Fernanda Vale
Fernanda Vale
Fernanda Vale
RESUMO:
O presente artigo tem por objetivo pensar as práticas de magia erótica na América
Portuguesa no período colonial, analisando, sobretudo, a ação do Santo Ofício da
Inquisição no Estado do Grão – Pará e Maranhão. Utilizaremos como aporte teórico
leituras relativas à História das Mentalidades, a fim de perceber a compreensão mágica
do cotidiano e da sociedade para a população daquele território português em meados
do século XVIII. Centralizaremos nossa análise na figura de Maria Joanna de Azevedo,
feiticeira que vai se confessar a Mesa da Visitação do Grão – Pará em 1766 e que, a
partir de seu depoimento, deixa registrado o uso de inúmeras orações e sortilégios para
fins de conquista amorosa, o que revela aspectos interessantes do imaginário religioso
da região no período.
PALAVRAS – CHAVE: Feitiçaria amorosa; Inquisição; Grão – Pará.
Introdução:
*
Graduanda do curso de História da Universidade Federal do Maranhão.
é, de acordo com a documentação até agora encontrada, a última das visitas do Santo
Ofício português ao ultramar, sendo também a mais demorada.
É importante ressaltar que nesse momento histórico Portugal estava sob o
comando de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que realizou
inúmeras reformas no Estado português e em suas Colônias a fim de implantar o
mercantilismo, dinamizar o comércio e assegurar nas mãos do Estado o poder
econômico e territorial nas terras ultramarinas.
Podemos pontuar quatro medidas da política pombalina que estão
diretamente relacionadas ao nosso estudo da Visitação em Belém. São elas: a expulsão
dos jesuítas em 1759 e a determinação de ocupar os espaços deixados por eles no campo
econômico, político e religioso (CAMPOS, 1995, p. 131); o tratamento que Pombal
dispensava aos cristãos – novos, não mais perseguindo-os, mas vendo neles membros
importantes do comércio mercantil português; a preocupação em delimitar o território
lusitano no Norte a partir do Tratado de Madri assinado com a Espanha
(MAGALHÃES, apud CAMPOS, 2010, p. 121); e o uso que a Inquisição passou a ter
para reforçar o poder do Estado, funcionando como um Tribunal Régio que punia e
torturava, muitas vezes, de acordo com as disposições do Marquês, e que tinha como
Inquisidor – Mor o irmão deste (NOVINSKY, 1997, p. 47).
Para além desses fatores, é interessante colocar ainda que nesse período a
Inquisição já estava em declínio em Portugal (AMARAL LAPA, 1978, p. 27). A
perseguição aos judeus e aos pactos demoníacos tinha diminuído e as penas estavam
mais brandas, as torturas foram condenadas e os autos – de –fé públicos extinguidos
(NOVINSKY, 1997, p. 47). Porém, isso não foi motivo para que os habitantes do
Estado do Grão – Pará e Maranhão não se apresentassem à Mesa de Visitação, levando
perante o inquisidor Giraldo José de Abranches as mais variadas culpas a serem
delatadas ou confessadas. Como coloca José Roberto do Amaral Lapa no texto de
apresentação do Livro da Visitação publicado em 1978 (AMARAL LAPA, 1978, p.
28), a sombra da Inquisição ainda imprimia temor em sua ação numa colônia, servindo
como instrumento da Igreja e do Estado para disseminar a disciplina e a submissão.
Segundo o historiador Yllan de Matos (MATOS, 2009, pp. 117 – 118),
estava entre os principais objetivos da Inquisição no norte do Brasil o de conhecer a
população e doutriná-la na eqüidade da fé Católica, remediando a pregação feita pelos
que fora comissionado como vigário capitular; e pelo declínio do próprio Santo Ofício
na Metrópole. (Idem, pp. 62 – 89)
Contudo, ou até mesmo por já terem conhecimento da morosidade das
penas, algumas pessoas ainda vieram se confessar tendo a Mesa já sido instalada a um
bom tempo. É o caso de Maria Joanna de Azevedo, que vêm apresentar-se ao inquisidor
em 1766, três anos após a chegada da Visitação ao Grão – Pará. Segundo a depoente,
ela vem confessar seus pecados por ter se arrependido e para “desencargo de
consciência”. De acordo com Amaral Lapa, “mesmo que depois do tempo da graça, se
mostrasse real arrependimento, a pessoa seria tratada benignamente.” (Idem, p. 69)
De fato, a pena inicial de Maria Joanna foi leve, pois ficou decidido que
deveria voltar diariamente até a presença do inquisidor ás oito horas da manhã, com
exceção dos feriados, ficando sob arbítrio dele quando estaria liberada. (LIVRO DA
VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO AO ESTADO DO GRÃO –
PARÁ, 1763 – 17691, fls. 178 – 189)
Essas penas brandas, reflexo do afrouxamento da Inquisição, também
encontram motivo na pobreza da maioria dos implicados e no fato de grande parte dos
crimes serem relativos à feitiçaria. Como afirma Francisco Bethencourt
(BETHENCOURT, 2004, p. 10), a feitiçaria sempre fora considerada como um caso
menor no rol dos crimes de fé, perdendo em importância para os inquisidores diante do
judaísmo, islamismo e protestantismo.
