O Animal Humano
O Animal Humano
O Animal Humano
Zeljko Loparic
Professor do Departamento de Filosofia da Unicamp e do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP
E-mail: [email protected]
1 Winnicott 1988, p. 7; tr. p. 25. Nota-se que, nesse quadro, a arte não está mencio-
nada. Tentarei mostrar, em seguida, o que isso significa.
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2 É interessante notar que bestia, termo latino para designar o animal feroz, também
deriva de termos que significam respirar.
3 Cf. Heidegger 1994 [1943/44], GA 55, p. 95.
4 Cf. Winnicott 1988, p. 7; tr. p. 25.
5 Cf. Winnicott 1988, p. 34; tr. p. 51.
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6 Ao longo de toda a sua obra, Winnicott enfatizará o fato de ter se formado médico
e de ter exercido plenas responsabilidades médicas por muito tempo (de fato, até
1940). Freud parece ter sido muito menos identificado com a sua condição de mé-
dico, tendo sempre guardado algo do seu objetivo inicial de se tornar um filósofo
(cf. carta a Fliess, n. 39).
7 Cf. Winnicott 1958a, p. 243; tr. p. 409.
8 Cf. Winnicott 1996a, cap. 29, pp. 236-37. A psicologia dinâmica ou a psicanálise
de Winnicott é uma ciência constituída de um conjunto de teorias, do qual a principal
é a teoria do amadurecimento. Assim como Freud, Winnicott nunca escreveu um
livro em que apresentasse todas essas teorias de maneira ordenada, embora Natureza
humana contenha os principais elementos do que pode ser chamado de teoria
winnicottiana do animal humano (da natureza humana). Cabe observar, entretanto,
que certos aspectos desse animal, em particular o distúrbio psicossomático, não
podem ser abrangidos numa “teoria unificada” e exigem a colaboração de uma
equipe de autores, com diferentes especialidades científicas (Winnicott 1989a,
pp. 111, 114 e 561).
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17 Cf. Winnicott 1988, p. 132; tr. p. 154. Note que a tradução brasileira omite a
expressão “segunda morte”.
18 A acontecencialidade humana não deve ser confundida com a transicionalidade,
pois os “fenômenos” ou “processos” que caraterizam a segunda – e que se situam na
fase em que acontece a passagem do mundo subjetivo para o mundo externo – são
apenas uma parte da primeira, isto é, uma “amostra temporal da natureza humana”
tomada no seu todo.
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Winnicott opõem o soma à psique, não o corpo físico (body) à mente espiri-
tual (mind) (1988, p. 11; tr. p. 29). A “natureza humana”, insiste ele,
“não é uma questão de corpo e mente – e sim uma questão de psique e
soma inter-relacionados” (p. 26; tr. p. 44, itálicos meus). O corpo físico,
como tal, é externo à natureza humana. Esta não é psico-física, e sim
psico-somática. Quanto à mente, ela é “uma ordem à parte, e deve ser
considerada como um caso especial do funcionamento do psique-soma”.20
Em suma, a natureza humana não é um composto cartesiano, uma uni-
dade inverossímil de mente espiritual (racional) e de um corpo físico, mas
um psique-soma, “com a mente florescendo na beira do funcionamento
psicossomático”.21
20 Winnicott 1988, p. 11; tr. p. 29. A tradução brasileira verte o termo winnicottiano
“psyche-soma” por “psicossoma”. Creio que esse termo, sem o hífen, perde o poder de
expressar o caráter propriamente relacional da “existência psicossomática”, poden-
do inclusive induzir à conclusão errônea de que Winnicott esteja postulando a exis-
tência de uma entidade sui generis, o “psicossoma”. É verdade que, em Winnicott, a
mente e o corpo não são tratados como entidades separadas, de modo que o proble-
ma tradicional da relação mente-corpo não se coloca mais. Mas isso não implica que
Winnicott caiu no monismo substancial. No pensamento winnicottiano, a diferença
substancial entre a mente e o corpo, introduzida por Descartes, não é negada em prol
do reducionismo, quer materialista, quer espiritualista; ela é substituída pela dife-
rença operacional entre as funções corpóreas e as funções psíquicas. Analogamente, o
problema da união entre a mente e o corpo é substituído pelo problema da integração
das funções corpóreas pelas funções psíquicas, sendo cada um desses dois grupos de
funções tratado como irredutível ao outro. Enquanto a psicanálise tradicional, se-
guindo uma linha de pensamento influente na filosofia moderna, fisicaliza o corpo
e trabalha exclusivamente com o lado mental, mais precisamente representacional,
da existência humana, a psicanálise winnicottiana coloca essa existência diante da
tarefa primordial de “elaborar” o corpo, e “elaborar” não significa originariamente
“simbolizar”, mas “alojar-se” no corpo fazendo dele a nossa primeira morada neste
mundo.
