2019 - Ebook Conte Outra Vez - Antologia
2019 - Ebook Conte Outra Vez - Antologia
2019 - Ebook Conte Outra Vez - Antologia
Alessandro Garcia, Ana Elisa Ribeiro, Ana Luiza Rizzo, Betzaida Mata, Bruna
Brönstrup, Bráulio Tavares, Bruno Ribeiro, Cinthia Kriemler, Cris Vazquez, Cristiano
Rato, Eduardo Sabino, Elizabeth Gouvea, Gisela Rodriguez, Irka Barrios, Ivandro
Menezes, João Matias, Joedson, Julia Dantas, Katia Gerlach, Matheus Borges, Maurem
Kayna, Nathalie Lourenço, Renata Wolff, Roberto Menezes, Samuel Medina, Sérgio
Tavares, Simone Teodoro, T. K. Pereira, T. S. Marcon, Tadeu Sarmento, Taiane Maria
Bonita, Tiago Germano, Tiago Motta, Wander Shirukaya.
Título
Conte Outra Vez, 30 contos inspirados em canções de Raul Seixas + Bonus Tracks
Capa
Tiago Motta
T. K. Pereira
T. K. Pereira
ISBN: 9780463610411
[2019]
Bonus Tracks
1968 | RAULZITO E OS PANTERAS
Trem 103 - Samuel Medina
1987 | UAH-BAP-LU-BAP-LAH-BÉIN-BUM!
Paranoia II (Baby Baby Baby) - Matheus Borges
1988 | A PEDRA DO GÊNESIS
Check-up - Bruna Brönstrup
ELEGIA
Chegada de Raul Seixas ao Castelo de Avalon - Bráulio Tavares
Contestador, filósofo, místico, cético, agnóstico, foi relâmpago, foi pantera, produtor,
compositor. Perseguido pela ditadura, exilou-se nos Estados Unidos, onde supostamente
visitou John Lennon e tocou ao lado de Jerry Lee Lewis. Teve parcerias de sucesso,
cinco casamentos fracassados, três filhas. Debilitado pelo alcoolismo, caiu no
ostracismo. Recusou a sentar-se no trono de um apartamento com a boca escancarada
cheia de dentes: encerrou a turnê de lançamento de seu último álbum oito dias antes da
morte chegar.
Esta coletânea é um tributo ao pai do rock brasileiro e uma lembrança de que Raul
segue mais vivo e atual do que nunca. Reunidos aqui estão 36 autores contemporâneos,
de diversas partes do país. Em comum, o fascínio pela figura do saudoso maluco beleza.
Os contos que apresentamos são frutos tanto de inspiração sutil quanto de homenagem
escancarada, e refletem a diversa trajetória musical de Raul. Mesmo que o leitor não
seja um aficionado, este livro tem a oferecer uma excelência narrativa inegável. Ao fã,
que você aprecie este projeto organizado com tanto carinho e cuidado.
Quem o viu àquela manhã, com sua careca e paletó inconfundíveis, soube que havia
reprovado na escola da ilusão. Afirmaram que parecia um palhaço atrasado, de algum
bloco carnavalesco tardio que saísse em julho sob a batuta de Sérgio Sampaio. Não
podemos dizer que antes dele a cidade era calma. De qualquer modo, sua fantasia
chamava atenção. A gravata, agora, parecia uma forca.
Sim, ele arrastava uma forca pelo pescoço. Disseram que seus pulsos pareciam
cortados, seus sapatos fora de moda. As meias uma branca a outra cinza, uma domingo
a outra quarta-feira. Ele atravessava as pessoas na rua. Foi o que disseram. Andava
como se estivesse no automático, entre a massa e o caminhão. Deambulava. Parecia
desaparecido. Sonâmbulo tateando a pele de um fantasma. Dias depois sequer lembraria
como havia saído do hotel para onde se dirigiu decidido a se matar.
A impossibilidade de lembrar deprimia Dr. Pacheco. Dançou três dias e três noites no
bloco carnavalesco de si mesmo. Deus estava com ele, mas, também o Demônio, pois,
para aonde Deus vai, o Demônio, imitador, O segue.
Quem o viu àquela manhã? Alguém disse que poderia ter sido um homem feliz. A
camisa estava suja de sangue. Antes o haviam procurado em hospitais e necrotérios,
afinal, o carnaval já havia passado, então, onde estaria? Quem o viu disse que seus
olhos pareciam fixados em alguma nuvem. Mas, o céu daquela manhã estava limpo
quando decidiram recolhê-lo.
No hospício estava entre os seus, mais que no escritório. Era tratado como igual. Ali
cada um comentava a fantasia do outro. Chegava a ser divertido. Todos palhaços com
pantalonas dois números acima. Quem o viu àquela manhã disse que ali estaria melhor,
mais bem aceito. Todos ali eram tão cordiais, tão educados, de uma polidez excessiva,
beirando o sobrenatural. Alguém que o visitou disse tê-lo visto sorrir no pátio. “Estou
aqui porque estou curado”, disseram tê-lo ouvido dizer. “Aqui nós desejamos sem
nomear os desejos”, disseram ter ouvido confessar-lhe um companheiro de quarto.
A loucura é a porta para dentro. Uma nudez sem falhas. A realidade necessita dessa
margem de passeio na qual deambulam os sonhos, os pesadelos, ou palhaços como ele -
despedaçados, humanos, imperturbáveis. No hospício ele encontrou os únicos dóceis, os
únicos insubornáveis - exceto se subornados pela delicadeza da fuga a qual, antes de
chegar lá, todos empreendem. Que quando aquele que não fala, ou fala pouco, encontra-
se com aquilo do qual não se fala, ou de que pouco se fala, temos a sala da televisão,
onde os loucos se reúnem para, mutuamente, se esquecerem. E isso foi Lacan quem
disse.
Dr. Pacheco, o herói dos dias úteis, não vai mais voltar.
Tadeu Sarmento
Autor de Associação Robert Walser para Sósias Anônimos (Cepe, 2015) e E se Deus
for um de nós? (Confraria do Vento, 2016), entre outros. Ganhou o II Prêmio
Pernambuco de Literatura e o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura de 2016,
com o livro de poemas Um Carro Capota na Lua, publicado em 2018 pela Tercetto
Editora. Em 2017, conquistou o 13º Prêmio Barco a Vapor, com o livro O Cometa é um
Sol que não deu Certo, publicado pela Edições SM.
Acendeu um cigarro. Não, não se deve começar um texto dizendo que o protagonista
acendeu um cigarro. Ao menos, foi o que me disse aquele coach online de escrita
criativa. Mas como devo começar se tudo começou com ele acendendo um cigarro?
Se o protagonista não acender o cigarro não terei o que contar e sem ter o que contar
de nada seria estar aqui nesta coletânea repleta de bons contos de bons autores versados
em todas as boas regras da boa escrita segundo o bom coach Fulano Vitorioso Sou Foda
Demais Escritor de Sucesso.
Alguém vai me dizer que “fumaça tóxica” não convence na boca de uma puta, que
deve ser iletrada. Se o protagonista tivesse acendido o cigarro no início deste conto,
quando ouve uma prostituta reclamar da fumaça tóxica, talvez pudesse escrever que se
trata de uma estudante de Enfermagem que faz programas para poder pagar os quase
três mil reais de mensalidade e atendia à tarde por ser casada e fazer curso noturno
numa cidade vizinha a sua. O marido desconhece a atividade. Em verdade, frequentam a
Assembleia de Deus e na cidade ela só usa saia jeans índigo blue com botões prateados
na frente, coque no alto da cabeça, nenhuma maquiagem e blusas longas e sem decotes
para manter o recato e a beleza guardadas ao homem escolhido por deus para ser seu
marido. Sei que acabo de descrever um clichê - a mulher assembleiana e hipócrita
religiosa. Todo mundo já cansou desses clichês. Por isso, que resolvi não escrever este
conto.
Se tudo isso tivesse acontecido, ele diria para ela largar de frescura, que puta não tem
gosto ou vontade. Chupa logo essa rola, ele diria. Fica muito vulgar dizer desse jeito.
Vai logo, ele diria. Agora ficou melhor. Já não me acusariam de ser machista. Vocês
sabem, anda tendo um surto de vigilância politicamente correta. Não entenda errado, eu
gosto e defendo o politicamente correto. Só não acho que a literatura tem alguma
obrigação com ela. Nem todas as pessoas são politicamente corretas e a maioria das que
são, o são apenas da boca pra fora. Os pensamentos não se convertem facilmente. Por
isso, todos amam uma pornografia boca suja, cheia de palavrões, de tapas na bunda e
vulgaridades. Ela não gosta. Ele sim. Talvez eu o descreva como o macho ácido tóxico,
cheio de obscenidades e pouco se lixando para a mulher da vez. Mulher como objeto.
Não cai bem falar isso. Tem mulher que não seja objeto? Esse seria um tipo de
pensamento que ele teria, pensando na puta - para ele apenas isso - que se recusava
seguir adiante por conta de uma baforada tóxica de Lucky Strike.
O personagem tem de ser esférico. Eu deveria ter feito um rascunho antes. Essa
história de escritor que ouve o que o personagem conta não existe. Autor tem de ser
autor. O deus de seu próprio mundo, mão sujas de barro moldando seu próprio Adão,
adormecendo-o para esculpir sua própria Eva, rejeitando a sua Lilith, a desobediente, a
empoderada, a feminista original.
Toda a ideia de mulher independente causa ojeriza no protagonista. Isso lhe traria
profundidade? Para mim, parece óbvio, mas agrada os leitores mais antenados com a
nova ordem mundial o estado de coisas. Falar de gênero e dessas coisas ganha prêmios,
né? Assim disse um escritor arrependido macho alfa metido a gênio que nunca escreve
nada, mas se acha foda, o rejeitado, o incompreendido, esperando ser descoberto pelo
Schwarcz e se tornar o novo fenômeno de vendas e sucesso de crítica e se acha maldito
porque escreve pau, cu e boceta em um romance destinado a classe média católica que
não lê nada que não seja as 10 Leis do Sucesso ou os livros do Augusto Cury apenas
para fazer posts “inteligentes” nas redes sociais.
Alice - vou ficar com esse nome - frequenta a igreja e com fervor e frequência pede
perdão a Deus por sua vida dupla. Consola-se dizendo a si mesma que tudo é por uma
causa nobre. É o seu próprio Egito, cativa a espera de um resgatador, um libertador, um
Moisés com as tábuas da lei, no caso, com o diploma de Enfermagem. A vereadora,
também irmã, já garantiu emprego no hospital da cidade.
Enquanto isso, ela diz ao marido que arrumou um estágio de meio-período numa
clínica e assim pode ajudar a pagar a mensalidade. Não conseguiu FIES, apenas um
desconto de trinta por cento para pagar até o quinto dia útil. Faz programas até arrumar
a quantia necessária. Depois jejua, ora e cai numa depressão que ninguém entende. A
sogra, também irmã da igreja, diz que é falta de Deus e precisa orar mais, jejuar mais. O
marido fica calado ante as críticas da mãe e a convida para orarem juntos.
Pensando bem, acho que tenho um bom material para um romance. Imagine as
tramas possíveis. Mas sou contista. Estou certo disso. Mas o conto é estágio para o
romance. É treino. Já ouvi poeta dizer que será sempre inferior ao romance, já vi coach
falar que é treino para romance, já vi post em Facebook sacramentando que contista é
estagiário na empresa Literatura Melhor cortar essas coisas, ninguém precisar ler. Isso é
o tipo de coisa que a gente conversa em mesa de bar, grupo de WhatsApp, bastidores de
feiras literárias. Prefiro não lidar com os egos e as muitas certezas que permeiam o
campo. Escritores são mais sensíveis que cu de morcego feliz. De onde veio isso?
Melhor parar de divagar. Isso aqui não é romance da Clarice.
Ela toma uma bofetada. Esse será o conflito. Se ele tivesse acendido o cigarro, ela
parasse o boquete para reclamar da fumaça, humilhada por fazer o que faz apenas para
cumprir um nobre propósito, ouvindo-o chamá-la de puta e, em seguida, dando-lhe uma
bofetada. Eu descreveria seu espante. Show, don’t tell. Ela cai no chão, olhos
arregalados, arrastando-se para um canto de parede, leva a mão ao rosto avermelhado - é
possível ver o desenho da mão sobre a pele -, os cabelos assanhados, alguns fios caindo
sobre o rosto. Ela se esforça para não chorar, tenta alcançar a bolsa, mas ele percebe e
adianta-se. Ela teme que ele a machuque ainda mais. Pensa em como irá justificar um
hematoma no rosto para o marido, para a sogra, para o pastor. Nada permanece em
oculto, ela lembra do versículo, e treme. É deus a castigando pelo seu pecado. Ela se
ajoelha e começa a orar. Ele para. Senta-se atônito na cama. O pau começa a murchar,
os olhos inquietos acenam para baixo. Não consegue olhar para mulher, cada palavra,
cada súplica aos céus o constrange. Ele se ajoelha em frente a mulher e a cobre com o
lençol branco e gasto do motel. Toma as suas mãos. Ela treme, os lábios movem-se sem
qualquer som. Dessa vez, ele quem fala. Ergue a voz e começa a orar. Arrependido, ele
entregue sua vida a deus. Ela chora emocionada. Seria aquela a sua vocação?
Evangelista de alcova. Ela não sabe, mas vendo-o ali, constrangido, pau amolecido,
joelhos no chão, mãos cobrindo o rosto em convulsão, ela se apraz dele e a excita. Toma
as suas mãos, apalpa o seu sexo, leva-o para cama e o ama grata ao deus que os uniu.
Está certa da separação. Afinal, foi deus quem os uniu.
Mal tocamos o último acorde, ouvi de um lugar impreciso aquele “toca Raul!”.
Aprendi com os parceiros a contar até dez, deixar passar. “Não tem jeito, mano, isso
rola mesmo”. É... mas e as composições autorais da banda, não merecem atenção? E de
novo: “Toca Rauuuuul!”. A vontade de mandar à puta-que-o-pariu chegou atrás dos
dentes e voltou. 1, 2, 3, 4, 5... lentamente. Melhor não. Não é fácil estabelecer-se no
mercado. Sem empresário, sem produção, sem bons instrumentos, tocando em bar
pequeno, com cachê baixo e dividido com mais quatro caras. Não é mole. Mas quase
todo mundo do rock começa assim. O jeito é ir compondo, apresentando, misturando
música própria àquelas que todo mundo conhece e já aprovou. Às vezes nem notam,
acham que é tudo setlist de famoso. Outras vezes percebem e ficam inquietos nas
cadeiras ou na pista. Os mais educadinhos até batem os pés, balançam o tronco, pegam
uma cerveja no balcão, olham diretamente para os músicos. Os mais sem-noção não
fazem questão disso, muito esforço. De cara se desligam, cutucam alguém para
conversar, falam alto, dão gargalhadas, distraem quem estiver batendo pezinho e
olhando a banda. “Toca Rauuuuul!”, pela terceira vez, agora mais gutural. De novo, foi
preciso conter um palavrão ou dois. De repente, aquela vontade-monstro e a imaginação
voou longe. Imagina mandar um vai-tomar-no-cu bem sonoro na testa do cara. Coisa de
filme. Mas os parceiros disseram: “Tenha calma, conte até dez, lentamente”. Paciência.
Tente outra vez.
O vocalista deu o recado: músicas autorais. E se perdeu numa explicação sobre
inspirações e influências. Tudo para valorizar o tal do “processo criativo” e dizer que a
canção se parece com alguma coisa que o povo já conhece. Mandaram. E mandaram
bem. Era mais ou menos uma balada, dessas com refrão três vezes e solo de guitarra no
meio. O palco era pequeno, mas a iluminação não era ruim. O foco de luz caía sobre a
guitarra, produzindo um efeito que fazia a gente se sentir rockstar, sonhando com
cenografias do U2 ou do Pink Floyd. Painéis de led de muitos metros de altura,
melhores marcas de baixo, bateria, pedestais para jogar pro alto e no chão, sonho. Mas
ali, na real, perder uma palheta era grande prejuízo. Melhor ser comportado.
As garçonetes passavam no meio das cadeiras servindo cerveja quente em lata. Não
era bar de vender long neck ainda. Muita gente de pé, encostada em pilastras revestidas
de Formica, coisa com jeito de cozinha velha. O show devia durar umas três horas, com
dois intervalos de 15 minutos para beber um goró e comer uma empada (menos o
vocalista, que podia se engasgar legal com aquela massa). O estresse mesmo era
aproximar-se o fim da apresentação e sair do palco. Ninguém pedia bis. Era a frustração
maior para qualquer grupo. Porra, nem por educação? Não vão dizer nada? Viram-se
imediatamente para trás, para os lados, assediam as meninas com as bandejas, os
namorados beijam-se, os bêbados falam e riem alto, gritam palavrões e, às vezes, dá até
para ouvir um xingamento: “Bosta de banda que atrapalha a gente a conversar!”.
Tocamos cinco, dez, dezoito canções. Quase sem errar. Normalmente essa turma não
identifica os escorregões. A gente logo conserta ou finge que é propositado, versão, a tal
da releitura. Funciona. Vontade de mijar. Não dá. Mulher é que consegue cruzar bem as
pernas e aguentar mais um pouco. Engraçado aquilo, mas é uma vantagem. Aprendi a
me distrair do mijo até acabar o show. Se der sorte, alguém precisará ajustar alguma
coisa mais demorada e eu fugirei pro banheiro. Vejo a plaquinha homem iluminada lá
no fundo do salão. Duas bichas na porta se pegando.
Vinte canções. Várias nossas. O babaca deve ter ido embora, desistiu de pedir.
Caralho, que maravilha. Vamos poder tocar nossa seleção até o fim. Para resolver o
problema de cotas, enfiamos lá uma Rita Lee e uma Janis Joplin. Pessoal só conhece
Mercedes Benz, então vai. Rola até uma cantoria mais forte, mas só de alguns. A
música andou fazendo sucesso com cantor brasileiro, então teve um reforço. Moçada
cantando com a pronúncia possível, maioria das vezes sem saber a letra, pura
embromation, mas fazendo cara de intercambista no exterior. Não é mole. Povo que não
sabe o que é o amor, nem sabe quem é, hoje ama, amanhã odeia. O vocalista não fazia
feio. Tinha morado no Texas quando era adolescente, se gabava disso, numa casa de
família (tinha de chamar os velhos de pai e mãe mesmo), e aprendeu um inglês
convincente. A Janis não deve se incomodar muito.
Vinte e três. As duas próximas e últimas são para agitar, para deixar saudade. Nunca
acontece. Show longo, pessoal já cansado, meio bêbado, quem tinha de pegar alguém já
pegou, banheiro sujo, até vômito no vaso, no chão, respingos na parede. Bebida quente,
era isso desde o começo. A maquiagem das meninas já escorreu, suor na testa, bolsinhas
pequenas de lado assim, a tiracolo, celulares nas mãos, como talismãs. Tinder fervendo
geral. As músicas não prendem a atenção, nem as de refrão batido. Pessoal já vai
combinando o sanduba ou o macarrão da madrugada, em outros estabelecimentos. Bar
de música não serve nada direito. Batata frita encharcada e cara. Sempre faço as contas
dos quilos de batata que dava pra comprar com aqueles vinte ou vinte e dois reais.
Caralho! Aí eles salpicam uns bacons meio queimados e põem um queijo derretido
enjoativo por cima e beleza, pessoal anota na comanda e paga na saída, junto com o
couvert da banda. Ah, claro, muita gente pede pra tirar o couvert. “Cheguei tarde, quase
não ouvi”, “Minha mesa era no fundo, nem vi direito os caras”, “Cheguei nas últimas
músicas”, “Não tocou Raul”. Cara, é um trampo. Minha mãe disse, desde que eu era
pequeno, que eu devia estudar mais Matemática, encarar as dificuldades. Acho que o
sonho dela era que eu fosse engenheiro. Ela achava bonito. E eu até fiz o que ela pediu,
mas na faculdade o que rolou foi encontrar uma turma que tocava violão e matar todas
as aulas de Cálculo ou a porra da Programação. Não dava nem pra enxergar no
horizonte o dia da formatura. O máximo que eu me aproximaria dessa vida séria e
promissora era me tornar um Engenheiro do Hawaii. Fiz essa brincadeira com a velha
um dia e ela me olhou horrorizada. Puta banda ruim. Nem pra isso o trocadilho serviu,
merda. Ela saiu pelo corredor do apartamento dizendo “pra ficar tocando Infinita
highway, aquela merda?”.
Alguém pisou no cabo do baixista e rolou um silêncio maior entre uma música e
outra. Muxoxos e pigarreamentos gerais. Sussurrei um palavrão e mandei os caras
acelerarem. Sem roadie é foda. Tínhamos um voluntário, o Max, que era irmão caçula
do ex-baterista. Mas a desistência do batera, a briga enciumada, a discordância sobre os
rumos da banda e a aprovação dele num concurso da Receita Federal, e a gente perdeu
ambos. Ninguém pra ajeitar os fios e carregar as coisas pro carro velho estacionado no
fundo do bar. A gente monta e desmonta tudo, incluindo a faixa com nosso nome que
fica ali na frente, pro pessoal saber e gravar. Ter o nomão da banda no front é
fundamental. Vai que chega um empresário, olheiro de gravadora, e resolve nossas
vidas. Bobagem. Isso nem existe mais, porra. Negócio é entrar no Spotify e ser
consumido assim. Não adianta nada, convenhamos. Pessoal de bar nem olha o nome da
banda. Nem faz questão. Não grava nenhum refrão autoral e não decora as fisionomias
da gente. As meninas que beiram o palco dando bola e os gays que tentam a mesma
coisa talvez reparem mais, mas no escuro a gente fica devendo mais nitidez. Mulher
gosta é de guitarrista. Acaba o show e elas vêm com papo de “você se parece com o
Slash” ou aqueles boys boa-pinta do Bon Jovi, sei lá. Vocalista também faz sucesso. É
garantido. Leva assédio de veado e de mulher. Pode escolher. “Você me lembrou
demais o Axl Rose, o Bono, o Eddie Vedder, nossa! Seus trejeitos, seu cabelo”. Nosso
vocalista é bi. Se gosta, leva. Não faz distinção nem questão. Gosta da pessoa, depois vê
se é macho ou fêmea. Tanto faz. Acho legal. 100% do espectro. Quem me dera. Baixista
fica meio chupando dedo. Pessoal não sabe direito o que aquele instrumento faz no
conjunto. “Ah, você é aquele som mais grave que a gente mal ouve?”
Última canção. Logo já vai me dar aquela ansiedade da porra pelo bis, que
provavelmente não virá. Pessoal tá distraído há muito ou prestando atenção em outras
coisas. Ao menos o bosta do cara do “toca Raul!” deixou a gente em paz. Deve ter
arranjado alguma coisa e saiu, mudou de bar, foi encher o saco de outra banda. Pô,
mano, quer Raul vai ao cemitério. Alguns têm o arrojo de pedir até a música: “Gita!”.
Outros cantarolam o refrão, mal pra caralho, mas a gente reconhece. “Viva, viva, viva a
sociedade alternativa”. Mas a maioria só pede genérico assim, “toca Raul”, dando
ênfase no Rauuuuuul, pra não ter erro, não deixar dúvida. E a gente até que sabe, tá
ligado no repertório, nas composições do cara. Não desmerece. A gente até consegue, se
quiser, mandar uma Mosca na sopa ou uma letra longa do tipo “eu nasci há dez mil anos
atrás e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais”. Mas é foda, é osso, porque
a gente quer mostrar nosso som autoral e não consegue, saca? É mais é isso, não é
desprezo nem nada. Até rola um respeito, maior roqueiro nacional, pioneiro. Mas a
gente não aguenta mais aqueles acordes, ficar atendendo bêbado de boteco o resto da
vida pra cantar canção de autoajuda. O “toca Raul” rola com qualquer banda de
garagem, até se você tocar gospel na igreja alguém grita essa porra. Eu lhes tenho
horror!
A última música acaba em fade out na nossa gravação demo, original, num estúdio
mequetrefe aí que arranjamos. A gente teve de fazer uma adaptação pro show, não
chega a ser um novo arranjo nem nada. Optamos por um corte mais abrupto, o que
deixa o som com jeito de apoteose. No nosso delírio, queríamos que a plateia lotada
fizesse aquele “ahhh” de multidão, todo mundo arrepiado. Claro que não. Na real, não
acontece nada. Dois ou três caras puxando umas palmas, meio sem graças, espaçadas.
Cinco meninas dão continuidade. Mulher tem um pouco mais de sensibilidade. A gente
se abraça de lado, abaixa, faz uma cena de banda grande famosa. No fundo rola até uma
vontade de chorar, mas aí conta-se até dez, lentamente, e espera-se que um dia o
reconhecimento venha. Pô, a gente rala pra caralho. Por que não viria? Às vezes chego a
pensar que talvez desse mais certo se eu tivesse sido escritor. Profissão que depende de
menos gente, sem banda, muita editora. Mas já me disseram que é uma merda igual ou
maior. Engenharia, não. Isso é que não dá. Então o jeito é acreditar geral na ralação da
gente.
Último acorde. Corte. Fim abrupto. Cinco palmas espaçadas. Nem vimos direito a
cara das pessoas educadas que fizeram isso. De cima do palco, o que eu podia ver era
um casal meloso na mesa da frente, três garçonetes meio à toa, com cara de “acabem
logo que eu quero ir embora”. Sou solidário a uma coisa: tanto nosso “toca Raul”
quanto os assediadores delas foram embora. Nada de bis. A gente até preparou um
Rolling Stones, mas não pediram. O jeito é beber a cerveja quente atrás da bateria e
começar a desmontar as coisas. Peças de bateria, cabos, plugues, cases, palhetas, cordas
arrebentadas, microfone, jaqueta pelo chão (vocalista é tudo igual...), copos, enquanto
vamos conversando sobre ajustes e sobre as coisas que funcionaram bem ou mal. Meu
contrabaixo precisando de uma limpeza, todo suado, um arranhão na parte de cima,
coisa de sobrinho pequeno. Titio vai te dar uma porrada se mexer aí. Dito e feito.
Desmontar é meio deprimente, em especial depois de umas palmas sem graça, a esta
hora da madrugada. Desmontar, empilhar, pôr no carro. Aqueles toscos do Iron Maiden
têm um avião, velho. Imagina? O vocalista é quem pilota a porra da aeronave. A gente
nesta merda desta Doblô velha, custando a dar conta da gasolina, e os caras viajando a
jato. Aquele avião com o Eddie pintado. Chega dar raiva. Fazer o quê? Nosso
equipamento cabe todo neste utilitário meio esquisito. Tá de bom tamanho. É que temos
para o momento, como tá na moda dizer. Mas isso não minimiza minha frustração.
Chegar em casa agora, comer um resto de qualquer coisa da geladeira, ver TV pra
abaixar a adrenalina, deitar sem banho mesmo, para não acordar ninguém. Pai e mãe
velhos, irmã no quarto ao lado. Não têm nada com isso.
