Becker (1993) Epistemologia e Ação Docente PDF
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enfoque: Q u a l é a questão?
COMPLEXIDADE, MULTIREFERENCIALIDADE, SUBJETIVIDADF: três referências
polêmicas para a compreensão do currículo escolar
Teresinha Fróes Burnham (UFBA) 3
bibliografia 139
painel: APRESENTAÇÃO
CARTA AO LEITOR
RESUMOS DE PESQUISAS
COMPLEXIDADE, MULTIRREFERENCIALIDADE, SUBJETIVIDADE: Essa complexidade que os pensadores contemporâneos nos apresentam, enfatizando
três referências polêmicas para a compreensão do currículo escolar a destruição de formas tradicionais de relação dos homens entre si e destes com o
mundo exterior a si, tem trazido profundas polêmicas, com posições que se opõem
Teresinha Fróes Bumham* dentro de limites que vão desde a consideração da modernidade como um projeto
inacabado, como é o caso de Habermas, passando pelo anúncio da pós-modernidade,
como insiste Maffesoli (apesar da crítica a esta perspectiva como um
A interminável busca do homem pela compreensão do mundo, tanto do seu próprio descompromissado modo de denunciar a decadência de um modelo de sociedade),
mundo interior, quanto daquele exterior, do qual é parte integrante e integrada, tem até aquele que, embora não aceite a pós-modernidade como um marco definitivo de
levado ao incansável processo de construção do conhecimento, pelos mais diversos periodização da história, considera que vivemos (desde a década de 50) um processo
modos. A filosofia, a epistemologia, a antropologia, a sociologia, a psicologia, a de retração no conformismo, a despeito da ocorrência de importantes movimentos na
psicanálise, a pedagogia... têm mostrado a profunda complexidade desse processo, na direção de significativas transformações sociais que, contudo, não conseguiram propor
medida em que a construção do conhecimento sobre o mundo exterior nâo se separa uma nova visão de sociedade, como afirma Castoriadis. As implicações de todas
da construção do próprio complexo sujeito-objeto-processo-instrumento-produto do essas discussões para a educação têm sido objeto de trabalho em alguns centros
conhecimento, que é o próprio homem. universitários de diferentes países, dentre os quais se destaca a Universidade de Paris
VIII, onde pesquisadores como Ardoino e Barbier, entre outros, vêm desenvolvendo
A sociedade contemporânea depara-se numa profunda crise — no bojo da qual e estudos que, quer mais indiretamente, quer diretamente, trazem significativas
permeando todas as suas dimensões, encontra-se aquela do conhecimento. contribuições para uma profunda reflexão e para uma possível e radical transformação
Principalmente de um determinado tipo de conhecimento: o científico-tecnológico, aí na educação, principalmente no que diz respeito à instituição escolar e ao seu papel na
implicada a grande questão das concepções de homem e de sociedade. sociedade contemporânea.
O grande debate sobre o fim da modernidade tem trazido uma fecunda contribuição à Considerando que a escola é uma instituição social, criada na e pela modernidade para
crítica da sociedade tecnológica, principalmente no que diz respeito ao deslocamento a formação dos cidadãos de uma sociedade e que para tal formação é fundamental a
da crítica da supremacia do conhecimento cientifico (como, por exemplo, está colocado construção de sujeitos coletivos, indivíduos sociais, num/para um momento do eu
na teoria crítica desenvolvida pela Escola de Frankfurt) para uma crítica ao primado da permanente, tenso e duplo processo de instituição/continuidade, é importante procurar
tecnologia, especificamente da tecnologia da informação (como precisa Vattimo, 1987, aprofundar o entendimento do papel do currículo para essa construção.
p. 15, nota 12). Além disso, pensadores contemporâneos nos trazem elementos
outros, fundamentais, para uma prospecção bastante critica, tanto da história, "Formar o cidadão!". Expressão tão desgastada no discurso político-educacional, mas
principalmente da historicidade entendida como um modo de consciência da inserção que teve um significado histórico na concepção liberal-burguesa de educação, precisa
do homem na história, considerado como processo objetivo (Vattimo, 1987, p.11), ser radicalmente questionada na atualidade em que vivemos. O que significa ser
quanto da arte, especialmente na perspectiva da "explosão" da estética fora dos limites cidadão nesta sociedade plural, que vai desde a dimensão de uma sociedade
institucionais fixados pela tradição (Vattimo, 1987. p. 46). tecnológica de ponta, até aquela outra, de uma república dos guabirus? Onde as
fronteiras geopolíticas perderam o seu significado e os países considerados — em
função de indicadores econômicos — como de primeiro mundo, abarcam, hoje, no
* Professora-adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia interior de suas respectivas sociedades, todo o espectro dos vários terceiro e quarto
(UFBA). mundos em que (aqueles mesmos indicadores econômicos) dividiram o planeta? Onde
Todo esse questionamento nos remete ao currículo e ao seu significado na sociedade Embora muito limitadamente, queremos trazer para a discussão proposta as
contemporânea. Remete-nos, mesmo, a aprofundar, para melhor compreender, não só concepções de complexidade, multirreferencialidade e subjetividade, que nos têm
a polissemia do termo, como se pode constatar na literatura pertinente, inclusive nos aberto novos caminhos para incursionar pelos fascinantes meandros do currículo
artigos de Pedra e Ribeiro, a seguir, mas ao seu significado como processo social, que escolar. Obviamente, tais concepções são componentes de referenciais teóricos muito
se realiza no espaço concreto escola, com o papel de dar àqueles sujeitos que ai ricos, que o espaço deste artigo não permite tratar devidamente; contudo, resolvemos
interagem, acesso à diferentes referenciais de leitura e relacionamento com o mundo, correr o risco de separá-las do todo do referencial e tratá-las fragmentariamente, não só
proporcionando-lhes não apenas um lastro de conhecimentos e de outras vivências para instigar a discussão que acreditamos merecer o trabalho desses pensadores,
que contribuam para a sua inserção no processo da história, como sujeito do fazer como também para tomar mais coletiva a sua compreensão, a partir da ótica de uma
dessa história, mas também para a sua construção como sujeito (quiçá autônomo) que professora interessada em se aventurar na fascinante complexidade do currículo.
participa ativamente do processo de construção e de socialização do conhecimento e,
assim, da instituição histórico-social de sua sociedade. Na construção desse sujeito, o
currículo significa um dos principais processos, na medida em que aí interagem um Entrando no Emaranhado da Complexidade
coletivo de sujeitos-alunos e sujeitos-professores, além de outros que não estão tão
diretamente ligados à relação formal de ensinar-aprender. Nesta interação, mediada É muito comum ouvir, de professores e outros educadores, que currículo é uma "coisa"
por uma pluralidade de linguagens: verbais, imagéticas, míticas, rituais, mímicas, muito complicada, que trabalhar com currículo envolve um grande desafio, que é difícil
gráficas, musicais, plásticas... e de referenciais de leitura de mundo — o conhecimento ensinar a muitos alunos, porque eles são muito diferentes. Enfim, é comum representar
sistematizado, o saber popular, o senso comum... — os sujeitos, intersubjetivamente, o currículo como uma área de trabalho que traz uma multiplicidade de dimensões e que
constroem e reconstroem a si mesmos, o conhecimento já produzido e que produzem por isso mesmo, requer uma compreensão muito ampla, um grande lastro de
as suas relações entre si e com a sua realidade, assim como, pela ação (tanto na conhecimento para se poder dar conta dessas diferentes dimensões. Os textos de
dimensão do sujeito individual quanto social), transformam essa realidade, num Becker, de Gazzinelli e de Sá, publicados neste número, trazem evidência de que o
processo multiplamente cíclico, que contém, em si próprio, tanto a face da continuidade,
trabalho entre professores e alunos, no concreto de espaços curriculares diferentes,
como a da construção do novo.
mostram essa multiplicidade de maneira bem explícita e nos dão exemplos de
Não é possível, também, através dessa nova análise buscar, no complexo com que 1
Embora Ardoino não tenha empregado esta expressão e se referia ora ao objeto, ora ao
estamos lidando, uma transparência que presumimos existir (no objeto simplificável) e processo, como sinônimos, resolvemos adotá-la para tornar mais ciara a acepção de objeto
que, portanto, podemos (ou devemos?) reencontrar nesse objeto, a partir de um estado do conhecimento como o próprio processo de sua construção.
A perspectiva que permite a possibilidade de trabalhar com uma multiplicidade de A multirreferencialidade externa remete à rede simbólica de referências
CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, VATTIMO, G.Ofim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna.
1982. Lisboa Editorial Presença, 1987.
REFLEXÕES SOBRE CURRÍCULO: foram objeto de discussão nos Grupos de Trabalho de Educação Popular, Metodologia
e Didática e Currículo1.
Sendo a escola um espaço privilegiado de legitimação de alguns saberes em detrimento A defesa de uma perspectiva descontinuísta e pluralista para o conhecimento é, por
de outros, é objeto de estudo da educação o processo pelo qual é priorizada uma dada vezes, compreendida equivocadamente como uma hierarquização axiológica de
forma de conhecimento. Ou seja, quais mecanismos de poder em uma sociedade saberes3. Na medida que essa perspectiva advoga a existência de uma ruptura entre
permitem a validação de algumas formas de conhecimento como verdade, mantendo
outras no terreno da doxa (opinião) ou do mito. 1
Dentre os trabalhos cujo texto tivemos acesso direto, cinco apresentam a problemática da
relação entre saber popular e saber acadêmico/erudito/científico, fazendo ou não menção ao
Através de uma análise dos títulos e resumos dos trabalhos apresentados na 15ª senso comum: Algebaile (1992), Gohn (1992), Moreira e Barros (1992), Pereira (1982) e
Reunião Anual da ANPEd em 1992, constatamos que as questões acima referidas Wortmann(1992).
2
Nesse ponto utilizamos o termo conhecimento cientifico fazendo referência apenas às
ciências físicas, o que nâo implica negar a cientificidade da pesquisa do social. No decorrer do
* Texto apresentado na XVI Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, MG, de 12 a 16/9/93, e trabalho os termos ciência e conhecimento científico são utilizados com o significado de
revisto a partir das discussões no Grupo de Trabalho de Currículo, ao qual agradecemos conjunto das diferentes ciências — físicas, biológicas e sociais —, exceto quando nos referimos
sugestões e incentivos. diretamente ao pensamento de Bachelard.
3
Pessanha (1987), Oliveira (1990) e Lopes (1992). O primeiro trabalho utilizou os referenciais
" Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora de de Chaim Perelman e Gaston Bachelard; os dois últimos utilizaram apenas o de Gaston
Fisico-Química da Escola Técnica Federal de Química do Rio de Janeiro. Bachelard.
Saber Escolar: o currículo e os diferentes saberes Em outras palavras, precisa ser enquanto saber legitimado que os saberes populares
devem constar do currículo, permitindo seu diálogo com os saberes científicos, em
processo de mútuo questionamento, bem como de crítica do senso comum.
Neste terceiro momento nos preocuparemos em discutir a problemática da relação do
currículo com os diferentes saberes, sejam eles científicos ou populares. Por outro lado é preciso salientar, como o fazem Moreira e Barros (1992), que essa
proposta não se coaduna com a limitação dos horizontes do aluno, mantendo-o restrito
Três questões então se colocam como necessárias: ao que já é conhecido por sua comunidade e sua família ou se apegando ao
pragmatismo excessivo8. Ao contrário, visa a tomar os conteúdos que fazem parte do
1) a crítica ao senso comum que permeia todos os saberes;
Concordamos com Chervel (1990) quando afirma que a escola não é pura e Mas a julgar, por pesquisas recentes, abordando o ensino de disciplinas de ciências
simplesmente um agente de transmissão do saber, vulgarizador ou simplificador de um físicas (Lopes, 1990; Oliveira, 1990), podemos elaborar a hipótese de que a escola
conhecimento produzido em outro local (universidades e institutos de pesquisa). Ou brasileira muito mais tem contribuído para transmitir os valores e conceitos do senso
seja, ensinar não consiste apenas no arranjo de métodos que permitam a assimilação comum: não apenas transmitindo equívocos científicos, mas uma epistemologia
rápida e eficiente da maior parcela possível dos conteúdos dos saberes científicos. No associada às concepções realista e antropocêntrica do senso comum. Ou seja, o
processo de ensino-aprendizagem se constrói um saber escolar, muitas vezes bastante potencial criativo da escola, ao qual se refere Chervel (1990), não tem construído um
distante da ciência de referência, sendo esse processo de construção a tarefa dos saber escolar a favor sequer dos saberes científicos.
educadores.
Consideramos, portanto, que não basta discutirmos a necessidade de inserção dos
Dentro da mesma perspectiva segue Fourquin (1992), afirmando que a escola não se saberes populares no currículo — por que fazer? como fazer? Precisamos analisar o
limita a fazer uma seleção entre os saberes e materiais culturais disponíveis em uma processo de apropriação dos conhecimentos científicos pela escola.
sociedade em dada época, tornando-os efetivamente transmissíveis e incorporados
aos alunos a partir de uma "transposição didática" e uma "interiorização" dos saberes Afinal, é enquanto saber científico que o conhecimento escolar é trasmitido. Ou seja, é
em esquemas operatórios ou de habitus. A escola é verdadeiramente produtora de enquanto saber legitimado, dotado de poder que o conhecimento escolar se constitui.
configurações cognitivas e de habitus originais constituindo uma cultura escolar. Como Mesmo quando é rejeitado pelos educandos, por ser considerado saber desinteressante
qualquer produção de conhecimento, não se trata de uma criação a partir do nada, um e sem valor para seu cotidiano, o saber escolar é encarado como verdadeiro, no
começo absoluto, salienta o autor, mas o reconhecimento de uma autonomia relativa mínimo válido e importante para alguém: cientistas, especialistas em geral e
da instituição escolar frente aos saberes construídos na sociedade. professores.
A distinção entre a epistemologia do saber científico e a epistemologia do saber escolar A análise da epistemologia do saber escolar permite, portanto, a compreensão desta
também é apontada por Wortmann (1992) e Develay e Astolfi (1990), embora no rede de significados que a escola produz e das concepções de ciência e conhecimento
sentido de uma maior preocupação com o processo de transposição dos saberes, que produzidas no espaço escolar. Concepções essas que vão se introduzir na sociedade
os despersonaliza e os descontemporaliza. como um todo, mesmo entre os não freqüentadores dos bancos escolares.
GOHN, M. Saber popular e saber científico. Trabalho apresentado na 15ª Reunião OLIVEIRA, RJ. Ensino: o elo mais fraco da cadeia científica. Rio de Janeiro, 1990.
Anual da ANPEd, Caxambu, set. 1992. Dissertação (Mestrado em Educação)— IESAE, FGV.
GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, PEREIRA, G. Ensino e imediateidade. Trabalho apresentado na 15ª Reunião Anual da
1978. ANPEd, Caxambu, set. 1992.
HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. PESSANHA, J.A.M. Cultura como ruptura. ln: CULTURA brasileira: tradição/
contradição. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
HELLER, A. Sociologia de Ia vida cotidiana. Barcelona: Península, 1991.
SANTOS, B. de S. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
HEWSON, P., HEWSON, M. An appropriate conception of teaching science: a view
from Studies of science learning. Science Education, v.72, n.5, p.597-614,1988. WORTMANN, M.LC. Conhecimento acadêmico x conhecimento escolar, o conteúdo
da disciplina Prática de Ensino. Trabalho apresentado na 15ª Reunião Anual da
KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. ANPEd, Caxambu, set. 1992.
O produto do processo de investigação da realidade é concebido como sendo neutro, A investigação do significado do conhecimento mostra que o processo de produção do
objetivo e universal. Nesta condição de produto, ele não manifesta a dimensão conhecimento é um processo de interferência do homem sobre o real e do real sobre
ideológica que perpassou todo o processo de aproximação do real. O conhecimento- o homem, isto é, um processo de interação que envolve o sujeito e o mundo. Sendo um
produto é a exposição de um determinado momento do real. Embora tenha todo um processo que conta com a presença do homem, ele é histórico e é ação. Enquanto
dinamismo próprio, é o momento mais "parado" do real. É o momento em que o homem processo de descobrimento do real, a "verdade" do mundo e do homem não é dada; é
tem a ilusão de "segurar", de "prender" a totalidade. O produto é o resultado buscada. E nesta procura ela é construída, marcando o homem e o mundo,
provisoriamente estático, encarcerado do real. transformando o homem e o mundo, deixando gravadas no homem e no mundo as
marcas da ação do homem sobre o mundo e do mundo sobre o homem.
Este momento da "estaticidade" do conhecimento-produto, este momento da
"estaticidade" do saber ocorre basicamente na circunstância da ciência ensinada Sendo o processo de desvendamento do mundo distinguido pela interrelação homem-
quando o que é transmitido aos alunos é "o resultado de tateamentos, de erros realidade, a ideologia passa a ser categoria importante para se compreender o
corrigidos" (Japiassu, 1982, p.61), isto é, o conhecimento simplificado e organizado significado do conhecimento na medida em que o sujeito está presente nesta relação.
que esconde o dinamismo de um processo historicamente determinado. Assim, a O homem traz consigo valores, sentimentos e experiências históricas, compreensivas,
condição do conhecimento de ser produto se distancia da sua condição de processo, que determinam a sua ação e que estão incorporadas ao produto da sua ação, mesmo
que é a ciência em formação, dotada de um dinamismo caracterizado pela possibilidade que a sua ação seja a de revelação do real e o produto da sua atividade seja o
do erro e do acerto, pelo tateamento, pela existência de avanços e de recuos e, acima conhecimento enquanto corpo de informação sobre o mundo.
de tudo, dinamismo marcado pelas perspectivas do passado e do futuro, pela
perspectiva da história, da temporalidade. 0_caráter revolucionário do conhecimento-processo e do conhecimento-produto é
marcado pela questão da historicidade. O conhecimento é produto histórico. O
Uma questão que não pode ser descuidada diz respeito à interação entre processo e O conhecimento-processo é a própria história, é a experiência da história, da existência
produto do conhecimento. A acumulação de conhecimentos anteriores — produto — é social. E é no momento da história que as contradições intrínsecas, próprias a toda
fundamental para a realização do processo de desvendamento do real. No momento relação social aparecem. O conhecimento-produto encobre a realidade conflituosa do
do processo, a ideologia e a acumulação dos conhecimentos anteriores — produtos — aparecimento das idéias e da constituição do saber científico através da apresentação
estão presentes e são condições intrínsecas e necessárias à plenitude do processo de de informações aparentemente harmoniosas, organizadas, lógicas. O conhecimento-
Em outras palavras, as ciências humanas e sociais têm se voltado, muito mais, para
mudar o real humano e social do que para se apropriar teoricamente deste real. Elas se
converteram em "práticas-técnicas e/ou ideológicas de manifestação da realidade Referências Bibliográficas
humana individual e social" (Japiassu, 1982, p.13). Reconhecemos que o conhecimento
científico tem sempre um compromisso social, mas entendemos que é necessário BENJAMIN, W. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987. v.1 e 2.
discutir como se dá esse compromisso, pois o compromisso da ciência não se limita a
apenas pensar e propor alternativas concretas de ação. Estas são elaboradas também DEMO, Pedro. Metodologia cientifica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
no processo de interação social, nas relações políticas que marcam a existência
cotidiana e complexa do sujeito da história. . Introdução à metodologia da ciência. São Paulo: Atlas, 1987.
