O Menino
Sentou-se num tamborete, fincou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas
méos e ficou olhando para a mae. Agora ela escovava os cabelos muito louros e
curtos, puxando-os para tras. E os anéis se estendiam molemente para em seguida
voltarem a posigao anterior, formando uma coroa de caracdis sobre a testa. Deixou
a escova, apanhou um frasco de perfume, molhou as pontas dos dedos, passou-os
nos Idbulos das orelhas, no vértice do decote e em seguida umedeceu um lencinho
de rendas. Através do espelho, olhou para o menino. Ele sorriu também, era linda,
linda, linda! Em todo o bairro nao havia uma moga linda assim.
— Quantos anos vocé tem, mamae?
— Ah, que pergunta! Acho que trinta ou trinta e um, por ai, meu amor, por ai.
Quer se perfumar também?
— Homem néo bota perfume.
— Homem, homem! — Ela inclinou-se para beija-lo. — Vocé é um nenenzinho,
ouviu bem? E 0 meu nenenzinho.
O menino afundou a cabega no colo perfumado. Quando nao havia ninguém
olhando, achava maravilhoso ser afagado como uma criancinha. Mas era preciso
mesmo que nao houvesse ninguém por perto.
— Agora vamos que a sessdo comega as oito — avisou ela, retocando
apressadamente os labios.
O menino deu um grito, montou no corrimao da escada e foi espera-la
embaixo. Da porta, ouviu-a dizer a empregada que avisasse ao doutor que tinham
ido ao cinema.
Na rua, ele andava pisando forte, o queixo erguido, os olhos acesos. Tao bom
sair de maos dadas com a mae. Melhor ainda quando o pai nao ia junto porque
assim ficava sendo o cavalheiro dela. Quando crescesse haveria de se casar com
uma moga igual. Anita nao servia que Anita era sardenta. Nem Maria Inés com
aqueles dentes saltados. Tinha que ser igualzinha 4 mae.
— Vocé acha a Maria Inés bonita, mamae?
—E bonitinha, sim.
— Ah! tem dentéo de elefante.
Eo menino chutou um pedregulho. Nao, tinha que ser assim como a mae,
igualzinha a mae. E com aquele perfume.
— Como € 0 nome do seu perfume?
— Vent Vert. Por qué, filho? Vocé acha bom?
— Que é que quer dizer isso?— Vento Verde.
Vento verde, vento verde. Era bonito, mas existia vento verde? Vento nao
tinha cor, s6 cheiro. Riu.
— Posso te contar uma anedota, mae? Posso?
— Se for anedota limpa, pode.
— N&o é limpa nao.
— Entao nao quero saber.
— Mas por qué, p6é!?
— Eu ja disse que nado quero que vocé diga “pé
Ele chutou uma caixa de fésforos. Pisou-a em seguida.
— Olha, mae, a casa do Julio...
Julio conversava com alguns colegas no portaéo. O menino fez questao de
cumprimenta-los em voz alta para que todos se voltassem e ficassem assim mudos,
olhando. Vejam, esta é minha mae! — teve vontade de gritar-Ihes. Nenhum de
vocés tem uma mae linda assim! E lembrou deliciado que a mae de Julio era
grandalhona e sem graca, sempre de chinelo e consertando meia. Julio devia estar
agora roxo de inveja.
— Ele é bom aluno? Esse Julio.
— Que nem eu.
— Ent&o nao é.
O menino deu uma risadinha.
— Que fita a gente vai ver?
— Nao sei, meu bem.
— Vocé nao viu no jornal? Se for fita de amor, nao quero! Vocé nao viu no
jornal, hein, mamae?
Ela nao respondeu. Andava agora tao rapidamente que as vezes 0 menino
precisava andar aos pulos para acompanha-la. Quando chegaram a porta do
cinema, ele arfava. Mas tinha no rosto uma vermelhidao feliz.
A sala de espera estava vazia. Ela comprou os ingressos e em seguida, como
se tivesse perdido toda a pressa, ficou tranquilamente encostada a uma coluna,
lendo o programa. O menino deu-Ihe um puxao na saia.
— Mae, mas o que é que vocé esta fazendo?! A sessao ja comecou, ja entrou
todo mundo, pé!
Ela inclinou-se para ele. Falou num tom muito suave, mas os labios se
apertavam comprimindo as palavras e os olhos tinham aquela expressdo que o
menino conhecia muito bem, nunca se exaltava, nunca elevava a voz. Mas ele
sabia que quando ela falava assim, nem stplicas nem lagrimas conseguiam fazé-lavoltar atras.
