F Pessoaortónimo
F Pessoaortónimo
F Pessoaortónimo
Os poemas em que surge uma reflexão sobre a nostalgia da infância são realidade
ou ficção?
Quando lemos um poema ou qualquer outra obra, entramos sempre num universo
mais ou menos ficcionado. Não se pode esquecer que, aquando da apresentação
do seu fazer poético, o sujeito referiu que o “poeta é um fingidor”.
O poema fala da infância. O sujeito poético remete-nos para a alegria que rodeia
as crianças durante as suas constantes brincadeiras. Ele próprio, ao observar
tamanha simplicidade e magia, se deixa invadir por sentimentos agradáveis
“Qualquer coisa em minha alma/Começa a se alegrar”.
No entanto, esta alegria que o sujeito lírico sente, fá-lo lembrar-se da sua própria
infância que, por ter sido tão apagada de alegrias e brincadeiras, passa por nunca
ter existido, algo que ele frisa bem: “E toda aquela infância/ que não tive...”
Com nostalgia, o eu poético termina afirmando que já que ele não sabe bem o que
chamar à sua infância pobre em afeto, se não se reconhece no próprio passado,
nem sabe quem virá a ser no futuro – tudo o que ele pode fazer é imaginar –,
então, resta-lhe sentir a alegria e a felicidade que lhe invadem o coração quando,
no presente, observa as crianças contentes.
Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.
E hoje sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto.
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços Abdicação" é um poema que aborda o tema
E chama-me teu filho… Eu sou um rei a noite e a solidão. Aqui, a noite é simbólica
Que voluntariamente abandonei de um estado de solidão que Pessoa bem
O meu trono de sonhos e cansaços. conhecia – era a sua realidade quotidiana.
Tão triste e simultaneamente calmo é o
Minha espada, pesada a braços lassos,
poema... isto porque a tristeza que Pessoa
Em mãos viris e calmas entreguei;
sente, é uma tristeza de abandono, de
E meu ceptro e coroa, — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços. quem deixa de resistir: eis o porquê do
título do poema “abdicação”. Quem abdica,
Minha cota de malha, tão inútil fá-lo por desistir voluntariamente e
Minhas esporas, de um tinir tão fútil, conscientemente, não por ser forçado.
Deixei-as pela fria escadaria. Pessoa abdica da vida para que a noite
(morte) o aceite – para ser plenamente
Despi a realeza, corpo e alma, nada na noite (morte), já que foi nada no dia
E regressei à noite antiga e calma (vida). Pelo menos, que seja plenamente
Como a paisagem ao morrer do dia. nada.
O poema está todo envolto num desejo do poeta: “morrer”. Esta ideia revela-se na apóstrofe
inicial “Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho…” e na seleção de
vocábulos e expressões de conotação negativa, como “abandonei” (os seus “sonhos e
cansaços”), “pedaços” (os seus pertences destruídos), “fria escadaria” (sentimento de frio que
provém da pedra das escadas, que simboliza, por sua vez, o mesmo frio e a mesma pedra das
lápides tumulares, dos cemitérios), “noite” (momento das 24 horas que simboliza a escuridão
e a morte) e “morrer”.
Pessoa decide metaforizar a sua vida na de um rei (“Eu sou um rei”) de histórias e aventuras
populares, caraterizada pelos objetos cuja representação vocabular pertence ao campo lexical
da realeza – “espada”, “cetro”, “coroa”, “cota de malha”, “esporas” – e que ele abandonou
por querer despedir-se da vida.
O vocábulo “realeza” é um nome abstrato que, além de significar um estatuto de vida visível
e superior, comporta todos os objetos atrás citados ou, metaforicamente, todos os objetos
que o tornavam “real” (vivo).
LIBERDADE
Livros são papéis pintados com tinta. Também as crianças, que são inocentes e
Estudar é uma coisa em que está indistinta não pensam, mas são o melhor do mundo,
A distinção entre nada e coisa nenhuma. se sobrepõem a qualquer arte, virtude ou
técnica, que exigem esforço, estudo,
Quanto é melhor, quanto há bruma, concentração.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não! Finalmente, a maior prova da inutilidade do
Grande é a poesia, a bondade e as saber é Jesus Cristo, que, mesmo sem
danças... leitura e sem ciência, se tornou uma figura
Mas o melhor do mundo são as crianças, de referência pela sua sabedoria, fundando
Flores, música, o luar, e o sol, que peca uma religião.