Introdução O termo currículo, por exemplo, já foi definido: 1) como uma série estruturada de
resultados; 2) como um conjunto de matérias; 3) como conjunto de experiências que os
Existe entre a educação e a cultura uma relação íntima e orgânica, seja a educação estudantes desenvolvem sob a tutela da escola e 4) como intento de comunicar os
entendida em seu sentido amplo ou restrito, como a escolar, por exemplo. Tanto em princípios essenciais de uma proposta educativa. Ultimamente, vem sendo entendido
um sentido quanto no outro, é inevitável a idéia de alguém exercendo uma "ação como uma seleção de conhecimentos extraídos de uma cultura mais ampla.
educadora" sobre outro alguém.
Trata-se, então, de um termo polissêmico? Não nos parece que seja exatamente isso.
Tal "ação educadora" supõe a transmissão e a aquisição de conhecimentos, valores e Considerar a multiplicidade de definições curriculares como um caso típico de
atitudes valorizados por aquela cultura. No entanto, os "conteúdos" culturais disponíveis polissemia é um modo de obscurecer, no horizonte da investigação, o mais instigante:
extravasam ao tempo físico definido para a "ação educadora" dos sistemas escolares, a lógica de tal multiplicidade.
razão pela qual aparece, na perspectiva temporal, a necessidade de selecionar da
experiência cultural alguns conteúdos, aqueles que integrarão o currículo escolar. Fixemos, para começo, que o termo currículo surge, na literatura educacional, no início
Ortega y Gasset (1955), já alertara que um dos problemas da educação será sempre do século XX, — nos Estados Unidos — quando a industrialização toma impulso e a
o da inclusão e eliminação de conhecimentos, ou seja, o da seleção de conteúdos necessidade de mão-de-obra industrial se impõe de modo definitivo.
curriculares.
A industrialização fez-se com a expropriação do saber artesanal, produzindo em escala
Como se dá e por que deste modo se dá a seleção? É a questão central deste trabalho. industrial o que antes era produzido em escala familiar. O "saber fazer", que era
Nâo pretende ser uma resposta, mas uma busca de caminhos alternativos para patrimônio familiar, passa ao "poder fazer" industrial.
investigá-la.
Depois de ter expropriado as famílias de suas ferramentas de produção, concentrando-
as na fábrica, os industriais, durante as primeiras décadas do século XX, passaram a
Algumas Definições Preliminares expropriar também os conhecimentos técnicos do operário. Utilizando-se da 'direção
científica' parcelaram o processo de produção, atribuíram uma função específica a
Currículo e conhecimento, tais como aqui serão entendidos, necessitam ser cada operário na linha de montagem e guardaram para si próprios o conhecimento do
processo produtivo como um todo. (Lasch, 1991, p.41-42)
As teorizações de Dewey sobre a educação e o currículo representaram uma certa Tal compreensão começou a tomar consistência no final dos anos 60, quando teve
síntese de tais movimentos em uma América que abandonava o sistema rural e início, na Inglaterra, uma tendência que pretendeu submeter o currículo à análise
transformava-se em uma América fabril e urbana; que aprofundava cada vez mais a sociológica. Tal tendência mostrou-se a público por ocasião da Conferência Anual da
brecha existente entre exploradores e explorados, possuidores e não-possuidores. British Sociological Association, em 1970, conquanto se considere como, "livro
(Tudela, 1988, p.160) fundador, a obra publicada por Michel Young em 1971, cujo título é a explicitação da
nova tendência: Knowledge and Control: new directions in the Sociology of Education.
O eixo de referência de Dewey não se centrava nos princípios da Administração
Científica, mas na experiência da cultura. Se Bobbitt entendia o currículo como um A obra, como pretenderam alguns, era um "novo paradigma teórico" para os estudos do
conjunto de estratégias para preparar o jovem para a vida adulta; Dewey o compreendia currículo. Seguramente uma impropriedade, se o termo "paradigma" for tomado em
como o ambiente que era fornecido ao estudante para experenciar a vida mesma. sentido kuhniano, pois a "Nova Sociologia" — como ficou conhecida a tendência —
(Dewey, 1967) estava sendo estruturada sob bases teóricas alternativas (Durkheim, Marx, Max We-
ber, George Mead, Schutz, Mannheim).
O pensamento bobbittiano — ainda inédito na língua portuguesa — não chegou a
influenciar o pensamento educacional brasileiro, mesmo porque, a cada obra que Assim é que, entre os "fundadores" da "nova sociologia", a abordagem de Bernstein,
publicava, Bobbitt mais se afastava do seu pensamento originário. Em 1934, quando por exemplo, aparece com uma grande influência da Sociologia durkheimiana, Esland
foi solicitado a apresentar uma declaração que sintetizasse sua teoria sobre o currículo, prefere a fenomenologia e Young parece mais próximo do marxismo (Fourquin, 1984).
repudiou de modo quase radical o seu trabalho anterior (Kliebard, 1980). Mas, a
influência do pensamento de John Dewey foi decisivo na construção do pensamento Paradigma ou não — embora o termo "tendência" seja mais adequado — este
curricular brasileiro. movimento trouxe para o estudo do currículo aportações ignoradas até então. O fato de
aparecer, em seu início, como um conjunto variado de referências teóricas, é de menor
Já é possível perceber, com este rápido retrospecto, que as definições do termo importância. O fundamental é que o movimento estabeleceu, definitivamente, novas
currículo não são coisas dadas, coisas que estão aí, pertencentes à natureza, à espera bases para a investigação e compreensão do currículo.
daquele que primeiro as alcance. São, antes que isso, produções humanas e, como
tais, carregam as marcas do tempo e do espaço sociais de suas construções. Retomando, de certo modo, o estímulo de Mannheim em favor de uma sociologia da
educação sustentada pela sociologia do conhecimento, a nova sociologia, ou a
E no entanto, o currículo nem sempre foi objeto privilegiado das análises sociológicas; "sociologia do currículo", começou trabalhando com o pressuposto de que "o modo
Mas, quais conhecimentos são objetos da seleção? É inevitável que se levem em consideração estes três conjuntos quando se organiza
um determinado currículo, mesmo porque não faria qualquer sentido selecionar
É necessário reconhecer, em primeiro lugar, que se toma improdutivo entender conteúdos sem ter por referência seus destinatários, o estado do conhecimento
conhecimento como um conjunto articulado de "verdades que podem ser confirmadas". científico e a realidade cotidiana da cultura.
Compreensão que tomou uma forma sutil e acabada nos estudos sobre "a estrutura do
conhecimento". Tais estudos partiam do pressuposto de que os conhecimentos A questão, no entanto, não é esta, pois a seleção de conteúdos curriculares, mais que
(conteúdos curriculares) tinham uma estrutura que lhes era própria. Os conhecimentos, uma atividade racional, é, sobretudo, um processo no qual múltiplas esferas (sociais e
então, seriam melhor dominados, pelos alunos, se tais estruturas fossem estabelecidas individuais) de mediações se intereruzam, construindo e reconstruindo aqueles
Um certo tipo de leitura de Marx conduziu, no entanto, algumas investigações sobre a Afastando as armadilhas da ortodoxia, é possível elaborar hipóteses mais amplas
educação e o currículo a uma compreensão contrária, a um beco sem saida; pior que sobre a seleção do conhecimento no currículo escolar. É possível trabalhar, por
isto, instaurou a desesperança na possibilidade de se utilizar a educação como uma exemplo, com a hipótese de que a relação "currículo e conhecimento" não se encontra
das forças sociais para a emancipação, ao acreditar no poder absoluto das classes determinada, uma vez por toda, pela infra-estrutura econômica. É possível, também,
dominantes na seleção e distribuição do conhecimento (Kemmis, 1988). Giroux (1986, trabalhar com a idéia de que a seleção dos conteúdos curriculares dá-se por mediações
p. 162-163) denunciou um dos erros em que tais investigações incorriam: e não por determinações e que, absolutamente, não se esgota nas decisões provindas
dos "aparelhos do Estado".
As teorias radicais de escolarização têm sido moldadas em versões
positivistas do marxismo que congelavam o momento dialético de incerteza É possível, então, reconhecer alguns níveis de mediação pelas quais a seleção do
do comportamento humano, e optavam pela parte da formulação marxista conhecimento se dá — níveis não hierárquicos, evidentemente, e tampouco etapas de
clássica que enfatiza que a história é feita de fato 'peias costas' dos um processo de decantação pelo qual a seleção iria assumindo forma mais pura. São,
membros da sociedade. A noção de que realmente as pessoas fazem a mais apropriadamente, níveis de resistências e reconstruções.
história, incluindo suas coerções, parece ter sido negligenciada nessa
formulação.
O Nível Jurídico
Ou seja, subjaz a este legado do marxismo ortodoxo um historicismo positivista e uma
ênfase demasiadamente unilateral na suposta força de determinação do processo de O primeiro de tais níveis assume "uma das formas empregadas em nossa sociedade
produção. É um legado "animado por uma recusa a proceder a análise da vida diária, para definir tipos de subjetividade, formas de saber e, em conseqüência, relações entre
nas quais a subjetividade e a cultura possam ser tratadas como mais do que um reflexo os homens e a verdade": a forma juridica. (Foucault, 1980, p.17)
das necessidades do capital e suas instituições". (Giroux, 1986, p.163)
Tome-se, como exemplo, os debates em tomo da Lei de Diretrizes e Bases da
O currículo escolar, tanto como os demais aspectos da vida social, está impregnado e Educação Nacional, os quais tiveram início na década de 34, quando a nova
modelado por ideologias. Nada há de estranho, assim, em considerar que as ideologias Constituição (a de 34) inovou ao atribuir à União competência para traçar as diretrizes
dominantes nos conteúdos curriculares reflitam as formas ideológicas dominantes na e bases da educação nacional e observe-se o resultado jurídico (Lei 4.024/61).
cultura de uma sociedade. No entanto, o fato de ser dominante indica que existem
outras ideologias com as quais deve concorrer para manter-se enquanto tal. Tal Era uma matéria polêmica e, ademais, como ocorria pela primeira vez em um texto
concorrência dá-se, não de uma vez por todas e em um tempo e lugar específicos, mas constitucinal brasileiro, não se tinha muito claras as questões e dificuldades que
cotidianamente, no interior das relações sociais. adviriam. Havia, não obstante, dois projetos pedagógicos concorrentes: o dos Pioneiros
O projeto pedagógico do grupo católico não se reduzia à defesa da escola particular. O A segunda posição prevalecerá como uma forma conciliadora, não apenas no meio
que se defendia (e como se defendia), era uma determinada compreensão do mundo dos Pioneiros (ou escolanovistas), mas entre os grupos envolvidos no debate.
e do homem. A questão fundamental, defendida pelos católicos, não foi a escola
particular, mas o ensino religioso. Se a ideologia que sustentava o Projeto dos Pioneiros Seria impossível tratarmos aqui do confronto entre os Pioneiros e os pensadores
deve ser buscada na filosofia de John Dewey, a do grupo católicos deve ser buscada católicos com todo o colorido e dramaticidade que merece. O senso de medida e
nas encíclicas Rerum Novarum e Divini lllius Magistri. oportunidade indica ser mais prudente deixar que as muitas lacunas sejam preenchidas
pelas inúmeras obras disponíveis no mercado que tratam particularmente do tema.
Sem religião é "impossivel, teórica e praticamente, formar homens", escreveu Leonel Nossa intenção foi a de — e somente—indicar a presença de dois grupos organizados,
Franca, e acrescentou, considerando que a educação — por princípio — é uma função com ideologias nitidamente diferentes, Confrontando-se na definição das bases jurídicas
inerente e inseparável da missão natural da familia: "o professor, público ou particular, que dariam estrutura e regulamentariam o funcionamento da educação nacional e,
é, por função, um delegado e representante da autoridade paterna. Não lhe assistem conseqüentemente, os modos pelos quais o conhecimento escolar seria selecionado,
direitos contra os direitos das famílias." (Franca apud Villalobos, 1969, p.12) distribuído e avaliado.
O debate não se encerraria nos anos 30. Duraria mais 31 anos, até a aprovação da Lei A Lei nº 4.024 de 20 de dezembro de 1961 é uma síntese de trinta anos de debate.
de Diretrizes e Bases da Educação, em 20 de dezembro de 1961. A questão que fora Nela ficaram consagrados alguns dos ideais dos pensadores católicos tanto quanto
polêmica nos anos 30 — a educação religiosa — cedeu, lentamente, dando lugar a dos Pioneiros e, ademais, foram incluídas (poucas, é verdade) soluções provindas de
uma outra questão que já estava latente e monopolizaria os debates nos anos outros grupos de pressão aqui não anunciados (professores, estudantes, escritores,
seguintes: a estatização do ensino. jornalistas, operários, representantes das minorias religiosas) que, em certos assuntos,
"ofereciam algumas inovações importantes, que refletiam pontos de vista mais radicais,
O grupo católico era mais coeso nesta questão: era contra. Os escolanovistas, no sobretudo no tocante à questão dos destinos a serem dados às verbas públicas e à
entender de Cury (1978, p.91-92), conviviam com três posições diferentes. A primeira forma de verificação do rendimento escolar." (Villalobos, 1969, p.152)
delas, mais flexível, aceitava a "liberdade de ensino" — incluindo aí a iniciativa partic-
ular—"desde que sintonizada com um plano nacional de educação". Não será difícil perceber os conhecimentos previstos para a educação nacional, se
compulsarmos o texto final da LDB e buscarmos aí a letra f do Art 12 — Dos Fins da
Uma segunda posição — mais pragmática e oportunista —, talvez a dominante entre Educação —: "O preparo do indivíduo e da sociedade para o domínio dos recursos
os escolanovistas, "tolera a existência de escolas particulares, submetidas à científicos e tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibilidades e vencer as
fiscalização do Estado". Tal tolerância, explica Cury (1978, p.92), "é consentida, já que dificuldades do meio". Ficam definidos como conhecimentos válidos: o científico
os recursos econômicos do Estado são escassos para cobrir toda a população." (alguém diria quais e o que é) e o tecnológico. Assegura-se, também, que outros
conhecimentos sejam transmitidos (Art 4º), mas somente na forma da lei.
A terceira posição, a qual Moraes (1985, p.93) identifica como a mais radical e até
irreal, "é a que faz opção nítida pela centralização e monopólio pedagógico. Negando Definidos, como conhecimentos válidos, os científicos e tecnológicos, cabe ao Conselho
Não é incomum ouvir-se de alunos que as aulas de Matemática, por exemplo, "parecem 3) Quais categorias são utilizadas para decidir o que é normal e o quê?
não acabar nunca", e no entanto a aula de Matemática dura tanto quanto as demais.
Não provirá este "tempo que não acaba" de uma determinada representação do 4) Qual é a referência básica e organizadora do conhecimento normativo e
conhecimento matemático, considerado quase sempre como "conhecimento" difícil, conceptual que realmente recebem os alunos?
adequado para gênios? De onde, afinal, saem os gênios?
5) Qual é, afinal, o currículo que se leva a cabo?
