Livro de Atas CIEA2017 v2018-11-02 2
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1 Sessão de Abertura 2
2 Sessões Plenárias 7
Catarina Martins, Cristina Mendanha, José Paiva & Mário Azevedo - E se a Educação
Artística fosse outra coisa? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
Jorge Ramos do Ó & Ana Luísa Paz - Ensino Artístico especializado em Portugal: uma
história no presente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
1
ÍNDICE
viii
3 Criatividade inventiva, sentido estético e capacidade crítica no ensino das artes 157
O (Lugar) da Experiência do Livro na Mediação da Criança com o Outro - Ana Serra Rocha 213
1
ÍNDICE
ix
8 Workshops 367
Workshop De Arterapia | Uma Aventura Estética - da cor ao sentir! - Lucília Valente, Alice
Liberto & Adelina Peixoto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 368
Workshop De Educação Artística | Isto não é uma nuvem - Mara Maravilha . . . . . . . . . 370
Luís Calheiros | Professor Adjunto da Área das Artes Visuais da ESEV . . . . . . . . . . . . . 374
1
Sessão de Abertura
ANA SOUTO E MELO
COORDENADORA DO CIEA
É com muito agrado e emoção que tenho a honra de, em nome da Comissão Organizadora,
dar início a este Congresso, organizado pela Escola Superior de Educação, do Instituto
Politécnico de Viseu.
Agradeço a presença de todos os participantes do CIEA que, tal como nós, acreditam na
Educação Artística e que em grande número deram resposta ao nosso apelo de debate e
reflexão do ensino das artes em Portugal.
Agradeço a preciosa colaboração dos digníssimos Oradores que de forma tão imediata e
comprometida aceitaram o nosso convite.
A Educação Artística tem como princípio basilar a formação do aluno enquanto protagonista
da própria aprendizagem e crescimento tendo em vista a constituição de um cidadão ativo,
dinâmico e socialmente interventivo, capaz de promover o autodesenvolvimento de contínua
experimentação, descoberta, ação e vivência.
Segundo Alberto Sousa, no âmbito educacional «mais importante do que aprender, conhecer
e saber, é o vivenciar, descobrir, criar e sentir» (Sousa, 2003, p.63).
Obrigada.
Coordenadora do CIEA
4
JOÃO PAULO BALULA
PRESIDENTE DA ESEV
Ex.ma(o) senhor(a):
- Presidente do Instituto Politécnico de Viseu, Professor Doutor João Luís Monney Paiva;
Foi nossa intenção, desde a primeira hora em que surgiu a ideia de organizar este congresso,
ajudar a levar a cabo esta iniciativa. Neste momento, estou satisfeito porque penso que
conseguimos concretizar tudo o que nos propusemos.
Agradeço também à Presidência da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Viseu que nos
manifestou total disponibilidade para colaborar e colocou à nossa disposição este auditório e
os restantes espaços que solicitámos para os trabalhos destes dois dias.
A organização deste Congresso materializa aquilo que nós pensamos que deve ser a
atividade de uma instituição de Ensino Superior viva, adequada às necessidades dos tempos
atuais, interventiva, responsável e aberta à produção e à partilha do conhecimento,
submetendo-o à discussão com os pares.
A Escola Superior de Educação de Viseu (ESEV), ao longo dos últimos 35 anos, contribuiu para
que mais de 10 000 estudantes acedessem ao Ensino Superior e, assim, se preparassem para
ajudar a promover um desenvolvimento cultural, científico, económico e social mais
harmonioso de Portugal. Este trabalho foi feito sem que nos fossem disponibilizadas as
condições que eram dadas a instituições similares.
JOÃO PAULO BALULA PRESIDENTE DA ESEV
Temos como linha estratégica a cooperação com todos os que se preocupam, como nós, com
a sustentabilidade de todas as regiões do país. Atualmente trabalham diariamente na ESEV
cerca de mil e quatrocentas pessoas. São cerca de 1200 estudantes (em cursos de mestrado,
de licenciatura e em cursos Técnicos Superiores Profissionais – CTeSP) e cento e cinquenta
docentes e colaboradores não docentes. A nossa atividade formativa centra-se nos domínios
da educação, da comunicação e das relações públicas, do social, das artes e do desporto.
Espero que, depois deste congresso, fiquem com vontade de voltar a Viseu, ao IPV e à ESEV
para nos ajudarem a responder aos desafios da educação. Continuamos disponíveis para
aprofundar o diálogo proposto para estes dois dias e para ajudar a tornar Viseu numa
referência na Educação Artística, capaz de influenciar o pensamento sobre esta temática em
Viseu, em Portugal e no Mundo.
Muito obrigado.
(Presidente da ESEV)
6
Sessões Plenárias
REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, ARTE E
INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA
O que é Educação? O que é Arte? O que não é Arte? A Arte é extrínseca ou intrínseca? Para
que serve a Arte? Porque é a Arte própria do Homem? Porque é que os animais não têm
Arte? Educa-se a Arte? Ensina-se Arte? O que é uma Obra de Arte? Investiga-se a Arte? Como,
porquê e para quê?
Antes disto, porém, será conveniente esclarecer “o que é Educação”? Segundo a Constituição
(Art. 73º) a educação é “o desenvolvimento da personalidade”, logo, o desenvolvimento da
pessoa no seu todo biológico, instintivo, emocional, sentimental, intelectual e espiritual. Não
há educação física, intelectual, profissional, cívica, artística ou outra, distintas, repartidas e
diferenciadas, mas uma educação única e una, da pessoa na sua totalidade. Educar é o
desenvolvimento da personalidade, no seu todo.
As Letras, Matemáticas, Ciências, Tecnologias e as Artes não fazem parte da educação, pois
não são fatores da personalidade da pessoa. São apenas áreas metodológicas que, cada uma
pela sua via, ajudam na formação da personalidade. Quando a Constituição refere
“desenvolvimento da personalidade”, refere-o no singular e não no plural, para sublinhar que a
educação é um fenómeno individual e não coletivo, pois que não há duas pessoas com a
mesma personalidade. A educação é, pois, algo que sucede internamente, dentro da pessoa
e não externamente.
Não é o educador que educa, é a pessoa que se educa a si própria, que se desenvolve por si.
Educação é como uma planta, que cresce, floresce e se desenvolve por si, embora sendo por
vezes necessário que apanhe sol e seja regada, mas isto não é educação, é ajuda. Educação é
o seu crescimento.
REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, ARTE E INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA
A Arte situa-se neste campo de ajuda ao auto desenvolvimento da pessoa, não é Educação,
não Educa.
E muito menos se educa a Arte, pois que é um conceito e não uma pessoa.
O Que É Arte?
Há “arte” ou “artes”? O ballet é uma arte? A perícia de um carpinteiro também é “arte”? Ballet e
carpintaria são “artes”? Qual é a diferença entre arte, no singular e no plural?
Vygotsky, na sua obra Psicologia da Arte, depois de um estudo exaustivo sobre diferentes
conceções de arte, acabou por escrever que “Arte é algo que escapa a qualquer definição”, se
concebida como algo externo ao indivíduo. Se, porém, retomarmos a perspetiva platónica, a
arte é algo que se passa dentro do indivíduo, sucedendo a nível espiritual e transcendente à
pessoa, um caminho que a leva a níveis mais altos do espírito, sem que, porém, consiga
atingir a iluminação plena, que só é pertença dos deuses. A arte é como que um reflexo
desse esplendor, da iluminação suprema divina.
Quantas vezes, uma pessoa que assiste a um concerto, de repente dá-se conta que parece
ter saído dali, estando a pensar noutras coisas e situações completamente diferentes? São os
chamados “devaneios”. A música serviu de estímulo para a criação de imagens mentais que
levaram a mente para outros lugares.
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REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, ARTE E INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA
visuais são obras de arte, o foco central do processamento neurológico surge no Sistema
Límbico, por cima e à volta do hipotálamo, o local donde emanam as energias emocionais.
Isto significa que a Arte pertence ao domínio das emoções e não da cognição.
É interessante referir que Platão já tinha chamado a atenção para este facto. Segundo ele,
uma escultura é e nunca deixará de ser apenas uma pedra. A Arte é aquilo que se passa no
interior espiritual da pessoa que a contempla.
O belo da arte é emocional, espiritual. A Guernica é feia, mas provoca fortes alterações nas
emoções e quem a contempla sente angústia, medo, terror, mesmo desconhecendo o seu
tema.
- Ser criada por um ser humano, que nela exprime os seus sentimentos e a sua
criatividade (a inspiração do artista);
Uma Obra de Arte não é, portanto, Arte, mas apenas um estímulo que provoca alterações a
nível emocional de quem a contempla. Estas alterações emocionais é que serão Arte.
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REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, ARTE E INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA
Freud referia as pulsões e emoções como fortes energias psicológicas, que brotam do mais
profundo do inconsciente. Para que não haja sobrecargas energéticas que possam provocar
situações psicopatológicas, há a necessidade de as ajudar a sair, o que sucede através da
catarse (catarse e expressão são o mesmo). A expressão artística é uma forma de satisfazer as
necessidades de expressão das emoções, para que se possa manter o equilíbrio da
personalidade. A sua inibição, bloqueio ou recalcamento, levam à agressividade ou a
diferentes quadros psicopatológicos.
Ensina-se Arte?
Ensina-se a respirar, a beber, a comer, a andar e a amar? Um filho aprende a amar a sua mãe
em aulas de amor filial processadas duas vezes por semana?
João dos Santos, na sua investigação “Se eu ensino, porque é que eles não aprendem?”, referia
que não era possível ensinar uma criança de seis meses a ler, porque não possuía
mecanismos neuropsicológicos para tal, mas que já sentia alegria, tristeza e outras emoções,
expressando-as através de risos ou choros, que eram naturais e não objeto de ensino.
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REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, ARTE E INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA
Aprende-se Arte?
Por influência dos behavioristas, durante muitos anos associou-se o Ensino à Aprendizagem.
Depois da ciência ter demonstrado que não há Aprendizagem, Piaget e os seus discípulos
passaram a usar a palavra “aprendizagem”, não como processo de armazenamento de
ensinamentos, mas como “processo intelectual, individual, de auto assimilação-acomodação-
compreensão da informação”. Com António Damásio, depois de diversas investigações em
laboratório de neurologia, ter concluído, no início deste século, que “Não existe no cérebro um
único neurónio de aprendizagem”, também esta palavra foi retirada do léxico pedagógico. Está,
portanto, fora de questão a aprendizagem, seja de Arte ou de qualquer outra coisa.
Uma pessoa, por exemplo, pode ficar indiferente a uma música de Mozart mas, assistindo a
um desafio de futebol, grita, gesticula e chama nomes ao árbitro, exteriorizando as suas
pulsões agressivas e aplaude entusiasticamente, ficando feliz e contente, quando a sua
equipa marca um golo. Aquele jogo de futebol é, para ele, uma Obra de Arte, pois que
possibilitou a catarse de todas aquelas emoções. Ficou indiferente perante a música de
Mozart - uma obra de arte para outras pessoas -, pois que esta não lhe suscitou qualquer
estímulo para a catarse das suas emoções. Sendo uma instância psicológica pode-se por isso,
em princípio, considerar que a Arte existe sempre, em qualquer ser humano que esteja vivo,
pois que é inerente ao seu funcionamento neuropsicológico.
A Obra de Arte, porém, não será “de Arte”, se não produzir a catarse de emoções e
sentimentos. Esta consideração é, contudo, individual, subjetiva e única. Aquele sujeito,
naquele momento, não foi estimulado pela música de Mozart, mas noutra qualquer altura ela
poderá suscitar-lhe alterações emocionais. Outros indivíduos poderão ter, perante a mesma
situação, emoções completamente diferentes.
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REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, ARTE E INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA
Será, porém, importante chamar a atenção para a diferença entre Investigação em Educação
(ou Pedagógica) e investigação em Ciências da Educação. Aquela tem as metodologias
acabadas de referir, enquanto que nesta, cada ciência estuda a Educação com as
metodologias que são próprias da respetiva ciência (Psicologia da Educação, Sociologia da
Educação, História da Educação, Neurociências da Educação, etc.).
Investigação Em Arte
A Investigação em Arte, no campo propriamente dito da Arte, é algo bastante difícil, quando
se considera a Arte como uma instância psicológica intrínseca, individual e subjetiva,
requerendo testes psicológicos e aparelhagem sofisticada, pertencendo eminentemente ao
foro neuropsicológico. O que habitualmente este termo significa é a investigação dos modos
como a Obra de Arte produz alterações nas emoções e sentimentos do indivíduo (a Arte na
sua dimensão psíquica). Modifica-se a Obra de Arte (variável independente) e analisam-se as
reações emocionais do indivíduo (variável dependente).
A avaliação de uma obra de arte, que os críticos fazem normalmente, não se aplica a esta
situação, por ser efetuada apenas a nível racional. Eles apreciam a obra em si, as suas
características físicas, as linhas de fuga, tonalidades, contrastes e tudo o que é constatável,
com maior ou menor objetividade. A mesma obra de arte, analisada por diferentes críticos,
gera diferentes e por vezes até antagónicas avaliações, pois que não passam de meras
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REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, ARTE E INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA
opiniões, portanto altamente subjetivas e mutáveis. O que interessa não é a Obra de Arte,
mas as alterações emocionais e sentimentais que sucedem nos sujeitos que a contemplam,
não apenas de um indivíduo singular, mas a num elevado número de sujeitos (um número
estatisticamente representativo da população). A Guernica, a Vitória de Samotrácia, o Hino da
Alegria, o Lago dos Cisnes, Macbeth e outras obras de arte têm sido investigadas, tendo-se
constatado que os mesmos sentimentos de tristeza, horror, exaltação e outros, são comuns a
um vasto número de pessoas que olham ou ouvem aquelas Obras de Arte.
A Arte é uma dimensão da psique, da alma, do espírito. É por isso que tem tanto êxito na
prevenção e alívio do sofrimento psíquico (Musicoterapia, Dramaterapia, Dançaterapia, Arte
(Plástica)-Terapia). São extremamente importantes todas as investigações científicas que
tenham por objetivo o desenvolvimento e aperfeiçoamento das capacidades emocionais e
sentimentais da pessoa humana, da sua alma, do seu espírito.
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ
DE RESPONDER?
A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
Bom dia todos, em primeiro lugar quero agradecer a vossa presença e agradecer também o
convite da comissão organizadora deste congresso para aqui estar hoje.
No pouco tempo que me está reservado tentarei não frustar completamente as expectativas
e montar um argumento em torno daquilo que designo aqui por retóricas da educação
artística, ou antes, os argumentos constantemente repetidos sobre a necessidade das artes
na educação. De algum modo, e antecipando o que procurarei tornar evidente, há duas
questões a que me parece não estarmos muito atentos no que concerne à presença das
artes nos currículos e, por outro lado, à sua defesa na educação.
SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
Por um lado, aquilo a que hoje chamamos arte contemporânea não existe nas escolas.
Falamos sempre de uma espécie de fantasma, de um nome, que não é vazio, mas que tem
dentro de si muitas outras coisas que nada têm que ver com a arte. A arte não são as
manualidades, a arte não são as técnicas, a arte não são as expressividades, a arte não são as
competências sociais, a arte não é o bem-estar, a arte não é a criatividade para o
empreendedorismo, a arte não é terapia! A arte não é uma só coisa e é, em si, historicamente
contraditória e complexa.
Aquilo a que chamamos ‘arte’, que configura a educação artística no ensino formal,
corresponde à apropriação de um nome e da aura que consigo transporta esse nome, mas a
educação artística, no ensino formal está hoje ainda longe de se aproximar do artístico. Vou
propor-vos olhar apenas para dois cenários, com o objectivo de tornar evidentes as alquimias
curriculares e a instrumentalização das artes na educação.
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
“Há alguns anos atrás, alguém perguntou o que os professores poderiam fazer
se o uso de lápis de cor, tesoura e cola fosse declarado ilegal na escola primária e
no jardim de infância. Achei uma ideia maravilhosa. Os professores seriam
forçados a pensar em questões reais da arte, em vez de usar o desenvolvimento
de pequenas habilidades motoras para evitá-las. Eu não tenho nenhum problema
em fazer coisas, com tornar-me proficiente manualmente ou com habilidades
adquiridas. [...] Mas, como é abordada hoje, [...] a arte permanece escondida sob
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
Este ano, crianças de 7/8 anos foram avaliadas nas áreas artísticas. Vou-me concentrar
apenas nas artes visuais. O teste seguia o tempo da escola e as suas gramáticas: estudantes
de uma determinada idade são avaliados a partir da aplicação de testes. De facto, isto parece
já não provocar qualquer sentimento de estranheza. A linguagem do teste, como uma
linguagem da objectividade, enquanto sinónimo de transparência e rigor é uma tecnologia
de governo a partir da qual cada um de nós é posicionado no sentido de atingir, ou se
governar a si próprio para atingir, um lugar criado como desejável. É sob este racional que as
crianças de 7 anos estão a ser avaliadas.
Tal como os bem conhecidos PISA, este teste aplicado às crianças portuguesas, inscreve a
racionalidade da objectividade e da neutralidade. Para o Ministério da Educação, estas
avaliações providenciam uma imagem detalhada da nação relativamente ao ensino e à
aprendizagem das artes. Deste modo, as ilusões de desinteresse, eficiência e objectividade
emergem e governam as práticas pedagógicas. A objectividade e a transparência andam de
mãos dadas com a retórica da aplicabilidade e da justiça. Isto significa que não se imagina
outro referencial de critérios senão o da avaliação por teste em massa aos olhos
governamentais. Por um lado, estas avaliações nas áreas artísticas aparecem como uma
política que parece perceber que as artes têm vindo a ser consideradas num lugar de
periferia face às outras disciplinas escolares; por outro lado, provam uma incapacidade de
encontrar outras formas de legitimação e de construção de um lugar para as artes, a não ser
pelo dispositivo da avaliação.
A discussão sobre a avaliação das áreas artísticas é tudo menos nova. De um lado, estão
aqueles que defendem que tudo aquilo que é do domínio da auto-expressão não é avaliável
segundo critérios definidos; do outro lado aqueles que defendem que se os critérios forem
bem definidos, as aprendizagens artísticas são totalmente avaliáveis. Nos dois lados,
ninguém parece questionar como uma e outra posição se tornaram razoáveis e pensáveis.
Não há posicionamento neutro, e as linguagens da avaliação, a favor ou contra, definem
relações de poder particulares e modos de se ser sujeito.
Os princípios estatísticos estão aqui em jogo e quem conhece a história dos estados
modernos e da estatística sabe que esta emerge precisamente como a ciência moral do
estado, capaz de fornecer, sobre cada um o seu lugar face a todos os outros e de fornecer,
também, imagens codificadas sobre o lugar que se ocupa, os possíveis espaços de correção,
e os lugares nunca atingíveis. A estatística é uma das armas principais do governo
biopolítico, isto é, do governo da vida.
Então, e voltando, aos testes, previamente, o ministério forneceu provas modelo, que
permitiram aos professores treinar os seus alunos a partir daqueles enunciados. Essas
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
O teste modelo era composto por um exercício de dobragem que se repetiu horas a fio nas
salas de aula portuguesas. As crianças tinham que dobrar a cabeça de um gato e depois que
a ‘decorar’ criativamente. Só o enunciado da ‘tarefa’ 3 nos permite perceber que não estamos
a falar sobre artes, mas a reproduzir o discurso das manualidades em articulação com a
estratificação definida por tarefas e por passos sequenciais, próprios da linguagem da
eficiência e do trabalho.
A prova de aferição em artes não é sobre as ‘artes’ mas sobre a criança que resolve
problemas e é bem desenvolvida em termos motores. Inscreve princípios vindos da
psicologia do desenvolvimento infantil que determina que, numa determinada idade, uma
criança deve saber como executar determinadas tarefas. Esta psicologia do desenvolvimento
está inscrita nas práticas de administração e de normalização presentes nos critérios de
avaliação. A performance das crianças é codificada, por isso, a partir de resultados
totalmente expectáveis.
As alquimias curriculares, são esse fenómeno que transforma as disciplinas situadas num
dado campo das humanidades, das artes, das ciências, etc, em disciplinas escolares. Nesse
movimento de tradução de uma ciência num produto ensinável, participam instrumentos
que têm por função mais do que proporcionar ao aluno a possibilidade de produzir a sua
própria singularidade, torná-lo num sujeito capaz de resolver problemas, de pensar de
determinado modo, de trabalhar em equipa, ou seja, todo um conjunto de competências que
não se articulam com aquilo que poderíamos designar como sendo específico de um
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
determinado campo de conhecimento, mas antes com formas de governo dos sujeitos,
transformando-os em actores particulares que, uma vez inscritos nos dispositivos de poder
deveriam cumprir a sua função no seu interior e adaptar-se às relações estabelecidas. Aquilo
que gostaria sobretudo de assinalar, ou antes, de sublinhar, é que a escola e os seus
procedimentos se inscrevem em dinâmicas de governo dos sujeitos, na sua formatação
enquanto determinado tipo de sujeitos e que se baseia sempre na imaginação de um mundo
completo que caberia ao aluno teatralizar e reproduzir.