Esquecemos alguma coisa? Vamos contando tudo, quantas caixas, quantos amps,
quantas palhetas, quantos isto, quantos aquilo. Falta, falta alguma coisa. O que você
esqueceu, seu burro? O vocalista se acha superior. Vai lá, volta lá. Já baixaram a porta
de aço. Foda-se, pede pra abrirem. Volta lá. Sobra sempre pra mim. Desço da Doblô
escura, de vidro trincado, quase caio na calçada, vou lá buscar a porra da faixa com o
nome da banda. A gente pagou uma grana pra fazer esse banner de vinil, coisa meio
brilhosa, pra colocar assim na frente do palco. Sem isso o pessoal nem fica sabendo
nosso nome. Caralho, dá trabalho. Tem de desprender e enrolar aqueles três metros de
banner, fazer virar um canudo, enfiar embaixo do braço, sair carregando. E enquanto eu
enrolava a faixa, a garçonete com cara de tédio, mascando chiclete, lia alto,
silabadamente: Me-ta-mor-fo-se-Am-bu-lan-te. Dar nome a uma banda é difícil pra
caralho. Já tentou?
Ana Elisa Ribeiro
Mineira de Belo Horizonte, 1975. Contista, cronista, poeta, com livros publicados
desde 1997, sendo os mais recentes Beijo, Boa sorte (Natal, Jovens Escribas, 2015,
contos), Anzol de pescar infernos (SP, Patuá, 2013, poesia), Xadrez (BH, Scriptum,
2015, poesia), Álbum (BH, Relicário, 2018, poesia) e Dicionário de imprecisões (BH,
Leme, 2019, poesia). É professora e ex-vocalista de banda de rock.
Podem rir. Não estou jurando inocência. Eu deveria estar guardada desde antes. Deve
ter uns cinco anos. A famosa prescrição? Nem entendo disso. Por outra coisa, mas não
pelo imposto de renda. Juiz psicopata fez que não reconheceu meu nome no processo
que me condenou. Maria Isabel Cadore, a boa e velha Bel. Ele agora é conhecido como
o Desembargador Odilon Sagres. Pois não. Se a Dorinha viesse me visitar, eu queria
que tirasse A Morte de novo no tarô. Dessa vez pro psicopata. Aquela lá é uma
astróloga. Mas nunca me perdoou. Acha que fui responsável pela morte da nossa amiga,
a mais linda das meninas. Não fui. Eu não sabia de nada. Ou fui, de certa forma?
Dorinha disse que não significa que alguém vai morrer quando sai o Arcano 13.
Significa renascimento. Deixar o que não serve para trás. Até acredito que ela não
previu a morte da minha favorita, mas ela se deu conta que tinha a ver com as meninas.
Tossiu. Estava vendo progresso. Franziu a testa. E também desgraça. Ficou tonta. Não
conseguia ver nada nítido. Logo ela, que sempre sabia tudo do início ao fim. Eu deveria
ter desconfiado. Até sonhei que caíram meus dentes. Vocês sabem o que significa isso,
né, meninas? Morte de alguém próximo. Na certa. Trinta mil reais por um fim de
semana com a defunta no Guarujá? E nem era pra ele. A velha história de mudar a
história de um país usando a mulher como atrativo. E eu não sei? Fiz disso meu
negócio.
O negócio do Odilon era matar o superior que iria decidir o maior caso de corrupção
do país. Jurou que foi acidente. E continuou a contratar minhas meninas. Para ele, para
os amigos poderosos. Só deputado federal. Mandava as meninas pra lá, trazia os caras
pra cá, que furavam as votações sem importância. E ele cantava, satisfeitaço da vida,
como naquela música do Raul:
Depois daquele jogo de tarô, muita coisa mudou. Para quem passou fome quando
criança, construir uma mansão em Alphaville e dirigir uma Ferrari é como renascer da
lama. O problema foi o movimento das meninas. Eu tentava controlar tudo pela internet,
mas elas sempre apareciam para pedir colo, pouso, e iam ficando. As vizinhas
perceberam a zorra toda. E denunciaram meus, como se diz, sinais exteriores de riqueza.
E eu nem imposto de renda declarava, vocês já viram alguém do metiê declarar alguma
coisa pra Receita?
Fui condenada em primeiro grau, mas nem iria puxar cadeia por muito tempo.
Guardada mesmo só por um ano. Logo viria o semiaberto. Problema foi o Tribunal.
Odilon Sagres, que tanto chupei e que me ensinou a fazer os contratos grandes por
escrito, foi quem aumentou minha pena para quinze anos de prisão. Regime fechado,
negas. Poderia ter se declarado suspeito pra me julgar. Mas não, o jurista de reputação
ilibada não se sujaria por pouco. Tão bom que planejou a morte da minha menina. Nua,
no meio do mar. No helicóptero que caiu.
Como foi que ele escreveu na porra do acórdão? Pecunia non olet. Isso pra dizer que
não importa que a atividade seja ilícita, o imposto incide igual. E ainda mandou uma
historinha, só pra se fazer de culto. Sobre o imperador romano que começou a cobrar
taxa pro uso dos banheiros públicos. Questionado pelo filho, mandou que cheirasse as
notas. Cheiram como os excrementos? Não, estão limpinhas. Não importa de onde
vem. Dinheiro não fede.
Entenderam, meninas? Matar pode. Agora, vai sonegar pra cê ver. Psicopataço. Não
duvido que um dia chegue a presidente. Dorinha não é a mesma astróloga, mas eu
conheço a história do início ao fim.
Cris Vazquez
Advogada pública e escritora. Publicou o romance O abismo entre nós pela editora
Moinhos em 2017. Atualmente é Mestranda em Escrita Criativa na PUC/RS.
www.crisvazquez.com.br
Agradava o pai, irredutível em suas opiniões, ou ia para o olho da rua dormir em uma
vaga num cortiço. Ou para o puteiro, a convite de Doriana Michelle, que pagaria para
poder gemer e foder de verdade com ele o que era teatro o restante da noite. Agradava o
pai integralmente ou pegava dois ônibus lotados para chegar a um supermercado lotado
e se enfiar num depósito lotado de caixas de hortaliças e vinhos baratos e sabões em pó
que o fariam espirrar - alergias desde bebê - e dar uns amassos durante o intervalo de
almoço na Izildinha do caixa. Ele e ela, irmanados pelo gosto da mesma marmita:
cebola e alho. Boca, peito, caralho, buceta fedendo à cebola e ao alho da boca um do
outro. Um festival de temperos explodindo em arrotos durante a safadeza. Os dele,
sonoros e descarados. Os dela, mais discretos e entrecortados pela respiração acelerada
de um quase gozo. Quase. Porque nem era gozo aquele livramento silenciado. Ele
tampando a boca oleosa de Izildinha para impedi-la de gritar. Ela engolindo toda a porra
dele para não deixar vestígios. Se fossem pegos, poderiam dizer que era desejo, fogo,
paixão, preliminares. Trepada, não. Ninguém podia provar nada.
Carlos Emannuel e essa imagem recorrente que inventou nos anos de faculdade para
se vingar do pai que o obrigava ao exílio acadêmico nas terras do Tio Sam. Tio de
merda. Que permitia a ele somente uma montanha de livros entediantes. E duas ou três
mulheres branquelas que ele podia convidar para sair no fim de semana graças à mesada
generosa que o pai lhe mandava.
Agradeciam-se assim. O pai e ele. Ele, por não ter que encarar a vida num
supermercado. O pai, por vê-lo se transformar no seu orgulho, no seu filho de ouro.
Graduou-se. Fez doutorado. Trocou o Oi! por um Hi, there! esnobe que o afastava da
maioria das pessoas. Das pessoas interessantes que ele queria conhecer.
Até que o pai morreu. Deixando para trás dívidas que nenhum credor perdoou. E a
mãe idosa. Ah, sim! E a educação em Princeton. Impecável.
Foram-se embora, ele e a progenitora, de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, onde
havia mais campo de trabalho para ele. Foram-se calados, apenas as malas e alguns
objetos de casa dentro de um carro velho que fedia a pelo molhado de bicho.
Empréstimo de um primo. A mãe, ele e um cachorro velho que morreu atropelado nas
primeiras semanas da sua vida carioca.
Carlos Emannuel. Anos indo do trabalho para casa, de casa para o trabalho, do
trabalho para casa. Anos agradecendo ao pai morto que lhe permitiu ser alguém. Anos
ouvindo da mãe que era por mérito que ele estava reconquistando tudo na vida. Anos
remoendo uma pergunta na cabeça: Que mérito? Não era mérito ele ter podido estudar
em Princeton. Não era mérito ele não conhecer os ônibus lotados, nem os
supermercados lotados, nem as carnes lotadas de tesão de Izildinha.
Resolveu pedir perdão a Deus. A quem mais? Virou homem de igreja. Escolheu o
melhor templo, o melhor pastor, e deu o melhor dízimo. Conheceu outros como ele:
filhos do mérito. Participou de vigílias em grupo. Noites e dias de Bíblia e negócios.
Viajou com eles, orou com eles, pescou com eles. Associou-se comercialmente a eles.
Uma espécie de máfia de Cristo. Tudo o que tocavam virava ouro. Para honra e glória.
Riqueza, um antigo status que voltava. E com isso as roupas, os carros, a cobertura
em Ipanema. A praia que ele nunca frequentou porque não tinha tempo sobrando nem
para a piscina da própria cobertura. Esqueceu-se da pergunta que o remoía. Tornou-se,
freneticamente, um homem do trabalho e de Deus. E do dinheiro.
Domingo. Dia dos homens de mérito. Dia de agradecer no templo. Agradecer. O que
Carlos Emannuel sabe fazer melhor. Além, é claro, de transformar em ouro tudo o que
toca.
Ele está no primeiro banco. Reservado aos empresários que vão palestrar para os
outros homens da Nação dos 159. Que vão demonstrar como é possível enriquecer pelo
mérito, pelo dízimo, pelo agradecimento. Aleluia! Que vão ensinar o toma-lá-dá-cá que
eles precisam praticar para conquistar posição, respeito e, obviamente, muito, mas
muito dinheiro e prestígio. O banco dos que não pecam. Porque pecado é não agradecer
- ao pai; ao Pai. Porque pecado é não pagar o dízimo. Porque pecado é ser vagabundo.
Porque pecado é ser gay. Porque pecado é foder a Izildinha. Porque pecado é não ter
uma cobertura em Ipanema.
Carlos Emannuel está calado. Pensando na véspera. Na barbearia em que ele
conheceu Raimundo. Que ganhou de presente do padrinho barba, cabelo e bigode. Com
direito a massagem no rosto e toalha quente. Porque era dia do seu casamento.
Raimundo. Vinte e quatro anos. Carregador no supermercado do bairro. Raimundo. Que
não via a hora de dizer “minha esposa” para a namorada Izildinha, caixa do turno da
noite no mesmo supermercado. Que ria, feliz, enquanto contava que as tias e as irmãs
iam passar o dia na cozinha preparando salgados, caldos, estrogonofes − Vai ter de
frango e de carne!, ele dizia agitado - e docinhos, muitos docinhos. Para os convidados.
A tia confeiteira estava fazendo um bolo-surpresa. De três andares. E os quatro
engradados de cerveja, recebidos de presente dos dois gerentes do supermercado, já
estavam gelados. Raimundo. Que convidou todo o mundo para a festa. Vai ter música
até de manhã!, garantiu orgulhoso.
A noiva esperava por uma trégua das nuvens há mais de quarenta minutos, e o noivo,
tranquilizado pelos limpadores de para-brisa do Mercedez Benz e seu vai e vem
hipnótico, tagarelava com o padre, seu conhecido desde a catequese. Os convidados
ainda não estavam inquietos, aproveitavam a decoração de lírios e copos de leite para
selfies e stories, e faltava um tanto até começarem a especular sobre o cardápio do
almoço.
A festa foi correta, brindes, o bolo, incontáveis fotografias ao lado de mulheres muito
maquiadas e homens desconfortáveis com as inéditas gravatas. Angélica, que se sentia
quase uma intrusa na própria festa, se surpreendeu com as notas se acumulando nos
sapatos forrados do mesmo tafetá do vestido.
Pouco antes do entardecer, quando já não restavam muitos convidados sóbrios, o pai
do noivo recomendou pegarem logo a estrada para não enfrentarem o asfalto com chuva
à noite. Se saíssem logo, chegariam ainda com luz em Gramado. Outra vez Angélica se
deixou levar.
O aguaceiro persistiu, mas já não trazia apenas lembranças e sim uma curiosidade
quase eufórica. Angélica não se entusiasmou com a cama forrada de pétalas, deixou o
marido beber o espumante quase sozinho e quando o viu adormecer tomou um banho
revigorante, colocou os sapatos na mochila e chamou um táxi para a rodoviária.
Maurem Kayna
Curiosa, um tanto perplexa com o mundo, autora de contos espalhados em e-books e
impressos, do livro-jogo Labirintos Sazonais e de folhas secas bordadas com vontades e
poemas (nunca seus). Acredita na palavra como matéria-prima para a vida, seja real ou
inventada. www.mauremkayna.com
“Agora, estou certo de que essas estruturas marcadas pelos risos e manchadas pelas
lágrimas são mais do que edifícios inertes. É impossível pensar que, ao fazerem parte da
vida, não tenham absorvido as radiações provenientes da radiação humana.”
Will Eisner
1945
Meu avô foi para a guerra antes de conhecer minha avó e antes que o irmão dela -
que era apenas o motorista do seu caminhão - se tornasse o seu cunhado e portanto o
meu tio-avô, todos eles ramos de uma intrincada árvore genealógica que, em 1945,
estava temporariamente suspensa porque o meu avô foi dado como morto na guerra e
tudo levava a crer que o meu tio-avô seria o próximo, porque acabara de ser convocado.
Meu tio-avô foi convocado quando a guerra estava prestes a acabar mas ninguém
sabia ainda disso. Caiu nas graças de um major depois de consertar o motor do seu jipe
e foi designado como o seu motorista pessoal. O major prometeu que iria retardar sua
ida à Europa até quando fosse possível e, quando não foi mais possível, chamou meu
tio-avô num canto do quartel e proferiu sua sentença de morte: ele embarcaria para a
Europa no dia seguinte e por isso lhe concedia o dia inteiro de folga.
Meu tio-avô chamou um soldado amigo para ir até a cidade e fazer uma coisa inédita
em suas vidas: ir ao cinema. A cidade estava deserta e os dois subiram as escadarias do
cinema exaustos, como se galgassem os patamares de um cadafalso. Era um filme
americano de guerra em que muitos alemães morriam e o herói não apenas sobrevivia
como beijava a mocinha no final.
Ao saírem do cinema, as ruas estavam tomadas por carros e mulheres que acenavam
para eles e gritavam que a guerra havia acabado. Meu tio se abraçou ao amigo e os dois
voltaram ao quartel abraçados, cantando.
1960
Meu avô ainda não era meu avô mas já havia casado com a minha avó quando foi
pela primeira vez ao cinema. Não era um filme de guerra mas havia uma cena de guerra
e ninguém sabia disso. Meu avô tinha sido atingido pelo deslocamento de ar de uma
granada e voltara traumatizado da Itália. Tinha terrores noturnos e acordava gritando.
Nunca contara nada a respeito da guerra, apenas que muitas coisas ruins aconteceram
em Monte Castelo e em Firenze os italianos chamavam a manteiga de burro.
Quando viu a guerra no cinema meu avô abandonou a sessão e saiu correndo sem
dizer nada. Minha avó foi encontrá-lo sentado nas escadarias com a cabeça entre as
pernas, chorando feito uma criança.
1975
Meus pais se conheceram no cinema, numa noite de show de calouros. Meu pai
ganhou o primeiro prêmio imitando Raul Seixas e minha mãe o segundo, imitando
Diana. Ela usava um vestido que parecia um lençol e que era muito longo, lhe cobrindo
os pés. Meu pai estranhou o barulho de uma corrente, quando desceram as escadarias do
cinema e foram namorar na praça.
Meu avô descobrira que ela iria competir no show de calouros e acorrentou a filha na
armação da cama. Ela desmontou a cama para se libertar, tornou a montá-la e deixou
uma grande boneca de pano no seu lugar, em cima do colchão. Saiu pela janela do
quarto.
Quando meu avô descobriu a farsa, ficou esperando pela filha na janela. Ao voltar,
na alta madrugada, só o que se ouviu na vizinhança foram os barulhos da corrente e os
gritos da minha mãe, que levou a maior surra de que se lembra na vida.
1990
A primeira vez que eu fui ao cinema foi para ver um filme dos Trapalhões. Eu estava
de castigo e não pude ver o filme na estreia. Minha mãe me prometeu que se eu me
comportasse eu poderia ver o filme na outra semana, quando ele ainda estaria em cartaz.
Eu me comportei e, na outra semana, fomos ao cinema e assistimos ao filme de pé,
porque a sala estava lotada de crianças. Minha mãe conta que, ao entrar no cinema, eu
olhei para toda aquela multidão de meninos e meninas da minha idade e, estupefato,
perguntei: “Mas mãe, o que será eles fizeram pra ficarem todos de castigo?”
Já não havia tantas crianças de castigo quando, anos depois, arrombamos a porta do
cinema abandonado e entramos na sala de projeção com uma porção de latas de óleo
com a tampa cortada e uma vela dentro - porque não tínhamos dinheiro para comprar
lanternas. O projetor ainda estava lá e alguns rolos de filme jaziam caídos no chão,
soterrados numa camada de poeira.
Coloquei uma das películas contra a luz da vela e tive certeza de que vi o rosto do
Zacarias, que tinha acabado de morrer. Deixamos o cinema às pressas porque alguém
começou a sentir cheiro de queimado e gritou que tínhamos provocado um incêndio.
Nas paredes da sala, entre os cartazes de velhos filmes, uma mensagem se iluminava
com a chama cambaleante de nossas velas.
“Apenas agora entendo o que Pablo Neruda quis dizer quando escreveu: ‘Tão curto é
o amor, tão longo é o esquecimento’. Minhas saudades. Assinado: Um cinéfilo
anônimo.”
2005
O cinema foi reinaugurado sem grandes pompas, porque tinham anunciado que a
partir de agora só exibiriam filmes adultos, e ninguém queria comparecer na estreia. Eu
me lembro de sempre passar pela frente do cinema e me divertir com os títulos dos
filmes. Jorrada nas Estrelas. Ânus Dilacerados. O Diabólico Tesão Anal.
Eu estudara num colégio católico cuja diretora era uma mulher muito rígida, que ia à
igreja todos os domingos e dificilmente dispensava algum aluno da cadeira que ela
mesma ministrava, de religião. Seu marido era professor da universidade e se vestia de
uma forma tão anacrônica que ainda usava suspensórios. Ele era uma figura
inconfundível, baixinho e atarracado, careca e de bigodes, com uma mania insistente de
erguer as calças mesmo estando elas já muito suspensas por causa dos suspensórios que
ele nunca dispensava.
Todos os domingos, enquanto a mulher rezava na igreja, ele não se importava em ser
visto cruzando a rua, tropeçando nas próprias calças antes de entrar no cinema.
2020
A reforma já vem durando alguns anos. Pouco dá para ver por trás dos tapumes, mas
dizem que a escadaria está sendo derrubada, bem como o palco e toda a estrutura do
segundo andar, onde ficavam os camarotes. Dizem que uma grande empresa adquiriu o
prédio - “Uma empresa do estrangeiro”, é o que se repete nas ruas, enquanto uns
elogiam o trabalho e outros criticam, quem precisa de um cinema na cidade quando
temos tão poucas escolas e vão lá ver se o hospital alguma vez já foi reformado.
São oito horas e ainda tenho quarenta e cinco minutos antes da palestra, cheguei bem
cedo de propósito, gosto de interagir com o invisível dos lugares onde vou falar. Você
tinha razão quando dizia que meus livros ainda seriam disputados pelas escolas. Uma
turma de pequenos do terceiro ano, deduzo pela altura em torno de um metro e vinte,
um metro e trinta, o mesmo tamanho dos gêmeos hoje, está saindo da sala para brincar
de aprender, exatamente como você adorava fazer com seus alunos. A professora tem os
cabelos castanhos presos num rabo de cavalo e veste um guarda-pó branco com os
bolsos de um tecido de florezinhas lilases, levou-os para o meio do pátio. Você ia
adorar os abacateiros desta escola. Pelo sorriso da professora, ela é quem mais está se
divertindo e isso foi outra das razões, a principal, na verdade, para me lembrar de você.
Pediu para abrirem os braços, assim, como se fosse para abraçar, e depois olharem para
o sol. Conseguem me dizer de que lado ele nasce todos os dias? Apontem o braço
direito para lá. O lado oposto é o poente, para onde devem esticar o braço esquerdo.
Tudo isso para ensinar a encontrar o Norte, sempre em frente. Pensei nas professoras
que me ensinaram sobre a Rosa dos Ventos, sempre adorei esse nome, a de geografia, a
de ciências, a que lecionava todas as matérias, nos primeiros anos da escola, acho que
por isso me apaixonei por você assim que soube como você se chamava, Rosa, todas
em algum momento, ou por alguma razão, falaram dos pontos cardeais, assim como
você, que me fez prometer que nunca perderia meu norte. Os alunos voltam para a sala
de aula e a continuação da brincadeira com o sol é colorir as quatro pontas principais da
Rosa dos Ventos, recém-descobertas: Leste, Oeste, Norte e Sul. As outras pontas nos
entremeios do leste e do oeste, intercaladas entre o nascer e o morrer, aprenderão aos
poucos, como eu também aprendi, como você me ensinou, Rosa. Esses são grandes, já
não chamam a professora de mãe por engano, para depois ficar com vergonha, sem
saber que esse pode ser o momento mais feliz do dia para ela. Pelo menos era assim
com você. O céu fica nublado de repente e não posso conferir as horas na sombra
projetada no chão. Sei que falta pouco para me chamarem para o salão, com quatro ou
cinco turmas juntas. Todos leram meu último livro, mas vou começar contando sobre
as horas que se adivinha pelo barulho da rua e pelo cheiro do ar, quando o sol estiver
escondido atrás das nuvens. O norte está sempre em frente, você me dizia, e ainda com
mais convicção depois que a dor começou a apertar lugares indefiníveis no fundo do seu
abdômen, como se lá tivessem crescido os dedos de uma luva que inflava e desinflava
regida por uma lei cujos únicos critérios era confundir os especialistas. Chegaram a
cogitar que fossem os resquícios do parto às pressas, a obstetra depois se justificando, o
oxigênio sem passagem por algum problema no cordão, nossa corrida até o hospital,
tudo muito rápido para que se salvassem as três vidas. E a sua felicidade, Rosa, quando
também você conseguiu respirar de novo, os bebês grudados na sua pele, farejando o
leite, adivinhando o colo que você jamais negaria enquanto pudesse. A dor precisava de
uma explicação, mas antes que, enfim, depois de tantos meses, descobrissem do que se
tratava, você já ouvia o apito do trem e sabia que para o embarque não precisava bilhete,
apenas deixar toda a bagagem. Os alunos foram os primeiros a não acreditar que você
não voltaria para a sala de aula, do diagnóstico à paralisia das pernas foi o tempo das
férias escolares. A diretora não queria concordar, mas você foi estratégica, aliou-se à
nova professora e a convenceu, com um olhar nos olhos, que não seria justo apenas
desaparecer. Ouvimos o alvoroço quando a avistaram pela janela. Empurrei a cadeira de
rodas até o centro do quadro negro e achei melhor aguardar no corredor para que os
alunos perguntassem à vontade o que quisessem. Eles levantavam a mão para pedir a
palavra, como você ensinou, até chegar a vez do ruivinho cheio de sardas, eu sabia que
era o seu preferido. Professora Rosa, quando você vai morrer? Ninguém sabe a hora
exata do trem e isso é o mais bonito, você me dizia, depende de todos estarem prontos
para a despedida. Você ficou em silêncio no caminho de volta para casa, pediu para
tomar banho sozinha, garantiu que não ia cair da cadeira especial para o chuveiro e foi
a primeira vez que vi seus olhos inchados, reduzidos a um risco pelas lágrimas.
Custaram a voltar ao tamanho normal e a partir desse dia nosso acordo mudo foi
chorarmos sem nos esconder. Você não queria que eu fosse pai e mãe, deveria
encontrar uma nova mulher, que gostasse das mesmas músicas, que achasse bom
começar o namoro dividindo o tempo com duas crianças pequenas, que soubesse ver as
horas na sombra criada pelo sol. Nunca deixe de observar o trajeto do sol e, se puder,
fale de mim para os meninos, eles precisam saber que a mãe não os abandonou. É fácil
as crianças acharem isso quando acordam de manhã e não encontram resposta para o
chamado. Mãe? Mãe? Mãe?! Você conseguiu cantar o terceiro Parabéns para os
gêmeos, como se tivesse feito um acordo único com o maquinista do trem, passaria para
pegá-la apenas no dia seguinte, às sete, depois de abertos todos os presentes. Não perca
o Norte. As semanas seguiram e eu senti raiva dos dias azuis, das tardes sem nuvens. As
horas paradas na sombra, a minha, que eu não tinha coragem de encontrar no chão. Não
escrevi uma palavra por meses, não conseguia contar a minha tristeza, o mal dentro de
mim muito maior do que o bem. A Rosa dos Ventos rodopiando desgovernada. Senti
raiva das histórias que terminam na morte, na prisão, na despedida, na loucura. Não
havia você para me perguntar como eu continuaria essas histórias depois do fim. A
professora chegou para me buscar, Rosa, e daqui já escuto o alvoroço dos alunos.
Ana Luiza Rizzo
Gaúcha e mora em Porto Alegre.
“Claro que estamos, Aquária! Só aqui fede merda desse jeito. Merda, lixo e água
podre. Que sina!”.
“Não reclama, seu imbecil. Dos males, o menor! Sonegação de impostos em Estrela
Lunar costuma dar pena de morte. Muitos vão parar no Buraco Incrivelmente Negro.
Nosso julgamento foi até suave. Essas missões nesse planetinha hediondo não são nada
agradáveis, mas poderia ser muito pior!”
“Ok, Ok. Você é quem diz. Eu não gosto daqui e nunca entendi a obsessão da velha
tartaruga por esse lugar horrível.”
“Cala a boca! Não blasfeme assim contra a Grande Mãe. Ela certamente procura algo
aqui. Sua sabedoria é infinita. Jamais a alcançaremos”.
“Nunca é tarde para um recomeço. E tenho muito, muito medo de buracos negros.”
“Tem? Eu tenho medo é dessa rotina de ficar vindo aqui na Terra. Lugar mais
sinistro que já conheci”.
“Tudo bem. Agora cala a boca e senta, seu merda preguiçoso. Passou a viagem
inteira dormindo, agora assume essa porra dessa direção aqui que eu tô com câimbra nas
pernas!”
A cena narrada acima se repetia sempre. Aquária pilotava, Drago dormia durante
todo o percurso. Chegavam à Terra de madrugada, discretamente. Não podiam ser
vistos por olhos humanos. Simples assim.
“Hum... deixa eu ver aqui... Não é uma desgraça... mas é uma coisa muito importante
pra história dos humanos. Vai cair um muro! Povinho medíocre esse, hein? Como assim
a queda de uma parede pode ser tão importante?”
“Quero saber só das desgraças, Aquária! É aqui que vai cair o muro? Vai cair em
cima de alguém? Pessoas serão esmagadas?”