Em um trabalho antigo, mas ainda fonte de relevância, Apple e King (1977, p.110)
tentam responder a uma pergunta que eles mesmos propõem: O que as escolas
ensinam? Entendendo as escolas como instituições que personificam as tradições
coletivas e as intenções humanas e estas últimas, como produtos de ideologias sociais Para Concluir
e econômicas, impõem uma delimitação à pergunta originária que é, também, um
melhor esclarecimento: "a melhor formulação do nosso ponto de partida seria a seguinte A análise das estruturas jurídicas tem revelado um potencial importante para a
pergunta: De quem são os significados que se seleciona e se distribui nos currícula compreensão das ideologias e das práticas sociais dos povos, aí incluindo,
explícitos e ocultos das escolas?". naturalmente, "as formas de saber" (Foucault, 1980) Há de admitir-se, porém, que "as
formas de saber, tal como o próprio "saber", não são obra do aparato jurídico, mas de
Está evidente que as preocupações de Apple e King não se dirigem para as "matérias" interesses contraditórios que tomam vida e circulam na tessitura social. Assim, se por
que compõem o currículo, mas para os significados e, principalmente, significados de um lado as estruturas jurídicas dimensionam e demarcam as amplitudes dos
quem. Tais significados surgem de alguma parte, da cultura naturalmente. Mas, como conhecimentos escolares, por outro lado, serão objeto de interpretação e reconstrução
não existem culturas abstratas, somente culturas reais, compostas por grupos sociais por aqueles que devem fazê-las funcionar. E é neste ponto que talvez tomem o seu
concretos, tais significados serão aqueles de tais grupos sociais. Não é necessário, no sentido mais expressivo as estruturas profundas da experiência escolar, pois, se Apple
entanto, ir-se longe demasiado para entender que, conquanto sejam os significados e King têm razão, somente observando esta estrutura profunda podemos começar a
presentes no currículo, provenientes dos grupos sociais que compõem a cultura, não entender como as normas sociais, as instituições e as ideologias se alimentam da
são os de todos os grupos. interação diária dos atores enquanto estão exercendo suas práticas correntes em sala
de aula, pois "As definições sociais do conhecimento escolar, que estão dialeticamente
As análises de Apple e King, após um retrospecto macro-histórico, com finalidades relacionadas e contidas em um contexto muito mais amplo das instituições sociais e
contextualizadoras, voltam-se para a análise do microespaço institucional, da sala de econômicas ambientais, se mantêm e se recriam nas práticas de ensino e nas
aula. Passam a preocupar-se com o que designaram como estrutura profunda da avaliações escolares. (Apple e King, 1977, p.116)
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Outro ponto importante na discussão da problemática curricular diz respeito à A definição de dialético a partir da teoria crítica (Markert, 1992) pressupõe algumas
dificuldade de problematização do mundo vivido. Habermas (1980) define o mundo considerações acerca de como é trabalhado o conceito de conhecimento e de como é
vivido como o universo não tematizável que se encontra presente em cada situação na organizado o saber escolar. Saviani (1991), por exemplo, propõe a tematização da
qual falantes se movimentam. É como se fosse o cenário no qual ações de fala são realidade do aluno a partir do método dialético, no entanto, ao defender a existência de
produzidas. Em termos educacionais poder-se-ia admitir que existem, subjacentes ao disciplinas estanques e atacar a interdisciplinaridade (1987) parece contradizer-se. O
conceito de conhecimento presente em cada organização curricular, universos de método dialético pressupõe a apreensão sintética do conhecimento, inviável na medida
valores e crenças tanto dos professores e dos alunos, quanto da sociedade na qual em que não forem superadas as barreiras entre as diversas disciplinas que aprisionam
está inserida a escola. O conceito de currículo oculto utilizado por Apple (1989) parece o conhecimento científico. A abordagem proposta por Saviani (1991) privilegia, embora
se referir ao mundo vivido desses atores curriculares. não explicitamente, uma visão analítica dos fenômenos. Ou seja, a prática social
problematizada será encarada sob diversos ângulos de modo a que possa ser
Poder-se-ia acreditar que o caráter dogmático que tem assumido o processo compreendida em sua plenitude. A "síntese" assim construída assume um caráter de
pedagógico — que não apenas parte da desigualdade existente entre os falantes integração de diferentes ciências no exame do mesmo objeto. Markert (1992) salienta
(professores, alunos e sociedade) no início do discurso didático, mas aposta nela e não a partir de Negt que:
a problematiza—necessita para se diluir, de um esforço no sentido da tematização de
questões relevantes que se colocam na prática diária. O caminho para tal tematização prática educacional não significa construir um esquema dogmático de ser-
aponta para o papel da escola, enquanto instituição social, no questionamento de consciência como ponto de partida analítica de processos educacionais. Ele
posturas dogmaticamente assumidas e na instrumentalização daqueles que atuam em (Negt) pane da experiência concreta do tempo, que não mais existe na
seu interior na linguagem na qual as argumentações são, normalmente, produzidas. consciência do homem, uma conexão entre o sentido da estrutura
econômica e da situação de vida de cada um. Isto significa para a ciência a
Assume, então, relevo a relação conteúdo-forma, uma vez que o processo de necessidade de reconstruir uma teoria social, incluindo os conhecimentos
dissolução da visão ingênua se relaciona aos dois pólos do binômio. Habermas empíricos e científicos sobre a experiência humana, ao mesmo tempo, fazer
(1987d) acredita que a emancipação através do conhecimento só é possível se a das experiências concretas intrinsecamente contraditórias dos indivíduos a
atitude em relação ao saber for sempre de suspeita crítica, sendo tal suspeita levada a base concreta dos processos de aprendizagem (p.17 e 18).
cabo através de uma postura dialética. E é também dialeticamente que se deve, a partir
do autor, buscar dimensionar a relação conteúdo-forma. A definição de Oliveira e O caráter emancipatório do conhecimento para Habermas, além de envolver a questão
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Introdução Outras análises têm acentuado a relação dialética entre conteúdos e métodos e
ressaltado que modelos e métodos tradicionais não podem ser usados em uma prática
Em recente entrevista ao Jornal do Brasil (11/5/93), o ministro da Educação, prof. pedagógica progressista, centrada em novos conteúdos, já que, subjacentes a
Murílio Hingel, declarou serem objetivos do MEC a universalização da oferta e a determinadas formas de ensino, encontram-se ideologias incompatíveis com uma
melhoria da qualidade do ensino fundamental até o ano 2003. Fica evidente, na fala do perspectiva emancipatória. Com base nesses estudos, podemos considerar equivocada
Ministro, a constatação de que não basta aumentar o acesso à escola sem se qualquer prioridade concedida aos conteúdos em detrimento dos métodos (Apple,
combaterem os fatores que vêm contribuindo para tomá-la tão excludente. 1982a; Santos, 1990).
Enfatiza-se, assim, mais uma vez, a questão da qualidade da escola, exaustivamente A importância de conteúdos, métodos e relações para a definição tanto da qualidade
pesquisada e discutida em seminários e encontros. A realidade da sala de aula, como do caráter da prática pedagógica parece, assim, aceita pelos autores da
todavia, não tem sido afetada, como seria desejável, pelos resultados das investigações sociologia do currículo. Do mesmo modo, autores associados à Didática têm assinalado
e dos debates (Soares, 1992). É preciso, então, que o tema continue objeto da atenção o caráter multidimensional do processo de ensino e proposto a articulação dos diversos
dos educadores, para que se encontrem novas perspectivas de análise, novos estruturantes do método didático e a necessária superação de dicotomizações como
encaminhamentos e novas alternativas. conteúdo X método, dimensão intelectual X dimensão afetiva, dimensão objetiva X
dimensão subjetiva, dimensão lógica X dimensão psicológica etc. (Candau, 1984).
É nossa intenção examiná-lo neste trabalho. Para fazê-lo, apoiamo-nos inicialmente
em Snyders (1993), que concebe a escola como conteúdos e relações específicas. É a partir da intenção de superar dicotomias que pretendemos retomar a discussão da
Aos dois elementos, acrescentamos os métodos, propondo uma abordagem relacionai qualidade da escola fundamental, enfocando, basicamente, seus conteúdos, seus
que descarte valorizações ou submissões indevidas de qualquer um deles. Pensar métodos e suas relações. Em outros trabalhos, temo-nos valido das contribuições de
uma escola de qualidade implica, em última análise, refletir sobre currículo e ensino, autores da sociologia do currículo para discutir currículo e ensino (Moreira, 1990a;
tendo-se em mente, entretanto, que a reflexão não pode ser desenvolvida sem uma 1990b; 1991 e 1992). Buscaremos, no presente estudo, outros subsídios. O primeiro
significativa referência à sociedade. deles será a teoria da cultura elaborada por um dos autores que mais têm influído na
sociologia do currículo, Raymond Williams, renomado crítico literário inglês, associado
ao discurso marxista culturalista. O segundo será o discurso sobre a ciência de
Boaventura Santos (1986), do qual destacaremos, principalmente, as especulações
* Conferência apresentada no 1º Congresso de Ciências Humanas, Letras e Artes de Minas
Gerais. sobre a ciência pós-moderna. As concepções de arte, criação e ciência dos dois
" Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade do autores deverão fundamentar nossa reflexão sobre o currículo e o ensino da escola
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). fundamental brasileira. Por último, esperamos que o pensamento de Georges Snyders,
Repensando as Concepções de Criação e Arte O desempenho das atividades de descrever e comunicar experiências requer o domínio
e a utilização de habilidades específicas, durante a qual o artista se refaz e, ao mesmo
Subjacente às concepções de criação e arte propostas por Williams está a rejeição da tempo, refaz o ambiente. Não se tem, na verdade, nem o sujeito trabalhando no objeto
dualidade entre o indivíduo e o mundo que ele observa, dualidade essa que representa nem o objeto no sujeito; trata-se de fato de uma interação dinâmica, um processo
uma falsa oposição, por ser a consciência parte da realidade e a realidade parte da contínuo e global. Essa concepção de atividade artística pressupõe a associação de
consciência. É impossível, pois, ao indivíduo, experienciar qualquer realidade sem que conteúdo e forma, pois encontrar a forma é literalmente encontrar o conteúdo.
suas observações e interpretações afetem sua percepção. Por outro lado, é também
impossível negar a existência de uma realidade fora da mente humana. A experiência Como parte de um processo mais amplo, a atividade artística compartilha, com outros
humana, portanto, é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, ou seja, constitui um setores, a função de, em uma dada sociedade, ajudar a incorporar os significados
processo global único. comuns. Para que o artista possa de fato contribuir para que um sentido comum seja
experienciado, ativado e recriado, é indispensável, além do domínio de significados e
A partir da experiência ocorre o processo de organizar e reorganizar a consciência, habilidades, a capacidade de compatibilizar os meios com significados emergentes e
durante o qual o indivíduo organiza e reorganiza a realidade, aprendendo a controlar o com necessidades e características próprias dos indivíduos que aprendem. O artista
ambiente. Trata-se de um processo criativo, o que significa considerar todo indivíduo está sempre, por conseqüência, ou recriando meios ou criando novos significados.
como criador e recusar a noção de que a criatividade somente pode ser associada às
chamadas manifestações artísticas. Como significados e meios não podem ser separados, o artista bem sucedido é o que
transmite a outros uma experiência de modo tal que ela seja não contemplada ou
O processo de aprender e reaprender, tomado possível pela organização social e pela recebida passivamente, mas ativamente recriada pela audiência e vivenciada como
tradição, originou um considerável número de sistemas de comunicação de grande uma resposta criativa aos meios utilizados. Mas o sucesso também depende da
complexidade, como o gesto, a linguagem, a música e a matemática que, embora recepção da audiência. Em alguns casos, não há um código comum, não se consegue
Mas, pergunta Snyders (1993, p.102):"Como esperar alegria de um lugar onde não Com base nessa concepção, propomos que se abandone a noção de que somente
existe opção?". Ele próprio responde: a obrigação na escola oferece ao aluno alguns cérebros iluminados produzem conhecimento. Ao organizar e reorganizar sua
experiências sem equivalente no mundo cotidiano. Como elas são organizadas e consciência, ao aprender e reaprender, ao interpretar e aplicar à sua experiência
controladas, o aluno pode sentir-se respeitado, protegido, tratado com eqüidade e saberes já conhecidos, ao descobrir novos saberes, o indivíduo cria e recria ativamente
estimulado. Porém, a obrigação não é sempre libertadora, devendo, pois, ser sempre conhecimento. Todos, portanto, produzimos conhecimento e todos precisamos assumir
questionada para que se verifique se é necessária e cumpre um papel positivo. as responsabilidades derivadas do fato de nos reconhecermos como autores de
nossos próprios discursos (Moreira, 1991).
Dos pensamentos de Williams, Santos e Snyders escolhemos determinados aspectos
para abordar, deixando outros de lado. Nossa intenção foi buscar contribuições que Em segundo lugar, insistimos em que se evite a separação, em compartimentos
fundamentassem nossas reflexões. estanques, dos saberes que se ensinam e se aprendem nas salas de aula. Se todos os
sistemas de comunicação criados pelo homem só são compreendidos mais
profundamente quando remetidos ao processo mais amplo do qual são partes, causa
Implicações para o Currículo e para o Ensino da Escola Fundamental: em busca espanto que os currículos ainda se elaborem sem que se atente para a necessidade de
de princípios e alternativas articular os conteúdos de modo a facilitar ao aluno relacioná-los e integrá-los em um
todo coerente. Causa também espanto que se selecionem e se organizem os
Nossa intenção, ao revisitar questões do currículo da escola fundamental, é sugerir ou conteúdos sem que se considere a crescente flexibilização das fronteiras entre as
reiterar princípios que desejaríamos ver de fato norteando as decisões curriculares. diferentes áreas do conhecimento, importante modificação do campo científico hoje.
Reiteramos, inicialmente, a concepção de conhecimento que consideramos adequada A ciência aproxima-se da arte. As distinções entre ciências naturais e ciências sociais
à "nossa escola". Vemos o conhecimento como uma relação entre o sujeito e o objeto: diluem-se. A interdependência das diferentes áreas leva a uma intensificação de
nem é algo que se situa fora do indivíduo e que ele adquire, nem algo que ele constrói práticas inter ou pluridisciplinares, criando novas áreas e novas interfaces e tornando
independentemente das circunstâncias e dos demais indivíduos. Não há, assim, cada vez mais difícil determinar os limites entre os diversos saberes. Como
oposição entre o indivíduo e o objeto que ele constrói e conhece. É impossível ao conseqüência, o pesquisador tem hoje necessidade de se tomar um consumidor crítico
indivíduo conhecer qualquer realidade sem que seus esquemas mentais, suas de diversos campos do conhecimento. O currículo, contudo, continua centrado, como
observações e suas interpretações afetem o que é conhecido. Do mesmo modo, é a ciência moderna, em especializações rigidamente delimitadas (Brandão, 1992;
impossível considerar a realidade como fruto exclusivo da atividade mental do sujeito. Santos, 1986).
O ato de conhecer é tanto objetivo como subjetivo e se constitui em um processo social
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Intertexto — Em Aberto O intertexto foi elaborado a partir das questões, todas relacionadas às categorias —
cunículo, trabalho e construção do conhecimento — construídas para a análise dos
O intertexto, elaborado a partir de fichas sínteses e fichas analíticas de textos sobre textos escolhidos, seguindo, inclusive, a mesma seqüência.
educação publicadas na revista Em Aberto — publicação do INEP, de novembro de
1981 a dezembro de 1984, é o objetivo final deste trabalho.
Relação Educação/Sociedade
Dos textos consultados foram escolhidos dezenove e os critérios para esta escolha se
prenderam fundamentalmente à existência de referências às categorias currículo, O aspecto mais enfatizado pelos autores dos textos consultados no que se refere à
trabalho e construção do conhecimento e também às relações entre elas. relação educação/sociedade é a estreita vinculação entre as duas categorias, a
dinâmica das relações sociais influindo nos caminhos da educação.
O primeiro número de Em Aberto é de novembro de 1981 e é o único deste ano. A partir
de 1982 passa a circular mensalmente até julho de 1983 (nº 17). O nº 18 cobre os Assim, nesta perspectiva, na qual a educação é analisada em um contexto mais amplo
meses de agosto a novembro. Depois deste número, a revista só volta a circular e complexo, Machado (1985) explicita a necessidade de ação recíproca entre a
mensalmente, em março e abril de 1984 (nºs 19 e 20). A partir de maio de 1984, a educação e sociedade; Salgado (1985) revela que os critérios sócio-econômicos das
revista circula bimestralmente (nºs 21,22,23 e 24) e a partir de janeiro de 1985, passa políticas públicas acabam correspondendo à segmentação social e Ribeiro (1989)
a circular trimestralmente até dezembro de 1989, último número que interessa à constata que a análise dos documentos oficiais oferece uma visão histórica do
pesquisa. movimento da sociedade e que através dela pode-se identificar o projeto da classe
dominante para a totalidade social.
Analisando o direito à educação básica, Silva (1985) não se limita aos aspectos
conjunturais, buscando uma perspectiva mais ampla, dando destaque especial para as
relações entre o Estado e os direitos dos cidadãos, enquanto Cury (1988), analisando
* Este texto faz parte do Projeto de Pesquisa "Currículo, Trabalho e Construção do a educação universitária considera que por não apresentar resultados imediatos fica
Conhecimento: relação vivida no cotidiano da escola ou utopia de discurso acadêmico?", no aprisionada no desenvolvimento selvagem e Mignot (1989), analisando os CIEPs,
qual se faz um levantamento da produção acadêmica publicada na década de 80, em 11 critica a ampla margem de autonomia dada à educação, pelos defensores da educação
periódicos da área de educação, realizado pelo Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em
compensatória, frente aos determinantes econômicos e sociais.
Currículo, ligado ao Mestrado em Educação da Faculdade de Educação da UFBa.
** Professora Assistente da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Franco (1984) e Haddad (1988) expressam sinteticamente a tendência de vincular
Esta escola, intimamente relacionada com o contexto, recebe, entretanto, enfoques Os obstáculos para a potencialidade transformadora da escola se encontram na baixa
diferenciados a depender do papel que lhe é atribuído na dinâmica do sistema capitalista qualidade do seu ensino, no seu caráter dicotômico e no seu desligamento do real.
do Brasil atual.
Salgado (1985) considera que a escola não instrumentaliza para a compreensão das
Velloso (1984), na análise da relação escola/contexto, privilegia o modo de produção relações sociais e reivindicações de direitos enquanto que Zainko (1989) denuncia que
dominante na medida em que considera que a principal função da escola, no contexto a precariedade do ensino alija o aluno do processo de democratização do saber e da
atual, é desenvolver habilidades necessárias ao processo produtivo. Almeida (1989) luta pela democratização das relações sociais. Madeira (1984) comenta a existência
questiona o fato de a escola se limitar à preparação do aluno para o mercado de de uma educação humanista e propedêutica (bem de consumo) e outra técnica (bem
trabalho capitalista que define como degradado. Mignot (1989) critica a ilusão de que é de investimento) no que se articula com Machado (1985) que considera a necessidade
possível a escola, sozinha, provocar mudanças sociais e democratizar a sociedade. de ação recíproca e articulação entre ambas, destacando o anacronismo da dicotomia
Para Kuenzer (1986), o processo contraditório no qual o homem se educa não se escola humanista x escola profissional diante do desenvolvimento das forças produtivas
encena na escola, pois o processo pedagógico mais específico aí desenvolvido se e com Almeida (1989) que tomando o 2º grau como referência critica sua função
articula ao vivido cotidianamente na fábrica, no sindicato, no campo. Spindel (1985) relacionada diretamente com a formação de mão-de-obra e possível responsável pelo
considera que trabalho e escola não se excluem e não são conflitantes entre si, já que aprimoramento técnico do aluno.
não são instituições fechadas e isto fica claro quando se leva em consideração as
múltiplas realidades com as quais o aluno interage no cotidiano.
