolerantes á presença de elementos estrangeiros (xenófobos)? Tudo
isto indica uma reação à cultura globalizante e massificante. Observa-se que

numerosos setores sociais se refugiam nas trincheiras de identidade construídas em


torno de sua experiência e de seus valores tradicionais: sua religião, sua localidade,

117
TUAN, 1980, p. 198.
118
CLAVAL, 1999, p. 20.
119
OLIVEIRA, 2005, p. 18.
120
CLAVAL, 1999, apud DEUS, José Antônio. Linhas interpretativas e debates atuais no âmbito da Geografia
Cultural, universal e brasileira. Caderno de Geografia, Belo Horizonte, v. 15, n. 25, p. 45-59, 2005. p. 46.
121
CLAVAL, Paul, 1999, p. 22.
30

sua região, sua memória, sua nação, sua cultura étnica, seu gênero ou, em algumas
ocasiões, sua opção identitária, constitutiva de um sistema de valores alternativos 122.

Sendo assim e admitindo que a territorialidade apresenta-se como a “tentativa de um


indivíduo ou grupo de influenciar, afetar, controlar objetos, pessoas e relacionamentos pela
delimitação e pela afirmação de seu controle sobre uma área geográfica"123; fica evidente que
esta instância de poder e dominação transcende a questão temporal e espacial, sendo uma
experiência não circunscrita a períodos históricos e espacialidades. É uma experiência
humana inata, senão como poderíamos justificar o fato de que, atualmente, identificamos
grupos de jovens e adolescentes que se organizam “em gangues e tentam assegurar o controle
exclusivo de territórios que eles defendem contra a penetração de vizinhos”124. O que se
percebe é que “no imaginário das gangues, os espaços da cidade se configuram enquanto
locus de disputas, confrontos e delimitação de posses”125. Tal comportamento remonta às
sociedades camponesas tradicionais, onde “os jovens também lutavam, aldeia contra aldeia,
para se afirmar, provar sua virilidade e mostrar sua capacidade de se impor frente aos
outros”126. Estas gangues127 da pós-modernidade relembra o comportamento de cangaceiros,
na região nordeste do Brasil, em tempos idos.
Na pós-modernidade, esta construção simbólica com vistas à dominação de certa
espacialidade (território), se apresenta de forma bastante líquida e dinâmica. Senão vejamos
os casos dos bailes Funks ou de Hip Hop nas grandes cidades, que tem uma visão de
território, “quase sempre delimitada pela violência, seja como luta de contrários, „dos ricos
contra os pobres‟, relatada pelo Hip Hop; seja pela guerra entre áreas de turmas rivais,
protagonizadas pelas gangues”128. O que dizer, ainda, das questões ligadas à intolerância
religiosa, experiência antiga, mas reeditada recentemente nas favelas do Rio de Janeiro,
quando pais e mães de santos foram “expulsos de favelas da zona norte pelo tráfico”129. Sendo
que em algumas destas favelas, houve o fechamento dos terreiros e a “proibição do uso de

122
CASTEL, 1998, apud DEUS, 2005, p. 53.
123
SACK, 1983, p. 56 apud HOLZER, Werther, 1997, p. 82.
124
CLAVAL, 1999, p. 18.
125
DIÓGENES, Glória Maria dos Santos. Cartografias da cultura e da violência: Gangues, galeras e o movimento
hip hop. Uma tese de doutorado apresentado ao departamento de pós-graduação da UFCE, Fortaleza, 1998. p.
207.
126
CLAVAL, 1999, p. 18.
127
A dissertação “Cartografias da cultura e da violência: Gangues, galeras e o movimento hip hop” é uma
pesquisa interessantíssima para se entender a lógica das territorialidades das gangues urbanas. O eixo da
pesquisa buscou identificar o imaginário das gangues acerca da violência e suas construções culturais e dentre
estas, a ideia de territorialidade.
128
DIÓGENES, 1998, p. 200.
129
IMPLACÁVEL, Dom. A intolerância Religiosa nas favelas do Rio de Janeiro. Disponível em:
<https://jornalggn.com.br/fora-pauta/a-intolerancia-religiosa-nas-favelas-do-rio-de-janeiro>. Acesso em: 18 de
jul. 2016.
31

