Reflexões Éticas Sobre Cristianismo e Aborto No Brasil

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REFLEXÕES ÉTICAS SOBRE CRISTIANISMO E ABORTO NO BRASIL:

considerações acerca da discriminalização

Bianca Daébs(*)
Resumo

Este artigo tem o objetivo de propor uma reflexão sobre o aborto relacionando os
argumentos morais do cristianismo ao processo de criminalização do mesmo,
promovendo uma discussão que contribua para uma melhor informação e consequente
reflexão da comunidade acadêmica e da sociedade brasileira acerca do tema. A
metodologia utilizada na elaboração da pesquisa que resultou neste artigo é de cunho
bibliográfico buscando investigar as bases morais que subsidiam a criminalização das
mulheres que abortam no Brasil. No processo de conclusão do trabalho de pesquisa, foi
possível perceber que os argumentos apresentados nos textos investigados, estavam
intrinsecamente relacionados a valores da moral cristã nos moldes como são
interpretados pela igreja e disseminado na sociedade atingindo inclusive seu aparato
legal que criminaliza a mulher que aborta.

Palavras Chave: Aborto. Cristianismo. Ética. Descriminalização.

ETHICAL REFLECTIONS ON CHRISTIANITY AND ABORTION IN


BRAZIL: considerations about decriminalizing

Abstract

The objective of this article is to offer a reflection on the abortion issue which intends
to relate the moral arguments of Christianity to the the abortion criminalization process,
in order to promote a discussion that will contribute to better information, and
subsequent reflection from both the academic community and Brazilian society, about
the decriminalization of abortion in Brazil. The methodology used in preparing the
research that resulted in this article was of a bibliographic nature which sought to
investigate the moral foundations which promote the criminalization of women who
have abortions in Brazil. At the conclusion of the research, it was observed that the
arguments presented in the investigated texts were intrinsically related to Christian
moral values, in the manner that they have been interpreted by the Church and
disseminated in society, reaching even the societal legal apparatus that criminalizes
woman who have abortions.

Keywords: Abortion. Christianity. Ethics. Decriminalization.

Introdução


(*)Universidade Federal da Bahia – UFBA. Faculdade Dom Pedro Segundo – Bahia.

Texto recebido em 18 Ago. 2016. Texto aprovado em: 20 Ago. 2016.


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Propomos nesse artigo uma reflexão sobre os argumentos morais calcados no
cristianismo que contribuem para uma marginalização e consequente criminalização da
mulher que aborta no Brasil com o objetivo de promover uma discussão que contribua
para uma melhor informação da comunidade acadêmica e da sociedade brasileira acerca
da descriminalização do aborto no Brasil.
Iniciaremos esta discussão citando a fala de Ivone Gebara “Não conheço o
aborto, conheço mulheres que abortam” 1 . Gebara é uma Freira Católica Romana
pertencente a Congregação das Irmãs de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho
e Professora de Filosofia que dedicou uma parte significativa de seu ministério pastoral
ao cuidando de mulheres nordestinas empobrecidas, que quando se viam em situações
de desamparo social e afetivo eram cuidadas e consoladas pela freira e outras irmãs. O
cuidado com as mulheres que abortavam sem impingir sobre elas culpa ou pena aliada
a denúncia de omissão do Estado em casos que era de saúde pública fez com que sua
Igreja lhe colocasse por três vezes em silêncio obsequioso. Isso significa que se não
quisesse ser expulsa da sua congregação, por imposição da Igreja Católica Apostólica
Romana, deveria ficar calada sem ministrar aulas de filosofia, sem proferir palestras ou
entrevistas que fizesse referência ao tema do aborto.
Tempos depois de cumprir sua pena fazendo um doutorado fora do Brasil que
resultou na produção e publicação de seu livro “Rompendo o Silêncio: Uma
fenomenologia do Mal” Ivone concedeu á revista do Instituto Humanitas da Unisinos
uma entrevista em que discute a descriminalização do aborto. E quando perguntada
sobre em que sentido ela se posicionava a favor do aborto, respondeu:
Antes de responder diretamente a essa questão, gostaria de dizer que é
preciso falar da descriminalização e da legalização do aborto. O aborto ainda
é crime e criminaliza sempre a mulher, quando, muitas vezes, a escolha por
fazê-lo não é dela. Sou a favor da descriminalização e da legalização do
aborto porque acho que existem certos problemas que não resolvemos
apenas apelando para os bons princípios. O aborto traz uma dor imensa, ou
seja, não é uma ação tranquila. Mas deve ser uma opção em certas situações,
como em casos de violência, de abuso sexual, e, de maneira especial, em
relação às mulheres mais pobres. Essa é a bandeira que eu levanto. Não é
que a legislação pelo aborto precise ser limitada às mulheres pobres. É que
as mulheres de classe A, quando decidem fazer aborto, simplesmente fazem,
enquanto que as mulheres pobres, quando optam por ele, são vítimas do


