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ARCAÍSMOS E PROGRESSOS NA EVOLUÇÃO

DO CONHECIIMENTO CARTOGRÁFICO DO MUNDO


(SÉCULOS XV A XVIII)

Maria Fernanda Alegria

"(...) os mapas transmitem com a mesma facilidade os erros e


as verdades e não são, infelizmente, sempre os melhores mapas
que têm mais aceitação em determinada época" (S. Daveau, A
Pintura do Mundo (...), Porto, 1992, p. 16).

A dimensão deste texto não permite senão documentar brevemente a


sinuosidade do percurso do conhecimento cartográfico, afravés do
comentário de alguns mapas, paradigmáticos de avanços e pausas nessa
evolução. Para isso, recorreremos a espécimes onde são figurados espa-
ços distintos: o conjunto do Planeta, a Península Ibérica e Portugal Conti-
nental.

1. Imagens contraditórias do Mundo dos séculos XV e XVI


A História da Cartografia ficou marcada no século XV por 3 aconte-
cimentos que se repercutiram de forma confraditória nas representações
cartográficas do Planeta - a redescoberta da Geographia de Ptolomeu,

Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.° 12, Lisboa, Edições


Colibri, 1998, pp. 267-291
Tempo, Temporalidades, Durações

provavelmente escrita no século II, o início das viagens de exploração de


portugueses e espanhóis e, enfim, a invenção da imprensa, que permitiu
difundir amplamente diferentes formas de olhar a Terra.
A imagem ptolomaica da Terra que a figura 1fraduzinscreve-se na
"teoria terresfre", por oposição à "teoria oceânica" (F. Relafio, inédito),
com raízes na Antigüidade Clássica. O confronto enfre as 2 perspectivas -
a primeira defendendo uma superfície terresfre com continuidade espacial
envolvendo bacias aquáticas fechadas, a segunda considerando que há
ligação física enfre mares - passou a colocar-se em termos diferentes
desde os descobrimentos ibéricos. Progressivamente, a forma e distribui-
ção de terras e mares será representada em função do que era observado e
não com base em deduções teóricas, em pretensos ensinamentos bíblicos
ou em estranhas imagens cuja origem se perdeu na profundidade dos
tempos.
No início do século XV coexistiam idéias muito diversas sobre o
Planeta Terra. A imagem difundida pelos mapas que acompanham a
Geographia de Ptolomeu foi porventura a mais inovadora, mas também a
que mais enfravou o processo de afirmação da experiência como base das
figurações do nosso Planeta.
As principais "inovações" na imagem da Terra de Ptolomeu residem
na concepção da superfície terresfre como uma esfera e no próprio pro-
cesso de representação da forma esférica num plano (o que só com Mer-
cator, nos finais do século XVI, na projecção que ficará com o seu nome,
terá solução matemática relativamente adequada). As deficiências maio-
res, face aos conhecimentos actuais, estão na comunicação directa enfre
continentes, na diminuta dimensão da ecumetia (180° de longitude das
Ilhas Afortunadas até à China e cerca de 78° de latitude, desenvolvidos
entre os 63° N e os 16° S, que passam a 24° S na edição de Ulm, 1482) e
na excessiva extensão do Mediterrâneo (62° em vez dos 42° reais). A
acrescentar a estas faltas de verdade note-se o grosseiro perfil dos conti-
nentes, excepção feita ao contomo do Mediterrâneo, e a escassez de
dados sobre o seu interior.
A imagem da Terra mais difundida nos finais da Idade Média era a
dos mapas de tipo T em O (fig. 2), na qual a superfície de um círculo está
dividida em 3 partes pela letra T, cujos braços são formados pelo
Mediterrâneo, na vertical, os rios Don e Nilo na horizontal. Os braços do
T separam os continentes asiático, no topo do círculo, o europeu e o afri-
cano por baixo, à esquerda e à direita. No meio situa-se Jemsalém, o
centro do mundo; nos confins da Ásia fica o Paraíso.

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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartografia
ico

Fig. 1 - Planisfério inserto na edição de Ulme, 1482, da Geographia de Ptolomeu.


Fonte: Portugal na Abertura do Mundo (1991, 3.^ ed.) - Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, pp. 12-13.

Fig. 2 - Imagem da Terra de tipo T em O, difundida no século XV.