“Não, sua anta. O muro vai cair em Berlim, em um país chamado Alemanha. A gente
tá no Brasil. Segundo minha pesquisa aqui, um lugar deveras muito fodido”.
“Ô! Pra começar, durante três séculos, humanos de pele clara ficaram escravizando
humanos de pele escura. Isso fodeu a porra toda. Até hoje os humanos de pele clara
acham que são melhores que os de pele escura. Isso dá muito problema e é fonte, pelo
que eu tô vendo aqui no meu computador, da maioria das desgraças. Hum... checando...
hum... nossa! Humanos aqui morrem porque não conseguem arranjar alimentos. Eles se
matam bastante também. E parece que a economia deles não vai nada bem. Acabam de
sair de uma ditadura. Que torturou até filhotes de humanos. Drago das galáxias! A
energia aqui é pesadona! Vamos cobrir o umbigo com esparadrapo! Uau! Achei algo
que nem aconteceu ainda! De acordo com minhas pesquisas, uma desgraça
monumental: no fim desse ano, um camarada chamado Fernando Collor de Mello vai
ganhar as eleições e ser o líder dos brasileiros”.
“Mas, Aquária, por Cthulhu! Por que vai ser uma desgraça?”
Foi nessa hora, antes que Aquária pudesse continuar sua pesquisa sobre o futuro do
Brasil e responder à pergunta de Drago, que a aeronave B2-4AC começou a emitir
sinais sonoros e a chacoalhar bastante também.
“Muito justo”.
“Hoje é domingo
Missa e praia
Céu azul
Tem sangue o jornal
Bandeiras na Avenida Zil”
“Aquária! Parece um conjunto de sons emitidos harmonicamente, numa sequência
lógica. Que louco!”
“E uma praia?”
“É um lugar onde o mar termina. Tem muita areia. As pessoas vão pra se banhar,
ouvir músicas ruins e adquirir câncer de pele. Cala a boca, Draco. Cê é um pau no cu!
Deixa eu escutar a porra da música!”
“Aff! Ele tá triste por que as coisas vão bem pros outros e não pra ele, entendeu?
Zona Sul, acho que é um lugar onde moram os descendentes dos humanos de pele clara
que escravizaram os humanos de pele escura. Formigas são seres minúsculos. Aqui na
música é uma metáfora de falta de sentido. Ele tá pedindo socorro porque a vida não
tem sentido”.
“E da janela
Desses quartos de pensão
Eu como vetor
Tranquilo eu tento
uma transmutação”
“Consigo. Tem bastante pelo na cabeça e na cara. Usa óculos escuros. E umas roupas
estranhas. E olha que os humanos nos chamam de exóticos, aff! O que é meu macacão
dourado perto daquele look ali! Pelo Casco da Poderosa Mãe! Drago! Ele colocou o
violão na cama. Tem garrafas lá, muitas. E parece que se esqueceu de tomar uma
injeção. Ops. Parece que não poderia ter esquecido”.
Nesse momento tudo ficou em silêncio. A aeronave B2-4AC flutuava sem fazer
nenhum ruído, parecia que tinham desligado o motor. Então ela foi descendo devagar
na direção da janela de onde tinha vindo aquela canção. Drago achou a situação muito
esquisita, porque a nave não obedecia mais aos seus comandos.
“Você estão indo buscar o Raul. Estou atrás dele há 10 mil anos. Meu filho querido e
rebelde agora vai poder voltar pra casa”.
De fato, ninguém ligava a mínima para aquela escadaria. Próxima à fonte, também
abandonada na praça do centro histórico da cidade, a obra amargava o descaso comum
aos espaços públicos que recebem pouca ou nenhuma atenção da prefeitura. A tinta
vermelha, que outrora recobria o gradil, desbotara. Perdia feio para o cinza do concreto
cheio de furos e rachaduras que expunham a estrutura de ferro. E nem mesmo os
hipsters, tradicionais frequentadores de espaços decadentes, se interessavam em ocupar
o local. A velha escadaria servia apenas como dormitório de mendigos, ponto de drogas
e refúgio mais ou menos privativo para profissionais do sexo. Por que Yukino visitaria
um lugar assim?
Mas foi justamente num sonho que a mulher mais sábia lhe falou.
E desde então, após ouvir a voz que ecoava e ecoava, dia e noite sem parar, como se
o sonho não fosse um simples sonho, mas parte de uma realidade possível, Yukino não
teve sossego. Precisava descer a escadaria, descobrir o que havia lá embaixo, precisava
saber.
Numa tarde comum, sem aviso ou alarde, a voz se tornou alta demais, imperativa
demais, e Yukino esticou o braço para o ônibus que fazia a rota circular. Desceu no fim
da linha. A pequena praça, um triângulo de tamanho minúsculo construído em área
nobre, seguia indiferente aos passantes e curiosos que encaram sonhos como
premonições. Logo que pisou nos ladrilhos quebrados, Yukino sentiu uma pontinha de
medo: e se fosse atacada, estuprada? E se uns marginais a empurrassem para um
cantinho, roubassem seu celular, a carteira, a dignidade? Poderia ter escolhido uma
roupa mais velha, mais suja, menos colorida. Hesitou, mas só por um instante. O
objetivo estava perto, muito perto, não era hora de retroceder. Com um aceno tímido de
cabeça, cumprimentou os poucos mendigos que notaram sua presença e, apressada,
dirigiu-se para a escadaria. Esticou a perna esquerda no ar, suspendeu-a por um instante,
aguardando um sinal, positivo ou negativo, algo que a encorajasse ou removesse de vez
essa ideia um tanto estúpida de sua cabeça. Nada aconteceu, só o vento causando
rebuliço nas folhas da grande árvore centenária. Soltou o peso do corpo sobre a perna
suspensa e sentiu um pequeno tremor percorrer seus músculos no momento em que o pé
esquerdo tocou o primeiro degrau. O segundo foi mais fácil e o terceiro mais ainda.
Conforme a iluminação natural do espaço diminuía, o forte odor de urina tomava seus
pulmões. O mau cheiro, pensou, servia como uma barreira, um aviso para que ninguém
ousasse passar daquele ponto. Mas viera precavida, retirou da bolsa o lenço amarelo
mostarda, o mesmo utilizado em ocasiões que pediam roupas elegantes, e o amarrou
com um nó cego na nuca, protegendo as narinas. Avançou, uma mão agarrada à alça da
bolsa e a outra deslizando sobre o corrimão, atenta para não tocar em alguma matéria
orgânica nojenta que pudesse grudar na palma ou nos dedos.
Demorou a perceber que era uma questão de percepção. Quando olhou de novo e de
novo, e pela terceira e quarta vez, notou que tudo era ainda mais parecido. As pessoas
usavam as mesmas roupas, consumiam os mesmos bens, se divertiam da mesma forma.
Com o olhar menos treinado, e talvez por isso mais livre, Yukino conseguia enxergar.
Resolveu que seria uma excelente ideia morar ali. Sonhava com um mundo assim,
que não fosse bom ou mau, mas um mundo justo.
E então saiu à rua, queria explorar, sentir, viver, queria experimentar as incríveis
possibilidades do novo mundo. No supermercado notou que tudo o que ela podia
comprar, qualquer um também podia. Na revenda de carros todos os modelos eram
bonitos, potentes e levavam ao destino desejado com a mesma quantidade de
combustível. Na loja de departamentos não encontrou grandes variedades de artigos.
Pensando bem, não havia muito sentido em variar. No trabalho, soube que concursos e
entrevistas de emprego pertenciam ao passado. A própria palavra concorrência caíra em
desuso e os salários eram tabelados de forma que o gerente sênior recebia o mesmo que
o estagiário júnior. E na esquina, no barzinho que servia o café do intervalo, descobriu
que o atendente também recebia o mesmo, assim como o varredor de rua, o lixeiro, o
cobrador de ônibus e o banqueiro.
Após o almoço, ao degustar o café com o aroma e sabor de todos os outros cafés,
Yukino descobriu que as regras interferiam nas relações pessoais. O casal da mesa ao
lado se despediu com um beijo burocrático e foi substituído por outro casal, com o
mesmo diálogo monótono. O namorado argumentava sobre o mesmo tema que o casal
anterior, acariciava a mão da namorada de leve, com a ponta do dedo, da mesma forma
que acabara de enxergar. Era como experimentar um déjá vu reincidente. Achou as
relações um tanto frívolas, e logo percebeu que também eram fugazes. Não havia,
mesmo, muito sentido em investir na relação com alguém especial num mundo onde
ninguém era especial. “As pessoas vivem sós”, explicou a garçonete com um lenço
amarelo mostarda amarrado no pescoço. “E os casais? Como vivem?”, indagou Yukino.
“Como pessoas individuais que são”, desamarrou o lenço, embebeu-o em álcool gel e o
esfregou sobre o tampo da mesa. De fato, mesmo quem vivia em grupo, agia como um
ser individual. Isolava-se em busca de seus interesses, o que também não fazia muito
sentido porque os interesses eram idênticos. Não havia convívio, as discussões eram
inúteis, afinal todo mundo sabia a mesma informação sobre determinado assunto.
Palavras como expert, expertise, especialista não tinham significado.
Nem um pouco satisfeita, Yukino começou a achar a igualdade uma condição bem
opressora. Especialmente para ela, uma garota que desde o berçário fora tratada como
especial: a mais esforçada, a mais estudiosa, a mais interessante e dedicada. “Não é
justo”, murmurou cobrindo a boca para ninguém notar.
Implorou pelo retorno da mulher mais sábia, precisava desabafar, colocar para fora
sua frustração, ouvir conselhos, espiritualizar-se. Mas ela não vinha e Yukino acabou
concluindo que naquele mundo não poderia existir uma mulher mais sábia. Num último
esforço para convencer-se de que estava errada, tentou relembrar o diálogo do sonho.
Sentou-se sobre a grande almofada em posição de lótus, fechou os olhos, controlou a
respiração. Ao reabri-los, viu-se de frente. Apesar da imagem imitar todos os seus
movimentos, não se tratava de um espelho. Havia um som, uma cadência diferente ao
inspirar e expirar, o peito se enchia mais devagar. Tentou uma comunicação mental,
mas percebeu que não conseguia identificar a mensagem. Até que ela, a cópia, após um
suspiro que soou como apito, disse:
Fechou os olhos mais uma vez, decidiu que esperaria mais um pouco, pelo menos até
o fim de tarde. O cair do sol ofereceu uma paisagem lindíssima, uma cor alaranjada,
quente, arrasadora. Como se uma bomba atômica tivesse explodido a poucos
quilômetros dali. Quando o último raio foi engolido pela escuridão da noite, a Yukino
cópia fez questão de acompanha-la de volta à praça. Despediram-se de modo frio.
Yukino não teve mais dúvidas, voltou a amarrar o lenço no rosto, agarrou-se ao
corrimão da escada e subiu, de volta para sua antiga cidade, cheia de mendigos,
viciados, dentes de tubarão e donas de casa nos peg-pags do mundo.
Irka Barrios
Bibiana Barrios Simionatto é mestre em Escrita Criativa pela PUC-RS e escreve com
o pseudônimo Irka Barrios. Premiada no Concurso Brasil em Prosa (Amazon/O Globo,
2015), com o conto O coelho branco, participa de diversas antologias de contos, entre
elas: Onisciente Contemporâneo (Ed. Bestiário, 2016), Língua Rara (Ed. Outsider,
2017) e Cem anos de amor, loucura e morte (Ed. Moinhos, 2017). Participa do coletivo
Mulherio das Letras - RS. Seu livro de estreia Lauren será lançado em agosto.
Nada. Nenhuma súplica à Lua daria resultados. Não sei por que diabos eu perdi tanto
tempo com crendices. A Lua mentia quando prometia cumprir meus desejos. E eu
voltava pra casa, novamente sem chão.
Murilo teria chegado do nada. Escrevo isso porque, obviamente, escrevo depois dos
acontecimentos. Enquanto caminhava, nada sabia, exceto que: 1) não arrumei o
emprego. Exigiam boa aparência. 2) Não consegui aprovação nas provas. Não me
concentrava o suficiente e perdia o raciocínio no meio das contas ou das frases. 3) Tanto
pai quanto mãe queriam se livrar de mim. Uma boca a menos.
A caminhada da escola pra casa era enorme. Uns três bairros de distância. A
vantagem é que eu crescia; dizem que andar faz crescer. A última rua era de terra batida
e não era raro ver a Lua em plena tarde, isso quando ela não atravessava as manhãs.
Devia ser pra lembrar que, pra nós, daquele lado, era sempre noite. O Sol... ah, o Sol
servia pra escaldar as costas de quem, como meu pai, trabalhava na construção. De tanta
constância no céu, pedia eu à Lua, deus Jaci, li num livro, que nos salvasse da miséria e
me enviasse um príncipe encantado. Nesta época eu ainda acreditava em antigas valsas
com príncipes encantados; ainda não tinha tomado as rédeas da minha própria vida, não
tinha percebido que somente eu poderia dar um basta na minha situação, que havia um
preço e que eu, um dia, calcularia pagar. E paguei.
Corri pro quarto que dividia com meus quatro irmãos, aos prantos. Mãe foi me
buscar, me forçou a enxugar as lágrimas e disse que eu não ia fazer essa desfeita.
Absurdo completo, em pleno século XX, uma mulher ser dada a um homem pelos
próprios pais, como na Idade Média.
Mãe interveio:
— É nova pra casar mas pra ser mulher de homem bem que teve idade. Você vai
morar é com o Murilo, já que se deitou com ele.
Xinguei. Falei que eles queriam é me ver longe de casa. Falei que ela me abortou
agora, já que não conseguiu me abortar quando eu estava na sua barriga. Chorei
horrores, ela ficou impávida. A decisão já havia sido tomada.
— Tire as mãos de mim!, gritei pra Murilo quando ele veio me encostar. Eu sabia
muito bem o que ele queria. Ele mesmo tinha me dito que eu seria dele e de mais
ninguém, enquanto me apertava no muro chapiscado atrás da escola, depois de me fazer
transar à força. O nome é estupro. Na época eu não dava nome às coisas.
Por que não gritei? Não sei. Talvez isso, não dar nomes às coisas, lamentar e esperar.
Olhei pra Lua e deixei que ele fizesse o que tinha que fazer. Depois, ele me levou até a
porta de casa.
Enquanto todos dormiam, pensei em fugir, pensei em morrer, pensei até que o dia
amanhecesse. Chegou uma caminhonete e minhas coisas já estavam embrulhadas numa
trouxa, feita por minha mãe. Meu pai não falou mais nada. Olhava. Me disse boa sorte,
minha filha, sem se levantar da cadeira. Mãe não disse nada. Murilo pegou minhas
coisas, meu braço e me levou pra casa dele. A Lua acompanhou a caminhonete até o
portão. Entre a primeira surra e a outra, ele se mostrou amoroso e dócil. Disse que eu
podia pedir o que eu quisesse: pedi um rádio.
Adriane Garcia
Poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder
o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo
(ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015),
Enlouquecer é ganhar mil pássaros (e-book pela Vida Secreta, no Issuu, 2015)
Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux,
2018).
Lauro desperta com seu próprio grito. A luz é intensa. Ele esfrega os olhos. A
sensação é de que aquele brilho poderia cegá-lo. Depois de um suspiro, alívio. Não
passava de um sonho. A única coisa que Lauro consegue enxergar agora são os números
do rádio-relógio ao lado da cama. São 3:21. Na verdade, 3:22.
Em seu quarto, um flat na rua Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, Lauro tem a
certeza de que aquela será mais uma noite de insônia. Por hábito, ele liga o rádio-
relógio: “…é verdade, meu caro ouvinte. O sujeito levou a serpente pendurada no
próprio braço até o hospital. Segundo o médico que atendeu a vítima, foi uma atitude
que ajudou sua equipe a identificar a espécie responsável pelo ataque, o que é
importante nesses casos. Mas, por outro lado, o corajoso Lindomar correu riscos
desneces...”. Lauro desliga o aparelho, estica o corpo e vai até o banheiro.
No canto da pia, sobre um pires de café, uma vela acesa faz com que Lauro encontre
sem dificuldades o interruptor. Ele pensa em apagar a vela, mas desiste. Por alguns
segundos, observa seu reflexo no espelho. Os olhos vermelhos traduzem um pouco dos
três últimos dias de trabalho. Ele ficou até tarde na produtora de vídeo para finalizar um
grande projeto. Está certo que aqueles olhos levemente manchados tinham outro motivo
além das prolongadas horas de roteiro e edição. Nada que um bom colírio não resolva,
pensa alto. Lauro procura o pequeno frasco de plástico nas gavetas do banheiro, mas
não encontra.
Sentado na cama, ainda no escuro, Lauro leva uma das mãos até o criado-mudo e
retira o celular do carregador. Na tela do aparelho, o nome de Aurora e um breve texto
indicando que existem novas mensagens. Ele abre o aplicativo, clica no nome da colega
de trabalho e encontra uma lista de áudios. Lá vem bomba, pensa. Vou ouvir essa merda
amanhã. Lauro joga o celular sobre o colchão e tenta dormir. Minutos depois, pega o
aparelho, abre novamente o aplicativo e clica sobre o primeiro arquivo de áudio.
“Oi, Lauro. Boa noite. Tudo bem? Sei que está tarde, mas o pessoal de Brasília deu
retorno aqui sobre o projeto. Está sentado? - Aurora sorri. Bom, vamos lá. Nada que a
gente não consiga resolver com mais algumas horas de redação e o seu brilhante olhar
de editor. Eles querem mudar quase todas as frases. Segundo eles, o texto que você
escreveu vai colocar os funcionários contra a empresa. Enfim, essa história de cliente
que você já sabe. Tem pé demais na nossa frente, mas o pessoal não sabe como andar.
Bom, tenho uma reunião amanhã cedo com o pessoal de lá. Como você levou o
computador pra casa, vou te mandar tudo por aqui. Se tiver dúvidas, me ligue depois.”
Lauro sorri com ironia. De que adianta te ligar?, pensa. Ele clica no segundo áudio.
“Só mais um detalhe, Lauro. Eu sei que você está apertado com outros projetos. E é
como eu sempre digo, com dois galos a galinha não tem tempo de chocar. Acontece que
precisamos nos dedicar para fazer essa entrega o quanto antes. Infelizmente, ou
felizmente, é o momento que estamos passando. Seu trabalho está chamando a atenção,
rapaz. E quem não tem presente, se contenta com o futuro, não é? Daqui a pouco as
coisas se ajeitam. Pode ter certeza de que tudo irá melhorar. Bom trabalho aí.”
Lauro leva uma das mãos até a cabeça e esfrega com as unhas o couro cabeludo. Em
seguida, clica no último áudio.
“Desculpa a série de áudios. É que tem um ponto importante que esqueci da falar. Eu
argumentei com o cliente exatamente como você orientou. Eu sei que você coloca seu
ponto de vista nos trabalhos. Sei que gosta de morder o calcanhar de muitos que estão
por aí fazendo merda. E vamos falar a verdade, não tem como fechar os olhos para o
que essa empresa de Brasília faz. Mas o cliente é quem manda, certo? Fazer o quê? De
qualquer forma, é só a primeira alteração. Uma vez a gente aceita, duas tem que
reclamar. E pode deixar que vou fazer isso, ok? Grande beijo.”
Lauro ameaça dar um soco no celular. Desiste. Ele joga o aparelho no chão. Os olhos
ardem. Definitivamente, será mais uma noite de insônia. Lauro abre a gaveta do armário
e procura o colírio. Não encontra. Segue lentamente até a cozinha. Vai até a geladeira e
pega uma garrafa amarela de vidro com água gelada. Enche um copo e leva até a boca.
Um gosto forte de chumbo faz Lauro cuspir toda a água na pia. Os músculos da barriga
contraem-se. Vômito. Nada sai. Segunda tentativa. Um som estranho. Nada sai
novamente. Lauro respira fundo, se arrasta até a sala e senta-se no sofá. As mãos na
cabeça abafam o choro. Ficar sozinho era fácil. Ficava assim por semanas se fosse
preciso. Mas tinha dificuldades de suportar a frustração.
Como se quisesse transformar a noite em dia, Lauro acende a luz da sala. Vai até o
aparador e procura mais uma vez o colírio. Não encontra. Sobre o móvel, alguns porta-
retratos. Seus amigos de infância no antigo prédio onde morava, na rua da Bahia, uma
foto de Elvis com sua guitarra preta, uma criança sorrindo, segurando com dificuldades
um violão. Lauro pega um dos porta-retratos. É a foto da casa onde morou por anos com
os pais. Ao lado da casa, um muro pichado com a frase “Krig-ha bandolo?!”. As letras
tortas e uma interrogação desproporcional. Lauro sorri e lembra do dia em que, após
assitir Tarzan com os amigos, comprou uma lata de spray e decidiu fazer aquela arte.
— Boa noite - diz um pequeno senhor com voz firme, farda militar, testa alongada e
cabelos penteados para trás.
— É Lauro.
A porta do elevador se abre. O senhor pega uma bolsa que está no chão.
Lauro desperta com seu próprio grito. Um estouro. Ele esfrega os olhos. A sensação
é de que aquele barulho o deixaria surdo. Um relâmpago seguido de um novo trovão.
Ele respira fundo. Alívio. Não passava de um sonho.
No rádio-relógio são 3:22 da manhã. Lauro hesita, pensa em dormir novamente, mas
liga o aparelho “…é como eu sempre digo, meu caro ouvinte. Sujeito esperto não passa
apertado. O cara viu a serpente no quintal de casa, sabia que o bicho era perigoso e
chamou os amigos. Esse aí saiu ileso. É claro que fica aquele medo de seguir morando
no mesmo lugar, mas dessa vez ele escapou. Será que…”. Lauro desliga o aparelho,
estica o corpo e vai até o banheiro.
No canto da pia, uma saboneteira divide espaço com um pequeno Buda. Lauro gira a
torneira, cobre as mãos com a água e leva até o rosto. No espelho, olhos vermelhos e
manchados. Nada que um bom colírio não resolva, pensa alto. Ele procura o pequeno
frasco de plástico nas gavetas do banheiro, mas não encontra.
Lauro sorri. Ele volta a pressionar a tela do aparelho celular. Desta vez, para gravar
um áudio.
“Oi, Aurora. Ótima notícia. Pode deixar que amanhã vou levar o computador. E não
se preocupe com a chuva. Diferente de você, ela é minha amiga, nunca me trouxe
problemas” - Lauro sorri. “E me diz aí. Como foi o show? Até amanhã. Beijos.”
Antes de sair, olha para uma das paredes da sala. Vários quadros e fotos contam um
pouco da sua vida. Ele se aproxima de uma das molduras. Por baixo do vidro, um
recorte de jornal. Ao lado do texto da matéria, a foto da casa onde morou com os pais.
Lauro se recorda do dia em que um militar bateu em sua casa e chamou seu pai. “Seu
filho pichou o muro ao lado, meu senhor.” Lauro foi obrigado a apagar a pichação com
uma tinta branca comprada pelo pai. Semanas depois, o mesmo militar bateu a moto que
pilotava contra o mesmo muro. Seu corpo foi projetado, e sua cabeça acertou em cheio
o concreto. Ele teve traumatismo craniano e não resistiu. Saiu até no jornal.
O ônibus entra na rua São Paulo. Lauro levanta do assento e aperta o botão laranja,
preso na barra de inox do veículo. Uma campainha dispara. O motorista abre a porta, e
Lauro desce. O ônibus segue viagem enquanto ele confere o semáforo na intenção de
atravessar a rua. A luz do sol não permite que Lauro veja as cores com clareza. Uma
caminhonete está parada antes da faixa de pedestres, dando a impressão de que o
semáforo estava fechado para os carros. Na verdade, o veículo está descarregando, e
Lauro não percebe. Ele atravessa a rua. Um ônibus, em alta velocidade, não consegue
parar. Lauro é arremessado. As pessoas gritam. Ele tenta mover os braços para pegar a
mochila, mas ela está longe. Ele consegue ver o seu computador, perto do meio fio,
coberto pela água que restou da chuva e restos de lixo. Seu pescoço não se move. Com
esforço, Lauro vira os olhos em direção ao ônibus. Destino: Brasília. Ele sorri. Olha
para cima. Sem os óculos escuros, perdidos em algum lugar do asfalto, observa o sol
pela última vez.
Lauro desperta com seu próprio grito. A luz é intensa. Ele esfrega os olhos. A
sensação é de que aquele brilho poderia cegá-lo. Depois de um suspiro, alívio. Não
passava de um sonho. A única coisa que Lauro consegue enxergar agora são os números
do rádio-relógio ao lado da cama. São 3:21. Na verdade, 3:22.
Tiago Motta
Publicitário, formado pela PUC Minas. Em 2003, fundou a Stalo, empresa de
comunicação situada em Belo Horizonte. Em 2017, fundou a Buffalo Digital, empresa
de produção de conteúdos audiovisuais. Professor, redator e apaixonado por textos,
Tiago Motta é roteirista com formação pela Academia Internacional de Cinema do Rio
de Janeiro.
Caríssimos, os sonhos não são para se viver, mas alguns acontecem, sem que se
possa chegar a acariciá-los; o vento os assopra para longe e rápido. Já os acidentes
decorrem de uma conjunção fortuita.
Assim era começar o dia que não amanhece, no lume brando, diante do sol recém-
nascido, no instante em que a água, que não mata a sede de ninguém, flui inteira de
volta do rio para o mar. Fazia outono na praça do Washington Square Park, um espaço
submerso que escoava um tempo outro de uma necrópole encoberta por carcaças de
cavalos. Os desabrigados estremeciam sobre os bancos de madeira. Um arcabouço de
acampamento de guerra. Dentre os soldados e animais fantasmagóricos, Raul rondava
com a Memória, amante tardia e clandestina.
Recém-fugido do país, Raul estava sem o saquinho de jujubas coloridas para chupar
ou entreter as articulações dos dedos, logo isso sucedia a ele, viciado nas gomas
gelatinosas, tranquilizantes e benéficas, evitavam que roesse as unhas. A honestidade se
escafedera e o que fazer com o dinheiro sumido do bolso.
Apenas alguns dias antes, Raul passara setenta e duas horas no apartamento com
calefação de Lennon, apresentado a ele por um jornalista da revista Cruzeiro.
Mergulhador profundo da lucidez, aquele Beatle de óculos para miopia listou os poderes
controladores do mundo, os tubarões, os peixes graúdos ou pequenos. Fazia meses que
se separara da Yoko e o vazio na sala de estar era complexo, impresso nas feições do
músico enquanto a conversa sobre a Sociedade corria ritmada e as paredes espreitavam
os dois novos camaradas. Móveis bem aventurados, estofados embalados nos plásticos,
Raul ajeitava-se, agia com discrição, esforçando-se no papel de um hóspede que
pudesse ir ficando. Tirava lentamente os botões dos punhos da camisa. Admirava como
Lennon saía da cozinha com duas pilhas de panquecas “silver dollar”, cada uma do
tamanho de uma moedinha de vinte e cinto centavos e um frenesi de ovos no prato de
louça, café americano amargo transbordando das canecas. As panquecas chegavam
empilhadas em torres concêntricas como discos de vinil numa vitrola a girar o mundo, o
amor numa comunhão insólita. Não era baião e sim rock n’roll em densas ondas
sonoras, um universo para seguir com as retinas.
