RevistaBang 15
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uis Melo nasceu em Lisboa
em 1981. Estudou Design
de Comunicação na Facul-
dade de Belas-Artes da Universi-
dade de Lisboa, porém aprendeu
ilustração digital paralelamente,
como autodidata, online. Pode-se
dizer que deve muito do percurso
dentro da sua profissão actual ao
envolvimento em fóruns de arte
digital.
O seu trabalho é maioritariamente
ligado aos videojogos, tendo co-
laborado tanto como freelancer ou
integrado em estúdios, em projec- 2
tos de diversos temas e dimensões,
e com clientes nos mais variados
países. Considera que a aposta na
versatilidade compensou, não só
porque é incapaz de se cingir a
um estilo, como também por lhe
agradar bastante mudar contras-
tadamente de registo, de projecto
para projecto.
Entre 2009 e 2010 fez uma pas-
sagem de ano e meio por Xangai
para participar, como concept artist,
no projecto Alice: Madness Returns,
desenvolvido pela Spicy Horse
Games, experiência que conside- 3
rou extremamente enriquecedora
em todos os sentidos.
De volta a Portugal, como freelancerr,
e com uma paixão crescente pela
literatura, particularmente a de fic-
ção científica, tem lido bastante e
procurado trabalhos editoriais nes-
se âmbito, tendo já ilustrado capas
para vários livros do género. Ten-
tando aprofundar ainda mais este
interesse, aventurou-se recente-
mente pela escrita criativa, que está
a levar a sério e que já resultou na
produção de vários contos.
A busca por um lado mais autoral
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do seu trabalho é um aspecto que
pretende explorar mais a fundo e
que está a ganhar bastante peso na
sua produção actual, traduzindo-se
em breve na publicação de histórias
suas ilustradas e projectos de BD,
embora também continue em con-
tacto com o meio dos videojogos.
Para contrabalançar a sua activi-
dade principal e também manter
uma certa sanidade mental, o Luis
reserva outras actividades criativas
exclusivamente
para o lazer, tais
como tocar tam-
bores e cozinhar
pratos picantes.
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po e alma). O bem, pelo contrário, é secundárias de Tiganaa formam um gru-
exclusivo aos heróis, quase sempre sem po rico, complexo e memorável. Caros
falhas, dúvidas ou arrependimentos. leitores, mais do que uma boa leitura,
Guy Gavriel Kay, que procura cons- desejo a todos uma excelente viagem.
tantemente transcender as fraquezas
da fantasia, com Tiganaa marca um corte
com essa tradição tolkiana do bem e do
mal. Tiganaa está repleto de personagens
Caixa As Crónicas de Gelo e
em conflito com as suas próprias de- Fogo
cisões e com o impacto que essas de- de George R.R. Martin
cisões têm nos outros. Aliás, a grande
força desta obra é precisamente a am- Apresentamos As Crónicas de Gelo e Fogo
biguidade moral das suas personagens. em formato… Tyrion. Ou seja, toda a
Não são homens bons nem maus, são acção, aventura e emoção que George
apenas homens, apesar do poder que R. R. Martin nos habituou, mas em for-
lhes foi atribuído e que os coloca na mato de bolso. A caixa, com um design
posição de fazerem grande bem ou espectacular, é composta por dez vo-
grande mal. Quem conhece a obra de lumes elegantes e resistentes. Atenção
George R. R. Martin sabe exatamente que apesar de serem dez volumes, ape-
do que estamos a falar. nas inclui os primeiros cinco volumes
Vejamos as personagens: Alessan, o da saga no formato grande, ou seja, de
NOVEMBRO herói de Tigana, não olha a meios para A Guerra dos Tronoss até A Tormenta de
atingir os fins. Espadas. A segun-
Mas será heróico, da metade da saga
Tigana - A Lâmina na Alma mesmo quando em formato de
de Guy Gavriel Kay os fins são tão bolso chegará em
nobres como o 2014.
Quando publicou O Senhor dos Anéis resgate de um
nos anos cinquenta do século passa- povo, recorrer ao
do, J. R. R. Tolkien não podia sequer assassínio e à pró-
sonhar que estava a criar alicerces tão pria escravatura? JANEIRO
profundos para a fantasia épica que, Brandin, o vilão,
meio século depois, uma multidão de tem uma capaci-
autores ainda o copiaria até à exaustão. dade imensa de Divina por
Esses alicerces, hoje clichés absoluta- amar. Vive, inclu- Escolha
mente esgotados, são vários: a história sive, uma das mais de P. C. Cast
dividida nos tradicionais três volumes; belas histórias de
as características físicas e culturais dos amor da literatura A autora do suces-
elfos, anões e outras raças míticas; a fantástica. Mas é o so A Casa da Noite
inevitável demanda do herói; os pode- ódio que o move está de regresso
rosos artefactos mágicos; a figura do durante gran- ao romance para-
senhor das trevas; e, por fim, talvez a de parte da vida. normal com o se-
que mais marcou a fantasia desde en- Alessan e Brandin gundo volume da
tão: a separação simplificadora entre o são personagens complexas e das mais saga Partholon. Shannon Parker, a he-
bem e o mal. Com Tolkien o mal é ab- fascinantes do género. Diga-se que es- roína do primeiro volume, finalmente
soluto e corrompe absolutamente (cor- tão em boa companhia: as personagens aceitou a sua vida mítica em Partholon.
NOVOS PROJECTOS:
Viva o Brasil! Revista Bang! online
Em 2013, a Saída de Emergência não se limitou a fazer 10 A Bang! está na internet, com actualizações diárias, conte-
anos. Também se expandiu para o Brasil numa parceria am- údos fabulosos e grandes colaboradores. Acompanhe tudo
biciosa com a Sextante, um dos maiores grupos editoriais do sobre literatura fantástica e ajude-nos a divulgar o portal.
país irmão. Para descobrir o que andamos a fazer por terras
brasileiras, visite-nos em www.sdebrasil.com Brandon Sanderson
No ano que vem, em Portugal, vamos ver um dos melho-
Prémio Bang! res autores de literatura fantástica a chegar à colecção Bang!
E esta expansão para o Brasil traz de volta o Prémio Bang! Brandon Sanderson e a sua saga Mistbornn começarão a ser
Um prémio para a melhor ficção fantástica onde poderão publicados ainda no primeiro terço do ano. Esta saga nin-
concorrer tanto autores portugueses como brasileiros. O re- guém vai querer perder!
gulamento deverá ser comunicado ainda este ano. Preparem
os vossos originais!
gens femininas, mas também persona-
gens masculinas cativantes. Os eventos
ocorrem pela mesma altura do que O
Mago – Aprendiz e a maioria dos even-
tos tomam lugar em Kelewan. A ação
centra-se bastante nos Tsuranuanni. A
não perder.
Acácia - Vol. 5
de David Anthony Durham
O Mago - A Serva
do Império - Vol. 2
de Raymond E. Feist ÚLTIMOS LANÇAMENTOS DA COLECÇÃO BANG!
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co. Ninguém entra, ninguém sai daqueles portões e o festim começa. Desfilam histó-
rias de todos os discos, pequenos contos de terror que abordam a possessão espiritual,
o vodu, o coveiro solitário. Toda a performance tem uma encenação fílmica, com uma
banda sonora infernal, entre virtuosismo e puro storytelling.
g O Rei (Diamante) canaliza
em si todas estas energias à solta e o público, o vosso escriba incluído, rende-se com
uma entrega digna de um povo aclamando o seu líder. É um teatro inspirado, aquele Fernando Ribeiro é vocalista e letrista da banda
que nos é apresentado e fica-se com uma sensação idêntica no fim do concerto aquela Moonspell, com a qual já lançou vários discos, e
de quando lemos um bom livro de terror ou vemos um clássico filmado do género. em 2009 participou no projecto Amália. Tem três
Uma certa ansiedade, um medo familiar, interrogações na cabeça, um peso agradável livros de poesia publicados e, no universo love-
que nos vai deixando mas que enquanto dura dá sentido ao nosso gosto e curiosidade craftiano, traduziu para português a biografia em
pelo macabro, pelo lunar. banda desenhada intitulada “Lovecraft”, assinou
as introduções das antologias “Os Melhores contos
K ing Diamond começou a sua carreira no final dos Setenta mas foi já nos Oitenta
que se destacou enquanto o vocalista dos seminais Mercyful Fate. Esta sua primei-
ra banda (apesar dos projectos anteriores que gerariam esta dinastia maldita) era e
de H. P. Lovecraft” e participou nas antologias “As
Sombras Sobre Lisboa” e “Contos de Terror do
Homem-Peixe”. Em 2011, publicou ficção
sempre será uma banda totalmeente diferente de todas as outras bandas de Metal na colecção Mitos Urbanos
na altura. Semanticamente, apro oximava-se já da matéria obscura como nenhum da editora Gailivro.
outro grupo, tendo sempre desp prezado o satanismo-choque em favor de um
enredo de histórias que bem po odiam ter dado filmes de terror, não fosse,
por vezes, o mundo do cinem ma cego, surdo e mudo a algumas
propostas que os músicos veicul ulam através do seu som e imagem.
Quando os Mercyful Fate se seepararam, o King seguiu o seu tri-
lho e estreou-se com um disco cchamado Fatal Portrait, elevando a
atmosfera visual e musical a um m outro nível. Em nome próprio, ele
foi autor de histórias vivas e vibrantes do mundo do além, dos mor-
tos, das vinganças dos espíritos,, da maldade sorridente das bonecas
dos quartos das crianças. Não tivvesse optado pela música, King Dia-
mond poderia, pelos seus dotess literários, ter-se tornado numa das
grandes referências da ficção dee horror Escandinava. As encruzi-
lhadas levaram-no a outro, não menos glorioso caminho.
King Diamond
voltou aos palcos
para assombrar
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Os fragmentos gnósticos de Andronikos, que incluíam um e retirar o gesso e a cal e a tinta,
evangelho completo, foram descobertos na década de 1970 acrescentados ao longo dos sé-
num lupanar turco, conhecido desde há cerca de mil e oito- culos, viu surgirem as famosas
centos anos como Pensão Tertuliano. O nome do edifício inscrições atribuídas a Androni-
partiu de uma contenda entre um dos mais conhecidos Padres kos. Sem perceber exactamente
do cristianismo, que criticou a filosofia e teologia gnósticas, a importância daquilo que de-
dizendo que estas “empilhavam andares sobre andares” e que corava o seu bordel, achou in-
faziam do universo “uma pensão onde Deus vive no sótão”. teressante preservar as pinturas
Andronikos, um pensador do terceiro século depois de Cris- Irineu quem usou pela primeira vez e textos encontrados, pois estes
to, decidiu efectivamente construir a pensão que Tertuliano o termo "gnóstico" para descrever mantinham uma surpreendente
as heresias
comparara com o pensamento gnóstico. A ironia tornou-se vivacidade e pareciam ter sido
um edifício. As paredes foram pintadas com inscrições gnós- acabados de pintar. Os frescos gnósticos foram identificados,
ticas, bem como os tectos. Mas a história deste prédio haveria em 1979 por Gunnar Helveg, que imediatamente tentou que
de sofrer algumas reviravoltas: um século depois de ter sido o edifício se tornasse património cultural, já que continha um
construído, já as inscrições das paredes e tectos haviam sido importante testemunho dos primeiros séculos da nossa era.
tapadas para escapar à perseguição da Igreja; após a queda de Ao saber disto, o proprietário do prostíbulo, para não perder
Constantinopla, foi usado para fins militares, tendo-se torna- o imóvel, decidiu destruir tudo o que estava escrito nas pare-
do, mais tarde e durante grande parte do Império Otomano, des e nos tectos. Contratou vários homens que, em poucos
uma madrasa famosa, onde Tal Azizi e Gardezzi ensinaram dias, picaram os frescos, fazendo desaparecer qualquer ves-
caligrafia e matemática; tornou-se, durante a Segunda Grande tígio das inscrições e pinturas gnósticas. Perderam-se, desse
Guerra, uma enfermaria, antes de o edifício ser comprado, modo, textos de valor incalculável.
em 1949, por uma quantia irrisória, e transformado num bor-
del, tornando-se assim uma caricatura da sua origem e pro- Em 1981, Gunnar Helveg teve então uma ideia para recuperar
pósito inicial. os textos destruídos: decidiu entrevistar as prostitutas que du-
rante a década de 1970 haviam trabalhado no bordel. Gunnar
Durante a década de 1970, o prédio sofreu algumas remodela- Helveg achava que elas, por tantas vezes terem lido, enquanto
ções e o proprietário, ao mandar limpar as paredes e os tectos trabalhavam com um homem em cima delas, os fragmentos
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evangelho perdido, que foi posteriormen-
te publicado com o título O Evangelho das
Putas Gnósticas,
s pela editora Eurídice, Eu-
rídice!.
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G
ogol (1809-1852) nasceu na localida-
de de Sorochyntsi, na actual Ucrânia, à
época incluída no Império Russo, sen-
do considerado um mestre do conto, se
bem que tivesse escrito também comé-
dias e dramas. Uma das suas comédias,
Revizor,
r foi mesmo adaptada ao cinema
em 1949, com o título O Inspector Gerall e
interpretação de Danny Kaye; entre as
obras mais famosas do autor conta-se
também o romance histórico Taras Bulba, igualmente adaptado ao
cinema e à ópera. Em 1842, após a morte de Alexander Pushkin e
quando Leo Tolstoy era ainda muito jovem, Gogol chegou mesmo
a ser apontado como o maior prosador em língua russa. Os seus
textos – frequentemente eivados de crítica social e política – tinham
grande originalidade e as descrições de pessoas e do meio ambiente
podem considerar-se de carácter impressionista, quase caricatural.
N
o início do conto em apreço,
Gogol explica que Viy é um
monstro pertencente ao folclore
da Pequena Rússia (área mais ou menos
correspondente à actual Ucrânia), mais
precisamente o rei dos gnomos, “cujas
pálpebras chegavam ao chão”, acres-
centando que a história que vai contar
é também de índole folclórica e que a
procurará reproduzir fielmente. Ao que
parece, porém, tais afirmações não têm
fundamento, não existindo no folclore
ucraniano uma personagem como Viy,
que seria então produto da imaginação
do autor. A nota referida destinar-se-ia
então a aumentar a credibilidade e poder
do conto.
A história em si pode dividir-se em
três partes.
A primeira parte consta da descrição
da vida no Mosteiro de Bratsky e dos
seus estudantes. Ao fim de cada ano es-
colar, estes deixam o Mosteiro e seguem
em grupos para suas casas. A narrativa
concentra-se em três deles, Khaliava,
Khoma Brutus e Tiberius Gorobetz.
A segunda parte conta a chegada
dos três companheiros a uma quinta
longínqua, onde são acolhidos. Durante
a noite, Khoma é assediado por uma ve-
Ilustração para o livro Viy, por H. Yakutovych,1989 lha que lhe salta para as costas e o obriga
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a cavalgar pelos campos fora. Aterrado, folclore da Ucrânia. Segundo Alexander ideia de bruxas a cavalgar para Brocken
o rapaz reza orações de exorcismo e aca- H. Krappe (Journal
( of American Folklore, (o pico mais alto nas montanhas Harz
ba por conseguir inverter as posições, Vol. 61, No. 240, Apr.-Jun. 1948) Viy se- da Alemanha central) na noite de Wal-
montando-se nos ombros da megera e ria um monstro sérvio, relacionado com purgis, se teria visto reduzido à condição
batendo-lhe com um pau até que ela cai outros seres como Balor, rei dos gigantes de montada, transportando pelos ares
inanimada. Nessa altura, a velha bruxa Formorions, do folclore irlandês. uma feiticeira pesadíssima, que quase
transforma-se numa bela rapariga. Por sua vez, alguns pormenores do lhe partia os ossos. Encontra-se um ou-
Na última parte, Khoma é chamado conto de Gogol não só são baseados no tro exemplo alemão em Adalbert Kuhn
por um rico cossaco cuja filha morreu, folclore, como constituem verdadeiros ((Sagen, Gebräuche und Märchen aus Westfalen
deixando como última vontade que o estereótipos, que nem sequer se restrin- und einigen andern, besonders den angrenzen-
estudante viesse durante três noites con- gem aos contos da Europa de Leste. Por den Gegenden Norddeutschlands,s 1859, vol.
secutivas ler orações sobre o seu cadá- exemplo, a noção de que a bruxa força 1, no. 419, pp. 373-374), na sua história
ver, a fim de lhe salvar a alma. A jovem Khoma a transportá-lo às costas aparece “Der Hexenritt” (literalmente, “o caval-
morta não é outra senão a bruxa que o um pouco por toda a parte, até ao fol- gar da bruxa”).
rapaz encontrara antes e quando na pri- clore britânico. Em The Lore of the Land,
d Também a ideia de que o velório
meira noite Khoma, apreensivo, se fecha Jennifer Westwood and Jacqueline Simp- de uma bruxa possa ser perturbado por
na igreja onde o seu caixão repousa e son mencionam episódios semelhantes estranhos fenómenos aparece frequen-
começa a recitar orações, o cadáver er- e até a inversão de posições, em que a temente no folclore europeu, inclusiva-
gue-se, procurando apanhá-lo. O rapaz bruxa acaba dominada, surge também. mente no português. Assim, por exem-
protege-se desenhando um círculo no Westwood & Simpson observam tam- plo, na página 14 de Histórias e Superstições
chão e permanecendo dentro dele. Tudo bém o seguinte: “Há uma ligação estreita na Beira Baixaa – Castelo Branco (2008), José
se repete na segunda noite, com a bruxa […] entre a bruxaria e a forma extrema Carlos Duarte conta a história do velório
a voar pela igreja e convo-
cando demónios e mons-
tros para o atacar. Nenhum
desses seres o consegue
ver e de manhã Khoma é
encontrado desfalecido e
com o cabelo subitamente
grisalho. A terceira noite
é, evidentemente, a mais
aterradora de todas: a bru-
xa não só volta a chamar as
mesmas criaturas infernais
como invoca o próprio
Viy, rei dos gnomos, que vê
tudo, quando os seus acóli-
tos lhe levantam as longas
pálpebras, que lhe tombam
sobre a cara em ferro. Mas
entretanto chega a manhã,
um galo canta, os demó-
nios são forçados a fugir e
Khoma é encontrado mor-
to de medo.
C
onforme ficou dito,
nem tudo nesta
história – nomea- Quadro “O Pesadelo” de Henry Fuseli, 1781
damente a figura de Viy –
parece pertencer realmente ao folclore de pesadelo em que a vítima […] se sen- de uma bruxa que os presentes não pu-
ucraniano. Não obstante, os demónios te esmagada por um grande peso que deram abandonar até de madrugada de-
que a bruxa invoca enquadram-se em lhe oprime o peito. Este fenómeno […] vido a barulhos aterradores, bater de pal-
tradições eslavas, segundo as quais os supunha-se provocado por uma bruxa mas e estranhas luzes no exterior, tudo
maus não seriam bem recebidos pela (ou espírito maligno) que cavalgasse a provocado por outras feiticeiras.
terra, depois de mortos, saindo por isso vítima”. O mesmo tema claramente ins- As histórias folclóricas foram clas-
das suas campas para atormentar os vi- pirou o famoso quadro “O Pesadelo” sificadas segundo um sistema criado
vos; Gogol descreve os seus demónios (1781), de Henry Fuseli. pelo folclorista finlandês Antti Aarne
como tendo “terra negra” agarrada a Também August Ey ((Harzmärchenbu- (1867-1925), para permitir a análise com-
eles. Também os encantamentos, os ch; oder, Sagen und Märchen aus dem Oberhar- parativa de narrativas e textos, até oriun-
exorcismos e o círculo protector que ze, 1862, pp. 46-48) fala na história de um dos de diferentes culturas. Essa classifi-
Khoma traça no chão se encontram no mineiro que, depois de ter troçado da cação foi originalmente publicada com o
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título Verzeichnis der Märchentypen, das são salvas das garras dos
em 1910, sendo depois traduzida, seus encantamentos por jo-
revista e ampliada pelo americano vens e valentes pretendentes
Stith Thompson (1885-1976). A – muitas vezes simples solda-
versão final data de 1961 e estabe- dos ou pastores que obtêm
lece o sistema de numeração AT êxito onde nobres tinham
ou AaTh. falhado – que por vezes se
Essa classificação sistemática escondem na igreja onde o
em categorias vastas como “His- corpo jaz, possivelmente se-
tórias de Animais”, “Histórias guindo conselhos de alguma
Religiosas”, etc., depois subdi- entidade divina; ao cabo de
vididas noutras mais finas, num três noites (para o significa-
total de cerca de 2500 formas do do número 3, veja-se por
fundamentais usadas no folclore exemplo António Monteiro,
europeu e do Próximo Oriente, “A Magia dos Números”, in
seria finalmente expandida ain- Contas x Contos x Cantos e Que
da mais e actualizada em 2004 +, de Ana Paula Guimarães
pelo alemão Hans-Jörg Uther (n. (org.)) passadas no meio de
1944), na sua obra The Types of In- assustadoras ocorrências, as
ternational Folktales: A Classification princesas eram normalmente
and Bibliography, Based on the System libertadas, acabando por des-
of Antti Aarne and Stith Thompson, posar os seus corajosos sal-
de que resultou a moderna classi- vadores. No seu Catalogue of
ficação Aarne-Thompson-Uther, Portuguese Folktaless (FF Com-
que identifica cada tipo de conto munications 291, Helsinki:
folclórico pelo seu número ATU. Academia Scientiarum Fen-
O catálogo de Uther (volume 1, nica, 2006), Isabel Cardigos
page 189) inclui a história “Viy”, indica diversas variantes por-
de Gogol como uma versão do “Viy” ou “O Espírito do Mal” por Konstantin Ershov tuguesas desse conto, relacio-
tipo 307 (“A Princesa no Caixão”), e Georgi Kropachyov, 1967 nando também o argumento
em que uma jovem dominada pelo com o número ATU 530, “A
demónio morre e após a morte levanta-se de noite para atacar Princesa na Montanha de Vidro”. Cardigos aponta exemplos
os soldados que estão de guarda ao seu túmulo, até que um de- como um conto registado por Ataíde Oliveira, com o título
les, devidamente aconselhado (usualmente por um anjo, uma “As Três Nuvens”, o conto “O Rei e os Três Filhos” (Alda S.
fada, um santo, etc.) consegue esconder-se (ou aguentar os so- Soromenho e Paulo C. Soromenho, Contos Populares Portugueses.
frimentos que lhe são infligidos), desencantando a rapariga e I Volume, 1984; conto nº 328), contos recolhidos da tradição
casando com ela. oral açoriana (ilhas das Flores, Graciosa e de S. Jorge) e outros.
Em diversas versões deste enredo, as princesas encanta- Também D. Ana de Castro Osório, em Histórias Maravilhosas da
Tradição Popular Portuguesaa (1950), incluiu o conto “A Princesa
da Áustria”, que segue o mesmo enredo.
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parecer no seu riso que vai subindo de intensidade, como se o
seu poder maléfico fosse aumentando; o seu aspecto corres-
ponde também ao que é descrito pelo autor (“a sua cara tinha
uma tonalidade azulada como a de quem estivesse morto há
E m 2006, surgiu uma nova adapta-
ção cinematográfica do conto
de Gogol, dirigida por Oleg
Fresenko sob o título Vedmaa ou O
Poder do Medoo (recorde-se que
vários dias”).
Como seria de esperar num filme de 1967, os efeitos es- na história original o estu-
peciais são um tanto ingénuos: os monstros que atazanam o dante Khoma morre de
estudante, por exemplo, não passam de homens, alguns de-
les anões, com os corpos pintados de cinzento e espessas
camadas de maquilhagem, enquanto se vêem esqueletos a
deslocar-se deselegantemente, obviamente movimentados por
fios invisíveis. Não obstante, algumas das caracterizações dos
monstros são relativamente originais e até perturbadoras. Em
determinada cena, saem mãos das paredes, o que dá à cena um
carácter surrealista, que faz lembrar imagens do filme francês
La Belle et la Bêtee (Jean Cocteau, 1946), com candelabros ao
longo de um corredor seguros por braços humanos.
Ao todo, as cenas na igreja são bastante eficazes, com a
bruxa a gritar “chamo os vampiros, chamo os lobisomens!” e
os monstros a surgirem das janelas e das paredes. A figura de
Viy, neste filme, acaba por ser menos aterradora do que as de
outros monstros presentes, por se ver tão claramente que não
passa de um homem num fato largo.
Globalmente, Viyy é um filme muito interessante, que re-
tém todo o poder da história original. O nível de representação
é elevado, num estilo sóbrio que muitas vezes está ausente
das produções ocidentais contemporâneas e que só lhe traz
vantagens.