Concepção de Escola
A capacidade de reação da escola diante das exigências do contexto brasileiro é
expressada, também, diferenciadamente, pelos autores, a depender de como são As concepções de escola reveladas pelos autores nos textos consultados têm como
enfocadas a identidade e a autonomia destas instituições. Para Saviani (1984), pode- caracteristica comum a inserção destas concepções no contexto da atualidade
se através desta identidade detectar a dimensão pedagógica, que subsiste imbricada brasileira. Assim, as reflexões sobre o papel da escola se processam implícita ou
no interior da prática social global. Silva (1988) considera que a escola pode apenas explicitamente em estreita vinculação com as reflexões sobre as dimensões
reproduzir os interesses de grupos que detêm o poder, porém como é também um econômicas, sociais e culturais do Brasil atual.
fenômeno político, além de social, o seu sentido está em ocupar seu espaço de
autonomia, cumprindo a função de transmitir conhecimento e exercendo papel ativo na As especifícidades, tendo como pano de fundo a visão de mundo de cada autor, se
construção da realidade social. Para Ribeiro (1989), as mudanças no sistema de manifestam principalmente a partir do maior ou menor espaço de autonomia e de
ensino se fazem, em articulação com mudanças na estrutura social, mas isto não deve potencialidade transformadora que são oferecidas à escola na sua relação com a
levar a uma atitude passiva, pois a escola brasileira precisa melhorar. sociedade.
Desta maneira, apesar de o capital tentar usar a escola como veículo de transmissão A dependência do processo produtivo é explicitada por Velloso (1984), que considera
A produção, a apropriação e a socialização do conhecimento estão, assim, O caráter do trabalho está explicitado em Almeida (1989) e Salm (1984). A primeira
estreitamente vinculadas à questão dos interesses de classe. Enquanto Ribeiro (1989) considera que, analisado no contexto capitalista, o trabalho tem caráter de exploração,
e Silva (1988) defendem, como já foi visto acima, a socialização do saber dominante, promove a divisão da sociedade em classes e a apropriação privada dos bens por
inclusive como potencialidade de transformações das relações sociais, Almeida (1989) parte de uma minoria. O segundo parte de uma crítica à TCH e aos críticos desta teoria.
questiona a ciência burguesa que considera uma ideologização e especialização do Dessa forma faz uma leitura de Marx, mostrando que o trabalho, na sociedade
saber, tendo como preocupação central a base material da sociedade atual, e propõe capitalista, se reduz de trabalho complexo a simples, mas que isso ocorre sem a
a ciência da totalidade, transformadora da realidade, que parta de uma análise científica interferência da escola. Ao mesmo tempo, aponta que o trabalho qualificado tem um
que examine as condições de existência e produção das diversas classes. duplo caráter concreto e abstrato, simultaneamente. Diferencia trabalho qualificado de
treinamento, ainda que implicitamente, revelando que a escola tal como existe não tem
Concepção de Trabalho papel relevante nesse treinamento.
Dos dezenove textos consultados, dez explicitam concepções de trabalho. Estas Kuenzer e Zainko refletem sobre a relação teoria/prática. A primeira, considerando que
concepções se revelam através de reflexões nas quais o trabalho, sempre considerado apesar de a visão social do trabalho romper com a unidade das dimensões intelectual
em sua relação com a sociedade, é apresentado nos seus múltiplos aspectos, tendo e manual do trabalho, este, ao se realizar concretamente, não se toma passível desta
como referenciais básicos o seu significado, ação e o seu caráter. ruptura, já que trabalho é atividade teórica e prática, reflexiva e ativa e, por isso, esta
separação não tem sustentação. A segunda, caracterizando o trabalho como atividade
Os autores consultados que expressam o significado do trabalho têm como teórico/prática, reflexiva e ativa no que se articula com Machado (1985), que ressalta a
característica comum a abordagem do papel do trabalho na relação entre homem/ fundamental importância do resgate do trabalho na construção do saber.
natureza, diferenciando-se apenas no nível de aprofundamento. Enquanto para Silva
(1988), é forma de domínio da natureza, para Salgado (1985) significa muito mais do Apesar de o trabalho ser considerado nas reflexões acima, não apenas na sua
que a produção de bens materiais. Zainko (1989) o considera a base da existência dimensão abstrata, intelectual e reflexiva, mas também no seu caráter concreto,
humana no que se articula com Franco (1988) para quem o trabalho é a atividade manual e ativo, para Pucci e Sguissardi (1989), a maioria dos estudos utilizam
fundamental do homem. Zainko também se articula com Salgado quando ambos dão concepções equivocadas de trabalho, faltando uma adequada concepção teórica do
uma dimensão subjetiva/objetiva ao trabalho na medida em que consideram que o processo produtivo, onde se inclua um conceito não abstrato de trabalho.
Kuenzer (1986) considera que conteúdos fundamentais como: a aquisição dos Outros autores, também tratando do descompasso acima referido, refletem sobre o
mecanismos de leitura, escrita e cálculo, a compreensão da distribuição do homem no tema, levando em consideração especificamente o aluno trabalhador. Pucci e
espaço físico ou da história da produção estão inegavelmente relacionados ao trabalho Sguissardi (1989) constatam, através de pesquisa em cinco escolas da cidade de São
e, por outro lado, o fazer só pode ser compreendido à luz dos princípios teóricos Carlos, que a escola não atende às necessidades do aluno trabalhador, tanto do ponto
metodológicos. Para a autora, não existem conteúdos que sejam especificamente de vista do conhecimento sobre máquinas, como de princípios científicos que
voltados para a aquisição de um saber geral e outros que formem exclusivamente para fundamentam a tecnologia moderna. Kuenzer (1986) reivindica uma total revisão da
o trabalho. proposta pedagógica que tem caracterizado a escola — tanto no conteúdo como nas
formas metodológicas e de organização—visando a um ensino de qualidade do ponto
A necessidade de superação da dicotomia trabalho manual e trabalho intelectual é de vista da classe trabalhadora, no que se articula com Madeira (1984), que considera
também defendida por Franco (1988), que coloca no mesmo bojo a superação das que a ação pedagógica deve ir ao encontro dos interesses da classe trabalhadora, em
dicotomias: trabalhar/aprender; forma/conteúdo; teoria/prática; formação geral/ direção à formação de sua consciência libertadora.
específica; terminalidade/continuidade.
A vinculação com o social é explicitada por Machado (1985) para quem a organização
Ainda tratando da questão da relação teoria-prática, Zainko (1989) acrescenta às da escola não se desvincula do social já que, inclusive, reflete as desigualdades
reflexões anteriores o elemento de ligação com o social, que não fica explicitado nas sociais.
Nestas reflexões direcionadas especificamente às necessidades do aluno trabalhador, Referindo-se mais especificamente às necessidades do aluno trabalhador, Franco
Franco (1988) e Salgado (1985) colocam o trabalho como centro desta organização. A (1984) considera que o currículo deve fornecer elementos para a formação integral,
primeira, defendendo que este deve ser o principio organizador das atividades da contemplando o profissional, enquanto Manus (1985) alega que a informação
escola, a qual deve trabalhar o conhecimento científico e tecnológico, resgatar a profissional e a forma de trabalho devem incorporar-se ao currículo e Zainko (1989),
relação entre ciência e cultura, trabalhar com os conteúdos da modernidade, a partir que o currículo deve contemplar as necessidades de apropriação do saber do aluno
dos processos de trabalho e a segunda, defendendo o resgate da contribuição do trabalhador.
saber elaborado, a partir do trabalho, para construção do saber transmitido na escola
como forma de romper o isolamento desta. Ainda nesta direção, Salgado (1985) reflete que o sistema de formação profissional
deve ser repensado, considerando não apenas as necessidades de mão-de-obra no
mercado, mas incluir atividades e saberes que construam a sua cidadania no que se
Currículo no Processo de Construção do Conhecimento articula com Haddad (1988) que, refletindo sobre a educação de adultos, concebe o
currículo como programa cujos conteúdos socialmente acumulados servem como
Dos dezenove autores consultados apenas Saviani (1984) e Silva (1988) se referem ao complemento do trabalho ou como parte de formação básica no ensino regular,
currículo no processo de construção do conhecimento. Para o primeiro autor, a partir do visando à formação do cidadão e do futuro trabalhador.
saber sistematizado é que se estrutura o currículo. Na escola elementar, a primeira
exigência para esse tipo de saber é aprender a ler e escrever a linguagem dos números
e a linguagem da sociedade. Critica a noção de currículo que dissemina a idéia de que Relação Trabalho/Construção do Conhecimento
é tudo o que se faz na escola, tirando o sentido das atividades extracurriculares que só
têm sentido na medida em que podem enriquecer as curriculares. Assim, é importante A característica comum revelada nas reflexões dos autores consultados é a estreita
nâo se perder de vista o que é principal e o que é secundário. Para a segunda autora, vinculação entre o trabalho e a construção do conhecimento, seja dentro ou fora da
a fonte única do currículo é o acesso cultural disponível, do qual são selecionados os escola. Desta maneira, o espaço onde se processa ou deve se processar a vinculação
conteúdos mais representativos e significativos para serem traduzidos em saber esco- entre o trabalho e a construção do conhecimento é pano de fundo para a discussão
lar. Esta seleção e esta organização, entretanto, não são neutras, são opções sociais sobre o tema. Para Madeira (1984), o processo de construção do conhecimento pode
e ideológicas (conscientes e inconscientes) feitas dentre todo o conhecimento social se dar através da discussão dos problemas concretos dos trabalhadores no seu dia-a-
disponível em uma determinada época. Apesar disto, não são totalmente ideológicos e dia, sem necessariamente ter que passar por forma teórica. Enquanto Cury (1988)
acabam propiciando o aparecimento de contra-ideologia. considera que a universidade é local de produção tanto quanto a fábrica; Pucci e
Concepção de Escola
Conclusão
Dos autores consultados, dezessete revelam concepções de escola, as quais têm
As conclusões deste trabalho se desdobram em dois momentos. Em um primeiro como característica comum a sua inserção no contexto da atualidade brasileira. As
momento, elas se prendem à seqüência de respostas dadas pelos autores dos textos especifícidades, tendo como pano de fundo a visão de mundo de cada autor, se
consultados às indagações feitas pelas fichas analíticas sobre currículo, trabalho e manifestam principalmente a partir do maior ou menor espaço de autonomia e de
construção do conhecimento. Em um segundo momento, são tiradas conclusões de potencialidade transformadora que são oferecidas à escola na sua relação com a
caráter mais geral. sociedade. Muitas vezes o trabalho aparece como uma categoria significativa nesta
potencialidade de transformação de si mesma em direção a uma melhor qualidade de
ensino.
Relação Educação-Sociedade
Os oito autores que tratam desta relação destacam a fundamental importância da De uma maneira geral, pode-se destacar as seguintes conclusões:
Referências Bibliográficas PUCCI, Bruno, SGUISSARDI, Valdemar. A qualidade do ensino para os alunos
trabalhadores. Em Aberto, Brasília, v.8, n.44, p.9-22, out./dez. 1989.
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Estado: esboço para uma reflexão. Em Aberto, Brasília, v.8, n.41, p.29-33, jan./ de desenvolvimento da educação: 1955/1960. Em Aberto, Brasília, ano 8, n.44,
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CURY, Carlos Roberto Jamil. A pós-graduação e a nova lei de diretrizes e bases. Em SALGADO, Maria Umbelina. Educação e trabalho: formação para a cidadania no
Aberto, Brasília, v.7, n.38, p.57-59, abr./jun. 1988. ensino de 2º grau. Em Aberto, Brasília, v.4, n.28, p.1-10, out/dez. 1985.
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processo de trabalho — reflexões sobre as bases e diretrizes de uma nova lei da
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FRANCO, Maria Laura. O ensino de 2º grau: democratização? profissionalização? ou
nem uma coisa nem outra? Em Aberto, Brasília, v.3, n.19, p.25-40, mar. 1984. SILVA, Rose (Tereza Roserley) Neubrauer da. Educação de primeiro grau: o não-
direito do não-cidadão. Em Aberto, Brasília, v.7, n.39, p.25-35, jul./set. 1988.
HADDAD, Sérgio. Educação de adultos: um início de conversa sobre a nova lei de
educação. Em Aberto, Brasília, v.7, n.38, p.39-44, abr./jun. 1988. SPINDEL, Cheywa R. O menor trabalhador e a reprodução da pobreza. Em Aberto,
Victoria Maria Brant Ribeiro* Nos últimos anos, há uma tendência que já o considera como um processo de
produção e/ou construção do conhecimento, a partir das experiências de vida dos
professores e alunos, situadas num contexto sociohistórico mais amplo e que busca
apoio teórico na Psicologia, na Sociologia, na Filosofia e demais ciências sociais.
O que é Currículo
Proponho que tomemos essa tendência como ponto de partida, explicitando-a um
Proponho iniciar uma reflexão sobre currículo a partir de uma e decisiva questão: O que pouco mais: o currículo é uma construção social do conhecimento, que pressupõe a
é currículo? organização e/ou a sistematização dos meios para que esta construção se efetive, a
transmissão dos conhecimentos já produzidos e as formas de apreendê-los. Portanto,
Para tentar respondê-la, começo por dois aspectos que considero importantes. transmissão, assimilação e produção de conhecimento são processos que,
articuladamente, compõem um método científico de construção coletiva do
De um lado, a crítica ao conceito de currículo como instrumento formal, preconcebido, conhecimento escolar, ou seja, um currículo, que inclui: 1) as relações entre os agentes
delimitado, definidor das atividades que o professor deve realizar na escola, porque sociais que dele participam (alunos, professores e pesquisadores) num espaço e num
esse, tal como se apresenta, dificilmente se realiza na prática. tempo determinados e 2) a definição de um suporte teórico que o sustente.
Entre as diversas categorias que podem ser utilizadas, como balizamento das
Objetivamente, ao longo da trajetória de sua existência, como um componente
discussões, sugiro como mais importantes:
necessário aos sistemas educativos, observou-se um divórcio entre a sua
representação e a prática exercida nas escolas.
— o trabalho, como categoria fundamental para a construção de uma proposta curric-
ular para a formação do homem produtor/consumidor, que não dissocia o seu próprio
desenvolvimento do desenvolvimento da sua sociedade. Ou, em outras palavras, a Nesse sentido, é importante desconstruir essa representação que formaliza um
formação do homem que se reconheça como agente ao mesmo tempo individual e processo que, pela própria essência do seu significado (um caminho, um percurso,
coletivo, realizando ações conjuntas, compartilhando interesses e necessidades, uma estrada) não pode circunscrever-se a normas preestabelecidas, ainda que
criando normas de convivência social democrática, numa sociedade marcada pelas flexíveis, abertas a mudanças, pois que caminhos lineares levam a destinos
desigualdades; conhecidos.
— a ciência e seu duplo papel: a identificação de problemas sociais e a criação de É certo que, mesmo sem produzir efeitos práticos qualitativos, o currículo, tal como é
alternativas que permitam solucionar, democraticamente, as principais questões que conhecido, de alguma forma sustenta a organização escolar, ou justificando práticas
hoje se colocam para a melhoria das condições de vida de toda a população, além da autoritárias, ou servindo como contraponto a práticas anárquicas, ditas de resistência.
possibilidade que cria, em cada indivíduo, de manipular conhecimentos formando o
pensamento abstrato, ou seja, a sua contribuição para a autonomia de pensamento, Desconstruir ou desmitificar esse conceito é desafio que, com certeza, provocará
por meio do desenvolvimento cognitivo; reações as mais diversas e inimagináveis e, necessariamente, levará a buscar
indicadores que permitam superá-lo.
— o cotidiano escolar como o conjunto das circunstâncias que determinam, por um
lado, a construção do conhecimento científico e, por outro, a formação do homem que Superando-o, emerge, de imediato, o segundo desafio: o que colocar no lugar? O que
delas é produto e nelas deverá interferir; desvelar na desconstrução?
Um Suporte Teórico para Fazer Currículo Bachelard critica, com ênfase, os "continuistas da cultura no domínio da pedagogia",
defendendo a construção de uma "cultura científica" como a porta aberta ao reino da
Afirmei, antes, sobre o compromisso do professor com a escola, como condição racionalidade.
primeira para se fazer currículo. Supõe-se, para tanto, uma vontade decisiva de
mergulhar nesta ação para torná-la um método efetivo de construção do conhecimento. ... Quanto mais se crê na continuidade entre o conhecimento comum e o
conhecimento científico, mais esforços se fazem para a manter, torna-se
Mergulhar num objeto ou numa ação, entretanto, requer um complicado processo de obrigatório reforçá-la. Faz-se assim sair do bom senso, lentamente,
desvelamentos, de experimentações, interpretações, análises e julgamentos. E tudo suavemente, os rudimentos do saber científico. Tem-se repugnância por
isto não se faz sem uma pré-escolha teórica que a própria ação provoca naqueles que violentar o 'sensocomum'. E, nos métodos do ensino elementar, adiam-se
nela estão envolvidos. A complexidade da questão curricular exige uma multiplicidade de ânimo leve os tempos de iniciações viris, procura-se conservar a
de perspectivas teóricas que explicitem as diversas relações nela presentes. Em razão tradição da ciência elementar, da ciência fácil; considera-se um dever
dessa diversidade, suponho ser necessário utilizar diferentes "lentes" para entendê-la, fazer com que o estudante participe da imobilidade do conhecimento
compondo um quadro teórico nunca definitivo, sempre incompleto e insuficiente, mas inicial. É necessário, apesar disso, conseguir criticar a cultura elementar.
um primeiro "olhar" que esteja aberto ao que a experiência for apontando. Estou Entra-se, então, no reino da cultura científica difícil (Bachelard, 1990,
defendendo que se abra um espaço primeiro para definições teóricas que permitam p.196-197).
avançar, com mais consistência, numa prática curricular.
O que ele defende, portanto, é a ruptura com o conhecimento comum e com a tradição
Um problema que de imediato se coloca é a possibilidade da síntese entre o saber da ciência "fácil", elementar. É preciso iniciar os alunos na ciência "difícil", ou seja, na
comum e o saber científico, ou, mais especificamente, se devemos fazer com que o análise da complexidade de tudo que parece simples. Só assim os alunos sairão da
aluno se aproprie do conhecimento científico, já que ele" vem revestido da ideologia "imobilidade" do conhecimento pronto acabado, para entrar na "cultura cientifica difícil".