O programa de Desenho, logo na sua introdução, começa por ser um documento que nos
mostra o quanto os princípios herdados da modernidade, e o dispositivo disciplinar que é a
escola numa dimensão de governamentalidade, lhe determinam a forma.
Diz-se que o desenho é “disciplina motivadora,... área de acolhimento onde a maturação bio-
psico-social se processa com oportunidade,...”, que “o desenho é uma disciplina que permite
ou auxilia com sucesso o processo contínuo de integração dos adolescentes: é o campo da
inserção e da assimilação da diferença, pela atração que a área pode exercer sobre aqueles
que a força centrífuga das organizações poderia afastar do ciclo da renovação escolar e
geracional”.
Apenas tão breve fragmento nos permite perceber a instrumentalização de que falava no
início que se articula com a construção do desenho como uma tecnologia de polícia, não no
sentido comum atribuído hoje à polícia, mas no seu sentido primeiro enquanto tecnologia de
auto-regulação, de auto-governo de cada sujeito por si, naquilo que seria a condução da sua
própria conduta, e adequação dessa conduta aos princípios governativos do estado. Também
no fragmento que citei se plasma uma narrativa de salvação, em que as artes são
instrumentalizadas quase como uma terapêutica que faz frente aos males da sociedade.
Aqui se percebe o quanto o discurso curricular do desenho não fala sobre desenho mas
sobre formas de governo do aluno, e do professor.
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
Também os critérios de correção do exame criam desde logo lugares conceptuais em cuja
compreensão se inscrevem gramáticas mais de uma ordem psicológica do que da ordem do
desenho enquanto forma de conhecer e de produzir algo ainda não conhecido. Entre o aluno
que “risca e mancha com segurança, fluidez e desenvoltura” e o aluno que “risca e mancha
com dificuldade”, haveria o aluno que “risca e mancha com hesitação” e espaços intermédios
entre estas diferentes escalas que não apenas falam de uma competência, mas que, pelo
contrário, fazem equivaler essa competência àquilo que o aluno é, ao modo como se vê e é
visto enquanto bom ou mau desenhador.
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
O olhar do professor é governado por estas lentes que regulam e limitam não apenas as suas
possibilidades de ver, de falar e de agir, como também regulam a subjectividade do aluno
enquanto desenhador. Discursos particulares, utilizados para avaliar o desenho, constroem e
regulam aquilo que se designa por habilidade ou competência do aluno em desenho. O
programa de desenho assinala, logo nos parágrafos introdutórios que “o desenho não é
apenas aptidão de expressão”, mas é essa, contudo, a zona que se marca no exame e nos
critérios de correção dos exames para definir e construir uma identidade particular do
sucesso do aluno nesta disciplina.
No exame de desenho o que se avalia é o domínio de uma relação muito particular, que é a
da perspectiva e da representação visual. A perspectiva aparece como o critério implícito que
determina a capacidade ou incapacidade do aluno na resolução do exercício que lhe é
colocado. No mundo ocidental, a perspectiva é confundida com o modo como vemos as
coisas, mas ela é, de facto, um sistema de representação. Aqueles que são habitualmente
considerados com tendo 'jeito para desenho' são aqueles que utilizam correctamente as
regras desse sistema, logo, aqueles que não as aplicam correctamente, são identificados a
partir de uma imagem de menor complexidade, menos rigorosa ou objectiva. É isso que nos
fazem crer as teses sobre as fases de desenvolvimento da criança no que ao desenho diz
respeito. Das primeiras garatujas ao domínio da perspectiva, o nível é considerado sempre
em ascendência e complexificação. Mas o que nos diz esse domínio sobre aquilo que o aluno
pode produzir a partir do desenho? Nada, absolutamente nada.
Diz-nos sim, sobre práticas de governo do olhar e da subjectividade de cada sujeito. Na prova
de exame são comuns os conceitos de 'registar correctamente', 'adequar', 'respeitar as
proporções', 'transmitir adequadamente'. Percebemos essas nuances governativas no que
diz respeito ao tipo de desenho que é mobilizado, treinado, incentivado e narrativa única na
escola, quando, uma vez mais nos critérios de correção do exame de desenho, são
equacionados os equilíbrios e desequilíbrios que o aluno consegue na resolução do exercício
solicitado, na ocupação que decide fazer da folha de papel.
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
A folha não é somente uma arena que aceita a inscrição da resolução do exercício, mas é,
antes, o lugar geométrico em que cada local é valorizado ou anulado em termos de
significação. Uma vez mais teremos o aluno competente, eficaz e capaz de responder a um
pedido, por oposição àqueloutro incompetente. Entre o que dimensiona os registos, não os
sobrepõe, e ocupa de forma equilibrada o espaço livre da folha da prova, o que não
dimensiona correctamente os objectos mas ocupa de forma equilibrada o espaço da folha de
papel, o que dimensiona correctamente os objectos mas não ocupa de forma equilibrada o
espaço livre da folha de papel, teremos ainda aquele que, incompetente nos dois domínios,
nem dimensiona nem ocupa de forma equilibrada a folha de papel.
Aquilo que gostaria de deixar claro é que estes são espaços discursivos construídos, que
marcam posicionamentos. A avaliação e posicionamento dos desenhos apresentados como
solução de um exercício posicionam-se no interior de um determinado paradigma que exclui
a possibilidade de se olhar para o exercício como um problema e para as suas soluções
enquanto práticas significativas de desenho. Portanto, muito mais do que falar das
capacidades dos alunos em desenho, os critérios de correção constroem o olhar do professor
na produção dos alunos e na sua regulação e confirmação enquanto tipos de desenhador
particulares.
Poderíamos avançar para outros programas curriculares na área artística: educação visual e
as suas metas, geometria descritiva, história da cultura e das artes. Procurei mostrar que na
escola, quando falamos em arte, não é do artístico que estamos a falar, mas de formas de
governo das crianças e dos jovens. Mas se nas práticas e nos conteúdos não estamos a falar
de arte tal como ela se inscreve no campo do artístico, enquanto gesto político e de crítica ao
estado do mundo, estamos, contudo, a ser seduzidos por uma noção de arte muito particular
e por um modo muito específico de nos relacionarmos com ela como um campo de
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
A educação artística está, por isso, como afirma Gert Biesta, em crise. Em parte, esta crise
tem que ver com um desconhecimento da própria história, que nos levaria a perceber de que
modo as nossas crenças contemporâneas se formaram ao ponto de se naturalizarem e
serem, por isso, hoje, dificilmente questionáveis, e, por outro lado, e por via, precisamente,
deste desconhecimento histórico, tendermos a responder sempre à pergunta porque é que
as artes, ou de que modo as artes interessam e importam à educação, com uma míriade de
respostas que sublinham sempre o que as artes, ou aquilo a que chamamos arte na escola,
supostamente ‘fazem’. Claro que estas respostas têm que ver com a linguagem e aquilo que
parece importar cada vez mais na educação: os objectivos, as metas, a avaliação, a
excelência. De certo modo, quer seja pela instrumentalização das artes, quer pelos discursos
que sublinham a sua importância na transformação dos sujeitos, tendemos sempre a
reproduzir as lógicas positivistas do próprio dispositivo escolar e as mesmas hierarquias.
A Concluir…
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SEREMOS CAPAZES DE PERGUNTAR EM VEZ DE RESPONDER? A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E AS SUAS
RETÓRICAS
No que vos disse, centrei-me muito mais nos desafios do que nas conquistas. O grande
desafio é o de enfrentar as conquistas e de as questionar sem medo. Esse questionamento
exige a capacidade de nos suspendermos, ao nível do que consideramos ser a ‘verdade’ e,
simultaneamente de desobedecermos aos parâmetros estabelecidos, às formas de pensar,
de ver, de dizer e de sentir. Como sugere Susan Buck-Morss, há que exceder “os limites da
presente imaginação”. De nos atravessarmos para um desconhecido e de suspendermos a
força que parece mover qualquer processo educacional: a de determinar o caminho daqueles
que hão-de vir.
Imaginarmos poder vir a ser qualquer coisa que hoje não somos e que desconhecemos,
obriga-nos a colocar em questão as retóricas da salvação atribuídas às artes na educação.
Para que servem as artes na educação? Cada vez mais o meu desejo é o de responder que
não servem, nesse sentido utilitário, funcional e eficiente das linguagens neoliberais, para
nada. Que a força da arte é a da sua inutilidade, é essa potência que a torna arma política
face ao estado do mundo e motor de desobediência. Mas termino como comecei: A arte não
é uma só coisa e é, em si, historicamente contraditória e complexa, a arte é luta, política,
resistência, mas também luxo, mercado, submissão ao poder, colonização, supremacia. A
educação artística tem que enfrentar estas complexidades, contradições, incompreensões e
heranças e que resistir, simultaneamente, às lógicas neoliberais em que a prestação de
contas em educação se faz através de números. Como todos sabemos, os números não são
apenas números.
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O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM
PORTUGAL
IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Parto da ideia que Portugal é um país rico e aberto ao risco, às ideias e experiências, um país
onde os diferentes se cruzam e se faz o novo.
Assim acontece, hoje, com as canoas Nelo e os cafés Delta que, sem grande estardalhaço,
mas com uma perspetiva inovadora, ganham mundo e tornam-se do mundo, assim acontece
com a seleção nacional de futebol, com José Mourinho ou Cristiano Ronaldo, com o método
de formação de treinadores da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de
Lisboa, e com Sisa Vieira.
Assim acontecerá, no futuro, com o alargamento da Plataforma Continental, o que nos vai
obrigar a voltar ao mar e a olhar e a estar no mundo duma forma inovadora e com futuro.
tempos de hoje. É importante ter em conta que hoje, com a interdependência planetária que
há entre os diferentes acontecimentos, para conhecer o mundo já não basta ter uma
perspetiva multidisciplinar, ela deve e tem de ser complementada com uma leitura a partir de
diferentes partes do mundo, pois a localização geográfica condiciona a forma como olhamos
para cada acontecimento ou projeto, só assim estaremos mais perto duma visão holográfica
que o nosso mundo tem.
Mas como fazê-lo se, como muitos afirmam, esta escola, com a sua estrutura que espartilha
os conhecimentos, privilegiando as disciplinas em vez da multidisciplinaridade e das áreas de
projeto, onde a transmissão é mais importante que a construção, e o tédio e a
desmobilização são uma constante, mata a criatividade?
Como fazê-lo quando há cada vez mais consciência que o modelo dominante de escola já não
responde aos desafios deste tempo, se o seu modelo de organização não está estruturado
para possibilitar que cada estudante possa ter uma visão da globalidade e complexidade da
vida e do mundo e desenvolva a capacidade de pensar de maneira crítica e pessoal?
Como fazê-lo se a escola atual vive da transmissão dum saber já estabilizado, onde a
autonomia e a construção de um conhecimento pessoal, que permite a cada um pensar
duma forma criativa e crítica, características essenciais para que os cidadãos deste tempo
possam ser atores de corpo inteiro da invenção do futuro que é já hoje, não é minimamente
incentivada?
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O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Em primeiro lugar o grande objetivo do que se faz deve dirigir-se, como já o afirmámos, para
o desenvolvimento da capacidade de cada poder produzir um pensamento autónomo, que
cada um possa ter um pensamento global e complexo que permita compreender e intervir
na realidade nas suas múltiplas dimensões. E aqui as artes são um espaço privilegiado na
estruturação deste pensamento global e complexo e no desenvolvimento da intuição. As
artes são, desde há muito, portadoras de potencialidades interdisciplinares que, bem
explicitadas no interior dos processos de criação, podem criar condições para levar os seus
atores a descobrir que os saberes não são disciplinares, que cada vez mais há uma
interdependência das várias áreas do conhecimento e que o processo de criação implica a
mobilização e o apoio das múltiplas áreas do saber, que os muros e as barreiras entre as
pessoas e os saberes são produto de uma realidade artificialmente imposta.
Em segundo lugar, e ainda que não tenhamos muita consciência disso, a escola é talvez o
lugar onde se concentra hoje em dia o maior número de pessoas altamente qualificadas,
pessoas que se encontram relativamente protegidas dos confrontos políticos, das
competições comerciais e das tentações gestionárias. Grande parte do potencial cultural (e
mesmo técnico e científico) das sociedades contemporâneas está concentrado nas escolas.
Não podemos continuar a desprezá-lo e a menorizar as capacidades de desenvolvimento dos
professores. Poderá assim pertencer à escola um papel primordial na tarefa de pensar o
futuro.
Finalmente há que perceber que a entrada como parceiro de corpo inteiro das artes nos
espaços de formação, se permite na perspetiva artística abrir um espaço de experimentação
por excelência, parece-nos fundamental que, na perspetiva da escola e da formação das
pessoas, as artes se pensem como um espaço de interface capaz de tornar narrativas
artísticas as temáticas do mundo de hoje, temáticas que muitas vezes não conseguimos ler e
entender na sua complexidade, e que, por maioria de razão, dificilmente têm entrada na
escola atual.
28
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Foi o tempo da Educação pela Arte que, no seu cruzamento com outras correntes que
atravessavam o movimento internacional de Arte na Educação, um tempo e um movimento
que permitiu que se criassem condições para que as experiências e os projetos que então se
desenvolveram em Portugal tivessem impacto internacional, tendo colocado o nosso país
como um dos centros de referência do que, no domínio das Artes na Educação, se fazia pelo
mundo. Não é por acaso que é em Portugal, no Teatro Rivoli no Porto, que em 1992 se funda
a IDEA, International Drama/Theatre Education Association1.
1
https://ideadrama.org/
29
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
- grande missão do teatro para a juventude 5 e da sua razão fundamental de ser é “suscitar,
estimular e desenvolver na juventude dois grandes conceitos – o conceito da
personalidade, o conceito da solidariedade – para que mais tarde o indivíduo e a
coletividade vibrem em uníssono, fortalecendo-se e enriquecendo-se mutuamente”. O teatro
foi abordado 5 anos depois no livro “A Criança e o Teatro” 6 onde se defendia que os jogos
dramáticos terão reflexos a nível de rasgar alicerces duma sadia personalidade e de um
2
Santos, Delfim (1957). Prefácio, in Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-
América, 1967, pp. 9-16.
3
Santos, João (1957). Fundamentos psicológicos da educação pela arte, in Educação Estética e Ensino
Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América, 1967, pp. 17-75.
4
Grácio, Rui (1957). Educação estética e ensino escolar, in Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa,
Publicações Europa-América, 1967, pp.181/221.
5
Rebelo, L.F. (1957).O teatro e a juventude, in Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações
Europa-América, 1967, pp.131-148.
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O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
rendimento superior que se faria a três níveis: corporal, cultural e espiritual: Corporalmente
porque o jogo dramático ao implicar a criança na ação levava todo o seu corpo a intervir e
apura-lhe a habilidade física; Culturalmente porque vai obrigar as crianças a recorrer às suas
capacidades de imaginação, de mnemónica, e, ao mesmo tempo, porque as exigências de
prossecução de jogos as vai confrontar com conhecimentos que normalmente a escola não
abarcará, abrindo-lhes os seus horizontes de conhecimentos; Espiritualmente porque lhes
possibilitará uma inesgotável fonte de experiências interiores, as relacionará com o grupo e
as levará a aceitar voluntariamente as responsabilidades, levando a que se desvaneçam a
preguiça e a indolência tão próprias da criança.
- que se queria com este tipo de práticas não era formar artistas. O mais importante era
fazer de cada criança uma criança que sente vibrar dentro de si o gosto desta ou daquela
atividade7, pois a educação deve estimular todas as capacidades existentes na criança, para
que ela possa desenvolver as aptidões que lhe permitam a escolha da atividade que mais lhe
convenha. O que se quer é formar estética e humana e socialmente os alunos, para
estimular as faculdades criadoras e imaginativas da juventude, integrando-as numa ação
coletiva como é o teatro.
A Grande Reforma
6
Magalhães, M.S. Calvet de, Gomes, Aldónio (1964). A criança e o teatro, Lisboa, Direccão Geral de
Educação Permanente, 1974.
7
Branco, J. de Freitas (1957). Aspectos musicais do problema da educação artística, in Educação Estética e Ensino
Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América, 1967, pp.101/130.
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O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
O nome chave desta reforma é Madalena Perdigão, diretora dos Serviços de Música da
Fundação Calouste Gulbenkian, a quem o Ministro Veiga Simão vai incumbir de coordenar o
projeto e a comissão de reforma do ensino superior artístico, o que faz acompanhada por um
conjunto de pessoas de referência do movimento artístico português como Luzia Maria
Martins, João de Freitas Branco, Mário Barradas, Seixas Santos e José Sasportes. Calvet de
Magalhães é o diretor da Escola Francisco Arruda que vai ter uma secção anexa ao
Conservatório, e Arquimedes dos Santos, que era responsável pelos cursos de
"Psicopedagogia das Expressões Artísticas" que eram ministrados na Fundação Calouste
Gulbenkian, é o consultor psicopedagógico da Comissão de Reforma. No domínio específico
do teatro Madalena Perdigão é acompanhada neste processo por Peter Brook, um homem
que, segundo ela, foi uma das armas mais fortes de que dispôs, e que veio a influenciar
decisivamente os primeiros tempos da Escola Superior de Teatro e a marcar as primeiras
gerações de alunos.
Como seria natural, e em coerência com o quadro conceptual que foi sendo desenvolvido,
desde a fundação da Associação Portuguesa de Educação pela Arte, a dimensão da formação
8
Sasportes, José (1992). Documento policopiado
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O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
de professores devia integrar o projeto, e daí o ter-se avançado com a proposta de abertura
de dois diplomas:
- de educação pela arte para preparar os professores de educação musical, dança criativa e
dramatização também para os ensinos básico e secundário.
Por causa da resistência das pessoas que dirigiam as escolas de teatro, música e dança, o
diploma dos professores do ensino artístico não avançou, ficando só a funcionar a formação
de educadores pela arte na Escola Superior de Educação pela Arte, no que foi o um dos
maiores contratempos, ao lado da não abertura da Direção Geral do Ensino Artístico no
Ministério da Educação e do Instituto das Artes.
9
Nóvoa, António, (1986). Para a história da expressão dramática em Portugal, in Uma Aprendizagem
da Descoberta (coordenação Carlos Fragateiro), Lisboa, Ed. III Encontro Internacional de Expressão
Dramática, pp.5-16.
10
Almeida, Élia (1981). Formação de professores, in Sistema de Ensino em Portugal, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian Lisboa, pp. 413-419.
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O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
A evolução de todo este processo baseou-se sempre num processo de abertura e de diálogo
que, num primeiro momento e de um modo muito forte, teve como eixo central a
11
Gago, José Mariano (1988). O presidente da JNICT e o ensino do português, in Seara Nova nº 18,
1988, Lisboa, pp. 50-51.
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O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
interferência e a contaminação das ideias e dos discursos entre as gentes vindas da Escola
Superior de Educação pela Arte e da Escola Superior de Teatro no interior do grupo de
professores de Movimento e Drama das Escolas do Magistério. Uma intervenção que não se
limitou ao interior das escolas de formação, mas se abriu ao exterior das escolas de
formação, como aconteceu em Aveiro, Leiria, Caldas da Rainha, Évora e Faro.
Naturalmente que para se perceber a globalidade dos processos e dos movimentos que
criaram condições para que hoje exista a diversidade de modelos de intervenção que existem
teríamos que completar esta leitura com outros percursos, entre os quais me parece
importante sublinhar o do Teatro para Crianças e Jovens de que há que destacar três
referências que me parecem paradigmáticas: a Unidade Infância do Centro Cultural de Évora,
o Bando e o encenador independente José Caldas, os Encontros de Teatro na Escola, cujo
percurso traduz uma parte significativa do que foram e são os projetos dos Clubes de Teatro
do 2º, 3º Ciclos do Básico e Secundário, e, no exterior da estrutura escolar, os Centros de
Animação e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian, a Fábrica das Artes do Centro
Cultural de Belém, e o que foi o projeto Paideia.
Todo este movimento de intervenção, que tem uma vertente dominantemente prática, foram
complementados com a organização dos dois primeiros Encontros Expressão Dramática que
permitiram, por um lado, trocar, analisar, e refletir sobre as práticas e as suas perspetivas de
desenvolvimento, e, por outro, confrontar essas práticas com obras teóricas de referência
que servissem de suporte e desafio à criação de um quadro teórico que suportasse e desse
sentido às práticas.