1
Essa afirmação foi feita por Gebara em uma conversa em off a um jornalista que publicou na revista
VEJA. Gebara comenta o caso em entrevista á Revista Humanitas da UNISINOS disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511796-uma-clara-opcao-pelos-direitos-das-mulheres-entrevista-
com-ivone-gebara. Acessado em 05/11/2012.

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próprio ato. Nesse sentido, os casos de mortalidade materna são muito
grande2.
Fazemos menção a este caso para ilustrar o fato de que no século XX e ainda
hoje no século XXI o aborto é tema-tabu em uma sociedade eticamente cristianizada e
patriarcalmente articulada. Neste contexto o aborto é discutido tomando-se por
princípios valores extremamente dicotomizados, onde os argumentos esbarram numa
estrutura maniqueísta que transforma um problema social na luta do bem contra o mal,
do verdadeiro contra o falso, da justiça contra a insensatez. Além disso, para um
determinado grupo de pessoas para quem a alteridade se constitui numa tarefa dantesca
a proposta mais viável para resolver o problema endêmico do aborto no Brasil faz da
“última rácio” sua primeira opção. A cadeia que não acolhe, não corrige, não
ressocializa nem conscientiza é legalmente o destino das mulheres que abortam.
Pensamos que já é tempo de falarmos sobre o aborto com um pouco mais de
seriedade, trazendo para o centro da discussão argumentos, fatos e dados que
possibilitem um debate mais maduro sobre o tema em nossas comunidades a fim de que
tal debate respingue nas políticas públicas diretamente relacionadas à saúde e educação.
Assim, apresentamos neste trabalho uma breve análise acerca do conceito de
aborto e suas principais vertentes, em seguida faremos uma abordagem sobre a estreita
relação entre ética e moral, a fim de demonstrarmos em que local se insere a discussão
sobre o aborto possibilitando uma perspectiva crítica acerca da criminalização do
aborto no Brasil

O Conceito de Aborto

Segundo Parreira (1993, p 47-64) A palavra “aborto” tem sua origem do latim
“abortus” e significa privação de nascimento porque vem de “ab” que quer dizer
privação, e “ortus” nascimento. Mas, para a comunidade acadêmica especializada o
preciosismo conceitual entra em cena e alguns teóricos argumentam que o correto seria
a utilização da palavra abortamento como sendo a ação que gera o aborto. Todavia, para
outra parte dos teóricos e para a grande maioria da população a palavra “aborto” traduz
de modo claro o processo de interrupção da gestação. Como neste artigo não nos
propomos a uma discussão exclusivamente conceitual continuaremos utilizando a
palavra aborto como definida por Parreira, aceita e utilizada pela maioria das pessoas
em nossa sociedade.