BANG! /// 17
medo e não por acção directa das entida- muito original, acudindo de imediato à já encontradas acerca desta nova obra
des que o atormentam). Trata-se de um memória o padre Karras em O Exorcista indicam, porém, que os autores se afas-
filme russo, filmado na Estónia e com (William Friedkin, 1973). taram radicalmente do texto de Nikolai
argumento do realizador e de Igor Mi- Os efeitos especiais neste filme são, Gogol, ainda que recuperando algum do
tushyn, que decidiram afastar-se do texto evidentemente, muito superiores aos do ambiente original, assim como as perso-
de Gogol em múltiplos aspectos. primeiro, ainda que praticamente se res- nagens de Khoma e dos seus colegas. Te-
A acção deixa a Ucrânia ou a Rús- trinjam ao aspecto de Marryl e aos seus remos de esperar por uma oportunidade
sia e passa para os Estados Unidos, para voos pela igreja, com mais uns tantos para ver o filme – aparentemente feito
uma povoação chamada Castleville; o es- efeitos de som e de luz: não havendo em 3D – para chegar a conclusões sobre
tudante é substituído por um jornalista, monstros, nada mais era necessário. os seus méritos e as suas relações com a
Evan, que investiga fenómenos sobrena- Na globalidade, Vedmaa é um filme história de Gogol. BANG!
turais supostamente lá ocorridos. Depois interessante, se bem que convencional e
de encontrar pelo caminho um padre com diversos chavões. Os actores secun-
católico, que mais tarde morrerá, permi- dários apoiam bem a história e o ambien-
tindo a Evan ficar com o seu automóvel te em Castleville é bem retratado, com a
e envergar a sua sotaina, o jornalista vai possível excepção de uma empregada,
ter a uma casa onde encontra uma bela talvez um pouco demasiado loquaz, que
rapariga que se transforma numa velha vai dando pequenas informações mas
bruxa. pouco mais que isso.
O rapaz acaba por chegar à povoa- Em todo o caso, Vedmaa é inferior
ção, é confundido com um padre e é en- ao seu predecessor Viyy em diversos as-
carregado de atender às últimas vontades pectos. Por exemplo, o facto de Evan
de uma rapariga, Marryl: deve passar três assumir a identidade do padre justifica
noites a rezar junto ao seu caixão. Daí o seu papel como salvador da alma da
para a frente a história segue o padrão já bruxa, mas não se percebe por que razão
conhecido: a feiticeira morta ergue-se do ele não revelou a verdade quanto à sua
caixão, tenta alcançar Evan (cujo cabelo identidade assim que se confrontou com
embranquece da noite para o dia), voa o sobrenatural, já que não seria difícil ex-
pela igreja, etc. No entanto – e trata-se plicar que tinha encontrado o verdadei-
aqui de uma diferença fundamental – ro padre já morto e inventar uma razão
não invoca monstros nem demónios para ter usado as suas vestes. Também a
nem, em particular, o temível Viy! Na autoridade do pai da morta para impor
verdade a bruxa acaba por ser derrotada a Khoma as suas provações na igreja é
pelo poder da fé reencontrada por Evan muito mais clara quando considerada no
e por sucumbir à energia que emana do enquadramento da velha Ucrânia de há
crucifixo que ele brande, rompendo em século e meio, do que na América actual.
chamas. Evan não morre, se bem que Finalmente, é óbvio que a omissão, na
seja um homem alquebrado que no final nova versão, da chegada de Viy, a qual era
abandona Castleville. o climax do conto original, a enfraquece
Este final é muito menos satisfatório muito. Nascido em Lisboa em 1951, casado, com duas filhas
que o que foi escrito por Gogol, não só e três netos. É professor universitário de Matemática
por ser lícito duvidar da autenticidade de e tem múltiplos interesses, entre os quais a Malaco-
M
uma fé que resulta de um pavor incon- ais recentemente, foi feito logia, sendo editor da revista electrónica “The Cone
trolável, mas também porque a morte um terceiro filme, baseado na Collector” (www.theconecollector.com).
definitiva da bruxa, muito convencional, mesma história. Realizado por Na área da literatura fantástica, especialmente da
é por isso mesmo pouco interessante. Oleg Stepchenko e intitulado Viy. Vo- literatura de terror, para além de pertencer a diver-
O tema do homem que tem de encon- zvrashcheniee (= Viy. O Regresso), o filme sos clubes, é autor de diversos contos publicados
trar ou renovar a sua fé, para lutar com tinha estreia prevista para a Rússia para o em revistas.
os poderes do mal e da escuridão não é início do corrente ano. As informações
18 /// BANG!
Imaginem um mundo em
que a França é a principal potência
mundial, depois de ter ganhado as guerras
napoleónicas e invadido a Inglaterra, mandando
guilhotinar a Família Real Britânica. Nesse mundo,
em que Paris é a maior capital do mundo e a Inglaterra
está ligada ao continente por uma ponte ferroviária
que atravessa o Canal da Mancha, não foi só a História
que evoluiu de forma alternativa. Também a relação entre
humanos e os animais se alterou, sendo este mundo governado
por animais antropomorfizados e os raros humanos, tratados
depreciativamente como “doughfaces” (caras de massa) a
não terem quaisquer direitos cívicos e estando limitados a
simples tarefas mecânicas, sendo apresentados por um dos
personagens, como “uma raça sem pelo de chimpanzés
que evoluíram na cidade de Angoulême”, nome que,
como veremos, não surge por acaso, pois Angoulême
é a cidade francesa que alberga o maior Festival
europeu de BD, e as piscadelas de olho à Banda
Desenhada franco-belga são frequentes
neste mundo.
NG!! //
BANG
BA //// 19
ste é também um uni-
verso “steampunk”, com
tecnologia derivada das
ilustrações do francês Albert Ro-
bida, um contemporâneo de Júlio
Verne, que imaginou uma França
futurística numa trilogia de livros
dedicados ao século XX, escritos
entre 1883 e 1890 ((Le Vingtième
Siècle, La Guerre au Vingtieme Siècle do ilustrador e caricaturista fran-
e La Vie Électrique).
e É neste fu- cês Jean Ignace Isidore Gerard,
turo alternativo, concebido por que assinava muitas vezes os seus 1
Bryan Talbot, um autor inglês trabalhos como J. J. Grandville.
contemporâneo, como se tivesse Falecido em 1847, Grandville foi
sido imaginado por um escritor dos primeiros ilustradores a uti-
francês do Século XIX, que en- lizar animais antropormofizados
contramos o herói da história, em obras como Les Metamorpho-
o Detective Inspector Archibald ses du Jour,
r uma série de litografias
LeBrock, um musculado texugo editadas entre 1928 e 1929, pro-
de grande força física e impres- tagonizadas por figuras huma-
sionantes capacidades dedutivas. nas na pose e no vestuário, com
Lebrock, ajudado pelo inspector cabeças dos mais diversos tipos
Roderick Ratzi, vai resolver casos de animais, incluindo insectos e
policiais que o obrigam a deslo- peixes.
car-se frequentemente a Grand- Brian Talbot, o criador de
ville (cidade grande, em francês), Grandville, nasceu em Inglaterra
alcunha pela qual é conhecida a em 1952, tendo trabalhado nos
cidade de Paris, que dá nome à comics underground britânicos
série. Mas esta é uma referência e na revista 2000 AD, para onde
com duplo sentido, pois Grand- desenhou Nemesis, the Warlock k e
ville era também o nome artístico Judge Dredd, d antes de seguir o ca-
minho de diversos compatriotas
seus, como Alan Moore, Brian
Bolland, Neil Gaiman, Dave
McKean e Garth Ennis e come-
çar a trabalhar para a DC Co-
mics, sobretudo na linha Vertigo,
para onde ilustrou as séries Hell-
blazer, Fabless e o Sandman, de Neil
Gaiman. Além de muito trabalho
como desenhador para a DC,
Talbot tem também bastantes
trabalhos a solo. Obras mais an-
tigas, onde já encontramos algu-
mas das características que fazem
de Grandvillee uma série única.
É o caso do gosto pela histó-
ria alternativa e por universos
“steampunk”, que estão presen-
20 /// BANG!
tes em The Adventures of Luther
Arkwright,t um projecto iniciado
em 1978, a que voltará com regu-
laridade, posteriormente recolhi-
do em dois grossos volumes, edi-
tados nos EUA pela Dark Horse.
Outro elemento bem presente
nos seus livros e que é fulcral
em Grandville, é a homenagem
aos grandes nomes da ilustração
infantil. The Tale of One Bad Rat,t
o seu trabalho mais premiado,
concilia uma história comovente niciada em 2009, com
sobre uma jovem vítima de abu- Grandville, a série dedicada
sos sexuais na infância, com uma às aventuras do Inspector
bela homenagem à vida e obra LeBrock da Scotland Yard está
de Beatrix Potter, uma das mais prevista para cinco volumes au-
importantes escritoras e ilustra- tónomos, dos quais já saíram três,
doras infantis britânicas e Alice Grandville, Grandville, Mon Amour
d parte da ligação de
in Sunderland, e Grandville, Bête Noire, estando
Lewis Caroll, o criador de Alice o quarto volume, Grandville: Noel
in Wonderlandd à cidade de Sunder- anunciado para 2014.
land, para uma alucinante viagem O primeiro episódio leva o Ins-
visual pela história da cidade e da pector Lebrock e o seu adjunto
literatura e da ilustração, cheia Ratzi a Paris, para investigar o as-
de pormenores deliciosos e com sassinato de um diplomata inglês,
diversos níveis de leitura. Uma Raymond Leigh-Otter e será em
obra avassaladora, com um tra- Paris, ou Grandville, que vai en-
balho de pesquisa tão aturado, contrar o amor com Sarah Blai-
que lhe valeu um Doutoramento row, uma dançarina, claramente
Honoris Causa pela Universida- inspirada na actriz Sarah Bernard,
de de Sunderland, em 2009, pelo mas a sua felicidade vai durar
seu “contributo notável para as pouco… A investigação vai fazer
Artes como escritor e artista grá- com que descubra uma conspira-
fico”. ção destinada a reacender a guer-
Em Grandville, Talbot vai reu- ra entre a França e a Inglaterra,
nir todas essas influências e mui- que tem como ponto de partida
tas outras (para além de Robida um atentado terrorista que des-
e Grandville, Talbot cita explici- truiu a Torre Robida, num claro
tamente Conan Doyle, Quentin paralelo com os atentados de 11
Tarantino e... Rupert the Bear,
r mas de Setembro que destruíram o
podia citar também Walt Disney, World Trade Center E essa não
Enid Blyton, Randolph Calde- é a única alusão à realidade po-
cott, Kenneth Grahame, entre lítica contemporânea, pois en-
outros) em movimentadas histó- contramos um político de extre-
rias de ficção policial, num uni- ma-direita, chamado Jean-Marie
verso de ficção científica “steam- Lapin (que, naturalmente, é um
punk”, que embora em termos coelho), claramente inspirado em
de vestuários e decoração lembre Jean-Marie Le Pen.
a Europa de finais do século XIX Mas ainda mais frequentes do
e inícios do Século XX, decorre que as referências à realidade
um século depois, 200 anos após política contemporânea, são as
as Guerras napoleónicas, que re- referências à Banda Desenhada
forçaram a hegemonia mundial franco-belga, presentes em todos
da França que as venceu. os volumes. É o caso de Milou,
o cão de Tintin, que assim surge
como um viciado em ópio, que
no meio dos delírios provocados
pela droga, recorda as aventuras
que viveu com Tintin. Do Gas-
ton Lagaffe, de Franquin, e do
Lucien, de Margerin, que em-
prestam as feições a dois melian-
BANG! /// 21
tes que tentam assaltar o inspector Ratzi, em Grandville, Mon
Amour,r o 2º volume da série. De Angus, o cientista humano,
ou “cara de massa”, se preferirem, que é morto no início do
3º volume, Grandville, Bete Noire, e que não é senão o Professor
Philip Angus Mortimer, o protagonista das aventuras de Blake
e Mortimer,r de Edgar P. Jacobs. E encontramos ainda alguns
personagens da Disney, como figurantes, seja o Pato Donald
numa cela, ou o Professor Pardal a desempenhar um papel
semelhante ao do Q. dos filmes de James Bond. Filmes esses
que inspiraram obviamente a personagem do Barão Krapaud,
um sapo com a pose e os meios do típico vilão dos filmes
de James Bond, megalómano e com sonhos de dominação
mundial, que aqui surge a acariciar um sapo no colo, em vez
do tradicional gato persa branco…
Para além de histórias bem conseguidas e melhor contadas,
com um desenho agradável e tremendamente eficaz, que ga-
nhariam com um tratamento de cor não tão ostensivamente
digital, é esta catadupa de referências, que desafiam a cultura João Lameiras é Mestre em História da Arte pela
do leitor e convidam a sucessivas releituras, um pouco na li- Universidade de Coimbra. Tem desenvolvido uma
nha do que acontece com a Liga de Cavalheiros Extraordinários vasta actividade no campo da Banda Desenhada, como
de Alan Moore e Kevin O’Neill, que fazem de Grandvillee uma conselheiro editorial, tradutor, argumentista e crítico
série única. Uma série que, como já se percebeu, é absoluta- para diversas editoras e publicações e é sócio-gerente
mente aconselhável aos leitores da Bang! da Livraria Dr. Kartoon. Escreve com frequência no seu
blogue http://porumpunhadodeimagens.blogspot.com
22 /// BANG!
BANG! /// 23
O
tampo de madeira escura ergueu-se, puxa- um aviso para quem não tivesse a sensibilidade para sentir a
do pela mão trémula do poeta que espreitou aura daquele objecto, essas chamas que lançam, não luz, mas
para o interior da arca. Não conseguia ver sim treva visível.
muito mais do que quando a arca estava fe-
Q
chada, mas também não precisava. Sabia de
cor a posição de cada molho de papéis no interior, cada pa- uanto mais tempo Fernando Pessoa passava a tentar
lavra escrita nesses papéis, cada ideia dentro dessas palavras. sistematizar e catalogar todos os seus heterónimos,
Deixou a tampa levantada, aproximou-se do fato delicada- mais se perdia no labirinto de gente que vivia dentro
mente dobrado sobre a cadeira, tirou a caixa de fósforos do de si. Eles iam e vinham sem se anunciarem nem pedirem li-
bolso do casaco e acendeu um cigarro. A luz baça e averme- cença, como um amigo que bate à porta de casa ao qual não
lhada projectou sombras ténues em redor. A arca de madeira podemos recusar entrada. Hoje era a noite de Raphael Bal-
parecia agora uma enorme boca escancarada, tragando obras, daya. Ao início, Fernando ainda tentara invocar Alberto Caei-
digerindo-as, apurando-as, preparando-se silenciosamente ro, mas fora o astrólogo quem respondera ao chamamento.
para as regurgitar quando chegasse a sua hora. A Hora da Raphael Baldaya puxou a mesa pé de galo para o centro da
qual falara na Mensagem. MENS AGitat molEM. M Um farol a pequena sala, pousando-lhe sobre o tampo um molho de pági-
guiar os leitores do futuro, para que encontrassem a mensa- nas em branco, tinta e uma caneta de aparo. Do bolso do casa-
gem dentro da garrafa que em breve iria lançar nos mares do co tirou um embrulho de papel pardo cujo conteúdo castanho
tempo, à mercê do esquecimento. Embora não o sentisse, o e polvoroso levou à boca para mascar.
horóscopo não mentia, o negrume já se começara a instalar A pulsação disparou. Assim que os amargos sucos oníricos
no fígado e não faltava muito para reclamar o resto do corpo. se libertaram, Raphael sentiu o corpo mergulhar numa cor-
Chupou com força o fumo que se escapava entre os dedos, rente eléctrica, num frenesim interior que o impelia a saltar, a
enchendo os pulmões com a fragrância tabágica, na esperan- correr, a gritar, a arfar, a falar os mil idiomas que tinha dentro
ça de afastar o desassossego que o havia arrancado da cama de si. Cerrando os dentes, fincou uma das mãos na mesa en-
e feito espreitar para a arca. Mergulhou o braço no breu e quanto com a outra aligeirou o nó da gravata. Cuspiu a resina
retirou, de entre as cerca de vinte e cinco mil páginas, o único de papoila para o chão e deixou-se a ofegar sobre a mesa, revi-
livro cuja vontade de surgir não nascera na sua alma ou da dos rando os olhos que viam agora para além do mundo material.
seus heterónimos. Tentou ler o título, mas este estava coberto Não era a droga que o controlava mas sim ele que controlava a
pela aura magnética que infundia a resma num fogo negro droga. Uma façanha só possível a um médium treinado como
que bailava na escuridão sem nunca consumir ou projectar ele. O braço ergueu-se sem qualquer ordem ou refreio do seu
luz. Lembrou-se das palavras de John Milton: No light; but ra- dono e pegou na caneta de aparo, molhando-a na tinta. Ra-
ther darkness visible. Haveria de acrescentar isso como epígrafe, phael já tinha feito aquilo antes. Chamava-lhes romances do
24 /// BANG!
inconsciente. Usar os dons mediúnicos para canalizar um espí- sorriu ainda mais, abrindo os braços e as mãos em saudação.
rito escritor a usar o seu corpo para dar materialidade às pala- — Sê bem-vindo Fernando. Já deves ter adivinhado quem
vras que nunca escrevera, obtendo sempre resultados diferen- sou, não?
tes, consoante o espírito que o usava. O espírito que chamara O poeta ajeitou com frieza os óculos de aros redondos so-
era Henry More, que já canalizara várias vezes. Usualmente, bre o nariz. Porém, apesar da sua aparente calma nos gestos,
era uma presença segura e assertiva, que respondia com clare- o suor que lhe escorria do corpo denunciava o verdadeiro es-
za às perguntas que ele lhe fazia, porém naquela noite Raphael tado de espírito. Um esgar nervoso desenhou-se por debaixo
conseguia sentir-lhe o medo. Não. Não era só medo. Era um do bigode aparado.
terror petrificante, um respeito solene por algo. Uma presença — Estou louco — admitiu, derrotado. — A loucura sem-
que o acompanhara na viagem através das camadas etéreas pre correu no sangue da minha família.
que envolviam o mundo e que agora estava naquela sala com — Oh, não, não. Longe disso! Estás mais lúcido do que a
eles. maioria. A minha presença ilumina o teu entendimento, por-
O ocultista fitou a caneta de aparo que segurava entre os de- que eu sou Lúcifer, o portador da luz. — debruçou-se sobre
dos, da qual pingavam grossas gotas pretas sobre o papel ima- a mesa, como quem faz uma confidência num café popula-
culado que ao respingar desenhavam pequenos sóis negros. do. — Para além disso, não é o sangue da loucura que corre
Forçou o espírito que ocupava o seu corpo a expressar-se, nas veias da tua família. É outro mais nobre. Uma força vital
obtendo nada mais que um silêncio de pedra como resposta. que contorna as regras e nega tudo o que se afirme. É dessa
Era uma vontade muito maior que a sua, contra a qual nada vontade que bebia a saudosa tia Anica, Fernando, aquela a
podia. Havia vezes que isso acontecia e um médium tinha de que todos chamam louca e que tu temes seguir o exemplo.
estar preparado para a eventualidade. Fechou os olhos com Porém, desengana-te se pensas que é a única a seguir o Ca-
força para regressar ao mundo material. O braço caiu desani- minho da Serpente.
mado sobre a mesa. Raphael abriu os olhos e viu um homem Num gesto, onde antes não havia nada, surgiu uma página
sentado à sua frente. amarelada pelo tempo em letra antiga onde se podia ler: “San-
Era um jovem bem-parecido e aprumado, vestindo um im- cho Pessoa da Cunha, mercador 1/2 I. n.-Preso pela Inquisi-
pecável fato de tecido caro. Na cara ostentava um sorriso, tal ção de Coimbra em 1704 com 42 anos Procº 9478 Coimbra-c
qual banqueiro que exibe os anéis, afiado como um gume. Os 1ºc. Maria Henriques x.n~.— c.2º c. Brites Henriques x.n. —
gestos eram calmos, lentos, obedecendo a uma coreografia c. 3º Branca Nunes. Do 1º Casamento houve: -Pedro Pessoa
metódica e secreta que os revestiam de importância e simbo- da Cunha, Homem de Negócios, n. + 1692. Preso pelo Santo
lismo. Quando abriu a boca para falar, saiu-lhe uma voz de Ofícío (aos 20 anos) de Lisboa (Procº 11496) c.c. Mariana
regaço, embaladora como a lua. Henriques…”
— Não é contigo que quero falar agora, Raphael, é com o — Que queres de mim? Vieste atraído pelos meus estudos
Fernando. esotéricos? Queres minha alma imortal?
O astrólogo esbugalhou os olhos em completo terror,
balbuciando meias palavras ininteligíveis. Que espírito seria
O Diabo riu, não com escárnio, não
aquele, capaz de se materializar numa imagem tão nítida sem como um julgamento na forma de garga-
que lhe tivesse sido dada qualquer energia anímica? Raphael
já ouvira falar de almas que ganhavam uma proto existência lhada. Riu como a vida quando mostra as
no ectoplasma dos vivos, mas sempre como formas amorfas e suas ironias, como um bebé que não tem
frágeis, nada como o jovem que sorria em silêncio. Semicerrou
os olhos, tentando ver para lá da matéria, encontrando não nada de melhor para fazer.
mais que vazio no espaço onde a aura deveria irradiar. Aquele — Não, Fernando, para que queria eu uma alma mais frag-
corpo era negação
negaç pura, mentada que a igreja de Cristo? Quero que me escrevas um
recusanddo-se até livro.
a si prróprio e — Um livro?
o espaaço que — Sim, uma porta de entrada para todos os outros mis-
ocupaava. Não térios sobre os quais eu quero que tu e o Raphael escrevam.
lhe rrestando Chamar-se-á a “Hora do Diabo”. Será a história de uma mu-
mais hipó- lher chamada Maria, à qual o Diabo fará um filho através do
teses senão Verbo, pela simples exposição de quem é.
obedeccer, Bal- — E porquê eu? Porque não outro qualquer? Porque não
daya chamou um ocultista, porque não Crowley, a quem chamam besta
Fernanddo Pes- 666?
soa cuja ppersona- O cenho de Lúcifer tornou-se carregado, com uma seve-
lidade sse impôs ridade solene, fazendo os olhos mergulhar na escuridão do
à sua. O rosto do rapaz, como duas estrelas solitárias no firmamento.
jovem — Ele não acredita em mim e eu não acredito nele. Para
além disso, quem melhor para entregar a minha mensagem
que um nativo de gémeos com ascendente em escorpião? Se é
que me estás a perceber — disse, piscando o olho, apontando
para a carta astrológica que surgiu em cima da mesa. — Por-
tugal é um Ente. Esse ente tem que cumprir um destino. Esse
destino envolve que as verdades sejam reveladas primeiro em
português do que em outra língua qualquer. É através do Ver-
BANG! /// 25
bo que eu
farei este país prenhe de um novo
Mundo, de um novo império, o 5º, que irá derrubar
todos os outros.
— Porque não outro autor, maior, mais lido, com mais impacto na socie-
dade comum? Fora do meu grupo de amigos, a obra que me queres encomendar
não será levada a sério. Porque não Júlio Dantas?
— Porque Dantas…cheira mal da boca! — declamou, entre gargalhadas. — Não te
preocupes, irás perceber mais tarde. — Limpou uma pequena lágrima de riso no canto do
olho e prosseguiu. — Eu não quero que o que escrevas seja lido pelas pessoas de agora. As
palavras do Diabo do livro que irás escrever não serão para Maria, tampouco para os teus con-
temporâneos. A tua obra é para o futuro, são para aqueles que ainda hão-de vir. Tu, o Almada, no
futuro o Lima de Freitas, no passado Nuno Gonçalves e Bandarra… O fado deste país é tão forte
que a cadeia de acontecimentos se perde nas brumas da memória.
— Portugal, o país que dá mundos ao Mundo. É esse o nosso destino?
— Sim. O Império do mar já desapareceu, falta agora o Império do Verbo. Falta cumprir-se Portugal!
Está na Hora, Fernando. Está na minha Hora. Só num país em que o povo vive a olhar para o horizonte
é que se avistam novas terras, não é?
— E o meu destino é proclamar hoje o Portugal de amanhã.
— Porque tu não és um escritor de hoje, és um escritor do amanhã.
Fernando Pessoa anuiu, adindo.
— Tens aqui o teu mensageiro. Escreverei o livro que me pedes.
— Bom! O meu supra-camões! — exclamou, felicitando-o com um aperto de mão — A alma lusitana está
grávida de divino! Deste o primeiro passo no Caminho da Serpente, não há volta a dar. Atravessarás todos
os mistérios sem no entanto conhecer nenhum. Reconhecerás a verdade como verdade e ao mesmo tempo
como erro. Viverás os contrários não os aceitando. Sentirás tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim,
senão o entendimento de tudo.
— E que recebo de volta? Tem de haver uma oferta para eu poder fazer um acordo com o Diabo. — A
hipótese parecia diverti-lo. — Imortalidade, talvez? — acrescentou, jocoso.
O Diabo coçou a cara imberbe, fingindo-se apanhado de surpresa. Agradava-lhe que Fernando co-
nhecesse os ritos e protocolos. Levantou-se da cadeira e abriu os braços ao alto, como se apresentasse o
Mundo.
— Tal como o meu irmão mais velho deu uma arca não afundável para guardar toda a criação, eu
também te dou a ti uma arca, desta vez à prova de esquecimento. Tudo o que lá guardares será lido no
futuro, quando o teu génio for reconhecido. Será a tua imortalidade em forma de madeira.
Fernando acendeu um cigarro, deixando o olhar pensativo enrolar-se no fumo, dizendo por fim:
— Posso recusar?
O Diabo mostrou os dentes todos num esgar feroz.