Fonte: CAPEL, Horácio; URTEAGA, J. Luis (1982) - Las Neuvas Geografias,
Salvat Editores, S.A., Barcelona, p. 8.

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Tempo, Temporalidades, Durações

Embora esta figuração se aproxime mais da realidade, no que diz


respeito à comunicação enfre oceanos, ela distancia-se demasiado do real
pela dominância do imaginário nas representações, como sucede com a
figuração do Paraíso, a atiibuição do "cenfro do mundo" a um lugar religio-
so ou, ainda, pelo esquematismo e errada localização relativa dos continen-
tes, nalguns casos "apropriados" pelosfiUiosde Noé: Sem, Cão e Japhet.
Perante tão contraditórias figurações da Terra, uma das quais de
Ptolomeu, autor cuja autoridade no início do Renascimento era indiscu-
tível, como é provado pelas várias edições da Geographia (5 entre 1475,
data da primeira edição, ainda sem mapas, e 1490), como encarar a
viagem de Bartolomeu Dias, que permitiu verificar a comunicação enfre o
Oceano Atlântico e o Índico, e a de Vasco da Gama que percorreu efecti-
vamente os dois oceanos? Na seqüência deste périplo, que mapas se
atreveram a enfrentar a autoridade de Ptolomeu, para quem o Indico era
um mar interior?
Provavelmente no mesmo ano em que Vasco da Gama atingiu a ín-
dia por mar difundia-se no Ocidente o mapa de Henricus Martellus
(fig. 3), talvez o primeiro mapa-mundo, baseado em viagens portugue-

Fig. 3 - Mapa mundo de Henricus Martellus, c. 1489.


Fonte: Portugal na Abertura do Mundo (1991,3.^ ed.) - Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, pp. 28-29.

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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

sas, a contiadizer frontalmente as concepções cartográficas de Ptolomeu


(os mapas de Andréa Bianco, de 1448, e de Fra Mauro, de 1459, seriam
os primeiros, se a figuração não levantasse tanta confrovérsia, tendo em
conta que a viagem de Bartolomeu Dias tardaria cerca de 30 anos a con-
cretizar-se).
Como se pode ver na figura 3, esta representação do Planeta afasta-
-se consideravelmente da de Ptolomeu. A maior diferença expressa estará
na comunicação indiscutível enfre Atiântico e Índico; outra, na configura-
ção da costa Oeste do continente africano, que reproduz anteriores cartas-
-portulano, elaboradas com base nas explorações atlânticas portuguesas.
Para a concepção do mapa, acima de tudo, os contornos do continente
africano figurados conforme o que se vê, e não de acordo com autorida-
des científicas e religiosas ou com tradições míticas. Nas partes do mundo
que não se conhecem, ou se conhecem mal, prevalece o saber de autores
anteriormente aceites, como Marco Polo para a Ásia, por exemplo.
Até aqui confrontámos imagens da Terra de autores diferentes. Do
mesmo autor, porém, podem ser difundidas imagens dificilmente con-
ciliáveis: umas baseadas na experiência, na observação directa da reali-
dade (fig. 4), outras porventura reconstruídas segundo mandam os clás-

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Fig. 4 - Portuiano do Índico inserido no chamado Atlas Miller de Lopo Homem-


-Reineis, 1519.
Fonte: Portugal na Abertura do Mundo (1991,3." ed.) - Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, p. 57.

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Tempo, Temporalidades, Durações

sicos, de que Ptolomeu é o expoente (fig. 5). Falamos de Lopo Homem,


um dos cartógrafos que mais marcou este período inicial da História da
Cartografia portuguesa.
Ainda está por explicar que este mesmo autor produzisse mapas tão
antagônicos. Enquanto o conjunto do chamado "Atlas Miller", de que as
figuras 4 e 5 fazem parte, inclui mapas onde se registam observações de
viagens por mar (neste caso com belas ilusfrações, o que indicia um uso
náutico pouco provável), o mapa-mundo que abre esta colecção de cartas-
-portulano (fig. 5) não tem filiação na experiência, no que se observou.
Embora o mapa-mundo de Lopo Homem retire informação das viagens
de exploração ibéricas, como o contomo ocidental do continente africano
bem documenta, esses dados são justapostos a oufros ainda não verifica-
dos, como a continuidade espacial enfre o Brasil e a Ásia afravés de um
continente ausfral bordejado de ilhas imaginadas.