Todo este processo que foi suportado por um intenso diálogo e de ações de colaboração
entre as práticas e as estruturas institucionais, acabou por ser interrompido pela não
aprovação de um quadro de referências para a intervenção das artes na globalidade do
sistema educativo e pelo fim da intervenção institucional da Educação pela Arte, cuja
tradução mais real foi a extinção da respetiva escola.
35
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Juventude (CPTIJ), criou condições para que se tivesse assistido em Portugal a uma explosão
da produção teatral para crianças e jovens e o dos museus e outras estruturas exteriores ao
sistema escolar. A juntar a estes movimentos há que referir o facto de em 1979 se ter
comemorado o Ano Internacional da Criança, o que levou a que a partir de 1977 se tivesse
assistido em Portugal à constituição de equipas multidisciplinares que vieram a realizar os
seus projetos durante as referidas comemorações.
Todo este conjunto de realizações, que foi acompanhado pela abertura de espaços de
reflexão de que é exemplo mais significativo a revista de animação cultural "Intervenção",
veio levar a que o campo de referência das práticas artísticas na educação se alargasse para
além da perspetiva da educação pela arte, o que aconteceu logo na chegada dos professores
de expressão dramática/movimento e drama às Escolas do Magistério quando se viu que só
um pequeno número vinha da Escola Superior de Educação pela Arte, enquanto os outros
tinham uma formação de base da Escola Superior de Teatro.
Esta diversificação e aprofundamento dos projetos não foi acompanhada pelo lançamento de
medidas institucionais que permitissem criar condições para o desenvolvimento das práticas
que suportavam esses projetos, tendo-se assistido ao aparecimento de dinâmicas
institucionais contraditórias que se traduziram no(a):
a) enorme recuo institucional de que são exemplos paradigmáticos a não aprovação do Plano
Nacional do Ensino Artístico, a extinção do Gabinete Coordenador do Ensino Artístico, pelo
que deixa de haver no Ministério da Educação uma estrutura capaz de funcionar como
interlocutor e com capacidade de compreender a globalidade da intervenção das artes e os
seus possíveis desenvolvimentos no interior do sistema educativo;
b) esvaziamento progressivo das Escolas do Magistério, que até essa altura tinham sido o
espaço de experimentação e referência do movimento de arte e educação, provocado pelo
aparecimento das Escolas Superiores de Educação para onde passa a formação dos
professores do ensino básico e dos educadores de infância. Esta passagem foi feita sem que
tivesse sido feita uma análise mínima da experiência acumulada, muitas das vezes relegando
para o esquecimento essa experiência, simplesmente porque não se avaliou, ou não se quis
avaliar, um processo que tinha representado uma viragem radical nos modelos de formação
de professores vigente em Portugal, nem se teve a coragem ou a capacidade de transformar
a estrutura curricular dos planos de formação, tanto dos educadores como dos professores
do 1º Ciclo. E bastava ter analisado as experiências realizadas e as medidas institucionais que
foram aprovadas, para que a necessidade e os eixos dessa transformação curricular se
tornassem visíveis;
36
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
e) redução drástica dos projetos de teatro para a infância e a juventude que se tinham
começado a afirmar a partir de 1978 aquando dos encontros organizados pelo CPTIJ e da
dinâmica criada à volta das comemorações do ano internacional da criança, redução
provocada pelo estrangulamento dos apoios às companhias de teatro vocacionados para a
infância e juventude por parte do Ministério da Cultura.
Houve efetivamente uma notória incapacidade institucional para potenciar todo este
movimento e para responder às necessidades que emergiam da prática, podendo mesmo
afirmar-se que, a partir de certa altura, se assistiu a uma atitude de recuo institucional.
Quando todos os indícios apontavam para um reforço do apoio institucional ao movimento e
às práticas saídas das manifestações realizadas em torno das comemorações do Ano
Internacional da Criança em 1979, aconteceu o inverso: a única escola vocacionada para a
formação de quadros especializados, Escola Superior de Educação pela Arte, é fechada em
1980, o Plano Nacional de Educação Artística de Madalena Perdigão é votado ao
esquecimento, o movimento de teatro e animação para a infância e a juventude é
estrangulado pela falta de apoios da Secretaria de Estado da Cultura e as horas previstas
para os centros de tempos livres vão sendo progressivamente reduzidas.
37
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Este plano, que na opinião de Madalena Perdigão criaria as condições indispensáveis para
que os objetivos da educação artística fossem plenamente atingidos, para além de se ter
fechado no interior da ideia da educação pela arte como já o referimos, não conseguiu dar
resposta ao que se passava no terreno, nem compreender o contexto social e político
existente na altura, como o podemos constatar pela análise dos diferentes pareceres então
produzidos. Com efeito estes mesmos pareceres evidenciam um determinado número de
constrangimento e limitações, entre os quais destacamos:
Os serviços de Ação Pedagógica da Direção Geral do Ensino Básico referiam no seu parecer o
papel demasiado preponderante dos Educadores pela Arte, considerando que o Plano é
prejudicado por estar demasiado ligado ao projeto piloto que levou à criação da Escola Piloto
de Educação pela Arte. A Academia dos Amadores de Música (1980) via com apreensão e
considerava descabido o papel importante que era dado aos Educadores pela Arte “dado que
a formação ministrada pelo Conservatório Nacional não lhe parece de molde a preencher a
missão que lhe é atribuída”. Para Maria de Lourdes Martins, “o resultado do ensino artístico
com que a Escola de Educação pela Arte pretendeu equipar os seus alunos ao longo da
experiência de nove anos está bem à vista. Salvo uma ou outra exceção de alunos muito
dotados ou já com conhecimentos musicais. A Escola abre novas perspetivas, desenvolve a
criatividade, dá uma visão atual da psicopedagogia da expressão artística, mas não prepara
Educadores pela Arte, pelo menos se quisermos incluir a música entre as artes”.
O próprio Serviço de Ação Pedagógica reforçava esta ideia quando dizia não concordar que
os formados pela Escola Piloto do Conservatório Nacional “possam lecionar Educação Musical
nas Escolas do Ensino Preparatório (2º Ciclo do Ensino Básico), pela fraca preparação e
reduzida cultura geral que têm revelado na maioria dos casos”.
38
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
com as Escolas Superiores de Educação pela Arte ou os Departamentos afins das Escolas
Superiores de Educação: “apontando o Plano para soluções alternativas, a menos correta
será a da criação de Departamentos Artísticos nas Escolas Superiores de Educação. A
introdução de uma componente psicopedagógica nos cursos de formação profissional
artística parece preferível” (p.10).
Sobre esta ideia de formação, Eduardo Lourenço foi bastante mais incisivo, pois para ele o
problema número um, aqui como noutras disciplinas, mas com outra acuidade por o saber
artístico e a sua transmissão ser de uma outra natureza é o da formação de formadores. A
dificuldade real é a da formação de educadores pela arte que, por serem numerosos, não
podem beneficiar de um ensino privilegiado como é o dos futuros artistas e profissionais da
arte, mas também não tem sentido, nem alcance, sem um mínimo (máximo) de tecnicidade
artística propriamente dita. Ninguém os pode formar senão outros artistas ou criadores -
pedagogos. Só um elitismo implacável no topo permite pôr em marcha o mecanismo efetivo
de uma democratização cultural artística no futuro.
Daí que quando se refere à ideia do Instituto Nacional das Artes, Eduardo Lourenço refira
que deve congregar os mais eminentes artistas - pedagogos nacionais das artes nele cultivadas e
recorrer à presença de estrangeiros.
Daí que se propusesse que a admissão futuras nos cursos de educadores de infância e
professores primários seja condicionada a testes comprovativos de aptidões artísticas.
39
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Este processo culmina com a extinção da Escola Superior de Educação pela Arte pelo Decreto-
Lei nº 310/83 de 1 de Julho, ou reenquadramento, segundo a leitura de Madalena Perdigão,
pois propunha-se que ela se deveria vir a enquadrar nas futuras escolas superiores de
educação, o que era justificado pelo facto do curso de Educação pela Arte não ter como
objetivo formar artistas, mas sim professores nomeadamente do ensino básico.
Esta opção já tinha sido proposta pelo grupo de trabalho que, em 1981 e sob a coordenação
de Madalena Perdigão, estudou a reconversão da escola e recomendou como solução a
médio prazo a sua integração na Escola Superior de Educação de Lisboa, o que permitiria
apontar para a introdução dos princípios pedagógicos da educação pela arte na educação de
todas as crianças portuguesas através da sua inserção na formação dos educadores de
infância e dos professores primários. Uma solução que se reconhecia que apresentava as
vantagens de poder servir de recurso à formação de educadores do Ensino Básico na área
das Expressões e de poder enriquecer a sua dimensão psico-socio-pedagógica pelo contacto
e a colaboração com alunos e professores dessas áreas.
Apesar da Comissão de Avaliação da ESEA ter referido que, a curto prazo e como medida de
emergência, a escola se deveria manter no Conservatório Nacional para que não houvesse
interrupção das suas atividades letivas, e que, ao mesmo tempo, se deveriam efetuar
diligências no sentido da sua autonomização ou da sua integração, como curso autónomo,
na Escola Superior de Educação de Lisboa, nada disto veio a acontecer. A escola foi extinta e
não foi tido em conta o Relatório de Avaliação que, por proposta de Madalena Perdigão, foi
enviado à secretaria de Estado do Ensino Superior a fim de ser considerado aquando do
lançamento da Escola Superior de Educação de Lisboa.
12
Perdigão, Madalena (1987). Aspectos da experiência pedagógica de 1971-1974, in Conservatório
Nacional. Dez Anos de Ensino de Teatro, Lisboa, Centro de Documentação e Investigação Teatral,
E.S.T.C.,1988, pp.69-72.
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O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Quase dois meses após a publicação do Decreto-Lei que extingue a Escola Superior de
Educação pela Arte, toma forma aquela que poderemos chamar a última medida institucional
inspirada por essa corrente, medida que cria as Equipas de Intervenção em Áreas de
Expressão que acabaram por criar condições para um enquadramento institucional dos
professores do 1º Ciclo que tinham tirado o curso de Educação pela Arte.
Esta dimensão internacional foi tão significativa que em 1989, no quarto encontro, de
expressão dramática e teatro na educação realizado no Instituto Politécnico do Porto, foram
lançadas as bases para a criação de uma estrutura internacional que tinha como um dos seus
objetivos: a criação de um espaço de circulação e troca de saberes que, a nível internacional,
respondesse às múltiplas necessidades sentidas no campo da expressão dramática e do
teatro na educação
41
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Neste encontro conseguiu-se que, pela primeira vez, anglófonos e francófonos assinassem
uma declaração conjunta onde se defendia o direito de todas as crianças e jovens em idade
escolar terem acesso a uma educação em e através das práticas artísticas, referindo o como
elas contribuíam para uma melhor compreensão mútua na sociedade multicultural em que
vivemos e se propunha uma intervenção junto dos diferentes governos dos países
representados nos encontros para a defesa e o incentivo da intervenção das artes nos
diferentes sistemas educativos. Dando um enfoque significativo ao facto das práticas
artísticas ajudarem a desenvolver a inteligência, e nós reforçamos pela sua importância a
introdução desta ideia da inteligência, pois na maioria dos casos só se referem questões
relacionadas com a criatividade e a sensibilidade, no manifesto recomendava-se aos
governos e à comunidade europeia a criação de condições para o desenvolvimento da
investigação e da utilização das múltiplas possibilidades que oferecem as atividades
dramáticas enquanto potencial educativo, assim como o fomento da análise das
problemáticas relacionadas com a formação de professores. Recomendava-se também que
se favorecesse a investigação nos seguintes domínios:
- criação de uma revista internacional. Num primeiro tempo a revista "Percursos", cujo
primeiro número acaba de sair, poderá servir de suporte, aguardando-se a elaboração de um
perfil mais preciso para uma outra publicação;
42
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
- organização, dentro de dois anos, dos 5ºs encontros internacionais de Portugal (sem excluir
outro tipo de iniciativas de países diferentes). "(4º Encontro Internacional de Expressão
Dramática, Porto 1989 - Conclusões)
Esta dimensão internacional ganha maior relevância com a constituição, no Porto, durante o
1º Congresso Mundial do Teatro e Educação em Julho de 92, da IDEA - Associação
Internacional de Teatro e Educação, associação que conta atualmente com a participação de
elementos e associações de cerca de 40 países.
E nós vamos continuar a pactuar com este sistema que produz pessoas para uma realidade
que já não existe?
É urgente mudar o sistema, mas para o conseguir é necessário perceber quais as forças
estranhas e poderosas que impedem qualquer ideia de mudança. É necessário denunciar os
poderes instalados no sistema educativo, poderes interessados, primeiro que tudo, no
reforço da sua área de intervenção e no aumento do número de novos profissionais da
especialidade que conseguem integrar no sistema, nada preocupados em olhar para além do
universo limitado da sua área disciplinar e sem perceber minimamente o que são hoje as
dimensões estruturantes necessárias para ajudar a formar cidadãos do nosso tempo.
13
Conferência TED
https://www.ted.com/talks/sugata_mitra_build_a_school_in_the_cloud/transcript?language=pt
43
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
- predomínio da abordagem disciplinar, com uma variedade cada vez maior de disciplinas,
mas com grandes dificuldades de criar pontes entre elas e organizar projetos que deem um
outro sentido às aprendizagens;
- organização das turmas tendo por base as idades e capacidades aparentes, fazendo-as
avançar todos ao mesmo tempo como carneiros, não tendo em conta os tempos e o ritmo de
cada um. Mesmo sabendo que existem lacunas, a classe inteira passa duma matéria para a
seguinte, provavelmente mais avançada, que vai aumentar as lacunas, até chegar a um
ponto em que se esbarra numa parede e não se avança mais.
- estrutura da arquitetura das escolas que privilegia mais a organização em salas de aulas
do que os espaços de encontro e cruzamento, quando a ideia deveria ser a de assumir a
escola como espaço fundamental de encontro.
A estrutura escolar é hoje um sistema sequestrado não só pelas corporações, mas também
pelas muitas estruturas de burocráticas de avaliação e controle que, aos mais diferentes
níveis, abafam e impedem que as energias criativas das pessoas e das estruturas
descentralizadas possam ganhar forma, expandir-se.
44
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Hoje não necessitamos de pessoas iguais umas às outras, como o Império Britânico
necessitou há cerca de 300 anos, necessitamos sim de seres humanos de corpo inteiro, de
pessoas capazes de responder criativamente aos desafios que este mundo em mudança nos
está constantemente a confrontar. Daí que o terreno da formação não possa ser um
processo mecânico, antes sim um processo orgânico que permita o desabrochar da
identidade e das capacidades de cada um.
- prazer de jogar, de estar sempre a experimentar, de não ficar satisfeito com as primeiras
descobertas ou respostas e querer ir sempre mais além, com o espírito do jardim-de-
infância.
- paciência do surfista que não tem medo do silêncio, nem da solidão, que não embarca na
primeira onda, com todos os sentidos alerta, com o tempo e a paciência para aguardar pela
onda que o levará a uma experiência única, irrepetível e sublime, sem nunca ir contra ela,
mas em perfeita fusão.
- pensamento crítico e que faz boas perguntas, o que é muito mais importante que
memorizar respostas fáceis.
14
Tony Wagner
https://one.elmundo.es/que-educacion-necesitan-nuestros-hijos-para-afrontar-el-futuro/
45
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
- domínio das linguagens e dos códigos estruturantes que o tornam capaz de ler,
compreender e comunicar com o mundo
- personalidade empática
- perseverança, tenacidade, autodisciplina, é claro, e uma forte visão moral da vida, uma
noção do que é inerentemente correto ou errado.
Uma escola onde cada pessoa tenha espaço e tempo para descobrir o seu talento, para que
as suas capacidades possam emergir, ganhar forma, num quadro em que se pense a
profissão e o trabalho como um prazer, e não como o sacrifício por que é necessário passar
para poder, no futuro, ganhar o reino dos céus, a felicidade.
Isto implica trabalhar com diferentes materiais, desenvolver diferentes projetos, responder
aos desafios e às questões as mais diversificadas possíveis, pois só assim será possível o
Gozo do Conhecimento.
46
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
- jogo esteja no centro das estratégias de aprendizagem para que as crianças e os jovens
nunca percam a enorme capacidade de jogar, improvisar e experimentar que começam a
expressar no jardim-de-infância, pois é pelo jogo que se vão apropriando da realidade e a vão
descobrindo e conhecendo.
Sabendo que a curiosidade e a criação artística estão inscritas no DNA do ser humano, é
altura de nos percebermos o que é necessário fazer para que as crianças não percam essas
capacidades nem se desinteressem. Principalmente quando temos consciência que as
capacidades mais visíveis nos grandes criadores são as mesmas das crianças nos jardins-de-
infância: capacidade de jogar, experimentar, e fazer novas combinações. Com uma única
diferença, nos jardins-de-infância jogam permanentemente, sempre no campo da
improvisação, enquanto os criadores experimentam, improvisam, mas depois analisam e
repetem os processos porque os dominam duma forma consciente, conseguindo reconstruir
e analisar os processos de experimentação e estruturar e concretizar o que descobrem.
Uma dimensão que já existe, por exemplo, na Escola 42 que tem por missão central fazer
emergir e estimular os talentos. A 42 é uma escola sem professores, horários ou graus
académicos, e foi criada em 2013 para formar programadores porque o seu fundador, Xavier
Niel15, percebeu que o sistema de ensino não funcionava e que era muitas vezes entre os
jovens que não são reconhecidos pelo sistema atual que se encontram os talentos mais
importantes.
- aprendizagem se desenvolve por Projetos, mais do que numa perspectiva disciplinar, como
acontece na 42, com a sua pedagogia participativa, peer-to-peer learning, que permite aos
estudantes libertar toda a sua criatividade, num ambiente motivador ancorado no tema do
jogo com todos os seus códigos, conhecido por aumentar tanto a qualidade das
aprendizagens, como o bem-estar dos estudantes.
15
http://vodafonefuture.dn.pt/a-universidade-sem-professores-ou-exames/
16
Salman Khan. Conferência TED
https://www.ted.com/talks/sal_khan_let_s_teach_for_mastery_not_test_scores?language=pt
47
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Salman Khan propõe que, em vez de limitar artificialmente o tempo de trabalho numa
matéria, se torne variável o quando e quanto tempo um estudante tem para trabalhar algo,
sabendo que o que deve ser fixo é que eles precisam de dominar a matéria. Neste quadro os
estudantes têm de agir em relação à aprendizagem, e quando isso acontece, acontecem
coisas formidáveis. Primeiro, os alunos podem dominar os conceitos, mas também estão a
construir uma mentalidade melhor, estão a ganhar coragem, perseverança, estão a gerir a
sua aprendizagem. Em vez de estarem focados na lição do professor, os estudantes podem
interagir entre si. Conseguem maior domínio da matéria.
Na Escola 4217 atrás referida a progressão também não se faz em função da turma, mas de
cada um. Aqui o professor do sistema escolar clássico é substituído por uma comunidade
estudantil no centro da sua aprendizagem, onde cada estudante pode apresentar projetos
aos outros os projetos que quiser e a comunidade tem acesso a um conjunto de projetos
cada vez maior e mais rico.
O físico Jorge Wajensberg19, referindo-se às Universidades, acha que uma faculdade tem de
parecer-se a um grande espaço construído à volta de dois espaços centrais, uma grande
biblioteca e uma grande cafetaria, e no seu desenho deveria estar assegurado que não se
poderia ir de um lugar a outro da faculdade sem se cruzar a biblioteca e a cafetaria.
- boa escola deveria ser, como refere Wajensberg, antes de mais um lugar de encontro e as
aulas deveriam deixar de ser os ritos que se repetem todos os semestres, ou todos os anos, e
adotar um novo objetivo: fomentar a conversação na cafetaria (mentes presentes), ou nas
bibliotecas (mentes ausentes), e a reflexão (a própria mente). As cadeiras magistrais seriam
lecionadas em grandes auditórios e para centenas de alunos, não para repetir o que pode já
ter sido lido, mas para seduzir, fornecer estímulos, colocar enigmas, problemas, para que os
alunos fiquem cheios de vontade para voltar à cafetaria ou à biblioteca para debater e
aprofundar esses desafios.
17
http://www.42.fr/
18
Sergio Fajardo: "A qualidade da educação começa pela dignidade dos espaços"
https://www.archdaily.com.br/br/880177/sergio-fajardo-a-qualidade-da-educacao-comeca-pela-dignidade-
dos-espacos?ad_medium=widget&ad_name=navigation-next
19
Wajensberg, Jorge (2017). El Gozo Intelectual. Teoria y práctica sobre la inteligibilidade e la beleza,
Tusquets Editores, Barcelona.