— Sei que ja comecou mas nao vamos entrar agora, ouviu? Ndo vamos entrar
agora, espera.
O menino enfiou as mdos nos bolsos e enterrou o queixo no peito. Langou a
mae um olhar sombrio. Por que é que nao entravam logo? Tinham corrido feito dois
loucos e agora aquela calma, espera. Esperar o qué, pd?!
— E que a gente ja esta atrasado, mae.
— Va ali no balcdo comprar chocolate — ordenou ela entregando-lhe uma nota
nervosamente amarfanhada.
Ele atravessou a sala num andar arrastado, chutando as pontas de cigarro pela
frente. Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime,
quem é que ia entender chegando assim comecgado? Sem nenhum entusiasmo,
pediu um tablete de chocolate. Vacilou um instante e pediu em seguida um tubo de
drageas de limao e um pacote de caramelos de leite, pronto, também gastava a
bega. Recebeu o troco de cara fechada. Ouviu entdo os passos apressados da mae
que Ihe estendeu a mao com impaciéncia:
— Vamos, meu bem, vamos entrar.
Num salto, o menino pés-se ao lado dela. Apertou-Ihe a mao freneticamente.
— Depressa que a fita ja comecou, nao esta ouvindo a musica?
Na escuridao, ficaram um instante parados, envolvidos por um grupo de
pessoas, algumas entrando, outras saindo. Foi quando ela resolveu.
—Venha vindo atras de mim.
Os olhos do menino devassavam a penumbra. Apontou para duas poltronas
vazias.
— La, méezinha, la tem duas, vamos Ia!
Ela olhava para um lado, para outro e nao se decidia.
— Mae, aqui tem mais duas, esta vendo? Aqui néo esta bom? — insistiu ele,
puxando-a pelo brago. E olhava aflito para a tela e olhava de novo para as
poltronas vazias que apareciam aqui e ali como codgulos de sombra. — La tem
mais duas, esta vendo?
Ela adiantou-se até as primeiras filas e voltou em seguida até o meio do
corredor. Vacilou ainda um momento. E decidiu-se. Impeliu-o suave, mas
resolutamente.
— Entre ai.
— Licenga? Licenca?... — ele foi pedindo. Sentou-se na primeira poltrona
desocupada que encontrou, ao lado de uma outra desocupada também. — Aqui,
nao é, mae?
— N&o, meu bem, ali adiante — murmurou ela, fazendo-o levantar-se. Indicouos trés lugares vagos quase no fim da fileira. — La é melhor.
Ele resmungou, pediu “licenga, licenga?”, e deixou-se cair pesadamente no
primeiro dos trés lugares. Ela sentou-se em seguida.
— Ih, é fita de amor, pd!
— Quieto, sim?
O menino pés-se na beirada da poltrona. Esticou o pescoco, olhou para a
direita, para a esquerda, remexeu-se.
— Essa bruta cabecona aj na frente!
— Quieto, ja disse.
— Mas é que nao estou enxergando direito, mae! Troca comigo que nao estou
enxergando!
Ela apertou-lhe o braco. Esse gesto ele conhecia bem e significava apenas: nao
insista!
— Mas, mée...
Inclinando-se até ele, ela falou-Ihe baixinho, naquele tom perigoso, meio entre
os dentes e que era usado quando estava no auge, um tom tao macio que quem a
ouvisse julgaria que ela Ihe fazia um elogio. Mas so ele sabia o que havia debaixo
daquela maciez.
— N&o quero que mude de lugar, esta me escutando? Nao quero. E nao insista
mais.
Contendo-se para nao dar um forte pontapé na poltrona da frente, ele enrolou
0 puléver como uma bola e sentou-se em cima. Gemeu. Mas por que aquilo tudo?
Por que a mae Ihe falava daquele jeito, por qué? Nao fizera nada de mal, so queria
mudar de lugar, sé isso... Nao, desta vez ela ndo estava sendo nem um pouquinho
camarada. Voltou-se entdo para lembrar-Ihe que estava chegando muita gente, se
nao mudasse de lugar imediatamente, depois ndo poderia mais porque aquele era
0 Ultimo lugar vago que restava, “Olha ai, mamde, acho que aquele homem vem
pra ca!”. Veio. Veio e sentou-se na poltrona vazia ao lado dela.