Porém, na sociedade paraense do período a crença nos poderes mágicos
dos feiticeiros era ampla, tanto que boa parte da população fora arrolada nas confissões
e denúncias, fosse como praticante, cliente ou testemunha nos casos de feitiçaria. Eram
realizados feitiços para curar, para adoecer, para encontrar coisas e pessoas, para
aproximar casais e até mesmo para afastar governadores, como atestou a índia Sabina,
que atuava fazendo contra – feitiços. Segundo ela, o governador já falecido José da
Serra teria feito um para seu sucessor João de Abreu Castelo Branco. (SOUZA, 2009, p.
233)
É nesse contexto que emerge o já citado depoimento de confissão de
Maria Joanna de Azevedo, figura singular pelo vasto número de orações e sortilégios
amorosos que conheceu e praticou ao longo de sua vida em busca de relacionamentos.
1
A partir de agora mencionaremos o LIVRO DA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO
AO ESTADO DO GRÃO – PARÁ apenas como LIVRO DA VISITAÇÃO.
Sua trajetória foi singular também pelo arrependimento que professou ter, motivado por
um remorso que lhe gerou diversos sonhos com anjos, procissões celestiais e até mesmo
com o próprio Cristo, fatores que aliados a morte de uma filha lhe fizeram buscar a
confissão como meio de perdão para os muitos pecados que cometera.
Também podemos citar esta outra oração amorosa proferida por Maria
Joanna:
Fulano, com dois te vejo, com cinco te mando, com dez te amarro, o
sangue te bebo, o coração te parto. Fulano, juro-te por esta cruz de
Deus que andes atrás de mim assim como a alma anda atrás da luz,
que tu para baixo ires, e vires, e em casa estares, e vires por onde quer
que estiveres não poderás comer nem beber, nem dormir,nem sossegar
sem comigo vires estar e falar. (IANTT, Inquisição de Lisboa,
processo n. 2704 apud SOUZA, 2009, 307)
depois de voltar da encruzilhada onde realizara mais um de seus rituais – os quais já não
se mostravam mais eficazes, segundo ela -, deitou–se numa rede, dormiu teve um sonho
místico, cuja inspiração atribuiu ao Espírito Santo. Nesse sonho vira o céu aberto como
uma grande sala azul e iluminada, onde se congregavam pessoas de roupas coloridas ao
som de vários e bem orquestrados instrumentos musicais. Ao despertar, sentiu – se
motivada a mudar de vida, prometendo a Deus e a Virgem Maria não mais rezar as
orações de conquista nem manter “tratos ilícitos” com os homens, o que cumpriu nos
últimos três anos que antecederam sua confissão. (LIVRO DA VISITAÇÃO, fl. 185)
Após esses fatos, Maria Joanna resolveu se confessar e mudar-se para a
casa de sua prima, na área rural, levando consigo seus três filhos. A morte prematura de
uma das crianças, uma menina, levou Maria Joanna a sentir ainda mais remorso e
tristeza, o que acentuou a quantidade de sonhos e desejos, como o de saber onde se
encontrava a filha falecida - se no purgatório ou vagando entre os vivos -, e o de ver
Jesus e Nossa Senhora. Movida por esses desejos, Maria Joanna teve ainda outros
sonhos em que via anjos, procissões celestiais e um sacerdote. Em meio à procissão
com que sonhara, pensava estar sua filha, e o sacerdote que vira, acreditava ser Jesus
Cristo. (Idem, fls. 186 – 188)
No final de sua fala, Maria Joanna reconhece perante aos inquisidores
estar em um “estado miserável” e correr o risco da condenação eterna. Tendo ido
procurar seu confessor, este não lhe absolveu e mandou – a ir procurar a Mesa da
Visitação para relatar seus pecados, a fim de obter o perdão. A Mesa elogiou, como era
costume, sua decisão, porém não a absolveu, penitenciando-a a voltar diariamente a
presença dos inquisidores até que “se findasse sua causa” (Idem, fls. 188 e 189). A
penitência, embora leve, provavelmente consistiu em um empecilho para Maria Joanna,
visto que ela morava na Freguesia de Nossa Senhora da Campina e não na capital
Belém, porém, diante da fé e do arrependimento que demonstrava, deve ter considerado
este um sacrifício válido.
Os sonhos de Maria Joanna de Azevedo refletem a manifestação mental
de suas sensibilidades e traumas. Para os inquisidores, certamente, eles não se
configuraram como visões inspiradas por Deus, pois a modéstia, a humildade e a boa
conduta cristã eram elementos essenciais para uma visionária dos céus (PELAZZO;
SABEH, 2007, p. 99). Como Joanna não se enquadrava nesse perfil, seus sonhos
podem, mesmo, ter sido considerados como heresias.