2
Idem

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Dentro da comunidade que discute temas relacionados à saúde a definição
etimológica como a que acabamos de citar é necessária, mas não é suficiente porque
ela define, mas não caracteriza o aborto, assim sendo, entendemos ser importante
apresentar uma conceituação clássica do aborto que tende a representar um consenso
para a maioria das correntes filosóficas, médicas e religiosas. Esta definição seria:

A expulsão ou extração de toda ou qualquer parte da placenta ou das


membranas, sem um feto identificável, ou de um recém-nascido vivo ou
morto, que pese menos de quinhentos gramas. Na ausência do conhecimento
do peso, uma estimativa da duração da gestação de menos de vinte semanas
completas contando desde o primeiro dia do último período menstrual, Pode
ser utilizada. ( Abel 1980, p 99)

Ou ainda do ponto de vista médico o aborto pode ser compreendido como sendo
“a interrupção até a 20ª ou 22ª semana, ou quando o feto mede 16,5 cm.” Segundo
Rosas (1996, p 15) esse conceito foi formulado baseado na viabilidade fetal extra-
uterina e é mundialmente aceito pela literatura médica. De modo particular
Almeida/Diniz (1998) ressalta que na perspectiva estritamente médica, obstétrica do
aborto, a palavra é reservada para interrupção da gestação até 24 semanas de gravidez,
ou seja, até a ocasião em que o feto passa a se tornar capaz de vida independentemente
do útero materno, daí em diante segundo as autoras, o fato passaria a se chamar parto
prematuro. Elas seguem comentando que a rigor não há uma diferença substancial entre
o aborto e o parto prematuro, salvo a exigência que a lei faz de que, para denominar-se
algo como aborto é indispensável que tenha ocorrido a morte do nascituro, a vida do
qual é o valor a ser juridicamente preservado.
No contexto da Bioética Reiche, (apud PESSINI E BARCHIFONTAINE, 2008)
explica que o aborto espontâneo refere-se à interrupção espontânea da gravidez antes
da viabilidade (em torno de 25 a 26 semanas de gestação). As interrupções de gravidez
após essa época são chamadas de partos precoces, ou no caso de um feto que já morreu,
parto de natimorto. Já no caso de um aborto induzido (provocado) é diferente. Neste
caso, o autor explica que a viabilidade não é ponto chave. Qualquer interrupção de
gravidez por meio de técnicas médicas ou cirúrgicas denomina-se aborto, independente
do estágio.
Além desses conceitos que já atestam algumas diferenças quanto ao tempo e ao
método de identificar o aborto, ainda existem outros que divergem ou se aproximam
mais desses aqui apresentados. Todavia, devemos ressaltar que tais conceitos podem
ser alterados com a variação espaço temporal permitindo uma maior adequação destes

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ás novas circunstancias como as que são promovidas pelo encontro da ciência com a
tecnologia permitindo que um prematuro limítrofe tenha hoje maiores chances de
sobrevivência extra-uterina do que tinha a uma década atrás; ou que um feto possa ser
gerado fora do útero materno fruto de outra matriz genética que não necessariamente o
encontro do espermatozoide com o ovulo. Como é possível observar não há consenso
nem entre os especialistas sobre uma definição tácita acerca do que é o aborto o que
torna o espaço dessa discussão ainda mais instável.
Os abortos são, via de regra, classificados em espontâneo que é compreendido
como aquele que acontece proveniente de causas naturais. E, o aborto provocado ou
induzido que é aquele que acontece pela intervenção especial do ser humano.
O aborto provocado pode ter várias motivações e em decorrência delas eles
sofrem outras classificações como as que citaremos a seguir: indicação médica ou
terapêutica quando o aborto é provocado para salvaguardar a vida ou a saúde da mãe;
indicação eugênica, quando o aborto ocorre em função de uma doença no feto que
comprometerá sua existência, como no caso dos fetos anencéfalos; indicação
socioeconômica, quando não se tem condições de prover a existência de mais uma
pessoa, por pressão social quando os valores morais rígidos não comportam a
convivência com uma mãe solteira. Por indicação ética quando o aborto é indicado em
decorrência de um estupro ou incesto entre outros.
Em muitos lugares nenhum tipo de aborto é bem visto, nem mesmo aqueles que
ocorrem espontaneamente, pois entendem que uma mulher que não procria perde a
razão para a qual foi criada, ou seja, “a reprodução”, de um modo menos tenso a
“maternidade” para essas pessoas, parir não é uma escolha, e sim um dever. Nessas
comunidades as mulheres que não parissem eram consideradas amaldiçoadas, secas e
impuras.
Em outras sociedades que se entendem mais avançada o aborto é permitido em
alguns casos como os que colocam em risco a vida da mulher, ou em caso de estupro
por exemplo. Mas, o aborto humanizado, onde a mulher tem o direito de decidir
livremente pela interrupção da gestação tendo acesso a acompanhamento médico,
social e psicológico como política de saúde pública ainda é um ponto polêmico
principalmente em países como o Brasil que ainda tem forte influencia da moral cristã
que entende o aborto como um atentado contra a vida humana e que quem o pratica
comete mais que um crime, um pecado mortal.