— Tu não queres recusar.
O silêncio instalou-se no quarto. O fumo de cigarro ascendia imperturbável
ertu em mo-
vimentos hipnóticos, construindo e destruindo quimeras cinzentas até se desvanecer
num meio maior que si. Quase em surdina, Fernando tomou a palavra entre lân-
guidas passas de fumo.
— Agora compreendo. És tão escravo quanto eu. Dizess que cons-
tróis o Fado, como se fosses o seu arquitecto, e afinal não
passas de um dos seus capatazes. No final,
26 /// BANG!
o que sinto
por ti é pena.
Nunca um olhar tão triste foi visto no Mundo como
aquele que o Diabo fez ao ouvir as palavras do poeta. Uma súplica
depressiva, um abismo sem fim, uma lágrima suspensa no tempo e no es-
paço que não existe, apenas dura. Um olhar que penetrou na alma de Fernando
Pessoa tal adaga em ferro fundente, cravando-se no fragmento onde habitava Álvaro
de Campos, marcando-o para sempre. Uma memória funesta que o iria acompanhar
para toda a vida, como uma doença que espera pela fragilidade para causar uma recaída. A
mão de Álvaro puxou uma folha até si e, em plena comunhão com a Serpente, definiu aquele
olhar em verso.
Não sou nada.
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
E o Diabo desvaneceu-se, ttrazendo a si a substância do fumo do cigarro que ardia lentamente, como
a revolução que preparava.
D eitado num mar de dores e linho, o arauto do 5º Império contorce-se de dores. Clama pela enfer-
meira. Ela tarda em aparecer. Sentado ao canto da sala, o Diabo consulta as horas como quem
está atrasado.
— Estás pronto, Fernando?
— Não.
— Pedi ao meu irmão mais velho para te levar até ele. A ti e a todos os que tu és.
— Queria mais tempo, queria mais tempo para acabar todas as obras a que me propus. Ainda há tanto
espaço na arca que me deste.
— O que lá está é a herança que estava destinada àqueles que estão para vir, nem mais, nem menos. O
suficiente para que alcances a imortalidade pela arte e eu a fecundação pelo Verbo. Obrigado, obrigado
a todos vós.
A enfermeira entra na sala e passa os óculos ao poeta. Ele pede papel e caneta para escrever. Sabe
que é a sua última frase. Não pode ser em Português. A carga simbólica da última frase é demasiada
para arriscar a escrever na língua do 5º Império. Fernando escolhe o inglês, a língua em que foi
educado, a língua do 4º Império que, tal como ele, está prestes a desaparecer. Que virá? Depois
de si? Depois do 4º Império? Fernando quer saber, mas o Diabo aponta para o relógio e abana
a cabeça negativamente. O poeta, e todos dentro dele, firma a caneta na mão e garatuja: I
know not what tomorrow will bring.
BANG! /// 27
1
stava-se em 1953 e Alfred A viagem que nos propomos
Bester vencia a única ca- fazer é uma de memórias e teste-
tegoria de ficção (na mo- munhos, pois é a única desloca-
dalidade de romance) do ção temporal permitida à espécie
primeiro prémio Hugo de sem- humana. Convocámos autores e
pre com O Homem Demolido. Os apreciadores, procurámos na in-
marcianos desciam numa Amé- ternet e nas estantes lá de casa, e
rica rural insuspeita a convite de reunimo-los aqui, para um breve
George Pal, Quartermass salvava desabafo, para que nos contem
a Humanidade de um alienígena as suas experiências e nestas, des-
vegetal e o milionário Donovan cobrirmos o reflexo das nossas.
era salvo e condenado perante au- Convocámos também a editora,
diências desconfiadas da ciência. que lamentavelmente se escusou.
Estreava em Espanha a colecção
de ficção de polpa Luchadores del
Não importa – só os
Espacio, Itália adiantara-se um ano livros importam.
com a Urania, a e a Presence du Futur
entraria no ano seguinte no pujante za-Pinto, o fundador da empresa. Durou 562 números
mundo da Ficção Científica (FC) ininterruptos com periodicidade mensal (excepto nos
francesa. Vivia-se a Guerra Fria, últimos anos em que foi irregular), mais o acrescento
um mundo de terror atómico, ple- em 1968 do raríssimo n.º 130-A ((Estação de Trânsitoo –
no de espiões e ameaças veladas, Way Station, de Simak)1. Continha essencialmente FC,
de perseguições anti-comunistas e com alguma Fantasia à mistura, e era relativamente ac-
desconfiança generalizada na capa- tual: perto de quarenta títulos foram publicados apenas
cidade do Homem em sobreviver com um ano de diferença ao da respectiva edição origi-
às suas próprias criações. Ainda as- nal estrangeira, e aproximadamente duzentos com um
sim, falava-se de futuros gloriosos, máximo de cinco anos. Para a colecção contribuíram
de contactos com seres de outras centena e meia de autores e meia centena de tradutores
Terras e de colonização galáctica oficiais. Vendia-se em Portugal e no Brasil, não obstante
nas páginas da Astounding, g Maga- uma indicação na ficha técnica que proibia este acto na
zine of Fantasy and Science Fictionn e “República Federativa do Brasil”. E se considerarmos
Galaxy. Estava-se a quatro anos do uma dimensão média de 250 páginas por livro, estamos
lançamento do primeiro satélite fa- perante 140 mil páginas de literatura Fantástica e anos
bricado por mãos humanas, o Spu- de leitura.
tnik 1, que deu início à actualmente Nenhuma outra colecção de FC atingiu no espaço
designada era espacial, e a dezasseis lusófono tal dimensão, importância e longevidade, nem
da primeira viagem tripulada à Lua. contribuiu, até hoje, para a formação básica de várias
Estava-se em 1953, e ainda gerações de apreciadores do género.
antes de findar este movimentado
ano, nasceria uma nova colecção
portuguesa que ficaria nos escapa-
rates durante cinco décadas, apre-
sentaria autores de FC ao público ntes de mais, os dados bio-
lusitano e atravessaria o oceano gráficos: deu-se à luz em No- e há factor que una os apreciadores é aquele mo-
para contaminar o paladar dos vembro de 1953 e remeteu-se mento ou circunstância em que a Argonauta lhes
leitores brasileiros. Uma colecção ao silêncio em 2006, em mês in- entrou na vida e que se torna uma memória acalen-
cujo nome evocava tradição, epo- certo. De mãe, a Editora Livros do tada e contada com o pormenor de quem descobriu um
peia e aventura: a Argonauta. Brasil, e de pai, António de Sou- segredo valioso. Cada qual conta a sua história, mas são
BANG! /// 29
os mesmos os pontos de união, «para mal dos meus pecados e
são familiares os motivos que do dinheiro dos almoços e lan-
os integram na comunidade. ches escolares, a colecção Argo-
Pode ter origem na reco- nauta, argutamente, mantinha
mendação de um amigo ou nas primeiras páginas uma lista
familiar: «uma tia minha, que com os últimos números publica-
coleccionava a Argonauta, con- dos e nas últimas páginas uma
tou-me ao jantar sobre um lago de pequena amostra do volume
alcatrão, num planeta perdido na seguinte da colecção. Tudo isto
periferia da Galáxia, onde residia servido com uma periodicidade
um computador que guardava mensal» (Ricardo Loureiro).
o registo das “almas” de toda a Cria um vício a que não se
espécie humana [e que] estaria de- quer fugir: «depois do primeiro
fendido por milhares de morcegos veio o segundo, e logo o terceiro»
gigantes» (João Barreiros). (Jorge Candeias).
Surge por acidente, por Deixa na alma, gravados
estar-se ali, naquele instante, a fogo, o nome de mundos
diante do mostruário de uma e autores, tão irreais e desco-
A sensação do primeiro con-
livraria e deparar-se com a capa
tacto transpõe oceanos: «descobri a
cuja ilustração, título ou au-
Coleção Argonauta em Janeiro de 1977,
tor despertam lembranças de
em plena Rodoviária Novo Rio, quando
outras leituras ou imprimem
estava prestes a embarcar numa viagem
promessas de mundos mara-
de férias para o interior do estado. Como
vilhosos: «uma bela manhã se tratava de um romance do Clifford D.
em Sesimbra, com o calor já a Simak, meu autor predileto, não hesitei 1
apertar, entrei numa daquelas em adquirir o livrinho de capa prateada,
papelarias/tabacarias que na n.º 227, O Outro Lado do Tempo
altura ainda vendiam livros e eis ((Enchanted Pilgrimagee)» (Gerson
que num escaparate de arame Lodi Ribeiro).
daqueles que rodam sobre um Atravessa gerações: «é um bo-
eixo deparo com uma série de cado difícil recordar coisas desses tempos
livrinhos que de imediato atra- iniciais, já lá vão 60 anos – quando saiu
em o meu jovem olhar»» (Ricardo o número 1 em 1953, tinha eu 22 anos
Loureiro). e cursava Arquitectura, e lembro-me que
Por vezes, a sedução demo- o primeiro livro que comprei foi o n.º 7,
ra: «houve um livro da Argonauta Inconstância do Amanhã (Tomor- (
que sempre exerceu um terrível fascí- row Sometimes Comes), s de F. G.
nio sobre mim: A Árvore Sagrada Rayer, livro que me deixou então positi-
[n.º 224], um dos livros dos meus vamente fascinado, e depois disso passei a
pais, publicado cá em 1972, e que ser um consumidor assíduo da colecção» o
eu me lembro de ser uma presença (António de Macedo).
constante [pela casa]. Nunca li o Espalha-se por territórios e nhecidos a início como rapi-
livro, mas cresci fascinado pela capa culturas: «conheci a coleção Argo- damente se tornam familiares:
– melhor dizendo, pela contracapa – nauta por volta dos 12 ou 13 anos, «o primeiro livro da Argonauta que
onde um gigantesca iguana verde está na Livraria Pedrosa, em minha li foi Os Frutos Dourados do
prestes a devorar um astronauta de cidade natal (Campina Grande, Sol de Ray Bradbury [n.º 55], de
imaculado branco que paira sobre Estado da Paraíba). Era uma ex- quem eu já tinha lido alguns contos
ela, filmando-a, contra um céu de um celente livraria, até para os padrões em antologias»
s (Bráulio Tavares).
laranja intenso»
o (João Seixas). de hoje » (Bráulio Tavares). Evoca-se aquela aventura
O rosto sorri-nos e bate Planta sementes no espírito do tão íntima, mais tarde, com o
as pestanas: «nessa bela manhã leitor: «Quando, depois de ler A Ne- toque de nostalgia e prazer da
escolhi mais por virtude da capa que recordação de uma descoberta
bulosa de Andrómeda, pedi ao
mostrava um vaivém espacial – na que não retorna: «[A história
meu pai mais livros do mesmo género, contada pela minha tia] era a do
altura ainda um protótipo, os primei-
ros voos seriam 3 anos mais tarde –,
aconteceram duas coisas. Por um lado, Ortog, g do escritor francês Kurt
a dirigir-se a um planetóide âmbar, fiquei a saber que existia uma coisa Steiner (André Ruellan), um dos
visivelmente artificial, do que por chamada ficção científica. Por outro, primeiros livros da Argonauta [n.º
conhecer o nome do autor de algum tive nas mãos o meu primeiro Argo- 66]. Li-o com um arrepio crescente
lado, o livro Exilados da Terra nauta.»» (Jorge Candeias). de horror, porque, aos meus olhos
(n.º 249) de Ben Bova» a (Ricardo O primeiro contacto abre a inocentes de então, o livro era bem
Loureiro). porta que não se volta a fechar: sinistro. Depois descobri nas estantes
30 /// BANG!
nha imaginação, desfilava aquilo que a mesada não chegava para tudo. O que
milhares de fãs de FC conhecem como nos é negado alimenta a íntima vontade.
o sentido do maravilhoso ((sense of Exemplar a exemplar, fui adquirindo, e
wonder). r Vastas naves enfrentavam-se lendo, o que estava disponível. A colec-
em batalhas cruéis e planetas recheados ção tinha, já, quase trinta anos, mais do
de alienígenas malévolos eram bases se- dobro da minha idade – e eu, que anda-
cretas de Impérios do Mal» l (Ricardo ra tão distraído no limbo, tardando em
Loureiro). nascer.
Como eles, encontrei a Ar-
gonauta, ou esta
encontrou-me,
depois de estar
desperto para a
existência de Fic- omo qualquer boa colecção que se
ção Científica. preze, e em particular, numa de tão
Pertenço à ge- longa duração como a Argonauta, é
ração das capas possível demarcar períodos.
prateadas, cujo O mais óbvio será a nível do forma-
«tom metálico»o or- to. Desde o primeiro número, apresen-
lava ilustrações ta-se como livro de bolso com uma di-
e n i g m á t i c a s, mensão regular de duzentas páginas, um
raramente ilus- pouco menor que o paperback americano,
trativas de uma o que é mantido até à decisão da edito-
cena do livro, ra, em 2004, de aumentar ligeiramente
mas compostas o tamanho com o n.º 553 (A ( Grande
«invariavelmente Roda – The Big Wheel,l de William Rollo)
de fotomontagens e seguintes – uma decisão mal recebida
e/ou colagens com pelos apreciadores2, talvez em parte pela
naves, planetas transformação radical das ilustrações
e estranhos sóis» s num estilo quase abstracto que repre-
(Ricardo Loureiro). A edição de sentou um retrocesso face à revolução
entrada foi O Número do Monstro de cores e imagens chamativas em voga
– 1.º volume,e do Heinlein [n.º 294], no mercado editorial. Mas até então, a
mas admito que poderia ter sido Argonauta arriscou periodicamente a
qualquer outro. Heinlein era o au- mudança – que por vezes se estranhava
tor que melhor conhecia do con- mas que acabava por ser bem-vinda – de
junto de exemplares no escaparate alterar a composição da capas, de intro-
de uma tabacaria de praia. Ali, tão duzir estilos e técnicas de imagem e de
mansamente pou- criar um corpo consistente de ilustrado-
sados, quais pepi- res de reconhecido mérito e ímpar numa
tas num concurso colecção de FC publicada em Portugal
de garimpagem. até aos dias de hoje.
«O prazer da desco- O primeiro foi Cândido Costa Pin-
da minha própria casa mais uns três ou berta pela primeira to, que ilustrou as capas do n.º 1 ao 32
quatro Argonautas. Peguei num. Mis- vez de livros-chave do ((Robinsons do Cosmos – Les Robinsons du
são Interplanetária do Van Vogt [n.º género é uma expe- Cosmos,s de Francis Carsac), conhecido
9]. Li-o às escondidas, por baixo do len- riência tão intensa artista plástico e designerr gráfico portu-
çol, com a lanterna acesa. E, claro, voltei que é quase compa- guês que se radicou no Brasil no final da
a borrar-me de medo, porque os monstros rável à da descober- vida e cujas inclinações surralistas terão
nele descritos eram verdadeiramente as- ta do sexo»» (João influenciado os desenhos fortemen-
sustadores. Mais tarde descobri todos os Seixas). Porque te simbólicos daquela sequência. Mas
livros do Stefan Wul e ele foi, durante estes encerram será com o n.º 33, o agora famosíssimo
muitos anos, um dos meus autores favori- as chaves do Fahrenheit 451 de Bradbury (em 1956,
tos»
s (João Barreiros). mistério. Ainda apenas três anos após o lançamento do
Mas a inocência deu lugar ao hoje, sempre romance original e traduzido por Má-
encantamento, e este perdura por que passo pela rio Henrique-Leiria), que se dá início à
uma vida: «Galactic Patroll de E. loja que substi- contribuição de Lima de Freitas, um dos
E. «Doc» Smith com o apropriado tí- tuiu este local, mais conhecidos pintores e desenhado-
tulo de Patrulha Galáctica (n.º 270), recordo. res portugueses do século XX e figura
e com uma despropositada nave USS E s t ava - s e marcante na vida da colecção.
Entreprise na capa: foi este o livro que no tempo das escolhas: as biblio- Freitas vem trazer um dinamismo
verdadeiramente iniciou o dilúvio de FC tecas sub-urbanas ou escolares e uma riqueza de composição a obras
para mim. Ali, perante os olhos da mi- não adquiriam Ficção Científica e de autores tão distintos como Heinlein,
BANG! /// 31
Simak e Versins, e marca pre- da capa, impressas sobre um tom cinzento brilhante,
sença até 1975, dando a última relegando a ilustração para uma ideia de «janela», talvez
capa ao n.º 221 (Eclipse
( Total – como recuperação da ideia da entrada num mundo ma-
Total Eclipse,e de John Brunner). ravilhoso. Começando no n.º 225 (Em ( Busca do Futuro
Este impressionante volume – Quest for the Future de Van Vogt), vai durar até ao n.º
de trabalho rivaliza com o rit- 300 (O Mistério de Valis – Valis – 1º volume,e de Dick), a
mo dos tradutores e faz da co- partir do qual a orla cinzenta é substituída por uma azul.
lecção uma verdadeira fábrica As ilustrações são, primeiro, da mão de Manuel Dias,
de produção de FC – com o numa breve incursão após Lima de Freitas, e logo após,
encargo adicional que o pin- de António Pedro, o qual vai assegurar o rol impressio-
tor tinha de ilustrar também nante de centenas de capas entre o n.º 254 ((As Vozes de
a edição mensal da congénere Marte – I Sing the Body Electric de Bradbury) e o último.
policial. «Lembro-me bem de os Refira-se que, apesar do expressionismo e ocasional
meus pais partilharem o trabalho de simbolismo dos desenhos, é por vezes um desafio con-
ler os livros de FC e policiais que o seguir relacioná-los com a obra que ilustram ou sequer
meu pai tinha que ilustrar. Era um com uma cena particular da narrativa...
A partir do n.º 333, desaparece a orla e o conceito
de janela, voltando a ilustração a dominar a capa, à qual
embora eu pessoalmente não apreciasse se sobreimpõem o título e o autor, composição que vai
tanto, comparado com algumas capas permanecer até ao formato derradeiro que acima se
mais antigas que ele tinha feito: umas mencionou.
mais estranhas e abstractas (lembro-me
da do Síndico,o do Cyril Kornbluth, ou
a do Homem Demolido, o do Bester,
mais brutais e expressionistas), outras
mais realistas ((O Tempo das Estre- 1
las, do Heinlein, por exemplo). Mas as
fotos duraram algum tempo, e por elas
passaram os pedaços dum foguetão Apolo
que eu tinha construido com [ele] aos 7
anos, uma estátua dum amigo nosso em
O Planeta Neutral,l uma figura de um
astronauta que eu tinha comprado em
França, em O Ponto Ómega, a e que
ritmo razoavelmente forte, dois livros reapareceu em Os Homens das Es-
por mês, mas a minha mãe era faná- trelas, ou por exemplo, na Vampiro, a
tica devoradora de policiais, e lia tudo minha tia Jenny (dinamarquesa) a fazer
num instante para contar ao meu pai de Miss Marple!»» (JF).
algum pormenor marcante que o ins- A fase seguinte da colecção, tal-
pirasse numa capa»» (JF). vez a mais distintiva, é a prateada:
A contribuição de Frei- título e autor voltam a autonomi-
tas atravessa alguns períodos zar-se e a dominar o terço superior
distintos de composição das
capas: até ao n.º 100, a ilustra-
ção surge isolada do título e
do nome do autor, que a enci- as, se o aspecto é o factor de mudança mais óbvio,
mam. Mas com o 101.º ((Nova também a nível de conteúdo a Argonauta teve os
Ameaça de Andrómeda – An- seus períodos distintos – ainda que mais duradou-
dromeda Breakthrough, de Fred ros.
Hoyle e J. Elliot), título e autor Primeiramente, pelas obras escolhidas. A colecção
passam a incorporar, e a in- arranca com um autor pouco conhecido: Archibald
fluenciar, o corpo do desenho Montgomery Low, engenheiro e investigador inglês
(veja-se o caso do n.º 136, Ave que, a par de dezenas de ensaios, escreveu apenas qua-
Marciana – A Far Sunset,t de tro romances de ficção para jovens, e nenhum dos quais
Edmund Cooper). entrou no cânone da FC. Mesmo assim, a aventura es-
É evidente que este pacial de Perdidos na Estratosferaa (Adrift in the Stratospheree)
espaço se torna, também, parece perfeitamente adequada para atrair desde logo a
um laboratório para o artis- imaginação dos leitores.
ta: «O meu pai passou nessa al- Será o evoluir dos títulos que faz suspeitar da au-
tura (anos 70) a fase de fazer ca- sência de um critério editorial sólido guiando a escolha.
pas a partir de fotos, um método A primeira década é marcada pelo predomínio dos
experimental que aparentemente «grandes nomes» – Asimov (usando seu próprio nome
granjeou bastante popularidade, ou o pseudónimo Paul French), Bradbury, Heinlein, Cla-
32 /// BANG!
rke – em, aproximadamente, um tradutor, e a sua continuidade du- simples, o nº 100 da Colecção Argo-
sexto dos livros, pertencendo os rante centenas de títulos, acontece nauta oferece um panorama comple-
restantes a autores da época pulp a par da erradicação de obras de to da evolução da Ficção-Científica,
(Leinster, Siodmak, Van Vogt)3 e origem não-inglesa do catálogo – desde Júlio Verne aos Astronautas.
obras reconhecidas no género (O sendo a última o n.º 107 (O Império Entre centenas de autores, entre mi-
Cérebro de Donovan, Slan, Mundo de dos Mutantes – La Mort Vivantee de lhares de obras, foram seleccionados os
Stefan Wul). As excepções pon- mais belos contos dos escritores mais
s em suma, uma aposta
Vampiros);
tuais representadas pelo francês representativos em todo o mundo, for-
evidente na popularidade. mando uma antologia de característi-
A presença regularr4, a partir Barbet (n.ºs 251 e 258), pelo po-
cas absolutamente inéditas entre nós»,
do n.º 22 (Vigilância Sideral – Les laco Lem (n.º 264) e pelos russos
destinado ao que já se mostrava
irmãos Strugatski (n.ºs 307 e 308) ser «um público fiel e, até, entusiás-
explicam-se facilmente: foram tra- tico».
duzidos a partir das edições ame- Mas, se é natural que di-
ricanas, com todos os problemas ferentes apreciadores tenham
de fidelidade inerentes à tradução diferentes preferências, e orien-
de traduções... tem as selecções para as obras
Há pelo menos um caso con- que conhecem (e que são ca-
firmado de influência de um cola- pazes de ler), também decorre
borador na selecção das obras: «o que a ausência de um crivo edi-
meu pai frequentemente sugeria os títulos torial coerente tenha contribui-
a traduzir, embora isso normalmente do para manter e até salientar
não fosse creditado» (JF). Lima de certos defeitos de fabrico que
Freitas foi também responsável foram prejudicando a colecção
por organizar e traduzir os contos e, eventualmente, antecipar-lhe
Étoiles ne s’en Foutent Pass de Pierre do n.º 100, uma antologia come- o fim num contexto de cres-
Versins), de autores francófonos5, morativa «que reuniu uma quanti- cente competitividade em que
representando um terço das esco- dade notável de histórias, algumas das tais falhas já não eram perdoá-
lhas dos primeiros 100 números quais foram consideradas das melhores veis pelos leitores.
– além das presenças pon- de sempre, como “Flores
tuais de Onochko para Algernon”, e penso
(russo) e Čapek que a primeira história
(checo) – anuncia traduzida para por-
uma inversão da tuguês do Lovecraft,
tendência pró-ame- Jorge Luis Borges om-
ricana, que apenas breando com Arthur Leia na próxima
surpreende se, ao in- Clarke, Efremov e revista Bang!
vés de a entendermos Bradbury»» (JF). a segunda parte
como uma aposta in- Efectivamente,
a apresentação do artigo sobre a
vulgar na FC europeia,
considerarmos que deste número é Colecção Argonauta
advém do uso de tradu- bastante explí-
tores mais familiarizados cita6: «num volu-
com a língua francesa. me duplo de mais
Esta desconfiança de quatrocentas
consolida-se se notarmos páginas, posto à
que a entrada de Eurico da venda pelo preço
Fonseca para a função de de um volume
BANG! /// 33
m Fahrenheit 451 de Ray ay Bra radb bur
uryy,
y, o m mun unndod é uum m lu lugag r ci
ga cinz
nzenento to
onde os seus habitan annte
tess us
usam am a felliccid i adadee co omom uma más áscacarara.. Qu
Quan an--
do cai a máscara, reeve vela laa-sse a solidã dão
dã o, o des e esspe
p ro o por viver num mundo do
anestesiado, a apa pati
tiaa e co onf
nforormi
or m smo
mi smmo peera rant
ntee um
nt m Est stad
add que se enc
ado n arrega ga
de apagar da mem mór ória iaa do oss ind
ndiv ivvíd
iví íduo
íduou s todato
oddaas as ttra raagé
gédid as que compõem o
di
quotidiano o. Quuem m se reevo voltltta,
lta,
a é faccili me ment ntee el
nt elim
imin
imin naddo do d sistema, desapa-
rece da fo fototo
o e dduv uviidam
uv idam
id a os se es essa saa pesso s a re
so real
alme
al m nt
me ntee ch cheg
egou um dia a ser
eg
nossaa vi vizi
zinh
nha.
nh a.