... o espirito científico deve formar-se contra a natureza, contra o que é, Outra contribuição de fundamental importância para a apreensão do processo de
em nós e fora de nós, o impulso e a instrução da natureza, contra o construção do conhecimento encontra-se em Michel Foucault.
adestramento natural, contra o fato colorido e diverso. O espírito cientifico
deve formar-se reformando-se. Ele não pode se instruir diante da natureza Considerando que o currículo se caracteriza como um prática social cuja finalidade é
senão purificando as substâncias naturais e ordenando os fenômenos construir o conhecimento nas instituições escolares e que as relações que essa prática
baralhados. (Bachelard, 1990, p.170). instaura entre os agentes são marcadas por discursos com diferentes especifícidades
e, muitas vezes, com predominância de uns sobre os outros, Foucault procura desvelar
Qual seria, então, a maneira de se conhecer e se apropriar desse real? o porquê do aparecimento dos saberes em um determinado momento, com
determinantes temporais externos a eles e como esses saberes se articulam com as
Em princípio, esse real que se nos apresenta, o real imediato e concreto é apreendido instituições.
sem objetividade, apenas no plano do sensível. Segundo Bachelard, para a
epistemologia "uma ida ao objeto não é inicialmente objetivo. É preciso, pois, aceitar Segundo esse autor, é preciso analisar o discurso no seu próprio volume, enquanto
uma verdadeira ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico". E uma prática que obedece a regras, identificar a sua especificidade e as características
mais: que o tornam diferente de outros.
... a objetividade científica só é possível se tivermos primeiro rompido com Esses princípios suscitam algumas questões: que regras orientam o discurso dos
o objeto imediato, se tivermos recusado a sedução da primeira escolha, professores e em que ele se diferencia do discurso do aluno? O que move os
se tivermos estancado e contraditado pensamentos que nasçam da professores na seleção, por exemplo, de determinados livros-texto, com os quais se
primeira observação. Toda objetividade, devidamente verificada, desmente identificam e que, por essa razão, muitas vezes os transformam em seus próprios
o primeiro contato com o objeto. Ela deve primeiro criticar tudo: a programas de ensino? Como (e se) é interpretado e aproveitado o discurso do aluno?
sensação, o senso comum, a própria prática mais constante... (Bachelard,
1990, p.129). A prática discursiva deve ser analisada em sua positividade, ou seja, na forma como se
apresenta enquanto um conjunto de enunciados que contém lacunas, fragmentos da
É nesse momento que se deve instalar a dúvida, uma problematização desse real, em exterioridade, formas de acúmulo de outros enunciados, enfim, tal como, de fato, ela
busca de novas descobertas que não serão as últimas. Essa problematização tem, em aparece, sem que se penetre na interpretação de seu significado. Essa positividade é
Bachelard, o sentido de retificação do conhecimento pela negação da verdade anterior. o antecedente necessário à construção de um conjunto de elementos constituído de
Desse modo, num processo de complementaridade, novos conhecimentos vão se proposições coerentes, de descrições mais ou menos exatas, de bases para teorias,
construindo e um campo novo se constitui quando há um rompimento com os ao qual Foucault dá o nome de saber. E se o saber é um produto das práticas
conhecimentos anteriores, os quais foram tomados como ponto de apoio, mas onde discursivas, para se compreender como ele se constitui é necessário identificar as
Mais concretamente, fazer currículo, dentro da concepção que assumo, implica, O trabalho é a força que mobiliza o indivíduo na direção de apreender a sua realidade
necessariamente, interação entre sujeitos que têm um mesmo objetivo, produzindo usando, astuciosamente, a sua inteligência para criar os instrumentos que lhe permitam
objetiva e subjetivamente suas existências, num processo permanente de interagir com a natureza, no sentido de apreendê-la para transformá-la, pondo-a a seu
comunicação, cada um deles lutando pelo seu reconhecimento enquanto sujeito indi- serviço e do seu grupo social, para além de uma concepção meramente instrumental.
vidual que pertence a um coletivo, criando normas de convivência que sejam aceitas Mesmo assumindo as formas rudes, ao longo de sua história, o trabalho guarda esta
pelo conjunto desses sujeitos. Ora, esse processo sugere um campo teórico onde característica fundamental de realização individual, quando considerado como forma
estejam presentes categorias que balizem a compreensão dessas relações, tendo em de obter os ganhos para a sobrevivência, ou quando considerado como forma de se
vista a sociedade em que vivemos, como também sinalizem possibilidades de ação relacionar com a natureza e com os outros homens. Há no trabalho, portanto, uma
para articular o "mundo vivido' ao mundo da produção "material" da existência. Essa dimensão que é individual, interna ao homem, de realização de suas potencialidades e
distinção não a fiz ao acaso, mas a partir do que considero fundamental como base outra que lhe é externa, aparece como seu produto e passa a não lhe pertencer.. A
para fazer ciência hoje ou, mais especificamente, para fazer currículo na escola básica: primeira pode-se entendê-la como parte do mundo vivido; a segunda como parte do
discutir, preliminarmente, o significado de trabalho. mundo objetivo, mundos esses que guardam entre si estreitas relações.
Discutir com os alunos, logo no início da sua formação, as diferentes formas de . Técnica e ciência enquanto ideologia. Lisboa: Edições 70,1987.
produzir a existência é fazer ciência, é construir o conhecimento, de modo a torná-los
competentes (técnica e socialmente) para intervir na natureza e se relacionar com os ENGUITA, Mariano. Trabalho, escola e ideologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
outros homens. Faz-se necessário eliminar, desde o começo da escolarização, essa
histórica fragmentação entre o mundo do desejo e da liberdade e o mundo do desprazer, FREITAG, Bárbara. Piaget e a filosofia. São Paulo: UNESP, 1991.
Discutindo o que ele chama de "economia política da verdade, Foucault afirma que em Desta forma, o poder disciplinar colocou em circulação o discurso das ciências
nossa sociedade "a verdade" está centrada na forma do discurso científico. Ele humanas. Os arranjos de poder na sociedade vão legitimando determinadas 'Verdades".
prossegue afirmando, ainda, que "a verdade" está submetida a um grande processo de Estas verdades fazem parte da própria realidade que elas pretendem apenas descrever.
difusão e consumo que se realiza através do aparelho escolar e dos meios de
comunicação. Acrescenta-se a isso o fato de que a produção e transmissão da
"verdade" são controladas por organismos como a universidade, exército e a mídia Alguns Exemplos do Uso de Foucault no Campo do Currículo
(Foucault,1980, p.131-132).
Começaria citando o trabalho de Cléo H. Cherryholmes, Um Projeto Social para o
Fundamental, ainda, no trabalho de Foucault é a relação entre poder e conhecimento. Currículo: perspectivas pós-estruturais (1993, p.143-172). Neste artigo, o autor, usando
Este autor chama a atenção para o fato de o poder ser visto mais comumente como o trabalho de Foucault analisa diferentes aspectos do desenvolvimento do campo do
algo negativo, algo que "reprime", "recalca", "censura", "abstrai", "mascara", "esconde". currículo nos Estados Unidos. É analisado como o currículo por disciplinas, baseado
Para Foucault, é preciso explorar o lado positivo do poder, seu lado produtivo e na idéia de se fornecer em cada área as idéias fundamentais daquele campo de saber,
transformador. O poder cria campos de conhecimentos e ao produzir diferentes versões predominou nos anos 60. Naquele contexto, os especialistas nas diferentes disciplinas
sobre a realidade também produz esta própria realidade. estavam determinando os conteúdos dos currículos. Os curricularistas não estavam
controlando a situação, ao invés disso a nova prática discursiva determinava quem
No livro Vigiar e Punir, Foucault mostra como ocorrem mudanças, a partir do séculos tinha voz no campo. "A prática discursiva tinha mudado e aqueles que antes tinham
EPISTEMOLOGIA E AÇÃO DOCENTE* reunião, de Conselho de Classe, etc. c) em terceiro lugar, de nossas dissertações de
mestrado — por mim orientadas — cujos resultados e análises são confirmados de
forma inequívoca e até fundamentados pelas análises desta pesquisa. A primeira
Fernando Becker** grande constatação foi a de que epistemologia subjacente ao trabalho docente é a
empirista e a de que só em condições especiais o docente afasta-se dela, voltando a
ela assim que a condição especial tiver sido superada. Ao ser instado a conceituar
Esta pesquisa1, exploratória, busca a crítica da epistemologia do professor, "conhecimento", o (a) entrevistado (a) professa uma epistemologia empirista. Ao sentir
epistemologia quase totalmente inconsciente — epistemologia subjacente ao trabalho solapada sua convicção empirista pela pergunta seguinte, apressa-se em buscar uma
docente — e que pode manifestar-se predominantemente apriorista em alguns casos, fundamentação apriorista. Ao retornar ao ambiente didático-pedagógico, o (a) docente
predominantemente empirista noutros, ou, ainda, como uma mistura mais ou menos retoma suas convicções empiristas. Procura-se, então, desautorizar, sistematicamente,
equilibrada destas duas posições. Esta pesquisa reveste-se de importância na medida o paradigma empirista: o docente toma a apelar para pressupostos epistemológicos
em que a superação da escola atual, na direção de uma escola verdadeiramente aprioristas. Ao proporem-se questões de aprendizagem e desenvolvimento de crianças
democrática, implicará, necessariamente, esta crítica. A matéria prima desta análise foi de meios sociais diferentes ou de crianças, filhos de pais débeis mentais, o (a)
obtida: a) primeiramente, mediante entrevista com 39 professores de todos os niveis de professor(a) volta novamente ao empirismo, embora, em alguns casos, tentando
ensino, homens e mulheres, com idades que variam de 19 a 53 anos, com tempo de refazer este paradigma epistemológico. Só ensaia, quando o faz, uma postura
magistério que varia de três meses a 34 anos, trabalhadores das mais diferentes construtivista ao se defrontar corn sua prática pedagógica. Uma postura docente
disciplinas, de diferentes áreas do conhecimento, lecionando em pré-escola, primeiro democrática é incompatível corn a permanência de posturas epistemológicas empirista
ou segundo grau, universidades — inclusive pós-graduação —, lecionando em escola ou apriorista, isto é, de epistemologias ingênuas.
pública ou particular — confessional ou não —, para clientela do meio urbano,
proveniente de todas as classes sociais; b) em segundo lugar, pela observação de Note-se que não estou afirmando que a mera superação destas epistemologias fixistas
salas de aula de alguns destes professores e de alguns outros não entrevistados; de gera, por si mesma, a postura democrática. Afirmo, sim, que esta superação deve ser
encarada como uma condição prévia da postura democrática, no sistema educacional,
em geral, mas, particularmente na sala de aula.
Introdução
* Este texto foi extraído, com adaptações, do seguinte relatório de pesquisa: BECKER,
Fernando. Epistemologia subjacente ao trabalho docente. Porto Alegre: PPGEdu/FACED/
UFRGS, 1992.387p.(Apoio INEP). Esta pesquisa acaba de ser publicada pela Editora Vozes, Sob o ponto de vista das relações pedagógicas que se constituem na prática de cada
com autorização do INEP, sob o titulo: A Epistemologia do Professor. Colaboraram nesta sala de aula, podemos dizer que um movimento de polarização "espontâneo", aí
pesquisa: Tânia Ramos Fortuna; Paulo Francisco Slomp; Leni Vieira Dornelles; Carla Rosana verificado, tende a valorizar ou (a) o professor, ou (b) o aluno, ou (c) as relações entre
Silva Casagrande; Vera Terezinha de Matos; Tania Beatriz Iwaszko Marques. Esta análise professor e aluno. Esta polarização, diga-se de passagem, é conseqüência e não
dirige-se ao discurso pedagógico, em geral, não devendo e não podendo ser interpretada, em causa do processo escolar. É a partir do fenômeno da polarização que tentamos
momento algum, como fazendo apelo à categorias que visassem a atingir áreas de
buscar algumas causas, mais próximas ou mais remotas. Por que isto? Porque este
conhecimento específicas, grupos de docentes, professores individualmente, etc, etc. leitor.
Em síntese, as análises que se seguem visam atingir o discurso pedagógico como totalidade, fenômeno, a nosso ver, denuncia determinadas concepções pedagógicas que,
sob o ponto de vista da Epistemologia Genética piagetiana. traduzidas didaticamente, fazem avançar, retardar ou até impedir o processo de
" Professor e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS. construção do conhecimento.
Uma pedagogia centrada no aluno pretende enfrentar os desmandos autoritários do Nega-se, portanto, o autoritarismo do professor e o autoritarismo do aluno, simulta-
modelo anterior, atribuindo ao aluno qualidades que ele nâo tem, como: domínio do neamente. Trata-se de um modelo pedagógico que, ao contrário do que muitos pen-
conhecimento sistematizado em determinada área, capacidade de abstração sufi- sam, resgata-se a importância dos pólos de relação pedagógica escolar, fazendo-os
ciente, especialmente na área de atuação específica do professor, e volume de crescer em níveis inéditos. Este modelo, traduzido em prática, busca a destruição dos
informações devidamente organizadas, além, é claro, do domínio das didáticas. O fatores que prejudicam ou, até, anulam os pólos da relação, e o resgate da dinâmica
Para onde vão as Pedagogias não-diretivas (1974), de Snyders, mostra o quão própria do conhecimento que faz vislumbrar um crescimento possível, inimaginável
autoritária pode ser uma sala de aula em que vigora tal pedagogia. Celma (1979) é nos modelos (a) e (b). O suporte deste modelo encontra-se na Psicologia Genética de
ainda mais enfático ao denunciar o quanto de autoritarismo pode-se praticar sob uma Piaget, na obra pedagógica de Paulo Freire, em pedagogias de fundamentação marxis-
pedagogia não-diretiva. O suporte deste modelo é dado, na Psicologia, pela obra de ta: na psicologia do desenvolvimento de Vigotsky, em Gramsci, Wallon, etc. Sua
Carl Rogers, pelos mentores da Escola Nova, e, por caminhos mais difíceis de mostrar, fundamentação epistemológica encontra-se no interacionismo de tipo construtivista.
pela psicologia da Gestalt. Apesar das mesclas empiristas, como é o caso de Rogers, Como se vê, são interacionistas ou construtivistas pensadores de origens muito diver-
sua fundamentação epistemológica é dada pelo apriorismo — inatista ou sas.
maturacionista.
Procuraremos, com Piaget, desenvolver, a seguir, as implicações teóricas destes
Uma pedagogia centrada na relação tende a desabsolutizar os pólos da relação envolvimentos epistemológicos, acreditando que o compromisso, mesmo inconsciente,
pedagógica, dialetizando-os. Nenhum dos pólos dispõe de hegemonia prévia. O pro- com determinada epistemologia, redunda em determinação — não a única — na
fessor traz sua bagagem, o aluno também. São bagagens diferenciadas que entram prática pedagógica. Determinação que o delineamento esquemático, quase caricatural,
em relação. Nada, a rigor, pode ser definido previamente devido à infinidade de níveis acima, sugere. Determinação, ainda, que somente será superada por outra
possíveis dessas diferentes bagagens. Se considerarmos a dinâmica própria do epistemologia que seja capaz de criticá-la nos seus fundamentos.
processo de construção do conhecimento (Piaget), os modelos (a) e (b) devem ser
continuamente negados. Mas, como é próprio de um processo de superação aufheben, Nossa hipótese — e várias pesquisas nossas a comprovam — é a de que o ensino
essa negação tem, como reverso, o resgate de qualidade de um e de outro pólo da escolar, em vez de promover, opõe-se à construção do sujeito epistêmico, na medida
relação. em que pratica formas autoritárias deste mesmo ensino. Estas formas depredam as
relações produtoras de conhecimento, depredando, por conseqüência, as condições
Resgata-se, do primeiro, a importância que se dá ao conteúdo, sistematizado pelas prévias da construção do sujeito epistêmico que precisa exercer a autonomia no
Pouco esforço foi necessário para detectar, nos depoimentos dos docentes, posições é transmitido, sim; através do meio ambiente, família, percepções, tudo.
Em termos de primeiras séries, (o conhecimento) é uma coisa muito Como a criança adquiriu (conhecimento) não sei; acho que bastou estar
abstrata; e para se tomar palpável é preciso um ponto de medida; é viva. Acho que olhando o mundo, o ambiente; sofrendo influência das
perceptível quando a criança consegue ler e escrever ou quando repete, coisas ao seu redor começa-se a estabelecer relações com este mundo.
não simplesmente, mas de forma elaborada, com desenhos ou mesmo Traz (ela) todo o relacionamento, as trocas de sua espécie.
falando. O aluno... é como a anilina no papel em branco, que a gente
tinge, passa para o papel. O aluno assimila, elabora, coloca com as Outro docente:
próprias palavras.
A criança já traz parte do conhecimento. Adquire outra parte com o meio
e constrói a partir disto. Na escola ela pode ser trabalhada para 'melhorar
O seguinte depoimento é ainda mais enfático em buscar na explicação associacionista esta carga de conhecimentos.
a elucidação da origem do conhecimento: é uma resposta, uma reação do organismo
a um estímulo ou a situações estimulantes: Ainda na mesma linha:
Acho que existe algo que vem em relação ao conhecimento, mas vai se
Como se opera o conhecimento? O conhecimento se dá pela reação,
aprimorando em relação ao que o meio oferece, que a família, a escola
penso eu, intelectual, no caso da pessoa, através de alguns estímulos, a
oportunizam.
partir de situações estimulantes. Na medida em que a pessoa é
estimulada, ela é perguntada, ela é incitada, ela é questionada, ela é até
obrigada a dar uma resposta. Isso deflagra processos mentais em nível do Neste item encontramos uma epistemologia mais crítica. Apontam os depoimentos
pensamento em que a pessoa vai exercitar operações mentais, cuja para avanços se comparados com os itens anteriores:
natureza não conheço especificamente mas imagino que, a partir de uma
situação estimulante, de uma proposta, de uma pergunta, ou até de uma O bicho eu adestro, é estímulo-resposta. A criança envolve inteligência,
imposição... vai se dar a aquisição do conhecimento, a apreensão de uma pensamento divergente, ela questiona, vai além.
verdade, de um fato.
A professora de pré-escola introduz a noção de experimentação para descrever o que
entende por conhecimento:
Apesar de classificar a resposta como "intelectual" e de reconhecer a existência de
"processos mentais em nível de pensamento em que a pessoa vai exercitar operações Penso que o conhecimento se dá por experimentação, experiência, obser-
mentais", permanece inalterado o fato de que o conhecimento provém do exterior, do vação. Como professora procuro interíerir o mínimo para que a criança
mundo dos estímulos; o conhecimento é a "apreensão de uma verdade", e não a sua toque, mexa, experimente e, para isso, o professor precisa ter um pouco
construção. de sensibilidade para perceber se o aluno está ou não a fim de algo.