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O Aborto e a questão Ética

Agora que já temos certo conhecimento sobre as principais concepções do que


seja aborto e suas classificações vamos adentrar na discussão acerca dos motivos que
torna esse um tema tão polêmico e ao mesmo tempo tão pouco discutido em nossa
sociedade. Assim faremos uma breve consideração sobre a relação que se estabelece
entre ética e moral a fim de justificar a inserção dessa discussão no campo da ética.
Para alguns autores ética e moral são sinônimos, mas para a grande maioria
deles ética e moral são coisas distintas embora guardem entre si uma relação intrínseca.
Vazquez (2002) explica que o conjunto de nossos valores (aqueles que herdamos de
nossas famílias, nossa comunidade de fé, nossa escola, da mídia etc) formam nosso
código moral sobre o qual organizamos nossos juízos de valores sobre o que
consideramos certo ou errado, justo ou injusto, verdadeiro ou falso, feio ou bonito etc.
Ocorre porém que nossos valores variam no tempo e no espaço de modo que somos
obrigados a refletir sobre nosso código moral sobre pena de torná-lo inadequado ás
situações concretas. É nesse contexto que se insere a ética como um exercício reflexivo
e não como uma disciplina normativa cujo objetivo é nos dizer o que é certo ou errado.
Ética é a teoria, investigação ou explicação de um tipo de experiência
humana ou forma de comportamento das pessoas, o da moral, considerando
porém sua totalidade, diversidade e variedade . (...) A ética não é uma
disciplina normativa ou pragmática. O valor da ética como teoria está
naquilo que explica e não no fato de prescrever ou recomendar com vistas à
ação em situações concretas. (VAZQUEZ, 2002 p 11)

Recorremos à ética como uma atitude reflexiva exatamente porque em situações


como as que envolve a prática do aborto não há verdades prontas que possam ser
aplicadas ao caso concreto como uma receita a ser seguida. É necessário bom senso, e
respeito pelas diferenças. É preciso informar e discutir o tema de modo que este não
seja um assunto demonizado ou proscrito, sempre analisado de forma simplista,
negando em seu contexto a diversidade implícita na condição humana. Saber de onde
vem os valores que compõe nosso código moral e revisar sua origem a fim de saber se
eles ainda são pertinentes ou não, como nos sugere o filósofo francês Renê Descartes
em sua obra sobre “O Discurso do Método”, pode ser um bom caminho para
avançarmos nesta reflexão.
Parece-nos que a grande polemica sobre a prática do aborto consiste na
preservação da vida, entendida como um bem supremo, uma dádiva divina. E embora
esses argumentos transcendam a discussão moral e adentre outros setores, como o