Fig. 5 - Mapa Mundo de Lopo Homem, 1519.


Fonte: Portugal na Abertura do Mundo (1991,3." ed.) - Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, pp. 80-81.

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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

Este mapa-mundo é tanto mais estranho, quanto em 1502, isto é, 17


anos antes - e a data de 1502 é segura -já existia o chamado "planisfério
Cantino" (fig. 6), porventura o mais admirável mapa renascentista portu-
guês. Apesar de certas incorrecções no perfil do sul da Ásia, temos de
admirar o realismo do autor na incompleta, mas intencional,figuraçãoda
América do Sul - onde só em 1500 Pedro Álvares Cabral tinha aportado
- e mesmo a representação da América do Norte, também ainda muito
mal conhecida. O vazio do interior dos continentes, de que a Ásia é a
melhor expressão, constitui outra prova de que nos mapas, contrariamente
ao que se passava quase sistematicamente antes das explorações atlânti-
cas, se começou a representar o que se tinha visto e não o que alguém
tinha imaginado. A "especialização" da Cartografia, isto é, a aceitação de
que eram necessários mapas náuticos, como este, diferentes dos terrestres
é outra importante faceta deste mapa.

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Fig. 6 - "Planisfério Cantino", 1502.


Fonte: Portugal na Abertura do Mundo (1991, 3." ed.) - Comissão Nacional para
as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, p. 57.

Mas esta intenção, realista, experimental, bem documentada por


alguns mapas, será desmentida por outros espécimes no decurso da
história vindoura.

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Tempo, Temporalidades, Durações

2. A construção do mapa da Península Ibérica entre os séculos


XVI e XVIII
Embora os estudos recentes sobre a Cartografia ibérica não sejam
muito abundantes, outro tanto se não pode dizer dos mapas, que somam
seguramente algumas centenas. Daí a dificuldade em seleccionar espéci-
mes e, também, de decidir os aspectos que esta rápida leitura devia con-
templar. Na dúvida, optámos por continuar a orientar os olhares para a
linha que separa a superfície terresfre da marítima, porventura a caracte-
rística que mais salta à vista numa rápida observação de conjunto como
esta. Excepcionalmente far-se-á referência a um ou oufro aspecto do inte-
rior da Península Ibérica.
Os mapas que seleccionámos contemplam uma Tabula Hispânica,
incluída na edição de [1540?] da Geographia de Ptolomeu, feita em
Basiléia por Sebastião Münster (fig.7) e várias Tabula Novae da mesma

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Fig. 7 - Tabula Hispânica incluída na edição da Geographia de Ptolomeu de


Sebastião Munster, Basiléia [1540?].
Fonte: ALEGRIA, M. Fernanda; GARCIA, J. Carlos (1994) - "Imagens de Portu-
gal na Cartografia dos séculos XVI e XVII", In Cartografia impressa dos séculos
XVI e XVIL Imagens de Portugal e Ilhas Atlânticas, Comissão Municipal Infante
94; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
Porto, p. 39.

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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

Geographia: uma, datada de 1482 (ed. de Ulm, fig. 8), oufra de 1572 (ed.
do Theatmm Orbis Terramm feita em Amesterdão, fig. 9). Do século
XVII retivemos um mapa de 1618/19 (ed. de Jodocus Hondius, também
em Amesterdão, fig. 10) e a edição de Willem Blaeu de 1613, preparada
na mesma cidade (fig. 11). Um exemplar do século XVIII, editado em
Espanha por Tomás López em 1770 completa esta colecção de mapas da
Península Ibérica (fig. 12).

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Fig. 8 - Tabula Novae da Península Ibérica editada em Ulm em 1482.


Fonte: HERNANDO, Agustin (1995) - El Mapa de Espaha, Centro Nacional de
Información Geográfica, s.l., p. 94.

Num rápido olhar sobre a figura 7 é provável que seja o incisivo


promontório do Sudoeste peninsular o aspecto que mais afrai a atenção,
para quem está minimamente familiarizado com o contomo de Portugal e
da Pem'nsula onde ele se situa. A existência desta enorme protuberância, a
formafrapezoidale a imponente presença dos Pirinéus são aspectos muito
marcantes da imagem medieval da Península ', tantas vezes repetida nas
numerosas edições seiscentistas e setecentistas da Geographia ptolomaica.