Lennon puxou assunto, queria falar do mal do século, da necessidade que as pessoas
tinham de amar a si próprias. Raul concordava, era bem verdade que “all you need is
love”, mas o que dizer do mutismo hostil e da surdez generalizada, excrescências que
aumentavam em dimensão. Raul contou a Lennon, o homem mais inteligente e lúcido
que jamais conhecera, que no seu país, do qual fora e-x-p-u-l-s-o, os E.T.s liam livros e
os habitantes davam preferência à música, um extraordinário contrassenso, porque
pertenciam a um território de milhões de surdos. Canções existiam que ninguém
cantava. Os censores pegavam as músicas à laia dos que sacodem a roupa ou um polvo
e examinavam ao reverso de ponta a ponta, com a desculpa esfarrapada de proteger o
ineditismo. Inédito era o “maple syrup” em cima das panquecas, adocicando a
conflagração do momento. A folhagem do parque avistada pelas janelas de vidro
explodia em cores escandalosas.
“Não morro mais”, elucubrou Raul. “Morri por antecipação. Este medo da morte a
vida inteira foi que me matou”, idêntico ao medo terror insano no avião, a Edith e a
filha instaladas com suas tiras de segurança, atravessadas pelo peito, ao seu lado até se
transformarem em filme e ele as contemplava se movendo no tabuleiro do jogo de
xadrez no qual o cavalo morto pulava de três em três. A contragosto, a ausência da
Edith doía. Casaram-se sem a aprovação do pai dela, um pastor americano. Aquele que
se quer bem tem sempre ao lado um outro alguém e um outro alguém e mais um outro
alguém, a história vai além. Portanto, sem a Edith e a menina, ele deixaria a sua marca
conforme as regras do jogo grandioso. Um peão é uma síntese de ser vivo e ele não
romanceava como o Lennon.
Duas vezes por dia, esvaziava a máquina e o fiscal das arcadas o recompensava pela
retidão. Não podia gastar mais do que alguns centavos por dia. Entretanto, pagava para
penetrar a visão no funil do olho mágico e assistir a história protagonizada por Olive T.,
a mulher mais bela da história do cinema. Na primeira cena, ela entrava e saía do Club
Maldoror em Paris, acompanhada por dois gangsteres, de quem adquirira três quilos de
heroína a mando do marido Jack supostamente na Califórnia. Na segunda cena, Olive T.
caminhava sozinha pela rua, sendo perseguida. Em seguida, empurrava as portas
giratórias de um hotel próximo a Bastilha. Na cena final, Olive T. jazia nua e morta sob
uma manta de algodão e com um frasco de veneno gosto de mel deslizando da sua mão
esquerda, na qual exibia uma grossa aliança de ouro gravada com o nome de Jack P..
Apesar dos parcos recursos, Raul deixava escorrerem as moedas na máquina
cinematográfica, incansável em sua saga para desvendar o mistério, surpreendido
repetidas vezes pelo veneno do apiário. Caríssimos, o verbo escorrer é de uma utilidade
imprecisa embora real, as moedas escorriam das mãos suadas de Raul para serem
devoradas pela arcada, as calças escorriam do corpo esquálido, nem o cinto prendia, o
veneno escorria pelo piso de um quarto de hotel parisiense, a moral, a bába, o sémen na
cara, a saliva pelos cantos da boca, o sangue envenenado de Olive, as vagas
enternecidas de folhas, as nuvens mediúnicas nos corredores celestiais, mil coisinhas a
fazer e a vida se armava escorregadiça. Brotava em Raul a sensação de que ia se
enrascar.
Coisa mais patética é resmungar alto sem ninguém perto. Pois que a caneta fale e o
caderno escute. Guardo meus ouvidos pra lengalenga da TV, algum programa sobre
lendas decadentes da MPB. Quase apropriado. É que não basta tá fodido, tem que tá
morto, e ter feito a mínima diferença. Tivesse sido meu caso, tudo estaria como deveria.
Meu nome e foto ali, um rodapé na história nacional da música, e Edith e Simone
vivendo. Já não importa. Ainda que saia uma notinha que seja amanhã, que diferença
fará? Isso se eu der conta de ir até o final desta vez. Cinco dias desde que decidi me
matar, mais três até a cirurgia. Não quer dizer nada. Certo é que vou do meu jeito,
decidido hoje. Até ontem seria à bala, certeira no crânio, mas o Marcelo me
impressionou com o caso do ex-colega da civil. Um desvio ridículo de trajetória e o
infeliz vegetou. A família ainda reza pela recuperação. Não à toa Marcelo largou tudo
pra viver da terra no meio da Serra do Espinhaço. Esses dias ele está de passagem por
BH, visitando a mãe, foi o que disse. Pra mim, veio recrutar mais trouxas. E quase
conseguiu. Engraçado como estar fodido deixa sua mente suscetível a qualquer merda.
Sei lá como ele me achou ou soube da cirurgia, instinto policial, talvez. Veio com
aquele papinho de cura pela natureza, conexão com meu eu-interior. Tive minha cota de
bruxaria, drogas e rock n’roll. A vida me bateu demais pra ainda ter fé nessas merdas.
Ou em qualquer entidade-verdadeira, como prega o Marcelo. Com a bebida o buraco é
mais fundo. Mas o puto quase me convenceu. Queria que eu erguesse minha casinha de
bambu e adobe, bebesse do sangue do mundo, me curasse na tenda do suor e moldasse a
minha própria chave do céu. Foi no tear dos sonhos que o Marcelo me perdeu. Um
nome mágico pro mesmo mundano esquema de pirâmide. O capitalismo infecta tudo.
Não existe isso de viver fora do sistema e ele quase me fez esquecer.
Sigo sem beber. Vontade nunca me falta, mas nos últimos dias tenho tentado rituais
diferentes, mais derradeiros. O de hoje seria tomar uma ducha quente, jantar lasanha ao
som de rocks clássicos, ignorar as ligações de Miriam, vestir uma velha roupa da banda
e pular da sacada. Tudo isso sem chegar perto do estoque minguado do bar. Não está
fácil, a abstinência batendo mais e mais forte, sudorese, tremores, a garganta parece um
deserto. Mas é preciso, se eu vou mesmo tirar minha vida. Hoje falhei outra vez, me deu
de ver TV. Cheguei do AA, peguei uma faca, um queijo inteiro e me larguei no sofá, de
sapato. Estava lá até agora, zapeando. Tô farto de politicagem, das mentiras, de tanta
futilidade, mesmo assim, eu quis, eu precisava saber se sigo sozinho no fundo do poço.
Pelo visto sim, e por um bom tempo ainda. É quase um alívio saber que estou no fim.
Não invejo quem está em queda livre. A percepção pode ser tão lenta, tão dolorosa. Por
muito tempo eu achei que tinha os remédios perfeitos pra situações assim. Só me
trouxeram mais dor. Rebelde sem causa, sem rumo e sem juízo. Artista medíocre, mais
um entre tantos injustiçados pelo mercado, mas que de algum jeito venceria, daria a
volta por cima. Bastava seguir tentando. A verdade é que querer e tentar nem sempre
basta, não quando a vida tem outros planos em mente. Isso é derrotismo, diria Miriam,
se eu tivesse atendido mais uma de suas chamadas noturnas de check-up. Furar o celular
e atirar pra longe foi o maior prazer que tive nos últimos dias. Pena não ter caído da
varanda. Eu poderia ver como um sinal e acabar logo com tudo. Miriam nunca cansa de
bancar a irmãzona protetora. Consequência de uma vida toda voltada aos outros.
Olhasse mais para si poderia estar adulando os próprios filhos e netos. Mas agora sou
tudo que resta a ela. E mesmo assim, por pouquíssimo tempo. Não tenho remorso, ela
apanhou o bastante da vida pra criar suas próprias cascas. Ela é forte, sempre foi, estará
melhor sem mim, livre.
Ouço a chamada do canal na TV: emoção que não acaba. Não percebi que estava no
VIVA. É irônico, quase uma piada de mau gosto. Um canal que se sustenta do passado,
como tenho feito, revivendo fracassos, remorsos, más escolhas. As piores facetas do ser
humano, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, um oferecimento Johnnie
Walker, Dreher, Bacardi, Absolut Vodka. Séries e novelas, começos, fins, recomeços,
as labutas de artista, os dilemas de pai e filho, o rompimento familiar, as internações.
Sonhos se perdendo ao longo do caminho, a vida se impondo, bicos, amores e traições.
A trilha sonora era meu rock, sempre o rock embalando um drama chocante à
tradicional família brasileira. Fiz de tudo, fui quem quis, não deixava nada entre mim e
o que eu achava ser meu destino rockstar. Foi Edith quem iniciou a mudança e Simone
a concretizou. Elas sim foram minhas chaves do céu. Mas a cobrança sempre vem pra
quem tenta viver à margem do sistema. Minhas meninas se foram e agora só me resta ir
pro inferno. Todos se foram, só Miriam ficou, sempre a irmãzona protetora, mas tão
ingênua. Ela insiste que a estrada das meninas acabou, mas a minha continua. Como
pode ser? Como seguir qualquer caminho com a culpa que de ter encerrado o delas?
Não. Minha estrada acabou. Está uma noite escura lá fora. A brisa convida. Um
mergulho e pronto. É como bungee jump sem corda, skydiving sem paraquedas, não tem
mistério. Coração aos pulos, corpo suando, mãos trêmulas, nada disso é novidade. A
adrenalina como na época dos shows, drogas, das mudanças de estilo e guinadas de
vida. Quase a mesma coisa. A diferença é não ter mais o marasmo pós-tempestade. Só
resta a partida no ápice, no clímax, grand finale de gozo eternizado.
Eu estava certo de que seria hoje. A vida tem um jeitinho todo especial de ferrar com
o mais simples dos planos. Não contava, tão tarde da noite, com Miriam batendo na
porta feito uma louca. Tinha um olho roxo, a blusa empapada de sangue e lágrimas.
Entrou me estapeando, xingando. Parou por um instante para sentir meu hálito, então
desabou a chorar. Tinha me ligado até descarregar a bateria do celular. Precisava de
mim. O novo namorado surtou no meio da rua, uma crise de ciúmes violenta. A
confusão acabou na delegacia. Foi a primeira vez que algo assim aconteceu. Nunca vi
minha irmã tão frágil. Miriam disse que não queria ficar só. Ela desmaiou no meu colo e
acabei de coloca-la lá no quarto. Vim pra sala tomar uma dose. À vida. Três dias pra
cirurgia, minha irmã caída no próprio fosso, a saída de emergência logo ali na sacada. A
garrafa mergulhou por mim. Vou pro quarto fazer companhia pra Miriam. Talvez
amanhã eu tente outra vez.
T. K. Pereira
Organizador do projeto “7 coisas que aprendi”, acervo com mais de 100 depoimentos
de escritores. Finalista do Brasil em Prosa 2015 com o conto Doses de orgulho e
vergonha. Publicou contos nas antologias Onisciente Contemporâneo, Translações
Singulares e Não Culpe o Narrador. Seu primeiro livro de contos será publicado em
breve pela editora Caos e Letras, de Belo Horizonte. Acompanhe o autor em seu site
oficial: https://tkpereira.com.br
— É a mulher do vereador?
— E o negócio foi feio, viu? - confessa o barbeiro, esperando a fala do cliente para
passar a máquina nos pêlos menores do bigode. — Ela castigou bem, foram cinco tiros,
ou foi sete. Para você ver, ainda teve tempo de recarregar.
Enquanto Lucrécia passa, algumas mães cobrem o rosto de meninas mal acordadas
passando para ir a escola. Um bocejo das pequenas provoca um riso sutil de Lucrécia
que, segurando o boneco de resina, ensaia uma brincadeira com uma mais loira,
pequena, sem entender exatamente o olhar judicioso da mãe e sem saber, portanto, que
os cabelos brancos de Lucrécia não eram de uma bruxa. A menina sorri. A mãe, com
uma puxada, leva a ela e mais outras para o outro lado de uma calçada onde, reunidos
para fumar e tecer conversa mole, um grupo de homens grita: “Olha a bruxa!”; isso
enquanto alguns carros passam e param num sinal de trânsito a pretexto de admirar os
passos lentos e resignados de Lucrécia, ainda sorrindo para algumas crianças e estas, em
devolução, mal compreendendo ou temendo o olhar de estranheza e de escárnio lançado
pelos mais velhos. Todos meio surpresos, meio inconformados.
O garoto, com a farda vermelha e branca, pára diante de Lucrécia e pergunta por que
ela leva aquele boneco. Lucrécia olha para o menino com um esgar de cansaço, mal
querendo explicar o porquê de levar o boneco e, ao mesmo tempo, com vontade de
explicar para o garoto que ali estava algo muito valioso.
— Não vai dizer não? - insiste o garoto, olhando para os chamados da mãe.
Na espera do fórum, um advogado de terno cinza fuma com dois tragos ávidos um
cigarro à espera da velha com chale marrrom e longos cabelos brancos apontar no
horizonte de uma ladeira, subindo-a aos poucos. Ele solta o cigarro quando ela,
finalmente, se aproxima.
Ambos entram. O ambiente do fórum parece acostumado aos casos do tipo; de tal
modo, Lucrécia passa despercebida por policiais, advogados e clientes. Os tons do chale
marrom, para ela, parecem combinar com a atmosfera rude e carcomida do fórum, com
os tons cinza e preto dos advogados e policiais, com o piso ladrilhado em branco de
cerâmica. Somente o boneco de resina, com o fundo grosso e raso de pedra, em sua
expressão pusilânime, possuía um guarda-chuva vermelho naquele festival de cores
nenhumas.
— Mais ou menos.
Lucrécia lembra com certa angústia das noites que passou assistindo filmes com ele,
ambos abraçados e sem comer a pipoca, que esfriava na mesa de centro, porque
Lucrécia não gostava de ouvir os ruídos da mastigação enquanto consumia “O sol é para
todos” com Gregory Peck interpretando Atticus Finch. Impecável, pensa ela.
— Mas o promotor aqui é cristão, daqueles bem fervorosos, a cidade está com ele e
os jurados também.
Lucrécia continua pensando naquelas noites, frias, nas quais a presença dele era o
conforto que sempre faltou na casa grande do bairro mais alto da cidade, onde a neblina,
que penetrava pelas janelas, ofertava um gosto a mais para o cigarro nas noites insones.
Somente ela e seu Atticus Finch sabiam que a neblina não era como se a cidade
fumasse; era como se pegasse fogo, como se o céu pudesse cumprir seu desígnio
mandando enxofre para a atmosfera. No seu imaginário íntimo, a neblina podia parecer
um convite, sinônimo símbolo de uma janela aberta; metáfora vívida da vida livre.
Ao entrar, Lucrécia se senta, jura na Bíblia e olha nos olhos do promotor cristão:
olhos de homem sério, como se arrancados de um personagem hirto num faroeste
antigo. Ele se levanta, e apresenta a acusação.
— Que fariam vocês, se a senhora da casa fosse encontrada aos braços com o próprio
advogado, assistindo a filmes enquanto seu marido trabalha varando as noites na
Câmara para o proveito de Cidade Grande. Foram cinco tiros segundo a perícia,
desferidos no corpo e, no final, uma cabeça estraçalhada, quando a vítima teria tentado
expulsar a mulher infame de sua própria casa. - continuou o promotor.
Chamada, Lucrécia se levanta, retira os longos cabelos brancos dos olhos, ajeita o
chale marrom e, segurando o boneco de resina, que tem expressão irônica para o
ambiente em questão, posta-se no tablado para falar.
— Não dei tiro. Matei ele com muita porrada. Na cabeça. Todas as que foram
suficientes.
O espanto toma a cara dos jurados. O promotor não contém um riso canhestro. O
advogado, percebe Lucrécia, escora o rosto e os olhos baixos com a mão cobrindo-lhe a
boca; em postura séria, sem se deixar abalar e, a um só tempo, calculando os próximos
passos que, imaginava, seriam poucos. Sob o silêncio, Lucrécia ainda ergue o boneco de
resina e o exibe aos demais. A expressão indefinível do boneco causa curiosidade.
— Trago comigo um boneco de resina. Por anos, fui tomada de agressões por esse
boneco. Na cabeça, nos olhos, no rosto. Nunca houve provas concretas porque o
falecido as apagava. Menos no fundo. - e Lucrécia exibe o fundo raso, sólido, do
boneco, repleto de marcas de sangue. — Aqui ele não apagou. No dia em que ele
chegou com um machado, esse boneco me salvou - continua.
Lucrécia lembra que o boneco, de tão sólido, parecia ganhar uma nova expressão.
Seis, sete, oito pancadas até o crânio de Feliciano parecer uma pasta insolúvel de
fragmentos e detritos. Na noite do ocorrido, ela lembra que não podia aceitar que se
afastasse de seu Atticus Finch, como se manteve ao longo dos anos por ameaças
sucessivas do marido. Um torpor tomou a todos de imediato com as revelações. Jurados
se entreolhavam com o silêncio feito após o depoimento de Lucrécia.
- Meu sangue foi apagado do fundo desse boneco pelo do meu ex-marido. Mas as
provas, estas não são comigo.
FAUNA
Os dias se encurtam. A neblina enfeia o céu. A queda das folhas descobre o ninho
desemaranhado pelas idas e vindas do pássaro solitário. Ele insiste em voltar. Folha a
folha, todas gotejaram sob a tempestade. Os galhos de esquinas íngremes não acolhem,
nem acaloram como quando sua mãe e seus irmãos estavam aqui competindo por
espaço. Foram embora, assim feito o resto do povoado, para o noroeste dos instintos. O
pássaro não sabe se foi o medo dos braços fraturados das árvores sem folhas. Não sabe
se foi o medo dos trovões que rasuraram os céus na última tempestade. Ele insiste em
ficar. Seu caminho é esse.
Para onde foram os pássaros da última trovejada? Não sabia. Não quis ir. Só, se
aninha como pode nos destroços de sua manjedoura. Agora, no começo do inverno, em
nada se parece com a alvenaria desenhada pela mãe - falta a mãe. Falta também o sol.
Não lhe ensinaram o que é inverno.
Rareia a força nas asas. A fraqueza existe, mas exige um próximo voo, uma busca
por sobrevida. Uma prece piada de submorte. Os que se foram não voltarão? E o frio e a
neblina, quando devolverão o verão? As interrogações dessas perguntas caíram junto
com a última folha da árvore. O frio e a neblina pesarão nos seus ombros até o fim. E
ele nem sabe o que é o fim.
Anda a passos que não levam a lugar nenhum. Faminto. Entre as penas. Anda em
círculos. No meio palmo de nada. No seu ninho. No equilíbrio do seu galho. Decide
fazer o último voo, é mais uma queda. Não há o acaso aqui, há a certeza de que não se
vai mais longe daqui. Aqui. O pássaro cai na soleira da árvore de raízes congeladas.
Gelo em tudo onde se possa pisar. Um espelho que arde as patas. A noite vem,
assombra o pássaro. O reflexo na sombra. A fome que o anoitece. O bico batendo na
água empedrada.
Ao pé da árvore, rubrica o vidro duvidoso. Por trás do vidro, o passado que quer
resgatar por teimosia. Quase aqui. Algum verde, algum verme, luzeiro falso. Cada
segundo desperdiçado em cada bicada. Gota a gota despedaçada ao tentar rachar a
janela. Do outro lado da camada de gelo, fartura, gordura para mais de uma estação, a
extensão de suas horas, certeza de novos dias quentes, novas árvores, novos pássaros,
novos ninhos. Mas esse diamante não é para o seu bico. Encurta mais seus dias não
querer desistir.
****
FLORA
Primaveramente vem a brisa regada por uma força que se aninha por trás das
montanhas. O sol, mero figurante para as pedras que assam, já existe desde que se pariu
do nada. Dele vem a luz arremessada sobre as folhas. A luz toca na pele verde do mato.
Alimenta. O mato aceita e se entrega ao sol e ao vento.
A brisa ou um lagarto traz a semente, que calha cair entre galhos e espinhos, fadada a
se extinguir neste desaninho, mas como se dissesse: não esperam que nasça? eu nasço!
Se anina. Bebe da lama. Da pedra, extrai substrato-proteína. E do rancor, deixa que seus
ramos nascentes se embrenhem e incrustem entre as pedras. E assim nasce a raiz. E
assim se infiltra pelo solo. Assim se instala. Entre galhos e espinhos.
De outras flores, a gamela da flor que soltou o pólen recebe também o pólen. No
anoitecer, as pétalas, até anteontem envaidecidas, se encolhem do seu rubor, e
enviuvadas, suicidam para abraçar a causa dos bichos mortos e das folhas secas na
cobertura do chão - a humildade sólida encobrindo as pedras.
A árvore cheia de novas flores. Uma hora vai deixar que os filhos que sobreviveram
abraçados a ela caíam ao seu pé e se juntem aos cadáveres de folhas e pétalas. O fruto
sobre a terra se abrirá e sua mãe o devorará.
Vem a brisa, vem o sol, e o ciclo. A mãe devora o filho. As folhas caem, seguem a
caravana de novos polens de novas flores enviuvadas. Os frutos caem, as flores caem, e
a árvore se alarga na cintura, dá mais sombra ao húmus. E protege do braseiro solar, as
pedras que, numa certa primavera, quiseram devorar a semente primordial.
Roberto Menezes
Paraibano, nasceu em 1978. É professor da Universidade Federal da Paraíba. Faz
parte do Clube do Conto da Paraíba. Tem seis livros publicados: Pirilampos Cegos
(romance), O Gosto Amargo de Qualquer Coisa (romance), Despoemas (contos) e
Julho é um bom mês pra morrer (romance) e Palavras que devoram lágrimas (romance)
e Conversa de Jardim, de coautoria com Maria Valéria Rezende e Trago Comigo as
Dores de Todos os Homens (novela)
O calor que fazia escaldava, parecia que a terra a qualquer momento revelaria um
avesso em lavas e engoliria os carros, as árvores e as pessoas. A sensação era como se o
sol tivesse descido pela garganta como uma espada. Os barulhos eram de uma cidade
em saliente movimento, a vida acontecendo dentro do roteiro do que se tem que
acontecer num espetáculo protagonista decadente.
Ariadne não era tão triste quanto denunciava, era mais uma armadilha que a
destacava de outras moças religiosamente doutrinadas à beleza e personalidade de
mulheres que aceitaram nascer, reproduzir, talvez celebrar algum pecado em segredo e
por fim, morrer.
Bem mais que saber o que queria, seria não saber nada do que se queria, sentia-se
perseguida. Ariadne era penetrada, dissecada pela grande evasão do nada, mas tinha
uma audácia em desafiar a vida no simples ato de respirar, pois contemplava cada célula
do tempo dada como uma afronta de não morrer, igual a quem senta numa cadeira
elétrica e leva uma descarga de 2.300 volts unicamente por prazer.
Ariadne chutava uma pedra fajuta enquanto caminhava por uma estrada que não a
levaria a um destino certo, tinha medo. Ela vivenciava vagamente perplexa a
experiência de estar em um lugar que a inacabasse. Mas o seu organismo se beneficiava,
recebia vida. Apenas uma certeza a surpreendia, seria impossível decidir sobre o próprio
destino vindo à direção contrária, talvez a conjuntura que a trouxesse e a estabelecesse
sem comiseração em uma realidade esférica num auge sem queda. Qualquer instante
que sucedesse aquele seria baixo e vazio.
A mulher que parara com uma criança pálida, de olhos amendoados grudada em seu
braço reto. Trazia um ar longínquo como se tivesse percorrido um longo caminho sob o
solo até parar exatamente onde estava à vista cuidadosa de Ariadne. Os corpos de ambas
começaram a responder mudos. A mulher aparentava bem mais idade do que a sua
certidão podia assegurar. Imobilizada, dolorosa em repouso, a mulher e a criança bem
ali, esperando o próximo instante que vinha. Segurava uma mala de couro já gasto e
marcado pelas ações do tempo na outra mão, mas como todo couro, aquele também
duraria mais uma dezena de anos.
Uma brisa espectral percorreu cada poro, eriçando-os. Naquele intervalo Ariadne
teve a sensação de que nunca mais dormiria, que vagaria pelas estradas daquela cidade
numa insônia implacável de amanheceres cheio de culpas. Ela estava lúcida e sólida e o
ar era benevolente e misterioso. Toda atenção voltada para o que sentia numa força
contida de engolir aquelas duas, encarcerá-las na gestação de sua infância. Fora isso que
a havia surpreendido, o passado regurgitado aí em sua frente. Ariadne agora existia
além dela mesma. Fechou os olhos por alguns segundos e abriu-os novamente e mordeu
os lábios, espalhou-se um gosto de sangue fundido com sua saliva. Pairava agora na
penumbra de sua floresta silenciosa. Ariadne era toda memória fresca, onde as
sensações se moldariam como na primeira vez sentida, sentia medo.
Mal havia tido tempo de arrumar as tralhas para a partida, a menina pequena aflorada
em seu mundo. Já não tinha mais pai desde então. A mãe se viu obrigada a pegar um
rumo com a filha. O delas era um mundo em que ou se morria de fome ou se morria de
insistir em viver. E ambas escolheram, sem saber, morrer insistindo em viver. Deixaram
o barraco, a poeira, as memórias.
“Vou te encontrar
vestida de cetim,
pois em qualquer lugar,
esperas só por mim.”
(Raul Seixas, Canto para minha Morte)
“Não vi ninguém.
“Sozinha, na chuva!”
“Pela amor de deus, são três horas da manhã, garoto”, alguém resmunga. “Cê tava
sonhando. Volte a dormir.”
O cara estava certo. A imagem não fazia sentido: uma mulher vestida de noiva
sozinha na estrada, brilhando entre os escombros da tempestade, às três horas da manhã.
Apesar de sua impossibilidade, não pude retomar o sono e o sossego. A noiva ficou
comigo. Primeiro como surpresa, depois como tensão. Lembrei das histórias de vovó e
as lembranças me endureceram o corpo. Seria um mau augúrio, um sinal de morte? A
velocidade do motorista ficou subitamente perigosa. Um pedal duplo de heavy metal no
peito se acelerava a cada ultrapassagem. Ao menos a viagem prosseguiu até o fim, e
chegamos todos bem.
Quando virei a chave para entrar no apartamento, soube na hora: quase ouço o
narrador de um conto de horror gótico dizendo que acabava de entrar em seu cárcere o
prisioneiro da noite. Sim, a noiva ainda estava comigo, eu era o passageiro a quem ela
se mostrou, talvez o único realmente condenado da turma. Como dormir? A folhagem
da palmeira na rua desenhou na parede do quarto o vestido de renda e alguma outra
coisa, talvez a cabeça de um poste, terminou o Frankenstein. No ritmo do vento (leve na
garoa, forte nas pancadas da chuva intermitente), a sombra da noiva ia alternando as
coreografias, de dança do ventre ao funk, e assim chegamos à luz do dia, quando ela se
foi, sem se despedir.