Só quando, em vez de criar, seca.
Fernando Pessoa ortónimo valoriza o
O mais do que isto pensamento e a razão, o que não invalida
É Jesus Cristo, que, devido ao vício de pensar que o
Que não sabia nada de finanças impede de sentir simplesmente, se sinta
Nem consta que tivesse biblioteca... dominado pela dor de pensar.
E quem me sinto e morre A fragmentação, por outro lado, "a casa que
No que me liga a mim hoje sou", é um prédio solitário com
Dorme onde o rio corre — demasiadas divisões, onde habita a alma de um
Esse rio sem fim. poeta sem esperança de dar a volta a uma vida
demasiada cruel.
1ª estrofe: Entre o "sono" (a vida) e o "sonho" (a vida ideal, sonhada), entre o "mim" (agora) e o "em
mim" (o futuro desejado, suposto), "corre um rio sem fim". Esse "rio sem fim" é uma divisória, uma
barreira, que divida o hoje do futuro sonhado e é impossível de atravessar.
2ª estrofe: O rio, parece ter, por outro lado vida própria, tem a sua própria vontade e a sua própria
experiência. O rio é o "Destino". É afinal o destino que se opõe a Pessoa, que o faz sofrer no caminho
que é atualmente o seu. Pessoa escolhe a imagem de um rio, porque como um rio, o destino é uma
sucessão de eventos, um curso de eventos, contínuo, sem fim.
3ª estrofe: O rio chegou à vida atual de Pessoa. A casa simboliza o seu "eu todo", a totalidade de
quem ele é. Mas o destino é ilusório - se Pessoa medita sobre ele, ele passa e impede-o de o enfrentar.
Mas se Pessoa desperta do seu pensamento, o Destino já passou, e não é possível regressar a ele.
Esta impossibilidade marca de maneira decisiva a mente de qualquer pensador - que tenta lutar
contra os obstáculos da vida. Se pensa sobre eles, vê que não pode ultrapassar, mas se os ignora, eles
passam por ele sem que ele dê sequer por isso. Qualquer das realidades é infrutífera e angustiante.
4ª estrofe: Pessoa conclui o poema. Reflete sobre o seu estado atual, o seu "eu presente", o seu que
não se supunha. E esse eu "dorme onde o rio corre". Ou seja, ele está dominado pelo Destino, está
dentro do rio destino, imerso nele e preso nos seus movimentos de água. Para terminar a sensação
de perda e prisão, Pessoa acrescenta à descrição dizendo que é um "rio sem fim". Um rio eterno, que
prende e controla, que domina e limita - eis a descrição final do Destino e de como este domina os
homens e as suas vidas, impedindo afinal que eles sejam como se supõem, como se ousam sonhar.
Mas a ousadia é demasiada e a força diminuta. O homem falha no seu sonho e tem de se dar por
vencido pelo destino, nas horas finais da sua vida amargurada.
BÓIAM LEVES, DESATENTOS
2ª estrofe: Os pensamentos são inconsequentes, irreais, absurdos, porque querem intervir no mundo
e afinal não passam de devaneios sonhadores, sem força, sem consistência de realidade. Pelo menos
sem consistência aparente, perante a avassaladora força do mundo exterior, que os esmaga e
suprime.
3ª estrofe: É o próprio Pessoa que nos esclarece na conclusão. Os pensamentos são "Sono de ser,
sem remédio / Leve mágoa, breve tédio,". Apenas um estado contemplativo, que "Não sei se existe
ou se dói." Afinal é essa a verdade sobre as suas ideias, a sua consciência de ser diferente dos outros
homens - é o que o diferencia e o torna mais nobre, é também um distanciamento.
Mais do que um estado depressivo, o poema passa uma ideia de nobre aceitação do destino absurdo
do homem, perante uma realidade que o assola como um fantasma e o torna sem carne, um monstro
sem escape perante a sua prisão-mundo."