Seria (o conhecimento) uma coisa nova, ou uma transformação de algo já Experiência não é o que se fez. Mas o que se faz com o que se fez.
aprendido, ou estabelecimento de relações; O conhecimento deve ser
abrangente, geral, não devendo ficar numa só linha, sendo afetado por A professora de Arquitetura aproxima-se desta concepção:
várias coisas.
Olha, o conhecimento é o domínio sobre o saber fazer...No outro sentido,
Apesar de a prática pedagógica indicar direções para avançar, as teorizações epis- vejo como aquilo que tu produziste sobre esse saber fazer.
temológicas não conseguem responder a elas:
Está claro, nesta afirmação, que a experiência que produz conhecimento não se
Como professora, meu objetivo é passar o máximo que eu sei para o confunde com o saber fazer, com a prática; mas com a reflexão sobre o saber fazer,
aluno, mas deixando que ele conclua alguma coisa por si. É melhor do sobre a prática. O saber fazer precede o compreender e o fundamenta; o compreender
que ensinar tudo...É até mais criativo, pois a conclusão, a relação é o que supera o saber fazer ao abstrair dele, por abstração reflexiva, as suas razões. Quando
é o mais importante, é o que saiu do aluno. um professor ensina um conteúdo aos seus alunos — transfere um conceito, na
acepção behaviorista —, ele atravessa todo o processo de construção do conheci-
O exemplo do cego é expressivo em questionar a fragilidade das interpretações do mento, obstruindo o processo de abstração reflexiva. Em nome da transmissão do
senso comum. Conhecimento é conhecimento ele impede a construção das estruturas básicas de todo o conhecer, o a
priori de toda a compreensão. É isto que Piaget quer dizer ao afirmar que toda vez que
tentar, por si só, e desvencilhar; é preciso procurar por si só, antes. Tive ensinamos algo à criança, impedimos que ela invente esta e tantas outras coisas.
um aluno cego que eu achei que não conseguiria aprender Geometria
Analítica; eu temia superprotegê-lo e fui rigorosa comigo mesma na sua Sigamos o depoimento crítico do professor universitário de Informática:
avaliação. Mas ele me surpreendeu, pois teve um excelente desempenho;
soube que ele estudava passando para a sua linguagem o conteúdo. O conhecimento menor, para um conhecimento maior vem com a
experimentação. O aluno aprende melhor o que se deu conta. O professor
Esta "passagem" que o cego fazia não pode ser explicada pela epistemologia empirista. não pode dar soluções, precisa deixar lacunas, para que o aluno sinta
Remete-nos ela para a experiência lógico-matemática ou para a abstração reflexiva, na necessidade que algo falta, que desta forma está difícil achar uma solução,
acepção piagetiana, pois a atividade deste cego desenrola-se no plano operatório, não que ele sugira uma idéia, indique o que é mais viável, proponha soluções.
passível de observação no sentido de uma abstração empírica; pseudo-empírica, Há alunos que acompanham, fazem exercícios, sugerem e os que estão
talvez, pois esta faz parte da abstração reflexiva. Mal suspeita esta professora que passivos, aceitando o que o professor propõe, passivamente. Estes não
todos os seus alunos que aprendem fazem como o cego. estão atingindo o conhecimento e sim, recebendo informações sem um
conhecimento de fato... Não adianta, por exemplo, uma aula prática de
Fazemos aparecer, aos poucos, os depoimentos mais críticos. Depoimentos no sentido física com fórmulas, sem vinculara realidade física ao fenômeno... Depois
O professor é um amigo, é uma segunda mãe, que além de transmitir ...a criança tem dificuldade, mas ela tem um raciocínio....
conhecimentos, procura ajudar nas dificuldades... Tu dás o fio e a criança
puxa a meada. O raciocínio é um dado de partida, um fator previamente dado, e não um ponto de
chegada, um produto de construções.
Sigamos o seu pensamento: eles aprendem porque sentem motivação; quando sentem basicamente o autor da aprendizagem é o aluno. O professa basicamente
motivação eles querem, e quando querem, aprendem. Pergunto: e o querer deles vem orienta, incentiva, mostra caminhos..., o professor pode darás condições,
de onde? Diz a professora: quem aprende é o aluno. Ele é que é o centro da sua aprendizagem. O
professor ajuda, mas não pode abrir a cabeça e botar dentro.
Vem da necessidade que eles sen-tem de que isso vai ser útil pra eles. E
principalmente se isso vai trazer uma recompensa imediata. Se eu digo
pra eles que eles vão precisar isso prá quarta ou pra quinta (séries)... Se Toda a fundamentação do porquê da aprendizagem do aluno, da sua motivação, foi
digo assim: quem terminar tudo certinho vai ganhar MB... Aquilo motiva atribuída anteriormente a causas externas, a reforçadores. Agora, ela afirma que é o
eles, eles têm necessidade de fazer para eles se afirmarem. aluno que aprende, o professor apenas ajuda; a causa externa fica, portanto,
desautorizada em nome de algum fator prévio não explicitado.
Retomemos o seu pensamento: o querer deles vem da necessidade e a necessidade Parece-me que, aos poucos, as afirmações aprioristas vão se configurando como
é gerada pela expectativa de um reforço. Temos, aqui, os elementos básicos da noção conveniências de momento que não são, de fato, integradas na reflexão. Ao responder
behaviorista de motivação. A epistemologia que lhe dá sustentação é a empirista. à questão sobre as diferenças de aprendizagem da criança da favela e da classe média
ou alta, e da criança do meio rural em confronto com a do meio urbano, diz ela:
Negar a aula expositiva não significa, necessariamente, a superação do empirismo. A
aula expositiva depende, elas vêm de dois meios diferentes, duas experiências diferentes,
bagagens diferentes...elas vão termais capacidade prá coisas que elas já
não basta porque ele (o aluno) tem que querer aprender. Ele tem que se vivenciaram...a criança do meio rural vai entender, vai saber, vai participar,
esforçar, ele tem que estudar. Fazer as tarefas. já a do meio urbano como não vivenciou aquilo, prá ela vai ser grego.
Depende basicamente da experiência que elas tiveram, que elas vão ter
Tudo isso, claro, é conseguido pela motivação, constituída pelos reforçadores, mas, facilidade para determinado conhecimento.
E por que a criança aprendeu a falar? Acho que essa aí, eu vou ficar meio no ar. A diferença deve-se, basica-
mente, aos estímulos, ao meio, ao modo pelo qual elas são estimuladas.
Porque ela ouve fala; a mãe diz 'mama', 'papá'. Então, é o estímulo que Tenho que estudar mais, não sei realmente te responder. Basicamente o
ela recebe... que vai desenvolvendo... é o desenvolvimento, aparelho fonador e as experiências a que cada um é submetido. E a carga
experienciação, desenvolvimento, e assim vai. genética do macaco que eu não sei, agora, como fica essa relação. Por
que o homem tem um gen... Eu não estudei Zoologia, Biologia; então, eu
Mas o macaco também tem aparelho fonador...? não sei te dar como eu vejo. Prá mim fica uma interrogação.
Não sei te respondera esta pergunta. Quem sabe tu adota um chipanzé e Este desequilíbrio vivido por ela postula estudo teórico e muita reflexão para sua
a gente conversa... (risos). superação, pois o dogma behaviorista da hegemonia do estímulo não será superado a
não ser como forte base teórica.
Qual então a diferença entre o recém-nascido chipanzé e a recém-nascida criança?
Resta saber se a sociedade ou, mais especificamente, o sistema educacional dará
Tá aí uma coisa interessante, dizem que o homem descende dos condições a esta professora de superar as amarras que a prendem ao senso comum,
macacos, mas seria interessante ver qual é a carga genética do homem e à concepção associacionista de aprendizagem e de conhecimento. Para lembrar
do macaco; se eles forem submetidos ao mesmo estimulo, eles vão Bachelard:
conseguir prá mim até hoje esse negócio de o animal não falar seria pelas
cordas vocais; ele não consegue... A ciência supera infinitamente o senso comum.
Como se vê, esta professora chega ao ponto de afirmar a indiferenciação, no que A pesquisa analisou deste modo mais quatro casos. Impressiona como discursos tão
concerne ao conhecimento, da bagagem hereditária do homem e do macaco; o que diferentes aproximam-se epistemologicamente. Os mais diferentes caminhos e a
diferencia é o estímulo. É a expressão máxima do empirismo. O macaco deve ter um mesma epistemologia! Entremos em sala de aula para ver se estas concepções
raciocínio, como diz ela no início da entrevista, e, fica claro, agora, que ele não epistemológicas são confirmadas na prática pedagógica.
consegue expressá-lo por falta de cordas vocais — reside aí a diferenciação do
macaco, com relação ao ser humano, em termos de hereditariedade.
Olhando a Sala de Aula: empirismo x construtivismo
O que surpreende, no entanto, é que basta uma entrevista de uma hora de duração
para que estes dogmas do senso comum sejam colocados na berlinda. A reflexão Esta parte da pesquisa visa complementar a investigação da epistemologia do profes-
Afirma que "Racionalização é produzir mais e melhor, com custos de produção mais Dinâmica do Capital
baixos, etc", mas não diz a que custo e de onde vem o rebaixamento do custo da
produção. Convenientemente, não fala de salários. Também nâo fala de mais-valia. Ao 1) Formação e reprodução do capital
Nossa hipótese é a de que a transformação da postura pedagógica implica uma Ao ser instado a conceituar "conhecimento" (primeiras perguntas), o (a) entrevistado(a)
instância crítica que não se confunde com a crítica eventualmente inerente ao conteúdo professa uma epistemologia empirista. Ao sentir solapada sua convicção empirista
curricular. A crítica a esta postura passa por outra mediação sem a qual nada se fará pela pergunta seguinte, apressa-se em buscar uma fundamentação apriorista. Ao
BECKER, Fernando. Uma socióloga lê Piaget: as confusões conceituais de Bárbara FORTUNA, Tania. R. O pensamento educacional brasileiro e o fracasso escolar, o que
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O processo de socialização escolar de meninas é entendido, aqui, como currículo A Antropologia Cultural, através da visão de Velho (1987), Guimarães (1980) e Da Matta
oculto — mapa orientador da aprendizagem de valores sociais. Tal aprendizagem, (1987), forneceu a tonalidade de fundo da tessitura teórica e possibilitou um olhar e um
subjacente aos conteúdos acadêmicos, envolve uma construção concomitante dos situar-se criticamente no processo de investigação/distanciamento do real. Entendendo
agentes socializadores e das alunas, num vir-a-ser contínuo e dialético. o real como uma tonalidade complexa e dinâmica, o proceder etnográfico da
Antropologia reconhece ser o conhecimento produzido na pesquisa de campo uma
Os agentes participam do processo de aprendizagem como atores que exercem o aproximação provisória, limitada e parcial, em outras palavras, uma das possíveis
papel de educadores, tendo como tarefa a transmissão das disciplinas, normas, versões do real.
valores e regras de comportamento. As alunas sofrem a ação dos agentes, ao
modificarem e internalizarem valores e significados construídos histórica e socialmente, Ethos Escolar
dentro e fora da comunidade escolar.
A partir da recente discussão travada no seio da Antropologia acerca do ethos (Geertz,
O dentro e fora da escola — como as categorias sociológicas casa/rua (DaMatta, 1978) e da concepção histórica da escola (Ariès, 1973) é possível compreender os
1987) — agem como painéis de significação que estabelecem relações entre as aspectos simbólicos das situações sociais cotidianamente vividos por agentes e alunas.
especifícidades do microcosmo pesquisado (escola) e a complexa rede social em que
nos movemos: a sociedade brasileira (rua). Na visão de Geertz, o ethos de um povo diz respeito ao tom, ao caráter e à qualidade
de vida, à construção de um estilo moral e estético à sua disposição. E a atitude
subjacente a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo (eidos)
caminha junto com a de ethos nos informando que o povo tem um quadro elaborado
* Trabalho apresentado na XV Reunião da ANPEd, Caxambu, 1992. das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito de natureza, de si
'* Professora do Curso de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de mesmo, de sociedade. Esse quadro é colorido por suas idéias mais abrangentes sobre
Petrópolis. Aluna do Doutorado em Educação Brasileira da FACED/UFRJ. a ordem.
As professoras, chamadas de tias, assumem essa matemagem-substituta colocando- A carência é intelectual—contudo pode ser sanada, por uma professora competente,
se como modelo de comportamento a ser seguido. Nesta lógica, ser duplamente tia e que saiba diminuir o déficit cognitivo ao explicar bem a matéria.
professora, é um papel (encargo) social cuja construção tem como significado a
constelação familiar, profissional e ainda a identidade feminina. A carência é educativa — porque a educação é vista como algo que vem desde o
Um alto grau de anonimato perpassa as funções da socialização secundária que, por O fato de a socialização nunca ser concluída e dos conteúdos interiorizados estarem
conseguinte, as destaca dos executantes individuais. Assim, por exemplo, a criança continuamente ameaçados em sua realidade subjetiva, toma imperativo que toda
percebe que um mesmo conhecimento poderia ser ensinado tanto por uma professora instituição crie procedimentos de conservação da realidade para salvaguardar um certo
como por outra. grau de simetria entre realidade objetiva e subjetiva. Dentre estes procedimentos, as
regras e as rotinas — enquanto definições da realidade objetiva e recorrentes na vida
diária — se impõem à consciência do indivíduo muito mais clamorosamente, mas
Há uma vinculação entre este formalismo de passar o conteúdo e anonimato com o
podem ser socialmente desafiadas. Contudo, o desafio (a transgressão, o desvio à
caráter afetivo das relações sociais na socialização secundária e, como conseqüência,
normatividade dos valores) teria de ser muito forte para constituir uma ameaça à
confere-se ao conteúdo ensinado uma inevitabilidade muito menos subjetiva. Desta
realidade aceita como "verdadeira" (rotinas, regras e valores em questão).
maneira, o indivíduo tem maior facilidade em colocar entre parênteses o tom da
realidade do conhecimento interiorizado na socialização secundária. Em outras
Os procedimentos de conservação da realidade, como dispositivos disciplinares (Fou-
palavras, o sentimento subjetivo da realidade das interiorizações é mais tênue.
cault, 1987), atuam na gramática físico-social da escola ao ordenar e hierarquizar os
comportamentos consignados às alunas.
São necessários graves choques ao longo da vida para desintegrar a
maciça realidade interiorizada na primeira infância. É preciso muito menos Assim, se pode interpretar o funcionamento, o ordenamento e o aproveitamento dos
para destruir as realidades interiorizadas mais tarde. Além disso, é espaços físicos pela escola como tomando, de certa forma, visível a complexidade
relativamente fácil anular a realidade das interiorizações secundárias. hierárquica das relações sociais aí existentes. São espaços que realizam a fixação dos
(Berger e Luckmann, 1985, p.190) sujeitos e, ao mesmo tempo, permite a circulação: recortam segmentos individuais e
grupais estabelecendo ligações e interações; marcam lugares e indicam valores sociais;
Evidentemente, o melhor e mais claro exemplo de socialização secundária é aquele garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor e mais eficaz
realizado nas instituições especializadas, como as escolas, indicando o declínio da economia de tempo e gestos.
família em relação a esta "etapa" da socialização. Cabe perguntar aos autores: nas
escolas que funcionam como instituições totais (Goffman, 1987) em regime de internato No ethos escolar, tais espaços são mistos. São "reais", pois regem a disposição das
e semi-internato, atendendo a crianças a partir de quatro anos de idade, também o diversas construções: salas, mobiliário (gramática física). Mas também são ideais,
Mas, na visão das alunas o processo de seleção e avaliação não funciona em duas
4 vias — não há uma mão e contra-mão. Elas não crêem estar dividindo fracassos
A pesquisa mostrou que a sutileza e a flexibilidade dos agentes e alunas estão presentes no
cotidiano escolar como uma tela de rachaduras tramadas no tecido social e no muro circular escolares com a professora, pois a nota ruim, vermelha e abaixo de 60 só pertence a
de habitue instituído (Bourdieu, 1972). O que me levou a relativizar o conceito do autor. elas: a sua burrice, falta de atenção, ignorância mesmo... Entretanto, as meninas
É assim que a realidade fala da existência de dois boletins que caminham juntos,
Tais representações acerca das notas sugerem que a promoção das alunas está mapeando a trajetória social das alunas, dentro e fora da escola. Um boletim, concreto,
conjugada ao valor esforço. Aparecendo como uma espécie de qualidade moral e ser visível e graficamente produzido, fornece uma síntese numérica da biografia de cada
aprendida no cotidiano, supõe uma recompensa futura para todas, alunas e professoras aluna — sua carreira — e evidencia certos e errados através de notas azuis e
que momentaneamente, se encontram entrelaçadas no esforço de alcançar o esforço. vermelhas nas diversas disciplinas.
Para as alunos, ser esforçada nos estudos significa passar de ano com notas azuis.
Para os agentes, ser esforçado em suas ações pedagógicas significa não ser reprovado
como educador no desempenho de sua tarefa social: extinguir as carências das O segundo boletim, abstrato, invisível, social e historicamente construído, sintetiza os
alunas. valores, qualidade e características sócio-afetivas de aprendizagem necessárias para
se tornar mulher (e cidadã brasileira).
O movimento de continuidade entre os agentes (definidores da realidade) é enfatizado Tudo parece sugerir que o sistema de seriação escolar atua com períodos de
pela mesma filiação à Sociedade mantenedora; pelos laços de parentesco (superiora preparação para a grande síntese; a ida das vitoriosas para a outra.
da escola é irmã da diretora do outro colégio que, por sua vez, é ex-freira da mesma
congregação); pela história biográfica das duas instituições que se interpenetram; O fato empiricamente constatável da outra escola não ser religiosa, "naturalmente"
pelas normas e valores comuns em que se apóiam no processo de socialização de demarca a travessia das fronteiras entre o sagrado e o profano. O colégio misto dá um
suas alunas; pelo mesmo sistema de internato e semi-internato e, pela disposição novo passaporte às meninas; a possibilidade de encontro e convívio com outro gênero
físico-social dos espaços. (visível, concreto, social e humano). Na escola antiga só é possível conviver e conhecer
Deus (abstrato, invisível, não social e sobrenatural).