' Omitimos intencionalmente a menção à Hispânia, à Lusitânia e à Bélica; também não nos
referimos à presença ou ausência de fronteira política terrestre, aspectos comentados por
João Carlos Garcia (1996).

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Tempo, Temporalidades, Durações

A primeira versão corrigida da imagem da Península Ibérica, ou


seja, a primeira Tabula Novae, seria editada em Ulm (e, na mesma data,
também em Rorença) no ano de 1482 (fig. 8). As diferenças em relação à
figura anterior são substanciais: a presença da protuberância do Cabo de
S. Vicente diminui, enquanto a Galiza adqufre um certo volume e a forma
rectangular da Península se afirma. Certos golfos como o de Cádiz ainda
não se aproximam do contomo real. As imaginárias Ilhas Cassitérides, no
exfremo Noroeste ganham uma presença inusitada.
Será com Abraham Ortelius, na edição do seu Theatmm Orbis Ter-
ramm de 1572, que se começa a difundir uma nova figuração da Penín-
sula Ibérica (fig. 9). O contomo geral aproxima-se muito mais do que
hoje conhecemos em mapas e atlas de diversas escalas; figuram-se ilhas
reais e eliminam-se as quetinhamsido fantasiadas; desenha-se a fronteira

Fig. 9 - Tabula Nova inserta na edição de 1572, Amesterdão, do Theatmm Orbis


Terrarum de Ortelius.
Fonte: ALEGRIA, M. Femanda; GARCIA, J. Carlos (1994) - "Imagens de Portu-
gal na Cartografia dos séculos XVI e XVII", in Cartografia impressa dos séculos
XVI e XVIL Imagens de Portugal e Ilhas Atlânticas, Comissão Municipal Infante
94; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
Porto, p. 53.

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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

política enfre Portugal e Espanha, que se inspira, mas não reproduz, a do


mapa de Portugal de Álvaro Seco a que a seguir nos referiremos; enfim,
uma profusão de informações, com uma expressão totalmente diferente
da que as figuras 7 e 8 mostram, povoa o interior da Península.
Aparentemente evolui-se no sentido de maior exactidão, o que con-
fraria a opinião anteriormente expressa. Na realidade o percurso é
sinuoso. O mapa editado por Jodocus Hondius em 1618/19 (fig.lO), que
retoma o mapa gravado por Gerard Mercator em 1578, mostra que no
século XVII as imagens ptolomaicas marcavam ainda presença.

Fig. 10 - Reedição do mapa da Península Ibérica feila em Amesterdão por Jodo-


cus Hondius em [1618/19], de gravação para a Geographia de Ptolomeu de
Gerard Mercator, 1578.
Fonte: ALEGRIA, M. Femanda; GARCIA, J. Caries (1994) - "Imagens de Portu-
gal na Cartografia dos séculos XVI e XVII", in Cartografia impressa dos séculos
XVI e XVII Imagens de Portugal e Ilhas Atlânticas, Comissão Municipal Infante
94; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
Porto, p. 49.

A família de cartógrafos Blaeu seria quem mais divulgaria as ima-


gens do Mundo que ia sendo conhecido. Mas, o mesmo pesadíssimo atias
(chegou a ter mais de 600 mapas) que compilava e difundia as mais
recentes descobertas da figuração de terras e gentes, juntava representa-
ções como a que se mostra na figura 11. Se é certo que há porções do

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Tempo, Temporalidades, Durações

Fig. 11 - Parte ocidental do mapa da Península Ibérica editado em Amesterdão


por Willem Blaeu, 1613.
Fonte: BLAEU, Joan (1990) - Grande Atlas do Mundo, Real Sociedade Geográfica
de Londres e Verbo, Lisboa, p. 124.