Désp
Dé spot
sp otas
ot as e tir iran
anos
an os não sup
os pororta t m qu
ta qual alqu
lquer acttiv ivid
idad
id a e cu
ad cult l ural porque
sabe
b m quue ao banir
be irr eess
s ass aact
ss c iv
ct ivididad
id a es
ad es, esestã
tão
ão a de destssttruuir
ir efi
ficcazm mente a me-
m riia de
mó de um po povo o. Qu Quan ando
anndo M Mon o ta
on tag,g o bom
g, mbeb iriroo prro ottag
a on
onis i ta da obra de
Rayy Br
Ra B ad adbu
bury
bu ry,, fina
ry nalm lm
men ntee des e pe
p rt rtaa pa paraa a ver e da
d dee e um no ovo mun undo, é só
un ó
graç
gr a as à sua memór
aç m ória iaa qqueue con o se s guguee resi s sttirr à op
si prres
essãsão po pollílíti
líti
tica e cultu t ral.l.
S m
Se mem emor
em orizizar
iz arr ooss lilivr
vrros ssab
vros abee qu
ab quee ja j mamais i cor
is orre rerá
re rá o rrisco c de os os perde deer.
Em Ti Tiga
gaanaa do au auto torr ca
to cananadi
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di no Gu Guyy Ga Gavr vrie
vr iell Ka
ie Kay, y o pov
y, o o de Tigana igg dii-
fici
ficilm
ci lmen
lm e te
en t ttem
em mo out
utra
ut ra eesc scol
sc olha
ol h sen
ha e ão ão ressis isti
stiir co
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nt r a maldiçã
ra çãão la lanç
nçaada por
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Br andi
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at h. E res esisi te
is te preci ciisa
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meent ntee atatra
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em mór óriaia.. Resi
ia siststte,,
l mb
le mbra rraand
n o-se ssee da
da suua pá p trt ia
ia.. Na Pen Penenín nsusula
la ddee PaPalm ma, qua uase
see toddas as as pr
pro- o-
vínc
ví nciaas ca c ír
íram
amm nas mão mãão os dodoss fe feit itic
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an d n de Ygr grat
atth e Al Albeberirico de
rico
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Barb
Ba rbadaddioi r. Ste teva
van,
va n, o filho
n, o de Br B an ndidin,, ffoio mor
oi orto
to por Val a en
enti
entitin,n príínc
n, ncipe de d
Tiga
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ga na,, um aact cto
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pelo lo qquauall o se
ua seuu po povo vvo
o pag agouou um pr p eç eço o deemaasi siad
iad
ado o elelev
levvad
a o o..
B an
Br ndi
din n de
d strói a orguulh hos
o a Ti T ga gana na,, as sua
na uass totorres belas as e aafafaamadas, man
fam an--
ch
ha a su s a beleza, mas não see ccon o teent
on ntan
ntan ndo o aape
p na
pe n s co om a suua de d st stru
ruiç
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ão,,
decidee tam
de mbém eliminar a sua uaa mem emór ória.
ória
ór iaa. La
L nç n a um fei e tiiço
o em qu quee neenh nhum umm
habita
ha tan nte da
nte d Península jam mais se s lem embr brrar
a á ou o p podder eráá ouo vivirr o no ome
m de
T ga
Ti ganana.. Ap
na pen
e as os tiganenses es rellem embr bram
br am o pas
am assa
sado
saado
d da su suaa pá
pátr tria
tr ia,, ma
ia m s nã não o
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h -la co c m mais i nin
is inguguém
gu uémém.. E as assi
sim
si m esestãtãão cco
tão o
ond
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nd enad addos
o a tes este
sttee-
mun
mu nhar
nhhar o fim de Ti Tiga g naa até té des esap apar
ap arec
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arececerer a últ ltim
im
ma ge gera raaçã
raçção.
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344 //
//// BAN
BANG
ANG!
ANG!
ublicado em 1990, Tigana
de Guy u Gavvri r el Kay não foi o
a sua pr prim
imeieira
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braa de fantasia.
Já tinha lan ançaçado
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iormrmen ente
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onav a arar,, de ffor orte
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Ti naa que Kay a eenc ncononnttrrou a sua
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t lo qque ue ttoror--
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na ria as suaas ob obra rass tãão fa famomosaas e
a arinhadas em tod
ac odo o o mu m ndo: a
fant
fa n asia histórica.
Kay pega em de dete
termrmin inadaddos
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icosos reais, e as assi simi
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la -oss pa para o seu mu mun undo de de fa fan-
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ta a N Nãoão ssee trtraataa dede umaa mer eraa
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v stiggaçção cuiida
ve dado doosa ddo o peperí ríod
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eval eu- Tigana é uma obra rara e
rope
ro peia no tempo da pre rese
sençnçaa do d s encantadora onde mito e magia
árab
ár abes em Portugal e Espanha. se tornam reais e entram nas
As figuras do guerreiro espanhol nossas vidas. Esta é a história
E Cid e do poeta da cidade por-
El de uma nação oprimida que
tuguesa de Silves, Ibn Ammar, luta para ser livre depois de
servem de inspiração para a pró- cair nas mãos de conquistadores
pria
pr ia cri riaç
ação
ão do auuto or, mass, atra- implacáveis. É a história de
vés da das su suas
as vvív
ívid
idasa persona n ge
na gens, um povo tão amaldiçoado pelas
a trtranannsi
s çã
çãoo de uma eera parra ou outrta negras feitiçarias do rei Brandin
é rorode dead
de adaa dee tan
ad nta p poeoesi
oe sia, nossta
si tal-
l
l- que o próprio nome da sua bela
giia e o do docece e ama
ama
marg rgo
rg o qu
quee es e ta se terra não pode ser lembrado ou
ttoorn
rnou ou umaa ddaas as sua uass obra
obbr s ma maiss pronunciado.
a lama
ac laama
m da d s. Ess ssee popode derr de
de de evoca ca-- Mas anos após a devastação da
ção,
çã o, emo moçã ção
çã o pr
p ofofunu da d e lam men ento
ntoo sua capital, um pequeno grupo
porr um p
po pas
assa
as sado
sa doo que ue já nã não ex e is-- de sobreviventes, liderado pelo
te,, ou eest
te stáá a mo
st orrrer,
er, p
er peerm
rmit
rmit i e ao príncipe Alessan, inicia uma
auuto
torr cr c ia
iarr al
algu
guma
gu maas da
m das
as m maais is ma- a cruzada perigosa para destronar
ravi
ra vilh
vi llh
hosas
ossas e ccomom mplplexexxass ccen
exas eennaass nos
os os reis despóticos que governam
seeuss livro
ivro
iv os. a Península de Palma, numa
tentativa de recuperar um nome
banido: Tigana.
Num mundo ricamente detalha-
do, onde impera a violência das
paixões, este épico sublime sobre
pros
pr osaa lílíri
os rica
riccaa e eemo
mo
moci
ociiononal
all nnão
ã
ão um povo determinado em alcançar
enco
en cont
co
cont
ntraa p
ntra paar
aral
alello em m ne- e os seus sonhos mudou para sem-
nhum
nh um out
utro
ro
o aut u orr de fan
fantntas
ntas
asia
iaa qque
ue
ue pre as fronteiras da fantasia.
euu ten
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h lidido, o, ccom
o, om m excxcepepçã
ep çãão de
U su
Ur s la Le Gu
Guin in
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ra marr. Kay ddom
ma o in
om i a a liling
ngguaagegemm
como
co mo um ma mago
mago go pod oder
eros
oso
os o a tetece
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a taam meentonto co
nt com m papalalavr
la vras
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ta m s, à med
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ivva.
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pers
rson
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straa imemen-
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E qu quemem mel elho
horr paara rrepe re
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ssaa sass ca
sa cama
mada dass e totornrna-
a-se
se óbv bvio
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ue n nãoão
perf
pe rfei
eiçã
ei ç o lílíri
çã rica
icaa ddo
o ququee a figugura
ra de um é um vilão ã típ
ão í icico
o e ququasasee co
cons
n eg
ns e ui
uimomoss
mo
b rddo? Dev
ba evin
in dd’A’ so
’A solili é uma das a p perso o- coomp preendeer o seeu in inte
tens
nso o de
desgs os
sg ostot
to
naage
g ns apr p es
e enentaada
dass no iní níci
c o do livvro e
ci pela mor
pe ortte do filho Sttev evan n quee o llev evouo
ou
será
se rá eelele a con o duduziz r-
r-no
nos na primeirra par- a cometeer tamanha atro ocidadade
de con ontraa
A
te pella Pení n nssula de Palma e a apr pres
esen
es e - Tigan na. Península de Palma partilha
taar os aconttecim i en
im nto
to
os políticos
po
po s e histtó-
ó Albe
berrico de Barbaddior é o outro fe fei-
i uma língua em comum e
ricos. Um jovem seensív ívvel
e e dotado o paara
ra tice
ti ceir
cei o que mantém a Palma sob o seu está dividida em nove províncias:
a música, ao descobr b ir a verdade acerca domííni n o. O oposto de Brandin, é um Senzio, Certando, Corte, Baixa
das suas origens, nunca mais volta a ser s nhor de guerra bárbaro, talvez a figu-
se Corte (a antiga Tigana), Asoli,
o mesmo. raa mais unidimensional na obra de Kay. Chiara, Tregea, Astibar e Ferraut.
Attra
A traavé
véss ded le, conhecemos outras fi- Apen enas vê a Penínsulaa co
en comomo uum m meio o A parte oriental é dominada por
guras qu quee formam, na aparência, uma para ati t ngir o fim e tudo o que ambi- Alberico, ao passo que o lado
mera companhia de músicos. No início ciona é a glóriaa e poder no Impé p rio de ocidental é dominado por Brandin
do livro, descobrimos qu que os músicos Barbadior. que reina a partir da ilha de Chiara.
têm uma identidade que escon sco dem de
sc Do lado oposto, Al Ales
e san, o prínc ríín ipe Duas luas orbitam em torno da
todos e uma missão que pretendem de- de Tigana, é o suposto herói ói de qu quem em terra onde os habitantes veneram
sempenhar a todo o custo. Todos eles se espera a redenção e a vingançça, mas uma tríade de deuses, um deus e
fazem parte de um grupo secreto de é uma figura que ganha uma dimensão duas deusas.
conspiradores e rebeldes que planeia cada vez mais humana e menoss heróica.
derrubar os feit iticeiros e libertar Tigana, Constantemente atormentado por o dú- Ao contrário de fantasias mais
a sua pátria subjugada e amaldiçoada das vidas, jurou livrar a Península dos feiti- tradicionais, não imperam criaturas
garras de Brandin. ceiros tiranos mas, mesmo com compa- míticas ou outras raças e a única
A guns são jovens, outros não tão jo-
Al nheiros tão leais como Devin, Ca Catr tria
triana
ia n entidade sobrenatural a fazer a
v ns
ve ns, mam s todos sentem intensamente a e Baerd, o príncipe cresceu em exílio e sua aparição é uma riselka cuja
peerd
r a da sua u terra natal. Alguns ainda constante fuga, atormentado pela me- aparição traz presságios. A magia
dese
de seeja
jamm redi dimir os erros do passado ou mória de uma Tigana que já não existe na Península existe, mas não é
pres
pr eser
es erva
er varr as pouucas memórias familia- e de um pai corajoso que se tornou uma disciplinada nem é ensinada e
ress qu
re quee lhes restam. lenda e um már árti
tir para os tiganenses. muitos dos praticantes são forçados
Ass mul
A ulhe
ul h res têm um protagonismo
he Para piorar as coisas, Alessan sabe que, a esconder os seus talentos dos
tão fo fortrtee quuanto os homens em Tigana.
rt para alcançar a vitória, terá dee comet om meter e tiranos ou arriscam-se a uma
Como eles, lutam pela sua liberdade e actos questionáveis. A sua ua rellaç
ação
ão ccom om o sentença de morte.
dignidade, apaixonam-se (às vezess pe pela
las
la feiticeiro Erlei eii providencia algu
ein gun
gu ns dos
pessssoa
ss oass er
oa e radas) mas, muitas vezes su- episódios mora raais
i e éticocos maais desafi fian- Muito ao estilo da antiga Itália
peeraand
pera ndo os homens, demonstram uma tes do livro. medieval que era formada por
coragem e sacrifício imensas e estão É difícil escolher uma única cena de- Estados que constantemente
dispostass a da darr a sua vida para pagar o cisiva do livro entre tantas – o que dizer guerreavam entre si, assim é
preço dee san angugue.
gu e. do magní nífi
ífi
fico
co capítulo do “mergulho do apresentada a Península. Os
anel” ou ou a Emb m er Night com os cami m-
mi conflitos internos permitiram a
nhananntes
tes da noite? – mas de umaa coisa fácil conquista dos territórios,
nãão há dúvida: o leitor ficará certaamente em simultâneo, mas de modo
ma
marcado
ma pelos momentos finaiis de d sta independente, pelos dois feiticeiros
obra monumentaal em que Kay tom mou que estabeleceram uma balança
outr
ou traa paarte
rtte da da nar a raativa
tiiva é ffoc
ocad
oc a a
ad uumma decisão contro oversa quando doo rrevevvella precária de poder.
naa ilha de Chiar arra ononde de B Bra
rand
randdin
ndinin es-
es- um dos grandes segredos da saga.. Res est
esta
taabe
b leceu a sua cort rtee e é co c nt n ad
ada através ao leitor decidir se essa decisão nãão fa farrá
rá
doss ol
do o hohoss de
d Dia iano
nora
no raa, um ma beela l mulher todo o sentido face aos tema m s principais
q e fo
qu oi ca
c ptptur
u ad
ur ada pe pelo los meerc
los r en
enár
árrios do do livro: a perda da ident ntid
i ade, a vingan-
r i Br
re B an ndi
dinn e quq e rapi pida
ida
damente see tor o- ça, o desejo por liberdade e escolha pes-
n u um
no u a da dass suuasa ama mant
ma n es
nt e fav avor
orit
ori ass een-
it soal, a necessidade de compaixão. Pois
tree o seu sa
tr sais
isha
haan. A hi histstóória de Dianora
ória
ór afinal é o próprio Alessan que admite
é umuma de sol ollid
idão
ãoo, dúvi vid
ida
da, du dupla identi- “Neste mundo em que nos encontramos, pen-
d dee e uma
da m ang ngúsúússti
tiaa e tris
trrisste
tezzas imensas. so que é preciso ter compaixão acima de tudo,
O pa pa saddo de Dia
pass iano
n raa é contado em
no ou estaremos sozinhos.” Se nunca leram
flas
fl ashb
ash acackskss e cced
eddo de desc s obri
sc obr mos os seus
ob Guy Gavriel Kay, posso assegurar-vos
veerd
rdad
addei
eiro
iroos ob
obje
bjetitiivos. s Ela é testemunha que estão nas mãos de um contador de
do imemens nso
ns o po
podeder de Brandin sobre os histórias exímio que vos fará viver uma
seeus súbúbdidito
di to
os e o seu bobo Rhun, da sua autêntica montanha-russa de emoções.
a ro
ar rogâ
gânc
gâ ncia
nc ia e frieza, mas também do seu
chharme e sensualidade. Nós sabemos
logo no início do livro que ele é o vilão,
36 /// BANG!
Alessan. Através de Devin,
O líder do grupo de rebeldes e ficamos a conhecer a Península
conspiradores, Alessan herdou de Palma e muita da política que
um legado de tragédia. Filho a afecta.
mais novo de Valentin, príncipe
de Tigana, e único herdeiro
sobrevivente de uma dinastia Faz parte do grupo de rebeldes
quebrada pela guerra, é a ele que de Alessan. Tempestuosa, forte
cabe tentar resgatar o seu reino e independente, é assombrada
das garras dos feiticeiros. Uma pelos erros do passado da sua
figura atormentada por dúvidas família, os quais deseja redimir.
e receios, é muito respeitado
pelos seus companheiros de
estrada. Rei de Ygrath e um feiticeiro
poderoso que trouxe guerra
aos territórios da Península
Uma bela mulher que foi do Ocidente, é um homem de
capturada pelo feiticeiro emoções intensas e incapaz de
Brandin de Ygrath, tornando-se perdoar a morte do seu filho,
parte do seu harém, Dianora Stevan, às mãos de Valentin, 1
rapidamente tornou-se a sua o príncipe de Tigana. Por essa
concubina favorita. Dianora morte, os Tiganenses foram
tem uma identidade e plano amaldiçoados e pagaram um
secretos que podem conduzir à preço demasiado elevado. É
ruína de todos. A sua natureza o homem mais perigoso da
conflituosa forma uma parte Península, mas tem um lado
vital do enredo. vulnerável que oculta de todos.
38 /// BANG!
GUY GAVRIEL KAY é um autor canadiano que se iniciou no mundo literário ao ser convidado por Christopher Tolkien
para editar O Silmarillion de J. R. R. Tolkien. É o autor da trilogia de fantasia A Tapeçaria de Fionavar e das obras de fantasia
histórica Os Leões de Al-Rassan, A Song for Arbonne, The Sarantine Mosaic (dois volumes) e a sua mais recente série centra-se
no Império da China, Under Heaven e River of Stars. Tigana é uma das suas obras mais aclamadas. O seu trabalho encontra-se
traduzido em vinte e uma línguas e recebeu numerosas nomeações e prémios ao longo da sua carreira.
A
ntes de publicar o lizando alguns desses elementos, mas
seu primeiro ro- crriai nd
ndo
do pe
person
o agens mais modernas,
mance, The Summer intr
in t odduz
uzin
indo
indo sex
do exualidade e temas como
ex
Tree, foi convidado lilibe
berddad
be a e de escolha ou o pr
p eço (ou
pelo Christopher fardo) do poder.
Tolkien para editar
O Silmarillion de Tigana foi o primeiro romance onde
JRR Tolkien, considerado uma obra-pri- encontrou a sua voz criativa. Sei que
ma por muitos dos seus fãs. Foi uma não lhe agrada muito o termo “Fantasia
decisão deliberada escrever a Tapeçaria Histórica”, mas ao recriar determina-
de Fionavar, a sua primeira trilogia de dos eventos históricos num cenário de
fantasia, na tradição de Tolkien? Uma fantasia acabou por criar um conjunto
homenagem a um escritor que influen- de obras único e forte. Em Os Leões de
ciou tão intensamente o género? Al-Rassan tem um grande fascínio pelo
A tees de
An d mai a s, obrrig
igad
ado por esta entre--
ad canto do cisne da presença dos Mouros
vist
vista.
a É uum
a. mp prraz
azeer
er tter
er a oportunidade em Portugal e Espanha. Em A Song for
de pararti
tilh
tilh
har alg
lgum
umas
um as reflexões com os Arbonne, é a cruzada albigense na Pro-
meus leito ores.
rees. vença Medieval que captou a sua imagi-
Fionavar não foi tanto uma homena- nação. Em Tigana, inspirou-se na Itália
gem como uma tentativa de regressar às Medieval. Também Constantinopla e
mesmas raízes, à capacidade de moldar China foram objectos de estudo em ro-
uma fantasia. Na altura, a maioria dos mances recentes. A fantasia permite-lhe
escritores de fantasia que conhecia es- maior liberdade em explorar os princi-
tavam a afastar-se da dimensão épica pais temas do livro?
em direção a uma obra minimalista, Suponho que hoje em dia me sinta mais
deixando os grandes épicos para escri- confortável com o termo “Fantasia His-
tores que imitavam cinicamente Tolkien tórica”, pois as pessoas gostam de rótu-
como forma de obter sucesso comer- los e categorias. Tenho imensas razões
cial. Não era o meu desejo que um gé- por trabalhar com o que um crítico cha-
nero tão forte em mito, lenda, folclore ma de “história com um pendor para o
acabasse dessa forma. Fionavar foi um fantástico” e escrevi ensaios e discursos
desafio que impus a mim próprio, uti- sobre isso (leitores que saibam ler inglês
BANG! /// 39
p de
po derãr o en
rã enco
cont
n ra
ntrarr al
algu
guuns na sesecç
cção
cç ão
o do
o do pa pass
ssad
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isso
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pod
odee ar
od arru
ruin
ruinar
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nos
os,, minh
mi nhas
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ersoso
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g ns
n secunundádári
dáriiaass, qu
quero
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“WWor ords
ds”” ded w www
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righ
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gh twea
tw eavi
eavin
vi ngs.co
ngs.
ng com
co m. s n
se nos
os lem
embr
brar
br a mo
ar moss de
d ma
masi
siad
siado
ad o po
pouc
uco
uco, sabe
saberr ma
be mais is ssob
obre
ob re ela
lass à me
m dida que
Na A Amém ri
mé rica
caa Lat
atin
ina,
a, com uma ttra radi
diçã
di çãão arru
ar ruuín
ína-
a-no
noss à me
mesmsma.
a. surg
su rgem
rg em,, po
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nto
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ismo
mo m mágágic
ico,
o, pen
enso
so que p offun
pr undidiida
d ded.
comp
co mpre
mp reen
ende
en dem m me
melh lhor
or com
o o es este
tess lili- Sei que já se referiu à Primavera de
geir
ge irros des
esvivios
os da re
real
alid
idad
adee po
podedemm na Praga [tentativa de liberalização da A riqueza de Tigana reside não só nas
verd
ve rdadadee ilium
minarar ain
inda
da maiis o nosso Checoslováquia do domínio da União personagens fascinantes e enredo mas
munddo e Hi H stóriaia. Al
A ém m dissos , a fa
fant
ntta-a Soviética em 1968 que terminou nesse também nos detalhes de cada região
siia pe
permr ite--me usaar um m maior núm mero o mesmo ano com a invasão de Praga e cultura. Como integra a pesquisa na
de ferramentas paraa sedu duzi
du z r o leitor
orr
or! por tanques soviéticos] como um dos sua escrita? Quando está a ler um livro
acontecimentos históricos que inspirou de História, reconhece imediatamente
Verifiquei no seu site a bibliografia que Tigana. O povo de Tigana sofre o mes- os elementos que irá assimilar na sua
consultou para a pesquisa de Tigana, e a mo tipo de subjugação política e tirania. obra?
maioria dos livros centram-se na Itália Após várias décadas, a tirania política e É uma boa pergunta. A resposta curta
Renascentista ou na Idade Média. O financeira continuam a ser um tema vi- é nã
não
o, pois
p à medida que leio e pesqui-
que o atrai tanto no passado da Europa tal em todo o mundo. Vinte e três anos soo são ass co
co
coisas pequenas inesperadas
e o que o cativa tanto para o melhor depois da sua primeira publicação, pre- que muitas vezes apanham o meu
e pior da ascensão e declínio de Impé- via que os temas de Tigana reflectissem olhar, mas também acontece fazer uma
rios? tão profundamente o estado presente nota e acaba por nunca entrar no livro.
Como provavelmente deve saber, os do nosso mundo? Também pode acontecer outras coisas
meus dois últimos romances explo- Não tenho tendência a pensar nisso em irromperem das minhas no otas enquan-
raram a História chinesa, nos séculos termos de “previsões”, sendo a minha to o livro está a tomar forma. Esssa
VIII e XII, por isso não estou de ma- perspectiva a de um historiador. Ti
T gana é uma das razões porque não o posso
neira nenhuma “casado” com a Euro- foi escrito como uma fantasia em parte simplesmente empregar investigado-
pa. Mas admito que me sinto fascinado porque, ao ser escrito dessa forma, res: tenho que ser eu próprio a fazê-lo,
pela
pe la sua História desde os meus 18 sobre um país fictício, pode torna
nar-
nar-se
r-se mergulhar bem fundo, descobrir aquilo
a os
an os, e uma viagem que efectuei pela a história de muitos outros lugares em que se irá tornar parte do meu livro. O
Euuroropa
pa nesessa altura. Dou-lhe razão diferentes tempos. Eu adoro este pa- livro muda em mim enquuan anto
to o moldo.
quan
qu anndo
d aponta que muitos dos meus radoxo: o cenário de fantasia faz com
liivr
vros
oss ococorrem em períodos de mudan- que leitores do mundo inteiro me per- No que se encontra a trabalhar de
ça pololít
í ic
íti a, religiosa ou militar. A tensão guntem, ao lon ngo dos anos, “escreveu momento? Quais são os seus futuros
qquue essa traransição causa às personagens sobre nós?” planos de publicação?
originna umum grande impacto. Term
Te rmin
rm inei
inei aagogora
go r a tourr parra o me
meu úl
meu últi
t-
É conhecido por criar algumas perso- mo liv liv
ivro
ro Rive
Riveer off Stars,
Ri s por isso agora
ra
Em Tigana, a magia desempenha nagens masculinas e femininas muito iniciei a fa fase
s de ler e pensar (e praggueue--
um papel principal na eliminação da fortes e complexas: Alessan, Jehane, jar!) so obr
bree qquuala ser
e á o tema do meu
identidade e memória. O legado dos Dianora, Ammar ibn Khairan, só para prróxóxim
imo
im o lilivvro.
r Preciso sempre de um
Tiganenses e o caminho que eles têm nomear alguns. Até mesmo os seus vi- po ouc
ucoo de tempo antes de começaar a
que percorrer lembrou-me do livro de lões afastam-se dos clichés habituais. O esscrev
crev
everer,, em
er e parte porque não qu q er
eo
Amin Maalouf As Identidades Assassinas. feiteiceiro Brandin de Ygrath é o opres- repe
re peti
t r os temas e o estilo do últim
ti im
mo
A identidade conduz sempre a loucura sor de Tigana, mas também vai muito lilivr
v o.
e violência? para além disso. Pode partilhar connos-
N o, ccer
Nã erta
tam
ment ntee qu
quee nãnão.o. Mas questões co alguns segredos sobre o processo de Eu adoro este
dee ide
dent
n id
nt idad
a e e a su
ad suaa su
s presessão ou per- criação destas personagens?
da são exttreemame
da mente impo port
poort
rtan
ante
an ttees ao o Não jujulgo que haaja segredos. Sup
upon
onho
on h
ho paradoxo: o cenário
l ng
lo ngo o ddaa H
Histótóri
ória
ia. Tir
Tiriran
anos
an os e ccon
onqu
on quis
qu issta
ta- q e seja tudo uma qu
qu q estão de tem
empopo,,
po de fantasia faz com
do ore
res se
s mpre soubeeraam qu quee a ma
mane neir
ne iraa
ir paciência e aversão a uma simplififica
fica-
m is certa de reduuzi
ma zirr re
r si
sist
stên
ênci
ên cia é ção excessiva das coisas. Como leieito
ei torr,
to que leitores do mundo
dimi
di m nu
mi n irr a ide
d nttiddadde da d naç ação
ão o ocupa- aprecio livros que me ofereçam per-
d . A ep
da pígígra
rafe
f dde Ti
fe Tiga
gana
naa da au
a totoririia do sonagens complexas e maduras, e não
inteiro me perguntem,
m ra
ma r vilhhosso popoete a grreg
et e o GeG orge Sef efe-
e heróis ou vilões óbvios. Por isso tento ao longo dos anos,
riis é pr
precissamamene tet sob
obre
ob re aqu
quililo
o qu
q e me escrever os livros que gostaria de ler.
pergunta: see n nos
o lemb
os em
mbr brarmo
brar m s de
mo d ma m sia- Também sinto muita curiosidade pelas “escreveu sobre nós?”