48
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Os recursos humanos são como os recursos naturais, não estão logo à superfície
estão frequentemente enterrados bem fundo, daí que tenhamos de os procurar,
de criar as condições para que se tornem visíveis.20
A criação artística assume-se hoje cada vez mais como um espaço de encontro onde os seres
e as raças não estão em conflito, mas em oposição, e é daí que vem a sua riqueza. É parecida
com uma praça pública onde elementos discordantes vos obrigam a sentir o que é em vias
de se desenvolver. Um espaço de encontro e de jogo onde as inquietações e as
problemáticas que atravessam o grupo, enquanto realidade individual e social, emergem
20
Ken Robinson conferência TED
21
Marcuse, Herbert (1973). A dimensão estética, Lisboa, Edições 70
49
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Tendo como pressuposto que as expressões artísticas são instrumentos privilegiados para
dar corpo à intervenção da dimensão artística num modelo de formação onde cada criança
ou jovem possa expressar as suas narrativas mais intimas e se transforme em personagem
principal da sua narrativa ou história de vida, o quadro de referências, ou GPS, de que
partimos junta os discursos e as práticas de criadores e projetos que considerem como sua
referência central a afirmação de cada pessoa como ator principal da sua vida. Criadores
como:
23
- JR , um fotógrafo francês, é reconhecido pela divulgação de retratos anónimos nas
paredes do mundo inteiro, das favelas do Rio de Janeiro à Pirâmide do Louvre, dos bairros de
lata do Kénia a Manhatan, sempre com a vontade de reaproximar as culturas;
- Vik Muniz 24, é um artista brasileiro que transforma o lixo em obra de arte e os catadores de
lixo em protagonistas das suas obras Lixo Extraordinário, um filme sobre um projeto que
desenvolveu nas lixeiras do Rio, é um filme que mostra o estatuto da arte e a questão do lixo
na sociedade contemporânea, o árduo trabalho realizado pelos catadores e a possibilidade
de transformação que a mudança da perceção artística pode proporcionar.
25
- Vhils é dos mais reconhecidos criadores de arte urbana. Nasceu no Seixal, estudou em
Londres e trabalha no Barreiro e é um dos melhores do mundo na sua profissão com
trabalhos de arte urbana, escultura e obras de intervenção desde Nova Iorque, Brasil, à
China, passando por vários países europeus. Em Portugal existem obras suas em ruas de
diversas cidades, principalmente em Lisboa.
22
Cazenave (1987). Abordagens do Real, Lisboa, Ed. D. Quixote
23
http://www.jr-art.net/
24
http://vikmuniz.net/pt/
25
http://vhils.com/
26
http://fundamusical.org.ve/
50
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
A importância desse método não é apenas artística, pois a maior parte dos jovens músicos de
El Sistema provém das camadas mais carentes da população. Nas orquestras e coros, através
de muito empenho pessoal e disciplina, o jovem encontra na música uma via de
desenvolvimento intelectual e promoção social;
- Projeto do Festival Internacional de Teatro de Avignon que, entre 2004 e 2013, foi um
centro de cruzamento e reflexão sobre a Europa, não só mostrando as criações de criadores
de diferentes perspetivas e com olhares diferentes sobre a Europa, como de pensadores de
diferentes áreas do saber na programação do que chamaram o Théatre des Idées.
Como metodologia capaz de partir das pessoas, de cada pessoa, dos seus interesses e
referências, para construir narrativas e, a partir delas, produzir objetos artísticos e culturais
temos como referência central o método RSVP Cycles27: Creative Process in the Human
Environment (Ciclos RSVP: Processo Criativo no Ambiente Humano) do arquiteto Lawrence
Halprin e da coreógrafa Anna Halprin, utilizado pelo encenador canadiano/quebécois Robert
Lepage 28. Os Ciclos RSVP poderiam ser aplicados a qualquer processo de criação humana e
incorporar uma ampla gama de influências. A sigla RSVP quer dizer Resource (recurso), Score
(partitura), “Valuaction” (“valoração”) e Performance (apresentação parcial/espetáculo),
arranjados nessa ordem, não para indicar uma estrutura, mas para sugerir um processo de
comunicação e convidar o público a responder.
Criado por estudantes Erasmus em 2001, Cafebabel é escrito por jovens e para os jovens na
Europa. Disponível em seis línguas - inglês, francês, alemão, espanhol, italiano e polaco - o
sítio é alimentado diariamente por uma rede de 1.500 jovens autores, tradutores, fotógrafos
e videastas que trocam informações e ideias sobre a e na Europa que eles vivem no dia-a-dia.
27
https://www.youtube.com/watch?v=QbIi966lOLs
28
http://lacaserne.net/index2.php/
29
http://www.cafebabel.es/
51
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Giséle Barret
Foi nosso propósito de partida analisar três dimensões da intervenção das artes na realidade
atual da estrutura escolar portuguesa, duas que têm existência real, do Jardim de Infância,
espaço onde o jogo e a improvisação são constantes, e do 1º Ciclo do Ensino Básico, onde as
artes são a área privilegiada da multidisciplinaridade, e uma terceira, a tentativa de
estruturação da intervenção do teatro no Ensino Secundário numa dupla dimensão -
enquanto disciplina e como projeto integrador das diferentes áreas disciplinares/área escola,
que não se concretizou. Três dimensões que permitem, perceber como as artes podem
ajudar a encontrar respostas para muitos dos problemas e desafios com que o atual modelo
de escola, se está a confrontar.
52
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Nesta escola outra, as expressões artísticas terão um lugar estruturante porque práticas que
vêm de encontro a uma necessidade interior do ser humano, porque o que queremos é
desenvolver as pessoas e não a arte, privilegiando o processo mais do que o produto, onde a
afetividade tenha um lugar central e se possam desenvolver, em liberdade, a intuição, o
intelecto e a sensibilidade estética. Ao realizarmos um ato criativo descobrimos em nós
capacidades até então desconhecidas, e, ao fazermos essa descoberta, entramos mais dentro
de nós, conhecemo-nos mais profundamente, aumentamos a nossa capacidade de ver e de
nos relacionarmos com o mundo. Por isso a intervenção das expressões artísticas será um
fator permanente de aprendizagem para a criatividade, num processo permanente de
descoberta. Brincando, recriando a realidade que é a sua, a criança aprende na prática a
estar ativa e criativamente no seu mundo e no seu tempo. Como diz o ditado a brincar se
dizem as verdades, também a brincar possuímos as realidades.
53
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
se descura toda a vida escolar para além dos 50 minutos letivos, bem como uma afetação de
espaços onde os professores possam trabalhar individualmente ou em grupo 30.
A prática de experimentação e criação artística pode e tem condições para incentivar uma
reflexão profunda sobre a estruturação de uma organização espacial dos espaços de
formação, assumindo-os como laboratórios que sejam um incentivo e um convite ao trabalho
de pesquisa, ao encontro e à realização de projetos conjuntos de especialistas das diferentes
áreas artísticas, projetos esses que sejam capazes de, ao mesmo tempo, desafiar os
especialistas das outras áreas do saber e de tornar este espaço num centro de produção de
pensamento/conhecimento. Há efetivamente um grande desafio que hoje tem que ser
colocado aos arquitetos, aos urbanistas, aos decoradores/arquitetos de interiores, aos
engenheiros de materiais, entre outros, para que sejam capazes de construir edifícios que
sirvam a dimensão humano, encontrando soluções para que o conceito de leveza, que os
homens das tecnologias da comunicação tão bem souberam concretizar, se possa aplicar à
estrutura dos edifícios e das cidades que hoje, em vez de serem espaços de libertação das
energias e capacidades dos seus habitantes, são realidades extremamente pesadas e
bloqueadoras de toda a atividade e realização humana.
Na forma como se pensa a organização espacial dos edifícios vocacionados para a formação
e a experimentação, deve estar sempre presente a necessidade de fomentarem o encontro a
troca de ideias, que sejam espaços onde seja possível a aventura e o confronto ou a
descoberta de e com novos conhecimentos. Borges 31 fala dum universo a que chamam
biblioteca, constituído por um número indefinido e talvez infinito de galerias hexagonais,
com vários poços de ventilação ao meio, cercados por varandas baixíssimas, onde de
qualquer hexágono se veem os pisos superiores e inferiores, interminavelmente. Eco
completa a reflexão sobre o conceito de biblioteca com algumas questões sobre a
organização do espaço, partindo da estrutura da biblioteca de Toronto onde toda a gente
pode circular e retirar os livros do lugar, numa biblioteca feita à nossa medida, onde
podemos decidir passar lá um dia inteiro em santa delícia: ler os jornais, descer até ao bar
com alguns livros, depois procurar de outros, e fazer descobertas. Entrámos ali para nos
ocuparmos, por exemplo, do empirismo inglês e em vez disso começamos a seguir o rasto
dos comentadores de Aristóteles, enganamo-nos no andar, entramos numa zona onde não
suspeitávamos que pudéssemos vir a entrar, de medicina, e de repente encontramos
algumas obras sobre Galeno, portanto com referências filosóficas. A biblioteca converte-se
neste sentido, numa aventura. Rosnay 32 utiliza duas imagens que podem servir para
exemplificar os dois modelos de escola com que estamos confrontados: uma primeira a
30
Nóvoa, António (1991). O passado e o presente dos professores, in profissão professor, (A. Nóvoa
ed.), Porto, Porto Editora, pp.9-32
31
Eco, Umberto, (1981). A biblioteca, Lisboa, ed. Difel, 1987
32
Rosnay, Joel de(1991). L´Écologie et la vulgarisation scientifique de l´égocitoyen à l
´écocitoyen,Québec, Musée de la civilisation
54
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Para Robert Lepage, um dos criadores multidisciplinares mais importantes do nosso tempo,
La Caserne, um antigo quartel dos bombeiros transformado no seu centro, deve ser um
encruzilhada, com uma estrutura de organização flexível, modular, com interpenetrações
entre as várias áreas de trabalho, tendo assumido a torre do antigo quartel como o espaço
de reflexão e de pensamento, espaço de troca de ideias, reinventando aquilo que era para os
bombeiro um lugar de observação do mundo, num espaço onde se observa, pensa e reflete
sobre esse mundo. Lepage quer que La Caserne permita a pessoas de diferentes disciplinas
trabalharem em conjunto, referindo que é um pouco o espírito da Renascença que tenta
instalar nesse lugar. Ideia da Renascença que é retomada quando fala da
complementaridade do espaço e de que as pessoas não são unicamente artistas mas
também artesãos, uma ideia que lhe é muito querida, dando como exemplo Robert Caux que
é tão bom engenheiro de som como músico e de Jacques Colin que é tanto artista visual
como técnico da imagem.
55
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
O primeiro ato terá como destinatários as crianças dos 8 aos 12 anos, e centrará a sua
intervenção na pessoa e na abordagem das personagens e das diferentes narrativas que
poderemos construir a partir delas. A pessoa, o grupo e as estratégias de criação a partir das
dinâmicas e dos interesses que emergirem e se afirmarem no interior da própria
turma/grupo. As expressões artísticas assumem-se aqui como espaços de afirmação das
capacidades individuais e de grupo, introduzindo as artes na sala de aula como algo que está
perto de cada um, que é produto e produtor da emergência da multiplicidade de capacidades
reais e potenciais aí existentes, de onde a criação de narrativas deve emergir, e intervindo
nos espaços do quotidiano. Uma prática de criação centrada na pessoa do aluno e do grupo,
nas problemáticas que são as suas e nos espaços que habitam, mostrando como o trabalho
põe a nu o ser nas suas múltiplas dimensões e capacidades e permite descobrir as respostas
extraordinárias que cada um possui dentro de si e que ignorava completamente.
Os jovens dos 13 aos 15 anos, 7º, 8º e 9ºanos, serão os destinatários do 2º ato onde as
narrativas e as formas contemporâneas de criação serão os domínios centrais do trabalho,
numa perspetiva mais livre, onde estarão muito presentes as questões da
contemporaneidade e das tecnologias. Neste segundo ato, que se afirma como espaço de
experimentação da arte contemporânea e das novas tecnologias, entrar-se-á, depois de um
trabalho mais centrado na pessoa e no grupo, na linguagem artística contemporânea de
forma a saber até que ponto a sua abordagem nos permite compreender mais
profundamente as problemáticas que atravessam a sociedade atual. Este módulo permitirá
alargar a compreensão do fenómeno artístico e perceber a sua articulação com as correntes
do pensamento e das artes. A concretização final passará pela abordagem de um texto
contemporâneo, o que possibilita o contacto com a escrita dos nossos dias, assim como a
utilização tanto com as correntes atuais da arte como com as novas tecnologias. Todas estas
abordagens estarão intimamente ligadas à produção/criação final.
Como se tem podido constatar tem sido nossa preocupação estruturar um percurso de
abordagem às artes que esteja sempre próximo das pessoas, que vá com elas e a partir dos
seus interesses e que só, duma forma progressiva, se avance para um percurso de
descoberta da prática artística mais longe do nosso quotidiano.
56
O DESAFIO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL IMAGINAR O INIMAGINÁVEL
Finalmente, no 3º e último ato para jovens dos Jovens dos 15 aos 18 anos, trabalhar-se-ão as
perspetivas e as resultantes dos conflitos. Neste ato, porque o das perspetivas, vai-se mais
longe na abordagem da linguagem e da história das artes, assumindo-se aqui a criação como
espaço de conflitualidade e de diálogo entre a tradição e a contemporaneidade. Isto passa
pela compreensão da globalidade da história das artes e pela montagem de uma obra
clássica que se confrontará, no interior do processo de criação, com as tecnologias e as
perspetivas artísticas contemporâneas, incentivando na prática o diálogo permanente entre
o velho e o novo e entre a escola e o meio e a exploração de espaços comunitários exteriores
à escola.
A este nível as oficinas devem responder articuladamente como atividade opcional para
aqueles que seguirão rumos não necessariamente artísticos e ter a dimensão vocacional
(dotando-os dos instrumentos necessários) para aqueles que querem seguir o ensino do
teatro a nível superior)
57
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER
OUTRA COISA?
Texto 1
Catarina S. Martins
O que procuraremos colocar aqui, hoje, parte de uma questão gerada por uma insatisfação.
Quando olhamos para o estado da educação artística ao nível do 1º ciclo do ensino básico
sentimos uma profunda insatisfação e incomodidade pelas práticas que a configuram,
cristalizadas nas rotinas que se repetem e não se pensam, de fazeres naturalizados,
desarticulados não apenas do artístico, mas sobretudo de modos de olhar o mundo em que
vivemos e de formas que o interpelem, por práticas pedagógicas tecidas no interior de
linguagens que tendem a determinar aquilo em que se deverão tornar as crianças e os
jovens, e que configuram também as imagens do professor.
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Não sei exactamente o que este desejável desejava, nem exactamente o que tem sido
conseguido noutros países. Não por uma desatenção ao que se passa, mas, precisamente,
porque aquilo que se passa ao nível da educação artística no 1º ciclo do ensino básico, em
Portugal e noutros países europeus, me parecer estar mergulhado numa crise profunda.
Entre os argumentos sobre o valor intrínseco das artes e os argumentos em torno da sua
instrumentalização face a outras áreas do conhecimento, parece que não conseguimos
pensar a força do artístico na educação.
As linguagens que hoje habitam o mundo da educação não são neutras. Bastar-nos-á olhar
para o Novo Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória para percebermos que a
linguagem política tem vindo a apropriar-se de uma linguagem da crítica, começando pela
própria palavra ‘crítica’, para fins muito particulares que têm que ver com a construção de
determinados tipos de sujeito.
59
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
legitimadora das práticas governativas do presente, e os números são as ficções criadas que
ajudam a sustentar a capa da objectividade e da verdade dessas práticas.
Basta olhar para a análise dos resultados nacionais das provas de aferição de 2017, para as
categorias de alunos criadas (os que conseguiram responder de acordo com o esperado; os
que conseguiram responder de acordo com o esperado, mas ainda podem melhorar; os que
revelaram dificuldade na resposta; os que não conseguiram responder de acordo com o
esperado ou não responderam) para mais uma vez percebermos o carácter de aparente
objectividade e neutralidade que os números ajudam a criar.
Na minha intervenção de ontem terminei afirmando que os números não são apenas
números e, de facto, não são! São ficções que, ao mesmo tempo que constroem aquilo que
consideramos ser a verdade (uma espécie de retrato objectivo do mundo), constroem
também lugares conceptuais a serem habitados, entre o normal e o ‘em risco’, ou seja, o
patológico.
Criam uma espécie de planos de realidade a partir dos quais nos governamos a nós próprios.
Lembrem-se destas categorias a partir das quais as performances dos alunos e eles próprios
foram lidos, nas provas de aferição do 1º ciclo, que resultaram em percentagens; essas
categorias incorporam sempre o expectável e a força da correção: ‘de acordo com o
esperado, mas ainda podem melhorar’ …
Aferir quer dizer avaliar, comparar face a um padrão. A comparação implica a criação de
equivalências a partir das quais a diferença é marcada e a partir da qual qualquer
singularidade é capturada e governada. Os números gerados inscrevem teses culturais e
morais sobre o governo da vida e estabelecem realidades estatísticas organizadas ao longo
das classificações produzidas, que tendem sempre a ampliar-se, e a partir das quais os
sujeitos pensam sobre si mesmos e as suas acções e a governá-las de acordo com o
desejável, ou antes, expectável.
Dizia-vos, então, que este painel parte de uma inquietação e desconforto, mas que se gera,
também, no optimismo de saber ser urgente o entendimento que o questionamento
provoca.
pergunta-se:
e se a educação artística pudesse ser outra coisa?
De algum modo, a questão que se gerou entre nós procura olhar de forma crítica para este
estado das coisas, mas enfrenta a possibilidade de perguntar
60
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Entre nós, como vão perceber, há uma afinação dissonante. Partilhamos esta incomodidade,
mas o gesto de deslocamento no qual nos colocamos faz-nos pensar diferente, diferente
entre nós.
Não vão ouvir aqui uma voz única, mas três vozes plurais que se vêm colocar neste problema.
O Mário Azevedo falará sobretudo sobre a educação musical que se incentiva na escola,
processada numa quase incapacidade de escuta e na falta de ar para um desconhecido. Uma
educação musical fechada em armaduras codificadas que pouco ou nada têm que ver com a
música. A Cristina Mendanha falará sobre uma ausência, sobre a ausência da dança no 1º
ciclo do ensino básico e sobre a produção de corpos dóceis. O José Paiva fecha este trio,
propondo-nos um deslocamento através de 7 ruídos.
Texto 2
Mário Azevedo
Não existe nenhum fio de Ariadne que sirva de guia no interior das obras de arte.
Arnold Schoenberg
61
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
1. A coisa
Hoje, nada nos separa do sonoro que nos envolve e se impõe por todo o lado.
Aguçamos a orelha e damos logo conta que o espaço entre o nosso sensorium e o mundo nos
coloca perante uma extensão infinita de sons.
Estes cobrem-nos e, sem nos apercebermos disso, tomam conta de nós, decidem por nós e
marcam a nossa identidade.
Este sonoro incessante tem uma presença forte e o seu discurso em nós abre marcas tais
que, quando queremos falar daquilo que gostamos, rapidamente expomos o seu encanto e
sedução.
Acreditamos que este constructo sonoro, por ora, atreve-se a falar por nós. Atreve-se a tomar
o nosso lugar.
E, depois, esta litania sonora cola-nos às coisas a partir das quais já não nos é possível deixar
de as consumir, de as adular e de as trocar.
Advém daí uma necessidade que se exprime, sobretudo, pela atracção e fascínio que temos
pelas coisas.
Isto deixa-nos frágeis por passarmos a estabelecer uma relação direta com o sonoro, sem o
pensar.
Ora, assim sendo, felizes e alienadamente contentes na presença deste simulacro, ganhamos
força para sonhar e desenhar o mundo através de uma publicidade e de um espectáculo que
mais não faz do que assumir a experiência como algo estratégico, ou como algo
premeditado.
Tornamo-nos assim coleccionadores de envelopes sonoros que nos seduzem e nos declaram
a felicidade eterna.
Porque um sonoro desta natureza garante a celebração de um poder que se abate sobre nós
e redesenha – sem darmos por isso – a institucionalização, seja ela estética ou pedagógica,
da nossa vida e da nossa memória individual e coletiva.
O que é que isto tem a ver com a educação artística, em especial com a educação e
expressão musical?
62
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
….
