Comunicação Pública e Política
Comunicação Pública e Política
Comunicação Pública e Política
PÚBLICA E
POLÍTICA
Pesquisa e Práticas
Maria Helena Weber
Marja Pfeifer Coelho
Carlos Locatelli
(Organização)
COMUNICAÇÃO
PÚBLICA E
POLÍTICA
Pesquisa e Práticas
Florianópolis
2017
Editora Insular
COMUNICAÇÃO PÚBLICA E POLÍTICA
Pesquisa e Práticas
Maria Helena Weber
Marja Pfeifer Coelho
Carlos Locatelli
(Organização)
Conselho Editorial
Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Fernando Serra, Jali Meirinho,
Natalina Aparecida Laguna Sicca, Salvador Cabral Arrechea (ARG)
Editor Supervisor
Nelson Rolim de Moura Carlos Neto
728 p. : Il.
ISBN 978-85-7474-987-7
1. Jornalismo. 2. Comunicação pública. 3. Comunicação política.
4. Pesquisa. 5. Práticas. I. Título.
CDD 070
Capítulo 1
Redes e Poder
Capítulo 2
Acontecimentos
Satiagraha: a constituição de um acontecimento público........................... 59
Marja Pfeifer Coelho
Capítulo 3
Debates
Comunicação pública e barragens: estratégias e atores............................. 187
Carlos Locatelli
Capítulo 4
Instituições
Disputas e pactos do Estado e da indústria
na propaganda sobre automóvel................................................................... 367
Leandro Stevens
A instituição da cidadania:
a comunicação da Defensoria Pública do RS............................................. 439
Fiorenza Zandonade Carnielli
Capítulo 5
Porto Alegre, a Experiência
A comunicação política da Administração Popular:
um modelo a ser revisitado .......................................................................... 553
Pedro Luiz S. Osório
Espetacularização e credibilidade;
o discurso terceiro no Cidade Viva.............................................................. 581
Marcos Vinícius Pereira
18
Azevedo, que analisam a produção de sentidos gerados na implantação do
programa, em meio a impactos, ambivalências e tensões entre a classe mé-
dia, estudantes e usuários do SUS.
O último texto desse capítulo é da autoria de Tânia Silva de Almeida e
Amanda Marcolin Simon, que apresentam e analisam a pesquisa sobre a A
Comunicação pública na percepção de profissionais de comunicação gover-
namental. A pesquisa teve por objetivo cotejar o referencial teórico sobre
comunicação pública em relação à opinião e praticas de profissionais com
atuação em órgãos governamentais.
No Capítulo 5 (Porto Alegre, a Experiência), foram reunidos textos
resultantes de testemunhais, pesquisas, teses e dissertações que refletem
sobre as experiências de comunicação governamental em relação à comu-
nicação pública desenvolvidas no período da Administração Popular, o go-
verno da chamada Frente Popular liderada pelo Partido dos Trabalhadores.
São analisados nesse capítulo, o sistema de comunicação diferenciado, as
estratégias e o funcionamento do Monitoramento de Rádio, programa de
televisão Cidade Viva, jornal impresso Porto Alegre Agora e a primeira ex-
periência entre a internet e o Orçamento Participativo.
O primeiro texto é de Pedro Luiz da Silveira Osório que relata os prin-
cípios e o desenvolvimento do processo como A comunicação política da
Administração Popular: um modelo a ser revisitado. Considerações teóricas
e históricas formam a base das descrições sobre o funcionamento da Co-
ordenação de Comunicação Social do Governo Municipal de Porto Alegre
nas gestões 1989/92 e 1993/96 e sintetizam a contribuição para a consti-
tuição de um novo modelo de comunicação política e governamental em
um cenário de questionamentos dos conceitos de cidadania, participação
popular e democracia representativa.
Como parte deste sistema, diferentes formatos de comunicação jor-
nalística e publicitária foram ativados. Marcos Vinicius Pereira analisa a hi-
bridação desses dois campos, através do programa de televisão do governo,
em Espetacularização e credibilidade: o discurso terceiro no Cidade Viva. O
conceito de esfera pública é acionado como imprescindível à análise das
relações entre os campos da política e da comunicação. O exercício permi-
te identificar estratégias utilizadas pelo Estado quando defende políticas,
ações e assim é capaz de desencadear o debate público.
O governo da Frente Popular fez uso de meios e estratégias capazes de
disputar a opinião pública com poucos investimentos em propaganda. San-
dra de Deus em A disputa por um projeto política através do rádio analisa
19
o “monitoramento de rádio” que não encontra similar em nenhuma outra
prática de comunicação política e serviu para o governo ter um diagnósti-
co da cidade de Porto Alegre e responder a demandas do cidadão. Foram
apropriados conteúdos específicos do rádio para dar visibilidade ao projeto
político do governo que à época suspendeu as verbas publicitárias para as
emissoras de rádio.
Outro recurso de difusão das políticas do governo da Frente Popular
foi a produção de jornal impresso conforme mostra Camila Lângaro Becker
no texto Cidade, cidadãos e governo: estratégias híbridas do jornal Porto Ale-
gre Agora, entre 1989 e 2004. Para tanto, analisa as referências ao governo e
à cidade, a fim de identificar as transformações dos recursos de comunica-
ção utilizados no material institucional durante os quatro mandatos, assim
como as representações da capital nas páginas do impresso.
O pioneirismo no campo da democracia digital ocorre em Porto Ale-
gre, entre 2001 e 2003 conforme o artigo O impacto da internet no Orça-
mento Participativo de Porto Alegre (e-OP), de autoria de Patricia Pessi. Esta
iniciativa pioneira no mundo caracterizou uma nova dinâmica comunica-
cional a partir do uso das TICs, em um processo de participação política –
neste caso o OP de Porto Alegre. Como resultado, as deficiências e avanços
do e-OP registram a conformação de uma comunicação simplificadora e
elitizada, por um lado, mas também atemporal, desterritorializada, indivi-
dualizada, colaborativa e participativa.
Como a parte final do capítulo, Maria Helena Weber apresenta a sín-
tese da pesquisa onde perseguiu a hipótese de que diferentes instituições
se apropriação da cidade simbolicamente e a tornam outra, talvez desco-
nhecida para seus habitantes. Nessa perspectiva A cidade traída? Recortes
da mídia, do governo e da academia sobre Porto Alegre apresenta resultados
sobre a representação da cidade em Zero Hora, nos materiais publicitários
do governo da Frente Popular e na produção intelectual sobre a cidade.
Que esses conteúdos provoquem novos problemas de pesquisa. Boa
leitura.
20
Capítulo 1
REDES E PODER
Maria Helena Weber
Nas redes de comunicação pública, as disputas
possíveis de poder e visibilidade
Apresentação
23
de ordem normativa e deve ser defendida como princípio irrecusável dos
sistemas de comunicação do Estado. A segunda, de ordem epistemológica,
significa entender a participação da sociedade na sustentação das demo-
cracias, através de práticas de comunicação. Estas duas perspectivas estão
vinculadas ao interesse público.
Compartilho nesse texto algumas certezas, experimentações e novas
indagações com o objetivo de demonstrar o percurso e os achados que per-
meiam a formulação e delimitação da aplicação do conceito comunicação
pública. A complexidade de operar este conceito reside na sua vinculação
ao paradigma e à utopia da esfera pública de Habermas que valoriza a co-
municação, o debate público e, consequentemente, a deliberação dirigidos
pelo interesse público. Outro aspecto é a força da opinião pública neces-
sária para a identificação do poder da sociedade em relação ao poder do
Estado, mas ao mesmo tempo, muitos são os indicadores de sua impossibi-
lidade. Significa dizer que a sociedade e o Estado fortalecem seus poderes
de modo cada vez mais distanciados de um interesse público comum.
Concorrem para isso, a sofisticação da tecnologia que permitiria um
encontro maior com maior transparência e acesso, como demonstram os
estudos do campo da “democracia digital” (Gomes, 2011; 2016) e das novas
mídias sociais que também permitiriam ampliar a participação dos públi-
cos, grupos, da sociedade, afinal. No entanto, a visibilidade e o acesso a
quaisquer informações por múltiplos meios não estabeleceu, de fato, a co-
municação necessária. De um lado, a imposição da visibilidade exigida por
instituições e atores políticos que privilegiam a retórica da representação e
mecanismos de projeção pessoal, e do outro, o enrijecimento de estruturas
que promovam o debate com a sociedade em nome do interesse público.
Nas indicações sobre o descaso com a opinião pública em relação aos
debates públicos, necessários à qualificação das democracias, reside a indi-
cação de outras dinâmicas abrigadas na ampliação e delimitação das mani-
festações da opinião pública e do Estado: a comunicação pública. Entende-se
que o norteador dessas dinâmicas seriam os temas de interesse público com
potência para aglutinar grupos, públicos e instituições, de modo organizado
– a sociedade organizada, ou espontaneamente, em redes de comunicação pú-
blica. Visibilidade e mobilização caracterizam os movimentos da sociedade
que podem causar estranhamentos às teorias mais rígidas, devido a configu-
rações diferentes daquelas que marcam a sociologia e a ciência política.
Nesse texto, pretende-se percorrer alguns caminhos para chegar à for-
mulação de que existem diferentes tipos de debates públicos acionados por
24
temas, ações, acontecimentos e políticas que atingem o interesse público e
exigem posicionamento do Estado. Este debate tem origem em diferentes
âmbitos do Estado e da sociedade, e para tanto são acionados dispositivos
dirigidos à obtenção de visibilidade, comunicação e deliberação.
O percurso da pesquisa que desemboca na formulação das redes de
comunicação pública responde às tentativas de tentar definir a circulação
sobre o poder de comunicar, controlar a comunicação e debater temas de
interesse público. Nesta direção, contribuem diferentes pesquisas sobre o
poder de comunicar. A primeira foi para identificar o poder da comuni-
cação (propaganda governamental vs. silenciamento da sociedade e das
mídias) no regime militar brasileiro – especificamente no período Médici
(1970-1973). Aqui foram detalhadas as poderosas e eficazes “redes de sedu-
ção e coerção” construídas pelo Estado, através das “rede institucional, rede
técnico-estrutural, rede repressiva e a rede persuasiva” (Weber, 2000). A se-
gunda abordagem tem a ver com sistemas de comunicação da democracia
brasileira e a visibilidade dos poderes. Finalmente, as pesquisas abordam a
metáfora rede para entender a participação da sociedade.
Identificar e qualificar os processos de visibilidade e comunicação ine-
rentes aos regimes democráticos significa atribuir a instituições, públicos
e atores sociais e através do Estado, poderes de debater e deliberar sobre
temas e ações de interesse público. Essa premissa permite compreender
processos e trabalhar com a hipótese de que a identificação do movimento
permanente de redes de comunicação pública (Weber, 2007) seria o proce-
dimento necessário para a compreensão e avaliação da qualidade das de-
mocracias. Esta é a hipótese que norteia este estudo. Evidentemente, são
considerados todos os produtos difundidos por sistemas de comunicação
estatal, da mídia e a comunicação produzida na sociedade que movimen-
tam recursos milionários, tecnologia avançada e centenas de profissionais
com competência comunicativa.
Percurso conceitual
34
Visibilidade e debate público
35
Preservar o conceito de esfera pública é investir na dimensão da par-
ticipação da sociedade e entender que se movimenta em torno do interesse
público, ao nível da interlocução com o Estado que a promove; ou como
manifestação dirigida a um Estado impermeável. De qualquer modo, a so-
ciedade fala e se manifesta em torno de políticas públicas; em situações
sociais limítrofes como a criminalidade, a pobreza, o desemprego, a falta de
assistência médica; o reconhecimento de novas configurações familiares,
sexuais, culturais; o posicionamento sobre temas polêmicos como o aborto,
eutanásia; as reivindicações por justiça, igualdade, liberdade e, as manifes-
tações relacionadas à vigilância dos poderes. Nem todos os públicos que
integram estes grupos são ‘críticos’, mas a participação nos debates pode ser
transformadora, afirma Bohman (1996).
Uma importante contribuição à formulação da comunicação pública
é sugerida por Wilson Gomes (2000) quando reflete sobre o conceito da
esfera pública habermasiana e propõe diferenças entre a “esfera de debate
público”, a “esfera de visibilidade pública” e a “cena pública”. Aponta a neces-
sidade do debate público e a associação entre as duas formas de esfera públi-
ca que “é tão intensa que qualquer perda numa das dimensões constitui uma
perda de qualidade democrática”. Concorrem para a formação da esfera de
visibilidade pública, as mídias de massa que mediam o mundo, a realidade,
através de produtos informativos, culturais, artísticos e de entretenimento
que sustentam diferentes discursos. Nesta perspectiva, a esfera de visibili-
dade pública pode ser entendida como o lócus privilegiado de debates não
necessariamente deliberativos e que têm a participação das mídias que in-
gressam com seus interesses particulares, agendamentos e enquadramentos.
Na esfera de visibilidade pública ocorrem os debates, as manifestações,
os discursos e o jogo de linguagens e performances com a participação ati-
va das mídias de massa. É o lugar, então, onde também são misturados
os interesses públicos e privados na busca de reconhecimento, de apoio e
de imagem pública favorável. Neste processo, temas de interesse público,
interesses privados, instituições e atores se confundem na delimitação do
que deve ser mostrado, defendido circulando no paradoxo de visibilidade
(Weber, 2013; Weber e Carnielli, 2016 A busca da visibilidade e a neces-
sidade de constituir uma imagem pública reduz a qualidade das relações
entre Estado, sociedade e mídia. Ou seja, o investimento é na comunicação
do Estado, mas também permite a promoção de governantes e partidos.
Pensar no interesse público é analisar os debates e a circulação de de-
terminados temas assim identificados; reconhecer os modos como as rela-
36
ções e discursos em torno dos temas são utilizados; quais os atores envol-
vidos e sua motivação; quais as diferenças e ângulos defensáveis; quais as
estratégias discursivas para ampliação ou redução do debate.
Estudar a comunicação pública importa, cada vez mais, pois se trata
de entender a existência da esfera pública expandida na esfera de visibilida-
de pública, tão cara às democracias, e aceitar a pluralidade de novos atores,
muito, pouco ou nada comprometidos com as causas em debate. Novos
públicos, novos interesses e uma decepção crescente com a política e sua
burocracia, nos meios mais jovens, mesmo que a ideia de horizontalidade
na organização destes públicos limite a sequência e as negociações pós-
-manifestações.
Em tese, a comunicação e o debate público são naturalmente defen-
sáveis em quaisquer instâncias políticas, porquanto nas democracias é o
público que movimenta interesses e processos de accountability. No entan-
to, o debate público poderá ser limitado pelos enquadramentos impostos
pelas mídias de massa em relação aos discursos da sociedade e dos políti-
cos; manipulado por organizações, ou amplificado pelas redes sociais. Por
outro lado, os limites da comunicação governamental, estruturada para a
democracia, estão no cumprimento dos planos de difusão das informações
específicas da burocracia em defesa de seus projetos. À sociedade organi-
zada cabe planejar suas próprias mídias, as quais também não darão espaço
ao governo e às mídias de massa. As limitações sobre a participação da
sociedade residem na combinação de dois aspectos: na impermeabilidade
das instituições do Estado em relação à palavra social e, por outro lado, à
incapacidade dos públicos de se organizar e reivindicar. A espontaneidade
nos agrupamentos reduz a organização e a continuidade das ações.
42
mentos atingem sempre os poderes republicanos que são responsabilizados
por ações relacionadas a soluções. A erupção destes acontecimentos pode
desencadear impasses políticos, jurídicos e sociais na medida em que os
atingidos sofrem consequências na sua vida. Acontecimentos de morte são
mais mobilizadores. A permanência do acontecimento está diretamente re-
lacionada à sua potência na mobilização de afetos, rupturas, perdas e danos
de ordem social, física e moral.
Planejado ou espontâneo, o debate é acionado e os públicos se orga-
nizam para se manifestar, sendo que a disparidade no formato de partici-
pação está garantida, considerando a capacidade de cada público utilizar
dispositivos de visibilidade e de comunicação com as competências de re-
lações públicas, marketing, jornalismo e propaganda.
A opinião pública permite, ainda, reconhecer na sociedade, sua ca-
pacidade organizativa e ativa, e este conceito instituinte da república, vem
sendo submetido a reflexões há mais de um século com Gabriel Tarde,
Walter Lipmann e John Dewey, nos anos vinte, por exemplo. A defesa da
opinião pública importa na avaliação da democracia, mas não no modo
simplificado de sinônimo de maioria ou de sondagens. Esteves (2011, p.
151-153) salienta a força dos públicos formados por indivíduos, as formas
de sociabilidade contemporânea e a formação de redes por afinidades sele-
tivas. Afirma que que “as relações de pertença são abertas e reversíveis, em
função de interesses , convicções e motivações permanentemente renová-
veis ou revogáveis”. O autor refere-se, também, ao “caráter simbólico dos
públicos” e ao seu “profundo significado comunicacional” relacionando à
opinião pública e, também à comunicação pública,
A comunicação pública pode ser compreendida como esta capacida-
de de fazer circular opiniões e movimentos em torno de temas vitais ao
indivíduo, à sociedade, ao Estado e à política, de modo organizado ou es-
pontâneo. A visibilidade obtida e a adoção da causa pelas mídias (ou não)
incidem nos resultados desejados junto aos poderes constituídos. Toda a
manifestação pública é dirigida ao poder que poderá estabelecer um di-
álogo, ou não. Assim, o conceito comunicação pública está circunscrito à
existência de um espaço onde possam circular temas de interesse público
gerados por sistemas e redes, assim entendidos por debaterem valores vi-
tais para o Estado, a sociedade e indivíduos, tanto nas instâncias de produ-
ção, quanto naquelas de recepção. São os temas que possuem capacidade
para tensionar argumentos, repercutir e exigir resposta pública.
Refletir sobre a comunicação pública é entender onde ocorrem situ-
ações de debate e manifestações em torno de temas de interesse público.
43
Pode-se identificar o movimento realizado pelas instituições em torno da
sua visibilidade e desses temas, quando abordados e debatidos com a socie-
dade, concomitante ao plano de investimento para a formação e aferição da
Imagem Pública. Esse processo é realizado pelas máquinas da comunica-
ção nos níveis federal, estadual e municipal nos Poderes Executivo (gover-
nos e suas instituições), Legislativo (parlamento) e Judiciário (Tribunais)
com a produção de campanhas de propaganda, notícias, eventos, acesso a
dados e serviços, agendas públicas, “além do investimento em estrutura e
tecnologia para manter, por exemplo, rádios, canais de TV, sites e progra-
mas” (Weber 2009, p. 19).
Os âmbitos constitutivos da Comunicação Pública estão relacionados
à normatividade, facticidade e à crítica e dependem da amplitude e limites
das instituições públicas, organizações mediáticas e públicos para debate-
rem os temas de interesse público, a partir dos resultados desejados e do
seu poder de negociação. Como premissa, o interesse público é definidor
dos movimentos das instituições do Estado e da sociedade. Nessa pers-
pectiva, o debate é instituinte da Comunicação Pública, considerando a
circulação dos temas que afetam a sociedade, os indivíduos, as instituições
públicas e organizações privadas, com origem em discursos, ações ou pro-
postas legais.
A partir destes âmbitos são iniciados processos de exposição, aborda-
gem, circulação e posicionamento sobre temas e acontecimentos. O debate
latente sobre os temas sensíveis relacionados a questões religiosas, compor-
tamentais, preconceituosas, discriminatórias como o aborto, casamento de
pessoas do mesmo sexo, práticas religiosas; temas vitais sobre liberdades
políticas, acesso à saúde, alimentação, emprego, segurança, educação entre
tantos outros e os temas ditos políticos relacionados a cargos, corrupção,
impostos, mudanças governamentais, impeachment, poder e outros. Esses
três tipos de temas fazem com que os poderes do Estado e a sociedade se
mantenham em alerta, e possuem potência para acionar a participação de
instituições, públicos, grupos e cidadãos.
Os debates sobre temas de interesse público, sobre questões sensíveis,
polêmicas, morais, vitais, políticas e econômicas, são constitutivos da co-
municação pública. Pode-se afirmar que no modo planejado ou espontâ-
neo o debate público é desencadeado em redes de comunicação vincula-
das a instituições e públicos com movimentação contínua e estratégica tais
como as redes governamentais e mediáticas ou de movimentação eventual
(também estratégica) dependendo do tema em questão. São espaços onde
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trafegam pactos e disputas de poder na medida em que se movimentam
em direção à obtenção de visibilidade, apoio, mudanças, leis e votos que
exigem negociações e decisões políticas.
A rede é uma metáfora utilizada em larga escala exatamente pela fa-
cilidade de entender seus nós, conexões e a extensão de uma linha sobre
todas as demais. As redes de comunicação permitem a circulação de infor-
mações e ações, com significados e interpretações passíveis de acolhimento
e rejeição por outras redes. As redes são adequadas para defender a ideia
da circularidade de informações e opiniões que fortalecem determinados
arranjos sociais e sua mobilização. O poder de algumas sobre as outras é
determinante para o fortalecimento das demais, como as redes vinculadas
ao Estado ou as redes de comunicação massiva.
As redes são espaços de poder devido a sua natureza e à pluralidade
dos públicos que, mesmo com interesses particulares, se mantêm ligados,
com dinâmicas, protocolos, acordo e distúrbios próprios. As redes são for-
madas a partir de questão, decisão que, obrigatoriamente, atiça outros pú-
blicos, outras redes, se o tema, a questão em jogo exigir agregação, união,
proximidade para que os públicos se façam ouvir, se façam ver como defen-
sores, críticos ou contrários.
As pesquisas permitem formular uma tipologia de redes considerando
seu grau de autonomia, seus pontos de interesse comum, seu grau de envol-
vimento com o tema em questão, a credibilidade dos cidadãos envolvidos
e seus objetivos. Cada grupo de redes pode ser ampliado de acordo com
o objeto de pesquisa em estudo. Neste sentido, a relação de redes sofreu
pequenas mudanças (Weber, 2007) em relação à sua primeira formulação
porque importa entender de que modo temas de interesse público podem
suscitar debate público. Um dos aspectos mais importantes é identificar o
poder das redes em relação ao tema em questão. Embora seja possível in-
tegrar diferentes redes na condição de cidadão, alguns temas evocam mais
diretamente.
Em relação à primeira tentativa de ingressar e entender as redes de
comunicação pública nas democracias – a reflexão e as pesquisas realizadas
sobre temas díspares (registrados nessa obra) permitiram ajustes para me-
lhor caracterizar esta tipologia nas suas denominações e o poder em poten-
cial na tomada de posição, reações e deliberação em relação a temas, ques-
tões e acontecimentos mobilizadores dos poderes estatais, mediáticos e da
sociedade em torno de um debate público. Pode-se pensar na comunicação
pública, em redes constituídas por públicos organizados com proximida-
45
des ideológicas, interesses comuns, interesses particulares, representação
ou pela singularidade de sua natureza e ação.
A denominação redes de comunicação delimita que o estudo sobre o
debate público, temas de interesse público e poder das instituições e pú-
blicos está sediado nos processos de comunicação desenvolvidos pelas
instituiçõese públicos. São as seguintes redes que entendemos capazes de
desencadear, desenvolver e incidir sobre decisões de interesse público, com
variáveis contextuais quanto ao seu poder de deliberar, em três âmbitos
com poderes específicos:
Âmbito do Estado (poder legal de governar e intervir):
• Redes de Comunicação do Poder Executivo
• Redes de Comunicação do Poder Legislativo
• Redes de Comunicação do Poder Judiciário
• Sistemas de Comunicação e Radiodifusão Pública
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Redes de Comunicação Social – Redes formadas por cidadãos, grupos
e públicos com algum objetivo ou opinião comum, além de movimentos e
entidades da sociedade organizada. Essa formulação privilegia, também,
os movimentos culturais, associações, grupos organizados, organizações,
coletivos e manifestações de rua, menos institucionalizadas. Trata-se de
valorizar públicos que se manifestam em defesa ou no ataque de situações,
propostas geradas pelo Estado ou que deste dependem como é o caso das
tragédias ou de temas morais, por exemplo. Uma das características mais
importantes destas redes são as mídias sociais que, cada vez mais, cons-
tituem uma rede complementar. Na atualidade, as redes de comunicação
social abrigam públicos e grupos sociais que se posicionam contra a po-
lítica e sua organização, a favor da espontaneidade e horizontalidade de
decisões. Pode-se identificar um poder de mobilização desproporcional à
sua primária organização, como nas manifestações de 2013 a 2016 e as ocu-
pações de prédios públicos. Essas redes permitem a circulação e o debater-
ma organizada, permanente ou eventual, as redes são formadas em torno
de um tema de interesse público com poder de apoio ou enfrentamento
às instituições proponentes de leis e mudanças de ordem jurídico-moral
como aborto, eutanásia, liberação da maconha, casamentos homossexuais
e outros. Alteram a vida do cidadão como ações relacionadas ao mercado
e tempo de trabalho, aposentadoria, saúde pública. Em outra perspectiva,
quando as autoridades são naturalmente responsabilizadas como é o caso
de inesperadas catástrofes ambientais ou tragédias sociais como o Incêndio
da Boate Kiss (Kegler, 2016).
Outro tipo de rede social reside nos chamados espaços de vigilância
caracterizados pelas ações dos Observatórios e Ouvidorias. Neste âmbito,
há uma comunicação própria exercida em torno da crítica e questionamen-
to às mídias e insttuições.
As mídias alternativas, em diferentes suportes digitais, impressos e
audiovisuais, também devem ser integralizadas a estas redes. Com suas
próprias configurações, ideologias e vinculações abordam temas de inte-
resse público e podem promover o debate, na medida em que representem
alguns movimentos e se alinham à resistência em relação à uniformidade
da comunicação mediática.
53
justificam a edição, chamando a liberdade de imprensa, a autonomia e a
competência profissional do campo. E tudo pode ser justificado, pois a nin-
guém ocorreria questionar estes princípios tão caros à civilização. Assim,
as hibridações entre informação institucional e jornalística, entre interesses
públicos e privados se tornam cada vez mais sofisticadas na combinação
de enquadramentos de conteúdos, tecnologias e estéticas, que permitirão
identificar as estratégias decisivas para a compreensão da realidade em vá-
rios níveis, vinculadas ao que pode/deve ser visto ou acessado.
Relações e processos de comunicação permeiam todas as instituições
e as teias que as ligam à sociedade e indivíduos. A democracia tem na sua
natureza essa comunicação. Ao criar a tipologia das redes para identificar
a circulação de opiniões e ações em torno de temas de interesse público,
defende-se o poder destas instâncias e sua capacidade e necessidade de in-
tervenção nas coisas da vida. O oposto disso seria o silenciamento coerciti-
vo organizado pelo Estado.
Assim como os sistemas de comunicação mediática, os poderes Exe-
cutivo, Legislativo e Judiciário possuem o maior poder de defesa de seus
argumentos através de aparatos de visibilidade, publicidade e coerção.
As redes de comunicação pública podem ser analisadas a partir das
suas estratégias e indicadores de qualidade, considerando que nem todas
se movem da mesma maneira, assim como os temas de interesse público
não afetam a todas. A expressão e a visibilidade das redes de comunica-
ção pública configuram o debate e seu empoderamento está diretamente
relacionado a fatores entendidos como indicativos da qualidade da sua ar-
gumentação e mobilização capazes de incidir nas decisões primeiras, ou
situações que desencadearam a circulação do tema de interesse público.
Através de argumentos racionais e posições passionais, de dispositivos
profissionais e tecnológicos, mobilizações de rua e estética própria, as redes
acionam opiniões e provocam decisões. A eficácia das estratégias utilizadas
depende da legitimidade, visibilidade e credibilidade. Estas estratégias apon-
tam para a qualidade do discurso e a capacidade de deliberação dos públicos.
A legitimidade é a mais importante, mas também complexa de avaliar,
na medida em que é preciso mensurar a capacidade de liderança, de repre-
sentação e de reconhecimento por diferentes instâncias, direta e indireta-
mente implicadas no debate. Esta legitimidade incide na repercussão de
todas as ações. Abrange os indicadores do reconhecimento da autoridade
conferida aos organizadores, líderes devido a sua representatividade, poder
ou carisma, por escolha.
54
A visibilidade está na competência técnica e pode ser mensurada pe-
los dispositivos de propaganda, usos de mídias e informação, adequados a
linguagens e formulações discursivas próprias da lógica publicitária, medi-
ática ou do público em questão. Neste sentido é preciso identificar os níveis
de positividade, negatividade e neutralidade obtidos pelos públicos nas re-
des, em relação aos temas de interesse público em disputa. São indicado-
res as ações e produtos de comunicação que obedecem aos parâmetros de
competência profissional e técnica para promover e defender argumentos a
partir de dispositivos discursivos e imagéticos, jornalísticos e publicitários
e manifestações. Complementam a produção de comunicação das redes,
referências e a adoção por outras redes.
A Credibilidade pode ser identificada pelo reconhecimento dos argu-
mentos por instâncias com legitimidade sobre o tema em questão. Também
pela amplitude e repercussão das ações em outras redes e a possibilidade de
ser ouvido pelo Estado e as mídias. A continuidade das ações assim como
a manutenção de ações, repercussão em outras redes e demonstração da
capacidade de incidir na decisão e deliberação sobre a questão de interesse
público. Provavelmente, as redes organizadas terão mais credibilidade de-
vido a sua história e registros de ações públicas.
O objetivo desses indicadores é valorizar os espaços e movimentos
próprios da sociedade em relação aos poderes constituídos que permitam
entender a amplitude ou limites da ação dos públicos que as integram em
relação a temas de interesse público determinantes para o funcionamento
das democracias. A expressão e a visibilidade das redes de comunicação
pública configuram o debate e seu poder de deliberar, diretamente rela-
cionado a fatores entendidos como indicativos da qualidade da sua argu-
mentação e mobilização. Através de argumentos racionais e posições pas-
sionais, de dispositivos profissionais e tecnológicos, mobilizações de rua e
estéticas próprias, as redes acionam opiniões e provocam decisões.
Algumas pistas já permitem identificar os poderes em jogo a partir
dos modos de abordagem dos temas de interesse público. A valoração do
fato depende também do poder simbólico dessas redes e do reconhecimen-
to sobre a sua força e sua legitimidade. Por isso são públicas e a interlocu-
ção com os poderes fortalece a democracia, através da comunicação que
lhes é inerente e estabelecida de modo direto ou indireto com os cidadãos,
ou de modo instrumental através de produtos publicitários, eventos e per-
formances.
55
Considerações Finais
56
Capítulo 2
ACONTECIMENTOS
Marja Pfeifer Coelho
Bruno Kegler
Marlise Viegas Brenol
Marcelo Xavier Parker
Tiago Gautier Ferreira Borges
Manoella Neves
Satiagraha
A constituição de um acontecimento público
1 Esta decisão é posterior ao período analisado na tese de doutorado, que engloba desde o deflagrar da
operação (08/07/2008) até o mês de abril de 2012 – data arbitrária, que foi definida pela presença de
ocorrências sobre o acontecimento.
2 De acordo com matéria publicada em 08/07/2008 no site da Procuradoria da República em São Paulo
(http://www.prsp.mpf.gov.br/sala-de-imprensa/noticias_prsp/noticia-7666/?searchterm=Satiagraha),
as investigações partiram do processo do “mensalão”: duas empresas nas quais o Banco Opportunity
tinha participação foram as principais depositantes nas contas do operador do esquema. O escânda-
lo conhecido por “mensalão” envolvia um esquema de compra de votos de parlamentares, revelado
em 2005 na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios pelo ex-deputado federal
Roberto Jefferson (PTB). De acordo com a denúncia, parlamentares recebiam quantias mensais para
aprovar projetos do governo. O escândalo marcou o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva (2003-2006).
59
As prisões de Pitta e Nahas foram acompanhadas com exclusividade
pela Rede Globo de Televisão. Pitta foi flagrado abrindo a porta de sua re-
sidência de pijama. Na mansão de Nahas, as câmeras acompanham o cerco
da polícia, que acaba pulando o muro para efetuar a prisão. A veiculação
das imagens provoca manifestações de outros atores: a operação é publi-
camente criticada pela via da espetacularização pelo então presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes. A exclusividade é in-
vestigada enquanto vazamento – o que acaba por levar o foco de atenção
dos crimes à própria operação.
Na noite seguinte (09/07/2008), Gilmar Mendes decide liberar Dan-
tas . O banqueiro, entretanto, permanece cerca de dez horas em liberdade:
3
60
e por fraude processual, condenado, mas eleito deputado federal em 20104.
O próprio banqueiro Daniel Dantas, preso e liberado por duas vezes, é de-
nunciado e condenado por corrupção, mas seus processos são anulados
junto com as provas obtidas pela operação.
Outra marca é a participação da mídia, que não se restringiu à ex-
clusividade obtida pela Rede Globo no deflagrar da operação. A mesma
emissora chegou a participar das investigações, com a gravação de uma
tentativa de suborno a um dos delegados (o que motivou a condenação de
Queiroz por fraude processual). Além disto, uma matéria publicada pelo
jornal Folha de S.Paulo antes mesmo da operação terminou por beneficiar
um dos investigados.
Por fim, uma última característica a ser ressaltada sobre a Satiagraha
é o envolvimento de todos os poderes do Estado, especialmente da Justiça,
expondo embates entre instâncias variadas, e em tal grau, que são publica-
mente tratadas, em alguns momentos, como crises entre os poderes.
Essas três singularidades tornam a operação um acontecimento in-
teressante para pesquisa, do ponto de vista das relações entre mídia e ins-
tituições políticas em torno da visibilidade, tendo como pano de fundo o
problema da corrupção, tão danoso às democracias contemporâneas. En-
tender e analisar a Satiagraha como acontecimento público demandou cer-
tas escolhas metodológicas e permitiu avaliar disputas de papéis de legiti-
mação do regime democrático desempenhados por diferentes instituições
sociais, incluindo o jornalismo. Para refazer este caminho, é preciso partir
do conceito de acontecimento e entender sua qualificação como público.
Acontecimento Público
61
de sentido e sua diluição na narrativa construída sobre ele. As narrativas
seriam assim “passagem do possível imprevisível ao possível previsível.
Previsibilização pela domesticação do imprevisível. Ultrapassagem da in-
certeza. Restauração de um mundo” (Rebelo, 2005, p. 18).
Quéré (2005a) afirma que podemos, intuitivamente, identificar diver-
sos tipos de acontecimento. Eles variam em relação a sua independência,
controle, frequência, importância, entre outros atributos. Um corte impor-
tante, no entendimento do autor, diz respeito ao poder dos acontecimentos
“de afectar os seres e de impregnar as situações de qualidades difusas que as
individualizam” (Quéré, 2005a, p. 59).
Este poder é da ordem da revelação, um poder hermenêutico, capaz
de iluminar um passado e amplia o “horizonte de possíveis” da experiência
humana.
[...] é preciso que o acontecimento ocorra, que ele se manifeste na sua
descontinuidade e que tenha sido identificado de acordo com uma certa
descrição e em função de um contexto de sentido, para que se lhe possa
associar um passado e um futuro assim como uma explicação causal
(Quéré, 2005a, p. 61-62).
Para o autor, o fato inaugura a possibilidade de sentidos: o aconteci-
mento traz em si a origem da sua compreensão, dando suporte à ação – o
que acontece, acontece a alguém, afeta alguém. O acontecimento é dotado
de passibilidade; é passível de ser sofrido pelo sujeito, que dá respostas. Esta
transação, pela qual o acontecimento se individualiza, inclui a ocorrência
do acontecimento, sua transformação em objeto de pensamento, através da
reflexão, e a intervenção dos sujeitos (ação) sobre o curso dos acontecimen-
tos, de maneira individual e coletiva (Quéré, 2011a).
Ação também entendida por Alsina (2009) como premissa necessá-
ria ao entendimento do acontecimento. Para este autor, a constituição do
acontecimento inicia com um fenômeno externo ao sujeito, que não faz
sentido longe deste; ao ser percebido, o fenômeno torna-se acontecimento
pela ação do sujeito, da aplicação de seu conhecimento sobre o que per-
cebeu.
Em todos estes autores (Rebelo, Quéré, Alsina), o par fenômeno +
sujeito é condição para o acontecimento. A variedade de fenômenos e afe-
tações/reações faz questionar: tudo é acontecimento? O que é passível de
ser analisado por esta categoria? Para Rebelo (2005), o corte a ser operado
é de ordem sociológica: é acontecimento aquilo que tem potencial de atua-
lidade, mas também de relevância e de pregnância.
62
Também Alsina (2009) ressalta características do acontecimento rela-
cionadas a esta visada: possui uma transcendência social (enfatizando que,
por ser “um fenômeno social determinado histórica e culturalmente”, este
caráter varia para diferentes sociedades/épocas), e uma necessária publici-
dade, vinculada a sua relevância. “Se o público não receber qualquer notí-
cia sobre um fato, esse fato não poderia ser considerado como um aconte-
cimento com transcendência social” (Alsina, 2009, p. 116).
Pode-se entender a mídia como lugar privilegiado dos acontecimen-
tos na contemporaneidade, pensando especialmente nos fenômenos que
atingem os indivíduos para além da sua esfera privada de experiência.
Esta prerrogativa não significa exclusividade. Como bem argumenta Augé
(2001), uma parte do acontecimento pode exceder a capacidade midiática,
“uma dose imprevista de evento puro que, de agora em diante, os espe-
cialistas do social deveriam ter em conta quando escrutinam as galáxias
humanas” (p. 27-28, tradução nossa).
O privilégio da mídia é percebido por Nora (1974), ao enfatizar que o
monopólio da história, construída sobre o acontecimento, pertence agora
aos meios de comunicação de massa. “Nas nossas sociedades contempo-
râneas é através deles, e só através deles, que o acontecimento nos toca e
não pode evitar-nos” (p. 245). Para o autor, o acontecimento passou por
uma metamorfose: está “intimamente ligado a sua expressão” (p. 249). Da
imprensa à televisão, os acontecimentos surgem com a marca apropriada
a cada tecnologia de produção simbólica. Em comum, a transformação
da palavra em ato e a valorização das “virtualidades emocionais”. Em um
mundo de permanente novidade, o acontecimento é monstruoso, “é o ma-
ravilhoso das sociedades democráticas. Mas a própria integração das mas-
sas teve por efeito integrar também o maravilhoso” (Nora, 1974, p. 251).
O registro do excesso vem também pela abundância de aconteci-
mentos, que têm de ser selecionados e processados pelos meios de co-
municação de massa. Alsina (2009) percebe a mídia como um sistema
aberto, que necessita de um ecossistema para funcionar. Deste meio vêm
os fatos, que são percebidos ou não pelo sistema midiático, e então con-
vertidos em notícia – que por sua vez, pode servir como um aconteci-
mento para outro sistema.
Com esta elaboração, a distinção do autor entre notícia e aconteci-
mento está no processo e na apropriação pelo sistema: “o acontecimento é
um fenômeno de percepção do sistema, enquanto que a notícia é um fenô-
meno de geração deste sistema.” (Alsina, 2009, p. 133). A mídia controla o
63
acontecimento impondo seu determinismo ao ecossistema – sua lógica de
produção simbólica.
Como características do acontecimento jornalístico, Alsina apon-
ta uma variação do ecossistema (uma ruptura da norma, com diferentes
graus de previsibilidade, ligada a uma duração) e a comunicabilidade, já
que o acontecimento é assim considerado por seu conhecimento público.
A visibilidade dada pelo sistema pode, inclusive, garantir a transcendência
do acontecimento.
Se em Quéré o acontecimento transita entre fato e sentido em uma
transação, um processo de individualização, e em Alsina o acontecimento
é input/output em diferentes sistemas – com o devido enfoque na mídia,
para Charaudeau (2006), o acontecimento é configurado em um processo
evenemencial.
Em um primeiro momento, os acontecimentos se apresentam no
“mundo a comentar”, como fenômenos que se impõem ao sujeito; são
então captados e ganham sentido “por meio de uma estruturação que lhes
é conferida pelo ato de linguagem através de uma tematização” (Charau-
deau, 2006, p. 95). A construção do sentido, para Charaudeau, ocorre em
um duplo processo, de transformação (do mundo a significar ao mundo
significado) e de transação (pelo qual o sujeito confere uma significação
psicossocial ao seu ato de linguagem, a partir de parâmetros como a iden-
tidade do outro com quem se comunica, a regulação das relações, entre
outros).
Na mídia, o processo evenemencial assume especificidades:
Nesse caso, o “mundo a descrever” é o lugar onde se encontra o “aconte-
cimento bruto”, e o processo de transformação consiste, para a instância
midiática, em fazer passar o acontecimento de um estado bruto (mas
já interpretado), ao estado de mundo midiático construído, isto é, de
“notícia”; isso ocorre sob a dependência do processo de transação, que
consiste, para a instância midiática, em construir a notícia em função de
como ela imagina a instância receptora, a qual, por sua vez, reinterpreta
a notícia a sua maneira (Charaudeau, 2006, p. 114).
Para o autor, o acontecimento midiático é construído seguindo três
critérios: atualidade, expectativa (necessária à capatação da atenção) e so-
cialidade (tratar daquilo que surge no espaço público e deve receber visibi-
lidade). Neste último critério reside o princípio de pregnância, uma quali-
dade que se impõe ao sujeito, e que pode ser entendida próxima à noção de
transcendência social preferida por Alsina (2009).
64
A lógica midiática pode privilegiar determinados temas e adotá-los
amplamente, em orquestração:
[...] quando um fato se considera acontecimento por muitos meios de
comunicação, e é transmitido em forma de notícia no mercado de co-
municação, é gerado um efeito multiplicador, de orquestração. O acon-
tecimento-notícia tem como característica a de ser algo repetitivo. Por-
tanto, quando um acontecimento é, ao mesmo tempo, transmitido como
notícia por um grande conjunto de meios de comunicação, podemos
valorizar claramente sua transcendência social (Alsina, 2009, p. 146).
Com todas as atenções voltadas para um acontecimento, seu caráter
público, na dimensão da visibilidade, é inequívoco. Mas esta é apenas uma
das acepções da noção de público, uma perspectiva epistemológica ligada
à forma de conhecer, reconhecer e partilhar experiências. Arendt (2007)
pontua o domínio público como tudo o que é comum, o que “pode ser visto
e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível” (p. 59). O público é,
no limite, o próprio mundo, comum a todos e “diferente do lugar que nos
cabe dentro dele” (p. 62): “a presença de outros que veem o que vemos e
ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”
(p. 60).
Mas a noção de público também pode significar uma qualidade da-
quilo que é da ordem do Estado. Este sentido é dado especialmente pela
dicotomia público x privado expressa nos pares direito público x direito
privado e política x economia (Bobbio 2001) – o Estado compreendido
em seu papel normalizador dos conflitos de interesse, em nome de uma
coletividade.
Por fim, também denomina-se público uma forma de sociabilidade
vinculada às características do mundo moderno, entre as quais as transfor-
mações nas possibilidades de interação provocadas pelos meios de comu-
nicação, a habituação do jornalismo na constituição do presente social, e o
desenvolvimento das democracias contemporâneas (Esteves, 2011). Públi-
co que é disperso fisicamente, mas dotado de um caráter simbólico capaz
de garantir sua coesão e identidade. Nesta acepção, o público é sujeito e
não qualidade, e como tal sofre consequências, detém potencial de ação
e mobilização; é interpelado, representado; determina valores coletivos a
serem perseguidos, dita interesses que se contrapõem ao privado, e deve ter
a possibilidade de fiscalizar o poder político exercido em seu nome.
É possível perceber, então, que um acontecimento público por exce-
lência deve abarcar o triplo entendimento da noção. Assim, os aconteci-
65
mentos da mídia suprem claramente uma das dimensões necessárias – e,
pensando na esfera de visibilidade pública (Gomes, 2004), não haveria ou-
tro espaço capaz de dotar um acontecimento desta dimensão, de modo que
é possível entender que, atualmente, um acontecimento público necessaria-
mente é ou será apropriado pela mídia.
O reverso – um acontecimento midiático ser também um aconteci-
mento público – depende das outras dimensões implicadas: é preciso en-
volver o público (sujeito) e o Estado. Pensando na passibilidade (Quéré,
2005a), é preciso que estes sujeitos/instituições sejam afetados. Quéré
(2011b) estabelece um duplo sentido para que um acontecimento seja tra-
tado como público:
Não se trata somente de um acontecimento tornado público pela in-
formação, i. e. de um acontecimento levado ao conhecimento de um
público mais ou menos vasto por diferentes meios de comunicação [...]
e configurado através desta apresentação sobre a cena pública. [...] o
acontecimento público é fundamentalmente um acontecimento inscrito
e tematizado num registro específico, o dos problemas públicos e do seu
tratamento pela ação pública (Quéré, 2011b, p. 27).
Dois pontos são sinalizados pelo autor: os problemas públicos e a ação
pública. Em ambos, as dimensões do público como sujeito e como Estado
estão implicadas.
Os problemas públicos não são problemas sociais – para Quéré, estes
são mais vastos. Um problema social pode se tornar público se tematizado
no campo da ação pública, configurada nas tarefas exigidas às instituições
do Estado democrático, ou nas mobilizações sociais. Para Cefaï (1996), os
problemas públicos implicam em uma necessidade de definição e controle
de uma situação problemática – surgem de questões controversas e de con-
frontos entre atores coletivos na arena pública.
Uma situação de caráter público pode ser considerada problemática
por não estar bem determinada, impedindo condutas adequadas e mesmo o
controle e organização da experiência, ou por romper com valores e normas
compartilhados. O caráter público de um problema exige, assim, referência
ao sistema normativo, que regula comportamentos em um mundo em co-
mum. Este é o sentido “forte” de público na acepção de Quéré, quando en-
volve “princípios ético-jurídicos que proporcionam o quadro de referência à
ação pública dos cidadãos num regime democrático” (Quéré, 2011b, p. 33).
Um conjunto de problemas constitui um campo problemático – os
acontecimentos sempre estão relacionados a um campo destes (Quéré,
66
2011b). Quando o campo não está já constituído, é o próprio exame públi-
co do acontecimento que o define. Assim, os problemas públicos têm sua
principal fonte nos acontecimentos da atualidade, exigindo novas tarefas
da ação pública – seja do Estado, seja da sociedade. Para Cefaï (1996) o
processo de publicização dos problemas públicos é uma forma de institui-
ção própria do regime democrático que garante, entre outros aspectos, a
possibilidade dos atores serem observados e de terem reconhecidas as suas
possibilidades políticas.
As atividades de denúncia, de reivindicação, de justificação, de repara-
ção, as referências ao interesse público ou à utilidade pública em que
baseiam a sua legitimidade, os princípios da lei, da igualdade, da justiça
ou da verdade sobre os quais se apoiam, os procedimentos de investiga-
ção, de argumentação, de racionalização, de crítica aos quais levam são
inseparáveis de “jogos de linguagem”, usos práticos e discursivos que
foram estabelecidos com a invenção dos regimes democráticos (Cefaï,
1996, p. 54, tradução nossa).
A individualização do acontecimento público e a constituição dos
problemas públicos dependem destes “jogos de linguagem”, mobilizando
diversas arenas, diversos públicos. A participação/intervenção dos pode-
res públicos é considerada por Cefaï como decisiva para a estabilização do
problema, atestando a seriedade das questões ou reivindicações. A ação do
Estado é, portanto, fundamental para a configuração de um acontecimento
público.
As três dimensões da noção de público encontram-se, assim, na de-
finição de um acontecimento com esta denominação. Ele o é por ter uma
grande visibilidade, ensejar problemas e temas fundados no interesse pú-
blico, exigir ação pública. Ele demanda/provoca processos de comunicação
pública, em que há a mobilização de arenas e a expectativa de regramento
por princípios éticos e normativos (Weber, 2011, 2007; Esteves, 2011). Em
um acontecimento público, mídia, sociedade, Estado estão implicados.
Neste ponto, cabe compreender o papel privilegiado do jornalismo
no campo da mídia. Por envolver interesse público, que é um valor dese-
jado nas práticas jornalísticas, por acionar Estado e arenas diversas, possi-
bilitando a fiscalização e cobrança dos poderes, o acontecimento público
é especialmente afeto ao jornalismo. Pode, certamente, figurar em outras
gramáticas e práticas da mídia (pode ser apropriado pelo entretenimen-
to, por exemplo, figurando em telenovelas); mas sua constituição pública
exige a abordagem do jornalismo. Em tais termos que é possível afirmar
67
que o acontecimento público é ou será, em sua configuração, também um
acontecimento jornalístico (sendo o reverso não válido, como visto), mais
e necessariamente que um acontecimento midiático.
Sendo assim, o jornalismo é fonte fundamental para a apreensão da
constituição pública dos acontecimentos, conforme Babo-Lança (2011).
Constituição que implica na “estabilização de uma definição comum”: “a
narrativa e o relato jornalísticos ajudam a estabilizar o acontecimento e
a reduzir sua contingência” (p. 06). As notícias contam (com as ambigui-
dades próprias de sua produção), as arenas reagem, os atores trocam suas
posições óticas, a experiência pública se configura.
Com esta formulação teórica, é possível depreender que estudar um
acontecimento público requer buscar este caráter em sua tripla dimensão;
dar conta da visibilidade e da ação pública – especialmente dos jogos dis-
cursivos que se estabelecem em torno dos problemas públicos que o acon-
tecimento provoca. Este texto relata como esta tarefa foi empreendida para
a Satiagraha.
Reconstituir o acontecimento
69
lica de se tratar de mais um jornal de referência5, suas matérias integram
a Agência Estado, uma das principais agências de notícias do país. Desta
forma, amplia-se a visibilidade como critério para o corpus, sabendo-se que
se trata de qualidade fundamental na conformação de um acontecimento
público.
Optou-se por uma busca nos acervos digitais dos veículos escolhidos.
O termo utilizado foi “Satiagraha”, resultando em muitas ocorrências em
todos eles; inclusive expandidas no tempo. Por fim, também foi realizada
busca pelo mesmo termo “Satiagraha” nos portais do Senado Federal, da
Câmara Federal, do Ministério da Justiça, do Supremo Tribunal Federal
(STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), da Justiça Federal, Ministério
Público Federal, ABIN e Polícia Federal – sujeitos e instituições envolvidos.
A ideia era ter um registro de quando houve alguma divulgação sobre o
acontecimento a partir de estruturas de comunicação destas instituições.
Para todo este levantamento, também foi necessário determinar um
período, que inicia, necessariamente, em 08/07/2008, data em que a ope-
ração foi deflagrada. O corte final foi arbitrário, encerrando o intervalo em
abril de 2012 – mês em que ainda ocorreram referências à Satiagraha na
cobertura da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Cachoeira6.
Uma segunda operacionalização realizada tratou de dispor as ocor-
rências do universo de pesquisa em relação ao tempo, a fim de identificar
adensamentos – possibilitando assim, lidar diretamente com um dos parâ-
metros de pesquisa, a visibilidade. Esta ação foi operada para as fontes da
mídia, apontando os momentos em que o acontecimento teve maior pro-
dução deste campo. Assim, escandindo as ocorrências dos quatro veículos,
foi possível perceber quando todos deram atenção à Satiagraha, em proces-
so de orquestração, como visto com Alsina (2009), quando é valorizada sua
transcendência social.
5 Este conceito, de acordo com Berger (2003, p. 47), provém de uma pesquisa sobre Comunicação e Pro-
dução da Realidade desenvolvida em doze países, analisando os jornais que servem como referência
em cada um deles, com os textos publicados em Imbert e Vidal-Benyato (1986) e Imbert (1987). De
acordo com Marocco (2011, p. 91), Vidal-Benyato (IMBERT e VIDAL-BENYATO, 1986) estipula três
características para um jornal deste tipo: servir de referência para outros veículos, pautando-os; ser
lugar privilegiado para a presença e expressão de políticos, instituições, entidades, para a comunicação
com grupos dirigentes; servir como fonte para embaixadas estrangeiras sobre a realidade e os proble-
mas do país.
6 Comissão Parlamentar Mista de Inquérito criada em abril de 2012 para investigar a atuação do empre-
sário de jogos ilegais Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, e suas ligações com agentes públi-
cos e privados. A CPMI baseou-se na operação Monte Carlo da Polícia Federal. Nas últimas ocorrências
coletadas para o universo de pesquisa, a Satiagraha é relembrada a partir de Protógenes Queiroz e de
suas relações com Idalberto de Araújo, sargento aposentado da aeronáutica que atuou na operação e
que foi preso em 2012, durante a operação Monte Carlo.
70
Já as ocorrências registradas nos sites institucionais de órgãos do Es-
tado surgem quando estes atores se envolvem diretamente com o aconte-
cimento e foram utilizadas, em segundo momento, para cotejamento das
ações dos sujeitos e instituições, e do que não foi visibilizado (ou o foi com
pouca intensidade) pelos veículos selecionados.
O corpus final da pesquisa resultou em 587 edições dos quatro veí-
culos analisados, e por 514 ocorrências nos sites institucionais. Para a mí-
dia, a operação seguinte foi discriminar as entradas por formatos e gêne-
ros, de forma quantitativa, demonstrando a relevância e a participação de
diferentes vozes nas notícias, ao longo do tempo. Para as instituições ana-
lisadas, a distinção feita mostrou formas diferenciadas de se comunicar
– por notas ou notícias – e a apropriação do acontecimento pelos órgãos
públicos em momentos diversos: há uma transição entre 2009/2010 que
demarca a saída do acontecimento de um plano mais político, com alta
produção da Câmara dos Deputados e do Senado (a Satiagraha pautou
uma Comissão Parlamentar de Inquérito em andamento no congresso),
para uma “judicialização” do acontecimento, em que o peso das ocor-
rências ligadas ao Poder Judiciário aumenta, e também o das produzidas
pelo Ministério Público Federal.
Se esses movimentos deram conta da amplitude e visibilidade do
acontecimento – de sua publicidade como compartilhamento e como
envolvimento de instâncias variadas –, a entrada propriamente na nar-
rativa buscou as intrigas, as disputas. Para tanto, cada ator implicado foi
apresentado7; a entrada do acontecimento em cena, o deflagrar da opera-
ção, foi recuperada através da veiculação com acompanhamento exclusi-
vo da Rede Globo de Televisão, compondo o “marco zero” da narrativa;
por fim, os títulos em capas dos impressos analisados e das escaladas do
telejornal, somados aos das ocorrências dos sites institucionais, foram
classificados em temas, abrindo a narrativa para os principais conflitos
registrados.
Partindo da veiculação com exclusividade das prisões de Dantas, Pitta
e Nahas pela Rede Globo de Televisão, observou-se que a narrativa tomou
diferentes rumos temporais: aquela que se refere “ao passado”, relativa, em
um primeiro momento, às investigações realizadas pela PF sobre os delitos
cometidos; a relacionada “ao futuro”, com os desdobramentos, especial-
mente jurídicos, da operação; e a que trata de recontar o “tempo zero”, a
operação em si, como foi deflagrada.
7 Ver detalhamento em COELHO, 2013.
71
A grande reviravolta deste acontecimento está na imbricação destas
temporalidades: a própria operação é investigada – e então sobre ela é
feita uma prospecção “do passado”, para além do seu deflagrar, com im-
plicações “no futuro” – a operação termina por ter suas provas anuladas
judicialmente.
Na narrativa, o “nó” sobressai no momento em que o então ministro
da Justiça Tarso Genro determina a investigação para apurar possível vaza-
mento na operação. Este deslocamento é provocado em razão da visibilida-
de na Rede Globo de Televisão.
Optou-se por caracterizar os conflitos partindo das oposições/posi-
cionamentos entre os atores envolvidos. Esta escolha segue o entendimento
de Motta e Guazina (2010), de que o conflito é uma categoria cara à políti-
ca, onde o embate entre concorrentes é próprio à dinâmica do campo polí-
tico, e ao jornalismo, para o qual opera não apenas como um valor-notícia,
determinando a seleção de fatos, mas na elaboração da notícia, enquanto
uma “metacategoria dramática” (p. 134).
Em determinados momentos, a mídia figurou na Satiagraha como
ator, entrando na narrativa para se manifestar em oposição a outros ato-
res. Isto ocorreu nos episódios em que houve necessidade de defesa de sua
atuação: logo após a entrada do acontecimento em cena, sob a temática do
vazamento; no tema “Michael”8, recontado a partir da negativa ao pedido
de prisão da jornalista da Folha de São Paulo; sob a temática “suborno”, por
ocasião da revelação de que um cinegrafista da Rede Globo participou de
filmagens durante a investigação.
Outros conflitos implicaram embates travados entre instituições
do Estado. Nestes conflitos, a mídia também desempenha um papel im-
portante, na medida em que tece discursivamente as oposições, muitas
vezes reforçando antagonismos, provocando respostas, promovendo a
própria dinâmica agonística – mas os principais opositores são da esfera
política. Foram examinados conflitos envolvendo os temas “algemas”9,
8 Episódio anterior à operação, em que a jornalista Andréa Michael, da Folha de S.Paulo, publica matéria
sobre a investigação em curso, quando esta ainda era sigilosa. A divulgação permite à defesa de Dantas
ingressar com um habeas corpus preventivo, tendo encadeamento direto, portanto, com o tema “pri-
sões de Dantas”. Além disto, serve como referência para posicionamentos da mídia e do Estado após a
operação.
9 Demarca as ocorrências em torno do uso de algemas visibilizado na operação. Considerado abuso da
polícia pelo presidente do STF, mobiliza atores em posições contrárias (defesa do uso/condenação do
uso). Torna-se um problema público que provoca ações normativas do Estado – a edição da Súmula
Vinculante do STF, os projetos de Lei do Legislativo.
72
“prisões de Dantas”10/”crise do judiciário”11, “grampos”12/”grampo
STF”13/”ABIN”14.
Cada conflito analisado foi resumido em um quadro com uma sínte-
se das argumentações dos atores. A título de exemplo, são reproduzidos
abaixo os quadros para um conflito da mídia e um do Estado. O deta-
lhamento das análises pode ser consultado diretamente na tese (Coelho,
2013).
Exclusividade
Posições
Privilégio/convite Furo jornalístico
Audiência e uso acrítico Trabalho árduo, credibilidade e acesso
são justificativas a fontes variadas são justificativas
Erro da PF, que convidou/apuração Direito à informação/resguardo da fonte
10 Neste tema estão relacionados os episódios de prisão e soltura do empresário, que motivam a “crise do
judiciário”. As decisões do presidente do STF, Gilmar Mendes, pela liberação de Dantas e os pedidos de
prisão feitos pela PF, endossados pelo MPF e decretados pelo juiz Fausto de Sanctis provocam debates e
manifestos de magistrados e advogados. Pode-se considerar como um episódio, concatenado ao “Caso
Michael” – o habeas corpus preventivo julgado por Mendes tem origem nesta situação anterior – e que
provoca o tema da crise do judiciário.
11 Com o segundo habeas corpus de Dantas, o presidente do STF encaminha os despachos do juiz De
Sanctis ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a outros órgãos administrativos do Judiciário, provo-
cando manifestações de apoio ao juiz por parte de magistrados. As discussões entre a primeira instância
e o STF ganham tal proporção que se fala em “crise”, “impeachment”. Os magistrados que apoiaram De
Sanctis também sofrem sanções.
12 Ocorrências sobre gravações realizadas nas investigações, que foram sendo divulgadas após a operação,
envolvendo políticos, como o telefonema entre o ex-deputado Luiz Greenhalgh e o chefe de gabinete do
governo Lula, Gilberto Carvalho.
13 Ocorrências sobre a suspeita de monitoramento do gabinete do ministro Gilmar Mendes, levantada por
uma desembargadora, reforçada pela publicação de um diálogo entre Mendes e o senador Demóstenes
Torres – e creditada à participação da ABIN na Satiagraha. Pode ser entendido como um episódio den-
tro da temática maior dos “grampos”; de qualquer maneira, a diferenciação facilitou a discriminação
das ocorrências relacionadas a esta situação.
14 Refere-se às ocorrências sobre a participação desta instituição na operação Satiagraha, desde sua reve-
lação até suas consequências (anulação da operação).
73
Quadro 2 – Conflito Gilmar Mendes/STF x PF/Tarso Genro (tema Algemas)
Posições
Abuso Prática cotidiana; proteção
(do policial, do preso, do entorno)
Estado Policialesco
Igualdade Oposição ricos x pobres
Dignidade humana Integridade humana
Pedagogia da opinião pública
Interpretar o acontecimento
75
ferenciais que vão se replicando e ampliando no desenrolar da trama. Da
noção de espetacularização surge a preocupação com o vazamento, com
o uso de algemas e com o embate das prisões de Dantas (que não teriam
justificativa, para o presidente do STF), questões tratadas como descum-
primento de normas e abuso por parte da PF e desobediência da Justiça
Federal, em um alinhamento de atores.
Há a sugestão da busca por visibilidade como motivação para essa
atuação; de fato, essa relação aparece no próprio uso de termos correlatos à
mídia. A operação, na transição do sigilo à cena pública, foi espetaculariza-
da, sensacionalizada; a espetacularização e o sensacionalismo são catego-
rias afetas à mídia; a PF troca de papel ao ensejar visibilidade em excesso,
sai do seu lugar institucional.
A visibilidade dada à operação é criticada pela via da defesa das garan-
tias individuais (a exposição inadequada dos suspeitos) e pelo simbolismo
das algemas, que condenam. Como se o dar a ver pela mídia da ação da PF
imputasse a esta uma usurpação – nos termos de O’Donnell (1998), quan-
do uma agência estatal se apropria da autoridade de outra, em se tratando
de accountabillity horizontal. Como se a PF buscasse na visibilidade a an-
tecipação de uma condenação que só pode ser dada em última instância
judicial; uma certeza da correção e importância de seu trabalho.
O interesse pela visibilidade parece então ser pontuado mais pelo de-
sejo de manutenção/conformação de uma imagem pública, adequada a um
ethos institucional, do que pelo dever de publicidade. Nesta última pers-
pectiva residiria especialmente o interesse público; a busca por visibilidade
para fins de imagem pública apontaria mais para interesses privados.
A questão da visibilidade é assim posta a vários outros atores, como
motivação para a ação ou como crítica a uma exposição demasiada. Os ato-
res públicos ficam sob a suspeição das suas ações – porque possivelmente
movidas por um desejo de aparecer.
O exame do desempenho da mídia como ator revela que esta também
sai do seu lugar de atuação ao filmar o suborno, participando de uma in-
vestigação própria dos agentes públicos, que deveria fiscalizar. Este ponto
causa a punição do delegado, através de sanções formais e simbólicas na
cena pública, mas poucas críticas à mídia no âmbito estudado.
Nas demais atuações, a defesa dos preceitos profissionais e a imputa-
ção de responsabilidades para outras esferas (para a mídia, o vazamento,
no “Caso Michael”, é problema da PF), enseja igualmente uma ausência de
crítica, que, seguindo Quéré (2005b), a torna menos confiável (enquanto
76
instituição e enquanto dispositivo de confiança). Não pode haver questio-
namento em torno do interesse público; ele seria, a priori, definido pelo
jornalismo, não importando as implicações do ato de publicizar. A mídia é
o único ator que pode defender outros interesses, privados (o furo jorna-
lístico, que coloca um veículo à frente da concorrência), sem que se ques-
tione sua sobreposição ao interesse público – um tipo de corrupção que
sinaliza para a crise da comunicação pública, como pensada por Blumler
e Gurevitch (1995), um distanciamento das práticas em relação aos valo-
res democráticos, com consequências para a credibilidade das instituições
implicadas.
Assim, o acontecimento aponta limites de atuação para conformação
de um processo de comunicação pública: de parte da mídia, na ausência de
crítica à sua atuação, na valorização de uma “publicidade demonstrativa”
(Esteves, 2007), capaz de suprir suas exigências de perfomance (o furo, a
exclusividade), com implicações enquanto instituição confiável e enquan-
to dispositivo de confiança (Quéré, 2005b). De parte dos atores políticos,
pela valorização do desejo de visibilidade, através dos papéis institucionais,
provocando embates e disputas por conceitos como Estado de Direito, in-
teresse público.
O acontecimento na mídia é, claramente, fruto de “jornalismo de in-
vestigação”, (Nascimento, 2010): os jornais e a televisão acompanham as
investigações com os insumos vazados das mesmas (grampos, relatórios).
É o que Peruzzotti (2011) chama de denuncismo – prática que conforma
a dinâmica do acontecimento à disposição dos vazamentos, geralmente
efetuados por fontes da elite, povoando a dimensão pública com “jogos
intraelite”. Os perigos, para o autor, são o “ventriloquismo”, com a imprensa
falando pelas fontes, usando a exposição pública como arma de poder, e o
inflar das expectativas do público por justiça, sem uma consequente reali-
zação da mesma.
Enquanto acontecimento público, a Satiagraha provoca a emergên-
cia de problemas públicos. Desde sua entrada em cena, a relação com a
corrupção é dada; porém, a atenção pública conferida ao acontecimento
problematiza outras questões (algemas, grampos, ABIN). De acordo com
Cefaï (1996), a intervenção dos poderes públicos é decisiva para a fase de
“estabilização” do problema público, atestando a seriedade da questão/
das reivindicações. Enquanto a corrupção é um campo já relacionado ao
acontecimento, com uma ação pública esperada na forma de um processo
resultante da investigação, os demais temas emergem a partir do aconteci-
77
mento e das diferentes afetações dos sujeitos públicos, que reagem a estas
questões.
Pelas posições provocadas, estas questões tão diferenciadas se apro-
ximam em algumas referências a um Estado Policial, contraposto ao Es-
tado de Direito, noções exploradas em maior ou menor grau nos temas
analisados. O que o acontecimento revela, assim, diz justamente ainda de
uma herança autoritária, um imaginário sempre reavivado pelos atores ao
defenderem suas posições como democráticas. Isso tanto aponta para ne-
cessidades vigentes de aprimoramento do regime, como para um uso estra-
tégico da noção de democracia, ao qual todos querem estar vinculados. É,
afinal, a defesa desses valores, em conformidade de atuação com as devidas
missões institucionais, que faz confluir desejo e dever de visibilidade, inte-
resse público e privado: o dever de mostrar e o desejo de ser visto.
Em outra linha, as posições analisadas permitem também dizer que o
acontecimento revela sobre uma desigualdade de acesso e tratamento pelas
instituições, ligada a um sentimento de impunidade. Tomando os compo-
nentes das poliarquias de O’Donnell (1998), resta claro que há um embate
entre a tradição do liberalismo, na defesa das garantias individuais, mais
afeta ao STF, e a do componente democrático, que se volta à questão da
igualdade, expressa pelos argumentos contra a “justiça dos mais fortes”, pa-
tente especialmente nos temas das algemas e das prisões de Dantas, e mais
ligado a um eixo de atuação conformado pela PF, MPF, JFSP.
Entre fato e sentido, ações e reações, a tessitura da narrativa aflora
uma noção de visibilidade vinculada a estratégias. Retomando Arquem-
bourg (2003), para quem o ritmo incessante de adoção coletiva dos acon-
tecimentos pela mídia comporta aspectos da cultura política de uma socie-
dade – um de caráter político, outro de caráter antropológico – a Satiagraha
permite perceber a dinâmica de formação de problemas públicos tão sin-
gulares como a questão das algemas, surgidos da excepcionalidade e da
visibilidade. E permite também dizer sobre as narrações que a sociedade
estabelece com os acontecimentos – neste caso, com aqueles que tratam
da corrupção, e que derrapam nas reações em torno de novos problemas
públicos, na suspeição gerada em torno da própria visibilidade.
A operação Satiagraha sinalizava em seu nome (seja “firmeza na ver-
dade” ou “resistência pacífica e silenciosa”) uma promessa de verdade, de
algo firme, resistente. No entanto, a sua marca de suspeição faz pensar sobre
os regimes de verdade ensejados. Diferentes instâncias e atores disputam,
a todo o momento, a palavra pública; os conflitos tecidos discursivamente
78
tornam-se crises, as opiniões, muitas vezes antecipadas, concretizam-se em
fatos, ou se tornam mais relevantes que estes.
Entendendo a disputa em torno da definição da verdade como uma
disputa de poder (Foucault, 1996), a Satiagraha aponta para um limite dos
regimes de verdade: quem, afinal, pode dizer sobre a corrupção? Quem
pode punir? Ou se trata de um assunto interditado? Esta é a “sombra” do
acontecimento: o lugar em que ele não chega, e que lá está; sua insistência.
Considerações finais
80
A Tragédia Kiss nas redes
de comunicação pública
(Santa Maria, 2013)
Bruno Kegler
Introdução
81
E creio que, através deste e de outros textos produzidos sobre a tra-
gédia, é possível manter o debate acerca dos temas de interesse público
relacionados a ela. É neste sentido que este empreendimento intelectual
se constitui, pela relevância acadêmica, ao abordar as noções de Redes de
Comunicação Pública e de Acontecimento Público, conceitos em constru-
ção, e social, por ter como objeto um acontecimento desta importância e
complexidade, que permite abordagens multidisciplinares e a produção de
conhecimentos em múltiplas áreas do saber.
Ocorrida em um estabelecimento de entretenimento formal, a tragé-
dia abala a credibilidade do Estado, instituições e governos, nos âmbitos
do município, do estado e do país, pois denuncia os limites da burocracia
e dos dispositivos estatais para proteger a vida. Situa-se, assim, a dimensão
biopolítica (Foucault, 2004) deste acontecimento público, porque, o Estado
– enquanto mediador entre a liberdade econômica e a igualdade demo-
crática, atua através da criação de leis para emoldurar normativamente as
ações e para regular os limites entre interesse público e privado. Além disto,
tem responsabilidade institucional, fiscalizatória e punitiva.
Nesta direção, a reflexão aqui proposta assume a hipótese de que as
Redes de Comunicação Pública, acionadas ou constituídas a partir da tra-
gédia, potencializam a visibilidade e o debate de temas limítrofes entre
interesses públicos e privados, relacionados a fatos anteriores ou poste-
riores ao incêndio. Desses processos comunicacionais realizados entre os
atores pertencentes às Redes, derivam novos sentidos que incidem sobre
o próprio acontecimento, pois suscitam respostas e reações, geram pactos
e disputas, visibilidades desejadas e indesejadas, em mídias hegemônicas
ou alternativas e, assim, contribuem para a sua constituição permanente.
Portanto, a visibilidade e o debate – em mídias hegemônicas e alternativas
–, através das versões e opiniões dos atores das Redes de Comunicação, são
tidos como decisivos para a configuração do acontecimento público.
Diante desses aspectos, o objetivo principal está em identificar e des-
crever os atores e as Redes de Comunicação que constituem o aconteci-
mento público Tragédia Kiss e, secundariamente, alguns dos processos
de visibilidade acionados por eles, seja em mídias tradicionais – televisão,
rádio e jornal impresso –, ou em mídias alternativas, como o tapume em
frente à boate, mobiliário urbano, ruas, banners, cartazes ou camisetas-,
ou em mídias digitais, como em perfis de sites de redes sociais criados por
grupos formados após a tragédia.
82
O artigo está subdividido em quatro seções principais. Na primeira,
faz-se a descrição da tragédia na boate Kiss; na segunda, a abordagem con-
ceitual de acontecimento público, tendo como referências, principalmen-
te, Quéré (2011b), Weber (2011) e Coelho (2013). Na terceira, a noção de
Redes de Comunicação Pública (Weber, 2007, 2011) e; por fim, a descrição
dos atores e das Redes de Comunicação Pública do Acontecimento Público
Tragédia Kiss.
O incêndio na boate Kiss2 teve início por volta das 3h, do dia 27 de ja-
neiro de 2013, na festa “Agromerados”, que iniciara no dia 26 e fora organi-
zada por estudantes dos cursos de Agronomia, Medicina Veterinária, Tec-
nologia de Alimentos, Zootecnia, Tecnologia em Agronegócio e Pedagogia,
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O fogo teria começado
quando o vocalista da Banda Gurizada Fandangueira – que se apresentava
no palco do salão principal – acendeu um fogo de artifício, que atingiu
uma espuma colocada acima do palco e era parte do sistema de isolamento
acústico da casa noturna.
Seguranças da boate e músicos tentaram conter as chamas com um
extintor de incêndio que estava próximo ao local, mas ele não funcionou.
Em alguns segundos, o ambiente foi tomado por uma fumaça escura, tó-
xica, desprendida pela queima da espuma que fora atingida pelas fagulhas
do artefato pirotécnico. As investigações revelaram que a espuma era im-
própria para o fim a que fora destinado, pois continha poliuretano, uma
substância tóxica e inflamável, que libera o cianeto, um gás letal, que teria
sido o causador das 242 mortes.
Além da inalação do gás de alta toxicidade, outros fatores teriam sido
decisivos para a letalidade do sinistro, dentre os quais, estariam a super-
lotação da casa noturna no momento do incêndio, a presença de grades
afixadas ao chão e que teriam obstruído a saída das vítimas, extintores de
incêndio inoperantes, o artefato pirotécnico inapropriado para o uso em
ambientes fechados, a falta de autorização para que este tipo de show fosse
realizado, sinalização precária da saída central e do acesso aos Sanitários, a
existência de uma saída apenas (quando deveriam ser, pelo menos, duas) e
a conduta dos bombeiros que realizaram o resgate e que teriam permitido
2 As informações sobre a tragédia aqui descritas seguem o relatório do primeiro inquérito Polícia Civil
(RS) sobre o incêndio da boate Kiss.
83
que alguns jovens entrassem no recinto para resgatar sobreviventes, sem a
proteção necessária.
No Brasil, em número de óbitos, a tragédia na boate Kiss só é superada
pelo incêndio no Gran Circus, em Niterói, no Rio de Janeiro (RJ), em de-
zembro de 1961, onde cerca de 500 pessoas perderam a vida. No mundo, é
o terceiro incêndio mais letal entre os ocorridos em casas noturnas, segun-
do a Associação Nacional de Proteção Contra Incêndios (NFPA), dos EUA.
Acontecimento público
86
tuições, grupos, igrejas, seitas que fazem circular discursos esotéricos,
espirituais, religiosos) e os sistemas de comunicação midiática (organi-
zações de produção e circulação de produtos jornalísticos, publicitários
e de entretenimento (Weber, 2007, p. 19).
Nas Redes de Comunicação Política, está a comunicação governamen-
tal, dos partidos, do Poder Legislativo, do Executivo e do Judiciário (Weber,
2007). É esta a Rede que detém melhor estrutura e organização – sendo que
o Poder Executivo é quem realiza mais investimentos em propaganda e em
mídias privadas, pois o Estado dependem da sua capacidade de comunicar,
esta que “obedece a estratégias políticas e institucionais relacionadas à ob-
tenção de visibilidade pública, prestação de contas e disputas de opinião,
apoio e votos” (Weber, 2011, p. 102). No âmbito dos três poderes – em
escala municipal, estadual e federal – há estrutura e profissionais responsá-
veis por realizar a divulgação de temas de interesse público, respeitando-se
as especificidades e demandas comunicacionais de cada um dos poderes
e instituições a eles vinculadas3. Integra-se a esta Rede, também, a comu-
nicação partidária, que tem viés essencialmente persuasivo e ancorado no
ideário que rege as ações e projetos de cada partido político.
As Redes de Comunicação Midiática são compostas pelos sistemas de
comunicação midiáticos. Tem centralidade pois é disputada pelos demais,
na busca por visibilidade e pela credibilidade, pelo seu poder de difusão e
legitimidade, sobretudo, do jornalismo. Porém, a visibilidade é condicio-
nada pela assimetria das Redes, quanto ao potencial de agendamento, e os
interesses corporativos dos grupos de mídia.
As Redes de Comunicação Social são formadas pelas “vozes da socie-
dade civil organizada, movimentos sociais, entidades de classe, instituições
de defesa, conselhos, sindicatos, associações, organizações não governa-
mentais, organizações voluntárias, grupos organizados etc.” (Weber, 2007, p.
26). Devido à dificuldade de alcançar a esfera de visibilidade midiática, pois
raramente detém estrutura técnica e profissional para comunicar, realizam
protestos e utilizam-se de mídias alternativas radicais (Downing, 2004).
As Redes de Comunicação Científica e Educacional são formadas por
Instituições de Ensino, de nível fundamental a pós graduação. Insere-se aí a
produção científica que promove o debate e a produção de conhecimentos
sobre temas relacionados à tragédia, nas diversas áreas do conhecimento.
Têm legitimidade social, pois vinculadas à noção de “neutralidade” do co-
nhecimento científico.
3 A descrição detalhada da tipologia das Redes está em Kegler (2016).
87
As Redes de comunicação Mercadológica são formadas por organiza-
ções privadas, que pertencem ao mercado de produtos de consumo. A sua
relação com a comunicação pública se dá, principalmente, por projetos que
envolvem responsabilidade social, que misturam, por exemplo, filantropia
e lucratividade.
As Redes de Comunicação Religiosa são formadas por instituições,
grupos, igrejas que produzem discursos esotéricos, espirituais, religiosos,
sendo que algumas possuem sistemas de comunicação próprios.
A diversidade de atores permite pressupor que a comunicação pública
não é prerrogativa exclusiva do Estado, ainda que os temas debatidos se en-
quadrem no horizonte dos problemas públicos (Quéré, 2011b) e cuja reso-
lução passe por suas decisões, no âmbito dos poderes executivo, legislativo
e judiciário. Para além disto, a comunicação pública constitui-se da circula-
ção de temas de interesse público, que representem uma coletividade, o que
inclui as tragédias e as pautas de grupos minoritários, por exemplo. Nesta
direção, defende-se que a
[...] comunicação pública não pode ser determinada, apenas, a partir de
legislação ou estruturas, mas é configurada pela circulação de temas de
interesse público, nos modos de debater e repercutir estes temas, sem
controle direto. Trata-se da comunicação pública constituída pela abor-
dagem e circulação de temas vitais à sociedade, ao Estado e à política,
vinculados a decisões só possíveis na representação política e na esfera
dos poderes públicos (Weber, 2007, p. 4).
Variam os temas que concorrem pela atenção e a abrangência, mas a
dinâmica comunicacional é contínua. A vinculação entre os atores é sim-
bólica, relacional, pelo interesse no tema debatido. Portanto, as Redes se
mantêm ativas em múltiplas arenas – físicas ou simbólicas – em que o de-
bate é desenvolvido. Pode-se ilustrar, que a difusão, nas Redes, é radial, a
partir de um ou mais pontos nodais que são o motivo da relação entre os
atores. Cada versão ou opinião está sujeita a reinterpretações e atualiza-
ções, as quais podem gerar novos comentários que alimentam a dinâmica
recursiva e mantém o debate permanentemente – ou até que se encontre o
consenso ou se esgotem as possibilidades discursivas – através da partici-
pação de outros atores e Redes.
Neste cenário comunicacional, não são desprezadas as assimetrias nas
relações entre os atores e as Redes. Pelo contrário, na definição de Weber
(2007), estes aspectos são preservados, pois ressalta que há competências
comunicacionais distintas entre os atores, de ordem técnica, profissional e
88
financeira. Competem na esfera pública, a fim de ilustração, grupos sociais
organizados e instituições estatais. Estas detêm sistemas formados pelos
meios (estrutura) e profissionais contratados para administrar a visibilida-
de, gerenciar a sua imagem, através da produção regular de notícias, moni-
toramento das informações circulantes e divulgação de campanhas para a
obtenção de apoio a projetos e decisões.
Além disto, as tensões entre os atores podem ser internas à mesma
Rede. Na Rede Política, é uma amostra a troca de acusações entre repre-
sentantes de diferentes instituições ou poderes, diante de um escânda-
lo político. Ademais, a visibilidade não se restringe à aparição na esfera
de visibilidade pública (Gomes, 2008), citando caso análogo. É decisivo,
também, o reconhecimento de cada instituição perante o público, poder
de agendamento da mídia, competências técnicas (produção de canais de
comunicação, posse de dispositivos de mídia, profissionais qualificados).
Assim, é de se esperar que as redes de comunicação do Estado tenham
ascendência sobre outras.
Dessas assimetrias e disputas, é pertinente o olhar alargado acerca da
esfera de visibilidade pública (Gomes, 2008), para além da cena midiáti-
ca, como o que Downing (2004) denomina de mídias alternativas radicais,
como camisetas e grafitismos. Opta-se, neste estudo, pela inclusão de mí-
dias não convencionais, as quais são mantidas à margem do debate acadê-
mico acerca das relações entre mídia política e sociedade, que privilegia os
meios de comunicação tradicionais de abrangência massiva.
Como questiona Machado (2004, p. 11), “que benefícios temos nós ao
discutir apenas os temas que a própria indústria hegemônica das mídias
propõe?” e, poder-se-ia complementar, restringindo-se apenas às caracte-
rísticas comunicativas e estratégicas dos meios hegemônicos, desprezando-
-se o reconhecimento e a análise das potencialidades dos demais. Articula-
da à noção de Redes, esta perspectiva permite situar a discussão no contexto
comunicacional em que o acontecimento Tragédia Kiss se constitui, pois
considera-se que a configuração do acontecimento público é processual e
condicionada pela visibilidade e pelo debate sobre os temas limítrofes entre
interesses públicos e privados relacionados a ele.
Além disso, ao referir a disparidade entre os atores das Redes quanto
ao potencial de agendar a mídia, está pressuposto o funcionamento regular
dessas relações, com a hegemonia do Estado (Kegler, 2016). Porém, com-
preende-se que tragédias como a da boate Kiss desequilibram estas relações
e hegemonia, pois o acontecimento impõe a sua força e urgência. Das rup-
89
turas que provoca, resta a suspeição quanto à credibilidade das instituições
tensionadas.
Por fim, a perspectiva das Redes (Weber, 2007), enquanto matriz teó-
rica, situa a relevância e função política desta no âmbito do espaço público
(Esteves, 2011), mas que ilumina a sua dimensão, em que as disputas em
torno de temas de interesse público não estão isentas de interesses parti-
culares. Além disto, a relevância da comunicação, relacional, com poder
vinculante e de mobilização e transformação social.
90
Oficiais do corpo de Bombeiros de Santa Maria – RS
Soldados e Sargentos de Santa Maria
Prefeito Cezar Augusto Schirmer
Servidores e secretários municipais
Poder Legislativo Federal
Poder Legislativo Estadual
Poder Legislativo Municipal
Partidos
Rede de Justiça Estadual – RS
Comunicação do Judiciário Justiça Militar – RS
Instituto Geral de Perícias (IGP-RS)
Ministério Público – RS
Rede de Veículos “n” Mídia local5
Comunicação Midiática Veículos “n” Estadual
Veículos “n” Nacional
Veículos “n” Internacional
Veículos e ações “n” Mídias alternativas
Rede de Universidade Federal de Santa Maria – UFSM
Comunicação Científica Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
Centro Universitário Franciscano – UNIFRA
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
Rede de Igreja Católica Apostólica Romana
Comunicação Religiosa Igreja Episcopal Anglicana do Brasil
Igreja Evangélica Luterana do Brasil
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
Templo Restauração
Espiritismo
Rede de Elissandro Spohr (Kiko)
Comunicação Mauro Hoffman
Mercadológica Marcelo de Jesus dos Santos
Luciano Bonilha Leão
Rede de farmácias São João
3M
5 Utilizou-se “n” para indicar que é um número indefinido, pois essa contabilização não foi realizada na aná-
lise das redes de comunicação pública. Entende-se que em cada episódio alguns veículos são acionados.
91
A seguir, são detalhadas as Redes e respectivos atores, situando a es-
pecificidade e a razão por que cada um deles é relevante à constituição do
acontecimento público Tragédia Kiss.
Figura 1:
Tenda da vigília da AVTSM
6 Atualmente, a AVTSM é presidida por Sergio da Silva, assessorado por Flavio José da Silva.
7 Disponível em <https://www.facebook.com/associacaovtsm/info?tab=overview>. Acesso em: 31 ago. 2015.
8 Disponível em: <http://avtsm.org/a-avtsm/>. Acesso em: 31 ago. 2015.
9 Em visita ao site e ao perfil no Facebook, no dia 19.02.2016, às 8h31, verificou-se que a última notícia
postada no site foi em 28 de outubro de 2015. Já o perfil no Facebook, continuava a receber atualizações.
92
2) Movimento Santa Maria do Luto à Luta: com o lema “meu parti-
do é um coração partido”, define-se como um movimento apartidário, que
objetiva a responsabilização de todos os culpados pela tragédia de Santa
Maria. Foi criado em 27 de fevereiro de 2013, por familiares e amigos das
vítimas da tragédia10. Entre os meios de comunicação utilizados pelo Mo-
vimento, está o perfil no Facebook, que é mantido atualizado11, camisetas,
banners e cartazes.
A imagem de capa12 da página no Facebook (Figura 2) contém a char-
ge produzida após o MP-RS ingressar com uma ação por danos morais
contra dois pais13 de vítimas da tragédia, devido à utilização de caricatura
do promotor de justiça que assinou o TAC da boate Kiss14, em 2011.
Figura 2:
Movimento do Luto à Luta
93
4) ONG Para Sempre Cinderelas: criada pelas mães de cinco víti-
mas da tragédia16, esta organização não governamental (ONG) objetiva o
auxílio a “instituições carentes e crianças com vulnerabilidade social, pro-
piciando uma infância sadia e uma melhor qualidade de vida17”, em conti-
nuidade à atividade que era desenvolvida pelas vítimas18, 19. Dispõe de site e
de página no Facebook como meios de comunicação.20
94
8) Movimento Carta ao Tribunal Penal Internacional (em Haia,
Holanda): criado para buscar a intervenção do Tribunal Penal Interna-
cional no caso da boate Kiss. A página do Facebook está em atividade e
atualizada.
95
canção “Cinzas ao amanhecer”30, produzida na primeira quinzena pós-
-tragédia31, 32.
Além das mídias já referenciadas, das quais se destaca a criação de
páginas no Facebook, outras foram utilizadas pelas Redes de Comunicação
Social. É ilustrativo, nesta direção, o grafite realizado na fachada do pré-
dio33 da boate e as silhuetas de corpos (figura 3)34, 35, 36 pintadas em frente à
sede da Prefeitura Municipal de Santa Maria e da boate Kiss.
Figura 3: Mobilização
para pintura de silhuetas
de corpos
96
Figura 4: Grafite: proprietários e Estado – “omissão mata”
Essas mensagens propõem sentidos a quem passa pelo local e são re-
plicadas nas páginas das mobilizações sociais, além do potencial de agen-
darem a Rede Midiática, especialmente nas datas alusivas à tragédia. Por
fim, duas imagens produzidas pelo autor, (Figuras 5 e 6) durante as home-
nagens do mês de janeiro de 2015, dois anos desde o incêndio, que regis-
tram pétalas de rosas sendo lançadas de um helicóptero sobre as pessoas
que participavam do ato.
97
Além do simbolismo visível em um texto verbal ou icônico, é possível
relatar as emoções que os sons deixados pelo dia 27 de janeiro de 2013, re-
presentados na figura 6, deixaram na memória dos santa-marienses. Nesta
homenagem, o som do helicóptero que largava sobre o público as pétalas
de rosa relembrava o resgate, as sirenes, aviões e helicópteros com desti-
nos aos mais diversos hospitais do Estado para socorrer as vítimas. Entre
o desejado e o indesejado, está também o incontrolável, seja por parte das
instituições, como por parte dos atores constituintes da Rede e até mesmo
pela sociedade que se comove.
Quadro 2: Mídias
98
Rede de Comunicação Política – São considerados os atores que repre-
sentam os poderes Executivo e Legislativo, nos âmbitos municipal, esta-
dual e federal, além de instituições autônomas que não estão vinculadas a
nenhum destes poderes, nem ao Judiciário. Incluem-se instituições, servi-
dores públicos e representantes governamentais identificados em pesquisa
documental.
Mesmo que reunidos em um mesmo tipo de Rede, está pressuposta a
diversidade de atores e as especificidades comunicacionais de cada poder\
instituição. Assim, é possível perceber, no caso em tela, as divergências en-
tre os poderes municipal e estadual, entre instituições policiais e poder exe-
cutivo, por exemplo, expostas via mídia e levadas ao escrutínio da opinião
pública. Por isso, a descrição dos atores a seguir divide-se em Poder Exe-
cutivo e Poder Legislativo, e estão individualizados os atores identificados.
99
Para ilustrar os dois horizontes, em primeiro, na passagem por Santa
Maria, o ex-governador garantiu que haveria rigor nas investigações e que
todos os responsáveis seriam punidos40. Por outro lado, protagonizou troca
de acusações com o ex-prefeito de Santa Maria, quanto à responsabilidade
dos dois poderes sobre a tragédia.
3.2) Polícia Civil: órgão de segurança pública que tem a atribuição de
apurar infrações penais, excetuando-se as militares. Na Tragédia Kiss,
realiza as investigações que resultam em três inquéritos nos quais
constam as solicitações de indiciamento dos possíveis responsáveis.
O Delegado Marcelo Mendes Arigony Junior, titular da 3ª Delegacia
de Polícia Regional, com sede em Santa Maria, quando ocorreu a tra-
gédia, esteve à frente das investigações que apuraram os responsáveis
pelo sinistro. Além das falas e ações institucionais, utilizou o seu perfil
no Facebook para repercutir as investigações e para dialogar com os
familiares das vítimas, durante as investigações.
3.3) Corpo de Bombeiros: subordinado à Brigada Militar-RS, tem
como competência41 “a prevenção e o combate de incêndios, as buscas
e salvamentos, as ações de defesa civil e a polícia judiciária militar”.
O Corpo de Bombeiros de Santa Maria prestou o resgate às vítimas.
Além disto, na data do incêndio, o alvará que é expedido pelo Corpo
de Bombeiros estava vencido.
3.3.1) Os soldados e sargentos de Santa Maria: devido à possível res-
ponsabilidade relacionada à emissão de alvarás. Todos os sargentos e
soldados foram absolvidos pela Justiça Militar.
100
a crítica ao relatório do primeiro inquérito elaborado pela Polícia Civil,
que classificou como “aberração jurídica”; a troca de acusações com o
ex-governador do RS e com o ex-delegado regional de Polícia Civil de
Santa Maria; as divergências com o ex-secretário de Comunicação e Re-
lações de Governo; a ordem de retirada da tenda da vigília.
4.2) Servidores e secretários municipais: tiveram a solicitação de in-
diciamento pela Polícia Civil-RS, por estarem ligados às Secretarias
responsáveis pela emissão de licenças. Incluem-se, também, aqueles
que foram exonerados ou pediram exoneração em fatos que resulta-
ram da tragédia, como a CPI da Kiss.
5) Poder Legislativo Federal: torna-se um ator desde a criação de uma
comissão externa da Câmara dos Deputados Federais, no início de feverei-
ro de 2013, para acompanhar as investigações do incêndio na boate Kiss e
para elaborar um projeto de prevenção contra incêndio que seja normati-
vo em todo o país. Entre os fatos que reverberaram nas Redes, está o Se-
minário organizado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que
marcou a passagem dos mil dias desde a tragédia e reuniu parlamentares
da Câmara e do Sendo Federal, representantes públicos das áreas da saúde,
segurança e justiça, familiares das vítimas, entre outros.
102
Rede de Comunicação Científica – São relacionadas as Instituições de
Ensino Superior das quais encontramos produções científicas, na área da
Comunicação Social, ou que sediaram Congressos ou Seminários para o
debate acerca da tragédia. São elas:
• Centro Universitário Franciscano (Unifra);
• Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc);
• Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos);
• Universidade Federal de Santa Maria (UFSM);
• Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Entre as atividades destacadas, está o 1º Congresso Internacional No-
vos Caminhos, realizado de 25 a 27 de janeiro de 2014, organizado pela
AVTSM, em que a Rede de Comunicação Científica participou com o
lançamento de um livro, no dia 26, que reuniu pesquisadores da área da
Comunicação, organizado pela professora Ada Cristina Machado Silveira
(UFSM).