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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

litoral de Portugal cujo recorte nos parece familiar, olhando para a Galiza,
parece que voltamos ao início do século XVI - o Cabo Finisterra excede
em quase 1° de longitude o Cabo da Roca, na realidade o ponto mais oci-
dental do continente europeu. Se nos detivermos na fronteira terresfre,
descobrimos um norte de Portugal muito encolhido no sentido Norte/Sul,
apesar da vincada protuberância minhota, enquanto as Beiras se estendem
no sentido Leste/Oeste.
De que fontes se serviu a família Blaeu e as oficinas cartográficas
anteriores e porquê? Talvez esteja aqui a pergunta mais enigmática na
fase actual dos conhecimentos. É provável que mais do que inovar, no
sentido de trazer algo de novo e mais correcto às formas defiguraçãodo
Planeta, se procurassem vender as imagens mais apetecidas, porque
melhor decoradas. Além disso, imprimiam-se seguramente as mais fáceis
de reproduzir, isto é, as que não obrigavam à produção sistemática de
novas chapas de gravação para cada nova edição de atias. Editar muitos
mapas, mas não necessariamente os melhores, foi o que os holandeses
primeiro, depois os alemães, franceses e ingleses souberam fazer defen-
dendo involuntariamente, assim, o nosso patrimônio o qual, sem esse
empenho, estaria quase totalmente perdido. Nestes países editaram-se e
deste modo conservaram-se muitos milhares de mapas, cujo alinhamento
cronológico de edições não reflecte a evolução real do conhecimento do
Planeta, que ficou sujeito às vicissiitudes do nascimento e crescimento de
casas comerciais concorrentes.
No século XVIII a febre dos editores cartográficos flamengos,
holandeses e franceses diminui. Entram na corrida os ingleses e os países
do Sul da Europa que ambicionam reaver a primazia perdida. Em
Espanha, uma figura incontomável é Dom Tomás López, um prolífico
compilador de mapas no seu próprio gabinete. Aí reúne informação, aí a
depura para passar ao papel. Da sua abundante produção reproduzimos
este mapa da Península de 1770 (fig. 12), que pouco melhora anteriores
figurações desta parte da Europa. Repare-se no defeituoso contomo da
Galiza e na convexidade do perfil norte, ou mesmo no esfreito contomo
do Norte de Portugal que se ^arga progressivamente para Sul, lembrando
quase uma pera.

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Tempo, Temporalidades, Durações

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Fig. 12 - Mapa da Península Ibérica de Dom Tomás López, 1770.


Fonte: HERNANDO, Agustin (1995) - El Mapa de Espaha, Cenfro Nacional de
Información Geográfica, s.l., p. 245.

3. Representações cartográficas de Portugal Continental dos


séculos XVI a XIX
Foi em Roma em 1561 (eventualmente em 1560) que se imprimiu o
primeiro mapa de Portugal Continental, embora haja fortes suspeitas de
que existissem mapas do País anteriores (S. Daveau, J. Galego, 1995). Do
autor, Femando Álvaro Seco (ou Vemando Álvares Secco), quase nada
se sabe. O seu mapa, porém, ficou para a História graças à sua inclusão
nas numerosas edições do Theatmm Orbis Terramm de OrteUus, a partir
de 1570. A segunda edição deste mapa, feita em Antuérpia em 1565,
apresenta diferenças em relação à de Roma, a começar pela identificação
do espaçofigurado:na emdita versão italiana, destinada ao cardeal Guido
Sforza, indica-se a "Lusitânia"; quando se tem em vista um amplo
público regista-se Portugal, "oufrora Lusitânia". Estas duas versões ser-
viriam de inspiração a diversos editores durante mais de um século.
A figura 13 reproduz a edição italiana do Theatmm feita em 1612 ou
1618. Repare-se na beleza do mapa. Não temos aqui um Portugal-ilha,
imagem tantas vezes repetida, mesmo em obras actuais de autores con-

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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

sagrados, que já nem a criticamos. Sabemos que Portugal não é uma ilha,
mas figuramo-lo como se o fosse e achamos natural. Paradoxo seme-
lhante ao de escrevermos com erros e considerarmos que isso não tem

Fig. 13 - Mapa de Portugal de Femando Álvaro Seco, inserido na edição de 1612


do Theatmm Orbis Terrarum de Ortelius.
Fonte: DIAS, Maria Helena; BOTELHO, Henrique Fen-eira (coord., 1998) - Qua-
tro Séculos de Imagens da Cartografia Portuguesa, Comissão Nacional de Geogra-
fia; Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Instituto Geográfico
do Exército, Lisboa, p. 4.