Passei o dia inteiro com a noiva nos pensamentos, atento às mínimas ameaças de
morte, medo de pagar a conta no banco e buscar o pão, medo de receber a encomenda
do carteiro e de ser atingido por um raio na varanda, até que as notícias começaram a
correr. O corpo de uma mulher vestida de noiva tinha sido encontrado no ribeirão dos
Cristais, setenta metros abaixo da ponte, no quilômetro vinte e quatro da MG-30. Não
cliquei nas fotos do WhatsApp, este círculo infernal por onde primeiro navegam os
suicidas e os acidentados, mas sabia de cor os detalhes de seu rosto.
Chamava-se Maria Isaura e, há algumas semanas, tinha se tornado viúva. O marido,
funcionário da Cemig, morreu eletrocutado em um fio de alta tensão. Ela vestiu-se e
maquiou-se à luz de velas, para não chamar a atenção dos familiares, e saiu de casa na
madrugada, subindo até a BR, sabe-se lá como. Talvez apressada, suspendendo com as
mãos a barra do vestido, talvez devagar e cerimonialmente, como quem fosse se casar
pela segunda vez.
Eduardo Sabino
Nasceu em Nova Lima, MG, onde reside atualmente. Autor dos livros de contos
Naufrágio entre Amigos (Editora Patuá, 2016) e Estados Alucinatórios (Caos e Letras,
2019). Venceu, com o conto Sombras, o concurso Brasil em Prosa 2015, organizado
pelo Globo e a Amazon. Contato: [email protected].
I.
Pioneirismo científico experimental, você pensou. E sentiu algo. Que foi muito
distante do que se deve sentir ao cheirar a pele de uma mulher bem de perto. Que foi
muito distante do que se deve sentir ao tocá-la naquela dobrinha macia entre a axila e o
seio. Mas é o que há para você sentir; então você relaxou e seu corpo se moldou ao
courino marrom da poltrona do reduto, o seu reduto, este espaço escuro e subterrâneo
onde você é deixado em paz - somente alguns metros abaixo do que é o caminhar de pés
arrastados do seu pai, àquela hora já provavelmente movido à Jim Beam, sedado o
bastante para não gritar com você, o filho velho ainda no porão dos pais; longe o
suficiente para não ter que ouvir a TV ininterrupta, do quarto cheirando a mofo e à
angústia, bordões humorísticos informando à sua mãe quando já é hora de rir, então ela
devia estar rindo. Por baixo do aconchego do edredon, por baixo do calor do chambre,
por baixo do torpor do cloridrato de sertralina, ela devia estar rindo - , e então você
abriu o pote de vidro, acordou-o de sua sonolência sobre o pedaço de colchão e pôde
permitir que um dos cimex lectularius cumprisse o que é parte de seu ciclo de
desenvolvimento, sentindo-o em sua pele, um clique sem som penetrando na sua mão.
Sentiu também o gosto do buço, salgado. E depois foi somente um pequeno eritema em
sua mão esquerda, naquela região gordinha entre o indicador e o polegar, onde ninguém
irá perceber, isto se alguém perceber você em casa de Vicente. E depois, por que motivo
você iria se preocupar?
II.
Depois desta noite eles irão falar de você e do que você fez, como se fala de alguém
que já morreu (e alguém lembrará de ter notado a estranha marca na sua mão)?
Também não sabe como então será difícil entender aquela espécie de ritual, mas
talvez se assemelhe mais a uma cerimônia memorialista em que cada atitude é
relembrada com o carinho que se tem ao recordar os feitos de amigos que já se foram.
Só que será sem carinho.
Por enquanto, mesmo umas três horas após você já ter chegado, todo mundo está
apenas fingindo ser o que não é. E você pode fingir também. Não é o escritório, é um
outro lugar; um lugar no qual você não é Pedro e não precisa ir para o banheiro chorar.
E, veja, dobrar os braços para ostentar os músculos inchados sob a manga da camisa,
como Martim está fazendo agora, ainda provoca as mesmas risadas excitadas nas
mulheres, como desde sempre, como se vocês estivessem no colégio, como se não
fossem sujeitos de meia idade, colegas do escritório do CERN - como se na segunda-
feira não houvessem os requerimentos e carimbos e memorandos em cópia dupla.
Eles gravitam ao seu redor como se você não existisse, as mãos com design sob
medida para aparar a bagana que queima o tetrahidrocanabinol ao mesmo tempo em
que suspendem pesados copos de bebida amarela tilintando gelo. Todos, com exceção
de você, dominam as técnicas-de-conversação-aleatória - estão sempre prontos a
enfileirar piadas-internas com agressividade incontrolável, mesmo aqueles que só se
sustentam em pé porque desafiam a gravidade, em solenes acenos de cabeça para
ninguém, talvez para o retrato da parede em frente -, mas parece que ninguém está
interessado em exercitar estas técnicas com você. Então você permanece sendo câmera.
III.
Sua lente - e é claro que esta é mais uma das informações novas que chegam a você
na velocidade em que se descortinam - , enquadra uma daquelas personagens
secundárias que, cedo ou tarde (como em qualquer série oitentista) acaba ganhando
destaque na trama: Mireille. E você sabe, sim, que é por que os efeitos do
tetrahidrocanabinol já estão impregnando seus receptores canabinóides de euforia (e
por isso ela levanta os braços em sua direção, com a receptividade de quem reencontra
uma velha amiga), sensação de bem-estar (e por isso falar e tocar em você parecem
coisas capazes de fazê-la sentir-se realmente plena de prazer) e de distúrbios da
memória (e por isso ela o abraça, de tempos em tempos, como se achasse que você é
alguém conhecido o bastante para que ela possa abraçar), que é por isso que Mireille
age como age. E você tem sensibilidade para praticamente ver sua atual incapacidade
crítica, desibinição extrema e sociabilidade aguda - adicionados pelo líquido amarelo
que protagoniza presença tilintante no pesado copo que, também ela, suspende em uma
das mãos -, atuando como se fossem entidades físicas, grudando-se a ela como
tentáculos, da mesma forma como ela agora se gruda à você, logo você, Pedro, fazendo-
o sentir o eriçamento dos pêlos clareados à parafina de seus braços, fazendo-o sentir
seus longos cabelos claros chocando-se com sua própria pele e seu volume sob a calça
elevar-se, tão perto ela está, tão perto como nenhuma outra mulher do escritório jamais
esteve.
E é estranho que, agora, todos pareçam ter descoberto sua câmera (e alguém pareça
ter notado a estranha marca na sua mão). Os rostos voltados em sua direção carregam
expressões que revelam diferentes graus de habilidades de atuação, o torpor como um
elemento comum. Mas há algo que você sente em todos, como uma grande interrogação
que alguém desenhou em tinta fluorescente e só se revela agora, sob ação da luz negra
com que eles estão mais ou menos sacudindo seus corpos. O que Pedro está fazendo
com Mireille ali? É isto o que você sabe que todos ainda possuem capacidade de
questionar, todos estão questionando, de uma forma violenta que não é preciso outro
componente para revelar. E é por que você sente esta violência no ar, por que o ar está
impregnado desta violência, e é por que você sabe que há coisas melhores para sentir,
que você a conduz pela mão, abrindo a porta da casa de Vicente que dá para a rua e, em
apenas alguns segundos, nenhum dos dois está mais ali.
IV.
É como se você nunca tivesse saído do seu reduto, sua silhueta eternamente
marcando em suor o courino craquelado da poltrona que é seu trono. É como se você
nunca tivesse estado em casa de Vicente. Qual o motivo para você estar lá, afinal? Ser o
estranho experimento deles? Por isso você está novamente em sua casa. Sozinho,
mesmo que rodeado. Como sempre. Os ruídos acima já cessaram por completo. E este é
o som que se escuta de alguém tentando não fazer barulho - é você. Precisa adaptar-se
ao fato de que não está só, de verdade. Sua relutante convidada, ainda que pareça não
estar ali, está. Ela fala coisas que você não entende, distanciando-se um tanto da euforia
que a dominava até tão pouco tempo. Você também fala coisas que os outros não
entendem, quando resolve falar, quando tenta traduzir sua satisfação em ser parte do
experimento com os percevejos. Mas seu pioneirismo científico sobre a alteração do
ciclo reprodutivo dos cimex lectularius nunca é do interesse de ninguém. Então você
permanece sendo só e sentindo o que só você sente - esta sequência aprimorada de
apertar de dedos do pé, arrepios percorrendo sua coluna cervical - sentindo o poder e o
prazer de se deixar morder por um dos seis insetos que você retira com cuidado do pote
de vidro.
Mas não é possível que alguém mais não possa sentir com você.
Mireille está disposta, você sabe. Sempre esteve; mas é tímida, como você. Agora,
longe do escritório, letárgica, pulsação relutante, você sabe que ela está ali com você
para sentir algo mais do que naqueles dias no trabalho - em que não se sabe o que é bom
ou que é ruim.
Porque aquilo é o que todos sentem, e ela, como você, está disposta a sentir algo a
mais.
Você sabe.
E Mireille não impõe resistência. Quando você cheira sua pele bem de perto e então
afivela suas mãos na poltrona de couro com seu cinto, quando você prende suas canelas
com silver tape, você sabe que ela continua relaxada; ela só balbucia seu nome com
tanta frequência, por vezes parecendo que quer gritar, na ansiedade de querer entender,
afinal, qual é a sensação.
Você só abre o pote de vidro, colocando o percevejo sobre a maciez de que é feita a
mão de Mireille, permitindo que ele cumpra seu ciclo. E então você deixa que ela -
assim como você - possa sentir.
Alessandro Garcia
Autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora), finalista do Prêmio Jabuti,
segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Publicou também Agora
que estamos de volta, pela e-galáxia. Presente em diversas coletâneas, traduzido para o
espanhol e para o inglês, é editor da revista de contos Flaubert e host do podcast Negro
da Semana. Mais em: www.alessandrogarcia.com
O suor me torna ao mesmo tempo mais grudenta e mais deslizante entre a massa de
pessoas que pula ao meu redor. As luzes que alucinam agora piscam no ritmo da
música, e avanço como se fosse uma criatura rastejante dentro de um galinheiro, as
pessoas ciscam, ciscam, ciscam, meu suor frio esquentado com a pele dos outros, meu
tímpano prestes a estourar, tum, tum, tum, minha boca seca se contrai, a língua áspera
machuca o céu da boca feito lixa, que tremenda sede é essa?, uma sede do tamanho de
todos os desertos, avanço em direção ao bar, espero que seja a direção do bar porque, se
eu não chegar a tempo de comprar uma água, vou lamber alguém, alguém muito suado,
minha língua deve estar como a dos gatos, vou lamber alguém molhado. Uma mão. Ela
me puxa para o lado atravessando ao meio um feixe de luz azul. É Pedro que me leva de
arrasto e de vez em quando se vira pra mim com olhos de reprovação.
Tu sumiu, ele grita. Eu derreti, penso. Deslizamos sobre o som, pof, pof, pof, até que
Pedro me ancora no bar e diz que não devo sair dali. Água, eu peço, mas ninguém me
ouve, nem eu mesma ouço minha voz surda. Cabelos ruivos se aproximam, emolduram
um par de olhos amarelos, um homem pintado de música e ele sorri. Me estende um
copo triangular com uma bebida colorida. O corpo inteiro de Pedro me abraça, seus
dedos circulam meu pulso, interrompendo todos os meus movimentos. Tá louca, ele
pergunta, vai beber o que ele vai te dar com aquela cara de psicopata? Então me dá
água, Pedro, pelo amor de deus. Fica quieta aqui que eu já volto, ele me pede. As luzes
coloridas embaralham meus olhos enquanto, tenho certeza, a batida perfura meus
tímpanos. Cabelos-vermelhos se aproxima de novo. O copo sacode o líquido em mini
ondas que navegam de borda a borda. Fixo seus olhos amarelos. Cara de psicopata, o
que significa isso? Pedro não me explica nada. Agarro o copo geométrico e encho a
boca com a bebida açucarada. Pedro reaparece com um oásis no peito.
Todos os dias a fuligem cobre a claridade do mundo. Pedro abre as duas abas da
porta da sacada e passa um pano úmido sobre os vidros. Contempla um segundo o
movimento da avenida eternamente em obras e leva o pano enegrecido para a área de
serviço, onde o joga num balde com mais panos enegrecidos que serão lavados ao fim
do mês. Pedro é rápido para passar o café e tostar um pão. Toma o desjejum de pé, no
meio da sala, os olhos de novo sobre a avenida.
Veste o terno de segunda mão que escolheu com esmero no brechó semi-elegante e
os sapatos que comprou em promoção dois por um. Não entende muito a necessidade do
uniforme quando fica longe dos clientes, encerrado na sala dos fundos do escritório,
mas gosta da aparência que o terno lhe confere. Fica com cara de homem, com cara de
quem, no fim dia, larga displicentemente sua pasta sobre o banco de trás do carro e
dirige até em casa, onde vai preparar uma bebida fina para uma mulher bonita, a cara de
um homem sofisticado que jamais dorme sozinho. Mas Pedro, é claro, não tem o carro,
nem as bebidas importadas e muito menos a mulher. Em seu terno cinza grafite, ele
caminha até o ponto de ônibus a cinco quadras de distância.
O calor do asfalto sobe pelas pernas. Uma preguiça da extensão do tempo assola
Pedro. Quando ele vira a esquina, o ônibus está encostando no meio-fio. Apressa o
passo, numa espécie de corridinha ridícula que não acelera muito o seu avanço, mas
tenta demonstrar em pulinhos que ele está, sim, se esforçando para correr. O motorista
provavelmente se comove, pois o ônibus para depois de andar meio metro, e o braço do
cobrador se estica para fora da janela num sinal de vem logo. Pedro se vê obrigado a
correr de fato, e se pendura na porta aberta já agradecendo ofegante o motorista de
sempre, o cobrador de sempre, e agradece até mesmo à senhora velhinha de sempre que
parece talvez ser moradora do primeiro banco da frente.
Divido um café com o porteiro do prédio antes de subir, mesmo sabendo que já estou
atrasada para bater o ponto, mas foda-se, sou sempre a primeira a chegar não importa o
quanto eu me atrase. Valdemar é o único nesse edifício que me vê mal-humorada.
Apenas aqui, do lado da catraca de entrada, aproveito pra reclamar dos narizes
empinados, do cheiro de gel de cabelo, daquele bando de moleque mimado que não
sabe nem apertar o botão da cafeteira. O Valdemar ri quando eu falo do gel de cabelo,
ele também não gosta do perfume que ele descreve como madeira queimada com
produto químico. Quando já passaram quinze minutos do meu horário, decido subir e
Seu Valdemar chama o elevador pra mim.
Atrás do balcão da recepção, troco o tênis pelos sapatos de salto agulha dez
centímetros e confiro se a maquiagem precisa de retoque. A gente te paga pra ter uma
coisa bonita na entrada da empresa, disse o bosta do chefe quando reclamei da lentidão
do sistema e ele riu. Ele disse ainda: eu sei que tu só usa aquele computador pra marcar
encontrinho no Instagram, e eu tive vontade de imprimir todos os controles de entrada e
saída, coleta e envio, enrolar as planilhas em cone e enfiar no fundo do cu daquele
corno. Desde então, não levo mais os pedidos de almoço na mesa de ninguém, os
engravatadinhos que venham buscar suas caixinhas coloridas de comida, só levo as
encomendas do Pedro. Ele é o único que não usa gel no cabelo e, desde que desceu a
norma dos uniformes, usa uns ternos puídos nas mangas em sinal de protesto. Gosto do
Pedro por causa dessa pequena rebeldia discreta.
Detesta a moça da recepção, aqueles olhos escuros e o sorriso enigmático. Oi, Pedro,
tudo bem hoje?, ela pergunta todos os dias e ele nem lembra quando foi que deu a ela
seu nome. Ela tem alguma coisa estranha no tom de voz, como se cada palavra
escondesse um deboche secreto, e Pedro fica feliz quando pode se esconder atrás dos
biombos da sala dos analistas onde, há mais de seis meses, é o único funcionário. A
relativa privacidade permite que ele coloque fones de ouvido para escutar música
durante o serviço e, às vezes, até retire os sapatos embaixo da mesa, deixando expostas
as meias esportivas tão mais baratas que as meias sociais.
Na hora do almoço costuma pedir o prato feito do restaurante que se esconde numa
rua transversal à imponente avenida pontilhada de palmeiras decorativas, sede das
melhores financeiras da cidade. É todos os dias uma decisão difícil: se encomenda o
prato, precisa recebê-lo das mãos da recepcionista metida à besta, mas, se vai até o
restaurante, volta com cheiro de fritura na roupa. Como não gosta de lavar o terno com
frequência, acaba por fazer o pedido e se finge de ocupado quando Luísa - ou talvez
Luiza com Z, pois nunca quis entrar nesse assunto com a recepcionista - chega trazendo
a quentinha de alumínio dentro de uma sacola reutilizada de supermercado.
Mantém talheres de metal na primeira gaveta da mesa, pois não gosta nem dos
garfinhos de plástico que o restaurante manda, nem de usar os talheres que ficam na
cozinha do escritório, com cabos de plástico já mordidos, às vezes um pouco derretidos
ou escurecidos pela umidade. Abre com cuidado a refeição sobre a mesa, depois de
empurrar o teclado para baixo do monitor. Está terminando o último pedaço do bife de
alcatra quando recebe um chamado do chefe.
O boçal quer colocar a mão no meu ombro depois de me demitir, eu não duvido
mesmo que ainda tente me comer agora que eu não posso mais processar por assédio
sexual. Digo que tá tudo certo, eu não fico triste não, mal sabe esse imbecil que eu
podia ter aceitado emprego bem melhor na construtora e só fiquei aqui porque era mais
perto de casa. Ele vai me substituir por um conceito mais aberto no escritório, sem
biombos nem recepção, então não é nada pessoal, a função de recepcionista só vai
deixar de existir. Eu digo que arram, pode crer, vou pegar minhas coisas, já saindo da
sala, enquanto o bunda mole balbucia alguma coisa sobre um drinque de despedida ou
algo que o valha.
Pedro observa a recepcionista sem saber o que dizer. É tomado por uma honestidade
pouco familiar.
— Eu também.
— Caralho! Não acredito? - ela diz num estranho tom de pergunta — Achei que tu ia
ficar aí pra sempre. Tu não era o único analista dessa porra toda?
Luísa oferece um chiclete que Pedro recusa porque detesta falar de boca cheia.
— Era - ele confirma — mas eles me trocaram por uma firma de consultoria.
— Pelo menos isso, eu fui mandada embora pro escritório ter mais espaço.
Eles descem os onze andares restantes em silêncio, apenas o leve mastigar de Luísa e
o aroma de menta que sai de sua boca. Saindo no térreo, ela solta uma risada estridente.
— Você não acha engraçado? Me trocaram por um espaço vazio. Caramba, minha
mãe ia ficar orgulhosa.
— Vamo tomar um trago? - ela pergunta, e pouco depois estão na mesa de um bar.
Quando Luísa - com S e com acento, foi o que ela me disse na mesa do bar - me
convidou para beber eu pensei que a última coisa que eu queria era passar mais tempo
com ela. Mas não havia ninguém me esperando em casa e naquele horário o ônibus
passava cheio. Não entendi quase nada daquela noite porque Luísa falava sem parar,
num fluxo de ideias que eu acompanhava em ondas, e só às vezes conseguia participar
de algum assunto com nexo. Ela gostava da cerveja mais forte, mandava áudios pelo
celular contando da demissão a grupos de amigos como se fosse a coisa mais divertida
que tinha acontecido aquela semana, e cobrava pressa de um tal Vladinho que precisava
fazer a entrega de uma vez.
Não tenho intimidade nenhuma com o mundo dos narcotraficantes, mas não era
necessário muito conhecimento para entender que o tal Vladinho estava envolvido em
negócios escusos e o que ele deixou escondido na mão de Luísa certamente não eram
balas de criança. Num gesto abominável, Luísa tirou notas de dinheiro de dentro do
sutiã e pagou os serviços do homenzinho mal-encarado. Ela insistiu para que eu fosse
com ela na festa, a gente não precisava nem pagar ingresso porque ela conhecia o
segurança, era o mesmo cara que ficava na portaria do trabalho durante o dia. Decidir ir
junto apenas porque me preocupei com a segurança de Luísa depois de tanta cerveja, e
não podia deixar uma mulher sozinha perambulando pela cidade àquela hora da noite.
Então, o tempo.
Tu sumiu, eu digo num tom de protesto mas sem querer ser agressivo demais. Ela
não fala nada com nada, eu só consigo ver seu rosto como que evaporando, se
desintegrando em bolinhas coloridas que, de repente, voltam ao lugar e recompõem a
expressão alucinada de Luísa. Um sujeito que usa suspensórios sobre o torso nu se
aproxima e oferece um drinque que ela tenta aceitar. Interrompo a tempo, aquilo pode
estar envenenado, pode ter drogas, eu leio as notícias. A cabeça do sujeito talvez esteja
pegando fogo, mas ele parece ainda assim bastante tranquilo. Digo a Luísa que me
espere e compro a água. Quando volto, seu corpo ondula de um jeito inumano, o sujeito
incendiado continua por perto, o rosto de Luísa agora é composto por fragmentos de
rosto, todos milimetricamente encaixados fora do lugar. Ela me vê e sorri para a garrafa
d’água, mas se aproxima e, ao invés de matar a sede, me agarra pela cintura e dá uma
enorme lambida no meu pescoço, do colarinho da camisa até o alto da orelha. Penso que
vou morrer. Aquela é a pior e a melhor coisa que já me aconteceu na vida. Abro a
garrafa, despejo a água na nuca de Luísa, e ela grita uma vogal intempestiva, uma vogal
capaz de gerar a vida no espaço sideral. Sinto sua língua no meu ouvido e ela sussurra
Pedro, meu querido Pedro, cada um de nós é um universo.
Julia Dantas
Escritora, editora e tradutora. Publicou o romance Ruína y leveza, finalista do Prêmio
São Paulo e prêmio AGEs de 2016, além de contos em diversas coletâneas. Atualmente
é doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS e mantém uma coluna quinzenal no
jornal Zero Hora.
O namorado bate a porta do carro e sai cantando pneu pela avenida afora.
Grita mais umas três vezes e depois se senta no meio-fio. Abre a bolsa e pega o
celular. Está sem bateria. “Vou ter que ir a pé”. Levanta-se e examina ao redor. “Pela
avenida demoro umas duas horas, por dentro bairro é bem mais rápido, mas tem a
cracolândia. Filho da puta! Nunca mais olho na cara dele. Foda-se a cracolândia, vou
pelo bairro mesmo”.
— Moça, pelo amor de Deus, me dá uma ajuda, qualquer ajuda, eu tô com fome!
Os olhos vidrados não exprimem coisa alguma. Expressivas são as mãos que a
agarram pelo braço e a voz, resoluta na fome e na desgraça.
— Eu não tenho.
— Moça, não tá vendo? Eu tô grávida! Não é pra droga não! Me dá uma ajuda,
moça.
— Ô desgraça do caralho. É fome, sua filha da puta. É fome, não é droga não.
Desgraça da porra. - deita-se calçada e se põe a gemer.
— Dona, ô dona!
Ela se vira. Usa um vestido largo e os pés inchados transbordam pelos chinelos de
dedo. No pescoço, um colar de miçangas azuis com o pingente da santa. Foi seu último
dia de faxina. “Não precisa vir mais não, minha filha. Depois você passa mal aqui em
casa e vai acabar me trazendo problema”. De volta para a casa, atravessa a cracolândia
em direção ao ponto de ônibus.
De dentro da sacola, tira um pote de sorvete com o que sobrou da feijoada de almoço
na casa da madame. “Leva, minha filha. Os meninos vão viajar e se ficar aqui vai acabar
estragando.”
— É só umas pontadas na barriga. Desde cedo. Agora parece que piorou. As costas
também estão doendo.
Aperta com força o pingente que traz no pescoço. Em pouco tempo, a notícia se
alastra, a dor aumenta e começa uma profusão de gritos e comandos confusos.
— Chama o Samu!
— Liga você.
“Minha mãezinha, ajuda essa sua filha”. Enverga o corpo, comprime o ventre e torna
a apertar a santa, dessa vez com tanta força que o cordão arrebenta. As miçangas azuis
espalhadas pelo chão metálico formam um caleidoscópio monocromático. O pingente
foi parar embaixo de um dos assentos. Quando o ônibus arrancar, descerá rolando até a
porta de entrada. Um passageiro descuidado irá pisar sobre ela e deformar seu manto
azul feito com metal barato. Depois, pisada e repisada incontáveis vezes, vai se
misturar com sola de sapato, poeira de rua e água de esgoto até se desfazer por
completo.
****
Ela se desfaz em cacos - milhares, milhões - que se espalham por toda parte. É o jeito
que encontrou de velar por todos em todo lugar. Sua onipresença é feita de ruínas. E
mesmo esfrangalhada, pisada e coberta de pó, ela está sempre inteira.
Betzaida Mata
Historiadora e leciona História e Sociologia para o Ensino Médio. Escritora de
ficção, publicou o romance O fundo e a luz - menção honrosa nos Prêmios Literários
Cidade do Recife e no Concurso Sweekstars - e o livro de contos Homens e sucatas.
O branquinho vai descendo pelo meu nariz. Escorre. Tobogã alucinado. Poucos
segundos e bateu. O resto do bright segue para os dentes. Branqueamento instantâneo.
Cabeça pegando fogo. Diabo ralado nos neurônios. Euforia. O gostinho amargo na
garganta. O espírito da planta Erythroxylum coca é um oponente que devemos levar a
sério. Seduz pelo cheiro, e abate, trava. E... A rave não termina, meu show foi
ovacionado, escuto os gritos no camarim. Solitário. Dopado. Analgésico, aí entra LSD,
Rivotril, Ritalina, a porra toda misturada, criando um sistema imunológico novo. Uma
forma carnal e espiritual de ver o mundo. De hoje não passo. O maluco que apresenta a
rave diz: “com vocês, DJ Maxwell!”, a galera vibra. O Max é um cara legal, apesar de o
meu setlist ser infinitamente superior ao dele. Algo atinge o topo da cadeia animal. O
som. Bate-estaca. Tome-lhe porra nessa cabeça jovial, nestes cabelos negros e
arrepiados, nestes óculos negros e espelhados. Meu corpo vibra, a cadeira na qual estou
sentado torna-se flexível, afunda em uma câmera-lenta macabra. A cartela está na
língua, o doce e a raspa do chifre do capeta, o gnomo e todos os seres místicos
concebidos pela Xuxa. Sinto cheiro de Sasha, filha dos cães midiáticos, cria perfeita.
Divago sem parar, a cadeira afunda, meus pensamentos, seus pensamentos, amora,
carambola, abóbora, cebola e diarréia cor de fossa.
O tempo. Parou.
te,
PE cu li ar
AS cois
As
E o pass
Ado
Tornam-se
E Vou
Giran d d dd o
Até
Ver
Uma
Luz. Sim, uma luz. Nela visualizo minha biografia, aquilo que neguei por um tempo.
Meus pais, aqueles maravilhosos homens de bem. Seus métodos de educação peculiar,
seus sexos animalescos, seus rostos de boneco da estrela.
Giran
do
sem
parar.