Considerações finais
105
Fórum Social Mundial: a rede das redes
Introdução
Tecnologias da mobilização
1 A autora esteve nos Estados Unidos como bolsista Fulbright/Turner/Capes durante o ano de 2003 de-
senvolvendo um projeto de pesquisa pela Comissão Fulbright.
112
Como o material no acervo não poderia ser pesquisado por palavra-
-chave, apenas pela indexação por data, a construção da amostra para aná-
lise partiu de uma busca realizada na Internet. A pesquisa foi feita com o
buscador LEXISNEXIS, em maio de 2003, na categoria Wolrd News. Os
achados apontaram uma cobertura de 130 reportagens em 27 veículos in-
ternacionais em 2001, considerando o período do evento, sete dias ante-
riores e sete dias posteriores. O resultado para a edição seguinte, em 2002,
indicou 219 reportagens publicadas em 37 veículos de mídia de massa in-
ternacionais. Um crescimento de 60% no volume de textos publicados.
Pela impossibilidade de mergulhar em todo universo descoberto, a
pesquisa precisou recortar um conjunto de textos menor e relevantes. Fo-
ram selecionados dois jornais impressos representativos da mídia inter-
nacional de países desenvolvidos e dois jornais de países em desenvolvi-
mento. São analisadas todas as reportagens publicadas entre os dias 24 de
janeiro de 2002 e 8 de fevereiro de 2002. Foram escolhidos os seguintes
veículos: New York Times (NYT), jornal de circulação nacional nos Estados
Unidos, com três textos; Globe and Mail (G&M), jornal de língua inglesa de
grande circulação no Canadá, com um registro; Folha de S.Paulo, jornal de
grande circulação no Brasil em 2003, com 47 notícias, e El Nacional, jornal
com grande alcance de leitores na Venezuela, com 11 peças. Também foi
considerado um dos jornais de representatividade local, o Zero Hora, com
192 textos publicados. Foram consultados ainda Toronto Star (Canadá) e
The Washington Post (EUA) que não mencionaram o evento no período. O
Estado de S.Paulo publicou no período 34 reportagens sobre o FSM, mas
acabou não entrando no critério de recorte da pesquisa. Foram ainda in-
cluídos na análise 31 textos publicados no site oficial do evento, no canal de
notícias, no mesmo período. Ao todo foram coletados 254 textos de jornais
impressos e 31 de internet.
O instrumento de análise se estabelece com base no mecanismo ela-
borado por Tankard (2001) chamado de lista de enquadramentos identifi-
cados pelas seguintes variáveis: espaço de representatividade (espaço ocu-
pado na página), editoria (capa, política, economia, internacional), tema
(comportamento, personificação, conteúdo) e vozes (notáveis, anônimos,
desconhecidos, organização).
As categorias selecionadas para a observação são as janelas abertas
para direcionar o olhar do pesquisador para a produção de sentido a partir
dos recortes de imprensa. O olhar aleatório não garantiria a acuidade ne-
cessária para um percurso de pesquisa racional e justificado pelo método.
113
As variáveis adotadas encorparam um formulário estruturado a partir do
qual pode-se enquadrar a análise.
De partida, havia um disparate grande no critério volume de textos
publicados, pois o jornal Zero Hora, com 192 registros, destoava dos demais
analisados. O segundo colocado em volume de publicação fora o jornal
Folha de S.Paulo, com 47 textos. Nem mesmo o site oficial do evento teve
tanto volume de material para análise, somando 31 peças. Ao considerar
a linha editorial do veículo, bastante focada em notícias regionais, o crité-
rio de noticiabilidade proximidade sobressaiu-se como fator determinante
para a adoção das pautas. Também o fato de a FSP possuir correspondente
em Porto Alegre possa ter sido decisivo para a frequência da cobertura.
A riqueza desse volume permite também outra inferência: a quantidade
de textos publicados indica uma forte apropriação do acontecimento pelo
jornal ZH. Essa tomada do evento pelo viés do veículo permite um enqua-
dramento próprio, escolhas de abordagem e ressignificações.
Uma das evidências dessa apropriação está no tamanho dos textos nos
jornais impressos. Dos 254 textos analisados, 146 ocuparam menos de um
terço da página. Na época, iniciava uma tendência de jornais impressos
para fragmentação das coberturas em pequenas notas em formato de “diá-
rio de bordo”. Apenas 30 textos ocuparam uma página inteira dos veículos
o que permitiria, em tese, um tratamento mais aprofundado do assunto,
sendo que algumas páginas foram ocupadas parcialmente por fotografias.
Uma questão interessante para destacar desse conjunto de análise está
na categoria editoria. A maior parte (100 textos) foi produzida nas edi-
toriais de Política, no entanto, observa-se uma mobilização das próprias
empresas e seus articulistas para expor um posicionamento crítico sobre o
evento em editoriais e colunas de opinião. Foram 42 textos com o cunho
opinativo. Outro indicativo de apropriação e ressignificação do aconteci-
mento, a cobertura ocupava não apenas as páginas de reportagem, mas
mobilizava espaços de articulistas, colunistas e editorialistas para reflexão
sobre aquele fato e seus significados. Os jornais NYT e El Nacional localiza-
ram as notícias publicadas na editoria de Internacional.
A análise de fontes escolhidas para as notícias também é bastante sig-
nificativa. Grande parte dos textos, 116 ao total, o que corresponde a 45,7%,
utilizou como fonte nominal um intelectual, um escritor, um político, um
professor universitário, ou seja, uma pessoa na categoria de “notáveis” para
a sociedade. Também os textos analisados no site do evento trazem a mes-
ma característica, todos eles tiveram como fonte pelo menos um notável.
114
Recorreu-se à classificação de Serra (2002) para as vozes apresentadas na
mídia com a metáfora estrelas, pessoas com reconhecimento social, e me-
teoros, pessoas de oportunidade fugaz. Observa-se que famosos e notáveis
foram mais acessados pelos jornalistas do que anônimos e desconhecidos.
As vozes de representação do FSM permitiram uma transferência de le-
gitimidade dos campos de conhecimento e social para o evento do qual
participavam.
Em uma reflexão mais ampla, pode-se observar que a cobertura na
mídia impressa adotou as seguintes características: fragmentada, imagé-
tica, comportamental ou personificada e legitimadora. Já os textos no site
puderam ser considerados: temáticos, personificados e factuais.
A fragmentação caracteriza-se pelo espaço reservado aos textos sobre
o acontecimento, normalmente pequenos, curtos e recortados. Mesmo em
página inteira, a diagramação dispunha os textos em pequenas retrancas
intercalados com fotos. A predominância imagética é notada não apenas
na elaboração dos textos, mais descritivos, mas também nas fotos que ilus-
tram particularidades atribuídas aos participantes do evento. A questão
comportamental e personificada esteve ligada à elaboração de textos perfis
sobre participantes ou mesmo fatos vinculados a um personagem que obte-
ve saliência no debate, como foi o caso do ativista francês José Bové – que,
em 2001, durante o evento, liderou a invasão a uma lavoura de soja trans-
gênica no Rio Grande do Sul. Outras personalidades tratadas como centro
da cobertura jornalística foram os políticos do Partido dos Trabalhadores,
Marta Suplicy e o então futuro presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Sil-
va. Mesmo quando a abordagem tinha cunho de personificação, boa parte
dos entrevistados pode ser incluída entre fontes notáveis. A visibilidade
que os jornais atribuíram a vozes de intelectuais, escritores, políticos e pes-
quisadores foi decisiva para legitimar o FSM.
No quesito legitimação por meio de vozes de notáveis não se obser-
vou diferença entre as fontes acessadas pelas notícias publicadas no site
do evento e aquelas dos jornais impressos. Percebe-se que voluntária ou
involuntariamente houve uma transferência de fontes do espaço da orga-
nização do evento para os veículos. A grande diferença talvez esteja no re-
curso textual, pois os textos do site postaram temáticas mais densas, com
entrevistas aprofundadas e aspas mais extensas das fontes. Também houve
uma preponderância de cobertura dos fatos e discussões do dia, sem rela-
cionar a agenda prévia de divulgação dos eventos ou avaliação posterior do
encontro. É necessário considerar uma variável relacionada à característica
115
própria do meio internet que não possui limitação de espaço para publica-
ção, ou seja, todo o texto que houver e for pertinente pode estar publica-
do. Nos jornais impressos, os espaços são limitados pela diagramação das
páginas, nas quais os textos são determinados pelo entorno de divisão de
editoriais, anúncios, retrancas, títulos, projetos gráficos, em permanente
concorrência com as mudanças provocadas por notícias de última hora.
Outras duas diferenças mais evidentes extraídas da análise do site e
dos jornais são abordagem e visibilidade. Os veículos de imprensa, ao dar
ênfase para notícias sobre comportamento e personificação, deixam de
abordar a densidade das temáticas em debate. Ao enquadrar gestos, ati-
tudes, protestos, descrições de ambiente, leva-se o leitor a uma apreensão
imagética, mais leve do evento, ocultando a cobertura de debates políticos
e sociais disponíveis no site do evento.
No entanto, a visibilidade atribuída ao FSM nos jornais analisados foi
importante para a legitimação do evento que se desloca da esfera social e
ganha espaços na esfera midiática e política. No início dos anos 2000, os
acessos aos conteúdos na internet eram restritos a poucos ambientes, por-
tanto o grande capital simbólico do FSM foi construído sobre a visibilidade
ganha de forma espontânea na cobertura jornalística de veículos de massa.
119
Comunicação radical e democracia direta
As ocupações universitárias (Brasil, 2016)
Introdução
121
quais as mídias radicais alternativas escolhidas e quais os discursos veicu-
lados através destes suportes. Toda ação coletiva se dá através da utilização
de um ou mais repertórios. Assim, procurou-se refletir sobre as potencia-
lidades e as dificuldades em alcançar visibilidade e produzir sentidos du-
rante esta forma de luta política tão difundida nos últimos anos em vários
países do mundo: a ocupação.
1 Entretanto, Esteves (2011) admite que este espaço público plebeu nunca chegou a se consumar de fato, tendo
servido muito mais para pressionar o espaço público burguês a assumir bases mais democráticas e inclusivas.
123
nística e argumentação, são princípios orientadores, normativos das dinâ-
micas comunicacionais, e não se revelam necessariamente na prática social
de maneira constante, equilibrada e homogênea. Mas ao entendermos que
o ambiente de ocupação de uma universidade é um espaço de exceção onde
se pratica uma espécie de democracia direta, adequado à circulação e à
produção de comunicação pública, cabe investigar que comunicação é essa
que está sendo produzida por estes movimentos, a que público ela visa, de
que formatos e discursos ela se utiliza, como ela é operacionalizada.
125
tos, todos eles são performances públicas, pois tomam corpo em espaços
públicos e buscam visibilidade para atingir a públicos específicos. Mas,
para o autor, os repertórios que provocam ruptura são a arma mais forte
destes grupos, empoderando atores fracos em seu litígio contra oponentes
poderosos. Muitos movimentos que iniciam com repertórios de ruptura
acabam se institucionalizando e perdendo o caráter contencioso. Outros
dão um passo mais radical e passam a praticar atos violentos, cansados
de serem ignorados ou criminalizados pela mídia e reprimidos pela força
bruta do Estado. A deflagração de um conflito, portanto, talvez não seja o
mais difícil, mas sim mantê-lo por tempo suficiente para que seus objetivos
sejam atendidos. Como destaca Tarrow (2009, p. 130), “Sustentar a ruptura
depende de um alto nível de compromisso, de manter as autoridades em
desequilíbrio e de resistir à atração tanto da violência quanto da conven-
cionalização”.
Os repertórios escolhidos para a luta política são, geralmente, herda-
dos de outras situações de confronto e sofrem adaptações de acordo com
a ocasião, o grau de força do oponente e o objetivo a ser alcançado (Tilly;
Tarrow, 2008, p. 40). Esta escolha também é influenciada pela História e
por uma espécie de herança genética cultural:
Os trabalhadores sabem como fazer greves porque gerações de traba-
lhadores as fizeram antes deles; os parisienses erguem barricadas por-
que as barricadas estão inscritas na história do confronto parisiense;
os camponeses tomam terras portando símbolos que seus pais e avós
usaram no passado (Tarrow, 2009, p. 40).
Símbolos, canções, bandeiras, palavras de ordem, objetos portadores
de discurso como cartazes e faixas são expressões de comunicação radical
presentes em diversos tipos de repertório, são heranças culturais de lutas
políticas ancestrais. Dificilmente em uma marcha por direitos civis, polí-
ticos ou sociais, por exemplo, não se escute o grito O povo unido, jamais
será vencido. Ou ainda, no caso das cores, raros são os movimentos pro-
gressistas que não se utilizem do vermelho como tom predominante. Os
repertórios passam por períodos de maior utilização e por fases em que
são esquecidos ou preteridos, em detrimento de outros considerados mais
eficazes. E difícil precisar quais as razões pelas quais, em determinado mo-
mento histórico, se tornam tão populares que podem chegar até à banali-
zação, tal a frequência com que são utilizados. Segundo Tarrow (2009, p.
136), “Quando uma nova forma é ‘descoberta’, sua adequação a uma nova
situação torna-se imediatamente óbvia, é amplamente adotada, espalha-se
126
rapidamente e dá a impressão de ser uma inovação dramática”. No caso das
marchas no Brasil, citadas anteriormente, elas certamente sofreram uma
influência das que haviam ocorrido em 2013 – independentemente das ra-
zões que as geraram. Mas pode-se dizer que a frequência com que foram
adotadas fez com que perdessem um pouco do impacto que causaram, tan-
to em junho de 2013 quanto em março de 2015.
Embora o imaginário sobre os protestos de 2013 tenha registrado aci-
ma de tudo as mobilizações de dezenas de milhares de pessoas percorrendo
as principais ruas das principais cidades brasileiras, as ocupações causaram
um impacto muito grande na continuação daqueles conflitos, especialmen-
te nos meses de julho e agosto. A Câmara dos Vereadores de Santa Maria,
no interior gaúcho, foi o primeiro centro de poder político ocupado naque-
le ano – o único ainda no mês de dezembro5. Nas semanas seguintes, deze-
nas de outras sedes dos poderes legislativos municipais e estaduais também
foram ocupadas, em diversas cidades brasileiras. A forte repressão das polí-
cias locais e a criminalização de manifestantes fez com que o emprego deste
repertório arrefecesse, já que a permanência em um local físico delimita-
do favorece tanto a identificação quanto a prisão dos ativistas. Mesmo em
2014, durante protestos contra a realização da Copa do Mundo, as marchas
foram o repertório mais escolhido – ainda que não se tenha conseguido
repetir os números espetaculares do ano anterior. Mas, como veremos a
seguir, a ocupação como forma de ação coletiva foi retomada com força no
final de 2015 por jovens estudantes de escolas públicas paulistas, causando
novas tensões com o Estado e dando um sopro de renovação na história
dos conflitos políticos no Brasil.
A ocupação é um repertório de confronto disruptivo, que tem sua
força na quebra das atividades do cotidiano e na atenção midiática que
tal ação deseja atrair. Nos últimos anos, tem sido uma das ações coletivas
mais empregadas por grupos de ativistas pela educação em vários países
do mundo, mas podemos remontar a várias décadas para encontrar pre-
cedentes. Estudantes negros ocuparam faculdades dos Estados Unidos na
década de 1960, em protesto contra políticas segregacionista e a cultura do
racismo. Jovens de várias etnias tomaram universidades norte-americanas,
na mesma época, em desagravo ao presidente Richard Nixon e em posição
5 Outra peculiaridade interessante no caso de Santa Maria é que, ao contrário das ocupações que vieram
logo a seguir e que eram formadas majoritariamente por jovens, na cidade do interior gaúcho boa parte
dos ocupantes era de pessoas de meia-idade ou mais. Tratava-se de pais de jovens mortos no incêndio
da boate Kiss, ocorrido poucos meses antes, e que se juntaram aos manifestantes do transporte público,
unificando as lutas e dando força ao movimento, além de uma legitimidade simbólica maior à ocupação.
127
contrária à Guerra do Vietnã. Os repertórios se difundem como que por
contágio. Mais recentemente, no Chile, em 2006 e 2011, e no Canadá, em
2013, também ocorreram ocupações de escolas e universidades por parte
de estudantes.
Geralmente as ocupações são programadas, previamente combinadas.
Mas podem também ser um repertório de momento, eleito no calor dos
acontecimentos, como aconteceu em maio de 2011 em Madri. Após uma
marcha que percorreu diversas ruas e reuniu dezenas de milhares de pes-
soas, chegando na Puerta del Sol, marco simbólico da capital espanhola,
alguns grupos decidiram passar a noite e então teve início a Acampada de
Sol, que deu origem a diversos coletivos e inspirou movimentos semelhan-
tes em muitas cidades espanholas. Diferentemente das marchas, onde o
número de participantes é fundamental para o objetivo que se quer atingir,
na ocupação ele não é determinante para o sucesso ou não da ação. É claro
que, normalmente, o objetivo pode ser mais facilmente alcançado com um
número grande de pessoas, além da importância simbólica de uma ampla
adesão ao movimento, mas poucos ativistas podem realizar a ocupação de
prédios importantes e/ou áreas bem significativas, principalmente se não
enfrentarem resistência física no momento.
No caso da ocupação da Faculdade de Biblioteconomia e Comuni-
cação (Fabico) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)6,
sessenta alunos7, em um total de 1.410, paralisaram praticamente todas as
atividades administrativas e letivas da faculdade durante 53 dias; subver-
teram a rotina universitária; transformaram salas de aula em dormitórios,
cozinha e sala de imprensa; impuseram restrições e regras para a entrada
de pessoas no prédio – inclusive seus superiores hierárquicos professores
–, criaram novos horários e agendas de atividades para a instituição, com
aulas propostas por eles ou por simpatizantes e voluntários, oficinas, reuni-
ões ordinárias e extraordinárias – abertas ao público ou restritas apenas aos
ocupantes; organizaram apresentações musicais, teatrais, saraus; estabele-
ceram regras de convivência para eles mesmos; debateram diariamente te-
mas como o racismo, a homofobia, as cotas, a política nacional; e, enquan-
to ocupantes sustentando uma situação de confronto, demandaram pautas
6 A ocupação foi definida em assembleia convocada pelo Centro Acadêmico de Biblioteconomia, Arqui-
vologia e Museologia (CABAM) e pelo Diretório Acadêmico da Comunicação (DACOM) e realizada
no dia 31 de outubro. Assinaram a Ata de presença 170 pessoas, entre alunos da graduação, pós-gradu-
ação, professores e demais servidores.
7 O movimento contabiliza em sessenta as pessoas que de fato se engajaram de corpo e alma na ocupação.
Mas considera que o número pode superar os 150 se levarem em conta pessoas que não dormiam, mas
compareciam regularmente em outros períodos, além dos que prestavam outros tipos de ajuda.
128
importantes dos poderes públicos, tanto o federal quanto às direções da
faculdade e da universidade.
8 O Movimento Brasil Livre, que ganhou projeção nacional a partir de 2014, é uma organização nacional
de ativismo político. Já o Desocupa UFRGS foi um movimento criado por alunos da Universidade con-
trários às ocupações dos prédios.
9 Em algumas escolas da periferia da capital paulista, pessoas de fora da ocupação invadiram e depreda-
ram os prédios. Os alunos-ocupantes foram acusados pelo governo de terem vandalizado as escolas que
ocupavam.
10 Sobre isso, é interessante observar outro padrão no recente ciclo de confrontos políticos ao redor do
mundo. Em todos os países que enfrentaram protestos desta grandeza, leis foram criadas para dificultar
a ação coletiva. No Brasil, ainda no calor dos acontecimentos de 2013, alguns municípios aprovaram
leis proibindo, por exemplo, o uso de máscaras em manifestações. Em março de 2016, a ex-presidenta
Dilma Rousseff decretou e sancionou a Lei nº 13.260, chamada de Lei do Terrorismo e tida por movi-
mentos sociais como uma maneira de inibir a aplicação de repertórios de ação direta e luta política. Na
Espanha a Lei de Segurança Cidadã proíbe, desde dezembro de 2014, reuniões em locais púbicos e a
ocupação de praças. Estados Unidos e Ucrânia, entre outras nações, também criaram dispositivos legais
semelhantes após ondas de protestos nos últimos anos.
129
de detenções ou tentativas de criminalização do movimento. Assim que a
Ocupa Fabico começou, os alunos foram contatados pelo Comitê de Apoio
às Ocupações (CAO) que realizou duas visitas ao prédio. Um cartaz no sa-
guão da ocupação continha os telefones dos advogados, caso surgisse uma
urgência.
As ocupações de universidades brasileiras têm demonstrado seme-
lhanças, tanto entre elas como com outras experiências recentes em di-
versos países, que permitem listar alguns padrões neste repertório de
confronto. Devido ao caráter estritamente coletivo desta ação, ela implica
necessariamente em uma distribuição de tarefas e na formação de comis-
sões. Durante o Occupy Wall Street, por exemplo, foram organizadas
[...] biblioteca, cozinha e clínica médica gratuita, equipes de transmissão
de vídeo pela internet, comitês de artes e entretenimento, pelotões de
limpeza, e assim por diante. Em pouco tempo, 32 grupos de trabalho se
formaram, do grupo da Moeda Alternativa a uma convenção dos falan-
tes de espanhol. Assembleias gerais eram realizadas diariamente às 15h
(Graeber, 2015, p. 72).
Na Ocupa Fabico foram criadas seis comissões, definidas nas primei-
ras horas de ocupação. As quatro primeiras eram voltadas para a logística
interna da permanência no prédio: Comissão de Alimentação; Comissão
de Segurança; Comissão de Limpeza e Comissão de Organização (respon-
sável por saber quantos vão dormir, providenciar colchões, arrumar o sa-
guão para as atividades como aulas e oficinas etc). As outras duas comissões
eram voltadas para a imagem pública e a relação do movimento com outros
públicos: Comissão de Comunicação e Comissão de Articulação (respon-
sável pelas questões institucionais ligadas à ocupação em si, como reunião
com professores, com os diretores da Faculdade e com a Reitoria). Os alu-
nos se ofereceram para integrar as comissões de acordo com suas aptidões.
A horizontalidade não é um fenômeno novo na história da luta po-
lítica. Segundo Gitlin (2012), desde a segunda metade do século XX, nos
Estados Unidos, isso tem ocorrido cada vez com mais frequência. De ins-
piração anarquista, o modelo baseia-se essencialmente na recusa de que al-
gumas pessoas possam usufruir de mais legitimidade que outras na tomada
de decisões: “Desde os anos 70 ativistas se revoltam contra a autoridade de
quem quer que seja, inclusive deles próprios” (Gitlin, 2012, p. 83). Em pra-
ticamente qualquer ocupação recente que se analise, veremos um número
impressionante de assembleias gerais, numa tentativa de instituir processos
de democracia direta que não apenas determinem o funcionamento inter-
130
no dos movimentos, mas que também sirvam de parâmetro para a nova
sociedade que se deseja atingir, com a participação direta dos envolvidos
substituindo o sistema representativo.
Este modelo horizontal é experimental, definido muito mais no calor
do acontecimento do que a priori, embora certas heranças culturais já deem
de início uma ideia do tipo de movimento que se quer construir. Por estas ca-
racterísticas, tende a ser aprimorado à medida que as ações vão transcorren-
do. Um dos problemas sentidos por alguns ativistas-pensadores que partici-
param do Occupy Wall Street, por exemplo, foi o excesso de deliberação: “Era
antidemocrático debater pequenas questões por três horas” (Gitlin, 2012,
p. 96-97). Naquela situação, foi decidido logo nos primeiros encontros que
nada seria votado; o método seria trabalhar pelo consenso, buscando chegar
a uma síntese que de alguma maneira contemplasse toda a assembleia. Mas a
estes encontros às vezes iam mais de mil pessoas, tornando algumas discus-
sões pouco produtivas. Segundo Gitlin (2012), algumas poucas pessoas às
vezes bloqueavam o consenso, estendendo as reuniões por longos períodos.
Na Ocupa Fabico, as assembleias funcionavam com um debate sobre os te-
mas, na primeira parte, e em seguida vinham as votações.
Outra característica do modelo horizontal é a inexistência de líderes,
pelo menos de maneira explícita. Buscando coerência ao não reproduzir
internamente o que criticam no sistema político vigente, a representação,
os movimentos nomeiam porta-vozes quando há necessidade de algum
tipo de exposição externa. Mas, na prática, esta recusa formal de eleger
lideranças, apresenta contradições, uma vez que naturalmente algumas
pessoas, por questões de carisma pessoal ou mesmo de ideias que costu-
mam ser bem recebidas pelo grupo, passam a ser vistas como referências
importantes no movimento. Como bem coloca Gitlin (2012, p. 101-102),
[...] em todos os grupos sociais os líderes aparecem. Eles surgem no cur-
so da ação, quando emergem os atos de liderança. [...] Alguns são rotu-
lados assim, outros não. Alguns aceitam o rótulo, outros não. Aqueles
que conquistam uma reputação de liderança são tratados como líderes.
É simples (e complicado) assim: Líderes são pessoas que os outros se-
guem – admiram, prestam atenção, reconhecem.
No caso da ocupação da Fabico, sempre houve relutância por parte dos
alunos de assumirem uma posição de liderança, ainda que alguns tivessem
uma ascendência natural sobre os colegas. Isso se dava por duas principais
razões: medo de perseguições e represálias por parte de autoridades da pró-
pria universidade ou mesmo das forças de repressão do Estado; e receio em
131
ferir o estatuto informal da ocupação, que prezava a horizontalidade e as
tomadas de decisão numa espécie de democracia direta. Raramente o mes-
mo ocupante era escalado para mais de uma entrevista, ou para qualquer
atividade externa que implicasse em algum tipo de exposição pública – ex-
posição que pode ficar bem maior quando são postados vídeos em redes
sociais como o youtube e o facebook. Por um lado, os movimentos precisam
de visibilidade, por outro, receiam a criminalização e a demasiada persona-
lização do grupo a um integrante em particular.
Mas ainda que nenhuma das Ocupas UFRGS tenha designado líde-
res oficiais, o jornal Zero Hora publicou matéria mostrando quem seriam,
supostamente, alguns dos líderes do movimento11. A reportagem destaca-
va três estudantes, todos eles ligados a partidos políticos de esquerda. Na
Ocupa Fabico, por exemplo, havia alunos-ocupantes ligados ao PSOL e ao
PT. A filiação a um partido costuma ser apontada pela mídia como uma
mácula na militância social. Esta necessidade midiática de individualiza-
ção de uma ação coletiva, de personificação de um grupo social é bem ilus-
trada por Gitlin (2012, p. 103): “O aparato das celebridades necessita delas,
procura-as e as encontra”.
132
filtro econômico, “os formatos de baixo custo tornam-se ainda mais cruciais
para a cultura e o processo democrático” (Downing, 2004, p. 91). O cartaz
é uma mídia radical alternativa largamente utilizada pelos movimentos de
resistência ao longo da história. Adequado para qualquer tipo de discurso
(irônico, firme, satírico, agressivo, poético) e expressão visual (foto, dese-
nho, pintura, grafia), é amplamente utilizado em repertórios como marchas
e ocupações. Também funciona bem ao ser reproduzido através dos meios
visuais como o vídeo e a fotografia, o que aumenta o alcance e o público do
seu discurso12.
Cartazes e faixas eram os principais elementos de identificação visual
das Ocupas da UFRGS. As mensagens veiculadas nestas mídias eram as
primeiras a serem comunicadas pelo público que chegava aos prédios ocu-
pados. Era o cartão de visitas do movimento, a declaração de conquista do
território. No caso da Fabico, uma enorme faixa pintada pelos ocupantes,
presa na fachada de frente do edifício – e perfeitamente compreensível da
rua, a 200 metros de distância – dizia “FABICO OCUPADA CONTRA A
PEC 55”. Outras faixas menores e visíveis apenas a metros da entrada (mas
cujo público era aumentado ao serem fotografadas e reproduzidas no fa-
cebook) diziam “#Ocupa Fabico contra PEC 55”, “Fora Temer”, “Ocupar e
resistir” – uma espécie de grito de guerra utilizado como um referencial de
identidade por todas as ocupações recentes no Brasil. Já com o propósito de
comunicação radical lateral (Downing, 2004), eram aficionados nas paredes
internas do prédio diversos cartazes contendo regras de convivência (como
normas de limpeza, proibições de bebidas alcóolicas e outras substâncias,
horários das reuniões etc.), cartazes com demonstrações de afeto, críticas
ao funcionamento da universidade, coisas que gostariam de mudar na ins-
tituição e no país, e assim por diante13.
Desde o início a Ocupa Fabico se posicionou como braço de um mo-
vimento maior, nacional, contra a PEC 55. Neste sentido, alguns esforços
foram feitos para integrar as ocupações e torná-las unificadas de fato, au-
mentando a sua força de pressão política: um e-mail foi criado para ser o
fórum de todas as Ocupas de Porto Alegre e principal meio de comunica-
ção entre elas; um encontro semanal com representantes das ocupações;
encontros entre comissões semelhantes (reunião das equipes de comuni-
12 Nas grandes marchas de 2013 e 2015 no Brasil eram comuns cartazes em outros idiomas, principalmen-
te e o inglês, visando um público que tomaria contato com eles através da televisão, jornais, sites e redes
sociais da internet.
13 Alguns destes cartazes internos diziam: “Tá de bobeira na Ocupação? Dê um tapa na louça!”; “Você não
vai ser menos de esquerda se não fumar maconha por uns dias”; “Deu treta? 1-Respirem. 2-Se olhem
nos olhos. 3- Abracem!”; “Um abraço dura no mínimo 10 segundos”.
133
cação das diferentes faculdades, por exemplo); além de algumas tentativas
de fazer encontros online com membros de todas as ocupações do Brasil,
o que acabou não acontecendo14. Além disso, foi formada uma Comissão
de Apoio aos Terceirizados, contendo representantes de todas as Ocupas.
Alguns outros repertórios foram usados pelos manifestantes para se
comunicarem com a sociedade e de alguma maneira tentar romper o iso-
lamento físico que a ocupação de um prédio inevitavelmente provoca. Em
uma manhã alguns alunos realizaram bloqueios em diferentes cruzamentos
de ruas importantes de Porto Alegre. Assembleias abertas para discutir a
PEC 55 e marchas no centro da capital gaúcha também uniram integrantes
de diferentes ocupas e simpatizantes, em uma ampliação da ação coletiva a
partir de repertórios que buscavam dar mais visibilidade ao movimento. E
ao levar a luta política para as ruas, os manifestantes acionavam outras mí-
dias radicais alternativas pouco usadas em ocupações, como cantos, gritos,
megafone, máscaras, bandeiras, fantasias, performances teatrais, grafite etc.
Outras ações foram tomadas no sentido de aumentar o espaço de vi-
sibilidade do movimento de ocupações. Em um ato-show organizado por
servidores da Fundação Piratini15 no Parque Farroupilha, uma das alunas-
-ocupantes da Fabico subiu ao palco e leu um manifesto. Foi ainda realiza-
do, em apoio às Ocupas, um show com vários artistas em frente ao Palácio
Piratini, aproveitando a estrutura da mobilização de servidores das funda-
ções estaduais que há dias faziam vigília no local16. Em outras duas oportu-
nidades, professores da instituição e alunos realizaram vigílias iluminadas
ao redor da faculdade. Momentos em que o espaço físico das ocupações
foi transposto e o espaço de visibilidade aumentado para comunicar a um
público externo as demandas do grupo.
Outra característica em comum da série recente de ocupações de
escolas e universidades brasileiras é a organização de uma programação
alternativa a que é normalmente oferecida pela instituição, com saraus,
shows musicais e teatrais, cine-debates, oficinas e aulas abertas. Na Fabico,
durante os quase dois meses em que a faculdade esteve ocupada, professo-
res da instituição, alunos da pós-graduação e diversos voluntários minis-
14 No dia 29 de novembro houve uma reunião nacional dos ocupas em Brasília, transmitida via Skype. Foi
o mais perto que se conseguiu chegar no sentido de integrar em tempo real todas as ocupas em uma
plataforma digital.
15 Fundação estadual que abriga as duas emissoras públicas do Rio Grande do Sul, a TVE e a rádio FM
Cultura.
16 No dia 21 de novembro de 2016 o governo do Estado do Rio Grande do Sul anunciou o “Pacote de
Modernização das Estruturas do Estado” que, entre outras propostas, propunha a extinção de nove
fundações estaduais.
134
traram aulas abertas sobre política, sociologia, história, comunicação, fe-
minismo, movimento negro, sexualidade, gordofobia, movimentos sociais
contemporâneos, teoria queer, economia solidária, dívida pública, entre
outros temas. Além das aulas, houve oficinas de expressão corporal, cultura
Hip Hop, Batucada Feminista (promovida pela Marcha Mundial de Mulhe-
res), oficina de turbantes, de bordados etc. No dia 20 de novembro, Dia da
Consciência Negra, foi preparada uma programação especial de atividades
voltadas a esta temática.
Neste modelo de ocupação que está sendo aqui analisado, a equipe
de Comunicação não é responsável apenas pela geração e transmissão das
informações, mas pela organização de toda uma estratégia de Comunica-
ção, da qual a produção de conteúdo e a sua divulgação são apenas alguns
elementos. Uma das principais resoluções deste setor na Ocupa Fabico foi,
já nos primeiros dias de ação, definir regras para a relação com os meios de
comunicação hegemônicos. Foi decidido, por exemplo, que profissionais
destes veículos não poderiam entrar no prédio e, caso quisessem imagens
internas, estas seriam fornecidas pelos próprios ocupantes17. Já a chamada
mídia alternativa teria livre acesso à ocupação. A equipe de comunicação
enviou um e-mail às outras Ocupas fazendo esta e outras recomendações e
se colocou à disposição para auxiliar no que fosse necessário. Também foi
recomendado aos outros grupos não tratarem nenhum veículo com arro-
gância ou agressividade, já que todos os espaços de visibilidade, segundo
eles, deveriam ser bem aproveitados pelo movimento. Apesar de prezarem
pela horizontalidade em sua organização e desejarem evitar quaisquer tra-
ços de lideranças individuais no movimento, o grupo de Comunicação da
Fabico também recomendou aos demais a eleição de porta-vozes capacita-
dos a conversar com a imprensa. Na véspera de uma entrevista para a rádio
Bandeirantes, um dos alunos da Fabico realizou um media training com
uma professora da faculdade. Ou seja, existia uma enorme preocupação,
por parte dos ocupantes, de se comunicar da melhor maneira possível com
seus públicos, a partir do entendimento de que a luta passava pela imagem
pública a ser construída pelo movimento. Havia também a intenção, por
parte de ocupantes da Fabico, de criar um Núcleo de Comunicação cuja
função seria dar suporte nesta área a todas as outras ocupações da cidade,
mas isso acabou não acontecendo.
17 Na fan page da Ocupa Fabico, na seção Vídeos é possível assistir a uma reportagem do SBT que utiliza
imagens disponibilizadas pelos ocupantes. Durante a matéria o repórter diz que os alunos não qui-
seram fornecer o número de pessoas que estavam realizando a ocupação – outra decisão tomada em
assembleia.
135
Internet e mídia radical alternativa
136
cas e de preconceito de classe que vemos no cenário político brasileiro.
Nos juntamos à luta por uma universidade pública de qualidade, diver-
sa, e por um país livre cada vez mais inclusivo.
Nos primeiros dias as publicações do movimento foram voltadas
principalmente para informar a comunidade acadêmica sobre as resolu-
ções tomadas com relação ao prédio e à suspensão das atividades normais.
Informações sobre as doações de alimentos, produtos de higiene e mesmo
contribuições em dinheiro, eram seguidamente disponibilizadas19. A fan
page também atualizava a comunidade acadêmica com relação às negocia-
ções com a reitoria, publicando avisos prévios e relatos posteriores de reu-
niões. Neste espaço também foram divulgadas uma carta aberta ao reitor,
assinada pelas 15 Ocupas de Porto Alegre, e um texto com a íntegra das
reivindicações unificadas do Movimento de Ocupações da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, onde pediam, entre outras coisas, garantias
para que não houvesse a criminalização e responsabilização civil, adminis-
trativa e acadêmica do movimento.
Embora a fan page tenha sido criada para servir de elo entre os ocu-
pantes e seu público no que dissesse respeito às ocupações, o movimento
também utilizou a ferramenta e o seu potencial de mídia radical alternati-
va para se posicionar com relação a outros fatos que iam acontecendo na
sociedade. No dia 21 de novembro, por exemplo, a Ocupa Fabico publicou
uma NOTA DE REPÚDIO AO PACOTE DE MEDIDAS DE SARTORI20.
Nove dias depois houve uma postagem em solidariedade às vítimas do aci-
dente com o avião da Chapecoense na Colômbia, ocorrido um dia antes.
O movimento procurava também mostrar, na página do facebook,
imagens do cotidiano da ocupação, como os mutirões de limpeza, as aulas
e oficinas, os shows e os cartazes que cobriam as paredes internas do pré-
dio, buscando assim alargar as fronteiras do espaço físico delimitado onde
o repertório de confronto se desenrolava. A página do grupo funcionava
como uma espécie de janela por onde a sociedade podia vislumbrar as mo-
vimentações internas do cotidiano de uma faculdade ocupada.
Depois da votação em primeiro turno no Senado, a Ocupa Fabico pu-
blicou uma lista com nome e o partido dos 61 senadores que votaram pela
aprovação da PEC 55, ação tomada também pela grande parte das fan pa-
19 As mensagens procuravam incentivar as doações e destacar a importância deste gesto para o sucesso da
ação coletiva: ”Doação é ação”; “Você pode substituir seu like por uma doação”.
20 A Nota era, na verdade, uma pequena reportagem. Neste caso, a equipe de Comunicação, formada
para administrar a imagem pública e gerir as informações sobre o movimento, se comportou como
jornalistas de emissoras ao produzir uma matéria, chegando inclusive a entrevistar por telefone uma
profissional da TVE.
137
ges das ocupas pelo Brasil. No dia 13 de dezembro de 2016 a PEC 55, que
havia gerado centenas de ocupações universitárias em todo o Brasil, foi
finalmente aprovada no Senado21. Minutos depois foi postado na página da
Ocupa Fabico a chamada para um evento, o 4º Grande Ato contra a PEC 55
e o Pacotaço do Sartori. O texto do movimento reconhecia a derrota na luta
que havia inspirado a ocupação e convocava as pessoas para ir às ruas com
um jargão popularizado durante os protestos de junho de 2013:
VEM PRA RUA, VEM
Hoje foi aprovada a nefasta PEC da Morte, que assassinará o futuro de
milhares de brasileiros. E hoje vamos para a rua gritar contra ela, contra
os retrocessos dos desgovernos Temer e Sartori e contra o golpe jurídico
conservador na presidenta Dilma.
Convidamos toda a comunidade fabicana a se juntar ao ato. Liguem
para os colegas, mobilizem os amigos, combinem grupos e vamos jun-
tos para a rua lutar pelo que nos é de direito.
Vem pra rua, vem, que o Brasil é nosso.
#OcupaFABICO #OcupaTudo #NenhumDireitoAMenos
Em 23 de dezembro de 2016, após 53 dias em que foi transformado
em um espaço de exceção e de experimentação de processos de democracia
direta e subversão de hierarquias, o prédio da Fabico foi desocupado pelos
alunos – uma das últimas postagens na página é um vídeo com as diretoras
retomando o controle do edifício. Uma semana depois, o movimento pos-
tou uma lista com pequenas alterações realizadas no prédio, como criações
artísticas nas portas de algumas salas de aula e um jardim em um lugar
onde funcionava um espaço para fumantes. A Ocupa Fabico, assim como
as demais, foi derrotada em seu propósito principal, o de barrar a PEC do
Teto de Gastos. Mas como tática de ação direta foi bem sucedida, uma vez
que conseguiu bloquear as atividades institucionais da instituição e manter
o território conquistado por quase dois meses.
Em um repertório de confronto como este, onde é constante o medo
de infiltrações, invasões, repressão e a possível expedição de mandatos de
reintegração de posse, o desgaste emocional e físico é muito grande, e não
foi diferente no caso das Ocupas em Porto Alegre. A sustentação do con-
fronto contra atores como o Estado cobra um preço alto para os movimen-
tos sociais, especialmente se eles não encontram eco de suas demandas em
outras parcelas da sociedade civil. O tempo vai dizer se estas experiências
terão desdobramento em novas frentes de luta e se as formas de autocomu-
21 Sua aprovação definitiva se deu em votação do segundo turno, com o placar de 53 votos favoráveis e 16
contrários.
138
nicação, com o emprego de mídias radicais alternativas, serão suficientes
para vencer as batalhas de comunicação que acompanham os conflitos po-
líticos na contemporaneidade.
Considerações finais
139
Na Fabico, a maioria dos alunos-ocupantes tinha entre 18 e 22 anos.
Boa parte deles estava em seu primeiro ano de curso. Somem-se a isso as
ocupações de secundaristas nos meses anteriores e podemos pensar em
um repertório que possui, atualmente, um componente geracional muito
marcante entre seus praticantes. Isso é uma limitação, ao menos neste caso,
onde o objetivo não era nada simples: reverter um quadro de possível der-
rota numa votação no Senado – derrota que acabou de fato se consuman-
do. Além do mais, dificilmente um único repertório é capaz de alcançar
objetivos que digam respeito à cúpula do poder político dos estados. Eles
devem ser combinados a outros, como abaixo-assinados, audiências pú-
blicas, possível intervenção de políticos com mandato simpáticos à causa,
panfletagem, petições online etc.
Mas, como a história dos movimentos sociais demonstra, é de grande
ingenuidade avaliar o sucesso ou não de determinadas lutas apenas a par-
tir das vitórias ou derrotas imediatas. Conforme Downing (2004, p. 171), “o
elemento tempo é muito óbvio. Seríamos cegos ao impacto dessas ativida-
des de comunicação radical se as avaliássemos somente com base no curto
prazo”. Um dos exemplos dados pelo autor para sustentar esta ideia é a ação
das Mães da Praça de Maio, na Argentina. Um “trabalho de formiguinhas”,
durante anos a fio, de extrema força simbólica e que rendeu frutos mais de
uma década depois, com a série de julgamentos e condenações de líderes e
carrascos da ditadura argentina. A experiência de vida em comum, durante
quase dois meses de ruptura no funcionamento de uma instituição federal,
não apenas foi vivida intensamente por eles como ainda pode contagiar seg-
mentos sociais semelhantes em outras situações de conflito.
A ocupação, enquanto repertório que busca um objetivo num quadro
de confronto político, existe para atingir determinado fim. Mas durante o de-
correr da sua existência, enquanto persegue seu alvo, ela funciona como uma
espécie de micorocosmo de experimentos de democracia direta, com outros
códigos e regras. Uma esfera pública alternativa de questionamento constan-
te aos valores da sociedade atual e de autoquestionamento. Então, mais até
do que um repertório eficaz para atingir seu fim – seja lá qual for –, as ocu-
pações devem ser avaliadas pela ousadia política dos mecanismos internos
que a põem em funcionamento. Uma experiência de vida em sociedade que
procurar eliminar de seu cotidiano os mais remotos traços daquilo que criti-
cam, valorizando o afeto, a opinião de cada um, o viver em comum como um
paradigma que suplante a competição individual. Uma esfera pública alter-
nativa sem hierarquias, onde predomina a racionalidade, a argumentação, a
discutibilidade. Um espaço de exceção onde se produz comunicação pública.
140
Manifestações de 2013 no Jornal Nacional
e no Repórter Brasil
Tiago Gautier
Introdução
141
objeto desse trabalho. A respeito ao modo como são geridas as televisões
e da finalidade de seu conteúdo, se pode falar em pelo menos dois tipos
de TV. O primeiro é o modelo através do qual a maior parte das emissoras
brasileiras foi criada e mantida nas últimas seis décadas: a televisão de ex-
ploração comercial. A segunda só começa a se consolidar no Brasil já no
início desde século: a televisão pública.
Uma pergunta sintetiza o problema de pesquisa deste trabalho: como
estes dois modelos distintos de televisão construíram sentidos sobre um
acontecimento da dimensão do conjunto de eventos que movimentou as
ruas do Brasil em junho de 2013? Uma das hipóteses levantadas é que as
diferenças entre eles refletem-se de alguma forma nas diferenças na cons-
trução dos sentidos que marcam o conteúdo de ambas.
Trata-se de uma relação entre duas coberturas telejornalísticas sobre
o mesmo acontecimento. Uma, do principal telejornal da maior emissora
de televisão de exploração comercial em dimensão e alcance. Trata-se do
Jornal Nacional, programa diário exibido pela TV Globo desde 1969. A
segunda é da TV Brasil, que desde a sua criação, em 2008, é a única televi-
são pública de alcance nacional. Seu telejornal diário noturno, o Repórter
Brasil, também cobriu as manifestações de junho de 2013, bem como a
resposta do poder público aos manifestantes.
O objetivo geral deste estudo foi compreender os enquadramentos
construídos nas coberturas do Jornal Nacional e do Repórter Brasil em re-
lação às Manifestações de junho de 2013 e também às consequências polí-
ticas dos protestos, uma vez que o acontecimento público pressupõe efeitos
sociais e políticos que também os constituem. Isto é, identificar as interpre-
tações construídas por cada um dos telejornais para estes acontecimentos,
que sentidos são enfatizados e quais as diferenças e aproximações entre
uma cobertura e outra.
A base teórica da análise envolve três eixos. O primeiro, dedica-se às
relações entre comunicação e política e também à comunicação pública en-
quanto processo de circulação de informações acerca de temas de interesse
público, a partir de sistemas de comunicação, resultando no estabelecimen-
to de redes direcionadas ao debate (Weber, 2007). O conceito fundamental
desta perspectiva é a ideia de esfera pública enquanto espaço de debate
público e também de disputa por visibilidade e poder (Habermas, 1984;
Gomes, 2004; 2008; Esteves, 2011).
O segundo eixo, dá conta do telejornalismo (Squirra, 1993; Vizeu,
2005; Hagen, 2009; Rezende, 2010) enquanto tipo de conteúdo midiático
resultante da combinação dos princípios, práticas e do caráter discursivo
142
do jornalismo (Berger, 2003; Fontcuberta, 2011; Traquina, 2004; Francis-
cato, 2005) com a linguagem, a abrangência e o significado social e político
da televisão (Weber, 2000; Aldé, 2001; Machado, 2001; Duarte, 2006; Mar-
tins, 2006; Mattos, 2010; França, 2012). Quanto ao tipo de sistema em que
a televisão se configura na prática, a este trabalho interessa especialmente
a problemática da televisão pública (Leal Filho, 1997; 2008; Rincón, 2002;
Guareschi, 2013) enquanto política pública voltada à satisfação do direito
humano à comunicação, centrada na cidadania e na valorização das cultu-
ras nacionais e locais.
Finalmente, a terceira parte da argumentação teórica diz respeito ao
acontecimento, e ao acontecimento jornalístico em especial (Charaudeau,
2006; Alsina, 2009; Berger; Tavares, 2010). Dentre as características deste
fenômeno, importa especialmente a sua capacidade de tematizar proble-
mas de caráter público, acionando mídia, sociedade e política. O tipo de
acontecimento que privilegia esta relação é definido como acontecimento
público (Quéré, 2011; Coelho, 2013).
A principal metodologia escolhida para a realização desta pesquisa
foi a análise de enquadramento. O conceito teórico-metodológico orien-
tador da análise foi, portanto, o conceito de enquadramento, entendido
como quadro de sentido a partir do qual se compreende um fenômeno,
implicando sua caracterização e a avaliação de suas causas, consequências
e soluções, a partir de processos de ênfase, saliência, repetição e associação
(Goffman, 1986; Entman, 1993; Scheufele, 1999; Aldé, 2001; Porto, 2004;
Fabrino; Simões, 2012).
A análise envolve um corpus de 14 edições, sete do Jornal Nacional
e sete do Repórter Brasil, correspondentes aos dias em que aconteceram
eventos que marcaram o desenvolvimento das manifestações de junho
de 2013: 13/06/2013; 20/06/2013; 21/06/2013; 22/06/2013; 24/06/2013;
25/06/2013; e 26/06/2013. Estas edições foram obtidas via sites das emis-
soras respectivas na internet, já fragmentadas em vídeos, totalizando 383
fragmentos, dos quais 25 – 12 do Repórter Brasil e 13 do Jornal Nacional
– foram selecionados para a análise em profundidade de seus enquadra-
mentos, a partir do seguinte critério: a reportagem e o link ao vivo de maior
duração exibido em cada edição, sobre o assunto manifestações ou temas
relacionados, sendo que uma das edições do Jornal Nacional (20/06/2013)
não apresentou nenhuma reportagem e duas edições do Repórter Brasil (22
e 24/06/2013) não apresentaram nenhum link ao vivo.
143
Junho de 2013: um acontecimento público
144
Ocidente. Quando a crise estourou, o Estado mostrou-se em prontidão
para resgatar os bancos em colapso, no que se poderia chamar de um “so-
cialismo para os ricos” (Ali, 2012). O autor afirma que, quando se tornou
evidente que temas como a alocação de recursos, provisões de bem-estar
social e distribuição da riqueza não tinham mais lugar nos debates das as-
sembleias representativas e os cidadãos perceberam que não eram capazes
de exercer controle sobre a riqueza que eles mesmos produziam, as pesso-
as saíram às ruas procurando alternativas fora do sistema político. Žižek
(2012) aponta como núcleo das manifestações globais o descontentamento
geral com o sistema capitalista.
Criou-se então um vazio no campo da ideologia e a pergunta premen-
te é “que fazer?”; se os manifestantes são contra o “sistema”, o que colocar
no lugar? (Žižek, 2012). As propostas que são delineadas, em princípio,
segundo Žižek (2012), são no sentido de democratizar o capitalismo, isto
é, de controlar democraticamente a economia (através do controle pela mí-
dia, leis mais severas etc.), sem que se questione, porém, a moldura insti-
tucional do Estado de direito burguês, o que na prática não representaria
necessariamente um avanço. O problema que se impõe então é o das conse-
quências das manifestações, pelo menos enquanto forem ausentes de lide-
ranças ou articulações mais firmes e definitivas, pois “nenhum movimento
pode sobreviver a menos que crie uma estrutura democrática permanente,
que assegure a continuidade política” (Ali, 2012, p. 70).
Harvey (2014), por sua vez, relaciona as manifestações ao que define
como o direito humano coletivo à cidade, enquanto direito de mudar e
reinventar o espaço urbano de acordo com nossos mais profundos desejos.
Isto é, o direito de reivindicar algum poder sobre os processos de urbaniza-
ção, profundamente relacionados ao desenvolvimento do capitalismo, pri-
vatista, individualista e desigual. Assim como o autoritarismo político e a
crise econômica, respectivamente, desencadeiam movimentos no Oriente
Médio e no Ocidente (Estados Unidos e Europa), é a mobilidade urbana o
tema que aglutina os protestos no Brasil:
Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém esperasse. Sem lí-
deres. Sem partidos nem sindicatos em sua organização. Sem apoio da
mídia. Espontaneamente. Um grito de indignação contra o aumento do
preço dos transportes que se difundiu pelas redes sociais e foi se transfor-
mando no projeto de esperança de uma vida melhor, por meio da ocupa-
ção das ruas em manifestações que reuniram multidões em mais de 350
cidades (Castells, 2013, p. 178).
145
No sentido proposto por Harvey (2014), a questão da mobilidade
urbana ganha uma nova significação. Reivindicar o direito ao transporte
público é reivindicar o direito ao próprio espaço urbano. Castells (2013)
reforça a ideia de mobilidade como direito universal e aponta a imobili-
dade estrutural das metrópoles, resultado da especulação imobiliária e da
corrupção, como o núcleo da insatisfação no caso brasileiro.
No Brasil, segundo Singer (2013), aos protestos de rua soma-se tam-
bém a expressão de uma classe média tradicional inconformada com dife-
rentes aspectos da realidade nacional e o reflexo de um chamado novo pro-
letariado, composto por trabalhadores jovens que conseguiram emprego
com carteira assinada na década lulista (2003-2013), mas que sofrem com
baixa remuneração, alta rotatividade e más condições de trabalho.
As manifestações de junho de 2013, pela ruptura dos fatos cotidianos
e pelo impacto social e político que representam, podem ser considera-
das um acontecimento e reúnem todas as características que interessam a
cobertura jornalística e midiática. Mas, além disso, ao analisar os enqua-
dramentos construídos sobre elas, é preciso considerar que, mais que um
conjunto de eventos, trata-se de uma força mobilizadora de debates sobre
problemas públicos e ação política. É, portanto, um acontecimento do tipo
público. Assim, justifica-se a inclusão, no recorte analisado, não somente
da cobertura das manifestações, mas de sua repercussão e dos temas asso-
ciados a ela, especialmente de ordem política.
A partir desta apropriação teórica, levanta-se ainda a hipótese de que
a materialização do acontecimento em acontecimento público midiático
implica em diferenças na apropriação dele por cada uma das mídias, mar-
cadas por certo tipo de linguagem e inseridas, cada uma, em um contexto
sócio-histórico específico. É esta característica que dá sentido social às es-
colhas de temas, enquadramentos e abordagens.
Seguindo a perspectiva da comunicação pública – como horizonte nor-
mativo baseado na racionalidade, na igualdade de acesso à esfera pública e
na paridade argumentativa de todos os interessados – compreende-se que
estas características do espaço público definem também os enquadramen-
tos que pretendam se constituir dentro de uma ideia de interesse público.
Enquadramentos no telejornalismo
149
pelo alcance de seus próprios sentidos, e constrói seu conhecimento sobre
o que acontece também com base nas representações a que tem acesso.
Quando estas representações são construídas na televisão, as imagens atri-
buem a elas veracidade, consolidada pela credibilidade inerente ao formato
telejornalístico. Assim, quem não esteve presente nas manifestações, mas
também quem esteve presente, pode revoltar-se com as imagens da polícia
acossando um jornalista – inocente, a princípio – e no exercício de seu tra-
balho, em uma ruela escura do centro de São Paulo, onde ele é agredido por
numerosos homens sem rosto, inteligíveis apenas pelo brilho dos capacetes
da polícia contra a escuridão da noite. A clandestinidade do ato é revelada
pela televisão, que traz a violência policial para dentro da casa do teles-
pectador, tanto no Jornal Nacional quanto no Repórter Brasil. Da mesma
forma, a violência policial contra os estudantes, que ninguém vê, é mostra-
da na publicação de vídeos publicizados primeiro pelas redes sociais. Ao
ser incorporada ao texto jornalístico tradicional, o telejornal valida estas
imagens amadoras e amplia seu alcance e confiabilidade. É verdade, porque
alguém compartilhou na rede, e também porque saiu no JN.
As diferenças de tom das coberturas implicam consequências para sua
relação com a realidade. O Jornal Nacional, mais presente nas ruas, mostra
a realidade de forma mais urgente e imediata quando sobrevoa Brasília e
mostra o fogo no momento em que surge a chama, que surpreende inclusi-
ve os mediadores. Suas múltiplas câmeras, espalhadas por todas as regiões
do Brasil – o que reflete seu domínio de mercado e também seu poder so-
cial e político – ampliam a dimensão dos eventos e apresentam ao público
um espetáculo à altura da importância política do acontecimento, digna de
repercussão internacional e de medidas urgentes no Planalto e no Congres-
so, como se vê nos dias que sucederam a manifestação do dia 20.
Considerações finais
159
Manifestações midiatizadas
Dos cartazes às hashtags
Manoella Neves
Introdução
O objeto cartaz
1 O texto é parte de minha pesquisa de doutorado que tem como título: ‘Circulação e ambiência do cartaz
em manifestação midiatizada’.
161
comunicacional, entende-se que no cartaz está, além do seu conteúdo, um
processo interacional que evidencia uma lógica tácita de raciocínio – so-
bretudo em uma ambiência cuja midiatização é o processo interacional de
referência. Evidencia-se uma lógica de midiatização na utilização de cartaz,
particularmente, dos confeccionados, usados e apropriados em manifesta-
ções populares como as que têm vivenciado o Brasil.
De acordo com Tchakhotine (1997) o cartaz de manifestações (assim
como carros de som, folhas de papel lançados no alto dos prédios, buzinas)
é usado também como elemento de uma propaganda do tipo emocional que
visa excitar ao máximo as multidões e é inserido em cortejos que tomam cer-
to caráter carnavalesco. Segundo o mesmo autor, as manifestações são a mais
alta expressão do dinamismo político das massas, e uma forma de avaliar seu
êxito é apontando o número de participantes que, com temas relacionados à
política, à economia e/ou à sociedade, trazem palavras de ordem e cartazes.
Usualmente de papel e colocados em locais públicos para propagar
informações com apelo visual, os cartazes são meios de comunicação que
apresentam valor histórico – como meio de divulgação de movimentos po-
líticos ou artísticos, e apresentam valor estético – uma vez que seu conteú-
do, quando não mais atualizado é, por exemplo, colocado na parede de um
quarto para ornamentar.
Isso implica uma vida útil do cartaz na sociedade: chega o momento
em que ele perdeu toda a sua força, em que o seu sentido foi inteira-
mente extraído [...] Mas pode ser que ele ainda subsista materialmente,
geralmente manchado, rasgado, sujo, esquecido, constitua um novo ele-
mento do ambiente urbano, adquira uma poesia de situação, lembrando
mais a sua existência que o seu conteúdo (Moles, 2004, p. 28).
O cartaz é parte de um processo de comunicação. E o cartaz de ma-
nifestações é parte de um processo de comunicação pública. Ele diz algo
pontual compreendido mais facilmente por quem tem o contexto de seu
conteúdo. Moles (2004) refere-se ao cartaz publicitário, pensado e elabora-
do por uma agência, um profissional da área de publicidade e por um design
(a quem ele se refere como cartazista). Já este texto volta-se para o cartaz
produzido manualmente, sem imagens, com texto, confeccionado uma úni-
ca vez para ‘ir às ruas’, marcando a verve expressiva de quem o sustenta.
Embora a natureza do cartaz em Moles (2004) seja diferente da na-
tureza dos cartazes presentes neste texto, é possível identificar, em certa
medida, as mesmas funções apontadas pelo autor. No cartaz confeccionado
manualmente para uma manifestação popular está contida uma ideia a ser
162
difundida (função de informação), alguns, com frases imperativas, buscam
convencer (função de propaganda). Com estes conteúdos o cartaz ensina,
uma vez que nele há a formação de uma ideia (função educadora), formata
a ambiência do acontecimento na rua, sendo uma marca (função de am-
biência) que orna (função estética). Ao ornar, o cartaz não somente si-
naliza, mas ganha vida na interação entre os manifestantes e ou usuários
das redes, ‘desfila’ nas avenidas e nas timelines, criando o desejo (função
criadora) de participar ou de contemplar o seu enredo.
163
Alguns cartazes são expressões da luta de familiares e de entidades
de Direitos Humanos na busca por direitos dos desaparecidos políticos do
regime militar brasileiro. Estas entidades produziram cartazes com fotos
dos desaparecidos políticos análogos em formato e estilo aos que a ditadura
havia publicado com os procurados pelo regime. No conteúdo do cartaz, a
diferença entre a palavra ‘desaparecidos’ e a palavra ‘procurados’.
Ao utilizar ‘procurados’ o enunciador determina uma condição para os
sujeitos do cartaz que se encontram numa ‘ilegalidade’ sugerida para quem se
aproxima do cartaz, uma (suposta) subversão cometida pelo sujeito – o que
justificaria sua busca. Ao utilizar ‘desaparecidos’ a procura pode perder sen-
tido, pois quem assim está pode não ser encontrado ou ter deixado de existir.
Rough do cartaz
da campanha publicitária
em apoio à redemocratização.
Campanha produzida
pela agência Exclam.
Fonte: G15
5 NUNES, S. Cor definiu o-sucesso, diz um dos criadores da campanha das diretas. Disponível em:<http://
g1.globo.com/pr/parana/noticia/2014/01/cor-definiu-o-sucesso-diz-um-dos-criadores-da-campanha-
-das-diretas-ja.html>. Acesso em: 7 de fevereiro de 2017.
164
Outros movimentos também fizeram seus registros em cartazes, tais
como os das Diretas Já. “Eu quero votar para presidente”, foi o slogan da
campanha publicitária que chamou a população brasileira a apoiar a re-
democratização e que mobilizou milhões de pessoas a irem às ruas a favor
da aprovação da emenda constitucional proposta pelo deputado Dante de
Oliveira, que pretendia o voto direto para a presidência da república.
Além das manifestações a favor das Diretas Já, várias outras foram
vistas e vivenciadas na história do Brasil. Todas estas foram também regis-
tradas em cartazes como: luta sindical, Movimentos Cara Pintada e Fora
Collor6 – estes últimos, ocorrendo 20 anos antes da série de Manifestações
de Junho de 2013 no Brasil, quando quase 2 milhões de pessoas foram às
ruas, em 438 cidades (Agência Brasil) para dizer algo, utilizando-se do (an-
tigo) suporte cartaz para se expressar.
As Manifestações de Junho de 2013 no Brasil relacionam-se a outras
ocorridas no mundo tais como: os Indignados da Espanha (2011), Occupy
Wall Street, Nova York (2011), Primavera Árabe no Oriente Médio e norte
da África (a partir de 2010). Além das Jornadas de Junho de 2013, outra
manifestação ocorreu em março de 2015, no Brasil. Embora desencadeadas
por motivos diferentes, as duas trouxeram como pauta comum (e abran-
gente) de reivindicação, a insatisfação política.
Estas ondas agitadoras de manifestações e protestos no Brasil e no mun-
do têm como características comuns a ausência de lideranças oficiais, de ban-
deiras tradicionalmente vistas em atos como estes e a utilização das mídias
digitais para se organizar, pontualmente: Facebook, Twitter e Youtube.
As Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, especificamente, iniciaram
pelo Passe Livre7, contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, depois
se ampliando para outras insatisfações como: obras para a Copa (2014) e
para as Olimpíadas no Brasil (2016), situação (precária) da educação e da
saúde no país, corrupção política, para citar algumas.
6 Campanha popular que tomou as ruas para pedir o afastamento do cargo do presidente Fernando Collor
de Mello. Acusado de corrupção e esquemas ilegais em seu governo, a campanha “Fora Collor” mobi-
lizou muitos estudantes que saíram às ruas com as “caras pintadas” para protestar contra o presidente.
(GASPARETTO JUNIOR, A. Fora Collor. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia-do-
-brasil/fora-collor/>. Acesso em: Acesso em: 13 de janeiro de 2014).
7 Movimento Passe Livre (MPL) Brasil foi fundado em janeiro 2005 durante o V Fórum Social Mundial
em Porto Alegre. Em 2013, o MPL de São Paulo desencadeou uma luta organizada contra o aumento
das tarifas dos transportes públicos. No entanto, esta revolta é homóloga a outras ocorridas anos antes.
Uma, em 2003 na cidade de Salvador que durou um mês como resposta ao aumento das passagens e
que ficou conhecida como a Revolta do Buzu; outra ocorrida em 2004 em Florianópolis, chamada de
Revolta da Catraca que tem como saldo o impedimento do aumento das passagens e a aprovação do
passe livre estudantil.
165
O cartaz em estudo de midiatização
167
circulação de sua mensagem. Cada um que empunhou um cartaz, levantou
sua proposta, seu protesto, sua ideia ao seu modo, não havendo uma assi-
natura institucional que os identifique. Deste modo, as intenções e os efei-
tos que se presumem ficam mais difíceis de serem totalmente controlados,
não havendo uma linearidade, se estabelecendo a circulação e se mantendo
a interação difusa.
Ilustrando o que está sendo dito, entre o modo clássico e contemporâ-
neo de organizar uma manifestação popular, as fotos abaixo revelam a dife-
rença. A seguir, a imagem de estudantes produzindo cartazes e faixas para
uma manifestação organizada pela União Nacional dos Estudantes (UNE),
no ano de janeiro de 1943.
Fonte: Romulo
de Sousa/G1 AM9
9 G1 AM. No AM oficina de cartazes discute sobre protestos sem confrontos. Disponível em: <http://
g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2013/06/no-am-oficina-de-cartazes-discute-sobre-protestos-
-sem-confrontos.html> Acesso em: 7 de fevereiro de 2017.
168
O improviso e as posições pessoais e de pequenos grupos são marcas
de uma manifestação sem uma representação institucional formal. Quase
que de modo individual, cada um pode expor suas preocupações, reivindi-
cações e verve expressiva. E o cartaz em cartolina é levado às ruas porque é
rápido, fácil e de baixo custo.
A partir da imagem de jovens ocupando as ruas para confeccionar
os cartazes evidencia-se que eles são os donos deste espaço público, com
atuação de mídias e do marketing. E ainda a forte presença da midiatização
como processo interacional de referência, os smartphones, as mídias digi-
tais e os aplicativos de mensagens instantâneas permitem, com agilidade,
a multiplicação de textos e imagens – entre eles os contidos nos cartazes,
registrados e postados/enviados.
O que está no cartaz na rua, torna-se hashtag10 nas redes sociais. Uma
forma de titular uma postagem com possibilidade variada de sentidos, al-
terado e ressignificado na interação, no movimento dado ao tema dentro
e fora da rede. Uma unidade significativa organizada em torno de um ele-
mento fundamental, o núcleo parecido ao um sintagma.
Cartazes seguidos de hashtag, como #vemprarua e #ogiganteacordou,
compõem e sinalizam uma ideia, mais bem compreendida a partir da ob-
servação dos usos específicos destas expressões – aqui denominadas de
hashtagização sintagmática. O uso da hashtag também precisa ser entendi-
do em contexto. Tanto no cartaz como na sua transposição para hashtag há
possibilidade e tendência de desdobramento de diferentes caminhos possí-
veis, marcando o prosseguimento do fluxo comunicacional.
Os cartazes em 2013
Explicando as manifestações
169
vio que localizasse a inferência preliminar, o entendimento de que cada um
tentou “se dizer” ou “dizer do que tratava ali”.
Não são só 0,20 centavos – Uns dos primeiros cartazes que ‘foram às ruas’
traziam a mensagem: ‘Não são só 0,20 centavos’.
Cartazes com esta mesma mensa-
gem cicularam em várias ruas pelo país,
rementendo à questão do aumento da
tarifa dos transportes públicos. Desta-
cam que os protestos não seriam pelos
20 centavos, uma vez que o início das
manifestações não se deu exatamente
contra o aumento, mas a favor da tarifa
zero do transporte público, comanda-
Fonte: Dodô Azevedo/G1.
da pelo Movimento Passe Livre (MPL),
que questiona os modelos de se pensar transporte e circulação nas cidades.
(Fonte: Dodô Azevedo/G111).
O cartaz tenta explicar o movimento para seus possíveis interlocuto-
res, a saber, para a mídia e para a política: a população, a partir do aumento
da tarifa dos transportes públicos, ganha a dimensão da cidade, solicitando
a liberdade nesta, que é muito mais que um direito de acesso àquilo que já
existe, mas o direito de mudar a cidade de acordo com o desejo dos cora-
ções dos citadinos (Harvey, 2013, p. 28). E, como já foi exposto, a reivindi-
cação do direito à cidade, de mover-se nela foi somada a uma pauta mais
diversificada, numa indignação generalizada frente ao cenário político e às
condições dos serviços públicos.
170
cara do personagem Guy Fawkes da História em Quadrinhos e do filme V
de Vingança13. A partir deste grupo, durante as manifestações, é dado ao
‘V’ outra referência.
Alguns manifestantes e jornalistas levaram consigo garrafa de vinagre,
pois segundo eles, servia como defesa dos olhos para minimizar os efeitos
do gás lacrimogênio presente nas bombas jogadas pela polícia. Então cir-
culou, de forma bem humorada, cartaz relacionando o V, não mais ao de
Vingança, mas ao de Vinagre e outro, demonstrando crer na luta travada
por quem porta o condimento.
171
Print da tela inicial do jogo16 Print da tela final do jogo com um dos
resultados possíveis do jogo: Vândalo
Fonte: G118
172
os manifestantes. Algum destes, como já foi explicitado, levaram consigo
garrafa de vinagre. O jornalista Piero Locatelli, da revista Carta Capital,
registrou em vídeo e postou no canal da revista no Youtube, quando foi
abordado e encaminhado para o Distrito Policial por carregar um vidro de
vinagre na mochila.
Vem pra rua – O Vem pra rua, esteve presente em vários cartazes. Um
cartaz convoca as pessoas a deixarem o Candy Crush20 e irem para a rua.
Configura-se como um convite imperativo para deixar o jogo (podendo
19 GAROTAS GEEKS. O dia em que nós saímos do Facebook e fomos para as ruas. Disponível em: <http://
www.garotasgeeks.com/o-dia-em-que-nos-saimos-do-facebook-e-fomos-para-as-ruas/>. Acesso em: 8
de feve-reiro de 2017.
20 Candy Crush é um jogo de puzzle em formato de doce (candy) cujo jogador deve unir uma sequência
de três ou mais doces. Quanto acontece o choque (crush) das peças, os pontos são computados. O jogo
foi lançado em 2012 pela King para o Facebook e em seguida para os smartphones.
173
entendê-lo também como o que for menos importante naquele momento)
e ir participar das manifestações no espaço da cidade concreta.
174
Fonte: Jornal GGN23 Fonte: Jaelson Filho/TV Globo/G124
Desejos e demandas
Fonte: G125
175
parlamentar, gerando acusações de comportamento homofóbico. Nos car-
tazes, indicação de uma ‘bandeira de luta’, sugerindo a filiação das causas (e
desejos) dos jovens que os seguram.
176
cura gay, proposta pelo deputado Feliciano, entendendo que seria a fome que
precisaria de cura – não os homossexuais, como sugeriu o projeto político28.
Sonoramente pec igual à peque (de pecar), podendo ser lido: ‘não ao
Projeto’ e ‘Não peque’ (de não cometer pecado). Pecado talvez sendo o voto
28 Conhecido como ‘cura gay’, o projeto permite aos psicólogos promover tratamento com o objetivo
de curar a homossexualidade. Foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, sob o
comando do deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP). PROPOSTA DE CURA GAY É APROVA-
DA EM COMISSÃO PRESIDIDA POR FELICIANO. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
poder/2013/06/1297075-proposta-sobre-cura-gay-e-aprovada-em-comissao-presidida-por-feliciano.
shtml>. Acesso em: junho de 2013.
29 Desenvolvida por Frank Darabont e baseada na série de quadrinhos de mesmo nome por Robert Ki-
rkman, Tony Moore e Charlie Adlard. O título da série refere-se aos sobreviventes, e não aos zumbis.
THE WALKING DEAD BRASIL. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Walking_Dead_
(s%C3%A9rie_de_televis%C3%A3o)>. Acesso em: 03 de fevereiro de 2017.
30 G1. Cartazes das manifestações. Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/cartazes-das-manifesta-
coes/platb/2013/06/20/eu-acredito-em-vinagres/>Acesso em: 7 de fevereiro de 2017.
177
a favor do projeto, no caso ai, a ‘culpa’ seria dos deputados que nela votas-
sem a favor. E não peque no sentido de pecado pode ser entendido também
em ficar parado, sem lutar.
E junto às críticas à Copa das Confederações, a crítica também às pre-
parações para a Copa do Mundo de Futebol de 2014, que ocorreria no Brasil.
178
O conteúdo do cartaz (que não traz, a priori, um ponto de discussão)
e a imagem de um sujeito segurando-o compõem o significado das mensa-
gens contidas, uma vez que se supõe que os sujeitos que sustentam tais car-
tazes foram atingidos pelo que a frase busca responder de modo subliminar
e espirituoso, fazendo isto numa comparação inusitada e não evidente.
Foram observados os cartazes a seguir e constituído o quadro que os
sucedem.
179
OBJETO COMPARADO OBJETO DE COMPARAÇÃO
Tempero Spray de pimenta
Sujeito natural da Bahia Culinária baiana
Bala comestível Bala de borracha
(Meio) doente (Meio) Viado/Gay
Cura gay Cura de cu
Entre outros artefatos bastante usados pelos policiais nas ruas, duran-
te as manifestações, em momentos de confronto, estavam as balas de bor-
racha. Fazendo uma crítica a esta atitude policial, cartazes solicitam outro
tipo de bala, as comestíveis: ‘Odeio bala de borracha. Joga TicTac!’ – sendo
este o nome de uma linha de balas.
No cartaz que diz: ‘Cura de cú é rola! #nodeFeliciano’, traz as marcas
de uma crítica irônica e áspera quanto ao projeto ‘Cura gay’. A crítica polí-
tica evidente às posições do deputado Marcos Feliciano (PSC-SP), presente
no cartaz, implica uma forma de interação com o personagem criticado,
com os interlocutores amigos; com os interlocutores adversários. Não sen-
do uma ‘bandeira de luta’ – como se costuma apresentar em manifestações
de partidos políticos e de sindicatos – nem exatamente uma tática de con-
vencimento, mas de desconstruir a ideia pelo riso, não levando a sério as
posições do adversário.
A mensagem do cartaz é constituída por um conjunto de compo-
nentes diversos, armazenados na memória e criados pela cultura de quem
se aproxima ou se apropria do cartaz, sendo a originalidade da combina-
ção formada, a medida da comunicação no sentido estrito, afirma Moles
(2004). Nos cartazes jocosos, a combinação é dada a partir do efeito meta-
fórico que carregam. E do efeito, a subliminar comparação. Portanto uma
combinação original que traz a medida desta comunicação: desmontar o
adversário e a sua causa.
Observa-se que há um teor político nos cartazes jocosos. No entan-
to, por outro lado, em uma manifestação organizada por sindicatos e/ou
partidos político, é provável que estes tipos de cartazes não fossem usados.
Então, o fato desses dizeres serem acionados é significativo para observar
especificidades das manifestações populares recentes no Brasil.
180
#vemprarua que #ogiganteacordou: dos cartazes às hashtags
Fonte: Cherryouth37
181
Por fim, a legenda: ‘O gigante não está adormecido’, seguida da tela
de fundo preto com o slogan: ‘KeepWalking, Brazil’, que significa continue
andando, Brasil.
182
Fonte: Léo Pinheiro/Futura Press/
UOL39
FRASE STATUS
Deitado eternamente em berço esplêndido Dormindo
Verás que um filho teu não foge à luta Acordado
Considerações finais
183
No sintagma, a combinação, a relação entre palavras dentro de um pe-
ríodo frasal e dependendo do contexto em que são empregadas, as palavras
exercem diferentes funções. Uma palavra pode ocupar determinada função
numa oração e, noutra, apresentar uma função completamente diferente.
No contexto digital, uma imagem, uma postagem no Facebook, por exem-
plo, acompanhada de uma palavra ou frase precedida de hashtag, resulta
numa ‘titulação’ da postagem, numa combinação de imagem e título que
formam um eixo combinatório, sintagmático através da tag apresentada.
As hashtags e as palavras presentes nos cartazes sinalizam e sintetizam
sobre o que está sendo comentado no espaço da circulação da internet e
fora dela. Na web, estas frases suscitam possibilidade de vários sentidos e
efeitos não controláveis, cuja força está exatamente na desarticulação entre
a lógica da oferta destas mensagens e o destino dado pelos que delas se
aproximam/se apropriam – não havendo uma instância reguladora, mas
circulatória. E a oferta é múltipla e difusa.
184
Capítulo 3
DEBATES
Carlos Locatelli
Adriana Montanaro-Mena
Sandra Bitencourt de Barreras
Laerson Bruxel
Denise Avancini Alves
Josemari Poerschke de Quevedo
Carmen Regina Abreu
Alexandre Haubrich
Adriane Figueirola Buarque de Holanda
Comunicação pública e barragens
Estratégias e atores
Carlos Locatelli
Introdução
187
No caso das hidrelétricas brasileiras, a comunicação em torno desses
projetos tem uma peculiaridade: ela “nasce” pública em decorrência da exi-
gência legal de que o detentor da concessão pública implante um programa
de comunicação que, em tese, antes de atender suas demandas e interesses,
deve informar a população atingida pelo empreendimento. Isso está previs-
to direta e indiretamente em diversos artigos da Constituição Federal (Ar-
tigos 5, 37, 220 a 224) que contemplam o direito do cidadão de informar,
de se informar e de ser informado, e se operacionaliza, entre outros, pelas
resoluções do Conama que definem os parâmetros do Estudo de Impacto
Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) em cada
empreendimento. Entretanto, a legislação vigente não normatiza o escopo,
as modalidades, os instrumentos e o conteúdo dessa comunicação, deixan-
do sua interpretação e estruturação por conta do concessionário, que pode
ser um ente privado, estatal, público, ou um consórcio com todos eles.
Do ponto de vista conceitual, a teoria da esfera pública de Jürgen Ha-
bermas (2003) e a sua perspectiva deliberacionista de democracia (1995)
fornecem a moldura que torna possível concretizar de forma satisfatória
os objetivos propostos pelas pesquisas, especialmente ao permitir a análi-
se dos processos de comunicação um exercício metodológico equilibrado
entre a comunicação percebida e desejada, entre o fato e a norma. A noção
de esfera pública habermasiana é particularmente rica em muitos sentidos.
Primeiro, a visão da sociedade em forma de sistema, com seus conceitos
de sistemas e subsistemas e de mundo da vida, do qual emerge a socie-
dade civil, fornece um modelo interpretativo que permite identificar com
razoável clareza a estrutura da sociedade em estudo. Segundo, a centrali-
dade da comunicação no modelo, onde os elementos dinâmicos gerados
pelas relações comunicativas entre pessoas e organizações – os conceitos
de esfera pública e opinião pública, em particular – fornecem um suporte
teórico para analisar a natureza, as características e o papel da comunica-
ção. Terceiro, a inter-relação com a esfera midiática possibilita integrar na
análise a produção da mídia, especialmente no sentido de que acolhem,
dão visibilidade e retroalimentam lances argumentativos, constituindo-se,
simultaneamente, em um espaço de debate público em particular e em uma
das mais importantes formas de deflagrar e retroalimentar o próprio debate
na esfera pública.
O objeto das pesquisas em torno das barragens é constituído especi-
ficamente pelos processos de comunicação vinculados à implantação de
cada empreendimento. Eles abrangem as estratégias, os produtos e os dis-
188
cursos da comunicação produzida por distintas organizações que disputam
os contenciosos em torno do empreendimento, bem como os da mídia que
se envolve nesse debate. O corpus envolve uma grande variedade de produ-
tos tais como releases, websites, relatórios, artigos, discursos, espaços pagos
em programas de rádio e jornais, notas públicas, jornais próprios, cartazes,
manuais e guias de orientação, histórias em quadrinhos, atas e memórias
de reuniões, apresentações eletrônicas e materiais jornalísticos e publicitá-
rios veiculados pela mídia.
Para a análise dos discursos dos produtos de comunicação organiza-
cional e da produção jornalística a investigação acolhe a proposta crítica
de Fairclough (2008), que estuda as influências das relações de poder no
conteúdo e na estrutura dos textos, adotando um sentido socioteórico de
discurso enquanto texto e inter-relação. Na adaptação do modelo de Fair-
clough à situação empírica encontrada na pesquisa privilegia-se alguns
aspectos. O primeiro é a dimensão prática social, no sentido de desvelar
as circunstâncias institucionais e organizacionais que moldam a prática
discursiva e, mais especificamente, os processos de produção da própria
prática discursiva. Ou seja, procura-se compreender a organização que está
fazendo comunicação, qual sua estratégia, a quem se destina e quais os efei-
tos pretendidos. O segundo diz respeito à dimensão textual dessa comuni-
cação. Nesse sentido, o modelo procurar identificar, entre outros pontos,
o que se está denominando de matriz cognitiva do discurso de cada ator,
identificadas pela agregação de conjuntos de argumentos e enquadramen-
tos, tomadas como categorias para caracterizar a comunicação de cada um.
Este artigo retoma parte da reflexão e das constatações das pesquisas
finalizadas e em andamento, focando especificamente o tema comunica-
ção pública. Duas questões interessam em particular: a) a disputa teórica
e empírica pelo conceito de comunicação pública e, como subproduto, o
evidente deslizamento semântico no sentido de dar cobertura a formas de
comunicação que historicamente não eram entendidas como pública; b) a
dificuldade de tipificar em termos conceituais e procedimentais como pú-
blica a comunicação dos atores em situações de disputa pelo espaço público.
Na primeira seção resgato distintos entendimentos teóricos e empí-
ricos de comunicação pública. Ao final, assumo uma perspectiva especí-
fica, de uma comunicação norteada pelo interesse público, que para ser
tipificada como tal exige um conjunto de requisitos que possibilitem aos
cidadãos, entre outros pontos, o conhecimento das questões, o diálogo en-
tre os diferentes e reserve a possibilidade de intervir nas decisões que lhes
189
dizem respeito. Ou seja, trata-se de uma comunicação com potencial para
empoderar a sociedade, de fortalecer as lutas do cidadão pela definição co-
letiva do interesse do Estado e da sociedade. Há nesta percepção uma ten-
são natural decorrente da dependência conceitual à tipificação de interesse
público como dado. Nesse sentido, e coerente com a escolha teórica ampla,
entende-se que do ponto de vista conceitual (e, portanto, naturalmente ide-
alizado), o interesse público somente pode ser definido como o output de
um debate público.
A segunda seção reflete as observações de campo sobre a natureza e
os processos de comunicação de atores em disputa pelo espaço público. A
análise desse tipo de situação exige considerar especificamente a comuni-
cação das organizações, tratada na tensão teórica entre as distintas percep-
ções de comunicação pública e estratégica, decorrentes de uma tentativa
de aproximação do campo da comunicação organizacional de teorias que
reivindicam posições mais transparentes desses atores, quer seja dentro do
próprio campo mas também fora dele, como na teoria da esfera pública.
Daí a necessidade de uma incursão na própria teoria das organizações para
se analisar a natureza das organizações e os limites estratégicos da comuni-
cação que produzem.
Ao final apresento uma proposta de análise dinâmica para tipificar a
comunicação pública a partir das sucessivas comunicações de organizações
inseridas em um debate público, procurando esclarecer se ou o quanto co-
municações estratégicas oriundas dessas organizações podem contribuir
para limitar ou reforçar a construção do interesse público.
191
to nos anos 50 e 60 e a “concepção idealística de comunicação social” da
igreja católica latino-americana em torno da Teologia da Libertação. Não
por coincidência, projetos que em seu âmago tinham fortes diferenças nas
percepções de público.
Nesse cenário, interferiram ainda os modelos teóricos de comunica-
ção produzidos para a transferência de tecnologias para o campo por meio
da extensão rural (em especial o difusionismo) e as influências da Nova Or-
dem Mundial de Informação e Comunicação da Unesco (Nomic). A par-
tir dos anos 70-80, influenciaram a discussão as crescentes reivindicações
da sociedade em torno do direito à informação, em meio ao processo de
redemocratização do país, período em que se observa um grande esforço
conceitual e político de inúmeros autores e atores sociais para criticar os
modelos de comunicação associados ao regime militar. Mais recentemente,
destacam-se intervenções e reivindicações da sociedade civil, das empresas
e de um Estado que tenta desvencilhar-se de seu próprio passado.
Castro (2006) aponta razões históricas para até os anos de 1980 o
domínio público no Brasil aparecer “subsumido ao domínio estatal”. Tal
fato não se deve ao gigantismo do Estado como fornecedor de serviços
públicos, tal como ocorreu em países com regimes de bem-estar social,
mas sim com por conta da prevalência de interesses privados das elites nas
estruturas estatais e de práticas clientelistas na política e administração pú-
blica. Esse espaço público deformado e incrustado nas esferas do Estado,
segundo a autora,
[...] correspondia a um alargamento da esfera do privado, que acabava
por florescer no interior das próprias estruturas estatais e corroía as pos-
sibilidades de que interesses privados, mas não originados dos segmen-
tos das elites, conseguissem se manifestar. Ao mesmo tempo, a relação
quase promíscua entre o privado e o estatal dificultava enormemente
que se constituísse, de forma clara e visível, o interesse comum, público,
no sentido republicano do termo. (Castro, 2006, p. 142).
Por conta disso, está em curso nas últimas duas décadas um grande
esforço para efetuar um deslizamento semântico do atual momento da po-
lítica brasileira em relação a períodos anteriores, especialmente a ditadu-
ra militar, em torno de terminologias como comunicação governamental,
comunicação política, publicidade governamental e propaganda política2.
2 Evidentemente que não está se considerando esse movimento apenas como retórico, mas se quer aqui
destacar essa dimensão, para além das modificações práticas que ocorreram na comunicação do Estado
(que em nosso entender, pragmaticamente, sempre é a do governo que o ocupa) a partir da redemocra-
tização do país.
192
A substituição dessas terminologias por comunicação pública é resulta-
do da necessidade de legitimação de um processo comunicativo de res-
ponsabilidade do Estado e/ou do governo que não quer ser confundido
com a comunicação que se fez em outros momentos da história política
do país. Expressões como marketing político, propaganda política ou
publicidade governamental têm conotação de persuasão, convencimen-
to e venda de imagem, em suma, do que ficou conhecido como “mani-
pulação das massas (Brandão, 2009, p. 10).
Nessa tessitura histórica, política e cultural a autora elenca cinco áreas
diferentes de conhecimento e atividade profissional que conferiram múlti-
plos significados para comunicação pública no Brasil.
Primeiro, quando identificada com os conhecimentos e técnicas da
área de comunicação organizacional: nesta acepção, a comunicação tem
por objetivo o mercado, visando atingir públicos (consumidores), externa-
lizando preferências das corporações com o intuito de vender, lucrar, obter
vantagens pessoais, status e poder.
Segundo, quando identificada com comunicação científica, no sentido
de criar canais de integração entre a ciência e a vida cotidiana, tais como a
transferência de novas tecnologias nas áreas da saúde e agricultura, em um
cenário onde o método difusionista tornou-se hegemônico.
Terceiro, quando identificada com a comunicação do Estado ou do
governo: nesse caso, é entendida como uma responsabilidade inata dessas
instituições e suas organizações estabelecer fluxos de informação e comu-
nicação capazes de fomentar a cidadania, estabelecer uma agenda pública,
prestar contas, estimular o engajamento cívico e promover o debate públi-
co. “Trata-se de uma forma legítima de um governo prestar contas e levar
ao conhecimento da opinião pública projetos, ações, atividades e políticas
que realiza e que são de interesse público” (Brandão, 2009, p. 5).
Quarto, quando identificada com comunicação política: nesse caso
trata-se de estudos que analisam a comunicação associada ao interesse pú-
blico e seu lugar de direito no espaço público.
Quinto, quando identificada com estratégias de comunicação da so-
ciedade civil organizada: diz respeito à comunicação comunitária ou alter-
nativa, na qual comunidades, organizações do chamado Terceiro Setor e
movimentos sociais assumem a comunicação a partir da percepção de que
as responsabilidades públicas pertencem a toda a sociedade e, principal-
mente, não são exclusividades do Estado.
Para além da taxonomia compilada por Brandão, observa-se um gran-
de esforço para “reconceituar” comunicação pública a partir de distintos
193
campos e conceitos já estabilizados. Observa-se ainda que o “revival” do
conceito está intimamente vinculado às trajetórias profissionais, vincula-
ções políticas (em seu sentido amplo) e experiências concretas em comu-
nicação de cada autor com o Estado (o governo federal, o município), o
mercado (a empresa) e a sociedade civil (o movimento social, a ONG).
O ponto em comum ou de aproximação entre eles, conforme se retira de
Brandão (2009), é o paradigma de uma comunicação voltada à construção
da cidadania. Ou como aponta a autora, a tentativa de compreender comu-
nicação pública como “resultado do poder do cidadão quando organizado
e constituído como sociedade civil”(Brandão, 2009, p. 30).
As propostas de autores como Duarte (2009, 2011) e Mello (2004),
embora com consideráveis diferenças entre si, partem da dimensão do Es-
tado ou governo e procuram agregar a extensão “de interesse público” ao
conceito, entendida via de regra como formas de incorporação das deman-
das da sociedade civil à comunicação do Estado ou governo.
Duarte (2009, 2011) desenha um modelo no qual a comunicação pú-
blica ou “ambiente de comunicação de interesse público” seria regida por
um “espírito público para lidar com a comunicação de interesse coletivo” e
contida em um “ambiente de comunicação de interesse privado” e compre-
enderia a comunicação governamental (que trata dos fluxos de informação
entre o Executivo e a sociedade), a comunicação política (discursos e ação
na conquista da opinião pública), mais o que “está relacionado às demais
instituições do Estado, (Legislativo e Judiciário), ao Terceiro Setor, às ins-
tituições representativas e “em certas circunstâncias às ações privadas”. In-
teressante observar que no modelo de Duarte o que diz respeito ao Estado
(Executivo, os demais poderes e o governo em si), ao sistema político (os
partidos), bem como as organizações não governamentais e os movimen-
tos sociais estão inseridos integralmente no domínio público, denotando
uma autonomização idealizada em relação ao ambiente privado. Entretan-
to, atores como a imprensa, as empresas, as entidades representativas e os
cidadãos estão tipificados como híbridos, pois se situam parte no ambiente
público e parte no ambiente privado.
Mello (2004) define uma forma de comunicação que seria de interes-
se público e se opõe à visão de comunicação pública estritamente como
comunicação de governo enquanto uma das funções de gestão pública de-
legadas pelo ato eleitoral. “A comunicação de governo é tradicionalmente
praticada – e em linhas gerais de forma consentida pela sociedade – sob a
ótica do instrumento para a construção da imagem e do canal de repasse
194
de informação oficial” (Mello, 2004). A perspectiva toma como referência
a comunicação produzida pelo Estado, mas agregando substancialmente,
além dos interesses gerados no interior da gestão pública, as demandas
provenientes da sociedade civil. Ou seja, é uma comunicação de forte ins-
piração habermasiana e deliberativa, que tem como centro o protagonismo
transformador da sociedade civil, por meio da possibilidade concreta de
interferir nas decisões públicas. Seu objetivo prioritário é adensar o pró-
prio espaço público, fomentando simultaneamente o acesso à informação,
o esclarecimento, a discussão, a mobilização e a construção e mecanismos
que permitam interferir na definição e na condução das políticas públicas
por meio da participação. Não se trata, portanto, apenas de comunicação
em um sentido funcional, mas de um processo compartilhado entre a co-
municação e a política que visa definir o que o governo efetivamente faz e
vai fazer.
Muito próximo da relação com a participação, mas bem distante do
Estado, López (2011, p. 61) propõe um conceito de comunicação pública
desvinculada de qualquer organização específica, embora fique evidente
que sua perspectiva é a de empoderamento da sociedade civil, ao defendê-
-la enquanto advocacy, voltada à mobilização social para a resolução de
conflitos sociais. Ou seja, a comunicação somente “é pública” quando se
preencheriam duas condições: deve ser resultado de sujeitos coletivos e
se referir à construção do público. O papel da comunicação pública se-
ria “conseguir que pessoas diferentes, diversas e plurais possam harmoni-
zar e atingir propósitos comuns, sem renunciar à sua diferença nem à sua
diversidade”.3
Situados em outro campo, mais próximo da comunicação das orga-
nizações, autores como Costa (2001), Kunsch (2000), Mattos (2009, 2011),
Rolando (2010, 2011) e Haswani (2011), entre outros, defendem que a co-
municação organizacional pode contribuir para uma convergência entre os
interesses públicos e privados. Ou seja, a comunicação pública não seria ape-
nas uma prerrogativa exclusiva de instituições públicas e a comunicação das
organizações privadas pode convergir para formas de comunicação pública.
