Ética e Cidadania
Ética e Cidadania
Ética e Cidadania
1
1 Bons motivos para estudar Ética e Cidadania
O primeiro deles é a constatação de que a atitude ética vem ganhando cada vez mais espaço
como requisito para a valorização do profissional na sociedade em geral e no mundo do trabalho.
Essa atitude vem se fortalecendo também no universo empresarial. Muitas empresas assumem suas
responsabilidades na sociedade, desenvolvem projetos educacionais, ambientais, de inclusão social e
vários outros.
Elas divulgam em diversos canais de comunicação tais ações para informar aos clientes de
que modo atuam como organizações socialmente responsáveis.
Um segundo motivo da importância do tema abordado nesta disciplina é que a nossa
atuação como cidadãos ativos e incentivadores da ética poderá melhorar muito se desenvolvermos
conhecimentos, habilidades, valores e atitudes adequados a determinadas situações do cotidiano.
Assim, poderemos nos entender melhor quanto às necessidades, direitos e deveres de cada um.
Esses conhecimentos, habilidades e posturas se mesclam e se integram, constituindo competências
pessoais e sociais que se revelam quando interagimos com pessoas e grupos e nos posicionamos
quanto a situações e problemas coletivos, sejam eles públicos, institucionais, organizacionais,
ambientais ou muitos outros.
Uma terceira razão da relevância desta obra é a atual importância que assume a relação
entre ética e competência.
Outra razão para estudar Ética e Cidadania é que os novos tempos exigem a assimilação de
novos valores e iniciativas para assumir novas tarefas, muitas delas já tendo de ser realizadas.
“Devo sempre dizer a verdade ou, às vezes, uma mentira bem intencionada pode trazer mais
felicidade?”
3
“Um doente em fase terminal, passando por grandes sofrimentos, pede aos médicos e aos parentes
que o ‘libertem’, desligando os aparelhos e parando de administrar-lhe medicamentos que o
mantém vivo. Qual a ação mais justa, mais correta, diante deste fato?”
Todos os dias temos que tomar decisões importantes. Para saber qual a opção correta a ser
escolhida, precisamos de princípios que nos ajudem a seguir no rumo certo, afinal, somos seres
morais e refletimos eticamente sobre situações-problema que o dia a dia nos apresenta. A moral e a
ética são os dois pilares do agir humano que nos orientam nessa encruzilhada.
A palavra moral refere-se aos modos de se comportar já firmados em uma sociedade, aos
quais todos os indivíduos devem se adequar e com os quais acabam se acostumando, ao passar a
considerá-los como os mais corretos.
A palavra ética refere-se aos diferentes caracteres (plural de caráter) que existem em uma
mesma sociedade, ou seja, às individualidades das pessoas e às possibilidades que elas têm de
responder de forma diferenciada aos costumes e modos de se comportar tradicionalmente
estabelecidos, não de forma passiva, mas aceitando-os apenas se concordarem com eles, segundo
seus valores referentes ao bem e ao mal.
Embora não signifiquem a mesma coisa, ao nos referirmos tanto à moral quanto à ética
estamos sempre considerando as ações humanas do ponto de vista do bem e do mal, e,
consequentemente, avaliando-as como corretas ou não. Portanto, moral e ética coincidem em
muitos aspectos. Por exemplo:
Algumas ações violentas, mesmo contrariando as normas de comportamento ético, não são
nem mesmo consideradas criminosas ou são condenadas com penas leves, se for reconhecido e ficar
provado que a força da pressão sofrida pela pessoa, em determinada situação-limite, foi maior do
que a sua capacidade de resistência moral. São exemplos dessas situações aquelas movidas por
instinto de sobrevivência – no caso de ameaça à vida ou à integridade física ou moral – ou por forte
4
pressão psicológica –, ou seja, ameaça por meio de chantagem, sequestro ou outras formas de
violência muito drásticas a si mesmo, a alguém da família, ao seu grupo ou a toda uma comunidade.