Quando observamos a presença das atividades de expressão nas escolas e nos jardins-de-
infância sentimos que, não raras vezes, o que delas e nelas fica alienado é o sentir.
E dizemos isto por darmos conta que os currículos, ou orientações curriculares, não só ficam
com muito pouco espaço para o sensível, para o artístico, como as acções que deles
decorrem nos deixam sem espaço, sem ar para a experiência do ainda desconhecido.
Mas, se é verdade que a definição de homem – tarefa essa impossível - já passou por ser a do
homem que sente, por que motivo sentimos que este desígnio fica aquém da nossa vontade
em abandonarmos aquela distância respeitosa que estende o nosso ouvir, que implica o nosso
escutar, à teia finíssima do espetáculo do ruído que compõe o mundo de hoje?
Estas provas são um exemplo dramático da exposição e da ideia de que música é igual a
coisificação, que conhecer música significa igualar modelos, o que lhe dá uma materialidade
que a sujeita a um processo de aniquilamento, a partir do qual se torna fácil destituí-la de um
qualquer valor simbólico.
Ficamos a ouvir para trás ainda mais e deitamos fora o ensejo de refletirmos sobre o que
ouvimos e sobre o que fazemos com o que ouvimos.
Diríamos que a música assim representada mais não serve do que para instrumentalizar e
governar os nossos sentidos e pensamentos.
63
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
2. A outra coisa.
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Nils Bohr
A música, pelo interior da educação artística, move-se a partir do enigmático que o sonoro
contém em si mesmo. A música aflora esse enigmático e predispõe-se a expô-lo.
É ela própria um espaço aberto, uma espécie de rizoma deleuziano onde o artístico sulca
caminhos que abrem muitas outras possibilidades pedagógicas, artísticas, técnicas, científicas
e investigativas.
Esta particularidade deveria já ter dado a possibilidade de a vermos e ouvirmos tal qual a
memória vivente de todos nós.
Assim sendo, deixa a música de poder ser uma forma de conhecimento e de questionamento
e passa a ser apenas um mero exercício de entretenimento, deixando-nos a todos mais
incapazes de criticar e constituindo-nos como reféns de um certo lúdico matreiro aniquilador
de autonomias.
Aproxima-nos de uma infantilização dos sentidos a que Adorno se refere quando nos fala da
regressão da escuta e do carácter fetichista que a indústria cultural cola imerecidamente à
música.
64
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
A música – enquanto outra coisa – seja ela tradicional, artesanal, independente, ou até
industrial – deveria, na escola, poder viver fora da sua própria mercantilização.
Esta outra coisa deveria afastar-se da ideia de catálogo, ou de repertório que nos confina a
ofertas e a mercadorias e, de uma outra maneira, deveria ser capaz de afirmar que um
qualquer par de sapatos não é a mesma coisa que Schoenberg, ou Bjork.
Justamente quando a música se deveria, ela própria, constituir-se mais como valor de uso do
que de valor de troca, fica – via provas – sem capacidade de se evidenciar enquanto produtora
de outros significados, de outras práticas, de outras singularidades.
E, o pior é que, mesmo os organismos que poderiam questionar o que atrás dissemos, se
acomodam à coisa.
Na degustação dos paladares sonoros, entre os séculos XIX, XX e XXI, assistimos todos ao
crescimento daquilo a que poderíamos chamar de formação de juízo, de formação de gosto
onde a singularidade, a individualidade marca o tempo e se torna um modo dominante.
Todos nós aproveitamos – ou talvez não – para nos tornarmos mais hábeis em suspendermos
a nossa animalidade, prometendo ao mundo, com a escola a ajudar à contenda, um mundo
mais aberto e disponível para aquilo a que Henri Bergson se dispôs a apelidar-nos quando
nos evoca designando-nos por pensadores enquanto homens de acção e de obreiros enquanto
homens de pensamento.
Ora, se a arte, e a música em particular, já era pensamento, torna-se agora ainda mais
enigmática e com mais trunfos para resistir ou até para surpreender, por exemplo, a
racionalidade das palavras. Há autores que sustentam que a música acontece exactamente
quando as palavras já não podem acrescentar mais nada ao mundo.
Ora, isto é justamente o contrário do que as provas recentes decidiram perpetrar. Estas
optaram por enclausurar o sonoro disponível no interior de uma racionalidade que não dá
margem de manobra a essa racionalidade aberta que todos desejamos disputar no meio das
escolas.
O oposto do que elas realizaram está exactamente na pulsão da vontade artística, está no
espírito da arte em tornar-se mais sensível ao indizível, até mesmo ao incognoscível.
Digamos de outra maneira: estaremos nós dispostos a aceitar uma música que não se deixe
instrumentalizar, uma música que tenda “apenas” a exceder todo o dizer?
O que ouvimos das provas não nos permitiu precipitarmo-nos para um outro tempo, apenas
nos aborreceram. E, como todos sabem o aborrecimento é o diabo.
65
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Ora, então não é que a música, mormente em ambientes educativos, não pode ser outra
coisa que a possibilidade de dar tempo e espaço ao aberto que nos habita e nos permite
deslocarmo-nos para novas regiões ontológicas onde o pensamento e a audição se podem
tornar, à maneira de Walter Benjamin, um “infatigável movimento de respiração”?
E assim, perdemos a hipótese de ver a música a legitimar o plural e o aberto que reclama
querer habitar em nós.
Dizemos que sim apontando, agonisticamente, dois aspectos, entre outros tantos possíveis:
O artístico, esse modo singular de pensar e de agir com e sobre as artes, só vive em estado
de impermanência e na condição de poder manifestar o seu lado mutante e poroso.
Esta sua condição deixa-o asfixiado quando é impossibilitado de ser disruptivo e danificado
no seu mais elementar direito democrático de se poder manifestar.
Martin Heidegger
66
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Texto 3
Cristina Mendanha
É dócil “(...) um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado” – Foucault (1988, p.126)
Antes de iniciar este meu pequeno contributo, gostaria de deixar claro que não consigo
imaginar a educação de uma criança sem ensino artístico e que, enquanto artista que
trabalha com crianças, não consigo retalhar as áreas de ensino da forma como são
enunciadas nas orientações curriculares do 1º ciclo do ensino básico. Ou seja: não consigo
separar a educação artística em áreas de especialização, retalhando mais ou menos a música,
as artes visuais, a expressão dramática, a dança ...etc, etc.
Ao afirmar que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito
apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (p. 126), Foucault (2004)
explicita, de forma clara, que existem micro poderes que se movimentam no corpo social –
onde se inclui a escola-, propiciando mudanças de posições nos indivíduos. O corpo social é,
assim, algo fabricado que se consolida ao longo do tempo, influenciado por uma opressão
calculada, desenvolvido em cada função corpórea e com intuitos de automatização.
O principal alvo, neste processo, é o Homem - objeto do poder - que tem como função o
trabalho de incorporar nos corpos – neste caso particular que analiso - as crianças -
características de docilidade. Verificamos numa leitura dos programas e orientações
curriculares dedicados às artes esta mesma função. A total ausência de orientação artística
quando se elabora, dentro de uma área curricular específica chamada EXPRESSÃO E
EDUCAÇÃO:FÍSICO-MOTORA, MUSICAL, DRAMÁTICA E PLÁSTICA (p.30), um sub-programa que
se foca no corpo e na sua fisicalidade ( EXPRESSÃO E EDUCAÇÃO FÍSICO-MOTORA), sem
nenhuma preocupação em ligar o corpo das crianças visadas (1º ciclo do ensino básico) ao
propósito enunciado na matriz curricular, a saber: expressões artísticas, mas sim como uma
poderosa ferramenta de controle, orientação de treino, que age de forma disciplinadora e
actua como policiamento do corpo.
67
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Como afirmou Foucault (2004) “um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado,
que pode ser transformado e aperfeiçoado” (p. 126). Pergunto-me, enquanto artista que
trabalha com crianças, onde está a educação artística nestas palavras e frases: “driblar”,
“toques de sustentação”, “cabecear”, “subir para um plano superior”, “deslocar-se ao longo da
barra”, “curvar com cruzamento de pernas”, “travar de lado” (pp. 40-56).
“Certas áreas são especificadas com maior abertura do que outras, quando os
professores podem optar por uma variedade de alternativas para obter efeitos
idênticos (o caso da área de Jogos, particularmente nos 1.o e 2.o anos) ou
quando factores subjectivos, como a expressividade, são essenciais (É o caso das
Actividades Rítmicas Expressivas).”(pp. 36-37)
O corpo das crianças também se torna, aqui, em alvo do poder. Treinado e submetido para
se tornar ao mesmo tempo tão útil quanto sujeitado. O poder, que se infere do documento
orientador, separa a criança de si mesmo, desliga o corpo de si mesmo e cria uma outra
camada de natureza social em cima dele. As frases “exploração individual do movimento” ou
“combinar habilidades motoras” não reprimem, mas produzem, criam corpos, exercitam
habilidades, capacitam e conduzem a um corpo dócil.
Lendo atentamente as instruções dadas nas orientações curriculares de cada BLOCO (são 7
no total) ainda reforço as minhas dúvidas:
“acções motoras básicas com aparelhos portáteis?”; “Realizar acções motoras básicas de
deslocamento, no solo e em aparelhos?” ; “coordenando a sua acção para aproveitar as
qualidades motoras possibilitadas pela situação?” ; “Realizar habilidades gímnicas ?” ; “em
esquemas ou sequências no solo e em aparelhos?” ; “Participar em jogos ajustando a
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E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
A escrita deste texto inspirou-me numa série de sessões com crianças onde a disciplina e
policiamento do corpo descritas nas orientações curriculares me possibilitou a
experimentação porque, sou artista e trabalho com crianças e porque me parece que, neste
contexto, a única possibilidade é encarar este documento como uma situação.
“ A vida da interpretação, pelo contrário, é o crer que não há mais do que interpretações.
Parece-me ser necessário compreender algo que muitos contemporâneos nossos esquecem,
isto é, que a hermenêutica e a semiologia são dois inimigos. Uma hermenêutica que se a
uma semiologia tende a crer na existência absoluta dos símbolos: abandona a violência, o
inacabado, a infinitude das interpretações, para fazer reinar o terror do índice e suspeitar da
linguagem. Reconhecemos o marxismo posterior a Marx. Pelo contrário, uma hermenêutica
que se desenvolve por si, entra no domínio das linguagens que devem implicar-se
mutuamente, nessa região intermediária entre a loucura e a pura linguagem, É aqui que
reconhecemos Nietzsche” (p.27).
69
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Referências
Foucault, M. (2004). Os corpos dóceis. Vigiar e punir: nascimento da prisão (29ª ed.).
Petrópolis, RJ: Vozes.
Vídeo apresentado:
https://youtu.be/9uVjKu-hvnc
70
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Texto 4
José Paiva
Este texto resulta da tradução para o modo de escrita de uma comunicação oral realizada
com apoio num conjunto de imagens então projectadas que não se integram nesta
publicação.
assumir o medo.
repleta
cubos límpidos
21/1/77
Dias. (1976/79)
71
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Larrosa (2014)
Não se pretende, de modo algum, consagrar o que agora se escreve, nem legitimar os
questionamentos que fui construindo numa vida de militância empenhada na Educação
Artística, que apenas representam a minha fragilidade e incompletude, e a sua entrega a um
momento de comunicação.
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E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Apenas consigo pensar o que faço, sobre o que me rodeia, a partir dum esforço de me
entender perante uma inscrição na contingência de um devir/comum. É nessa procura de
enquadramento que me permito estabelecer as articulações desejadas com a acção crítica
possível de desencadear perante a Terra exaurida em que vivemos.
Os mitos positivos que desde o Iluminismo nos construíram, enfrentam hoje a sua dissolução
na desesperança que tolda as nossas vidas e as submerge em vacuidade. Pergunte-se, então,
onde param as palavras que guiaram meus/nossos sonhos, de um amanhã sorridente, de
uma paz necessária e possível, de uma felicidade alcançável, ou da 'liberdade, igualdade,
fraternidade'. Tanta alteração, tanta mudança varreram o século XIX e XX, tanto optimismo
eclodiu da 'revolução industrial', da 'revolução francesa, da 'revolução americana', da
'independência' do mundo colonizado; tanta esperança arrastamos para o início deste século
XXI, tanta ilusão que se desfaz perante a inesquecível crueldade do que existiu e nos rodeia,
das 'Guerras Mundiais', do Holocausto, da fome ampliada, dos refugiados e desalojados, dos
sem-nome-nem-terra, das crises financeiras. Tanta ganância concentrada nos que
determinam as políticas, as notícias, estabelecem nossos desejos, moldam as vidas,
determinam este mundo onde estou/estamos, tanto fracasso, identificável mas escondido.
Ousemos então pensar sobre o que fomos dizendo sobre o que nos espera e o que se nos
apresenta, sobre o que se configura como natural, sendo um simulacro, que nos isola de
questionar o profundo sentido que as palavras com que representamos o modo de nos
entendermos no mundo, facilitando no uso inócuo em como essas palavras foram
naturalizadas. Ouso, através mesmo da minha incompletude e fragilidade, a incomodidade
de enfrentar os fracassos que nas encruzilhadas do tempo presente se apresentam, os
acontecimentos que lhe conferiram corpo e que constroem nosso isolamento, nosso
afastamento, nossas irritações, nossas resistências e nossa desesperança.
73
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
A partir dos terrenos que frequento, das artes plásticas e de minha inscrição académica na
pintura, com facilidade reconheço o aprisionamento da arte pelo poder e da sua inscrição na
história ao lado dos favorecidos, na representação dos discursos hegemónicos. Em cada
época se identifica com facilidade a utilização da arte na propagação e manutenção dos
sistemas de poder, seja ele mal identificado como nos primórdios da humanidade, seja, como
durante o percurso da história, dos reis ou da igreja, seja dos senhores feudais e da nobreza,
da aristocracia ou da burguesia.
O olhar histórico que estabeleço não anula a presença artística insubmissa e irreverente,
afastada da história oficial pelos poderes vigentes que ou anulavam essa incomodidade ou a
votavam ao desprezado esquecimento. Nem anula o reconhecimento da participação do
artístico nas transformações ocorridas na sociedade e na presença crítica ao vigente.
O herói já não faz sacrifícios, acumula êxitos, a sua acção não lhe
amadurece o sentido da liberdade, mas a carreira é o lugar de
revelação do seu conformismo.
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E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Reconhecendo a ocupação pela fotografia e depois pelo cinema desse espaço privilegiado de
representação imagética do poder e da sua ostentação, sabe-se da intensa experimentação e
procura de outros espaços pelas artes plásticas. A procura então de um novo campo de
inscrição, procurada pelos artistas nas suas produções artísticas, desvia-a do primado da
representação, abrindo novos terrenos, gerando um novo desempenho nas sociedades que o
capitalismo nascente vai estabelecer. A concentração nos elementos constitutivos da
imagem, na sua gramática, remetem para a singularidade do autor e para a sua inovadora
mestria, apresentada na inovação mundana do seu pensar e na expressão do seu ser. A
assinatura do artista e o entendimento da obra como objecto passam a constituir o seu valor,
já não como representação imagética, mas como valor, num mercado que se institui e que,
em si, congrega o lugar de ostentação social que a propriedade e a exposição permitem e
consagram.
Os poderes públicos aliados aos interesses privados passam a promover e a controlar a arte,
o seu mercado confunde-se com o mundo da especulação financeira e da lavagem de
dinheiros. Os eventos artísticos e as instituições (museus, fundações, mecenas,
coleccionadores, …) através do monopólio de práticas espectaculares de legitimação e
exclusão, convertem a arte em acção política correspondente a actos de remissão dos
malefícios provocados pelo exercício frio de um sistema social emanado dos interesses
financeiros globalizados.
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E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
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E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Decorre de minhas palavras um olhar perplexo para este mundo, de profundas mudanças
entre as narrativas românticas do final do século XIX e a sua transformação na esquizofrenia
do tempo que vivemos.
A escola onde estudei, em tempo de ditadura nacional, não aceitava ser questionada e
assumia ser um dispositivo de formação de disciplinados 'bons-rapazes' e futuros 'homens-
úteis', para alimentarem as necessidades produtivas, comerciais e de serviços e aceitarem o
seu afastamento da política. Aprender tão só o que era preciso ser ensinado. Apenas no
Ensino Secundário (Escola de Artes Decorativas de Soares dos Reis - Porto) experimentei a
partilha de pensamentos críticos e a integração nos movimentos políticos de oposição. A
escola era a mesma, mas a clareza de alguns parcos professores e a avidez de conhecimento
e de acesso à cultura promoveram a constituição de pequenos grupos de cumplicidade que
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E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
tornavam visível o quanto a escola servia os interesses ideológicos do regime e, por outro
lado, como o estudo da arte e a 'aprendizagem' da sua prática eram mergulhados no louvor
académico e conservador do 'naturalismo', e estagnados no 'saber fazer'. A educação
artística como um espaço de selecção de uma elite, medida por padrões da genialidade e de
um 'saber fazer' observado pelo mimetismo naturalista, e de uma massa formatada para o
trabalho ordeiro e profissional.
A entrada na Escola Superior de Belas Artes do Porto, no meu caso em tempo de 'Maio' e das
notícias clandestinas dos 'movimentos estudantis', prolongou o movimento iniciado de
procura de conhecimentos em arte e em cultura, gerando uma presença partilhada nas
poucas discussões consentidas sobre o 'ensino artístico'. Também essa instituição presa ao
academismo, se afastavam as controvérsias trazidas do Modernismo que no início do século
XX eclodiram em Portugal. O estado conservador, naturalmente reprimia as possibilidades de
inovação e de produção de pensamento crítico, consentindo-se a genialidade do 'fazer
artístico', promovido longe da abordagem das responsabilidades educativas que a maioria
dos graduados tornado professores de educação artística iria enfrentar.
A educação artística em Portugal, até ao eclodir da renovação popular de 'Abril', não registou
um movimento emancipatório que lhe permitisse não ser um 'lugar' de constituição de
'artistas', sujeitos ordeiros e trabalhadores, e preparados para o exercício apolítico de funções
técnicas e artísticas. O movimento popular e a alegria democrática das ruas contagiou as
escolas e possibilitou a acção visível de movimentos críticos de 'modernização' da Escola,
possibilitando experimentações arrojadas, no entender da sua missão social, de alterações
curriculares, da introdução da processos democráticos na gestão e na vida escolar. O
projecto SAAL vivenciado na ESBAP corresponde a um desses momentos especiais de
vitalidade académica, de diluição da escola no movimento empreendedor das comunidades
em defesa da habitação e da dignidade. A vitalidade da discussão intensa de então,
possibilitou alterações curriculares significativas, no afastar as práticas mais académicas e
possibilitar a integração curricular das discussões que o Modernismo tinha desencadeado.
78
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Nas escolas básicas e secundárias, nos museus e instituições culturais, a educação artística,
confundida pelas permanentes alterações curriculares e da ambivalência dos paradigmas
contemporâneos, não deixou de ser um terreno de formação de elites e de estratificação
social, centrado na procura da genialidade, na expressividade surpreendente, no 'saber
fazer', realizados em 'tempo de felicidade'. Espectaculariza-se a apresentação dos produtos,
montra de vaidades e habilidades, espaço de sedução de um gosto que se formata, espaço
de criação de desejos de aspiração social.
A questão que se coloca, que se pretende enfrentar, reconhecendo que a escola é sempre um
dispositivo de poder, pretende entender a possibilidade de no terreno da educação artística
se promover um espaço onde os sujeitos reforcem a sua capacidade de intervir nos contextos
que habitam, ampliando sua confiança nos méritos da sua acção, experienciando processos,
entendendo o sentido de suas acções, entendendo-se como interferentes e não como
assistentes. A questão que se coloca é se os professores podem ser cúmplices das
aprendizagens e das experiências dos alunos, sem as dirigirem, sem usarem sua presença
ordenadora e formadora de gostos, mas aprendendo com elas, não alterando e
condicionando o processo em detrimento dos resultados.
Poderá a educação artística ser esse espaço aberto de experimentação? Poderá a Educação
Artística ser outra coisa?