Na visão de Kunsch (2000), para a comunicação organizacional con-
tribuir para uma convergência entre os interesses públicos e privados, as
3 No seu modelo de advocacy, López articula comunicação e participação: para cada nível de comuni-
cação corresponde um nível de participação. No mais baixo, a disponibilidade de informação corres-
ponderia à baixa participação. À medida que o nível ou grau de comunicação aumenta, permitindo
a consulta para o nível de consulta (expressão de opiniões), seguido de intercâmbio de argumentos
(deliberação), negociação de interesses (harmonização) e comprometimento com a decisão (correspon-
sabilidade).
195
organizações deveriam (a) “repensar os paradigmas tradicionais dominan-
tes, reinventando novos, capazes de perceber as demandas da sociedade”;
(b) adotar uma “visão crítica do mundo e das coisas e uma interpretação
das leituras do ambiente social” e (c) considerar uma nova dimensão social
das organizações, com “novos papéis na construção da cidadania em par-
ceria com o Estado e a sociedade civil”.
Outra perspectiva de abordagem da comunicação pública ancora-se
nos estudos da política. Weber (2007) coloca a comunicação pública como
um campo da comunicação que se situa entre os limites e as convergências
entre o público e o privado, entre os interesses dos mídias, do Estado e o
“interesse dos outros”, onde o interesse público surge enquanto princípio
das instituições e justificativas do Estado republicano, contemplando um
conjunto de requisitos que possibilitem aos cidadãos, entre outros pontos,
o conhecimento das questões, o diálogo entre os diferentes e reserva a pos-
sibilidade de intervir nas decisões que lhes dizem respeito.
[...] a comunicação pública se constitui a partir do momento em que o
interesse público está em jogo e temas relacionais (ambiente, ciência,
cotas, aborto, salário) circulam em redes instadas a se manifestar e che-
gando à mobilização social, especialmente quando os temas privilegiam
seus saberes e suas práxis (Weber, 2007, p. 105).
Para Weber e Baldissera (2009, p. 13), seja nas modalidades informa-
tiva, persuasiva, institucional ou híbridas, “a comunicação pública está vin-
culada à difusão e ao debate em torno de temas de interesse público, temas
de interesse vital para o Estado, a política, a sociedade, os indivíduos e,
como tal, possuem capacidade para tensionar e repercutir posicionamen-
tos e exigir respostas”.
Dela fariam parte todas as redes de comunicação de uma sociedade
que tornam “pública” a própria comunicação da sociedade:
Redes de comunicação social (sociedade civil organizada, entidades de
representação, grupos organizados, organizações sociais); de comuni-
cação política (governo, parlamento, partidos e políticos); comunicação
do Judiciário (poderes vinculados ao Judiciário e às diferentes esferas
jurídicas); comunicação científica e educacional (instituições de ensino,
centros de pesquisa, agências de fomento); comunicação religiosa (ins-
tituições, grupos, igrejas, seitas que fazem circular discursos esotéricos,
espirituais, religiosos) e os sistemas de comunicação midiática (organi-
zações de produção e circulação de produtos jornalísticos, publicitários
e de entretenimento) (Weber, 2007, p. 19).
196
Mas Weber (2009, p. 74) observa diferenças nas ações de comunicação
de organizações privadas e públicas (governos, Legislativo, Judiciário, fun-
dações). Enquanto nas organizações privadas “todas as ações comunicacio-
nais estão direcionadas à venda de seus produtos e serviços, à ocupação de
mercado e à conquista de um consumidor fiel e insatisfeito”, nas públicas
interessa “prestar serviços, angariar opiniões favoráveis e ter uma imagem
pública que gere opiniões favoráveis, posicionamentos e votos”. E embora o
Estado cumpra o princípio da comunicação pública, ela “sempre é necessa-
riamente estratégica, pois a política e a criação e a circulação de produtos e
discursos obedecem a legítimos interesses das instituições do Estado e de-
vem alcançar objetivos. Isso não significa que a ética ou a verdade estejam
sendo burladas” (Weber, 2011, p. 106).
Diante da evidente polissemia do conceito, “que por conta disso pode
nem ser um conceito”, Gomes (2010) propõe retirar a discussão em torno
do emissor (ou das instituições emissoras) e perceber a discussão da comu-
nicação pública numa perspectiva mais ampla, no jogo político e na pró-
pria comunicação, especificamente nas “iniciativas de comunicação com a
proposta de empoderar a sociedade, de fortalecer as lutas dos cidadãos pela
definição coletiva do interesse do Estado e da sociedade”. Nesse sentido, a
comunicação pública estaria ancorada na racionalidade e voltada para: (a)
o fortalecimento da capacidade de promover o aumento da concorrência
de cidadania, na disputa pela decisão política do Estado (com partidos,
governos, agências etc.); (b) o aumento da transparência do Estado e as for-
mas de argumentação, compromissos e proposição dos agentes (controles
do Estado-objeto pelos cidadãos-sujeitos), e (c) iniciativas de comunicação
civis e níveis importantes de informação do cidadão sobre o Estado.
Logo, poderiam ser consideradas comunicação pública iniciativas de
comunicação que visassem reforçar a sociedade de direitos e a justiça so-
cial, a diversidade de atores, sujeitos agentes, instâncias, meios para que
minorias políticas se representem na esfera política: “Qualquer tipo de co-
municação que vá nesse sentido é relevante” (Gomes, 2010).
Em uma perspectiva semelhante, Maia (2010) entende a comunicação
pública como a que está entre o Estado, a sociedade civil e o mercado, a comu-
nicação da esfera pública, o próprio debate público, que visa o interesse público.
Então, desde que o debate seja a sincera intenção dos atores a comunicação pú-
blica pode ser produzida por qualquer um que integra cada um dos sistemas.
De modo geral, pode-se dizer que o termo comunicação pública en-
contra-se mais associado a uma condição de visibilidade das coisas (no
197
sentido de publicizar, de dar a conhecer, em oposição ao segredo), a ca-
racterísticas de determinadas temáticas (que encerrem ou conquistam o
status de interesse público e promovam a ampliação da cidadania), a natu-
reza das instituições e organizações e as formas históricas com que tratam
essas questões (especialmente o Estado) e a determinadas características
que uma forma de comunicação pode assumir (quando é entendida como
resultado do debate público). A perspectiva adotada neste trabalho, consi-
derando relevantes todos os demais, privilegia este último aspecto, ou seja,
entende a comunicação pública a partir das possibilidades abertas pela teo-
ria da esfera pública e o modelo deliberacionista de democracia, enquanto
uma comunicação que se dá, que se constrói e constrói a própria esfera
pública.
198
rir que estratégia diz respeito à ação humana no futuro. Ou seja, trata-se de
uma ou conjunto de ações que permitem reduzir o grau de incerteza quanto
ao futuro, induzir de modo a torná-lo mais seguro e convergente a objetivos
desejados previamente, o que pode implicar na necessidade de se induzir
outras pessoas a aderirem ou aceitarem em algum grau as ações da estraté-
gia em curso, ou, no limite, neutralizar eventuais ações contrárias. De modo
muito simples, estratégia é “[...] um método ou um conjunto de métodos
para a resolução de um problema” (Pérez, 2001, p. 43, tradução nossa).
A estratégia tem origem militar ou estaria assentada em um “para-
digma militar de la estratégia” (Pérez, 2001), com seus primeiros registros
entre os séculos V e VI A.C, na Grécia e na China, e relaciona-se não ape-
nas ao uso da força, mas também ao uso da linguagem, da comunicação e
da retórica.
A vinculação estreita entre o paradigma militar e estratégia perdurou
até meados do século XIX, quando ela alçou à condição de disciplina cien-
tífica, sendo especialmente desenvolvida no século XX a partir dos estudos
da teoria dos jogos. Nesse movimento, sua aplicação passou do campo mi-
litar para o mercado e as mais distintas relações entre organizações e pes-
soas, sendo uma de suas principais contribuições a possibilidade de estra-
tégias cooperativas (o que semanticamente causava certo problema diante
de seu sentido original). Ao situar-se entre a analogia da guerra militar e
a guerra do mercado, particularmente no campo das chamadas ciências
empresariais, a estratégia encontrou no marketing um terreno fértil para
sua aplicação, passando depois para o campo da publicidade e “[...] desde
lá à comunicação pública em seu sentido mais amplo” (Pérez, 2001, p. 44,
tradução nossa).
Simultaneamente é preciso considerar mudanças que ocorreram ao
longo do século XX nas próprias organizações. Na esfera privada, o au-
mento da concorrência, os novos paradigmas sociais e ambientais, a pres-
são de partes interessadas (stakeholders) por transparência (exigida por
investidores, consumidores, ambientalistas, comunidades) fez com que as
organizações não apenas se legitimassem por meio de um cálculo econô-
mico fundado no passado (o lucro no exercício anterior), mas um cálculo
socioeconômico que aferisse resultados do passado e olhasse para o futuro
(o lucro do exercício anterior e a previsibilidade dos exercícios futuros).
No plano da comunicação das organizações, essa complexa dinâmica
provoca um deslocamento: ela é instada a contribuir para resolver ques-
tões internas (cultura empresarial, identidade, liderança, imagem etc.) e
199
externas (imagem, identidade, diálogo com os públicos, aceitação social,
motivação de compra). A diferença não é meramente semântica e estaria
na relação entre o todo (estratégia) e a parte (comunicação estratégica).
Ou seja, no âmbito da estratégia de uma organização há uma estratégia de
comunicação que pode ser (e em geral é) composta por “n” comunicações
estratégicas, como se observa no diagrama a seguir5:
200
[...] essa forma de interação simbólica que denominamos comunicação
merece o qualificativo de estratégica quando o emissor decide e pré-
-elabora conscientemente e de antemão, de acordo com alguns objeti-
vos determinados, tendo em conta o contexto das tendências políticas,
econômicas, socioculturais e tecnológicas, e, sobretudo, as possíveis de-
cisões e reações dos públicos receptores que com seus cursos de ação
podem favorecer ou prejudicar o êxito dos ditos objetivos (adversários,
competidores, empregados, aliados, consumidores, usuários etc.) (Pé-
rez, 2001, p. 462, tradução nossa).
201
Assim, do ponto de vista do emissor pode haver intencionalidade per-
suasiva ou não, do ponto de vista da mensagem toda comunicação tem um
componente persuasivo, do ponto de vista do receptor se aplicará a partir
de seus pontos de vista, reconhecendo as intenções a trajetórias do emissor
e do ponto de vista dos efeitos pode haver comunicações altamente persu-
asivas sem intencionalidade do emissor.
202
sentido de que expressa o desejo da organização em relação a um nível
de visibilidade e deliberação para cada temática. Mas a dinâmica que se
estabelece em situações de barganha e argumentação no espaço público,
e especialmente quando atingem o espaço midiático, pode provocar o que
Maia (2011) denomina de “interação transformativa”.
A esfera pública não se resume, ou tende a não se resumir quando
trata de assuntos complexos que envolvem múltiplos atores, a um ponto no
tempo: ao contrário, é um processo que poderia ser definido pelas sucessi-
vas visibilidades e discussões em uma série intertemporal, até que os par-
ticipantes chegassem a algum tipo provisório de consenso, pois os interlo-
cutores dificilmente tendem a alcançar algum tipo de consenso definitivo.
Para o êxito desse processo “lento e difícil”, Maia (2006) aponta duas
condições ou capacidades “cruciais” para que se deflagre um processo de
cooperação que resulte em algum tipo de consenso:
[...] primeiro, a permanente accountability dos atores em situações pro-
blemáticas, isto é a necessidade de ser responsivo às objeções do outros,
de prover respostas às suas demandas e considerar suas preocupações;
segundo, a capacidade de se engajar em uma comunicação generalizada
com outros interlocutores presentes na esfera pública. (Maia, 2006, p. 161).
Também é preciso registrar que ao nível da organização a própria
estratégia é permanentemente revista como resultado de suas estratégias
originais contrastadas com resultados passados e expectativas em relação
à pressão de stakeholders, das condições macropolíticas e econômicas, ins-
titucionais, da ação da mídia, dos demais atores etc.
Outro princípio do que se está formulando é que, como se trata de
organizações, independentemente de sua natureza jurídica, quer sejam pú-
blicas, privadas, estatais e não governamentais, elas têm formal ou infor-
malmente uma estratégia, que contempla diversas subestratégias (entre elas
a estratégia de comunicação), que em algum grau maior ou menor produz
comunicações estratégicas, procurando permanentemente, a despeito do
mérito que possam ter, imputar ao interesse público interesses que de fato
são seus. Daí a noção de que, por essência, toda comunicação de orga-
nizações carrega certo grau estratégico, mesmo quando não formalizado,
embora reconhecendo muitas diferenças nas condições de entrada decor-
rentes da natureza e dos objetivos que justificam a existência da própria
organização: se organizações capitalistas strictu sensu, se organizações do
Estado ou da sociedade civil (e considerando as inúmeras possibilidades
dentro de cada um desses universos).
203
As características inatas das organizações (se de natureza estatal, pú-
blica, privada de capital aberto ou fechado, ONG, movimento social etc.)
na condição de entrada no debate público podem servir de referência em
alguma medida, sinalizando se mais propensas (quer por altruísmo ou por
imposição legal) à defesa de interesses privados (e de quanto eles poderiam
ser negociados) ou de interesses públicos (especialmente um campo de
defesa da pessoa humana e da sociedade civil assim entendido universal-
mente, tais como direitos humanos). Mas a natureza da instituição, embora
possa ser um critério interessante, parece ser insuficiente para compreen-
der a ação dessas organizações em sociedades complexas. Uma empresa
pública, por exemplo, pode procurar por meio de sua comunicação impu-
tar ao debate público seus interesses particulares como se públicos fossem
tanto quanto uma organização privada que também defende os mesmos
interesses.
Considerando-se que a comunicação pública, na esfera pública, é mais
difícil de visualizar e analisar, e que a comunicação estratégica é mais vi-
sível e se manifesta pela comunicação de cada organização envolvida em
uma disputa no espaço público, defende-se aqui que de fato pode ser mais
produtivo do ponto de vista científico observar as mudanças ao longo do
tempo nas próprias mensagens estratégicas, em termos de visibilidade, ac-
countability e discutibilidade. Ou seja, se elas permanecem refratárias às
possibilidades de diálogo abertas nas interações com as demais comunica-
ções, em um ambiente de debate que tem como resultante uma propensão
da comunicação ao interesse público a partir do princípio da “interação
transformativa”. Presume-se que ao se tornar pública e expor-se ao debate
público, uma comunicação tende a se tornar mais pública (no sentido da
visibilidade e do debate) quanto mais esse debate avança e se aproxima
do consenso em torno de interesse público (ou seja, reduzindo o interesse
pessoal).
Uma comunicação seria mais ou menos estratégica (e por consequência
mais ou menos pública) sobretudo em relação a sua antecessora, conside-
rando-se que após ser submetida a uma “rodada” de visibilidade e discus-
são pública ela permanece com as mesmas características ou é modificada,
tanto na direção das características de uma comunicação estratégica ou na
direção de uma comunicação mais pública. Seu sentido, sua direção, indi-
caria se a comunicação estratégica da organização é mais propensa a par-
ticipar, restringir e, no limite, inibir o debate público ou, se ao contrário,
ela acolhe características e princípios deliberativos e tende a se tornar mais
204
pública ao longo do tempo. O grau e a intensidade dessas mudanças, evi-
dentemente, somente podem ser avaliados empiricamente em cada caso.
A análise de séries temporais – e não de comunicações isoladas ou ale-
atórias – que configuram trajetórias de comunicações estratégicas produzi-
das pelas organizações pode sinalizar e demarcar a intencionalidade dessa
comunicação, se ela ao participar do debate público “puxa” esse mesmo
debate para o interesse público ou para o interesse privado.
Resumindo, um dos grandes desafios enfrentados pela pesquisa é tipi-
ficar o que é comunicação pública quando organizações do campo público
produzem comunicação que pode ter um viés não público e organizações
do campo privado produzem comunicação que pode ter viés público. As
experiências empíricas na área de barragens tem revelado que a tipificação
da comunicação pode iniciar na natureza das organizações, mas não se es-
gota nela. Esta variável – a natureza da organização – é condição necessá-
ria mas não suficiente para definir se a comunicação produzida por cada
organização em torno de um contencioso, sobre cada temática, em cada
momento no tempo é de natureza pública ou privada, no sentido de que
cada uma delas pode convergir ou divergir de um interesse público que, na
perspectiva adotada, não é dado de antemão, sequer pelo Estado, mas re-
sulta das dinâmicas do próprio debate público. Assim, modelos mais com-
plexos que envolvam a análise simultânea das estratégias das organizações,
de suas estratégias e séries temporais de comunicações em um ambiente de
disputa pelo interesse público parece ser um caminho mais promissor para
responder com maior segurança o que é comunicação pública e em que
condições ela se materializa.
205
A resposta do Brasil à CIDH
Redefinindo a participação e a consulta indígena
sobre Belo Monte
Adriana Montanaro-Mena1
Introdução
1 Esta pesquisa é parte da tese de doutorado (no Instituto de Comunicação, Universidade de Viena) so-
bre estratégias de comunicação e discursos em torno a dois megaprojetos hidroelétricos, a saber: Belo
Monte e Diquis (Costa Rica). Agradeço às editoras deste livro pela possibilidade de contribuir com este
artigo, à Oscar Montanaro e Gustavo Gomes por suas observações, assim como a Christiane Severo pela
tradução do espanhol para o português.
2 No marco do (PAC) e da “Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana” (IIR-
SA) ver Leroy e Malerba (2010).
3 Fearnside (2015, p. 12-13).
4 Acevedo Marin (1996).
5 Ver Locatelli (2012); Hernandez e Magahães (2011); especificamente no caso de Belo Monte, ver Zhouri (2012).
207
cisões que afetam seu território e cultura, assim como o direito à consulta
prévia, livre e informada sobre projetos específicos.
Confrontando-se com grandes projetos econômicos, a existência dos
direitos indígenas não implica a garantia do seu cumprimento. Além dis-
so6, a inexistência de um “modelo específico de participação”7 possibilita
que um governo alegue ter realizado a consulta apesar de que as condições
não tenham sido cumpridas8, sendo esta suposta falta de consulta uma das
razões mais frequentes nos casos apresentados ante os órgãos de controle
dos direitos indígenas9. Sendo de fato este o ponto de partida para esta
pesquisa.
Como tema, a falta de consulta indígena é parte dos discursos, que por
sua vez motiva estratégias10 específicas dos mais importantes atores envol-
vidos no protesto social contra o Projeto de Aproveitamento Hidroelétrico
Belo Monte (abreviado como Belo Monte) que atualmente está sendo cons-
truído no Rio Xingu, Pará. O Movimento Xingu Vivo para Sempre e outras
organizações11 apresentaram em novembro de 2010 na CIDH uma petição
de medidas cautelares em favor das comunidades tradicionais (povos indí-
genas, pescadores ribeirinhos, campesinos, extrativistas, quilombolas) da
Bacia do Xingu12. A CIDH outorgou medidas cautelares em favor dos inte-
grantes das comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, a saber: “Arara
da Volta Grande do Xingu; Juruna de Paquiçamba, Juruna do Kilômetro
17; Xikrim de Trincheira Bacajá; Asurini de Koatinemo; Kararaô e Kayapó
da terra indígena Kararaô, Parakanã de Apyterewa; Araweté do Igarapé Ipi-
xuna; Arara da terra indígena Arara; Arara da Cachoeira Seca e as comuni-
dades indígenas em isolamento voluntário”13. Neste contexto, a CIDH pede
que o Brasil detenha o processo de licenciamento ambiental de Belo Monte
até que se execute uma série de medidas em favor dos beneficiários14. O
governo do Brasil respondeu mediante15: (a) comunicados de imprensa (re-
6 Ver por exemplo: Mazariegos (2014).
7 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 18-19).
8 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 6-7).
9 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 8).
10 Sobre o movimento social contra o projeto inicial Kararaô e Belo Monte ver Bratman (2014).
11 Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Prelazia do Xingu, Con-
selho Indigenista Missionário (Cimi), Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH),
Justiça Global e Associação Interamericana para a Defesa do Ambiente (AIDA).
12 Melo et al. (2010).
13 Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2011).
14 Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2011).
15 Ver Kletzel, Timo, Cárdenas, e Chillier (2015, p. 210).
208
produzidos com certa fidelidade por grandes meios de comunicação)16 re-
jeitando abertamente o pedido; (b) decisões diplomáticas (incluindo ame-
aças de deter a verba destinada para a OEA) e (c) informações oficiais da
CIDH, que concluem pedindo deslegitimar as medidas cautelares17.
O objetivo do presente artigo18 é analisar ditas informações, especi-
ficamente a resposta ao ponto sobre a consulta indígena – prévia, livre e
informada –, exposta em 10 páginas – de um total de 50 –. Nesta pesqui-
sa, considera-se que a participação e a consulta indígena são processos de
comunicação que geram discursos suscetíveis a serem avaliados à luz dos
critérios da Convenção 169, para o qual a definição de diálogo segundo
Flusser (2009) resulta esclarecedora. A análise avalia a resposta governa-
mental considerando esta definição e seguindo os principais critérios da
Convenção19, assim como uma interpretação da mesma20. Dado o objetivo
deste artigo, não se consideram as fraquezas ou os problemas do texto da
Convenção, nem as críticas que têm sido feitas ao mesmo.
Juntamente com a metodologia de estudo de caso, a análise dos resul-
tados segue aspectos metodológicos de Strauss e Corbin21 e da análise de
discurso baseada na sociologia do conhecimento22.
209
de natureza coletiva e contam com medidas especiais destinadas a protegê-
-los, pois inseridos em um Estado de Direito democrático, esses direitos
procuram salvaguardar as culturas dos povos indígenas e seus modos de
sustento26.
A Convenção 169 considera a consulta e a participação como princí-
pios fundamentais da governança democrática e do desenvolvimento in-
clusivo27, que leva em conta os problemas que enfrentam os povos indíge-
nas (incluindo a regularização da propriedade de terra, a saúde, a educação,
e o aumento da exploração dos recursos naturais) assim, sua participação
– nos âmbitos que os afetam diretamente – é um elemento fundamental
para garantir a equidade e a paz social através da inclusão e do diálogo28. A
Convenção 169 concebe que o desenvolvimento dos povos indígenas pode
ser construído mediante a consulta e a participação ativa nas suas próprias
propostas, de maneira que eles “possam decidir sobre suas próprias priori-
dades no que se relaciona ao processo de desenvolvimento e controlar seu
próprio desenvolvimento econômico, social e cultural”29.
Garantir o direito à participação e à consulta durante processos de
tomada de decisão é obrigação dos Estados que ratificam a Convenção, que
devem garantir e cumprir o estipulado de boa-fé30. Outras obrigações são:
• “consultar aos povos interessados, mediante procedimentos apro-
priados e, em particular, através de suas instituições representati-
vas, cada vez que se prevejam medidas legislativas ou administrati-
vas suscetíveis de afetá-los diretamente”31;
• garantir – estabelecendo meios para tanto – a participação li-
vre dos povos indígenas com respeito à adoção de decisões
em instituições “responsáveis por políticas e programas que os
concernem”32;
• “estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os
povos interessados, (...), antes de empreender ou autorizar qual-
quer programa de prospecção ou exploração dos recursos existen-
tes nas suas terras”, no caso de que “pertença ao Estado, a proprie-
26 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 14).
27 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 11).
28 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 12).
29 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 20), Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais (1989,
art. 7.1).
30 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 5).
31 Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais (1989, 1989, art. 6.1.a).
32 Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais (1989, 1989, art. 6.1.b).
210
dade dos minerais ou dos recursos do subsolo, ou que o mesmo
tenha direitos sobre outros recursos existentes nas terras”33
Para garantir consultas adequadas, existe a “possibilidade de delegá-
-las a outras instâncias”, pois os governos não são encarregados do processo
de consulta34. As consultas devem “ser formais, plenas e levadas a cabo de
boa-fé; deve-se produzir um verdadeiro diálogo entre os governos e os po-
vos indígenas (...) caracterizado pela comunicação e pelo entendimento, o
respeito mútuo, a boa-fé e o desejo sincero de alcançar um acordo”35. Am-
bas as partes devem chegar a um acordo, realizar negociações “genuínas e
construtivas”, evitar “demoras injustificadas”, cumprir com os acordos pac-
tuados e colocá-los em prática de boa-fé36. Vale mencionar que a consulta
não implica o direito a veto37.
A participação dos povos indígenas inclui planejar, coordenar, exe-
cutar e avaliar as medidas adotadas para a aplicação da consulta, a qual
depende de “circunstâncias sociais, culturais, geográficas, econômicas e
históricas específicas” tanto dos povos indígenas como do país38.
Apesar de seu caráter flexível, a consulta indígena não significa sim-
plesmente realizar um processo informativo, que seria linear ou em uma
só direção39, assim como, a participação indígena não se restringe a que os
povos indígenas expressem sua opinião e influenciem em medidas gestadas
no exterior de suas comunidades40.
Além de usar os critérios dados pela Convenção 169, propõe-se aqui a
definição de diálogo oferecida por Flusser, segundo a qual o diálogo “é um
método, graças ao qual, informações que estão armazenadas em uma ou
mais memórias, são intercambiadas para obter novas informações.”41
211
venção 169 pode estar vinculado – em geral – a três tipos de comunicação
pública.
Por um lado, ocorrem processos de comunicação pública a nível in-
terno das comunidades, na medida em que haja intercâmbio de informa-
ções e opiniões entre seus integrantes, seja em torno a temas relativos: ao
projeto em si, ao protesto contra o projeto, aos preparativos42 e execução da
consulta ou ao processo de negociação, por exemplo. É um processo de co-
municação sobre temas que – formal ou informalmente – convocam a co-
munidade a dialogar ou discutir sobre os mesmos. Nesse processo, não ne-
cessariamente há consenso interno na comunidade indígena. Dado o caso
de que várias comunidades indígenas se vejam afetadas pelo projeto em
questão, pode haver dissenso também entre elas. Outros atores externos,
que se relacionam com os integrantes da comunidade, podem participar
nesse diálogo, oferecendo argumentos em pró ou contra, ou informações
complementares. Neste contexto, não existe nenhuma forma institucional
de impedir que haja coerção de líderes indígenas por parte de atores inte-
ressados na realização do projeto, os quais lhes oferecem benefícios de dis-
tintas índoles. Estes benefícios estão geralmente ligados a satisfazer carên-
cias em serviços públicos, como saúde indígena, educação, infraestrutura,
é dizer, na maior parte das vezes são serviços que não foram atendidos com
anterioridade pelo Estado os governos locais.
Por outro lado, a consulta indígena está vinculada a um processo exter-
no às comunidades indígenas quando, inserida em protestos sociais contra
o projeto, a realização da consulta indígena é parte das demandas e reivin-
dicações dos movimentos indígenas, indigenistas ou – em geral – de mo-
vimentos sociais. O tema da consulta indígena pode ser posicionado pelos
movimentos sociais na agenda midiática, recorrendo a seus próprios meios
de comunicação ou logrando que os grandes meios divulguem notícias a
respeito. Ademais, o tema da consulta indígena pode “seguir outro caminho”
para chegar à esfera pública, a saber, passando através da esfera jurídica,
como quando os movimentos sociais, pertencentes ou ligados aos mesmos,
ativam mecanismos jurídicos que, por sua vez, levam a decisões jurídicas.
Na medida em que essas decisões tenham caráter noticioso, são – ou podem
ser consideradas – de interesse para a “grande” imprensa também.
Por último, a consulta realizada com vistas a procurar um acordo ou
a negociar é um processo de comunicação intercultural – como indica a
Convenção –, mas também – há de se agregar – é intersetorial, posto que
42 Ver o conceito de “pré-consulta” em Anaya (2011).
212
no diálogo houvesse representantes das partes, a saber: do setor indígena,
institucional (a instância que realiza a consulta) e empresarial (os represen-
tantes do projeto objeto da consulta). É um processo em que o diálogo é
fundamental, embora o possa ser considerado praticamente impossível no
caso de não ter havido processo de participação indígena antes do planeja-
mento dos projetos.
Diante dessas dinâmicas entre as esferas jurídica e pública, e conside-
rando que tanto a participação como a consulta indígena são processos de
comunicação, é ineludível pesquisar e analisar – a partir das Ciências da
Comunicação – os discursos que os Estados oferecem sobre a “aplicação da
consulta indígena” como direito reconhecido aos povos indígenas, que são
também direitos humanos.
213
trais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobrás.”46 Um desses estudos de via-
bilidade é o “estudo de natureza antropológica, atinente às comunidades
indígenas localizadas na área sob influência do empreendimento, devendo,
nos termos do § 3º do art. 231 da Constituição Federal, ser ouvidas as co-
munidades afetadas”.47 O estudo de natureza antropológica, chamado “Peça
Antropológica” está composto pelos “estudos do componente indígena do
Licenciamento Ambiental, do parecer da Funai [Fundação Nacional do Ín-
dio] e de documentos relevantes ao processo como documentos e manifes-
tações das comunidades.”48
A aprovação de dito decreto deu margem a uma Ação Civil Pública do
Ministério Público Federal (MPF), que considera a “necessidade de Oitiva
das Populações Indígenas para edição de Decreto Legislativo pelo Congres-
so Nacional”49 (segundo o artigo 231 §3º da CF/8850), isto é, tal decreto ig-
norou a determinação de que as “oitivas” sejam realizadas –exclusivamen-
te- pelo Congresso Nacional51. Sem embargo, a sentença de 2007 afirmou
que o Decreto não lesa o artigo constitucional52.
Em 2009, a Funai – órgão considerado pelo governo como o “respon-
sável por realizar e conduzir o processo de consultas junto às comunida-
des indígenas”53 – afirmou, no Parecer Técnico 21, ter realizado as “oitivas”
indígenas, o que consta – afirma – mediante atas e vídeos – em formato
DVD – de reuniões realizadas nas comunidades indígenas. Sem embargo,
esta versão de que uma consulta indígena foi realizada é desmentida por
vários atores. Por exemplo, os peticionários das Medidas cautelares ante a
CIDH apontam – e de fato é assim - que essas atas54 de reuniões da Funai
com as comunidades indígenas55 ”não mencionavam que as reuniões rea-
lizadas em algumas dessas comunidades deveriam ser consideradas ‘con-
214
sultas’ (...)”56. Líderes de comunidades indígenas de Volta Grande também
desmentiram a Funai:
Mais uma vez GRITAMOS que não fomos ouvidos, e denunciamos a
manobra mentirosa da FUNAI, IBAMA, ELETRONORTE, ELETRO-
BRÁS quando de má fé e por ocasião do componente indígena estive-
ram em nossas aldeias fazendo estudos antropológicos e apresentação
do projeto Belo Monte, ao afirmarem que não estavam realizando as
oitivas, que neste caso o congresso nacional viria ouvir todos os povos
indígenas da região. No entanto fomos surpreendidos com as declara-
ções do governo afirmando que já havia realizado as oitivas dos povos
indígenas. Denunciamos tal crime e pedimos providências urgentes.57
Em abril de 2011, quando a CIDH aprova as medidas cautelares, solici-
ta o Brasil a deter imediatamente o processo de licenciamento de Belo Mon-
te até que se tenha cumprido uma série de condições mínimas, entre elas,
“realizar o processo de consulta e de consentimento prévio, livre e informa-
do, tal como está estabelecido pela Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, assim como pela jurisprudência do sistema interamericano”58. O
governo brasileiro responde oficialmente que realizou um processo de “par-
ticipação informada dos povos indígenas” e que o demonstrará mediante
informações procedentes do Parecer Técnico 21 da Funai. Sem embargo,
nesse Parecer não se usa essa expressão em nenhum momento, ou melhor,
a Funai afirma que suas tarefas59 foram “realizar e conduzir o processo de
consultas junto às comunidades indígenas”60, e que “considera que cumpriu
seu papel institucional no processo de esclarecimento e consulta junto às
comunidades indígenas, (...), realizando diversas oitivas nas aldeias.”61
Em julho de 2011, a Assembleia da CIDH modificou o objeto das me-
didas cautelares com relação ao ponto da consulta prévia e o consentimen-
to informado, por considerar que o debate entre as partes “se transformou
em uma discussão sobre o mérito do assunto que transcende o âmbito do
procedimento de medidas cautelares”62.
Diferentemente da decisão da CIDH, e de forma independente uma
da outra, a Comissão de Especialistas em Aplicação de Convênios e Re-
56 Melo et al. (2010, p. 29).
57 Juruna, Ferreira, e Juruna, Sheyla Yakarepi da Silva (2010).
58 Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2011).
59 Interessante de analisar a Parte 01 do Parecer Técnico (2009a, p. 14).
60 Fundação Nacional do Índio (2009a, p. 13).
61 Fundação Nacional do Índio (2009a, p. 98).
62 Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2011).
215
comendações (CEACR da OIT) e o Relator Especial para povos indíge-
nas (da ONU) coincidem em sua leitura sobre a respectiva documentação
e informação oferecida pelo Governo em relação à consulta indígena no
caso de Belo Monte: a CEACR concluiu que os procedimentos realizados
“não reúnem os requisitos estabelecidos nos artigos 6 e 15 da Convenção”
nem “demonstram que se tenha permitido aos povos indígenas participar
de maneira efetiva na determinação de suas prioridades em conformidade
com o artigo 7 da Convenção”63, assim, solicita ao Governo que:
i) tome as medidas necessárias para levar a cabo consultas com os povos
indígenas afetados [por Belo Monte] em conformidade com os artigos
6 e 15 da Convenção, (...) antes que os possíveis efeitos nocivos de dita
usina sejam irreversíveis,
ii) em consulta com os povos indígenas tome medidas para determinar
se as prioridades de ditos povos têm sido respeitadas e se seus interesses
se veem prejudicados e em que medida, com vistas a adotar as medidas
de mitigação e indenização apropriadas (...)64
O Relator Especial, baseando-se na resposta do governo65, expressou
sua preocupação sobre os relatos de que os indígenas afetados não foram
consultados adequadamente sobre Belo Monte, nem foram incluídos no
processo que desembocou no início e na implementação do mesmo; reitera
o artigo 32 da Declaração sobre os direitos dos povos indígenas66, a saber:
Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos
indígenas interessados por condução de suas próprias instituições repre-
sentativas a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de
aprovar qualquer projeto que afete a suas terras ou territórios e outros re-
cursos, particularmente em relação com o desenvolvimento, a utilização
ou a exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 67
Esta parte tem como fim aclarar termos. Para entender a discussão da
falta – ou não – de consulta indígena no caso de Belo Monte, é fundamental
compreender as diferenças dos termos relativos à consulta e à participação das
comunidades indígenas no processo de tomada de decisões sobre Belo Monte.
63 Comisión de Expertos en Aplicación de Convenios y Recomendaciones (2012).
64 Comisión de Expertos en Aplicación de Convenios y Recomendaciones (2012).
65 Anaya (2010, p. 32-35).
66 Anaya (2010, p. 35).
67 Declaración de las Naciones Unidas sobre los derechos de los pueblos indígenas 61/295 (2007).
216
Conceito Referência
Consulta prévia, livre e informada Convenção 169, ratificada por Brasil (2002)
Medidas cautelares CIDH (2011)
“Oitivas indígenas”, pelo Congresso Nacional Art. 231, § 3º CF/8868
“Peça antropológica” Decreto Legislativo 788/2005 AHE Belo Monte.
Estudos de natureza antropológica
Audiências públicas Processo de licenciamento ambiental
(Não é exclusivo de povos indígenas.) correspondente a projetos hidroelétricos
“Oitivas indígenas nas aldeias” Parecer Técnico 21 da Funai
Consulta com as comunidades indígenas
Processo de participação informada dos povos Informações do Estado Brasileiro à CIDH
indígenas (MC-132) (2011), baseadas parcialmente
no Parecer Técnico 21 da Funai
217
Belo Monte, esclarecimento instrumentos do povos transcede o
especificamente:, e consulta junto internacionais indígenas”.72 âmbito do
“oitivas às comunidades aplicáveis”. A procedimento
indígenas” – em indígenas”, os Funai disse aos de medidas
cada Terra quais pedem indígenas que não cautelares”.73
indígena (TI)74 – realizar audiências eram as consultas
segundo a com os representantes e que estas “seriam
Convenção 169. do Congresso feitas em outro
Nacional”75. Funai momento”76.
sugere que esta
audiência seja
realizada.
Documentos Gravações das Gravações das Gravações das
anexados reuniões* reuniões* reuniões*
Atas das reuniões Parecer Técnico 21, Parecer
com indígenas incluindo atas das Técnico 21
reuniões
Cartas dos indígenas Depoimentos
pedindo “oitivas de indígenas
no Congresso
Nacional”
* As gravações -em DVD- são as mesmas nos três casos.
218
• receber informação (§148) em ger al, e especificamente sobre “pro-
gramas e medidas de mitigação e compensação” (§142), sobre o
“projeto, incluídos seus riscos e impactos”, e sobre “informações
detalhadas” do RIMA (§145); estar em capacidade de “posicionar-
-se sobre o empreendimento e seus impactos” (§148);
• participar de maneira “informada e qualificada” (§148);
• expor “as preocupações de suas comunidades” sobre Belo Monte
(§144).
219
o Parecer Técnico 21 (§142) –, e as “preocupações de suas comunidades
em relação ao empreendimento” (§143). Observa-se que as expectativas de
desenvolvimento ou os conhecimentos próprios da comunidade indígena
– sobre sua cultura ou os ecossistemas presentes em seus territórios, por
exemplo – não foram tema específico na agenda de ditas atividades. Não
há rastro de que tenham sido considerados, ao contrário, as demandas, a
desconfiança e a oposição de – pelo menos algumas etnias – com relação
a Belo Monte e aos projetos de mitigação, ou os questionamentos sobre a
“vazão reduzida”81 nem se mencionam na resposta governamental. Este tipo
de informação oferecida pelas comunidades indígenas, ainda presente no
Parecer Técnico, é eliminada da informação oficial oferecida pelo Governo.
A resposta governamental menciona que a Funai e órgãos governa-
mentais acompanharam o processo de licenciamento de Belo Monte82. Se-
gundo o Parecer Técnico 21, a informação foi oferecida pela Funai e pelo
“empreendedor, do projeto do AHE Belo Monte”83, ou seja, pelo consórcio
composto por “Eletrobrás/Eletronorte, Camargo Correa, Andrade Gutier-
rez e Odebrecht”84. Eles foram uma das fontes de dita informação, sendo
que a equipe técnica da Funai se reuniu com “empreendedores para es-
clarecimento sobre o projeto e suas diferenças ao longo do tempo”85. Ade-
mais, EIAs86 têm sido investigados e criticados cientificamente87 por conter
graves erros. Assim, resulta problemático que a informação provenha dos
atores interessados em construir Belo Monte. Estes aspectos88 geram sérias
dúvidas não somente sobre a objetividade da informação e o manejo da
mesma, senão também sobre a falibilidade dos estudos.
Para o governo ter modificado certas características iniciais da Usina
hidrelétrica –anteriormente Kararaô (projetada nos anos 1970), como a de
que o projeto (agora Belo Monte) não inundará nenhuma Terra Indígena
(TI, ou território indígena), é sinônimo – e “prova” – de ter levado em con-
81 Fundação Nacional do Índio (2009a, p. 139).
82 República Federativa do Brasil (2011, p. 27).
83 Fundação Nacional do Índio (2009a, p. 31).
84 Fundação Nacional do Índio (2009a, p. 1).
85 Fundação Nacional do Índio (2009a, p. 29).
86 Vale apontar o conflito de interesses dos consultores do EIA ou do Rima (Relatório de Impacto Am-
biental), pois esses “são produzidos por empresas de consultoria que dependem completamente do
proponente do projeto [Eletrobrás]. O proponente prepara os termos de referência, escolhe a empresa
vencedora, e paga pelos serviços” Fearnside (2015, p. 49).
87 Ver o trabalho do Painel de Especialistas de Belo Monte relativo a questionamentos científicos feitos ao
EIA/RIMA Magalhães y Hernandez (2009).
88 Esses aspectos refletem um problema inerente ao processo de informação emoldurado na consulta in-
dígena, com respeito às fontes de informação.
220
ta os povos indígenas89. Sem embargo, o governo não responde as críticas
e alertas científicas: por um lado se estima que para aumentar a produção
energética de Belo Monte se necessitará “uma série de represas a montante
atraentes para regular o fluxo do rio”, as quais “inundariam áreas grandes
de terra indígena”90; por outro lado, o impacto de Belo Monte segue sendo
imenso91 a altura de Volta Grande se desvia a água do Xingu por uma ex-
tensão de 100 km, o que causará graves impactos às comunidades tradicio-
nais e aos ecossistemas; a esses impactos se agregariam os do megaprojeto
de ouro a céu aberto (chamado Belo Sun) “a menos de 20 km da barragem
de Belo Monte”92, também em Volta Grande do Xingu.
Segundo a resposta do governo93, por exemplo, nas comunidades Pa-
quiçamba y Arara de Volta Grande (afetadas severa e diretamente por Belo
Monte) houve 3 reuniões respectivamente, uma por ano94. Fora das comu-
nidades, foram apresentados os EIA das TI Paquiçamba, Juruna do Km 17,
Arara da Volta Grande aos respectivos representantes indígenas (22, 23 e
24/04/2009). Isto desrespeita a Convenção95 que estabelece que o governo
deve oferecer suficiente tempo aos povos indígenas, garantir que a popu-
lação indígena conte com toda a informação necessária e a compreenda.
Não há nenhum indício a respeito de que tenha sido assim, considerando o
número mínimo de reuniões realizadas, e dada a complexidade da situação
e do empreendimento. A quantidade de tempo insuficiente não garante a
compreensão da informação –sendo esta, ademais, complexa e numerosa
–, nem a possibilidade de gerar processos de diálogo. Quando o Estado bra-
sileiro afirma que «É inegável que o procedimento das consultas respeitou
os costumes e tradições dos povos indígenas”96, esquece-se que impôs um
acelerado ritmo ao processo, desconsiderando a concepção de tempo que
têm os povos indígenas, a qual é inerente a seus costumes e tradições.
221
Não há indicadores de que conceitos fundamentais na Convenção
169 , como “diálogo verdadeiro e construtivo”, “boa-fé” ou “confiança
97
222
Mecanismos discursivos usados na interpretação do processo
223
objetivos que a CIDH procura preservar com relação à participação infor-
mada dos povos indígenas no processo de licenciamento ambiental “foram
e estão sendo atendidos por meio de importantes medidas que serão infor-
madas neste documento”, as quais “coincidem com aquelas identificadas
pela CIDH”106. Ademais, afirma que “(...) demonstrará que foram realiza-
das quatro audiências públicas, que contaram também com a participação
de lideranças (...)” e que: “Houve, também, mais de 40 reuniões específi-
cas com as comunidades indígenas, realizadas nas próprias aldeias (...).”107.
Conclui o Estado, repetindo que os objetivos identificados, entre eles o da
participação informada dos povos indígenas, “foram e estão sendo alcança-
dos por meio das medidas informadas” em sua resposta e que “essas medi-
das coincidem com as medidas específicas solicitadas pela CIDH.”108 Desde
o ponto de vista metodológico, isto implica analisar se as características do
processo de “participação informada dos povos indígenas” equivalem às
características do mecanismo de consulta apontadas pela jurisprudência
internacional em matéria indígena.
Resulta ambivalente se o governo sugere que o processo de partici-
pação foi prévio ao licenciamento ambiental de Belo Monte, em todo caso
considera com respeito à aprovação do Decreto legislativo 788/2005109 que:
“a consulta ao Congresso Nacional (...) seria desnecessária por não haver
aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas, tampouco supres-
são ou construção nas referidas TIs”110. Assim, responde ao questionamento
de ter ignorado as oitivas indígenas que estabelece o Art. 231, § 3º CF/88.111
Ao se enforcar em questões territoriais relativas às TIs112, o governo
relativiza aquelas condições que segundo a jurisprudência do sistema inte-
ramericano – e não somente o artigo da Constituição Federal – obrigaria o
Estado a realizar a consulta prévia ao mencionado decreto, ou seja, antes de
autorizar a implementação de Belo Monte. Em todo caso, o Governo refuta
a necessidade da consulta prévia à autorização do projeto, que é outra das
obrigações estabelecidas na Convenção 169.
A Convenção 169 propõe a participação indígena, tanto (1) nos pro-
cessos de decisão nos âmbitos que afetam o desenvolvimento de seus po-
106 República Federativa do Brasil (2011, p. 4-5; 55).
107 República Federativa do Brasil (2011, p. 4).
108 República Federativa do Brasil (2011, p. 52).
109 (Decreto Legislativo Nº 788, 2005).
110 República Federativa do Brasil (2011, p. 32).
111 Brasil (2008, p. 44).
112 República Federativa do Brasil (2011, p. 27; 31-32).
224
vos113 como em (2) um processo específico com relação ao processo de
consulta114, através do qual se definam as distintas etapas de execução e
avaliação da própria consulta. No caso de Belo Monte, a ausência de parti-
cipação indígena em ambos os processos é significativa e concorda com a
ideia de que a simples presença dos indígenas é sinônimo de “participação”,
ainda que não haja possibilidades reais de participação ativa: Uma vez con-
ceituado e imposto Belo Monte, as comunidades indígenas de Volta Grande
perdem sua liberdade de decidir sobre o “desenvolvimento futuro de suas
comunidades”, na medida em que dependem de novas circunstâncias, as
quais são em grande parte definidas pela Hidroelétrica e pelos diversos im-
pactos desta sobre os distintos âmbitos da vida cotidiana das comunidades.
O rechaço à consulta prévia se complementa com o processo paula-
tino de exclusão daquela informação oferecida pelos indígenas que ainda
consta no Parecer Técnico 21, a comparação deste Parecer com a respos-
ta governamental revela que se excluíram aspectos fundamentais desde o
ponto de vista da participação indígena, como as preocupações dos indíge-
nas e a rejeição de Belo Monte por algumas comunidades em razão – por
exemplo – da destruição do Rio Xingu ou das dúvidas relativas ao proje-
to115, essas se encontram nas atas das reuniões e na carta dos representantes
dos povos indígenas afetados por Belo Monte. Anexada ao Parecer Técnico
21, essa carta foi dirigida em primeira instância ao – então – Presidente
da República, Luiz Inácio Lula da Silva, solicitando a consulta indígena de
acordo com a Convenção 169116 e a realização de “oitivas indígenas” em
cada TI, com o qual se mostra – pelo menos – que havia sim consenso nas
comunidades indígenas com respeito à demanda por realizar a consulta.
Considerando esta solicitação117, pode-se deduzir que os representantes
indígenas não consideraram que o processo da Funai equivalia à consulta
indígena conforme dita Convenção118 nem que tivessem sido informados
antecipadamente a respeito. Nesse caso, corrobora-se a ideia de que a con-
cepção de participação indígena do governo corresponde a um processo
linear de comunicação. Um processo desta natureza permite ao governo
resolver um problema burocrático relativo ao processo de licenciamento
113 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 12).
114 Oficina Internacional del Trabajo (2013, p. 6-7).
115 No caso da comunidade Juruna do Km 17, ver Fundação Nacional do Índio (2009a, p. 60).
116 Kayapó et al. (2009).
117 Kayapó et al. (2009).
118 A respeito disso, coincide que os indígenas da Bacia do Xingu não se consideram “consultados nem
tampouco informados” sobre Belo Monte. Em: Vieira Lisboa y Carvalho Zagallo (2010).
225
ambiental de Belo Monte ou inclusive às Medidas Cautelares da CIDH, mas
às custas dos direitos humanos e do sistema democrático brasileiro.
Finalmente, se faz necessário plantear a temática do incumprimen-
to dos programas de mitigação para os povos indígenas, inseridos nas
chamadas condicionantes de Belo Monte e sobre os quais a resposta do
governo à CIDH também faz referência para demonstrar a forma de com-
pensar aos povos indígenas. As condicionantes são “ações obrigatórias de
prevenção e redução dos impactos socioambientais do projeto”119. No Ofi-
cio 302120 (emitido em outubro de 2009) a Presidência da Funai manifestou
ao Ibama que considerava “que o empreendimento em questão é viável, ob-
servadas as condicionantes”121 Em janeiro de 2011 (meses antes da resposta
oferecida pelo Governo à CIDH) o MPF denunciou o incumprimento das
condicionantes “que preveem ações como demarcação de Terras Indígenas
e retirada (desintrusão) de não índios das áreas demarcadas, entre outras,
18 não foram realizadas e duas foram realizadas parcialmente”122. Nessa
mesma linha, a Funai havia se pronunciado claramente:
[...] não houve nenhuma ação significativa para as comunidades indíge-
nas, em especial para a TI Paquiçamba. Ou seja, ainda restam condicio-
nantes e ações emergenciais cujo objetivo era a preparação da região para
o empreendimento, cujo não atendimento, caso o IBAMA emita a licença
de instalação de Obras Iniciais, compromete a segurança da condução do
processo e da integridade das comunidades indígenas na região.123
Sem embargo, meses depois e em ampla contradição, a Presidência
da Funai decidiu que: “A Funai não tem óbice para emissão da Licença
Instalação – LI das obras iniciais do canteiro de obras da UHE Belo Monte
considerando a garantia de cumprimento das condicionantes”124.
A questão relativa aos “acordos pactuados” – ou neste caso, aos pro-
gramas “prometidos”, que devem ser cumpridos de boa-fé, como estabelece
a Convenção125- leva a refletir sobre a importância de que a avaliação do
processo de participação e consulta indígena vá além do momento em que
a – suposta – consulta foi realizada.
226
Concluindo: A falsa participação e a pseudoconsulta indígena
227
A falsa participação indígena alude à participação em torno a um pro-
jeto que se encontra em uma fase avançada de planejamento, na medida
em que tal plano impeça ou iniba que a informação oferecida pelas comu-
nidades indígenas possa modificar não somente o plano, senão também os
discursos associados a ele. A falsa participação indígena é extremamente
limitada quando concebida como sinônimo de presença indígena. Nesse
sentido, o nível de planejamento de um projeto no momento da consulta
pode ser um indicador das possibilidades reais de que possa haver diálogo
ou não, no sentido de gerar novos discursos (seguindo a definição de diálo-
go de Flusser). Precisamente por essa razão, o critério de que a participação
e a consulta sejam prévias à aprovação do projeto adquire relevância.
A pseudoconsulta indígena pode ser definida como um processo bre-
ve – eventualmente emoldurado numa “luta contra o tempo” para iniciar
um projeto em questão – caracterizado por: (a) a presença das comunida-
des indígenas, ou seus representantes, (b) em atividades (c) – desenhadas
por instâncias estatais em conjunto com atores empresariais – (d) cujo pro-
pósito é entregar informação (definida previamente segundo critérios de
ditos órgãos e empresas) (e) sem sistematizar ou integrar a informação ofe-
recida pelas comunidades indígenas. Além disso, (f) tal processo será in-
terpretado como equivalente ao da consulta indígena, e será capaz de gerar
discursos sobre o cumprimento dos direitos indígenas, para poder cumprir
com requisitos de diversa natureza – legais, diplomáticos ou inclusive de
índole ética ou moral – no âmbito da burocracia estatal, instituições de
justiça, instâncias de controle dos direitos indígenas, ou na esfera pública.
O caso revela que a aplicação dos direitos indígenas exerce certo po-
der na medida em que obriga o Estado a usar discursos que não concordam
com as características da participação e consulta indígena segundo a juris-
prudência internacional em matéria de direitos indígenas.
No caso de Belo Monte, parece que opositores e defensores do projeto
se desmentem uns aos outros nos distintos espaços da esfera pública, usando
– em alguns casos – os mesmos documentos como provas para “demonstrar”
a veracidade de suas palavras; e, dado que ambos os discursos não podem ser
corretos ao mesmo tempo, seria necessário que a “grande imprensa” brasileira
investigasse em profundidade estas diferenças128 cujas fontes estão ao alcan-
ce das mãos. Esta ausência de jornalismo investigativo favorece o processo de
licenciamento de Belo Monte, na medida em que apresenta as divergências
como se fosse uma polêmica, mas desde o ponto de vista dos direitos indígenas
e da análise das informações oferecidas pelo governo brasileiro, não é.
128 Ver Montanaro-Mena (2015).
228
Interesse público e agendamento
O aborto nas eleições presidenciais de 2010
Introdução
229
de maior ou menor adesão aos discursos propostos. A opinião majoritária
que constitui consensos em torno de determinados valores é o resultado de
compromissos entre opiniões diversas em torno de valores circunstancial-
mente dominantes (Charaudeau, 2008).
O segundo eixo proposto refere-se ao tema polêmico, o aborto, e sua
trajetória na campanha eleitoral. Permeado por complexidades argumen-
tativas, a observação de seu discurso e sua prática se constitui em um efi-
ciente caminho para desvelar e compreender as dinâmicas de uma arena
pública em transformação. O contorno definido para cercar essa temática
é que o direito à autodeterminação reprodutiva das mulheres é um tema
de interesse público, de saúde pública, mais além do foro privado e que,
portanto, tem legitimidade para compor o repertório da agenda eleitoral,
embora esteja na condição de tema tabu e possa desiquilibrar o debate que
normalmente se trava ao redor de temas mais gerais e universais como saú-
de, educação, segurança e economia. Deve-se destacar que os processos
de discussão pública nas campanhas eleitorais podem ser momentos de
abertura para participação e o interesse dos cidadãos ou constituírem-se
como recursos de campanha para pressionar candidatos (as) e influenciar o
eleitorado. Com isto, o debate do aborto pode ficar relegado ao âmbito reli-
gioso e moral servindo a diferentes estratégias para pressão e desgaste dos
candidatos. O tema controverso auxilia a pensar porque algumas agendas
embora se qualifiquem como sendo de interesse público por seu alcance,
repercussão na vida pública e relação com questões essenciais como saúde,
reprodução e relacionamento, não conseguem avançar sobre as barreiras
de interesse privados de toda ordem, interditando um debate mais amplo.
O terceiro eixo contemplado trata da internet como um lugar infor-
macional novo e privilegiado quanto às suas funções e potencialidades in-
terativas para agendar, revigorar, aumentar a qualidade e a amplitude do
debate público eleitoral. Isso se traduz nos modos como as mídias sociais
conseguem pautar seus conteúdos na imprensa e usar o que é produzido
pelos meios de comunicação para reeditar e redistribuir informações, além
de garantirem a validação do que circulam quando isso é noticiado pelo
jornalismo. Agentes políticos, individuais ou coletivos, também se valem
das mídias sociais para testar e distribuir informação. Um tema tabu1co-
mo o aborto é oportuno para desvendar os esquemas de agendamento e
representação dos diferentes atores e perspectivas em disputa, tendo como
1 O termo tabu aqui compreende-se na acepção do dicionário, um conceito associado à ideia de interdito,
de proibição, de impedimento. Tabu é algo ou alguma coisa que se evita por temor e desconhecimento.
230
elemento novo as mídias sociais. Com isto, auxilia a observar se o debate
em torno de um assunto polêmico, mas de interesse público, é enriquecido,
ampliado, ou relegado às estratégias comunicacionais de campanha.
Assim, se justifica que o objeto desta pesquisa seja o percurso do tema
aborto no debate público das eleições para a presidência do Brasil em 2010,
que foi alçado ao centro da disputa, reunindo diferentes argumentos e efei-
tos sobre os atores envolvidos no debate público: os candidatos e partidos
políticos, a imprensa e as mídias sociais.
Este estudo procurou demonstrar através da análise histórico-descri-
tiva e da análise de conteúdo como e porque se desenvolveu o debate em
torno do tema aborto na campanha eleitoral em 20102 e a conduta de cada
ator, considerando pressupostos da hipótese do agendamento, em que há
uma centralidade dos meios de comunicação como um dos principais veto-
res da disputa política, e a emergência de um novo espaço na internet com
capacidade para interagir e influenciar as agendas envolvidas na definição
e exploração do repertório da campanha eleitoral. Cumpre evidenciar o
uso estratégico do tema e o desempenho e limitações impostas ao debate
em função da natureza polêmica do aborto, dos preceitos da propaganda
política no curto espaço de uma campanha e as características da interface
entre mídias sociais e imprensa para legitimação dos conteúdos produzi-
dos para receberem atenção pública.
As hipóteses testadas nesta pesquisa foram que: (a) há um uso estra-
tégico do tema aborto pelos diferentes atores na campanha eleitoral, o que
garante o agendamento do assunto, mas limita o debate público e a explici-
tação de posições dos candidatos. Estes se mantêm na linha de neutralidade
sobre o tema, em busca da imagem pública adequada; (b) a imprensa e as
mídias sociais tematizam e reverberam o assunto tabu – aborto – assumin-
do, ainda de forma assimétrica, papeis de legitimação e influência recíproca
na definição da agenda pública. Já os candidatos silenciam e tergiversam,
subordinando a abordagem do tema à lógica da propaganda e não ao inte-
resse público para aprofundar o debate.
A análise é operada a partir da definição de categorias que permi-
tam observar e analisar a ação dos atores e suas agendas com intersecções
dentro de uma esfera pública na qual se produz o debate durante a campa-
nha eleitoral. Nesse ambiente informacional alterado com novas práticas
2 Considerando 6 de julho a data a partir da qual foi permitida a propaganda eleitoral (Lei no 9.504/97,
art. 36, caput) até o 31 de outubro, dia da eleição em segundo turno, (Lei no 9.504/97, art. 2º, § 1º),
conforme calendário do TSE, disponível em <http://tse.jus.br/internet/eleicoes/2010/arquivos/calen-
dario_eleitoral_2010.pdf>.
231
de conversação, compartilhamento e sociabilidade, vários elementos com-
põem o modo de circulação das informações e opiniões, provocando agen-
damentos e reverberações estratégicas sobre o tema nos diferentes espaços
onde os argumentos são produzidos e veiculados. É com base nesses ele-
mentos que está proposta a adaptação da abordagem de tematização e pro-
cessos autônomos de agendamento na teoria de agenda setting, somados
aos conceitos de opinião pública, imagem pública e representações sociais.
Tradicionalmente, a hipótese do agendamento procura verificar a re-
lação causal entre a agenda da mídia e a agenda pública, observando se os
temas propostos pelos meios de comunicação encontram adesão e influ-
ência nos temas que são considerados importantes pelos eleitores. Neste
objeto, o propósito é comparar as agendas da imprensa e das mídias so-
ciais, permeadas pela influência de grupos de interesse, partidos políticos
e frações do eleitorado com projetos específicos. Essa interação de agendas
pretende identificar os momentos de tematização, quando o tema é elevado
a uma das principais pautas do debate em função da frequência e da capa-
cidade de mobilização entre os atores e os tensionamentos entre a política
e a comunicação na campanha.
O contexto das dinâmicas de visibilidade nas mídias sociais é apre-
endido para pontuar a dimensão dessa agenda própria do meio digital,
que pode ser capaz de multiplicar fontes de informação, modelar repre-
sentações sociais de determinados temas ou fazer a replicação de con-
teúdos produzidos pela imprensa. Portanto, a comparação desses dois
atores buscou mostrar a reverberação e as ações de agendamento e re-
troalimentação, considerando a conversação, o uso de estereótipos e as
representações sociais contidas nos debates produzidos na esfera pública
atual. A partir dessa observação, buscou-se mapear a ação estratégica dos
candidatos, protagonistas do debate eleitoral, ao sofrerem influência do
agendamento implementado pela imprensa e mídias sociais. Caberá aos
candidatos assumir premissas da propaganda e considerar o interesse pú-
blico da temática, para reverberar, silenciar ou tergiversar sobre o tema
tabu.
Os locais de veiculação, plataformas e formatos dos discursos, os au-
tores e suas condições de produção e circulação, bem como as práticas que
revelam silenciamento ou reverberação estratégica, com as representações
assumidas pelos candidatos compõem o modelo de análise adaptado para
o objeto de pesquisa.
232
Relação com o conceito de comunicação pública
233
A partir do momento que um dos sistemas de comunicação desenca-
deia o debate em torno da fome, segurança, educação, saúde, corrupção
e outros temas vitais (à sociedade, ao indivíduo e ao Estado) entende-se
que os demais sistemas serão provocados a se manifestar (Weber, 2007).
Todos esses aspectos ordenados pela autora estão relacionados à de-
pendência da política em relação ao circuito de captura do voto, sua ma-
nutenção e recuperação a partir da categoria comunicação pública. A
construção/desconstrução da imagem pública é definida pelos interesses e
ações estratégicas dos poderes envolvidos (que nunca terão controle total
sobre o processo) e pelos julgamentos dos cidadãos (consumidores, elei-
tores, receptores). “Neste sentido, a Imagem Pública será o resultado de
disputas simbólicas exibidas ao imaginário coletivo em busca de respostas”
(Weber, 2004).
Para Weber, “o poder da comunicação de Estado está na sua nature-
za estratégica e na difusão combinada de informação, serviços e propa-
ganda, em rede, que permite a disputa de versões, opiniões e votos” (We-
ber, p. 101, 2011). A autora destaca uma questão importante na disputa
por visibilidade que a comunicação do governo empreende: a busca pela
credibilidade, “capaz de construir opiniões e tornar defensável um pro-
jeto político”. A ideia de rede, trazida por Weber, funcionando de forma
ininterrupta, reconhece a complexidade em equilibrar os diferentes siste-
mas que acionam operações discursivas o tempo todo sempre com a elei-
ção como propósito final. “Para tanto, concorrem formulações díspares
e ininterruptas de instituições e sujeitos políticos em torno de temas de
interesse público, em busca de visibilidade e credibilidade que transitam
entre o jornalismo, a propaganda, o entretenimento, eventos e relações
públicas” (Weber, 2007).
Essa realidade revela a aproximação definitiva entre mídia e política.
“Atualmente, a mídia é parte do jogo político, econômico e social, partilha
e disputa o poder com ou contra o Estado e com frequência à custa do en-
fraquecimento do papel do Estado” (Brandão, p. 6, 2007). Conforme Bran-
dão, a comunicação praticada pelo Poder Executivo tem possuído natureza
predominantemente publicitária, persuasiva e menos educativa (Ibid, p.
11). Novamente, trata-se da busca de conquistar credibilidade, convencer e
persuadir o eleitor em favor de um projeto político, apostando permanen-
temente na construção de uma imagem favorável junto à opinião pública.
Invocada constantemente com diversas justificativas e os mais va-
riados propósitos, a Opinião Pública aparece nas democracias modernas
234
como um valor simbólico onipresente no universo da vida política. Entre-
tanto, sua conceituação, delimitação e dinâmicas são de difícil apreensão e
pouco consenso. Beauchamp (1991) oferece questões que demonstram essa
dificuldade, como a ideia de a Opinião Pública ser o conjunto de opiniões
individuais, o modo como ela se forma e se expressa e ainda como essa
expressão pode ser caracterizada como manifestação da vontade geral ou
produto de manipulação. Para Beauchamp, a Opinião Pública não seria um
problema se ela se apresentasse e exprimisse de forma manifesta, direta,
espontânea e unânime. Como isso não ocorre, é necessário quase sempre
criar mecanismos e procedimentos de pesquisa para solicitá-la, recolhê-la
e interpretá-la, o que permite leituras contraditórias, variadas, conflitivas.
Com isto, a Opinião Pública não é concebida como um dado, mas como
uma construção.
Nesta pesquisa, a Opinião Pública foi observada a partir de três di-
ferentes abordagens: definições de público e conversação feitas por Tarde
(1992); o conceito de estereótipo (Lippmann, 2010) e a associação com a
noção de esfera pública, em que a opinião pública é uma forma de legitimar
o poder político quando se origina de um processo crítico de comunicação.
(Habermas, 2003).
A caracterização dos públicos descrita por Tarde (1992), destaca as-
pectos fáceis de identificar na sociabilidade digital em curso: redes de in-
terdependências sociais, que dispensam laços físicos e presença direta entre
seus membros, com forte caráter simbólico. Tais noções ajudam a compre-
ender fenômenos que a internet amplifica, redimensiona e acelera, sem,
no entanto, significarem novidade absoluta, ainda que os novos dispositi-
vos tecnológicos abram possibilidades inéditas, sobretudo, na produção e
circulação da informação. Um tipo de informação desprovida do estatuto
jornalístico, sem os parâmetros dos valores-notícias, mas com potencial de
agendamento do debate público em diferentes esferas, inclusive a midiáti-
ca. O novo espaço digital aparece como alternativa de expressão da opinião
pública, não substituindo, mas complementando o papel da mídia no sen-
tido de disputar os temas que merecem atenção pública. Apesar do inegável
ineditismo proporcionado por um conjunto de dispositivos tecnológicos,
algumas práticas em termos relacionais são descritas ainda no início do
século passado, com o surgimento dos centros urbanos mais densos e com-
plexos. A discussão e a argumentação coletivas se fazem a partir de veículos
que reúnem ideias e informações. Esses veículos são os jornais, no caso do
cenário descrito por Tarde, no começo do século XX, ou a mídia, já num
235
sistema mais amplo e complexo. Na contemporaneidade, as redes de comu-
nicação via internet e seu universo particular de conexões em tempo real,
constituem-se como um novo lugar informacional. Para Tarde a opinião,
como resultante de todas as ações de interação, a distância ou em contato
físico, dentro das associações humanas, “representa para las multitudes y
para los públicos, en cierto modo, lo que el pensamiento al cuerpo” (p. 41-
42). Mas adiante será mais explícito, ao dizer que, “en los tiempos moder-
nos, la relación que une la opinión al público es semejante a la relación del
alma con el cuerpo” (p. 79).
Quando Tarde fala de seus modos de expressão contemporânea, o su-
frágio e o jornalismo, não tem como prever um novo espaço de manifesta-
ção da opinião pública, as redes online, contudo, observa que quanto mais
se exprime, mais cresce, dando ênfase à demanda imperiosa por visibilidade
que marca e caracteriza a esfera pública atual; o que na visão de autores
contemporâneos como Levy (2010), é uma revolução. A principal vantagem
da internet “é que ela permite a todos se expressarem sem precisar passar
pelo poder do jornalista ou de outro mediador. A esfera pública expande-se,
diversifica-se e complica-se singularmente. Essa mutação da esfera pública
constitui um dos fundamentos da Ciberdemocracia” (Lévy, 2010).
Uma das bases dessa construção de percepções e opiniões é a conver-
sação. Como provoca Lévy (2010), a internet coloca em questão as situa-
ções de monopólio do poder da fala. “A internet é um extraordinário vetor
de liberação da palavra”. Essa troca, esse diálogo sem qualquer mediação
eleva a importância da conversa para a formação da opinião. Tarde con-
siderava esse fator preponderante. Apesar de destacar a importância dos
jornais, compreendia que muitos deles não pareciam exercer qualquer ação
duradoura e profunda sobre a mente. “Conversa é, portanto, o mais pode-
roso agente de imitação, a propaganda de sentimentos e ideias e modos
de ação” (Tarde, p. 93, 1992). A imprensa, por sua vez, unifica e anima as
conversas, padroniza no espaço e no tempo.
As conversas, no entanto, podem ser um modo de produzir desacor-
dos, especialmente quando se trata de temas controversos. Assuntos tabus,
de fundo moral ou religiosos, normalmente requerem respostas a indaga-
ções difíceis. Sem informações suficientes, a tendência das pessoas é buscar
crenças já assentadas, aceitas e úteis para validar uma discussão que exige
maior repertório. Foi na primeira metade do século passado, 1923, que o
jornalista norte-americano Walter Lippmann sistematizou as primeiras re-
236
flexões a respeito dos estereótipos. O autor sugeriu que na vida moderna as
pessoas são convidadas a tomar, diariamente, uma série de decisões sobre
um conjunto de temas a respeito do qual não possuem necessariamente co-
nhecimento suficiente, sendo que “das ocorrências públicas que têm largos
efeitos vemos, na melhor das hipóteses, somente uma fase e um aspecto”
(Lippmann, p. 83, 2010). Como essas decisões precisam ser tomadas de for-
ma imediata, na falta de um repertório informacional adequado que guie
racionalmente a decisão, elas terminam por se sustentar em um conjunto
de crenças, compartilhadas amplamente pela sociedade, e sobre as quais
não se dispensou qualquer juízo avaliativo. Os posicionamentos são for-
mados de pedaços juntados do que os outros relataram, somados ao que
complementamos com a nossa imaginação.
A maior parte dos fatos na consciência parece ser em parte feita. Um
relato é o produto conjunto do conhecedor e do conhecido, no qual o
papel do observador é sempre seletivo e usualmente criativo. Os fatos
que vemos dependem de onde estamos posicionados e dos hábitos de
nossos olhos (Lippmann, p. 84, 2010).
237
Desenvolvimento da análise
238
Serra contou com uma coligação de seis partidos. Sob o nome “O Brasil
pode mais” a aliança reuniu PSDB/DEM/PTB/PPS/PMN/PT do B. Essa foi
a maior eleição da história, com uma maioria do eleitorado no país femini-
na. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral3, 52,3% do universo de
mais de 130 milhões de eleitores registrados no banco de dados da Corte
são formados por mulheres, contra 47,8% de homens.
A análise empreendida apresentou as eleições numa perspectiva his-
tórico-descritiva. O estudo observa a movimentação nas mídias sociais
para agendar e reverberar o tema do aborto no repertório eleitoral. A
produção e circulação de informação e opinião nas redes servem como
balizadores para compreender os esquemas de agendamento de um tema
tabu na até então maior eleição da história do país. A análise traça ain-
da um panorama da cobertura jornalística sobre o tema aborto por três
jornais de circulação nacional. É realizado o levantamento da presença
do tema aborto na cobertura da imprensa e são analisados os temas pe-
las categorias de agendamento e reverberação, através dos indicadores
de frequência, título e gênero narrativo. Do mesmo modo, é investigada
a propaganda dos candidatos no Horário Gratuito de Propaganda Elei-
toral, nos debates televisivos e nos sites oficiais, identificando em que
momentos o silêncio predomina quando o assunto é o aborto e quais as
representações quando se quer tratar do oposto que temas controversos
representam.
A amostragem foi guiada por questões de ordem prática e teórica.
Com relação ao tempo, foram analisados os 32 que compreendem o final
do primeiro turno e toda a segunda etapa do pleito, de 29 de setembro a
31 de outubro de 2010. Essa definição ocorreu também pela sinalização do
Observatório das Eleições da Universidade Federal de Minas Gerais que fez
o monitoramento do uso da web e apontou os picos de visibilidade do tema
aborto junto aos candidatos Dilma e Serra dentro desse período. A obser-
vação da cobertura jornalística e da propaganda dos candidatos obedece ao
mesmo recorte. Já a linha do tempo que oferece um panorama mais amplo
e cognitivo do percurso do tema nas agendas pública, política e jornalística,
o tempo é ampliado. No quadro a seguir, são evidenciados atores, espaços,
quantidades e categorias de análise.
3 <http://www.tse.gov.br/internet/institucional/arquivo/Relatorio_Sensus_Fields_TSE.pdf->. Acessado
em 12.04.2011.
239
Tabela 1: Corpus de pesquisa
CORPUS DE PESQUISA
DEBATE SOBRE O ABORTO PERÍODO DE ANÁLISE:
NA CAMPANHA ELEITORAL 29/09/2010 A 31/10/2010
ATORES DO DEBATE ESPAÇOS DE MANIFESTAÇÃO DOS DISCURSOS CATEGORIAS
1. CANDIDATOS HGPE DEBATES TV SITE
1.1. Dilma (PT) 45 programas 04 debates 32 dias
1.2. Serra (PSDB) 45 programas 04 debates 32 dias
2. IMPRENSA EDIÇÕES IMPRESSAS E ONLINE: 32 DIAS
2.1. Folha de São Paulo 112 textos AGENDAMENTO
2.2. O Estado de São Paulo 70 textos SILENCIAMENTO
2.3. O Globo 87 textos REVERBERAÇÃO
3. MÍDIAS SOCIAIS COMUNIDADES E VÍDEOS REPRESENTAÇÕES
3.1. Orkut Acompanhadas 04 comunidades sobre o aborto com os
maiores números de membros que juntas produziram 33
fóruns de discussão.
3.2. Youtube Dez vídeos com maior número de visualizações e enviados
dentro do período da campanha eleitoral. Somados eles
ultrapassam um milhão e oitocentas mil visualizações.
(1.896.078)
Fonte: a autora
Achados da pesquisa
242
Na Imprensa: Foram selecionados três jornais de circulação nacional
para análise: Folha de S.Paulo (FSP), Estado de S.Paulo (ESP) e O Globo
(GLB). FSP foi o veículo com maior número de textos sobre o aborto pu-
blicados no período analisado e registra a publicação no maior número de
dias, chegando a 29. A FSP colocou o termo aborto no título de um terço
das matérias publicadas. Dos 34 títulos referentes a aborto na FSP, oito as-
sociam o tema diretamente ao nome da candidata Dilma Rousseff e outros
quatro ao partido ou aliados, como o presidente Lula. Já com relação a
José Serra, três títulos associam o tema aborto diretamente com seu nome,
sendo que em dois deles tratam de uma crítica ao PT feita pelo candidato.
O Globo aparece em segundo lugar, incluindo as postagens online, com o
número de textos referentes ao aborto no período analisado e registra 21
dias de cobertura do tema durante o período da pesquisa. O Globo alcan-
çou 30% dos textos em que a palavra aborto é chamada no título, 26 textos.
O ESP é o terceiro em número de textos sobre o aborto, com 24 dias em que
são publicados textos sobre o tema. O Estado de S.Paulo teve percentual de
44% dos textos em que a palavra aborto é chamada no título.
Em síntese, os três jornais registraram frequências semelhantes na re-
verberação do tema aborto em datas específicas, entre 5 e 10 de outubro. O
Globo, FSP e ESP também publicaram editoriais tratando do tema aborto
na campanha. Todos concentraram a opinião, as análises e a publicação de
reportagens sobre o tema na largada do segundo turno, analisando que o
uso do aborto contribuiu para evitar a vitória de Dilma na primeira etapa.
Essa reverberação manteve o debate em torno do tema, alimentou as con-
versas nas redes sociais e interferiu na estratégia discursiva dos candidatos
e nas ações para a busca e manutenção de alianças com grupos religiosos.
Considerações finais
Introdução
249
retórica aristotélica (phatos, ethos e logos), o objetivo é classificar o material
disponibilizado pela mídia. O foco se dirige para as falas tornadas públicas
por dois jornais – Folha de S.Paulo (Brasil) e Público (Portugal) – de modo
a ver quais elementos retóricos comparecem com mais frequência. E, a de-
pender de quais elementos estão presentes, estes discursos serão classifica-
dos como retóricas “deliberativas” ou “plebiscitárias”.
Este tipo de análise trabalha com o pressuposto de que a maior pre-
sença de uma ou outra dessas retóricas pode, de um lado, contribuir para
o debate público ou, de outro, caminhar em sentido contrário à comple-
xificação e aprofundamento da discussão dos temas em pauta. A análise,
portanto, não se limita a focar no que a mídia pode oferecer. Mas, a partir
daquilo que ela oferece e, em especial, do modo como trata os temas, in-
vestiga as potencialidades e, ao mesmo tempo, os limites que ela tem para
participar do debate público.
Este texto assume como pressuposto que as falas midiatizadas podem
ser consideradas como retóricas, isso porque elas são dirigidas a uma au-
diência, a qual buscam convencer ou dela conseguir a adesão para um de-
terminado ponto de vista. Além do mais, toda retórica é permeada por
elementos que não se reduzem à pura racionalidade, mas também da emo-
ção e do caráter do orador. Assumir esse pressuposto é o ponto de partida
da análise para verificar como, no espaço midiático, esses elementos inte-
ragem e quais deles se sobressaem. Esse retrato permite fazer inferências
sobre possibilidades de um debate público que seja desencadeado a partir
das contribuições da mídia.
251
acaba por se valer de todos os elementos da retórica aristotélica mesmo
que, muitas vezes, nem se dê conta disso. O caráter do falante (ethos), por
exemplo, assume papel importante na interação. “Pois acreditamos mais e
bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas
sobretudo nas de que não há conhecimento exato e que deixam margem
para dúvida. (...) quase se poderia dizer que o caráter é o principal meio de
persuasão” (Aristóteles, 2005, p. 96). Levar os ouvintes a sentir emoção (pa-
thos) por meio do discurso é outro elemento sempre presente em práticas
argumentativas, “pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos
tristeza ou alegria, amor ou ódio” (Aristóteles, 2005, p. 97).
Ao falar dos três elementos de prova, Aristóteles chama a atenção para
o fato de que muitos, ao tratar da retórica, ocupam-se somente da disposi-
ção dos ouvintes – o aspecto emocional, as paixões,... –, esquecendo-se dos
demais elementos. E eis uma das razões que fez com que ela começasse a
contar com o repúdio de filósofos como Platão, que via na retórica apenas
uma arte para ludibriar o povo, pois evocaria as paixões durante o discurso,
em detrimento de ideias e de argumentos lógicos e racionais.
Mas eis o grande equívoco, e que fez a fama negativa da retórica. Ale-
xandre Jr. (2005) observa que entre as críticas que Aristóteles fez aos teo-
rizadores da retórica que o precederam está o fato de terem dado especial
atenção ao estímulo das emoções e, em contrapartida, negligenciado o uso
da argumentação lógica, bem como terem dado excessiva importância à
estrutura formal do discurso. Transformaram um elemento da retórica em
sua essência.
Aristóteles entendia que o mau uso da retórica não poderia simples-
mente desqualificar o potencial dessa arte para promover o entendimento
entre as pessoas. Por essa razão, a grande ênfase de Aristóteles foi justa-
mente a de assegurar um lugar central ao argumento lógico na arte de per-
suasão. Nesse sentido, a retórica de Aristóteles é, sobretudo, “uma teoria
da argumentação persuasiva” (Alexandre Jr., 2005, p. 34). Ela se caracteriza
pela ênfase dada à argumentação persuasiva, mas não se limita a isso. A
retórica constitui-se em uma prática dinâmica. Ela está mais preocupada
com a persuasão dos ouvintes do que com as formas do discurso, razão pela
qual pode assumir diversas formas consoante o tema em pauta e a caracte-
rística do auditório.
Para Aristóteles, está claro que, por mais elaborado que seja um dis-
curso, baseado em argumentos coerentes, a persuasão se dá não somente
com esse elemento. Ela ocorre por uma interação com o auditório em que
252
também comparecem os outros dois elementos: emoção e interesse desper-
tados nos ouvintes e o caráter do falante. Mesmo num congresso científi-
co, quando um acadêmico apresenta resultados de uma pesquisa, também
entram em cena esses outros dois elementos da retórica. À primeira vis-
ta, parece que estão em ação somente elementos lógico-racionais. Porém,
a credibilidade que o falante tem em meio à comunidade científica conta
muito para que seu trabalho seja reconhecido ou, eventualmente, passe a
ser desconsiderado por seus pares. Do mesmo modo, o falante vai acionar
um ou outro mecanismo que desperte o desejo ou o interesse do público
para o que ele está falando. A sua credibilidade é um dos elementos que
pode atrair ouvintes ao congresso. Além do mais, a equipe encarregada de
preparar e divulgar o evento também se esmera em cuidar desse último
elemento, para atrair interessados. E esse trabalho da equipe organizadora,
de ressaltar a credibilidade no acadêmico, faz parte da estratégia de atração
do público ao evento (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2002).
Na prática argumentativa, não há como separar os três elementos da
retórica. Todos eles marcam presença. Na perspectiva aristotélica, quando
se trata de um debate argumentativo, o logos assume caráter central, em-
bora não seja elemento exclusivo. Por outro lado, quando o logos passa a
ser um elemento secundário ou sequer comparece, então se está diante de
outra coisa, mas não de retórica.
A reflexão de Chambers acerca da necessidade de resgatar a retórica
aristotélica para análise dos discursos midiáticos inspirou a criação de uma
tipologia de retóricas. Se a fala dá a devida importância ao elemento logos,
passa a ser considerada uma “retórica deliberativa”. Se, por outro lado, a
tônica recai sobre o pathos ou sobre o ethos, ou os dois ao mesmo tempo, o
discurso passa a ser caracterizado como “retórica plebiscitária”. Na primei-
ra situação o objetivo é convencer. Já na segunda, promover a adesão sem
necessidade de convencer.
O quadro a seguir sistematiza os elementos que cada tipo de discurso
carrega e que, por consequência, fazem-no ser classificado de um modo ou
de outro. Além dos elementos da retórica aristotélica, inspiradores para a
criação dessa tipologia, são acrescidas outras características que, presentes
num discurso, podem, de um lado, contribuir para um processo de com-
plexificação do debate ou, de outro, acabam criando barreiras para desen-
cadear um processo argumentativo.
253
Quadro 1: Tipos de retórica
PLEBISCITÁRIA DELIBERATIVA
Apelo às emoções (pathos), adjetivações (sem Uso da razão, de argumentos (logos)
detalhamento), paixão, sentimentos, caráter
do orador/falante (ethos)
Argumentos simples Argumentos complexos
Estratégica (objetivo: vitória) Comunicativa (objetivo: entendimento)
Conflito, confronto Busca da cooperação, acordo, consenso
Fonte das informações: fé; crença; autoridade Fonte das informações: dados de pesquisa
(religiosa, política, científica,...); livro sagrado; científica; dados/estatísticas oficiais;
narrativas e experiências pessoais. material bibliográfico
Dogmática Pluralidade, diversidade
Unidimensional Multidimensional
Sentimentos pessoais e testemunhos Provas e dados científicos
Limite (diferenciador; separação; distinção, Fronteira (zona de intersecção; de encontro;
não intersecção; delimitação; fechamento) cruzamento; abertura)
254
tanto, contribuir para o debate público. Já um pesquisador renomado no
meio acadêmico pode, eventualmente, se posicionar publicamente sobre
um determinado tema e fazer com que pessoas adiram à sua posição não
pelo argumento que ele desenvolve, mas tão somente pela reputação que
conquistou no campo científico. Essa associação direta se transforma em
estratégia de adesão. Pessoas podem se posicionar a favor da proposta do
pesquisador não porque compreenderam seu argumento, mas tão somente
porque confiam nele (ethos). Verifica-se, nesse caso, uma situação idêntica
a do fiel que segue a orientação do seu líder religioso. A adesão é provocada
pela crença ou confiança no autor da fala, mas não porque houve um en-
tendimento ou concordância com o que ele expressa através de argumentos
(conteúdo, logos). A crença ou confiança não entra no terreno do debate
racional. Nestes casos, ocorre um salto, que promove a adesão direta sem
necessidade de convencer por meio de argumentos.
No quadro das tipologias de retóricas também surgem os termos “limi-
te” e “fronteira” como elementos distintos. Usados muitas vezes como sinô-
nimos, nesta tipologia têm sentidos diferentes. Reflexões de Martins (2008)
servem de apoio para fazer essa distinção. Limite denota limiar, linha, bar-
reira, mecanismo demarcador e que, portanto, separa, exclui e diferencia (o
que está de um lado daquilo que está do outro). Já fronteira é tomada como
zona de transição, atua como ponte de encontro entre perspectivas diferen-
tes, de diálogo, de interação e de mútua influência. Fronteira se constitui em
espaço aberto a novas possibilidades, embora não todas, mas aquelas que,
de um modo ou outro, remetem para as perspectivas que se cruzam nessa
zona de encontro, ou que podem surgir do encontro destas.
Os diferentes elementos constantes nas duas tipologias de retóricas
acabam por aparecer nos discursos. É a presença de um elemento, ou a
tônica de um elemento ou de mais elementos de uma tipologia, que marca
a característica que assume a fala. A identificação do tipo de retórica que
é usado por determinado falante é o que vai permitir compreender se ele
está engajado em participar de um processo que visa ao esclarecimento e
ampliação da compreensão do tema em pauta ou se, ao contrário, ele já en-
tra no jogo com uma posição fechada e, portanto, não disposto ao diálogo,
tendo como objetivo único o de conseguir a adesão do maior número de
pessoas à sua proposta.
Um discurso que trilha, por exemplo, por uma perspectiva haberma-
siana – do diálogo, da busca do entendimento, de encontro de perspectivas
diferentes – pode ser identificado como deliberativo. Já aquele que tem um
255
caráter meramente estratégico com o objetivo da vitória - angariar o maior
número de adesões – pode ser considerado plebiscitário. É uma perspectiva
que se alinha à democracia liberal, em que o confronto se dá entre posições
diferentes, pré-definidas, não abertas ao diálogo, mas apenas colocadas em
disputa pela preferência da maioria. A perspectiva deliberativa também
trabalha para obter maioria. Mas valoriza sobremaneira uma prática que,
anterior à votação, busca um entendimento que incorpore elementos de
ambos os lados para uma compreensão mais ampla e qualificada do tema
em pauta (Habermas, 2002; 2003).
258
rior enquadramento numas das tipologias de retórica, a análise se orientou
por estas questões:
A) Quem são os convidados pelo jornal a falar? É a voz de uma autori-
dade (política, religiosa, científica ou membros das campanhas do referen-
do) ou de outra pessoa não detentora de um cargo representativo?
B) A matéria traz apenas uma voz (a favor ou contra) ou traz uma
pluralidade de vozes, permitindo o contraponto no mesmo espaço?
C) Os argumentos presentes na matéria permitem a complexificação
do debate ou são argumentos simples, sem possibilidade de ampliar a dis-
cussão?
D) Os apelos presentes no argumento são plebiscitários ou deliberativos?
Considerações finais
268
Interesse público e entretenimento
na dramatização do tráfico de pessoas
em Salve Jorge
Introdução
269
no entretenimento, em especial, nas telenovelas brasileiras, tem sido um
recurso utilizado pelos autores, observando a amplitude de audiência e sua
repercussão em outros programas televisivos, bem como sua influência (ou
fator influenciador) no campo de políticas públicas brasileiras.
A prática da inclusão de tais temas nas tramas das telenovelas é reco-
nhecida ou denominada de merchandising social. Portanto, é neste espaço
midiático privilegiado de ficção que também se constitui a narrativa de
um problema social. A lógica da teledramaturgia se sustenta na trama
que, mesmo de ordem ficcional, entrelaça efeitos de realidade numa es-
tética específica, maquiada, editada, recortada e com data de validade.
Porém, os temas de interesse público são reais, contínuos, geradores de
indicadores e estatísticas traçadas no tempo e na sociedade. A telenovela,
portanto, “é um objeto que causa estranhamento devido a sua extrema
simplicidade (aparência) e complexidade (compreensão)” (Weber e Sou-
za, 2009, p. 142).
Com a estratégia de retratar preocupações sociais contemporâneas
em suas tramas, a telenovela consegue promover ou instigar discussões ao
ponto, como indicado por Lopes, de observarmos o retrato brasileiro de
forma mais fiel nela que em jornais. “(...) A novela passou a ser um dos
mais importantes e amplos espaços de problematização do Brasil, indo da
intimidade privada aos problemas sociais” (Lopes, 2009, p. 26).
Neste artigo, procura-se indagar a visibilidade do Tráfico de Pessoas a
partir do entretenimento, como diálogo entre ficção e realidade retratado
pela televisão brasileira. A seleção dessa novela e da trama por ela propos-
ta se sustentam, prioritariamente, pelo fato do tema apresentar uma pro-
blemática internacional, não localizada regionalmente ou nacionalmente,
potencializando sua discussão, portanto, com visibilidade tanto política
quanto teórica. Ao dar luz a uma questão de interesse público através da
narrativa do entretenimento, o tema é incluído na pauta midiática, porém,
traduzido e reeditado em termos estéticos, suavizando a realidade densa e
dura pertencente ao crime.
A telenovela auxilia na divulgação do tema, dá visibilidade a ele, mas,
ao romantizá-lo, pode diminuir seu impacto como problema social, até
mesmo neutralizá-lo, transformando o tráfico de pessoas em produto edi-
tado e editável. O tema é hibridizado na narrativa, pois o que se sobrepõe
na trama é a visão romantizada inerente ao próprio melodrama. Por outro
lado, a dramatização de um tema de interesse público, ao mesmo tempo
270
em que pode ser qualificado como uma estratégia de merchandising social
(portanto, de ordem promocional), é base para a agenda midiática, que
também serve ao debate público. O paradoxo se estabelece.
271
Quadro 1. Cronologia da legislação sobre Tráfico de Pessoas
LEGISLAÇÃO DESCRIÇÃO
DECRETOS Nº 5.015, Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
5.016, 5.017 (12.03.2004) Transnacional. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate
ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea. Promulga o
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do
Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.
LEI Nº 11.106 (28.03.2005) Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao
Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal
e dá outras providências.
PORTARIA MJ Nº 2.167 (7.12.2006) Institui a aplicação do Plano de Ação para a Luta contra o Tráfico de
Pessoas entre os Estados Parte do MERCOSUL e os Estados Associados
(MERCOSUL/RMI/ACORDO, nº 01/2006).
DECRETO Nº 5.948 (26.10.2006) Aprova a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e
institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar
proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas – PNETP.
DECRETO Nº 6.347 (8.01.2008) Aprova o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP
e institui Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do referido Plano.
PORTARIA SNJ Nº 031 (20.08.2009) Define as atribuições dos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e dos Postos Avançados.
DECRETO Nº 7.901 (4.02.2013) Institui a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas e o Comitê Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas – CONATRAP.
PORTARIA Interministerial Aprova o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – II
nº 634 (25.02.2013) PNETP e institui o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação
do II PNETP (que prevê como uma de suas atividades centrais a produção
de dados sobre este fenômeno no Brasil, atividade que vem sendo
implementada pelos diversos órgãos parceiros e pelo Ministério da Justiça).
272
outro’, transforma vítimas em não humanos, não detentores de direitos e
não iguais.
O tráfico de pessoas tem entre suas causas fatores econômicos e so-
ciais, como o desemprego, a miséria, a falta de condições de vida digna
(acesso à saúde, educação, moradia), a busca por ascensão social e melho-
res oportunidades de trabalho e fatores culturais, que transformam as pes-
soas em vítimas de diferentes tipos de exploração. Segundo dados da CPI e
Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas, das 475 vítimas identificadas
pela diplomacia brasileira entre 2005 e 2011, 377 sofriam exploração sexu-
al, enquanto 135 haviam sido traficadas para trabalho escravo em 18 países.
Para entender o tráfico humano – especialmente aquele voltado para a
exploração sexual –, algumas associações com o biopoder podem ser reali-
zadas. Na centralidade do tema, está a transformação do corpo (do outro)
em mercadoria, onde vítimas do tráfico de pessoas são exploradas para fins
do meretrício que, já na condição de condenadas pela sociedade (tendo em
vista a prática da prostituição), são alvo de dupla vigilância panóptica na
lógica foucaultina, pois sofrem a punição ao suportar também a conside-
rada moderna forma de escravidão imposta pelos aliciadores que, por sua
vez, utilizam da justificativa da dívida econômica e da restrição de docu-
mentos para subjugá-las.
O panoptismo é um dos traços característicos da nossa sociedade. É
uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de
vigilância individual e contínua, em forma de controle de punição e re-
compensa e em forma de correção, isto é, de formação e transformação
dos indivíduos em função de certas normas. Este tríplice aspecto do
panoptismo – vigilância, controle e coerção – parece ser uma dimensão
fundamental e característica das relações de poder que existem em nos-
sa sociedade (Foucault, 2002, p. 103).
Segundo Dornelas (2010, p. 79), “a vítima do tráfico, que é vista em
geral pela sociedade como fruto indesejado do meio seu pelo comporta-
mento social inadequadamente aceito (prostituição), passa novamente à
condenação por uma nova forma de escravidão baseada na obrigação à
venda do corpo para pagamento de dívidas”. A mercantilização do sexo se
configura como de natureza do capitalismo, pelo interesse que tem, desde
sua origem, de expansão internacional. Assim, o tráfico com exploração
sexual se localiza na ordem transnacional, se origina (como produto) nos
países periféricos ou em países que vivem uma crise e se destina aos países
ricos.