O menino gemeu, “Ai! meu Deus...”. Pronto. Agora é que nao restava mesmo
nenhuma esperanga. E aqueles dois enjoados Ia na fita numa conversa comprida
que nao acabava mais, ela vestida de enfermeira, ele de soldado, mas por que o
tipo nao ia pra guerra, p6!... E a cabecona da mulher na sua frente indo e vindo
para a esquerda, para a direita, os cabelos armados a flutuarem na tela como teias
monstruosas de uma aranha. Um punhado de fios formava um frouxo topete que
chegava até o queixo da artista. O menino deu uma gargalhada.
— Mae, daqui eu vejo a mocinha de cavanhaque.
— Nao faca assim, filho, a fita é triste... Olha, presta atengao, agora ele vai ter
que fugir com outro nome... O padre vai arrumar o passaporte.— Mas por que ele ndo vai pra guerra duma vez?
— Porque ele é contra a guerra, filho, ele ndo quer matar ninguém —
sussurrou-Ihe a mae num tom meigo.
Devia estar sorrindo e ele sorriu também, ah! que bom, a mae nao estava
mais nervosa, nado estava mais nervosa. As coisas comecavam a melhorar e para
maior alegria, a mulher da poltrona da frente levantou-se e saiu. Diante dos seus
olhos apareceu o retangulo inteiro da tela.
— Agora sim! — disse baixinho, desembrulhando o tablete de chocolate.
Meteu-o inteiro na boca e tirou os caramelos do bolso para oferecé-los 4 mae.
Entao vi mao pequena e branca, muito branca, deslizou pelo braco da poltrona
e pousou devagarinho nos joelhos do homem que acabara de chegar.
O menino continuou olhando, imével. Pasmado. Por que a mae fazia aquilo?!
Por que a mae fazia aquilo?!... Ficou olhando sem nenhum pensamento, sem
nenhum gesto. Foi entéo que as maos grandes e morenas do homem tomaram
avidamente a m&o pequena e branca. Apertaram-na com tanta forga que pareciam
querer esmaga-la.
O menino estremeceu. Sentiu 0 coragéo bater descompassado, bater como sé
batera naquele dia na fazenda quando teve de correr como louco, perseguido de
perto por um touro. O susto ressecou-Ihe a boca. O chocolate foi-se transformando
numa massa viscosa e amarga. Engoliu-o com esforgo, como se fosse uma bola de
papel. Redondos e estaticos, os olhos cravaram-se na tela. Moviam-se as imagens
sem sentido num sonho fragmentado. Os letreiros dangavam e se fundiam
pesadamente, como chumbo derretido. Mas o menino continuava imével, olhando
obstinadamente. Um bar em Tédquio, brigas, a fuga do moco de capa perseguido
pela sereia da policia, mais brigas numa esquina, tiros. A mao pequena e branca a
deslizar no escuro como um bicho. Torturas e gritos nos corredores paralelos da
priséo, os homens agarrando as portas de grade, mais conspiragées. Mais homens.
A mo pequena e branca. A fuga, os fardis na noite, os gritos, mais tiros, tiros. O
carro derrapando sem freios. Tiros. Espantosamente nitido em meio do fervilhar de
sons e falas — e ele nao queria, néo queria ouvir! — o ciciar delicado dos dois num
didlogo entre os dentes.
Antes de terminar a sesséo — mas isso nao acaba mais, ndo acaba? —, ele
sentiu, mais do que sentiu, adivinhou a mao pequena e branca desprender-se das
mos morenas. E do mesmo modo manso como avancara, recuar deslizando pela
poltrona e voltar a se unir 4 mao que ficara descansando no regaco. Ali ficaram
entrelacadas e quietas como estiveram antes.
— Esta gostando, meu bem? — perguntou ela inclinando-se para o menino.
Ele fez que sim com a cabeca, os olhos duramente fixos na cena final. Abriu a
boca quando o moco também abriu a sua para beijar a enfermeira. Apertou os
olhos enquanto durou o beijo. Entéo o homem levantou-se embucado na mesmaescuriddo em que chegara. O menino retesou-se, os maxilares contraidos, trémulo.
Fechou os punhos. “Eu pulo no pescoco dele, eu esgano ele!”
O olhar desvairado estava agora nas espaduas largas interceptando a tela
como um muro negro. Por um brevissimo instante ficaram paradas em sua frente.