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jurídico, por exemplo, precisamos pensar sua origem enquanto valor moral para
compreendermos melhor seus impactos sociais.
Vivemos em uma sociedade ocidental altamente cristianizada, de modo
particular podemos citar o Brasil como um dos países que foram colonizado e dominado
pelo predomínio ideológico da Igreja Católica Romana, que foi religião oficial do país
por quase quatro séculos dos cinco que compõe sua existência. Isso significa um capital
simbólico e cultural dos mais fortes, foi tempo suficiente para difundir e sedimentar
valores por inúmeras gerações. Sem contar, que qualquer tentativa de questionamento
desses valores é compreendido como transgressão da ordem natural e,
consequentemente uma violação do sagrado. Sob este aspecto, é possível compreender
melhor o filósofo alemão Karl Marx ao apontar a religião como um ópio que impede o
processo reflexivo que propõe ao indivíduo ser sujeito de sua própria história3.
A vida é o bem supremo a ser preservado! Proclama a Igreja. Mas aí começa
também os primeiros questionamentos. Onde começa a vida? Para a maioria das
pessoas que são contra a pratica do aborto inspirada no magistério da Igreja Católica
Romana prevalece a teoria da hominização 4 imediata afirmando que desde a
fecundação trata-se de um ser humano em processo, pois nesse momento lhe é
infundida a alma humana.
Ocorre que demarcar o princípio da vida é algo muito complicado e, por isso a
Igreja definiu que há vida no espermatozoide, consequentemente, os métodos
anticoncepcionais artificiais como camisinha e contraceptivos são proibidos pela Igreja,
pois impedem o fluxo da vida dizimando milhares delas ao ejacular em outro espaço
que não seja em direção ao útero.
Seguindo a linha dos argumentos teológicos outro problema se dá ao
questionarmos em que momento se dá a infusão da alma neste novo ser. Alguns
teólogos afirmam que ela ocorre no momento da concepção, mas como precisar esse
momento? Além disso, sabemos todos, que hoje não é mais necessário o encontro do
gameta feminino com o masculino para que haja o que convencionamos chamar de vida
humana, pois é possível reproduzi-la em laboratório utilizando um óvulo e um tecido
de outro corpo humano de onde seja possível extrair a informação genética necessária

3
Essa citação encontrasse no texto “Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” de Karl Marx.

4
SANTO TOMÁS, Summa theol., Ia, q. 76, a. 1c

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para que ocorra o fenômeno da clonagem. Perguntamos então como podemos continuar
analisando questões como estas à luz de argumentos medievais, sem nenhuma
atualização para nossos dias?
Mas, avancemos em nossa reflexão apontando para o fato de que a vida humana
que nos interessa preservar é fruto de uma construção histórica e social e não um dado
da natureza como poderá supor algumas pessoas menos esclarecidas acerca deste
assunto. Se fizermos um pequeno passeio pela história vamos nos lembrar que São
Tomás de Aquino inspirado na teoria aristotélica de que a mulher era um homem
bastardo a definia como um ser inferior que não refletia a divindade e, por isso, era
menos humana, pois não era imagem e semelhança do criador, como podemos perceber
na citação a seguir:

Como, então, disse-nos o apóstolo que o homem é a imagem de Deus e, por


conseguinte, está proibido de cobrir sua cabeça, mas que a mulher não o é e,
por conseguinte, se lhe ordena que cubra a cabeça? A menos, certamente, de
acordo com aquilo que eu já disse quando tratava da natureza da mente
humana, que a mulher, junto com seu próprio marido, seja a imagem de
Deus, de modo que a substância toda possa ser uma única imagem, mas,
quando se faz referência a ela como companheira e ajudante, o que concerne
somente à mulher, então ela não é a imagem de Deus, mas, no que concerne
somente ao homem, ele é a imagem de Deus de maneira tão plena e completa
como quando a mulher também está juntada a ele em um. (AQUINO,
Tomas. De Trinitate, 7, 10. Apud. RUETHER, Rosemary. P. Opus Cit. p
85)

Diante desta citação, percebemos que a mulher era considerada um ser de


segunda categoria que deveria ser tutelado pelo homem naturalmente superior a ela.
Isso que pode nos parecer algo esdrúxulo esteve presente no nosso código civil durante
todo século XX que era, e sob muitos aspectos ainda é, uma cópia do código de direito
canônico medieval que, entre outras coisas, dizia que a mulher ao se casar regredia em
sua capacidade civil tornando-se um ser semi capaz perdendo autonomia sobre seus
atos civis como podemos constatar nos artigos 240 ao 242 no código civil de 1916.
Segundo este diploma legal a mulher assume, pelo casamento, com os apelidos
do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família
colocando a mulher em condição hierárquica completamente inferior ao homem.
Observemos o que reza o artigo 242 para termos uma ideia do lugar e da condição da
mulher em nossa sociedade.

Art. 242 - A mulher não pode, sem o consentimento do marido:

I. Praticar atos que este não poderia sem o consentimento da mulher

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II. Alienar, ou gravar de ônus real, os imóveis do seu domínio particular,
qualquer que seja o regime dos bens.