273
Tanto a migração internacional como o turismo sexual trazem a ideia
da objetificação do corpo feminino, que nesse sentido se torna um bem
simbólico e comercializável dentro de uma lógica de mercado. O que entra
em questão não é apenas a mercantilização do corpo (normalmente tendo
no gênero feminino sua maior incidência), como também a mercantiliza-
ção de uma identidade nacional, contemplando o rótulo da brasilidade ou
de ser brasileira.
Observa-se, assim, a prevalência da migração de mulheres brasileiras
para a Europa para fins de trabalho sexual, submetidas à violência e ao
cárcere privado.
No caso de pessoas traficadas para fins de exploração sexual, a manu-
tenção da força de trabalho tem relação direta com o custo para a sua
reprodução, mesmo que para isso o tempo de vida dessas pessoas esteja
diretamente ligado com o custo de sua manutenção por quem as mer-
cantilizam. Como é grande a oferta de trabalhadores vulneráveis para o
mercado do sexo e há muita demanda para os serviços sexuais pagos,
é mais lucrativo dispor da reserva de mão de obra negra, asiática, indí-
gena, latino-americana etc., do que ficar mantendo uma mesma pessoa
por muito tempo. Por isso, muitas delas morrem devido aos maus-tra-
tos, doenças, drogas ou são assassinadas (Leal, Leal e Libório, 2007, p.
22, in Violes).
Assim, essas vítimas se sujeitam à vigilância tanto pelas pessoas que
apresentam um comportamento considerado como previsto pela ética so-
cial, configurando como um desvio de conduta social, bem como um “’es-
tado paralelo’ a que aderiram e sob cujas regras devem trilhar o caminho,
sob pena da mais dura sanção, inclusive coma subtração de sua vida” (Dor-
nelas, 2010, p. 83).
Faço referência às pessoas, especialmente em grande parte mulheres,
‘condenadas’ à escravidão sexual em outros países por total ausência de
quaisquer condições de trabalho digno em seu país de origem.
Sob a pecha de “mulheres de vida fácil”, título que assumem em terra alie-
nígena aonde seus parentes em geral não sabem ao trabalho ao qual se de-
dicam, são ali a) “condenadas” pelo movimento ético social, que as vigiam
e punem ferinamente; de outro lado, b) se vêem vigiadas continuamente
pelo “estado paralelo” que coordenada sua arregimentação para encami-
nhá-las ao pacto perverso da escravidão da dívida impagável contraída
pela obtenção dos meios necessários à sua viagem (Dornelas, 2010, p. 84).
O tráfico de pessoas é um crime internacional e invisível. É de difícil
identificação e se prevalece da vergonha ou desconhecimento familiar, da
274
ameaça às vítimas e da retenção de documentos para manter em silêncio e
vigilância as pessoas exploradas que estão em situação de vulnerabilidade.
Para dar voz ou luz ao tema na tela, com uma mudança da grafia em inglês
da escravidão moderna (modern SLAVE), apresenta-se SALVE Jorge, uma
obra de ficção da Rede Globo.
Salve Jorge, escrita por Glória Perez e sob direção de Marcos Schecht-
man e Fred Mayrink, estreou no horário nobre na TV Globo (como TV
aberta), no dia 22 de outubro de 2012, encerrando sua exibição em 17 de
maio de 2013 (reprise do último capítulo no dia 18 de maio). Com 179 ca-
pítulos, a média de audiência3 da telenovela foi de 33,6, sendo considerado
um dos índices4 mais baixos da história da emissora.
O tema Tráfico de Pessoas é o cerne social do enredo, abrindo o pri-
meiro capítulo da trama com cenas de um leilão da protagonista na Tur-
quia (país-cenário onde a exploração sexual é praticada, tendo como alicia-
das personagens que moram no Rio de Janeiro), conforme observado nos
frames a seguir.
275
nacionalidade da traficada. Tais informações reforçam ou podem ser asso-
ciadas à pseudogarantia da legalidade da atividade (pela maioridade) bem
como a característica da nacionalidade (brasileira), considerada um atribu-
to pela visibilidade da mulher latina em âmbito internacional. Há, portan-
to, o reforço da mercantilização do corpo, transformando-o em produto,
disponível para ser tocado, cheirado, manipulado, consumido, explorado.
O elenco contou com 91 personagens, além de figurantes para pro-
duzir as cenas mais abertas ou aquelas que reproduziam a exploração das
traficadas. No que se refere às locações, os espaços geográficos prioritários
da trama se localizavam no Rio de Janeiro, em especial, no Complexo do
Alemão, origem da protagonista traficada. Em âmbito internacional, na
Turquia, mesclando cenas da Capadócia e de Istambul.
Na dimensão do Complexo do Alemão, o olhar da trama foi pautado
pela pacificação da favela, contando com a presença da cavalaria do Exérci-
to Brasileiro e seu papel no processo de fortalecimento de UPPs (Unidade
de Polícia Pacificadora). Atores realizaram aulas de equitação, conviveram
no ambiente do comando de Agulhas Negras (RJ) para desenvolver o que é
identificado como laboratório de preparação para a telenovela.
Os capítulos, veiculados de segunda a sábado, apresentavam uma média
de 75 minutos de duração, sendo reduzidos para 45 minutos às quartas-feiras
em função da programação esportiva da Rede Globo. A telenovela foi expor-
tada para diversos países, dentre eles Portugal e países africanos, onde a emis-
sora já apresenta parcerias de veiculação de seus produtos de entretenimento.
Na construção da trama, o que se vê de fato são os contextos já estabe-
lecidos na composição do produto dramatúrgico:
[...] heróis protagônicos, belos, apaixonados, jovens, virtuosos; as falhas
de um e de outro são superficiais e sempre justificadas. Suas virtudes
são realçadas até o exagero: são trabalhadores, constantes, bons pais,
lutadores, honestos, leais, corajosos e estão sempre com boa aparência
(Pallottini, 2000, p. 7).
Em Salve Jorge, a fórmula não se altera. As subtramas se apresentam,
trazendo as relações amorosas, os desafetos, a sexualidade prevista na ação
do tráfico e na sedução, as diferentes dimensões de classe social, as discus-
sões e conflitos familiares, a bondade, as ações públicas nas esferas do Exér-
cito e da Polícia Federal, e a vitória do bem contra o mal ou o sentimento de
justiça realizado como suposto final feliz.
Além de cumprir a receita do produto melodramático, Salve Jorge é
escrita por Glória Perez, conhecida pela sua marca autoral, dando luz e voz
276
a temas sociais, prática cunhada como merchandising social. Sua primeira
experiência na televisão foi na Rede Globo, como pesquisadora de texto
na telenovela Memórias de Amor, em 1979 (Memória Globo, 2008). Desde
então, a autora construiu uma trajetória de sucesso, com premiações nacio-
nais e internacionais em suas produções.
Merchandising social televisivo é definido como a “veiculação de men-
sagens educativas, reais ou ficcionais, nos enredos ou tramas das teleno-
velas, minisséries ou outros programas de entretenimento” (Comunicarte,
2006). Assim, o merchandising social se caracteriza pelas inserções planeja-
das e sistemáticas, com objetivos próprios, utilizando mensagens socioedu-
cativas. Segundo Schiavo (2002), consiste na inserção intencional e moti-
vada por estímulos externos de questões sociais nas tramas das telenovelas:
Através do merchandising social, criam-se oportunidades para interagir
com as telenovelas, compondo momentos da vida dos personagens e
fazendo com que eles atuem como formadores de opinião e/ou como
introdutores de inovações sociais. Enquanto estratégia de mudança de
atitudes e adoção de novos comportamentos, o merchandising social é
instrumento dos mais eficientes, tanto pelo elevado número de pessoas
que atinge quanto pela forma como demonstra a efetividade do que é
promovido (Schiavo, 2002, p. 2).
A ênfase da reflexão recai na ‘pedagogia do melodrama’5 como ma-
triz cultural do que se supõe classificar como uma estratégia de merchandi-
sing social, podendo se caracterizar como uma das formas de discussão de
questões sociais no âmbito midiático. Tal tipo de ação, além de promover
os temas sociais, tem o propósito de se aproximar mais de sua audiência,
ampliando a possibilidade de gerar comoção do telespectador, portanto,
uma estratégia mercadológica própria da lógica do produto televisivo.
Em Salve Jorge, algumas personagens (incluindo a protagonista) são
vítimas do tráfico humano para fins de exploração sexual, sendo traficadas
para a Turquia onde são exploradas por uma quadrilha com a ‘justificativa’
de dívida adquirida pela viagem, ameaça familiar e restrição de acesso aos
documentos, configurando-as como imigrantes ilegais naquele país. Além
dessa linha, a telenovela aborda o tráfico de bebês, resgatando na trama a
história de uma personagem que foi adotada ilegalmente e descobre sua
verdadeira trajetória ao longo da evolução dos capítulos. A ação da Polícia
Federal, somada às intervenções militares, é acionada na trama, apresen-
tando a temática sob o ponto de vista do processo de mapeamento das
277
quadrilhas e envolvimento de agenda internacional, ilustrando a amplitude
do crime.
Em Salve Jorge, pode-se obsevar arcos dramáticos envolvendo o trá-
fico de pessoas: as vítimas do tráfico, a ação da quadrilha e a atuação da
Polícia Federal no combate ao crime. Tais elementos acionados somam na
configuração da estratégia de merchandising social da Rede Globo. O dis-
curso do tráfico na telenovela é registrado não apenas pela trama em si,
mas também pela experiência das personagens que foram vítimas do tráfi-
co e testemunhais reais que se somam à narrativa comercial. A mistura de
realidade e ficção confere à novela a dualidade da gestão do discurso situa-
do entre o público e privado no próprio produto televisivo. Assim, há uma
manipulação do conteúdo, oferecendo validade argumentativa, moldando
sua elasticidade conforme uma possível adesão (agendamento) ou omissão
(silenciamento) do assunto pela mídia. Tais movimentos são observados
conforme a lógica midiática observada por Gomes (2004), ao indicar que
[...] a indústria da informação surge quando o mundo dos negócios
se dá conta que a informação pode se transformar num negócio, cujas
transações se realizam não mais com corporações e partidos mantene-
dores, mas com duas categorias novas, os consumidores de informação
e os anunciantes (Gomes, 2004, p. 50).
Essa lógica, portanto, envolve atributos diversos, como a estética, o
tempo, a tecnologia, o tipo de profissionais e os possíveis contratos de lei-
tura na relação com o espectador. Assim, a telenovela potencializa essa in-
dústria da informação em que o seu produto final pode ser associado ao
caráter mercantil ou comercial no momento em que ela passa a “vender a
mercadoria ‘atenção pública’ ou ‘audiência’ aos anunciantes” (Gomes, 2004,
p. 51).
Weber (2000) sublinha que o “sentido e a atitude pedagógica das mí-
dias são decisivos, no mínimo, para fortalecer a ideia preliminar sobre qual-
quer fato, especialmente sobre aqueles mais complexos, como a política” (p.
121). E ao expor temas e dar luz aos fatos eleitos, a telenovela repercute e
promove discussão.
Biopolítica no entretenimento
6 Serviço criado em parceria com a ONG Viva Rio para dar orientações e ajudar a esclarecer dúvidas
sobre tráfico e exploração de pessoas. Permaneceu disponível através do site: www.disquesalve.com.
br e a central de atendimento por telefone através do número (21) 2555-3777 (seg-sáb 17:00-23:00),
durante o período de exibição de Salve Jorge. O projeto registrou 456 casos em 22 semanas, conforme
site da ONG Viva Rio. Disponível em <http://vivario.org.br/trafico-de-pessoas-e-tema-de-seminario-
-no-rio-3/>, acessado em 17 de fevereiro de 2015.
7 Matéria de Fabiana Nunes, publicada em 26 de outubro de 2012, sob o título: Tema da novela Salve
Jorge, tráfico de pessoas é ignorado pela sociedade. Última Instância: considerado o maior acervo de
informação sobre Direito e Justiça em língua portuguesa. Disponível em <http://ultimainstancia.uol.
com.br/conteudo/noticias/58439/tema+da+novela+salve+jorge+trafico+de+pessoas+e+ignorado+pel
a+sociedade.shtml>, acessado em 4 de fevereiro de 2015.
280
que é capaz de ver e de falar” e complementa indicando que “as convoca-
ções biopolíticas dos enunciadores midiáticos chamam os espectadores e
os leitores para ensinar a eles como viver, como ter sucesso, como ser sem-
pre jovem, como, inclusive, nessa direção de recepção, consumir as ima-
gens, o que ver nelas, enfim, como ler os signos” (Prado, 2012, p. 176). A
telenovela, portanto, convoca a uma leitura do tema de interesse público de
forma mais eficaz que sua inerente dimensão jurídica.
281
Portanto, além dos intervalos da própria telenovela, percebe-se a extensão
temática em outros produtos. Machado indica que em um melodrama os
intervalos têm sua função, pois eles fragmentam um programa em capí-
tulos diários, e afirma que se “fossem colocados em continuidade numa
mesma sequência, o interesse do programa provavelmente cairia de ime-
diato” (Machado, 2005, p. 88). Essa estratégia de abordagem do conteúdo
de forma intervalar também é observada nos outros produtos televisivos
que, por sua vez, gotejam o tema na grade da emissora. Porém, percebe-se
que quando os episódios acabam, o tema entra num processo de esqueci-
mento ou redução em termos de visibilidade por parte da emissora. A cada
telenovela a temática (re)nasce, cresce e morre. A discussão se encerra no
próprio personagem, no final feliz dos cerca de 190 capítulos, com poucas
sobrevidas. Não há uma leitura longitudinal ou a efetiva apropriação da
emissora (neste caso, a Rede Globo) na discussão do mesmo.
Por outro lado, ao considerar o poder da telenovela no País, aliado à sua
importância histórica na repercussão de temas de interesse público (como
violência doméstica, preconceito racial, homossexualidade, entre outros), o
tráfico de pessoas, ao ser eleito como trama central em Salve Jorge, auxilia a
manter o melodrama em debate, mesmo que localizado ou restrito ao pe-
ríodo de sua exibição, ampliando a própria audiência da telenovela, como
colocando em pauta a discussão de ações públicas/sociais governamentais.
Nesse sentido, a mídia, quando atuante no regime democrático, pos-
sibilita dar visibilidade ao debate público, mantendo a luz (ou não) sobre
os temas sociais que envolvem os interesses públicos e os tensionamentos
entre sociedade e Estado, característicos da função política desse espaço
público. Conforme Thompson,
[...] conquistar visibilidade pela mídia é conseguir um tipo de presença
ou de reconhecimento no âmbito público (...) visibilidade mediada não é
apenas um meio pelo qual aspectos da vida social e política são levados ao
conhecimento dos outros: ela se tornou o fundamento pelo qual as lutas
sociais e políticas são articuladas e se desenrolam (Thompson, 2008, p. 37).
Portanto, o tráfico de pessoas entra na pauta social dos públicos de
forma mais intensa por intermédio de Salve Jorge.
Conforme indicado por Esteves (2011, p. 150), os públicos vivem uma
“forma de sociabilidade do contágio sem contato”, não despertando uma
exclusividade de pertencimento. Há, portanto, uma relação contínua de re-
visitação, de idas e vindas, de “relações de pertença abertas e revertíveis”
(p. 151). O fazer parte do público está associado à coesão simbólica por
282
intermédio de um tema, que confere o “traço essencial da identidade espe-
cífica dos diferentes públicos concretos” (p. 149). Tal coesão é promovida
tendo como papel relevante a imprensa ou a mídia, pois é através dela que
o fluxo de informação se estabelece, permitindo uma troca de mensagens,
o deslocamento do vínculo territorial, bem como a circulação das pessoas.
Sob esse prisma, pode-se dizer que o tema tráfico de pessoas une a discus-
são, converge os olhares e incita a ideia de pertencimento. Há um distan-
ciamento direto (ou físico) das pessoas com o tema, pois não fazem parte
daquele grupo ou tribo, porém, desperta uma formação de público sim-
bólica momentânea, pois os públicos podem ser montados, estruturados
fracionadamente e posteriormente desaparecem ou perdem foco.
Blumer (1971, p. 181) refere-se a público como um grupo de pesso-
as que “estão envolvidas numa dada questão, que se encontram divididas
nas suas posições, e que discutem a respeito do problema”, e indica que a
visibilidade e a opinião são elementos simbólicos agregadores da dinâmica
comunicacional. O primeiro (visibilidade) tem como ênfase a realização
de aproximação dos públicos, e o segundo (opinião) é realizada no interior
dos públicos, portanto, marcado pela presença de uma questão, de uma
discussão e de uma eventual formação de opinião coletiva. Essa partilha
de sentido, decorrente da opinião do público é resultado da diversidade
argumentativa, tendo como base a racionalidade, o consenso. O tráfico de
pessoas entra em pauta midiática, é denunciado pelos pares/familiares, é
acionado na ordem jurídica, ampliando seu espaço de debate.
Salienta-se, assim, que o debate público não necessariamente decorre
em soluções, mas implica em visibilidade. Porém, quando o tema entra em
discussão em algumas esferas (por exemplo: igreja, telenovela, organizações
não governamentais e demais atores) é porque esse tema interessa; portanto,
pode ser que seja destruído ou transformado em política pública. Nesse sen-
tido, público e privado são elementos tensionais, mas de essencial vitalidade
da modernidade. Quando se refere a espaço público, a mediação está presen-
te. A telenovela promove um debate público, gerando um direcionamento no
olhar social e político sobre determinados temas de interesse público que são
eleitos pela emissora e pelos autores do melodrama. Segundo Weber (2000)
[...] as mídias no Brasil ocuparam muito adequadamente o espaço das
instituições culturais, sociais e políticas, assumindo a incumbência, pla-
nejada ou intuitiva, dessas como seu simulacro, interferindo na forma-
ção da sociedade, do governo e no hábito de consumir discos (Weber,
2000, p. 120).
283
De forma específica, sob o prisma de análise de telenovela, o que se
observa é a reprodução do modelo das relações estabelecidas em família,
portanto, de ordem privada. A intimidade e a subjetividade dos estilos de
vida são retratadas na narrativa, tendo como cenário a reprodução da rea-
lidade com rótulo (ou justificativa) de ser uma obra de ficção. Mas a repre-
sentação ainda assim é feita. A abordagem temática das telenovelas pode
ser analisada sob a existência de autonomização de “esferas de valor”, indi-
cadas por Esteves (2011, p. 179), sendo que existem dimensões de validade
e ideias de mundo, conforme os diferentes atores ou produtos sociais.
Ao observar a apropriação de temas privados refletidos na tela, deve-
-se antes discutir a realidade, não somente a ficção. O tráfico de pessoas
surge como uma prática mercantil do corpo e sua regulação (ou ausência
de) é situada na esfera pública. Nesse sentido, ficam claros os problemas de
uma concepção dicotômica público/privado, já que, num ambiente marca-
do pela influência das tecnologias de comunicação e informação, torna-se
cada vez mais difícil estabelecer, com clareza, o que é (ou deve ser) público
e o que é (ou deve ser) privado (Thompson, 2010).
Considerações finais
Introdução
287
bém ser permitidas edificações destinadas à atividade residencial na área
da Orla do Guaíba onde se localiza o antigo Estaleiro Só?”. Votaram 22,6
mil pessoas, das quais 18.212 optaram pelo Não e 4.362 pelo Sim.
A Frente do Não (contra o projeto) se constituiu a partir do Movimen-
to Em Defesa da Orla, formado por ambientalistas, arquitetos, políticos e
ativistas em geral, e contava com entidades como a Associação Gaúcha de
Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) e o Instituto de Arquitetos do
Brasil, seccional Rio Grande do Sul (IAB/RS). A Frente do Sim (a favor) foi
formada por defensores do projeto representados por entidades como os
Sindicatos das Indústrias da Construção Civil no Estado do RS (Sindus-
con/RS) e de Porto Alegre e o Clube de Mães do Bairro Cristal.
A revisão do Plano Diretor de Porto Alegre neste período recebia uma
série de alterações fora do PDDUA por causa das obras para a Copa do
Mundo de 2014. Esse episódio está no contexto das discussões sobre o de-
senvolvimento das cidades se o relacionarmos com fenômenos similares
em outras capitais. Nesta senda, emergiram movimentos anti-especulação
imobiliária, como o movimento Ocupe Estelita, que desde 2012 mobiliza
parte da população de Recife contra o projeto Novo Recife.3
Neste artigo, Porto Alegre é analisada sob o ponto de vista da alteração
que o plano diretor passou ao ser atravessado pelo projeto de construção
de um empreendimento específico. Assim, abriu-se entendimentos sobre
a cidade na forma material e imaterial, duplicidade que muitas vezes so-
brepõe as duas dimensões. Há a Porto Alegre que surge a partir dos planos
diretores, cujos planejamentos postos em ação interferem na organização
orgânica e material do espaço geográfico do Município. Nesse sentido, são
mobilizados políticos e sociedade no planejamento urbano. No segundo
caso, a cidade é alterada em seus significados pela comunicação, nas trans-
formações de representações, configurações a cargo da mídia e dos discur-
sos. Nessa perspectiva, Porto Alegre é vista como “equação viva complexa
e atratora de interesses políticos, midiáticos e acadêmicos” (Weber, 2007, p.
247). Adiciona-se a essa tríade a cidade atratora de investimentos privados.
Este artigo, portanto, identifica os argumentos produzidos pela comu-
nicação das três esferas que compuseram o debate público sobre o Pontal
do Estaleiro. Na esfera pública, foram identificados os argumentos de are-
nas de interlocução através da observação participante de uma audiência
3 O empreendimento de luxo prevê a construção de 13 prédios residenciais e empresariais no terreno do
Cais José Estelita. Em outro episódio, o Cais Mauá em Porto Alegre concentrou debate sobre o projeto de
revitalização proposto para a área com fundos imobiliários. A construção de três prédios de 100 metros e
de um centro comercial nos antigos armazéns mobilizou ativistas no movimento Cais Mauá de Todos.
288
pública e duas reuniões do Fórum de Entidades. Na esfera midiática, foram
examinadas as questões enquadradas nas coberturas realizadas pelos jor-
nais Zero Hora, Correio do Povo e Jornal do Comércio. Na esfera política, são
analisadas as notícias publicadas pela Câmara de Vereadores e Prefeitura
Municipal nos respectivos sites pela perspectiva da accountability (presta-
ção de contas) quanto a notícias sobre os trâmites legislativos e executivos.
O estudo de caso avaliou o debate nas três esferas por meio da Análise de
Conteúdo (AC), através de uma leitura quantitativa, na qual foi feita a con-
tagem de frequência de conteúdo manifesto, e de uma análise qualitativa, a
partir do conteúdo latente no sentido geral dos textos e contextos (Hersco-
vitz, 2007). Entre a apresentação do projeto do Pontal na Câmara em abril
de 2008 e a consulta pública em agosto de 2009, a polêmica teve mais de um
ano. Porém, o projeto concentrou atenção a partir de novembro de 2008,
quando aprovado pela primeira vez, instaurando um debate até a votação
da população. Para fins de análise, este período foi dividido em fases, deter-
minadas pelos dias de maior repercussão do debate referentes a cinco fatos
fundamentais à deliberação:
a) Fato 1 em 12/11/08: Dia da Audiência Pública na Câmara que apro-
va pela primeira vez o projeto, que seria vetado pelo prefeito em de-
zembro de 2008. Nesta 1ª fase estão os dias 11, 12, 13 e 14/11/2008;
b) Fato 2 em 5/3/09: Dia da Audiência na Câmara acompanhada de
manifestações. Período de discussão do projeto e da realização de
referendo, depois designado consulta pública. Na 2ª fase entram os
dias 4, 5 e 6/3/2009;
c) Fato 3 em 16/3/09: Dia da Sessão da Câmara que aprova, pela se-
gunda vez, o projeto e a consulta pública. Na 3ª fase estão os dias
11, 16 e 17/3/2009;
d) Fato 4 em 9/4/09: Dia correspondente à desistência do empreende-
dor em construir residenciais. O empresário envia carta de desis-
tência para o prefeito. Na 4ª fase são analisados os dias 9, 10, 11, 13,
14, 15 e 30/4/2009; e) Fato 5 em 23/8/09: Dia da Consulta Pública
sobre a ocupação do Pontal do Estaleiro. Na 5ª fase são analisados
os dias 22, 23 e 24/08/2009.
Do debate ao agendamento
4 Publicidade forte entendida como uma norma que assegure que todos os interlocutores podem par-
ticipar efetivamente na arena do debate e da discussão (BOHMAN, 2009).
290
dimensões temporais de interação emergem através da extensão da comu-
nicação face a face (Bohman, 2009, p. 53).
Quando este processo ocorre publicamente e relaciona trocas ar-
gumentativas entre esferas diferenciadas, o diálogo ocorre a um nível de
opinião pública. Citando Habermas, Maia (2007, p. 104) contextualiza a
opinião pública como uma comunicação dispersa, sem sujeito (subjetless
communication), já que não está conformada a interesses e crenças de um
sujeito específico. Caracterizada como condição aberta, a deliberação vai
além de dispositivos que tiram questões da agenda para resolver outros
problemas, tampouco se restringe a modos procedimentais. É um processo
mais longo que pressupõe o agendamento de questões para conhecimento
público.
5 O Fórum de Entidades para a 2ª revisão do PDDUA teve 99 entidades inscritas, sendo 30 as mais
atuantes.
292
são examinados os principais argumentos que nutriram a discussão na au-
diência pública de 5/3/2009, as questões da reunião de instalação do Fórum
de Entidades para a revisão do 2° PDDUA, em 11/3/2009, e da reunião do
Fórum de Entidades, em 15/4/2009.
A audiência convocada pela Câmara objetivava rediscutir o projeto. A
diferença agora era a previsão de um referendo para que a população opi-
nasse sobre a possibilidade de residenciais no terreno do Pontal. Neste dia,
as galerias do plenário foram divididas entre manifestantes a favor e contra
o projeto. Isso se deveu ao acirramento em torno do tema desde a primeira
audiência de aprovação do projeto e refletia o aprofundamento do dissenso
sobre o assunto. Críticas ao projeto se sobressaíram, conforme argumenta-
ções verificadas no Quadro 1.
Políticos/vereadores Argumentos
1. Presidente do Legislativo, Melo (PMDB). Há burocracia para discussão do projeto e a proposta
de referendo.
2. Secretário do Planejamento Municipal, A consulta popular deve ser uma construção conjunta
Márcio Bins Ely (PDT). do Legislativo e Executivo para oportunizar a
participação da população.
3. Secretária Munic. de Governança, Descarta a desapropriação do terreno.
Clênia Maranhão (PPS).
4. Vereadora Fernanda Melchionna (PSOL) Denuncia do Legislativo e especulação imobiliária.
5. Vereadora Maria Celeste (PT) O projeto deve entrar na revisão do PDDUA.
6. Vereador Bernardino Vendruscolo (PMDB) Trata-se de área privada e o PT induziu o
empreendedor a comprar o terreno em leilão.
7. Vereador Carlos Todeschini (PT) Pede cuidado na ocupação da orla .
Representantes de entidades Argumentos
1. Filipe de Oliveira – Associação dos Faturamento em terreno comprado por R$ 7 milhões,
Moradores do Bairro Chácara das Pedras chegando a R$ 700 milhões e da remoção da Vila Cai Cai
(Amachap). do local, justificada por que a orla não deveria ser habitada.
2. Fernando Bachi – Morador O projeto deve ser levado adiante, descartando catástrofes.
3. Neiva Lazarotto – Associação de “Espigões” separam o Guaíba da cidade.
Moradores da Cidade Baixa/ CPERS
4. Paulo Sanchez – Morador Critica à mobilização contrária ao projeto, afirmando
que é área privada.
5. Maria Ribeiro – Presidente da UAMPA O projeto deve respeitar a revisão do PDDUA.
Fonte: Quevedo (2010, p. 123-124)
293
A reunião de instalação do Fórum de Entidades, em 11/3/2009, de-
marcou o início dos trabalhos da sociedade no espaço de participação para
a revisão do PDDUA. A mobilização contra o projeto acabou concentrando
as atenções, já que os vereadores vinham tratando o Pontal avulsamente.
Assim, as argumentações mencionavam o desrespeito em relação às dire-
trizes do PDDUA, como mostra o Quadro 2.
Como espaço instituído para participação de cidadãos e entidades na
Câmara desde 2007, o fórum tem presidência e secretariado de vereadores,
mas foi nestas reuniões que o Movimento em Defesa da Orla se mobilizou.
Políticos/vereadores Argumentos
1. Sebastião Melo (PMDB) – Presidente da Preocupante ter um plano diretor discutido
Câmara no Fórum de Entidades e outro na Câmara
2. Vereador Comasseto (PT) – 1° secretário Equilíbrio entre ambiente construído e natural.
do Fórum de Entidades
3. Vereador Toni Proença (PPS) – Presidente Os vereadores são instrumento para a sociedade
do Fórum de Entidades. reivindicar sobre a cidade.
Representantes de entidades públicas Argumentos
1. Nestor Nadruz – Representante no Exploração econômica das cidades.
Conselho Municipal do PDDUA e
coordenador no Fórum de Entidades.
2. Paulo Guarnieri – 2º secretário do Fórum de O Fórum deve aprofundar discussões e diferencia
Entidades, Associação dos Moradores do Centro. funções do fórum e Legislativo.
3. Beduíno Matos ONG Solidariedade. Consolidação dos fóruns regionais e sua função
de informar a população dos bairros.
294
Quadro 3: Argumentos da reunião do Fórum de Entidades de 15/04/2009.
Políticos/vereadores Argumentos
1. Vereadora Sofia Cavedon (PT) A imprensa não publica versões sobre a
Suplente de relatoria da 4º Temática do PDDUA. mobilização e que o PDDUA é desrespeitado.
2. Vereador Airto Ferronato (PSB) – Relator O projeto esconde o Guaíba não pensa
da 4ª Comissão Temática da revisão do PDDUA. estrategicamente a cidade
Representantes de entidades Argumentos
1. César Cárdia – Movimento de Moradores A Marinha não permite construir marina pública
Amigos da Rua Gonçalves de Carvalho. no local.
2. João Bastos – Membro do Conselho de Exigência de documento oficial que defina
Usuários do Parque Farroupilha. geograficamente o Guaíba.
3. Henrique Wittler – Associação Amigos A Secretaria do Meio Ambiente aplica definição
do Jardim Botânico. de lago sem saber o que o Guaíba é.
4. Beduíno Matos – ONG Solidariedade. O Guaíba é rio.
5. Caio Lustosa – Ex-secretário de Meio Ambiente, Debate de duas visões de desenvolvimento
membro Associação Amigos de POA. da cidade.
6. João Correia – Associação dos Moradores Ocorre transferência do poder do Executivo
da Auxiliadora. à parceria público-privada.
7. Marçal Davil – Centro Comunitário de Falta obediência do projeto à Lei Orgânica
Desenvolvimento Tristeza, Pedra Redonda, Assunção. do Município e ao Estatuto das Cidades.
Fonte: Quevedo (2010, p. 127)
295
Nas cinco fases, os jornais totalizaram 63 ocorrências sobre o assunto.
Foram 16 em Zero Hora, 29 no Correio do Povo e 18 no Jornal do Comércio
(Tabela 1).
297
Tabela 3: 2ª fase – enquadramentos da audiência de 05/03/2009
298
Na 4a fase, as mobilizações das Frentes do Não e do Sim começam a se
preparar para a consulta pública mesmo com a desistência do empreende-
dor (Tabela 5). Zero Hora cita sete nomes da esfera privada e entrevista o
prefeito. A matéria contempla as retrancas “Por que a construtora recuou”,
“Próximos Passos” (ações do prefeito) “Prefeitura se divide sobre consulta”
(vice-prefeito diz que a consulta perdeu o objetivo) e “O que é o Pontal”.
O Correio do Povo enquadra vereadores contra e favor do projeto. No
JC, o destaque foi a consulta pública.
299
Tabela 6: 5ª fase – enquadramentos sobre a consulta pública sobre a
ocupação do Pontal do Estaleiro em 23/08/2009
300
Notícias do site da câmara de vereadores: Na 1a fase, nove notícias
abordam a burocracia de votação do projeto pelos vereadores. Nos dias de
audiência e votação da emenda do projeto, foco nas argumentações entre
atores e discordâncias jurídicas.
Das cinco matérias destacadas nesta fase, a notícia de 11/11/08 de-
monstra o grau da polêmica, devido à discordância em pareceres impor-
tante. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou o
projeto, enquanto o da CEFOR rejeitou. Este elemento é ponto tenso, pois
polariza argumentações na esfera política. Outro destaque é o dia 12/11/08
em que várias notícias registram a votação. A matéria “Pontal: Câmara dis-
tribuirá senhas para acesso ao Plenário” informa sobre a entrada de ma-
nifestantes. Iniciada a sessão, na notícia “Vereadores comentam proposta
para área do Estaleiro” são focalizados os principais argumentos sobre a
polêmica. Sob o título “Plenário – Aprovado o Pontal do Estaleiro”, se di-
mensiona a aprovação (Quadro 4).
301
Pizzato, representante da BMPar. Instituições: Câmara;
Fórum de Entidades; Movimento Defesa da Orla; BM PAR.
4. Data: 12/11/2008 – 1ª fase Título: Plenário – Vereadores comentam proposta
para área do Estaleiro.
Enfoque: O projeto foi o tema dos pronunciamentos Questões: Braz lembrou que o atual Plano Diretor
das lideranças. permite a construção de torres na orla; Vidal
Atores sociais e políticos: Margarete Moraes (PT); Luiz mostrou fotos sobre degradação do Pontal; Heinen
Braz (PSDB); João Nedel (PP); Elias Vidal (PPS); José disse que a Prefeitura arrecadará mais impostos com o
Heinen (DEM); Guilherme Barbosa (PT); Maristela projeto; Barbosa afirmou que Conselhos políticos
Maffei (PCdoB); Haroldo de Souza (PMDB); Alceu não avaliaram o projeto.
Brasinha (PTB); Ismael Heinen; Guilherme Barbosa.
Instituições: Câmara; Executivo.
5. Data: 12/11/2008 Título: Plenário – Aprovado o Pontal do Estaleiro.
Enfoque: Câmara aprova o PL complementar Questões: proposta recebeu 20 votos favoráveis e 14
nº 006/2008, conhecido como Pontal do Estaleiro. contra; retirado do projeto artigo sobre índice
O projeto será avaliado pelo Executivo construtivo com limite de 1,5; aprovação da emenda
Atores sociais e políticos: Luiz Braz (PSDB); Adeli Sell 7 retirou do projeto o parágrafo 6, que estabelecia
(PT); Haroldo de Souza (PMDB); Dr. Goulart (PTB); volumetria com altura de 43 m e taxa de ocupação
Professor Garcia (PMDB). conforme o Estudo de Viabilidade. Aprovada emenda
Instituições: Câmara; Executivo Municipal. 5 que considera viável residenciais no local.
302
A 3ª fase tem destaque em três notícias em 16/03/09, sobre a segunda
votação. Sob o título “Pontal do Estaleiro domina pronunciamentos de Li-
deranças”, o texto enquadrou justificativas dos votos dos vereadores. Nesta
notícia tem visibilidade a troca argumentativa entre os políticos. A consulta
popular prevista é motivo de ataques em uma sessão acirrada em que o
projeto foi aprovado por 22 votos favoráveis e 10 contrários (Quadro 6).
303
Quadro 7: Notícia da Câmara 4ª fase
10. Data: 09/04/09 Título: Plano Diretor – Fórum quer que PDDUA
evite destruição do patrimônio.
Enfoque: PDDUA deve ter mecanismos de proteção Questões: Nadruz disse é difícil fiscalizar o PDDUA;
do patrimônios da cidade Celeste falou da dificuldade do PDDUA diante do
Atores sociais e políticos: Toni Proença (PPS), Maria Celeste volume de projetos urgentes para a Copa do Mundo.
(PT), João Pancinha (PMDB), Dr. Thiago (PDT); Nestor
Nadruz; João Dib (PP); Comassetto (PT).
Instituições: Fórum de Entidades; Câmara.
304
Quadro 9: Notícias da Prefeitura 2ª fase
305
Quadro 11: Notícias da Prefeitura 4ª fase
306
Os enquadramentos das notícias do site da Prefeitura destacaram os
dois principais atores políticos do Executivo. A consulta pública tornou-se
uma ferramenta de visibilidade política. Suas ações sobre o projeto do Pon-
tal foram a proposição e a organização da consulta pública. Comparativa-
mente, a representação do debate público foi mais diversificada nas notícias
da Câmara do que nas da Prefeitura.
Por fim, apresentados os argumentos em cada esfera, chega-se à sínte-
se do debate público do Pontal do Estaleiro.
Considerações finais
309
O debate da Cadeira Vazia
Ausência e presença na eleição presidencial de 2006
Carmen Abreu
Introdução
311
gadas. De acordo com o MPF, a Lava-jato é a maior investigação de corrup-
ção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Na 35ª fase da Lava-jato, em
setembro de 2016, Antonio Palocci foi preso. Ele foi ministro da Casa Civil
no governo de Dilma e ministro da Fazenda de Lula. Desde a prisão, Anto-
nio Palocci está detido na carceragem da Polícia Federal (PF), em Curitiba.
É só um exemplo da dimensão da operação Lava-jato no que se refere aos
danos causados a imagem e organização do Partido dos Trabalhadores.
Ao envolver-se em um escândalo, o político ou seu partido podem
perder a confiança do eleitorado. Para Thompson (2002, p. 296), “os escân-
dalos são lutas pelo poder simbólico4 em que a reputação5 e a confiança
estão em jogo. Os escândalos não necessariamente destroem a reputação e
enfraquecem a confiança, mas eles têm a capacidade de fazer isso”. Ainda
segundo o autor (p. 300), “no campo da política, boa reputação é importan-
te porque ela é uma fonte vital do poder simbólico”. Contrariando a argu-
mentação de Thompson, o PT apesar do desgaste político, dos escândalos
que se sucederam, das prisões de alguns de seus representantes históricos,
e da cobertura midiática desfavorável continuou conquistando a confiança
da maioria dos eleitores brasileiros quando se tratava da eleição presiden-
cial, isso até 2014.
São muitos os acontecimentos envolvendo a história política recente
do país. No dia 20 de setembro de 2016, o juiz federal Sérgio Moro, respon-
sável pelos processos da operação Lava-jato em primeira instância, aceitou
a denúncia oferecida pelo MPF contra o ex-presidente Lula. Conforme a
denúncia do MPF, o ex-presidente cometeu crimes de lavagem de dinheiro
e corrupção passiva. O cenário político brasileiro está em constante altera-
ção. Apesar de tudo, uma pesquisa, divulgada em 15 de fevereiro de 20176,
mostrava Lula liderando as intenções de voto para a eleição presidencial de
2018.
Diante desta breve abordagem é possível perceber que os temas refe-
rentes ao contexto político nacional são inúmeros. Neste texto vamos ana-
lisar um acontecimento integrante da eleição de 2006, quando ocorreu a
4 O autor conceitua o poder simbólico como uma das quatro formas de poder: ele se refere à capacidade
de intervir no curso dos acontecimentos e modelar seu resultado, bem como a capacidade de influen-
ciar as ações e crenças de outros, através da produção e transmissão de formas simbólicas. Bourdieu
define poder simbólico como todo o poder que consegue impor determinadas significações como legí-
timas (BOURDIEU, 1989, p. 9).
5 Reputação é um aspecto do capital simbólico; é a relativa apreciação e estima concedida a um indivíduo
ou instituição, por outros.
6 O levantamento foi encomendado pela Confederação Nacional do Transporte. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/poder/2017/02/1859578-pesquisa-mostra-lula-liderando-para-presidente.
shtml>. Acesso em: 3 de mar. de 2017.
312
reeleição de Lula. Mesmo diante do contexto tão adverso, já instalado na
época, Lula se manteve à frente nas pesquisas e iniciou 2006 na liderança,
independente de quem fosse o adversário. Perante o quadro apresentado,
durante os períodos pré-eleitoral e eleitoral, esperava-se que Lula tivesse
uma queda na preferência dos eleitores, mas apesar de todo o cenário ser-
-lhe contrário chegou como o favorito a vencer no primeiro turno. A uma
semana do início oficial da campanha, Lula, segundo pesquisa do Datafo-
lha7, realizada entre os dias 7 e 8 de agosto de 2006, ampliava de 16 para
23 pontos percentuais a vantagem eleitoral sobre Geraldo Alckmin (Alck-
min), do Partido da Social Democracia Socialista (PSDB), vencendo com
55% dos votos válidos, se a eleição ocorresse naquela data.
A campanha eleitoral de 2006 começou e terminou sem que analistas
e pesquisadores interessados em comunicação e política entendessem, ou
encontrassem respostas para perguntas como: “por que a visibilidade des-
mesurada dos escândalos não afetou o resultado da eleição?” (Motta, 2006,
p. 1). Segundo o autor, “pela lógica dos analistas políticos, a exposição dos
escândalos no noticiário deveria funcionar como um recurso argumentati-
vo contra Lula e o PT”. Questionamentos que se repetiram nas eleições de
2010 e 2014, com as vitórias de Dilma Rousseff.
Uma publicação organizada por Lima (2007) trata da discussão sobre
o posicionamento da mídia em favor de um ou outro candidato, em 2006.
Trabalhos anteriores apontam que em outras eleições também ocorreram
coberturas desequilibradas8. Segundo Lima (2007, p. 15), diferente, por
exemplo, das eleições de 1989, quando Lula concorreu e perdeu a presidên-
cia da República para Fernando Collor de Mello, “há um relativo consenso
entre jornalistas e pesquisadores, acadêmicos ou não [...] de que em 2006
o candidato eleito não foi o preferido pelos principais grupos de mídia do
país”.
7 Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/eleicoes2006/interna/0,,OI1091980-EI6652,00.html>.
Acesso em: 12 de ago. de 2006.
8 Em 1989, a mídia iniciou sua participação no processo eleitoral de forma efetiva e marcante. Em 1994,
é apontado o apoio da grande mídia ao Plano Real, essa eleição marca o início da disputa entre o PT e o
PSDB. Desde 1994, os dois partidos protagonizam a disputa presidencial do país. Já em 1998, discute-se
um engajamento da maior parte da mídia à reeleição de Fernando Henrique Cardoso com o silencia-
mento quase total da cobertura sobre a disputa. Em 2002, uma nova configuração se apresenta com a
significativa cobertura das eleições realizada pela mídia. Nas duas últimas eleições presidenciais, os
principais candidatos à presidência com os índices mais altos nas pesquisas de sondagens, foram entre-
vistados, participaram de debates e tiveram suas agendas acompanhadas diariamente e divulgadas nos
telejornais. Essa crescente visibilidade do momento pré-eleitoral e da eleição propriamente foi analisada
em detalhes por Rubim e Colling (2006). Para um aprofundamento sobre a atuação da mídia nas elei-
ções até 2006 ver “Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral” e “Eleições Presidenciais
em 2002 no Brasil: Ensaios sobre Mídia, Cultura e Política” referenciadas na bibliografia.
313
Contrariando todos os prognósticos, Lula mantém-se à frente de seus
adversários durante toda a campanha eleitoral com chances, segundo as
inúmeras pesquisas, de vencer no primeiro turno. Seu principal adversário
na disputa, Alckmin, é o segundo colocado desde o início do processo e,
mesmo com a inserção do “escândalo do dossiê” no cenário eleitoral não
consegue avançar nos índices. Tudo estava indo bem e a vitória no pri-
meiro turno estava cada vez mais próxima. O candidato-presidente decide
então não comparecer aos debates do primeiro turno. Nenhuma alteração
nas pesquisas após Lula não participar do debate na TV Bandeirantes, em
agosto. Já a ausência no debate promovido pela TV Globo, realizado dia
28 de setembro, foi amplamente divulgada, gerou matérias nos principais
jornais do país, comentários dos colunistas e indignação da emissora ex-
pressada no seu principal telejornal, Jornal Nacional (JN).
Uma estratégia ousada que, ao que tudo indica, custou caro ao petista.
Segundo a opinião de vários analistas e de acordo com a pesquisa do Ins-
tituto Vox Populi, publicada na revista Carta Capital nº 415, a divulgação
das fotos do dinheiro que seria utilizado para a compra do “Dossiê Vedoin”,
a dois dias da eleição, e a ausência de Lula no debate promovido pela TV
Globo seriam os fatos que impediram a vitória do candidato-presidente no
primeiro turno de 2006.
É neste contexto, que, na dissertação de mestrado defendida em 2008,
se discutiu o papel dos debates televisivos na eleição presidencial de 2006,
no Brasil. Os debates ocupam destaque no processo eleitoral e são pro-
movidos pelas emissoras de TV com interesses específicos e definidos em
comum acordo com as assessorias dos candidatos. Os debates repercutem
em vários outros espaços como jornais, telejornais, blogs, sites especializa-
dos em jornalismo político, revistas e também na propaganda dos candida-
tos, no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE). De acordo com
Motta (2006a, p. 1) “para a mídia, os debates são mais atraentes enquanto
notícia porque são mais francos e abertos que os produzidos programas
eleitorais, onde a influência dos marqueteiros maquia o perfil dos presiden-
ciáveis. Os debates são notícia, os programas, não”.
Os debates mobilizam as candidaturas, alteram estratégias, exigem
preparação do candidato, demandam investimento e planejamento por
parte dos organizadores que esperam retorno desse serviço prestado à de-
mocracia. São também um importante espaço de visibilidade política, mas
podem se tornar um problema caso o candidato não consiga alcançar um
bom resultado. Os debates eleitorais nas emissoras de TV aberta, conces-
314
sões públicas, são ainda um dos raros momentos em que ocorre a comuni-
cação pública, a comunicação realizada pela mídia em torno do interesse
coletivo9.
Neste texto, um recorte da dissertação, a proposta é identificar quais
são os elementos que tornam o debate organizado pela TV Globo, denomi-
nado pela autora como o debate da Cadeira Vazia, um dos acontecimentos
centrais na disputa eleitoral, no primeiro turno, em 2006. O debate foi o
evento político midiático que encerrou a primeira etapa da campanha pre-
sidencial, integrou as discussões sobre a alteração do cenário político da
disputa eleitoral e teve expressiva repercussão em outros espaços midiáti-
cos. Importa ressaltar também que a eleição de 2006 é interessante sob vá-
rios aspectos, dentre eles, pelo fato de ser a primeira vez que um presidente
em exercício, concorrendo à reeleição10, participou de debates na televisão
no Brasil.
Cabe destacar, ainda, que o debate da TV Globo apresenta-se como
inovador, pois permitiu que questões fossem dirigidas a um candidato
ausente. Neste sentido, além do debate, é analisada, neste trabalho, a re-
percussão do debate em três jornais de circulação nacional – O Estado de
S.Paulo (Estadão), Folha de S.Paulo (FSP) e O Globo (Globo). A análise so-
bre o debate e sua repercussão foi orientada por referências da análise do
discurso.
Diante do exposto, cabe destacar algumas considerações dobre a aná-
lise de discurso. De acordo com Pinto (1999, p. 7), “a análise de discursos
procura descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produ-
ção, circulação e consumo dos sentidos vinculados àqueles produtos na
sociedade”. A AD é um método que proporciona uma variada possibilidade
de interpretação e por isso é necessário que o analista opte por conceitos e
procedimentos de acordo com o objeto a ser estudado. “Um mesmo ana-
lista, aliás, formulando uma questão diferente, também poderia mobilizar
conceitos diversos, fazendo distintos recortes conceituais” Orlandi, (1999,
p. 27).
9 “A Comunicação Pública se articula com a Comunicação Política na esfera pública, como local de in-
teração social de todos os agentes e interesses envolvidos. Nesta esfera, transitam recursos humanos
(cidadãos, políticos, eleitores), físicos (suporte da comunicação massiva, tecnologias interativas e con-
vergentes), econômicos (capital, ativos em geral), comunicacionais (discursos, debates, diálogos estru-
turados dentro e fora das mídias massivas e recursos interativos). A questão central é saber, nesta esfera
de relações, o que se busca e o que é obtido: o poder está sempre em jogo, mas só os temas e interesses
comuns dizem respeito à Comunicação Pública” (MATOS, 2006, p. 71).
Em junho de 1997, foi aprovada a emenda constitucional número 16 permitindo a reeleição para Presi-
dente da República, Governadores de Estado e do Distrito Federal e Prefeitos.
315
Importante ressaltar a necessidade de se interligar o discurso ao seu
exterior, observado os processos de produção, circulação e consumo de
sentidos. “A análise de discursos não se interessa tanto pelo que o texto diz
ou mostra, pois não é uma interpretação semântica de conteúdos, mas sim
em como e por que o diz e mostra (Pinto, 1999, p. 23)”.
Nesta perspectiva, entender o contexto faz toda a diferença para a aná-
lise que se propõe. Conforme Orlandi, (1999, p. 42), “os sentidos não estão
nas palavras elas mesmas. Estão aquém e além delas”. Portanto, segundo a
autora, “podemos dizer que o sentido não existe em si, mas é determinado
pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico
em que as palavras são produzidas”. Ainda sob este viés, deve-se considerar
que as palavras alteram seu sentido de acordo com as posições daqueles
que as utilizam.
A noção de formação discursiva, ainda que polêmica, é básica na Análise
de Discurso, pois permite compreender o processo de produção dos senti-
dos, a sua relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade
de estabelecer regularidades no funcionamento do discurso. A formação
discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada –
ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica
dada – determina o que pode e deve ser dito (Orlandi, p. 43).
Um discurso só obtém sentido no interior de um universo de outros
discursos, espaço no qual ele deve delinear seu caminho. Dessa forma,
segundo Maingueneau (2001, p. 55), “para interpretar qualquer enuncia-
do, é necessário relacioná-lo a muitos outros – outros enunciados que são
comentados, parodiados, citados etc”. Dois processos articulam o discur-
so, segundo Orlandi: a paráfrase e a polissemia. Segundo a autora (2000,
p. 36), “os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer
há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase
representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer”. O conceito de
paráfrase é importante para a análise que será feita das principais marcas
apresentadas na cobertura da mídia sobre o debate.
316
vários países ocidentais, tais como os EUA e a França, por exemplo. Suas
regras dão lugar a diversas regulamentações e negociações”.
No Brasil, segundo Lourenço (2007), a primeira tentativa de organi-
zação de um debate, a ser transmitido pela televisão, foi da TV Tupi, de São
Paulo, em 1960, que acabou não acontecendo pela recusa de Jânio Quadros
em comparecer. De acordo com o autor, o primeiro debate televisivo acon-
teceu no Rio Grande do Sul, em 1974, entre os candidatos ao senado Nestor
Jost, da Arena, e Paulo Brossard, do MDB. Com a instituição da “Lei Fal-
cão, em 1976, foram impostas restrições à propaganda eleitoral e os debates
televisivos foram proibidos. Conforme Lourenço, os debates voltam à tele-
visão, em 1982, com o debate entre os candidatos ao governo do Estado de
São Paulo, Franco Montoro do PMDB, e Reynaldo de Barros, do PDS. No
mesmo ano, o TSE retoma a proibição aos debates políticos na televisão.
Mas em novembro daquele ano, “após muita polêmica, foi transmitido pela
Rede Bandeirantes, com mediação de Joelmir Betting, mais um encontro
entre os candidatos ao governo de São Paulo” (Lourenço, 2007, p. 237).
O primeiro debate entre candidatos à Presidência da República no
Brasil, foi transmitido pela Rede Bandeirantes, em 17 de julho de 1989.
Após a eleição de 1989, só em 2002 as emissoras de TV voltam a promover
debates entre os candidatos à Presidência da República no país. Segundo
Rubim (2004, p. 11), “os debates entre presidenciáveis foram banidos pela
negativa de FHC e pela conivência da mídia em 1994 e 1998”. Na disputa
presidencial em 2002, os debates retornam às emissoras de televisão brasi-
leiras como eventos de grande importância. Foram organizados três deba-
tes no primeiro turno e um no segundo turno. A Rede Bandeirantes pro-
moveu o primeiro e foi seguida pelas emissoras Record e Globo. O debate
final, no segundo turno, foi promovido pela TV Globo entre os candidatos
Lula (PT) e José Serra (PSDB). Segundo Lourenço11 (2007, p. 237), “a im-
portância de um debate presidencial como evento midiático, transmitido
em rede nacional, é considerada tão grande, para alguns autores, quanto à
celebração de jogos olímpicos ou copas do mundo”.
Os debates são fruto de intensas negociações entre os promotores,
emissoras de TV, e os assessores das candidaturas que discutem as regras
do encontro cada um com interesses específicos e visando obter benefícios
com o embate. Para os candidatos uma das principais questões em jogo nos
debates é a credibilidade, a capacidade de cada um de convencer o eleitor
317
de que está dizendo a verdade. O debate é um espaço em que os adversários
estão cara a cara e todos os seus movimentos são observados atentamente
pelos eleitores e pela mídia que irá repercutir o encontro em diversos es-
paços.
Os debates exigem preparação, mas não permitem o ensaio, apesar de
definir estratégias antes do encontro, as perguntas proferidas pelo adver-
sário podem surpreender e exigir do candidato um desempenho criativo
e agilidade para responder. Durante o debate, o candidato deve manter a
estratégia discursiva adotada durante a campanha e ser coerente com sua
trajetória política, posição ideológica e o projeto proposto. É um momento
em que as qualidades e fraquezas estão expostas e um simples vacilo pode
ter consequências desastrosas para a campanha.
A pesquisa realizada por Lourenço (2007) ouviu a opinião de eleitores
sobre os debates presidenciais. Segundo o autor, a maioria dos entrevista-
dos entende os debates como eventos importantes e capazes de auxiliá-los
na decisão eleitoral, sendo que muitos revelaram gostar de assistir aos de-
bates, pois esses seriam as melhores fontes de informação existentes sobre
os candidatos.
321
A pergunta é por que o candidato Lula não veio ao debate, será que
ele não veio ao debate porque não consegue explicar os graves proble-
mas da saúde brasileira, eu viajei o país inteiro de Oiapoque ao Chuí e
vi o caos verdadeiro o mau atendimento, qualidade ruim do SUS, aliás
ninguém sabe nem o nome do ministro da saúde, acabaram os muti-
rões que o ministro Serra havia feito, será que ele não veio por causa da
educação (nesse momento a cadeira vazia é mostrada novamente) o
Fundeb não saiu do papel, não conseguiu aprovar o fundo da educação
básica teve maioria para absolver o mensaleiro mas não teve maioria
para aprovar o Fundeb (grifo nosso).
Na sequência, Alkmin pergunta a Cristovam e os dois novamente não
debatem. Conversam tranquilamente. A palavra passa de um para outro
sem nenhum atrito ou discordância. As intervenções seguem no mesmo
ritmo. Bonner anuncia o final do bloco. Nesse momento a cadeira vazia
faz-se presente novamente.
Começa o penúltimo bloco com a cadeira vazia em destaque. O me-
diador sorteia o candidato que iniciará as intervenções. Alckmin é o sorte-
ado, enquanto ele dirige-se ao púlpito a cadeira vazia aparece, ele escolhe
Heloísa. Não ocorre nenhum atrito ou divergência entre os dois. Na réplica
e na tréplica o mesmo comportamento, os dois voltam a se referir ao Go-
verno Lula dirigindo críticas.
Nas considerações finais, os três presidenciáveis, mencionam Lula e
reforçam a estratégia de desqualificar o adversário e assim provocar um
segundo turno. Alckmin e Heloísa de forma mais incisiva. Alckmin: “o Lula
com a sua ausência aqui nesse debate ele mandou um recado aos brasileiros
e às brasileiras, eu não estou interessado na sua opinião, [...] domingo man-
de um recado pra ele mude de presidente”; Heloísa: “volto a repetir, digo
aos meus filhos todos os dias que é proibido roubar, pena que o presidente
Lula não esteja aqui pra dizer o contrário que ele faz na sua vida, na sua
casa, no seu partido e no seu governo” e Cristovam: “mas eu quero pedir a
você, àqueles que votaram no Lula e perceberam que ele não foi o caminho
prometido, àqueles que ainda estão em dúvida, eu quero pedir a vocês que
façam com que o Brasil tenha um segundo turno”.
Repercussão do Debate
a) Marcas de fuga
b) Marcas de responsabilidade
Considerações finais
328
p. 12), a ausência de Lula produziu uma mensagem e ele enganou-se ao
“pensar que, com a sua ausência, poderia controlar unilateralmente os efei-
tos de sua manobra enunciativa. A não mensagem não existe, pois sua au-
sência é, de fato, uma mensagem”. Com a impossibilidade de responder às
perguntas proferidas por seus adversários, Lula deixou uma lacuna repleta
de significados que foram explorados durante todo o evento e também na
repercussão do encontro.
Nessa perspectiva, entende-se que os processos televisivos desenvol-
vidos objetivaram produzir um sentido, o de construir o “corpo do candi-
dato”, para assim justificar a existência de um debate que para a emissora
deveria ocorrer de qualquer forma. A posição repassada pelo mediador
Willian Bonner, em sua intervenção, ao vivo, do estúdio onde se daria o
encontro, no JN, de que “a Rede Globo lamenta profundamente a decisão
do candidato Lula. Lamenta também profundamente que ela tenha sido
anunciada apenas às 7 horas da noite”, representa a inconformidade da
emissora com a ausência.
Difícil medir o peso da ausência diante do cenário formado pela
sequência de imagens e intervenções dos candidatos presentes que con-
centraram forças para desqualificar Lula, sem que ele pudesse contra-argu-
mentar. Torna-se complicado, ainda, compreender a influência sobre a for-
mação da opinião pública das calculadas imagens da cadeira vazia. Porém,
é interessante e preocupante perceber a recusa da mídia em aceitar que a
política realize-se fora de seus domínios. Não é permitido ao candidato re-
nunciar ao espaço que a televisão, no caso a TV Globo, oferta-lhe sob pena
de ser punido, como de fato Lula foi ao não comparecer ao pseudodebate.
Diante do exposto, acredita-se que o debate analisado expressa a im-
portância destes eventos para a relação mídia, política e eleitor. O debate
teve um caráter demarcador na eleição presidencial de 2006. Admitir esse
fato significa reconhecer, entre outras coisas, que o fazer político é afetado,
atualmente e, talvez, irreversivelmente, pela midiatização.
329
Entidades, imprensa e mídia alternativa
no debate sobre direitos trabalhistas
Alexandre Haubrich
Introdução
331
montagem própria à personalidade e interesses de cada veículo e de cada
contrato com o receptor”.
Temos, nesse processo, a participação de variados setores midiáticos,
que podem ser reunidos em dois grandes grupos (embora a variedade vá
muito além dessa tipificação) que aqui nos interessam: a mídia hegemô-
nica, composta pelos conglomerados midiáticos, pelas grandes empresas
de comunicação; e a mídia alternativa, entendida como aquela que possui
como características centrais uma
[...] constituição organizacional democrática, participativa e assentada
em bases populares; diferenciação em relação à mídia dominante; inde-
pendência em relação ao Estado e ao poder econômico; veiculação de
conteúdos de caráter crítico-emancipador, transformador; sentido de
busca de transformações sociais (Haubrich, 2016).
Neste artigo, analisaremos as relações dos discursos das entidades re-
presentativas do grande empresariado (neste caso, a CNI) com as posições
apresentadas pelos meios de comunicação hegemônicos (Folha de S.Paulo,
Estadão e O Globo) a respeito dos direitos trabalhistas. O mesmo tipo de
análise será feita relacionando o discurso dos movimentos populares – aqui
representados pela CUT – com os posicionamentos da mídia alternativa
– serão analisados a Mídia Ninja e o jornal Brasil de Fato. Trataremos em
especial dos discursos apresentados por esses atores entre junho e julho de
2016, tendo como marco inicial a apresentação, pela Confederação Nacio-
nal das Indústrias, do documento “119 propostas para a competitividade
com impacto fiscal nulo”1, que traz, entre os itens destacados, alguns refe-
rentes diretamente ao mundo do trabalho.
Essa reflexão será construída a partir da perspectiva de comunicação
pública como aquela que circula em diversas ambiências e através de diver-
sos atores e instituições tendo como eixo temas de interesse público. As-
sim, iremos refletir sobre esses cruzamentos a partir de Weber (2006; 2007;
2011), Esteves (2011) e Gomes (2008). Além disso, pensaremos aspectos da
construção discursiva em diálogo com o que propõe Fairclough (2001). São
essas discussões que apresentamos a seguir.
332
Esteves (2011) e Gomes (2008). O domínio dos meios de comunicação por
poucos grupos empresariais, no caso do Brasil, aprofunda esse processo no
qual a esfera pública enfraquece-se como espaço de debate real em torno
do interesse público, transformando-se em espaço de confronto não argu-
mentativo, embora discursivo, entre interesses privados diversos que pro-
curam afirmar-se enquanto interesses públicos.
Gomes (2008) levanta dois questionamentos acerca do papel dos
meios de comunicação hegemônicos (que ele denomina como “de massa”)
na esfera pública:
(a) o problema relacionado à qualidade argumentativa da esfera públi-
ca mediada pelos meios de massa: os meios de massa fazem parte de
grandes indústrias provedoras, ao mesmo tempo, de informação e de
entretenimento. Este fato não seria de princípio incompatível com de-
mandas de trocas de razões políticas públicas, típicas de um modelo
de democracia apoiado em debates públicos racionais? (b) o problema
relacionado à representatividade das posições no debate público midi-
ático: os debates mediados pelos meios de massa poderiam ou podem,
de fato, dar voz à pluralidade e à autenticidade dos interesses, vontades
e posições sociais representados no corpo da sociedade civil? (Gomes,
2008, p. 19).
O que se pode perceber é que as dificuldades no desenrolar dos deba-
tes na esfera pública não está nas questões técnicas, na midiatização em si,
mas na forma como esse processo acontece, quer dizer, no âmbito da atua-
ção dos conglomerados midiáticos. A submissão da esfera pública aos mass
media, como caracteriza Gomes, retira daquela seu caráter democrático,
que idealmente deveria carregar dois objetivos: o mútuo esclarecimento
e a luta de argumentos, ambos esfacelados nessa nova configuração. Des-
sa forma, configura-se a “degeneração” da esfera pública, que se torna um
espaço de disputa entre interesses privados, onde são utilizadas técnicas
de sedução e de manipulação, em vez de discussão e crítica: “Agora ela é
simplesmente um campo em que proprietários privados agem sobre pes-
soas privadas, enquanto público, para influenciá-las” (Gomes, 2008, p. 50).
Nessas condições, a esfera pública serve como espaço de simulação de in-
teresses privados como públicos, oferecendo àqueles uma aparência que os
faça parecer com estes.
Em sentido semelhante, Esteves (2011) afirma que, nas sociedades
contemporâneas, com a esfera pública atravessada tão profundamente pe-
los conglomerados midiáticos, o público se “denega”, convertendo-se em
333
massa e assumindo uma posição de figuração. Como parte desse processo,
a própria comunicação transforma-se em mera transmissão de informa-
ções, sem debate, sem argumentação, sem reflexão, “a informação que che-
ga à generalidade dos indivíduos como uma espécie de palavras de ordem”
(Esteves, 2011, p. 228).
Entendemos, por outro lado, que os movimentos populares e as mídias
alternativas podem participar da reversão desse cenário, desatomizando e
integrando os sujeitos, devolvendo o caráter de público ao que, para Esteves,
tornou-se massa, visibilizando possibilidades e reconstruindo o debate pú-
blico em torno dos grandes temas. Organizado em movimentos e dizendo
sua palavra através das mídias alternativas, os sujeitos contrariam o cará-
ter passivo da massa identificada por Esteves, politizam o espaço público e
constroem nele variáveis de disputa entre grupos sociais, disputas essas que
podem se dar tanto através de palavras de ordem quanto através de argu-
mentos racionais, sendo que destes podem emergir, em momentos de maior
acirramento, aquelas. Esses processos, em nosso entender, dinamizam e flui-
dificam (para usar expressões de Esteves) a comunicação pública, mesmo
sob um sistema de comunicação altamente concentrado, como o brasileiro.
Essa dinâmica e fluida comunicação pública configura-se, conforme
aponta Weber (2007) através de diversas redes de comunicação. Embora a
autora delimite sete redes básicas (Social, Política, do Judiciário, Científica
e Educacional, Mercadológica, Midiática e Religiosa), é importante desta-
car que elas podem apresentar-se sob variadas divisões e tipificações, de
acordo com o concreto investigado. O fundamental aqui é compreender
que “a partir do momento que um dos sistemas de comunicação desenca-
deia o debate em torno da fome, segurança, educação, saúde, corrupção e
outros temas vitais (à sociedade, ao indivíduo e ao Estado) entende-se que
os demais sistemas serão provocados a se manifestar” (Weber, 2007, p. 23).
A partir de um acontecimento ou desencadeando o debate sobre de-
terminado tema, uma rede “provoca” as demais a também se manifesta-
rem, de acordo com suas especificidades e interesses. É em torno desses
sistemas, dessas redes, que se dá o debate público, com cada instituição
utilizando-se dos recursos que possui e com o público vinculando-se a esse
debate de acordo com sua própria experiência e com as relações que vai
estabelecendo com essas instituições e com os discursos por elas apresen-
tados, acionando elementos racionais e passionais.
Uma das redes que aqui nos interessa em especial é a Midiática, sobre
a qual Weber (2007) explica que:
334
A ocupação de espaço e o enquadramento da informação nos espaços
midiáticos (notícia, debates, reportagem, capa, etc) serão determinados
por critérios de noticiabilidade, agendamentos mas, também, por inte-
resses políticos, econômicos, de consumo da informação. Os meios de
comunicação de massa realizam, à sua maneira e ancorados no jornalis-
mo, modos de “construção da realidade” (Weber, 2007, p. 29).
Assim, as mídias hegemônicas definem enquadramentos da realida-
de, direcionam o debate público e, especialmente considerando seu caráter
empresarial, fazem emergir confusão entre interesses públicos e privados.
São os “discursos de quem detêm o poder de editar a realidade, de cons-
truir notícias” que “justificam a edição, chamando a liberdade de impren-
sa, a autonomia e a competência profissional do campo” (Weber, 2007, p.
29). Em um debate como o pesquisado neste artigo, referente aos direitos
trabalhistas, destacar o caráter empresarial e as dinâmicas próprias desse
setor midiático torna-se ainda mais relevante para que se possa entender as
formulações discursivas que são apresentadas.
Haubrich (2016, p. 21), aponta que, no início dos anos 2000, apenas 13
famílias controlavam cerca de 90% da mídia brasileira: Marinho (Globo),
Saad (Bandeirantes), Abravanel (SBT), Sirotsky (Grupo RBS), Daou (TV
Amazonas), Jereissati (TV Verdes Mares), Zahran (Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul), Câmara (TV Anhanguera), Civita (Abril), Mesquita (Gru-
po Estado), Frias (Grupo Folha), Nascimento Brito (Jornal do Brasil) e Levy
(Gazeta Mercantil). Essas famílias detêm o poder de, através dos meios de
comunicação, dar visibilidade, informando e seduzindo (Weber, 2006). São
espaços “privilegiados” da cena pública, espaços de “trânsito incontestável”
para as informações, como aponta Weber (2006).
Embora o controle dessa visibilidade seja difuso no que se refere ao
discurso jornalístico, os interesses das empresas são elementos fundamen-
tais desses processos de visibilização e/ou invisibilização. Acresça-se à vi-
sibilidade a credibilidade, e, em um sistema midiático concentrado como
o brasileiro, temos uma espécie de elite midiática com grande influência
sobre a condução do debate público, considerando-se que “a política tem
meios e investimentos sofisticados para se comunicar, para obter visibili-
dade, mas é no espaço público da mídia que essa visibilidade provoca cre-
dibilidade” (Weber, 2006, p. 127).
Nessa dinâmica, os acontecimentos políticos e os debates públicos são
enquadrados e ressignificados, sem excluir-se desses processos os discursos
contrapostos, como os das mídias alternativas, e mesmo os discursos apre-
335
sentados pelas demais redes de comunicação, que participam da composi-
ção do quadro geral. Como afirma Weber (2011b, p. 190), “esta contínua
reverência só é possível porque a estrutura vital do acontecimento perma-
nece aberta e oferece mais informações, outros ângulos e dados capazes de
alimentar notícias, programas e discursos”. O espetáculo político-midiático
gerado em torno de um acontecimento ou de um debate público realimen-
ta esse acontecimento e/ou esse debate, permanecendo sua estrutura vital,
essa sim indo além do espetáculo.
Os acontecimentos e os debates públicos podem “causar impactos,
desordens e mobilizar indivíduos, sociedade, instituições políticas e orga-
nizações midiáticas”, conforme aponta Weber (2011b, p. 191). E os meios
de comunicação possuem grande ingerência sobre as narrativas em torno
desses processos, graças à sua
[...] capacidade de aglutinar informações sobre o mundo e torná-las
visíveis, acessíveis. Como espaço privilegiado de visibilidade e com
argumentos estéticos e tecnológicos, a mídia informa, expõe, persuade
e serve aos acontecimentos como mediador, suporte e testemunha”
(Weber, 2011b, p. 198)
O discurso produzido e divulgado em torno dos grandes debates pú-
blicos pode contribuir, como destaca Fairclough (2001), para reproduzir
a sociedade ou para transformá-la, havendo uma “relação dialética entre
o discurso e a estrutura social” e configurando-se, o discurso, como “um
modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e
especialmente sobre os outros” (p. 91). Esse discurso, aponta o autor, pos-
sui três efeitos centrais, sejam eles as construções de identidades sociais e
posições de sujeito, das relações sociais entre as pessoas e de sistemas de
conhecimento e crença.
Sendo assim, e considerando-se o que discutimos anteriormente em
relação à predominância dos meios de comunicação e às relações que são
estabelecidas entre as redes nos processos de debate público, fica claro que
compreender a atuação da rede de comunicação midiática é fundamental
para analisar o desenrolar de um debate público. Neste artigo, o discurso
dessa rede em torno do tema dos direitos trabalhistas é analisado em suas
relações com as atuações de outras redes, constituídas, por um lado, pelos
representantes do grande empresariado brasileiro, e, por outro, pelos movi-
mentos populares, estes interseccionados com mídias alternativas e aqueles
com meios de comunicação hegemônicos, tendo-se sempre em conta que,
como define Fairclough (2001, p. 91), “o discurso é uma prática, não apenas
336
de representação do mundo, mas de significarão do mundo, constituindo e
construindo o mundo em significado”.
2 Disponível em <http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-
-Online.pdf>. Acesso em 28 de agosto de 2016.
3 Disponível em <http://noblat.oglobo.globo.com/editoriais/noticia/2016/06/momento-para-se-que-
brar-rigidez-das-leis-trabalhistas.html>. Acesso em 28 de agosto de 2016.
4 Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/07/1792634-a-proxima-reforma.shtml>.
Acesso em 28 de agosto de 2016.
5 Disponível em <http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-luta-pela-boquinha-sindical,10000065633>.
Acesso em 28 de agosto de 2016.
337
direitos trabalhistas”6. Antes disso, em seu 12º Congresso (ConCUT), rea-
lizado entre 13 e 17 de outubro de 2015 sob o lema “Direito não se reduz,
se amplia”, a CUT apresentara um caderno de resoluções que incluiu alguns
itens que já antecipavam as discussões das quais estamos aqui tratando.
Tanto as resoluções do 12º ConCUT quanto os posicionamentos ex-
pressos pela Central após a divulgação do documento da CNI encontraram
respaldo no discurso veiculado por meios de comunicação alternativos,
dentre os quais destacamos dois de abrangência nacional: o jornal Brasil
de Fato (do qual iremos analisar, porém, apenas os jornais impressos que
circulam no Rio de Janeiro e que tratam com predominância de questões
nacionais) e a página Mídia Ninja (que opera através de um site e de uma
página no Facebook, sendo esta segunda a que analisaremos aqui, por
tratar-se do principal espaço de divulgação dos conteúdos desse meio de
comunicação).
6 “Temer quer deixar trabalhador mano a mano com patrões”, 20 de julho. Disponível em <http://www.
cut.org.br/noticias/temer-quer-deixar-trabalhador-mano-a-mano-com-patroes-906e/>. Acesso em 28
de agosto de 2016.
338
trabalho; Conceder novas autorizações permanentes para trabalho aos
domingos e feriados; Permitir a prorrogação de jornada em atividades
insalubres; Permitir expressamente acordo entre trabalhador e empresa
para compensação por banco de horas; Ampliar o espaço para negocia-
ção individual; Definir a base de cálculo para contratação de aprendizes
ou revisar a CBO; Permitir que o número de aprendizes com deficiência
seja considerado na reserva de vagas para pessoas com deficiência; Con-
ferir quitação geral da rescisão trabalhista realizada com a assistência do
sindicato dos trabalhadores; Criar o Conselho de Recursos do Ministé-
rio do Trabalho; Admitir metas de segurança e saúde no trabalho para
fins de participação nos lucros e resultados (PLR); Fixar competência e
critérios para os atos de interdição e embargos; Estimular a dupla visita
de caráter orientador; Unificar os critérios de caracterização de aciden-
tes de trabalho; Disponibilizar os dados utilizados no cálculo do FAP e
aperfeiçoar sua metodologia; Excluir acidentes de trajeto do cálculo do
FAP; Vincular os nexos acidentários pós rescisão contratual à existência
de provas e ao conhecimento do empregador; Conceder efeito suspensi-
vo para recursos administrativos em matéria acidentária; Disponibilizar
a CAT por meio eletrônico; Disponibilizar as informações do empre-
gado afastado com senha em meio eletrônico; Permitir a consulta do
andamento dos processos administrativos em meio eletrônico.
Destas 31 propostas, 14 tratam de alterações na CLT, das quais des-
tacaremos quatro que colocam em voga o tema que se tornou o centro da
discussão sobre direitos trabalhistas nos últimos meses, aparecendo nos
editoriais dos três principais jornais do país (O Globo, Folha de S.Paulo e
Estadão), motivando mobilizações de trabalhadores – parte significativa
delas lideradas pela Central Única dos Trabalhadores – e sendo discuti-
das também através das mídias alternativas: a valorização do negociado
sobre o legislado, quer dizer, permitir que negociações coletivas possam
alterar, na prática, direitos hoje garantidos legalmente, especialmente
através da CLT.
A proposta 5 é a principal nesse sentido, tendo por título “Valorizar a
negociação coletiva”. Na sequência de cada proposta, a CNI apresenta dois
itens relacionados a ela: “Importância” e “Ação”. No caso da proposta 5, a
“Importância” está assim caracterizada:
A negociação coletiva é a principal forma de ajuste dos interesses entre
sindicatos dos trabalhadores e as empresas ou sindicatos dos emprega-
dores. Ela é um meio que propicia adequar as condições de trabalho à
dinâmica do mundo moderno e a realidades específicas, compondo os
diversos interesses e anseios das partes envolvidas.
339
É preciso fomentar o ajuste de condições de trabalho por meio da ne-
gociação coletiva, ultrapassando-se o modelo atual em que quase tudo é
definido por lei e quase nada por negociação.
Com o reconhecimento da negociação coletiva como meio de ajuste
amplo das condições de trabalho, é possível obter benefícios mútuos,
para trabalhadores e empresas, além de maior produtividade, coesão e
crescimento econômico e social.
No bojo desta, três outras propostas sugerem mecanismos que dialo-
gam com essa “valorização da negociação coletiva”: a proposta 6, “Reduzir o
intervalo intrajornada por negociação coletiva”; a proposta 18, “Permitir ex-
pressamente acordo entre trabalhador e empresa para compensação por ban-
co de horas”; e a proposta 19, “Ampliar o espaço para negociação individual”.
Apenas cinco dias depois, em 12 de junho, o jornal O Globo posicio-
nou-se em editorial a respeito do tema, com o texto “Momento para se
quebrar a rigidez das leis trabalhistas”. O editorial classifica a CLT como
“fora da realidade” e com “a rigidez da idade”, e, analisando a conjuntura,
apresenta sua proposta central: “O quadro é de emergência, e por isso re-
formas têm de ser feitas. Uma delas é a da legislação trabalhista, para que
ela ganhe flexibilidade, a fim de incentivar a geração de empregos, neste
momento de redução drástica do mercado de trabalho”. Essa “flexibilidade”,
para O Globo, deve ser construída através da permissão para que “patrões
e empregados se entendam para manter e criar empregos”, quer dizer, a
predominância do acordado sobre o legislado. O jornal cita o exemplo da
França, “onde reformas semelhantes são defendidas pelo governo de Fran-
çois Hollande”. O editorial admite que “as ruas de Paris estão agitadas”, mas
adverte que “agitação não remove os gargalos da economia francesa, ou de
qualquer outra. Pode piorá-los”.
Cerca de um mês depois, em 18 de julho, foi a vez da Folha de S.Paulo
posicionar-se em editorial, com o título “A próxima reforma”, afirmando
que “merece apoio, portanto, a disposição manifestada pelo governo Mi-
chel Temer (PMDB) de encaminhar ao Congresso uma proposta de modi-
ficação das regras trabalhistas”. Neste momento o então governo interino
de Michel Temer já defendia mudanças em sentido semelhante às defen-
didas pela CNI. E, como se vê, a Folha de S.Paulo também já apoiava a
iniciativa. O jornal enxerga a CLT como “obsoleta”, e defende que para a
“prosperidade futura do país” é necessário uma “agenda de modernização
institucional”, de forma a “modernizar a CLT e a estrutura sindical”, que a
Folha considera “paternalista” e “populista”, já que, para o jornal, há uma
340
“estrutura sindical oligopolizada”, “abrigada no Estado” e “financiada por
contribuições obrigatórias”. Deve, assim, o país, flexibilizar a legislação tra-
balhista, de forma a “fugir do populismo que considera qualquer alteração
uma afronta aos direitos dos trabalhadores”.
O editorial do Estadão com o qual trabalhamos aqui foi publicado no
dia 29 de julho, sob o título “A boquinha sindical”. O Estadão defende o que
chama de uma “necessária reforma trabalhista”, e o foco do texto é criticar a
estrutura e as práticas dos sindicatos brasileiros, com especial atenção para
a CUT, ao mesmo tempo em que prega o que caracteriza como “moder-
nização e racionalização das relações de trabalho”. Afirma que motivo das
ações das centrais sindicais contra “reforma trabalhista” é manter o que o
jornal chama de “boquinha sindical”, “manter inalterada uma situação que
confere aos sindicatos um enorme poder e abundantes recursos”. O edito-
rial trata as lideranças sindicalistas como “chefões” e “capi”, caracterizados
como chantagistas. E mais:
Para essa turma, pouco importa se as mudanças visam a criar mais em-
pregos, pois a preocupação dos sindicatos não é com os 11 milhões de
desempregados atualmente no País, e sim com a manutenção de um sis-
tema que lhes dá o monopólio da negociação trabalhista e é sustentado,
na marra, pelos assalariados, gente que, ao contrário dos sindicalistas,
tem de trabalhar para viver.
O Estadão informa em seu editorial, com viés positivo, que “o governo
Temer pretende encaminhar ao Congresso uma proposta de reforma que
atualize a CLT, para fazer a legislação acompanhar a modernização tecno-
lógica, que alterou as relações de trabalho, e privilegiar o negociado em
relação ao legislado, fortalecendo a negociação coletiva e permitindo que
cada setor produtivo encontre as melhores soluções para cada caso”.
Como se vê, as posições expressas em editorias por O Globo, Folha de
S.Paulo e Estadão são gêmeas aos posicionamentos da Confederação Na-
cional das Indústrias. Em sua justificativa da “Importância” de sua proposta
número 5 (“Valorizar a negociação coletiva”), a CNI, vale lembrar, defen-
de que a negociação coletiva “propicia adequar as condições de trabalho à
dinâmica do mundo moderno”, mesmo argumento (da “modernização”)
utilizado pelos três jornais. Para a CNI, através do avanço das negociações
coletivas também é possível chegar a “maior produtividade, coesão e cres-
cimento econômico e social”, argumentos também presentes no discurso
dos três jornais analisados. No quadro abaixo, é possível perceber ainda
como os três jornais apresentam discursos semelhantes também entre si:
341
O QUE DEFENDE:
O Globo: “reformas precisam ser feitas”; que legislação trabalhista “ga-
nhe flexibilidade”; “permitir que patrões e empregados se entendam
para manter e criar empregos”.
Folha de S.Paulo: “agenda de modernização institucional”; “moderni-
zar a CLT e a estrutura sindical”; “ampliação do espaço de negociação
entre empresas e trabalhadores”.
Estadão: “modernização e racionalização das relações de trabalho”;
“necessária reforma trabalhista”.
MOTIVOS:
O Globo: “alto desemprego”; “pouco crescimento”, “quadro de emergên-
cia”, “momento de redução drástica do mercado de trabalho”.
Folha de S.Paulo: “cultura paternalista na gestão de conflitos”; “pater-
nalismo enfraquece a disposição à negociação e a autonomia das partes
em decidir conforme suas preferências”.
Estadão: Não especifica.
OBJETIVOS:
O Globo: “manter e criar empregos”; “reduzir o custo da geração e ma-
nutenção de empregos”.
Folha de S.Paulo: “prosperidade futura do país”; “estimular a produtivi-
dade”; “reduzir o custo de fazer negócios”.
Estadão: Não especifica.
SINDICATOS:
O Globo: “não aceitam” (as mudanças); “não é difícil fazer discursos
contra o ‘neoliberalismo’”.
Folha de S.Paulo: “estrutura sindical oligopolizada”; “abrigada no Esta-
do”; “financiada por contribuições obrigatórias”.
Estadão: “enorme poder e abundantes recursos”; liderados por “che-
fões” e por “capi” que buscam “atravancar qualquer iniciativa que possa
significar a modernização e a racionalização das relações de trabalho”;
“sindicalismo de resultados”; “poder quase imperial”; “monopólio da
negociação trabalhista”; chantagistas; “sustentado, na marra, pelos assa-
lariados”; não precisam trabalhar para viver.
342
CUT, Brasil de Fato e Mídia Ninja
343
duzi-los ou flexibilizá-los. Esse é um aspecto fundamental do princípio
de independência de classe adotado pela CUT desde sua fundação. Por
isso, combaterá com rigor os projetos de lei em curso no Congresso Na-
cional que retomam esta iniciativa das empresas para precarizar o tra-
balho e retirar direitos dos/as trabalhadores/as, mobilizando suas bases
e denunciando os efeitos perversos dessas propostas para a sociedade.
Retornamos, então, a junho de 2016, mês em que a CNI apresentou
suas 119 propostas, sendo procedida dos editoriais publicados pelos gran-
des jornais. Naquele mesmo mês, meios de comunicação alternativos tam-
bém trataram do tema. Em relação a eles, não analisamos os editoriais,
mas textos gerais que combinam características informativas e analíticas,
deixando claro – e assim afirmando – o posicionamento dessas mídias em
relação ao assunto em debate.7
Na mídia alternativa, analisamos dois meios de comunicação cuja
abrangência, em princípio, é nacional. No caso do jornal Brasil de Fato,
embora tenha abrangência nacional enquanto organização midiática, nos-
sa análise detém-se em sua versão impressa que circula no Rio de Janeiro,
de forma a melhor organizar a investigação a partir de um meio de comu-
nicação central dentro da gama de mídias do Brasil de Fato. Analisamos,
assim, todas as 18 edições do Brasil de Fato RJ que circularam entre junho e
julho de 2016 (edições 182 a 198), mapeando as matérias que tratassem de
direitos trabalhistas no âmbito nacional (excluindo, portanto, mobilizações
locais de categorias de trabalhadores, por exemplo). A outra mídia alterna-
tiva investigada aqui é a Mídia Ninja. Embora atue também através de um
site, a Mídia Ninja tem seu principal canal em uma página na plataforma de
rede social Facebook. No caso da Mídia Ninja, foi realizada uma busca em
postagens dos meses de junho e julho de 2016, utilizando as palavras-chave
“flexibilização”, “CLT” e “direitos trabalhistas”.
No Brasil de Fato, foram encontradas seis matérias de interesse para
este artigo. Na edição 185, o título de uma notícia afirma: “Temer quer ata-
car direitos básicos, como SUS e CLT”. Na linha de apoio, o Brasil de Fato
fala em “cortes em gastos sociais e desregulamentação de leis trabalhistas”,
sendo que esta segunda expressão é repetida novamente logo na abertura
do texto. A edição 187, por sua vez, traz uma matéria com o título “Padilha
defende acabar com a CLT como solução para a ‘competitividade’”, referin-
do-se ao então ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha (PMDB). Na
7 Ao contrário dos jornais anteriormente analisados, que procuram apresentar certo caráter de “neutra-
lidade” em seus conteúdos informativos (o que, na prática, é inviável, dados os processos diversos que
atravessam a produção das notícias em um jornal, desde o ideário da empresa até as rotinas produtivas).
344
legenda da única foto da matéria, a posição do jornal fica clara: “Padilha
sugere acabar com direitos trabalhistas conquistas em 1946”.
Em sua edição 193, há uma nota com foto que traz como título “CNI
defende carga de 80 horas semanais para trabalhador brasileiro”, nota que
traz apenas um relato sobre uma reunião do presidente da CNI, Robson
Braga de Andrade, e de outros empresários com o presidente interino Mi-
chel Temer (PMDB). Na edição seguinte, a 194, uma longa matéria sob o
título “Avanço de pautas conservadoras preocupa trabalhadores”. A abertu-
ra já afirma um posicionamento, destacando que “o roteiro de pautas con-
trárias aos direitos dos trabalhadores no Congresso Nacional é extenso”. A
única fonte da matéria é o ex-vice presidente da CUT, José Lopez Feijó, que
fala em «aumento da exploração dos trabalhadores”. Há ainda dois parágra-
fos falando diretamente sobre as propostas apresentadas pela CNI a Temer,
em reunião relatada na edição anterior do jornal, do ponto de vista dos
movimentos populares. “Eles acham que o trabalhador pode comer com a
mão esquerda e trabalhar com a direita. Só falta isso agora”, é uma das falas
do ex-vice-presidente da CUT citada nesse contexto.
A edição 197 traz já na capa, em sua manchete principal, a discussão
sobre direitos trabalhistas: “Temer quer reduzir salários e aumentar jornada”.
Na linha de apoio, o Brasil de Fato informa que o ministro do Trabalho, Ro-
naldo Nogueira, afirmou que a intenção é “prestigiar” as convenções coleti-
vas, que, nas palavras do jornal, “teriam poder para flexibilizar direitos pre-
vistos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT)”. Nas páginas internas, a
matéria sobre o tema tem como título “Temer vai propor redução de salários
e aumento da jornada”, destacando, na linha de apoio, que a proposta pre-
tende “flexibilizar direitos”. São utilizadas três fontes: o ministro do Traba-
lho, o então presidente interino Michel Temer e advogada Fernanda Rocha
(as duas primeiras fontes são utilizadas indiretamente, sem uma entrevista
feita pelo próprio jornal). Um intertítulo é revelador do posicionamento do
jornal: “Mais trabalho, menos salário”. Após um relato informativo, que traz
as falas do ministro e de Temer, cerca de dois terços da matéria dedicam-se
a críticas ao projeto, baseadas nas declarações da advogada, segundo a qual
a negociação coletiva “é uma ‘falácia’ para legalizar o corte de direitos”.
Por fim, na edição 198, há uma matéria sobre o assunto, tendo como
título “Centrais sindicais se unem para defender manutenção de direitos
trabalhistas”. Trata-se da reprodução de uma notícia da Agência Brasil que,
em resumo, traz falas do presidente da CUT, Wagner Freitas, avaliando as
posições externadas pelo presidente da CNI, falando em greve geral, no
345
Dia Nacional de Luta convocado pelas centrais sindicais (16 de agosto) e
em direitos ameaçados.
Por sua vez, nos conteúdos pesquisados na página da Mídia Ninja no
Facebook, foi encontrada uma postagem com a palavra-chave “flexibiliza-
ção”, duas com a palavra-chave “CLT” e oito com a palavra-chave “direitos
trabalhistas”.
A postagem que traz a palavra “flexibilização”, no dia 20 de junho,
tem como título “Paulinho da Força escrachado em avião” e relata que um
manifestante discursou em um avião contra a “flexibilização das leis traba-
lhistas”, nas palavras da Mídia Ninja. Na primeira postagem com a palavra
“CLT”, no dia 10 de junho, não há título, e a postagem trata de uma mani-
festação contra Michel Temer em Barcelona, na Espanha. Ali, a Mídia Nin-
ja lista algumas pautas do ato, entre elas “pelos direitos dos trabalhadores e
a integridade da CLT”. A outra postagem com essa palavra-chave foi publi-
cada no dia 25 de julho, com o título “No dia 31/07 de qual lado você esta-
rá?”. Trata-se do compartilhamento de um vídeo do deputado Jean Wyllys
(PSOL-RJ), onde afirma-se que o governo Temer “pretende retirar os direi-
tos mais básicos do povo trabalhador, ameaçando acabar com a CLT”.
Com a expressão “direitos trabalhistas”, foram encontradas oito posta-
gens. A primeira, em 6 de junho, traz uma chamada para um vídeo da pági-
na de Dilma Rousseff, onde ela e Miguel Rossetto, ex-ministro do Trabalho
e Previdência Social, “respondem perguntas sobre direitos trabalhistas”. No
dia 9 de junho, com o título “#Aracajú (SE) na rua!”, a Mídia Ninja noticia
uma mobilização “onde manifestantes protestam contra os retrocessos nos
direitos sociais e trabalhistas”. No mesmo dia, há outra postagem, essa sem
título, relatando protesto em Belém (PA) “contra as ameaças aos direitos
trabalhistas”. Outras duas postagens aparecem no dia seguinte, 10 de junho,
novamente falando de protestos contra “ameaças aos direitos sociais e tra-
balhistas”, estes em Brasília e em Curitiba. No dia 11 de junho há nova pos-
tagem com a mesma expressão, “ameaças aos direitos sociais e trabalhistas”,
resumindo atos realizados em diversas partes do Brasil e do exterior com
essa temática. Finalmente, no dia 14 de junho, há duas postagens referentes
à ocupação, pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia, do prédio
do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no Rio de Janeiro, contra a
“retirada de direitos trabalhistas”, entre outras pautas.
A Mídia Ninja passaria julho sem utilizar a expressão “direitos tra-
balhistas” em nenhuma postagem no Facebook, mas a pauta voltaria com
bastante força em agosto, período que não analisamos neste artigo.
346
O que podemos perceber é que tanto no Brasil de Fato quanto na Mídia
Ninja sobressaem-se discursos bastante semelhantes aos posicionamentos
da Central Única dos Trabalhadores. Um sentido presente em todas essas
construções discursivas é, por exemplo, o da flexibilização de direitos, e não
da legislação, como definem Confederação Nacional das Indústrias, O Glo-
bo, Folha de S.Paulo e Estadão. Também a ideia de “retirada de direitos” ou
“ameaça a direitos” aparece fortemente tanto no discurso da CUT quanto
nas postagens e notícias das mídias alternativas investigadas.
Considerações finais
347
Internet como fórum democrático
para formação da opinião pública
Introdução
349
A fundamentação teórica será dividida em duas fases. Sendo assim, a
investigação partirá de um estudo sobre opinião pública e a segunda parte
sobre internet e política. Num primeiro momento, será discutida a impor-
tância do espaço público para a formação da opinião pública, bem como
a origem do conceito de opinião pública. Assim, torna-se imprescindível
abordar o tema campanha política, uma vez que o principal objetivo da
propaganda política é conquistar a opinião pública. A pesquisa contará
com a abordagem teórica de Patrick Champagne (1998), Wilson Gomes
(2000) e Gabriel Tarde (2005).