importância. Portugal parece deitado, porque no topo do mapa está o


Ocidente, isto é, o mar, e não o Norte como nos habituámos a ver. Talvez
isto tenha uma explicação: Portugal é cabeça da Europa e, já que o é, tem
de situar-se acima dele, e não de lado, a Leste^. Esta orientação (note-se a

2 Luis de Camões, como Orlando Ribeiro recorda (1971), dá nos Lusíadas (III, 20) a
seguinte imagem:
Eis aqui, quase cume da cabeça
Da Europa toda, o Reino Lusitano
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Phebo repousa no oceano

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Tempo, Temporalidades, Durações

correspondência enfre este vocábulo e o ponto cardeal) reforça a impor-


tância do grande Oceano que os portugueses se aventuraram a explorar,
no topo, bem visível. Visíveis e agradáveis são também as duas cartelas,
uma com o título, oufra com a dedicatória a Guido Sforza. Barcos e ani-
mais marinhos enchem a superfície aquática, equilibrando-se assim o
desenho bastante cheio do interior do País.
Para retomarmos o fio de pensamento usado na análise dos mapas
anteriores, olhemos para o contomo do País, no mapa da figura 13. Se
exceptuarmos a inclinação exagerada para Nordeste da parte setentrional
do País (há uma rotação de cerca de 12 graus), pode dizer-se que o perfil
se aproxima bastante do de mapas recentes. Há naturalmente imprecisões,
de que destacamos no litoral Oeste: a exagerada dimensão do cabo a norte
do Rio Mondego, as mal orientadas restingas da Ria de Aveiro
(S. Daveau, 1992), o bicudo recorte da Península de Lisboa, o falso dese-
nho do Cabo de Sines e dos pequenos acidentes costeiros do Alentejo. Na
costa algarvia, nada que mereça destaque.
Dada a nítida demarcação da fronteira terrestre, algumas observa-
ções a esse respeito: como sugeriu João Garcia (1996), o traço não dese-
nha uma fronteira política definida; antes contoma de maneira relati-
vamente imprecisa as povoações situadas mais a oriente, ou as cabeceiras
dos rios que, segundo Álvaro Seco, se aproximam mais do País vizinho.
Assim sendo, difícil será comparar o traçado da fronteira terrestre num
mapa de meados do século XVI, com a que se desenha nos mapas recen-
tes, pois os conceitos em comparação são diferentes.
A imagem que acabámos de comentar, de 1612 ou 1618, é muito
parecida com a impressa por OrteUus em 1570. A mesma semelhança não
aparece na figura 14, que reproduz a edição de [1593] de Gerard Jode. A
torção que assinalámos a norte do estuário do Tejo foi corrigida; em
compensação exagera-se a inclinação para sudeste do froço a sul do Tejo.
Quanto às imprecisões dos recortes, em vez de se atenuarem, acentuam-
-se. Note-se a excessiva dimensão da restinga norte da Ria de Aveiro, o
exagero da reentrância a norte dela, a concavidade do perfil costeiro na
área de Peniche e o impreciso contomo do litoral próximo de Sinfra. No
Sul, o exagero da inclinação para nordeste enfre o Cabo de S. Vicente e o
limite interior do mapa não tem explicação. Resta acrescentar que Gerard
Jode foi o editor em 1565, em Amesterdão, da segunda versão do mapa
de Portugal de Álvaro Seco e que essa imagem era muito menos impre-
cisa do que esta de cerca de 1593, que podemos considerar pobre e infe-
liz. Interpretar este paradoxo não é fácil. Pode colocar-se a hipótese de
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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

que a concorrência com Ortelius na edição de um atlas que se chamaria


Speculum Orbis Terramm, para o qual só obteria licença em 1578, levou
Gerard Jode, porventura, a evitar reproduzir imagens com aparência de
"conhecidas". Oufra expUcação, também hipotética, é considerar que G.
Jode admitia que o mapa de cerca de 1593 era "melhor" que o anterior, o
que se pode admitir atendendo ao restrito conhecimento real da Geografia
do território. Não se esqueça que o único documento até agora descoberto
que nos dá uma panorâmica global do País é Numeramento de 1527-
-1532, para cuja feitura devem ter existido suportes de natureza cartográ-
fica, que ainda não foram encontrados.

Fig. 14 - Mapa de Portugal, edição de Gerard Jode [1593].