No entanto, muitos dos personagens históricos que foram consagrados como heróis ou santos por
alguns ou por muitos povos foram pessoas que resistiram a fortes pressões e não se abateram,
mantendo sua postura moral e suas convicções filosóficas, religiosas, políticas ou sociais, como Joana
d’Arc, Tiradentes, Zumbi dos Palmares, Mandela e outros mais.
A moral é anterior a nós. Nós a “herdamos” da sociedade onde nascemos e fomos educados.
Essa “herança” tem origem social (a herança recebida da comunidade) e também pessoal (a nossa
convicção de que essa herança é válida e, por isso, nós a aceitamos). Em outras palavras, se não
incorporarmos o que a sociedade nos transmitiu como norma, ela não terá o sentido de norma
moral.
Como já vimos, moral é o conjunto de valores estabelecidos em uma sociedade, relativos ao
bem e ao mal, os quais norteiam a ideia do que deve ser permitido ou proibido em termos de
conduta e de comportamento humano. As regras morais estabelecem, por exemplo, obrigações que
não podemos deixar de cumprir, quais as partes do nosso corpo podemos ou não exibir, as palavras e
assuntos que podemos pronunciar ou discutir em público, com quem e em quais situações podemos
nos relacionar etc. Em uma mesma sociedade pode haver, além de uma moral que deve ser seguida
por todos, outras que se caracterizam como normas de grupos específicos.
A moral também varia no tempo e no espaço. O que é moral para alguns povos não o é para
outros. O que já foi imoral para nossos antepassados hoje pode não ser para nós. Até mesmo em
nossa história pessoal veremos transformações.
Em nosso cotidiano e diante de muitas situações com as quais nos deparamos, não chegamos
a sentir qualquer dilema moral nem sequer pensamos em outras possibilidades de ação que não
sejam as mesmas de sempre. É como se tivéssemos um manual de comportamentos, ao qual
recorremos quase automaticamente. Isso é muito conveniente, pois seria impraticável ter deparar o
tempo todo para refletir antes de tomar qualquer tipo de decisão.
Certos costumes estão tão enraizados e são aceitos tão facilmente por todos que não
sentimos qualquer necessidade de questioná-los, defendê-los ou combatê-los. Achamos tão normal
praticá-los que chegamos a encará-los como naturais, quando, na verdade, são culturais e diferentes
dos praticados em muitas outras sociedades.
Mas nem sempre é assim. Alguns costumes não são aceitos por todas as pessoas e outros
começam a ser questionados até por uma maioria, que adere a novos valores, contrários aos da
tradição. É muito comum que isso aconteça em épocas de transição de um tipo de sociedade para
outro, em fases revolucionárias e no encontro de culturas diferentes.
Na Europa do início do século passado, o café era uma bebida condenada como droga e seria
imoral para uma mulher deixar à mostra o tornozelo. Ainda hoje, em alguns países árabes e
africanos, as mulheres só se apresentam em público com o rosto parcial ou totalmente encoberto.
Na Índia, apesar da influência da globalização, que os está modificando, ainda sobrevivem costumes
como a classificação das pessoas em castas. Pessoas pertencentes a castas inferiores sofrem
imposições e proibições que as excluem do convívio com as demais.
No Brasil, até a primeira metade do século XX, eram raras as mulheres das classes média e
alta que trabalhavam fora de casa. Em casa, elas trabalhavam no serviço doméstico de seus lares ou
dirigiam o trabalho de seus empregados. As mulheres em geral trabalhavam como lavadeiras,
cozinheiras e arrumadeiras, estas, como hoje, das camadas mais pobres. Fora de casa, algumas
mulheres da classe média trabalhavam como enfermeiras, professoras, governantas ou secretárias.
Havia cursos técnicos especificamente femininos.
6
mas sabem que suas declarações poderão ser veiculadas de forma manipulada. Por isso, negam-se a
falar a respeito.