Após, será apresentado um estudo sobre a pertinência da Internet en-
quanto fórum democrático no que tange à participação da sociedade civil
na esfera política. Além disso, também será investigada a importância des-
sa ferramenta para disseminar campanhas políticas. Os pressupostos teóri-
cos utilizados aqui são os de Manuel Castells (2000), Wilson Gomes (2001,
2005a, 2005b), Rousiley Maia (2001, 2002), Dan Gillmor (2005).
350
tornar os fatos públicos. Desta forma, o que existe são agentes que decidem
o que deve ou não ser tornado público.
O termo opinião pública vem sendo discutido desde os séculos XVII
e XVIII por Voltaire, Hobbes, Locke e Hume. Na concepção de Hobbes,
a opinião seria quem governaria o mundo, mundo este em que todas as
pessoas teriam direitos iguais. Já Locke, considerou a opinião como uma
das três principais categorias do direito. Para o autor, as pessoas se organi-
zavam para o bem comum.
Hohlfeldt2 (2004) e Trein (2005) comentam que para Hume o indiví-
duo era valorizado em relação ao grupo, desta forma, o governo dependia
da opinião de interesse e da opinião de direito. Já Rousseau considerava a
opinião pública regente, pois quem manda nas leis, manda na sociedade.
Para o autor, a pessoa que se dedicasse a legislar, deveria saber manejar
as opiniões. Sendo assim, Rousseau classifica a transição entre o consenso
social e as convicções individuais como opinião pública.
No entanto, Tarde (2005) apresenta outro embasamento teórico sobre
as teorias da opinião e da opinião pública. A invenção da opinião constitui-
-se num cérebro, que é o responsável pela geração da opinião. Nele aconte-
ce o encontro de diversos fluxos sociais, que originam a formação de uma
nova opinião, primeiramente desconhecida por todos, após convertida em
fluxo social. Tarde justifica a questão da ideia e da opinião como justifica a
questão do desejo e da necessidade. Segundo o autor, a questão da opinião
e dos bens de consumo obedecem a mesma lógica. Ressalta, ainda, que a
opinião é muito parecida com o ato de consumir, pois depende da moeda,
do gosto, da idade, da posição social etc. Para Tarde (2005), a opinião co-
mum é considerada o elo entre a verdade social e a identidade social, o que
o levou a pensar a opinião pública como opinião integral.
Na teoria tardeana, o indivíduo vota não para decidir o destino de sua
cidade, e sim para se informar. Segundo Tarde (2005), o voto não tinha
nenhum valor político, apresentava somente um valor informativo para a
sociedade. Sob essa perspectiva, os conceitos de público3 e de opinião pú-
2 Este material foi extraído das anotações feitas durante a disciplina de Comunicação e Opinião Pública,
ministrada pelo autor, no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social, na Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do Sul, no segundo semestre de 2004, em Porto Alegre.
3 Tarde considera o público uma multidão dispersa, na qual “a influência dos espíritos uns sobre os ou-
tros tornou-se uma ação à distância. Enfim, a opinião, resultante de todas essas ações à distância ou
em contato, está para as multidões e para os públicos assim como o pensamento está para o corpo, de
certo modo.” (2005, p. 2). Para a formação de um público é necessária uma evolução mental e social
mais avançada do que a da multidão, a qual é muito menos homogênea que o público. O público nas-
ce a partir na invenção da imprensa, no século XVI. Nesta época era composto por homens de uma
pequena elite que liam a gazeta mensal e um número de livros. Esses indivíduos estavam presentes em
Paris e faziam parte da Corte. Foi a partir do século XVIII que nasceu e cresceu o público político, mas
351
blica não são atribuídos por Tarde como conceitos políticos, mas, como
conceitos sociológicos, pois acredita em uma única forma social, que re-
cebe tanto opiniões políticas, como de hábitos de consumo, sentimentos
religiosos, gostos culturais etc. A opinião pública não está relacionada a um
objeto específico, como a opinião política (Tarde, 2005).
A transformação da opinião individual em opinião social foi origina-
da da palavra pública na Antiguidade e na Idade Média. Para Tarde, se a
opinião for moderada, ela terá pouca manifestação, já a opinião violenta,
por menos difundida que ela for, manifesta muito. Por outro lado, os dis-
cursos naquela época só se tornavam públicos com o auxílio da impren-
sa. No início, os jornais começaram a exprimir as opiniões locais, princi-
palmente dos grupos privilegiados, como a da corte e a do parlamento. A
conversação, caso conseguisse progredir, poderia suprir o papel social da
imprensa como formadora de opinião. Neste sentido, “[...] a imprensa uni-
fica e vivifica as conversações, uniformiza-as no espaço e diversifica-as no
tempo” (2005, p. 93).
Nas questões políticas, a conversação acaba sendo, antes da impren-
sa, o único obstáculo para os governos, pois ela cria reputação e prestígio
o que pode levar à glória e ao poder. Na ocasião em que a opinião muda
pouco, a conversação acaba sendo rara, mas quando a opinião é móvel, a
conversação é mais frequente. Dessa forma, quando a opinião é fraca, a
conversa ocorre sem animação; já quando a opinião é forte, é porque acon-
tece muita discussão (Tarde, 2005).
Na visão de Amaral (2000), a opinião pública é manipulada de acordo
com a demanda estimulada, e essa opinião é servida à sociedade. O autor
acredita que a opinião é produzível e manipulada, pois o que acontece é
que a matéria-prima da opinião – a informação –, também é considerada
um produto de consumo, e é consumível desigualmente. Assim, a opinião
pública de hoje é um agregado de opiniões individuais que está nas mãos
dos meios de comunicação, e estes não possuem mais a mediação entre a
sociedade e o Estado, pois acabam não narrando, não informando e não
opinando. O que acaba acontecendo é que os veículos de comunicação,
muitas vezes, são comandados por grupos de interesses que investem em
estratégias para influenciar o consumidor-eleitor.
até a Revolução a vida do público tinha pouca intensidade. Pode-se escrever a natureza de cada público
a partir da multidão na qual nasceu, como, por exemplo, o público literário nasce pelo interesse nos
auditórios de teatro. A multidão é um grupo amorfo, é sempre levada por uma espécie de líder que serve
como paradigma (TARDE, 2005).
352
Nesse cenário, as expressões “opinião pública”, “formação de opinião”
e “debate público” estão relacionadas com a discussão sobre a opinião po-
lítica. Esta se caracteriza através de três grandes discursos. O primeiro está
relacionado com a opinião pública; o segundo com o debate público; e o
terceiro está vinculado à produção de opinião do público, que Gomes de-
nomina como política de opinião (Gomes, 2001).
O debate público apresenta duas importantes propriedades da publi-
cidade: a visibilidade (as posições estão expostas para todos os interessa-
dos) e a acessibilidade (o direito de qualquer indivíduo intervir no debate).
Segundo Gomes (2001), o eleitorado se convence por persuasão, mas as
elites pensantes não: estas se convencem através do debate.
Gomes apresenta um outro fenômeno relacionado à opinião pública:
a política de opinião. São aqueles empreendimentos que se dedicam a três
funções da “conquista da opinião pública”: “a) a construção da opinião;
b) o ajuste entre a opinião que o público deseja e a opinião publicada; c) a
manutenção, ou seja, o empreendimento que visa manter como opinião do
público a opinião particular.” (2001, p. 10). Mas, antes de tudo, é necessário
“formar a opinião pública”.
Sob essa perspectiva, Bruxel comenta que a expressão opinião pública
se tornou conhecida em alguns campos, principalmente na comunicação.
O autor apresenta três variáveis que resumem o que vem a ser o conceito de
opinião. Desta forma, o jogo político também acompanhou o movimento
de opinião pública.
1) publicidade de uma opinião: é pública porque foi exposta, tornou-se
disponível socialmente, houve a publicidade da opinião; 2) um reper-
tório comum de posições, juízos, teses, hipóteses próprias do público
a respeito de coisas, fatos, instituições [...] e 3) sinônimo de população:
desta se espera uma disposição perante qualquer tema que lhe é apre-
sentado, mesmo que não tenha nenhum posicionamento. (2004, p. 38).
Já para Blumer, a opinião pública deveria ser tratada como um produ-
to coletivo. Não constitui uma opinião unânime, nem mesmo uma opinião
da maioria, pode ser uma opinião combinada, constituída por diversas opi-
niões sustentada pelo público. Na opinião do autor, para formar a opinião
pública é necessário “[...] que as pessoas estejam abertas para partilhar a
experiência do outro e se mostrem dispostas a fazer compromissos e con-
cessões.” (1978, p. 185).
A opinião pública é estruturada e organizada em torno do jogo polí-
tico. Os publicitários, os especialistas de marketing e os pesquisadores de
353
sondagem de opinião pública são responsáveis por esse novo modelo da
política espetáculo, uma vez que as técnicas de comunicação contribuem
para tornar a política “supermidiatizada”. Na França, desde o seu apareci-
mento, em meados do século XVIII, o termo opinião pública faz parte do
inconsciente político.
Segundo Champagne, a opinião pública foi improvisada no século
XVIII pelas elites intelectuais e pela burguesia. Mas, para a opinião ser cor-
reta deve haver o confronto de opiniões. Assim, ela [opinião] não poderia
mais ser de uma pequena parcela da população, conhecida como a minoria
esclarecida. No século das luzes, a formação da opinião pública, implicava
na livre circulação de ideias e escritos, o que colabora para o desenvolvi-
mento de uma imprensa sem censura. No final do século XIX, surgiu uma
outra opinião pública vinda a partir dos movimentos de massas e das ma-
nifestações de rua (Champagne, 1998).
Bourdieu (1983) discorda da existência de uma opinião pública, em
seu artigo “A opinião pública não existe”, escrito no início dos anos seten-
ta. Já Champagne (1998) critica a ideia de Bourdieu. O autor acredita que
todas as pessoas têm opinião sobre alguma coisa, na qual todas as opiniões
são equivalentes e que estas possuem a mesma força social. As pesquisas
realizadas pelos institutos de sondagem podem parecer uma espécie de
“democracia direta” ao realizarem amostras representativas das opiniões
dos indivíduos. As pesquisas que antecedem as eleições tendem a dar um
caráter manipulador, pois, atualmente, os candidatos costumam fazer son-
dagens para analisar quais são as necessidades básicas da população, o que
ressaltam em uma das estratégias dos especialistas de marketing para saber
quais são os temas de maior aceitação entre os eleitores.
No início dos nos 60, a pesquisa sobre opinião pública era feita pelos
institutos de sondagens e, segundo Champagne, não passava de um pro-
duto artefatural. Por outro lado, o autor apresenta uma conclusão oposta a
esse raciocínio, uma vez que a opinião pública dos institutos de sondagens
tem conseguido provar seu valor científico, transformando em realidade
social um simples artefato técnico. Champagne (1998) acredita que “[...]
as sondagens dão, quase sempre, mais informações sobre o inconsciente
político [...] longe de fornecer um olhar científico, isto é, desmistificado e
desmistificador, sobre a ‘opinião pública’, contribuem, na maioria das vezes,
para reforçar as crenças.” (p. 37). O autor também considera a manifestação
de rua como um modo de ação política que pode ser visto como algo com-
plementar e concorrente da opinião pública.
354
Nessa perspectiva, a televisão e as sondagens têm modificado a po-
lítica. Os políticos se interessam pelas técnicas de sondagens, pois essas
formam os movimentos de opinião e também trouxeram poder aos jor-
nalistas, pois possibilitam que alguns temas sejam discutidos em âmbito
público. O campo político utiliza muito a mídia para divulgar as sondagens
de opinião. Assim, a exibição dos atores políticos na televisão acaba modi-
ficando o capital político. Além disso, Champagne (1998) acredita que os
jornalistas e conselheiros conseguiram deslocar o jogo político para a pu-
blicidade política, no qual a disputa acabou ficando ao redor das agências
de publicidade, que, por sua vez, somou-se ao marketing.
As técnicas de pesquisa de opinião são bastante utilizadas para a ela-
boração de estratégias da maioria dos políticos. Estas sondagens têm o in-
tuito de trazer soluções para as discussões políticas. Champagne (1998)
comenta que o objetivo das pesquisas de opinião é conhecer com precisão
o perfil do eleitorado, como também a intenção do voto. Estes dados se
tornam interessantes para os políticos, bem como para os pesquisadores.
Para o autor, as pesquisas de boca-de-urna ou pré-eleitorais não são consi-
deradas pesquisas de opinião pública, e sim, são conhecidas como enquete
sobre as intenções de votos dos eleitores. Desta forma, os institutos de son-
dagens não tentam criar, mas sim prever resultados.
Champagne (1998) acredita que as sondagens realizadas pelos institu-
tos de pesquisa trazem à sociologia interessantes materiais para serem ana-
lisados. Muitos podem levar à desaprovação da opinião, pois esta, muitas
vezes, apresenta respostas pré-codificadas, o que significa que não coletam
opiniões, e, sim, respostas. Para o autor, tornar pública uma opinião, pode
ser um ato político. Em uma pesquisa de opinião, os entrevistados não es-
colhem as perguntas, como também não controlam as suas interpretações
que são agregadas junto a outras.
Para Gomes, as chamadas pesquisas de opinião, na sua concepção,
não passam de sondagens de manifestação dos indivíduos em relação a
algo que se encontra em disputa ou que poderá vir a se tornar. O autor
ressalta que, “[...] a tal ‘opinião pública’ que os institutos vendem com uma
grandeza tecnicamente mensurável é a disposição dos indivíduos e suas
classes num campo de disputa real ou possível, como a disposição de peças
num tabuleiro” (2000, p. 6).
Nos últimos vinte anos, os estudos de opinião estão ligados às pesqui-
sas de sondagens realizadas sob responsabilidade dos cientistas políticos.
Tais sondagens são importantes na vida política de um candidato, pois es-
355
sas, sob a influência da mídia, podem causar discussões e debates na so-
ciedade. Essas pesquisas têm o intuito de prever resultados, e não criá-los.
Mesmo assim, algumas sondagens apresentam uma característica muito
mais de manipulação do que de conhecimento.
Na visão de Champagne (1998), a opinião pública apresentada pelos
institutos de sondagens pode ser permanentes, movediças e flutuantes.
Considerando isso, a opinião pública também pode assumir diversas for-
mas, tais como: opiniões privadas, opiniões individuais, opiniões coletiva-
mente elaboradas. Pode-se mencionar que as informações bem definidas
vêm do público mais culto, muitas vezes, acrescentando-se opiniões não
previstas. Segundo a definição de opinião pública, cada cidadão tem o di-
reito de proclamar, ou não, suas opiniões. Assim, a opinião pública pode
ser influenciada pelos grupos de referência, como a família, professores,
amigos e líderes políticos. Além disso, o autor considera ainda que, “[...] ‘a
opinião pública’ é um simples espectador do jogo político” (Champagne,
1998, p. 82). Nesse ponto de vista, os políticos, atualmente, buscam servir-
-se das mídias, principalmente, do rádio e da televisão, pois elas influen-
ciam a opinião pública.
Em época de eleições, a influência dos meios de comunicação de mas-
sa se torna mais visível. Através da propaganda e da cobertura jornalística,
os candidatos procuram apresentar uma imagem pública para o seu eleito-
rado, o político, para produzir voto, apoio e opinião, transmite sinais para
as mídias, para a sociedade e para o público. Nessa realidade, a pesquisa
acaba sendo um instrumento interessante para aquele eleitor que não está
esclarecido sobre o processo eleitoral, pois muitos baseiam suas decisões de
voto nos resultados das pesquisas. Na concepção de Weber (2004), todos os
sujeitos e instituições que disputam espaço público e voto são vulneráveis a
julgamento e passíveis de formação de opinião pública.
Atualmente, as mídias são instrumentos poderosos para a transfor-
mação das estruturas do espaço público. Por isso, em época de eleições, é
fundamental que os especialistas em comunicação disponibilizem três re-
cursos fundamentais para a política midiática, a saber: a imprensa, a propa-
ganda e a pesquisa de opinião. Isso se deve porque tais aspectos permitem
a visibilidade4 e a proximidade com o público. Nessa realidade, os políticos
buscam, através das mídias, a formação da opinião pública, e, consequen-
temente, a conversão desta em voto.
4 Gomes (2004) ressalta que a televisão é um sistema de alta visualidade, enquanto o impresso, apesar de
envolver imagens fotográficas, é discursivo.
356
Nessa perspectiva, as pesquisas de opinião tendem a transformar o
desempenho do candidato em notícia. Para Gomes (2004, p. 160), “[...] o
jornalismo é o principal posto de fronteira que permite ou impede a entrada
na cena política midiática.[...] Para o agente político vale mais do que nunca
o princípio segundo o qual “o que não é visto não é lembrado.” Ter uma boa
influência pode ser importante para conquistar visibilidade midiática.
Sobre isso, o autor comenta que “[...] a forma mais eficiente e comum
de se conseguir os recursos midiáticos tem sido a conversão do agente po-
lítico em proprietário de meios de comunicação.” (2004, p. 162). Outro fa-
tor que pode ser decisivo em época de eleições são os apoios e oposições
de proprietários de veículos de comunicação. Muitas vezes, eles decidem
quem entra ou não na cena midiática. Gomes afirma que a comunicação
midiática se tornou fundamental na construção de honras, reputações, no-
mes e imagens.
Cada jornal, telejornal ou revista deve oferecer um suprimento de in-
formação política suficiente para que o cidadão possa formar o quadro
cognitivo completo acerca de pretensões políticas em disputas, das di-
ferenças entre elas, dos sujeitos que a representam [...] que lhe permi-
ta formar uma opinião política qualificada e suficiente para garantir o
exercício das prerrogativas da cidadania (2004, p. 185).
O autor comenta que, ao invés de a imprensa de opinião e da imprensa
oficial assumirem a informação política na sociedade atual, quem assume
é a indústria do entretenimento e do sistema industrial de informação. Go-
mes (2004, p. 113) ressalta que, “[...] em sociedades onde a política é secu-
larizada e tratada no nível do consumível, devassa-se a esfera política como
se devassa a vida privada das celebridades e da cultura em ondas cada vez
mais crescentes de hiperexposição.” Com esse tipo de comportamento, a
esfera civil não depende mais da esfera política para formular seu voto,
muito menos depende da campanha eleitoral e dos discursos políticos:
pode fazer a avaliação do candidato5 e/ou do partido a partir das leituras de
jornais e das informações transmitidas pelo telejornal. Isso porque hoje em
dia é feito um estoque de informação política.
5 A avaliação do candidato pode ser feita de acordo com a sua representação no Governo. A prestação
de contas é conhecida como accountabillity. O´Donnell (2004) classifica o accountability em três modos:
vertical eleitoral, vertical do tipo societal e horizontal. O primeiro está relacionado com as “eleições limpas
e institucionalizadas, através das quais os cidadãos podem trocar os partidos e funcionários do governo.”
Já o segundo “é exercido por grupos e por indivíduos com o propósito de mobilizar o sistema legal para
plantar demandas ao Estado e ao governo com o fim de prevenir, compensar e/ou coordenar ações”. A
última forma “[...] resulta quando algumas instituições devidamente autorizadas pelo Estado atuam para
prevenir, compensar e/ou coordenar ações ilegais de outras instituições do Estado.” (2004, p. 38).
357
A Internet e política
358
mo princípio, considerando que o modelo um-todos das mídias tradicio-
nais foi transformado em todos-todos, pois, com o surgimento das novas
tecnologias de informação e de comunicação, tudo pode ser transformado
em bits, sons, imagens, textos etc. Dessa maneira, propicia-se uma comuni-
cação individual, personalizada e bidirecional, tudo em tempo real.
Nesse ponto de vista, pode-se concordar com a afirmação de Maia
(2002), de que as novas tecnologias de comunicação e de informação são
vistas como um instrumento que fortalece o processo democrático, pois
possibilitam a livre troca de ideias. Portanto, a Internet passa a ser um
cenário propício ao debate em torno da política, por proporcionar uma
comunicação horizontal e interativa. Já Aldé (2004) observa que, na web,
qualquer indivíduo pode produzir notícia, já que, nela, a informação não é
controlada, não há um gatekeeper que selecione o que será veiculado.
A estrutura da comunicação em rede que caracteriza a Internet, por
exemplo, traz diferenças fundamentais para cada elemento do processo
comunicativo. Trata-se de emissão dispersa e capilarizada, fundamen-
talmente não hierárquica, em que emissores alternativos e atores polí-
ticos marginais podem tentar produzir eventos noticiáveis, procurando
atrair a atenção dos jornalistas e, consequentemente, espaço valioso no
noticiário. Seu uso como fonte torna a rede um novo campo de disputa
política (Aldé, 2004, p. 4).
Para a autora, isso ocorre porque a Internet é um meio de comunica-
ção direta. Essa tecnologia pode ser usada como forma de estabelecer uma
agenda de notícia, porque expande a informação. Entretanto, na visão de
Queiroz (2004), por ser a Internet um meio dinâmico, ela facilita a propa-
gação de ideias, assim como atualizações constantes do material do candi-
dato e/ou partido. Nessa realidade, a web6 apresenta novas configurações
para a política, pois os partidos políticos podem disponibilizar seus sites,
independentemente de ser ano eleitoral ou não, mas por ser um espaço
midiático a ser explorado constantemente.
Assim, a Internet tem demonstrado um papel importante na reconfi-
guração das formas de governar e no processo de consolidação da demo-
cracia. Segundo Fishkin (2002), o ambiente digital muda a forma como as
6 A cada ano eleitoral, um número maior de políticos, candidatos e partidos passam a usar a Internet em
suas campanhas. Nos EUA e na Europa, há outros recursos da Internet utilizados na política como: [...]
recrutamento de voluntários; mala-direta; sites com links para vídeos do candidato, programa de ação/
governo do candidato, literatura de campanha, acusações e defesas, endereços da campanha, fotos do
candidato e da campanha etc., dados e documentos do partido; levantamento de fundos; formação de
grupos de discussão (chats); enquetes e levantamento de opinião; recepção de informações; sugestões e
críticas; convocação para eventos; cartas para leitores; comunicação da campanha com o candidato no
“campo” e transferência de dados e arquivos entre membros da campanha (FERRAZ, 2003, p. 219).
359
pessoas interagem e se comunicam. Para o autor, este cria uma maneira de
reconfiguração na democracia.
Esse novo ambiente de comunicação pode difundir um maior número
de informações, formando, desse modo, uma opinião pública mais atenta.
Nesta realidade, a web teria uma tarefa importante, uma vez que, nela, a
informação é aberta, direcionada a todos. Fishkin (2002) classifica a opi-
nião pública de duas formas: “a opinião pública deliberativa ou refinada” e
a “opinião pública bruta”. A primeira refere-se à opinião que pode ser emi-
tida após ter sido testada. Já a segunda refere-se à opinião não submetida a
esse tipo de procedimento.
Nessa realidade, uma variante vem sendo discutida em três expressões:
Internet – esfera pública – democracia. Através desse debate, formou-se o
verbete democracia digital. Neste, são analisados os seguintes dispositivos:
voto eletrônico, governo eletrônico, voto on-line, website dos candidatos.
Estes são os instrumentos utilizados pela sociedade civil para se inserir no
espaço público digital com o intuito de participar do debate público. Dessa
forma, fortalece a presença da esfera civil na cena política. Através da rede
mundial de computadores, o público não é mais um simples consumidor de
informação política, e, sim, um produtor de informação (Gomes, 2005b).
A Internet permite exibir uma informação sem pedir permissão aos
grupos midiáticos, espaço que atende demandas individuais, permitindo
que cada indivíduo busque a informação desejada. Marques (2005, p. 2)
comenta que, para muitos autores, a Internet é classificada como “[...] uma
espécie de revigoramento da esfera argumentativa, pois (1) daria oportuni-
dade de expressão a vozes marginais, sem barreiras impostas pela censura
ou pelos interesses da indústria da informação.” Para o autor, a esfera públi-
ca de âmbito civil seria a mais adequada para compreender os debates que
ocorrem na Internet através dos chats, listas de discussão e fóruns públicos:
As disputas teóricas em torno do tema “Internet e esfera pública” ten-
dem a se concentrar em dois pólos Um primeiro conjunto de autores
admite o funcionamento dos espaços discursivos digitais como esfera
pública por excelência, pois as redes telemáticas atuariam como canal
de expressão legítimo de vozes antes marginalizadas e como espaço de
questionamento das visões produzidas num ambiente “refeudalizado”.
A confluência de informações ininterruptas e de usuários distantes no
plano espacial-geográfico seriam, inclusive, vantagens adicionais trazi-
das pelo advento deste novo meio de comunicação, que é o computador
conectado em rede (Marques, 2005, p. 5).
360
Por outro lado, existe uma preocupação em relacionar a Internet como
esfera pública7. Isso se dá, principalmente porque ela proporciona a exclu-
são digital, na qual nem todos os indivíduos têm acesso, pois a tecnologia
ainda possui um alto custo. Outro fator preocupante que pode barrar o
acesso é o nível de analfabetismo digital.
Marques (2005) apresenta outra discussão sobre o tema “Internet, es-
fera pública e espaço público”:
Umas das perspectivas mais caras a esta discussão vêm de Zizi Papacha-
rissi (2002) que conduz sua reflexão a partir da distinção entre “espaço
público” e “esfera pública”. Papacharissi propõe a apreensão da Internet
preferencialmente como um espaço virtual, mas ainda sem condições de
aceder ao status de uma esfera pública virtual. Ou seja, introduz-se a ideia
de que a Internet funciona como um espaço com a capacidade de facilitar,
mas não determinar, uma renovação da esfera pública (2005, p. 9).
Gomes apresenta cinco graus da democracia digital. O primeiro grau
está relacionado com o acesso do cidadão aos serviços públicos e com a
prestação de serviços on-line por parte do Estado. O segundo grau “[...] é
constituído pelo estado pela rede para averiguar a sua opinião a respeito de
temas da agenda pública.” (2005b, p. 6). O terceiro grau está relacionado
com a prestação de contas e informações para o cidadão. O quarto grau
corresponde a algum modelo de democracia deliberativa, que pode ser
combinada com o modelo de democracia participativa e com a democra-
cia representativa. Já o último grau corresponde ao modelo de democracia
direta. Por outro lado, não se pode esquecer que nem toda a informação
política na rede é democrática e liberal. Na mesma realidade, Steffen (2004)
comenta que a e-democracia não é só um fenômeno de conexão, difusão e
relação política, ela também pode ser um complexo de interação e media-
ção que influencia nos debates democráticos promovidos pelos processos
tecnológicos midiatizados. O espaço digital propicia novas relações políti-
cas, uma nova instância de visibilidade e de interação.
“e-democracia” [...] não se trata de uma nova forma de organização so-
cial via Internet, mas sim de processos políticos e de interação que se
fazem dentro e a partir de uma cultura, que se projeta no espaço digital
por este ser um elemento de contato, de aumento de velocidade, quebra
de fronteiras e marcas temporais e ampliação de relações físicas, acele-
rando e ampliando as possibilidades de contato entre os diversos inte-
grantes da sociedade (Steffen, 2004, p. 93).
7 Na concepção de Maia, a “Esfera pública é caracterizada como o locus da comunicação, os espaços nos
quais as pessoas discutem questões de interesse comum, formam opiniões e planejam a ação.” (2001, p. 3).
361
Em tempos de redes sociais, a comunicação compartilhada também
pode influenciar na formação da opinião pública. Com o avanço da in-
ternet, nos deparamos com dois cenários: o primeiro, da interação feita
através dos sites dos partidos para fins institucionais e, o segundo, da inte-
ração através de redes sociais, em que o internauta pode tanto produzir e
distribuir informação, processo que valida a teoria da inteligência coletiva
discutida por Pierre Levy. Por outro lado, o algoritmo8 pode ser uma bar-
reira, ou seja, a informação distribuída no feed das redes sociais pode o ser
de acordo com os grupos de mesmo pensamento ideológicos.
Na concepção de Fishkin (2002), as tecnologias ajudaram a criar uma
nova forma de democracia. Para o autor, a democracia na Internet pode ser
vista de duas maneiras: na primeira, destacam-se aqueles internautas que
não prestam atenção, que ficam pulando de site em site, que não conseguem
participar de um diálogo longo. A segunda é aquela em que a Internet
oferece uma comunicação assincrônica, em que as pessoas não precisam
envolver-se todas ao mesmo tempo, pois as questões não necessitam ser
respondidas no mesmo momento.
Já na visão de Maia (2002), as tecnologias de comunicação e informa-
ção apresentam diversas vantagens em relação aos meios de comunicação
tradicionais. Elas propiciam um novo cenário para a comunicação demo-
crática por disponibilizar dispositivos interativos e novas possibilidades
de participação. Para a autora, a Internet cria um ambiente de informação
bastante denso.
Os recursos interativos e multifuncionais apresentados pelas tecno-
logias de comunicação e informação têm sido relevantes no que tange ao
fortalecimento do processo democrático. A Internet possibilita que o de-
bate seja mais democrático, no qual os atores políticos e o público podem
interagir através da troca de informação etc. Essa tecnologia pode vir a ser
um meio de comunicação ideal para a democracia, mas, para fortalecê-la,
não é necessária somente uma estrutura comunicacional, e, sim, o interesse
do cidadão em participar do debate.
Maia (2001) acredita que a Internet é um importante lugar, “uma are-
na conversacional”, um espaço onde podem acontecer novas discussões po-
líticas, bem como novas conversações. A autora faz a seguinte justificativa
em relação ao debate político na rede:
8 É um código de programação que está por trás das redes sociais que analisa as preferências do usuário
e distribuí as informações conforme esse perfil apresentado.
362
Conforme os estudos de Wilhem (1999, p. 169-175) e Hill e Hughes
(1998, p. 71) evidenciam a grande maioria dos participantes em listas
de discussão política e chats expressam a própria opinião, “buscam” e
“disponibilizam” informação, sem que se vinculem a um debate pro-
priamente dito. A prática argumentativa, o dizer e contra-dizer com
vistas a resolver discursivamente (“por razões”) impasses ou diferenças
de pontos de vista, é relativamente reduzida se comparada com outras
modalidades de comunicação nesses grupos. As tecnologias da infor-
mação e da comunicação facilitam o armazenamento e a circulação dos
estoques informativos, agilizam as buscas, tornam a vida mais veloz.
Contudo, não determinam o procedimento da interação comunicativa
e nem garantem a reflexão crítico-racional (Maia, 2001, p. 9).
Logo, as tecnologias de comunicação e de informação desempenham
um fórum cívico. Desse modo, permitem que as pessoas interajam local-
mente e globalmente, sem fronteiras. A Internet pode ser um ambiente de
múltiplas fontes de informação. Com as novas tecnologias, o acesso fica
mais ampliado e aspectos, como as questões políticas, tornam-se mais in-
teressantes, fazendo com que uma ou mais pessoas possam participar. Por-
tanto, a web propicia às pessoas questionar opiniões, expressar seus desejos
e suas necessidades. Assim, os cidadãos podem beneficiar-se de uma co-
municação interativa e mais horizontal.
Considerações finais
363
panha monitore a outra; sendo assim, as estratégias políticas ficam muito
próximas, com ataques e defesas entre os políticos que estão em cena.
Portanto, vale mencionar também que a tecnologia colabora para que
os políticos explorem novas demandas políticas, criando novos nichos e
novas formas de contato com seus eleitores. A Internet disponibiliza novas
plataformas para formação da opinião pública, o leitor tem livre arbítrio
para pesquisar e debater sobre a campanha. O website partidário também é
usado como ferramenta de comunicação entre público e partido, principal-
mente porque os conteúdos também podem ser replicados nas rede sociais
e desta forma alcançando um maior numero de pessoas. Além disso, com
o avanço tecnológico, as estratégias em redes sociais foram repensadas, o
eleitor também produz e distribui informação, e, o conteúdo sedutor da
televisão também pode ser compartilhados na internet dentro do feed ou
em um canal no Youtube.
Capítulo 4
INSTITUIÇÕES
Leandro Stevens
María Patricia Téllez Garzon
Ana Javes Luz
Fiorenza Zandonade Carnielli
Camila Moreira Cesar
James Görgen
Wesley Lopes Kuhn
Fernanda Natasha Bravo Cruz
Aluízio de Azevedo Silva Júnior
Tânia Silva de Almeida
Amanda Marcolin Simon
Disputas e pactos do Estado e da indústria
na propaganda sobre automóvel
Leandro Stevens
Introdução
367
dualismo de importante valor simbólico; a propaganda educativa do Estado
utiliza-se de discursos persuasivos sustentados pela argumentação racional
que são estrategicamente construídos sobretudo pelo Governo Federal que
busca a realização de campanhas de conscientização do uso desta máquina.
Na relação supracitada, este objeto de estudo está vinculado à Comu-
nicação Pública como um tema de interesses diversos, através dos discur-
sos que são postos em circulação que buscam vender, debater, controlar etc.
os direitos e responsabilidades dos indivíduos, do Estado e das instituições
privadas que no automóvel desencadeiam uma série de contradições. As-
sim, busca-se a relação entre o Estado e a indústria automobilística, através
de seus discursos, com suas aproximações e distanciamentos entre o que é
de interesse público e o que é de interesse privado: ora o Estado aumenta os
impostos dos automóveis visando o transporte público, ora oferece diver-
sas vantagens para indústrias multinacionais se instalarem no Brasil como
vias de acesso, terraplanagem e terminais portuários; ora a indústria realiza
ações de conscientização no trânsito, ora ela é contra a interferência do Es-
tado em sua publicidade. Dessas aproximações e afastamentos nas relações
de poder entre o Estado e a indústria automobilística ocorrem disputas,
acordos, intenções mútuas e contrárias que acabam por confundir o que
pertence ao consumo e a cidadania e seus aspectos públicos e privados.
Na apresentação destas contradições, o sujeito é posto em constante
disputa entre interesses como, por exemplo, na relação entre igualdade e
desigualdade decorrente das práticas de consumo e de cidadania. Pois, ao
mesmo tempo em que o consumo está profundamente ligado às condições
básicas de vida e às possibilidades de uso das novas tecnologias, que faz
do acesso a bens de consumo uma condição de sociabilidade e bem-estar
básico, a sociedade de consumo é fundamentalmente igualitária no sentido
de que tende a criar uma estética universal em sua vontade de transformar
todas as pessoas em consumidores. Por outro lado, a própria estética e as
diferenciações dos produtos busca hierarquizar os consumidores que tam-
bém se reconhecem pela distinção dos produtos que usam. O cidadão/con-
sumidor oscila constantemente entre a sedutora publicidade que promete
liberdade, velocidade e status, e o discurso Estatal que promete punições
a qualquer comportamento contrário às normas e avisa que a liberdade e
a velocidade podem causar danos à vida e causar a morte. São discursos
contraditórios em si, pois, ora buscam promover a cidadania estimulando
o indivíduo a participar da vida pública e como instrumento de construção
da agenda e das políticas adotadas, sobretudo pela comunicação do Estado
368
em busca do debate público; e ora buscam intensificar o consumo para de-
senvolver a economia, onde o indivíduo é incentivado pelas propagandas e
pela exaltação deste objeto por diversos agentes e situações, promovendo o
individualismo, onde a relação tempo e espaço através da velocidade ganha
apreço.
Este jogo contraditório contribui para a dissolução do espaço público
em espaços privados onde os indivíduos circulam indiferentes em relação
às outras pessoas, promovendo a velocidade, a competição e o individua-
lismo. A perda desse espaço comum entre as pessoas auxilia no aumento
do número de mortes e acidentes, já que no trânsito essa consciência de-
pende de políticas públicas que sejam capazes de extinguir uma enraizada
e costumeira crença na impunidade através do abrigo fechado e íntimo do
automóvel, provocando um desgaste público e social. Assim, acredita-se
que o discurso da valorização da vida é mais instigante, mais presente e de
melhor qualidade que o discurso da lembrança da morte e, quem ganha
com esta diferença é o consumo (do automóvel) e o individualismo e, quem
perde, é a cidadania e a coletividade.
Ao analisar a repercussão da comunicação pública do automóvel atra-
vés de suas relações de poder entre o Estado e a indústria nos campos so-
cial, político e econômico através do conhecimento da complexa estrutura
de pessoas, instituições, relações e interações no incentivo e controle da
vida e do corpo, sendo de interesse público tanto por seus benefícios como
seus malefícios, este estudo pretende ampliar o debate sobre a relação pú-
blica e privada, dentro de uma lógica econômica e política que envolve a
indústria e o Estado em práticas comunicacionais sobre um objeto como o
automóvel, auxiliando na compreensão de suas relações culturais, sociais,
comportamentais etc.
Para Norberto Bobbio (2001), a distinção público/privado se duplica
na distinção política/econômica, com a consequência de que o primado do
público sobre o privado é interpretado como o primado da política sobre
a economia. Esta asserção é melhor compreendida quando se analisa a re-
lação de consumo entre a empresa e o indivíduo (relações econômicas), e
a relação de controle, fiscalização e desenvolvimento da cidadania entre o
Estado e o indivíduo (relações políticas). Estas relações demonstram um
desinteresse da população na gestão dos negócios públicos, e uma valori-
zação da produção de subjetividades que valorizam o íntimo e o individual
e se reconhecem prioritariamente a partir de modelos identificatórios en-
gendrados no e pelo espaço privado.
369
A Comunicação Pública, para Maria Helena Weber (2000, 2010), é
um conceito complexo que procura entender as relações do público e do
privado entre a comunicação do Estado, de empresas, da mídia ou outro
emissor. Seu espaço é determinado pelos modos de produção e circulação
pública de informações e ações (gerados por sistemas e redes de comu-
nicação) de interesse público, e portanto, de grande importância para a
sociedade, pois promovem discussões que exigem respostas. Para a autora
(2011) a capacidade de comunicação (estatal, institucional, política, públi-
ca) dos Estados democráticos é realizada de forma estratégica para obter
visibilidade pública, além de prestação de contas, votos etc. A comunicação
midiática também vai disputar versões dos fatos apresentados pelo Estado,
assim como as opiniões dos indivíduos e qualquer mediação (mercadológi-
ca, educativa, judiciária etc.) e são os temas que acionam e movimentam tal
debate. “A comunicação pública se constitui a partir do momento em que
o interesse público está em jogo e temas (ambiente, ciência, cotas, aborto,
salário) circulam em redes instaladas a se manifestar, chegando à mobili-
zação social” (Weber, 2011, p. 105). Mas a defesa do interesse público não é
somente do Estado, mas das organizações privadas. Apesar de mais recor-
rente na comunicação do Estado democrático, visto que esse deve realizar
todas suas ações para o interesse público, o interesse geral, para o exercício
da cidadania, o faz de maneira estratégica para ganhar visibilidade e credi-
bilidade pela formação da imagem pública.
A autora defende que a comunicação pública não pode ser determina-
da a partir de legislação ou de estruturas, mas é configurada pela circulação
de temas de interesse público, nos modos de debater e de sua repercussão.
Trata-se da comunicação pública constituída pela abordagem e circulação
de temas vitais à sociedade, ao Estado e à política, vinculados a decisões só
possíveis na representação política e na esfera dos poderes públicos, mes-
mo que a comunicação pública também seja realizada de forma estratégica
e planejada com o objetivo de criar relacionamento com os diversos públi-
cos e construir uma identidade e uma imagem dessas instituições, sejam
elas públicas ou privadas, em relação a interesses públicos e privados.
Hoje há uma dissolução do espaço público, caracterizando uma so-
ciedade despolitizada marcada pela indiferença às questões públicas e tudo
parece direcionar para os objetivos individuais. Esta dissolução da perda
do senso comum compromete a capacidade de discernimento e julgamen-
to dos indivíduos. Silverstone apud Longhurst; Carrabine (2002) descreve
que os objetos podem ser utilizados de diversas maneiras com intenções
370
variadas promovendo significados múltiplos. O consumo do carro nunca
é simplesmente sobre escolhas econômicas racionais, mas sobre respostas
estéticas, emocionais e sensoriais. Prazer, medo, frustração, euforia, dor,
inveja são respostas emocionais aos carros e sentimentos sobre a sua con-
dução são fundamentais para os investimentos pessoais que as pessoas têm
ao comprar e dirigir automóveis. Por outro lado, a sensação de testemu-
nhar um acidente e os terrores e traumas que permanecem correspondem
ao lado negativo de seu uso. Assim, as mesmas paixões que alimentam o
“amor” pelo carro ou a alegria na sua condução, podem, igualmente, pro-
vocar sentimentos opostos de ódio para o tráfego e a raiva com outros mo-
toristas nas disputas de trânsito, o tédio na rota cotidiana ou ira em relação
a políticas de transporte por parte do Governo intensificando as contradi-
ções de seu consumo/uso.
Este estudo justifica-se ao apresentar a comunicação sobre automóvel
como tema de interesse onde a discussão entre as ações e os discursos são
pautas constantes dos veículos midiáticos e, há mais de três décadas, ga-
nham força na agenda da comunicação pública governamental como um
dos grandes problemas sociais contemporâneos. Estudar como se dá tal
relação comunicacional em torno de um objeto como a comunicação do
automóvel auxilia na aproximação do campo social contribuindo para se
entender a complexidade da comunicação pública enquanto discursos e
ações que pretendem regular, proteger, informar e desenvolver a cidadania.
Ao compreender que o objeto de pesquisa se constitui a partir de diversas
dimensões: política, econômica, cultural, comportamental e social, a pes-
quisa aponta para as relações de poder na comunicação sobre o automóvel
como um tema privilegiado de disputa que tem no indivíduo a busca da
promoção da venda e de desejo, sobretudo, pelo discurso comercial e, ao
mesmo tempo, alerta para seus perigos e problemas, sobretudo, através do
discurso Estatal. Assim, busca-se, analisar como se relacionam Indústria e
Estado através de seus discursos publicitários sobre o automóvel que uti-
lizam estrategicamente a vida e a morte, tornando o automóvel um objeto
disciplinador inserido em um universo de contradições que caracterizam
seu próprio paradoxo.
Objeto de Análise
372
Para a análise diferenciamos o que constitui o discurso do Estado e
da indústria. Do discurso estatal faz parte a comunicação governamental
(instituições federais, estaduais e municipais), as organizações ligadas às
regulamentações de trânsito, políticos etc. que utilizam o automóvel para
promover a economia e a melhoria da vida das pessoas (emprego, satisfação
de adquirir o produto) e, ao mesmo tempo, autorizam, controlam e punem
o uso do automóvel, através de fiscalização, regulando o comportamento,
normalizando o prazer e aconselhando através de propagandas educativas,
na busca por controlar o uso desta máquina e os problemas sociais causa-
dos como: acidentes, mortes, poluição e engarrafamentos. Para isso, estes
agentes montam uma série de normas e aparatos como: rodízio de carros,
blitz policiais, controladores de velocidade e, assim, procuram fortalecer
sua reputação através de uma boa imagem pública pela visibilidade que
tem nos meios de comunicação, promovendo uma opinião favorável de
suas ações juntamente com os cidadãos.
Do discurso comercial fazem parte a comunicação das fábricas, em-
presas revendedoras, publicidade dos carros, ou seja, todo o discurso que
incentiva o consumo do automóvel e que procuram demonstrar os praze-
res de seus produtos levando os consumidores a universos simbólicos que
satisfazem suas necessidades, ampliando as dimensões do consumo, mas
que em determinadas situações também buscam um discurso em defesa
do interesse público em ações educacionais sobre o trânsito como parte da
responsabilidade social da empresa.
O contraditório destes discursos compreende o seguinte paradoxo:
não se pode repetir simultaneamente ao indivíduo que “o nível de consu-
mo constitui a justa medida do mérito social” e exigir dele outro tipo de
responsabilidade social, uma vez que o esforço do consumo individual já
assume tal responsabilidade social (Baudrillard, 1995, p. 85).
Para dar suporte ao referencial bibliográfico, realizou-se a pesquisa
documental através de dados, estatísticas e informações sobre o tema. Pro-
curou-se apresentar uma gama de relatórios de diversas instituições para
comparar dados e informações acerca do uso e do consumo do automóvel.
Dentre os documentos analisados, destacam-se:
373
Quadro 1: Pesquisa Documental
Fonte: Autor
374
de 7,5 bilhões do setor, os quatro maiores investidores em publicidade, re-
presentam mais de 3,7 bilhões, em 2012. As demais constatações serão de-
monstradas no desenvolvimento da análise.
ANO PUBLICIDADE PUBLICIDADE PUBLICIDADE PROPAGANDA
DA INDÚSTRIA DA INDÚSTRIA DA INDÚSTRIA DO ESTADO4
AUTOMOTIVA ¹ AUTOMOTIVA ² AUTOMOTIVA ³
2000 610.647.460 (3,6%) 1.169.345.020 (1º) 226.668.710 (18º) **
2001 650.196.250 (3,7%) 1.504.830.290 (1º) 228.262.350 (15º) **
2002 - 1.647.075.000 (1º) 312.421.000 (12º) **
2003 - 1.805.324.000 (2º) 426.903.000 (13º) **
2004 893.556.000 (3%) - - 2.900.000,00
2005 1.990.248.000 (6%) 1.688.201.000 (2º) 491.320.000 (14º) 9.356.823,00
2006 2.545.523.000 (6%) 1.732.689.000 (3º) 453.076.000 (18º) 8.092.123,49
2007 3.089.558.000 (6%) 1.982.594.000 (3º) 667.740.000 (14º) 998.559,98
2008 4.594.102.000 (8%) 2.477.828.000 (4º) 932.060.000 (11º) 48.493.547,44
2009 5.122.008.000 (8%) 2.195.632.000 (3º) 652.236.000 (20º) 120.000.000,00
2010 7.021.727.000 (9%) 2.645.032.000 (4º) 2.206.981.000 (*) 68.747.088,00
2011 8.120.701.000 (9%) 3.037.970.000 (3º) 2.713.103.000 (7º) 38.920.000,00
2012 7.506.997.000 (8%) 2.757.356.000 (6º) 2.750.298.000 (7º) Não divulgado
375
História do Automóvel
376
mido ao longo do tempo. Para ele a primeira idade corresponde ao período
de 1900 a 1925, quando os carros eram artesanais e atuavam, quase que
exclusivamente, como símbolos de status de uma classe superior em jogos
de distinção, visto que as funcionalidades do automóvel não eram tão ex-
ploradas. Apesar da invenção do automóvel ter sido em 1885, o primeiro
grande percurso foi percorrido somente em 5 de agosto de 1888 e, a partir
de então, o automóvel começou a despertar interesse na sociedade como
alternativa para o transporte. Em 1889 a empresa de Karl Benz possuía 50
empregados e, 10 anos mais tarde, totalizavam 430. De 1886 a 1893 foram
produzidas 25 unidade e, em 1899 o número já chegava a 572 unidades.
Estes dados, do início da produção desta máquina, demonstram o rápido
crescimento do consumo deste objeto. No Brasil, a comercialização e a fa-
bricação do carro é maior a cada ano, o que acontece há mais de 100 anos,
salvo poucos ressalvas (ANFAVEA, 2006).
Na segunda idade, que vai de 1925 a 1960, o autor caracteriza o carro
por sua funcionalidade, ou seja, quando este objeto começa a ser produ-
zido padronizado e em grande quantidade para classes mais populares. A
terceira idade, por fim, começa em torno de 1960 e se prolonga até o pre-
sente. Neste período o carro é produzido através de séries fragmentadas
para a personalização, assim suas diferenciações são flexíveis produzin-
do uma grande quantidade de tipos e características para que as pessoas
possam adquirir um veículo não apenas para sua mobilidade, mas para
expressar/complementar sua individualidade. Para Gartman, esta tercei-
ra fase é aquela em que algumas das contradições em torno do automóvel
tornaram-se mais evidentes e onde a liberdade proporcionada por este
objeto está ligada a independência e, também, ao individualismo. Dant
(2004) reitera esta afirmação apresentando que o automóvel é a mercado-
ria que exemplifica o desenvolvimento da produção através da indústria
e das relações econômicas, como um dos objetos mais desejados pelos
consumidores.
Durante o período da ditadura militar brasileiro, segue o crescimento
do setor automobilístico baseado no capital estrangeiro com ações volta-
das principalmente para a infraestrutura, o que faz surgir grandes obras
como a transamazônica. Nesta época o governo estava interessado em dar
condições para que os automóveis pudessem ser usados em larga escala
e utilizava o carro como símbolo do desenvolvimento já que este objeto
era símbolo de conquistas tecnológicas e do espírito do progresso: o auto-
377
móvel foi utilizado como propaganda do governo e do chamado “Milagre
Econômico”. Assim, o regime militar utilizou este produto para realizar sua
propaganda ao passo que as montadoras se instalavam no Brasil e tam-
bém produziam diversos anúncios potencializando a importância do uso
do automóvel, caracterizando este como uma estratégia de comunicação
tanto do Estado quanto da indústria automobilística no campo político e
econômico.
378
Figura 1: Dados econômicos do automóvel
380
e pagamentos maiores pelo seu uso para incentivar o transporte público
Para Longhurst; Carrabine (2002) o triunfo do automóvel só foi possível
pela manutenção do capitalismo e dos processos industriais e comerciais
que transformaram a circulação de mercadorias na base econômica dos
Estados.
Para que este sistema de trânsito tenha subsídios para seu funciona-
mento é necessário um grande investimento. O Fundo Nacional de Se-
gurança e Educação para o Trânsito (FUNSET), previsto no artigo 320
do Código de Trânsito Brasileiro e criado pela Lei nº 9.602, de 21 de ja-
neiro de 1998, tem por finalidade custear as despesas do Departamento
Nacional de Trânsito relativas à operacionalização da segurança e educa-
ção para o trânsito. Sua constituição inclui o percentual de 5% do valor
das multas de trânsito arrecadadas pela União, Estados, Distrito Federal
e Municípios. Com relação à receita proveniente das multas de trânsito,
sua aplicação deve ser destinada exclusivamente à melhoria do trânsito,
conforme dispõe a lei, sendo proibido qualquer desvio de finalidade. Ou-
tra fonte refere-se às receitas que cabem à União relativas à repartição de
recursos provenientes do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados
por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT). De acordo com o
Decreto nº 2.867, de 08 de dezembro de 1998, dos recursos arrecadados
pelo DPVAT, cabem à União: 45% do valor bruto recolhido do segurado
a crédito direto do Fundo Nacional de Saúde, para custeio da assistência
médico hospitalar dos segurados vitimados em acidentes de trânsito; 5%
do valor bruto recolhido do segurado ao DENATRAN, para aplicação ex-
clusiva, pelos Ministérios da Saúde, da Educação, do Trabalho, dos Trans-
portes e da Justiça, em programas destinados à prevenção de acidentes de
trânsito, nos termos do artigo 78 do CTB e da Resolução do CONTRAN
nº 143/03 (BRASIL, 2010a).
Featherstone, Thrift e Urry em “Automobility” (2004), centram-se na
discussão sobre a mobilidade do carro. O uso do carro como prática coti-
diana envolve certas complexidades, ambiguidades, contradições que me-
recem ser estudadas.
381
Figura 2: Política Nacional de Trânsito
382
É a pesquisa social que procura conhecer essa relação entre os auto-
móveis e as pessoas que constituem este sistema e as relações no contexto
mais amplo entre motoristas e as autoridades, onde a cultura do carro o
associa com a liberdade, independência e conveniência, bem como o sta-
tus. Mas decorrente desta relação aparece uma contradição: não se pode
repetir simultaneamente ao indivíduo que “o nível de consumo constitui a
justa medida do mérito social” e exigir dele outro tipo de responsabilidade
social, uma vez que o esforço de consumo individual já assume em cheio tal
responsabilidade social (Baudrillard, 1995, p. 85). Parece que é exatamente
isso que o Governo faz: solicita o indivíduo a ser cidadão ao mesmo tempo
em que incentiva o consumo através de ações que auxiliam o desenvolvi-
mento econômico e a consequente aquisição de produtos.
Problemas Sociais
383
cultura política com efeitos negativos, onde os cidadãos não exigem seus
direitos, pois, não acreditam que as instituições vão atendê-los, preferindo
medidas individuais.
Essa cultura política preconizada pelo individualismo, aliada com os
benefícios pessoais que o carro traz como segurança (já que não confiam
na segurança das ruas), agilidade (já que não confiam no transporte públi-
co), além dos símbolos de status e liberdade difundidos pela publicidade,
promove uma desconfiança no Estado e uma superconfiança na indústria
automobilística. Isto acaba por configurar outra contradição: em certas ci-
dades os transportes públicos são mais rápidos que os automóveis e os ín-
dices de assalto a carros são maiores que aos transportes públicos, mesmo
assim os indivíduos preferem usá-lo. Há uma relação confortável entre o
setor privado, pois há um sistema estabelecido que favorece o consumo
do carro e que torna as atividades diárias mais difíceis sem ele, já que a
indústria automobilística é uma poderosa força econômica e oferece in-
vestimentos nos parques fabris, desenvolvimento tecnológico, gastos com
mídia e, por isso, tem o incentivo do Estado. Na construção da democra-
cia que visa uma relação eficaz entre Estado e sociedade, fortalecendo a
cidadania, os Governos devem desenvolver a economia ao mesmo tempo
em que buscam promover a melhoria de questões sociais. Porém, macro-
mudanças precisam ser acompanhadas por micromudanças de atitudes,
valores e comportamentos que auxiliem na promoção da cidadania (Hun-
tington, 1968). Para a mobilização pública é necessário instituições fortes
para a mobilização social e participação política, para isso suas políticas e
discursos não podem ser contraditórios. O indivíduo internaliza normas e
valores com base na experiência negativa com o Estado que, por sua vez,
busca apenas ações assistencialistas que fortalece sua personalização e não
a cidadania.
Cultura do Automóvel
1 Como: 4x4 e Cia.; Autoz; Auto Data; Auto Esporte; Auto Market; AutoMotivo; Auto Power; Auto Press;
Auto Show; Brasil Motors; Car and Driver; Car Magazine BR; Carsale; Carstéreo; Carro; Maxi Tuning;
Motor Car; Mercado Automotivo; Motor Press; New Motor Age; PNEWS; Quatro Rodas; Jornauto; Hot
Rods; Full Power; Táxi; Auto Som; Som & Carro; Veículos Vip; Auto e Técnica; Classic Show; etc.
385
Consumo do Automóvel
386
recai na relação entre igualdade e desigualdade, ao mesmo passo que o
consumo está profundamente ligado às condições básicas de vida e às pos-
sibilidades abertas pela tecnologia, que faz do acesso a bens de consumo
uma condição de sociabilidade e bem-estar básico.
O automóvel demarca diferenças no indivíduo que o possui e, por sua
variada gama de opções, estas demarcações são mais precisas: o valor do
automóvel (a condição econômica), o design (características como inova-
dor), o tipo (solteiro ou família), o modelo (se é atualizado), o motor (gosto
pela velocidade), a exclusividade (individualização) etc. A composição do
carro apresenta-se como indicadores reconhecíveis pelos outros através da
estetização e do discurso do marketing que configuram o que se pode cha-
mar de estilo que, assim como a moda, individualizam e auferem status,
poder e distinção social. Tais indicadores são apresentados pelo marketing
e pela propaganda que está a todo o momento sustentando-o para que o
consumo seja sempre renovado e que o indivíduo busque estes indicadores
constantemente. Tanto um quanto o outro hierarquizam e classificam pro-
dutos e indivíduos, fazendo do consumo o projeto de vida onde o homem
se encontra, se define e se faz pertencer, próprio da lógica capitalista.
Considerações finais
389
Observatórios e ouvidorias de mídias
no Brasil, Colômbia e Argentina
Introdução
1 Disponível em <www.observatoriodaimprensa.org>.
395
Como justificativa da criação do OI Dines, (1996)2 que desde sua cria-
ção ocupou a direção deste projeto, destaca dois aspectos fundamentais: i)
a existência de uma cidadania reduzida a sua condição de consumidores
deixando de lado sua condição de interlocutora central da mídia e ii) a
necessidade de recuperar o caráter de serviço público dos meios e refletir
através dele sobre as responsabilidades que este fato supõe.
Frente a suas características e recursos específicos o OI é definido
como um projeto de media watching que permite a participação de jorna-
listas e de colaboradores originários de diferentes setores sociais. Com re-
lação a este ponto a busca de qualidade e a excelência jornalística, de modo
particular, de um jornalismo crítico, aparece como um propósito central
desde a sua formação há vinte anos, e isto se reflete tanto na plataforma e
no seu desenho como no espaço televisivo com que conta.
Outro aspecto relevante refere-se à condição de palco e cenário de de-
bate e de ação política possível a partir desta experiência. Sobre isto, Braga
(2012) menciona no caso do OI, a ação política que se desenvolve avança
além da valorização da autonomia do jornalista, na percepção diferenciada
dos fatos, na defesa de um jornalismo crítico, assim como na busca de aná-
lise de um horizonte social geral, entre outros aspectos.
Em 2015 este projeto cumpriu 20 anos e neste percurso é importan-
te sublinhar dois elementos. No primeiro caso o exercício de observação
como tarefa fundamental e a consequente transformação do objeto ob-
servado, neste caso os meios de comunicação, que este fato supõe. Como
resultado do anterior os observatórios transformam-se em contrapoderes
cuja finalidade será questionar a ação da midia (Dines, 2015).
Um segundo elemento está relacionado com a participação social e
sobre ela é importante mencionar como existem diferentes níveis de acor-
do a sua área de atuação (social, comunitária, política e cidadã). Ao nos
aproximarmos aos observatórios e ouvidorias de mídias, interessa-nos es-
tas últimas mediadas pela presença dos jornalistas frente à cidadania em
âmbitos que têm ingerência coletiva. A seguir apresentamos a experiência
da Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
396
2007), dado o seu interesse pela comunicação e a midia, realiza-se o II Fó-
rum sobre Televisão Pública, a partir do qual inicia-se um movimento para
a criação deste meio de comunicação orientado, então, pelo Ministério da
Cultura. Como resultado, no ano seguinte autoriza-se a criação da Empresa
Brasil de Comunicação (EBC) adscrita à Secretaria de Comunicação Social
da Presidência da República. (Oliveira e Martins, 2013).
Como um antecedente deste projeto encontramos a Empresa Brasilei-
ra de Radiodifusão (Radiobrás), que se fundiu gradualmente para dar vida
a este novo projeto. Definida a EBC como uma radio difusora de cobertura
nacional cuja responsabilidade gira ao redor do fortalecimento do sistema
público de comunicação, que tem a sob sua responsabilidade os canais TV
Brasil, TV Brasil Internacional, Agência Brasil e o sistema público de rádio
composto por oito emissoras3.
O desafio era grande e foi assumido por Tereza Cruvinel, que foi Di-
retora Presidente da EBC na primeira etapa deste projeto. Neste novo or-
denamento da empresa destaca-se a presença do Conselho Curador e da
Ouvidoria. Entrevistada por Floriani (2009) que referindo-se ao caráter
público da EBC, comenta:
Mucho se dijo en la época de creación de la EBC que ella era apenas una
continuación de Radiobrás con otro nombre. Pero son muchas las dife-
rencias. Por ejemplo, la existencia de un Consejo Curador, la existencia
de la Veeduría, las diferentes formas de financiamiento previstas. Una
que considero fundamental es el hecho de que el director presidente tiene
mandato, lo que le asegura independencia en relación al gobierno. El es
irrevocable por el presidente de la república o por el ministro de comuni-
caciones. El único ente que puede finalizar el mandato del director presi-
dente es el Consejo, y después de dos advertencias (Floriani, 2009, p. 23).
Enquanto o Conselho Curador se reúne mensalmente, a Ouvidoria,
cujo cargo tem um período de dois anos, funciona de maneira permanente.
Como primeiro ouvidor foi nomeado o professor Laurindo Leal filho que
ao destacar o objetivo da Ouvidoria, comenta:
La Veeduría buscar ser, entonces, “una de las puertas abiertas por la
EBC” para la sociedad, Por ella circularán las demandas, las expectati-
vas, las sugerencias, los elogios y las críticas del público en su vehículo
de comunicación. Y de regreso, en un proceso de ida y vuelta, las res-
puestas cuando sean necesarias. Pero no solamente ellas, Indagaciones
también en la medida en que le corresponde a la Veeduría instigar al
público a participar en este debate (Leal, 2013, p. 60).
3 <http://www.ebc.com.br/institucional/ouvidoria>.
397
A Ouvidoria contou com o respaldo de três ouvidores adjuntos: uma
para as emissoras de rádio, outra para a Agência Brasil e uma terceira para
a TV Brasil, projeto que nasce como resultado deste redesenho institucio-
nal. Estabeleceu, igualmente, um convênio com a Universidade de Brasília
(UnB), através da Faculdade de Comunicação contando com a qualidade e
experiência deste centro acadêmico. Para conseguir uma maior eficácia no
êxito dos seus objetivos a Ouvidoria conta com colunas de opinião, progra-
ma de rádio e um sistema de acompanhamento dos conteúdos para atender
as demandas dos públicos.
Há vários aspectos a destacar neste projeto. Em um primeiro momen-
to assinala-se sua aposta por exercer um trabalho de mediação qualificada
entre o cidadão e a administração pública. Este processo é possível graças à
interlocução que se realiza utilizando para tal diferentes meios de comuni-
cação onde, ao mesmo tempo em que se conhece a percepção dos usuários,
se realiza um trabalho pedagógico de formação dos mesmos, orientado
para a sua condição de cidadãos.
Um segundo aspecto refere-se à importância das mídias públicas no
fortalecimento das democracias na região e o respaldo no trabalho das
ouvidorias. Eles estabelecem uma “outra” comunicação com os cidadãos
na medida em que se propõem a oferecer às audiências uma garantia de
conteúdos alternativa para enfrentar as mídias comerciais que têm sido
considerados como a única realidade possível quando se pensa nos meios
de comunicação. E, neste contexto, o exercício de um jornalismo de qua-
lidade, independente e de credibilidade aparece como uma exigência para
questionar os problemas que apresentam as mídias privadas relacionadas
com a ausência de atores e vozes diversas. Veremos, a seguir, a realidade
dos observatórios na Colômbia.
399
de Paula Santander e finalmente, Zona Centro: Instituto IECO de la Uni-
versidad Nacional. Em cada uma dessas regiões se criou uma experiência
de observatório regional coordenado desde la ANTV. Como datas de rea-
lização do observatório estabeleceu-se o período entre dezembro e agosto.
Como universo selecionou-se a televisão pública (nacional, regional e
local) privada (nacional e regional) e de acordo com as necessidades pre-
vistas. A partir disto selecionou-se a amostra com a qual se decidiu traba-
lhar durante 15 dias em horários específicos. A execução metodológica foi
construída coletivamente assim como os instrumentos de coleta da infor-
mação, constituídos em uma ficha de observação. Uma vez selecionados os
meios iniciou-se o trabalho com os canais regionais. Como ponto de parti-
da, nos mesmos, revisou-se o tema da política editorial nos programas in-
formativos. De maneira específica, nos noticiários e programas de opinião.
Alguns comentários a respeito. Este interesse pelo tema dos conteú-
dos tem um percurso cujas origens remontam à existência da Comisión
Nacional de Televisión (CNTV) quando se tentou abordá-lo de diferentes
óticas, não sempre as mais exitosas, apesar do esforço que se dedicou a
isto. É o caso do Grupo de Analistas vinculado, nesse momento, à Oficina
de Canales y Calidad del Servicio e ao trabalho da Oficina de conteúdos
desenvolvido posteriormente.
Nesta ocasião trata-se de abordar o tema dos conteúdos audiovisuais
como um elemento central, tendo em vista suas transformações relacio-
nadas com a presença de novas linguagens e ferramentas. Neste sentido é
pertinente destacar o interesse da ANTV por aproximar-se a este tema No
entanto, vale a pena fazer um esclarecimento a respeito. Tal como se esta-
belece na formulação do projeto, este se apresenta mais como um exercício
de observação do que como um observatório.
O interesse por conhecer a realidade dos canais regionais5, e neste
caso desde a sua linha editorial, é outro elemento interessante deste proje-
to. Isto, na medida em que, apesar da sua presença e consumo nas regiões,
estas têm sido descaracterizadas, entre outras razões, em matéria de ratings
devido à mediação que delas se realiza a partir do IBOPE. Com este projeto
é possível conhecer a realidade das regiões desde os conteúdos da grade de
programação. O mesmo acontece com a oferta da televisão por assinatura.
Esta experiência poderia servir como elemento para a montagem de
um observatório de mídia contando com a vontade política da ANTV e o
5 Na Colômbia atualmente existem 9 canais regionais: Tele Antioquia, Tele Caribe, Tele Pacífico, Televi-
sión Regional de Oriente (TRO), Tele Café, Canal Capital, TV 13 y Tele Islas.
400
caminho percorrido através das experiências anteriores. Neste processo o
suporte das universidades, suas faculdades de comunicação e centros de
pesquisa é a chave para o desenvolvimento deste projeto.
402
a recepção e canalização das consultas; queixas e reclamações, o registro
das mesmas; as convocatórias às organizações, centros de estudos com o
objetivo de criar um cenário para debater o desenvolvimento dos meios de
comunicação; a continuidade da apresentação de queixas e reclamações às
autoridades competentes; a convocação de audiências públicas em diferen-
tes regiões do país para avaliar o funcionamento dos meios de radiodifusão
e propor modificações às normas existentes relacionadas com o rádio e a
televisão, entre outros temas8.
Estas funções desenvolveram-se mediante uma série de atividades re-
lacionadas com a canalização e respostas às reclamações recebidas, a rea-
lização de audiências públicas em diferentes regiões do país, a capacitação
nos meios de comunicação, a elaboração de pesquisas e apresentação de
resultados, a elaboração de mesas de trabalho sobre temas de interesse re-
lacionados à adolescência e gênero, diversidade religiosa e cobertura do
delito. Estas estão mencionadas nos diferentes relatórios de gestão. No re-
latório de 2014 assinala-se uma caracterização deste projeto:
Se trata de una Defensoría creada como puente, enlace y vínculo entre
diferentes actores estatales (gobiernos, administraciones, legislaturas) la
sociedad civil (ong, sindicatos, partidos políticos, casas de estudios) y
los distintos actores de la comunicación (legislatarios y comunicadores)
alejados de paradigmas positivistas y penalizadores.
Um aspecto importante do trabalho desenvolvido pela Ouvidoria re-
fere-se à projeção institucional em âmbito nacional e internacional. Como
exemplo deste último aspecto vale a pena destacar a realização, no último
mês de abril do 2016 o Congresso Internacional de Defensorias contando
com a presença de 43 representantes dos cinco continentes convocados pela
Organization of News Ombudsmen (ONO) da qual foi anfitrião a Ouvidoria
e que teve como temas de agenda a concentração midiática, o terrorismo e
a migração9. Compareceram representantes de diferentes organizações da
Ibero América para trocar experiências e desenvolver projetos conjuntos.
No curto espaço de tempo transcorrido desde o encaminhamento
da Defensoria do Público, esta se transformou em referência do trabalho
desenvolvido a partir do diálogo e a interação com os setores públicos e
privados e, de maneira particular, com a cidadania e a televisão, buscando
resolver temas relacionados com os conteúdos, a liberdade de informação
8 Argentina. Leyes. Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual 26552/con prólogo de Cynthia Otta-
viano y Mario E. Lozano. 1ª ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Eudeba: 2014.
9 <http://www.defensadelpublico.gob.ar/es/congreso-ono-primera-vez-argentina>.
403
e o respeito à diferença como condição de existência de uma democracia
comunicacional.
Considerações finais
404
O CDES
Debate público, elites e mídia
Laerson Bruxel
Introdução
405
ral, tem para dar início a um debate público. O foco se dirige, em especial,
ao momento em que atividades do CDES são midiatizadas.
Se sob o aspecto político o Conselho pode ser visto como espaço es-
tratégico para debater certos temas e obter legitimidade ou um certo con-
senso na sociedade para a implementação de projetos de reforma, sob o
ponto de vista da comunicação ele pode ser tomado como um mecanismo
desencadeador de um debate público. A visibilidade que o debate realizado
pelo CDES vier a alcançar na mídia abre possibilidades para que ele tenha
sequência na esfera pública e, mais do que isso, possa incluir mais vozes no
debate do que aquelas já representadas no Conselho.
Inicialmente, será feita uma breve reflexão teórica acerca do desen-
volvimento de debates na esfera pública. O percurso busca entender como
os debates são desencadeados e se, normalmente, eles não acabam se re-
sumindo a um grupo muito restrito, a um debate entre elites. A partir da
análise da visibilidade que os trabalhos do CDES ganharam em jornais de
grande circulação nacional, o trabalho explora o modo como o debate pode
se desenvolver na esfera pública e, em especial, o potencial que tem, a partir
dessa visibilidade, em aumentar o número de vozes a se integrar ao debate
dos temas em pauta. A discussão dos temas da agenda política foi promovi-
da pelo governo. A análise dos dados tenta compreender como esse debate
pode ter sequência na esfera pública a partir do envolvimento da mídia.
Esfera pública
413
Apoiando-se em Elster, Mansbridge (1999) sugere um novo critério
da publicidade na deliberação. Ele se traduziria por uma mistura de pro-
teção e publicidade nos primeiros estágios do processo deliberativo, mas
com o máximo de publicidade viável nos estágios finais. A considerar a
pluralidade de pontos de vista presentes na sociedade, e a necessidade
de encontrar um ponto de convergência que uma comunidade política
democrática requer, não se pode negar o fato de que, de modo geral, as
questões surjam, inicialmente, em grupos pequenos e dispersos. E qual-
quer grupo tem o direito de querer propor uma determinada discussão.
Só que, nesse estágio, o debate ainda não tem grande publicidade, exceto
se o grupo tiver acesso privilegiado a meios que consigam dar ampla pu-
blicidade. O estágio inicial prepara o terreno para que as questões possam
ingressar numa esfera mais ampla. A questão apresentada geralmente
avança com uma argumentação mais qualificada. Ou, muitas vezes, não
encontrando justificação para ser dirigida a um público mais amplo, já se
esgota aí mesmo.
O importante do ponto de vista da legitimidade, sob a ótica da de-
mocracia deliberativa, é que, nos estágios finais, antes de o sistema político
produzir uma decisão final, o tema em debate tenha o máximo de publici-
dade possível. Ele precisa passar por esse processo. É aí que se torna neces-
sário apresentar justificações, e é nesse âmbito que a proposta apresentada
pode também ser aperfeiçoada ainda mais. Ou, por outro lado, pode não
prosperar diante da maior consistência de argumentos contrários, ou, sim-
plesmente, porque foi rejeitada pelo público mais amplo.
O essencial da publicidade não consiste no conhecimento total de
todas as razões e interesses relevantes. Em vez disso, ela se constitui no
modo particular no qual razões são oferecidas para que possam ser co-
municadas aos outros. Estes, por sua vez, podem providenciar respostas a
essas razões. Oferecer uma razão é chamar por uma resposta dos outros.
Se a audiência potencial dessa resposta é irrestrita e geral, tanto a razão
quanto a audiência à qual ela é dirigida podem ser chamadas de “públi-
cas” (Bohman, 1996).
A esse modo particular de tratar as questões de interesse coletivo Bo-
hman chama de concepção dialógica da publicidade. A publicidade, por
si só, não garante o diálogo, mas ela se constitui em suporte para que o
diálogo social seja possível. A pluralidade de pontos de vista presentes
numa sociedade não pode iniciar um processo de diálogo se não houver
414
uma estrutura que permita essa interação. A publicidade assume, em certo
sentido, um caráter provocador do debate. Uma ou várias posições sobre
determinado tema são disponibilizadas e podem, a qualquer momento, ser
confrontadas por outros pontos de vista. Mas esse confronto deve sempre
se dar pela apresentação de outros argumentos – troca pública de razões.
415
Quadro 1: CDES: origem dos conselheiros (exceto o governo) por esfera de atuação
Fonte: KOWARICK, 2004. A esfera social corresponde a entidades religiosas, de gênero e raça,
culturais, de profissionais não diretamente ligados às reivindicações do trabalho, aos movimen-
tos sociais ligados a questões da terra, associação de pesquisadores e estudantes etc. A esfera do
trabalho corresponde aos sindicatos e a centrais, enquanto as catorze personalidades são ma-
joritariamente professores universitários. A esfera empresarial compreende representantes das
indústrias, do setor de serviços, da agricultura, além de duas ONGs empresariais.
Considerações finais
421
Sistemas de Comunicação Governamental
A experiência da Prefeitura de Fortaleza (2005-2012)1
Introdução
1 Texto produzido a partir da dissertação de mestrado da autora (LUZ, 2016) e do artigo “Comunicação
Governamental – Entre a Comunicação Pública e a Política: A Experiência da Prefeitura Municipal de
Fortaleza” (LUZ, 2014), apresentado durante o XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comuni-
cação (Intercom).
2 Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC); doutoranda em Comunicação e In-
formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS) e mestra pelo mes-
mo programa; pesquisadora do Núcleo de Comunicação Pública e Política (NUCOP) e coordenadora
executiva do Observatório da Comunicação Pública (OBCOMP). Coordenou, entre os anos de 2005 a
2012, o setor de Comunicação Social da Prefeitura de Fortaleza. E-mail: [email protected]
423
Estado contemporâneo, em especial, dos poderes executivos (municipal,
estadual ou federal) brasileiros. E analisa, empiricamente, o sistema de co-
municação governamental implementado na Prefeitura Municipal de For-
taleza entre os anos de 2005 e 2012, focalizando, nessa experiência, o que
permite compreender a comunicação governamental como uma política de
comunicação pública.
Para Weber (2011), comunicação pública é a categoria necessária à
análise das ações comunicativas do Estado democrático, que atende aos
seus princípios quando aciona temas de interesse público e fomenta o de-
bate público. Mas, ainda que seja reconhecida pela abordagem de temas de
interesse público, a comunicação governamental é também marcada por
tensionamentos e conflitos entre a defesa do interesse público – seu prin-
cípio normativo nas democracias –, e a promoção de interesses privados,
ligados à política e às disputas eleitorais. Reside aí a importância de obser-
var empiricamente as práticas empreendidas. Ao tempo em que é legítimo
governos darem visibilidade às suas ações, na busca por credibilidade e
imagem pública favorável, é também necessário que observem os limites
éticos e os marcos legais que regulamentam essa comunicação.
No Brasil, a Constituição Federal (Brasil, 2014) prevê que os órgãos da
administração pública direta e indireta, de quaisquer das instâncias de poder,
devem dar publicidade aos seus atos, programas, obras e serviços, bem como
devem realizar campanhas, desde que essas respeitem o caráter educativo,
informativo ou de orientação social. Determina também, em seu capítulo V,
que a ação de comunicação do Estado esteja fundada sobre os princípios da
democratização do acesso às informações, do pluralismo, da multiplicidade
das fontes de informação e da visão pedagógica da comunicação dos órgãos
e entidades públicas. O ato de se comunicar é, portanto, dever e prerrogativa
do Estado; e essa comunicação oficial, um direito dos cidadãos.
426
que, quando identificadas, permitem avaliar a eficiência e qualidade dos
sistemas. Elas estão assim caracterizadas:
1) Estrutura de Comunicação – Define o funcionamento do sistema
de comunicação a partir da identificação dos recursos humanos (gestores,
profissionais e especialistas concursados, nomeados ou terceirizados); dos
recursos físicos (salas, equipamentos, tecnologia, transporte) e dos recur-
sos financeiros (orçamentos e verbas próprias ou gerenciadas, quando há
gestão centralizada);
2) Políticas de Comunicação – Trata-se da definição de princípios, con-
ceitos, perspectivas e objetivos de comunicação na forma de orientações
e normas às práticas. Podem estar organizadas em um documento oficial
(uma publicação) ou serem apresentadas de maneira difusa (no site ofi-
cial, por exemplo); compreender todas as áreas da comunicação ou estar
segmentadas por temas, como: comunicação popular, comunicação digital,
relacionamento com a imprensa, atendimento ao cidadão etc.;
3) Jornalismo – Refere-se às atividades desenvolvidas pelos jornalistas
das estruturas de comunicação do Estado, com o objetivo de divulgar po-
líticas públicas, ações do governo e avaliar sua repercussão. São atividades
que abrangem a produção de notícias, entrevistas, reportagens, artigos e
publicações, a partir de fontes institucionais. Envolve também as ativida-
des de assessoria de imprensa, voltadas ao relacionamento com os veículos
de comunicação, seus profissionais e visando adentrar o espaço midiático.
Seus principais produtos são os avisos de pautas, as notas oficiais, a inter-
mediação de entrevistas com gestores públicos e a divulgação de agendas
e eventos;
4) Relações Públicas – Envolve o planejamento da comunicação ins-
titucional estratégica e as relações com públicos e a opinião pública. As
atividades operacionalizam eventos, cerimoniais e protocolos; prestam as-
sessoria na redação de discursos e pronunciamentos oficiais; desenvolvem
projetos de pesquisa; avaliam a imagem pública e coordenam ações pro-
mocionais;
5) Publicidade e Propaganda – Área responsável pela propaganda do
Estado, é uma das principais estratégias da comunicação governamental.
Agrega as mais sofisticadas técnicas e práticas comunicacionais, sendo a sín-
tese melhor trabalhada do discurso oficial. Ela compreende as campanhas
de utilidade pública, a publicidade institucional e mercadológica (órgãos
públicos com produtos em concorrência no mercado, como os bancos),
427
e a publicidade legal3. A propaganda pode ser constituída por campanhas
completas ou peças isoladas como cartazes, banners, outdoors, jingles etc.
6) Mídias Públicas – Diz respeito às outorgas de radiodifusão (canais
de rádios e televisões) sob a responsabilidade do governo. Respondem à
legislação específica e veiculam notícias, propagandas e programas princi-
palmente pautados por objetivos e temas institucionais;
7) Acervos Multimídia – São repositórios digitais de produtos deriva-
dos das práticas profissionais em seus múltiplos formatos, como galerias
de fotos, vídeos, áudios e publicações impressas em seus formatos digitais,
como livros, jornais, revistas, cartilhas, guias, manuais, entre outros. É um
espaço privilegiado de armazenamento e consulta de informações por par-
te dos meios de comunicação, pesquisadores e da sociedade, disponibiliza-
dos nos sites oficiais dos governos;
8) Redes Sociais Digitais – Plataformas da web como Facebook, Twit-
ter, Youtube, Flickr, Soundcloud, Instagram etc., nas quais o poder público
se faz presente por meio de perfis oficiais, permitindo a comunicação direta
entre instituição e sociedade e oferecendo avaliações instantâneas;
9) Fóruns de Participação – Instrumento dedicado a promover o deba-
te de políticas e temas de interesse público por meio da criação de fóruns,
enquetes, chats, webconferências, entre outros. Visa facilitar o diálogo en-
tre governantes e governados;
10) Ouvidoria – Instrumento de comunicação entre poder público e
sociedade com a função de receber, examinar e encaminhar aos setores
competentes as denúncias, reclamações, sugestões e elogios dos cidadãos.
A ouvidoria deve acompanhar as providências adotadas a fim de forne-
cer resposta ao manifestante. Com os sites oficiais, os governos passaram
a oferecer o serviço também nesses espaços. São as chamadas ouvidorias
eletrônicas.
3 De acordo com a instrução normativa n° 7, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República, as espécies de publicidade do poder executivo federal brasileiro são:
“I - Publicidade Institucional: destina-se a posicionar e fortalecer as instituições, prestar contas de atos,
obras, programas, serviços, metas e resultados das ações do Poder Executivo Federal, com o objetivo de
atender ao princípio da publicidade e de estimular a participação da sociedade no debate, no controle e
na formulação de políticas públicas e de promover o Brasil no exterior;
II - Publicidade de Utilidade Pública: destina-se a divulgar temas de interesse social e apresenta co-
mando de ação objetivo, claro e de fácil entendimento, com o objetivo de informar, educar, orientar,
mobilizar, prevenir ou alertar a população para a adoção de comportamentos que gerem benefícios
individuais e/ou coletivos;
III - Publicidade Mercadológica: destina-se a alavancar vendas ou promover produtos e serviços no
mercado;
IV - Publicidade Legal: destina-se a divulgar balanços, atas, editais, decisões, avisos e outras informa-
ções dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal, com o objetivo de atender a prescrições legais.”
(BRASIL, 2014c).
428
11) Prestação de Contas ou Accountability – Trata-se de disponibili-
zar conteúdos que permitam o acompanhamento das ações e dos procedi-
mentos técnicos, legais e orçamentários sob a responsabilidade do gover-
no, como relatórios de gestão, orçamentos anuais e execução orçamentária,
planos plurianuais, editais, contratos, diários oficiais etc.
O funcionamento desses sistemas de comunicação é viabilizado com
o investimento de grande soma de verbas públicas e envolve, muitas ve-
zes, a contratação de empresas terceirizadas como agências de propaganda,
empresas de pesquisa de opinião, prestadoras de serviços audiovisuais e
de tecnologia da informação, produtoras de eventos, gráficas, editoras, etc.
Ao envolver verbas públicas, esses serviços pressupõem processos legais de
contratação, reforçando o caráter público e patrimonial da comunicação
empreendida pelo Estado.
Esses sistemas podem receber ainda diferentes denominações, de
acordo com a esfera de poder, com sua constituição legal e com os mecanis-
mos jurídicos que os justificam e mantêm. Assim, há sistemas de comuni-
cação governamental na forma de ministérios, secretarias, departamentos,
assessorias, coordenadorias etc.
4 Entre 2005 e 2012, a cidade de Fortaleza foi administrada por Luizianne Lins (PT), eleita para o cargo
em 2004 e reeleita em 2008.
429
áreas: Jornalismo; Publicidade e Propaganda; Comunicação Institucional/
Relações Públicas e Comunicação Popular e Alternativa. A política de co-
municação governamental e todas as ações dela derivadas passaram a ser
centralizadas na CCS, a fim de unificar o discurso e as práticas adotadas
tanto pelo gabinete da prefeita quanto pelas demais secretarias e órgãos
municipais.
O número de profissionais contratados também aumentou significa-
tivamente. No início do governo, em janeiro de 2005, a CCS contava com
pouco mais de uma dezena de pessoas na equipe – entre cargos comissio-
nados para as funções de coordenação, assessoria de imprensa e atividades
administrativas; e alguns jornalistas concursados dedicados às funções de
clipagem de jornais impressos e envio de notícias ou sugestões de pauta
para a mídia. Em dezembro de 2012, o número de profissionais ligados à
CCS saltou para 63, sendo 13 alocados diretamente na Coordenadoria de
Comunicação Social/Gabinete da Prefeita e outros 50 distribuídos entre as
cerca de 30 secretarias, autarquias e fundações integrantes da estrutura da
administração municipal.
O reforço na estrutura de comunicação também se deu através da re-
alização de processos licitatórios para contratação de empresas de eventos;
empresa de monitoramento de mídia (impressa, rádio, TV e internet/redes
sociais) e de agências de publicidade e propaganda, pois os contratos haviam
vencido no final do governo anterior e a nova gestão iniciava sem nenhuma
possibilidade de produzir ou veicular campanhas institucionais até que no-
vos contratos fossem assinados. Além disso, a equipe de fotógrafos foi am-
pliada; foi formada uma equipe de cinegrafistas para criação de um banco
de imagens audiovisual; a política de estágio orientado em comunicação foi
intensificada e foi reforçado o apoio administrativo. Esse crescimento na es-
trutura do sistema de comunicação governamental pode ser visualizado no
Quadro 1, que compara a estrutura encontrada no início do governo (janei-
ro/2005) e aquela em funcionamento no final da gestão (dezembro/2012).
A política de comunicação da Prefeitura de Fortaleza era definida pelo
Regimento Interno da Coordenadoria, um documento que, apesar do seu
caráter de interesse público, não chegou a ser impresso ou divulgado no site
oficial do município. Nele, ao qual apenas os profissionais de comunicação
do governo e os alguns gestores municipais tinham acesso, era possível en-
contrar o organograma e as atribuições de cada área da CCS (Jornalismo;
Publicidade e Propaganda; Comunicação Institucional/Relações Públicas
e Comunicação Popular e Alternativa), além das diretrizes e normas que
430
guiavam as ações de comunicação do governo, tais como a política de jor-
nalismo institucional; os critérios de investimento da verba publicitária; a
política de incentivo ao desenvolvimento da comunicação popular e alter-
nativa na cidade; dentre outras.
As práticas profissionais
431
maior acesso aos os gestores públicos e às informações sobre a administra-
ção. Foram modernizados produtos já existentes, como o boletim diário de
notícias e sugestões de pauta, enviado às redações de TVs, rádios e jornais.
Esse material deixou de ser um extenso caderno impresso e passou a ser en-
viado em formato eletrônico, com textos sucintos e links direcionando para
o site da Prefeitura, onde era possível acessar as informações completas.
O portal da Prefeitura na internet, que foi reformulado no segundo
mandato do governo, também passou a contar com uma área de acesso
exclusivo aos profissionais de imprensa que, mediante cadastro, podiam
acessar um guia de fontes; guia de assessores de comunicação; notas ofi-
ciais; fotos dos eventos oficiais e da cidade em alta resolução; etc. Além
disso, a CCS passou a investir na cobertura própria das ações do governo,
com produção de matérias diárias publicadas no portal e a realização de
um programa de webtv semanal, intitulado “Fortaleza em Contexto”, com a
cobertura das ações do governo.
A área de publicidade e propaganda respondia pelo planejamento,
acompanhamento de criação e veiculação na mídia das campanhas edu-
cativas (sobre temas como trânsito, meio ambiente, direitos humanos etc.);
campanhas de divulgação de serviços (como matrícula escolar, vacinação,
alterações no serviço de transporte público); propaganda das ações gover-
namentais (tais como inaugurações, novos serviços ou obras); publicações
institucionais (a exemplo de livros, cartilhas, guias) e publicidade legal
(como editais de licitação, convocação de servidores etc.).
No que diz respeito à propaganda institucional, o governo passou a
investir com mais intensidade, a partir do segundo mandato (2009 a 2012),
na veiculação regular de programas nos intervalos comerciais de rádios
e televisões locais, dando visibilidade às obras e ações do governo. Essa
ação, denominada de “Comunicação Regular de Governo”, tinha por obje-
tivo manter o governo sempre presente na mídia local, reforçando as ações
do jornalismo institucional e assessoria de imprensa, com vistas a disputar
uma opinião pública favorável. O formato desses programas, que tinham
duração de um minuto, variou ao longo dos anos. No início, utilizava uma
linguagem aproximada ao jornalismo, com presença de repórter e entrevis-
tados, uso de planos mais fechados (no caso dos programas de TV) e infor-
mações de serviços ao final dos VTs ou spots de rádio. Após dois anos neste
formato, a CCS passa a adotar uma linguagem com formato mais próximo
do tradicional varejo publicitário, utilizando a presença de apresentador,
imagens abertas e dinâmicas, e trilha sonora marcante. A mídia comprada
432
privilegiava, nas TVs, os intervalos dos telejornais. As pautas abordadas
eram sempre de caráter factual, ou seja, tratava de ações do dia a dia com
vistas a prestar contas e indicar que o trabalho do governo interferia posi-
tivamente no cotidiano dos cidadãos.
A outra área profissional estava relacionada à Comunicação Institu-
cional e Relações Públicas, responsável pelo planejamento das pesquisas de
opinião e avaliação de governo – realizadas periodicamente; pelo gerencia-
mento do cerimonial e das empresas de eventos; pela redação de discursos
oficiais; dentre outras atividades similares. A Comunicação Institucional
também se encarregou, logo no início do governo, de desenvolver a iden-
tidade visual da administração. Esse trabalho resultou em um padrão nor-
mativo para as fachadas dos prédios públicos, para a sinalização da frota de
veículos oficiais e de táxis da cidade, para os modelos de placas de obras,
para a papelaria oficial etc. Esse padrão de comunicação institucional do
município foi consolidado no “Manual de Sinalização da Gestão”, publica-
ção oficial do governo.
Por fim, o setor reconfigurou a presença da Prefeitura na internet e
redes sociais. Para isso, foi desenvolvido um novo portal da administra-
ção municipal na internet, mais moderno e funcional, que privilegiasse a
oferta dos serviços e a transparência pública5. As notícias da gestão tinham
espaço de destaque e foi criado um acervo multimídia que organizava e dis-
ponibilizava os principais produtos da comunicação do governo tais como
programas de webtv, banco de imagens, publicações impressas em formato
eletrônico para leitura ou download etc.
Também foram definidos critérios para criação e atualização de perfis
institucionais da Prefeitura e secretarias nas principais redes sociais, como
Facebook, Twitter e Youtube. Esses perfis deveriam se ater ao caráter in-
formativo ou educativo, coibir a promoção pessoal dos gestores, manter
a unidade de discurso da Prefeitura e ser atualizado pelos profissionais de
comunicação de cada secretaria ou órgão.
433
feitura de Fortaleza. Orientada pela diretriz de prover o governo de canais
próprios de comunicação que favorecessem o diálogo mais direto entre pre-
feitura e cidadãos, esse setor terminou por desenvolver, também, políticas
de fortalecimento da rede de comunicação popular existente na cidade e de
fomento ao debate público sobre o papel da comunicação governamental.
A partir de 2005, a Prefeitura de Fortaleza passou a publicar e distri-
buir mensalmente o Jornal da Regional, publicação com informações sobre
as ações da prefeitura e os problemas da cidade. A pauta era por bairros
ou região, tendo em vista o caráter local das instâncias administrativas das
Regionais6. Foi criado também o Jornal do Servidor, veículo impresso sem
periodicidade fixa que servia como um dos canais oficiais de diálogo entre
a administração e os funcionários públicos; o Jornal da Saúde e o Jornal da
Educação.
Cartilhas e manuais educativos sobre temas sensíveis como direitos
humanos, educação ambiental, orçamento participativo, dentre outros,
também estavam sob a responsabilidade editorial dessa área da CCS, bem
como o Guia Cultura de Bolso, brochura de periodicidade mensal contendo
as atrações culturais e gratuitas oferecidas pela Prefeitura que se consolidou
como uma das publicações oficiais com maior circulação na cidade.
Outro produto impresso desenvolvido pela CCS foi a Revista Farol,
uma publicação de caráter cultural e antropológico que apostou no formato
de grandes reportagens e textos narrativos próximos da crônica para contar
a cidade através das histórias de vida de seus moradores. A revista buscou
contribuir com o permanente desafio de construção da memória coletiva e
da valorização de patrimônios material e imaterial da cidade, aproximando
diversos grupos sociais que habitavam em Fortaleza. Seus textos, produzi-
dos por jornalistas do quadro funcional da Prefeitura ou convidados exclu-
sivamente para determinada edição, tinham liberdade de abordagem dos
temas cobertos, mesmo que isso significasse uma visão crítica ao trabalho
desenvolvido pelo governo municipal. A Revista Farol teve seis edições7.
Além de veículos impressos, a CCS investiu na criação de programas
audiovisuais e canais próprios para sua veiculação. Foi o caso do já referi-
do “Fortaleza em Contexto”, programa de webtv semanal que trazia a co-
6 O município de Fortaleza é dividido administrativamente em sete Secretarias Executivas Regionais
(SER), cada uma composta por um conjunto de bairros circunvizinhos. A SER é responsável por im-
plementar localmente as políticas públicas de educação, saúde, infraestrutura, assistência social e meio-
-ambiente, etc., além de fazer atendimento direto à população.
7 As edições da Revista Farol e algumas edições das outras publicações aqui referidas como o Guia Cultu-
ra de Bolso, Jornal do Servidor e cartilhas diversas estão disponíveis para leitura em <http://pt.calameo.
com/accounts/360524>. Acesso em 10.Mar.2017.