21 Ibid. p. 26; tr, p. 44. O leitor atento terá notado que, nesse ponto, as posições de
Winnicott divergem fortemente das de Heidegger. De fato, o pensador alemão
nunca conseguiu unificar a sua teoria da estrutura do Dasein com uma teoria razoável
de corporeidade (para o reconhecimento desse fato por parte do próprio Heidegger,
cf., por exemplo, Heidegger 1927, p. 388n; 1983, pp. 385-88 e 1987, p. 202).
Nesse aspecto, a psicanálise winnicottiana está à frente da analítica existencial de
Heidegger, o que pode ser tomado como estímulo e ponto de partida precioso para
a elaboração, ainda pendente, de uma antropologia filosófica no estilo heideggeriano.
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4. A psique
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5. O soma
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O mundo é criado de novo por cada ser humano, que começa o seu
trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento
e da primeira mamada teórica. Aquilo que o bebê cria depende em
grande parte daquilo que é apresentado, no momento da criatividade,
pela mãe que se adapta ativamente às necessidades do bebê. (1988,
p. 110; tr. pp. 130-1)
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37 Heidegger 1927, par. 74. Heidegger mostra ainda que, em última análise, os esque-
mas do agir e do estar-com são de natureza temporal (Loparic 1982). Um estudo
mais detalhado desse assunto sugeriria, naturalmente, uma comparação com os
conceitos kantianos de esquema transcendental e de esquema simbólico.
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torna-se algo que possui uma posição a partir da qual é possível rela-
cionar-se com a realidade externa, torna-se algo com a capacidade de
criar e de perceber a realidade externa, torna-se um ser qualitativa-
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41 A natureza da relação do ser humano com a linguagem não pode ser discutida aqui.
Sobre este ponto, cf. Loparic, 1999.
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Não faz, portanto, sentido algum usar a palavra “id” para fenômenos
que não são registrados, catalogados, experienciados e finalmente
interpretados pelo funcionamento do ego. [...] O fato de que vida
instintual possa existir sem conexão com o funcionamento do ego
pode ser ignorado, porque a criança não é ainda uma entidade que
tenha experiências. Não há id antes do ego. (1965a, p. 56; tr. p. 55;
itálicos meus)
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Isto é, o ego [ego] é, em última instância, derivado das sensações corpóreas, prin-
cipalmente das que se originam na superfície do corpo. Ele pode, portanto, ser
visto como uma projeção mental [mental projection] da superfície do corpo, além
de representar [...] a superfície do aparelho mental.
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Outra linguagem pode ser usada para descrever essa parte obscura
do processo de amadurecimento, mas os rudimentos de uma elaboração
imaginativa do simples funcionamento corpóreo devem ser pressupos-
tos se se pretende afirmar que esse novo ser humano começou a ser e
começou a adquirir experiências que podem ser ditas pessoais. (1965b,
p. 60; tr. p. 59; itálicos meus).