A cúpula da administração teme a repercussão negativa que o “golpe” possa provocar na
opinião pública, entre seus clientes e entre os concorrentes. Sob o ângulo da relação custo-benefício,
não sabe o que seria melhor: levar adiante um processo ou abafar o caso.
Nessa situação-problema, de interesses diversos e muitos até antagônicos, as questões
relativas não só à ética profissional como também à ética da responsabilidade estão presentes. O que
fazer? Se nos colocarmos no lugar de cada uma das pessoas envolvidas, teremos ideia da importância
e da dimensão dos dilemas éticos com os quais podemos nos confrontar em nossa vida profissional.
Por isso, o julgamento sobre se a atitude de cada uma dessas pessoas seria ética ou não é
extremamente delicado e exige muita prudência de quem vai formular o “veredicto final”.
Como se não bastasse o risco de elaborarmos julgamentos precipitados e injustos sobre a
participação individual das pessoas envolvidas em um caso aparentemente incorreto, muitas vezes
nossos julgamentos recaem sobre segmentos inteiros de uma sociedade, como instituições,
organismos, empresas, profissões etc.
No entanto, é preciso lembrar que em todos os setores da vida social há pessoas que são
éticas e outras que não são. Por isso, toda generalização implica injustiça ou impropriedade em
relação a muitos indivíduos, seja ela negativa ou positiva.
Alguns motivos explicam por que as pessoas caem no caminho perigoso da generalização, ao
julgar todo um grupo tomando-se como referência a atitude de alguns de seus membros que agem
de forma antiética. Os motivos dessa generalização podem estar relacionados ao fato de que os
membros do grupo que agiram de forma errada fazem parte de uma parcela:
• quantitativamente muito expressiva, ou seja, um percentual muito grande de membros do grupo
age incorretamente;
• qualitativamente mais destacada do que as outras, como a cúpula dirigente, a liderança, ou o
grupo mais notável;
• que é alvo de interesse maior dos meios de comunicação, por alguma razão;
• que se projetou mais, por causa de algumas experiências negativas ocorridas com ela;
• que praticou ações de maior repercussão, pois acabaram afetando um número muito grande de
pessoas.
Também por causa desses motivos é que, quando participamos de um grupo, temos duas
grandes responsabilidades em relação aos seus membros: a de não mancharmos sua imagem com
algum comportamento reprovável e a de estarmos sempre atentos para que os demais também não
o façam.
Se eu soubesse algo que me fosse útil e que fosse prejudicial à minha família,
expulsá-lo-ia de meu espírito. Se eu soubesse algo útil à minha família que não o
fosse à minha pátria, tentaria esquecê-lo. Se eu soubesse algo útil à minha pátria
que fosse prejudicial à Europa, ou que fosse útil à Europa e prejudicial ao gênero
humano, considerá-lo-ia um crime, pois sou necessariamente homem, ao passo
que sou francês por mera casualidade (SAVATER, 1993, p. 169).
7
ATIVIDADE
Reflita e discuta em grupo e depois em plenária, sobre as seguintes questões:
1. No exemplo exposto, como você julgaria, segundo os conhecimentos que você tem sobre a ética
profissional, a atitude do funcionário que se apropriou indevidamente dos recursos financeiros da
empresa?
4 Conceito de cidadania
Pela primeira vez, o ser humano realmente compreendeu que ele é um habitante
do planeta e, talvez, deva pensar ou agir segundo um novo prisma, não apenas sob
o ponto de vista individual, familiar ou de gênero, estatal ou de grupos de estados,
mas também sob o prisma planetário (VERDNADSKI apud MORIN, 2005, p. 162).
8
4.2 Cidadania organizacional: um compromisso individual ou coletivo?
Outras perguntas também devem ser feitas quanto às implicações do governo, responsável
pelo funcionamento do posto de saúde e do qual ela era funcionária.