434
bertura jornalística das ações do governo; e da “TV Sala de Espera”, uma
revista eletrônica produzida pela CCS com veiculação exclusiva nas TVs
e monitores instalados nas salas de espera dos serviços municipais, como
postos de saúde, Centros de Atenção Psicossocial (Caps), secretarias e ór-
gãos municipais com atendimento ao público. O programa da “TV Sala de
Espera” era composto de notícias, entrevistas e reportagens sobre a cidade
de Fortaleza, bem como por campanhas educativas, vídeos institucionais e
documentários da Prefeitura. Ao final do governo, em dezembro de 2012,
a “TV Sala de Espera” contava com 61 pontos de transmissão na cidade.
Em paralelo a essas ações, foi desenvolvida uma política de fortaleci-
mento da comunicação alternativa na cidade, através da interlocução com
comunicadores populares que atuavam em rádios, jornais e sites comuni-
tários sem fins lucrativos. A partir dos resultados do “I Seminário de Co-
municação Popular – A Comunicação que Queremos”, realizado pela CCS
em outubro de 2006, a Prefeitura passou a ofertar cursos de capacitação em
comunicação comunitária (em parceria com universidades e faculdades
locais) e a inserir veículos comunitários e alternativos no plano de mídia
da Prefeitura – antes exclusivamente destinado às grandes emissoras co-
merciais de rádio e televisão. No final do governo, a Prefeitura de Fortaleza
apoiava 23 iniciativas de comunicação popular, entre jornais de bairro, rá-
dios e sites comunitários. Essas iniciativas potencializavam a comunicação
local e auxiliavam na difusão de informações de interesse público produ-
zidas pela Prefeitura, mas incentivando uma linha editorial independente
do discurso oficial.
A relação entre a CCS e os veículos alternativos era normatizada pelo
manual Recomendações para apoio cultural em ações de comunicação popu-
lar e livre em Fortaleza (Fortaleza, 2010), documento que continha os crité-
rios e recomendações para que a Prefeitura efetivasse as parcerias e apoios
financeiros com produtos/veículos populares. Dentre as recomendações,
destacam-se: não servir para fins político-partidários, priorizar os conteú-
dos informativos ou educativos e não veicular conteúdo discriminatório de
classe, raça, etnia, gênero, religião, orientação sexual, geração ou qualquer
outro tipo de discriminação. Além disso, os espaços para anúncios publici-
tários deveriam ocupar até no máximo 40% do conteúdo total da publica-
ção ou programa; o produto deveria priorizar a distribuição gratuita ou a
preço de custo e não ter fins lucrativos.
Outra ação de apoio a veículos de comunicação comunitários foi o
lançamento, em dezembro de 2011, de edital público para financiamen-
435
to de iniciativas na área. O edital de Comunicação Popular e Alternativa,
o primeiro viabilizado com recursos próprios do tesouro por municípios
brasileiros até então, tinha valor total de R$ 160 mil.
Essas iniciativas fizeram da política de comunicação desenvolvida
pela Prefeitura de Fortaleza uma referência para pesquisadores e profis-
sionais da área. Tresca (2008, p. 167), que pesquisou as políticas locais de
fomento à comunicação comunitária nas cidades de Fortaleza (CE), João
Pessoa (PB), Macapá (AM), Porto Alegre (RS) e Recife (PE), afirmou:
[...] somente em Fortaleza (CE) a comunicação é vista e entendida como
um direito. O papel do poder público municipal no fomento à comuni-
cação comunitária tem sido de mediação de recursos e mobilizador de
atores.
Algumas considerações
437
A instituição da cidadania
A comunicação da Defensoria Pública do RS
Introdução
439
que à sua revelia. Dessa forma, a regra de inclusão nesse espaço jurídico-
-dialógico era marcadamente vinculada ao poder econômico para contra-
tar um advogado, mas a Defensoria Pública tem contribuído para mudar
esse quadro.
É preciso salientar que a criação da instituição foi um ato legislativo
que deu a ela uma existência no papel, a partir da qual espera-se que seja
efetivada concretamente. Trata-se de uma instituição pública relativamente
recente da democracia brasileira e que vem sendo implantada lentamente
nos diferentes estados e no Distrito Federal. Mais de vinte e sete anos depois
de sua previsão constitucional, estudos apontam uma carência no número
de defensores públicos em relação à demanda da população brasileira2.
Essa realidade das Defensorias no Brasil coloca a instituição gaúcha
em situação privilegiada. Efetivada por lei em 1994, em 2015 ela estava
presente em 97% das comarcas do estado. Desde 2007, o número de aten-
dimentos feitos pela DPRS cresceu 71%, chegando a 600.885 atendimentos
realizados em 2015. É instigante essa presença cada vez maior, que passa
a ser refletida também pela expansão dos encontros de diferenças e con-
vergências que se desenrolam no espaço interacional que é a instituição.
Identifica-se aqui um processo de experimentação e construção comunica-
cional em curso, que institui novos papéis e sentidos.
Neste estudo, a Defensoria Pública é vista como uma dimensão ins-
titucional particular relacionada aos valores públicos da democracia e dos
direitos humanos. Para sua compreensão, a instituição é tomada em três
perspectivas: normativa, fática e estratégica. A abordagem proposta asso-
cia-se à discussão sobre cidadania, uma vez que sua atuação é em defesa
do direito de todo cidadão a ter direitos. Interessa atentar para as possíveis
consequências do acesso garantido à justiça, da paridade de tratamento
diante da lei e, portanto, do reconhecimento da igualdade para o exercício
da cidadania brasileira. Sabendo que a cidadania é resultado de um proces-
so permanente e ativo de construção e experiências de direitos, a Defenso-
ria Pública traz aspectos que indicam a possibilidade de uma rica análise
no sentido de qualificação da vivência cidadã.
A partir do marco teórico da comunicação pública, é preciso conjugar
tanto um entendimento normativo desta, como ideal e preceito ético, quan-
to os aspectos da verificação de sua facticidade (Esteves, 2011). Em tensio-
2 O diagnóstico feito para o Mapa da Defensoria Pública no Brasil em 2013 aponta que a instituição
estava presente em 28% das comarcas brasileiras. Fonte: MOURA, T. W. [et al.]. Mapa da Defensoria
Pública no Brasil. Brasília: Anadep – Ipea, 2013. Disponível em <http://www.ipea.gov.br/sites/mapa-
defensoria>.
440
namento aos ideais que a relacionam à democracia e ao interesse público,
avaliam-se as práticas concretas de comunicação pública e consideram-se
ainda os acionamentos estratégicos (Weber, 2011), pois ao mesmo tempo
que respondem aos preceitos de publicidade e acessibilidade, mobilizam
também interesses privados.
A partir desses marcos, a seguinte questão de pesquisa se impôs: em
que medida, ao ouvir e dar voz a cidadãos historicamente excluídos da jus-
tiça e desencadear processos de comunicação pública, a Defensoria do Rio
Grande do Sul contribui para a cidadania? Com base nesse questionamento,
o objetivo geral do estudo foi analisar processos de comunicação pública
que incidem na construção da cidadania, a partir da atuação da DPRS e de
sua compreensão como instituição constituída pelas perspectivas normati-
va, fática e estratégica. Esse entendimento encaminha à delimitação dos três
objetivos específicos: (1) analisar a legislação vinculada à Defensoria Públi-
ca buscando evidenciar os ideais da comunicação pública que são acionados
na definição normativa da instituição (perspectiva normativa); (2) identi-
ficar a dinâmica das interações comunicacionais empreendidas, os papéis
instituídos e representados no âmbito das práticas da DPRS (perspectiva
fática); (3) analisar a comunicação estratégica produzida pela DPRS e os
modos com que são acionados os ideais normativos e as experiências ins-
titucionais na apresentação pública da instituição (perspectiva estratégica).
Acredita-se que olhar para a Defensoria do Rio Grande do Sul foi uma
oportunidade de apreender os processos de construção de uma nova ins-
tituição pública que integra um campo relativamente consolidado ou tra-
dicional que é a justiça e de refletir sobre como ela pode relacionar-se com
a construção da cidadania. Destaca-se ainda a originalidade da questão, já
que não foram identificados estudos anteriores da Comunicação dedicados
a este tema3.
Dessa forma, a pesquisa sobre os processos de comunicação da DPRS
foi animada pelo propósito de aplicação teórica do conceito de comunica-
ção pública a partir do estudo de caso deste objeto particular. Assim como
a comunicação pública é conceituada a partir de um referencial ético que
deve ser tensionado com as hipóteses concretas de sua realização, a institui-
ção indica um interessante tensionamento entre seus aspectos normativos
e uma realidade factual que está sendo construída neste momento.
3 Levantamento realizado em 5 de abril de 2015 nos repositórios do Banco de Teses da Capes, Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações e Banco de Dissertações da Sociedade Brasileira de Pesqui-
sadores em Comunicação Política – Compolítica constatou que a Defensoria Pública não havia sido
objeto de nenhum estudo da área de Comunicação até então.
441
Comunicação pública e instituição
442
Dessa forma, se a DPRS está relacionada à defesa de valores como
igualdade, democracia e direitos humanos, é impossível analisá-la sem
considerar a comunicação. A comunicação, entendida a partir das inte-
rações comunicativas (França, 1998), implica o reconhecimento de um
processo contínuo de compartilhamento e construção de significados de
sujeitos em relação – o que coloca a comunicação em posição central para
a compreensão da sociedade.
Sua qualificação em comunicação pública, por sua vez, indica que é o pro-
cesso que operacionaliza critérios como acessibilidade e discutibilidade indis-
pensáveis à democracia. Constituída em torno de temas de interesse público
colocados em circulação por redes (Weber 2007, 2010, 2011), a comunicação
pública é afirmada como medium por excelência de cidadania (Esteves, 2011).
Para a definição de comunicação pública é fundamental o entendi-
mento do que seja o público, como aponta Arendt (2007), aquilo que nos
“inter-essa”, que é capaz de relacionar e manter juntas as pessoas. O con-
ceito aciona, ainda, o debate no âmbito da negociação argumentativa en-
tre cidadãos. Habermas (1984, 2003) descreve publicidade, crítica e debate
como os critérios que constituem a base da comunicação pública que, por
sua vez, vai produzir a opinião pública.
Esteves (2011) analisa esses critérios e, a partir deles, faz suas conside-
rações sobre três princípios da comunicação pública. (1) Princípio do não
fechamento do público (publicidade ou acessibilidade), que indica ampla
liberdade de participação sob a ética do discurso, ou seja, que nenhuma
exclusão seja admitida entre todos aqueles que possuem a competência da
palavra e do agir. (2) Princípio de não fechamento temático da comunicação
pública (discutibilidade), em que a própria seleção dos assuntos torna-se
tarefa da comunicação pública. Por fim, (3) princípio da paridade argumen-
tativa (racionalidade), que postula que a todos os participantes deve ser
reconhecida uma igualdade essencial de estatuto, prevalecendo a força de
validade dos argumentos apresentados.
Esses são os princípios de um entendimento normativo da comunica-
ção pública, seu modelo e preceito ético que, como chama atenção Esteves
(2011), será sempre tensionado pela facticidade. Direcionando-se para o
entendimento operacional das práticas, Weber (2007, 2010, 2011) aborda
a comunicação pública na perspectiva política e privilegia a instauração do
debate público em rede. A autora chama atenção de que a comunicação pú-
blica não se restringe às ações de comunicação dos governos: “a comunica-
ção pública existe quando se constitui como redes, a partir da circulação de
443
temas de interesse público gerados em sistemas de comunicação” (Weber,
2007, p. 23). A autora defende:
[...] a comunicação pública não pode ser determinada, apenas, a partir
de legislação ou estruturas mas é configurada pela circulação de temas
de interesse público, nos modos de debater e repercutir estes temas, sem
controle direto. Trata-se da comunicação pública constituída pela abor-
dagem e circulação de temas vitais à sociedade, ao Estado e à política
(Weber, 2007, p. 24).
Veem-se aqui duas ideias centrais: uma relacionada ao conteúdo da
comunicação pública (temas de interesse público) e outra à sua forma (re-
des). O interesse público é caracterizado pelos princípios de funcionamen-
to do público, como já visto. A ideia de rede ressalta que esses temas são
lançados e reconhecidos por diferentes sistemas de comunicação ligados
a instituições públicas e privadas, formando um emaranhado de fluxos de
informações que perpassa os indivíduos.
As redes de comunicação pública, então, são tomadas por temas sem-
pre tensionados por interesses públicos e privados. Esse é o nível da factici-
dade, indicado por Esteves, em contraste com o nível normativo. A questão
que se coloca é analisar essa realidade buscando ver o que potencializa e o
que barra a realização da comunicação pública ideal, enquanto caracterís-
tica de um Estado democrático.
Em resumo, a conceituação da comunicação pública aqui trabalhada
passa pelo sistema político, entendendo a democracia como pressuposto,
e por uma base teórica que aciona conceitos de espaço público, esfera pú-
blica e a dicotomia público/privado. Considera que a comunicação pública
estabelecedora do debate público é promovida pela circulação de temas de
interesse na esfera pública, inclusive, midiática, incitada por manifestações
sociais, pela sociedade organizada, seus cidadãos e também pelo Estado.
Dessa forma, refere-se à comunicação pública não apenas para identificar
a fala da coisa pública ou governamental, mas antes, do interesse público.
Portanto, a compreensão da comunicação pública articula tanto aspectos
normativos como práticos e tem ainda um inescapável caráter estratégico
a ela associado, já que será marcada por interesses privados na busca por
visibilidade (Weber, 2011).
A estratégia dos atores individuais e coletivos na busca por visibilida-
de e imagem é entendida como resultado da articulação humana (Pérez,
2012), tal qual proposto pelas abordagens da comunicação organizacional
que privilegiam o olhar para a construção e disputa de sentidos que mar-
444
cam as relações organizacionais (Baldissera, 2009). O abandono de uma
concepção funcionalista da comunicação como transmissão em nome de
sua compreensão relacional significa uma outra abordagem para os sujeitos
e suas organizações, centrada na compreensão das interações (Goffman,
2012) e da produção de sentidos, ou seja, dos processos de instituição ou
institucionalização que se dão nesses espaços.
Dessa forma, à instituição é atribuído não apenas um componente
funcional, mas também simbólico (Castoriadis, 1982), que permite enten-
dê-la como sujeito coletivo em ação e atentar para os sentidos apresentados
e representados na interação dos seus atores que se desenrola no nível mais
operacional e intermediário da instituição, próximo à atuação dos sujeitos
(Braga, 2010). Identificada à ação comunicacional, a institucionalização é
entendida como processo fundamental para a construção social da realida-
de (Berger; Luckmann, 1998) e apropriada para a compreensão de espaços
institucionais oficializados, formalmente organizados.
Como instituição, a Defensoria Pública aciona um novo lugar de fala
– e, portanto, de ação, daqueles excluídos até então – e instaura também
novos papéis: o do cidadão atendido e do defensor público. E são os ato-
res, ao tomar parte, que criativamente institucionalizam os sentidos sociais.
Braga destaca a gênese do sentido social das instituições ao aproximá-las
das linguagens: “estas também são instituídas [...] e aquelas também signi-
ficam” (Braga, 2010, p. 44). Ao colocar em comunicação os atores e ao se
comunicar, a instituição ativa o próprio processo de institucionalização e
viabiliza as interações sociais em seu âmbito.
Assim sendo, para pensar uma instituição é necessário pensar nos
sentidos que a constituem, criam identificação e permitem seu reconhe-
cimento. As interações comunicativas são vistas como viabilizadoras dos
sentidos comuns, ou seja, como processo instituinte da instituição, tanto
internamente (na interação com seus sujeitos), como externamente (na in-
teração com outras instituições e sujeitos sociais). Para dentro ou para fora,
a instituição se afirma e se reafirma, conquista espaço e reconhecimento,
comunicando-se. Porque a instituição não pode se instituir por outro pro-
cesso que não seja o da interação comunicacional.
Nesse contexto, para as instituições, comunicar é uma questão de
existência: é estratégia instituinte. O ato de comunicar é (re)criador por
natureza da instituição e essa (re)criação só pode acontecer na interação
comunicativa dos sujeitos. Por isso, a comunicação é reconhecida como
fundante para uma instituição, configurada formalmente como uma orga-
nização pública ou privada.
445
A visada à instituição aqui proposta está direcionada às suas ocorrên-
cias mais formalizadas ou oficializadas, como é o caso da instituição pública
Defensoria, ou de organizações privadas e sociais não governamentais. Ou
seja, assume-se que, em um nível mais formalizado e oficializado (e apenas
aí), as instituições equivalem às organizações – fazendo o destaque necessá-
rio de que nem toda organização pode ser tomada como instituição, embora
toda organização possa, idealmente, acionar processos de institucionaliza-
ção. Por isso, o campo de conhecimento da Comunicação Organizacional
oferece suporte conceitual para a abordagem dos processos comunicacio-
nais que se desenvolvem nos âmbitos institucionais mais formalizados.
448
A análise desses indícios foi feita em termos descritivos e históricos,
buscando caracterizar a comunicação da instituição sob a perspectiva nor-
mativa.
Na perspectiva fática, a coleta de materiais direcionou-se para a iden-
tificação de documentos que, quando articulados a partir da análise descri-
tiva e das situações de interação, permitissem chegar a inferências sobre a
dinâmica de interação conformada na instituição e sobre a delimitação dos
papéis de cidadão assistido e defensor público.
O Quadro 2 agrupa os materiais e os métodos de coleta e análise da
perspectiva fática. Conforme indicado, uma das fontes selecionadas é o Re-
latório Anual da DPRS 2015, documento em que a instituição faz o balanço
de suas atividades no período registrando, além de reunir dados numéricos
do que faz e de sua equipe, informações da forma e tema dos serviços pres-
tados. O segundo documento é a pesquisa aplicada, em 2015, por defen-
sores públicos do Rio Grande do Sul a pessoas atendidas pela instituição5.
5 Trata-se de questionário de uso da DPRS e não realizado especificamente para esta dissertação (a au-
tora assessorou os defensores na formulação do questionário e na tabulação dos resultados). Apesar de
limitada pela amostra não probabilística, não estratificada e pela aplicação definida por acessibilidade
e conveniência, a pesquisa fornece informações que ilustram o perfil dos assistidos e suas percepções
sobre a DPRS.
449
anuais, publicações, rádio web, aplicativo de celular e as redes sociais.
Também foram coletados o documento de criação do Conselho de Co-
municação Social da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do
Sul e o resultado da pesquisa de opinião pública realizada pelo Tribunal
de Contas do Estado do Rio Grande do Sul em 2014, que inclui dado de
percepção da DPRS.
A apreciação desse material foi feita a partir de análise descritiva, com
a tipificação das estratégias indicadas por Weber (2011)6, e também por
meio da análise de conteúdo do jornalismo institucional, analisando temas
e vozes das notícias produzidas pela Assessoria de Comunicação e veicula-
das no site da DPRS. No Quadro 3 estão indicados os materiais e os méto-
dos de coleta e análise da perspectiva estratégica.
6 As estratégias que demarcam a comunicação do Estado são classificadas em seis categorias por Weber
(2011): visibilidade, credibilidade, autonomia, relacionamento direto, propaganda e imagem pública.
450
Perspectiva normativa
451
mando que os mesmos são “dignos de serem vistos e ouvidos” (Arendt,
2007, p. 61). Portanto, presta a privados reconhecimento, relevância e per-
manência públicos. O objetivo fim, ao cabo, é a defesa do interesse público
da garantia da igualdade do cidadão perante os outros, especialmente pela
possibilidade de acesso à justiça.
Certo é que, entre o defensor e seu assistido – que não se trata de cliente ou
ente – há uma instância transcendental: o interesse público de se garantir
o acesso à justiça aos necessitados [...]. Noutras palavras, o que legitima
a atuação da Defensoria não é, em primeiro lugar, o interesse privado do
assistido – ainda que sua tutela jurídica seja o objetivo final da atuação –,
mas o interesse público de garantir a todos, indistintamente, amplo acesso
à justiça, visando à promoção da cidadania, redução das desigualdades
sociais, proteção dos direitos humanos etc. (Costa; Godoy, 2015).
Assim, a inclusão e o acesso à justiça denotam à Defensoria um pa-
pel normativo eminentemente público que ultrapassa o reconhecimento
das questões privadas no campo da justiça e confere a relevância pública
da igualdade de todos enquanto cidadãos diante da lei e do Estado. Aqui,
acentua-se a validade da lei enquanto norma, que se diferencia da ideia de
valor, como apresentado por Joas (2012). É verdade que a norma positivada
na lei pode e muitas vezes está embasada em valores, ou seja, está sediada
na articulação da experiência.
A Defensoria Pública, por exemplo, é uma instituição que tem, pri-
meiramente, a existência no papel, dada pela previsão legal. Sua definição
legislativa reflete o processo histórico de redemocratização do Brasil em
fins da década de 1980 que, por sua vez, se liga a toda a gênese de valores
dos direitos humanos no mundo. A referência expressa à função da insti-
tuição na promoção dos direitos humanos é feita a partir da EC 80 de 2014
e também reflete o posicionamento político da Defensoria desde que foi
criada. Ou seja, a proposição em lei da Defensoria não pode ser vista de
forma a-histórica, apartada da experiência, se se pretende associar capaci-
dade de valor às suas atividades.
Joas (2012, p. 130) define as instituições como expectativas de ação
provocadas pelos agentes individuais e que se tornou obrigatória. Portanto,
o que diz a lei sobre a Defensoria Pública (como indicação de sua obriga-
ção) é a expectativa que os agentes individuais têm a seu respeito e que foi
também por eles provocada. Ou seja, a expectativa reporta-se a experiências
passadas e projeta uma esperança de ação no futuro. Fala-se, pois, da di-
mensão da facticidade, da apropriação dos ideais em condições específicas.
452
Perspectiva fática
453
sa a justiça, um espaço público para a afirmação de seus direitos privados;
e do agente de uma instituição nova no sistema de justiça que corporifica
um Estado que defende e acolhe e não que acusa e julga. São novos papéis,
entendidos como capacidade ou função especializada que articulam novas
expectativas de comportamento (Goffman, 2012).
A partir das informações de perfil dos assistidos fornecidas pela pes-
quisa foi possível caracterizar a fala apresentada no espaço da Defensoria
como, predominantemente, uma fala feminina. A maior participação das
mulheres foi a informação que se destacou como diferencial do público
assistido pela DPRS em relação ao perfil médio do brasileiro: as mulheres
têm ocupado de forma destacada o espaço institucional de afirmação de
direitos instituído pela Defensoria Pública. Relembrando o perfil dos de-
fensores públicos, entre os quais elas também são maioria, percebeu-se que
não apenas a fala, mas também a escuta da instituição é destacadamente
feminina.
O levantamento feito com os assistidos também constatou que a expe-
riência no espaço institucional recebe uma avaliação notadamente positiva
no momento de realização da pesquisa, que é o início do contato com o
ambiente da justiça (depois do atendimento, se houver a abertura de um
processo, transcorrerá todo o trâmite judicial com audiências até a decisão
do juiz). As qualidades da instituição aparecem com mais força do que os
problemas em variadas perguntas e dizem respeito sobretudo à possibilida-
de de falar e ser ouvido (19,6%) e de receber orientação para enfrentar pro-
blemas (21,4%). Ou seja, não são qualidades abstratas ou distantes, elas têm
conexão direta com o cotidiano, com as situações vividas por cada pessoa
que vai narrar seus problemas na Defensoria Pública e, acessando os ser-
viços da justiça, verá os direitos se concretizando a partir dessas situações.
Essa proposição é corroborada pela escolha da resposta que expressa
o resultado esperado pelas pessoas que procuram a Defensoria: ter os di-
reitos respeitados, escolhida por 71,4% das pessoas. Retoma-se aqui, ago-
ra com base na avaliação dos assistidos, a ideia trabalhada na perspectiva
normativa de que a Defensoria Pública trata da acolhida pública de ques-
tões privadas de sujeitos de direito. É justamente essa dimensão pública do
acolhimento oferecido pela Defensoria que aparece na outra qualidade da
instituição mais referenciada nas respostas da pesquisa: a confiança inspi-
rada por ser uma instituição pública (21,4%).
A partir dos resultados da pesquisa, foi possível perceber como preva-
lecente uma postura ativa em relação aos direitos, de pessoas que tomam a
454
iniciativa de buscar a justiça a fim de resolver as questões controversas de
suas vidas. Essa posição ativa é corroborada com a postura afirmativa em
relação à percepção dos direitos em sua vida: 53,6% das pessoas afirmaram
ter todos seus direitos respeitados. Em conjunto com as demais análises,
percebe-se nessa afirmação uma circularidade: é porque têm seus direitos
respeitados e para tê-los respeitados que as pessoas buscam a instituição.
Ou seja, é possível concluir que buscar a Defensoria Pública é uma ação
afirmativa em relação à efetivação dos seus direitos.
Nas situações de interação específicas desencadeadas a partir do espa-
ço institucional da Defensoria, os sujeitos se confrontam com a pergunta:
“O que é que está acontecendo aqui?” (Goffman, 2012, p. 30). As respostas
a essa pergunta – os enquadramentos – estabelecem os sentidos da ativida-
de para os indivíduos. No caso da Defensoria Pública, verificou-se que es-
ses sentidos estão marcadamente relacionados à experiência e enunciação
de direitos – ou seja, à afirmação da cidadania.
A constatação da pauta de questões apresentadas à DPRS relacionadas
sobretudo às questões cíveis e de família e a percepção afirmativa em rela-
ção aos direitos que aparece na pesquisa levam à identificação de um papel
ativo do cidadão. Não se vê aqui o cidadão para quem vale apenas o Códi-
go Penal na posição de réu, mas sim um cidadão que agora é acionador e
enunciador dos seus direitos. Um cidadão que é autor da requisição de seus
direitos, alguém que é acolhido numa instituição pública, que pode falar e
ser ouvido em seus problemas, que recebe informações e é considerado em
uma decisão pública que terá resultado prático em sua vida. É nesses ter-
mos que é possível identificar a atuação institucional da Defensoria Pública
a uma ação afirmativa de cidadania.
Não se trata de um entendimento de cidadania centrado no papel do
Estado, como os críticos atribuem a Marshall (1967), nem direito concedi-
do discricionariamente tal qual privilégio, como percebe Carvalho (2013)
na história brasileira. Sem esquecer que a Defensoria Pública é afinal uma
estrutura estatal, a caracterização do roteiro institucional mostrou mais um
desencadeamento das interações a partir de uma atitude ativa do cidadão.
É a pessoa que decide e procura a justiça por meio da Defensoria, em uma
ação afirmativa em relação a seus direitos, de quem passa a fazer uso de um
aparato jurídico até então pouco ou nada disponível.
O reconhecimento do indivíduo de direitos, embora essencial, não é
suficiente para uma cidadania ampliada (Dagnino, 2004), que só pode ser
construída relacionalmente. Entende-se que todo o processo em busca de
455
afirmação e concretização de direitos do cidadão socialmente excluído ve-
rificado na DPRS caracteriza um espaço institucional rico em termos de
interação comunicacional e capaz de ampliar as experiências de cidadania
dos sujeitos.
Dessa forma, a Defensoria Pública institui um lugar privilegiado de
fala para o cidadão. Há, em seu âmbito institucional, destaque para a capa-
cidade de expressão e enunciação pelos indivíduos – fala-se, portanto, em
viés determinante para o amplo gozo dos direitos civis. Recorrendo à lógica
de fortalecimento da pirâmide de cidadania indicada por Marshall (1967)
e considerando todo o processo brasileiro de marginalização de cidadãos à
parcialidade dos três direitos (civis, políticos e sociais) que Carvalho (2013)
diagnostica, o fortalecimento da experiência civil no âmbito do sistema de
justiça e o acolhimento público do indivíduo em seus direitos feito pela
Defensoria parecem profícuo caminho para a afirmação dos direitos civis
como base para fortalecer os direitos políticos e sociais de um cidadão bra-
sileiro mais pleno.
Perspectiva estratégica
7 A análise dos temas e vozes foi realizada através de construção do mês composto, com representação
das 593 notícias publicadas no site da instituição no ano de 2015.
456
permita superar as dificuldades de estruturação de uma instituição recente
e que não mereceu muitos investimentos ao longo da década de 1990 no
Rio Grande do Sul. O crescimento verificado pela instituição desde os anos
2000 pode ser um indicativo de que essa estratégia trouxe resultados, com
consequência para a maior abrangência dos serviços prestados à população
gaúcha.
No entanto, a constatação de um discurso autocentrado, sem relevan-
te representação de outras vozes que não a da própria instituição ou de
outros atores estatais significa um consequente desprestígio do cidadão, do
público que é o destinatário dos seus serviços. Essa constatação também
apareceu na análise temática. Ao contrário do que se poderia esperar, não
são os serviços prestados à população ou informação para o cidadão os as-
suntos mais noticiados, mas antes as próprias atividades de relacionamento
estatal e de gestão da instituição. É preciso apontar que o discurso marca-
damente autocentrado verificado na DPRS é contraditório, inclusive, com
o princípio de inclusão de vulneráveis que orienta a instituição e justifica a
sua existência.
Uma instituição pública nunca poderá se furtar da necessidade do
relacionamento institucional e político. Mas a compreensão de estraté-
gia como ciência da articulação humana trazida de Pérez (2012) insere a
construção estratégica da organização, necessariamente, num processo de
interação com os variados públicos, com todas as partes envolvidas. Em-
bora o público assistido e a sociedade organizada não tenham suas vozes
projetadas no discurso institucional da DPRS, a sua estratégia comunica-
cional tem sido construída na amplitude do espaço interacional viabilizado
pela instituição – o que significa que o silenciamento dessas vozes passa
também a compor a sua comunicação. É nessa medida que a estratégia de
comunicação constatada na DPRS mostra-se contraditória à sua missão
institucional de promover a inclusão de pessoas socialmente vulneráveis.
A despeito disso, a pesquisa com as pessoas atendidas pela Defensoria
Pública mostrou, quando os cidadãos indicam a sua fonte de informação
sobre a instituição, a constituição de uma rede de comunicação pública
(Weber, 2007) a partir dos relacionamentos pessoais e institucionais do ci-
dadão que o ligam a líderes de opinião e outras instituições do Estado que
fazem a mediação do seu acesso a outros serviços como educação, saúde e
segurança. Neste âmbito, como fonte de informação decisiva para a Defen-
soria, importa mais a experiência das interações cotidianas desse cidadão e
menos a rede de comunicação midiática e mesmo a informação consegui-
457
da diretamente nos veículos de comunicação da DPRS (site, redes sociais,
aplicativo). São as relações pessoais e institucionais desse cidadão que o
ligam à Defensoria, e não as ações de comunicação da Defensoria que che-
gam até ele – ao menos até a sua primeira experiência com a instituição.
A análise das seis estratégias de comunicação (visibilidade, credibi-
lidade, autonomia, relacionamento direto, propaganda e imagem pública,
conforme Weber, 2011) mostrou que aquelas com mais peso para a DPRS
ativam menos essa rede de comunicação pública, que se constitui mais no
nível intermediário da instituição, em torno das relações do cidadão e, ao
contrário, se reportam mais aos sistemas midiáticos e de comunicação da
estrutura do Estado. É o que pode ser depreendido do forte acionamento
verificado da estratégia de visibilidade, enquanto há menos investimento
no relacionamento direto e mesmo na credibilidade. A possibilidade de al-
teração dessas forças está justamente na estratégia de autonomia, que trata
da estruturação da comunicação profissional da DPRS. No entanto, isso
só se efetivará na medida em que a instituição reconhecer que sua gran-
de força comunicativa, enquanto acionadora dos sistemas de comunicação
pública, está num nível abaixo, junto ao acontecimento institucional, nas
interações diretamente relacionadas à realização da sua missão de acolhi-
mento público e inclusão das pessoas excluídas e vulneráveis.
Portanto, para compreender a Defensoria Pública foi fundamental
atentar para os seus processos de comunicação nos três âmbitos da orga-
nização: comunicante, comunicada e falada, como apresenta Baldissera
(2014). Nos procedimentos assumidos neste estudo, significou olhar para
as experiências que têm sido vividas em seu âmbito institucional, para as
narrativas a partir daí constituídas e para as referências construídas em
torno dos valores da cidadania. Norma, facticidade e estratégia se integram
numa complementaridade necessária para um processo vigoroso de ins-
titucionalização. Uma instituição será legitimada, terá sua validade reco-
nhecida, na medida em que tiver sua defesa argumentativa, apresentar suas
narrativas e encarná-las em suas práticas concretas. Para a instituição De-
fensoria Pública isso significa fazer da letra fria da lei experiência vivida e,
da cidadania, valor socialmente instituído.
Considerações finais
459
É nos processos comunicacionais que se verifica a instituição de sen-
tidos de cidadania. São nesses termos que se buscou trabalhar a cidadania
e a sua instituição. Primeiro, para indicar que a cidadania é instituída por
processos de interação comunicacional. Depois, para identificar a Defen-
soria Pública do Rio Grande do Sul como uma instituição relevante para a
ampliação da cidadania. Caracterizada como um espaço institucional rico
em termos de interação comunicacional e capaz de ampliar as experiências
de cidadania dos sujeitos, a Defensoria Pública constitui-se em inovação
no processo histórico brasileiro, instituindo um lugar privilegiado de fala
para o cidadão.
É preciso considerar, no entanto, pensando na situação da instituição
no Brasil, que há experiências mais privilegiadas, como é o caso do Rio
Grande do Sul, onde quase a totalidade das comarcas conta com os serviços
de defensores públicos. No entanto, essa realidade gaúcha não representa a
brasileira, que tem como quadro prevalecente a inexistência da Defensoria
Pública para o cidadão.
460
Jornalismo, assessoria de imprensa
e governo brasileiro na obra
“No Planalto com a Imprensa”
Camila Moreira Cesar
Introdução
461
ses dois domínios de produção de discurso e de visibilidade dos represen-
tantes políticos em diferentes contextos.
A análise de conteúdo dos depoimentos do livro No Planalto com a
Imprensa foi então a abordagem metodológica que permitiu atingir o obje-
tivo geral do estudo aqui sintetizado, isto é, compreender o papel e as ati-
vidades desempenhadas pelos assessores de imprensa do presidente da Re-
pública em diferentes governos. Uma pesquisa bibliográfica exaustiva para
orientar as reflexões sobre a política mediada e suas relações com a esfera
jornalística foi empregada para atingir os objetivos específicos, a saber: i)
compreender as transformações da política a partir do advento dos meios
de comunicação de massa, ii) compreender o contexto de surgimento e o
funcionamento das assessorias de imprensa frente à atividade jornalística,
assim como a relação entre ambas, e iii) identificar a importância e as ins-
tâncias de construção da imagem pública.
Deste modo, a partir de uma perspectiva diacrônica, esta pesquisa
objetivou apresentar, de um lado, o processo de rotinização das práticas e
estratégias de comunicação no âmbito político e, de outro, sua interrelação
com as mutações da paisagem midiática.
A dependência do campo político em relação ao midiático mostra-se
cada vez mais acentuada, pois é nesta esfera de visibilidade que as ações,
gestos, projetos etc. dos representantes políticos ganham – ou não – reper-
cussão pública. Considerando que a atividade política se alicerça sobre um
emaranhado de estratégias voltadas para a aprovação do sujeito político
pelo público, e levando-se em conta as particularidades das representações
midiáticas da democracia no contexto atual, evidencia-se a preocupação
dos agentes da esfera política com essa modalidade de conquista de capital
político e legitimação do poder.
Tangenciando igualmente as transformações da atividade jornalística,
este estudo também buscou discutir as controversas em torno da figura do
assessor de imprensa dentro do campo jornalístico, assim como da atuação
deste profissional dotado de um savoir-faire especializado do universo mi-
diático do “outro lado do balcão”, para retormar a expressão de Francisco
Sant’Anna (2009). Neste sentido, buscou-se compreender em que medida
os jornalistas assessores mantêm em suas rotinas de atividades os princí-
pios éticos e morais norteadores da profissão, sobretudo no que diz respeito
ao tratamento das informações e à maneira como estas serão – ou não –
divulgadas.
462
Comunicação Política e Jornalismo:
desafios e tensões na era da política mediada
463
controle desse sistema. Em um segundo momento, dar-se-ia a recodifica-
ção dos materiais provenientes da primeira etapa e a sua “transformação
em material homogêneo ao conjunto dos materiais da esfera de veiculação,
particularmente do jornalismo” (p. 279). Nessa fase, os agentes políticos
perderiam o controle sobre os materiais para outro grupo social, os quais
organizam a forma de exibição conforme critérios e idiossincrasias concer-
nentes ao campo midiático, que orientam as rotinas produtivas. Sob essa
perspectiva, somente na terceira fase é que entraria o público, instância na
qual se dá “a recepção e o consumo da esfera de visibilidade” (p. 280), e que
encontra nesses quadros interpretativos resultantes do processo de media-
ção uma das bases constituintes do formação da imagem pública.
Porém, ao mesmo tempo em que a mídia facilitou a prática política
moderna, também a tornou mais vulnerável a riscos e problemas: a partir
dela, o campo político perde, em certa medida, o controle sobre as men-
sagens produzidas por ele, uma vez que elas podem ser apreendidas e de-
preendidas de maneiras completamente distintas pelos públicos (audiência
dos media). Deste modo, “a incapacidade de controlar o fenômeno da vi-
sibilidade completamente é uma fonte permanente de problemas para os
líderes políticos” (Thompson, 1998, p. 127), o que os obriga a monitorar
suas ações e expressões em permanência, de forma que qualquer gafe ou
deslize pode acarretar consequências desastrosas.
É nesta direção que orientamos a condução desta pesquisa, colocando
em discussão o papel e as rotinas de atividade dos assessores de imprensa
da Presidência em um contexto em que a superabundância de informações
e a desmistificação de líderes políticos podem ser concebidos como um
progresso do ponto de vista democrático, mas também consistem, eventu-
almente, em um problema a ser enfrentado e administrado pelos agentes
do campo político (Miguel, 2002).
466
Assessoria de Imprensa e Jornalismo: alguns impasses profissionais
467
dades impostas pela ausência de regulamentação da profissão, associada ao
interesse do governo, estimulou a situação do duplo-emprego desses atores,
que atuavam também como funcionários públicos. Essa etapa consiste em
um dos principais motivos para que o exercício da atividade de assessoria de
imprensa no âmbito das organizações públicas fosse visto com ar de descon-
fiança e até mesmo preconceito por parte dos colegas repórteres de veículo.
A generalização da atividade no Brasil só ocorre a partir dos anos 60,
quando da criação da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP) du-
rante o governo Médici3. O órgão utilizava jornalistas em cargos de asses-
sores de imprensa e tinha como principal função propagandear o governo
e exercer a censura. A produção e envio de conteúdo propagandista e des-
provido de interesse público à imprensa se deu até a redemocratização, fato
que contribuiu para a emergência do estigma de “chapa branca” criado em
relação ao trabalho desenvolvido pelos assessores do período (Sartor, 2011).
Em 1984, ocorre o I Encontro Nacional dos Jornalistas em Assessoria
de Imprensa (Enjai), no qual cerca de 200 jornalistas se reuniram e deram
início ao processo de construção de um modelo originalmente brasileiro.
Segundo Duarte (2011), neste primeiro momento, as discussões se deram
em torno da ocupação do mercado então emergente exclusivamente por
jornalistas e da busca de uma definição sobre as especificidades das práti-
cas. Os resultados vieram apenas em 1986, quando a Fenaj lança o Manual
de Assessoria de Imprensa, que credita aos jornalistas a exclusividade sobre
a atividade de AI.
No entanto, vale ressaltar que o modelo jornalístico não foi adotado
em totalidade pelas organizações que utilizam os serviços de assessoria de
imprensa no país. Muitas vezes, os materiais informativos oriundos das AIs
se “apropriam da estética e do estilo jornalístico, mas neles prevalece uma
narrativa de fonte única” (Sant’anna, 2009, p. 223), fato que vai de encontro
a um dos princípios básicos da atividade jornalística: a pluralidade de fon-
tes e de visões diversas acerca dos acontecimentos.
De maneira geral, pode-se dizer que a assessoria de imprensa desen-
volve o papel de mediação entre as fontes de notícias e os profissionais do
campo jornalístico, assumindo, portanto, um papel estratégico dentro das
organizações (Sartor, 2011). Assim, a presença de jornalistas junto às fon-
tes maximiza o potencial de influência na agenda dos media, uma vez que
esses profissionais conhecem as necessidades e as rotinas concernentes à
atividade. Sobre isso, Duarte (2011) ressalta que a atuação competente de
3 Presidente de 1969 à 1974, durante a ditadura civil-militar (1964-1985).
468
jornalistas no segmento de comunicação institucional contribuiu para o es-
tabelecimento de padrões éticos e técnicos de comportamento que permi-
tiram a manutenção do título de jornalista ao profissional com esta forma-
ção, mas atuante em um papel diferente daquele previsto para a profissão.
Assim, um bom assessor, da mesma forma que um bom repórter, deve se
esmerar para a apuração e veiculação das informações corretas, sendo ele o
responsável pelas notícias veiculadas sobre a organização, bem como pela
sua repercussão junto à imprensa, como salienta Mafei (2004).
Mas embora partilhem do conhecimento da comunidade jornalística,
não se pode perder de vista que os públicos e os interesses do assessor de
imprensa e do jornalista de redação são diferentes: enquanto este deve se
preocupar com a dimensão pública da informação, aquele busca atrair a
atenção de outros jornalistas, com vistas a criar uma impressão positiva da
empresa/instituição em que trabalha.
Em que pesem essas divergências, Weber e Coelho (2011) encontram
pontos comuns às práticas nesses dois âmbitos profissionais. As autoras
citam, por exemplo, a ausência de diversificação das fontes e do contradi-
tório como elementos que diferenciam o jornalismo institucional – como
propomos tratar essa especialidade comunicacional desenvolvida nas AIs
– do jornalismo, mas que, no entanto, não tiram da comunicação estratégi-
ca das organizações, executada pelas assessorias de imprensa, a função de
jornalismo. Segundo as pesquisadoras, situações equivalentes podem ser
encontradas nas organizações jornalísticas que possuem áreas especializa-
das (como economia e tecnologia, por exemplo), nas quais a pluralidade
de fontes dificilmente existe. Quanto à ausência do contraditório, em que é
levantada a não divulgação de informações negativas à imagem da institui-
ção, poder-se-ia dizer que, da mesma maneira, não se espera que uma em-
presa jornalística divulgue informações negativas a respeito dela mesma.
Atuando como agendadores e utilizando a redação jornalística como
linguagem, essas “mídias das fontes”, como propõe Sant’Anna (2009), vi-
sam interferir e ir ao encontro do processo de seleção temática operado
pela imprensa comercial, de modo a se inserirem na agenda midiática e,
assim, chegarem ao público, ao mesmo tempo audiência e eleitorado. O
autor também explica que são diversos os perfis de profissionais que atuam
como agendadores junto às fontes. No quadro deste estudo, por exemplo,
interessamo-nos pelos assessores de imprensa da Presidência da República,
atentando-se, assim, para as características dos profissionais atuantes no
serviço público.
469
A este respeito, Benetti e Moreira (2005) explicam que existem dois
campos de atuação do jornalismo no serviço público, os quais se encon-
tram normalmente interrelacionados: as assessorias de imprensa e veículos
públicos (jornais, sites, rádios, TVs) e agências de notícias mantidos pelos
poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, pelo Ministério Público e pelas
universidades públicas. Não raro, esses órgãos possuem estruturas reduzi-
das que simulam e servem de apoio às tradicionais redações e fazem uso
dos padrões e linguagens jornalísticos para dar forma aos conteúdos pro-
duzidos. Assim, muito além do simples press-release oficial divulgado no
período militar, as fontes contam hoje com equipes altamente qualificadas
e responsáveis pela coleta, seleção, tratamento editorial e respectiva difusão
dos conteúdos informativos por elas produzidos.
Diante desse novo paradigma jornalístico, em que é na fonte que ocor-
re a seleção e produção dos conteúdos informativos, muitas vezes pron-
tos a serem publicados na imprensa tradicional, frequentemente emergem
questionamentos acerca dos riscos de manipulação e em torno da própria
figura do profissional responsável. No entanto, este quadro parece estar em
gradativa mudança, e a adoção das assessorias de imprensa no âmbito das
organizações institui-se como um facilitador do fluxo informativo entre
aquela e a sociedade.
Reconhecendo-se a importância da conquista de visibilidade como
forma de obter existência pública e social, as assessorias de imprensa atuam
em uma lógica dupla: de um lado, necessitam perpassar os filtros do campo
jornalístico de modo a atrair a atenção dos media para a fonte assessorada;
de outro, necessitam da aceitação desta pelo público, uma vez que a sua
legitimidade e credibilidade dependem da aprovação dessa instância. Para
a política, a adesão aos novos recursos comunicativos se tornou indispen-
sável, como veremos nas páginas seguintes onde apresentaremos os resul-
tados desta pesquisa.
Procedimentos metodológicos
Resultados da análise
Considerações finais
481
Sistema Central de Mídia
Conglomerados de comunicação no Brasil1
James Görgen
Introdução
1 Este artigo é baseado na dissertação de mesmo título defendida pelo autor em 2009 como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Infor-
mação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2 Por falta de financiamento para sua manutenção, o website que mantinha a base de dados do pro-
jeto Donos da Mídia foi descontinuado em meados de 2015 restando apenas um verbete de refe-
rência na Wikipédia em língua portuguesa. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Donos_
da_M%C3%ADdia>. Acesso em: 01 set 2016.
483
quantitativa dos dados disponíveis permitiu que o estudo identificasse dez
conglomerados que ocupam tal posição hegemônica. Eles controlam, di-
reta ou indiretamente, 12 redes de televisão, 9 de rádio e 1.310 veículos de
comunicação, 14% da base identificada pela pesquisa.
Mais do que desvendar e analisar sua estrutura, suas ramificações e
o controle que exercem sobre o panorama político do Brasil interessava
entender por que as mudanças de paradigma tecnológico e de modelo de
negócios experimentadas desde o início da digitalização dos meios de co-
municação de massa e do advento da Internet, a partir da década 1990,
manteve este sistema praticamente intocado do ponto de vista comercial e
regulatório.
Do ponto de vista teórico, também foi necessário estabelecer um marco
conceitual híbrido uma vez que o objeto da pesquisa se revelou imbricado
em dois campos diferentes de estudo: a economia política da comunicação
e a comunicação e política. Enquanto com o primeiro ferramental foi possí-
vel analisar as relações econômicas e o arcabouço regulatório e das políticas
públicas de comunicação em que o setor da mídia está ancorado, a segunda
abordagem permitiu estabelecer categorias complementares à estrutura do
sistema, mais centradas nas características institucionais e de relação política
entre as diferentes agremiações e famílias que dirigem estes grupos.
Passada quase uma década, e estabelecida a competição com os novos
conglomerados internacionais de um sistema paralelo – o dos provedores
de conteúdo da Internet representados pelas redes de social media e pelos
mercados de aplicativos para telefones celulares e smartvs – torna-se ain-
da mais desafiador para o pesquisador perceber que esse cenário pouco se
transformou e os grupos nacionais de comunicação ainda não foram fun-
damentalmente abalados pela pressão que chega do exterior.
Sustentar que o Brasil possui um SCM não seria possível sem a ob-
servação da trajetória de organização e desenvolvimento das empresas de
comunicação no país. Analisando a origem dessa atividade econômica no
país, e a relação umbilical entre mídia e Estado, percebem-se evidências de
que determinados conglomerados ocupam um lugar central no sistema de
comunicação porque foram asseguradas condições para que se desenvol-
vessem.
484
Século XIX: os áulicos e os constitucionalistas
485
como empreendimento individual, o que leva a uma redução do número
de títulos. Aflorava neste momento um ensaio do tipo de concentração que
mais tarde veio a tornar-se a marca deste mercado. Passam a dominar os
mercados do Rio de Janeiro e de São Paulo nomes de diários e de famílias
que até hoje se encontram em evidência: O Estado de S.Paulo (Júlio Mes-
quita, a partir de 1895), Correio do Povo (Caldas Júnior, a partir de 1895),
A Noite e O Globo (Irineu Marinho, a partir de 1911) e Jornal do Brasil5
(Ernesto Pereira Carneiro, a partir de 1919).
486
A entrada da televisão no Brasil se dá, portanto, neste contexto regu-
lamentar, sem qualquer limite ou regulação com exceção do veto à proprie-
dade de empresas jornalísticas e de radiodifusão por estrangeiros e pessoas
jurídicas, curiosamente excetuados os partidos políticos nacionais.
7 O texto integral determina: “Art. 12. Cada entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar
serviço de radiodifusão, em todo o país, dentro dos seguintes limites: I) Estações radiodifusoras de som:
a – Locais: Ondas médias – 4 Frequência modulada – 6 b - Regionais: Ondas médias – 3 Ondas tropi-
cais – 3 sendo no máximo 2 por Estados c - Nacionais: Ondas médias - 2 Ondas curtas – 2 II) Estações
radiodifusoras de som e imagem – 10 em todo território nacional, sendo no máximo 5 em VHF e 2 por
Estado.”
8 Para conhecer como se estruturou o esquema que garantiu a transferência de seis milhões de dólares do
grupo norte-americano Time-Life para a família Marinho ver Herz (1986).
9 As prefeituras municipais também foram de utilidade extrema para a implantação das redes nacionais
uma vez que garantiram a infra-estrutura mínima para retransmissão do sinal da emissora central nas
praças onde não havia interesse econômico em um negócio próprio por parte dos grupos afiliados.
487
cabeças-de-rede e seus afiliados, dando origem ao fenômeno batizado
de “coronelismo eletrônico” (Herz; Osório; Görgen, 2002).
O suporte do Estado brasileiro não para neste primeiro impulso. Além
da política de financiamento por meio da publicidade oficial, se mostra
fundamental o apoio dos governos estaduais e municipais na interiorização
do sinal de televisão. Como mostra Hamilton Almeida Filho, citado por
Bolaño (2004), o grupo de Roberto Marinho não foi só o maior beneficiado
mas também o principal impulsionador da política de afiliação da rede10,
que até hoje funciona praticamente nos mesmos moldes.
Para manter a fidelidade à cabeça-de-rede nas principais praças, e ga-
rantir os resultados financeiros, as famílias dos grupos afiliados tratavam
de criar o seu modelo de afiliação intrarregional, usando influência junto
ao governo militar para receber concessões de rádio e TV e entregá-las a
parentes e amigos.
É importante destacar aqui a importância do desenvolvimento do se-
tor estatal de telecomunicações para o estabelecimento destas redes priva-
das de abrangência nacional. Era o sistema de transmissão de microondas
da estatal Embratel11 que lançava no espaço o sinal das televisões localiza-
das no eixo Rio-São Paulo, permitindo que os grupos regionais não pre-
cisassem investir em programação própria, passando a reproduzir quase
integralmente a produção audiovisual da geradora.
10 Até 1980, existiam apenas duas redes de caráter nacional: Globo e Tupi (BOLAÑO, 2004, p. 139). A
segunda possuía emissoras próprias em diversas cidades, a primeira optou pela expansão via rede de
afiliados para se viabilizar economicamente.
11 O sistema estatal de telecomunicações levou ao ar a primeira transmissão em rede do Jornal Nacional,
da Rede Globo, em 1969.
12 A Constituição de 1988 criou o dispositivo através do qual o Ministério das Comunicações passou a
dividir com o Poder Legislativo a responsabilidade final pela aprovação de concessões e permissões de
emissoras de rádio e TV.
488
aliados que votassem na Constituinte pela aprovação da extensão de seu
mandato por mais um ano13.
No Congresso Nacional, no mesmo período, era travada uma guerra
surda entre setores do empresariado de mídia e da sociedade civil. O alvo
da disputa era o capítulo da Comunicação Social na Constituição Federal
que estava sendo redigida.
O saldo desta queda de braço foram cinco artigos para a comunica-
ção social. Entre outras novidades, a Constituição abordou temas inéditos
como programação regional do rádio e da TV e produção independente,
restrições à publicidade comercial, veto à criação de monopólios e oligo-
pólios, a instituição do sistema público de comunicação e a criação de um
Conselho de Comunicação Social, órgão vinculado ao Congresso Nacio-
nal. O Poder Legislativo passou a dividir com o Executivo a responsabili-
dade pela política de concessões e permissões de outorgas.
No final dos anos 80, a primeira eleição direta para presidente em dé-
cadas trouxe os meios de comunicação para a centralidade do embate tra-
vado entre forças políticas que polarizavam a arena pública. Em menos de
cinco anos, estava configurado o protagonismo dos meios de comunicação
na definição dos destinos políticos e econômicos do Brasil em tempos de-
mocráticos.
Mapeamentos da Concentração
13 Esse expediente, que ficou conhecido como a “farra das concessões”, foi denunciado publicamente pela
Federação Nacional dos Jornalistas em 1988.
489
rádio também se encontravam nos três estados daquela região. Em com-
pensação, mais de 70% dos aparelhos de TV estavam ligados nos quatro
estados do Sudeste, região que detinha o maior nível de produção e pro-
gramação.
No segmento de televisão, em 1970 os principais grupos já demons-
travam um razoável predomínio sobre o controle das principais emissoras
do País. Em 1972, dos 3.952 municípios existentes no país, 2.469 (62,5%)
recebiam os sinais de televisão, sendo que a base de receptores girava entre
6,5 milhões e 9 milhões. A população potencialmente atendida era de 75
milhões de habitantes (71,4% da população) e quase 90% dos lares pode-
riam captar as programações disponíveis.
Poucos anos depois, a situação havia mudado consideravelmente. Por
iniciativa de pesquisadores, o primeiro mapeamento sobre a composição
dos sistemas e mercados de comunicação social no Brasil foi conduzido
pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Comunicação (Abe-
pec) entre 1978 e 1979 e pode ser conhecido em Capparelli (1982). Naquele
momento, quando existiam não mais do que 15 milhões de receptores de
televisão em funcionamento, a concentração do setor já estava cristaliza-
da. As geradoras de TV, que praticamente haviam dobrado de número em
menos de uma década. As três maiores redes (Globo, Bandeirantes e SBT)
controlavam direta ou indiretamente 78% das emissoras. Passados mais al-
guns anos, o quadro continuava evoluindo. Bolaño (2004) aponta a existên-
cia de 130 canais, em 1983, e 133, em 1984.
Até 1994 os levantamentos se davam de uma forma isolada por servi-
ço. Ou seja, identificava-se apenas a vinculação das emissoras de televisão e
quantificava-se o número de rádios. Quantificava-se a concentração regio-
nal e horizontal, mas não a concentração vertical e a propriedade cruzada.
Em 1994, Stadnik traçou a coluna vertebral do sistema de comunicação
brasileiro, revelando pela primeira vez a total extensão do “enraizamento
das redes nacionais de televisão nos sistemas de comunicação, através de
suas vinculações com grupos afiliados regionais e o conjunto de seus veícu-
los de comunicação” (Stadnik, 1994, p. 4).
Oito anos depois, em 2002, o Instituto de Estudos e Pesquisas em Co-
municação (Epcom), em Porto Alegre, atualizou o trabalho de Stadnik e
condensou todos os dados relativos ao primeiro mapeamento. Como as
metodologias foram semelhantes, tornou-se possível constatar o cresci-
mento do sistema de mídia em termos quantitativos.
490
Entre 1998 e 2008, o Instituto de Estudos e Pesquisas em Comuni-
cação (EPCOM)14, idealizado e mantido pelo jornalista Daniel Herz, ma-
peou e estudou a configuração dos sistemas e mercados de comunicação do
ponto-de-vista de sua estrutura econômica. O projeto concretizou, em uma
base de dados digital, a vinculação entre as chamadas cabeças-de-rede15 das
TVs comerciais, suas emissoras regionais afiliadas e as emissoras de rádio
e empresas jornalísticas controladas pelos mesmos grupos empresariais.
A nova fase, iniciada em 2006 e concluída no segundo semestre de 2008,
ampliou a investigação para os segmentos de revistas e TV por assinatura.
Batizado de Projeto Donos da Mídia16, o cruzamento de dados empíricos
trouxe à tona o mais completo diagnóstico acerca dos sistemas de mídia
produzido no País, permitindo dimensionar o verdadeiro alcance dos sis-
tema brasileiro de mídia.
Em suas diversas fases, a pesquisa resultou na caracterização da estru-
tura e na dinâmica de funcionamento deste sistema. Como Herz, Osório e
Görgen descrevem aqui a partir dos resultados disponíveis em 2002:
As seis redes privadas nacionais aglutinam 140 grupos afiliados, os prin-
cipais de cada região, e abrangem um total de 667 veículos, entre emis-
soras de TV e de rádio e jornais. Os grupos cabeça-de-rede, que geram a
programação de televisão, buscam nos grupos afiliados sustentação nas
regiões e amplitude de presença no mercado. Em troca, dão fôlego eco-
nômico e uma face institucional a projetos empresariais e políticos re-
gionais. Por meio dos grupos afiliados, as redes geram um vasto campo
de influência, em escala de massas, que se capilariza por 294 emissoras
de TV em VHF (90% do total de emissoras do país), 15 em UHF, 122
emissoras de rádio AM, 184 de FM e 2 de rádio em Onda Tropical (OT),
além de 50 jornais.
Os 667 veículos ligados às seis redes privadas nacionais são a base de um
sistema de poder econômico e político que se ramifica por todo o Brasil
e se enraiza fortemente nas regiões. Como a televisão, de um modo ge-
ral, é o veículo que assegura a maior parcela de faturamento dos grupos
afiliados e é ela que, geralmente, alavanca a audiência e a publicidade
dos demais veículos do grupo – como jornais e emissoras de rádio AM e
FM – estabelece-se uma dependência orgânica dos afiliados em relação
aos grupos cabeça-de-rede (Herz; Osório; Görgen, 2002, p. 17, grifo dos
autores).
14 Criado pelo jornalista Daniel Herz em 1998, o EPCOM funcionou em Porto Alegre (RS) até julho de
2008.
15 O termo cabeça-de-rede é empregado aqui na forma usualmente definida pelo mercado, designando a
emissora de TV que gera a programação distribuída pelas emissoras regionais a ela associadas.
16 Disponível em: <http://www.donosdamidia.com.br>.
491
Para embasar a análise presente do SCM, que tem como referência
a atualização dos dados do projeto do Epcom (coordenada pelo autor a
partir de 2006 e finalizada em 2008), pode-se afirmar que conclusões im-
portantes para a pesquisa sobre a configuração atual do SCM brasileiro são
retiradas das duas pesquisas. Primeiramente, comprovou-se que o controle
da estrutura nacional das redes de TV era mais político do que econômico,
uma vez que as empresas líderes, geradoras de conteúdo para as afiliadas,
detinham diretamente pouco mais de 10% do total de veículos do sistema,
sendo que suas operações próprias atuavam em quatro a seis estados da fe-
deração. O estudo de Stadnik também mostrou a centralização e o bloqueio
à expansão geográfica exercido pelos principais grupos. Dos 121 afiliados
regionais às quatro principais redes em 1994, apenas cinco não estavam
confinados a seu estado de origem.
Já a pesquisa do Epcom de 2002 revelou também que o predomínio
da Rede Globo tem a ver não apenas com a quantidade de veículos asso-
ciados ao conglomerado, mas com a diversidade dos suportes de mídia
em que os mesmos atuam. Ou seja, os grupos ligados ao grupo carioca
controlavam não só mais TVs como mais rádios e jornais. Eram também
os que ocupavam posições dominantes nos mercados regionais. Consi-
derando que o controle de jornais impressos é um diferencial importante
em termos de disputa de influência junto à opinião pública, a Globo tinha
entre seus associados 24 dos 50 diários vinculados a todos os grupos afi-
liados em 2002.
Em termos de receita, a distribuição do bolo publicitário se dava em
ordem direta ao controle direto e indireto de veículos por parte das redes.
As líderes em faturamento em 1994 – Globo e SBT – eram também as orga-
nizações com maior número de emissoras e jornais vinculados. E na ordem
inversa às regiões do País. Onde havia menos investimentos no mercado
televisivo – Norte e Nordeste – existia mais veículos ligados às quatro redes
nacionais estudadas por Stadnik.
O trabalho trouxe novas evidências sobre a questão do controle de
veículos por detentores de cargos eletivos (os “coronéis eletrônicos”), reve-
lando que a maior parte dos principais “caciques” do Congresso Nacional
detinham grupos afiliados à Rede Globo. Uma novidade foi a constatação
da existência da dupla afiliação, grupos regionais que mantinham contrato
para retransmissão da programação de mais de uma rede nacional.
492
Configuração do sistema
493
adaptar suas demandas e agendas a fim de usufruir indiretamente de algu-
ma influência das dimensões simbólica e histórica do conglomerado.
Para analisar o sistema de comunicação social no Brasil, os dados so-
bre os veículos, grupos e redes de mídia foram organizados em duas partes.
Primeiramente, foram feitas consultas ao sítio do Projeto Donos da Mídia.
De lá, foram extraídos diversos dados brutos, como a quantidade de veí-
culos existentes no País, sua natureza e vinculação a grupos regionais de
comunicação e/ou redes nacionais de rádio ou televisão. A partir dessas in-
formações, foi produzida uma análise descritiva para a construção do perfil
das principais redes de rádio e TV e uma identificação dos grupos a elas
relacionados, o que revelou a estrutura e o alcance dos sistemas de mídia
no Brasil. Esta análise identificará quais conglomerados se enquadram no
conceito de Sistema Central de Mídia apresentado na primeira parte desta
dissertação.
494
De acordo com os dados do Projeto Donos da Mídia, em 2009 o sis-
tema brasileiro de comunicação social era composto por 19.473 veículos18.
Aqui estão computadas as 9.996 retransmissoras de televisão (RTVs), uma
vez que parte delas atua como geradora, autorizada pelo Estado a inserir
programação local. Da mesma forma, foram registrados os 432 veículos
que carecem de identificação do município onde estão sediados. Todos são
rádios comunitárias. Uma vez que as mesmas não compõem conglomera-
dos ou grupos de comunicação optou-se apenas por citar esta lacuna.
18 Obviamente, o Brasil possui um número maior de veículos, principalmente se for considerado o am-
biente da internet. O Projeto Donos da Mídia, porém, opta por identificar e analisar somente aqueles
veículos controlados por pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e cujos conteúdos são dis-
tribuídos periodicamente ao público de forma massiva. Os portais dos grandes grupos de comunicação
também não foram incluídos na pesquisa por reproduzirem em âmbito virtual
19 O número de veículos controlado por uma rede de TV pode se cruzar com os de uma rede de rádio, e
vice-versa, quando um mesmo grupo nacional controla estas redes. É o caso, por exemplo, das redes dos
grupos Globo e Bandeirantes.
495
em dois estados. Tanto no caso do rádio quanto da TV, o controle se dá de
forma direta (cabeça-de-rede detém a propriedade) ou indireta (veículo
pertence a um grupo afiliado), por meio de grupos regionais ou nacionais.
A maior parte das redes pertence aos principais conglomerados nacionais
privados ou a igrejas católica e neopentecostais. De uma forma geral, os
maiores players controlam simultaneamente uma rede de TV, uma de rá-
dio AM e outra de rádio FM. Este é o caso, por exemplo, das Organizações
Globo (RJ) e do Grupo Bandeirantes (SP). Ou de grupos religiosos como o
Sistema Adventista de Comunicação (SP).
Das 54 redes, 40 (75%) estão em São Paulo. Apenas seis possuem sede
no Rio de Janeiro. O estado do Ceará abriga duas redes de televisão, uma
delas ligada a um grupo regional afiliado da Rede Globo. Cada uma das seis
redes restantes, estão espalhadas no Pará, Distrito Federal, Rio Grande do
Sul, Paraná, Amazonas e Minas Gerais. Em termos de propriedade, o Gru-
po Bandeirantes é o maior controlador de redes. São ao todo cinco: duas de
TV, uma de rádio AM e duas de FM. A Igreja Universal do Reino de Deus
e as Organizações Globo vêm logo em seguida, com quatro redes cada.
Enquanto a primeira possui três redes de TV e uma de rádio, o conglome-
rado carioca possui uma de TV, duas AM e uma FM. Em outras palavras,
três dos maiores conglomerados de mídia no País controlam cerca de um
quarto das redes nacionais de rádio e TV.
Uma análise meramente quantitativa não permite entender tudo que
está por trás dessa realidade. A diferença surge quando se olha não apenas
para o local da sede das redes, mas para outros elementos que as compõem.
O principal deles é o número de grupos regionais afiliados. Isoladamente,
redes como SBT (37), Globo (35) e Record (30) relacionam-se com pelo
menos 30 conjuntos de entidades cada uma. Ou seja, as três somadas agre-
gam 102 grupos, mais da metade do total de 183 existentes no País. Acres-
centando os dados de Bandeirantes (22) e Rede TV! (21) chega-se ao per-
centual de 80% dos grupos ligados às cinco maiores redes comerciais. Por
consequência, este resultado se reflete também na quantidade de veículos
controlados de forma direta e indireta. Metade dos 2.422 veículos ligados
às redes possui ligação com alguma das cinco maiores redes de televisão ou
das três maiores redes de rádio.
O alcance destas redes também é outro diferencial. Somente Globo,
Record, SBT, Bandeirantes e Rede Vida atingem com seu sinal aberto as
27 unidades da federação. Outras oito chegam a pelo menos 20 estados e
no Distrito Federal. É o caso de RedeTV! (26), Boas Novas (26), EBC (25),
496
MTV Brasil (24), RIT (24) Record News (23), CNT (23), Canção Nova
(23), TV Cultura (20). De resto, apenas três redes conseguem cobrir mais
da metade das unidades da federação (ver Anexo 3).
Apesar desta cobertura aparentemente integral, muitas das redes ope-
ram somente em algumas cidades destes estados, com ênfase nas capitais e
municípios com mais de 200 mil habitantes. Por isso, os percentuais de la-
res cobertos são maiores que o alcance de municípios. Apenas Globo, SBT
e Record atingem mais de 70% dos 5.564 municípios brasileiros existentes
em 2009 e apenas estas três, Bandeirantes e RedeTV! levam seu sinal a mais
de 80% dos 50,5 milhões de domicílios com TV.
Como é possível perceber, o poder dos conglomerados de comuni-
cação social no Brasil se dá não somente pela propriedade de veículos,
mas pelos canais de distribuição de alcance nacional. Neste sentido, a con-
centração não pode ser problematizada a partir do critério quantidade de
empresas, como acontece em outros tipos de mercados, mas do controle
econômico sobre redes que conseguem colocar, simultaneamente, conteú-
dos em praticamente todo o território brasileiro. Como regra, os custos de
distribuição variam de acordo com três fatores: o número de habitantes que
se pretende atingir, a densidade da população e a natureza do terreno que
se procura cobrir (Toussaint, 1979, p. 60).
Enquanto na produção o custo marginal por telespectador é nulo, isto
é, depois do conteúdo estar pronto a adição de um novo consumidor não
altera o valor do produto, na distribuição o custo marginal varia de acor-
do com os três fatores citados. Daí a necessidade de se ter parceiros que
banquem o investimento nas áreas onde economicamente é desinteressan-
te chegar. Enquanto para o distribuidor (cabeça-de-rede) é proibitivo em
termos de custos levar seu produto a todos as unidades da federação, para
o afiliado regional se torna praticamente impensável erguer uma estrutura
de produção própria que dê conta do conteúdo que seu público demanda.
Ao indagar se convém a um sistema de mídia reunir as funções de
produção, programação e distribuição em um mesmo órgão ou pulverizar
essas tarefas em pequenas unidades, Nadine Toussaint chega à conclusão
que a grande empresa tem vantagens como a redução do custo médio de
produção ao multiplicar o uso dos estúdios, mas sofre com o peso dos cus-
tos administrativos e com a falta de flexibilidade. No plano financeiro, sua
tendência é sempre maximizar lucros para manter a estrutura funcionando
sem grandes adaptações. Porém, em termos de custos, a concorrência é
preferível à situação de monopólio.
497
Sem as redes operando nacionalmente, suportadas por um subsistema
de apoio político e comercial de extensão continental, o mercado acabaria
tendo de procurar financiar grupos regionais de mídia, alavancando toda
uma indústria de produção localizada longe do principal pólo produtor.
Aos poucos, haveria uma indução de todo o processo para que novas ca-
deias produtivas nascessem. Ao investirem sua verba publicitária de forma
nacional, o que exige mais recursos e menos esforço de mobilização, em-
presas e governo acabam se desobrigando de estimular áreas que se encon-
tram na periferia do sistema principal de comunicação. Por efeito-cascata,
e como os players são os mesmos, a concentração em torno da distribuição
(rede) tende a gerar mais concentração no âmbito da produção.
Esta concentração simbólica gerada pela capacidade de distribuição
de conteúdo pode ser percebida na atração de público para os conteúdos
distribuídos. As redes de televisão com maior presença no território nacio-
nal são também as que lideram a participação no share de audiência nacio-
nal. Enquanto Globo e SBT, redes que praticamente atingiram o limite de
sua expansão territorial, vêm perdendo audiência, Record e, principalmen-
te, as demais redes de TV estão ampliando sua participação na captação
da atenção dos telespectadores. Obviamente, a curto e médio prazo este
crescimento não ameaça a líder. Porém, já foi suficiente para a Record al-
cançar o SBT.
Grupos de Comunicação
Veículos de Comunicação
Síntese da análise
508
Comunicação e ação pública
no Programa Mais Médicos
Introdução
509
As discussões sobre a iniciativa foram fomentadas pelo contexto po-
lítico tumultuado, relacionado aos protestos de junho de 2013. Tais reivin-
dicações exigiam, entre inúmeros outros temas (Tatagiba, 2014), melhorias
no setor sanitário, o que incentivou o referido Programa a ser inserido en-
tre os cinco pactos nacionais1 propostos pela presidenta Dilma Rousseff
em 2013.
O Mais Médicos enfrentou uma forte resistência por parte da cate-
goria médica brasileira. De um lado, o Governo Federal, a Organização
Pan-Americana da Saúde (Opas), entidades vinculadas a prefeitos, gover-
nadores e secretários de saúde buscavam mostrar os méritos da iniciativa
e, de outro, associações, conselhos e entidades médicas, tentavam barrar
o Programa, configurando uma disputa simbólica sobre a orientação da
opinião pública. Esse processo foi simultaneamente acompanhado por ve-
ículos de comunicação e desdobrado em redes sociais, com discursos e en-
frentamentos acalorados por seus defensores e críticos.
Neste artigo, observaremos a produção de sentidos sobre uma política
pública de saúde, nos inserindo no âmbito da intersecção entre saúde e co-
municação pública (Araújo, Cardoso, 2007). Partindo deste ponto e com-
preendendo o espaço público como uma arena heterogênea e de disputas,
buscamos reconstituir e apresentar uma análise dos processos de constru-
ção da imagem pública do Programa Mais Médicos.
Como caminho metodológico para o estudo, escolhemos a análise de
documentos oficiais; de reportagens, editoriais e notícias, que foram pu-
blicadas no período compreendido entre janeiro e dezembro de 2013, e
de pesquisas de opinião sobre o Programa. Também fizemos referências à
experiência dos autores, atuantes no âmbito da Assessoria de Comunicação
do Ministério da Saúde ou em seus processos de cooperação internacional
durante o mesmo período. Para apresentar tal contexto, foram articuladas
perspectivas confluentes e complementares para a composição do quadro
conceitual deste trabalho, concernentes à noção de imagem pública (We-
ber, 2006, 2010; Gomes, 2004), e às abordagens da comunicação pública
(Weber, 2007; Silva, 2003; Matos; 1999) e da ação pública (Lascoumes, Le-
Galès, 2012).
1 Os cinco pactos divulgados pela presidenta na ocasião eram: 1) Responsabilidade fiscal e controle da
inflação; 2) Plebiscito para construção de uma constituinte sobre reforma política; 3) melhoria nos
serviços de saúde, com ampliação nos investimentos de infraestrutura e para contratação de médicos,
inclusive estrangeiros; 4) aprimoramentos no setor transporte; e 5) destinação dos royalties do petróleo
para a Educação (Portal do Planalto, 2013).
510
Ação pública: de quê, de quem e como estamos falando?
511
primeira pretende oferecer direitos em forma de serviços, a segunda se vol-
ta ao lucro e pode ser mais facilmente avaliada quantitativamente (Lucio,
Daroit, Bessa, 2014).
O modelo fluido da análise da ação pública pode ser mobilizado para o
Programa Mais Médicos. Neste estudo, observamos como se deram os pro-
cessos de (re)configuração da imagem pública do Programa em 2013, con-
siderando as interações entre os diversos atores em procedimentos insti-
tucionais orientados pelas assessorias de comunicação, em seus diversos
níveis e setores, especialmente o sanitário, acarretando em transformações
nas representações do Mais Médicos.
Por tratarmos aqui dos processos de comunicação de uma política
pública, a disputa em torno da construção de representações sociais espe-
cíficas com relação ao Programa tem lugar especial na análise. Optamos
por observar tal aspecto a partir do conceito de “imagem pública”, por sua
possibilidade de afunilar a constelação de representações, operacionalizan-
do uma análise de âmbito mais específico. Para Gomes,
Analogicamente, metaforicamente, é possível usar o termo “imagem”
para falar de algo que não é propriamente imagem, mas que partilha de
pelo menos uma propriedade importante de seu significado: a capaci-
dade de representar algo, de fazer algo presente (aos olhos, em um caso,
à mente, em outro). (...) a imagem pública não é um tipo de imagem em
sentido próprio, nem guarda qualquer relação com a imagem plástica
ou configuração visual exceto por analogia com o fato da representação.
(...) O termo “imagem pública”, finalmente, não designa um fato plástico
ou visual, mas um fato cognitivo, conceitual (Gomes, 2004, p. 246-247).
Assim, a imagem pública do Programa Mais Médicos é destacada nes-
te estudo como um aspecto da ação pública que permeia o Programa como
um todo, em um processo de constante redefinição, inserida no espectro
mais amplo das representações sociais, trabalhada institucionalmente e,
enquanto se coloca como o próprio efeito da ação, esteve em tamanha dis-
puta entre os atores estatais e não estatais envolvidos, que transbordou, in-
clusive, para a definição da imagem pública dos próprios atores.
512
titucional, realizada pelos poderes executivo, legislativo e judiciário. Em
outros termos, só poderiam ser caracterizados como comunicação pública
os conteúdos comunicacionais realizados a partir de órgãos públicos. A
esfera estatal, portanto, seria o lócus desse fazer comunicativo, responsável
por fazer chegar as informações institucionais aos cidadãos.
Tal caracterização, no entanto, parece estar começando a ser superada
no âmbito teórico. Malgrado as afirmações de que o conceito está em cons-
trução, bastante comum em estudo de diversos autores (Rodella, Ribeiro,
2011; Koçouski, 2012), são cada vez mais raros trabalhos que se furtem
da tentativa de vincular diretamente comunicação pública com interesse
público. Em outros termos, a comunicação pública não seria determinada
a partir da vinculação a um ator específico, seja ele estatal ou não, mas sim
pelas características dos temas trazidos por ela.
Esta visão foi acentuada no Brasil a partir do início dos anos 2000,
principalmente por meio de estudos realizados na Universidade de Bra-
sília (Brandão, 2003, Silva, 2003, Duarte, 2003). Influenciados por Jürgen
Habermas, pesquisadores passaram a defender um modelo mais abrangen-
te, pautados pelas contribuições das noções de esfera pública2 e de ação
comunicativa. Comunicação pública, portanto, passou por um processo
de ressignificação ao dialogar com concepções oriundas da vertente de-
liberacionista de democracia. Uma das definições que mais influencia no
campo de estudo da área é a de Matos (1999, p. 32), que a conceitua como
“um campo de negociação pública, onde medidas de interesse coletivo são
debatidas e encontram uma decisão democraticamente legítima”. Há uma
característica possível de ser identificada nessa visão: se o pensamento ha-
bermasiano parecia ser um antídoto, capaz de construir um modelo de
democracia mais ampliado, tendo como alicerce uma superação da colo-
nização do mundo da vida pelo Sistema (Estado/mercado), a comunicação
pública parece apontar para uma mesma carga prescritiva. Sendo assim,
para evitar que a comunicação seja colonizada por esse mesmo Sistema,
e passe a ser caracterizada por um “fazer profissional totalmente voltado
para o atendimento do mercado empresarial, público, ideológico ou perso-
nalista” (Brandão, 2003, p. 33), teríamos a comunicação pública. Dessa ma-
neira, o modelo serviria de guia para uma comunicação mais democrática,
ou, como caracteriza Silva (2003, p. 61),
2 Autoras como Fraser (1990) e Young (1991) apontaram deficiências bastante claras no modelo de esfera
pública habermasiano. Não cabe nesse estudo dar destaque às visões dessas autoras, mas suas contri-
buições podem inclusive apontar para possíveis readequações no conceito de comunicação pública no
plano prescritivo.
513
Quando tudo parecia dominado pelo poder de colonização que os mass
media dispõem, até mesmo o poder de pré-determinar o nosso imagi-
nário (não teríamos sequer direito a fantasias próprias, lazer próprio,
ócio criativo etc.), eis que emerge de alguns anos para cá uma espécie de
refuncionalização dos meios de comunicação de massa no que se refere
às possibilidades de existências de uma comunicação autenticamente
pública, ou seja, aquela )estritamente voltada para o interesse público, o
bem comum, a coisa pública, em síntese.
Silva (2003) e Lopez (2012) não negam a carga ideal/utópica que pare-
ce existir na comunicação pública. Assim, para parte dos autores que pes-
quisam o tema, ela estaria no “porvir”, bem distante de nossas democracias
minimalistas e próximas do projeto democrático radical participativo-deli-
berativo (Fung, Cohen, 2008), ainda inexistente. Não há dúvida das contri-
buições dessas visões prescritivas para a idealização de uma comunicação
mais democrática, voltadas fundamentalmente ao interesse público. Entre-
tanto, mesmo observando tais méritos, é preciso questionar se estaríamos
perante um conceito apenas prescritivo ou se ele teria também potencial
analítico a ser explorado.
Consideramos o estudo de Maria Helena Weber (2007) para eviden-
ciar elementos que permitam utilizar comunicação pública como instru-
mento de análise, mesmo mirando para a «democracia real», levando em
conta virtudes e defeitos tão bem apontados pelos teóricos da democracia
(tais como Fung e Cohen, 2008; Fraser 1990, 2008; Young, 1991; e Haber-
mas, 2000).
Para a autora, é possível configurar o espaço da comunicação pública
como a circulação de discursos e ações sobre temas de interesse público.
Tal circulação ocorreria no que ela chama de redes de comunicação, ou
rede de interesses, onde seria realizada uma disputa de versões sobre os
temas em questão. Weber aponta para existência de seis redes responsáveis
por proporcionar tal debate, a saber: a Social (sociedade civil organizada,
entidades de representação, grupos sociais etc.), a Política (governo, parla-
mento partido e políticos), Científica e Educacional (instituições de ensino,
agências de fomento e centros de pesquisa), Midiática (produtos jornalísti-
cos, publicitários e de entretenimento), Mercadológica (empresas e organi-
zações privadas) e Religiosa (instituições, grupos, igrejas, seitas etc).
A autora mostra que a circulação de temas de interesse público nes-
sas redes seria responsável por tensionar visibilidade (dada) e credibilida-
de (desejada), incidindo assim na formação da Imagem Pública, conforme
514
discutiremos na próxima seção. Enquanto a visibilidade seria produzida e
controlada pelas redes de comunicação, a credibilidade é determinada pelo
cidadão. Em outros termos, não há monopólio por nenhuma rede específi-
ca sobre como as estratégias comunicacionais irão influenciar a opinião pú-
blica sobre determinado tema. Seria sim a disputa de versões travada com o
objetivo de convencimento fundamental para tal delineamento, conforme
veremos no caso do Programa Mais Médicos.
3 O Revalida é identificado frequentemente como uma barreira para evitar a inserção de médicos gra-
duados no exterior. No mesmo ano de lançamento do Mais Médicos, apenas 5,9% foram aprovados,
mostrando que o nível da prova é bastante elevado (INEP, 2013).
4 Um exemplo da precaução do governo em não se posicionar tão veementemente está na reportagem
da Agência Brasil (Villela, 2013): “Nós continuamos recebendo uma demanda muito forte dos novos
prefeitos e dos governadores em relação a atrair médicos que se formaram em outros países, sobre-
tudo Portugal e Espanha, para atuar na atenção básica no país. Estamos analisando essa proposta,
que é complexa, e precisamos analisar o formato”,
519
mantiveram sua relevância durante a conformação do Programa, e estavam
em interação com diversos outros durante o processo de implementação,
como se demonstra no Quadro 1. Apesar das controvérsias, estava visível
para o governo que a falta de médicos era uma realidade que exigia am-
plo debate público, perpassando praticamente todos os atores em interface
com o SUS.
521
Em resposta, o Governo Federal se posicionou informando que as
medidas ainda estavam em estudos, e que a prioridade seria dada a médi-
cos brasileiros e, na ausência deles, portugueses e espanhóis (sem negar que
os cubanos poderiam sim fazer parte de uma eventual estratégia de atração
de médicos). Também apareciam naquele momento as primeiras ideias de
avaliação desses médicos. Eles não seriam trazidos sem qualquer sistema
que garantisse sua qualidade. Segundo Padilha (Mello, 2013), o Governo
Federal ainda estava “desenhando o modelo de avaliação desses médicos,
porque nós queremos médicos bem formados, com capacidade de atuar”.
Foram contemporâneas a esses antagonismos, as supracitadas mani-
festações de junho. No pacote de medidas anunciadas do governo, o Mais
Médicos foi colocado em pauta, com promessa de anúncio breve. Começa-
ram então a ser divulgadas as primeiras medidas concretas que deveriam
ser adotadas pelo governo federal: 1) médicos estrangeiros seriam priorita-
riamente trazidos de países como Espanha e Portugal, que enfrentavam cri-
se e possuíam alto número de médicos; 2) não seriam atraídos profissionais
de nações que tivessem menos médicos por habitante do que o Brasil, o que
deixaria fora países como Peru, Bolívia, Paraguai, que eram lembrados pe-
las entidades médicas devido sua baixa qualidade na graduação; 3) os mé-
dicos seriam avaliados em relação ao domínio do Português e da capacida-
de clínica para Atenção Básica; 4) durante o tempo no programa (previstos
para três anos), cursariam uma especialização voltada ao modelo brasileiro
de atenção básica e contariam com apoio de universidades brasileiras, por
meio da telemedicina. “Trata-se de uma ação emergencial, localizada, ten-
do em vista a dificuldade que estamos enfrentando para encontrar médicos
em número suficiente ou com disposição para trabalhar nas áreas remotas
do país”, dizia a presidenta Dilma Rousseff (Costa e Silva, Kuhn, 2013).
Em 8 de julho, houve o lançamento formal. A medida provisória foi
publicada e alguns detalhes eram salientados: ampliação da infraestrutura
e do número de vagas na graduação e em especialidades; autorização para
atuação no país de médicos graduados no exterior seria temporária, com
validade apenas para atuação no âmbito do Programa; os médicos recebe-
riam uma bolsa de R$ 10 mil; só poderia participar quem tivesse estudado
em faculdades de medicina com grade curricular equivalente à brasileira
e recebido de seu país de origem a autorização para livre exercício da me-
dicina. Além disso, na chegada, passariam por três semanas de cursos de
Português e voltados à prática da medicina para a atenção básica à saúde
no SUS. A prioridade, segundo o Governo Federal seria preencher as cerca
522
de 10 mil vagas previstas inicialmente com profissionais que estudaram no
Brasil e, apenas na falta desses, seria permitida a adesão de graduados no
exterior (Brasil, Saúde, 2013).
Logo após o lançamento, começavam a surgir as primeiras peças de
publicidade, criadas pelo Ministério da Saúde, tais como cartazes, folders
e, principalmente, vídeos divulgados na televisão e na internet. O órgão
passava a divulgar o slogan do programa, destacando o papel dos médicos
no acesso à saúde: “Mais médicos para o Brasil, mais saúde para você”.
O Mais Médicos passou a ser o protagonista dos debates em saúde nos
veículos de comunicação. Segundo Carvalho (2014) só no Portal G1, das
organizações Globo, foram publicadas, entre 21 de junho a 30 de novem-
bro, 885 matérias com referências ao Programa, mostrando a repercussão
da iniciativa. No início de julho era realizado o primeiro termômetro sobre
a reação da população ao debate em torno da política pública e, na ocasião,
as opiniões estavam divididas. A MDA Pesquisa (2013a), contratada pela
Confederação Nacional de Transportes, apontou que 49,7% dos entrevista-
dos se colocaram a favor e vinda de médicos estrangeiros. 47,3% se coloca-
ram contra e 2,9% não souberam responder.
Com a conclusão da etapa de inscrições ao programa, em 25 de julho,
houve ampla procura pelas vagas por parte dos médicos brasileiros, com o
objetivo de realizar um boicote, buscando dificultar a contratação de mé-
dicos estrangeiros. Tal medida foi qualificada pelo então ministro da saúde
como uma “perversidade inimaginável” (UOL, 2013), por tentar atrasar o
andamento do programa e, consequentemente, o atendimento à popula-
ção. Os Conselhos Regionais de Medicina (CRM) também começaram a
recusar ou atrasar a emissão do registro provisório aos médicos graduados
no exterior, numa tentativa clara de atrapalhar o andamento do programa.
Com a chegada da MP no Congresso, uma rodada de debates se ini-
ciou, ficando ainda mais claro que, para a aprovação da medida, os atores
que a defendiam teriam que trilhar um difícil caminho. Foram realizadas
diversas audiências para debater o programa, em espaços como o Con-
selho Nacional do Ministério Público, a Comissão de Assuntos Sociais
(CAS) do Senado Federal e Comissão de Seguridade Social e Família
(CSSF), contando com forte pressão da classe médica, que compareceu
a esses espaços de maneira orgânica para buscar a não aprovação da me-
dida pelo Congresso Nacional. Paralelamente, CFM e AMB entravam no
STF para tentar derrubar o programa, medida que não foi acatada pelo
tribunal superior.
523
No primeiro mês do programa, 1.618 médicos tiveram sua inscrição
homologada. O número se mostrou bem inferior às 10 mil vagas inicial-
mente previstas, e que se transformaram em cerca de 16 mil a partir das de-
mandas dos municípios em edital lançado pelo Ministério da Saúde. Para
reduzir tal déficit, o Governo Federal firmou convênio com a OPAS para
atrair, inicialmente, cerca de 4 mil médicos cubanos.
Nas redes sociais, a chegada dos primeiros cubanos teve ampla reper-
cussão. A postagem de maior destaque foi realizada em 27 de agosto por
uma jornalista do Rio Grande do Norte, e afirmava que as profissionais
cubanas que estavam chegando tinham “cara de empregada domésticas” e
“não tinham nem aparência nem postura de médico”. A fala preconceituosa
e racista ganhou os meios de comunicação e teve mais de cinco mil com-
partilhamentos antes de ser deletada pela autora.
Um dia depois, data de início do curso em Fortaleza (CE), médicos
cubanos foram fortemente hostilizados por profissionais brasileiros, que os
vaiaram e os chamaram de escravos. Na ocasião, ovos foram arremessados
em direção aos médicos, chegando a atingir um gestor do Ministério da
Saúde. Tal fato foi um marco da mudança em relação à imagem pública
sobre o Programa, pois a reação dos médicos brasileiros passou a ser taxa-
da como corporativista e desproporcional. O ministro Padilha classificou
a atitude como xenófoba e truculenta, posicionamento amplamente divul-
gado pela Assessoria de Imprensa do Ministério da Saúde. Veículos como
Folha, Estadão, IstoÉ e O Globo retrataram de maneira bastante contun-
dente o ocorrido. O Estadão (Braga, 2013), por exemplo, qualificou o fato
como agressão e a Revista IstoÉ (Aquino, Alecrim 2013) taxou os médicos
envolvidos como “doentes de ideologia”.
As entidades médicas, antes inseridas entre os principais interlocuto-
res, posicionando-se inclusive como comprometidas com o direito da saú-
de, começaram a ter tal posição ameaçada. Os médicos eram chamados de
mal-educados e corporativistas pela colunista da Revista Época, Ruth de
Aquino (2013) no mesmo dia do ataque aos médicos cubanos e o colunista
da Folha (2013), Contardo Calligaris, afirmava que o corporativismo era
uma das piores moléstias brasileiras, e apontava que os médicos colocavam
seus interesses acima do cidadão.
Com a aprovação da Lei 12.781 pelo Congresso e a posterior sanção
presidencial, em outubro, a concessão do registro provisório que permite
profissionais atuarem pelo Programa passou a ser atribuição do Ministério
524
da Saúde e não mais dos CRM. Com isso, o programa ganhou celeridade
burocrática, e quase a totalidade dos médicos graduados no exterior, em
grande maioria cubanos, começaram a atuar nos municípios.
O início da atuação dos profissionais do Mais Médicos se deu acom-
panhada de holofotes. Assessorados por técnicos do Ministério da Saúde e
de outras áreas de comunicação governamental, jornalistas de vários meios
cobriram os primeiros atendimentos e consideraram a perspectiva dos pa-
cientes. A receptividade dos usuários do SUS atendidos por médicos es-
trangeiros era bastante elogiosa. A cobertura de testemunhos de pacientes
moradores do campo, das periferias e da floresta, que antes do Programa
tiveram pouco ou nenhum contato com médicos, foi determinante para a
inscrição do Mais Médicos como uma iniciativa voltada à qualidade e ao
acesso à saúde. Relatos como o da Folha (Carvalho, 2013), que destaca que
pacientes no agreste receberam os médicos cubanos “de joelhos”, agrade-
cendo a Deus, ou do R7 (Costanti, 2013), em que pacientes da Grande BH
se diziam encantados com a atuação dos profissionais do programa, eram
constantes nos principais meios de comunicação.
No Quadro 2, apontamos os marcos da disputa simbólica que confi-
gurou a imagem pública do Programa durante 2013. Inferimos, conforme
fica mais claro no Quadro, que a tentativa empenhada por boa parte da
classe médica brasileira de apresentar o Mais Médicos como um erro polí-
tico, foi cada vez menos considerada pela opinião pública. Se no início dos
debates sobre o Programa as opiniões sobre a vinda de estrangeiros eram
divididas, a partir da atuação dos médicos estrangeiros e da cobertura de
casos específicos de pacientes satisfeitos, mais de 84% passam a ser favorá-
vel ao Programa (CNT/MDA, 2013c).
Assim, a Imagem Pública não teria sido constituída apenas pelos po-
líticos que atuam no Governo Federal, como também por seus adversários
(no caso, as entidades médicas nacionais), pela atuação das assessorias de
comunicação, dos burocratas da saúde e da educação nos três níveis federa-
tivos, pelos médicos estrangeiros contratados, pelos meios de comunicação
de massa e, especialmente, pela reflexividade dos próprios cidadãos que
conformam a opinião pública. Os últimos teriam conformado uma repre-
sentação favorável ao Programa, especialmente por terem percebido, de
fato, que o programa veio para aprimorar o SUS.
525
Quadro2: Marcos das estratégias em disputa na configuração da Imagem Pública do
Programa Mais Médicos, entre fevereiro e novembro de 2013
Considerações finais
526
determinar seus salários e condições de trabalho e o governo federal, que
liderou um processo simultaneamente preocupado em garantir acesso a
saúde e em consolidar uma imagem pública adequada para políticos que
concorreriam a (re)eleição. O desfecho da disputa, em 2013, apontou para
a configuração de uma imagem tão positiva para a política pública que re-
verberou no ano seguinte, inclusive, na imagem pública da própria presi-
denta, que tomou o Programa como um de seus destaques de campanha
eleitoral.