Préximas, téo proximas. Sentiu a perna musculosa do homem rocar no seu joelho,
esgueirando-se rapida. Aquele contato foi como ponta de um alfinete num baldo de
ar. O menino foi-se descontraindo. Encolheu-se murcho no fundo da poltrona e
pendeu a cabeca para 0 peito.
Quando as luzes se acenderam, teve um olhar para a poltrona vazia. Olhou
para a mae. Ela sorria com aquela mesma expressdo que tivera diante do espelho,
enquanto se perfumava. Estava corada, brilhante.
— Vamos, filhote?
Estremeceu quando a m&o dela pousou no seu ombro. Sentiu-Ihe o perfume. E
voltou depressa a cabeca para 0 outro lado, a cara palida, a boca apertada como
se fosse cuspir. Engoliu penosamente. De assalto, a mao dela agarrou a sua.
Sentiu-a quente, macia. Endureceu as pontas dos dedos, retesado, queria cravar as
unhas naquela carne.
— Ah, ndo quer mais andar de m&os dadas comigo?
Ele inclinara-se, demorando mais do que o necessario para dobrar a barra da
calca rancheira.
—E que nao sou mais crianga.
— Ah, 0 nenenzinho cresceu? Cresceu? — Ela riu baixinho. Beijou-lhe 0 rosto.
— Nao anda mais de mao dada?
O menino limpou nos dedos a umidade dos beijos no queixo, na orelha.
Limpou as marcas com a mesma expresséo com que limpava as maos nos fundilhos
da calga quando cortava as minhocas para o anzol.
Na caminhada de volta, ela falou sem parar, comentando excitada o enredo do
filme. Explicando. Ele respondia com monossilabos.
— Mas que é que vocé tem, filho? Ficou mudo...
— Estaé me doendo o dente.
— Outra vez? Quer dizer que fugiu do dentista? Vocé tinha hora ontem, ndo
tinha?
— Ele botou uma massa. Esta doendo — murmurou inclinando-se para apanhar
uma folha seca. Triturou-a no fundo do bolso. E respirou abrindo a boca. — Como
doi, pd.
— Assim que chegarmos vocé toma uma aspirina. Mas ndo diga, por favor,
essa palavrinha que detesto.
— Nao digo mais.Diante da casa de Julio, instintivamente ele retardou o passo. Teve um olhar
para a janela acesa. Vislumbrou uma sombra disforme passar através da cortina.
— Dona Margarida.
— Hum?
— Amie do Julio.
Quando entraram na sala, o pai estava sentado na cadeira de balancgo, lendo o
jornal. Como todas as noites, como todas as noites. O menino estacou na porta. A
certeza de que alguma coisa terrivel ia acontecer paralisou-o aténito, obumbrado.
O olhar em panico procurou as maos do pai.
— Entéo, meu amor, lendo o seu jornalzinho? — perguntou ela, beijando o
homem na face. — Mas a luz néo esta muito fraca?
— A lampada maior queimou, liguei essa por enquanto — disse ele, tomando a
mao da mulher. Beijou-a demoradamente. — Tudo bem?
— Tudo bem.
O menino mordeu 0 labio até sentir gosto de sangue na boca. Como nas outras
noites, igual. Igual.
— Entao, filho? Gostou da fita? — perguntou o pai dobrando o jornal. Estendeu
a m&o ao menino e com a outra comecou a acariciar o brago nu da mulher. — Pela
sua cara, desconfio que nao.
— Gostei, sim.
— Ah, confessa, filhote, vocé detestou, nado foi? — contestou ela. — Nem eu
entendi direito, uma complicagéo dos diabos, espionagem, guerra, mafia... Vocé
nao podia ter entendido.
— Entendi. Entendi tudo — ele quis gritar e a voz saiu num sopro tao débil que
sO ele ouviu.
— Eainda com dor de dente! — acrescentou ela desprendendo-se do homem e
subindo a escada. — Ah, ja ia esquecendo a aspirina.
O menino voltou para a escada os olhos cheios de lagrimas.
— Que é isso? — estranhou o pai. — Parece até que vocé viu assombracao.
Que foi?
O menino encarou-o demoradamente. Aquele era 0 pai. O pai. Os cabelos
grisalhos. Os éculos pesados. O rosto feio e bom.
— Pai... — murmurou, aproximando-se. E repetiu num fio de voz: — Pai...
— Mas, meu filho, que aconteceu? Vamos, diga!
— Nada. Nada.
Fechou os olhos para prender as lagrimas. Envolveu o pai num apertado
abraco.