40 /// BANG!
elaboração de uma capa fundo seria melhor esbatido ou com
BANG! /// 41
N o Livro 2 de Tigana, o
editor pretendia dar realce
às personagens femininas
da história, tal como acontece no
livro. O conceito seria o mesmo: uma
mulher no centro com um fundo mais
esbatido por trás. Neste livro, o desafio
da figura principal foi ainda maior. A
imagem que pretendíamos era a de
uma bela mulher com um ar metade
Escolha das cores
odalisca, metade guerreira, inserida no
tal contexto medieval ficcional, com
para outra coisa, para no dia seguinte olharmos de novo e aperfeiçoarmos algo
roupagens muito específicas. Algo que
que achávamos estar já terminado.
foi particularmente difícil de encontrar.
Pormenores da cidade original foram então apagados, janelas transformadas,
As imagens mais encontradas foram
perspectivas mudadas. Um “corte e costura” digital. Finalmente com a cidade
bailarinas (especialmente dançarinas
construída, o herói escolhido e com algumas paletas de cor apresentadas, a
do ventre) e embora algumas
decisão pendeu para um tom geral mais “terra” bem ao estilo medieval. Decisão
poses fossem adequadas, as roupas
essa que foi validada pelo editor e também pela opinião da equipa da SdE (é
eram despropositadas para o que
comum, quando estamos indecisos em relação a capas de um livro, mostrá-
pretendíamos: muito brilhantes,
las e fazer uma votação pela equipa toda, não só os designers mas todos:
garridas e demasiado chamativas.
administrativos, assistentes editoriais, etc.)
No entanto, com a ideia de mudar
alguns elementos na mulher, começou
a experiência de colocar a primeira
com várias paisagens em fundo. A
ideia era ter o aspecto de ilha ou então
manter a paisagem do livro anterior,
se funcionasse. As experiências de cor
vvieram ao mesmo tempo naturalmente.
A paisagem e a cor ficaram então
decididos: seria o fundo com o mar
e rochas, e a cor seria azulada, com
elementos de nevoeiro e mistério
à mistura. No entanto, havia ainda
dúvidas quanto à mulher escolhida. A
roupa era muito excessiva e não parecia
enquadrar-se no mundo criado por
Kay. Por isso a solução foi escolher
a mesma manequim mas com outra
pose e literalmente mudar-lhe a roupa
e adereços: apagar todo o excesso de
brilhantes, mudar a cor do vestido e
adicionar todo o tipo de pormenores
Alteração da paisagem (torres), cor final e encaixe do guerreiro que a juntasse ao look do héroi do
primeiro livro. O processo foi o
seguinte:
42 /// BANG!
Escolha das cores e cenário de fundo (a modelo ainda não é a final)
NG! //
BANG
BA /// 43
43
á cerca
cee a ddee uma déc éccad
écad
ada,, num u breve ve ens
ve n aiio pu
p bbllicaddo de Lititer
iter
e atururaa – as
ur assi
s m,
m comm cap pitital
a iz
alizaçção ini
nicial – negan
ni ando
an doo-lhes
na New York Rev e iew
w off Sciiennccee Fiicction,
titi AnA dr
dreew
ew Weiinen r, à q alqu
qu quuer esp pecificidadde geg nééricaa.
falta dee um accró óni
n mo o mais sonante,, pro opu
punhn a o teerm
rmo O termo de And nddre
n rew
w Weinin
ner
e não chego ou a co olh
lher
e a simpati
s ta
“SF-
F-No
F- Not”t par
ara caractter e izzarr aquqquuuele tipo de fificç
c ão
cçã cientí- d niin
de ngu
ngu
g ém e deessapareceu nass vasstitidõ dõ
õeess infinitittas do ce
cemi
m tééri
rio
fica que era liddo po or pe
p sssoao s quue nãão gosttam m de ficççãoão das ideieiiass inv
nviá
iávveeis, mas o fe
fenó
n meno que ele preete t nd
n ia descrever
científica. Weeininerr peen
nsavava, natuura
va r lmlmente, nos cac sos de perman aan
necee ac actualal e, qu
al quan
ando
and muito, tende mesmo a agravar-see.
leittor
o es que liam textto oss do género o com o o Ninety Eigghhtty Fo F urr ou A ddiifereenç
nça é quue agor o a aqueles qu
or q e lêem (ou essccrevem) ficçãão
Bravve Ne
New Worlldd, a séériie Foundationn ou Son of Man, como o ob
o ra
rs cientíífica para quem não gos o taa de ficçção científica, cha haamam-m lhe
44 //// BANG!
G
“fificçã
ç o es espe
pecuula
pe lativa” (com o prer ferênccia parra
o in
ingl
gllês
glêês – sp s ecul
ulat
ulattiv
ive fifictctc ioon – quee p
perrmimite mante teer as
a
m sm
me mas ini
nicic ai
aiss do género – em e ingglês, sc
scieienc
nce fifictctction).
n Ora ra, fic-
c
ção
çã o esspep culalativa par arec
ecce ter sido o um teerm mo que caaiu no o goto o dde la
larggass
f anjaas de
fr d ade deptp oss da
da literatura de gé géne
neero
ro,
o, como
m demonstra o amp amp
mplol leqque
u
dee p
pub
ubliicaaçõ ç ess e autoro es que u nel elle ssee rrevvêem. Mas é um termo o út
ú il? E seer-nono
os-
s-áá re
r al-
mentntte lííciito
t apresentá táá-l
- o co
como
mo o altlterrna n tiva a “SF-Not o ”,, man
ot nte
t nddo o meesm s o sisign
i nifi
i caddo?
A //// 45
BBANG!
BA
tipos de narrativa de FC (ou nor- sub-géneros menos próprios como a space-opera, a as gadget stories,s
malmente encarados como FC), e outros à data ainda inexistentes como os vários punks,s com
e após menosprezar aquelas his- especial destaque para o steampunk.
tórias que de FC têm apenas os Heinlein voltaria ao tema em 1959, numa conferência intitula-
adereços – histórias passadas no da Science Fiction: It’s Nature, Faults and Virtues,s cujo texto foi inclu-
futuro ou noutros planetas, que ído no volume The Science Fiction Novel: Imagination and Social Criti-
poderiam passar-se de igual modo cism, compilado por Basil Davenport. Nesse texto, entre outras,
na Terra no século XIX – Hein- Heinlein acrescenta uma precisão ao que antes escrevera e que
lein refere-se às histórias de ficção nos permite compreender como é possível que o termo por ele
científica especulativa como sendo proposto tenha começado a deslizar pela encosta escorregadia
aquelas em que “a ciência dominante da obscuridade descritiva. Apenas onze anos depois de ter intro-
e os factos estabelecidos são extrapolados duzido o termo, Heinlein serve-se dele, agora, explicitamente,
de forma a produzir uma situação nova, como permutável com Ficção Científica: “O termo ‘ficção científica’
uma nova moldura para a acção huma- já faz parte da linguagem (…) e vou usá-lo… embora pessoalmente prefira
na. Em resultado dessa situação nova, o termo ‘ficção especulativa’ por ser mais descritivo. Servir-me-ei de ambos
surgem novos problemas humanos, e a os termos de forma intercambiável, um sendo o uso corrente, o outro porque
história a ser contada é sobre a forma de me ajuda a pensar – mas com o mesmo referente em ambos os casos” s (su-
lidar com esses novos problemas”. s Um blinhado meu).
dos elementos que Heinlein indica O termo Ficção Especulativa é de facto mais descritivo quando
como essenciais para a verdadeira é o utilizado por Heinlein, sobretudo pela presença ali do verbo
ficção científica (especulativa), é “extrapolar”, a partir dos factos e das leis científicas conhecidas,
que não sejam violados quaisquer e quando utilizado para circunscrever um conjunto de obras de
dos factos científicos conhecidos, FC de conteúdo específico da paleta mais ampla de uma FC
impondo-se que, quando o autor latu sensuu (na verdade, penso que Ficção Extrapolativa seria um
recorra a uma teoria que contra- identificador bastante melhor do que Ficção Especulativa, pois
rie as teorias dominantes, esta seja em termos gerais, toda a ficção é, por definição, especulativa). 1
plausível e deva incluir e explicar
os factos conhecidos tão satisfa-
toriamente quanto a teoria que
pretende substituir. Leitores fami-
liares com o processo científico, einlein utiliza assim de forma indistinta FC/FE, para identi-
reconhecerão aqui uma exigência ficar o género literário que parte do mundo real e dos factos
comum a qualquer teoria cientí- científicos estabelecidos para extrapolar um mundo distinto
fica, e os leitores mais cientes da do nosso, imaginário-mas-possível; ao fazê-lo, reconhece tam-
crítica literária, reconhecerão aqui bém a dificuldade em obter acordo sobre o que são os “factos
a aplicação do método científico à conhecidos” e o “mundo real”, e é essa a precisão (e diria quase,
literatura que Judith Merrill, como a presciência) que se me afigura mais relevante. Para Heinlein,
veremos, postulava como essen- ambos os termos referem-se ao “universo factual da nossa experiên-
cial à ficção especulativa. cia, no sentido com que qualquer pessoa esperaria que tais palavras fossem
Uma leitura atenta do texto de utilizadas por membros educados e esclarecidos (“enlightened”) da cultura
Heinlein não deixa dúvidas de que ocidental”
l do nosso tempo.
esta ficção especulativa por ele Estamos, como se vê, perante uma definição clara e concisa
proposta é apenas um sub-género de Ficção Especulativa como sendo um género que recorre aos
daquilo que poderemos conside- factos e ao método da Ciência para extrapolar um mundo dife-
rar uma Ficção Científica mais rente do nosso, imaginário mas possível, do qual resultam novos
ampla, correspondendo aquela problemas, os quais são propostos e resolvidos. Uma definição
à FC Hard, e incluindo esta os muito distante da salgalhada incoerente e logicamente inconsis-
tente de Lilly.
Para compreender como passamos de um estado ao outro, é
importante atentar na recuperação do termo, em meados dos
anos sessenta, por Judith Merril, uma das mais influentes e rele-
vantes editoras de ficção científica da New Wavee americana. Es-
crevendo na revista Extrapolationn nºs 7 e 8 (Maio e Dezembro de
1966), num texto cujo título deixava já antever o cerne da ques-
tão e do seu desenvolvimento futuro – What do you Mean: Science?
Fiction?? – Merril avança uma definição de Ficção Especulativa
bastante próxima da de Heinlein e, se calhar, ainda mais descri-
tiva do que a do primeiro Grand Master da FC. Tal como ele,
Merril começa por encarar a Ficção Especulativa como sen-
do uma de três categorias da Ficção Científica, a par das ‘Te-
aching Stories’ e das ‘Preaching Stories’ – cujo conceito não
importa aqui aprofundar – e tal como Heinlein, Merril
exclui a aventura espacial e os westerns e aventuras
466 //
/ / BANNG!
G
históricas transplantadas para cenários fu--
turistas ou transplanetários. Assim sendo,,
a Ficção Especulativa seria constituída porr
aquelas “histórias cujo objectivo é explorar, desco--
brir, aprender, através da projecção, extrapolação,,
analogia, formulação de hipóteses e experimenta--
ção-no-papel, algo sobre a natureza do universo,,
do homem, da ‘realidade’. (…) Sirvo-me aqui doo
termo ‘ficção especulativa’ especificamente para des--
crever o modo que faz uso do tradicional ‘métodoo
científico’ (observação, hipótese, experimentação))
para examinar uma qualquer postulada aproxi--
mação à realidade, através da introdução de um m
conjunto de mudanças – imaginárias ou inventivass feministas (e os mais ri ridículos
– no pano de fundo dos ‘factos conhecidos’, criandoo women studies), s aplicaç a ão das te-
um ambiente no qual as respostas e percepções dass ses marxistas e freudiian a as à crí ríítit-
personagens revelarão algo sobre as invenções, sobree ca literária, etc… Efectivam men ntet,
as personagens ou sobre ambas.” Merril escreve: ““A A liltera ratu
ra tura de
tu
meados do século XX X apapen
ennas
a pode ter
significado na medida em que per erceba, e
er
Que mudou, então, no sentido se inter-ralacione, co
c m a real alliddad a e estru-
turante da nossa cul ultu
ultuura: a reevo v lução no
do termo, de Heinlein para Mer- pensamento científifico quue su
s bstitu tuuiu a me- e
ril? Ambos consideram os factos cânica pela dinâmica, a clclas assisisififificação pe p la
integração, o positivism mo pela relativid iddade,
científicos como ponto de partida as certezas pela prorooba
babililida
daade
de est statística, o
e limite essencial para o mundo dualismo pela paridade”. e
imaginado (imaginário-mas-pos-
sível), e as consequências desse
mundo alterado sobre as perso-
nagens como a essência da his- confusão de Merril é patente mesmo a
tória. Mais, ambos coincidem um leigo na matéria, reflectindo de formaa
quase exaustiva o clima cultural da décadda da
na experimentação virtual como de sessenta nos Estados Unidos da Amér éric
érica,
a e
a,
cerne da experiência literária da particularmente a política cultural dos departaam
amen n-
tos de Letras das várias Universidades, onde ao lon-
Ficção Científica. O que distin- go da década seguinte se viriam a refugiar oss ná náuf
uuffra
rago
goss
go
gue, então, a definição de ambos? da grande experiência falhada dos sincréticos anos os 60. A
esquerda académica, genuinamente mobilizadda pe p la Gueu rraa
A diferença é subtil mas essencial, e resi-- do Vietname, pela emergência de considerações ambienentatais
is e
de precisamente na definição de “mundo o pela justificada revolta pela oposição ao fim do segregacion nismo
ismo
real” e de “factos científicos” – em suma,, racial, uma esquerda que pensou mudar o mund ndo com os pro
nd r testtos
na definição de Ciência – a que amboss anti-bélicos, a postura anti-capitalista e anti-empresarial, e com as demonstra-
deitam mão. Embora os dois autores en-- ções de Paris de Maio de 68, viu-se atirada contra a realidade da Invasão de Pra Praga
gaa
carem a FC como a forma privilegiada dee pela União Soviética, pela brutalidade da Reevo v lução Cultural Maoísta, pelos eventos
literatura para a Era da Ciência e da Técni- em torno da Convenção Democrata de Chicago o, e pelo encerramento o sanggreent
n o da
ca, Merril tem da Ciência uma perspectiva década do flower power,r do LSD e de Woodstock. Perdi
ca, dida a bat atal
at
ta ha no plano do d real,
pós-moderna, quase me atreveria a dizer impunha-se definir essa realidade como arbitrária, como pr
pós-moderna, produto de uma coe o rciva con-
coonstrutivista, em tudo semelhante às vá- venção colectiva da qual urge libertar-se, como indefinííve
onstrutivista, v l por uma única muundividên n-
rias
as pseudo-ciências que emergiram dos cia. A falência das suas ideias subjectivas podia apenas demonstrar que era a realidade
anoss 60: estudos (multi)culturais, estudos que estava enganada.
BANG! /// 47
Merril escrevia sob a declarada influên- si, era pouco relevante para a sua escrita, a ela nos permitiu descobrir como balizas
cia de Reginald Bretnor, particularmente não ser como espelho da loucura humana da imaginação no particular jogo de extra-
do ensaio “The Future of Science Fiction”, que gerara um mundo caótico e desestru- polação literária. São esses que preferem o
incluído no volume Modern Science Fiction, turado. A Ciência não gera conhecimen- termo Ficção Especulativa ao termo Fic-
e, tal como ele, defendia a emergência no to, mas age apenas como criadora das ção Científica.
curto prazo de uma literatura de ficção paisagens apocalípticas onde o Homem A Ficção Científica é o único género
científica que, ainda que artisticamente se pode explorar a si mesmo; onde o Ho- que assume a poesia da descoberta e do
em dívida para com a corrente literária mem pode explorar o espaço interior. conhecimento do Universo em todas as
da não-ficção científica (non-science fiction), n suas manifestações. Usualmente despre-
seria uma forma de literatura integrada, zada por antepor os objectoss (gadgetss, naves
e única forma de expressão da cultura espaciais, monstros fantasistas) aos sujeitos,s
ocidental do século XX. Nas palavras da a FC sabe que sua é a voz de quem reco-
própria Judith Merril, essa ficção científi- ó que, tal como Merril reconhecia, a nhece a imanente beleza do universo indi-
ca, ainda inexistente, viria colmatar, pela Ciência é sem dúvida o mais impor- ferente e das suas frias equações.
sua especial valia literária, a lacuna de uma tante instrumento do conhecimento Num momento histórico em que a
tal forma de expressão na literatura con- humano, o elemento estruturante da nos- Ciência sofre o ataque de um relativismo
temporânea, mas, ao fazê-lo, “deixaria de sa cultura e o único meio de que dispo- cultural de consequências perigosas para a
ser ‘ficção científica’, e tornar-se-ia simples litera- mos para nos aproximar o mais possível nossa cultura e sociedade, é à FC, e não à
tura contemporânea”, a substituindo-se, assim, da verdade última das coisas. Recusan- FE, que cumpre o papel de dar voz àque-
à literatura normalmente denominada do-lhe as características de objectividade les que fazem o trabalho do conhecimen-
mainstream. e de instrumento de análise e estudo do to; aqueles que Auden dizia que os poetas
E sem dúvida que qualquer apreciador real, Merril abre as portas precisamente à deixavam sem voz:
da ficção científica, nesse ponto concreto, confusão de Lilly e à vacuidade do cor-
estaria de acordo com ela. Mas Merril es- rente entendimento de Ficção Especula-
crevia também num específico momento tiva. David Bowlin, editor da revista on-line “Unfortunately poetry cannot cele-
do desenvolvimento do género: no de- ShadowKeep (citado por Lilly), apresenta
albar da New Wavee Britânica, que ela via esta absurda definição: ““A Ficção Especula- brate them, because their deeds are
como um movimento ainda embrionário tiva é um mundo criado por escritores, onde tudo concerned with things, not persons,
mas já consciente, que se desenvolvia em pode acontecer. É um lugar que fica para lá da and are, therefore, speechless.”
torno da New Worldss de Michael Moor- realidade, um lugar que nunca poderia ser, ou po-
cock, e de Ballard, no campo da FC, e em deria ser, se as regras do Universo fossem apenas W.H. Auden, In The Dyer’s Hand,
torno de poetas como Dylan Thomas e um bocadinho diferentes”.s “Poet and the City” (1963)
Peter Redgrove, para dar origem a essa Quem lê Ficção Científica, sabe que
nova literatura, que deixaria para trás quer esta é, por excelência, a única literatura
a ‘normal’ ficção científica, quer a litera- capaz de dar voz ao progresso de uma
tura mainstream. Mas Ballard, profeta da forma de saber que foi a única que permi-
New Wave,e escrevia sob a perspectiva de tiu alcançar os feitos (ainda que com ínsi-
que a Civilização Ocidental vivia os seus tos defeitos) do moderno mundo e cul-
últimos dias, e assumia o sincretismo sur- tura ocidentais. Só quem é ignorante da
realista que o leva a antepor a sugestão Ciência, ou quem duvide da centralidade João Seixas autor e crítico literário, é uma das
sensorial ao racionalismo positivista, ou, do seu papel na criação de conhecimen- vozes mais activas na defesa da Ficção Científica
em Portugal. Para além do exercício da advoca-
como chegou a escrever Brian Aldiss, a to humano e da descoberta da verdade, cia, escreve frequentemente sobre Ficção Científi-
ser “descuidado com o factual”. l A Ciência em pode abdicar das regras do Universo que ca e Fantástico, tendo publicado artigos e ensaios
nas revistas Ler, Bang!, Paradoxo, Megalon, no
Jornal Público e em diversos sites. Editou várias
antologias e, junto com Pedro Marques, fundou a
editora Livros de Areia.
Bibliografia sumária: HEINLEIN, Robert A. – “On the Writing LILLY, N. E. – “What is Speculative Fic-
of Speculative Fiction”, in ESHBACH, Lloyd tion?”, Green Tentacles, www.greententacles.com/
CLUTE, John e NICHOLLS, Peter – The Arthur (Ed.), Of Worlds Beyond, Dobson Books, articles/5/26, 2002, acedido em 26 de Junho de
Encyclopedia of Science Fiction, St. Martin’s Press, Ltd, London, 1965 (originalmente publicado em 2013
New York, 1995 1948) MERRIL, Judith – “What do you Mean:
DAWKINS, Richard – Unweaving the Rainbow: HEINLEIN, Robert A. – “Science Fiction: Science? Fiction?”, in CLARESON, Thomas
Science, Delusion and the Appetite for Wonder, Hou- Its Nature, Faults and Virtues”, in DAVEN- D. (Ed.), SF: The Other Side of Realism – Essays on
ghton Mifflin Company, New York, 1998 (so- PORT, Basil (Ed.), The Science Fiction Novel, Ad- Modern Fantasy and Science Fiction, Bowling Green
bretudo o capítulo 2, “Drawing Room of Dukes”, vent Publishers, Chicago, 1974 (originalmente University Popular Press, Bowling Green, Ohio,
p.15-37) publicado em 1957) 1971 (ensaio original de 1966)
GROSS, Paul R. & LEVITT, Norman – Hi- HOLTON, Gerald – Science and Anti-Science, SMITH, John Maynard – “Tinkering”, Lon-
gher Superstition: The Academic Left and its Quarrels Harvard University Press, Cambridge, Massa- don Review of Books, September 1981, in Did
with Science, The Johns Hopkins University Press, chusetts, 1994 (2ª edição, sobretudo o capítulo 6, Darwin Get it Right? – Essays on Games, Sex and
Baltimore, 1998 “The Anti-Science Phenomenon”, p.145-189) Evolution, Penguin Books, London, 1993
48 /// BANG!
Libélula não se chega por estradas. Não existem
caminhos nem placas que lá conduzam. Libélula
está em todos os sítios e a todos os momentos. Em
esquinas, avenidas, ruelas. Em mares e desertos.
Em tardes de sol, crepúsculos frios, noites amenas.
Uma cidade invisível nas nossas terras concretas. Uma cida-
de com a delicadeza robusta de um insecto.
Quem a penetra deve fazê-lo sem expectativas e sem
roteiros. Não há forma de saber se Libélula lhe oferecerá
cavernas, palácios, fossas ou ribeiros. A cada visita a cidade
mostra-se igual e diversa. Talvez o forasteiro lhe encontre
os edifícios de ametista, as estradas de água, as florestas de
papoilas e corais. Talvez descubra apenas os bairros urba-
nos plenos de gente estranha e comum, de rostos desco-
nhecidos, mudados pouco a pouco até se parecerem afinal
com quem sempre conhecemos. Porque Libélula é mutável
e se transforma com as histórias que lhe trazem e que por lá
deixam. Porque Libélula se transfigura a cada olhar e a cada
dia novo se distende.
Libélula está cheia de mulheres inventadas e homens
ficcionados, e também daqueles que existiram e foram Inês Botelho nasceu em Vila Nova de Gaia em Agosto
vertidos em palavra. A cidade é um mundo em perpétuo de 1986.
movimento, mundano e extraordinário, feito de todas as Licenciada em Biologia, iniciou em 2009 um Mestrado
narrativas de todos os tempos, dos nossos contos, livros e em Estudo Anglo-Americanos. Completou o 8º grau
poemas. de Piano e Formação Musical. É autora da trilogia
Quando se sai de Libélula, vem-se com ela nos passos. E de fantástico “O Ceptro de Aerzis”, composta por
assim se a leva a novos espaços. “A Filha dos Mundos” (2003), “A Senhora da Noite e
das Brumas” (2004) e “A Rainha das Terras da Luz”
(2005). Publicou ainda os romances “Prelúdio” (2007)
e “O passado que seremos” (2010).