É assim que vejo minha finada esposa. Lílian, tu és (sou chique) tão bela. Tão
verdadeira. Ao contrário de minha mãe, aquela velha que suportava as humilhações.
Aquela escrota que deixava os filhos serem alvos das brincadeiras do papai. Aquela que
disse que fazer Letras e ser DJ é coisa de vagabundo. V-A-G-A-B-U-N-D-O. Cuspi.
Quase morri engasgado. Velho Hendrix. Metalina. Fudida. O que estou falando?
Fundida. Sim, minha mente está girando, o cerebelo desce até o tórax, enquanto o
coração escorre pela glote. Meus pés nas paredes, meus dedos calejados de tanto mexer
em vinis nas noites, agitando as suas loucuras surreais e ilícitas, nas noites. O QUE EU
SOU? Essa droga está fazendo efeito? Será isso um placebo? Amo-te Lílian. Soy poeta,
soy maluco, o Brasil é meu abismo. O palco. Meu show? Por que você teve que morrer?
Meu irmão não aguentou os traumas de infância, pegou o três oitão e estourou sua
cabeça. Foi no jantar de 86. Vovô com Alzheimer, nossos pais expondo seus rostos
mascarados de felicidade com leve toque de tempero de sorriso. Os tios portavam essas
máscaras também. A empregada que papai comia, só sexo anal, claro, serviu o frango
para nós. Pude ver as mãos do papai subir. Meu irmãozinho desceu. Começamos a
cantar: “parabéns pra você, nessa data...”
G.
Foi só uma lapada. O miserável atirou enquanto descia as escadas, o seu corpo magro
e espinhento foi parar na mesa de estudo junto dos livros de coaching, Culinária para
Leigos e Matemática. Nós vimos o mais novo da família perder a cabeça.
Lílian, cadê você para dizer que droga mata? Elas te mataram também, não foi?
Luto: tão suave, cheirosa, doce. Adjetivos da novela das oito. Você conseguia afastar
as tempestades, Lílian. Meu cérebro está saindo da garganta agora, o gosto amargo de
vazio sobe pela minha língua. Vejo as zonas cinzentas do hábito sob meus óculos
escuros. Vejo meu rosto. Vejo luzes, Las Vegas, São Paulo e Nova York, carros, faróis
e buzinas. As patricinhas e os boyzinhos gritam “ai, New York”. Chorei. Observei
minha vida de classe média. Meu primeiro aparelho de discotecagem, meu futuro,
minha vida. Observei o universo e seus inúmeros pedaços. O apoteótico fim, o amorfo
em sua forma inexistente, o nada e o tudo. A minha mente circula a 300 km/h.
Ela não para de rodar. Você, Lílian, não para de rodar. Você, meu irmão, etc.
Amtrazporranenhumaondeestou.
“Abre.”
500km/h?
“Arromba.”
Um barulho, estrondo estranho, passos, botas pesadas. A mente girava sem parar, os
rostos barbudos, bonés escuros, um crachá do evento, um... Para a mesa. Para o teto.
Para a minha cara. E ASSIM:
Sim,
Ela
disse assim:
: “Acorda, drogado”.
Desgraçado, acho que foi isso que verbalizei. Desgraça é verbo? Um novo gerbo? G
E R B O. Sei lá.
Tô vivo, respondo.
Lílian foi a mulher da minha vida, foi por causa dela que esqueci meu passado. Que
agora retorna com tudo. Fim, féretro eletrônico. Travadíssimo. Zumbi.
Uma volta na minha mente. Através dela, viajo para saturno, paro na Conselheiro
Aguiar e peço um drink marciano. Uma volta eterna, um som mesclado com fúria. Sim,
minha vida não foi tão difícil, sempre tive dinheiro, o probl
T R A V O U DE VEZ, MERMÃO
ema é que meus pais eram terríveis. Lílian me ensinou a ter culhões, mas. Na
verdade, opa. Algo estranho sendo enterrado na minha cabeça. Giro
... Eu já estou morto. Mas deu um leve atraso no sistema digital da morte.
Verifiquem www.mortedigital.org. Download death in 78%. Morte sendo Carregada em
9&¨%$$ %%%%%%%%%%%%. Over Nossa, dose; isso dói. Lílian e irmãozinho:
estou chegando. Alguém. Cadê as fãs. Parem de girar. Está fazendo cócegas. Estou
ficando tonto. Está entrando. Entrou. Lança pontiaguda no epicentro cerebral. Olha o
sangue nos dentes, na boca, nariz, olhos, cu. Pane no s i s t e m a.
“A ambulância já chegou?”
A música parou.
Nossa.
Estou cansado dessa merda de
Bruno Ribeiro
Nasceu em 1989, é um mineiro radicado na Paraíba. Autor do livro de contos
Arranhando Paredes (2014) traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider e
dos romances Febre de Enxofre (2016) e Glitter (2018), que foi pré-selecionado ao
Prêmio Sesc de Literatura 2016 e finalista da 1° edição do Prêmio Kindle. Mestre em
Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), foi um dos
vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O Globo e pela
Amazon.
A noite está bem movimentada ali dentro; é sexta-feira e é verão. Muitos drinques
com bastante gelo e muitas cervejas geladas vão sendo servidos atrás do balcão, com
cuidado para não haver desperdício. O barulho do bar invade a sua mente e as horas se
estendem naquele tédio conhecido. Em certa altura da noite, as vozes aumentam de
volume, as risadas se tornam mais constantes e os pedidos por bebidas parecem mais
urgentes. O tempo passa desapercebido, envolto pelo serviço constante que se divide
entre copos cheios ou vazios, e garrafas cheias ou vazias. Sorrisos esparsos, anotações
em comandas, e espiadas nos dois relógios: o seu e o da parede, e esse é bonito,
imitando aqueles das estações antigas de trem. Os dois relógios requisitados pelo seu
olhar são sempre compatíveis no tempo.
Acende o cigarro com o isqueiro. A chama ilumina aquele canto escuro. Os lixos se
acumulam ali em grandes sacos pretos de plástico. Um contêiner pichado com o
símbolo da anarquia sempre lhe remete a algo em movimento, mesmo que impossível.
Talvez sejam as sombras noturnas das folhas das árvores que brincam com a
luminosidade vaga da noite. Samanta traga profundamente a fumaça sem nenhuma
culpa. Eleva o olhar para o céu, tentando ver a lua que ela sabe, está cheia. De repente
acontece algo inesperado. Alguém que se aproxima, e vem chegando como se tivesse
surgido do nada; uma silueta magra e alta. É um homem. Samanta dá um passo para
trás.
“Calma lá. Sou da paz. Me chamo Jonas, como o Jonas da baleia, conhece?”
“Da Bíblia?”
Samanta solta uma risada. Nota que ele não representa nenhum perigo e, além disso,
suas palavras são engraçadas. Ela relaxa e oferece um cigarro. Quando aproxima a
chama do isqueiro perto do rosto dele, vê um semblante envelhecido, uma pele
enrugada e suja e cabelos longos, também sujos, formando dreads irregulares. Suas
roupas são gastas e furadas, e seus pés estão descalços. Os olhos, no entanto, são
vivazes e brilham naquele breu.
“Três dias e três noites no estômago de um grande peixe. Vomitado depois. Assim eu
nasci. Três dias e três noites para compreender a minha existência. Sepultado antes de
nascer.”
O que no início pareceu cômico à Samanta, torna-se qualquer coisa de grave. Jonas
pega um galho e, com sua ponta, abre caminho na brita espalhada no chão, e começa a
desenhar um pentagrama. Depois, faz um círculo em volta do símbolo. Ela permaneceu
imóvel, atenta à lua.
“Dizem que a lua tem uma figura humana dentro dela... uma vez eu li que aquilo é
uma cratera que surgiu depois de uma erupção vulcânica.”
Uma voz impaciente grita lá de dentro do bar, pela porta entreaberta. É a funcionária
da cozinha que, com certeza, foi mandada a avisar que a hora de folga acabou. Samanta
olha para Jonas, ela não quer se despedir. É como se ele tivesse sido amigo dela por
toda a vida. Ele nota a oscilação dela e fala:
“O tempo é algo que a gente não domina, mas podemos fazer o que quisermos com
ele. Esse sistema que o ser humano inventou aprisiona o tempo em relógios, datas e
compromissos, só que a linguagem do universo é outra. O que você mais gosta de
fazer?”
“Gosto de ler e escrever. Principalmente poesia. Mas isso não dá dinheiro, né?
Ninguém paga o aluguel ou a conta de luz, de gás e água, sendo poeta.”
“Mas a gente se sente vivo fazendo o que gosta e o tempo adquire outro sentido.”
Ela decide olhar para o desenho feito à sua volta. Gira o corpo, mas Jonas faz um
sinal para ela permanecer naquela posição. Avisa que somente ele pode ficar no sentido
invertido do pentagrama. Samanta abraça Jonas, se despedindo. E apesar dele estar com
um aspecto de sujo ela não sente nenhum cheiro ruim. É o perfume da flor de jasmim
que chega até ela, vindo da árvore que fica na rua de trás.
Alguns dias depois dessa noite, Samanta continua no mesmo emprego e com aqueles
pensamentos ainda nebulosos sobre o seu futuro, mas apesar disso, escreveu alguns
poemas. É uma sexta-feira outra vez, e no intervalo do trabalho, vai para o lugar de
costume. Olhou para o céu, como sempre fazia, e não encontrou nenhum traço da lua.
Lembra que deve ser fim de lua minguante. Acende um cigarro. Gosta desse ritual
apesar do que falam sobre esse vício. A fumaça se perde no meio da noite e isso alivia
sua tensão. Quando retorna para o bar, surpreende-se ao ver que Jonas está lá. Sentado
numa mesa, sozinho, com o olhar absorto no relógio da parede. Samanta vai até ele.
“Quando um trem parte outro trem chega. Nunca paramos de nos mover. Mas essa
noite eu tive um sonho...”
Samanta gostou de vê-lo, mas fica preocupada, pois podem mandá-lo embora do bar,
porque Pipo não tolerava mendigos ali dentro.
Ela vai até o balcão rezando para que ninguém note que Jonas estava descalço e com
uma aparência de indigente. Pega um copo e serve duas doses de uísque barato.
“Eu sonhei que tudo tinha parado. As pessoas nada faziam e seus empregos e rotinas
foram esquecidos. Eu também não tinha nada pra fazer. Conseguia sentir as vibrações
que vieram depois do big bang. Explosões cósmicas intensas, cores vibrantes invadiam
minha mente. As civilizações se misturaram, e todos os tempos viraram um só. O tempo
se tornou um deus livre. Nós estávamos livres.”
Pipo faz um sinal para Samanta voltar a preparar as bebidas. Depois de alguns
minutos, Jonas vai atrás dela e lhe entrega um disco de vinil e sai do bar. Ela coloca o
disco na mochila e volta a servir drinks e anotar pedidos.
“Não apareceu nenhum homem descalço e sujo por aqui. Eu nem deixaria um sujeito
assim entrar. Mas teve uma noite que você estava esquisita, pode ser isso. Você viu esse
cara na rua e confundiu as coisas.”
“A banda que tocou nesse dia esqueceu algumas coisas por aqui.”
Eu não sei de quem foi a infeliz ideia de fazer uma santa ceia naquele dia. Deve ter
sido do Flavinho que só falava em parábolas depois que começou a fazer catequese.
Não que o Flavinho fosse lá muito chegado nas coisas da igreja, aliás, naquela idade
nenhum de nós éramos, mas ele andava enrabichado pela Clara, uma das noviças da
paróquia. Aí já viu, é versículo para cá, versículo para lá e creio em Deus Pai cada vez
que via a menina passar na rua. Até aí tudo bem, porque as noviças eram mesmo de
fazer a gente querer ler a Bíblia e tudo. Agora como foi que os outros toparam a ideia é
que eu ainda fico me perguntando, mas o caso é que teve uma santa ceia. E teve pão,
suco de uva e doze piazotes se fazendo de apóstolos, mais o Flavinho, que era óbvio que
queria ser Jesus. Não lembro direito quem era quem, só lembro que o Pedro ficou sendo
o Pedro mesmo porque aí não precisava mudar de nome e eu era o Judas. Fui eu que
escolhi, achava o apóstolo mais interessante e, também, era um dos únicos que eu sabia
o nome.
A função começou cedo com o Andrézinho indo buscar o pão na padaria. Nós
tínhamos duas grandes preocupações. Uma era que faltasse pão, porque o Flavinho
tinha colocado na cabeça que queria ser o mais fidedigno possível e proibiu o
Andrézinho de comprar mais do que um só pão, ia ter que render. A outra é que
ninguém queria comer pão puro, até fizemos uma vaquinha por fora para comprar um
pote de manteiga que ficaria escondido embaixo da mesa para o Flavinho não notar.
A mãe do Mateus deixou que fizéssemos a ceia na garagem da casa deles, onde tinha
uma mesa grande o suficiente para os doze apóstolos mais Jesus, e depois ainda
poderíamos dormir todos lá e jogar bola no dia seguinte. O Filipe conseguiu o suco de
uva na mercearia do tio e o restante de nós só chegou no horário combinado. Cada um
trazendo um saquinho da padaria embaixo do braço que o Mateus dava um jeito de
esconder o mais rápido possível. O pão oficial já estava num cesto em cima da mesa,
junto com os pratos e uns copos de plástico azul escuro que não deixavam ver o que a
pessoa estava bebendo. A mãe do Mateus ia fazer chocolate quente mais tarde porque o
Tomé não gostava de suco de uva, aí os copos não podiam ser transparentes. Também
não ia ter pratos porque a ideia era uma ceia meio rústica, mas a mãe do Mateus ficou
braba porque ia fazer muita sujeira. Quando o Flavinho chegou, a cozinha já estava
cheia de pães, brioches, croissants e amanteigados, fora as geleias, o queijo e o
presunto.
No início o Flavinho fez toda aquela cena partindo o pão oficial em pedaços e
entregando a cada um de nós. Fazia um discurso para cada um dos pedaços que iam
ficando cada vez menores que nem valia a pena passar manteiga. Faltava ainda eu, o
Tiago, o Filipe, e o Flavinho para comer o pão sagrado e já quase não tinha mais pão
oficial. Foi quando o Flavinho perguntou para o Mateus se, por acaso, a mãe dele não
teria um pão para nos emprestar. O Pedro, que já tinha comido o pedaço dele e
continuava varado de fome, disse que resolvia a situação e começou a trazer todo o
estoque que tínhamos feito na cozinha. O Flavinho até quis ficar brabo, mas também
estava com fome e as reclamações não duraram o tempo de fazer o sinal da cruz.
Depois de todo mundo já ter enchido a barriga e até o Flavinho já ter repetido, pela
segunda vez, o chocolate quente da mãe do Mateus é que começou a confusão. O Tiago
contou que tinha visto a Clara mais cedo e o Flavinho se perdeu todo. A Clara era uma
espécie de santa do nosso bairro, tinha gente que dizia que ela tinha até uma auréola no
topo da cabeça e que dava para ver toda vez que ela rezava a Ave Maria. Eu nunca vi,
mas na época também não duvidei, até porque tem coisa que é melhor não duvidar
mesmo. Mas para o Flavinho era diferente e a gente sabia por causa do jeito que a sua
voz ficava quando ele rezava. A entonação o Pai nosso que estááis no céu saía meio
esquisita e só acontecia quando a Clara estava por perto. Acho que a Clara já sabia
também por que se ela era mesmo da santidade devia entender dessas coisas, mas
naquela época eu não era tão esperto e não tinha certeza se ela sabia. Para ajudar meu
amigo resolvi contar para Clara dos sentimentos do Flavinho. Foi no dia antes da dita
ceia. E quando o Tiago falou que tinha visto a Clara achei que era um bom momento
para contar o favor que tinha feito.
Resolvi partir para os termos bíblicos para ver se ele me entendia e disse que se
Judas não tivesse entregado Jesus o mundo nunca teria conhecido a marca sagrada da
cruz. Judas faz parte cara, ele também queria o bem de Jesus. Foi eu dizer aquilo que
todo mundo viu o Flavinho passar montado em um porco, agarrado nos próprios
cabelos. A gente tem é que malhar o Judas e você que é traííra que nem ele, disse lá
pelas tantas com o mesmo engasgo do Pai Nosso. Mas, Flavinho como você diz uma
coisa dessas? Jesus é amor e perdão e todas aquelas coisas bonitas que a Clara fala, eu
disse, mas não adiantou.
Até a mãe do Mateus ficou assustada e foi ver o que era aquela gritaria toda. Tia
Michele, liga para meu pai que esse Judas vai ter o que merece. Foi o que todos nós
ouvimos o Flavinho falar correndo para o lado da mãe do Mateus.
Taiane Maria Bonita
Escritora, historiadora e bioconstrutora. Acredita que merecem o mesmo cuidado a
História, a massa do barro da qual é feita uma parede e o trato com as palavras. Tem
contos publicados nas antologias Onisciente Contemporâneo, Translações Singulares,
Não culpe o narrador (Bestiário) e em revistas brasileiras. É editora da revista Travessa
em Três Tempos.
Acordou às cinco da manhã durante um mês. O sol não nascia e a escuridão fez
parecer que este tempo fosse um único dia, olhava a sua volta e a cama continuava
vazia. Olhava para a cozinha, e tudo estava vazio. Nem as baratas estavam mais na casa,
não aguentaram aquela solidão, aquela falta que cheirava no ar e expulsou, uma por
uma, todas as vidas daquela casa. A sala estava vazia, não tinha mais o incenso
queimando, a garrafa esquecida na estante, a TV ligada sem ninguém para assistir,
largada aos calangos que corriam no teto e as cachorras que viviam à espera de alguém
que batesse no portão ou raspasse a escada mal construída e sem acabamento que dava
acesso a casa. Nada estava mais lá.
Levantou os olhos para o céu, barrado pelo teto, virou, inclinou alguns graus para
baixo, encontrou o corredor do segundo andar, e viu que o Banco do Brasil havia sido
fechado, ali também. Ficou sentado e olhou novamente para o celular a procura das
horas, mas logo se distraiu com o Facebook aberto e uma música que vinha de uma
caixa de som ligada no colo de um adolescente a três fileiras de distância. Nada mais
fazia sentido. Foram muitos anos de dedicação e agora o sono o acerta como um
algoritmo mal interpretado na época onde não se tinha faculdade para estudar, nem
comida, e somente pingas baratas, que eram misturadas no refrigerante Picolino, não
antes de jogar metade fora.
Tocava um. Abaixa e quica. Abaixa e quica. Mexe a raba na minha cara. Abaixa e
quica. Abaixa e quica. Mexe no meu pau.
E sem muitas forças para dizer algo, levantou o último copo daquela bebida que
queimava tudo, não era vodka, e não era amargo como aquela bebida verde esquecida
em cima da geladeira. Desconcertado acertou a parede da sala e olhou para os poucos
móveis que tinham, quase tudo estava pregado na parede, assim como sonhos e palavras
de amor que morreram meses antes de preparar a mala.
Separou a mala com roupas de cores diferentes. Blusa. Camisas. Bermudas. Novas.
Velhas. Limpas. Sujas. A vista começava a embaralhar, não sabia mais onde estava. Por
um minuto soltou a mala da mão esquerda e sentiu que não tinha mais mão.
Levantou da cama e foi para o corredor, os quadros ainda estavam lá, com traços
modernos, lembrando esboços, na modernidade não é preciso mais terminar nada, tudo,
as relações, os objetivos, as pessoas estão no seu máximo no meio, exatamente no
momento que é preciso fazer os detalhes, dar cor, dar vida. Um quadro, não uma capa
de CD, lhe chamou a atenção, um oboé, velho desgastado, largado no chão da sala,
aproximou-se.
Uma senhora levantou da cadeira ao lado e lhe encarou, como um olhar de dó. Fizera
a barba, seu rosto estava todo cortado. Uma cara de abandono, como os protagonistas
das músicas dos anos oitenta, relutou em olhar para seu braço, relutou em olhar para si,
para um espelho. Decidiu levantar da cadeira, mas como um leproso em estado
avançado todos os seus membros começaram a se soltar, como se tivesse sido cortado
por um açougueiro.
Cristiano Rato
Autor de Sentido Suspenso! (2012, Multifoco) e tem diversos textos espalhados pela
internet, além de editor na editora Caos & Letras, documentarista, e também um dos
idealizadores do programa de websérie documental Literatura no Boteco.
O sol se pôs e tentamos puxar os aplausos, mas não era aquele tipo de praia. Pedimos
the-check-please e entramos no carro, para procurar a pousada que meu cunhado tinha
reservado, cuidando do check-in e toda a papelada. Vantagens de ter um agente de
turismo na família. Dez anos atrás, essa brincadeira acabava logo, depois de uma ou
duas horas, assim que o primeiro de nós deixasse escapar uma palavra em português.
Desta vez era como uma partida de tênis perfeita, os dois jogadores lançando a bola para
outro sem que nenhum errasse ou tropeçasse. A cada movimento, tudo ficava mais
empolgante, uma sílaba errada, um tropeço, um uau em vez de wow estilhaçaria a vida
boa e leve que conseguimos manter durante toda a tarde. E assim nossa pousada virou
our-inn, e como chegamos lá virou how-do-we-get-there. Quando nos apresentamos na
recepção da pousada, Erika e Benjamin foram pronunciados como Ehricá e Béndjamin,
com a conivência do meu sobrenome ambíguo. Não era tarde. O sono pesava nossos
corpos pouco habituados a sun-and-salt, amolecidos pela vodka e uma leve
desidratação. Dormimos sem desfazer as malas e posso jurar que sonhei em inglês.
O salão estava organizado em 3 mesas pequenas, e cada casal seguiu para uma.
Quem servia a comida era uma jovem de tranças pretas, com uma barriga tão avantajada
que Erika, que se lembrava bem de como era tentar se mover com outro ser humano
dentro de si, se levantou para ajudar, e pediu para que ela sit-down-a-little-bit. A moça
parecia não entender muito bem, e Erika teve que gesticular até que ela se acomodasse.
Que raiva da dona daquele lugar. Perguntamos, numa língua que misturava inglês e
mímica, se ela deveria estar trabalhando, de quanto meses ela estava? Ela levantou as
duas mãos, uma com todos os dedos à mostra, outra com apenas um escondido. Ela
olhava para baixo o tempo todo. Pensei que estivesse com vergonha de estar sentada em
vez de trabalhando. Ela nos perguntou where-you-from, num inglês decorado e
precário. Tentamos contar sobre nossa cidadezinha fictícia onde havia um lago onde as
crianças patinavam no inverno. Mas ela não parecia compreender e falar disso já não
fazia Erika sorrir. Os outros dois casais viravam para olhar nossa mesa não uma vez,
nem duas, all-the-time. Perguntei whats-your-name e ela disse Miranda, levantando com
dificuldade e indo servir as outras duas mesas. Levamos nossos próprios pratos para a
cozinha, incomodados com a perspectiva de Miranda ter que carregar tudo aquilo
naquele estado. A barriga da moça parecia um mundo e sua gravidade atraía os olhos de
Erika. A outra vida começava a falhar. Perdia altura, voltava ao chão. Éramos só um
casal de brasileiros com uma caixinha cheia de cinzas no fundo da mala.
Que merda. Foram minhas primeiras palavras em português em quase dois dias. Foi
assim que eu encerrei o jogo, entreguei os pontos. Que merda. Nossa versão brasileira
precisava de uma bebida forte. Pegamos o que havia no frigobar, umas latas de Coca-
Cola e minigarrafinhas e passamos metade da noite cantando canções de ninar para
Talita.
Um absurdo. Não sei como pode existir esse tipo de coisa. Tudo bem, é bonitinho,
mas cá entre nós, é um desperdício! E é certo que esse desperdício aturdia nosso pobre
protagonista, que atende pelo pomposo nome de Raul. Todo fim de festa com a turma
era a mesma coisa. Toca Raul! Ele incorporava o próprio, plugava a Gretsch vintage
que descansava carente, fedendo a suor e outras coisas que minha retórica pudica tem
vergonha de mencionar. Eu tô meio bêbado, mas vai rolar um rock da porra agora! E o
barulho ensurdecedor enchia a república; Raul logo no primeiro período ficou famoso.
Tocava muito bem e, ainda por cima, era um pedaço de mau caminho. Se eu deixasse
minhas palavras recatadas atirarem lingeries afora, ganharia o mundo escrevendo uma
odisséia-descrição do peitoral daquele homem. Mas, como disse, foi só uma suposição.
Um absurdo. Raul está muito revoltado esta noite. Zeppelin, Zappa, ZZ Top; tanto
hino rolando no apartamento... E ele lá, citando Nietzsche ou alguma coisa da
Metafísica do Belo para pegar as menininhas mais bobinhas da festa. E ele conseguia.
Vem cá, moça, vou fazer você esquecer o André. Quem? Não disse? Já esqueceu! E a
loura caía na graça da cantada sem graça do guitarrista, como mandava o figurino. Mas
ele tá muito irritado hoje. O legal é que eu presumo o porquê dessa pose de pavão. Toca
Raul! Com o pedido da galera ele acaba subindo no sofá, pega a guitarra e passa alguns
acordes. Tira esse disco que é hora do Marshall explodir! A ridícula abertura que fazia
antes de tocar era um porre! A Silvinha, minha amiga aqui do lado, ria. É muito escroto
esse cara!
Calma que ainda chegaremos no absurdo! Não é muito prudente da plateia perturbar
um rockstar da república, ele pode rodar a baiana e vir querer enfiar seu instrumento
goela abaixo de quem reclamar. Pô, Raul, deixa rolar outro som! Silvinha ingênua vai lá
do outro lado emprestar o pen drive. Tem de tudo aí, de Queen a Queens! Mas aí o
pessoal prefere Castles made of sand. Hendrix, nisso concordo, é afrodisíaco. Não
demorou muito os ânimos se exaltarem e começar a acontecer coisas que minha timidez
insiste em revelar aos pouquinhos.
Tem hora que não entendo Deus mesmo. Bastou que eu exclamasse e lá me vem
problema. Tínhamos saído da sala, agora no banheiro. A porta não fechou direito, acho.
Resultado? Não sei bem em que beijo íamos eu e Silvinha, mas percebi, entre um abrir
de olhos e outro, que nos espiava. Voyeur filha da... Eu ia xingar muito o infeliz, mas
Silvinha é lépida e sábia e me prendeu novamente, parecia em transe. E em transe me
tirou a blusa e me agarrou e me soltou o sutiã longe. E o Raul? Não, não era hora de
pensar naquele traste, estragaria nossa noite. Preocupada com que, meu amor? Vem cá.
Silvinha diz coisas doces mescladas a safadezas que você sabe que não ouso relatar,
meu ouvido se ergue tal como o de uma cachorrinha. Será que ele ainda está espiando?
A mão percorrendo minha barriga, botão da calça, zíper, as rendas da calcinha se abrem
obedientes para a passagem. Por que não gritam toca Raul agora? Abro o olho, ele ainda
está lá, a mão de Silvinha já em frenesi, ele não vai sair, não, não vai. Mas por que
aquela cara de desgosto? Nessa hora é que ele solta a pérola:
— Que absurdo!