Fonte: ALEGRIA, M. Femanda; GARCIA, J. Carlos (1994) - "Imagens de Portu-


gal na Cartografia dos séculos XVI e XVII", in Cartografia impressa dos séculos
XVI e XVIL Imagens de Portugal e Ilhas Atlânticas, Comissão Municipal Infante
94; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
Porto, p. 81.

Foram tantas as imagens de Portugal bebidas em Femando Álvaro


Seco que se lhe perdeu a conta. Até ao ano em que apareceu o mapa de
Pedro Teixeira Albemaz, 1662 (fig. 15), nenhum outro lhe fez sombra.

283
Tempo, Temporalidades, Durações

^^^^^^^S^9B^^^^^^S^^^^niSE

WHrWUW-tfffiS:

Fig. 15 - Mapa de Portugal de Pedro Teixeira Albemaz, 1662.

Fonte: DIAS, Maria Helena; BOTELHO, Henrique Ferreira (coord., 1998) - Qua-
tro Séculos de Imagens da Cartografia Portuguesa, Comissão Nacional de Geog
fia; Cenfro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Instituto Geográfico
do Exército, Lisboa, p. 5.

O comentário deste mapa, cujos levantamentos parecem datar da


década de 1630, terá de ser muito breve porque as imagens de que dis-
pomos não permitem uma leitura cuidada^. Assinalem-se como aspectos
positivos a melhor orientação do mapa (ainda com o Oriente no topo), a
representação do território fronteiriço espanhol (registe-se que enfre 1580
e 1640 as duas coroas estiveram unidas), a densidade de informações
sobre povoamento e hidrografia. Oufros aspectos podem ser enconfrados
no volume IV dos Portugaliae Monumento Cartographica e em Maria
Femanda Alegria e Sylvie Rimbert (1978) e Maria Femanda Alegria
(1986).

3 Foi por gentileza do falecido Comandante Avelino Teixeira da Mota que se conseguiu
uma reprodução fotográfica do exemplar existente na Biblioteca Nacional de Paris.
Apesar de essa imagem facilitar mais a leitura do que a dos Portugaliae Monumenta
Cartographica, a grande densidade de informação permanece um obstáculo.

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Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

O mau estado do mapa manuscrito de c.1640 atribuído a João


Teixeira Albemaz (fig. 16), pertença da Fundação Calouste Gulbenkian
desde 1964, e o facto de o seu conteúdo não ter merecido até agora mais
do que breves referências (Armando Cortesão, 1965) não nos permite
senão chamar a atenção para certas semelhanças com a orientação geral
de Portugal do mapa de Álvaro Seco de 1561. O desenho do litoral
acompanha-se com dificuldade, que é maior ainda para o contomo da
fronteira.

Fig. 16 - Mapa atribuído a João Teixeira Albemaz, c. 1640.


Fonte: CORTESÃO, Armando (1965) - "A mais antiga carta corográfica de Portu-
gal manuscrita de que há conhecimento", Ethnos, IV, Lisboa, p. 49.

Não é difícil adivinhar que a fonte de Willem Blaeu para a edição


deste mapa de [1635] foi a versão orteUana do mapa de Álvaro Seco
(fig. 17). Este mapa de Blaeu seria por sua vez copiado por Jan Jansson,
Mathaüs Meriam, Lochom, etc. As famílias de mapas de Álvaro Seco
continuavam a fazer escola nos meados do século XVII, graças à grande
aceitação social dos atias que fizeram a fortuna de várias famílias de
impressores do Norte da Europa.

285
Tempo, Temporalidades, Durações

Fig. 17 - Mapa de Portugal editado por Willem Blaeu [1635].


Fonte: ALEGRIA, M. Femanda; GARCIA, J. Carlos (1994) - "Imagens de Portu-
gal na Cartografia dos séculos XVI e XVII", in Cartografia impressa dos séculos
XVI e XVIL Imagens de Portugal e Ilhas Atlânticas, (Tomissão Municipal Infante
94; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
Porto, p. 91.