BANG! /// 49
seu ponto de vista. Se o sonho de todos os seres era a hipótese
de chegar em primeiro, existindo apenas um prémio o ser dis-
tinguido devia ser o segundo. Era este o único lugar indispensá-
vel a que o primeiro classificado não fosse o último. Poderiam
faltar o terceiro, o quarto, ou qualquer outro lugar a seguir, mas
desde que houvesse dois concorrentes continuaria a existir um
primeiro classificado, distinto do último.
Aquela ideia foi causa de burburinho na assembleia da orga-
nização. O planeta é governado por critérios rigorosos e rara-
mente as coisas são postas em causa. Foi por isso com alguma
surpresa que, após a votação prevista na constituição, a propos-
ta do ancião foi aprovada.
Nesse ano histórico, ao primeiro classificado na prova foi
atribuído o número Dois, enquanto o segundo ficou com o
número Um e o prémio, que era uma medalha.
Espero que ainda me estejas a seguir pai.
No ano seguinte, perante a assembleia da organização da
corrida anual dos números, alguns anciãos irreverentes junta-
ram-se e fizeram uma proposta ainda mais arrojada. Tal como
inha sido uma decisão difícil. o primeiro classificado seria o último sem o segundo, o segun-
É verdade que raramente me dirigia palavra, que vi- do seria o último sem o terceiro, o terceiro seria o último se
via no seu próprio mundo, e que a nossa relação era não houvesse o quarto e assim por diante. Afinal, o que dita-
para ele uma questão meramente matemática. Mas um va a importância de um lugar não eram só os que chegavam
filho é um filho, e este era o único que eu tinha. antes, mas também os que chegavam depois. Entusiasmados
Para os médicos, não havia nada a fazer por aqui. Ninguém pela possibilidade de todos os concorrentes (com exceção do
seria capaz
p de lhe dar uma consciência da sua p própria
p identi- primeiro) terem direito ao prémio e ao número Um na prova, a
dade. O meu filho era sobredotado, mas não sabia quem era. maioria dos anciãos aprovou esta medida.
Acabei por reconhecer que não havia outra hipótese. Fica- A corrida desse ano foi uma grande festa, mas trouxe algu-
ria anos sem saber dele. Hoje não me arrependo. Ele não vol- mas surpresas. Quando a organização fez as contas, deparou-se
tou, mas encontro consolo na mensagem que me fez chegar. com uma falta generalizada de produtos no planeta. A popula-
ção deste planeta não é especialista no fabrico de medalhas, e o
ai, escrevo-te do planeta dos números. Aqui, tudo o que tempo gasto nesta atividade fez falta a alguns seres para o cum-
“P acontece tem uma certa correspondência com a vida na
Terra. Os seres deste planeta evoluíram de modo semelhante à
primento de deveres mais importantes. Além disso, houve um
contratempo muito sério na cerimónia de entrega dos prémios:
espécie humana. Existem no entanto algumas diferenças. sempre que se ouvia chamar “número Um”, os seres acorriam
Todos os anos, no planeta dos números, organiza-se uma todos em simultâneo atropelando-se uns aos outros.
corrida especial. É um momento importante para a vida dos E a partir daqui, tudo voltou a ser como dantes na organiza-
seres, em que se determina o nome com que vão iniciar a vida ção da prova.
adulta. O número Um é atribuído ao primeiro ser a cortar a Algo mudou, no entanto, no processo de atribuição de no-
linha da meta, o número Dois ao concorrente seguinte, e assim mes no planeta. Teve início uma nova era. Os seres pareciam ter
sucessivamente, até ao último ser a chegar. descoberto que cada posição e cada nome eram importantes.
O nome de um ser tem um grande significado neste planeta, Alguns seres passaram a correr de maneira diferente. Corriam
e cada corrida é antecedida de uma longa preparação individual. com entusiasmo, mas faziam-no como se procurassem qualquer
O esforço culmina em manifestações de júbilo durante a ceri- coisa desconhecida, qualquer coisa que não era o primeiro lugar.
mónia de graduação, sobretudo por parte dos seres que ficam Às vezes, os seres terminavam ao lado uns dos outros. Queriam
com os primeiros números. ter nomes próximos e começar a vida adulta em conjunto.
Um número mais baixo denota simbolicamente uma posição E finalmente, aquilo que gostarás de saber. Na corrida deste
de destaque na hierarquia social, uma vez que os seres mais ano, eu próprio, quando cheguei ao fim e ouvi a minha classifi-
antigos do planeta - os anciãos - têm nomes correspondentes cação - «Número 637!», percebi que aquele número queria dizer
a números mais baixos que a maioria dos seres. Existem outras uma coisa diferente de tudo aquilo que eu conhecia até então.
formas de avançar e retroceder simbolicamente na escala social, Aquele número era eu próprio.”
através de operações complicadas chamadas adição ou subtra-
ção, mas reduzir uma unidade por ano corresponde em média
ao ritmo de ascensão social dos números. A posição inicial em
que se parte é por isso de grande importância para as aspirações
de um ser, e a entrega do prémio para o melhor classificado é
sempre feita por um ancião número Um. Nascido em 1971, casado e pai de três filhos, Fernando Lobo Pimentel
Há alguns anos, porém, apareceu um ancião número Um (que interessa-se por livros desde as recorrentes crises de asma infantil, que o
no início da sua vida adulta se tinha visto obrigado a começar com mantinham preso à cama. Alguns anos depois, na faculdade, tentou escrever a
um número muito elevado) a sugerir algo diferente. Ele achava sua primeira história. Desde então publicou alguns textos no extinto DN Jovem
que não era o primeiro concorrente a cortar a meta aquele que e, mais recentemente, no jornal “O conto fantástico”. A par do seu interesse
devia ser distinguido, por não haver nada de especial nesse lugar. pela escrita criativa, e do trabalho em sistemas de informação, desenvolve um
Perante uma plateia de números atentos o ancião explicou o projeto amador de investigação em matemática discreta.
50 /// BANG!
homem com o saco dade, a levantar um punho que
grande saiu pela porta segurava um telemóvel com len-
da joalharia a correr e te fotográfica e a fotografar-me.
deparou-se com uma Depois fugiu, penso, pois nin-
rua cheia de peões. Alguns caminhavam apressados, guém o tornou a ver, muito menos eu que perdi os sentidos.
outros tinham parado, atraídos pelo alarme que tocava na loja. Quando a polícia finalmente chegou, fui visto por um mé-
O homem do saco não hesitou e desviou-se de um homem dico que declarou que eu não tinha nada a não ser nódoas
grande, de uma mulher que se encolheu, de um casal jovem: negras. Prestei todas as informações de que me lembrava,
todos eles parados, perplexos ou a desviarem-se à pressa, com descrevendo o rosto que entrevira da cara que agora sabia ser
medo. Eu fui o único que dei um passo para frente – ainda falsa. Disse-me um agente que o mais provável era que aquele
não entendo porque o fiz – do homem do saco, que era um rosto fosse impresso digitalmente através de um sistema de
homem corpulento com um rosto asiático delgado. prototipagem, e aplicado depois sobre o rosto verdadeiro.
Ele chocou contra mim, e eu senti o queixo macio dele con- Graças à minha descrição, detiveram vários suspeitos, que
tra o meu nariz, os ombros e as coxas duros contra o meu foram identificados e colocados em linha, para que eu apon-
corpo franzino. O homem deixou cair o saco ao chão, que, tasse se algum deles era o assaltante da joalharia.
tilintando, rebolou pelo chão e derramou um fio de anéis, cor- Na altura, lembro-me, pensei como devia ser humilhante
rentes de ouro, tiaras e pedras preciosas pelo chão de cimento. estar num corredor estreito, sob uma luz forte, a ser exami-
O rosto asiático contorceu-se num esgar de fúria e o ho- nado por desconhecidos invisíveis. Agora posso confirmar
mem agarrou-me pelos ombros, com toda a facilidade, e em- essa impressão, pois estou eu próprio numa dessas linhas de
purrou-me para o lado. Mais por instinto do que por coragem, identificação.
estiquei os braços e agarrei-me ao pescoço e à cara dele para É que alguns dias depois, os jornais, a televisão e a internet
não cair. Senti-lhe o pescoço musculado com uma das mãos, estavam cheios de fotografias de um grande assalto a uma
e com os dedos da outra palpei uma superfície semirrígida e joalharia numa cidade próxima.
esponjosa no rosto, que se deformou e, para meu espanto, O assaltante tinha sido captado pelas câmaras de vigilância,
se rasgou do resto da cara, que ficou sem nariz e sem parte e pelas câmaras de alguns transeuntes. E o rosto que surgia
da bochecha. Debaixo desse rasgão surgia agora outro rosto, em todas essas fotografias era o meu próprio rosto. Tão igual
com um outro nariz e uma outra face, que observava o meu que eu próprio o reconheci, embora também reconhecesse
espanto com um esgar de fúria. que o corpo que a minha face agora coroava era alto e mus-
Aproveitando o meu espanto e o meu desequilíbrio, o ho- culado como o do assaltante contra quem chocara.
mem empurrou-me outra vez, e eu caí desamparado no chão, E, infelizmente, ninguém se tinha lembrado de tentar ar-
com a minha nuca a ressaltar o piso. Senti luzes a pairarem-me rancar o meu rosto daquela cabeça, para tentar encontrar a
dentro do crânio e o céu e as cabeças em redor a rodarem à face escura que continuava a levar a sua vida debaixo das caras
minha volta como um carrossel. Mas, no meio da tontura e de outras pessoas.
das cabeças, vi ainda o rosto rasgado encarar-me com mal-
BANG! /// 51
omos devotos dos céus e é a terra que nos guia. Em cada mover das estações repetimos os mesmos
gestos, os mesmos caminhos e os mesmos ritos. Levamos as nossas casas para os prados e as cla-
reiras que nos aconchegam a nós e aos nossos animais. Quando o cuco canta, quando a lebre ergue
o focinho e a estrela alba se levanta sobre a serra, pegamos nos nossos animais e nas nossas capas
e levamo-los lá para o alto dos montes, onde o vento chicoteia, a erva ainda verdeja e as estreitas
malhadas são o nosso único consolo.
E quando as árvores ficam despidas, quando o lobo desapa-
rece na terra e o urso se enrola para regressar aos seus sonhos,
voltamos a descer aos vales, saudosos da terra plana, temerosos
das chuvas, dos gelos e dos ventos que são os nossos senhores das
serranias. Nas nossas casas cá de baixo abrigamos os nossos reba-
nhos em redis, protegidos sob os ramos que colhemos e esticamos
por entre colunas feitas de troncos de árvore.
Somos gratos às estrelas, somos gratos aos montes, adoramos
as fragas que os nossos animais trepam e do cimo dos quais
contemplam as pradarias imensas. Tememos o lobo e
o lince e o frio que assobia pelos soutos e pelos
olivais, que nos rouba os cabritos e os filhos
numa selvajaria de sangue e dor.
Fazemos isto há gerações: disse-mo o
meu avô que o fazia desde jovem, e que
o seu avô lhe dissera que o fazia desde jovem
quando a terra era conquistada aos leões, e que o avô
do seu avô lhe dissera que o fazia desde jovem quando vira
a primeira idade dos carvalhos, e que o avô do avô do seu avô
lhe dissera que o fazia desde jovem quando vira Epona moldar o
granito com os próprios cascos, e que o avô do avô do avô do seu
avô lhe dissera que o fazia desde jovem quando fora beijado na
face por Ataegina. E tal como todos os meus avôs mo disseram,
através das bocas uns dos outros, eu também to digo a ti, meu
neto, para que as minhas palavras possam chegar aos teus netos,
e aos netos dos teus netos, até que o Grande Urso nos devore a
todos e não reste na terra senão a pedra e o silêncio.
Mas tenho medo, neto, que estas palavras de saber não cheguem tão longe no mundo. Homens chega-
ram, e esses homens ergueram pedras e arbustos em volta de prados e clareiras e ribeiros, e dizem-nos agora
que nós e os nossos animais já não podemos caminhar por eles para receber a oferenda de Nantosvelta.
Estes são homens estranhos e maldosos, que não deixam a terra aos seus animais, mas que preferem atacar
essa mesma terra com lanças, com machados e com outras armas de lâmina afiada para tentar roubar o te-
souro da deusa. Alguns dos nossos jovens querem erguer os machados e as espadas contra estes assaltantes
da terra, mas eu digo-lhes que tenham confiança, que tenham paciência, pois a própria deusa vingar-se-á
dando-lhes a maldição dos ratos, da peste e da fome.
Só que esta não é a única sombra nas nossas vidas. Do alto dos montes, Crougu e outros dos nossos, cuja
vista é ainda fresca como a do falcão, trazem novas de que viram mais homens a caminhar para cá vindos da
terra de onde o sol corre para os céus. Dizem que são muitos homens, que caminham uns ao lados dos ou-
tros, tal como caminham as nossas cabras e as nossas ovelhas, mas que ao contrário dos nossos animais se
cobrem com penas e com ferro reluzente, e trazem nos punhos mais lanças, mais espadas, mais escudos.
É isso que mais temo, meu neto: que em breve, ainda antes de a estrela se ter levanta-
do sobre a serra, seja aquela o nosso único lugar, a única terra que nos esconde, que
nos acolhe, que nos protege, a única que fará com que a minha voz, que carrega
tantas vozes continue a chegar aos ouvidos do amanhã.
52 /// BANG!
intensas por parte do público, fosse de indignação, protesto
e até alguns desmaios entre as almas sensíveis. Muita gente
mostrou desapontamento por não encontrar as encantadoras
cenas domésticas com que o artista se tornara conhecido, e
até alguns apreciadores mais irritados reclamaram junto do
artista, com uns, mais jocosos, a submeterem até uma queixa
na sociedade protetora dos animais por atentado ao direito
de imagem dos gatos. E o próprio conhecido crítico de arte
felídea, Richard Banquo, não hesitou em apontar a exposição
como mais um exemplo da imparável decadência que esta
arte tem vindo a sofrer.
E, no entanto, os próprios gatos – os verdadeiros – a quem
tinha sido dada a oportunidade de visitarem a exposição,
não mostraram qualquer sinal de medo, inquietação ou in-
dignação perante os quadros. Pelo contrário, mostraram-se
compostos, atentos, e observaram os
mundo é um lugar melhor a partir do momento em
vários retratos
que nele existem pintores de gatos como Joseph Ri-
expostos com
card.
uma indiferença
Ninguém dúvida de que é o mais talentoso retra-
fria, com alguns
tista de gatos da sua geração. Os seus clientes fiéis
a aproveitarem o
contratam-no para retratar os bichanos da família: a sós, em
tempo para dor-
grupo, com os donos, ou em poses de um bem-humorado
mitar ou limpar
encanto. E é ainda autor de imaginativas telas de gatos, em
o pelo reluzente.
que estes surgem a andar apenas nas patas traseiras, apoiados
em bengalas, a espreitar por entre flores, a abrigarem-se de-
baixo de guarda-chuvas, a jogar ténis, a piscar o olho, a usar
laço e cartola, a tocar banjo, a tomar chá, a dormitar, a brincar
com crianças, aves e borboletas, a conduzir carros, e outros
comportamentos que muito divertem os apreciadores dos
seus quadros e deram ao seu nome a fama que é tão bem
merecida.
É, por isso, triste, que tal talento pareça estar a ser afetado
por uma estranha doença que faz com que os seus gatos
se pareçam cada vez mais com sinais de trânsito. O pró-
prio pintor afirma que não vê qualquer diferença en-
tre os seus anteriores quadros e as suas obras mais
recentes, mas a sua última exposição sofreu uma
perda acentuada de visitantes após as enchentes
dos primeiros dias, com o público a manifestar
choque e indignação por se ver confrontado
com quadros de gatos vermelhos com um
retângulo no lugar dos olhos, como se fos-
sem um sentido proibido, ou com um fo-
cinho triangular vermelho e branco, qual
sinal de perigo, ou com antenas, como o
corço que é representado no aviso de
animais na via. Alguns gatos eram tão
abstratos que havia quem jurasse que
se assemelhavam às tabuletas de pa-
trimónio histórico. Redondos, ver-
melhos, multicolores, com halos,
em forma de losangos, por vezes
desfeitos em flores e frutos, ou
a brilhar na escuridão com
uma malignidade aterradora,
os gatos da exposição ge-
ram respostas
BANG! /// 53
«The Future’s a Thing of the Past»
Th e C re at ive Part n e rsh ip (2 006)
1 56 /// BANG!
e em literal fim de cultura. No segundo (1982-1988), de Alan Moore e David
caso e longe de um sentido conven- Lloyd, V (o protagonista mascarado de
cional sobre o habitar, a proposta da Guy Fawkes) vive afastado da superfí-
House of the Future (1956), desenvolvida cie da cidade, em catacumbas debaixo
pelo casal de arquitectos Alison e Peter das ruas, e com o propósito de, entre
Smithson e exposta na The Ideal Home outras estruturas arquitectónicas re-
Exhibition, inverte algumas das abor- presentativas de poder, destruir o Old
dagens correntes de espaço doméstico Bailey. Com a narrativa localizada em
unifamiliar. 1997, V habita uma rede de metroo obso-
Na década de 1960, a swinging London leta ao lado de fundações e estruturas
não se faz reconhecer na fc. The Drow- cavernosas, o seu abrigo é uma gale-
ned Worldd (1962), de J. G. Ballard, imer- ria subterrânea abobadada, desenhada
ge as toponímias da cidade no Atlântico e ilustrada como um imenso cabinet de
apesar de manter algumas referências curiosités. V é uma espécie de nobre res-
geográficas. Situada após um desastre pigador de memórias cujo valor e signi-
ambiental em meados do Século XXII, ficado se perdera.
Londres transforma-se em pântano Já na última década do século XX,
tropical irreconhecível. introduz-se novamente o problema de
Durante a década de 1970, a violên- ordem distópica que é a desolação de
cia parece regressar com outro cor- um lugar sem gente. A adaptação ao ci-
po e sentido. Em A Clockwork Orange nema de The Children of Menn (1992), da
(1971),7 de Stanley Kubrick, a cidade escritora P. D. James (e cuja acção ori-
aparece representada em espaços como ginal decorre, na maioria, na cidade de
o Flat Block Marina e o Binsey Walk, Oxford e na Isle of Man, entre Janei-
ambos em Thamesmead, colocando ro e Outubro de 2021), acusa a inter-
o protagonista Alex em circunstâncias ferência em alguns lugares garantindo
de brutalidade extrema. Neste ponto, a fragmentação do tecido urbano mas
parece a ficção ter transpirado para a mantendo as suas iconografias. O tema
realidade, já que o projecto de Thames- é o de um confronto derradeiro entre a
mead Estate (1963-1971), de Robert Rigg humanidade e o território que a susten-
and GLC, se encontra actualmente em ta: a infertilidade afecta todo o planeta.
análise para a respectiva reformulação Aparentemente não há futuro, na tradi-
ou demolição devido a problemas de ção literária britânica burguesa de Mary
violência como aqueles representados Shelley e punk da banda Sex Pistols. No
no filme de Kubrick. Apesar de tudo, caso da versão cinematográfica, realiza-
nestes anos, o mesmo Ballard e An- da por Cuarón, a apropriação da cida-
thony Burgess criam novas afinidades de de Londres no ano de 2027 é ainda
com a cidade. Obras como Concrete mais sintomática. Sem lei nem ordem,
Islandd (1974) ou 1985 (1978), de um e a cidade e o estado social encontram-se
outro autor respectivamente, parecem em excesso de sujidade e destroços.
premonições sobre aquele território de Acrescenta ainda Slavoj Zizek que, so-
betão e auto-estradas, para além de vol- bre a sobreposição visual de campos
tarem a colocar Londres sob uma espé- para a explicação da narrativa, a cidade
cie de alçada disciplinar. acontece tangencialmente, acompanhan-
Neste seguimento, os anos 1980 são do ela própria a acção e o movimento
tempos propícios a experiências de contínuo das personagens. É de lem-
ilegalidade, memória e vigilância. Na brar, por exemplo, a sequência de che-
verdade, tratando-se de uma década gada do protagonista Théo Faron à icó-
politicamente hostil, sob um governo nica Battersea Power Stationn (1929-1935),
ultra-conservador como o de Margaret projectada por S. Leonard Pearce e Gil-
Thatcher, aumenta a discussão sobre o bert Scott, após uma entrada automó-
espaço público tão só por se pretender vel pela sobredimensionada Millennium
privatizá-lo a qualquer preço. No con- Bridgee (2000-2002), de Arup, Foster &
to The Gernsback Continuum8 (1981), de Partners, e Anthony Caro. Aquilo que é
William Gibson, lança-se a proposta uma impossibilidade real resulta como
de uma realidade alternativa a partir de alavanca visual subtil. Nesse processo
lugares londrinos menos institucionais de total remontagem geográfica, o ex-
como bares bas-fond, d na Battersea Park terior da Battersea Power Stationn substitui,
Road.,
d ocupados por indigentes e exi- na margem e a eixo com a ponte, a ac-
lados. Parker, o protagonista, um fotó- tual Tate Modernn (2000); mesmo que o
grafo de arquitectura, deixa de se reco- interior representado seja a espaços o
nhecer entre o que experiencia e foto- da Turbine Hall,l da Tate.10
grafa. Na novela gráfica V for Vendetta9 Na primeira década do XXI, o tema
BANG! /// 57 5
de final de festa antecipado tem ainda apoiadas na electricidade como as di-
expressão imagética em 28 Days Later versas tipologias de panorama e pro-
(2002), de Danny Boyle. Basta lembrar jecções cinemáticas, o próprio Palais de
os percursos nos quais o protagonista l’Électricité,
é desenhado por Eugène Hé-
Jim aparece sozinho perante a cidade, nard e Edmond Paulin, ou a subida de
na Westminster Bridge, por exemplo, com elevador ao topo da Torre Eiffell (1900),
o relógio e a torre do Big Ben em se- registada em filme por Thomas Edison
gundo plano. Nesse filme não estará e James H. White.
em causa necessariamente um futuro No arranque do Século XX, surgem
projectado mas sim um tempo presen- várias formas narrativas. O Manifeste du
te sob uma perturbação com a forma Futurismm (1909), de Filippo Tommaso
de um vírus a resumir a existência e ex- Marinetti, é um desses casos. Apesar de
periência humanas a poucas hipóteses anteriormente publicado em diversos
e bastante animalidade sanguinária. jornais italianos, é com a sua publica-
Para a década de 2010, resta mencio- ção no Parisiense Le Figaroo que obtém
nar o exemplo de um remake desper- total divulgação e distribuição. Neste
diçado. O filme Total Recall (2012), de documento, os compromissos futuris-
Len Wiseman, substitui a colónia e a tas são lançados como modos de acção
metrópole originais de We Can Remem- e reacção às instituições e, resumindo,
ber It for You Wholesale (1966), o conto a tudo o que seja engagé.é A velocidade,
de Philip K. Dick, pela Austrália e pela a guerra, a morte, a modernidade, e o
United Federation of Britain, respectiva- tempo acelerado são alguns dos temas
mente, tendo esta última o seu centro desenvolvidos ao longo dos 11 pontos.
em Londres. No caso da ilustração, a série Visions
de l’An 20000 (1910), de Villemard, re-
fere e reflecte sobre algumas expecta-
tivas urbanas centrais, cotejadas entre
o sonho pelo progresso novecentista
oltando ao Século XIX e atravessando e a nostalgia pelas escalas burguesas
o Canal da Mancha, Paris torna-se setecentistas e oitocentistas. As esta-
crível para Jules Verne na hipótese de ções ferroviárias, as boulevardss plenas
Paris au XXe Siècle (1863). Inventando de veículos motorizados, ou a zona da
um futuro para a cidade-luz na déca- Operaa coberta de descapotáveis aéreos
da de 1960, Verne vê a obra primeiro em formas anfíbias, são postais de uma
recusada pelo seu editor (por se tratar cidade que não se concretizou na tota-
de um texto aparentemente menor lidade. No caso da arquitectura, projec-
quanto ao género fantástico) e depois tos como a Ville Futuree (1910) ou a Rue
perdida.11 Basicamente, trata-se de uma Futuree (1911), de Hénard, servem para
ideia de visão futura da cidade carac- confirmar a tendência da estratificação
terizada pela inovação e desenvolvi- e sectorização visual e espacial de Pa-
mento industriais. Contudo, esta não ris. Na proposta da Rue Future, aliás,
será a primeira obra de fc com acção a ideia está contida essencialmente no
em Paris. L’An Deux Mille Quatre Cent corte de uma rua com perfil haussma-
Quarante (c. 1771), de Louis-Sébastien nianoo justaposto a um aparato técnico e
Mercier, coloca a cidade no Século XXV funcional de trânsito, regimes, domes-
atribuindo-lhe novas formas e dispo- ticidades, instalações e escalas urbanas.