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E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Não consigo entender a minha prática artística desviada da consciência do que me cerca, por
entender que a educação artística não se realiza numa ilha de felicidade e de conforto, mas
onde toda a educação deve procurar ocupar um território de constituição de sujeitos
intervenientes no seu devir. Pertenço ao tempo onde as palavras que uso, como paz e
prosperidade perderam o sentido que o romantismo e o iluminismo lhe conferiram. Nasci no
pós-guerra, no conhecimento dos horrores do Holocausto e de Hiroshima, vivo os dramas do
povo da Palestina desapossado de suas terras, perseguido pela violência das armas israelitas,
emparedado sem condições para o exercício da dignidade de suas vidas. Vivo os dramas dos
refugiados e dos desalojados excluídos da Terra pelo exercício de interesses financeiros e
políticos, pelo propagar da corrupção dos 'senhores-da-guerra' comprados pelos 'senhores-
do-mundo'. Angustio-me com a descriminação sobre a mulher e a diferença, a ostracização
racista e o desprezo pelos pobres. É nesta Europa do século XXI que vivo, que se organiza
num sistema onde o mercado financeiro dominante favorece o enriquecimento de uns, o
benefício dos 'espertos' e a pobreza e exclusão de muitos.
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E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Perniola (2015, p. 7)
Perante as controvérsias do tempo em que vivemos, neste início do século XXI, pode a arte
distanciar-se do poder hegemónico e rejeitar a sua utilização pelos mecanismos da ilusão,
que vendem a felicidade na alienação do quotidiano, criando desejos e necessidades para
alimentar a sociedade de consumo, onde tudo se transformou em mercadoria?
No espaço da educação artística não deve a arte deixar de ser apreciada e sacralizada,
entendida no mito em que a palavra 'arte' se foi 'naturalizando', perdendo a dimensão da sua
complexidade e da sua irreverência, afastando-se do campo do 'pensar', do 'fazer' e do 'agir'.
Pode nas escolas haver espaço para uma atenção sobre o artístico entendido longe do
mercado e do espectáculo, mas como um espaço de experiência, de interferência e de
entendimento do que se passa no mundo, de discussão da actualidade.
81
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
A escola e a educação artística, como um espaço de insubmissão, que permita aos sujeitos
entenderem as pressões que lhe moldam o carácter, o corpo, o sonho.
82
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Não entendo bem o escrevi, reflecte as minhas contradições a minha fragilidade. Ainda sei
menos o que deve fazer.
Tantos anos no ensino, na educação artística (desde 1971), tantas escolas, tantos alunos,
tantas localidades, variados graus de ensino ...
De facto, temos espaço para respeitar os alunos, como eles são, deixá-los, soltá-los a eles
próprios, sendo claros no poder que exercemos. Se soubermos ouvir?
Pessoalmente procurei entender-me melhor como professor, e como artista nas escolas que
frequento em Moçambique, em Cabo Verde e no Brasil.
“Sabe, eu achava que era preta, que não ia ter amizade com ninguém...
Eu tinha uma coisa comigo, eu tinha vergonha da cor, porque era
preta ... muitas vezes, aconteceu de eu sentir assim na pele que as
pessoas desfaziam da cor ... eu tinha medo, eu não era de fazer amizade
de jeito nenhum, eu era igual a um bicho do mato. Então, eu conheci
este pessoal, sabe eu senti que eles faziam muita conta de mim, eles
davam muita atenção, então foi aonde eu passei a me sentir como
gente.” (Cida, Mulher, ‘bóia-fria’, negra)
83
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Pode ser?
Obrigado
Referências
Adorno, T. W. (2003). Sobre a Indústria Cultural — Organização e Prefácio de António Sousa
Ribeiro. Coimbra: Angelus Novus.
Augé, M. (2003). Pour quoi vivons-nous?, Para que vivemos?. Lisboa: 90 Graus Editora.
Butler, J., & Spivak, G. (2006). Who sings the nation-state?. Quem canta o Estado-Nação.
Lisboa: Edições Unipop.
84
E SE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PUDESSE SER OUTRA COISA?
Foster, H. (1999). Contra o Pluralismo. Em Sobre o mercado e crítica de arte, Lisboa, Abril em
Maio - textos roubados - extraído de Recordings - Arts, Spectacle, Cultual Politics (The
New Presse, Nova Iorque, 1999)
Silva, M. A. de M. (1999). Errantes do fim do século – São Paulo: Fundação Editora da UNESP.
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA
NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO,
CONSTRANGIMENTOS E DESAFIOS AO
LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
TÍTULO DA COMUNICAÇÃO
Resumo
Introdução
Ao longo de vários anos, vivendo por dentro e enquanto dirigente associativo e em
representação dos docentes da disciplina de Educação Visual e Tecnológica (EVT),
precisamente na APEVT – Associação Nacional de Professores de Educação Visual e
Tecnológica, passamos por momentos intensos. Entre o testemunho pessoal e o depoimento
profissional e que se exige para memória futura, diga-se que numa primeira parte de um
percurso mais pessoal é vivido na mudança curricular e na passagem do ensino secundário e
na entrada no ensino superior e ser formado, já no paradigma EVT, entre 1992 e 1996.
Posteriormente, concluído o curso que foi construído em mudança e adequação ao que
antes existia (formação, já nas ESE’s em Educação Visual e Trabalhos Manuais) foi entrar para
o ensino enquanto professor da disciplina de EVT, em 1996 e verificar in loco que num grupo
disciplinar, numa escola de grandes dimensões, com mais de 20 professores desta área e
sentir atritos e bastantes divergências entre colegas e a luta entre as suas formações.
Nessa altura, quando iniciámos a carreira docente, EVT tinha par pedagógica e havia
recomendações para que na docência da disciplina estivesse cada turma atrbuída a um
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
docente com formação na área das Artes e outro na das Tecnologias, tanto para
complementar saberes e formações como maior adequação. No entanto, nem sempre foi
assim, ou foi isso possível E como se sabe, na altura ainda eram muito poucos os que iam
saindo com formação na area de EVT. Sempre houve um certo “arreigar à sua área”, à sua
formação base por cada docente e as incompatibilidades, a vários níveis, eram evidentes,
principalmente em grandes escolas e sobretudo por quem entrava de novo no ensino e tinha
sido formado em EVT. Fruto disso foi durante muitos e muitos anos ainda ter existido a
disciplina de EVT mas com grupos de recrutamento diferentes, sendo os que dos antigos 5º
grupo eram os de Educação Visual e os do 7º grupo e 8º grupo os de Trabalhos Manuais,
masculinos e femininos, respetivamente.
Ao longo do tempo as diferenças foram-se esbatendo com a chegada de largas dezenas (ou
mesmo centenas) de professores de EVT, formados em EVT e nas ESE’sem cada ano, às
escolas. Havia cada vez mais coordenação e a determinada altura a possibilidade, efetiva e
real, de até haver a possibilidade de colocar um docente formado em EVT com outro de EV ou
TM. E em 2001 surge a primeira revisão curricular. Precisamente 10 anos após a reforma de
Roberto Carneiro, de 1991. Com ela, chegaram as áreas curriculares não disciplinares
(Formação Cívica, Estudo Acompanhado e Área de Projeto) e o primeiro corte ao número de
horas da disciplina de EVT. Disso daremos conta mais adiante neste artigo e mais
detalhadamente. Foi nesta altura que também se começaram a agrupar várias disciplinas em
área científicas, cabendo a EVT a ficar na área das expressões, sendo que Educação Física
ficou quase sempre “à parte” e isolada com as suas horas, enquanto que EVT e Educação
Musical tinham uma determinada carga horária a distribuir e que nessa altura passou a ser
de 4 tempos para EVT e 2 tempos para Educação Musical mas, destaque-se que com o passar
dos anos, em algumas escolas e posteriormente agrupamentos de escolas, passou muitas
vezes a haver uma distribuição de 3 tempos para cada disciplina, perdendo novamente a
disciplina de EVT tempo. Sim, fazemos aqui um devido apontamento sobre O TEMPO. Parte
da nossa apresentação dará enfoque na questão do tempo. O tempo que foi sendo
gradualmente retirado, ao longo dos anos, às áreas artísticas e consequentemente,
prejudicando as abordagens nesta área do currículo.
88
A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
com novo governo e equipa ministerial liderada por Nuno Crato quando acaba com a
disciplina de EVT e em 2012 a substitui por duas novas, Educação Visual (EV) e Ediucação
Tecnológica (ET), cada uma só com um professor e cada uma só com 2 tempos letivos
semanais, tendo reduzido ao máximo as áreas artísticas no novo currículo que implementou
em que a sua premissa era apenas e só às ditas “diciplina nucleares” como assim as definiam
e que eram sobretudo a Matemática e o Português. Quanto a professores, deu-se a
obrigatória “machadada final” ficando centenas de docentes (entre 6 a 7 centenas, pelo
menos) que tinham normalmente horário completo durante todo o ano e que deixaram, pura
e simplesmente de ter horário pois o excedentes de professores dos quadros era evidente
quando passavam a ser necessários, com essas medidas, apenas metade ou muito próximo
disso.
Os tempos que se viveram de 2012 até ao presente momento são de um quase vazio nestas
áreas, com evidentes lacunas de aprendizagem nestas áreas e que são denotadas pelos
alunos a cada ano que passa. Centrou-se o ensino em aulas quase expositivas ou não se
percebendo bem, por parte dos docentes, o que fazer. Aliás, facto evidente quando ainda
hoje o programa de EVT está em vigor e passamos de Competências Essenciais para metas
de aprendizagem, depois metas curriculares, e agora afigura-se o currículo para o século XXI.
Talvez demasiadas mudanças para pouco mais anos a acrescentar a duas décadas em que se
percebe que não se trabalha objetivamente para construir fortes alicerces mas apenas para
objetivos definidos em padrões europeus e definidos por provas limitativas.
Antes de passarmos ao capítulo seguin, há passos que podem (e devem) ser dados, na
eminência de, a não serem conseguidos, perdermos irremediavelmente o comboio das artes
e tecnologias e “castrar” a capacidade criativa, inventiva e artística dos nossos alunos, do
futuro da nossa sociedade. Queremos ainda agradecer o convite que me foi endereçado pela
organização do Congresso de Investigação em Educação Artística CIEA 2017, para fazer parte
da Comissão Científica do mesmo e do convite para apresentar esta comunicação, neste
painel dedicado ao ensino formal, nomeadamente à EVT, EV e ET no 2º ciclo, e enquanto
orador convidado. Deixamos também um agradecimento à Escola Superior de Educação de
Viseu e ao Instituto Politécnico de Viseu enquanto entidades organizadoras e pelo magnífico
trabalho que têm desenvolvido e profissionalismo e rigor no acompanhamento que nos têm
prestado em acompanhamento e na organização do evento.
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
Neste contexto, a nível conceptual, quando a EVT foi criada constituiu-se como uma disciplina
inteiramente nova, decorrente de um modelo conceptual de integração, não correspondendo
à mera acumulação/adição dos componentes considerados (EV e TM), marcando uma
conceção que recusava o mero somatório de disciplinas, resultando antes de uma construção
curricular integradora de duas componentes disciplinares específicas: de educação visual e
de educação tecnológica. A EVT é, fundamentalmente, uma área educativa de natureza
interdisciplinar (Porfírio, 2005).
Contudo, é necessário clarificar que na disciplina de EVT, para além da sua natureza
interdisciplinar e transdisciplinar, se evidenciam as suas fontes curriculares que radicam nos
domínios de conhecimento, nos processos operatórios específicos, bem como nas dimensões
educativas inerentes a estas duas componentes educativas. Este mesmo conceito é afirmado
no programa da disciplina, quando refere que “a EVT é, portanto, uma disciplina inteiramente
nova, que parte da realidade prática para o conhecimento teórico, numa perspetiva de
integração do trabalho manual e do trabalho intelectual e que não pretende fazer formação
artística nem formação técnica, porque se situa deliberadamente na interação desses dois
campos da atividade humana” (DGEBS, 1991a, p.196). Esta mesma perspetiva é corroborada
no programa quando se assume que “a abordagem integrada dos aspetos visuais e
tecnológicos dentro de uma área pluridisciplinar de educação artística e tecnológica é, de
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
acordo com a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), a solução apresentada pela Proposta
de Reorganização dos Planos Curriculares para a formação estética e tecnológica ao nível do
2º Ciclo do ensino básico” (DGEBS, 1991a, p.195).
Outra das particularidades desta área curricular reside na natureza da própria disciplina em
que o seu esquema conceptual da EVT não é, em nenhum momento, expresso claramente,
salientando-se antes que deve ser construído a partir do texto programático (Rosmaninho,
2001) que, por exemplo, na sua introdução refere mesmo que compete à EVT promover a
exploração integrada de problemas estéticos, científicos e técnicos com vista ao
desenvolvimento de competências para a fruição, a criação e a intervenção nos aspetos
visuais e tecnológicos do envolvimento, promovendo-se assim a articulação dos aspetos
históricos, físicos, sociais, económicos, de cada situação estudada, com a compreensão, a
criação e a intervenção nos domínios da tecnologia e da estética através de um processo
integrado em que a reflexão sobre as operações e a compreensão dos fenómenos são
motores da criatividade (DGEBS, 1991b).
91
A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
circunstâncias e recursos existentes na escola, ou fora dela, e que possam ser utilizados
(DGEBS, 1991a).
Neste contexto, podemos considerar que é a própria natureza da disciplina que acaba por
definir a sua metodologia, centrada no processo de resolução de problemas, em que a
autoformação futura do aluno e a sua independência na resolução de novos problemas são
preponderantes (DGEBS, 1991a). A perspetiva que se tem hoje da resolução de problemas
possibilita uma dimensão muito mais abrangente do que a simples meta/finalidade (Fonseca,
2001). Nesta linha, passa a ser entendida como um processo global de ensino/aprendizagem,
como afirma Butler, citado por Fonseca (2001, p.58), "I am now convinced that the two
processes, problem solving and learning are essentially one and the same", fazendo um
paralelismo entre o processo seguido nos modelos de ensino/aprendizagem com o processo
dos modelos de resolução de problemas.
Apesar das fontes curriculares da disciplina de EVT darem enfoque ao italiano Bruno Munari
e aos trabalhos que desenvolveu na área das artes e do ensino do design na década de 70 do
século passado, o método de resolução de problemas aparece em pedagogia pela mão de
Dewey, cuja conceção filosófica é definida por Rocha (1999) como o valor do conhecimento
medido pelos efeitos que daí podem decorrer, desenvolvendo-se esta conceção pondo em
relevo o valor instrumental do conhecimento para a solução dos problemas humanos.
A perspetiva do professor é de, neste percurso, acompanhar esta evolução para ajudar os
alunos na ascensão a sucessivos níveis de desenvolvimento, sem forçar nunca uma análise
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
antes que esse nível de desenvolvimento o permita. As etapas do processo são encaradas,
porém, a qualquer nível de desenvolvimento, como referências de um percurso útil e nunca
como passos obrigatórios. O problema a resolver deve ter um significado para os alunos,
situando-se na sua própria experiência, embora não fique encerrado nela. O que está em
causa é um saber construído de dentro, a partir daquilo que cada um é (Fonseca, 2001).
Nesta perspetiva, devem ser os próprios alunos a identificar o problema, o que não significa
que o professor não tome parte ativa nessa identificação, muito pelo contrário. Deve
proporcionar situações (de observação, de análise, de discussão), dar sugestões, estudar com
os alunos as possibilidades de exploração, mas sem se esquecer que um problema
interessante para ele pode não o ser para os alunos. Ora, neste campo específico, o professor
pode muito bem guiar e orientar os seus alunos na escolha de ferramentas digitais que
sejam as mais adequadas para que, em alguma fase do processo os possam ajudar a
concretizar um projeto.
Segundo Silva, San Payo e Gomes (1992), resolver problemas, sentidos como seus, é para os
alunos um desafio, logo uma motivação para se envolverem numa atividade. Na discussão e
reflexão sobre necessidades do Homem, faz-se a ligação da escola à realidade e nas
investigações, para especificar o problema e desenvolver a solução, formam novos
conhecimentos e alargam os que já possuem, (1) desenvolvendo formas de expressão,
representando as suas ideias; (2) exercitando a sua imaginação, na procura e proposta de
alternativas; (3) desenvolvendo o espírito crítico, fundamentando-se na escolha entre várias
alternativas de solução; (4) criando hábitos de organização do trabalho; (5) adquirindo
destrezas e conhecimentos técnicos, na execução de projetos ou objetos.
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
A preocupação do professor deverá centrar-se, não no percorrer obrigatório das fases deste
processo, mas antes na criação de condições que permitam que o aluno construa e se
consciencialize progressivamente do seu método de trabalho pessoal. Isto não obsta a que o
professor, numa perspetiva metodológica, forneça aos alunos as etapas a que a resolução de
problemas obedece. Como nos refere Gomes (2005, pp.55-56), “como método de ensino a
resolução de problemas pretende atingir uma finalidade. Esta finalidade é o desenvolvimento
do pensamento reflexivo. Não tem por objetivo só a solução do problema, mas sim levar o
aluno a passar por um caminho do pensamento científico utilizando o raciocínio indutivo e
dedutivo que leva à descoberta”.
“Com base nesta ideia surge o método de projeto que consiste numa proposição
metodológica que visa a solução de um problema, que lida com factos, situações e coisas e
não somente com ideias, que tem que se basear em algo material, que realiza algo concreto”
(Gomes, 2005, p.56). Todo o projeto deve nascer de um problema que desperte o interesse
do aluno, a ponto de desejar resolvê-lo. Neste sentido, o método torna-se um processo de
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
Finalizando, devemos considerar que a EVT nos conduz à prática de explorações plásticas que
utilizem, intencionalmente, os elementos visuais, em articulação com os instrumentos
específicos de compreensão e reflexão do mundo técnico e da ação sobre ele, enquanto que
a sua metodologia nos leva a pôr em prática atividades conducentes à resolução de
problemas, centradas nos alunos, centradas no ensino pelo processo e na integração da
forma expressiva e produtiva da ação. Saliente-se, por ser digno desse registo e detaque, ao
longo desta comunicação temos referido a EVT como disciplina que ainda existe, de facto, no
currículo. Mas existe, mesmo, na Região Autónoma dos Açores e mesmo em território
continental, o programa nunca foi revogado, como veremos mais adiante.
Foi pelos motivos aduzidos que muitos docentes foram contra esta medida que, para além de
ser considerada pelos docentes desta área curricular uma questão laboral era também uma
medida que apenas iria reduzir o número de professores sem que estivesse prevista
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
Depois dos acontecimentos descritos, o desenrolar do final do ano letivo 2010/2011 decorreu
de forma regular mas, logo no primeiro período letivo de 2011/2012 o Ministério da
Educação e Ciência divulgou uma proposta de Decreto-Lei que previa uma nova revisão da
estrutura curricular que, de forma abrupta, acabava com a disciplina de EVT no currículo e
propunha a sua substituição por duas novas áreas curriculares: a Educação Visual (EV) e a
Educação Tecnológica (ET). Apesar do debate público existente em torno desta proposta e
das dezenas de pareceres institucionais que eram manifestamente contra esta medida, esta
revisão da estrutura curricular acabou por consumar-se com a publicação do Decreto-Lei n.º
139/2012 de 5 de julho. Acabando assim a disciplina de EVT substituída por duas novas áreas
curriculares no 2º CEB: a EV e a ET.
Como se pode depreender, esta revisão da estrutura curricular aconteceu resultando num
forte e negativo impacto nas aprendizagens dos alunos nas áreas artísticas e tecnológicas,
com com implicações nefastas que são naturalmente evidentes passados cinco anos.
O que acabou por acontecer foi mesmo a eliminação da disciplina de EVT mas, para as novas
disciplinas de EV e ET que foram criadas, não foram elaborados novos programas pois foram
essas as indicações dadas através do gabinete do Ministro da Educação e Ciência a 31 de
julho de 2012, “não serão elaborados proximamente novos Programas, mantendo-se em
vigor o atual programa de Educação Visual e Tecnológica, que serve de referência para as
Metas Curriculares de EV e de ET”
(cf. http://apevt.files.wordpress.com/2012/08/respostaapevt.pdf).
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
A partir destas premissas, ficava assim definida a nova matriz curricular, eliminando-se a
disciplina de EVT mas mantendo-se o programa da mesma, agora para um novo contexto de
duas novas disciplinas: EV e ET e para as quais viriam a ser publicadas metas curriculares que
acabariam por substituir as metas de aprendizagem anteriormente elaboradas para a
disciplina de EVT. As novas disciplinas de EV e ET no currículo do 2º CEB passaram a ser
lecionadas apenas por um professor com apenas um bloco semanal de dois tempos letivos.