Como se pode ver, o ego [ego] se oferece para estudo muito antes da
palavra “si-mesmo” [self] ter relevância. A palavra em questão apare-
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44 Esse estudo pode ser iniciado, por exemplo, pelas observações de Winnicott sobre
os “limites da psique” em Natureza humana (1988, pp. 71 e 91; tr. pp. 91 e 112 ).
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que o trabalho com o material clínico: ele é feito à luz e de acordo com as
perspectivas abertas pela teoria psicanalítica, no caso de Winnicott, à luz
da sua teoria científica do amadurecimento emocional.
Com isso não quero negar o fato bem conhecido de que, ocasio-
nalmente, Winnicott também escrevia poesias e se comprazia em dife-
rentes formas de fantasia religiosa. Um exemplo notável do uso auto-
referente dessas fantasias encontra-se na “elaboração” que Winnicott fez
da sua própria morte. Na sua inacabada biografia, após fazer a prece:
“Oh, Deus! Possa eu estar vivo quando morrer”, ele ensaia uma “descri-
ção imaginativa” de sua morte.52 Dá-se conta de que morreu e pergunta:
O que houve? Prossegue “relatando” que o seu coração não podia dar
conta do pulmão pesado, cheio d’água, de que resultou “tanto uma ali-
mentação insuficiente de oxigênio quanto um afogamento”. Mas isso não
foi tudo o que estava acontecendo, pois Winnicott “constata”: “A minha
prece tinha sido atendida. Eu estava vivo quando morri”. Nesse momen-
to, a fantasia de Winnicott se abre para a recordação da morte de muitos
dos seus amigos na Primeira Guerra Mundial e para o sentimento de que
o seu “estar vivo é uma faceta de uma mesma coisa, da qual as mortes
deles [seus amigos] podem ser vistas como outras facetas: algum imenso
cristal, um corpo com inteireza e forma intrínsecas” (1989a, p. 4). Esse
sentimento, que parece ser de inspiração budista, assinala o início de um
fantasiar religioso propriamente dito.
Se, agora, perguntarmos: quem estava vivo quando Winnicott
morreu?, vemos logo que a resposta não pode ser: o psique-soma de
Winnicott, pois, neste caso, o indivíduo concreto Winnicott não teria
morrido, ao contrário do que estabeleceu a “descrição” da sua morte físi-
ca. Restaria a suposição que o eu que estava vivo era a mera tendência à
integração. Mas essa resposta tampouco satisfaz, pois essa tendência não
é o eu de Winnicott.
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53 Essa tese foi admitida mesmo pelos mais puros positivistas lógicos, entre eles Carnap
(cf. Loparic 1996c). Sobre o “sentimento” de Freud de que a ciência é, por vezes,
usada para encobrir “o peso da existência”, cf. Freud 1920g, cap. 6.
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tremamente útil não somente para a clínica, mas também para a compre-
ensão da natureza humana, e deve preceder o exame mais direto da espe-
cialização da mente a partir da psique saudável e normal.
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Referências bibliográficas
59 Sobre a diferença que Winnicott faz entre a cura como cuidado, isto é, como exten-
são do conceito de holding e como aplicação de princípios “que aprendemos no início
das nossas vidas”, e a cura “degenerada” em “tratamento médico”, cf. o capítulo “A
cura”, em 1986a, pp. 112-22.
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______ 1987b: Babies and Their Mothers. London, Free Assossiation Books
(tr. bras.: Os bebês e suas mães, São Paulo, Martins Fontes, 1988).
______ 1988: Human Nature (trad. br.: Natureza humana, Rio de Janeiro,
Imago, 1990).
______ 1989a: Psychoanalytic Explorations. London, Karnac (trad. br.:
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993).
______ 1996a: Talking About Childern. London, Karnac (trad. br.:
Pensando sobre crianças, Porto Alegre, Artes Médicas, 1997).
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Autor: Rogério Luz; Título: Tríptico; Data: 2000.