Ele não teve nenhuma influência no caso? Não estaria a funcionária com acúmulo de
trabalho? Será que ela, devido a um salário baixo, estaria estressada por ter que fazer horas extras e
dar conta de mais de um emprego?
Essas perguntas revelam que nossa qualidade de vida e nosso desempenho como cidadãos,
pessoas e profissionais também dependem de como as diferentes organizações atuam ao nos
atender ou deixar de fazê-lo. No caso relatado, todos os motivos supostos para explicar o erro da
auxiliar de enfermagem estão direta ou indiretamente relacionados com o Estado, com a política e
com a cidadania organizacional, como:
• a qualidade do ensino oferecido pelas escolas;
• a responsabilidade dos órgãos certificadores de competência profissional;
• a gestão administrativa das instituições públicas ou privadas;
• a política de saúde e a política salarial do governo;
• a política de administração, controle e acompanhamento de recursos humanos no posto de saúde.
Isso também nos leva a concluir que toda a nossa vida social está impregnada de políticas
diversas (governamentais, institucionais e empresariais) e que, por isso, não apenas somos atingidos
por situações e ações políticas como também atuamos politicamente o tempo todo.
Atuamos deliberada e ativamente, participando de manifestações, militando em algum
partido, votando, nos candidatando a cargos políticos e denunciando descasos quanto ao
atendimento das necessidades da população. Também atuamos involuntária e passivamente,
quando nos omitimos, quando ignoramos o que se passa em nossa volta, afirmando que política é só
para quem gosta.
No entanto, é importante percebermos que não são apenas os indivíduos isoladamente que
precisam atuar na sociedade guiando-se pelos princípios da cidadania. As organizações também
precisam ser cidadãs.
9
Em resumo, a cidadania organizacional é também essencial para o bem-estar e a dignidade
de todos. O poder exercido sem ética violenta os direitos de cidadania.
Pessoas e organizações que não primam pela ética e não se consideram comprometidas com
o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos, conscientemente ou não, voluntariamente ou não,
acabam, de uma ou outra forma, sendo responsáveis por perdas e danos sofridos pela sociedade.
A cidadania implica o reconhecimento de que dificilmente é possível, nem sempre é justo e,
raramente, vale a pena a gente “melhorar de vida” sem melhorar a vida. Por isso, cabe aqui uma
citação de Herbert de Souza, o Betinho:
Tudo o que acontece no mundo, seja no meu país, na minha cidade ou no meu
bairro, acontece comigo. então eu preciso participar das decisões que interferem
na minha vida. Um cidadão com um sentimento ético forte e consciência de
cidadania não deixa passar nada, não abre mão desse poder de participação
(SOUZA, 1994, p. 32).
O ser humano não nasceu preparado para seguir normas de convivência e sobreviver em
uma sociedade tão complexa quanto a nossa. Para estabelecer relações sociais e subsistir em nosso
meio, precisamos de quem cuide de nós e nos eduque, transmitindo-nos as características e valores
culturais da sociedade a que pertencemos.
O processo de socialização começa logo depois do nascimento e segue um longo caminho.
Nessa jornada, cada um de nós precisa absorver conhecimentos e desenvolver habilidades, além de
conhecer e utilizar linguagens. Precisa também aprender a desempenhar papéis sociais e a
reconhecer a importância de contribuir com a coletividade. Essa contribuição pode ser feita de várias
maneiras: quando, por exemplo, produzimos alguma coisa ou prestamos serviços, conservamos ou
alteramos valores, reproduzimos ou inovamos técnicas, defendemos a estrutura da dinâmica social
ou atuamos para alterá-la.