Um século depois, em 1734, o que muda? A inserção de um mapa


do Reino de Portugal na Geografia Histórica de L. Caetano de Lima
(1736) mostra que o desenho continua tosco (fig. 18). A renovação da
Cartografia portuguesa que Azevedo Fortes tentou a partir de 1720, na
seqüência da criação em Lisboa, por D. João V, da Real Academia de
História Portuguesa, consubstanciou-se mais na melhoria da difusão do
que na qualidade da figuração. Esta pequena carta e os mapas regionais
que normalmente a acompanhavam conheceram uma primeira gravação,
por Granpré (ou Grandprez) em 1729/30 e três impressões diferentes no
biênio 1762/63.

286
Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

Fig. 18 - Mapa do Reino de Portugal inserido na Geografia Histórica de


L. Caetano de Lima, 1736.
Fonte: Luis Caetano de Lima, Vol. I, Geografia Histórica, Lisboa, 1734.

287
Tempo, Temporalidades, Durações

Nesta imagem difundida por L. Caetano de Lima, Portugal "engor-


da" no sentido Leste-Oeste em todo o território a sul do Douro, enquanto
deste rio à fronteira norte a extensão se encurta. O aspecto geral do perfil
do País é muito defeituoso; quanto à informação sobre terras e rios, se é
verdade que ela se enriquece, também é de notar que as posições relativas
têm muitos erros.
Para terminarmos esta selecção de mapas um olhar irônico sobre um
mapa de 1861 inserto no compêndio escolar de Geografia de José de
Sousa Amado (fig. 19). Os olhos dirigem-se imediatamente para as "lom-
brigas" que pretendem figurar as serras; no contomo permanecem alguns
dos defeitos comuns a mapas dos séculos anteriores: o desenho da Ria de
Aveiro, das pem'nsulas de Lisboa e de Setiíbal, da costa ocidental alente-
jana, nomeadamente do cabo de S. Vicente. A orientação Sudoeste-Nor-
deste da costa algarvia retoma tambémfracosde mapas anteriores.
Na seqüência dos levantamentos geodésicos que permitiram a elabo-
ração da Carta Geographica de 1860/65 inicia-se nova etapa da Carto-
grafia portuguesa, bastante menos conhecida do que a dos séculos con-
temporâneos dos descobrimentos, à qual estão a ser dedicados alguns
estudos, no âmbito de um programa Praxis XXI em curso.

4. Remate
A comparação visual de mapas que fizemos é uma metodologia de
frabalho que se pode classificar de "grosseira". Ela permite registar gran-
des parentescos e dissemelhanças enfre mapas, mas não fazer estudos
rigorosos e de pormenor. Um dos grandes problemas que se coloca aos
estudiosos de antigos mapas é exactamente o da escolha do processo de
análise. Na maior parte dos casos, o rigor do estudo implica a manipula-
ção de informações, por meios mais ou menos sofisticados, com sacrifício
da subjectividade, menos apreciada do que o positivismo, este sim tido
como seguro. No entanto, o investimento em equipamento e em tempo
que estes métodos impUcam, não serão um importante enfrave à multipli-
cação de estudos? Seguramente, antes de mais, há que ter o inventário do
que existe e acesso aos fundos cartográficos, problema não integralmente
resolvido em Portugal (Maria Helena Dias, 1996). Mas, admitindo que o
que se conhece permite já desenvolver muitofrabalho,teremos de conse-
guir que os mapas antigos não sejam vistos pelo comum das pessoas ape-
nas como coisas belas que se olham deleitadamente numa sala de espera
de um consultório, mas como peças que exprimem conhecimentos, factos

288
Arcaísmos e Progressos na Evolução do Conhecimento Cartográfico

Fig. 19 - Mapa de Portugal inserido no compêndio de Geografia de José de


Sousa Amado, 1861.
Fonte: DIAS, Maria Helena; BOTELHO, Henrique Fen-eira (coord., 1998) - Qua-
tro Séculos de Imagens da Cartografia Portuguesa, Comissão Nacional de Geogra-
fia; Cenfro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Instituto Geográfico
do Exército, Lisboa, p. 6.

289
Tempo, Temporalidades, Durações

e concepções de épocas que antecederam aquela em que vivemos. Talvez


por isso os velhos mapas tenham sido objecto de estudo de investigadores
de tantas áreas de conhecimento: matemáticos, militares, historiadores,
geógrafos e até diplomatas. Que este pequeno ensaio faça nascer o inte-
resse de oufros estudiosos por estes testemunhos da nossa memória
comum.

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