Pela cara dele, acho que queria um close na testa indignada ou uma frase destacada
em travessão num conto de um autor contemporâneo. Mas, graças mais à Silvinha do
que a mim, isso não aconteceu. A mão dela puxa a minha para o fundo da calça, aperto
forte, não dá para entrar no clima desse jeito, ele ainda lá. É um absurdo, um
desperdício, como pode, duas moças tão lindas! Quero mandá-lo às favas, mas ainda
estou tensa, Silvinha lambendo cada dobra do pescoço, orelha. A música rolando alto lá
da sala, ao menos ele não chamou a galera para cá, iam caçoar, talvez até nos pusessem
na internet no dia seguinte. De soslaio vejo a mão do Raul ir à calça, que ridículo!
Deixa o cara se divertir, a moderninha da Silvinha sussurra no meu ouvido que chega
arrepia.
Se eu entro aí no meio ensino pra essas duas como é que se faz, qual é a coisa certa,
acabo com esse desperdício rapidinho. Ouvi aquelas palavras e meu sangue então
ferveu. Tudo bem que Silvinha por trás me agarrando ajudou nessa fervura. Entretanto,
logo esse calor virou balde de água fria e travei; ambas recostadas no box, Raul cínico e
pavônico. Penso em esbravejar contra o rockstar chinfrim, mas o grito fica na garganta.
— Espera.
E se fosse filme fechariam a câmera em meu ouvido junto à boca de Silvinha, que me
dizia impropérios que a pudicícia me impede de reproduzir, como sempre, enquanto seu
indicador aponta para Raul como quem fala para cachorro, senta e aprecia, gente como
você só merece ficar de fora olhando. Daqui há uns anos nem isso. Tá louca? E continua
cochichando aqui, pensa bem, amor, faz essa caridade pra ele, sorrimos, Raul lá como
todo bom idiota crianção, Silvinha me beijando enquanto o observo dos pés às cabeças,
ai, calor, ai, ai, um, dois, três, beijos. Silvinha sorri, Raul sorri. Silvinha sempre falava
que riso bom é riso de vivência, idiota se contenta em achar graça onde não pode ir, mas
não é hora de pensar nisso. Por sinal, você que me lê se importa de eu parar de pensar e
sorrir-agir? Sabe, não quero detalhar o final; é que sou tímida.
Wander Shirukaya
Pernambucano nascido em São Paulo, é autor de Balelas (Mutuus, 2011) e Ascensão
e queda (Cepe, 2015); um dos organizadores da antologia Cem anos de amor, loucura e
morte (Moinhos, 2017) junto ao escritor Bruno Ribeiro.
Foi quando eu estava assistindo os desenhos, agasalhado no sofá, que meu pai cruzou
a sala e, abrindo a porta da cozinha, disse para minha mãe que o homem é definido por
seus princípios. Passava aquele episódio em que o Pernalonga é capturado por pigmeus
canibais e, depois de jogado dentro de um caldeirão com água quente e legumes, ele
pega uma cenoura e começa a comer. Eu fui rir e saiu uma tosse alta, feito um grito.
Fazia uma semana que me abatia a coqueluche. Por esse motivo, meu pai foi assistir
sozinho o espetáculo do Gran Circo Norte-Americano, para o qual havia comprado,
antecipado, três ingressos. Morreu queimado no incêndio.
Isso foi há 11 anos. Mas me lembro bem daquela frase, pois foi a maior bobagem que
ouvi na minha vida. Meu pai era um idealista. Se estivesse vivo, não duvido que estaria
hoje envolvido em passeatas, abanando bandeira e repetindo gritos de protesto. O
homem não é definido por seus princípios, mas por seus vícios. Eu, por exemplo, me
alimento de três maços de cigarro por dia. Continental, claro. Preferência Nacional.
O problema é a grana curta. Com a pensão rala deixada pelo meu pai, minha mãe
teve que passar roupa pra fora. Eu faço as entregas, recolho o pagamento e fico com 10
cruzeiros. Mas fome de cigarro é pior que fome de comida. Se a fome na Etiópia fosse
de cigarro, todos estariam mortos em dois dias. Você fica agitado, dá uma tremedeira, a
boca seca. E eu ainda estava na metade do caminho, atravessando a Frei Caneca, com o
volume de roupas embrulhado em papel e barbante na altura dos olhos.
Foi quando quase trombei num cara também agitado e, na hora, saquei que era
fumante. Ele pescou um maço do bolso da camisa e espetou o filtro na boca. Apesar de
ser Minister, eu não me segurei. Sou um homem sem princípios. Ei, amigo, você pode
me ceder um cigarro?, pedi. Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado. Dois homens
fumando juntos pode ser muito arriscado, acrescentou, com uma voz baixa, embora
firme.
Atrás dos óculos, seus olhos se mexiam sem parar, espremidos, como se procurassem
alguém. Não era secura de vício, percebi. Ele então riscou um isqueiro e acendeu meu
cigarro, depois o dele. Tá tudo bem?, perguntei. Estamos sendo vigiados. Vigiados, por
quem? Ele se inclinou na minha direção. Os canibais de cabeça. Tentei falar, mas ele me
cortou. O prato mais caro do melhor banquete é o que se come cabeça de gente que
pensa. E os canibais de cabeça sempre descobrem aqueles que pensam, porque quem
pensa, pensa melhor parado. Chegou mais perto e apertou a voz. Por isso, finjo que
estou sempre atrasado. Não posso dar bandeira, de papo na rua. Trabalho em cartório,
mas sou, na verdade, escritor. Eu só fumo e faço entregas de roupas pra minha mãe,
disse, não sei por quê. Mas ele saiu voando, e nem me ouviu.
Cara biruta. Descansei o embrulho no chão, e encostei no poste, para saborear o resto
do cigarro. Duas tragadas depois, um Chevrolet preto cantou pneu rente ao meio-fio,
destampando as portas de trás num tranco. Saíram um mulato forte e um russo alto, com
pistolas na mão. Mão na cabeça, malandro, se não quiser levar chumbo quente nos
cornos, um deles gritou. Tomei um susto, que deixei o cigarro cair no chão. Mão na
cabeça, tá surdo?, repetiu o mulato, me pegando pelo ombro e me pondo de costas.
Claro, pois não, mas o que é que eu fiz? Se é documento, eu tenho aqui. Pouco importa,
falou o russo, me revistando. Entra no carro!
Sem o capuz, vi que estava numa sala, em frente a uma mesa de escritório que me
separava de um senhor alinhado. Vestia um terno branco e tinha a cara de sapo, com
olhos pousados sobre olheiras fundas. Sabemos que o assalto ao Banco do Brasil foi
ação de uma célula revolucionária da qual você faz parte. Essa célula, já é de nosso
conhecimento, ocupa um aparelho na Praça Onze. Eu preciso, agora, que você só me
diga o endereço. Eu estava tão desorientado, que sequer conseguia falar. Um dos três
que haviam me escoltado me deu um tapa tão forte, que sai do transe. Percebi que o
mulato segurava um bastão de madeira.
Não pense em mentir, continuou o senhor, pois eu sei o que está pensando. Sua
cabeça já não faz parte do seu corpo, ela é minha. E eu digo o quanto ela está custando,
e o que posso fazer com ela. Se eu quiser, posso até comer seu cérebro a vinagrete.
Então, desembucha logo. Mas eu não sei de nada. Mentira!, interveio o baixinho calvo.
Nós vimos você conversando com um dos dirigentes da organização. Daí as coisas
começaram a fazer sentido. Aquele cara? Eu não conheço ele. Apenas filei um cigarro.
Eu faço entregas de roupas pra minha mãe, e tiro uma grana pra comprar meus cigarros.
Não tenho envolvimento com nada, senhor. Acredite em mim. Droga, eu estou muito
nervoso, preciso fumar. Por favor, pode me conseguir um cigarro? Claro, respondeu o
cara de sapo. Matias, dá um cigarro para ele. Daí o mulato deu um passo para o lado e
desceu com o bastão na minha perna, arrebentando o osso do joelho. Berrei de dor.
Levem esse comunista de merda para o xadrez, para ele se acalmar um pouco.
Me colocaram de novo o capuz e me arrastaram até uma cela, onde fui jogado num
chão de cimento cru. Apesar de ser dia, ali era escuro e frio. Num canto, tinha um balde
fedendo a fossa. Minha perna doía tanto, que eu não conseguia ficar de pé. Sentei com o
ombro escorado nas grades e desatei a chorar. Segura, companheiro, de repente uma voz
mansa surgiu não sabia de onde. Não dá esse gosto para esses putos. Quebraram meu
joelho, tentei me justificar. Me quebraram também, eles quebraram muita gente, mas o
importante é não ceder. De qual organização você é? Eu não sou de organização
nenhuma, respondi. Isso tudo é um engano. Eu trombei com um cara na rua, fazendo
uma entrega. Daí pedi um cigarro, e ele veio com um papo de que a gente tava sendo
vigiado, de que tinha uns canibais de cabeça que...
Uma pancada, como a de um corpo batendo contra grades, ganhou volume no
espaço. O que você disse?, a mesma voz agora subia o tom. Dos canibais...? Sim, me
interrompeu. Como era esse cara que te disse isso? Sei lá, normal... De óculos, magro,
cabelo em caracóis...? Sim, sempre agitado. Fumava Minister... É ele!, a voz atingiu a
escala de um grito. O companheiro Robson está vivo! O companheiro Robson está vivo!
O companheiro Robson está vivo!, e a frase se esticou pelo ambiente.
Foi quando saquei que não era a mesma voz, e sim várias. Havia mais gente presa ali,
que repetia a mesma frase, comemorava. E, de repente, começou a crescer uma canção,
uma música que a vozes iam dando vida, com firmeza e ternura, e foi me comovendo,
me embalando a tal ponto que adormeci, ou desmaiei.
Acordei com o golpe de uma água de banheiro contra o meu corpo. Ergui a cabeça
com o susto, e vi o baixinho calvo e o mulato. Eles riam. Toma a tua roupa, disse o
baixinho. Veste também o capuz, que vamos dar uma volta. Fiz como mandaram e, com
a perna totalmente inativa, me escoltaram de novo para o carro. A diferença é que, desta
vez, me puseram deitado sobre o banco de trás. Não levanta, filho da puta, ou te dou um
tiro nos cornos.
Rodaram outra vez por um tempo, sempre em alta velocidade, daí frearam e me
puxaram para fora. Com o bico da pistola espetando meu rosto, o baixinho calvo
mandou que eu fechasse os olhos, tirou o capuz e disse para eu contar até 100, antes de
abrir de novo. Ouvi o carro partindo e terminei a contagem. Era dia outra vez. Um novo
dia, que começava. Eu estava numa estrada de terra, não sabia onde. Dos lados, se
alastravam um mato alto, árvores, blocos de pedra. Me arrastei o quanto pude, até achar
um galho seco, com o qual passei a me equilibrar. Segui em frente. Sem outra
alternativa, segui em frente, na direção do sol que nascia e logo iria queimar meu corpo
sem perdão. E eu sabia, naquele momento, eu sabia que seria tão quente quanto o fogo
que consumiu o meu pai.
Quarenta e seis anos depois, apoiando o peso do corpo magro numa muleta, um
velho deixa a Santa Casa de Misericórdia. Todo mês, ele vai à instituição para se
consultar e obter medicamentos para o tratamento do enfisema pulmonar. Sempre mente
para o médico que está ingerindo líquido suficiente, fazendo fisioterapia respiratória e,
naturalmente, que parou de fumar. Puxando a perna, se arrasta até o outro lado da rua,
cruza um largo e entra num bar. Compra um maço de cigarro. Sente falta do
Continental. Pararam de fabricar. Agora fuma Derby Azul. Pede ao balconista que
acenda, traga e sopra a fumaça do lado de fora. Não se pode mais saborear cigarro em
ambientes fechados.
Neste ínterim, dois caras passam por ele, vão até o balcão e pedem dois cafés em
copos americanos. Pegam a bebida e vão também para o lado de fora, para um deles
fumar. Esses caras não têm princípios, brother. Mesmo depois do impeachment,
continuam metendo a mão, diz o fumante. Eu vi, e ainda desacreditam a Lava Jato.
Canalhas!, sopra fumaça. Mas outubro tá chegando. O Mito vai consertar esse país. Eu
não sou tiete, mas meu voto também é dele, declara o não-fumante. Tem que mandar
prender toda essa quadrilha da esquerda, limpar geral. A melhor solução seria a volta da
ditadura. O governo militar foi ruim pra quem? Só pra quem tava metido em parada
errada, né?
O velho termina o cigarro, joga a guimba no chão e pisa com a perna boa. Se
aproxima dos caras. Um conselho sério pra vocês, companheiros, interrompe a
conversa. Há tanto tempo atrás, que nem sei mais qual era o mês, eu morri, e não vai
demorar muito pra que eu morra de novo. Mas vocês são novos, com cérebros
saudáveis. E ainda têm tempo de evitar que os canibais de cabeça invadam seus
cérebros e façam vocês pensarem que estão pensando, quando são eles que estão
pensando por vocês. Tá tudo armado, não percebem? Um jogo de caçadores de ideias,
dando muito bandeira. É bandeira demais, meu Deus! Só ficarem atentos. Prestem
atenção, antes que eles devorem seus cérebros, e a única coisa que vocês poderão fazer
é ver suas cabeças ocas caídas no chão, prontas para irem pro lixo.
“Senhor!”
Culpa da Mamãe. Eu não queria ter servido ao Exército. Nem à Aeronáutica. Eu não
queria ter servido, na real. Tinha uma banda, cursava o primeiro semestre de Engenharia
Mecânica, era só Papai discar o número daquele velho Coronel de Santa Maria (na
época os dois serviam juntos por lá) e eu estaria fora, o carimbo clássico “Excesso de
Contingente”, mas não. Mamãe queria me ver fardado. Esverdeado. Aniquilado. Foi a
segunda traição dela. A primeira teve como coadjuvante o homem que naquele dia
retomava a palavra: Sargento Seixas.
“Pelotão… sentido!”
Estávamos numa instrução no Samuara, um lugar da cidade que contém vários
hectares de mata nativa e até um hotel. Dividido, obedeci ao sargento parcialmente:
estiquei o braço que não segurava o coelho e bati a palma da mão na coxa esquerda.
Mas a força foi desproporcional, como que para compensar a ausência do outro braço
no cumprimento da ordem.
O pelotão fez um barulho de um pelotão que segura o riso. Sargento Seixas falou
então por mais de duas horas sobre técnicas de sobrevivência. Como fazer um abrigo
com galhos de árvores caídas. Como purificar água de um corpo hídrico suspeito. Como
secar as botas no frio. E escalar uma árvore. Raízes comestíveis e não comestíveis. A
paciência e a técnica necessárias para acender o fogo. Para capturar pequenos animais.
No centro do crânio eu sentia a pressão cada vez maior do capacete, a umidade
envolvente nos pés, a porra de frio lembrando a inutilidade das orelhas no corpo
humano e eu ali no meio do mato, distante de casa e de todos e o que estaria fazendo
exatamente agora a gostosa da Naiara? Saindo do banho como se nascesse de novo, eu
aposto, úmida de criação, a textura macia da toalha branquinha roçando aquelas coxas
enérgicas.
Acariciei o coelho.
“Senhor!”
“Porra, hoje não me conseguiram uma galinha. Tô achando que o pelotão do Lopes
tá assando um franguinho agora, eheheheh”
“Soldado 45, Negretto, o que o senhor vai fazer agora é o seguinte: dar uma paulada,
uma batida seca nessa região do crânio do coelho. Com a devida força, o animal chega
ao óbito sem dor e não sofre, entendido?”
“Entendido, Senhor!”
Recebi o coelho de volta. Todo suado. O Sargento Seixas tinha um problema sério
com o ácido úrico e sofria de hiperidrose. Tudo o que ele tocava ficava melecado. Suas
armas sempre enferrujavam cedo.
Puta Merda.
E pensar que aquelas mãos cheias de líquido seboso corroeram a pele alvíssima da
Mamãe.
Tirei o fuzil das costas sem abandonar o coelho. Fui até a pilha de galhos usados para
a confecção do abrigo. Retirei o que me pareceu mais razoável. Só que demorei no
processo. Não me orgulho disso. Eu hesitava. Dentro de uma brecha do meu próprio
tempo, era como se procurasse um galho macio, aveludado; um pau desprovido de sua
característica principal, a dureza, mas que pudesse se comportar só como um gatilho
soft - passagem indolor para a morte. Por que não dar ao coelho um sonífero, deitar o
peludo no interior de uma das barracas e ligar a ela uma mangueira do liquinho?
Inalação por gás de cozinha, isso é que seria uma morte indolor, Sargento.
Meu primeiro ano no serviço militar foi fogo. Ano-Negretto-Fogo, anotaria mais
tarde no diário. Um soldado que mantém um diário durante o serviço militar é algo
meio constrangedor. Nunca contei a ninguém. Eu gosto de escrever.
“Bichisse”, diriam.
“Coisa de veado.”
“Mulherzinha!”
Eu tinha medo.
Como um grito de quem não queria servir ao exército, mas foi ficando. Depois
daquele início lendário no Samuara, me empenhei como se a vida dependesse da
recuperação da minha imagem. Desfiz a banda. Tranquei o curso de Engenharia
Mecânica. Ano seguinte veio o de sargento. Aprovado. “Disciplina e estabilidade”, dizia
Papai com orgulho, quando conseguia alguns dias de folga do quartel de Santa Maria.
Aprovado.
Talvez a distância tenha ajudado Mamãe a botar uns cornos no Papai. Caxias - Santa
Maria: 300 Km. Se bem que não sei se isso realmente aconteceu. O sargento Seixas
sempre teve fama de garanhão, mas também de mentiroso. Alardeava que seu pai tinha
conhecido Hitler em pessoa no interior do Mato Grosso. “Chamavam o führer de Velho
Alemão. Meu pai até jantou com ele.” Talvez o que eu sentisse pelo sargento Seixas
fosse apenas inveja de tamanho talento ficcional. Em algum momento de embriaguez ou
solidão, Mamãe poderia ter caído na lábia daquela mistura de terapeuta holístico com
estivador.
Já eu não gostava de mentir. Era até sincero demais. Quando veio o aviso do
alistamento, Papai disse:
Mas ele estava certo. A disciplina me ajudou a lidar com a grana. A estabilidade me
fez trocar de carro. Quando virei tenente pude comprar um apê. Móveis novinhos,
contratei até empregada.
Foda-se.
No dia que me mudei pro apê eu organizava caixas com velhas fotos e uma delas me
prendeu de forma inescapável. Tanto que foi parar na estante. Mamãe está com vinte
anos e desfila sozinha sobre uma passarela, alvo de olhares emitidos por rostos
desfocados ao fundo. É um concurso de beleza: Garota do Comércio. Mamãe usa um
sapato baixo e um vestido leve, petit poá. Impressiona a semelhança com Naiara: o
cabelo negro em coque, os olhos de fogo à la Jackie Kennedy Onassis, a solicitação
energética das coxas durante o movimento.
“A natureza deseja nos matar”, disse ele naquela instrução enquanto segurava meu
braço no alto, impedindo o segundo golpe em direção à cabeça ferida, mas ainda viva,
do coelho. O bicho estrebuchava no meu colo. “Vulcões, tigres, terremotos. É preciso
sufocar a natureza antes que ela nos foda miseravelmente.”
Penso que escrever é uma mistura entre guardar coisas e conversar sozinho. Frases
em associação livre, que se prendem ao papel ou ao silício dos chips, e inauguram a
fuga do silêncio. A linguagem é como um fuzil: letal. A vírgula é um gatilho. Mal
colocada, dispara o desentendimento. O verbo é um projétil. Gostava de escrever nas
longas noites de serviço.
Tese discutível.
Pode a escrita te ajudar a falar com os mortos?
Tese reprimível.
Mas que o gás de cozinha pode matar sem dor, ah, pode. Cabeça dentro do forno,
talvez uns parágrafos de despedida. Cansei de ler. E de ver.
Quem não cansava de me ver ali, fora da tropa, excluído como um bode expiatório,
era o Sargento Seixas. Mas no meu colo não havia bode, e sim um coelho. Agonizando.
Braço ainda preso no alto, a tropa me dilacerando com os olhos e eu inventei de falar
aquilo. A porra da associação livre. Gargalhadas ecoaram nos troncos das árvores, se
misturando ao fluir das folhas ao vento.
“Soldado, 45, Negretto, eu não tô acreditando. Puta que pariu! O senhor sabe que de
raça é esse coelho?”
“Não, senhor!”
“Esse coelho tem a pelagem negra porque pertence à raça Negro Fogo, caralho!
Então se o senhor não tem coragem de terminar o sacrifício do animal e tornar sagrada
nossa refeição, soldado 45, Negretto, ao menos tenha a decência de fazer o fogo!”
O fogo.
Que foda.
A louça do escorredor.
Papai derrubara a porra da louça que dormia no escorredor da pia.
Mamãe passou resmungando pela porta do meu quarto. Levantei da cama num pulo,
coloquei uma blusa.
Papai tentava acender, ajoelhado e sem sucesso, a chama do forno a gás. De tão duro
de trago que estava, os fósforos caíam de suas mãos e se espalhavam pela cerâmica do
piso. Balbuciou incoerências, quis me abraçar. Ao perceber seu estado, Mamãe teve um
acesso de fúria e começou a socar as costas de Papai que, demonstrando o poder
eufórico de uma súbita injeção de adrenalina, aprumou o corpo e encarou Mamãe.
“Vagabunda.”
Pau.
Mole.
Depois da morte de Papai, nunca mais consegui me ligar a ninguém. Naiara ainda
compareceu à cerimônia de enterro.
Papai, eu...
Sem dizer mais nada, torceu o pescoço do Negro Fogo como se ele fosse de pelúcia.
T. S. Marcon
Nasceu em Caxias do Sul em 1975. Em 1999 tornou-se arquiteto pela UFRGS. Em
2015 fez parte da turma de 30 anos da Oficina de Escrita Criativa da PUC, ministrada
pelo professor Assis Brasil. É autor do livro de crônicas Deus veste legging, lançado no
mesmo ano. Já participou de diversas antologias de contos, entre elas Onisciente
Contemporâneo, Transações Singulares e Não Culpe o Narrador. Como fotógrafo,
obteve menções honrosas em Bienais de Arte Fotográfica Brasileira. Atualmente
cozinha em fogo brando seu primeiro romance.
O projeto original desta coletânea previa 30 contos, um para cada ano de ausência de
Raul Seixas neste plano. Aos autores convidados não foi dada qualquer orientação sobre
a escolha da canção, apenas que não poderia haver repetições. Naturalmente, a escolha
coletiva permeou quase todos os 17 álbuns de estúdio do cantor, deixando de fora
apenas 5: Raulzito e os Panteras (1968), Raul Seixas (1983), Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-
Béin-Bum! (1987), A Pedra do Gênesis (1988) e A Panela do Diabo (1989). Tomei a
liberdade de convidar mais autores, pedindo a estes que escolhessem uma canção de
cada álbum faltante. Para deixar o tributo ainda mais completo, o escritor Bráulio
Tavares autorizou a publicação de uma canção de sua autoria que aqui surge como uma
bela elegia. Aprecie, leitor.
1968
Raulzito e os Panteras
Trem 103
O bilhete
Samuel Medina
Seus passos secos e apressados ecoavam na escuridão. Apesar de ser verão, havia um
persistente vento frio. Ele mantinha os braços junto ao corpo, tentando protegê-los do
frio. As mãos estavam metidas nos bolsos da calça. Na palma esquerda um papel
amassado.
Ele parou diante da estação. O prédio era sombrio e imponente. Apesar de tomado
pela escuridão, permanecia aberto. Ele sentiu uma pontada de esperança. Talvez ainda
fosse possível pegar o último trem.
Era um bilhete. Indicava plataforma 103. Sua única pista. Esse pedaço de papel,
deixado sobre a mesa da cozinha, era o vestígio final da presença dela. Ele queria
acreditar que o bilhete era uma despedida e um convite.
Ele vagou pelo saguão, esperando encontrar um guichê aberto onde pudesse ter
alguma informação. No final de uma fileira de guichês fechados, havia felizmente
apenas um, o último, ainda em funcionamento.
Ele novamente agradeceu e seguiu em passos ainda mais apressados rumo ao destino
apontado. Em sua mente, repassava as palavras que diria para ela. Reconheceria os
erros. Pediria por uma chance. Prometeria mudar.
Seguiu por um corredor que parecia estar envolto em penumbra. A iluminação era
insuficiente naquele lugar.
O trem se afastava ruidosamente, enquanto ele conferia cada placa, cada número. A
última plataforma era a 102. Ele ficou perplexo. Fez novo circuito por toda a extensão
de cada plataforma, conferindo cada placa, cada sinal. Os trens mudavam de destino de
acordo com as dezenas. As unidades indicavam o sentido: 01 e 02, 11 e 12, 21 e 22, até
a última dupla, 101 e 102.
Ele sentiu um calafrio. Agora tudo fazia sentido. As palavras que ela passara a repetir
semanas atrás, as frases enigmáticas, os comentários obscuros.
Novo apito ecoou na distância. Outro trem se aproximava. Seu farol iluminou os
trilhos e naquele momento ele percebeu que as manchas não eram pegadas, mas
definitivamente estavam lá. Ele então se convenceu do real significado do bilhete. Era,
de fato, um convite.
O trem que se aproximava não diminuiu a velocidade. Era um expresso. Outro sinal,
ele acreditava. Deixou seus olhos passearem pelos trilhos iluminados que sumiram na
escuridão e na distância. Olhando para o fim da estação, ele observou sua sombra se
encolhendo, tornando-se mais nítida, enquanto os trilhos o atraíam. Seu último
pensamento foi: "Sim, eu também quero ir."
Samuel Medina
Nasceu no Rio de Janeiro, Capital, em 1981. Graduado em Letras, trabalha como
servidor público municipal na Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte/MG.
Publicou, aos onze anos, o livro A grande guerra, edição independente. Contribuiu em
diversas antologias pela Andross Editora. É também autor de O Medalhão e a Adaga
(Multifoco, 2013), Patos Selvagens, (Baobá, 2014) e A Cidade Suspensa (Senhor da
Lenda, 2015). Mantém o blog http://www.oguardiaodehistorias.com.br.