O trabalho é uma dessas contribuições. Ele é necessário para garantir nossa sobrevivência e,
para executá-lo, mobilizamos nosso físico, nossa razão e nossa vontade, utilizando para isso tanto os
recursos naturais quanto elementos culturais. Sem os produtos do trabalho não há sobrevivência
humana, cultura, organização social, civilização e história. Em outras palavras, cada pessoa que nasce
só alcança a plenitude de sua condição humana se for cuidado e educado por outros, o que significa
muito mais do que o cuidado que os outros animais têm com suas crias por certo tempo. Além disso,
durante toda a nossa vida, precisamos do nosso trabalho e do trabalho dos outros para a produção
de bens e serviços que são demandados pelo viver e pelo conviver em sociedade.
Em nosso dia a dia, contamos com o trabalho de muitas pessoas para garantir nossa
alimentação, higiene, locomoção, lazer, segurança. Nem sempre todo o trabalho contido em um
objeto ou serviço é evidente. Algumas etapas costumam ser esquecidas, ou não são conhecidas. Isso
porque nem todo trabalho é igualmente reconhecido e valorizado. Alguns podem permanecer
ocultos, ofuscados por outros, que são supervalorizados em determinado momento histórico.
[...] podemos dizer que “o homem se faz pelo trabalho”, ou seja, ao mesmo tempo
que produz coisas, torna-se humano, constrói a própria subjetividade. Para
exemplificar, imagine-se como vendedor em uma loja. você precisa conhecer o
material que está sendo vendido e os procedimentos de atendimento ao público;
aprende a se relacionar com os colegas e com a chefia; exige de si mesmo a
superação de dificuldades; ao receber o salário, administra seus gastos e percebe a
mudança que essa autonomia financeira provoca nas relações com seus familiares.
Enfrenta conflitos, quando seu desempenho é avaliado por critérios injustos ou se
10
ganha menos do que o merecido pelo esforço despendido. Também acumula
experiência e sente prazer em fazer com facilidade o que antes lhe parecia um
desafio intransponível (KUPSTAS, 1997, p. 22-23).
Dessa forma, ela destaca uma série de coisas que o trabalho propicia a quem o exerce:
ampliação de conhecimento, desenvolvimento da habilidade de se relacionar com outras pessoas, de
planejar ações, vencer desafios, de controlar gastos, de defender-se e outras.
Mas nem sempre o trabalho é visto tão positivamente. Isso porque não é em qualquer uma
de suas formas nem em todas as situações que o trabalhador se sente edificado ou dignificado
quando o exerce.
Embora muita gente não saiba, a própria palavra trabalho carrega, em sua origem, uma carga
bem negativa.
A palavra trabalhar vem do latim tripaliare, que significa torturar por meio do tripalium,
instrumento formado por três (tri) paus (palium), onde eram atados os condenados ou animais
difíceis de ferrar. Essa carga negativa da palavra se deveu à adoção do escravismo, pelos romanos, e
à consequente oposição entre o trabalho (socialmente desvalorizado, pois era exercido pelos
escravos) e o ócio (socialmente valorizado, pois era privilégio da classe dominante, proprietária de
escravos).
Poderemos entender melhor como e por que certos tipos de trabalho são mais ou menos
valorizados e causam orgulho ou desprezo se pesquisarmos um pouco mais o seu significado e a sua
forma em diferentes períodos da história das sociedades.
Verificaremos, então, como ele passou da categoria de maldição (para os escravos antigos e
servos da gleba medievais) à categoria de talento, doação, ou sacrifício voluntário (para os monges
medievais e reformadores protestantes), chegando, por razões diferentes, à sua valorização pela
burguesia industrial e pelos socialistas, no século XIX, até o modo como ele é encarado hoje.
Atualmente, trabalhar é considerado pela nossa sociedade não apenas condição para que
possamos sobreviver, mas, também, para crescermos, nos sentirmos úteis, dignos, importantes e
para que possamos retribuir, com o fruto do nosso labor, o que recebemos de bom com o trabalho
de outros que nos antecederam e dos que nos são contemporâneos.
11
Prestemos atenção ao fato de que, como diz a autora, o trabalho é considerado condição
para que os seres humanos se desenvolvam e as sociedades humanas continuem a existir.