Quanto às descontinuidades, de certa forma, também se configuram em aspectos
físico-sociais, como: clientela atendida (escola particular que atende às camadas Um rito mapeado pela puberdade fisiológica e social necessita compreender os padrões
médias); escola mista; possuir cantina, esportes e bom ensino. de comportamento das alunas em relação à sexualidade feminina, conjugando
sexualidade e desejo num verbo só.
Estas categorias que, ao mesmo tempo qualificam a outra escola como inverso e
contraste da primeira, pertencem ao repertório da representações das alunas da 4ª Refletindo sobre as representações acerca da sexualidade feminina, presentes neste
série. Embora "coincidam" com a "realidade concreta" traduzem e imprimem à universo social, à luz das contribuições de Lacan (1988) acerca da feminilidade,
passagem para a 5ª série o significado de recomeço, um fechamento de um ciclo de interpreto a trajetória pedagógica das alunas como estando também pautada pelo
vida (menina) para o nascimento de outro (mulher), marcando uma outra travessia: a desejo, pelo sonho, pelos projetos utópicos e por tudo aquilo que subjaz à criação, à
perspectiva de emprego e liberdade social. imaginação e à história humana.
Para as alunas, o ingresso para a outra escola expressa aspectos biológicos e sexuais No Freud que Lacan usa nem o inconsciente nem a sexualidade são fatos
(a primeira menstruação e perspectiva de conviver com meninos), somado a um predeterminados; eles são construções, ou seja, são objetos com histórias. É nessa
caráter social (a passagem e a promoção para uma escola particular que atende a história do sujeito humano em sua generalidade (história humana), e sua particularidade
crianças de classe média). Lá vão encontrar (como um prêmio pelos anos vividos) (a vida específica do indivíduo) que se manifesta a fantasia inconsciente que a
Ao viverem esta situação de flutuação entre dois mundos distintos, as alunas, embora
Acredito nas indagações e inquietações porque elas contém a semente de toda
sintam agudamente a pressão do significado de estudar mais para passar na prova de
produção/construção/criação humana. Por isso, indagar é preciso... É assim que
seleção, colocam a rotina escolar entre parentêses, dando mais atenção e investindo
problematizo nossa praxis perguntando: se já nos preocupamos o bastante em extrair
seu desejo na passagem para a puberdade social — agora seu mundo sagrado,
de cada microcosmo investigando as possíveis saídas para os reflexos que o macro-
místico e mítico.
social impõe? Se na nossa tarefa política de educadores/pesquisadores (legitimados
pelos sujeitos investigados e pelos nossos pares) retomamos com o objeto de
É a mobilização do significado passagem, socialmente construído no grupo de alunas,
conhecimento para estas pessoas, co-autoras desta produção teórica, para que assim
que transforma e reveste a travessia de uma escola para outra numa criação que
tivessem a oportunidade de refletir em cima de suas cotidianidades com múltiplas
permite ir além do tradicional sistema de seriação escolar, com suas ordenações e
significações? Será que tais reflexões não poderiam transformar a praxis pedagógica
inclusões sucessivas, planejamentos e avaliações.
destes microcosmos investigados?
Pensar na passagem de uma série para outra dentro do sistema educacional em cada
uma delas, sua trama de significados, valores e crenças que subjazem à pedagogia Penso que estas perguntas são perigosas. Elas nos levam a olhar para o nosso poder
dos agentes socializadores. pessoal, de alguma forma investindo na pulsão de intelectualidade e no avanço do
conhecimento científico.
Abrindo Questões
Considero como questões cruciais para a pesquisa/compreensão do currículo que as
A pesquisa realizada nesta escola da Zona Sul do Rio de Janeiro, no período de 1989- futuras investigações levem em conta:
— os projetos sociais dos alunos e através deles, buscar o sentido de suas trajetórias DAUSTER, Tânia et al. O cavalo dos outros. Tecnologia Educacional, Rio de Janeiro,
escolares tanto no que concerne à construção de conhecimentos na/da escola, quanto n.40, maio/jun. 1981.
aos conhecimentos que ambicionam construir para suas vidas;
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, história da violência nas prisões. 6.ed. Petrópolis:
— o imaginário social embutido nas diversas seriações escolares, vendo-as enquanto Vozes, 1987.
mapeamentos sociais da aprendizagem acadêmica;
FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Standard, 1979. v.23.
— os significados emprestados ao currículo pelos agentes socializadores e alunos
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BOURDIEU, Pierre. Esquisse d'une théorie da 1ª pratique, précédé de trois études
d'ethnologie kabvle. Genève: Droz, 1972. VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
Dessa realidade, surge uma proposta de recuperação do parque, por iniciativa do Não era evidente uma proposta curricular encerrada, compreendendo princípios
Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) em conjunto com a Prefeitura de Salvador, filosóficos e abordagem metodológica enunciados de forma precisa. Contudo, algumas
que responde pela administração do parque, através da Secretaria de Ação Social, que diretrizes básicas, explícitas ou tácitas norteavam o trabalho em nível teórico:
envolve ações de recomposição ambiental e introdução de atividades economicamente
rentáveis, compreendendo também uma dimensão educativa que incorpora a — associação da compreensão teórica à ação real;
valorização dos aspectos cultural e histórico dos grupos sociais da comunidade com
vistas ao fortalecimento e conquista dos seus direitos políticos e sociais. — combinação entre reflexão crítica e ação social;
FIGURA 1 - Integração das disciplinas no currículo a partir da realização de atividades como jornal, vídeo, viveiro, horto, maquete do parque e oficina de teatro
Este patrimônio deve ser tratado com o maior carinho, pois sua fauna e
flora são ricas e inestimáveis. Ela desperta nas crianças a fantasia, o amor,
O Currículo e os Resultados dos Alunos a inocência, e, acabar com isso é matar o futuro das crianças.
A análise das provas de seleção dos alunos para o curso de Guias e Guardiães revela O parque é uma área linda e é uma pena que esteja entregue a depredação
que eles possuíam, inicialmente, uma visão naturalista do parque, ou seja, como um e aos marginais.
Cada vez mais a destruição toma conta do parque: árvores cortadas, lixo Tal observação confirma-se em trechos selecionados dos alunos:
espalhado, cachoeiras poluídas.
Tomar banho na cachoeira é o mesmo que estar sendo purificado pelas
Quero deixar o parque com uma flora bonita e cachoeira limpa. águas correntes.
O parque está sendo agora um lugar onde os vândalos destróem, poluem O arco-íris que se vê da cachoeira tem a magia de um Orixá, muito belo que
e também como lugar de extermínio de ladrões. se chama Oxum Maré, o senha da chuva e de todas as serpentes, um orixá
das águas correntes que carregava água para o palácio de Xangô, o senhor
do raio e trovão que é o filho de lemanjá, a mulher de Ganjú.
Outras respostas dos alunos a partir de um exercício proposto durante o inicio do curso
de Comunicação e Expressão, apesar de conter elementos humanos, reforçam que a Na subida para a cachoeira de Oxum tem uma pedra, esta pedra é de
idéia que eles faziam do parque e da natureza está contaminada por esta concepção Obaluaê, o senhor que cura todas as doenças. Ele era um homem muito
naturalista. doente e, por isso, teve que ser enrolado e coberto em palhas, a sua mãe
era Nauá, a senhora das águas, e ela desesperada pegou Obaluaê e jogou
Vejam-se as respostas a provocação do professor: O PARQUE É: no rio repleto de caranguejos. Ele sobreviveu.
— mato — mães de santo As cachoeiras têm os nomes dos deuses que originaram elas.
— lixo — animais
— árvores — peixes
— cachoeiras — esgoto Em síntese, é importante salientar que as diversas leituras que o aluno fazia do parque,
— casas — poluição de uma forma geral, eram assinaladas por uma defesa acrítica da sua preservação, na
— barracas — palafitas qual estão ausentes quaisquer argumentos capazes de problematizar as agressões
— pedras — Oxúm, Ogum, lansã, Oxalá, Oxoci ambientais praticadas pelo homem que lá vive, suas causas e conseqüências tanto
— trilho — despachos de candomblé para o ambiente natural como social. Tal fato revela o desconhecimento do que seja o
— barragem — oferenda parque do ponto de vista físico-social.
Outro foco que está presente nas falas dos alunos é o da importância histórica e Alguns dizeres dos alunos que confirmam este comentário:
cultural do parque, apontada, na maioria das vezes, como uma verdade acabada, por
si só explicativa:" Devemos preservar os micos, os bem-te-vis, os papa-capim, as Lugar muito bonito que não pode ser destruído.
árvores que presenciaram toda a história do parque";" Um lugar conhecido como
centro histórico, do culto afro, também como uma das últimas reservas de mata Deve ser preservado por ser uma das maiores fontes de oxigênio de
Atlântica"." Cenário da luta pela independência e santuário sagrado das religiões afro". Salvador.
Temos que preservar a natureza, pois são as plantas que soltam o oxigênio.
Não é preciso dizer a importância que o imaginário do aluno tem para possibilitar a
expressão do seu entendimento do parque, da sua realidade. Penetrar no imaginário
significa penetrar no espaço onde o homem tem o poder de formar, distribuir e impor
imagens conforme os seus desejos, ainda que inconscientes. Por carregar em si uma
polarização dos anseios, possui um caráter prospectivo, ou seja, contém elementos
que se desejam serem alcançados no futuro. O indivíduo não consegue impedir de
arrumar os elementos da realidade de uma maneira diferente do real, a fim de que eles
correspondam a seu desejo. Nesse sentido, a idéia de natureza e do parque dos
alunos pertence não só ao domínio das idéias, mas do desejo. Exemplo disso é que a
idéia de natureza presente nos discursos do aluno permite que a insatisfação se
expresse. Segundo Rosset (1989), "sem a idéia de natureza, isto é, sem referencial de
necessidade, a insatisfação estaria condenada a permanecer curvada sobre si mesma
e a não se exprimir jamais".
Ao confrontar o entendimento que o aluno tinha do parque, com a forma pela qual ele
o vê hoje, verifica-se que houve uma superação do estado de consciência acrítica
acerca da realidade do parque São Bartolomeu. Um bom exemplo do nível ---de
compreensão alcançado se revela na observação de mapas do parque, confeccionados
durante uma avaliação preliminar, antes do início do curso de formação de Guias e
Guardiães e mapas confeccionados durante a avaliação final do curso. A Figura 2
apresenta dois dos mapas supracitados. É fácil perceber o poder de síntese alcançado
na fase final do curso, que se traduz na capacidade de localização espacial, orientação
e representação gráfica em escala, associados a problematização bio-geológico-
ambiental, numa inequívoca demonstração da percepção crítica desenvolvida.
Para enfrentar o problema das queimadas, seria preciso uma Floresta, quando citamos esse nome pensamos ser um enfeite da natureza,
conscientização das pessoas que moram ou transitam no parque. Diferente mas não é só um enfeite, é uma ecossistema onde vivem vários animais,
do problema dos esgotos que precisariam de uma ação por parte do governo. onde precisamos de solo rico para os produtores que alimentam os
Já o problema das pessoas que moram no parque, eu acho que teríamos consumidores, depois vêm os decompositores que fertilizam o solo.
que lutar diante do governo e outras entidades para que eles possam tirar
essas pessoas desses lugares para lugares em condições de vida melhor. A Floresta Atlântica vive um constante equilíbrio. Ela é muito frágil. Se
mexermos em uma coisa aos nossos olhos mínimos, pode resultar em
O mangue de dentro do parque está tendo grande alteração segundo a imprevisível desastre natural. E é isso que ocorre aqui em São Bartolomeu.
nossa geologia, as pessoas estão tirando as árvores, derrubando-as e as O desmatamento é um dos problemas que mexe no equilíbrio da mata. Com
É importante chamar atenção para a "má informação" veiculada por estas práticas tão GIROUX, H. Teoria crítica e resistência em educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
comuns no meio educacional e nos meios de comunicação social, que têm vinculado 336p.
a questão ambiental a interpretações ingênuas de modelos de sociedade, ocultando
assim aspectos político-econômicos de base. A conseqüência é o risco para os NOT, L As pedagogias do conhecimento. São Paulo: Difel, 1981.488p.
sistemas ecossociais de manter o mesmo padrão de relacionamento vigente, ao invés
de buscar e estabelecer novas metas, limitando dessa forma a absorver as dificuldades ROSSET, O A anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro:
ambientais e acomodar a essa contradição. Espaço e Tempo, 1989.
Uma nova racionalidade se impõe aos sujeitos do currículo, professor e aluno, RUBBA, P. Goals and competencies for precollege. Journal of Environment
racionalidade esta que vem substituir propostas e práticas de Educação Ambiental Education,,v.19, n.4, p.38-44,1988.
As únicas publicações de livros sobre currículo, de autor brasileiro, nesta década, A Produção em Livros
foram os livros de Lady Lina Traldi — Currículo: conceituações e implicações, Currículo:
metodologia de avaliação e Currículo: teoria e prática, em 1977 (Moreira, 1990; Um dos primeiros aspectos a ressaltar é o grande número de obras de autores
Cardoso et al., 1987; Domingues, 1985). Em todas estas obras percebe-se com nacionais, diferentemente das décadas anteriores, mais marcadas pela difusão de
evidência a predominância da tendência tecnicista, ainda que não possa ser obras estrangeiras traduzidas. Dos 12 livros publicados, oito são de autores nacionais,
absolutizada. É isto, por exemplo, que Moreira(1990) buscou demonstrar ao identificar três de autores estrangeiros e um de autor estrangeiro, mas editado primeiramente no
nas obras de Tyler e Taba princípios progressivistas. Segundo balanço das publicações País. A maior parte das publicações data da segunda metade da década de 80—oito
livros — e início dos anos 90 — quatro livros (ver Quadro I).
Outro aspecto a ressaltar é que na grande maioria desses livros perpassa o espírito da
¹- Por influência tecnicista entende-se a tradição curricular predominante nos EUA, até a
renovação — com exceção da obra de Frederick (1987) — o que os diferencia
década de 60, caracterizada pela racionalidade técnica, preocupações com determinação de
substancialmente da produção sobre currículos das décadas anteriores, como será
objetivos e controle do processo educativo. Os principais teóricos dessa tendência foram F.
Bobbit e R. Tyler. Ver Tyler (1974) e Kliebard (1980). visto a seguir.
Outros três livros constituem adaptações de teses e dissertações: Saul, 1988 (tese de SILVA, T. M. N. A Construção do EPU 1990 -
doutorado— PUC/SP); Moreira, 1990 (tese de doutorado — Instituto de Educação da Currículo na Sala de Aula
Universidade de Londres); e Silva, 1990 (dissertação de mestrado — PUC/SP).
MARTINS, J. Um Enfoque Cortez 1992
Também vinculado às atividades do Programa de Pós-Graduação da PUC/SP encontra- Fenomenológico do
se o livro de Martins (1992). Currículo: educação como
poiésis
Verifica-se, também, que todos os autores desses livros são professores vinculados à
universidade, mesmo os autores estrangeiros, seja a programas de pós-graduação, No início da década de 80, dois livros indicaram, ainda que timidamente, novas
seja a faculdades de educação. Por isso, sobressaem os programas de pós-graduação perspectivas no tratamento do currículo. Em O Currículo: teoria e prática (1981), Albert
como os principais responsáveis pela produção sobre currículo no País, evidenciando, V. Kelly se propõe a apresentar uma "visão prospectiva" das diversas teorias existentes
conseqüentemente, a universidade como locus da produção de conhecimento na área. no campo. No entanto, o livro contempla as questões temáticas tradicionais do currículo
— como planejamento, objetivos, integração, avaliação — além de discutir o contexto
Quadro I — Relação de Autores e Livros Publicados a partir da Década de 80 social do desenvolvimento do currículo e o problema do currículo comum. O autor se
limita então, mais a discutir e tematizar estes diferentes aspectos que propriamente
teorizar sobre no tema tal como sugere o título.
AUTORES NOME DO LIVRO EDITORA ANO DE EDIÇÃO NO
EDIÇÃO EXTERIOR
Em Currículo: análise e debate (1981) encontram-se textos importantes, representativos
ORKEELY, A. J. 0 Currículo: teoria Happer & Raw do 1981 1977
das tendências do debate e abordagens críticas no campo em âmbito internacional,
e prática Brasil
mais propriamente o norte-americano. Nesse sentido _ como as próprias
MESSICK, R.(org.) Currículo: análise Zahar 1962 - organizadoras o classificam — o livro se apresentava, naquele momento, como
e debate
"literatura de renovação". Destacam-se alguns textos, como os de Kliebard, que
APPLE, M. Ideologia e Currículo Brasiliense 1982 1979/EUA consistem em uma crítica contundente ao modelo baseado nas obras de Bobbit e
Tyler, chamado pelo autor de paradigma técnico-burocrático. Os textos de Crombach e
D'ANTOLA, A. Supervisão e Currículo Pioneira 1983 - Parlett e Hamilton apresentam enfoques qualitativos para a avaliação educacional.
FREDERICK, A. Currículo e Contexto MacGraw-Hill 1987 -
Sociocultural Em 1982, é publicada a tradução de Ideologia e Currículo, de Michael Apple, três anos
após sua publicação nos Estados Unidos da América. Esta obra pode ser considerada
RANGEL, M. Currículo de 1ºe 2º Vozes 1988 - uma das mais importantes da década pela significativa influência nos estudos e
Graus no Brasil
A Produção em Periódicos
Reflexões de Natureza Teórica sobre Currículo
Duas publicações de 1987 vão merecer destaque por serem coletâneas de textos Os dois outros textos — o de Teresa Silva Roserley, Influências Teóricas no Ensino e
exclusivos sobre o tema: o número 13 do Cadernos CEDES, intitulado Currículos e Currículo no Brasil e o de Tomaz Tadeu Silva, Currículo, Conhecimento e Democracia:
Programas: como vê-los hoje? e o número 63 da Revista de Educação AEC, intitulada as lições e as dúvidas de duas décadas, fazem um balanço das influências teóricas no
Conteúdos Escolares. campo do currículo. Constituem importantes textos de revisão bibliográfica.
' Esta publicação congrega as conferências, debates e trabalhos apresentados no Seminário Internacional de Ensino — SIE, realizado no período de 23 a 27 de setembro de 1985, em Porto Alegre/RS.