colares afro e roupas brancas”130. Todos estes fatos demonstram a presença do simbólico no
estabelecimento de territorialidades e neste sentido, para haver a dominação de determinado
território precisa haver a construção/desconstrução/reconstrução do simbólico/sagrado.
A criação dos estados nações (espaços delimitados política e juridicamente), na
modernidade, demonstra, também, como a territorialização é fruto de uma elaboração
mítica/simbólica, que incorpora os sentimentos de “pertencimento e de territorialidade”131,
demonstrada através de símbolos nacionais como a bandeira, o hino, a língua, a história
comum. Não obstante, a riqueza simbólica dos territórios-nações, a globalização atual gera
um clima de desassossego em face da possibilidade de uma desterritorialização, através da
absorção de culturas locais e regionais, substituindo-as por uma cultura-mundo.
Entretanto, a ideia de uma desterritorialização(em face da globalização
política/econômica/cultural) parece ingênua, pois “o mundo não está nem des-espacializado,
nem desterritorializado. Primeiro, porque a aparente desmaterialização ou perda de referência
espacial nas relações sociais indica, na verdade, quase sempre, uma condensação/densificação
geográfica das relações (...)”132. Portanto, esta fluidez dos territórios demonstra que a sua
delimitação é fruto de uma territorialidade que privilegia os aspectos qualitativos dos lugares
míticos/simbólicos. E neste sentido, não está havendo desterritorialização na pós-modernidade
e sim multi-territorialização, mas igualmente construída a partir de territorialidades fundadas
nos mitos/símbolos pós-modernos, construídos a partir dos micro-lugares (escola, igreja,
família, trabalho etc).

3. 3 – Os paradigmas simbólicos pós-modernos e a ideia de território-mundo


Observamos ao longo da história que os mitos não morrem, são apenas ressignificados
pelas novas gerações. As experiências humanas são as mesmas: nascer, trabalhar, sofrer, gerar
filhos, sonhar, casar, morrer etc. Os sentimentos, também, são os mesmos: medo, saudade,
amor, ódio, alegria, tristeza etc. Logo, os mitos são os mesmos, também, e vão ser as
respostas para as necessidades humanas: cura, libertação, fertilidade, saúde, força,
imortalidade, transcendência etc.
Fica evidente que o homem tem aspirações que vão além das suas necessidades
fisiológicas imediatas, isto se deve ao fato do homem não viver “num universo puramente
físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte, a religião são partes deste

130
IMPLACÁVEL, 2016.
131
CLAVAL, 1999, p. 19.
132
HAESBAERT, Rogério. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 19,
n. 1, p. 11 – 24, 2003. p. 20.
32

universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência
humana”133.
A pergunta que se faz, na pós-modernidade é: se é possível produzir uma cultura que
represente toda a humanidade, ou seja, será que os mitos, símbolos e heróis são universais?
Entendemos que o pensamento mítico/simbólico é inerente ao ser humano e está presente em
todos os grupos sociais. Mas, “estaríamos vivenciando um processo radicalmente novo de
territorialização, pelo menos no que diz respeito à escala planetária, com a formação de uma
nova identidade territorial (...)”?134 Pensamos que não, especialmente por acreditar que a
identidade territorial é construída a partir da territorialidade, e está só pode ser produzida no
lugar.
Sendo assim, as leis da globalização da economia não são da mesma natureza da
globalização da cultura, exatamente pelo elemento simbólico, que é tecido ao nível do lugar e
não a partir do território, ou seja, a cultura não começa no território, ela, apenas, se torna
visível no território. Neste sentido, julgo por oportuno diferenciar novamente as duas
categorias. “O termo território, de maneira geral, é utilizado para indicar domínio ou gestão de
uma determinada área. Nesse caso, não pode ser confundido com lugar, que pressupõe
afetividade, pertencimento, topofilia (...)”135. Portanto, quando pensamos em globalização
como a “reunião de processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras
nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações” 136, numa perspectiva de
homogeneização econômica e cultural, precisamos esclarecer que tal homogeneização, com
vistas a ideia de um território-mundo, tem enfrentado grandes resistências, senão vejamos:
a) O acesso às demais culturas pode reforçar valores e crenças locais, quando confrontados
com outros modelos culturais, considerados eticamente inadequados para aquele grupo,
fortalecendo assim os laços identitários locais. No Reino Unido, por exemplo, em face da
presença significativa de Africanos e Asiáticos, despertou um racismo cultural, sendo que esta
“atitude defensiva produziu uma „inglesidade‟ (englishness) reformada, um „inglesismo‟
mesquinho e agressivo e um recuo étnico, numa tentativa de escorar a nação e reconstruir uma
identidade que seja una, unificada, e que filtre as ameaças da experiência social”; 137