No muro estava pichado: o ódio não é real, é a ausência do amor. Estava em tinta
púrpura, bem grande, mas colaram um cartaz por cima da letra s. O muro era ao lado do
teatro e o cartaz era de um espetáculo de mágica que viria à cidade. O mágico apontava
um dedo para quem olhasse o cartaz e sorria largo, sorria implacável, a cara toda virava
um esgaço. Venha descobrir o segredo, avisava o cartaz. O mágico desenhado tinha uns
olhos verdes que à noite ficavam mais verdes ainda, cintilavam. Era verão e costumava
faltar luz. O povo receava o escuro e o cartaz veio a calhar. A cada queda de energia
juntava gente para ver os olhos verdes brilhando na noite. Uma tarde chegou uma moça
de uniforme branco com escada, balde e pincel, expulsou da calçada um indigente a
quem ninguém dava esmola e colou mais cartazes, muitos mais. Duzentos mágicos,
duzentos dedos em riste, quatrocentos olhos verdes tapando o muro inteiro. Em breve o
grande segredo, avisavam os cartazes. Em breve! Única apresentação! Um burburinho
agitava a cidade. Durante o dia, sob o consolo do sol, tudo andava; mas bastava
anoitecer e cair a eletricidade que as multidões buscavam as estrelas verdes, salvando
das trevas e suas ambiguidades. Lá pelas tantas o caminhão do mágico chegou e foi um
alvoroço. Todos foram assistir, até o prefeito, ressabiado com os murmúrios e queixas
da constante falta de luz. E no teatro vendiam brinquedos e lembranças do mágico,
prometendo efeitos e poderes, e as pessoas compraram a valer os amuletos made-in-
China. Quando as luzes baixaram e os panos abriram, não se ouvia um respiro. O
mágico entrou com uma explosão de artifícios, e por duas horas estonteou o público
com um truque depois do outro, com tanto technicolor, tanta exuberância que, quando
chegou a parte da hipnose, ninguém mais sentava, era a plateia inteira em pé,
aplaudindo, assobiando, pulando. O mágico hipnotizou um homem e o homem comeu
jornal como se fosse pizza. O povo riu e bateu palmas. O mágico hipnotizou uma
senhora e a senhora ergueu um armário e jogou longe. O povo gritou e bateu palmas. O
mágico hipnotizou um casal e o casal estrangulou o próprio cachorro até a morte. O
povo hesitou. Mas o mágico sorriu aquele sorriso, apontou o dedo soberano, e o povo
entregou-se ao delírio. No meio do rugir da aclamação, o mágico pediu silêncio e
anunciou: é hora de revelar o grande segredo. E empunhou uma espingarda. A plateia
segurou o fôlego. O mágico fez alguns floreios, dançou a arma sob os holofotes, e
apontou. Não se sabia bem para onde, mas o público confiava. O público maravilhava-
se. O público nem piscava. Foi quando a luz faltou. O espetáculo sumiu. O teatro, no
escuro, enlouqueceu. Só se enxergavam os olhos: as estrelas verdes fulgurantes, e elas
guiavam. O prefeito tentou fugir mas o encontraram. A multidão carregou-o para fora,
condenou-o sumariamente, sem escutar seus apelos. E não cumpre descrever como o
executaram porque há momentos em que a misericórdia se impõe mesmo a um narrador
onisciente e incumbe a este o simbólico gesto de omitir. Com o que o povo não contava
era a quantidade de sangue: como tinha sangue o prefeito, era o sangue de dois rebanhos
de ovelhas, e resulta que ao cabo o líquido se espalhava sobre todos, espirrava no muro,
cobria os cartazes, alagava a rua. Os faróis verdes dos olhos do mágico, impassíveis,
encararam a turba, que a ele se voltava como se esperando ordens, depois de reduzir o
prefeito a um bagaço; e nesse momento os olhos se fecharam, e arremessaram a cidade
nas profundas trevas daquela noite sem estrelas mais negra do ano, e uma voz que não
mais parecia ser do mágico pôs-se a gargalhar, e gargalhar, e vinha de todos os lados e
do alto e envolvia e ameaçava a cidade, e o povo abandonou a admiração pelo terror do
escuro e quanto mais medo mais a voz ria com desdém. A multidão sentia-se cercada,
encolhia-se, e em meio ao desespero a gargalhada diminuiu e divisou-se um vulto
branco que desafiava a escuridão; e era a moça de uniforme branco que retornava ao
muro, desta vez sem escada nem balde nem mais cartazes para colar, e a moça parou
diante de todos, observou o sangue, o povo em pânico, o cadáver do prefeito. E abriu
suas mãos e estendeu-as como se distribuísse graças, e a este gesto as luzes se
restabeleceram, não só as luzes da cidade como o céu se tornou dia, e o sol e a lua
brilhavam e ocupavam a um só tempo o firmamento; e o público em assombro
entreolhou-se e viu-se banhado em vermelho homicida, e com ainda maior assombro
deu-se conta de que no lugar do mágico, usando a gravata e a cartola do mágico, estava
o mendigo do teatro, que só então parava de gargalhar, e ele pôs a espingarda às costas e
chamou o cachorro estrangulado que voltava à vida, e os dois saíram no passo arrastado
de quem testemunhou todas as eras do mundo. E além de tudo isso os cidadãos
perceberam que os olhos verdes eram deles, eram de cada um dos habitantes, um oceano
de pares de olhos fulgurantes e manipuladores, envoltos em sangue, e o sangue também
escorria pelo muro e descolava os cartazes do mágico, e assim tornava a revelar as letras
em tinta púrpura, porém a mensagem havia aumentado como por sortilégio, e a frase
pichada no muro agora era: o segredo esteve aqui o tempo todo: o ódio não é real, é a
ausência do amor. E a moça de branco sentou-se na calçada, e sobre seus joelhos
acolheu o corpo mutilado do prefeito, e abriu os braços em piedade, e disse para todos
ouvirem: vocês nunca sabem o que fazem. E os céus se abriram com a luz mais
esplendorosa que a terra já vira, uma luz cegante que expôs todos os crimes e todos os
falsos profetas e todos os ídolos produzidos com trabalho escravo, e ouviu-se o terrível
soar das trombetas e o povo soube que era enfim chegado o dia do juízo.
Renata Wolff
Nasceu em Porto Alegre, em 1980. É graduada em Direito pela UFRGS e mestranda
em Escrita Criativa na PUCRS. Frequentou oficinas literárias de 2006 a 2014.
Participou de coletâneas, teve contos premiados em concursos literários nacionais e
internacionais e é autora do livro de contos Fim de Festa (Não Editora), finalista do
Prêmio AGES e do Prêmio Jabuti em 2016.
O que eu via agora era a cena que precedia o clímax. Nela, o protagonista conversa
com um homem numa estação de trem, ignorando que é ele o assassino. Sabendo o que
aconteceria a seguir, troquei de canal. Era a reprise do telejornal da noite anterior, que
noticiava o desaparecimento de uma moça na região metropolitana.
Sabrina Teixeira tinha 24 anos. Saíra de casa às oito da manhã, rumo à capital. Seu
carro foi encontrado na beira da estrada e não havia sinais de violência. Muito pelo
contrário. Não havia sinal de coisa alguma. Percebendo que Sabrina não respondia suas
mensagens há tempo demais, uma prima entrou em contato com a polícia. Uma viatura
localizou o automóvel, estacionado e trancado por dentro. Guardava intactos os
pertences da jovem.
Para minha surpresa, foi o vilão quem lançou o herói aos trilhos, encerrando o filme
com uma nota de amargura. Talvez eu nunca tivesse visto esse filme, talvez eu o tivesse
visto muitas vezes e simpatizasse demais com o personagem central, a ponto de ignorar
que ele morria no fim.
*****
Saí de casa pela manhã e notei uma fina camada de poeira em frente ao apartamento
inabitado. O pó vazava pela soleira e se acumulava no corredor. Pensei em mandar uma
mensagem ao síndico, porém estava atrasado. Não havia dormido direito e cochilei
quando amanhecia, o que me fez perder o primeiro alarme. No caminho do trabalho, vi
quatro carros de polícia em frente a um viaduto, cercados por uma horda de curiosos.
Quando voltei para casa, percebi que não havia mais poeira no corredor. O edifício
cheirava a água sanitária e concluí que a faxineira dera fim à bagunça. Deitei em minha
cama, ainda de sapato, certo de que não havia nada errado, de que a limpeza
preconizava o início de um novo ciclo. Liguei a televisão e o telejornal exibia imagens
gravadas naquela tarde. Quatro carros de polícia em frente ao viaduto onde foi
encontrado o corpo de Sabrina Teixeira, o mesmo viaduto pelo qual eu passava todos os
dias de manhã. Ela tinha ferimentos na barriga e no peito, profundas marcas de um
tosco instrumento de corte.
Alguns minutos depois, o retorno do ruído de lixa me fez levantar. Observei o
corredor através do olho-mágico. Atento ao escuro, tudo parecia normal. Coloquei uma
cadeira diante da porta, de modo que percebesse quando a luz automática se acendesse.
Nada aconteceu.
*****
Destranquei a porta e dei um passo à frente, imaginando ser o primeiro visitante de
um planeta desconhecido. O apartamento era uma cópia exata do meu, como se
projetado num espelho. A umidade fria do ar pesava na respiração e meus pés deixavam
rastros no chão coberto de poeira. Era domingo e eu havia visitado o síndico de manhã
bem cedo. Disse que planejava expandir meu apartamento.
Expliquei ao síndico: Ainda que eu fosse um homem solitário e sem muitos amigos,
me encantava a possibilidade de morar num lugar mais amplo. Mencionei que vinha
juntando dinheiro há pouco mais de um ano, desde que percebi a vacância do
apartamento vizinho. O síndico riu, dando um tapa dissimulado no ar. Disse que ele
também torcia para que vagassem logo o apartamento ao lado do seu, sem explicar o
que isso significava.
Eu não entendi.
“Preciso fazer uma visita antes de colocar meu dinheiro no imóvel”, expliquei,
“então gostaria que o senhor me passasse o contato do proprietário”.
Ele disse que não havia necessidade de entrar em contato com ninguém. O
proprietário se mudou para outro estado e há tempos colocou o apartamento para venda.
“Deixou as chaves aqui comigo”, disse o síndico. “Para o caso de alguém manifestar
interesse”.
Pensei ter ouvido uma porta se abrir e congelei a navalha no ar. Olhei para trás e não
vi ninguém. O ruído, em contrapartida, continuava a ressoar, agora mais tímido, como a
agulha que chega ao centro do disco. Olhei para a navalha e guardei-a em meu bolso. O
esfrega-esfrega aumentou de intensidade, mas parecia distante. Vinha do outro lado da
parede - ou seja, do meu quarto. Tentando não fazer barulho, segui meus próprios
rastros no chão, espaços vazios na poeira com a forma dos meus pés.
Encostei o ouvido na porta do meu apartamento e não ouvi coisa alguma. O que quer
que estivesse acontecendo já chegara ao fim. Enfiei a mão no bolso do casaco à procura
de minhas chaves, emboladas com as chaves do apartamento vago e com a navalha. Ah,
sim, a navalha. Guardei-a no bolso com a lâmina ainda projetada. Senti uma dor aguda
no indicador e o levei de impulso à boca. Abri a porta e tive a impressão de que alguém
me observava. Vasculhei a sala com os olhos. Não havia nada fora do lugar. Somente
quando avancei, percebi um rastro de poeira deixado no corredor, uma camada fina que
me conduzia ao quarto. Ali, encontrei uma estranha inscrição entalhada na parede,
acima da cabeceira de minha cama:
FIM
*****
Procurei o síndico para devolver as chaves, porém não o encontrei. Como no molho
havia também uma chave menor, decidi tentar a caixa de correio. Abri a portinhola
correspondente e encontrei um envelope de papel endereçado a Sabrina Teixeira. Dentro
do envelope, apenas uma fotografia noturna em preto e branco: enquadrava o nível
inferior do viaduto, o corpo mutilado de Sabrina Teixeira em primeiro plano.
Esquadrinhei a imagem e notei uma inscrição na pilastra:
FIM
Estavam entalhadas no concreto, as mesmas maiúsculas nervosas que surgiram na
parede do meu quarto. Fui ao viaduto, onde um forte cheiro de urina empesteava o ar
quente. Havia diversas inscrições nas paredes, muitas delas desbotados hieroglifos
lutando uns contra os outros. Sobre todas elas, no entanto, havia as três letras
entalhadas: enormes e vermelhas. Dei um passo adiante e encostei no sulco
correspondente à segunda letra, o que deixou meu dedo manchado. Era sangue, intuí.
Sangue fresco. Mais abaixo, um rastro de sangue no chão conduzia à parte de trás do
bloco cinza.
*****
Aquela era a chave do apartamento do síndico. Descobri isso ao girá-la na porta e
entrar. Não imaginava como pudesse ter parado em suas vísceras, se o homem fora
forçado a engoli-la ou se o assassino a colocou para repousar em seus órgãos através do
rasgo na barriga. De qualquer forma, entrei no apartamento e encontrei um quadro onde
estavam dependuradas cópias das chaves de todos os apartamentos do edifício - menos a
do apartamento desocupado, que estava no bolso do meu casaco, e a do meu
apartamento, que estava com quem quer que estivesse provocando aquele caos. Alguém
havia matado o síndico depois de nossa conversa, roubado a chave do meu apartamento
e, em seguida, entalhado letras na parede do meu quarto.
O que passava agora era a primeira metade, a que perdi alguns dias antes, a que eu
talvez já tivesse ou nunca houvesse visto. Não sei. Agora eu compreendia que o
protagonista era um pacato barman que presenciava o assassinato de uma jovem
sedutora no estabelecimento em que trabalhava. Que os primeiros quarenta minutos
expõem ao espectador a série de acasos que faz com que o crime ocorra ali, justamente
no turno do protagonista. A cadeia de eventos não é revelada ao personagem, de modo
que o barman nunca compreende o que de fato ocorreu.
O filme se passa ao longo de apenas uma noite, em que o herói precisa fugir do
criminoso, sem saber quem ele é e por que a jovem sedutora fora assassinada. Desliguei
a televisão por já conhecer o final, ou por saber que não importava a conclusão.
Desliguei por saber que, apesar de eu simpatizar com o barman, era ele quem caía nos
trilhos. Porque, mesmo que ele vencesse, seria por jogar o vilão debaixo do trem,
tornando a si próprio um assassino. Não havia final feliz, nada que me agradasse, ou
que justificasse eu me decepcionar outra vez. Que o filme novamente me surpreendesse,
apresentando uma conclusão inimaginável? Azar.
*****
Abri a porta na manhã seguinte, planejando chamar a polícia e já conformado com o
fato de que trabalharia sem tomar banho, trocar de roupa, sem todos esses rituais de
higiene e limpeza, algo que sempre me oferece tranquilidade, que parece estabelecer as
condições de um novo ciclo. Abri a porta, enfim, preparado para pisar num dia tão
instável quanto os anteriores. Tudo era silêncio.
Avancei lentamente no corredor, temendo que algo esperasse por mim num canto
escuro, algo que daria o bote assim que me visse. O que encontrei, no entanto, foi a
faxineira morta à beira da escada, queixo afundado no balde. O sangue vazava dos
ouvidos e se misturava à água sanitária. Seus olhos estavam abertos e voltados para
cima, de modo pavoroso e inumano. Percebi que os olhos mortos fitavam uma porta
fechada, a porta vizinha ao apartamento do síndico. Nesse instante, lembrei de como ele
havia me dito, sem oferecer explicação alguma, que esperava vagar o apartamento ao
lado do seu.
Imaginei que ali residisse o segredo de toda essa bagunça, de todo esse sangue.
Sentindo o estômago revirar, retornei ao apartamento do síndico e me dirigi ao quadro
de cópias, onde encontrei a chave correspondente. Precisava entrar no apartamento ao
lado, resolver o mistério, interromper a matança. Foi aí, no entanto, que ouvi as viaturas
acelerarem ao longe, as sirenes se aproximarem e depois frearem diante do prédio. Foi
aí que vocês apareceram e me trouxeram para cá.
Acho que isso explica tudo, inclusive por que minhas pegadas estavam no interior do
apartamento vizinho, que eu nem sabia pertencer à família de Sabrina, muito menos que
ela planejava ocupá-lo nos próximos meses. Claro que minha história não esclarece o
que estava por trás daquelas letras, as três letras que nunca me levaram a lugar algum.
Mas isso não é trabalho meu. Agora, se os senhores estiverem satisfeitos, peço por favor
que me liberem. Há um maníaco à solta e o que vocês têm aqui é um homem inocente.
Acho que é isso.
1.
Como quem acaba de nascer, Pietro também acaba de conhecer as coisas. Não
lembra de nada. Derruba seus frascos, seus livros, joga longe a mochila, revira armários,
abre as janelas da casa. Para que toda aquela escuridão? E quem seria aquela gente do
retrato? Ainda eufórico, destrói o próprio laboratório (um pequeno quarto de
empregada) e arromba compartimentos desconhecidos. Não suporta… não, não suporta
todo aquele branco, aquela mentira, aquela organização caótica. Sente uma inexplicável
agonia. Olha para os lados, é tudo plástico, vidro, mármore. Dentro de si berra um
ímpeto de ir até o fim. Então abre o recipiente compacto número 4, vedado e
comprimido, e é tomado por uma inesperada explosão. É Pietro para todo lado. Lá
dentro, potássio puro, e lá fora, muito ar.
Demasiado ar.
2.
O estrago no quarto é preocupante, mas a carta do síndico denota uma urgência ainda
maior. Problemas com o barulho de novo. Antes fosse música alta. Não quer nem saber
o que ele vem aprontando em casa. Dessa vez é multa pesada. Pietro que se entenda
com a imobiliária.
Ele não perde o ônibus, e chega a tempo de ser xingado pelo chefe da pesquisa.
Aquele relatório que você mandou, ilegível. E o que dizer daquela metodologia, etc.
Recomece.
Um suspirão antes de entrar na sala de aula. Érica, dupla da apresentação, quer saber
por que ele não respondeu seus e-mails, se já sabe suas falas. O professor solicita o
pendrive ao grupo. Olhos sobre Pietro, que evidentemente se esqueceu. Sob o mais
atroz silêncio, ele assiste Érica abrindo o próprio e-mail no computador do professor,
pedindo desculpas encarecidamente.
O mundo chove como uma vela derretida. Pietro assiste sem curiosidade às gotas
lentas na janela. Na sala de espera, esperou muito. Agora dentro, já nem sabe o que
dizer. O médico parece uma lagarta de sapatos, fumando narguilé e insistindo perguntas
difíceis. Quem é você, Pietro?
Ele faz que não com a cabeça. Muito pelo contrário, é como a calmaria soa, doutor.
Lá fora precisa estar tão fresco.
Precisa?
Da moldura impressa, Freud assente com as pestanas grossas. Pietro se sente tonto
com a fumaça do narguilé. A basculante enferrujada geme ao ser aberta. O garoto aspira
tudo de olhos fechados antes de se sentar novamente.
Tantas gotas na cabeça lá fora. O vento traz algumas ao garoto. Ele assiste ao
pequeno comprimido transparente na palma da mão. A lei de Boyle, a força do rosto
para desenhar um sorriso. Pietro, uma força tão sem curiosidade.
— Boa noite.
— Sim.
— A senhora acredita que até Sexta-feira da Paixão a gente já passou lá? E olha que
minha família toda é muito católica, graças a Deus. Pedimos só salada e muçarela, nada
de carne. Mas o que eu posso fazer se ela não resiste ao seu gogó de ouro?
— É muita gentileza da sua parte. Vim aqui dizer que o meu marido...
— Ah, a senhora se importa se tirarmos uma foto? É o sonho da minha mãe ter uma
foto sua autografada, mas acredita que ela nunca teve coragem de conversar com a
senhora? Eu sempre digo a ela: “Mamãe, é só uma cantora de churrascaria. Vai ficar
honrada em conversar com a senhora.”. Mas ela é tímida. Não tenho razão? A senhora
não ficaria honrada de conversar com a minha mãe?
— Então pronto! Vou colocar o celular aqui pra gravar. Diz assim: “Dona Rita, aqui
é a Lulu Darling” pra ela saber que é verdade. Depois a senhora faz aquilo que sempre
faz no final do show. Ela vai ficar doida!
— Claro! A senhora grava o áudio e a gente tira uma foto. Tira os óculos para ela te
reconhecer. Não, não. Coloca de volta. Achei que a senhora estivesse maquiada. Essa
mancha roxa pode deixar minha mãe chateada. Pronto! Rapidinho tiramos a selfie.
Agora grava o áudio.
— “Alô, alô, dona Rita! Aqui é a Lulu Darling desejando para senhora uma vida
próspera, com muita paciência e temperança para aguentar os desafios do dia a dia. Um
beijo do gogó de ouro da churrascaria Boi Suculento! Te espero de quinta a sábado, de
19h às 21h, e domingo, de 16h às 18h. Aqui todo dia é dia do caçador!”
— “Dia do caçador!” Perfeito, dona Lulu. Quero só ver quando ela acordar e receber
essa mensagem. Vai ser sensacional. Mas diga. Como posso ajudar a senhora?
— Dona Lulu, por mais que eu goste do som da sua voz, a senhora poderia ir direto
ao ponto?
— Enquanto a gente analisava os gastos, ele notou que comecei a guardar o dinheiro
do vídeo na minha poupança pessoal, não na nossa conta conjunta. Disse a ele que era
apenas para não misturarmos o dinheiro, para garantir a contratação de uma produtora.
Até porque, notei que não estávamos conseguindo juntar o dinheiro na velocidade que
eu tinha previsto, acho que ele estava perdendo a mão dos gastos.
— Ai, ai, ai... Eu sempre digo: mulher e dinheiro são como água e óleo. Por mais
bonito que seja de ver, não dá para misturar.
— Ele começou a gritar, dizendo que eu estava roubando o vídeo dele, que eu estava
tentando controlá-lo. Com isso começamos uma briga e muita coisa foi dita. Meu
marido tem um problema com os nervos e vez ou outra já me agrediu.
— Achei que era comum, briga de casal, mas nunca tive tanto medo como ontem.
— A senhora tinha que ter dito algo antes. O senhor seu marido já devia estar
acostumado com essa rotina de vocês. A senhora vem querer mudar a dinâmica da casa
da noite para o dia e espera que ele se adapte? Enfim. O que foi que aconteceu ontem?
— Sim.
— Tá certo. Continue.
— Nessa hora, fingi um desmaio para que ele parasse. Ele pegou a nossa caixinha
com o couvert da noite e saiu gritando rua afora. Chamei uma ambulância e passei a
noite no hospital. Acordei e vim pra cá. Estou com medo de voltar para a casa e quero
que ele seja preso.
— Vamos lá. Posso dar minha opinião? Acho que a senhora está sendo um pouco
possessiva, dona Lulu. E pra ser sincero, abusando um pouco da boa-vontade do seu
marido. Ele exagerou quebrando a guitarra, lesando o patrimônio da família? Exagerou.
Mas a senhora precisa entender que um homem tem o seu brio e que a senhora o
ofendeu tentando controlar o dinheiro da casa. O senhor seu marido me parece um
homem tão compreensivo. Nunca tive notícia dele com mulher na rua, o que pra
guitarrista de banda é muito; e olhe que a senhora parece ter descuidado da forma. Além
disso, ele sempre permitiu que a senhora trabalhasse na noite, não é todo homem que
entenderia esse estilo de vida.
— Olha dona Lulu, meu conselho para a senhora é esfriar a cabeça, ir pra casa e
esperar o seu marido pra uma conversa. A harmonia de um lar vem quando todo mundo
entende o seu papel. Deixa que ele administre o dinheiro e busque outra função, outra
atividade. A senhora gosta de cozinhar?
— Claro, e isso foi horrível! Se a senhora insistir, eu sigo todos os trâmites. Mas aí a
senhora vai ficar sem guitarrista, ele vai contratar um advogado, provavelmente vocês
vão se divorciar e o sonho da gravação do vídeo vai ficar cada vez mais distante. A
senhora não disse que ele já tinha feito isso antes?
— Mas...
— Obrigada, delegado.
— Imagina! É o mínimo que posso fazer. Quem sabe até apareço lá com mamãe hoje
à noite? Só lembra de cobrir essa macha no rosto com uma boa maquiagem. Esse tipo
de exposição pode baixar a energia do seu show. Às vezes é difícil, mas gente tem
sempre que tentar pensar nos outros, não é mesmo?
Elizabeth Gouvea
Cidadã do mundo. Acredita que escrever é como pintar um quadro com palavras e
que a arte alimenta sua vida.
1.
Brilhava a lua cheia sobre o lago congelado de Avalon.
Zunia o vento fustigando as garras fractais do arvoredo.
Menestréis e neuromantes distraíam os convivas no salão,
e na varanda um druida recitava um cordel de Castañeda.
2.
Hey!... O mago Merlin empunhou o seu binóculo.
Hey!... O mago Crowley embainhou o seu punhal.
Os dragões do reino o cercaram.
Os video-monitores o focalizaram.
E ele rodeava a muralha do castelo
dançando com a própria sombra
como um menino, ou como um velho;
e os amplificadores espalhavam no salão,
um arranjo serial de sua canção...
3.
Mas ele não gritava pras janelas, nem tocava no portão;
puxava atrás de si, atada a cordas, uma carga de coisas...
E os Templários contemplaram numa tela de Alta Definição
a carga que o peregrino arrastava, no limite das forças...
ANA ELISA RIBEIRO é mineira de Belo Horizonte, 1975. Contista, cronista, poeta,
com livros publicados desde 1997, sendo os mais recentes Beijo, Boa sorte (Natal,
Jovens Escribas, 2015, contos), Anzol de pescar infernos (SP, Patuá, 2013, poesia),
Xadrez (BH, Scriptum, 2015, poesia), Álbum (BH, Relicário, 2018, poesia) e Dicionário
de imprecisões (BH, Leme, 2019, poesia). É professora e ex-vocalista de banda de rock.
ANA LUIZA RIZZO é gaúcha e mora em Porto Alegre.
EDUARDO SABINO nasceu em Nova Lima, MG, onde reside atualmente. Autor
dos livros de contos Naufrágio entre Amigos (Editora Patuá, 2016) e Estados
Alucinatórios (Caos e Letras, 2019). Venceu, com o conto Sombras, o concurso Brasil
em Prosa 2015, organizado pelo Globo e a Amazon. Contato:
[email protected].
ELIZABETH GOUVEA é uma cidadã do mundo. Acredita que escrever é como
pintar um quadro com palavras e que a arte alimenta sua vida.
JOEDSON, Sanhauá-Paraíba, 1983, publicou os livros Ode aos Deuses (2009), Ode
aos Homens (2010), Evangelho de Diógenes (2013), Elegias do País do Sanhauá
(2017) e Alcides (2018), membro do Clube do Conto da Paraíba, pelo qual participou da
antologia Contos de Sábado (2012).
JULIA DANTAS é escritora, editora e tradutora. Publicou o romance Ruína y leveza,
finalista do Prêmio São Paulo e prêmio AGEs de 2016, além de contos em diversas
coletâneas. Atualmente é doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS e mantém uma
coluna quinzenal no jornal Zero Hora.
TIAGO MOTTA é publicitário, formado pela PUC Minas. Em 2003, fundou a Stalo,
empresa de comunicação situada em Belo Horizonte. Em 2017, fundou a Buffalo
Digital, empresa de produção de conteúdos audiovisuais. Professor, redator e
apaixonado por textos, Tiago Motta é roteirista com formação pela Academia
Internacional de Cinema do Rio de Janeiro.
Em 2013, escreveu para a coluna Café Literário do portal independente Café com
Notícias, do jornalista mineiro Wander Veroni, onde teve a oportunidade de se envolver
com o circuito literário local.
Em 2015, foi um dos 20 finalistas dentre mais de 6.500 inscritos no concurso Brasil
em Prosa 2015, da Amazon. O conto Doses de orgulho e vergonha acumulou mais de
70 avaliações positivas na plataforma.
Para o futuro, trabalha numa segunda coletânea de contos autorais e num romance. É
possível acompanhar bem de perto os passos do escritor assinando a newsletter em seu
site oficial: https://tkpereira.com.br