Mas esse é um conceito atual, difundido a partir do século XIX, na época da Segunda
Revolução Industrial, por Karl Marx (1818-1883) e Friederich Engels (1820-1895) no livro O capital.
Acontece que o trabalho assumiu diferentes formas ao longo da História, de acordo com os modos
de produção e, sendo assim, a sua compreensão e entendimento não foram os mesmos em todas as
épocas.
Nas comunidades ancestrais e nas poucas que ainda se mantêm preservadas das influências
da modernidade, o trabalho sempre foi coletivo e solidário.
Nas sociedades que adotaram os modos de produção escravista, feudal e capitalista, o
trabalho se tornou alienado, conforme expressão dos teóricos marxistas.
Que o trabalho escravo e o trabalho servil não dignificam o trabalhador, isso é muito claro, e
com certeza você tem conhecimento do que eles representaram em diferentes fases da história da
humanidade. Deve conhecer, principalmente, como foi a escravidão dos negros africanos no Brasil,
durante o Período Colonial e o Império. Também deve se lembrar das várias formas como eles se
rebelaram contra sua exploração e de que, só após várias gerações de luta e resistência, conseguiram
libertar-se da opressão.
O que algumas pessoas talvez não saibam, ou talvez não se recordem, é que no início da
industrialização – segunda metade do século XVIII e primeira do XIX – foi muito grande a resistência
dos trabalhadores à transformação do trabalho em mercadoria, à organização da produção em
fábricas e à sua transformação em “mão de obra”.
Esse trabalhador havia sido artesão, dono da sua força de trabalho, dos seus instrumentos e
do seu tempo e, com a industrialização, passou a ter de se sujeitar a uma nova e incompreensível
realidade: às regras impostas nas fábricas, aos movimentos corporais impostos pelas máquinas, ao
controle do processo de produção externo a ele, ao ritmo do tempo marcado pelo relógio e não mais
pelos ciclos da natureza e pelas necessidades de seu corpo; aos salários estipulados pelos
proprietários dos meios de produção etc.
Antes, no trabalho concreto, autônomo, ou seja, aquele executado para si próprio, o
trabalhador sabia o que iria produzir, o porquê e como faria para produzi-lo. Com a industrialização,
contudo, ele passava a trabalhar para outra pessoa: o capitalista, proprietário dos meios de
produção.
A esse tipo de exploração do trabalho Karl Marx chamou de trabalho alienado: ao vender sua
força de trabalho, a pessoa perde a possibilidade de projetar no produto as atividades do seu ato
criador. É o empresário que o assalaria quem define e organiza o trabalho a ser feito por ele e
apropria-se da mercadoria que ele gerou.
Durante a transição do modo feudal para o modo de produção capitalista, a burguesia
precisou criar uma ideologia de valorização do trabalho que convencesse o indivíduo a operar nas
fábricas e se adaptar às novas condições de produção.
Mas não foi com argumentos que se disciplinou o operário que resistia a esse sistema de
produção e sim com a perseguição e prisão para os que se recusavam a trabalhar nos novos moldes,
com a imposição de multas aos que transgrediam os severos regulamentos da fábrica e a vigilância
contínua de supervisores impiedosos, com um olho nos trabalhadores e outro no cronômetro.
Não trabalhar significaria preguiça, irresponsabilidade, vadiagem. Em meio a esse regime de
opressão, foi se criando uma cultura de valorização do emprego.
Este passou a ter peso importante na construção da identidade pessoal e social do indivíduo.
Como consequência, o desemprego se tornou ameaça não só a sua sobrevivência física como a sua
situação psicossocial.
Atualmente, considerando o enfoque do capitalismo, a perspectiva sob a qual os
empresários são vistos mudou bastante: empresários são empreendedores que, abrindo seus
negócios, instalando suas empresas, fazendo-as crescer, criam oportunidades de emprego e renda
para os trabalhadores que contratam e promovem o desenvolvimento da comunidade.