133
CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica: Ensaio sobre o homem. São Paulo: Mestre Jou, 1977. p. 50.
134
HAESBAERT, Rogério; LIMONAD, Ester. Território em tempos de globalização. etc..., espaço, tempo e
crítica. N° 2(4), VOL. 1, P. 39 – 52, 2007. p. 50.
135
BERTOL, Lurdes Rocha; ALMEIDA, Maria Geralda. Cultura, mundo-vivido e território. IN; Simpósio
Nacional sobre Geografia, Percepção e Cognição do Meio Ambiente, Londrina: Universidade Estadual de
Londrina, 2005, p. 01 – 13. p. 10.
136
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 67.
137
HALL, 2006, p. 85.
33

b) Outro foco de resistência a ideia de um território mundo trata-se do “recrudescimento de


regionalismos e nacionalismos de ordem político-cultural – enquanto movimentos pelo menos
parcialmente contra-globalizadores”138.Fato este verificado no fortalecimento de partidos
políticos com viés nacionalista, sobretudo, na Europa Ocidental.
Portanto, a proposta de um território-mundo, ainda desperta muita resistência,
sobretudo, por não se saber, exatamente, quais as estruturas políticas e econômicas que vão
geri-lo. Não estaria este território-mundo aliançado com as elites econômicas do mercado?
Não seria um território-mundo a serviço dos países ricos?

138
HAESBAERT, Rogério; LIMONAD, Ester, 2007, p. 48.
34

CONCLUSÃO
Levando em consideração tudo que foi escrito até aqui e caminhando para o
encerramento desta pesquisa, precisamos nos perguntar se o problema levantado pela pesquisa
foi solucionado, ou seja, se a concepção mítica de lugar sagrado vai estabelecer
territorialidades em qualquer circunstância histórica e cultural. Também não deve ser
esquecido que esta pesquisa se propôs a demonstrar como os mecanismos simbólicos,
presentes no lugar, constroem as territorialidades. E nesse sentido, precisa ser respondido se
tal objetivo foi alcançado.

Analisando a produção textual de forma global, percebemos que a estruturação dos


capítulos procurou contemplar o problema de pesquisa expresso no tema, bem como, buscou
explicitar os mecanismos simbólicos responsáveis pela elaboração da territorialidade. Desta
forma, o capítulo primeiro demonstrou que a categoria geográfica lugar é o espaço de
manifestação do sagrado, sobretudo por que esta hierofania é interpretada pela subjetividade
do sujeito e esta experiência só é possível a partir do lugar onde este sujeito
mora/vivencia/experiencia, enfim, onde sua cosmovisão é estruturada. Corroborando a ideia
de que, somente, na categoria lugar o sagrado se manifesta, ficou esclarecido que o território
não é o espaço de manifestação do sagrado, dado a sua estruturação e extensão e seu caráter
impessoal (jurídico/político).

O capítulo primeiro serviu, também, para definir o lugar como única possibilidade de
manifestação do sagrado e de onde se estrutura os mecanismos simbólicos que forjam a
territorialidade. A manifestação do sagrado/simbólico/mágico no lugar cria uma esfera de
poder e domínio de determinado grupo social sobre dada espacialidade, isto é territorialidade.
E é a partir desta territorialidade que se configura (legitima) o território. Diante disto, o
capítulo primeiro responde em parte o problema de pesquisa, mostrando que é na categoria
geográfica, lugar, que se manifesta o simbólico/sagrado/mágico, construindo territorialidades.
Entretanto, esta elaboração simbólica está centrada na presença de mitos, heróis e deuses na
cultura dos povos da antiguidade e, portanto, precisa ser demonstrado se esta elaboração
simbólica/mítica ainda perdura em tempos modernos e pós-modernos, marcado pelo avanço
da racionalização científica, bem como, a dessacralização e desencantamento do mundo. O
capítulo primeiro, neste sentido, não responde a essa última questão139.

139
O capítulo três cuida de resolver esta questão.
35

Enquanto está questão permanece em suspense, no capitulo dois é estabelecido a


fundamentação teórica (conceitual) de territorialidade a partir do lugar sagrado, onde a
territorialidade é a instância de poder, que se materializa na estruturação do território,
deixando claro que ela é fruto de uma ideia legitimadora construída simbolicamente no lugar
sagrado. Neste capítulo, fica demonstrado que o conceito mítico de lugar sagrado é
fundacional para a noção de territorialidade, fato observado com clareza nas sociedades
arcaicas, especialmente na configuração das cidades. Desta forma, a maneira mais segura de
interpretarmos a distribuição e ocupação do espaço na antiguidade e a “partir da experiência
religiosa”140, ou seja, através das manifestações do sagrado.