Em sua fala, Maria Joanna deixa transparecer um sincero arrependimento
pelos pecados cometidos e remorso pela morte de sua filha. Desde o relato de suas
orações já é possível perceber a forte influência cristã, a qual é acentuada por seus
sonhos místicos. Em seu depoimento, a feiticeira se mostra uma mulher sempre em
busca de envolvimentos amorosos, usando para isso os mais diversos tipos de conjuros,
sem, contudo, obter muito sucesso, sendo que antes de ter o primeiro sonho, os rituais já
não surtiam mais o efeito esperado. Depois dos sonhos e da morte de sua filha,
encontrava-se constantemente triste, devotando sua fé em Deus e buscando maior
aproximação com a religião oficial para acalmar seu coração e sentir-se em paz.
De acordo com Laura de Mello e Souza (SOUZA, 2009, p. 402 e 403),
“o réu se via numa ânsia de confessar e expiar”, desejando estabelecer um acordo com o
inquisidor, acordo este que seria espelho de um acordo com os céus. Em contra –
partida, para o inquisidor as orações mágicas da ex – feiticeira, poderiam representar um
pacto demoníaco, ao que ela concordou que confiava no Diabo, mas negou ter feito um
contrato com ele. (Idem, p. 415)
Assim, a trajetória de Maria Joanna de Azevedo, revela a busca por um
amor ilícito, comum a muitas mulheres no período colonial. Essa busca foi marcada
pelo uso de feitiços, o que na visão de Maria Joanna era pecado tanto pelo uso das
práticas mágicas, quanto pela procura das aventuras eróticas e românticas a que ela
tanto se dedicou. Prova disso é o remorso pela morte da filha, os sonhos místicos com o
céu, os quais refletem a tentativa de aproximação com o sagrado cristão, e o desejo de
perdão por parte da Igreja.
Considerações Finais:
Jean Delumeau, em seu célebre História do medo no Ocidente
(DELUMEAU, 2009, p. 523), cita que na mentalidade dos eruditos, sobretudo os da
Igreja, a mulher era vista como a “metade subversiva da humanidade”, digna de um
medo que culminou com a ferrenha caça às bruxas do início da Idade Moderna. Dois
séculos depois, num momento em que a crença nos pactos demoníacos decaia e a
perseguição às bruxas e feiticeiras diminuía, o imaginário de que as práticas mágicas,
ainda que voltadas para a conquista amorosa, estavam enquadradas no domínio do mal,
oposto ao da Igreja, ainda persistia.
Por isso mesmo, muitos dos usuários desses feitiços buscavam ajuda e
aliança com o demônio e seus agentes a fim de resolverem suas querelas amorosas. Por
outro lado, com a chegada da Visitação ao Grão – Pará, por exemplo, esses feiticeiros se
viam pressionados e/ou arrependidos e se sujeitavam a Igreja, reconhecendo o erro e a
debilidade moral, motivados pelo medo das penas e pela esperança do perdão.
Colocavam-se como servos do poder espiritual dos clérigos, relegando ao contato e
domínio do mundo místico que outrora tinham o lugar da demonização, do pecado e do
desvio moral.
A estratégia de pregação e combate dessas práticas por parte da Igreja
visa, por outro lado, “á manutenção do monopólio de manipulação do sagrado e da
gestão dos bens de salvação” (BETHENCOUT, 2004, p. 242). Além da manipulação do
sagrado, havia a questão da manipulação do corpo, do controle e terror que a Igreja
estabelecia como meio para a salvação da alma.
Apesar desses fatores, a irreverência popular, presente na Metrópole e
nas colônias, se utilizava do Sagrado, das dores de Cristo, da vida dos santos, dos ritos
da própria Igreja e da manipulação da fauna e da flora, dentre outros meios, como
instrumento de feitiçaria e de conquista afetiva e erótica. Burlando as normas da fé e da
moral cristã, essas práticas sincréticas foram e ainda são características do próprio
Catolicismo na religiosidade cotidiana, sobretudo no Brasil.
Desse modo, Maria Joanna de Azevedo se apresenta enquanto mais uma
figura que convive na ambiguidade das leis e costumes religiosos coloniais. Assim
como ela, várias outras feiticeiras e feiticeiros na América Portuguesa subverteram a
moral Católica a fim de solucionar seus problemas. A solução que procuravam não
necessitava da intercessão da religião oficial. Podia ser obtida em casa, na rua, no meio
do mato, em uma encruzilhada à meia noite, por exemplo; necessitava apenas da
cooperação direta da natureza, das almas, dos anjos, santos, de Deus, ou até mesmo do
Diabo, como já sugeria o discurso católico.
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