12
A partir de meados do século XX, a automação, a robótica, a microeletrônica e outras
tecnologias provocaram mudanças que interferiram também na constituição da identidade e do
perfil do trabalhador. Isso porque se passou a exigir que ele se atualize e se adapte mais rapidamente
às mudanças tecnológicas e às exigências do mercado.
O setor de serviços, que se amplia cada vez mais, exige melhor qualificação profissional,
enquanto o setor industrial valoriza trabalhadores mais participativos, que tenham a visão de todo o
processo produtivo, sejam proativos e capazes de tomar decisões.
Nos dois setores, estimula-se a “intelectualização” do trabalho e, consequentemente, a
escolaridade, a qualificação profissional e a formação continuada do trabalhador.
Trabalhar é bom. Não poder trabalhar é o grande temor do nosso tempo, até mesmo por
conta das crises de desemprego que têm ocorrido nas últimas décadas, em nível internacional.
Daí o empenho das pessoas, atualmente, em se qualificarem profissionalmente e se
atualizarem constantemente com novas leituras, novos cursos, novas graduações, ampliando, assim,
seu potencial profissional e a sua competitividade no mercado do trabalho e protegendo-se, dessa
forma, das ondas de desemprego.
Se nos sentirmos desmotivados e com a autoestima em baixa, porque não somos valorizados
e nossos direitos não são respeitados, devemos utilizar os meios e aproveitar as oportunidades para
reverter tal situação, reivindicando, defendendo juridicamente nossos direitos, aprimorando-nos ou
procurando outras organizações que nos ofereçam melhores condições de trabalho. Até mesmo, se
houver oportunidade, abrir o nosso próprio negócio.
Entretanto, o trabalhador cidadão também tem deveres. O que não podemos é agir de forma
descuidada em nossa vida profissional, pois somos responsáveis pelas consequências de nossos
descuidos, tanto sobre nós mesmos como sobre os outros. Por isso, como trabalhadores, devemos
estar sempre nos questionando e nos avaliando sob determinados aspectos, de modo que nos
comportemos sempre de acordo com os nossos deveres, orientados pelos princípios da ética
profissional e conforme os valores da cidadania organizacional.
Assim, quando nos autoavaliamos, é preciso nos perguntar:
1. Como lidamos com os instrumentos e com os recursos físicos que usamos em nosso trabalho, seja
produzindo algo concreto ou prestando serviços?
Somos cuidadosos, parcimoniosos, sensatos e prudentes ao usá-los?
Compreendemos a importância de evitar desperdício, estrago e destruição desses materiais? Temos
consciência de que os recursos naturais podem se esgotar e de que economizar nos custos permite a
diminuição dos preços e o aumento dos salários?
Sabemos que a qualidade do nosso trabalho depende também do bom estado e do funcionamento
dos instrumentos que utilizamos e da qualidade da matéria-prima com que operamos? Passamos,
por isso, a ficar atentos aos materiais de que esses instrumentos são feitos e a seu funcionamento,
para empregá-los de forma adequada?
2. Qual a atenção que damos à qualidade do que oferecemos aos consumidores, clientes ou
usuários?
Sabemos que devemos tratá-los da mesma forma que gostaríamos de ser tratados?
Sabemos que devemos ficar atentos às condições de higiene e de segurança necessárias tanto para a
preparação de um produto quanto para a prestação de um serviço?
Seguimos as normas de qualidade na produção?
Considerando o tipo de produto que oferecemos, nós caprichamos na sua durabilidade, conforto,
clareza, estética, aroma, som e sabor?
Reparamos as falhas que encontramos ou informamos àqueles que devem fazê-lo, para que o
produto ou serviço corresponda ao seu protótipo?
13
Sugerimos ou indicamos maneiras para melhorar a qualidade do que produzimos?
Observamos se o trabalho realizado por outros, e do qual dependemos para fazer o nosso com
qualidade, está sendo desenvolvido com o mesmo cuidado?