A nova disciplina de EV preconiza nas suas metas curriculares que “através da realização de
ações e experiências sistemáticas, deverá desenvolver nos alunos a curiosidade, a
imaginação, a criatividade e o prazer pela investigação, ao mesmo tempo que proporcionará
a aquisição de um conjunto de conhecimentos e de processos cooperativos” (Rodrigues,
Cunha & Félix, 2012, p.3). Estas metas curriculares de EV, segundo os seus autores,
“estruturam-se em quatro domínios que se conjugam para o desenvolvimento de
conhecimentos no contexto da Técnica, da Representação, do Discurso e do Projeto” (ibid,
p.3). Para o caso concreto do 2º CEB, em EV, segundo os autores deste documento (as metas
curriculares) as metas incidem sobre conteúdos como materiais básicos de desenho, os
elementos constituintes da forma, a comunicação e narrativa visual, cor, espaço, património
e discurso. Neste parâmetro, a análise de conteúdo feita em relação a estas metas
curriculares apenas tem a lacuna de, na sua introdução, não referir a geometria. Temos
assim oito blocos de conteúdos, sendo quatro deles correspondentes ao 5º ano e outros
quatro ao 6º ano. Assim, depreende-se (e defende-se, pelos autores das metas curriculares)
uma organização sequencial das abordagens o que, paradoxalmente, entra em profunda
contradição com o programa de EVT em vigor que, como referido, permite uma gestão
bastante flexível das aprendizagens e uma organização não sequencial das mesmas.
No caso particular das metas curriculares na disciplina de ET, pela análise de conteúdo
realizada, é profundamente evidente que como a disciplina de Educação Tecnológica deixou
de ser obrigatória no 3º CEB, as orientações que existiam para este ciclo de ensino acabaram
por ser transpostas, em grande parte, para a nova disciplina de ET do 2º CEB. Assim sendo,
tendo em conta que a ET no 3º CEB era uma disciplina eminentemente técnica, é muito
complexo realizar uma ligação ao 2º CEB. Veja-se, por exemplo, que para ET “as metas
incidem sobre conteúdos como a tecnologia e o objeto técnico, medições, comunicação
tecnológica, fontes de energia, matérias-primas e materiais, movimentos, processos de
utilização, fabrico e construção e estruturas” (Rodrigues, Carneiro & Ribeiro, 2012). Os
domínios da EV e ET são os mesmos quatro. No caso dos conteúdos indicados, podemos
verificar que para “medições”, “movimentos”, “energia” e “estruturas” existe um nexo lógico
com os da disciplina de EVT mas a análise do documento das metas curriculares e a sua
comparação com o programa de EVT releva claramente uma discrepância entre as
aprendizagens propostas para um caso e outro.
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
Passados apenas dez anos da entrada em vigor do programa de EVT, no decorrer do ano de
2001, e com a implementação do Decreto-Lei 6/2001, que o Ministério da Educação (ME), pelo
Departamento da Educação Básica (DEB), publica o documento orientador “Currículo
Nacional do Ensino Básico” (CNEB) e estipula, no mesmo, as competências essenciais a
desenvolver durante a escolaridade obrigatória. Este documento apresenta o conjunto de
competências consideradas essenciais no âmbito do currículo nacional incluindo as
competências de caráter geral, a desenvolver ao longo de todo o ensino básico, assim como
as competências específicas que dizem respeito a cada uma das áreas disciplinares e
disciplinas, no conjunto dos três ciclos e em cada um deles. Além disso, explicita ainda os
tipos de experiências de aprendizagem que devem ser proporcionadas a todos os alunos,
bem como as competências transversais, nas quais se inclui a utilização das Tecnologias da
Informação e da Comunicação (DEB, 2001).
O CNEB (DEB, 2001) adota o termo “competência” apresentando-o como uma integração de
conhecimentos, capacidades e atitudes, podendo ser entendida como “saber em acção” ou
“em uso”. Ora, analisando o programa de EVT, inferimos que esta disciplina já trabalha por
competências desde há quase quinze anos e, acresce ainda a efetiva integração das TIC. Tal
como afirma Gomes (2005), ao promover-se o sistema de conhecimentos conceptuais e
procedimentos expressos no programa de EVT, desenvolvem-se, enfim, as “competências”
expressas no programa da disciplina, na unidade das suas finalidades e objetivos e nos
produtos resultantes da sua lecionação. O próprio CNEB, na sua Introdução diz-nos que “não
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
No caso das TIC, com a reorganização curricular do Ensino Básico, estabelecida no já referido
Decreto-Lei 6/2001, estas passam a ter uma importância estratégica a nível do CNEB e,
naturalmente, na disciplina de EVT. No preâmbulo do Decreto-Lei referido, estabelece-se que
a utilização das TIC constitui uma formação transdisciplinar, a par do domínio da língua e da
valorização da dimensão humana do trabalho. Isto significa que as TIC passam a integrar um
leque de estratégias a utilizar na ação pedagógica, em todas as disciplinas e áreas
disciplinares. O artº. 3º explicita mesmo que, nos princípios orientadores do currículo, deva
existir a ”valorização da diversidade de metodologias e estratégias de ensino e atividades de
aprendizagem, em particular, com recurso a Tecnologias de Informação e Comunicação”
(Decreto-Lei 6/2001). No próprio documento orientador, refere-se que as TIC integram o
CNEB pelo “propósito das aprendizagens de caráter instrumental, cuja apropriação tem uma
importância fundamental” (DEB, 2001, p.11).
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
O contributo fundamental deste CNEB na disciplina de EVT é a utilização das TIC como
recurso e estratégia cognitiva da aprendizagem. A utilização das TIC como ferramenta e
recurso na sala de aula é entendida como uma área transversal. Os alunos, na sua
aprendizagem, devem contactar por formas diversificadas com estes recursos. O professor, e
neste caso o de EVT, deverá, nas suas planificações, englobar estratégias conducentes à
rentabilização das TIC no processo de aprendizagem e formação geral dos alunos.
Um papel fulcral será então atribuído às linguagens visual e audiovisual - o que reforça a
ideia da comunicação como pedra angular no processo educativo e das tecnologias
(entendidas como "utensílios" para a expressão e comunicação entre os vários intervenientes
nesse processo). Parece acolher unanimidade que os meios audiovisuais – com a TV “à
cabeça” e mais recentemente o computador com os seus acessórios já tradicionais, ampliam,
de uma maneira extraordinária, as suas capacidades, e constituem ferramentas
indispensáveis para a uma boa e eficaz aquisição de conhecimentos. Pode enfim dizer-se que
o seu âmbito de utilização pode atravessar todo o espetro do saber tradicionalmente
constituído, das humanidades às ciências da terra e da vida, das artes às ciências exatas
(ibid). Por outras palavras, podemos dizer que nos é possível construir uma boa parte das
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
Mas, se até aqui demos enfoque ao CNEB, posteriormente, com a criação das “Metas de
Aprendizagem”, para a disciplina de EVT as mesmas contemplavam claramente a utilização
das TIC em contexto específico da disciplina, para além da competência transversal. Assim,
nesse documento, especificamente para a disciplina, a Meta Final 8 era “O aluno utiliza as
Tecnologias da Informação e Comunicação (ambientes digitais) para criar produtos gráficos
estáticos e/ou dinâmicos” (cf. http://metasdeaprendizagem.dge.mec.pt/). Também as
metas intermédias a desenvolver até ao 6º ano de escolaridade salientava de forma clara as
várias experiências que podiam ser realizadas como por exemplo a identificação das
vantagens e desvantagens de trabalhar num ambiente digital (exemplos da edição, registos e
alteração da relação gesto e registo gráfico); a identificação da diferença entre as dimensões
de trabalhar no ecrã e do trabalho real impresso; tratamento e edição de imagens e aplicação
de cores, formas e a utilização de diversas ferramentas digitais; a utilização conjugada de
meios técnicos convencionais e digitais; e ainda o acesso a fontes várias de informação.
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
Como se pode constatar, a evolução realizada foi evidente mas, ainda não concretizada com a
indexação de ferramentas digitais específicas para cada conteúdo ou área de exploração. No
entanto, a evolução é notória, marcando já uma diferença óbvia entre o programa de EVT, as
TIC como competência transversal e aqui, mais contextualizada. Tudo isto, também, fruto da
implementação do PTE que equipou as escolas com recursos tecnológicos avançados.
Mas, o que se avinha agora, com nova equipa governamental e uma visão política diferente
para o Ministério da Educação. Qua mudanças estão a iniciar-se a partir de 2017/2018 em
fase experimental e posteriormente de forma global? Disso daremos conta, de seguida, nesta
comunicação e artigo.
i) Construção de uma reforma curricular em 1989, por uma equipa liderada pelo
Engenheiro Roberto Carneiro e implementada em 1991 com os “novos
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
ii) A EVT surge assumida como “uma abordagem integrada dos aspetos visuais e
tecnológicos dentro de uma área pluridisciplinar de educação artística e
tecnológica é, de acordo com a Lei de Bases do Sistema Educativo, a solução
apresentada pela Proposta de Reorganização dos Planos Curriculares para a
formação estética e tecnológica ao nível do 2º Ciclo do ensino básico”. No
entanto, verifica-se o primeiro corte de horas e redução de professores nestas
áreas, acrescido dos conflitos que perduraram durante muitos anos nas
escolas, fruto da divergência entre muitos professores e as suas áreas de
formação inicial que só ao fim de uma década se começou a dissipar com a
implementação e integração plena de muitos docentes formados no paradigma
da EVT nas Escolas Superiores de Educação. Saliente-se ainda que EVT surge
com um currículo integralmente novo, como referido anteriormente, com 11
conteúdos e 13 áreas de exploração, num programa de ciclo (2º ciclo) e com um
perfil de saída no final do 2º ciclo do ensino básico.
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
vi) Neste contexto, era a própria natureza da disciplina que acabava por definir a
sua metodologia, centrada no processo de resolução de problemas, em que a
autoformação futura do aluno e a sua independência na resolução de novos
problemas eram preponderantes. A perspetiva que se tem hoje da resolução de
problemas possibilita uma dimensão muito mais abrangente do que a simples
meta/finalidade. Apesar das fontes curriculares da disciplina de EVT darem
enfoque ao italiano Bruno Munari e aos trabalhos que desenvolveu na área das
artes e do ensino do design na década de 70 do século passado, o método de
resolução de problemas aparece em pedagogia pela mão de Dewey. As
orientações metodológicas da disciplina destacavam o processo de
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
Figura 3 – Visualização de outro esquema do Project Based Learning, por News Post - The Red Oaks
School
viii) E as salas de aula do futuro? O que são e como devem ser? Também ouvimos
falar das salas de aula do future (Lewin e McNicol, 2014). Há teorias do que são,
do que devem ter, integrando muitas tecnologias. Mas qual será, mesmo, a
verdadeira sala de aula do futuro, daquilo que as nossas crianças e jovens
precisam? Não seriam as salas de aula de EVT verdadeiras salas de aula do
futuro, onde apenas se necessitaria de integral alguns equipamentos
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA NO ENSINO BÁSICO: EVOLUÇÃO, CONSTRANGIMENTOS E
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tecnológicos e mais do que tudo, uma espaço que não se fecha em si mesmo
mas se abre e expande no exterior?
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xi) No final de 2011, perto do mês de dezembro, surge uma proposta que vem a
ser aprovada posteriormente em conselho de ministros e que faz sair uma
revisão da matriz curricular e na qual elimina o regime de docência de par
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xii) O que é certo é que no espaço de pouco meses, o governo caía e cessava
funções. Um novo governo, como Nuno Crato à frente do MEC, vem defender
uma nova matriz curricular, sendo a maior das bandeiras acabar com a
“dispersão curricular”. Como tal, “acabou a dispersão”, eliminando no 2º ciclo a
disciplina de EVT e substituindo-a por duas novas, EV e ET (já para não falar na
quase eliminação da ET no 3º ciclo). Veja-se o modelo que era atual, na altura e
a proposta… Uma nota, acabava EVT e acabava definitivamente o par
pedagógico. Na altura, isso veio a acontecer quase na totalidade como se vê no
quadro na proposta que era apresentada, na primeira versão. Tanto no 5º como
no 6º ano apenas 2 tempos para EV e 2 tempos para ET. Mas, reparem, na
versão inicial, quadro da direita e que é proposta, esses 2 tempos eram a dividir
entre ET e TIC. Faço aqui um “à parte”: já viram a proposta atual do PAFC onde
precisamente as TIC aparecem no bloco, na área onde estão EV, ET, EM? Pois
precisamente, a confusão entre ET e TIC, querendo colocar tudo em
“tecnologias” e um caminho perigoso… Na altura, as TIC passaram para o 7º
ano de escolaridade… Mas…
Quadro 2 – Primeira proposta de revisão curricular apresentada por Nuno Crato e comparação com a
de então. A proposta não ficou como se apresenta e as TIC passam para o 7º e 8º anos.
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xiv) E hoje? Hoje, em 2017, temos muitas escolas-piloto a testar este ano letivo o
PAFC – Programa de Autonomia e Flexibilidade Curricular, com um perfil de
saída da escolaridade obrigatória e documentos para todas as disciplinas, as
chamas “Aprendizagens Essenciais”. Mas numa leitura atenta, verificámos que
todos esses documentos nada trazem de novidade, bebem em alguns outros,
alguns bem antigos e que acabam por não ser grande novidade. Mas pior…
Sabem o que é pior?...
Figuras 6 e 7 – Imagens do site da DGE sobre o novo Perfil dos Alunos e as Competências Essenciais no
apresentado como novo Currículo do Século XXI, em 2017.
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Quadro 3 – Imagens do site da DGE com os quadros de documentos base tidos em conta para a
elaboração dos novos documentos e orientações curriculares.
xvi) … mas é mesmo verdade. A disciplina de EVT ainda existe, ainda existe e está
em vigor na região autónoma dos Açores e em regime de docência de par
pedagógico e com resultados bastante alicerçados…
Quadro 4 – Imagens do site do Governo Regional dos Açores – SRE com o quadro onde ainda se
apresenta a disciplina de EVT que ainda existe nos Açores e é lecionada por 2 professores.
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xvii) Novos rumos? Quase no final desta comunicação, não será necessária uma
reflexão profunda? Não será pertinente o regresso da EVT? Vejam, analisem,
investiguem resumam aquilo que são as linhas orientadoras gerais dos
makerspaces, da criação de projetos e grupos em contexto do PAFC e do
trabalho interdisciplinar. Não estaremos, com alguns estrangeirismos, a falar
apenas e só de EVT? A sempre inovadora EVT. Chamem-lhe o que quiserem, a
sua essência está lá e acreditámos apenas se estar, por outra via, a dar razão à
EVT e tentar recuperar muito tempo perdido. Veja-se um caso, por exemplo o
programa Crianças Primeiro (Fernandes e Rodrigues, 2017) do CINANIMA,
realizado no 1º CEB mas que poderia perfeitamente ser desenvolvido no 2º CEB,
numa EVT ou outra que lhe queiram chamar… Vejam estes exemplos, de
projetos que partem das origens e das tradições do concelho de espinho e das
localidades onde cada escola se insere e onde nascem, em articulação
curricular os projetos de realização de filmes de animação em que neste caso,
1º CEB são trabalhadas todas as áreas do currículo.
Figura 8 – Capas dos DVD’s com os filmes da 1ª e 2ª edição do Crianças Prime1rº do CINANIMA,
produzido e realizado nas escolas de Espinho nos anos 2016 e 2017.
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Ou como um dos filmes deste ano, o “Castro de Ovil”, com profunda investigação
histórica e um filme selecionado para o Prémio Nacional de Animação 2017, na
categoria de filmes de Oficinas/Escolas…
xix) … e que noutros casos, aplicam as técnicas aos seus contextos específicos,
como no caso dos Açores, em que a cada ilha corresponde uma cor….
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coerência normativa… Mas é preciso tempo… Tempo que teve que ser cedido,
de forma extra, para concretizar-se esta liberdade, em postais e em livro…
E agora, ques perspetivas? Não será a EVT, a Educação Visual e Tecnológica mais atual que
nunca?
Conclusões
Chegados a este ponto, chegados a este ano de 2017, no atual panorama do ensino artístico,
será que teremos alguma mudança, para breve? Esta e muitas mais questões se colocam e
são urgentes resolver…
Voltemos ao tempo, ao tempo que falámos no início e que é necessário resgatar para dar às
áreas artísticas, para trabalho com os alunos, para um desenvolvimento integral das crianças
e jovens, em EVT. Sim, em EVT ou outra área que queiram criar mas que é nossa, dos
docentes de EVT, pois como falámos, como testemunhámos, são abordagens que
continuamos a fazer e a criação de espaços para isso, com nomenclaturas novas,
estrangeirismos “charmosos e pomposos” não são mais do que aquilo que os docentes de
EVT já fazem desde há mais de duas décadas e num princípio que já desde os anos da década
de 1970 Bruno Munari começou a construir e que tão, mas tão atuais continuam.
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DESAFIOS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 25 ANOS
Urge a mudança! Já! E com tempo digno e de registo para o desenvolvimento de tal currículo!
O que mais será necessário para dar a educação artística e tecnológica que os Portugueses
necessitam?
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119
SUSTENTABILIDADE DAS ARTES VISUAIS NA
ESCOLA
Resumo
Palavras chave: educação artística; educação das artes visuais; educação visual;
curriculum.
Condições
Nos últimos dezasseis anos vimos muitos dos nossos pressupostos derrubados, revisitamos
muitos dos conceitos que tínhamos adquiridos e sobretudo estamos tentando encontrar
alternativas a partir da educação para ajudar a construir indivíduos mais conscientes da sua
responsabilidade social e ecológica. No virar do milénio Sábato dizia que vivemos na
idolatria da técnica e da tecnologia (Sábato, 2000:91-92). Hoje temos consciência de que o
modelo de conhecimento cientifico já não nos é muito útil no entendimento da educação que
queremos para o futuro .
Por outro lado assistimos a um colapso dos modelos educativos vigentes desde o século XX,
acrescido insucesso escolar; desmotivação dos alunos e professores e abandono da escola.
Na vida real existem cada vez mais desequilíbrios sociais em populações envelhecidas. Temos
consciência de que precisamos de maior inclusão social – de trabalhar questões éticas e de
participação democrática. Sentimos que temos que desenvolver mais as questões de
relacionamento pessoal e social na educação. As questões éticas pouco ou nada são
valorizadas nos percursos educativos atuais, apercebemo-nos paulatinamente que todos os
programas e campanhas de sensibilização para uma maior tolerância pela diversidade e
justiça social fracassaram perante a crescente onda de intolerância e injustiça social na
Europa.
Perguntamo-nos então como os educadores estão a lidar com estas condições? Como
estarão os artistas a refletir sobre isso? Como poderemos resistir ao pessimismo e continuar
a acreditar em utopias de libertação?
Muitos discursos enfocam eixos comuns de atuação, onde a educação parece ter um papel
importante no crescimento económico sustentável- da necessidade de uma educação com
maior enfoque na resolução de problemas, criatividade, espírito crítico. Outras vozes apelam
para a questão das guerras e conflitos- da necessidade da educação para paz e segurança
121
SUSTENTABILIDADE DAS ARTES VISUAIS NA ESCOLA
122
SUSTENTABILIDADE DAS ARTES VISUAIS NA ESCOLA
A Expressão cultural é listada como uma das oito competências necessárias para a
aprendizagem ao longo da vida, referida também por mecanismos de certificação e
validação como “Education & Training 2010” e “European Qualifications Framework (EQF) for
Lifelong Learning”. Sem artes nem educação das artes a expressão cultural dos povos seria
extremamente reduzida. O contributo de todas as artes para a cultura das comunidades é
fundamental assim como é fundamental que se promova educação das artes com qualidade
atribuindo-lhe espaço e tempo curricular adequado , e estudando o seu impacto na
sociedade.
Segundo o relatório da ONU de 2012 ' Realizing the Future We Want for All' (ONU, 2012)2
precisamos tomar consciência de problemas que em termos globais estão a afectar a
humanidade e o planeta, as educação deveria desenvolver valores, capacidades e
conhecimentos capazes de reformular atitudes sobre padrões de consumo e de produção
de modo a atingir um desenvolvimento sustentável (ONU, 2012. p. 127). Neste contexto os
domínios de aprendizagem deveriam ser vistos como membranas porosas onde a
transdisciplinaridade seria a regra na operacionalização do currículo.
1
Recomendação 2006/962/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro de 2006,
sobre as competências essenciais para a aprendizagem ao longo da vida (JO L 394 de 30.12.2006, p.
10).
2
Para saber mais: http://dev.un.org/millenniumgoals/beyond2015.shtml
123
SUSTENTABILIDADE DAS ARTES VISUAIS NA ESCOLA
Gostaríamos de uma escola com mais autonomia e com maior transdisciplinaridade e com
mais valorização da educação através das artes como polo gerador de projetos de trabalho
conducentes a aprendizagens para a sustentabilidade. Uma escola valorizada pelo estado e
pela sociedade em geral e valorizadora das comunidades que a constituem. Só assim se
poderia trabalhar em novas e diferentes redes, nomeadamente as ancoradas na comunidade
local (Figel, 2008). Mas para fazer essas redes é necessário desburocratizar a escola. É
preciso que o estado reconheça a educação como fator chave no desenvolvimento
económico do país e invista nele flexibilizando-o, encorajando os professores a desenvolver o
seu papel profissional como mediadores de aprendizagem promovendo a produção cultural,
o diálogo intercultural e a cooperação a nível local, regional, nacional e internacional com
vista a desenvolver ambientes particularmente propícios à criatividade e à inovação tal como
é proposto pelo Conselho Europeu (Eça, 2010 b).