sitivos, como se prova no seu Capítulo As décadas de 1920 e 1930, entre
VIII: Le Nouveau Paris. Guerras, são efectivamente férteis
O fin-de-Siècle oitocentista é, de facto, em bons exemplos de variações futu-
particularmente rico em obras, autores ristas sobre a cidade e os seus objec-
e acontecimentos na Capital do Século tos arquitectónicos notáveis. Filmes
XIX. Em Le Vingtième Siècle: la Vie Élec- como L’Inhumainee (1924), de Marcel
trique (1883-1890), de Albert Robida, a L’Herbier, ou Paris Qui Dortt (1925) e
capital francesa é localizada na década À Nous La Libertéé (1925), ambos de
de 1950, evidenciando uma apetência René Clair, são de facto casos de es-
invulgar pela técnica e imagética eléc- tudo únicos. L’Inhumaine, o primeiro,
tricas. Quase contemporâneas à obra sério e nocturno, apresenta setss cubis-
de Robida, em 1889 e 1900, acontecem tas, desenhados pelo arquitecto Robert
as Exposições Universais na cidade, con- Mallet-Stevens, e mobiliários moder-
cretizações proto-ficcionais de alguns nistas, desenhados pelo também arqui-
desejos daquele presente. São, de resto, tecto Pierre Chareau, num movimento
conhecidos os projectos apresentados e pendularidade automóvel entre a ci-
de equipamentos, estruturas e decisões dade e a sua periferia. Paris Qui Dort,t
58 /// BANG!
o segundo, cómico e diurno, Enki Bilal desenvolve os dois primeiros volumes em
apresenta o monumental cen- banda desenhada da sua Trilogia de Nikopol.l Apresen-
tro histórico da cidade, através tando a cidade a partir de mestiçagens, mitologias,
da imobilização ou lentidão dos corrupções e vícios em abuso, as narrativas de La
seus habitantes. À Nous La Li- Foire aux Immortelss (1980) e La Femme Piègee (1986)13
berté,
é o terceiro, político, convo- centram-se em 2023 e 2025, respectivamente, após
ca um ambiente fabril partindo o regresso prisional ao planeta Terra de Alcide Ni-
de dispositivos de vigilância, kopol. Após cumprir uma pena de três décadas no
operários ordenados e edifica- exterior orbital, o protagonista encontra um territó-
ções puristas para discutir temas rio Parisiense sob jugo fascista e dividido em dois
de condição social e colectiva. distritos (à imagem do que acontece em Nineteen
No caso da cultura arquitectó- Eighty-Four):
r um central para os privilegiados; e um
nica, nestas mesmas décadas de periférico para o operariado e a miséria. Na mes-
furor e fulgor épico modernista, ma década, poder-se-á ainda referir um filme como
Le Corbusier propõe, de resto,
o conhecido Plan Voisinn (1925)
como solução canónica e algo
impositiva de reconstrução da
cidade histórica, quase conju-
gando as diferentes abordagens e desocupada, produzindo um
já referidas na ficção. campo pós-nuclear inóspito e
Saltando para o pós-Guerra perigoso. As galerias subterrâ-
chegam os anos 1950, onde, no neas da cidade, especificamente
caso da cultura arquitectónica, as do Palais de Chaillot,t servem
tudo se parece reequacionar e então de abrigo e asilo aos seus
reescrever; mesmo quando se personagens. La Jetéee trata, es-
projecta o futuro. As posições sencialmente, de importância
teóricas e práticas tornam-se da memória segundo um meca-
particularmente impactantes e nismo clássico e caro à fc como
expressivas e um projecto como a viagem no tempo. Por outro
o da Ville Spatialee (1958), de lado, em Alphaville: une Étrange
Yona Friedman, permite lançar Aventure de Lemmy Cautionn (1965),
a ideia de matriz sobreposta de Jean Luc Godard, os espaços
mas contextualizada enquanto são secos, limpos mas austeros.
resposta ao modernismo mais Se a rudeza do filme de Marker
ortodoxo e rígido lançado cerca implica uma certa dose de ro-
de 30 anos antes por Corbu. mantismo, a sofisticação dos
Na década de 1960 regres- computadores e o purismo dos
sa-se ao preto e branco. La Jetée corredores do parisiense Scribe
(1962), a obra-prima de Chris Hotell no filme de Godard pro-
Marker, é um filme12 apocalípti- vocam o desconforto daqueles
co cuja narrativa segue as con- espaços e uma certa dose niilista.
sequências de uma suposta 3ª Avance-se pois até à década de
Guerra Mundial. A superfície 1980 na qual, seguindo uma di-
da cidade encontra-se destruída ferente abordagem pós-nuclear,
60 /// BANG!
apresentam um território pós-apoca- Mais recentemente, já nesta década, é
líptico, de areia e destroços, percorrido editada Lisboa no Ano 20000 (2012), uma
por uma equipa de acidentados de um antologia coordenada, também, por
avião. Barreiros. Embora, neste volume, não
Na década de 1990 é de apontar O haja futuro mas retrofuturo, há sempre
Limite de Rudzkyy (1992), de António de uma cidade a fazer de espaço útil para
Macedo, uma história na forma de car- as ansiedades presentes e desejos vin-
tas compiladas e que coloca, na cidade, douros.
o Instituto de Tecnologia Industrial de
Lisboa (ITIL), organismo de ciência e
avanço tecnológico e lugar de testes e
teoremas exigentes mas perigosos. Os
Minino da Noitee (1993), de José de Barros
(aka João Barreiros), critica uma condi-
ção europeia que se prevê agonizante
e desumana. Crianças órfãs são alvos a
abater e em constante movimento, são
personagens que tanto se movem na
urbe lisboeta por mecanismo de defesa
como por desejo de abrigo.
No começo do Século XXI publica-se,
nesta revista, pelo menos dois artigos
com propostas para a cidade de Lisboa
no futuro. Ambos escritos pelo mesmo
autor acima mencionado, João Barreiros,
os contos Fantascom14 (2008), na Bang #3,
e O Turno da Noitee (2011), na Bang #10,
utilizam a cidade como área de conver-
gência narrativa. No primeiro caso, tra-
ta-se de uma cidade de cultura e ironia;
no segundo caso, trata-se de uma cidade
de electricidade e ofício. Em cada um
deles há centro e periferia: no primeiro,
há hotéis Xeratonn e aeroportos na Ota;
no segundo, há edifícios-sede em Alcân-
tara e sub-estações no Seixal. Há ainda o
caso singular de Uma Noite Não São Dias
João Rosmaninho (n. 1979) é licenciado
(2009), de Mário Zambujal, obra de um em arquitectura e mestre em ciências da
autor não necessariamente reconhecido comunicação. É docente na Universidade
pelas suas ligações ao género, e cujo elu- do Minho onde desenvolve, actualmente,
cidativo sub-título acaba por antecipar investigação de doutoramento sobre as
desde logo uma narrativa de intriga e pai- relações entre as cidades e o cinema.
Todos os seus campos de interesse
xões no esquisito ano de 2044. convergem na ficção.
[1] A primeira das Feiras Mundiais tem lugar em [5] Talvez seja abusivo fazê-lo mas não deixa de não esquecimento de um porco voador gi-
Londres no ano de 1851. A mega-estrutura de aço ser interessante notar que a obra Mechanization gante, replicando o da capa do disco Animals
e vidro que foi o Palácio de Cristal (1951), dese- Takes Command (1948), de Sigfried Giedion, é (1977), da banda Pink Floyd; uma segunda é
nhada Joseph Paxton, convoca decisivamente publicada nesta altura. esse edifício assumir-se como uma espécie de
um carácter entre uma possibilidade real e uma [6] Este filme originou, ainda, uma sequela in- Arca da Humanidade, conservando a cultura
elegante impossibilidade ficcional. titulada Quatermass and the Pit (1967), de Roy e a própria existência humana, em objectos
[2] Que se estende praticamente desde a década Ward Baker. cristalizados (como a estátua de David, de Mi-
de 1840 à de 1900. [7] Cuja base, o romance homónimo escrito chelangelo).
[3] Esta obra teve duas adaptações para cinema: por Anthony Burgess em 1962, apesar de não [11] O livro foi descoberto e resgatado para
em 1956, por Michael Anderson; e em 1984, mencionar Londres, directamente, mantém re- publicação apenas em 1989.
por Michael Radford. ferências a cidades como Manchester e Mosco- [12] Ou um photo-roman, como se descreve no
[4] É sabido que, no final da década de 1940, o vo, por exemplo. genérico da própria obra.
tecido urbano da cidade ainda permanece feri- [8] Numa referência e reverência a Hugo [13] O último livro da Trilogia, cujo título é Froid
do pelos bombardeamentos da 2ª Guerra Mun- Gernsback o fundador da Amazing Stories. Equateur (1992), altera o lugar e o tempo da ac-
dial. Seria necessário cerca de uma década para [9] Esta obra tem uma versão cinematográfica ção para o coração de África, Equador City, em
se voltar a equacionar o crescimento urbano (não autorizada por Alan Moore, como vem 2034.
sustentado de Londres, como o prova os County sendo hábito) realizada por James McTeigue e [14] Este artigo talvez tenha a sua origem no
e Greater London Plans, de Patrick Abercrombie, datada de 2006. conto LisCon 2060 (1993) da autoria do pró-
decorrentes dos estragos do blitz. [10] Duas curiosidades: uma primeira é o prio Barreiros.
BANG! /// 61
duardo Spohr é hoje um calipse, o seu primeiro romance. Sei dades para comercializar como quiser.
nome popular entre os que a Internet foi essencial para al- Eu decidi arriscar, me inscrevi e mais de
nerds brasileiros. cançar o sucesso. um ano depois, em 2007, veio a notícia
A história do seu Como todo escritor, sempre tive a von- de que eu tinha vencido o concurso.
sucesso é já conhecida. tade de escrever e criar histórias. Minha Com esses 100 livros em mãos, fiz
Tudo começou quando ganhou um con- primeira tentativa foi aos 6 anos de ida- uma parceria com o site Jovem Nerd,
curso literário que lhe permitiu publicar de, logo ao me alfabetizar, quando dese- cujos donos eram (e ainda são) meus
100 exemplares do seu primeiro roman- nhei e roteirizei uma história em quadri- amigos e leitores, para vender os exem-
ce A Batalha do Apocalipse. O autor pro- nhos sobre um menino que encontra um plares por meio da loja online que eles
pôs uma parceria aos seus amigos do site alienígena e fica amigo dele – claramente mantinham. Os 100 primeiros livros fo-
Jovem Nerd que venderam na sua loja inspirado no filme “E.T., o Extra-Ter- ram vendidos em apenas 5 horas, o que
online todos os livros numa questão de restre”, de 1982. nos obrigou a produzir mais 500, e de-
horas. Dos 100 exemplares, rapidamente Continuei escrevendo romances e pois mais 4 mil livros.
passou às 4 mil unidades. contos de forma amadora, mas nunca O sucesso da produção indepen-
O sucesso da sua edição de autor tinha conseguido completar um livro, do dente chamou a atenção das editoras,
chamou a atenção da editora Record começo ao fim. Quando fiquei desem- em especial da editora Record, que em
que, em 2010, o convidou a publicar A pregado, em 2003, decidi que aquele se- 2010 me convidou a publicar “A Batalha
Batalha do Apocalipse. Mas a escrita não ria o momento certo para eu colocar no do Apocalipse”. O irônico é que apenas
ficou por aí. Em Maio deste ano, Edu- papel uma história que estava há anos na cinco anos antes, nenhuma editora se in-
ardo lançou lançou Anjos da Morte, o 2.º minha cabeça, e que mais tarde viria a ser teressara por meus títulos – esse interesse
volume da série Filhos do Éden e prepa- chamada de “A Batalha do Apocalipse”. só veio a acontecer depois que “A Bata-
ra o terceiro e último, Paraíso Perdido. O Conclui a obra em 2005, e então ha- lha” se tornou um sucesso independente.
reconhecimento tem sido global e o seu via chegado a hora de enviar o material Não guardo mágoas das editoras
primeiro livro já vendeu mais de 600.000 às editoras. Para não mandar as folhas que no começo me rejeitaram, claro que
exemplares no Brasil. Apesar de uma soltas ou presas em espiral, fui em uma não – pelo contrário. Essa rejeição inicial
agenda bastante preenchida, o autor, su- gráfica e produzi, eu mesmo, 30 livros foi justamente o que me forçou a correr
per amável, arranjou tempo para conver- com acabamento semi-profissional, com atrás do meu sonho com minhas pró-
sar com a revista Bang! e partilhar umas uma bela capa, orelhas, contra-capa e prias pernas, conquistar o meu público e
dicas preciosas com os nossos leitores. tudo mais nesse sentido. me fez aprender muito ao longo do pro-
Essa mesma gráfica, na época, estava cesso. Hoje, a maior parte dos meus lei-
Fale-nos um pouco do seu percurso oferecendo inscrições para um prêmio tores fiéis já me conhece há anos, temos
de publicação de A Batalha do Apo- literário: o ganhador receberia 100 uni- uma relação muito boa e sincera.
62 /// BANG!
Todas as O seu pai era piloto de aviões norte-americanos. Já publicações
e viajou imenso com ele por como Hellblazer e Preacher me
pessoas têm todo o mundo. Essa infância interessavam por explorar perso-
um potencial e adolescência em constante nagens anjos e demônios, assun-
interação com outras culturas to que sempre me fascinou.
divino, o poder influenciaram a mitologia que O RPG é uma ferramenta
de fazer coisas criou nos seus livros? de criatividade fascinante, que
De certa forma, sim. Não que proporciona ao mestre do jogo
incríveis, mas as viagens tenham influenciado a possibilidade de inventar uma
às vezes esse diretamente no cenário de fan- história e testá-la imediatamente
tasia que eu descrevo em minhas com seu grupo de jogo, que o
potencial está obras. O que elas (as viagens) me ajudará a ampliá-la e enriquecê-la.
adormecido. proporcionaram foi a convivên- O RPG também pode ajudar
cia com culturas e povos muito um escritor e criar personagens
Está em diferentes, o que me fez compre- ricos. Quase todos os persona-
nossas mãos endê-los e respeitá-los. gens dos meus livros foram cria-
Essa postura, de respeito e dos por amigos meus em sessões
despertar esse compreensão me ajudou a, mais de RPG – assim, sempre que, ao
potencial, tarde, estudar várias mitologias, escrever um capítulo, eu tinha
crenças e tradições sem precon- dúvidas sobre como um persona-
escolher nossa ceitos, com um olhar aberto, am- gem deveria agir, eu pensava em
trilha. plo e interessado. como o jogador agiria ao contro-
E foi com esse olhar interes- le do personagem, e até os diá-
sado que eu descobri que todas as logos soavam mais consistentes,
histórias mitológicas seguem um menos artificiais.
mesmo padrão universal, padrão O RPG é uma ferramenta de
que também é adotado por mui- criação coletiva, que auxilia o es-
tas obras populares, no cinema, critor em seu trabalho, trabalho
nas histórias em quadrinhos, na esse que em circunstências nor-
literatura, no teatro. Esse “pa- mais seria um bocado solitário.
drão”, conhecido como “a jor-
nada do herói”, tanto nos cativa De onde vem esse intenso fas-
porque está baseado em etapas cínio pelo Apocalipse e pelo
narrativas que são metafóricas, corpus mitológico do Velho e
e que podem ser observadas em Novo Testamento que deu ori-
nossas próprias vidas – todos gem ao Spohrverso?
nós, de uma forma ou de outra, Estudei em uma escola católica,
já assumimos papéis arquetípicos, fiz catecismo e primeira comu-
já passamos por situações difíceis, nhão, e cresci dentro da tradição
já morremos e renascemos (me- cristã. Talvez o fascínio venha
taforicamente, é claro). daí, mas eu diria que o meu fas-
cínio, de fato, é por todas as cren-
Em que medida a leitura de ças, religiões e mitologias.
BD (HQ) e os jogos de RPG A tradição hebraico cristã é a
influenciaram a criação do seu que mais convivemos no mundo
próprio mundo ficcional? ocidental, é a que mais conhece-
Sem dúvida tanto os quadrinhos mos e a que mais temos contato,
quanto os jogos de RPG repre- por isso talvez eu a tenha esco-
sentaram influências essenciais lhido como tema principal das
no meu trabalho. No primeiro minhas histórias.
caso, o que mais me inspirou Em relação ao fim do mun-
foram as revistas da Vertigo, um do, está muito ligado à minha
selo adulto da DC Comics. infância. Cresci nos anos 80, e
Eu costumava ler histórias de com a iminência de um confron-
super-heróis desde pequeno, mas to nuclear durante a guerra fria
foram nomes como Neil Gai- os livros, filmes e até músicas
man, Alan Moore, Garth Ennis destacavam bastante esse tema,
e títulos como Sandman, Hellbla- de como seria um mundo de-
zer e Preacher que mais me inspi- vastado, destruído pela ação dos
raram. Neil Gaiman e Alan Mo- homens, um planeta a ponto de
ore, por exemplo, foram, ao meu acabar, desprovido de esperan-
ver, os grandes responsáveis por ças.
trazer a filosofia aos quadrinhos
BANG! /// 63
Em Paraíso Perdido de John Milton, a grande figura
literária é Satanás, sendo Deus uma figura ausente
e não tão carismática quanto Lúcifer. Na obra do
Eduardo, A Batalha do Apocalipse, Deus está ador-
mecido e são os arcanjos e outras figuras celestiais
que roubam o protagonismo e movem toda a acção.
O fascínio de todos nós por protagonistas que são
anti-heróis, exilados, rebeldes, são uma forma de re-
flectir na ficção as próprias imperfeições e dúvidas da
Humanidade?
Essa é uma constante mitológica, na realidade. De fato,
a grande maioria dos heróis são rebeldes, de uma forma
ou de outra, figuras que se rebelaram contra um sistema
vigente. É o caso de Jesus, que desafiou tanto os romanos
quanto os sacerdotes judeus; é o caso de Buda, que decidiu
largar a sua nobreza para seguir seu caminho; é o caso de
Maomé, que se insurgiu contra as poderosas famílias de
Brinco com os Meca iniciando a jihad; é o caso de Luke Skywalker, que
se revoltou contra o Império Galáctico; é o caso dos robôs de Isaac
meus colegas, Asimov, que lutavam contra sua própria programação, etc.
também Assim como esses heróis (da realidade e da ficção), nós também
temos dentro de nós o desejo de se rebelar contra as imposições so-
autores de ciais. No fundo, o que queremos é escolher o nosso próprio desti-
fantasia, que no, queremos escolher uma atividade profissional que nos dê prazer
e satisfação, enquanto a esmagadora maioria das pessoas no mundo
passamos são obrigadas a trabalhar em empregos que não gostam, às vezes in- 1
um, dois anos fluenciadas pelos pais, pelos parentes, por amigos ou pela própria so-
ciedade.
escrevendo um É esse grito heróico dado pelos personagens descritos acima que
livro, e o leitor nós desejamos dar, por isso tais figuras tanto nos inspiram, pois tive-
ram a coragem de não ceder às imposições sociais e seguir os princípios
o devora em que acreditavam, mesmo diante da morte.
uma semana, Quanto à questão do Deus adormecido, é também uma metáfora.
Todas as pessoas têm um potencial divino, o poder de fazer coisas
às vezes em incríveis, mas às vezes esse potencial está adormecido. Está em nossas
um dia. Sendo mãos despertar esse potencial, escolher nossa trilha.
assim, o leitor Recentemente, lançou no Brasil Anjos da Morte que segue a his-
vai procurar tória de Denyel, um querubim exilado, que testemunha a histó-
rica bélica e sanguinária europeia do séc. XX. O que o surpre-
outros livros, endeu mais na sua investigação da Europa no tempo das duas
e é bom Guerras, Guerra Fria e queda do Muro de Berlim e nas viagens
recentes que fez?
que o faça, Toda guerra é terrível, mas estudá-las não deixa de ser uma atividade
porque dessa fascinante. O que mais nos impressiona nas guerras é a incrível capaci-
dade do ser humano em se adaptar às situações mais extremas. O ho-
forma ele mem, embora individualmente frágil, é uma máquina de sobrevivência,
irá adquirir um ser que fará tudo o que estiver ao seu alcance para resistir às mais
duras provações.
e ampliar Impressiona também, ao estudar as guerras, como, no momento
o hábito da do desespero e da morte, o ser humano é capaz de se superar, para
o bem e para o mal. É nesses momentos que a nossa natureza aflora,
leitura. mostra a sua face verdadeira. É nesses momentos que nos tornamos
heróis, monstros, santos e selvagens.
Costumo dizer que existem três níveis de pesquisa. O primeiro ní-
vel é por meio da internet, que dará ao escritor uma visão geral sobre
o assunto. O segundo nível de pesquisa é a leitura e o estudo de livros
– é necessários ler livros completos sobre o tema que o pesquisados
deseje se aprofundar. Finalmente, o terceiro e mais profundo nível de
pesquisa é a visita ao local – no caso de Anjos da Morte, visitei os sítios
históricos das duas grandes Guerras e da Guerra Fria.
Visitar o local antes de escrever sobre ele enriquece a narrativa, e
muito, porque dá ao autor uma experiência não apenas intelectual (que
64 /// BANG!
pode ser assimilada por livros), mas prin-
cipalmente uma experiência sensorial,
fazendo com que o escritor conheça não
apenas os fatos, mas as sensações e emo-
ções que o lugar proporciona. Em um
romance, essas sensações serão transmi-
tidas para o leitor por meio do protago-
nista, que é o fio condutor da trama.
BANG! /// 65
te, a Lei do Mais Forte” e des e pequenas) têm descoberto au-
“Lúcio Flávio, Passageiro tores brasileiros e traduzidos, bem
da Agonia”. como lançado coletâneas e roman-
ces. Como encara este boom atual
O Eduardo ministra um de fantástico no Brasil?
curso de “Estrutura Li- Encaro da melhor maneira possível. É
terária”. Que desafios sempre bom ter muita oferta de litera-
apresenta o seu trabalho tura no mercado. O bacana desse ramo
como professor e como (o ramo literário) é que não existe com-
concilia com o seu tra- petição entre os autores. Brinco com os
balho de escritor? meus colegas, também autores de fanta-
É sem dúvida um traba- sia, que passamos um, dois anos escre-
lho que me exige muito, vendo um livro, e o leitor o devora em
mas não há nada mais uma semana, às vezes em um dia. Sendo
prazeroso. Lecionar é para assim, o leitor vai procurar outros livros,
mim uma atividade incrí- e é bom que o faça, porque dessa for-
vel. Não só aprendo com ma ele irá adquirir e ampliar o hábito da
os meus alunos como me leitura.
torno amigo deles. Cada Faço questão de sempre em minhas
turma é uma nova experi- palestras e conversas com o público di-
ência e um novo grupo de vulgar o trabalho de outros autores para
colegas que se forma. quem estiver presente – se mais pessoas
lerem os nossos livros, todos sairemos
A fantasia e ficção cien- ganhando.
S Ó LER NÃ O BAS TA tífica escrita em portu-
https://www.youtube.com/user/tchetchatt guês (brasileiro ou euro- O que os leitores podem esperar do
A HISTÓRIA DE UMA SERVA peu) poderá vir um dia a seu próximo livro, Paraíso Perdido,
MARGARET ATWOOD rivalizar com a fantasia que encerra a série Filhos do Éden?
anglo-saxónica? Gosto de trabalhar com várias camadas
“A História de uma Serva” é uma Difícil fazer projeções para em meus livros. É claro que tratam-se de
distopia que nos apresenta uma o futuro. De qualquer ma- livros de aventura, onde há lutas e muita
possibilidade assustadora: a ins-
tauração de uma sociedade teocrática neira, não acho que exista, ação, mas penso que um romance deve
num país ocidental, que remove todos por parte dos autores, essa ir além disso, deve incluir também uma
os direitos às mulheres, desde o direi- necessidade de rivalizar camada mais profunda, sem soar lento,
to à educação até ao de terem nome com escritores nativos de aborrecido ou professoral. Em minha
próprio. Através do relato na primeira outras línguas. Eu mesmo primeira obra, A Batalha do Apocalipse,
pessoa, conhecemos a história da ser-
va Defred: o seu passado e presente, nunca pensei sobre isso. além da trama e dos combates, explorei
os seus medos e esperanças. O livro Creio que a maior vontade três assuntos que muito me interessam:
centra-se, ainda, na condição feminina, de um autor (se não é, de- filosofia, história e mitologia.
nos ideais e na organização dessa so- veria ser) é escrever a sua Quando comecei a desenvolver a tri-
ciedade. Com uma escrita exímia e carregado de simbolismos, este própria história, para que logia Filhos do Éden, resolvi que cada
é um livro de leitura fácil mas que dá muito em que pensar. / Carla,
Diana e Telma ela seja lida, sem pensar livro focaria um desses aspectos. O pri-
se ela será pior ou melhor meiro deles, Filhos do Éden: Herdeiros de
que o trabalho de um co- Atlântida, é mais filosófico, questiona os
lega. Penso que, enquanto aspectos da vida e a para onde vamos
L EI TO RA DE FIM-DE-S EMANA artistas, não precisamos depois que morremos. Já o segundo, Fi-
http://leitorafimdesemana.blogspot.pt/ nos preocupar em fazer lhos do Éden: Anjos da Morte, é uma obra
melhor do que ninguém totalmente histórica, com uma forte car-
E SE FOSSE UM ANJO – precisamos, sim, fazer o ga de pesquisa. O terceiro, Filhos do Éden:
KEITH DONOHUE melhor possível, o melhor Paraíso Perdido, então, será um livro que
que podemos, sem pensar mergulhará fundo nos aspectos mitoló-
Um livro bastante controverso que em competição ou rivali- gicos, tanto da mitologia hebraico-cristã
na minha opinião merece ser lido.