3. Como nos comportamos, considerando a importância de nosso trabalho e sua repercussão tanto
no ambiente em que ele se desenvolve quanto na vida em sociedade?
Estamos conscientes de que tudo de que dispomos é resultado de trabalho coletivo e, portanto, dos
esforços de muitas outras pessoas que aplicaram suas energias, competências, vontade e tempo para
oferecer algo à comunidade? Temos consciência de que somos um elo nessa cadeia de energias e
intenções que permite a sociabilidade e garante a sobrevivência e continuidade de nossa espécie?
Ao nos darmos conta disso, atuamos de forma responsável?
Sabemos que, quando falhamos, podemos causar danos físicos ou morais, prejuízos materiais,
desconforto, descontentamento, comprometimento de patrimônio e da imagem de pessoas,
categorias profissionais, marcas e organizações?
Respeitamos o ambiente, conservando a natureza e evitando a poluição? Exigimos o mesmo
comportamento de todos?
Reconhecemos a importância de aprender mais e nos atualizar para melhorar nossa prática
profissional e a dos que nos cercam?
4. Qual a nossa disposição para trabalhar em equipe de forma cooperativa, oferecendo e recebendo
ajuda, dividindo responsabilidades, respeitando direitos e compartilhando poder e sucesso?
Reconhecemos o valor da contribuição de cada um em nosso grupo?
Expressamos esse reconhecimento elogiando esforços e talentos dos demais, orientando-os e
indicando caminhos que os façam melhorar?
Solicitamos sua opinião e colaboração quando precisamos de ajuda?
Divulgamos informações e conhecimentos que possam ajudá-los?
Estimulamos seu desenvolvimento, sua autonomia e seu protagonismo?
Ficamos atentos às condições de segurança e salubridade do ambiente que partilhamos com os
outros e também às maneiras de preservar nossa saúde e a dos demais?
Ao tomarmos esses cuidados, exigimos que os outros também o façam, para que toda a comunidade
seja respeitada?
A nossa interação com a realidade, através do trabalho, tem sido a favor da boa qualidade de vida?
Se o trabalhador precisa ser cuidadoso com os materiais que usa para trabalhar, com a
qualidade do que produz trabalhando e perceber como é responsável pela repercussão que tem o
14
seu trabalho na vida social, também são deveres de quem o emprega, das políticas públicas, dos
meios de comunicação, enfim, de toda a sociedade:
• garantir o respeito à legislação que protege os seus direitos;
• reconhecer e valorizar o seu papel na sociedade, propiciando-lhe salários justos, segurança, saúde
e bem-estar no trabalho;
• oferecer-lhe oportunidades e condições de crescer profissionalmente, com políticas de
treinamento e desenvolvimento e por meio de capacitações das mais diversas formas;
• ampliar vagas nos cursos profissionalizantes, de qualificação, requalificação e habilitação, nas
modalidades presencial e a distância;
• reconhecer os esforços e os resultados obtidos pelo trabalhador, recompensando-o com formas de
remuneração em função de seu desempenho; benefícios (plano de saúde, pagamento de educação
dos filhos, tíquete alimentação, participação em ações etc);
• divulgar a importância de sua função e participação no processo produtivo, de modo que seu valor
seja reconhecido socialmente.
Referências
BARBOSA, Carmem Bassi. QUEIROZ, José J. ALVES, Julia Falivene. Núcleo básico: ética profissional e
cidadania organizacional. São Paulo: Fundação Padre Anchieta, 2011. (Coleção Técnica Interativa.
Série Núcleo Básico, v. 4)
CATTANI, Antonio David (org.). Dicionário crítico: trabalho e tecnologia. Petrópolis: Ed. Vozes; Porto
Alegre: Ed. da Universidade, 1997.
SAVATER, Fernando. Ética para meu filho. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1993.
SOUZA, Herbert de. Ética e cidadania. São Paulo: Ed. Moderna, 1994.
15