Avançando para o fim da nossa pesquisa, o capítulo três se propôs em mostrar a


atualidade da leitura simbólica do espaço, demonstrando que ela é atemporal e que os deuses,
mitos e heróis subsistem na secularizada pós-modernidade. A categoria lugar continua sendo
indicada como espaço onde são construídas as territorialidades, não obstante sua
dinamicidade, em face da globalização, dos modernos meios de comunicação e da velocidade
dos meios de transporte. Os lugares permanecem sendo o espaço da manifestação do
sagrado/mítico/mágico/religioso, demonstrando que o lugar é caracterizado, sobretudo pela
qualidade das relações (afetos, lembranças, memórias) e não, somente, pela sua localização
geográfica. Desta forma, este capítulo conclui a segunda questão do problema de pesquisa,
que é a atualidade do processo simbólico produzido nos lugares sagrados e a decorrente
geração de territorialidade.

Sendo assim, ficou demonstrado que os mecanismos simbólicos subsistem no lugar


sagrado, ainda que travestidos e ressignificados, porque o homem sempre está buscando
significar o espaço de suas vivências, bem como, fornecer sentido para sua vida. Neste
sentido, percebemos na nossa pós-modernidade vários fenômenos sociais (as Raves, as
Gangues de jovens, por exemplo) associados a esta busca de identidade do homem
contemporâneo, especialmente em face da proposta de globalização da cultura. Sabemos que
os processos identitários são construídos a partir de um simbólico comum ao grupo (língua,
origem social, memórias, mitos, heróis) e, atualmente, são a força motriz da territorialidade. A
fragmentação e a descontinuidade da pós-modernidade alavanca o sentimento identitário, ou
seja, o indivíduo sente a necessidade de se achar, se localizar, se descobrir. Neste sentido ele
precisa dos velhos símbolos, das tradições, das memórias coletivas, do sentimento de

140
ROSENDAHL, 1996, p. 18.
36

pertencimento, do sagrado, do transcendente. Os mitos, somente, trocam de roupa, porque a


busca do humano é a mesma: o desejo de transpor a dura realidade de sua finitude.

Entendemos, também, que ficou explícito ao longo da pesquisa como os mecanismos


simbólicos, presentes no lugar, constroem as territorialidades (sendo este o principal objetivo
do trabalho). O debate acerca dos lugares sagrados evidenciou o tempo todo que os processos
simbólicos são inerentes ao ser, pois não é da natureza do homem se estruturar e se conduzir
“num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte, a
religião são partes deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia
emaranhada da experiência humana”141.

Por fim, sem querermos ser pretensiosos, acreditamos que a proposta da nossa
pesquisa acerca do processo simbólico/sagrado na construção da territorialidade, goza de
razoável credibilidade. Pensamos que esta abordagem é original e apropriada, uma vez que a
territorialidade não é uma decorrência do território, mas a causa do território. Assim, são os
processos simbólicos que são os responsáveis por toda territorialidade, que desembocará na
estruturação do território. Se isto é verdade como estamos pontuando, acreditamos que a
distribuição espacial de uma sociedade precisa ser interpretada, primariamente, a partir dos
aspectos culturais e, somente num segundo momento, pelos determinismos geográficos,
políticos e econômicos. Novas pesquisas, mais aprofundadas, merecem ser feitas neste sentido
e, quem sabe, encontraremos respostas interessantes para as questões ligadas à violência
urbana, à intolerância religiosa e à segregação econômica de nosso País.

141
CASSIRER, 1977. p. 50.
37

REFERÊNCIAS

BERTOL, Lurdes Rocha; ALMEIDA, Maria Geralda. Cultura, mundo-vivido e território. IN;
Simpósio Nacional sobre Geografia, Percepção e Cognição do Meio Ambiente, Londrina:
Universidade Estadual de Londrina, 2005, p. 01 – 13.
BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDHAL,
Z. (Orgs.). Geografia cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p.83-131.

BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.


CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica: Ensaio sobre o homem. São Paulo: Mestre Jou,
1977.
CASTILHO, Maria Augusta. Cristianismo e territorialidade. Os espaços sagrados no
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