Conforme buscamos descrever no decorrer do texto, não houve eta-
pas fixas e destacadas de planejamento, implementação e avaliação do Pro-
grama: os processos foram concomitantes, e os instrumentos de gestão e
engajamento públicos eram (e permanecem sendo) readequados mediante
as necessidades apontadas pelos atores. O Mais Médicos se realiza enquan-
to ação pública em toda sua complexidade, e tem como central em seus
fluxos e processos a configuração contínua de sua imagem pública – por
exemplo, se a falta do Revalida para atuação de estrangeiros foi divulgada
como uma grande crítica por entidades médicas brasileiras, foi determina-
do que os estrangeiros só poderiam atuar mediante a realização de outra
avaliação, mais específica para a atuação temporária na atenção básica. En-
tão, o processo decisório observa não apenas a pactuação entre as esferas
federativas, como também é poroso, flexível aos sentidos insurgentes das
críticas públicas.
Nesse cenário, é importante perceber que as estratégias de visibilida-
de empenhadas pelos atores, portadores de interesses díspares, foram inú-
meras e justapostas: de um lado, as entidades médicas foram além do lo-
bby junto aos meios de comunicação para disseminarem massivamente
seus ideários sobre o Programa em redes sociais virtuais e em espaços pú-
blicos; de outro, o Governo, seus parceiros e seus Sistemas de Comunicação
também se fizeram presentes nos meios de comunicação tradicionais, ofer-
tando informação sobre a política pública de maneira ativa, e respondendo
às críticas e dúvidas concernentes ao Programa frequentemente por meio
de redes sociais virtuais. É importante ressaltar que as alianças estratégicas
travadas junto ao Governo Federal se estenderam do local ao global – tanto
a grande maioria dos governos municipais, como conselhos gestores da
saúde e a própria Organização Mundial da Saúde aferiram apoio à vinda de
médicos estrangeiros, maior controvérsia do Mais Médicos. Dessa forma,
o status de um Programa responsivo às necessidades públicas se fortaleceu
por muitas frentes.
527
Para além da visibilidade positiva alicerçada em apoios institucionais,
a credibilidade no Programa teve seu maior marco com o início da atua-
ção dos profissionais. Se em 2013 as parcerias em torno do Mais Médicos
geraram discursos em sua defesa, os mesmos atores realizaram um com-
plexo processo de trabalho que culminou na prática da medicina por mais
de 6.500 estrangeiros nas Unidades de Pronto Atendimento e postos de
saúde de mais de 2.000 municípios brasileiros. De fato, como reconhecido
pelos gestores federais, a falta de médicos é uma das principais críticas dos
usuários do SUS e o Programa atacou justamente essa questão pública tra-
zendo profissionais, aferindo a aprovação e a credibilidade. Foi estratégico
demonstrar midiaticamente os processos de atuação dos médicos estran-
geiros e de satisfação pelos cidadãos atendidos, para que a vaga ideia do
exótico fosse substituída pela noção de competência, expertise e até mesmo
de afetividade, como foi apontado por inúmeros pacientes que compara-
vam profissionais cubanos e brasileiros.
Os contornos do Programa parecem demonstrar ser possível identi-
ficar a pertinência do conceito de imagem pública para a análise de políti-
cas públicas. Por mais que a imagem pública do Programa possa afetar as
imagens do Ministério da Saúde, do ministro da Saúde, da presidenta e do
próprio SUS, entre outros atores, é perceptível que ela possui relativa inde-
pendência dos atores e instituições que com ela se relacionam. Em virtude
de tal constatação, sugerimos ser possível alçar o panorama da ação pública
para compreender os nexos relacionais que instituem as constantes reconfi-
gurações da imagem pública e da comunicação; bem como, reciprocamen-
te, pode ser instigante fazer uso dos conceitos de comunicação pública e de
imagem pública para uma agenda de análise da ação pública.
528
A comunicação pública na percepção
de profissionais de comunicação governamental
Introdução
529
5. Por que as estruturas de comunicação próprias com profissionais
de jornalismo, relações públicas e publicidade são importantes
para os governos?
6. Você concorda com que os governos tendem a investir mais esfor-
ços na comunicação de caráter institucional (aquela que visa mos-
trar aspectos positivos da gestão; voltada à identidade/à imagem
de Governo) em detrimento da comunicação que visa o interesse
público, questões relativas aos direitos e deveres do cidadão, e às
formas de acessar os serviços e políticas públicas, ou seja, uma co-
municação mais informativa e menos persuasiva?
530
As leituras exploratórias que antecederam o trabalho de investigação
evidenciaram a multiplicidade de abordagens sobre Comunicação Públi-
ca, despertando atenção para um elemento específico: o governo e, con-
sequentemente, suas práticas comunicacionais envolvendo a esfera civil.
Isto porque tem ganhado espaço a discussão sobre os investimentos em
publicidade por parte dos governos e a eficácia destes esforços no senti-
do de efetivamente promover um conhecimento sobre os serviços ofere-
cidos à população por exemplo. Tramita no Senado Federal Projeto de Lei
nº785, de 2015, de autoria do Senador Paulo Paim (PT-RS), que estabelece
teto para os gastos públicos com publicidade e propaganda, o equivalente
a 0,1% da receita corrente líquida no caso dos investimentos da União; 1%
para os estados, Distrito Federal e municípios. O texto prevê que o teto
possa ser excedido em casos de calamidade pública, estado de defesa ou
estado de sítio, a fim de informar a população sobre a situação. Campanhas
eleitorais e instruções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ficam também
excluídos do projeto. Esta determinação passaria a compor um dos capítu-
los da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que estabelece regras para as
despesas públicas. O senador argumenta que o atual modelo de definição
de gastos com publicidade e propaganda oficiais, pelas Leis Orçamentárias
Anuais, as LOAs, é vulnerável a pressões políticas e a aspectos conjunturais
da esfera de disputa política (http://www25.senado.leg.br/web/atividade/
materias/-/materia/124478).
O debate sobre os investimentos em comunicação por parte do Poder
Executivo, seja na esfera federal, estadual ou municipal, passa também pela
definição clara das iniciativas neste campo. Documentos como as Instru-
ções Normativas SECOM-PR Nº2 (16 de dezembro de 2009) e SECOM
Nº5 (06 de julho de 2011), editadas pelo Governo Federal buscam definir
as fronteiras entre as diferentes modalidades de comunicação identificadas
na esfera governamental. A primeira (SECOM Nº 2) detalha os tipos de pu-
blicidade: de utilidade pública, institucional, mercadológica e legal, como
mostra o quadro 2.
Já a Instrução Normativa SECOM Nº 5, dispõe sobre os conceitos das
ações de comunicação do Poder Executivo Federal, já previstas no art. 3º,
do Decreto nº 6.555 (08 de setembro de 2008).
531
Quadro 2: Formas de publicidade de acordo com SECOM-PR Nº 2
Formas Abrangência
de Publicidade
a) De Utilidade Divulgar direitos, produtos e serviços colocados à disposição dos cidadãos, com o
Pública objetivo de informar, educar, orientar, mobilizar, prevenir ou alertar a população para
adotar comportamentos que lhe tragam benefícios individuais ou coletivos e que
melhorem sua qualidade de vida.
b) Institucional Divulgar atos, ações, programas, obras, serviços, campanhas, metas e resultados dos
órgãos e entidades do Poder Executivo Federal, com o objetivo de atender ao princípio
da publicidade, de valorizar e fortalecer as instituições públicas, de estimular a
participação da sociedade no debate, no controle e na formulação de políticas públicas
e de promover o Brasil no exterior.
c) Mercadológica Lança, modifica, reposiciona ou promove produtos e serviços de órgãos e entidades
que atuem em relação de concorrência no mercado;
d) Legal Dar conhecimento de balanços, atas, editais, decisões, avisos e de outras informações
dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal, com o objetivo de atender
a prescrições legais.
Fonte: Adaptado Brasil (2009).
Conceitos Definições
de comunicação
I - Comunicação A ação de comunicação que consiste na convergência de conteúdo, mídia, tecnologia
Digital e dispositivos digitais para acesso, troca e interação de informações, em ambiente
virtual, dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal com a sociedade ou
com públicos específicos;
II - Comunicação A ação de comunicação que se realiza por meio da articulação de diferentes ferramentas
Digital capazes de criar, integrar, interagir e fomentar conteúdos de comunicação destinados
a garantir o exercício da cidadania, o acesso aos serviços e informações de interesse
público, a transparência das políticas públicas e a prestação de contas do Poder
Executivo Federal;
III – Promoção A ação de comunicação realizada mediante o emprego de recursos de não mídia, com
o fim de incentivar públicos de interesse a conhecer produtos, serviços, marcas,
conceitos ou políticas públicas;
IV – Patrocínio Ação de comunicação efetuada por meio de apoio financeiro concedido por órgão ou
entidade do Poder Executivo Federal a projetos de iniciativa de terceiros, com o
objetivo de divulgar atuação, fortalecer conceito, agregar valor à marca, incrementar
vendas, gerar reconhecimento ou ampliar relacionamento do patrocinador com seus
públicos de interesse;
V - Publicidade a) De utilidade pública; b) Institucional; c) Mercadológica; d) Legal.
VI - Relações com A ação de comunicação que se destina a planejar, organizar e promover a comunicação
a Imprensa do Poder Executivo Federal com seus públicos de interesse por intermédio da imprensa,
de forma democrática, diversificada e transparente;
VII - Relações A ação de comunicação que tem por objetivo fortalecer a correta percepção a
a Imprensa respeito dos objetivos e ações governamentais, a partir do estímulo à compreensão
mútua, do estabelecimento e manutenção de adequados canais de comunicação,
padrões de relacionamentos e fluxos de informação entre o Poder Executivo Federal
e seus públicos de interesse, no Brasil e no exterior.
532
Estes documentos vêm ao encontro da necessidade de identificar cla-
ramente o que compete a cada modalidade, sem dispensar – quando se tra-
ta de avaliar a pertinência da ação de comunicação – o papel que estas têm
a cumprir perante a sociedade, o conteúdo, a estética, o raio de abrangência
e os públicos visados pelas ações, entre outros aspectos que contornam a
política de comunicação governamental.
Para fins deste estudo, focamos em dois tipos de comunicação: a Co-
municação Pública e a Comunicação Institucional. A literatura corrente
sobre Comunicação Pública refere, como ponto de partida para as refle-
xões, a acepção proposta por Pierre Zémor8 para o qual sua legitimidade
encontra-se baseada no receptor. O autor a descreve como uma “Verdadei-
ra Comunicação”, ou seja, “aquela que é praticada nos dois sentidos, com
um cidadão ativo” (1995, p. 5). Para ele, as condições da Comunicação Pú-
blica que estabelecem esta boa relação entre usuário e serviço público, se-
riam o acolhimento de sugestões, a escuta das questões colocadas e o trata-
mento diferenciado ou segmentado, assegurando as condições de acesso à
informação, que tendem a responder à exigência de transparência dos atos
públicos e afirmam claramente a identidade das instituições públicas. Esta
acepção encontra-se detalhada no que o autor denomina como as formas
de se fazer Comunicação Pública, quais sejam:
1) responder à obrigação que têm as instituições públicas de levar infor-
mação a seus públicos;
2) estabelecer a relação e o diálogo de forma a desempenhar o papel que
cabe aos poderes públicos, bem como para permitir que o serviço públi-
co atenda às necessidades do cidadão de maneira mais precisa;
3) apresentar e promover cada um dos serviços oferecidos pela admi-
nistração pública;
4) tornar conhecidas as instituições elas mesmas, tanto por uma comu-
nicação interna quanto externa;
5) desenvolver campanhas de informação e ações de comunicação de
interesse geral (Zémor, 1995, p. 5).
A essas cinco categorias, o autor agrega também a da comunicação do
debate público que acompanha as tomadas de decisão ou que pertencem à
prática política (Zémor, 1995).
A dimensão institucional da comunicação será considerada nos ter-
mos do que Kunsch nos apresenta como sendo uma comunicação “ligada
8 Professor francês que escreveu o livro La Communication Publique no ano de 1995, e que teve suas
ideias traduzidas pela autora brasileira Elizabeth Pazito Brandão. Foi a partir da tradução de Brandão
em Brasília, no fim dos anos 1990, que o tema começou a se difundir e virar referência no meio acadê-
mico brasileiro (BRANDÃO, 2012).
533
aos aspectos corporativos institucionais que explicitam o lado público das
organizações, constrói uma personalidade creditiva organizacional e tem
como proposta básica a influência político-social na sociedade onde está
inserida” (2003, p. 164). Para a autora, a Comunicação Institucional é res-
ponsável pela “construção e formação de uma imagem e identidade corpo-
rativas fortes e positivas de uma organização” (2003, p. 164).
Kunsch não especifica – como fez Zémor – que informações seriam
propriamente contempladas na Comunicação Institucional. No entanto, ao
registrar que esta comunicação visa construir uma “personalidade crediti-
va organizacional”, podemos pensar em informações ou aspectos dotados
de valor persuasivo, articuladas a uma estética capaz de demarcar esta ‘per-
sonalidade’, priorizando argumentos e imagens mais voltados a fazer sentir,
do que a fazer ver ou fazer saber como quer a comunicação de viés público.
9 Para a autora, governança se refere aos pré-requisitos institucionais para a otimização do desempenho
administrativo – instrumentos técnicos de gestão que assegurem a eficiência e a democratização das
políticas públicas.
10 MATOS, Heloiza. Comunicação pública, democracia e cidadania: o caso do Legislativo. XXII Con-
gresso Brasileiro de Ciências da Comunicação/ GT 07 Relações Públicas. 1999. Disponível em: <http://
www.portcom.intercom.org.br/navegacaoDetalhe.php?id=45225>. Acesso em 16 set. 2014.
535
Assim como Duarte, Oliveira (2009) distingue ambas as Comunica-
ções. Em seu estudo sobre o uso da Comunicação Pública como estraté-
gia de relações públicas nas relações intersetoriais, a autora a define como
“aquela praticada no espaço público democratizado, envolvendo os dife-
rentes setores da sociedade” (Oliveira, 2009).
Já a perspectiva de Costa destaca a finalidade da Comunicação Pública
e sua relação com o viver e estar em sociedade, sendo então uma comuni-
cação de interesse público com objetivo principal “levar uma informação à
população que traga resultados concretos para se viver e entender melhor o
mundo” (2006, p. 20). Segundo o autor, a questão central deste tipo de comu-
nicação é o seu endereçamento primário e direto: a sociedade e o cidadão.
O quadro a seguir reúne os excertos dos conceitos vistos, destacando
os elementos recorrentes observados durante o processo de leitura de cada
um dos autores: objetivos da Comunicação Pública (aquilo que o agen-
te desta comunicação visa), os atores/sujeitos envolvidos no processo e as
ações e os meios empregados na comunicação pública.
536
Elizabeth Processo de comunicação que Ser um espaço Estado, Instrumentos de marketing,
Brandão/ 2012 se instaura na esfera pública privilegiado de governo, comunicação organizacional,
entre o Estado, o governo e a negociação entre os Terceiro pesquisa e tecnologias de
sociedade. interesses das diversas Setor e comunicação de massa,
instâncias de poder sociedade. grupo e interpessoal;
constitutivas da vida televisão, rádio, web,
pública do país. impressos; mídias
alternativas, comunitárias,
e de protesto.
Jorge Duarte/ A comunicação pública se Assumir a perspectiva Governo, Instrumentos de informação:
2011 refere à interação e ao fluxo cidadã na comunicação Estado e relatórios, Internet, folders,
de informação vinculados a envolvendo temas de sociedade folhetos etc.
temas de interesse coletivo e, interesse coletivo. civil – Instrumentos de diálogo:
portanto, contém os dois inclusive ouvidorias, reuniões,
anteriores. partidos, agentes sociais etc.
empresas,
terceiro setor
e cada cidadão
individualmente.
Maria Oliveira Aquela praticada no espaço Contribuir para o Primeiro, Integração entre governo,
2009 público democratizado, exercício da segundo e empresas e terceiro setor:
envolvendo os diferentes cidadania e para a terceiro estratégias de RP para
setores da sociedade. consolidação da Setor. desenvolver programas e
democracia. sistemas de controle; canais
de comunicação abertos com
públicos internos e externos;
estratégias que permitam
conferir opinião, interesse e
satisfação da comunidade.
João Vieira da Toda ação de comunicação Levar uma informação Organizações Filme de TV, anúncio,
Costa / 2006 que tem como objetivo à população que traga públicas, evento, site na Internet,
primordial levar uma resultados concretos privadas blog, cartaz ou até mesmo
informação à população que para se viver e ou não resultados de uma
traga resultados concretos entender melhor o governamen- assessoria de imprensa.
para se viver e entender mundo tais.
melhor o mundo.
537
as expectativas da sociedade em termos de performance de gestão, mas,
sobretudo, oportunizar espaços e oportunidades para efetivamente se esta-
belecer diálogo. Este ponto pode levar inclusive ao debate sobre a estética
do processo de comunicação, uma vez que – assumir a perspectiva cidadã
– pode significar não apenas pautar o diálogo pelo interesse público, mas
também considerar como os conteúdos, estatísticas oficiais, entre outros,
serão apresentados de modo a responder à necessidade compreensão, atra-
tividade do conteúdo, clareza etc.
11 Servidor público da Universidade Federal de Santa Maria cedido ao Governo do Estado do Rio Grande
do Sul para exercer funções em cargo de confiança.
12 Servidor público da Prefeitura de Porto Alegre cedido ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul para
exercer funções em cargo de confiança.
539
• Entrevistado F/GVE, CC: “[...]é tudo: tanto governamental como
de movimentos sociais, dessa coisa da comunicação pública de ter
que ser gratuita e ter que ser um direito. E quando se trabalha com
público [...] tem que ser de acesso fácil, [...] e tem que ser uma
obrigação do Estado. Inclusive junto às empresas privadas de po-
der emprestar esse serviço de direito[...]”.
• Entrevistado G/GVE, CC: “[...] o grande papel da comunicação
pública é mostrar [...][que] as pessoas trabalham ‘pra caramba’
tanto CC quanto servidor público [...] campanha de matriculas
[por exemplo] [...] isso é uma ação de comunicação pública, a gen-
te fazer boas práticas é uma comunicação pública”.
541
comunicar isso e disputar a versão com os grandes veículos que
pautam também os menores; [...]é relevante porque temos de dis-
putar a versão com os grandes veículos que pautam também os
menores [...]; a gente precisa não só produzir conteúdo, mas man-
ter uma articulação permanente com os formadores de opinião pra
contrapor essa versão [...]”
• Entrevistado D/GVE, Servidor público cedido como CC: “Co-
municação integrada: [...] de forma integrada a gente potenciali-
za a comunicação, [...] constrói uma imagem, uma identidade
e uma opinião pública consequentemente. [...] por isso é funda-
mental que a gente tenha estruturas nas várias áreas [...] e que es-
sas estruturas e que esses profissionais consigam atuar de forma
conjunta, integrada para potencializar a comunicação mesmo,
para garantir que ela seja mais eficiente e eficaz na ponta, que
a mensagem chegue de forma mais qualificada ao cidadão, que as
pessoas se integrem de maneira mais efetiva a gestão [...]”.
• Entrevistado E/GVE, CC: “Um governo precisa se comunicar. As
realizações do governo por si só, elas já comunicam, [...] mas é
preciso comunicar isso para toda a população [...]; tem que ter
um serviço de comunicação, que englobe todas as áreas, publicida-
de, RP, as mídias sociais [...] os meios de comunicação, os jornais,
as rádios, tevês, elas sozinhas, só elas não dão conta de informar
tudo o que está sendo feito [...]A população fica sabendo muito
pouco pelos meios de comunicação do que o governo realmente
faz, e coisas importantes não chegam.[...] Por outro lado, depen-
dendo do governo, há também, uma preferência dos meios de co-
municação por uns governos e outros [...]exige um tipo de comu-
nicação de acordo com as políticas que ele desenvolve e de acordo
com a fluência que ele tem junto aos veículos de comunicação [...]
quando uma mídia favorece um determinado governo, lógico
que é mais fácil para esse governo se comunicar, dizer o que faz,
agora, quando do contrário, um governo sofre restrições, como eu
acho que o nosso sofre, é mais difícil.”
• Entrevistado F/GVE, CC: “Ter uma estrutura completa como se-
cretaria: [...] é uma ação de incluir a comunicação mesmo como
um serviço público, como um direito do cidadão, como um dever
[...] se dá a importância que a comunicação precisa dentro de um
governo como sendo um serviço público de direito do cidadão.”
542
• Entrevistado G/GVE, CC: “Acho que é importante para qualquer
lugar: o [partido] investe muito em comunicação, [...] essa cre-
dibilidade a gente construiu [...]. Hoje a secretaria tem uma cara,
[...] nós temos uma sequência.”
546
no Poder Executivo implica se movimentar numa espécie de arena discur-
siva na qual circulam, não apenas considerável volume de informações,
como pontuou um dos profissionais entrevistados, mas também diferentes
atores, partes interessadas, incluindo a própria mídia:
[...] Não vou mentir, não vou omitir, não vou negacear a informação,
mas tem uma questão que tu está defendendo necessariamente o inte-
resse, numa assessoria de comunicação, de quem está no governo. Por-
que eu acredito nesse projeto, vejo as coisas boas que estão sendo feitas,
e tal. Então vou trabalhar pra valorizar essas iniciativas. E vou evitar ser-
vir a má fé de muitos jornalistas. Porque não existe isenção, não existe
objetividade jornalística. Isso é inumano, tu ser neutro, tu ser acima do
bem e do mal, não existe isso. Todo mundo tem opções [...] (A/GVE).
A necessidade de assegurar visibilidade dos atos de governo (decisões,
projetos, resultados, por exemplo) e a disputa de versões junto à mídia são
elementos a considerar nas reflexões sobre uma comunicação de caráter
mais público. Os profissionais reconhecem isso e pontuam nas entrevistas
a noção de ‘defesa do governo’ e de ‘domínio dos veículos de comunicação de
massa’. E quanto maiores os orçamentos, quadros de servidores e proble-
mas sociais e econômicos implicados na conjuntura de governo, especial-
mente em Estados e capitais considerados de destaque no cenário nacional
ou regional, maior será também a responsabilidade cobrada, a disputa por
poder e visibilidade, considerando a arena de que falamos e onde se posi-
cionam os demais players do campo da política.
É neste cenário que trabalham os profissionais das estruturas de co-
municação contempladas neste estudo cujo cotidiano das equipes produz
ações de comunicação que transitam ora no terreno da Comunicação Pú-
blica, com a divulgação de serviços e programas à população ou a segmen-
tos dela, ora no terreno da Comunicação Institucional, tendo a necessidade
prevalente de demarcar politicamente os projetos de Governo. Disso de-
corre a ideia do que seja uma prática considerada verdadeira na compa-
ração com as práticas de gestões anteriores, quando um dos entrevistados
observa o seguinte ao ser indagado sobre o que seria a comunicação de
interesse público:
[...]a informação só pra fazer propaganda do governo ela existe, mas ela
está sempre acoplada a uma informação de algo que é importante que
a população saiba. ‘Ah, esse governo fez tais e tais e tais obras’. Sim, é
institucional, sim é uma informação positiva para o governo, mas essas
obras são verdadeiras, pelo menos as nossas [...] (E/GVE).
547
A noção de que os feitos, sendo verdadeiros, possa excluir ou ao me-
nos minimizar a suspeita que sobre eles recaia – aparece também no trecho
a seguir:
[...]é óbvio que eu quero que meu governo se reeleja nesse sentido, sou
paga para falar coisas boas, mas assim realmente professor é protago-
nista[...] (G/GVE).
A palavra ‘realmente’ aparece para enfatizar que – apesar do profissio-
nal assumir que seu papel é valorizar os pontos positivos – de fato o pro-
tagonismo dos professores14 é uma realidade e que, portanto, há verdade
no conteúdo de sua comunicação institucional, ou seja, não se trata de um
discurso oco, sem fundamento na vida vivida pelas pessoas.
Estímulo à cidadania e instituições públicas também se encontram
associados ao conceito. Porém, algumas das ações descritas pelos profis-
sionais não sinalizam propriamente ações de comunicação pública, como
a publicidade institucional, citada por um deles. No entanto, indicam ou-
tras maneiras que se mostraram importantes iniciativas governamentais,
identificadas com os princípios de uma comunicação pública, como por
exemplo, o Orçamento Participativo e o Gabinete Digital, onde a popula-
ção pode interagir diretamente com o governo. Persiste a valorização de
estratégias de comunicação institucional, embora reconheçam a dimensão
pública da comunicação e a necessidade de efetivá-la.
Mais do que verificar a percepção destes profissionais acerca da Co-
municação Pública e da Comunicação Institucional a partir de suas práti-
cas cotidianas, interessa, na verdade, provocar a reflexão sobre aquilo a que
se refere Monteiro ao perguntar ao leitor sobre qual Comunicação Pública
estamos falando. E mais, sob quais circunstâncias a comunicação de um
Governo se concretiza para a sociedade? A que objetivos ela deve atender,
considerando que ocorre no espaço público do debate (e do embate) de
ideias no qual o Poder Executivo não atua isolado, havendo também a ne-
cessidade interlocução e articulação com os demais poderes cuja capacida-
de de comunicação obedece, de acordo com Weber, a estratégias políticas e
institucionais relacionadas à obtenção de visibilidade pública, prestação de
contas e disputas de opinião (2011).
Quanto mais agudizada a disputa de forças, maior será a preocupação
em demarcar o discurso de forma amplificada, lançando mão de investi-
14 É recorrente na fala do entrevistado G/GVE a menção aos professores estaduais como público prio-
ritário das ações de comunicação da SEDUC. Isto é pontuado quando refere os eventos realizados na
sede da Secretaria e também nas escolas, salientando que o cerimonial valoriza a fala e a presença dos
professores e de seus representantes.
548
mentos em publicidade a exemplo do que apurou a ONG Contas Abertas
sobre a verba publicitária do Governo Federal em 2015 e 201615. O inves-
timento em propaganda (utilidade pública, institucional, legal e mercado-
lógica) passou de R$ 366,5 milhões em 2015 para R$ 571,9 milhões em
2016, um aumento de 56% de um ano para o outro. O levantamento foi
realizado com base nos recursos desembolsados entre janeiro e setembro
(pagamentos do ano acrescidos dos restos a pagar). O período engloba o
final da administração de Dilma Rousseff, o governo interino e o primeiro
mês de governo efetivo de Michel Temer.
Segundo a Contas Abertas, em abril de 2016, mês que antecedeu o
afastamento da presidenta Dilma Rousseff, os valores com publicidade fo-
ram da ordem de R$ 79,9 milhões, 98% a mais do que no mesmo mês em
2015. Em junho, primeiro mês do governo interino, foram pagos R$ 82,1
milhões com publicidade, valor cerca de 50% superior ao de 2015. O estudo
mostra que, nos três meses de governo interino, houve aumento de 46%
com esse tipo de despesa em relação a 2015 (www.contasabertas.com.br).
“Comunicação Pública na percepção de profissionais de comunicação
governamental”, título que abre este artigo, busca provocar a reflexão sobre
as condições para se efetivar uma comunicação pública nos termos colo-
cados por Zémor (1995). O dia a dia dos profissionais sinaliza elementos
que os fazem transitar entre a comunicação que se espera por parte das
instituições públicas, neste caso as situadas no âmbito do Poder Executivo
Municipal e Estadual (administração direta e indireta), e aquela voltada à
visibilidade e à disputa de opinião, capaz de aglutinar em torno do gover-
no e/ou de seus principais atores, afetividades, aceitação, opinião positiva
convertida depois em voto ao findar o ciclo do mandato. Na visão de Weber
(Weber; Carnielli, 2016), este seria uma espécie de paradoxo de visibilidade
em que os profissionais de comunicação se veem diante da necessidade de
tornar visíveis as ações e os discursos das instituições públicas e, ao mesmo
tempo, promover (ou defender como em alguns depoimentos aqui trans-
critos) os atores políticos e suas concepções de gestão.
Iniciativas como o Orçamento Participativo, o Gabinete Digital e o
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), mencionados
pelos profissionais de comunicação, figuram como exemplos do que Zé-
mor denomina como os modos de se fazer a comunicação pública e que
diz respeito a “estabelecer a relação e o diálogo de forma a desempenhar o
549
papel que cabe aos poderes públicos, bem como para permitir que o ser-
viço público atenda às necessidades do cidadão de maneira mais precisa”
(1995, p. 5). No entanto, cabe registrar que – mesmo ações e projetos de co-
municação pública estão sujeitos aos questionamentos e críticas por parte
da sociedade, especificamente, por parte dos adversários políticos e/ou de
instituições públicas que se sintam ameaçados em sua prerrogativa de re-
presentar a vontade popular, elaborar e propor projetos e políticas públicas.
Este artigo busca provocar a reflexão sobre a real possibilidade de se
efetivar uma comunicação mais pública e menos institucional. O dia a dia
dos profissionais sinaliza outros elementos que os princípios apresentados
pelos autores mapeados no estudo, por exemplo, não conseguem suprir,
pois a realidade destes profissionais requer um trabalho muito mais estra-
tégico. O estudo evidenciou que há tentativas de se fazer ora uma Comu-
nicação Pública, ora Institucional, sendo presente nas falas dos assessores a
ideia de defesa do governo e de embate com a mídia especialmente. A fron-
teira tênue entre ambas as formas, abre a possibilidade para novos estudos,
considerando as idiossincrasias inerentes às políticas de comunicação de
cada gestão, ao perfil das coligações que vencem as eleições majoritárias e a
correlação de forças com o Legislativo nos temas de maior disputa política,
apenas para citar alguns dos aspectos que tornam a pesquisa sobre Comu-
nicação Pública desafiadora. Entende-se que o desafio esteja na busca pelo
entendimento de sua complexidade e potencialidade diante das circuns-
tâncias de cada governo, ponto de atenção deste artigo.
550
Capítulo 5
PORTO ALEGRE,
A EXPERIÊNCIA
Pedro Luiz da Silveira Osório
Marcos Vinícius Pereira
Sandra de Deus
Camila Lângaro Becker
Patricia Pessi
Maria Helena Weber
A comunicação política
da Administração Popular
Um modelo a ser revisitado1
Introdução
553
cuja melhor expressão foi o Orçamento Participativo (OP).6 Prática que,
sendo um método coletivo para definir os investimentos públicos, evoluiu
para uma forma participativa de governar, tensionando as relações Estado-
-cidadania e “trazendo importantes mudanças em direção à despatrimonia-
lização do poder político” (Fedozzi, 1997, p. 197). Além disso, o OP repre-
sentou um privilegiado ambiente de comunicação, utilizado intensamente
pela AP e sua CCS.
Qual foi o sistema de comunicação adotado pela CCS, no que ele se
diferenciou dos demais sistemas e como ele contribuiu para a visibilidade
e a consolidação de um modo de governar participativo? Para responder,
cumpre identificar a sua estrutura e relacionar a práxis comunicacional de-
corrente com as proposições político-administrativas da AP. Apoiando-se
em uma estrutura centralizada, a CCS apropriou-se dos fatos políticos pelo
ângulo da comunicação, dando-lhes uma face própria mas intrínseca aos
propósitos estratégicos do governo, estimulando os cidadãos a, por assim
dizer, “apropriar-se” da esfera pública e a “recriá-la” ao seu modo, assumin-
do-se como sujeitos do processo político.
Porto Alegre obteve uma atenção significativa de pesquisadores inte-
ressados nas práticas de comunicação desenvolvidas pelos sucessivos go-
vernos da AP e também nos seus esforços para praticar uma democracia
participativa, reconhecidos internacionalmente7.
A experiência democrática de Porto Alegre é uma das mais conhecidas
em todo o mundo, aclamada por ter possibilitado uma gestão eficaz, e
extremamente democrática dos recursos urbanos. A ‘administração po-
pular’ de Porto Alegre foi escolhida pelas Nações Unidas como uma das
quarenta inovações urbanas em todo o mundo, para ser apresentada na
Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Assentamentos Urbanos
– Habitat II, que teve lugar em Istambul, em 1996. (...) No Brasil, o sucesso
de Porto Alegre tem-se manifestado de várias formas, a mais significativa
das quais se exprime nos ganhos eleitorais do PT ao longo dos anos 90 e
na aceitação pública do seu governo municipal (Santos, 2002, p. 460-461).
6 É extensa a bibliografia sobre o OP e sua importância. “Orçamento Participativo: reflexões sobre a expe-
riência de Porto Alegre” (1997) e “O Poder da Aldeia: Gênese e História do Orçamento Participativo de
Porto Alegre” (2000), ambas de Luciano Fedozzi, são obras referenciais e pioneiras. Bons exemplos do
interesse despertado pelo OP estão na bibliografia disponível no artigo de Boaventura dos Santos “Or-
çamento Participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva” (SANTOS, 2002, p. 455-
559). A mesma obra, por ele organizada, contém outro texto útil para a compreensão do OP: “Modelos
de deliberação democrática: uma análise do Orçamento Participativo no Brasil”, de Leonardo Avritzer
(SANTOS, 2002, p. 561-94).
7 O reconhecimento obtido pela capital gaúcha expressou-se também no fato de Porto Alegre ter sediado
por três vezes (refiro-me ao período registrado neste artigo e às edições mais relevantes do evento) o
Fórum Social Mundial.
554
Os governos são frequentemente apontados como o lugar preferencial
da produção de espetáculos quase sempre alienantes e deturpadores da po-
lítica8, que estaria refém da onisciência e da onipresença da mídia e de suas
formas redutoras. Ou, em outros casos, ela apresenta-se como extensão de
regimes totalitários9. Dessas características da comunicação política em ní-
vel mundial decorreria, em boa medida, a desqualificação da política, dos
partidos, dos governos e das tarefas sociais que lhes cabem. O Município,
fração de Estado que é, está preso a tais circunstâncias e seus governos ten-
dem a reproduzir tais práticas.
555
bem demarcados”, ou contrapostos a ícones híbridos (p. 28). A ideia de re-
volução versus democracia foi substituída pelas ideias de ajuste estrutural,
participação, desenvolvimento sustentado – estes dois últimos, conceitos
igualmente híbridos.
A necessidade de “reforçar” os conceitos atinentes à democracia já
eram percebidos pelo primeiro governo da AP. Seu documento “A Hora das
Decisões Estratégicas” (PMPA, 1990), considerado a síntese da estratégia
então adotada, como expõe Fedozzi, (2000, p. 92) definia seus propósitos
básicos, enfatizados pelas preocupações com o “conteúdo” da democracia
a ser praticada. Paralelamente, a CCS preparava-se para enfrentar a “crise
icônica” referida por Santos, almejando a produção de elementos subjeti-
vos que norteassem a apropriação, pelos cidadãos, das suas demandas aten-
didas pela administração municipal.
Acreditamos que a satisfação da sociedade através de respostas às ines-
gotáveis demandas se dá menos pela objetividade – isto é, pela realização
de obras e provimento de serviços – e mais pela produção de elementos
subjetivos que justifiquem política e eticamente as opções realizadas,
a seleção inevitavelmente limitada das demandas atendidas e a forma
como se dá esse atendimento (Herz, 1996, p. 45).
Santos (2000) chama a atenção para a “afirmação da subjetividade so-
bre a cidadania” (p. 262), pois as “formas de opressão e de exclusão” contra
as quais os cidadãos contemporâneos lutam “não podem, em geral, ser abo-
lidas com a mera concessão de direitos, como é típico da cidadania”.
Essa complexa luta contra novas formas de opressão, muitas vezes
mascaradas pelo cotidiano das reivindicações clássicas, manifestou-se tam-
bém no Orçamento Participativo que, se por um lado nasceu do “conjunto
de ações e de políticas da AP”, por outro foi gerado
[...] por uma cidadania exigente e indignada, em suas múltiplas formas
associativas e movimentos, individual ou coletivamente, que em vários
momentos demonstrou a importância da pressão política e do contro-
le social sobre o Estado, como fator decisivo para quebrar as barreiras
burocráticas que o separam da sociedade, obrigando-o a ‘fazer as coisas
acontecerem’, no dizer de liderança das comunidades (Fedozzi, 2000, p.
172).
A percepção de que uma nova subjetividade permeava as demandas
da cidadania foi expressa pela CCS. Ao defender o conceito de “qualidade
de vida” como adequado à tradução publicitária das realizações da AP, seus
dirigentes assim se expressavam:
556
Destacar uma determinada qualidade de vida equivale a evidenciar uma
determinada qualidade política, diferenciando este governo dos tradicio-
nais. [...] Para a AP, ‘qualidade de vida’ significa o fortalecimento da ci-
dadania, através do Estado (fração dele) que garante aos seus cidadãos
o acesso aos bens materiais e espirituais produzidos pelo conjunto da
sociedade. Em termos de cidade, essa ideia abrange – por exemplo – sa-
neamento básico, saúde, educação, estrutura viária, espaços urbanos efe-
tivamente públicos e humanizados, apoio ao processo cultural, estímulo
à organização e à participação política. Essa ‘qualidade de vida’ assim en-
tendida tem uma dimensão superior à ideia de ‘bem-estar’. Ela significa,
por exemplo, a defesa permanente de um espaço público e político ade-
quado à emancipação do cidadão e de suas energias criadoras. Apresenta-
-se como uma alternativa à ideia vulgar de que o destino da cidade é, ine-
vitavelmente, o de metrópole degenerada pelo capitalismo. Mostra que,
quanto mais a cidade refletir o desejo do cidadão e garantir o seu pleno
desenvolvimento, melhor ‘qualidade de vida’ terá (CCS/PMPA, 1992).
Os dirigentes da AP também percebiam as transformações sofridas
pelo Estado e seu entorno, como afirma Genro (1994).
[...] ou a cidadania se expressa numa democratização radical da esfera
pública para dar validade e ética ao Estado, como organização da li-
berdade individual e, ao mesmo tempo, para permitir que a socieda-
de inicie um processo de controle sobre os monopólios, ou a barbárie
consolida-se como única alternativa de futuro (p. 22).
Para a segunda gestão da AP, no enfrentamento de tais limitações do
Estado, cabia ao Governo Municipal “produzir uma profunda mudança
no senso comum da população, na sua maneira de olhar o mundo, de se
relacionar com a cidade, com o governo e a política” (PMPA, 1993). Isto
exigiria, no tocante à CCS, “a constituição de uma vasta rede de informação
e comunicação capilar, distribuída por todos os cantos da cidade, constitu-
ída por uma cidadania esclarecida” (idem). E representaria uma alternativa
frente aos modos de comunicação política referidos, tal como os concei-
tuou Weber (2000): o autoritário e o democrático-liberal, sem abdicar da
propaganda política.
No caso da AP, a propaganda política ocorreu de maneira caudatária
à exposição das realizações da AP, sempre vinculadas às demandas da ci-
dadania. Sua práxis comunicacional desenvolveu-se pela ótica da “radicali-
zação da finalidade pública” (SÓRIA, 1994). Essa radicalização só poderia
ocorrer mediante uma leitura renovada da regra constitucional da indispo-
nibilidade do interesse público.
557
Uma vez que não é prerrogativa de governantes a disponibilidade dos
interesses públicos, estes não podem ser indisponíveis, s.m.j., aos cida-
dãos, que têm em seus governantes a convicção que por eles não estão
sendo substituídos. [...] No caso da AP e das outras administrações de-
mocráticas, a questão da “indisponibilidade dos interesses públicos” é de
tal forma vista que a informação pertence a todos, de outra forma, a
informação, seus nexos, seus objetivos e seus resultados são um bem
comum, construído pela participação, pela parceria, pela disputa e pela
contradição, em campo plural e democrático e desta forma em busca da
hegemonia democrática (Sória, 1994, p. 10-11).
Essa forma de praticar a comunicação, que veio a se expressar atra-
vés de um sistema inovador, reflete, interpreta e amplia as proposições
político-administrativas, potencializando-as pelo ângulo da comunicação.
A Administração Popular assumiu o governo de Porto Alegre no dia 1º
de janeiro de 1989, depois de vencer as eleições municipais realizadas em
1988, elegendo Olívio Dutra para o cargo de Prefeito. A eleição seguinte foi
vencida por Tarso Genro. Os dois primeiros governos, cuja comunicação
é objeto deste artigo, assumiram perfis distintos, refletidos nas práticas co-
municacionais. No período (1989-92), a AP definiu as bases do seu perfil
político, inverteu prioridades político-administrativas, mudando o perfil
das obras e dos serviços e lançou as bases do OP. Na segunda gestão, os
esforços se voltaram para a ampliação do perfil político, a partir das reali-
zações herdadas, e para a ampliação das metas, que incorporaram proposi-
ções como os temas tecnológicos contemporâneos. A ideia de “inversão de
prioridades”, que foi mantida, assumiu uma dimensão política diferencia-
da, com o governo defendendo a constituição de “uma nova esfera pública”,
incorporando preocupações anseios e debates inadequados às possibilida-
des decisórias do OP. Nasceu assim o “Congresso da Cidade”, em 1993, sob
a denominação “Porto Alegre Mais – Cidade Constituinte”10.
Ao vencer sucessivamente quatro eleições municipais11, “o PT deu iní-
cio ao seu espantoso sucesso político” (Santos, 2002, p. 464). Na opinião
de Utzig (1996, p. 213), para além da conjuntura antes mencionada, “os
aspectos essenciais” explicativos do sucesso da AP relacionavam-se “com a
natureza dos governos que vêm sendo realizados”, habilitados a “operar po-
líticas capazes de reformar a sociedade e o estado existentes sem esperar a
10 Ao mesmo tempo, o governo estimulou o debate sobre o novo papel das cidades, tornando-se, também
por isso, uma referência mundial, organizando “diversas conferências internacionais sobre gestão de-
mocrática” (Santos, 2002, p. 460).
11 O PT foi o primeiro partido político a eleger um sucessor para a Prefeitura porto-alegrense.
558
grande mudança e, de outro lado, inventar instituições novas que projetem
a superação processual do status quo atual” (p. 211).
Entre as “instituições novas” estava o Orçamento Participativo12. Ele-
vado à expressão de símbolo da AP, apontado como a síntese das relações
AP/cidadania, o Orçamento Participativo, como relata Fedozzi (2000), não
resultou de “uma simples dedução político-programática” (p. 14) do parti-
do vencedor, mas “de um complexo conjunto de fatores objetivos e subje-
tivos que caracterizaram a realidade socioeconômica da capital gaúcha” no
final dos anos 80 e começo da década seguinte. Sua conformação resultou
também do debate realizado no primeiro governo sobre o perfil político da
AP, firmado no documento “A Hora das Definições Estratégicas” (PMPA,
1990), do qual decorreram as seguintes prioridades, em ordem hierárquica:
1) Intervenções urbanas com prioridade popular; 2) Transporte; 3) Organi-
zação da cidade; 4) Saúde e 5) Educação. A designação de tais prioridades
foi antecedida, no documento, sob o alerta de que “a democratização do
Estado e o fortalecimento de uma sociedade civil capacitada para controlar
o Estado é uma finalidade estratégica que orienta todas as ações da Admi-
nistração Popular” (PMPA, 1990)13.
Estava em curso, desta forma, o primeiro movimento que veio a se
constituir como uma reproposição do conceito de cidadania, na sua di-
mensão política, marcado pelas prioridades mencionadas. Para além das
suas especificidades, elas buscavam propósitos como, no caso das “Inter-
venções urbanas com prioridade popular” assegurar que elas se dariam
mediante “um processo de sentido pedagógico e humanizador” deflagran-
do “um processo com uma dimensão política e cultural sem precedentes
na cidade. (...) É necessário fazer com que os cidadãos se apaixonem pe-
las possibilidades que serão abertas pela Administração Popular para esta
cidade e do convívio que nela se pode ter.” Quanto ao “Transporte”, este
deveria ser definitiva e substancialmente melhorado, posto que se aproxi-
12 A vinculação entre o OP e o sucesso da AP é feita por Santos (2002), entre outros. “Qual o segredo de
tamanho sucesso? Quando, em janeiro de 1989, o PT assumiu a administração de Porto Alegre, estabe-
leceu-se uma nova modalidade de administração municipal, conhecida como ‘administração popular’.
Baseava-se em uma inovação institucional que visava garantir a participação popular na preparação
e na execução do orçamento municipal, e, portanto, na distribuição dos recursos e na definição das
prioridades de investimento. Esta nova medida, que ficou conhecida como ‘orçamento participativo’, é
a chave do sucesso da administração municipal do PT” (p. 461).
13 Fedozzi (2000) destaca o caráter da política assumida pelo governo: “Nessa nova formulação da política
estratégica, a noção de cidadania foi galgada a um novo estatuto, com sentido diverso das concepções
anteriores, marcadas pela visão de assalto ao poder (...) A instituição da cidadania (...) é compreendida
como um processo, cuja emergência depende das formas e conteúdos das relações estabelecidas ente o
Estado e a sociedade” (p. 95).
559
mara “da consciência de uma grande contradição entre o interesse público
e determinados interesses privados que atuavam de forma predatória na
cidade.” No caso da “Organização da cidade” se buscava a “alteração da cor-
relação de forças , estabelecida historicamente, na disputa pela produção e
apropriação do espaço urbano”, “desprivatizando” a Prefeitura. Já a “Saúde”
deveria ser tratada “como um direito, e não como um benefício concedido
de forma paternalista”. Por fim, na “Educação”, cabia lhe retirar o “sentido
assistencial”, “recuperando o papel didático-pedagógico da escola”. Em sua
conclusão, o documento “A Hora ...” afirmava: “Nossos objetivos não são
poucos ambiciosos: fazendo a mudança que a população e a cidade neces-
sitam, queremos dar nossa parcela de contribuição à construção de uma
nova humanidade.”
Essa linha estratégica manteve-se até o final do governo e foi reforçada
pela realização do PES/Imagem. O Planejamento Estratégico Situacional,
referido pela sua sigla PES e, no caso, aplicado à melhoria da imagem da
AP, foi realizado com o objetivo de identificar nas ações e prioridades de
governo, os elementos constitutivos de seu perfil e imagem e os problemas
que os afetavam. De acordo com as pesquisas de avaliação, a imagem da AP
apresentava-se, à população, “difusa e contraditória” (CCS/PMPA, 1991),
constatação que constituía o seu principal problema, visto que as mesmas
pesquisas indicavam uma melhoria crescente da avaliação dos serviços
(idem). O planejamento foi conduzido pelo Gabinete de Planejamento
(Gaplan) e pela CCS, no segundo semestre de 1991, elencando operações
que concorreram para a consolidação de uma boa imagem. Em março de
1992, as avaliações “ótimo/bom” já somavam 50,3% (CCS/PMPA, 1992a).
Mais de 50% da população com renda até 3,5 salários mínimos e beneficia-
da com a maioria dos investimentos da Prefeitura considerou a AP melhor
do que os governos anteriores; nas camadas médias e alta a avaliação foi
majoritariamente melhor; e a maioria da população considerou a AP ho-
nesta e competente (CCS/PMPA, 1992b).
O segundo governo da AP foi marcado pela preocupação com o novo
papel que cabe às cidades na contemporaneidade, ao lado dos esforços para
inseri-la em uma “nova esfera pública”, onde a cidadania tivesse um lugar
de destaque. No texto “A Máscara é a Essência”, (Genro, 1994) o prefeito
Tarso Genro, observava:
Esta nova esfera pública popular, contraditoriamente, já contém elemen-
tos novos, que apontam diretamente para a construção de uma nova or-
dem, já que recorrem a um sistema de pressões que se realiza incidindo
560
diretamente sobre o Estado, ao contrário das lutas sindicais tradicionais
que opõem, corporativamente, patrões e empregados. Basta ver a repro-
dução de ONGs, organizações e estruturas comunitárias de resistência
às mais diversas espécies de opressão em todo o mundo, que criaram
novos momentos de disputa sobre os rumos da humanidade (p. 44 ).
Tais preocupações, com ênfases variadas e alguns acréscimos, foram
recorrentes durante todo o governo. O documento “Sobre a estratégia da
Administração Popular”, com data de 24/08/1995 destacava que Porto Ale-
gre já consolidara suas duas linhas básicas de atuação: “ampliação da de-
mocracia e o controle da sociedade sobre o poder público” e “a AP pensa a
cidade globalmente”. A primeira abrangendo as melhorias do OP (criação
das Plenárias Temáticas), a formação de novos conselhos municipais, a Ci-
dade Constituinte, a reformulação das diretrizes urbanísticas. A segunda
situando Porto Alegre “no momento histórico atual, mas com um método
diferente ao conceito das classes dominantes, sem autoritarismo, exclusão
e privilégios, chamando a sociedade civil para ser parceira.”
562
Conselho Municipal de Comunicação foi o primeiro em âmbito municipal
a ser criado no país, pelo Decreto nº 9426, de 05/01/1989. Sua implantação
ocorreu apenas no segundo governo, a partir de um processo desencadea-
do em agosto de 1994, com a realização do painel “Os meios de Comuni-
cação de Massa na construção da cidadania: possibilidade de uma experi-
ência municipal”15. Participaram 28 representantes da sociedade civil, além
de autoridades municipais (CMC, 1994).
Além de dar suporte à atuação do Conselho Municipal de Comu-
nicação16, a CCS, no âmbito das políticas de comunicação, realizou o “I
Encontro Nacional de Assessores de Comunicação de Prefeituras”, de 15
a 17 de dezembro de 1994, liderando a criação do “Fórum Nacional das
Assessorias de Comunicação Social das Prefeituras Municipais”. Também
promoveu o “Curso de Extensão sobre Rádio Comunitária”, em maio de
1993, em parceria com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos),
ministrado por especialistas do Centro Internacional de Estudios Superio-
res de Comunicación para America Latina (Ciespal), do Equador.
15 Foram palestrantes os professores Murilo Ramos, da UnB e representante do FNDC, e Maria Elena
Hermossila, representante da INTEGRA – Fundación Nacional para el desarollo integral del menor, do
Chile.
16 Concebido para exercer um papel de vigilância cívica em relação às responsabilidades dos meios de
comunicação de massa e debater o impacto cultural, político e econômico das novas tecnologias de
comunicação no município, entre outras finalidades, o CMC promoveu atividades de capacitação e mo-
bilização, entre elas um seminário denominado “traçando Caminhos”, de 21 a 22 de novembro de 1994,
quando foram debatidos temas relativos às novas tecnologias e à legislação bem como o “1º Encontro
Estadual de Radiodifusão Comunitária, em 1º de junho de 1996”, e coordenou a criação e implantação
do “Canal Comunitário de Porto Alegre”, juntamente com o Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação. Foi o primeiro canal do gênero a funcionar em todo o país.
563
a intenção em vontade, corresponde ao exercício da capacidade teleoló-
gica do sujeito. [...] Qualquer tipo de estratégia conduz a uma eticidade,
ao conceber o equacionamento dos meios e a administração das coisas.
[...] Orientar-se exclusivamente pelas “Razões de Estado” é transformar
o “meio” em “fim”, é sujeitar-se à alienação política e reduzir a estratégia
a uma mera justificação do que está dado, é adotar uma conduta de
sentido anti-humano. Ao contrário, preocupar-se com a eticidade, com
a conduta estratégica, é criar condições para enfrentar a reiteração da
lógica das coisas e tentar abrir novas possibilidades de sentido humani-
zador (Herz, 1996, p. 46).
Assim, a política de comunicação proposta pela CCS somente era
concebida a partir da estratégia geral de governo e a integrava. E abdicava
do marketing político.
Consideramos imprópria a simples transposição do conceito de ma-
rketing para a análise de fenômenos políticos no sentido usual do ter-
mo. O objeto do marketing é a mercadoria e seus fetiches, e o objeto
disso que se convenciona chamar de marketing político é mesmo a po-
lítica. Em certa medida, a mesma ressalva pode ser feita em relação
ao marketing institucional. É bastante útil, entretanto, uma aproxima-
ção com a abordagem proposta pelo marketing. [...] Há uma pergunta,
incansavelmente feita pelos especialistas em marketing, que pode nos
interessar sobremaneira: qual é o nosso negócio? [...] entendemos que
uma resposta mais adequada à pergunta “qual é o nosso negócio?” se-
ria proporcionar aos cidadãos de um município [...] a satisfação com
serviços especializados próprios da esfera municipal, procurando atuar
como um sujeito racionalizador das políticas referentes ao oferecimen-
to destes serviços. Reiteramos, aqui, a tese de que o sucesso de uma
administração viria menos das obras e serviços em si e mais das possi-
bilidades de que essas obras e serviços satisfaçam a população do mu-
nicípio (Idem, p. 46-47).
Na sequência, o texto observa que, diferente do marketing aplicado
às empresas, que lhes permite delimitar claramente a sua clientela, a ad-
ministração pública trabalha com uma “imensa e heterogênea clientela”.
Por isso, a “justificação das demandas selecionadas e da forma de atendê-
-las” exige “a formação de um consenso” (Ibidem), onde a comunicação
tem a desempenhar um papel decisivo. Essa abordagem exibe a mesma
inflexão consensual apresentada peço Orçamento Participativo, em seu
permanente esforço de obter decisões consensuais e dar-lhes um sentido
comum.
564
Implantação do sistema da CCS
565
municação da Administração Popular 89-92” (PT/POA, 1992), produzido
por uma comissão criada apelo Núcleo de Comunicação do PT porto-ale-
grense. Ela constatou a subestimação de determinadas funções18. Essa es-
trutura e as operações dela decorrentes geraram um setor de comunicação
com características inéditas na área governamental, que atuava com base
nos procedimentos seguintes:
1) A Comunicação não se limita a simplesmente ‘divulgar’ ou “comuni-
car” o que faz o Governo Municipal mas, além de coordenar a emissão
das mensagens, informa-as em seus conteúdos. [...] 2) A Comunicação
não se limita a propor soluções técnicas, mas atua politicamente. [...]
3) A Comunicação não trabalha para substituir a política, nem o plano
de governo, nem as suas realizações. Amparada pelo seu status políti-
co, monitora e orienta as manifestações públicas de todos os setores,
trabalhando para que elas efetivamente correspondam ao existente. 4)
A Comunicação desenvolve ações absolutamente impessoais. [...] 5) A
comunicação praticada está associada ao planejamento estratégico. 6) A
Comunicação valoriza o profissionalismo. [...] 7) A Comunicação pro-
cura desenvolver uma política pública de comunicação, estimulando o
surgimento de espaços e debates onde a sociedade possa opinar sobre a
utilização dos meios de comunicação (Osório, 1994).
Valendo-se desses preceitos, a CCS19 monitorava o discurso da AP
centralizando a emissão das notícias disponibilizadas para os meios de co-
municação, as quais todas convergiam para a Coordenação de Jornalismo,
onde tinham os seus textos padronizados e, quando necessário, aperfeiço-
ados em termos de conteúdo e enfoque. As “falas” dos governantes eram
moduladas de maneira a reforçar a prioridades definidas pelo próprio go-
18 “Apesar da clareza em relação aos objetivos do Projeto e das funções e serviços, a Comissão reconhece
que, entre essas funções, a prática jornalística foi hipertrofiada. (...) Essa situação decorreu, em parte,
devido à subestimação da especificidade das funções implementadas em relação à qualificação profissio-
nal necessária. (...) Já nas primeiras versões do projeto, identificava-se a necessidade de uma política
de comunicação institucional em virtude da “existência de uma diversidade muito grande de públicos
(internos e externos) com os quais a instituição precisa estar em contato” (PT/POA, 1992).
19 A centralização política das atividades de comunicação foi reforçada pela AP através do Decreto 10.848,
de dezembro de 1993, que instituiu a Comissão Permanente de Promoções e Eventos. Integrada por
representantes de vários órgãos municipais e coordenada pela CCS, a referida comissão tratava de as-
segurar a “otimização dos recursos humanos e financeiros”, procurava harmonizar e distribuir, espacial
e temporalmente, os atos, festividades, solenidades, reuniões, enfim, todas as atividades municipais de
caráter público e simbólico. Através dela, os titulares dos órgãos municipais podiam reivindicar, para
as suas atividades, o agendamento do Prefeito, os procedimentos de comunicação e o apoio da Coorde-
nação de Relações com a Comunidade (CRC), importante braço político-administrativo da AP. Como
“promoções e eventos” enquadrados pelo decreto, estavam relacionados às atividades de caráter globa-
lizante, prioritárias, que contassem com a participação, promoção, patrocínio ou apoio institucional da
Prefeitura Municipal, envolvendo atividades de mobilização de qualquer tipo de público e destinadas
a divulgar, formar, debater, comemorar ou desencadear alguma outra ação que “envolva a projeção
sistemática da imagem institucional” da Prefeitura.
566
verno. Essa modulação estabelecia uma relação sinérgica com as demais
manifestações da AP.
567
Assim, a política de comunicação apoia a estratégia (informada também
pela comunicação), que se desdobra em ações, que revelam um perfil, que
se evidencia pela marca. Dessa sinergia nascerá a imagem (Idem, p. 6).
As principais realizações e atividades da AP não apenas se subordi-
naram aos “eixos estratégicos”, mas lhes deram sustentação e produziram
resultados sinérgicos. Isto pode ser constatado nos eventos, obras e inicia-
tivas, alguns deles aqui mencionados, extraídos do documento “Algumas
obras e iniciativas com participação popular” (CCS/PMPA, 1995a), típicas
da práxis desenvolvida pela AP: a) Foro Contra a Recessão e o Desem-
prego. b) Tecnópole. Buscava criar condições para a implantação de um
pólo de alta tecnologia e de novas tecnologias em Porto Alegre. c) Incuba-
dora Empresarial Tecnológica. d) Instituição Comunitária de Crédito. e)
Trade Point. Viabilizava a exportação de produtos de pequenas e médias
empresas. f) Ponto de oferta/Compras Coletivas/Feiras Modelo. g) Feira
da Reforma Agrária. h) Feira das Costureiras do Morro da Cruz. i) Guaíba
Vive. Gerenciava a recuperação do rio Guaíba. j) Fórum de Regularização
Fundiária. k) Fórum Sindical. l) Fórum Sindical da Habitação. m) Conse-
lho da Criança e do Adolescente. n) Conselho Municipal dos Direitos da
Cidadania contra as discriminações e a violência. o) Assessorias Especiais
do Negro e da Mulher. p) Conselhos Municipais. q) Comissões de Saúde. r)
Escola Cidadã. s) Assistência Social. t) Descentralização Cultural. u) Pavi-
mentação Comunitária.21
Tais ações, iniciativas e obras correspondiam às reivindicações dos
vários grupos sociais e regiões da cidade. Consumavam-se como elemen-
tos comunicacionais integrantes de uma grande rede de comunicação, das
quais a maior estava representada no Orçamento Participativo. Mas o pro-
cesso de comunicação efetivamente se consumava a partir da abordagem
oferecida pelos materiais de comunicação e os eventos produzidos com tais
propósitos. Alguns eventos exigem menções à parte.
21 Tal relação de ações e iniciativas da AP refere-se ao período estudado e não abrange todas as suas re-
alizações. Cumpre notar, também, que várias delas evoluíram para outros formatos e ampliaram seus
propósitos, de acordo com os seus progressos e interesses. As dimensões da participação popular, por
exemplo, continuaram se ampliando de tal forma que já somavam 19 os vários tipos de conselhos e
fóruns, abrangendo áreas como o futebol e os idosos (PMPA, 2001).
568
é Você quem faz a Festa” e reuniu mais de 100 eventos e atividades cultu-
rais de todos os gêneros. Ao longo das edições, foram sendo incorporadas
agendas de cunho mais político, mescladas a atividades culturais e de recu-
peração da história.
Prestação de Contas
22 Como mostra este trecho: “Numa perspectiva de reforma da cidade, que inverta a lógica destruidora
imposta pela submissão da arquitetura e do urbanismo ao desenvolvimento do capital, pelo impacto da
especulação, pela ausência de um planejamento democrático e participativo. É para isso que a Prefeitura
Municipal está chamando ao debate as entidades comunitárias, os sindicatos, as associações patronais,
as organizações não governamentais, os representantes da sociedade civil e os cidadãos de Porto Alegre.
(...) Isto só é possível com o aprofundamento da democracia, com a construção e consolidação de canais
cada vez mais amplos e eficientes de participação e controle dos cidadãos sobre as estruturas públicas
(PMPA, 1993a, p. 2).
23 Participaram dos grupos de trabalho do Porto Alegre Mais – Cidade Constituinte e do Congresso da
Cidade 298 entidades da sociedade civil e cerca de 1.500 cidadãos. Computando-se os eventos parale-
los, que possibilitaram a vinda de palestrantes, tanto do País quanto do exterior, o Cidade Constituinte
contabilizou a mobilização de 4.000 porto-alegrenses. Apesar da divisão dos grupos focados em temas
estratégicos, foram produzidas análises e sugestões sobre um conjunto bem mais amplo de questões da
cidade. O Cidade Constituinte aprovou 224 propostas dentre diretrizes, programas, projetos, ações, do-
cumentados no caderno “Diretrizes para Porto Alegre”. Esse trabalho serviu de insumo para as decisões
tomadas pelas Plenárias Temáticas do OP, implantadas em 1994.
570
Sob a frase “O destino da cidade está em suas mãos” (à qual foi agrega-
do o slogan “Quem muda o bairro, muda a cidade,” utilizado nas peças pro-
mocionais dirigidas aos participantes do OP) o povo porto-alegrense foi
convidado a participar do “Porto Alegre Mais”, sendo chamado a responder
questões como “Que Porto Alegre queremos? Que cidade desejamos viver?
Quais os caminhos para construir uma cidade melhor? Que tipo de desen-
volvimento econômico precisamos?”, questões estas constantes do material
promocional e dos documentos preparatórios. Sucederam-se palestras, tão
diversas como “Participação Popular no Desenvolvimento Urbano: as ex-
periências de Munich, Berlin, Esse e Frankfurt – Alemanha (proferida em
22/09/93 por Sebastian Müller, Professor de Planejamento e Urbanismo na
Universidade de Dortmund, Alemanha), “Tudo que é sólido desmancha
no ar – A Aventura da Modernidade” (proferida em 05/08/93 por Marshall
Berman, professor de Ciência Política na Universidade de Nova Iorque).
O II Congresso manteve a mesma linha de atuação, realizando-se sob o
slogan “O lugar de todas as coisas”. Além das suas preocupações específi-
cas com o planejamento urbano, também promoveu palestras com temas
e personalidades que contribuíam para aumentar o interesse dos porto-
-alegrenses. Como ocorreu com as palestras “O tempo e o espaço na cidade
contemporânea”, proferida em 21/03/1995, pelo professor norte-americano
David Harvey e “Cidade Constituinte – a Cidade do Futuro”, proferida em
23/03/95 pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos.
Os meios impressos
572
já do primeiro número: impessoal, institucional, informativo e de serviços.
Sua segunda edição, por exemplo, que circulou em agosto de 1989, foi in-
tegralmente dedicada ao I Plano Semestral da AP, sob a manchete “A cida-
de vai mudar”. Ocupando as quatro páginas, a matéria discriminava todas
as ações previstas para o semestre entrante, seus significados e metas. As
ações, dizia o texto de abertura,
[...] dão consistência a quatro compromissos políticos do governo: com
o cidadão, com a construção de uma cidade melhor, com o início da
recuperação do Rio Guaíba e com a valorização do Centro da cidade.
573
O “Cidade Viva”
574
valia-se de depoimentos testemunhais e usava o espaço público como ce-
nário preferencial26. Tomado como case por um grupo de trabalho do mó-
dulo “Comunicação com o Mercado”, da Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM) de Porto Alegre, em setembro de 1997 o “Cidade Viva”
foi analisado à luz da conjuntura política e das relações conflituosas entre
a Prefeitura e a imprensa local. O estudo situa o surgimento do programa
num cenário político mais favorável à AP: a recondução da Frente Popular
em Porto Alegre, nas eleições de 1992. Conclui que “a AP buscava uma in-
terlocução própria, alternativa, mais direta e transparente com a população
da cidade [...] e atingir um maior número de pessoas com a versão da AP
sobre os fatos”. Acrescenta, além disso, que
Pela primeira vez na história da cidade as pessoas são estimuladas a par-
ticipar e retratadas como parte de um processo de construção coletiva,
nas quais elas são o principal personagem e o foco de toda a ação (Fer-
reira, 1997).
A inflexão editorial do “Cidade Viva”27 televisivo permaneceu na sua
versão radiofônica e os programas tornaram-se praticamente sinônimo da
AP. O sistema de comunicação desenvolvido pela CCS apoiava-se em ou-
tros esteios, os quais não cabe aqui abordar, considerando as limitações
deste artigo28.
26 Não se tratava, portanto, de uma versão da chamada “comunicação popular. “Há que se fazer contudo,
uma demarcação política importante. O “Cidade Viva” não é um programa do movimento popular. Os
conteúdos, o que é divulgado, as propostas contidas são de responsabilidade do Governo Municipal.
Se a ação do governo requer uma base participante atuante, consciente de seus direitos e disposta a
avançar na melhoria de sua condição de vida, o caráter de “não manipulação” permeia toda a atividade
de Comunicação do Governo. No “Cidade Viva”, seu produto de maior alcance, os cuidados são redo-
brados. Os conteúdos devem necessariamente refletir a realidade, o correto andamento das coisas, com
transparência e sinceridade (SÓRIA, 96).
27 O “Cidade Viva” não foi a primeira experiência de programa televisivo da AP. O antecedeu o programa
denominado “Porto Alegre”, que inaugurou o formato de três minutos, exposição em horário nobre em
todos os canais de TV aberta existentes na capital, veiculado de novembro de 1990 a junho de 1992, na
primeira gestão da AP. O “Porto Alegre” surgiu num momento em que o primeiro governo apresentava
o maior índice de rejeição obtido pela AP, conforme as pesquisas de opinião: 43,7% dos entrevistados
consideravam o governo municipal “ruim” ou “péssimo”. Nessa fase, o programa era conhecido por 1/5
da população, conforme pesquisas.
28 A importância dos mesmos pode ser aferida pela “Súmula de Atividades” (PMPA, 1993d) da CCS, cor-
respondente aos meses de abril a novembro de 1993. Somente nesse período de oito meses, por exem-
plo, a CCS atendeu 172 atividades da AP, atendimento esse abrangendo “planejamento de comunicação,
assessoria, cerimonial e protocolo, releases, produção de entrevistas, programas de TV e rádio, criação e
impressão de peças gráficas e campanhas publicitárias” (Idem, p. 1). A Coordenação de Produção aten-
deu 448 solicitações de impressos, produziu 36 programas de televisão e 229 de rádio. Na Coordenação
de Jornalismo, foram emitidos 5.133 releases, dos quais 1.121 (21,8%) foram aproveitados diretamente
pelos meios de comunicação e 481 (10% do restante) utilizados como pauta. O setor de monitoração
dos meios eletrônicos produziu 934 entrevistas, o que equivale a dizer que, a cada dia útil, pelo menos
cinco dirigentes municipais foram entrevistados em alguma TV ou rádio, defendendo a participação
popular, a transparência administrativa e discorrendo sobre o novo papel da cidadania.
575
Considerações finais
576
bre a existência, em governos democráticos, de uma estrutura semelhante
e atuando com tal grau de autonomia. Vocacionada para o planejamento e
as ações estratégicas, a CCS participou ativamente
dos debates sobre a reforma administrativa e o perfil democrático e
popular do governo, integrando a comissão formuladora dos documentos
finais. Posteriormente teve um papel líder na execução do Planejamento
Estratégico Situacional (PES), direcionado à consolidação da imagem pú-
blica da AP, realizado durante o primeiro governo. E, no segundo, sempre
participou das formulações dos documentos balizadores das políticas ge-
rais da AP.
Ao longo dos dois períodos de governo estudados, a CCS elaborou e
consolidou uma política de comunicação, exibida nos vários documentos
pesquisados, articulando-a com objetivos estratégicos que negavam o pre-
domínio do marketing sobre a política. Em seu âmbito, a CCS reproduziu
a práxis estabelecida pela AP no Orçamento Participativo, em linhas gerais.
Enquanto, naquele âmbito, o Governo abria-se para dialogar e aprender
com as insurgências factuais, por assim dizer, no âmbito da comunicação
a CCS radicalizava aquelas insurgências, mas as situava como legítimas,
reivindicantes do que lhes pertencia. Enquanto, no OP, o governo buscava
formas de somar-se à construção de um Estado (fração) condizente com
as novas exigências sociais, a CCS desenvolvia ações de comunicação de
caráter estratégico, rotineiras ou espetaculares, atribuindo ressignificações
emancipatórias ao discurso do governo e, mesmo, ao da cidadania, cujas
reivindicações interpretava. Assim, a inédita sequência de vitórias eleitorais
obtidas pela AP pode ser inferida como uma decorrência da práxis comuni-
cacional desenvolvida, pois ela abria ao cidadão a possibilidade dele posicio-
nar-se como ator principal na sua luta por uma cidade e uma vida melhores.
Cumpre ressaltar que os resultados atingidos pela comunicação da AP
não devem ser vistos como manifestações de uma comunicação “popular”,
apesar dos seus vínculos e atenções às demandas populares. A práxis co-
municacional da CCS assumia-se como institucional e política, focada na
comunicação político-governamental. A CCS não postulava ser a “voz” da
cidadania, assim como o Governo não se colocava como o governo “do
povo” – mas como popular e de esquerda, pretensões que, daquelas, guar-
dam uma grande distância conceitual. Desde os primeiros boletins, até o
ápice representado pelo “Cidade Viva”, é recorrente, insistente, visceral até,
o apelo da AP à participação e à transparência – postura que se orientava
pelas reivindicações e exigências da população.
577
O modelo de comunicação da CCS, sendo de caráter político-gover-
namental voltava-se, portanto, à propaganda das realizações da AP. Seus
traços originais localizam-se, de maneira expressiva, no fato de que ele se
apoiava em uma rede de comunicação estimulada pela AP, a começar pelo
próprio Orçamento Participativo. Paralelamente às dezenas de assembléias
do OP e seus múltiplos fóruns temáticos, desenvolveu-se uma trama de
acontecimentos gerados pela AP, mas protagonizados pela cidadania, na
qual o Governo Municipal se apoiava, incorporando-a em seu discurso.
Acontecimentos culturais, políticos, sociais, econômicos, étnicos, sanitá-
rios, ambientais, entre outros, cujas proposições, embora contidas no ho-
rizonte teleológico da AP, adquirem dimensões por vezes surpreendentes.
Assim, a quase onipresença do espírito popular/cidadão nos produtos da
CCS, seja pela viva voz dos depoentes, nos programas “Cidade Viva”, nas
publicações, ou no enfoque adotado nos diversos eventos e materiais (pre-
sença esta que se contrapunha a virtual ausência de manifestações pessoais
dos dirigentes da AP, tanto nos produtos eletrônicos como nos impressos),
a quase onipresença, repito, do espírito popular/cidadão funcionava como
um canal de expressão e reivindicação das demandas dos munícipes. Des-
ta maneira, coincidiam os interesses propagandísticos da AP e reivindica-
tórios dos cidadãos. Esta coincidência, que abriga traços de originalidade
política, posto que nasce do OP, contém igualmente os elementos que dis-
tinguem o modelo de comunicação adotado pela CCS dos modelos conhe-
cidos. Ao mesmo tempo em que prestigiava a AP, o modelo de comunica-
ção por ela adotado estimulava o controle popular sobre si.
Os produtos da CCS, especialmente os programas eletrônicos “Cidade
Viva”, asseguravam à população um inédito espaço nos meios de comuni-
cação. Em horários nobres, a população assomava às televisões e rádios de
milhares de moradias, pronunciando um discurso em que reivindicava seu
protagonismo sobre as coisas públicas, falava das suas conquistas, dificul-
dades, carências e desejos. Pode-se concluir que a práxis comunicacional
da CCS não apenas promoveu o governo, como ocorre nos demais mode-
los de comunicação, mas promoveu a cidadania que promoveu o governo.
Diferiu, portanto dos modelos conhecidos, voltados à exclusiva promoção
dos governos ou à democratização meramente formal das informações pú-
blicas, através da disponibilização das mesmas, para o “bom uso” da cida-
dania. O sistema de comunicação adotado pela AP contribuiu de maneira
decisiva para a sua visibilidade e consolidação e para a disseminação de
uma cultura participativa, despertando a empatia popular e traduzindo, de
578
maneira adequada e eficaz, a tensão entre os modos representativo e parti-
cipativo de governar.
Implantou-se, portanto, um modelo de comunicação político-gover-
namental diferenciado, democrático, eficaz e pioneiro. Diferenciado, por-
que adotou a emissão de discursos controlados e monitorados, em favor de
determinados objetivos, eliminando a dispersão características das mani-
festações dos órgãos públicos. Democrático porque utilizou a centralização
como método para incluir em sua práxis as aspirações populares, sem des-
curar do projeto de governo, propriamente dito. Eficaz porque o governo
da Administração Popular foi o primeiro da história da capital gaúcha a
repetir mandatos. Pioneiro porque laborou na construção de políticas pú-
blicas de comunicação.
Deve-se admitir, por evidente, que os regimes autoritários adotam es-
truturas de comunicação centralizadas. Mas também é evidente que, na-
queles casos, se trata de uma comunicação impositiva. Diversa, portanto,
da CCS, que incluía as demandas populares na construção do seu discurso,
tal como fazia a AP. Muitos e significativos aspectos aqui referidos conti-
nuam clamando por novos estudos. Parece evidente que o cenário político
e social no qual se realizou esta pesquisa reconfigurou-se nos dias atuais
de modo assemelhado e reclama novas investigações voltadas à utilização
pública da comunicação como emancipadora da cidadania.
579
Espetacularização e credibilidade
O discurso terceiro no Cidade Viva
Introdução
581
peças de um tabuleiro, por meio de um fantoche1 Poderia dizer que, con-
siderando as circunstâncias anteriormente descritas, o anão é a política; o
tabuleiro, a esfera pública; o fantoche, a comunicação política; e as regras
do jogo são o espetáculo.
Hoje, é moeda comum compreender que os processos de trocas sim-
bólicas determinam a construção dos sentidos das coisas. Os significados
são resultados de um mundo complexo de relações de produção e apropria-
ção discursivas. Sendo assim, os conceitos de legitimação e credibilidade,
valores tão caros ao discurso político, podem ser verificados em pesquisas
voltadas às instâncias de recepção. Porém, sem o entendimento das pre-
tensões discursivas das estratégias presentes nos produtos midiáticos seria
difícil descobrir em que medida o campo político alcança os seus objetivos.
Assim, os propósitos deste artigo permanecem no âmbito da análi-
se da produção discursiva e propõem olhares atentos às estratégias. Ao se
deparar com os produtos midiáticos da comunicação política, a tarefa da
pesquisa acadêmica é desvendar o que está posto e o que os sujeitos discur-
sivos querem comunicar.
As estratégias e técnicas de persuasão procuram transformar a pro-
paganda política num discurso agradável para além do compreensível: o
discurso tem de ser crível e despertar simpatia, quem sabe adesão e enga-
jamento. Ora, como o político é um campo em constante crise de credibi-
lidade nas democracias representativas, a quem recorrer para que o “fan-
toche” possa cumprir o seu papel? Vamos começar por analisar o conceito
de esfera pública que parece ser, ainda, uma categoria da qual não se pode
prescindir quando o objetivo é analisar as relações entre os campos da po-
lítica e da comunicação.
1 “Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de
um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca,
com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de
espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade,
um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche.
Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo
histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia.
Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se” (BENJAMIN, 1996).
582
rência no que se refere ao entendimento de que os problemas práticos po-
deriam ser resolvidos por meio do estabelecimento de normas que fizessem
a mediação entre conceitos puros e dados sensíveis.
Para Kant, os conceitos derivados da moral, como leis práticas, não
devem ser baseados na experiência subjetiva, mas os princípios éticos se
ampliam do imperativo categórico ao direito político (2008). Os conteúdos
racionais universais poderiam ser tomados nos seus usos normativos e te-
leológicos, pois não estão para desvendar objetos ou dados da experiência
particular. Dessa forma, um signo que se refira ao passado e ao futuro, que
seja ao mesmo tempo demonstrativo, rememorativo e prognóstico poderia
inspirar idealmente as pessoas a realizar um determinado fim. O modo de
pensar das pessoas em relação à Revolução Francesa, por exemplo, seria
um “signo empírico” capaz de gerar uma Constituição a priori, um novo
começo para a humanidade, um ideal. Não seria a Revolução em si o even-
to gerador dos universais normativos, mas sim o espírito simbólico e a in-
tenção geral com que a Europa participou do evento.
[...] O ideal é, nessa concepção, ainda mais distante da realidade do que
a ideia; a ambos só pode ser atribuída uma função regulativa: assim
como a ideia dita a regra, também o ideal serve de protótipo para a de-
finição de um cópia, sendo sempre apenas “diretriz de nossa ação” [...].
(Habermas, 1984, p. 139).
Tal noção será determinante para admitir princípios que, se por um
lado, pouco explicam sobre formações históricas, por outro, devem orien-
tar as ações de todos os homens. A distinção entre categorias explicativas
da História e categorias normativas (teleológicas, em última instância) está
presente na concepção de esfera pública de Habermas (1984) como subs-
trato. O filósofo alerta para a não coincidência entre o modelo normativo
da sociedade civil burguesa e a realidade: a contradição que, de saída, ante-
cipa o posterior declínio prático da esfera pública burguesa está no fato de
ela garantir o acesso a todos os homens por princípio, mas negar a partici-
pação irrestrita na prática.
Na concepção tradicional, a esfera pública é um espaço social no qual
indivíduos privados se colocam para debater questões de interesse público,
dos cidadãos. Portanto, é no ato de tornar públicos seus discursos que os
sujeitos sociais constroem e desconstroem hegemonias simbólicas. Haber-
mas foi buscar primeiro nos gregos e, depois, nos modernos, uma concep-
ção de esfera pública como o espaço de comunicação fundado na palavra
expressa por indivíduos orientados, por princípio, pelo interesse racional.
583
A busca por consensos tem como premissa, neste ponto, um ideal normati-
vo racional. Não se trata, porém, de conceber a democracia grega de acordo
com os preceitos democráticos vigentes, tampouco, o conceito de esfera
pública pode descrever um momento histórico específico. O que se preten-
de é compreender o caráter normativo (não descritivo) que as democracias
modernas mantêm em seus horizontes, ainda que não possam praticá-lo
em plenitude.
Se na Grécia a comunidade de cidadãos se reunia na “praça”, na época
burguesa ela se encontra nos “cafés literários”. Na esfera pública moderna, o
caráter “burguês”, classista, desse espaço público, impede o acesso à parcela
da população não proprietária. A formação da opinião pública dominante
na época burguesa, na prática, é fundada por um interesse de classe, po-
rém, ainda assim, ela adverte para a existência de um projeto ideal (norma-
tivo) de uma comunidade de cidadãos, tal como os gregos. A imprensa, na
formação histórica burguesa, impulsionou tal noção ideal de esfera pública
a partir da noção de visibilidade dada à palavra exposta aos olhos de todos
os cidadãos. Este espaço de comunicação não é o estatal nem o civil, é onde
os cidadãos evoluem de suas opiniões privadas à construção de consensos
públicos, é um palco de disputa e difuso.
A esfera pública, portanto, carrega em si princípios que transcendem
formas históricas concretas (existindo mais como modelo referencial do
que como prática), legitimando a democracia moderna em referência aos
valores universais da razão, ética, publicidade e visibilidade. É isso que per-
mite conceber o entendimento como uma abstração teleológica das práti-
cas comunicativas, como horizonte condicional da comunicação ideal.
Com o conceito do agir comunicativo – implícito nos primeiros es-
tudos e mais elaborado nos posteriores – Habermas (1989) avança para
desvendar a legitimação das democracias ocidentais. Assim, legitimação
e visibilidade tendem a representar conceitos-chave para a compreensão
do mundo atual, pois não será necessário buscar justificativas nos blocos
históricos pré-modernos (religião e Estado): o núcleo central da democra-
cia funda-se no fato de que são os homens que fazem as leis (as normas,
os valores, a ética) e que, por poderem ser questionadas à luz da razão, tais
leis podem também ser revistas (Habermas, 1975). É, pois, na conversação
entre indivíduos que se redescobre a autonomia.
À medida que se aprofundam as noções de legitimação, visibilidade e
autonomia, percebe-se que tais conceitos supõem seus contrários atuando
em forma de negação. Com a degradação da esfera pública burguesa pela
584
inclusão de outros sujeitos sociais que reivindicam o direito à palavra, a
questão da visibilidade passa a ser fundamental para o debate público (di-
vergências políticas e não apenas civis). Neste ponto, a degradação da esfera
pública moderna decorre não exatamente do desenvolvimento dos meios
eletrônicos de comunicação, mas do fato de, com tal desenvolvimento, os
espaços discursivos de copresença ficarem muito reduzidos. A mudança,
então, não estaria tanto na política, mas na esfera pública, ou seja, na forma
de apropriação do discurso político que, tantos para os gregos como para o
ideário clássico liberal, previa algum contexto dialógico.
Segundo Maia (1998), as concepções de Habermas sobre a mídia fo-
ram muito criticadas por permanecerem nos marcos estritos do conceito
adorniano de indústria cultural. Em relação ao indivíduo contemporâneo,
suas teorias teriam recebido reparos por estarem fundamentadas em mo-
delos funcionalistas e behaviouristas, “desconsiderando o potencial polí-
tico da teatralidade” (p. 135). No entanto, a partir da teoria da ação co-
municativa, Habermas teria avançado mais para compreender melhor as
sociedades complexas. Com isso, Maia argumenta:
[...] Os processos de comunicação institucionalizada não levaram a uma
irremediável degradação ou extinção do espaço público, mas à promo-
ção de um ‘novo espaço público’ [...] interligando discursos, radicali-
zando o confronto entre os divergentes princípios de integração social e
aprofundando a reflexividade da vida social em geral (p. 139).
Em tal perspectiva, legitimação, visibilidade e autonomia estão presen-
tes na esfera pública como preceitos que, muitas vezes, são suplantados (ou
não) na experiência por seus respectivos contrários. Se os interesses políti-
cos, numa sociedade complexa, costumam exercer o poder coercitivo sobre
o telos do entendimento e obstruir o estabelecimento de normas universal-
mente válidas de diálogo, por outro lado, as ações comunicativas de grupos
não dominantes da sociedade civil podem furar o bloqueio e pautar a esfera
pública a partir de um ponto externo às forças sistêmicas de repressão (hete-
ronomia). A clássica tese da “degradação” da esfera pública é, em última ins-
tância, a crise dos normativos democráticos e esta crise tanto mais insolúvel
será quanto mais poderosas forem as forças sistêmicas de controle.
2 O conceito é uma elaboração da autora sobre a obra: CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o milênio –
lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
588
mum: a potência de sedução. Se, por um lado, o discurso político necessi-
ta justificar-se e, para tal, recorre à cena pública como se fosse a “verdade
verdadeira”; por outro, não pode fazer isso apenas por meio da exposição
de argumentos, mas haverá de recorrer às técnicas do esconder, do mis-
tificar3.
A propaganda não é um fator suplementar na cultura de massas, atua
como linguagem comum do complexo mundo da indústria cultural da in-
formação e do entretenimento não apenas enquanto espaço de anúncio,
mas, principalmente, como meio de socialização e de visibilidade de pro-
dutos, marcas, ideias, coisas e humanos. A linguagem espetacular da pro-
paganda dá existência social aos produtos simbólicos que se comportam
como mercadorias culturais.
Para Gomes (2004), o desenvolvimento da comunicação de massa e de
sua indústria da cultura acabou por ir numa direção oposta àquela tomada
pela concepção de política como administração de interesses racionais. Ao
se apropriar do discurso midiático, a lógica publicitária impôs à sociedade
a representação e a espetacularização como condição da publicização (no
sentido de tornar público) dos discursos políticos.
Como ensina Quessada, própria do discurso publicitário é a capaci-
dade de ir além dos seus espaços tradicionais e dos lugares simbólicos que
lhe são idealmente designados. O “extramídia” é a ocupação de espaços
que não seriam tradicionalmente próprios da propaganda, a circulação de
uma linguagem não tão informativa por canais de comunicação inseridos
nas atividades cotidianas de trocas simbólicas: A distinção entre o conteúdo
programático de uma transmissão e as mensagens publicitárias torna-se, en-
tão, difícil de estabelecer, porque as mensagens fazem parte, literalmente, do
próprio programa (2003, p. 78).
Na medida em que o consumo está inscrito na própria condição de
socialização e publicização dos discursos e, portanto, das interações sim-
bólicas (ou, até pré-simbólicas, semioticamente falando), a sociedade, ela
própria, acaba por se tornar o suporte do discurso midiático (publicitário,
por excelência). Isso pode ser verificado no modo cotidiano de expressão
social dos indivíduos que, mesmo involuntariamente, tendem a participar
de uma lógica regulada por parâmetros mais ou menos publicitários.
Se a linguagem comum do homem contemporâneo é pautada pela se-
dução, se o espetáculo, muitas vezes, é a única mediação que nos é dada
para que possamos dar sentido ao mundo que nos rodeia, a política irá,
3 Adriano Rodrigues (1989) usa a expressão “camuflagem do sujeito da enunciação”.
589
inevitavelmente, fazer parte disso tudo. No contexto da comunicação polí-
tica, a tarefa do agente político diante do campo da comunicação é dupla:
primeiro, colocar-se como pauta irresistível perante o campo do jornalis-
mo e, segundo, utilizar os espaços da propaganda como meio de contato
“direto” com os públicos, às vezes, dispensando a mediação dos jornalistas.
O discurso publicitário aparece como regenerador daquela função
mítica perdida com a visibilidade inaugurada pelos tempos modernos. É a
compensação dos rituais, espetáculos esquecidos de ocultamento e sacra-
lização do poder que imperavam na antiguidade. Mas terá grande ganho o
sujeito político que combinar estratégias discursivas – na propaganda e no
jornalismo – para a formação da imagem pública.
Em termos analíticos, o discurso político precisa justificar-se enquan-
to racional e publicamente aceitável; noutra, como sedutor, agradável e,
quem sabe, místico. O primeiro ofício é tema do jornalismo; o segundo,
assunto da publicidade. No primeiro, o político expõe-se; no segundo, o
político, mistifica-se, seduz, mostra-se só em partes.
A aderência do discurso político aos critérios midiáticos de produ-
ção das mensagens depende, portanto, de como o sujeito político irá se
expor na cena pública. A questão é: como ser agradável, crível e, ao mesmo
tempo, manter (ou conquistar) legitimidade enquanto discurso político?
Ou, noutros termos, como o discurso político pode adotar a linguagem do
espetáculo sem abandonar seu caráter idealmente “racional” vinculado ao
bem comum?
591
Metodologicamente, para analisar a estratégia discursiva adotada no
contexto de comunicação midiática (TV e rádio), proponho considerar a
premissa teórica mais simples: o processo de comunicação como determi-
nado por uma instância inicial de produção do discurso (discurso primei-
ro) direcionado para uma instância de recepção (a comunicação de A para
B)4. O discurso terceiro funcionaria, então, como a instância de legitimação
do discurso primeiro, como o testemunhal de um discurso de fora, em tese,
desinteressado e neutro, que é veiculado pelo formato midiático (ver figu-
ra abaixo). As funções simbólicas são específicas: o apresentador aparece
como a “voz da Prefeitura” e como condutor da atenção da audiência; o
papel do repórter tem a ver com a oferta da possibilidade de fala ao entre-
vistado; e por fim, o entrevistado, funcionando enquanto exterioridade (à
mídia) e legitimação do discurso político.
Fonte: o Autor
4 O que poderia ser chamado de discurso segundo, seria o próprio ato de interpretar da chamada “recep-
ção” ao dar sentido às mensagens veiculadas na mídia através de múltiplos contextos de interação.
592
Mas o que, de fato, dá ao programa uma identidade e o que mais nos
interessa é a ênfase na fala do entrevistado. À diferença da propaganda po-
lítica mais comum, na maior parte de sua existência o CV não veiculou dis-
cursos de autoridades públicas ou de representantes diretos da administra-
ção como discurso principal. O depoimento, obtido por meio de perguntas
de repórteres, constitui o principal referencial do discurso.
Para Charaudeau (2006), o que chamo de discurso terceiro seria uma
exigência de credibilidade da mídia, porque atuaria como indutor da legi-
timação:
Na verdade, esses representantes só são chamados por causa da fala que
produzem, uma fala que vem confirmar, do exterior, que o que está no
centro da atualidade e do debate social é exatamente o que as mídias
põem em cena (p. 190).
O efeito mais evidente pretendido com o discurso terceiro é a iden-
tificação. Temos, assim, o núcleo do discurso testemunhal: a identificação
como objetivo e o critério de exterioridade como condição. As pessoas que
veem ou ouvem um par, um dos seus na mídia, poderão duvidar da sua ho-
nestidade e de quais interesses pessoais o levaram a se expor. Mas a simples
suposição de que o entrevistado possa, afinal de contas, estar falando o que
pensa, de estar sendo sincero, é uma quebra na noção geral de que quem
se posiciona politicamente só o faz em troca de ganhos pessoais. Porque o
posicionamento político, neste caso, estará subordinado a uma experiência
civil narrada no produto midiático.
Ou seja, como o programa priorizava entrevistar populares e lideran-
ças comunitárias que, falando em nome de si próprios e de seus pares so-
ciais, não faziam uma propaganda convencional do tipo “vote em fulano”,
com tal premissa há uma reacomodação do discurso político, um oculta-
mento do sujeito enunciador primeiro, ou melhor, sua diluição no discurso
terceiro.
Se concebermos o campo político como determinado por disputas
ideológicas e o campo civil mais voltado à resolução de problemas admi-
nistrativos e de gestão, poderemos compreender o fenômeno da legitima-
ção simbólica que o civil pode conceder ao político. O modo de operar do
discurso terceiro (por meio do qual os cidadãos expressam opiniões sobre
aspectos administrativos) tem um efeito de legitimar o político, pois trata
da resolução de questões civis (problemas comunitários e, em última ins-
tância, de gestão da coisa pública). Tal operação fornece credibilidade ao
político que está ali (presente, porém oculto), oportunizando a fala, dando
593
a palavra ao civil, permitindo que cidadãos manifestem seus sentimentos
ou argumentem de acordo com seus interesses.
Com isso, o interesse político do discurso terceiro ficaria relativiza-
do pelo aspecto civil da fala. No CV, as lideranças populares não falavam
em nome dos administradores, não conclamavam o voto em determinadas
personalidades, nem o conteúdo de suas falas era pautado pela agenda elei-
toral. Isso porque as temáticas eram, predominantemente, determinadas
por assuntos dominantes na esfera pública municipal e das comunidades;
pautas referentes à participação popular nas decisões sobre o orçamento,
sobre projetos culturais, educacionais, eventualmente sobre alguma inicia-
tiva administrativa da Prefeitura etc.
[...] A palavra do testemunho instaura o imaginário da ‘verdade verda-
deira’. O testemunho pode ser enunciado por um sujeito anônimo ou
por um sujeito que tenha certa notoriedade. Se é anônimo (para o teles-
pectador), para que seu dizer participe do acontecimento midiático, o
testemunho que der a respeito de si mesmo ou da vida será tido como
válido para todos aqueles que pertencem à mesma categoria (com isso,
não será confundido com a simples testemunha numa entrevista de rua)
(Charaudeau 2006, p. 224).