Quanto ao conteúdo e pressupostos da produção no campo do currículo nesta última O dinamismo dessa produção se destacou como característica. Se, no início da
década, observa-se, por um lado, uma ruptura, principalmente no que diz respeito às década de 80, tratou-se de denunciar as relações entre currículo e cultura, ideologia e
abordagens utilizadas no tratamento do tema e, por outro lado, a multiplicidade dos poder, estabelecendo a vinculação entre a distribuição do conhecimento e reprodução
discursos produzidos; e isto pode ser verificado tanto nos livros quanto nos artigos. social — com base principalmente no pensamento de Apple (1982) e Young, no final
desta década, já se encontram presentes revisões críticas, propondo-se a superar os
Em relação à produção em livros destaca-se, em primeiro lugar, a diferença quantitativa limites e reducionismos presentes na produção anterior—Apple (1989), Silva (1990),
entre a produção, a partir da década de 80 e a da década de 70. Nesta, foram Young e Giroux, entre outros.
publicados quatro livros sobre currículo no País, sendo três de autores estrangeiros —
Tyler (1974), Fleming (1970), Taba (1974)—e um de autora brasileira, Traldi (1977) — Ainda, em se tratando da sociologia do currículo, constata-se a influência estrangeira
coletânea em três volumes. A partir da década de 80, diminuiu a publicação de livros no pensamento curricular brasileiro. Contudo, não cabe falar em simples "transferência"
estrangeiros — apenas três: Kelly (1981), Apple (1982 e 1989) —; e aumentou o ou reprodução. O que se percebe é um esforço de reinterpretação dos autores
Em se tratando das tendências verificadas nessa produção, o deslocamento das A questão do currículo perpassa, de forma crucial, a discussão do fazer docente e,
preocupações, antes, em torno dos aspectos técnico-metodológicos para portanto, reivindica sua interação com a didática, a psicologia, a filosofia e outras
preocupações, agora, de natureza política, econômica e sociocultural, ampliou, de disciplinas de formação no campo educacional.
forma significativa, o universo de análise do currículo. Evidentemente, isto aprofundou
as dificuldades de acercar-se do currículo enquanto objeto de estudo e, portanto, de Nesta perspectiva, os tantos aspectos que envolvem o curriculo e outros do domínio
construir uma teoria geral do mesmo. É o que se pode perceber nos livros e artigos educativo que são por ele determinados, indicam a necessidade de se romper com a
analisados. Além disso, novas áreas de pesquisa vieram a se somar neste campo, na rigidez de "campos de especialidades" e caminhar na busca da interdisciplinaridade e
última década: os estudos históricos das disciplinas escolares e os estudos etnográficos da transdisciplinaridade. E isto, certamente, implica conseqüências profundas na
da construção do conhecimento na sala de aula. concepção de formação de educadores.
Fato é que o currículo, por sua própria natureza, resiste a simplificações fáceis. Nele A polêmica pouco profícua em tomo da revalorização dos "conteúdos" resultou na
encontra-se impregnado o problema da relação teoria-prática, pois conceber o currículo secundarização de outras questões fundamentais para o campo do currículo como, por
demanda que se tenha uma concepção de mundo, sociedade e educação e, considerar exemplo, o da relação entre as características da cultura brasileira e as condições de
os fundamentos filosóficos, ideológicos, sociológicos, epistemológicos, antropológicos, produção do conhecimento científico e do conhecimento escolar em nossa sociedade.
Partindo de uma concepção abrangente de currículo, compreendendo-o como "seleção DOMINGUES, J.L O cotidiano da escola de 1º grau: o sonho e a realidade. São
da cultura de uma sociedade" (Lawton, 1975, p.6), então é no mínimo necessário que Paulo, 1985. Tese (Doutorado) • PUC/SP.
se debruce sobre a compreensão da cultura brasileira atual—o que implica considerar,
no currículo, questões de relações de classe, gênero e raça; questões relacionadas ao
GIMENO SACRISTÁN, J. El curriculum: una reflexión sobre Ia práctica. 3.ed. Madrid:
desenvolvimento científico e tecnológico; questões ecológicas, de moral e ética; além
Morata, 1991.
de reconsiderar a dimensão corporal, artística e lúdica que envolve o ato educativo.
Por fim, a revisão da produção intelectual brasileira no campo do currículo, a partir dos GOLDBERG, Maria Amélia Azevedo. Avaliação de programas: vicissitudes,
anos 80, exposta neste artigo, permitiu obter um quadro referencial das tendências e controvérsias, desafios, São Paulo: EPU, 1982.
abordagens dessa produção. A análise indicou a amplitude das tarefas teórico-práticas
com as quais terão que se haver educadores e estudiosos do currículo visando à KLIEBARD, H.M. Burocracia e teoria do currículo, ln: MESSICK, R.G. et al.(Org.).
consolidação de um campo de produção científico-acadêmica. Indicou por último, a Currículo: análise e debate. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
necessidade de incorporar o potencial crítico verificado nessa produção, em
possibilidades criadoras e realizáveis.
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sociologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
Em maio de 1993, um grupo de especialistas em currículo nas áreas de Português, Ao realizar a intersecção básica dos conteúdos, verificou-se que, nos casos em que o
Matemática e Ciências analisou as propostas curriculares dos seguintes estados conteúdo específico não constava da série a ser avaliada, havia sido trabalhado nas
brasileiros: Acre, Alagoas, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, séries anteriores.
Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande
do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Por consenso, o grupo decidiu trabalhar com as Foi sugerida à equipe de elaboração das provas a leitura das propostas curriculares
propostas mais completas, que incluíam, além das listagens dos conteúdos, a
mais avançadas, não como base para a elaboração dos testes, mas sim como
fundamentação teórico-metodológica.
indicador de possíveis avanços e rupturas existentes na área.
Água: O homem:
— Composição básica — A célula, os tecidos
— Propriedades — Órgãos do corpo humano, sistemas
— Estados físicos Os sentidos:
— Mudanças dos estados físicos — Visão
— Ciclo da água — Audição
— Relações de interdependência (sol, solo, ar e seres vivos) — Olfação
— Água e saúde — Gustação
Ar: -Tato
— Composição básica — Os sentidos e saúde
Sistema nervoso:
— Propriedades
— Partes do sistema nervoso
— Pressão atmosférica
— Funções
— Camadas atmosféricas
— Sistema nervoso e saúde
— Relação de interdepênda (sol, solo, água, e seres vivos
Sistema endócrino:
— Ar e saúde
— Tipos de glândula
Solo: — Funções
— Características dos diferentes tipos de solo — Sistema endócrino e saúde
— Erosão do solo Sistema locomotor:
— Aproveitamento do solo — O processo locomotivo: ossos, articulações, e músculos
— Relação de interdepêndencia (sol, ar, água e seres vivos) — Sistema locomotor e saúde
— Solo e saúde Sistema digestivo:
Ecologia: noções básicas: — O processo digestivo: boca, faringe, esôfago, estômago e intestino
— Preservação, degradação e recuperação do ambiente — Sistema digestivo e saúde
Sistema respiratório:
— O processo respiratório: nariz, faringe, laringe, traquéia, brônquios, bronquíolos e pulmões
— Sistema respiratório e saúde
Sistema circulatório:
— O processo circulatório: coração, sangue, artérias, e veias
— Sistema circulatório e saúde
Sistema excretor:
— O processo excretor rins, bexiga, ureteres e uretra
Sistema reprodutor:
— Sistema reprodutor feminino
— Sistema reprodutor masculino
— O processo de reprodução
— Sistema reprodutor e saúde
— Distinção e percepção de formas de objetos do cotidiano Sólidos geométricos — Figuras geométricas planas e espaciais — Ponto, reta e plano a partir de poliedro
— Percepção e identificação de semelhanças e diferenças — Usuais — Classificação dos sólidos e das figuras planas — Ângulo como mudança de direção de um segmento
entre objetos do cotidiano — Classificação — Curvas abertas e fechadas: — Semelhanças e diferenças entre polígonos e políedros
— Comparação e classificação de figuras planas e — Planificação Fronteira regulares
náo-planas — Construção através de modelos planifícados Interior — Polígonos:
— Identificação de figuras planas — Reconhecimento de faces, vértices e arestas Exterior Classificação com relação ao número de lados
Frente/atrás — Reta, semi-reta, segmento de reta — Triângulo:
Em cima/embaixo Figuras planas — Posições relativas: Soma dos ângulos internos e externos
Esquerda/direta — Classificação De duas retas Classificação quanto ao número de lados e aos ângulos
— Topologia — Reconhecimento de perímetro e área De reta e círculo — Circulo
Fronteira — Triângulo: classificação quanto à medida dos lados — Noções de ângulo — Congruência de triângulo
Exterior — Quadriláteros: classificação quanto à medida e posição — Circulo: — Teorema de Pítágoras
Interior dos lados Centro — Posições relativas entre:
— Classificação de figuras planas: quadrado, triângulo, Corda Ponto e circulo
Noção de ângulo Diâmetro Dois círculos
círculo, retângulo
— Ângulo reto Arco
— Idem de histórias em quadrinhos Materiais de leitura — Constituintes da frase (obrigatórios): sintagma nominal, sintagma verbal
— Idem de poesias — Crônicas, contos romances, fábulas, poesias, cordel. — Sintagma preposicional
— Leitura recreativa livre. — Textos das várias áreas de estudo. — Sintagma adjetival(facltativos).
— Completar histórias.
— Relatórios, resumos
— Mudar inicio ou final.
— Cartas, bilhetes
— Criar títulos.
— Criar histórias á vista de quadrinhos ou gravuras. — Notícias, reportagens
FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológica do cultural de um grupo, "tradição seletiva", sendo que cabe à educação a tarefa de
conhecimento escolar. Trad. Guacira Lopes Louro, Porto Alegre: Artes Médicas, difundir este patrimônio comum. A educação tem a função de socialização global, de
1993. 205p. especialização bem como de educação geral; já Bantock é contra a política educativa
de igualdade de oportunidades e da democratização cultural. Considera que os
O livro constitui a versão abreviada e reformulada da tese de Doutorado defendida em indivíduos são desigualmente aptos para se beneficiarem dos recursos educativos e
junho de 1987 na Universidade de Ciências Humanas de Estrasburgo. que toda educação é, em essência, "desequalizadora", daí porque a grande massa da
humanidade não deveria jamais aprender a ler e a escrever. Considera a cultura de
Nesta obra, o autor comenta questões importantes sobre o conhecimento escolar: Que massa antieducativa bem como utópica a transmissão generalizada de uma cultura
ensinar? Quais as relações para se ensinar determinados conteúdos e não outros? alfabética e erudita, dai porque a escola tem de oferecer cursos diferenciados para
Quais as relações entre a seleção implicada no conceito de currículo e o processo de clientelas distintas.
desigualdade social? Quais as relações entre cultura erudita e cultura popular no
contexto da elaboração do currículo escolar? O ensino deve ser geral ou liberal, visar ao desenvolvimento do pensamento concep-
tual, à transmissão de saberes ou à iniciação dos valores?
Faz, para tanto, uma revisão exaustiva dos diferentes e variados autores, dentre eles
Raymond Willians, Geoffrey Bantock e Paul Hirst que se destacam na década de 60,
Na concepção do autor, "a escola não deve talvez transmitir senão valores, mas deve-
e, as contribuições de Bernstein, Young, Vulliamy e Geoff Whitty na década de 70, que
se reconhecer que é ainda o que ela sabe fazer melhor, o que a sociedade tolera
tentaram dar respostas a essas e outras questões referentes ao currículo educacional,
melhor que ela faça, e que ninguém faz melhor do que ela, ainda que se possam muito
sob a ótica da Sociologia Crítica.
bem imaginar outros canais e outras redes para outros tipos de transmissões".
Nos capítulos 1 e 2 comenta as contribuições do pensador socialista R. Willians, do Outra contribuição que destaca é a de M. Young que se prende ao estudo
teórico neo-conservador Bantock e do filósofo racionalista Paul H. Hirst para explicitar sociomorfológico dos currículos, ressaltando que os processos de seleção e de
as características da ligação entre teorias da educação e teorias da cultura. O primeiro organização dos conteúdos cognitivos e culturais do ensino traduzem os pressupostos
defende que certos aspectos da cultura do passado sobrevivem e constroem a memória ideológicos e os interesses sociais de grupos dominantes.
Esta obra, em síntese, constitui uma fonte de consulta e reflexão por parte dos
educadores e equipes interessadas em desenvolver um trabalho coletivo de Miguel André Berger
O livro de Joel Martins, que se constitui numa análise dos enfoques contemporâneos O objetivo da reflexão é iluminar a idéia de currículo, utilizando os recursos da
sobre currículo, representa uma contribuição na discussão de modelos que Fenomenologia que, no conjunto das relações conscientes e interacionais, faz emergir
historicamente influenciaram a educação brasileira. Tratando de um dos mais e mostrar-se o que está oculto para o transfazer.
importantes aspectos educacionais — o currículo —, trazendo-o à tona sob a
perspectiva fenomenológica, indica outras possibilidades de se estar no mundo,
Essa reflexão nos remete a uma outra dimensão e possibilidade de análise do currículo
construindo-se enquanto ser humano.
o que, para o autor, é equivalente à Educação.
Seu livro é fruto de reflexões organizadas pela Drª Vitória Helena Cunha Espósito, a
Inicialmente, o autor propõe reflexões abordando uma filosofia da Educação
partir de suas anotações e dos textos escritos para o primeiro curso de inverno na PUC/
fundamentada na Fenomenologia que surge na segunda metade do século XX, a partir
SP — Programa de Supervisão e Currículo, sob o título Fenomenologia e Currículo,
das investigações de Husserl e Martin Heidegger, que considera o estar no mundo
considerado por aquela pesquisadora como "um dos mais belos encontros de
como característica essencial do existire a interpretação como o objeto da descrição
educadores" que vivenciou.
fenomenológica do existir. Por esta razão, a Fenomenologia é hermenêutica.
Em três partes precedidas do texto "A vida e a morte de Sócrates e preliminares: Na reflexão desenvolvida pelo autor, a Fenomenologia constitui-se em metodologia
currículo e fenomenologia", o autor nos faz refletir sobre a questão do movimento do para a filosofia, rompendo com a relação cartesiana sujeito-objeto, delegando à ciência
ser, do mundo e a relação existência-essência, considerando o interesse da educação filosófica subsídios de captação do ser através da atividade humana intencional e
e a necessidade emergente de modificação das condições humanas na sociedade. consciente.
Sob a perspectiva fenomenológica, o autor propõe uma linha filosófica como premissa Dentre a diversidade contemporânea na filosofia da educação, o autor compara "a
curricular que, em articulação com a vivência, possibilitará trazer à tona e tornar visível ênfase numa filosofia pública de educação; uma filosofia de educação fundamental na
o que está oculto na relação homem-vida, para o fazer da transversalidade a partir da Fenomenologia e uma filosofia profissional de educação", distinguindo a segunda por
O autor levanta um questionamento quanto à possibilidade de convergência entre as Para Martins, o curriculum "é um instrumento de trabalho, onde estão incluídas todas
três linhas metodológicas objetivando o "papel educativo da própria vida". as atividades em que a escola se concentra para adaptar os indivíduos às condições
de vida que ele deve viver".
O autor afirma ainda que a educação é um processo social assim como a linguagem,
criado e projetado pelo poder dominante como uma consciência de mundo. Observa, Na concepção do autor, o currículo pressupõe o levantamento das forças que
também, uma concepção da educação que envolve a transformação da experiência determinam e das condições que orientam e operam a cultura vigente. Propõe ainda o
pessoal e da consciência. A Fenomenologia tem por objetivo a essência do ser, ou que consideramos um desafio aos educadores: a tentativa "útil e imprescindível" de
seja, o próprio fenômeno, proporcionando a habilidade de melhor conhecimento dos identificar e classificar essas forças que operam momentaneamente na sociedade.
"mundos-vidas" fazendo com que ele seja entendido como é, a partir da vivência e
experiência. Utilizada como metodologia, a intencionalidade e orientação da O debate que se trava no texto de Joel Martins permite considerar os pressupostos do
consciência na descrição do mundo para o objeto, que é o que aparece, ou o que se trabalho humano enquanto uma ação social e criativa, política e combativa que se faz
deixa evidenciar. em um ambiente de solidariedade e comunicação.
Dessa forma, a Fenomenologia na educação é caracterizada pelo autor enquanto Por fim, fica evidente a importância do currículo no planejamento colocado como
superação da concepção racionalista e pragmática ao considerar uma relação entre o elemento fundamental e norteador da atividade de ensino e como indispensável
"noesis" (sujeito) e o "noema" (mundo), mediados pela intencionalidade, ou seja, prerrogativa da unidade escolar.
consciência em estado de alerta.
É possível pontuar ainda que uma compreensão do ato de educar, enquanto fazer
Para o autor, o ato de educar pressupõe que a existência do homem supõe a existência social, ancora-se em uma análise estrutural e explicativa dos movimentos das relações
do mundo. Esse aspecto constitui o elemento político do ato de educar, o qual é aí que se estabelecem entre o noesis e o noema. Essa análise exige que se leve em
considerado por Martins como poiesis (movimento) do indivíduo, enquanto ser em conta os planos do sujeito e do objeto como elementos Complementares e constitutivos
constante trajetória, entre a construção da consciência e o mundo, ou seja, entre o (EU) entre si.
noesis e o (MUNDO) noema.
A Fenomenologia, em Martins, tanto resgata esse aspecto original, desenvolvido por
As atividades do currículo na perspectiva fenomenológica são orientadas pelo indivíduo, Heidegger e Husserl, como abre possibilidades para uma nova abordagem de currículo,
entendendo-se esse como um "ser sociedade", resgatando a dialética da essência o qual é, então, visto como a poesia que se faz no movimento do ser.
humana, entendendo-se o ato de educar como uma correlação noesis-noema-noesis,
imprimindo o caráter de poiesis no próprio movimento do ser ao construir-se.
Assim, segundo o autor, as atividades de um currículo em um enfoquefenomenológico Ester Maria de Figueredo Souza e
tratam a relação sujeito-objeto sem distinção. Não cabe, nesse enfoque, a distinção Leliana Santos de Souza
entre o objetivo e o subjetivo. O subjetivo na "poiesis" não se resume à individualidade Universidade Federal da Bahia(UFBA)
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