Este é um livro fantástico, mas que dade. quanto da mitologia nórdica.
para ser apreciado tem que se estar O que Anjos da Mortee teve de realida-
com o estado de espírito correcto. É um Sei que leu muitos livros de, Paraíso Perdidoo terá de fantasia, e leva-
livro que nos fala acerca de anjos. An- portugueses de fanta- rá a série a um nível acima. Herdeiros de
jos esses que nos ajudam e nos guiam. sia e ficção científica na Atlântidaa teve como cenário o Brasil, em
Não tem que ser necessariamente
anjos de auréola de asas, podem ser década de 80 que eram Anjos da Mortee os personagens viajram
pessoas que surgem na nossa vida importados para o Bra- pelo mundo e em Paraíso Perdidoo será a
quando mais precisamos e que por isso sil. Hoje o Brasil tem vez de explorar outros planos e dimen-
mesmo se tornam os nosso anjos pes- uma oferta muito diver- sões.
soais. A escrita do autor é envolvente sificada de publicações
e prende-nos à narrativa, levando a que queiramos sempre mais. /
Joana Cardoso e muitas editoras (gran-
BANG! /// 67
Passei muito tempo a refletir sobre o que realmente
poderiam ser os «Livros das Minhas Vidas», em especial no
que diz respeito aos trabalhos que abrangem os panoramas
da imaginação frequentemente associados à fantasia e a
outras ficções especulativas. Tantas foram as obras que me
influenciaram ao longo dos anos que se torna difícil fazer
uma breve seleção de histórias a analisar sem pelo menos as
contextualizar na minha vida. Assim sendo, começarei por
discutir o conceito de «lugar» e o seu papel na criação das
narrativas que desde há anos me cativam.
68 /// BANG!
do reino celeste de Gälûñ’lätï, os mitos tiva do último século, alguns dos quais
servem-se de elementos naturais (ou da ainda hoje são fontes de inspiração para
sua ausência notória) e criam lugares fan- escritores de todo o mundo.
tásticos onde as histórias sobre verdade, «O Sul» foi mitificado como lugar de
justiça, bem, mal e desespero são repre- calor e humidade estivais sufocantes, de
sentadas numa tapeçaria auditiva que a quintas degradadas e de trepadeiras om-
um tempo cativava os ouvintes (e, mais nipresentes. Até o ar parece por vezes
tarde, leitores) e os levava a pensar nas lembrar plantações arruinadas e casas
mensagens entretecidas nas histórias. carbonizadas. A devastação provoca-
Em séculos recentes, estas mitologias da pela Guerra Civil foi muito além da
fantásticas desenvolveram-se, grosso perda de uma percentagem significativa
modo, segundo temas nacionais. Os in- da população anterior ao conflito ou da
gleses têm a sua «Matéria da Bretanha», destruição de várias povoações e cul-
ou o ciclo de histórias em torno do len- turas. Para muitos, na alma dos sobre-
dário Rei Artur e seus Cavaleiros da Tá- viventes ficou gravada uma impressão
vola Redonda. Em França e Itália temos metafísica: uma espécie de Pecado Ori-
a «Matéria de França» e as histórias sobre ginal social que levaria não só a que os
os Doze Paladinos de Carlos Magno, em pecados dos pais fossem atribuídos aos
especial Rolando/Orlando. O El Cid descendentes até à quarta geração, mas
dos espanhóis representa a Reconquista. também a uma tendência para a perver-
Contudo, todos eles se desenvolveram sidade do orgulho, da fúria e do racismo.
ao longo de vários séculos e, à excepção Embora tal mentalidade não seja total-
do poema épico quinhentista Orlando mente real, sente-se ainda uma espécie
Furioso, surgiram antes das viagens de de «letra escarlate» hawthorniana que
Colombo ao chamado «Novo Mundo». atormenta muitos sulistas, quase como
Quando o último navio da frota de uma cruz que carreguem, tanto pelos
Magalhães circum-navegou o globo em seus próprios pecados como pelos dos
1521, a crença num mundo plano apoia- antepassados.
do em colunas foi derrubada. Todavia, «lugar» no Sul americano é traiçoei- Por mais negativos que esses senti-
a fusão do «lugar» físico e imaginado ro, estando pejado de minas culturais mentos sociais possam ser, não deixam
continuou a dar origem a trabalhos cati- e históricas que podem rebentar se o de levar a um pendor para uma excelen-
vantes, como Os Lusíadass de Camões e O incauto viajante der um passo em falso te literatura prenhe de imaginação. Veja-
Peregrinoo de John Bunyan, onde os luga- que seja. Mesmo 152 anos depois do iní- mos, por exemplo, as histórias do Com-
res metafóricos assumiam uma impor- cio da Guerra Civil Americana, «o Sul» padre Coelho, de finais do século XIX,
tância pelo menos equivalente aos seus evoca ainda conotações de escravatura, início do XX. Estas narrativas acerca de
paralelos reais. Podemos argumentar que da vida nas plantações, do Ku Klux Klan um coelho esperto que leva a melhor so-
graças à predominância do lugar meta- (KKK) e memórias perenes quanto à bre uma raposa velhaca, um urso violen-
fórico e irreal à custa dos locais físicos «Causa Perdida». Estes elementos sórdi- to e outros animais antropomorfizados
«reais» (alterados quanto bastasse para se dos juntam-se de formas bizarras, tendo representam duas vertentes da vida su-
adequarem às necessidades narrativas), a dado origem àqueles que terão sido dos lista, ambas nascidas de um cadinho de
unidade do local e da crença, unidos em melhores trabalhos de ficção especula- contos africanos ocidentais, americanos
mitos que reforçavam os mores sociais, nativos do sudeste e anglo-celtas. Cresci
começava a dividir-se nas ficções «espe- a ouvir a versão feita por Joel Chandler
culativa» e «realista» dos nossos dias. destes contos, onde os personagens são
Até certo ponto, talvez seja lícito apresentados na forma de narrativas
considerar as fantasias como sendo excêntricas contadas pelos trabalhado-
trabalhos «menores». Afinal de contas, res das plantações, sempre com um co-
elas não transmitem a credibilidade dos mentário racista implícito. No entanto,
mitos antigos – não se espera vir a des- as histórias do Compadre Coelho têm
cobrir uma Hobbiton em solo inglês, ainda uma outra conotação, adiantada
embora ainda reste uma ténue esperança por Zora Neale Hurston no seu primei-
distante quanto a um Rei Artur históri- ro trabalho não-ficcional, Mules and Men.
co. O «lugar» nas fantasias modernas as- Aí, o Compadre Coelho desenvolve uma
sume estranheza em relação à realidade resistência subversiva contra a ordem
conhecida. Claro que isso nem sempre estabelecida, e no âmago das fantasias
é assim. Vejamos, por exemplo, a minha encontramos um comentário social ba-
região nativa, o Sul dos Estados Unidos. seado na realidade complexa da socieda-
Ao contrário de praticamente qualquer de sulista pós-Guerra Civil. Estes dois
outra parte da América do Norte an- pólos, a manipulação branca dos mitos
glófona, o Sul possui uma memória de negros para que se adequem à sua visão
lugar tão forte que a própria história se de hierarquia social e a subversão negra
moldou de acordo com as necessidades dessa mesma hierarquia, representam, na
da populaça. forma de fantasia, a topografia cultural
BANG! /// 69
do Sul que chegou à minha infância em a hipótese de restauração. O leitor
finais da década de 1970 e na década de atual procura esse movimento, e
1980. Recordando agora esses contos, com toda a justiça, mas ele esque-
especialmente «O boneco de alcatrão»,
não posso deixar de ter uma visão bipar- ceu o custo associado. A noção de
tida da história: a narrativa de um coelho mal encontra-se diluída, ou total-
esperto que consegue escapar até mes- mente ausente, pelo que esqueceu
mo ao castigo merecido, e uma metáfora o preço da redenção. Quando lê
sobre as batalhas travadas para preservar um romance quer ser atormenta-
uma cultura repetidamente oprimida do, ou então divertido. Quer ser
pelo grupo racial dominante. Tendo em
conta as variações entre as gravações de levado de imediato para uma falsa
Chandler e de Hurston dos contos orais danação, ou então para uma falsa
originais, as histórias do Compadre Co- inocência.»
elho poderão ser das fantasias mais con-
troversas, embora culturalmente impor- Essa «falsa danação» é sentida em toda
tantes, alguma vez produzidas, não só no a sua pujança no primeiro romance da
meu Sul natal, mas em todo o mundo. autora, Sangue Sábio, e no protagonis-
O Sul é ainda conhecido pela sua li- ta Hazel Motes, com a sua «Igreja Sem
teratura gótica sulista, a qual capta com Cristo». Tendo lido por duas vezes o
termos cativantes e eloquentes a mistura romance, a narrativa torna-se ainda mais
de fervor religioso, fé, desespero e ruí- assombrada e grotesca à segunda leitura.
na que ainda hoje parece assombrar os O uso de imagética religiosa por parte
sulistas. Tal como Flannery O’Connor de O’Connor, em especial os símbolos
disse em tempos num ensaio: católicos filtrados através de uma len-
te apocalíptica sulista, serviu de génese
«Creio que se pode dizer que para alguma da ficção mais perturbante
que li na segunda metade da minha vida.
embora o Sul não seja centrado em
Cristo, é de certeza assombrado
por Cristo.»
70 /// BANG!
ce a um tempo a sinopse de um século de logo e as poucas descrições de McCarthy
existência maldita e a história da ascen- criam um ambiente que, à semelhança de
são e queda de uma família. Sempre que O’Connor, mas de maneira ainda mais
regresso ao Yoknapatawpha de Faulkner, forte, captura o desejo de redenção, mes-
é como se visse um Sul passado que exis- mo quando a danação paira, sombria, so-
te tanto a nível metafórico, enquanto um bre a narrativa. Ao contrário do que fiz
lugar que se esforça por se definir num com Faulkner e com O’Connor, que reli
mundo de tradições tacanhas, como na várias vezes ao longo das últimas duas
forma de um olhar penetrante sobre o décadas, ainda não regressei a qualquer
mundo «real» de conflitos raciais e de das histórias de McCarthy, tão assustado-
classe. Ao reler Faulkner depois de co- ras no seu realismo febril que deixaram
nhecer alguns dos autores do realismo os seus contornos gravados na minha
mágicoo latino-americano, como Gabriel mente. Quem lê McCarthy pode esperar
García Márquez e Mario Vargas Llosa, encontrar nas suas narrativas algo mais
ambos citando Faulkner como influên- fantástico do que a fantasia surreal. É
cia, é fácil encontrar nas suas histórias de como se McCarthy, graças ao uso dos
três anos de chuva e da «guerra do fim cenários apalaches rurais, criasse uma fá-
do mundo» os ecos da exploração feita bula negra e retorcida dentro do que à
por Faulkner sobre a forma como os primeira vista parece um trabalho realis-
humanos são modelados pela sua terra ta deprimente. Tal como acontece com
natal e como essas histórias nos criam Faulkner e O’Connor, o lugar torna-se
de um modo que parece absolutamente tanto uma base para o surgimento de mi-
fantástico a quem cresceu longe dessas tos como um local por onde déssemos
tradições torturadas e dessas sociedades connosco a andar.
decadentes.
Sim, a literatura gótica sulista e o seu
primo afastado, o realismo mágico, são egressando à questão sobre os «Livros
percorridos por uma sensação de deca- das Minhas Vidas», talvez seja melhor
dência. A ruína encontra-se na ascendên- dizer que o lugar onde cresci, o Sul dos
cia e não há maior objectivo do que a re- Estados Unidos, é a um tempo o terre-
denção das almas individuais ou sociais. no onde surgem pesadelos fantásticos e
Encontramos ecos disso em várias fan- sonhos febris, e uma região passível de
tasias, especialmente nas fantasias épicas ser encontrada num mapa. As histórias
como O Senhor dos Anéiss de Tolkien (que sobre os seus males e sobre o desejo de
li em criança, mas que, apesar de o ter re- redenção são, tal como diz Shakespeare,
lido várias vezes entre os 13 e os 18 anos, a matéria de que são feitos os sonhos. A
não me cativou grandemente, talvez de- nossa ficção reflecte apenas um estado
vido à sua «estranheza»), mas enquanto mental que poderá ser estranho para os
fantasias de mundo secundário, com os outros, mas que é difícil de ler sem a sen-
seus locais inventados, encontram-se de sação de que algo fantástico se instalou
certa forma afastadas dos objectivos mo- ao lado da vida do quotidiano. Regresso
rais tantas vezes presentes na literatura a essas narrativas de tempos a tempos,
gótica sulista. Embora muitos dos auto- para compreender um pouco mais como
res clássicos de literatura gótica sulista já surgiu esta cultura maravilhosamente in-
tenham morrido, um dos escritores ainda sana.
vivo que se serve dos seus cenários, te-
mas e técnicas é Cormac McCarthy. Em-
bora actualmente McCarthy seja mais
famoso pelos seus trabalhos com am-
bientes western, como Meridiano de San-
guee ou a Trilogia da Fronteira, ele começou
por escrever obras negras, quase depra-
vadas, passadas na região montanhosa Larry Nolen é um professor de História e Inglês que
do Tennessee oriental. No seu romance dá aulas há 14 anos em Tennessee e Flórida em
de 1973 Filho de Deus,s o autor descreve a escolas públicas e privadas. Tem um grande fascínio
vida de um solitário, Lester Ballard, que por línguas que o leva a devotar muito do seu tempo
mergulha tão profundamente na depra- livre a ler e traduzir artigos e entrevistas de portu-
vação (a necrofilia é apenas um de entre guês e espanhol para inglês. A sua primeira tradu-
os seus inúmeros crimes) que em vez de ção, “El Escuerzo” de Leopoldo Lugenes apareceu na
se sentirem repugnados, os leitores talvez antologia ODD? e a sua segunda tradução, “Mister
simpatizem com as transgressões contra Taylor” de Augusto Monterroso na antologia The
a sociedade sulista do início do século XX. Weird: A Compendium of Dark and Strange Fictions.
As breves e entrecortadas tiradas de diá- Tem um blogue em http://ofblog.blogspot.pt/
BANG! /// 71
Qual será o segredo
da série A Guerra dos
Tronos, uma das sagas
literárias mais famosas
da década, com milhões
de leitores em todo o
mundo? Com certeza, a
imaginação sem limites
do escritor George
R.R. Martin e a sua
capacidade de contar
uma boa história são
pontos altos da série.
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lo exiiga, os directores criativos
há muitto o tem
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sabia que eles entende-
Equipa FUEL
NG!! //
BANG
BANG
BA //// 73
7
74 /// BANG!
BANG! ///
/// 75
//
Cartaz da autoria de Pedro Piedade Marques
ntre 15 a 17 de Novembro, os descreve Portugal ocupado pelos nazis. a banca da Saída de Emergência, mesa
leitores poderão aceder a uma Não poderia faltar o novo almanaque de jogos e outras actividades.
programação eclética. As ses- Steampunk de 2013, organizado pelo Em paralelo, encontra-se a decorrer
sões abrem na sexta-feira com grupo Clockwork Portugal e que estará o concurso de fotografia ZORAN-
uma apresentação dos prémios presente para apresentar o Almanaque, FRAMES, promovido pela editora
Adamastor, bem como o respetivo re- assim como a criadora Angélica Elfic. Cavalo de Ferro em colaboração com
gulamento para a edição de 2014. Nel- A SDE irá marcar presença no even- o Fórum Fantástico, com a parceria da
son Zagalo estará presente para uma to através da revista Bang! 15, que es- Sony, da Xerox e da Biblioteca Muni-
conversa sobre a publicação do livro tará disponível no Fórum Fantástico, e cipal Orlando Ribeiro, em torno dos
História dos Videojogos em Portugal. A ilus- haverá uma sessão em que os editores quatro livros do escritor sérvio Zoran
tração no género fantástico marca pre- irão discutir a expansão do projeto Zivkovic traduzidos por essa editora
sença através do convite feito a vários para o Brasil e a nova plataforma digi- em Portugal: A Biblioteca, O Escritor-
artistas portugueses que mostrarão os tal da revista. Fantasma, O Último Livro e Sete Notas
seus trabalhos. Ao fim da tarde, David O inusitado projecto Winepunk pro- Musicais. Os resultados do concurso
Soares, António Monteiro e José Pedro mete muitas surpresas numa divulga- serão anunciados no dia de sábado por
Lopes estarão presentes para conversas ção em exclusivo dos seus primeiros João Morales, e o mesmo será objec-
sobre o horror. materiais literários. to de uma exposição a abrir no FF e a
O Fórum Fantástico trouxe este Ian McDonald termina em grande o permanecer até 7 de Dezembro.
ano a Portugal um convidado de peso: dia de sábado com uma sessão de apre-
o britânico Ian McDonald, autor de sentação do seu livro Brasyl, seguida de O programa completo poderá ser con-
obras visionárias como River of Gods, e sessão de autógrafos. sultado no site:
Brasyl, esta última editada em Portugal O último dia do evento, domingo, http://forumfantastico.wordpress.
pela ASA/Leya. O autor publicou mais conta com as participações de vários com
de 20 romances e dezenas de contos, autores que têm publicado contos fora
ganhando notoriedade pelos seus ar- de Portugal: João Ventura, João Rama-
rojados ambientes de ficção científica lho-Santos, Inês Montenegro e João
em países em desenvolvimento – como Rogaciano.
na premiada trilogia temática composta A sessão de sugestões de livros por
por River of Gods (2004), Brasyl (2007) Artur Coelho, João Barreiros e João Ian Mcdonald
e The Dervish House (2010), cuja acção Campos não poderia
futurista decorre respectivamente na também faltar.
Índia, no Brasil e na Turquia. A secção de banda-de-
A componente audiovisual estará re- senhada do Fórum Fan-
presentada através das curtas Jogo Mal- tástico irá contar com as
dito de David Rebordão, que também participações dos autores
falará do seu projeto cinematográfico, da BD Dog Mendonça e Pi-
RPG. Serão igualmente apresentados o zzaboy, Filipe Melo e os
filme Collider e a série Sangue Frio, assim ilustradores Juan Cavia e
como várias curtas-metragens, com Gustavo Villa, bem como
presença dos realizadores. João Mascarenhas do
O dia de sábado abre ao início da tar- projeto Butterfly Chroni-
de com a apresentação da nova edição cles e Ricardo Venâncio,
da revista Lusitânia, um projeto dedi- com o projecto Hanu-
cado à publicação de ficção especulati- ram, o Dourado.
va de raiz cultural portuguesa. O autor Como tem sido habi-
Luís Corredoura apresenta de seguida tual nas sessões anterio-
o seu livro Nome de Código Portograal, res, haverá feira do livro
uma obra de história alternativa em que gerida pela D. Kartoon,
to quando me lembra, não aparece uma futuro próximo da nossa Terra, onde as
única mulher. Um pouco de chauvinismo massas proletárias se alheiam de uma vida
e culto do macho Alfa não faz mal a nin- de penúria e exploração capitalista, à custa
guém. O que aqui aparecem, em delicio- de espectáculos televisivos de jogos vio-
sas diversidades, são ruínas e artefactos. lentos de massacre. Missão? Passar para
Ruínas de extintas civilizações alie- o tal mundo de
nígenas cujos artefactos, inexplica- fantasia, OVER-
velmente, continuam a funcionar e a WORLD, através
tramar a vida aos colonos humanos. de um buraco
Cabe aos Engenheiros “desligar” os verme, e massac-
s vezes, vindas de um passado pro- sistemas ainda activos ou utilizá-los rar, durante um
fundo, ascendem à superfície peque- para outros fins. Perceber o que raio
nas maravilhas como esta, que julgávamos período de tempo
queriam os alienígenas fazer com
para sempre perdidas. Bem haja o editor limitado, tudo o
aquilo, desde supermetropolitanos à
John Pelan que tem vindo a ressuscitar escala planetária, a estruturas feitas que são elfos, feit-
autores de FC que o tempo e a indiferen- de sombra onde o tempo funciona iceiros, Princesas
ça editorial resolveu enterrar para sempre. de modo diferente. Cada conto seu Guerreiras e Sen-
Colin Kapp será mistério. Cada mistério, com hores das Trevas.
um autor que uma solução que não lem- Como um jogo
provavelmente bra o diabo. O ciclo dos UNOR- de computador tornado real. Hari Michel-
ninguém ouviu THODOX ENGENEERS estava son tem os músculos amplificados, na-
falar. Mas, em- vedado aos fãs desde as edições nomáquinas a correr-lhe no sangue, uma
bora imbuído do esgotadas dos anos 70. Ei-lo que câmara incrustada no olho e uma espada
espírito “pulp”, regressa em todo o seu esplendor. com filamento monomolecular, capaz de
chegou a ser tão E frescura. / João Barreiros cortar carne de orc como nós cortamos
confrontacional manteiga. Os direitos das fadinhas e elfos?
como o próprio Quer lá ele saber, pelo menos de início. O
Alfred Bester. que as Corporações realmente desejam, é
Quem afirma explorar os recursos naturais deste novo
não gostar de ler mundo. Minerais, petróleo, urânio, água
contos, nem sabe não contaminada. Com um humor ácido,
o que perde. Con- uma feroz crítica social ao sistema de cas-
tudo, para quem se atreva a regressar às tas anunciado pelo capitalismo selvagem,
esquecidas glórias da pós-Idade do Ouro
Matthew Stover diverte-se a desconstruir
da FC, aqui está uma mão cheia de FC
todos os clichés dos mundos de fantasia
hard (ou pelo menos tão hard quanto
nos permitiam os idos anos 50). Todos que infelizmente começaram a preencher
os contos desta antologia pertencem ao as estantes das nossas livrarias com um ex-
mesmo universo da Liga dos Engenhei- cesso de palha melosa. A Terra Média do
ros Não-Ortodoxos. Aqueles que pen- maginem um herói de fantasia, à la Co- Tolkien nunca mais será a mesma depois
sam fora da caixa. Aqueles que encon- nan, num mundo recheado de elfos, da “visita” envenenada deste ciborg ul-
tram sempre soluções divergentes para fadinhas, orcs e deuses sequiosos de sacri- tra-hitech que não olha a meios para subir
solucionar problemas aparentemente ir- fícios de sangue. Um mundo onde a ma- na pirâmide social do pesadelo corpora-
resolúveis. Os mal-criados que costumam gia funciona com o mesmo rigor de uma tivo deste nosso futuro já tão próximo.
trocar as voltas à ditadura militar dos equação matemática. Banal? Been there, done A vida é dura para os actores. Absoluta-
planetas ocupados pela espécie humana. that?? Nem pensem. Hari Michelson é um mente a não perder. / João Barreiros
Todos homens, helás.s Nestes contos, tan- actor a soldo das Mega Corporações num
ecentemente consagrado como o
Bertrand lançou recentemente um melhor Álbum Português de BD no
dos clássicos de literatura distópi- Festival de BD da Amadora de 2013, O
ca e uma das mais obras mais influen- Bailee conta a história de um inspector
tes nos estudos feministas. Margaret da Pide enviado para investigar uma
Atwood conta a história de Defred, uma série de ocorrências sobrenaturais
serva na república de Gileade, onde as- numa pequena vila costeira em 1967.
sistimos à descrição de uma sociedade Aparições de zombies e caças a bruxas
distópica em que as mulheres apenas não faltam, mas Nuno Duarte vai muito
existem para procriação, sendo negada para além da mera aventura e o seu herói
qualquer identidade ou possibilidade de improvável demonstra uma tocante
amor. Uma obra audaciosa e marcante profundidade no meio da loucura,
que concebe um futuro negro como opressão e paranóia do regime do
forma de alerta para os perigos do fun- Estado Novo. Uma história bem urdida
damentalismo e extremismo religioso. ao qual o talento de Joana Afonso
provou estar à altura.
ara comemorar os 60 anos decorridos desde a também estará disponível aos visitantes catering e mer-
publicação do clássico de Ray Bradbury, Fahre- chandising temáticos, bem como jogos e entretenimento
nheit 451, a Faculdade de Letras da Universidade relacionados com o universo Whoviano.
do Porto organiza uma série de conferências em
torno da temática “Projectando Futuros Ne-
gros” nos dias 14 e 15 de Novembro. Uma obra distó-
pica que reflecte parte da situação política do seu tempo,
Fahrenheit 451 expôs, por um lado, a censura do Estado,
o conformismo compulsivo e a erosão de ideais demo-
cráticos e, por outro, a forma como os média e a publi-
cidade esmagam o individualismo e criatividade. O filme
de François Truffaut de 1966, que conferiu uma maior
visibilidade à obra literária, fará parte do programa e será
exibido no dia 15 de Novembro.
80 /// BANG!