A partir do modelo referencial de análise sustentado por Charaude-
au, é possível concluir que no CV os “três lugares da máquina midiática”
(produção, recepção e produto) se postam de forma híbrida, não estão cla-
ramente delineados, ficando ocultos pelos operadores discursivos. São lu-
gares facilmente delimitados em teoria, mas que resultam confusos sob o
manto da simulação de um programa jornalístico. Pois, quando o receptor
“participa” da instância de produção do discurso, há uma espécie de convi-
te ao deslocamento: o real invade a tela, a instância de consumo passa ser
também de produção e o político veste trajes civis.
A força persuasiva do depoimento, como avalista da credibilidade pre-
tendida pelo sujeito enunciador primeiro (administração municipal), vem
da voz da população: moradores, trabalhadores, empresários, estudantes,
crianças, donas de casa etc. Através também de outras operações discur-
sivas que constroem cenários onde o depoente é personagem principal,
apresentador e repórter aparecem apenas como suportes da fala principal.
Segundo Verón (Verón e Fausto Neto, 2003), a partir da segunda me-
tade da década de 1990, a televisão passa pelo que o autor chama de “cri-
se de credibilidade dos meios informativos em geral, e da televisão, em
particular” (p. 25). A crise manifesta-se na passagem de um determinado
594
tipo de contrato de comunicação para outro, através da proposição de um
novo interpretante. Se, na fase anterior, o interpretante constitui-se como
unidades autorreferenciais da televisão (“interiorização do espaço dos tele-
jornais”, programas tipo talk-shows, generalização do vídeo-clipe etc.), no
novo contexto o interpretante estrutura-se a partir de contextos exteriores
à televisão, mas presos à existência individual do espectador.
A espetacularização do universo referencial se verifica de forma mais
intensa nos formatos em que a dramatização e a reconstrução dos aconte-
cimentos se dão em espaços reais, onde são interpretados “personagens”
autênticos, protagonistas das cenas reais do dia a dia. Diferentemente dos
atores profissionais, nessas situações, não importa tanto a qualidade teatral,
por assim dizer, da interpretação ou da reconstrução dramática, como em
peças cinematográficas. Aqui vale mais quem afirma e quem opina.
[...] O mundo do destinatário irrompe na instituição televisão, não
como ocupando um lugar definido por um gênero (como nos caso dos
jogos e outros entretenimentos em que aparece um ‘público’), mas como
representantes do ‘lá fora’. Os participantes dos reality shows são os aliens
do planeta televisão, e serão selecionados mediante uma série de regras
que assegurem, entre outras coisas, a autenticidade de sua origem. Es-
sas regras são compatíveis às de um casting de um produto de ficção
televisiva, mas seria um erro, sob esses e outros pretextos semelhantes,
assimilar os reality shows à ficção: na semiótica da televisão da terceira
etapa, eles cumprem função exatamente oposta à dos produtos de ficção
(Verón, 2003, p. 25-26).
Da mesma forma, o depoimento terceiro cumpre essa função oposta à
do produto de ficção e, por extensão, é o mundo civil adentrando no mun-
do político-midiático. Em alguns programas, o sujeito político permanece
quase o tempo todo oculto sob as palavras do terceiro: sem intervenções de
apresentador ou repórter, há apenas falas dos entrevistados. Nesses casos,
o sujeito enunciador (campo político) pode ser identificado apenas na assi-
natura final da logomarca da administração.
Os depoimentos, operadores discursivos do “lá fora”, nas palavras de
Verón, são editados e encadeados de acordo com uma pauta previamente
elaborada pela produção do programa. Mas a “verdade’ da fala e a credibi-
lidade do sujeito político estariam avalizadas pelos depoimentos proferidos
por personagens que interpretam a si mesmos diante das câmeras e expõe
suas vidas e opiniões (é o “mundo do destinatário” que invade a televisão).
Ao ser veiculado na televisão ou no rádio, o discurso terceiro explicita um
595
mundo não midiatizado do destinatário, porém, passível de ser traduzido
pela linguagem midiática. A espetacularização, assim, refere-se à operação
de veicular uma peça publicitária política como se fosse uma janela aberta
ao mundo, a exemplo dos formatos jornalísticos fundados nos contratos de
credibilidade. Tais contratos, são reafirmados por apresentadores e repór-
teres, mas principalmente, pelos depoimentos de pessoas comuns.
E quando se verifica a ausência em cena do apresentador e do repór-
ter, quando esses representantes da voz oficial da Prefeitura não aparecem
nos programas, a relevância dos operadores discursivos que constroem a
fala do entrevistado é ainda maior. Afinal, é no âmbito da opinião pública
(em seu aspecto civil) que o discurso político necessita ser justificado. Ao
serem veiculados posicionamentos pessoais, a legitimação se dá dentro do
espaço midiático, porém, com a força crível do mundo do destinatário que
irrompe o mundo da mídia.
Ainda que no programa se reconstruam acontecimentos, na medida
em que o produto midiático conta uma determinada história, não se trata
de uma obra de ficção. A arte e a técnica de montar a encenação são, pois,
tarefa dos produtores dos programas que dominam a linguagem do espe-
táculo político-midiático, simulando o jornalismo e fazendo a mediação
discursiva entre campos sociais distintos, mas que se confundem.
Considerações finais
598
A disputa por um projeto político
através do rádio
Sandra de Deus1
Introdução
599
Como a reflexão está centrada no sistema de monitoração e nas con-
sequências dessa estratégia na opinião pública, surgem perguntas necessá-
rias: o que têm em comum o rádio, a política, os governos, os ouvintes e a
construção democrática? Que espaço se estrutura quando as emissoras de
rádio e os governos disputam o ouvinte? O que deseja o ouvinte que pede
ao rádio e não ao governo? Por que um governo decide disputar espaço na
mídia com a própria mídia? O que a FP pretendia ao responder aos ou-
vintes de rádio? O que muda no fazer do jornalismo radiofônico de Porto
Alegre quando as reclamações dos ouvintes viram notícias? Que rotinas
de produção radiofônica estão sendo considerados para colocar no ar uma
reivindicação do ouvinte?
Para responder as questões são formuladas duas hipóteses: a primeira,
que o governo da FP, em Porto Alegre, ao responder aos ouvintes, com
base na monitoração das emissoras de rádio, publiciza a disputa política,
o que é um modo de defesa; e a segunda, que ao responder a interpelação
dos ouvintes, a FP pautou a mídia gerando uma alteração nos critérios de
noticiabilidade no rádio e controlando a programação das emissoras.
Logo após a eleição de Olívio Dutra como prefeito, como em qualquer
governo foi iniciado um mapeamento de diferentes setores da administra-
ção municipal, com objetivo de elaborar um diagnóstico da cidade que pas-
saria a ser governada a partir de 1º de janeiro de 1989. Um desses setores
mapeados apontava para a necessidade de construir um modelo de comu-
nicação capaz de dar conta dos compromissos de um governo de esquerda.
Entre os aspectos considerados estava a ideia de que o uso dos meios de
comunicação é um componente necessário nos sistemas democráticos, e
quando esses sistemas passam por alterações mais profundas (como ocor-
ria na política em Porto Alegre, naquele momento), é preciso construir um
modelo de comunicação política capaz de abarcar o sentido das mudanças
e apresentar produtos que deem atenção à opinião pública. A proposta de
comunicação, conforme Osório (2003) defendia:
(...) o direito público à informação, interesses estratégicos da Adminis-
tração Popular (AP), democratização da máquina pública, valorização
do serviço público, fortalecimento da cidadania, organização da socie-
dade civil, diferenciação do governo, na perspectiva de um projeto so-
cialista.
A política de comunicação institucional adotada levava em considera-
ção a existência de uma diversidade de públicos (interno e externo), com os
quais o Governo precisava se comunicar. Foi elaborado um “Diagnóstico e
600
propostas para a área de comunicação” (Cunha, Flores e Herz, 1988) apon-
tando 10 eixos que constituíram o plano das metas imediatas dos primeiros
30 dias de governo:
1) organizar o sistema de produção e distribuição de informações de
interesse jornalístico (primeira semana); 2)reorganizar o uso dos equi-
pamentos de fotografia e os trabalhos dos fotógrafos (primeira semana);
3) organizar um sistema provisório de monitoração das manifestações
dos veículos de comunicação de massa que envolvam interesse do mu-
nicípio ou da Prefeitura; 4) editar um boletim de pessoal (imediato);
5) editar um boletim semanal destinado ao funcionalismo para debater
a política de atuação da Administração Popular (primeira semana); 6)
produzir um plano de reformulação do Serviço de Atendimento e Infor-
mação ao público; 7) desenvolver um sistema próprio de comunicação
e mobilização de massa para uso em plano de contingência ou situação
crítica; 8) desenvolver um sistema provisório de documentação sistemá-
tica da atuação e da experiência da Administração Popular; 9) concluir
os levantamentos de recursos materiais e humanos disponíveis na Pre-
feitura e de interesse da área de comunicação; e 10) organizar todas as
equipes de trabalho e desenvolver um plano de metas para os próximos
60, 90 e 120 dias e primeiro ano de atividades.
601
O rádio, a cidade e o governo
602
então, dois aspectos decisivos que estavam estabelecidos na formulação da
proposta de comunicação: a mobilização dos meios para a disputa da hege-
monia e a decisão de não anunciar na mídia comercial.
A monitoração, aqui, traduz-se pela escuta sistemática, com a grava-
ção de programas inteiros ou parte deles para serem ouvidos e degrava-
dos para sua utilização pelo interessado na escuta, capaz de dar resposta
para o que foi divulgado. Em Porto Alegre, quando a escuta foi adotada
pela PMPA, com a denominação de “monitoração”, o objetivo era ouvir,
gravar e degravar o programa, a entrevista, a notícia e, especialmente, as
manifestações de ouvintes para, posteriormente, encaminhá-los ao setor da
Prefeitura que era responsável pelo tema questionado. Assim, eram acom-
panhadas as demandas dos cidadãos através dos microfones de emissoras
comerciais. O documento fundador da proposta de comunicação da FP
tratava da “produção e monitoração de áudio e vídeo”, detalhando o proce-
dimento como:
[...] acompanhamento dos principais programas de rádio e televisão,
das 7 às 24 horas. Produção de entrevistas de assuntos de interesse da
Administração com integrantes do primeiro escalão; resposta imediata
a denúncia e/ou críticas, mediante localização e contato com dirigentes;
gravação e transcrição das matérias de interesse com posterior distri-
buição aos setores interessados.
4 Os demais programas, das outras quatro emissoras monitoradas, não veiculavam grande número de
informações sobre problemas da cidade e não tinham uma participação direta dos ouvintes.
603
As emissoras de rádio passaram a utilizar a monitoração como um
“serviço” que, ainda, oferecia pautas para os veículos; o que foi garantin-
do a credibilidade do setor. Esse “monitoramento de rádio foi o primeiro
diagnóstico real que o governo tinha da cidade”5, de tal forma que algu-
mas manifestações ou comentários eram repassados imediatamente para
o Prefeito. É evidente que essa rigidez com que as emissoras monitoradas
apresentavam em toda e qualquer manifestação de ouvinte que denuncias-
se dificuldades em relação ao Governo do Município, também significava
uma disputa por verbas publicitárias que se deu logo no início do governo
do PT.6 Compreendendo a importância e a penetração do rádio, especial-
mente, no que se referia à expectativa do cidadão no atendimento de suas
necessidades, a Prefeitura foi aperfeiçoando a monitoração e respondendo
com mais rapidez.
Para os governos constituídos de diferentes grupos políticos, a ma-
nifestação do ouvinte nos microfones é um termômetro do cotidiano da
sociedade. É o meio por onde o governo tem conhecimento dos anseios
da opinião pública e dos problemas da cidade que se configura como lo-
cal de dificuldades cotidianas e de experiências comuns. Portanto, trava-se
uma disputa entre o campo da política e o campo do jornalismo, formando
um complexo quebra-cabeça, no qual o campo da política é integrado pelo
subcampo dos partidos políticos, em seu amplo espectro ideológico, en-
quanto que o campo do jornalismo está amparado no retorno da audiência
e nas corporativas definições profissionais, ou seja, o controle da pauta, a
seleção da notícia e o horário de trabalho. Dutra (2004)7 lembra das bata-
lhas do início de governo e diz que “a da comunicação foi uma das grandes
e importantes batalhas travadas pelo primeiro governo da Administração
Popular”.
O espaço de troca e de disputas configura-se através de diferentes
graus de necessidade: primeiro da emissora, como empresa para ampliar
a audiência e, consequentemente, o faturamento publicitário; segundo, do
governo que, enquanto força do campo político, precisa sobreviver, mas
parte de sua sobrevivência é adquirida na visibilidade dada pela mídia e,
terceiro, do cidadão que encontra eco para suas reivindicações. São a emis-
sora de rádio e o governo buscando credibilidade, e o ouvinte exercitando
5 Jornalista Patrícia Duarte, em entrevista à autora, em 2001.
6 Patrícia Duarte lembra que em alguns casos ficava evidente a disputa por verbas publicitárias, já que a
Prefeitura não estava colocando anúncios nesta ou naquela emissora.
7 Olivio Dutra, Prefeitura de Porto Alegre durante o período de monitoração de rádio em entrevista à
autora em 2001
604
a participação, mas também querendo se “fazer ver”. O processo parece
simples: o ouvinte procura o rádio, onde apresenta a sua manifestação; o
rádio veicula sua reclamação, o governo ouve-a e responde-lhe, porque
quer respaldo, ao mesmo tempo, se “fazer ver”. Está em jogo um valor que
não pode ser medido apenas por pesquisas de opinião, mas por credibili-
dade. Wolton (1998, p. 33) defende que“a comunicação política assegura a
convivência entre as três lógicas, cada uma delas constituindo uma parte da
legitimidade democrática”.8
O rádio, com a credibilidade depositada pelo ouvinte, é parte do que
Weber (2000) considera como o consenso necessário e exigido pela política
para estabelecer relações entre estado e sociedade. Gomis (1997, p. 193)
explica essa relação dizendo que “nem a fonte paga para conseguir que o
fato apareça, nem o meio necessita da notícia [...] se o fato é notícia, a fonte
interessada presta um serviço público e faz um favor ao meio já que oferece
a informação que é do que o meio vive”.
Tal forma de participação, com temas que exigem aprofundamento,
pode ser entendida como uma interferência na programação radiofônica,
porque o ouvinte não é parte da equipe profissional do rádio. Porém, é uma
fórmula que vem dando certo para o setor privado (emissora de rádio) rea-
firmar sua credibilidade, dar voz a um indivíduo que quer ser ouvido, bem
como dar visibilidade às propostas políticas que se dispõem a entrar nesse
espaço para se tornarem visíveis. Para as emissoras de rádio que realizam a
disputa política e econômica, a presença do ouvinte nos microfones é a cre-
dibilidade e a comprovação da aceitação de um tipo de programa, de uma
linha editorial. Constitui-se no “capital” do rádio e passa a ser um dado de
audiência muito mais confiável que qualquer percentual de pesquisa enco-
mendada às empresas especializadas.
Os ouvintes, os governos e o rádio formam um triângulo tenso que,
segundo Winocur (2002), ocorre devido a uma readequação de lógicas di-
ferentes e opostas. A lógica do cidadão: com suas necessidades de atenção
imediata, de mediação frente ao poder político, de reconhecimento social
e de divulgação de seus problemas. A lógica do rádio: com suas exigências
comerciais e de interpretação da realidade. Por fim, a lógica do governo
que tem necessidade de se manter no poder e precisa dos ouvintes, como
eleitores, e da mídia, como vitrine. Estabelece-se um jogo de “dupla entrada
e saída” que inclui o governo, na sua tarefa de atender o cidadão e de con-
8 Texto original “ la comunicación politica asegura la convivencia entre estas tres lógicas, cada uma de lãs
cuales contituye uma parte de la legitimidad democrática”.
605
quistar eleitores para permanecer no poder, e o jornalismo, como intérpre-
te da realidade, mediador dos interesses sociais. Duarte (2004)9 conta que
“o objetivo era ouvir a comunidade e atender os serviços essenciais. Afinal,
a demanda dos serviços da Prefeitura estava reprimida há muito tempo”. O
governo tinha a convicção política de que a mídia era importante, embora
colocada em um sistema ideológico oposto.
O ouvinte, mesmo sendo usado pelos dois campos, faz uso e se gra-
tifica no encontro e desencontro entre política e mídia. O rádio, além de
mediador, é um espaço de participação pública onde o cidadão ocupa um
lugar que permite interferir e até forçar decisões do poder público. É o
surgimento do “ouvinte-cidadão” ou “ouvinte-falante”, que é politizado e
cobra soluções10. De um modo geral, os governos, ao longo dos anos, têm
demonstrado dificuldades, através das estruturas de comunicação ou de
ouvidorias, em dar respostas para a crescente exigência do cidadão. Porém,
para governos democráticos, participativos e representativos, como era o
caso do governo da FP, em Porto Alegre, dar respostas às reivindicações
dos cidadãos, através de diferentes espaços, especialmente dos meios de
comunicação, era uma das estratégias de governar.
Escutar rádio é parte do cotidiano, e decorre, daí, a facilidade com
que o ouvinte recorre ao rádio para solicitar que faça a intermediação com
o governo. Os problemas da cidade ou mesmo a necessidade do indivíduo
de participar fazem com que, em algum momento, o ouvinte integre a vida
pública e mostre a preocupação com o coletivo. A presença do ouvinte no
microfone apresenta uma nova condição que habilita qualquer pessoa a
fazer, através do rádio, reclamações, denúncias e críticas ao governo. Essa
condição é possível pelas possibilidades do rádio, como a rapidez no aten-
dimento e a publicização do problema. A pergunta que surge é se o rádio,
entre os meios de comunicação, pode ser considerado como um legítimo
território constitutivo do espaço público moderno. A resposta é afirmativa,
porque no rádio cruzam as reivindicações dos cidadãos em busca de aten-
dimento das necessidades da vida cotidiana e as respostas dos governos
com seu interesse de construção da hegemonia e de ação de um governo
democrático.
Significa que é necessário se debruçar sobre a penetração do rádio
na sociedade (portabilidade), sobre a sua história (alcance e imediatismo)
9 Jornalista Patrícia Duarte que atuou no Setor de Monitoração, uma das primeiras entrevistadas em
setembro de 2001 e que voltou a ser ouvida em março de 2004.
10 Essas denominações foram apresentadas por Klockner e Bragança (2003) para dar conta do ouvinte que
não apenas ouve o rádio, mas que fala no rádio.
606
e sobre o seu papel político (poder de argumentação e convencimento).
Ao buscar esse diagnóstico, configura-se uma segunda problematização, a
necessidade de tratar do papel do rádio e das articulações entre público e
privado que ocorreram em Porto Alegre quando a Administração Popular
assumiu o governo e que, entre outras estratégias, já apontava para a neces-
sidade de ocupar espaços nos meios de comunicação da Cidade.
Para o ouvinte, o locutor que o escuta tem voz para veicular sua fala
e obter retorno do poder público, ou seja, tem poder de pressão. Winocur
(2002, p. 127) diz que tanto escutar quanto participar “gera um sentimen-
to de pertencimento entre os ouvintes, não apenas pelo fato de sentir-se
parte da comunidade dos que ouvem na mesma hora, na mesma cidade,
mas também pelos que sofrem, se emocionam, se alegram ou se enojam
com quem ousa a chamar por telefone”. Para Weber (2000), toda vez que a
comunicação for planejada de forma estratégica, ela viabiliza a circulação
da ideologia do partido. Para os formuladores da proposta de comunicação
da FP, essa era uma lição fundadora e que exigia uma vigilância em relação
não apenas ao que circulava na mídia, mas também às reivindicações dos
cidadãos. E Weber (2000, p. 17), alerta que o exercício do poder de um
governo está
[...] associado ao poder das relações com as mídias determinado por um
sistema global de comunicações no qual interagem redes e estruturas
tecnológicas, administrativas, governamentais, educacionais, profissio-
nais, legais, sindicais e individuais.
A estratégia de escutar emissoras de rádio colocou em cena novos ato-
res para a análise da Comunicação Política e para a relação entre o jornalis-
mo e a política que reunia, naquele momento, características específicas de
um estado de tensão entre mídia e política. Com a escuta, a PMPA contro-
lava as necessidades dos habitantes de Porto Alegre. No entanto, a monito-
ração das rádios possibilitava, particularmente, naquele início de governo,
um diagnóstico rápido da Cidade. Foi, também, a forma que o governo
encontrou para obter espaço na mídia e para ser visível. A comunicação,
como estratégia de governo, cumpria uma tarefa importante.
Considerações finais
611
Cidade, cidadãos e governo
Estratégias híbridas do jornal Porto Alegre Agora1
Introdução
1 Este artigo é uma síntese do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “O diálogo entre a
cidade, os cidadãos e o governo: um estudo sobre a hibridação de jornalismo e propaganda no Jornal
Porto Alegre Agora (1989/2004), defendido em 2008, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).
2 A cidade foi oficialmente fundada no dia 26 de março de 1772 e é capital do estado do Rio Grande do
Sul. Segundo dados do IBGE/2016, sua população atual é estimada em 1.481.019 milhões de habitantes.
3 Sob a liderança do Partido dos Trabalhadores (PT), a coligação que constituía a Frente Popular gover-
nou a cidade de Porto Alegre por 16 anos consecutivos. Estiveram à frente do governo municipal como
prefeito e vice-prefeito, respectivamente, Olívio Dutra e Tarso Genro (1989/1992); Tarso Genro e Raul
Pont (1993/1996); Raul Pont e José Fortunatti (1997/2000); Tarso Genro e João Verle (2001/2002) e João
Verle (2002/2004).
4 O Orçamento Participativo é um instrumento de democracia participativa em que os cidadãos deli-
beram e decidem as demandas relativas à aplicação de recursos públicos, a serem priorizadas na Lei
Orçamentária Anual do município. Em Porto Alegre, foram criadas assembleias anuais em 16 regiões
diferentes, servindo de modelo a cidades do Brasil e do mundo, que adotaram as práticas implementa-
das a partir de 1989.
5 O Fórum Social Mundial foi realizado pela primeira vez em Porto Alegre em 2001 e, sob o slogan “Um
outro mundo é possível”, reuniu mais de 20 mil participantes. O encontro organizado por ONGs e movi-
mentos sociais, serve à discussão de temas como os efeitos da globalização e de políticas neoliberais ao
redor do mundo. A cidade sediou o evento ainda nas edições de 2002, 2003 e 2005.
613
Ao mesmo tempo, tendo em conta o formato jornalístico do material im-
presso, toma-se como pressuposto sua forma híbrida de comunicação, já
que nele eram publicadas tanto informações de interesse público, quanto
as marcas da divulgação e promoção de projetos, pessoas e partidos po-
líticos de cada gestão.
Os dados coletados e apresentados neste artigo compõem parte dos
resultados referentes ao projeto de pesquisa Representações de Porto Ale-
gre nos espaços midiático, político e acadêmico (1989/2004), financiado pelo
CNPq e coordenado pela Profa. Dra. Maria Helena Weber entre 2003 e
2007. A pesquisa buscou contextualizar o cenário político e social vivido
nos 16 anos de governo da Frente Popular em Porto Alegre, assim como
traçar as diversas estratégias de comunicação que projetaram a imagem
da Administração Popular nacional e internacionalmente, alavancando as
sucessivas vitórias nas eleições municipais. A cidade é entendida, assim,
como argumento de disputas, tendo sua imagem apropriada, representa-
da e devolvida simbolicamente aos cidadãos através de discursos distintos
provenientes dos media, da política e da academia.
Partindo disso, este trabalho objetiva apresentar brevemente as carac-
terísticas da comunicação governamental da PMPA, materializada nas pá-
ginas do jornal Porto Alegre Agora. A partir da análise de oito exemplares do
periódico, referentes ao primeiro e último ano de cada mandato da Frente
Popular, identifica os temas abordados e os recursos utilizados que eviden-
ciavam uma intenção de aproximação dos governos com os habitantes da
cidade. As edições referidas foram classificadas a partir de 18 unidades de
conteúdo, relativas às temáticas sobre a cidade e o governo, assim como
foram analisadas as marcas que caracterizavam sua forma de comunicar. A
investigação do material revelou as características que compunham a for-
ma híbrida de comunicação desse produto institucional da Administração
Popular. O que significa que nele se articulavam assuntos de interesse cole-
tivo, informações de utilidade pública e de acesso à participação popular e
a melhor vivência democrática na cidade, ao mesmo tempo em que gerava
a promoção das diferentes gestões a partir da divulgação da efetivação de
projetos realizados na cidade.
618
A restauração da democracia e o consequente crescimento de novas for-
mas de vivências democráticas despertaram a necessidade de informa-
ção voltada para a construção da cidadania. A própria noção de cidada-
nia sofre mudança e começa a ser entendida de forma menos passiva e
mais participativa, apreendida como o livre exercício de direitos e deve-
res, situação para a qual só se está preparado quando existem condições
de informação e comunicação (Brandão, 2007, p. 10).
Essa visão, que aponta para uma maior complexidade no entendimen-
to da comunicação governamental e institucional se desenvolve também
como efeito de discussões sobre a temática no próprio âmbito acadêmico
no país na mesma época. A obra do francês Pierre Zémor, La Comunicacion
publique (1995), inaugura, de certa forma, tais concepções que aproximam
o conceito de comunicação pública à demanda informativa do cidadão. A
valorização da produção e difusão de conteúdo informativo de qualida-
de, da escuta de demandas sociais e do diálogo, num intuito de contribuir
a uma relação ativa do cidadão para com a sociedade em que vive, são
pontos-chave apresentados pelo autor como finalidades de uma comuni-
cação exercida pelas instituições do Estado. Para o autor, “a comunicação
é, ela própria, uma missão de serviço público” (Zémor, 2009, p. 225), o que
significa destacar a importância da comunicação realizada por governos e
instituições para uma possível associação e aproximação dos cidadãos aos
processos de tomada de decisão da esfera política. A comunicação pública,
entendida como missão das instituições públicas, é assim:
[...] encarregada de tornar a informação disponível ao público, de es-
tabelecer a relação e o diálogo capazes de tornar um serviço desejável
e preciso, de apresentar os serviços oferecidos pela administração, pe-
las coletividades territoriais e pelos estabelecimentos públicos, de tor-
nar as próprias instituições conhecidas, enfim, de conduzir campanhas
de informação e ações de comunicação de interesse geral. A esses
registros, soma-se aquele de natureza mais política, ou seja, da
comunicação do debate público que acompanha dos processos
decisórios (Zémor, 2009, p. 214).
A ênfase dessa perspectiva é também o desafio de produzir um exercí-
cio comunicativo desse tipo, não o confundindo e o reduzindo à autopro-
moção de políticos. O trabalho dos próprios comunicadores, servidores
públicos, deve ser balizado pelo desenvolvimento de habilidades que pre-
zem pela reflexão e conscientização em prol de uma comunicação ética e
justa para com os cidadãos. Para o autor, a comunicação pública deve ter
619
um compromisso com a conservação dos laços sociais e “deve, sobretudo,
desenvolver o sentido relacional. É a relação com o outro, com o receptor
da mensagem, que condiciona o bom encaminhamento do conteúdo” (Zé-
mor, 2009b, 193).
621
cidadania. Além disso, a alternância de mandatos dos governantes trazia à
tona diferentes temáticas sobre o governo e a cidade, mostrando a necessi-
dade de defesa de distintos projetos.
Dessa forma, compreendendo eventuais alterações no decorrer dos 16
anos de governo da Frente Popular na PMPA, identificou-se os seguintes
espaços que compunham o jornal Porto Alegre Agora:
Fonte: A autora
622
guir as análises de oito edições do periódico, referentes ao primeiro e último
ano de cada mandato da Frente Popular na PMPA (1989/1992; 1993/1196;
1997/2000; 2001/2004). A escolha dos períodos se dá pela importância da
comunicação realizada pelo governo em momentos de apresentação de no-
vos projetos e de troca de gestão, assim como da finalização de mandatos e
da eminência de novas eleições.
Foram categorizadas as referências, entre textos e imagens, confor-
me indicado anteriormente no Quadro 1. O material classificado como
“matérias” foi, então, categorizado em 18 unidades de conteúdo, a fim de
produzir uma visualização dos distintos modos em que a cidade e o gover-
no eram tematizados nas páginas jornal Porto Alegre Agora. As unidades
temáticas escolhidas foram definidas como Segurança, Trânsito, Saúde,
Comércio, Meio Ambiente, Cultura, Eventos, Trabalho, Direitos Humanos,
Orçamento Participativo, Porto Alegre (POA), Governo, Infraestrutura.
624
“Redutores eliminam mortes nas avenidas”, em que se afirma o resultado
positivo de um projeto de implantação de redutores de velocidade execu-
tado pela Secretaria Municipal de Transportes (SMT) em 1990. Ou ainda,
em “Administração Popular tem maior credibilidade”, afirma-se o reconhe-
cimento do trabalho da Frente Popular, através de dados de uma pesquisa
do IBOPE sobre os bons índices de credibilidade do governo para com a
população. Na pesquisa, o prefeito Olívio Dutra (PT/RS) aparece em pri-
meiro lugar. Além disso, matérias como o “Bairro traça seu destino” incitam
o protagonismo e a ação do cidadão na construção da sua cidade através
das decisões coletivas realizadas pelo OP.
626
democracia participativa que regem a administração da Frente Popular. No
período de 1993 a 1996, a Prestação de Contas “adotou os seguintes slogans,
respectivamente: ‘Fazendo as contas, Porto Alegre é sempre mais’ (numa
alusão ao Porto Alegre Mais – Cidade Constituinte); ‘o mapa da cidadania’
(na sequência do I Congresso da Cidade, estava em curso o debate sobre a
reestruturação urbana); ‘A cidadania decide e confere e ‘Porto Alegre, toda
vida” (Osório, 2003, p. 122).
628
dos procedimentos, andamentos e agendamentos de votações referentes ao
OP, assim como as decisões já tomadas. Categorizada na temática Gover-
no, observa-se ainda a chamada na capa para o anúncio do telefone para
informações da PMPA. O serviço de atendimento “156” da instituição é
anunciado na edição como uma possível ligação direta entre o cidadão e a
administração do município.
A edição de 2001 pode ser considerada uma edição especial, pois mar-
ca a retomada da produção e distribuição do jornal Porto Alegre Agora,
interrompidas entre os processos de transição das diferentes gestões. Ela
também compõe a comunicação feita no último mandato da Frente Popu-
lar à frente da PMPA, com a eleição de Tarso Genro como prefeito e João
Verle, como vice-prefeito, sob o slogan “Paixão pela cidade”.
A edição em formato tabloide é apresentada com 12 páginas, sendo
a capa e a contracapa coloridas. O espaço do “Editorial” faz uma autorefe-
rência à própria publicação ao tomar como assunto o retorno da circulação
das publicações do jornal Porto Alegre Agora. O texto enfatiza o compro-
misso do veículo institucional com a cidade de Porto Alegre durante os 12
anos de governo da Administração Popular. Segundo o texto, a função do
veículo seria:
História e jornalismo... esses serão elementos presentes nas páginas do
Porto Alegre Agora. Enquanto o jornalismo trata de acontecimentos
quando eles ainda estão “quentes”, a história pode analisá-los de forma
mais “fria” e com a distância necessária para elaborar uma crítica mais
profunda.
Quanto às matérias, foram catalogadas e classificadas 22 ocorrências
com as frequências temáticas definidas da seguinte forma: Infraestrutura
(8); Direitos Humanos (3); Governo (3); Esporte (3); Cultura (1); Educa-
ção (1); POA (2) e Eventos (1). Assim como em outras edições, o tema da
Infraestrutura ganha destaque como evidência dos projetos e iniciativas
que transformam a cidade. Especificamente neste exemplar, identificamos
a categoria Esporte, não encontrada ainda nas edições anteriores. Tanto a
matéria “Sonho que nasce da bola” e no quadro “Os resultados finais do 9º
Campeonato de Várzea” tratam de projetos esportivos e recreativos para
pessoas de baixa renda, associando tais práticas à luta pela inclusão social.
629
Figura 4: Edições do Porto Alegre Agora – Gestão da PMPA de 2001/2004
630
porto-alegrenses num evento gratuito com shows e apresentações artísticas
no Parque Farroupilha (ou da Redenção). Há ainda, nesta edição, diversos
depoimentos de personagens da cidade. A exemplo do texto “Esta casa mu-
dou a minha vida”, um cidadão é fonte da matéria, relatando, comentando
e testemunhando as transformações geradas na cidade durante as gestões
da Administração Popular.
X Ed. 1989 Ed. 1992 Ed. 1993 Ed. 1996 Ed. 1997 Ed. 2000 Ed. 2001 Ed. 2004 Total
Infraestrutura 07 05 10 08 04 34
Governo 04 01 07 03 01 03 22
POA 01 09 02 12
Habitação 02 07 01 10
OP 01 01 01 05 01 09
Eventos 04 04 08
Meio Ambiente 08 08
Trabalho 02 02 02 06
Direitos Humanos 02 01 03 06
Saúde 05 01 06
Cultura 02 02 01 05
Trânsito 04 01 05
Educação 01 01 01 03
Esporte 03 03
Comunidade 02 01 03
Comércio 02 02
Meteorologia -
Segurança -
Total 12 26 28 07 17 23 21 08 142
632
dicando a realização dos encontros comunitários realizados pelo OP. Essa
visibilidade a tais informações se mostra importante, pois:
Assim como a disponibilização dos dados públicos é mais do que a pro-
moção de serviços, as campanhas que veiculam mensagens revestidas
de um caráter cívico ou socialmente consensual, têm sua origem na
utilidade pública. Elas são instituídas e fixadas dentro do interesse da
coletividade. (Zémor, 2009, p. 229)
Considerações finais
633
A partir da análise de oito edições do jornal Porto Alegre Agora
(1989/2004), teve como objetivo identificar a forma de comunicação ins-
titucional híbrida apresentada pelo veículo, que associava as dimensões
informativa e estratégica. Identificou, ao longo dos anos 16 de governo da
Frente Popular na prefeitura da cidade, a transformação nos recursos co-
municacionais do periódico, que divulgavam slogans, logotipos e marcas
de projetos e gestões, assim como tornavam acessíveis aos cidadãos dados
sobre prestação de contas, informações de utilidade pública e canais de di-
álogo com a administração local.
Em relação à repercussão de temáticas nos exemplares, o estudo mos-
trou um frequente acionamento de comprovação das realizações da ad-
ministração municipal a partir de informações e imagens sobre as trans-
formações na infraestrutura da cidade. O enaltecimento das qualidades
históricas, cotidianas e singularidades de Porto Alegre apontaram ainda
para a valorização da criação e fortalecimento dos espaços públicos do mu-
nicípio nas diferentes gestões. Além disso, na comparação das edições entre
1989 e 2004, se revelava uma amenização do discurso político proveniente
de fontes do próprio governo. Ganham espaço significativo as manifesta-
ções dos habitantes de Porto Alegre, ratificando uma ideia de construção
coletiva tanto da política quanto da cidade.
634
O impacto da internet no Orçamento
Participativo de Porto Alegre (e-OP)
Patricia Pessi
Introdução
635
nestas “arenas conversacionais”(Maia, 2002) ainda é curiosamente tímida
e restrita. É nesse contexto que esse artigo pretende retomar a reflexão re-
alizada, a partir do modelo desenvolvido para avaliar as novas práticas co-
municativas e os novos padrões comunicacionais introduzidos pelo uso da
Internet no Orçamento Participativo de Porto Alegre entre 2001 e 2003.
O principal desafio do modelo proposto foi encontrar referenciais teóricos
que descem conta de refletir sobre uma realidade que reunia elementos
relacionados à política, à gestão pública e à comunicação online naquele
princípio de milênio.
O caminho natural foi dialogar com os precursores da reflexão sobre o
uso da Internet na gestão pública, de um lado, e com reflexões realizadas no
espaço de intersecção entre a comunicação e a política, priorizando autores
da área de comunicação que, de forma pioneira, desbravaram os primeiros
rincões desse novo espaço.
Desta forma, esse artigo irá inicialmente apresentar um resumo breve
dos referenciais teóricos utilizados com o objetivo de dedicar mais esforço
à apresentação do modelo desenvolvido e em seguida expor o resultado da
aplicação do modelo ao caso de estudo. Finaliza pontuando aspectos que po-
dem ser relevantes para o momento atual da comunicação pública nessa área.
Comunicação e Política
636
Anteriormente à Teoria do Agir Comunicativo, foi com a noção de
Opinião Pública no contexto da Esfera Pública Moderna que Habermas
afirmou o papel definidor da comunicação nos processos políticos. A críti-
ca e o consenso garantidos pela discussão política passam pelas dinâmicas
de comunicação, aqui mediadas pelos meios de comunicação de massa.
A Opinião Pública é apresentada como consequência da propaganda e da
crescente estruturação da imprensa como empreendimento privado, por-
tanto resultante dos conteúdos correspondentes aos interesses privados ex-
pressos na mídia.
Percebe-se que, em relação à visão habermasiana, a comunicação
cumpre essencialmente dois papéis na política: o primeiro resulta do uso
da mídia (meios de comunicação de massa) para legitimar poderes cons-
tituídos na formatação da Opinião Pública. O outro, a partir do agir co-
municativo, atribui à comunicação o papel de impulsionadora da dinâmi-
ca social, capaz de fomentar o espaço público autônomo para a produção
da democracia. No primeiro caso, a comunicação é percebida como um
sistema institucionalizado – a imprensa, a mídia – e no segundo, como a
expressão de uma comunicação não sistêmica, oriunda de formas sociais
outras que não o Estado ou o mercado, localizadas mais especificamente
na sociedade civil.
É este segundo aspecto do conceito habermasiano que se relaciona
experiência do Orçamento Participativo de Porto Alegre na Internet. Par-
ticularmente, à necessidade de caracterizá-lo, e assim conduzí-lo de forma
a aproveitar ao máximo das suas potencialidades interativas na construção
de espaços democráticos de participação social e política. A implantação do
OP na Internet deu continuidade ao processo participativo iniciado em 1989,
buscando oferecer outras formas de expressão para além das praticadas tra-
dicionalmente na comunicação política e governamental dentro do OP.
A Comunicação Possibilitada é outra formulação que atribui centra-
lidade à comunicação na política, com a riqueza de incorporar elementos
relacionados à dinâmica da comunicação estabelecida na Internet. Atra-
vés dela, Wilson Gomes amplia a reflexão sobre a Opinião Publica, pon-
derando sobre sua continuidade ou o seu fim a partir do surgimento e uso
crescente da comunicação mediada por computadores. O autor destaca
características como a descentralização e o caráter ilimitado da Internet,
a conectividade, a desnacionalização, o ainda restrito nível de controle e
a cultura do não controle presente na rede. Estas características garantem
a circulação de opiniões sem a mediação do jornalismo tradicional, dimi-
637
nuindo a dependência dos cidadãos da mídia tradicional para formar sua
opinião, oferecendo as pré-condições para a comunicação possibilitada.
A atemporalidade no acesso às informações é mais uma novidade in-
troduzida pela Internet. Anteriormente, os conteúdos diariamente distri-
buídos de forma impressa ou eletrônica ficavam inacessíveis a partir do dia
seguinte. Com a Internet, o acesso aos conteúdos passou a ser realizado
a qualquer tempo. Esse fator, associado à abrangência mundial da rede,
permite que o engajamento político aconteça a qualquer momento e com
maior independência em relação a bloqueios locais como, por exemplo,
uma imprensa corrupta e militante. A constituição de redes e vínculos a
partir do uso da Internet para a comunicação entre indivíduos, através de
correio eletrônico, grupos, listas de discussão, chats, fóruns online, é outro
aspecto registrado como relevante por Gomes.
Considerando os contextos da comunicação e da política, a análise
do autor destaca ainda três aspectos sobre a circulação de informações e
opiniões políticas na Internet: o papel mobilizador de conteúdos políticos,
a promoção da visibilidade a temas políticos e a possibilidade que a In-
ternet oferece para o surgimento de um tipo particular de engajamento,
independente da mobilização plena e constante do cidadão, autorizando
uma participação política mais flexível, menos doutrinária, mais eventual,
menos sistêmica, mais privada e hedonista, menos burocrática.
Mais de uma década se passou do estudo realizado sobre o Orçamento
Participativo de Porto Alegre na Internet e permanecem pertinentes es-
tes dois enfoques teóricos. Enquanto o agir comunicativo expandia a visão
inicial de Habermas quando da sua definição de Esfera Pública e Opinião
Pública ao empoderar o indivíduo e suas práticas comunicativas no con-
texto da sociedade civil, a ideia de comunicação possibilitada definida por
Gomes antecipa uma série de características que dez anos depois estão pre-
sentes em muitas das análises realizadas sobre as experiências de participa-
ção política pela Internet.
Governança Eletrônica
642
os atributos da Internet, seus novos formatos de comunicação, os novos
padrões comunicacionais e as novas práticas comunicativas. Esta dinâmica
esteve presente nas iniciativas da governança eletrônica, onde é possível
verificar práticas comunicativas específicas como resultantes da tipologia
definida a seguir.
643
A universalidade da linguagem digital e a lógica pura do sistema de comu-
nicação em rede geram as condições tecnológicas para a comunicação ho-
rizontal global. A não mediação, que pressupõe a inexistência de um poder
econômico ou institucional “editando” ou “autorizando” a publicação de con-
teúdos, potencialmente garante a presença de qualquer cidadão na rede.
644
Comunicação Atemporal e Desterritorializada: refere-se ao proces-
so comunicacional marcado por novas dimensões de tempo e de espaço na
Internet. Castells, ao se referir ao “novo sistema de comunicação”, mencio-
na uma transformação radical dessas dimensões:
Localidades ficam despojadas de seu sentido cultural, histórico e geo-
gráfico e reintegram-se em redes funcionais ou em colagens de imagens,
ocasionando um espaço de fluxos que substitui o espaço de lugares. O
tempo é apagado no novo sistema de comunicação, já que passado, pre-
sente e futuro podem ser programados para interagir entre si na mesma
mensagem. O espaço de fluxos e o tempo intemporal são as bases princi-
pais de uma nova cultura, que transcende e inclui a diversidade dos sis-
temas de representação historicamente transmitidos: a cultura da virtua-
lidade real, onde o faz-de-conta vai se tornando realidade (2000, p. 397).
Considerando as estratégias de comunicação governamental que têm
como objetivo estimular a participação social e política, a comunicação
atemporal e desterritorializada propicia a transcendência ao tempo, per-
mitindo o prolongamento e o aprofundamento de debates impossíveis no
mundo presencial e a participação das pessoas independente da sua loca-
lização física.
Em paralelo às características que evidenciam potencialidades, limites
igualmente significativos se apresentaram desde os primeiros momentos
de expansão da Internet. A dificuldade em garantir o acesso à rede para to-
dos os cidadãos é o primeiro deles. Desta maneira, alguns atributos-chave
dessa nova mídia estão diretamente relacionados ao surgimento de padrões
que impõem limites à comunicação governamental, principalmente se
considerada a perspectiva da participação política. Assim, as possibilidades
oferecidas encontram aqui seus respectivos contrapontos.
Para abordar os padrões de comunicação simplificadora, desinterme-
diada, acrítica, elitizada e ineficiente, consideram-se parâmetros constru-
ídos a partir das reflexões de Benjamim Barber (2003), Stephen Coleman
(2001) e novamente Manuel Castells (2000).
645
favorecer a democracia plebiscitária, por exemplo, onde a rapidez é deseja-
da. Mas para uma democracia forte uma comunicação rápida, porém com
conteúdos e processos excessivamente simplificados, pode comprometer a
consistência necessária às discussões que, por aprofundarem na discussão
dos seus conteúdos, exigem tempo para serem concluídas.
5 As novas práticas comunicativas aqui descritas foram definidas a partir da verificação de websites go-
vernamentais nacionais e internacionais, considerada a realidade do início dos anos 2000.
647
soas ou grupos na formulação de políticas, projetos e ações de governo, de
tal forma que ainda figuram entre as estratégias contemporâneas de comu-
nicação governamental.
649
horários de antendimento –, ou transações ofertadas online que permititam
o atendimento integral ou parcial do da necessidade do cidadão. Os serviços
eram apresentados em formatos que ostentavam maior ou menor grau de
dificuldade de acesso, mas desde 1998 a maior parte dos serviços públicos
de governos locais, estaduais e federal passaram a ter presença na Internet.
651
descrição desta experiência, tendo como pano de fundo a tipologia concei-
tuada anteriormente, registrou uma época, suas iniciativas e as dificuldades
encontradas na implementação do projeto.
A participação no e-OP correspondia ao primeiro momento do Ciclo
do Orçamento Participativo, ou seja, às Reuniões Preparatórias, quando
eram realizadas as sugestões de investimentos pelos cidadãos inclusive no
processo presencial. Após sugerir obras e serviços pela Internet entre mar-
ço e abril de cada ano, o participante online era convidado a participar do
processo presencial para dar seguimento a defesa das suas propostas e a
participar da eleição de delegados e da votação das prioridades por região
da cidade ou temática.
Assim, a dinâmica online era toda estruturada para receber as suges-
tões do cidadão e encaminhá-las ao grupo da Coordenação de Relações
com a Comunidade CRC) e do Gabinete de Planejamento da Prefeitura
Municipal (GAPLAN), onde eram avaliadas e organizadas para posterior
apresentação às Assembléias Regionais e Temáticas. Esse grupo de avalia-
dores permanecia em contato com os participantes online para lhes infor-
mar sobre o andamento das suas sugestões. 7 Desta forma, o ciclo completo
previa: o cadastramento do participante; a avaliação e a validação da de-
manda sugerida por parte do GAPLAN e o envio desta para o conselheiro
regional ou temático; o retorno constante ao cidadão sobre o andamento
do processo; o envolvimento do cidadão no processo presencial e a votação
das demandas sugeridas pela Internet nos Fóruns de Delegados.
Os dados analisados para identificar a origem geográfica, o sexo e a
renda dos participantes online foram extraídos de base de dados referentes
ao processo realizado pela Internet em 2001, primeiro ano do processo on-
line, e período no qual foram registrados o maior número de participantes.
Os índices referentes a sexo e renda foram comparados com levantamento
de 2000, último ano exclusivamente presencial. Já para avaliar a evolução
do número de participantes e a validação das demandas encaminhadas foi
possível considerar dados das bases referentes aos três anos do e-OP, 2001,
2002 e 2003.
O número de inscritos no e-OP reduziu ano a ano entre 2001 e 2003.
Iniciando com 593 participantes, obteve uma adesão de apenas 51 pessoas
em 2003. O que é relevante (e possível) destacar em relação ao perfil dos
7 Na Internet era enfrentada a mesma dificuldade presente nas reuniões presenciais: eram enviadas mui-
tas sugestões de investimentos que não necessitam ou não devem ser avaliadas pelo OP para serem
atendidas. A substituição de uma lâmpada pública, por exemplo, deve ser solicitada diretamente na
Secretaria de Obras do município, não necessitando constar em um Plano de Investimento.
652
participantes, independente do decréscimo verificado, é o seu perfil com
relação a origem urbana, econômica e de gênero. No referente a condição
urbana, chama a atenção a distinção entre o perfil dos participantes online
e o presencial.
As regiões da cidade mais presentes no processo de participação onli-
ne são o Centro, responsável por 41,32%, enquanto no OP presencial esse
percentual é de apenas 6%. Ao mesmo tempo, as regiões periféricas são as
que predominam numericamente nas assembléias, sendo Restinga, Lomba
do Pinheiro e zona Norte exemplos claros dessa realidade, de acordo com
pesquisa realizada pelo grupo CIDADE e publicada em 2000.
O mesmo estudo permitiu fazer um comparativo com relação à con-
dição econômica dos participantes, evidenciando que o e-OP diferencia-se
do presencial também neste aspecto: 45,6% dos participantes online possu-
íam rendas familiares superiores a 12 salários mínimos, enquanto somente
13,06% dos participantes presenciais variam partilhavam dessa realidade.
Já a questão de gênero se apresentou com percentuais de participação
semelhantes nos dois contextos: houve uma maioria masculina no processo
da Internet e também nas assembleias. Porém, na Internet o percentual atin-
ge 72%, enquanto os resultados do modo presencial de 2000 indicam 58%
de homens entre os participantes presenciais. Assim, em número absolutos,
164 mulheres participaram pela Internet em 2001, contra 429 homens.
No primeiro ano de e-OP, 71,5% das demandas sugeridas (sugestões
para investimento) foram invalidadas, ou seja, consideradas impróprias.
No segundo ano esse percentual foi de 70,05%, tecnicamente igual. Em
2003, quando o número de inscritos caiu drásticamente, houve uma vali-
dação de 100% das demandas apresentadas. A razão desta disparidade foi
a falta de esclarecimento dos participantes sobre a natureza das questões
que podem ser encaminhadas através do OP, ou não. Houve ainda uma
diferença significativa entre o número de demandas encaminhadas e o total
de inscritos a cada ano. No primeiro ano foram exatamente 593 inscritos
e 380 demandas; no segundo 166 pessoas e 167 sugestões e finalmente 51
apresentaram 35 propostas. Ou seja, muitos dos inscritos não finalizaram o
processo de participação iniciado com o cadastramento.
A base de dados disponível do e-OP era pouco abrangente, permitin-
do a identificação de algumas poucas características do perfil do usuário e
do resultado efetivo desta prática comunicativa. Mesmo assim, foi possível
traçar um perfil mínimo do cidadão que se aproximou do OP a partir do
uso da Internet, bem como avaliar como seu envolvimento. Neste sentido,
653
devem ser destacados os seguintes aspectos sobre as pessoas que se engaja-
ram no processo a partir da Internet:
– o perfil econômico de renda familiar era superior a 12 salários mí-
nimos, ao contrário dos demais participantes, com média em tor-
no de 0 a 4 salários mínimos;
– eram pessoas residentes em zonas centrais da cidade; no modo
presencial essa maioria estava nos bairros mais distantes;
– o número absoluto de inscritos foi reduzindo ano a ano, indicando
claramente a não adesão da população ao processo online
– a debilidade do processo ficou ainda mais evidente quando foi ava-
liada a efetividade do processo online, a partir da análise da vali-
dação das demandas sugeridas, ou não. Um total de 598 demandas
foram encaminhadas em três anos, em ordem decrescente confor-
me os números apontaram.
O e-OP, na contramão de um conjunto de iniciativas governamentais
de sucesso na Internet, mostrou-se absolutamente ineficiente no cumpri-
mento do seu objetivo. Apesar de haver ampliado o leque, atraindo para
participar pessoas de segmentos sociais outros que não os regularmente
ativos no OP, não conseguiu consolidar-se como um canal permanente de
participação.
655
Figura 2: Novos Formatos, Práticas e Padrões Comunicativos do Site do OP
656
ção simplificadora. Embora o site informasse passo a passo o procedimento
para a participação pela Internet, uma parte significativa das demandas
encaminhadas não foram aceitas por estarem em desacordo com as regras
e critérios do processo. Muitas delas foram devolvidas ao demandante so-
licitando correção, e assim permaneceram. Este é um indicativo que, da
maneira como esteve estruturado, o processo online mostrou-se menos efi-
ciente no esclarecimento do complexo processo de sugestão de demandas
do que a comunicação face a face praticada nas assembléias regionais e
temáticas.
Outro padrão verificado foi da comunicação elitizada, consequência
do ainda restrito nível de acesso à Internet no Brasil e no mundo8. Os dados
do Ibope apontavam 7,5 milhões de usuários únicos nos domicílios brasi-
leiros, que navegavam em média 11h e 15min por dia. Havia uma predomi-
nância significativa da classe A e B (63% no total), e a maioria dos usuários
declaraca não possuir computador próprio (74,6%).
O acesso individualizado aos conteúdos da Internet favorecia - ainda
mais em um contexto sem redes sociais – a comunicação desinserida, o que
poderia ser potencialmente prejudicial ao modelo de participação proposto
pelo OP. Mesmo quando o cidadão fosse estimulado a participar das plená-
rias para debater e defender suas posições, a individualização do processo
de tomada de decisão reforça a ideia de que é possível participar de espaços
democráticos sem realizar o debate e, portanto, sem comprometer-se com
a defesa de interesses comuns, um dos pressupostos da democracia.
Considerações finais
8 Os dados utilizados na época desta pesquisa pertenciam ao Ibope e ao Media Metrix, da NASDAQ.
Ambos se referem ao segundo semestre de 2003
657
cação simplificado, incapaz de expressar com a profundidade e a complexi-
dade necessária o conteúdo e os processos relacionados aos investimentos
públicos municipais. Assim, o cidadão não estava habilitado a participar da
maneira correta pois realmente não estava capacitado ou suficientemente
informado para isso. Além disso, o e-OP possuía um complexo sistema de
sugestão e priorização de demandas a partir de critérios pré-estabelecidos.
Na Internet, ao contrário de uma experiência presencial, onde os par-
ticipantes podiam questionar diretamente e tinham acompanhamento da
equipe do OP no preenchimento dos formulários entregues durante as as-
sembléias, o processo dava-se através da disponibilizade estática de textos
explicativos e formulários, sem acompanhamento direto ou em tempo real
de membros da administração municipal envolvidos com o OP. Assim, o
participante que encaminhava sua sugestão pela Internet acabava supreen-
dido pela não efetivação do seu pedido e não retornava mais ao processo.
Outro padrão de comunicação que contribuiu de forma negativa na
experiência do e-OP foi o da comunicação desinserida, determinada pelo
acesso individualizado aos conteúdos pela Internet, o que era uma reali-
dade principalmente antes da interação decorrente da emergência das Re-
des Sociais. No contexto do e-OP, o site não possuía nenhum espaço de
intercâmbio de ideias e opiniões ou mesmo de constituição de grupos de
interesse ou associação em torno de interesses comuns para debates como
chats, fóruns web, listas de discussão e assim por diante. Embora essas fer-
ramentas fossem bastante comuns na cultura de uso da Internet no Brasil
desde o início, o site do OP não dispunha destes espaços. Assim, a expe-
riência do cidadão se resumia a sua relação individual com o governo, so-
mente.
O padrão da comunicação elitizada igualmente pode ter prejudicado
uma maior adesão ao processo. O fato do acesso à Internet, naquela época,
estar restrito a zonas centrais da cidade dificultou o uso do e-OP nos bair-
ros e regiões perféricas, onde a carência de investimentos tende a ser mais
demandada devido a lógica de expansão dos aglomerados urbanos. Ainda
que a intenção da prefeitura tenha sido atrair outros segmentos sociais ao
utilizar a Internet, a existência de um maior número de pontos públicos de
acesso poderia contribuir para elevar o número de participantes.
Embora a experiência do e-OP tenha apresentados seus limites em
Porto Alegre evidenciados pela redução anual do número de participan-
tes e pela ineficiência apresentada no processo de sugestão e validação das
demandas, a sua análise apontou a relevância de aspectos que se apresen-
658
tavam como potencialmente consolidáveis na dinâmica de comunicação
de uma governança eletrônica com vistas a construção de uma democracia
forte.
A prática de uma comunicação atemporal, desterritorializada, indivi-
dualizada, colaborativa e participativa são características que contribuíram
para fazer do e-OP uma primeira tentativa, o embrião de um processo de
participação pela Internet.
Anos mais tarde, novos projetos superaram os desafios vivenciados
naquela época, sempre que possível. Para mencionar alguns: o Gabinete
Digital, do governo do Estado do Rio Grande do Sul (2010); o Opine so-
bre Projetos, do Senado Federal (2013); o Participa Br, do governo federal
(2014), mais recentemete o Decide Madrid do governo federal da Espanha
(2016). Todos eles já nasceram filhos de um tempo onde Redes Sociais já
haviam introduzido uma cultura de participação online que, por si, tende
a contribuir para o sucesso de iniciativas de participação política baseadas
no uso da Internet.
Novos desafios estão colocados e entre eles é provável que o principal,
do ponto de vista de um governo, esteja em incorporar as agendas difusas
que se apresentam nas Redes Sociais hoje em dia, de forma independente
porém relacionadas a temáticas e políticas públicas. A comunicação, tendo
como base as dinâmicas introduzidas pelo uso da Internet, está presente
no fazer político de forma evidente nos dias atuais, cabendo aos governos
incorporar de forma definitiva e orgânica este cenário nas suas suas estra-
tégias e políticas de comunicação. Aquilo que foi um experimento no con-
texto do Orçamento Participativo em princípio dos anos 2000, hoje é uma
realidade da qual um governo não pode se retirar.
659
A cidade traída?1
Recortes da mídia, do governo e da academia
sobre Porto Alegre
Maria Helena Weber
Introdução
661
Existe uma cidade para cada passageiro. Como paisagem feita de cimento,
carne, plantas e sons, abriga a disputa de todos os poderes, porquanto a
cidade contemporânea traz em cada uma de suas particularidades, a sínte-
se de mundo globalizado. Mesmo assim, necessita, também, demarcar sua
identidade, suas diferenças, seus segredos. As cidades podem ser descritas
em mapas, indicações geográficas, monumentos, sensações, palavras, arte
e imagens mas a imensidão de sentidos que é capaz de provocar a transfor-
mará em muitas. Seus cantos e acontecimentos ocuparão o imaginário in-
dividual de modo diferenciado e assim serão contados. A cidade vivencia-
da individualmente não está disponível e é difícil de ser compartilhada. Ela
mesma será reapresentada, a cada habitante, milhares de vezes, sempre que
se tornar fator de disputa política, de argumento que comprove a adequa-
da governabilidade. Assim será recortada e devolvida, ininterruptamente,
pelas mídias, ora como propaganda sedutora, ora como notícia ou tese. As
cidades da cidade real vão sendo (des)construídas, ininterruptamente, nos
espaços públicos e nas vivências. Sob diferentes perspectivas, a cidade terá
seus acontecimentos e itens pinçados por todas as organizações que dela se
alimentam. A mesma cidade está circunscrita por necessidades e interesses
públicos e privados e todos podem ser vistos assim como nenhum. É o
lugar primeiro de amores, medos, violências, belezas e horrores. Lugar do
sagrado, da água e do sangue.
São muitas as cidades atravessadas pela cidade vivida pelos seus ha-
bitantes. Sua totalidade poderá ser expressa em mapas gráficos, digitais e
quase tocada via satélite. Mas sempre será de difícil compreensão, entendê-
-la. Existem recortes que escapam aos cientistas, aos jornalistas, aos polí-
ticos e são capturados pelos artistas, compositores, poetas, cegos, turistas,
mercadores e automóveis. Existe a cidade feérica e a cidade escura. A ci-
dade da vida e a dos mortos. Seus habitantes são chamados consumidores,
eleitores, trabalhadores e cidadãos e vulneráveis à comunicação e à sedução
permanente da mídia e da política.
As transformações históricas, geográficas e culturais abrigadas pelos
limites geográficos têm transformado a cidade em um objeto de estudo pri-
vilegiado para diferentes áreas do conhecimento como história, sociologia,
antropologia, ciência política, arquitetura, filosofia, economia, psicologia e
comunicação. Sob qualquer ângulo teórico será possível estudar a cidade
como espaço de aglutinação de todas as questões vitais relativas ao com-
portamento, à organização social ou arquitetônica. Ali circulam institui-
ções públicas e privadas, culturas e o registro da evolução da humanidade.
662
A cidade é o espaço público privilegiado das democracias. Espaço de sentir
o trabalho dos políticos eleitos e de identificar os espasmos da opinião pú-
blica. Esse trabalho aponta indicadores para o estudo das relações entre
governo municipal, mídias, sociedade e academia, permitindo a identifi-
cação de projetos e produtos veiculados para uma sociedade submetida a
processos de sedução das mídias, mas também como centro de um projeto
político. A cidade como cenário e sujeito das obrigatórias relações estabe-
lecidas entre governo, mídias e academia.
A cidade será daqueles que a mantém viva e daqueles que dela precisam
para se manter no poder. A política provocará sua visibilidade e mostrar a
cidade para além dela, por sua vez, cabe aos meios de comunicação social.
As mídias auscultam a cidade e mostram os acontecimentos de interesse de
todos, a partir de enquadramentos determinados por interesses múltiplos.
Além disso, como uma de suas principais funções, no plano jornalístico,
está a vigilância sobre as relações entre a cidade e seus governantes. Com-
parar o que foi prometido e o cumprido. Mas nada é tão simples e, como
organização, as mídias precisam, para além da cidade, defender interesses
de mercado e políticos. Nesta condição, intervém no espaço da política. E,
com distanciamento, como promete a ciência, os pesquisadores dissecam
partes privilegiadas da cidade. Aquelas que merecem ser estudadas.
A cidade
663
definição do bairro”. O bairro, por exemplo, como o lugar mais próximo no
estabelecimento de relações, de convivências e marcas coletivas. O outro
aspecto da problemática é a “análise socioetnográfica da vida cotidiana,
que enfeixa desde as pesquisas eruditas dos folcloristas e dos historiado-
res da cultura popular, até os imensos painéis poéticos, quase míticos (...)”.
Mayol (p. 38) especifica ainda que a organização da vida cotidiana se ar-
ticula segundo dois registros: “os comportamentos cujo sistema se torna
visível no espaço social da rua” traduzido pelo vestuário, saudações, ritmos
e maneiras de andar. Pode-se dizer o modo como as pessoas acessam e se
relacionam com os espaços públicos, evitando ou valorizando-os. O outro
se caracteriza pelos “benefícios simbólicos que se espera obter pela manei-
ra de ‘se portar’ no espaço do bairro”.
Ao estudar a cidade é possível encontrar caminhos para identificar
diversos modos da democracia na contemporaneidade e suas profundas
vinculações com as redes de comunicação midiática a partir desse locus
geograficamente delimitado: Porto Alegre. É possível também estudar a
imagem pública da cidade e aprofundar os sentidos gerados em torno dela,
a partir do binômio comunicação e política, considerando a produção de
informação e comunicação na disputa da opinião, apoio e voto. Remete ao
estudo de conceitos sobre mídia e democracia, sobre políticas e estruturas
de comunicação, sobre conceitos como ética, verdade, imparcialidade e ob-
jetividade jornalística, instauradas pelas redes midiáticas, pela instituição
política e pela produção científica. Todos esses lugares produzem sentidos
a partir do fortalecimento de determinados aspectos da cidade, seus sujei-
tos e movimentos. Como consequência, a produção de imagem interferirá
na relação destes sujeitos com a cidade e com os seus governantes.
Mesmo igual a todas e diferente para cada um, a cidade de Porto Ale-
gre foi escolhida para a pesquisa por questões de ordem política. Durante
16 anos5 foi governada pelo mesmo partido – Partido dos Trabalhadores –
e, neste período, obteve projeção internacional nos campos social, político
e cultural, passível de comprovação, conforme documentos, publicações,
pesquisas e prêmios de instituições mundialmente reconhecidas. A proje-
ção dessa cidade pode ser atribuída à política e à proximidade dos projetos
políticos com aqueles ditos da esquerda internacional.
5 A Frente Popular com a hegemonia do Partido dos Trabalhadores constituiu-se num fenômeno polí-
tico-eleitoral no Rio Grande do Sul, pois nunca um partido havia conseguido se reeleger no governo
da cidade de Porto Alegre. Os mandatos foram exercidos por Olívio Dutra e Tarso Genro (1989-1992);
Tarso Genro e Raul Pont (1993-1996); Raul Pont e José Fortunatti (1997-2000); Tarso Genro e João
Verle (2001-2002) e João Verle (2002-2004).
664
Durante 16 anos, a cidade foi transformada do ponto de vista da sua
estrutura e da cidadania, em tese, a partir de um projeto político significa-
tivo denominado de Orçamento Participativo e outros como os projetos
de Descentralização da Cultura. Esse cenário foi propício para que a cidade
fosse escolhida como espaço para abrigar o Fórum Social Mundial6 pela pri-
meira vez em 2001 e depois 2002, 2003 e 2005. Um outro mundo é possível
é o slogan cunhado pelo Fórum Social Mundial e expressa uma utopia ao
se contrapor à ordem econômico-política internacional. Em Porto Alegre,
o FSM foi se constituindo como o mais poderoso lugar da esfera pública
mundial, ao expressar a pluralidade e a complexidade da sociedade mun-
dial, sem a interferência de governos, patrocinados por instituições e enti-
dades vinculadas à esquerda, sem vinculação com governantes e partidos7.
Entre a cidade divulgada pela mídia Zero Hora, aquela promovida
pela Administração Popular e a outra transformada em objeto de pesquisa,
existem diferenças substanciais. Há uma imagem de Porto Alegre desejada
pelo governo e expressa no seu material informativo (como propaganda ou
notícia), mas esta será ratificada, ou contestada, a partir da cidade veicula-
da pela mídia. Esta disputa se trava objetivamente na escolha legítima e na
autonomia do jornal em cumprir suas pautas sobre a cidade e o governo da
cidade. Ao mesmo tempo, divulgará as coisas da cidade de acordo com sua
linha editorial obediente a várias ordens, incluindo a política e a econômi-
ca. Muitas vezes, a cidade tornada visível estará longe daquela vivenciada
ou daquela desejada pelos governos, partidos e políticos.
Entende-se que a primeira instância de provocação dos discursos sobre
a cidade é política (governo, instituições e políticos) que configura o espaço
político. A partir de suas ações e discursos, a mídia será mobilizada, cum-
6 O Fórum Social Mundial é um “espetáculo social” para se contrapor, como demarcação tática, no mes-
mo período de realização do Fórum Econômico Mundial de Davos, o qual desde 1971 cumpre um papel
estratégico na formulação do pensamento dos que promovem e defendem as políticas neoliberais para
o mundo. Manifestações e debates entre culturas, etnias, idiomas, religiões, ideologias fortaleceram o
FSM como parte determinante do processo de construção simbólica de um outro mundo.
A existência do Fórum Social Mundial – FSM é sustentada por uma Carta de Princípios que caracteriza
o Fórum Social Mundial e estabelece discordâncias sobre o padrão de relações econômicas, sociais e
políticas e práticas excludentes da globalização, ao se definir como: “um espaço aberto de encontro para
o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de ideias, a formulação de propostas, a troca livre
de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se
opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo, e
estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária centrada no ser humano. O FSM se pro-
põe a debater alternativas para construir uma globalização solidária, que respeite os direitos humanos
universais, bem como os de todos os cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente, apoiada
em sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça social, da igualdade e da
soberania dos povos”.
7 Ver WEBER (2006) e BRENOL (2004).
665
prindo seu papel, mas a dimensão dos problemas e das qualidades da cidade
será ampliada na proporção dos interesses e da disputa entre a mídia e os
governantes. Os eleitos para governar assumem o estatuto de representar
e defender os interesses de cada um dos habitantes e também dos lugares,
riquezas constitutivas da geografia da cidade. Ao mesmo tempo, o objetivo
do governo é de manter seu poder e, para tanto, todos os projetos técnicos,
econômicos e políticos têm que ser tornados visíveis e promovidos.
A cidade que elegeu o governo será informada sobre ele e persuadi-
da a apoiá-lo. Estrategicamente, a cidade-do-governo será constituída pelo
discurso da informação, da propaganda, pela fala dos governantes. Há uma
primeira “cidade real” defendida como argumento e obra de um governo.
A segunda instância de produção de imagem sobre a cidade é o espaço mi-
diático onde é construída uma segunda “cidade real”. A cidade-do-jornal
está em praticamente todas as editorias e articulistas, mostrada através de
seus artistas, habitantes ilustres, crimes, crítica aos governantes, vida so-
cial, miséria, prédios, ruas etc. O registro jornalístico é uma das dimensões
privilegiadas da história e da memória da cidade e a ideia da credibilidade/
confiabilidade o faz guardião da verdade e observador privilegiado do go-
verno. A tarefa principal será cuidar para que a cidade não seja usurpada.
Os interesses defendidos pelas mídias serão somados a sua dimensão edi-
torial e determinarão a cobertura sobre qualidades e problemas da cidade
e de seus governantes.
A terceira instância de produção de imagem sobre a cidade é o es-
paço acadêmico onde a cidade, a política e a mídia são temas abordados
em diferentes disciplinas como a história, geografia, comunicação, ciência
política, a antropologia, a economia, a sociologia, arquitetura, engenharia,
dentre outros. A cidade tem sido foco de centenas de pesquisas, no mundo
inteiro, e esta produção de conhecimento, em torno de Porto Alegre, cria
outra “cidade real” quando cientistas pesquisam, analisam e criticam tanto
o espaço governamental quanto o espaço midiático, a partir de aspectos e
ângulos específicos.
Na imagem de uma cidade existem todos os sujeitos que a vivenciam
e que dela falam, mas as mídias, o governo municipal e a academia são
as três instâncias principais de produção de legitimidades e credibilidades
desta imagem forjada na produção e difusão estratégica de informações e
propaganda. Assim sustentam o discurso jornalístico gerado no espaço do
sistema de comunicação midiática, o discurso político gerado no espaço do
governo municipal e o discurso científico gerado no espaço acadêmico. A
constituição da cidade gera muitas cidades que ocupam o mesmo espaço
666
simbólico-geográfico, oferecidas ao habitante, eleitor e consumidor. O po-
der dos discursos e ações gerados nesses espaços estratégicos está vincula-
do à sua dependência em relação à vida e ao desenvolvimento da cidade e à
interdependência entre os espaços. Ao mesmo tempo seu poder discursivo
e a sua capacidade de intervenção social, política, cultural e científica ele-
gem a cidade que merece ser mostrada, promovida e estudada, mantendo
assim seu poder sobre ela, por intermédio de pactos e disputas simbólicas.
A respeito das críticas e louvores aos quais uma cidade é submetida,
Porto Alegre, como qualquer cidade, não obtém unanimidade8. Não foram
os mitos sobre os gaúchos com suas histórias de valentia e petulância que
a tornaram conhecida e, simbolicamente, importante no mundo recente.
Mas, sim, a política, obedecendo – talvez – às características históricas e
culturais que criaram os mitos.
Recortes políticos
667
gan Administração Popular. O Orçamento Participativo (OP9) modificou a
cidade e seus habitantes, pois – numa descrição sucinta – os cidadãos de
Porto Alegre, dividida em 16 regiões, foram mobilizados e participaram
de assembleias anuais e decidir sobre suas prioridades e o necessário in-
vestimento público, na sua região. Esse experimento de democracia par-
ticipativa possibilitou que os investimentos fossem realizados de acordo
com as necessidades dos bairros e regiões. Alguns na área de saúde, outros
em calçamento, esgotos, eletricidade, cultura, a educação etc. Em tese, o
destino da cidade era decidido pelos seus habitantes e sua execução de res-
ponsabilidade do Executivo e da Câmara Municipal.
O OP passou a fazer parte da imagem da cidade, um lugar onde os ha-
bitantes decidiam os investimentos do Governo e, como tal, transformada
em bandeira de propaganda e informação do PT que devolvia para cada
habitante, como estratégia discursiva, a cidade que eles mesmos estavam
construindo. O OP, no entanto, nunca foi matéria jornalística relevante, e é
um dos temas centrais da propaganda governamental e um dos mais estu-
dados pela pesquisa acadêmica.
Nesse processo de democracia participativa cabe ressaltar o Proje-
to da Cultura que orientou as políticas públicas voltadas ao investimento
cultural para fazer cultura: implemento de 70 oficinas de arte e cultura,
em média, sediadas nas 16 regiões do OP10; no acesso à cultura por meio
da atividades culturais com a participação de todas as comunidades e na
comemoração da cultura, em festas, festivais de música, dança, esportes
e outros. Esse processo foi dinamizado pelo financiamento de projetos
9 Desde 1989, os investimentos anuais em obras e serviços previstos no orçamento público municipal,
bem como as prioridades do governo, foram definidos a partir das indicações da população organizada,
em assembleias, sobre o uso dos recursos públicos municipais, processo até então decidido apenas entre
Executivo e Legislativo. O OP foi regulamentado pela Lei Orgânica dos Municípios, no início de 1990.
As decisões das reuniões e plenárias são encaminhadas sob o título Plano de Investimentos, transfor-
mado em Proposta Orçamentária e encaminhado pelo Executivo à Câmara de Vereadores, que tem
atribuição formal de votar o Orçamento Municipal.
10 Nas 16 regiões do OP havia uma média de 50 atividades entre música, dança, cinema exposições e tea-
tro;14 tipos de oficinas [dramaturgia, dança, teatro, capoeira, artes plásticas, escultura, colagem, vidro,
gesso, fotografia, música], que ocorriam em igrejas, associações, escolas, clubes, sindicatos, bibliotecas,
espaços alternativos que multiplicam ações. As oficinas integram a descentralização da cultura e “visam
incentivar a sensibilização e instrumentalização da comunidade para realizar sua própria produção cul-
tural e preservação da memória”. O projeto Cultura Por Aqui “tem como meta a construção de espaços
culturais permanentes nas comunidades e estímulo ao desenvolvimento cultural autônomo” com pro-
gramação sobre temas específicos. Por exemplo, da ocupação dos chamados espaços culturais apenas
20% era decidida pela própria SMC, os restantes oitenta por cento ocorrem por edital. Como exemplos,
merecem destaque o Programa de Descentralização da Cultura, as Oficinas Populares, o Cultura Por
Aqui e o Festival de Música de Porto Alegre, história da cidade no projeto de publicação dos livros
Memória dos Bairros.
668
(FunProArte e Funcultura) cujos estatutos e operações de captação de re-
cursos e seleção de projetos eram resultado de uma deliberação da qual
participam as entidades mais representativas do campo da arte e cultura.
Os projetos abrangiam desde a produção de sofisticadas mídias até ati-
vidades artesanais criadas na periferia da cidade. O Conselho Municipal
de Cultura tornava exequível essa política ratificada na edição anual da
Conferência Municipal de Cultura onde centenas de pessoas apresentavam
propostas, debatiam e votavam ações, eventos e produtos culturais diver-
sos. A adoção desses projetos, para além da política, pode ser identificada
no evento internacional Porto Alegre em Cena11, que se manteve depois da
mudança de governo.
Porto Alegre, a cidade e a sua imagem são consequência da produção
de informações e propaganda nos espaços midiáticos, governamentais e
acadêmicos. Pode-se dizer que os habitantes da cidade passaram a convi-
ver não só com as mudanças estruturais favoráveis a sua vida (o indicador
disso são as sucessivas vitórias do mesmo partido), mas imbuídos de uma
imagem criada pelas mídias, não necessariamente as locais, e pelo governo
que promoveu estrategicamente a formação de um conceito sobre a cidade.
Para constituir a imagem de Porto Alegre e traduzir o projeto político
da Administração Popular, foi definida uma política de comunicação ope-
racionalizada a partir de conceitos de política pública, comunicação so-
cial e relações estabelecidas pelo discurso de emancipação da sociedade e
a qualificação da opinião pública. Para além da promoção e da visibilidade
necessários a qualquer governo, foram desencadeados processos sustenta-
dos pela Coordenação de Comunicação Social do Governo Municipal12,
cumprindo a função de intermediar a relação entre sociedade e governo.
Para tanto, e considerando o cerco das mídias, novas táticas de fazer infor-
mação, propaganda e relações públicas foram sendo experimentadas e de-
ram resultados. Como a centralização estrutural, financeira e de produção
da comunicação (comunicação centralizada) nos dois primeiros mandatos,
passando depois ao conceito de comunicação integrada que permitiu mais
autonomia aos órgãos.
Na contemporaneidade, há um mútuo agendamento entre a política e
a mídia, dominada pela sua estética e seu tempo, tendo em vista a forma-
11 Porto Alegre em Cena transforma a cidade com apresentações de teatro, dança e música em todos os
espaços com preços populares e espetáculos nacionais e internacionais. Evento promovido ainda em
2017.
12 Ver referências: OSÓRIO (2003) e DEUS (2005).
669
ção da opinião pública favorável. A estrutura de comunicação da PMPA
planejou e implantou estratégias, processos e produtos de comunicação
adequados ao princípio da representação plural e ao estabelecimento de
novas relações e linguagens, foram desencadeadas novas condutas de
emancipação social desconsideradas pelas mídias, cuja atuação cotidiana
está voltada para o consumo, de produtos, serviços e valores. A organiza-
ção e a centralização de decisões e ações para todos os órgãos municipais
caracterizaram a política de comunicação e as operações decorrentes. A
complexidade e os objetivos desejados podem ser vistos na estrutura que
durante os quatro governos sofreu adaptações mas manteve a centralida-
de e a dependência da maioria dos órgãos municipais quanto à decisão
de fazer sua própria comunicação. A política era legitimada no Conselho
Municipal de Comunicação, Conselho Político-Técnico de Comunicação
e operacionalizada pela Coordenação Executiva, Coordenadoria de Jorna-
lismo, Coordenadoria de Relações Públicas, Central de Produção, Central
de Informações e Projetos. Esta estrutura sofreu modificações de governo
a governo.
A propaganda do Governo para a cidade a definia como centro de
mudanças sociais orquestradas pelos seus habitantes cidadãos. Como sen-
do o lugar onde todos decidiam (OP) devido ao novo modo de governar
(Administração Popular) que vencera as eleições sob o slogan Coragem
de Mudar. Os quatro governos traduziram este conceito a seu modo, mas
sempre associado à AP: Olívio Dutra e Tarso Genro [1989-1992] mantive-
ram o brasão da cidade, acrescido de Administração Popular. Os governos
seguintes ampliam esse conceito identificando sua administração com slo-
gans diferenciados. Tarso Genro e Raul Pont [1993-1996] adotam o slogan
Mais Cidade. Mais Cidadania com o desenho do prédio da PMPA. Raul
Pont e José Fortunatti [1997-2000] com a marca Onde a participação faz
a democracia aplicado ao desenho do chaminé do Gasômetro que simula
um dedo (voto do OP) e foi o mais difundido. Estranhamente, o último
mandato conviveu com três marcas. Tarso Genro e João Verle[2001-2002]
inicialmente utilizaram apenas o brasão da Prefeitura e o slogan Adminis-
tração Popular e este, no segundo ano, é acoplado ao desenho de mãos
coloridas em círculo. Com a saída de Tarso Genro, João Verle [2002-2204]
adota o brasão da PMPA + AP e o slogan-assinatura Paixão pela cidade.
A competência da política de comunicação em traduzir e promover a
Administração Popular é um dos fatores que marcou as sucessivas vitórias
do PT na cidade. A estrutura centralizada propiciou a construção de uma
670
imagem unitária pelo efeito de redundância e reforço da informação. Para
tanto, o discurso da AP era ratificado pelas mídias próprias, campanhas
de propaganda, eventos e peças publicitárias que supriam a falta de visi-
bilidade na mídia, especialmente no primeiro mandato. Dessas mídias, as
mais importantes são o jornal impresso Porto Alegre Agora e o programa
de televisão Cidade Viva13. O jornal foi mantido, com diferentes formata-
ções, de 1989 até 2004 com uma tiragem quinzenal média de 50 a 70 mil
exemplares. O programa Cidade Viva, também acompanhou os governos
da AP, tendo sido veiculado, semanalmente na televisão e diariamente no
rádio, sob uma eficaz e hibridizada combinação do discurso jornalístico e
da estética publicitária, onde os habitantes da cidade eram as testemunhas
dos benefícios propiciados pelo Governo. Foi matéria de grandes debates
em campanhas eleitorais e a tentativa de copiá-lo, por outros partidos em
governos estaduais, não obteve resultado. A principal estratégia que sus-
tentou essas duas instâncias emblemáticas da comunicação desse governo
foi a capacidade de traduzir o slogan Administração Popular associado ao
projeto Orçamento Participativo que significava: dar visibilidade às mu-
danças na cidade (infraestrutura e qualidade de vida) obtidas por intermé-
dio da participação da população (cidadania) e viabilizada pelo governo
com a ‘coragem de mudar’ (Administração Popular). Nas campanhas de
propaganda, temas centrais de uma administração como educação, saúde,
habitação, meio ambiente, também obedeciam a essa estratégia ao chamar
a população para participar de eventos festivos e vinculados às datas co-
memorativas ou relacionados ao exercício da cidadania como Congresso
da Cidade.
A tentativa de agendamento na mídia, pelo governo, cumpriu o roteiro
de emissão de notícias e assessoria de imprensa e produção de eventos mas,
especialmente, no primeiro mandato, sem obter visibilidade. Essa situação
gerou a implementação de um sistema de monitoramento permanente de
programas de rádio que registravam as informações sobre a AP que pode-
riam gerar respostas “ao vivo”, conforme tese de Sandra de Deus (2005).
No espaço político, a relevância está no discurso persuasivo da propa-
ganda e da retórica dos governantes baseada na AP. Deste modo, o habitan-
te é citado como um cidadão com poder de decidir sobre sua cidade, mas
só o faz porque o projeto político do Governo propicia isto. Para a cidade,
o governo presta contas e, ao mesmo tempo, quer convencê-la de sua im-
portância e a de seu partido.
13 Ver referência: PEREIRA (2004).
671
Recortes midiáticos
672
mandato. Desconstruir a primeira página de um jornal é identificar os inte-
resses do veículo ao hierarquizar e enquadrar o cotidiano para cumprir seu
contrato de leitura e atrair o consumidor. Mouillaud (2002: p. 99) aponta
para o estudo dos títulos que deverá ser
[...] encarado e estudado em local próprio, não como um enunciado
posto sobre um suporte, mas com uma inscrição, quer dizer, como
enunciado da língua e como uma marca – a marca maior – da articu-
lação do jornal: uma região-chave que é o articulado e articulador do
jornal, a expressão de sua estrutura.
673
Cidade alcança o maior índice (80,2%) e o Governo Municipal, o menor
(7,3%). Outro aspecto passível de estudo e decorrente desse número é a
relação possível entre a valoração do jornal sobre a cidade e sobre o gover-
no da cidade. Outro aspecto quantitativo que chama a atenção e pode ser
associado ao projeto político do PT é o item Movimentos Sociais que cresce
como referência passando da última posição (0,9%) no primeiro governo
à quarta (3,1%), mesmo que o índice percentual não seja significativo na
totalidade.
16 Foram as últimas eleições cuja vitória ocorria pela maioria simples de votos, de acordo com a Consti-
tuição federal de 1988 que alterou esse processo.
674
entre Câmara Municipal e Prefeitura. Um das manchetes – 16/8/92 – rela-
ciona desgoverno e decadência da cidade: Invasões e favelização ameaçam
Porto Alegre.
No segundo período analisado (1993/1996), apesar do fortalecimento
do OP e de eventos internacionais, a Administração Popular obtém apenas
manchetes desfavoráveis. Duas se referem ao fato de repercussão nacional
sobre um grupo de meninos encontrados em esgoto ao lado da Prefeitura:
A vida de 12 meninos no esgoto de Porto Alegre (1/5/93) e Meninos do esgoto
mantém rotina no Dia do Trabalho (2/5/93). A outra refere-se a suspeitas
em acordo entre Prefeitura e uma fundação (30/4/93). Outras manchetes
citam Porto Alegre para eleição de Collares ao Governo do Estado e a guer-
ra de promoções dos supermercados (8/1/93). No último ano (eleitoral)
não há nenhuma manchete principal referente à cidade, ao governo ou às
eleições municipais.
Uma das indicações mais significativa é a ausência do Governo e da
cidade no espaço da manchete principal do jornal Zero Hora durante o
primeiro e o último ano do terceiro mandato da Administração Popular
(1997/200). O último mandato da AP (2001/2004) é o período da realiza-
ção de várias edições do Fórum Social Mundial e é este o tema das manche-
tes principais em 2001: Fórum começa sob a marca da polêmica (25/1/01) e
Festa, protestos e marcha abrem Fórum Social Mundial (27/1/01). As outras
duas se referem à inauguração do novo aeroporto (1/9 e 19/10). No último
ano da AP, 13 manchetes principais ocuparam a primeira página de modo
diversificado referentes aos preços da gasolina (4); abertura do comércio
aos domingos (1); eleições municipais (4) sendo duas sobre a derrota do
PT; greve dos professores estaduais (1); o hábito de fumar (1) e sobre o
Grêmio (1).
O Quadro 2 mostra a abertura do tema cidade, no qual foram inclu-
ídos fatos constitutivos do cotidiano das cidades, sendo que em cada um
cabem outros itens e assim sucessivamente, a saber: Comércio, Comuni-
dade, Cultura, Direitos Humanos, Educação, Esportes, Eventos, Habitação,
Infraestrutura, Meio Ambiente, Meteorologia, Saúde, Segurança, Trabalho
Trânsito. Sob a perspectiva do tema cidade, vários assuntos relacionados
ao fato de Porto Alegre ser a capital do estado foram considerados, mesmo
que possam ser objeto de um estudo específico.
675
Quadro 2 – A cidade em Zero Hora no governo da APE (1989/2004)
677
Recortes acadêmicos
17 A pesquisa foi realizada nas duas maiores e mais produtivas, do ponto de vista científico, universidades
através de seus sistemas: Sistema SABI (UFRGS) e Sistema Verum (PUCRS) que possuem tradição de
ensino e pesquisa como centros de referência, possuindo bibliotecas e importantes acervos. O terceiro
sistema acessado foi o Web of Sience.
678
Gráfico 1: Produção Acadêmica sobre a cidade por áreas e conhecimento
Linguística
2% 0% 3% Ciências Exatas e da Terra
Letras e Artes
10% Ciências Biológicas
24% 6% Engenharias
Ciências
Humanas
29%
3% Ciências Agrárias
679
Quadro 4 – Produção Acadêmica sobre cidade, no governo da AP (1989/2004)
680
Para além desse olhar externo sobre a cidade e seus governo, muitos
projetos da própria Administração Popular incluíram a produção de livros
e outros tipos de produção que somados a publicações de políticos do par-
tido da Frente Popular geraram 60 publicações.
Em meio a tantos recortes, a cidade traída estará também nas dife-
renças entre a cidade vivida com problemas e progressos provocados pelo
governo e a cidade de papel cujos problemas e progressos dependerão de
interesses do próprio jornal para serem divulgados. Quando tomamos o
Governo do PT com o exemplo podemos perfilar, de um lado, as notícias
sobre a cidade em mudança, que recebe prêmios e obtém repercussão in-
ternacional. Do outro lado (fora da mídia), os fatos e a cidade que deram
origem a isso como Orçamento Participativo, projetos comunitários e ou-
tros. Uma das cidades é para mídia e o leitor e a outra é para o governo e os
cidadãos no modo entendido como Administração Popular. Os conflitos a
partir daí são evidentes: a mídia mostra os problemas, mas para o governo,
o importante é que a população os aponte (OP). Outro exemplo está na
questão da memória dos lugares e dos acontecimentos, para os quais os
registros dos meios de comunicação são imprescindíveis para a memória
da cidade e de seus habitantes. No caso do governo em estudo, a memória
pública foi estimulada para que fosse reconstituída pelos próprios habitan-
tes, por intermédio de projetos como Memória dos Bairros e Histórias de
Trabalho.
Pode-se, então, montar a equação sobre a imagem de uma cidade que
corresponderá a paisagens arbitrárias construídas na disputa simbólica de
poderes. Para cada um desses estratégicos espaços de produção de sentidos
(mídia, governo e academia) a dimensão real de uma cidade dependerá da
potencialidade dos fatos ali gerados que permitirão, num espaço de tempo
específico, fortalecer/desqualificar governantes; fortalecer/desqualificar a
cidade. Para as mídias e para os governos, a cidade é uma paisagem móvel,
constantemente deslocada de acordo com os projetos político-ideológicos
e o investimento nela depositados. A arbitrária representação da cidade,
seus nacos, aumenta quando mídias e governos estão em lado opostos,
como aconteceu com a cidade de Porto Alegre e a Administração Popular.
Os discursos gerados no espaço político do governo municipal são de-
correntes de projetos estratégicos, estruturados para responder ao voto e
justificar a manutenção de um projeto político-partidiário no poder. Para
tanto, promoverá/ esconderá as qualidades da cidade e seus problemas, de
acordo com seus interesses e conveniências, através da propaganda, infor-
681
mação, relações e eventos. Os discursos gerados no espaço midiático têm a
cidade e seus governantes como pauta editorial permanente, e a cobertura
jornalística sobre a cidade dependerá, também, de relações e interesses éti-
cos, políticos e mercadológicos. Para tanto promoverá/esconderá as quali-
dades e problemas da cidade, através da notícia em todas as suas configu-
rações editoriais. Os discursos gerados no espaço acadêmico têm a cidade,
seus governantes e a mídia, como objeto de estudo e a produção científica
nesta área será a última instância delimitadora da qualidade desta cidade.
A cidade traída torna-se a metáfora útil à hipótese de que há uma
cidade para cada olhar, para cada intenção. Traída porquanto vulnerável a
apropriações e representações dirigidas por interesses e projetos pessoais,
políticos e midiáticos. Traída, pois sua fotografia será sempre devolvida em
fragmentos. O lugar geográfico e as medidas estatísticas são o espaço nos
quais ela pode ser apresentada por inteiro em mapas e reproduções digitais,
mas ali não estará a vida de seu cotidiano, de seus habitantes, da subjetivi-
dade que lhe dá identidade e a torna única. Para ela mesma. Sempre serão
muitas as cidades desejadas e vivenciadas por seus habitantes. Existe uma
para cada um, assim como existe, a cidade radiografada e editada pelas
editorias jornalísticas que a expõem a partir de critérios de noticiabilidade
e também a partir de interesses públicos ou privados. A outra cidade per-
tence à política e será utilizada em dois movimentos: o primeiro para eleger
um governo e o segundo para justificar sua permanência e promover-se.
Para o governo, a cidade é apropriada e distribuída como propaganda de
ações que possam apontar e promover o partido como executor de boas
obras e qualidade de vida para a cidade. E o ciclo se mantém. Esta mes-
ma cidade será, numa terceira instância, perscrutada pela ciência e servi-
rá como matéria prima para a produção de conhecimento em quaisquer
áreas, já que a cidade abriga todas as dimensões humanas, sociais, tecno-
lógicas, arquitetônicas, políticas, econômicas e culturais, em síntese. Seus
pesquisadores a recortarão e publicarão suas descobertas em teses e livros
mesmo sem conhecê-la, orientados por linhas de pesquisa e cercados pelo
tempo e disponibilidade de recursos.
O pesquisador assiste, registra e publica os recortes da cidade traída,
assim entendida porque nunca poderá ser interpretada na sua real confi-
guração, mostrada na sua totalidade e sim a partir de vivências e represen-
tações.
682
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Autores e Autoras
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CAMILA LÂNGARO BECKER – Mestre em Comunicação e Informação (UFRGS).
Graduada em Jornalismo (UFRGS). Desenvolveu projetos de Iniciação Cien-
tífica na UFRGS. Pesquisadora do NUCOP e integrante do OBCOMP.
724
curso de Comunicação Social – Relações Públicas da Universidade de Ca-
xias do Sul (UCS). Integra a Coordenação editorial do OBCOMP. Exerceu
atividades na área da Comunicação Organizacional, junto à agência de co-
municação BH Press e nas áreas de Comunicação da Fiat e da Vale, na atual
empresa de logística VLI. Integrante do NUCOP e OBCOMP.
725
ra Titular do Departamento de Comunicação com atividades na graduação
e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação (UFRGS).
Graduada em Relações Públicas e Publicidade/Propaganda (UFRGS). Au-
toria do livro Comunicação e Espetáculos da Política. Exerceu atividades na
área da administração pública, na área da comunicação. Coordenadora do
Núcleo de Comunicação Pública e Política e do Observatório de Comunica-
ção Pública.
726
TÂNIA SILVA DE ALMEIDA – Mestre em Comunicação e Informação (UFRGS).
Graduada em Relações Públicas (UFRGS). Professora e coordenadora do
curso de Relações Públicas do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uni-
Ritter).
727
Este livro foi impresso
para a Editora Insular
em maio de 2017.