III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem.

IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado.

V. Aceitar tutela, curatela ou outro múnus públicos.

VI. Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos indicados nos
arts. 248 e 251.

VII. Exercer profissão.

VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do


casal.

IX. Aceitar mandato.

(CC 1916)

Mas vale ressaltar que ao longo da história não apenas a mulher teve sua
humanidade questionada, esta condição também foi negada aos índios da América
latina que foram considerados selvagens em oposição ao civilizado e educado homem
eurocêntrico que os trataram como animais dizimando, não apenas pessoas, mas
civilizações inteiras das quais apenas as ruínas nos contam a história. Não podemos
deixar de registrar que a escravidão negra também foi justificada pela não humanidade
dos negros que em virtude disto podiam ser escravizados, mortos e dizimados com as
bênçãos do Deus cristão que fez de sua principal representante na terra a Igreja Católica
Apostólica Romana uma das mais pródigas detentoras de escravos negros no Brasil.
Cabe então à pergunta, que vida nos interessa proteger? Que vida tem sido alvo
de nossas discussões sobre aborto? Pois a Igreja que defende a potencialidade da vida
humana no espermatozoide desde a idade média até os dias atuais foi a mesma que
condenou milhares de pessoas a queimarem nas “fogueiras da Santa Inquisição” apenas
por discordarem em público de seu discurso oficial, foi também a Igreja que durante as
“santas cruzadas” em “nome de Deus” matou milhares de muçulmanos, foi essa mesma
Igreja que em acordo com a burguesia matou milhões de índios na América Latina e
Caribe e colaborou diretamente com o mercantilismo que fez dos negros africanos sua
principal moeda de troca vendendo-os, escravizando-os e matando-os de muitos modos.
Logo podemos concluir que a vida humana que a Igreja queria proteger era a
que lhe interessava, de preferência a de seus prosélitos que, via de regra, faria perpetuar
sua fé em seus domínios, pois como é possível observar existiram e ainda hoje existem
vidas humanas que não interessa preservar. Entre elas estão um número significativo

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de mulheres empobrecidas que praticam por motivos diversos os quatro milhões de
aborto/ano no Brasil, sendo que destes apenas um milhão chegam ao sistema único de
saúde fazendo com que o aborto seja o terceiro motivo de morte prematura de mulheres.
Com o apoio da Igreja e de alguns parlamentares, que se omitem nesta discussão
para não perderem os votos dos fieis, o Estado brasileiro, no século XXI ainda pretende
resolver o problema do aborto colocando na cadeia as mulheres que o praticam.

Considerações finais

Do ponto de vista ético não estamos propondo o aborto como controle de


natalidade, nem como um programa social para a erradicação da pobreza. Entendemos
que abortar não consiste em um prazer, mas numa necessidade que exige das mulheres
uma decisão difícil e dramática. Por isso, defendemos o seu direito de decidir em
condições humanizadas e seguras.

Temos consciência de que o princípio da autonomia da vontade que subsidia o


direito da mulher de decidir está muitas vezes comprometido por fatores sociais de
exclusão que não lhes permitem uma reflexão clara dos riscos e consequências de um
aborto em sua vida. Por isso acreditamos que seu direito de decidir deve ser
acompanhado por uma proposta social que amenize esses déficits através de um
programa interdisciplinar que lhe preste apoio social e psíquico além da assistência
médica que possibilite diminuir os riscos de morte das mulheres e aumente a prevenção
de um segundo aborto. O que não ocorre hoje com a criminalização, pois tanto os
números de morte materna quanto de aborto continuam em ascensão no Brasil.

Não propomos fechar questões, mas provocar na academia e na comunidade a


abertura necessária para um diálogo maduro onde prevaleça a perspectiva ética que nos
permita revisitar no nosso código moral as bases que forjaram os valores com os quais
julgamos os pessoas e as situações que nos deparamos cotidianamente e com os quais
possivelmente também seremos julgados, pois estamos muito distante das verdades
absolutas que tantas vezes presumimos existir.

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