124
SUSTENTABILIDADE DAS ARTES VISUAIS NA ESCOLA
125
SUSTENTABILIDADE DAS ARTES VISUAIS NA ESCOLA
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127
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM
PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
Resumo
Introdução
Este artigo propõe uma história do presente do ensino especializado português, focando-se
essencialmente no caso do ensino de música, entre 1835 e 2012. Tem como principal objetivo
dar a conhecer os principais resultados da investigação realizada pelos seus autores no
âmbito dos diferentes projetos de investigação em Educação e Ensino Artístico 1, não tendo,
por esta razão, a pretensão de esgotar uma cartografia da produção científica ou dar conta
de toda a massa documental que pode ainda ser perscrutada sobre o tema.
1
Estudo de avaliação do ensino artístico especializado, coordenado por Domingos Fernandes
(Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, FPCE-UL), financiado
pela Direcção-Geral para a Formação Vocacional/ Mistério da Educação (DGFV-ME), decorrido entre
2006-2007; Elaboração de estudos complementares e coordenação do acompanhamento das
recomendações propostas no estudo de avaliação, coordenado por Domingos Fernandes e Jorge
Ramos do Ó (FPCE-UL), financiado pela Agência Nacional para a Qualificação/ Ministério da
Educação (ANQ/ ME), decorrido em 2007; Coordenação do acompanhamento das recomendações
propostas no estudo de avaliação, coordenado por Domingos Fernandes e Jorge Ramos do Ó (FPCE-
UL), financiado pela Agência Nacional para a Qualificação/ Ministério da Educação (ANQ/ ME),
decorrido em 2007-2008; De aluno a artista: inventividade, estatuto e herança na história da
educação artística em Portugal (1780-1983), coordenado por Jorge Ramos do Ó (IE-UL), com
financiamento da FCT, decorreu entre 2018-2013; ); A produção do artista-investigador na
Universidade: Repensando o dispositivo pedagógico nos estudos doutorais sob o signo da
inventividade, coordenado por Jorge Ramos do Ó (IE-UL), decorreu entre 2015 até ao presente.
129
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
A leitura mais estrita de Educação Artística pode assim ser encontrada no documento em que
a UNESCO (2006, p. 6) propugna a promoção da Educação Artística, equacionando três
grandes linhas de atuação: (i) o estudo de trabalhos artísticos; (ii) o contacto direto com
trabalhos artísticos (e.g., concertos), (iii) a prática artística. Esta definição contém em si
mesma uma tensão sempre latente entre as suas componentes, a educativa e a artística
(Baldacchino, 2015). A tendência artística da disciplina pretende mesmo que se considerem
fora do seu campo os movimentos mais ligados à Educação, como a Educação Pela Arte
(Read, 1982) e de Artes na Educação (Efland, 1976, 2002). Estes campos têm, todavia, sido
também cabimentados em diversos estudos de Educação Artística e assumindo-se no
entendimento que a Educação Artística tem tido no país.
No que respeita ao ensino especializado, a oferta formativa dirige-se aos domínios de Artes
Visuais, Música e Dança, tendo-se verificado um incremento na procura, em particular com a
implementação do apoio ao regime articulado no ensino de música (Fernandes, Ó & Paz,
2014). No Ensino Profissional Artístico, foram desde 2007 criados inúmeros cursos de
produção e apoio à área artística, na área de artes do espetáculo, música, design. Tomando o
caso específico do ensino de música, importa, ao longo deste texto, patentear como a
própria evolução quer das demandas, quer das políticas educativas, tenderam a condicionar
uma certa formulação da Educação Artística, entendida num sentido mais amplo.
No nosso entender, um passo importante tem sido realizado com a investigação de foro
histórico. Esse gesto implica recuperar uma longa cronologia, que se inicia em 1780, sob o
amparo do Intendente Pina Manique, com a fundação do orfanato estatal, a Real Casa Pia de
Lisboa, onde as artes visuais e a música foram primeiramente ensinadas numa instituição
130
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
oficial. Importa também estender esse inquérito até, pelo menos, 1983, com as Reformas de
Educação e Ensino Artístico que marcaram a nossa época presente (Vallera & Paz, 2014;
Martins, 2012).
Deste modo, uma primeira genealogia – observável nos discursos políticos e institucionais da
educação – associa educação artística com polícia, conforme foi conceptualizado no final do
século XVIII, como um veículo para a regeneração social. A aprendizagem das artes esteve,
desde a sua origem na modernidade educativa, relacionada com os ofícios, marcando, deste
modo, um destino específico para a ‘salvação’ dos ‘menores em risco’, colocados debaixo da
proteção do Estado (Vallera & Paz, 2014; Ó, Martins & Paz, 2013).
131
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
2
Notas de leitura: 1940/41: inclui matrículas no Conservatório Nacional, Conservatório Municipal do
Porto e Instituto de Música de Coimbra; 1950/51: Inclui, além das instituições anteriores, matrículas
na Academia de Música da Madeira, no Funchal; 1970/71: Inclui pela primeira vez os
estabelecimentos de Aveiro, Braga, Setúbal e Ponta Delgada.
132
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
133
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
Quase diríamos hoje que a aptidão, como conceito cientificamente suportado e calibrado,
tomou o lugar do génio. Todavia, de acordo com o trabalho que temos vindo a desenvolver
no Instituto de Educação no âmbito da continuação do projeto De aluno a artista o talento, a
aptidão e uma serie de outros conceitos que permitem calibrar as práticas artísticas têm
também um lastro sociocultural, e com fundamentos na estratigrafia da pirâmide social, ao
qual raras vezes se presta atenção. Por outras palavras, e de acordo com uma investigação
recente, os músicos considerados bem-sucedidos em Portugal observavam as seguintes
caraterísticas:
De facto, de acordo com este estudo, a disposição estética de origem (com vinculação à
figura paterna, que até meados do século XX corresponde ao profissional de uma casa de
classe média) foi fundamental até pelo menos à década de 1930, quando se finalizou a
primeira era da história do ensino musical especializado. Essa constatação pode ser
observada no Gráfico 2.
134
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
135
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
Pese embora os trabalhos de referência de Manuel Deniz Silva (2005) ou Maria Artiaga
Barreiros (1999), a história do ensino especializado de música em Portugal no período do
Estado Novo encontra-se insuficientemente estudado, sendo Carlos Gomes um dos autores
que colocou à disposição dos investigadores um maior número de problemas e documentos
acerca deste tema tão específico. De acordo com este autor, entre 1936 e 1966 surgiram
diversas propostas de reforma do Conservatório Nacional, onde se procurou incorporar
soluções para os diferentes problemas pedagógicos que atingiam a instituição (Gomes, 2002,
p. 143). Logo em 1936, é nomeada uma comissão que acabou por ser dissolvida, e para os
quais contribuiu, “indubitavelmente, o afastamento de Luís de Freitas Branco, em 1939, das
suas funções docentes na secção de música deste Conservatório” (p. 144), e que decorreu das
acusações de subversão e suspeitas de simpatizar com o regime vermelho (ver também
Telles, 2007). Dez anos depois, foi mais uma vez nomeada uma comissão, também ela sem
frutos, e sem que seja ainda possível interpretar devidamente as razões que levaram à sua
não aprovação. Possivelmente, deveu-se ao extremar de posições políticas e ao clima de
desconfianças vividas no Conservatório (Gomes, 2002, p. 150). Vinte anos decorridos sobre
este episódio, planteou-se ainda mais uma terceira comissão, também ela gorada, mas em
que pelo menos se chegou a concretizar um plano de reforma (pp. 143, 159-ss). Gestada em
1966, por indicações do ministro Galvão Teles, esta tentativa de reforma alinha-se já nas
reformas que efetivamente ocorreram a partir de finais dessa década.
Ainda nos finais dos anos 1960, o ensino e a educação artística começaram a ser alvo de
definições conceptuais. É nesta época que a educação artística abre um importante capítulo
da sua história, com a reforma Veiga Simão. Neste passo, concretiza-se a introdução dos
primeiros currículos de Educação Musical, uma disciplina do então chamado ciclo
preparatório (5.º e 6.º ano, e renova-se a disciplina de Educação Visual. No caso da Educação
Musical, a disciplina foi engendrada em moldes de rotura com o que havia sido, desde finais
do século XIX, o desenvolvimento curricular apostado no canto coral.
136
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
Ao mesmo tempo que o ensino musical dá notas do seu movimento de democratização com
a assunção de uma população de alunos cada vez maior, os seus problemas estruturais
começam a ser evidenciados. Pode o setor de ensino especializado ser efetivamente
democratizado? Isso não implicará assumir que a missão deste setor tem de ser alterada e
consequentemente repensada? Este foi o tema que aprisionou o debate nos anos 80 a esta
parte, verificando-se que o subsistema tem sido regido pelo paradigma da especificidade
(Gomes, 2002). Sendo incapaz de lidar com esta situação, verifica-se uma demissão do
Estado, objetivado na criação de grupos de trabalho, seguindo uma tradição novecentista,
mas em que o ónus é definitivamente colocado na mão dos especialistas, embora a decisão
política acabe por ser tomada em regime estritamente político.
Uma das últimas reformas decorreu na sequência de mais um estudo realizado por uma
comissão de reforma, a partir de um documento de investigação em que os autores
colaboraram (Fernandes et al., 2007). No Estudo de Avaliação do Ensino Artístico, foram
identificadas diversas áreas de discussão e intervenção, sendo uma das mais polémicas a
tentativa de reformar os regimes de frequência, procurando enfatizar os regimes articulado e
integrado, contra a supremacia do regime supletivo. Com efeito, como documenta o Gráfico
3, o regime integrado, no qual se voltou a investir pelo seu valor pedagógico a partir do ano
letivo de 2009/2010, em todos os conservatórios onde foi possível implementá-lo, quase
duplicou o seu contingente populacional.
137
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
Numa monografia mais recente, Sara Nogueira observa esta questão a partir de um estudo
de caso no Conservatório de Música do Porto. A sua leitura aponta para uma série de
problemas estruturais no desempenho do regime integrado, concluindo a investigadora que
o ensino integrado contém diversas vantagens curriculares, mas não pode ser uma solução
universal (Nogueira, 2015).
138
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
5. REFLEXÕES FINAIS
Ao longo deste breve artigo, realizámos uma breve sinopse de alguns dos problemas trazidos
pela história do presente, em que se propõe uma periodização do tema do ensino artístico
especializado. Entre muitas outras lacunas do campo, está ainda por incorporar
devidamente, no horizonte histórico da modernidade, o cruzamento da tradição oitocentista
sul europeia com a nova linha de ação política estabilizante, em que se passou a ver o ensino
especializado de música como garante da proteção da sociedade atribuindo aos ‘menores em
risco’ um destino profissional. Está também ainda por estudar o caso do Estado Novo, em
que as escolas de música estiveram confinadas aos severos numerus clausus com os quais
desesperadamente se procurou criar uma elite, estabelecendo uma regulamentação quase
estática durante o regime. Os acontecimentos desde finais dos anos 60 a esta parte, onde se
vê eclodir o movimento de democratização do ensino musical – e suas diversas ramificações
– garantem ainda uma linha de pesquisa aberta e promissora. É neste sentido que a
problematização, a partir de uma história do nosso presente, permite eventualmente
conquistar novas pistas e hipóteses de renovação pedagógica, suportada em leituras
profundamente críticas do que é a nossa herança, em termos de um sistema escolar, hoje
consolidado – mas ainda profundamente contraditório.
139
ENSINO ARTÍSTICO ESPECIALIZADO EM PORTUGAL: UMA HISTÓRIA DO PRESENTE
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141
ARTES E DESASTRES NA EDUCAÇÃO
Ao refletir em voz alta sobre o papel da educação artística no ensino não formal posiciono-
me sobre aquilo que valorizo na educação artística, e para além dela, tomando em
consideração as formalidades e as informalidades do ensino em contexto formal e não
formal.
Vou fazê-lo a partir da minha experiência pessoal, convocando a memória dos meus tempos
de estudante e também do que fui retirando das vozes de professores e alunos, e da
observação direta do seu comportamento no âmbito dos vários projetos que liderei no
Programa Descobrir da Fundação Calouste Gulbenkian.
Não vou falar apenas do ensino artístico – embora tudo o que refiro lhe diga também
respeito. Interessa-me considera-lo no contexto alargado do currículo escolar,
particularmente neste momento em que as políticas educativas se abrem à contribuição das
artes e dos processos criativos na formação integral do aluno.
Todos sabemos por experiência própria que o entusiasmo e a motivação estão na base
da curiosidade, da vontade e do trabalho que dedicamos a um dado assunto.
Quais são então os fatores que promovem ou inibem o entusiasmo e a motivação dos
alunos?
ARTES E DESASTRES NA EDUCAÇÃO
A partir dessa relação emocional cria-se uma base de confiança e cumplicidade que
transforma uma turma num grupo coeso – condição essencial para qualquer aprendizagem.
Uma vez criado este chão comum, é possível levar mais longe os trabalhos de pesquisa,
experimentação e problematização inerentes a qualquer construção de conhecimento - seja
nas artes, nas ciências, nas humanidades ou nas tecnologias.
Valorizar estas ações significa reconhecer que o conhecimento não é algo fechado que
se transmite, e sim algo aberto que se constrói e transforma.
Experimentar sem medo de errar e de levantar hipóteses que vão contra os cânones.
O que aqui está em causa não é o que se ensina, mas como se ensina.
Pesquisar a partir de perguntas feitas para as respostas que já existem, não é pesquisar.
143
ARTES E DESASTRES NA EDUCAÇÃO
No campo do ensino artístico este como se ensina continua a ser fundamental. Muito
especialmente para o ensino artístico generalista que se realiza na escola.
Quando falamos de ensino artístico generalista – pelas artes, com as artes ou para as artes -
estamos a falar naturalmente de sensibilização para a expressão artística, para o sentido
estético e para a fruição das artes enquanto manifestações essenciais do ser humano e parte
integrante do seu legado.
O que deveria ser intrínseco à aprendizagem das artes neste contexto - na minha perspetiva -
é a ativação dos sentidos (escuta, observação atenta), a ativação do pensamento e a ativação
da expressão individual. Estas ativações são um incentivo ao crescimento do mundo interior
de cada um numa perspetiva de diálogo com outros mundos. É o ensino artístico mobilizador
da participação dos alunos em processos artísticos entendidos como processos individuais e
coletivos de descoberta. O foco não está na análise especializada da obra artística nem no
rigor do domínio técnico de uma linguagem ou de uma técnica.
Não se trata de aprender a executar dominando a técnica que controla a mão, ou o corpo ou
o domínio de um instrumento. Trata-se de exercitar a libertação da emoção e do pensamento
– a intuição – que conduzem a mão, o corpo e os instrumentos por outros caminhos. Não se
trata de memorizar os nomes dos autores, dos estilos e das correntes artísticas. Trata-se de
dialogar com as obras de arte para abrir os horizontes da experiência individual e participar
diretamente em processos criativos que envolvam práticas de pesquisa, questionamento,
experimentação e improvisação na busca de formas de organizar o caos, de encontrar
sentidos, de provocar a consciência.
144
ARTES E DESASTRES NA EDUCAÇÃO
- Promovem o trânsito entre espaços fornais e não formais, envolvendo ações que se
realizam na escola e ações que se realizam no espaço cultural
145
ARTES E DESASTRES NA EDUCAÇÃO
Sabendo que faltam os recursos financeiros e humanos e o tempo letivo para introduzir
novas disciplinas num currículo já de si sobrecarregado; sabendo que muitas das
competências constantes do Perfil do Aluno do sec. XXI são de natureza transversal exigindo
que o professor diversifique as suas estratégias pedagógicas; sabendo que o professor terá a
responsabilidade de gerir 25% do seu tempo letivo para o desenvolvimento de um projeto
curricular adequado ao desenvolvimento das competências que o despacho define; sabendo
que as competências exigidas implicam estimular a curiosidade intelectual, o espírito crítico e
interventivo, a criatividade e o trabalho colaborativo; e sabendo que as artes são campos
privilegiados para o exercício desses hábitos, será vantajoso promover a colaboração entre as
escolas e as organizações culturais utilizando as artes e a cultura como recursos
pedagógicos.
Exemplos de projetos que fomentaram contaminações entre ensino formal e não formal
e entre processos artísticos e práticas pedagógicas promovidos pelo Descobrir –
Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência:
https://gulbenkian.pt/descobrir/blog/novidades-do-projeto-operacao-stop/
Novos músicos e novos cineastas – desafio lançado às escolas de música, ensino vocacional
(Instituto Gregoriano, Conservatório Nacional e Academia de Música de Santa Cecília),
materializado numa experiência cénica e artística que visava transcender o ato musical e os
parâmetros convencionais da interpretação musical. Os jovens instrumentistas para além de
músicos foram atores, guionistas, compositores e realizadores participando ativamente na
construção de um espetáculo
https://vimeo.com/29422464
146
ARTES E DESASTRES NA EDUCAÇÃO
https://gulbenkian.pt/descobrir/projetos-especiais/pequeno-grande-c/
https://gulbenkian.pt/cienciaemcena/
https://gulbenkian.pt/descobrir/projetos-especiais/10x10/
Novembro 2017
147
A POLÍTICA NÃO É PARA CRIANÇAS?
OS TEMAS POLÍTICOS NA PROGRAMAÇÃO
DO CCB FÁBRICA DAS ARTES - UMA
EXPERIÊNCIA DE ESCUTA SOBRE AS
INFÂNCIAS E A SUA ARTE
A dimensão política da arte coloca-se muito antes dos temas ou das mensagens que os
espetáculos comunicam. Afirma-se primeiro no dispositivo da própria programação, na sua
identidade estética, artística, educativa, nas escolhas que opera. São essas escolhas que
permitem compor as linhas dramatúrgicas que a atravessam e que, assim, lhe conferem
corpo, uma identidade.
Esta falta é para nós o devir, por vir, as potências de inícios ou de reinícios; da infância, da
arte, da educação. Os ciclos anuais de conceção da programação propiciam esse movimento.
Imagina-se ser possível, primeiro, propor uma outra relação com as crianças e jovens que se
desloque: da hegemonia do mundo adulto sobre os novos; da ideia de escolarização no seu
sentido instrutivo, explicativo, tradutor; da interpretação prescritiva das etapas de
desenvolvimento que a psicologia dos fins do século XIX e princípio do século XX propõem;
da ideia de entretenimento apresentadas vulgarmente pelas indústrias culturais comerciais.
Contornam-se as anacrónicas classificações etárias dos espetáculos atribuídas pela Inspeção
Geral das Atividades Culturais (IGAC). Imagina-se a (im)possibilidade de arrancar de cada um
o estatuto de “o aluno” para abrir devires nas relações entre arte, infância, educação e
participação. Propomos um (re)início, um princípio que se ativa no Encontro, na Alteridade;
um bom encontro.
149
A POLÍTICA NÃO É PARA CRIANÇAS? OS TEMAS POLÍTICOS NA PROGRAMAÇÃO DO CCB FÁBRICA DAS
ARTES - UMA EXPERIÊNCIA DE ESCUTA SOBRE AS INFÂNCIAS E A SUA ARTE
Por último, a Fábrica das Artes tem contribuído para o campo da educação artística através
do registo de alguns dos projetos de pesquisa artística e de transversalidade com outras
áreas de conhecimento que tem desenvolvido. Desde 2014 editaram-se assim três livros e
documentários e lançou-se um blog. (consultar referências bibliográficas).
Não será difícil pensar em exemplos da instrumentalização educativa para servir os delírios
de projetos políticos e ideológicos. Não será difícil colocarmo-nos perante a profundidade
política do estado infantil.
Sabemos bem como as crianças vão à guerra desde sempre ou como são vítimas da
escravatura. Sabemos bem das muitas crianças que vivem na fatalidade da margem social,
sem oportunidade de fuga. Sabemos ainda que as crianças são objeto de educação e a
educação é por excelência, um ato da política. A educação é um ato que garante a
perpetuação de um mundo que não lhes pertence a elas mas a nós e, para que haja futuro
para além de nós, requer que façamos dos novos continuação. A agencialidade política da
criança pressupõe a plasticina moldável em que ela se constitui para reproduzir aquilo que
sobre ela foi projetado. Para além destes dois olhares sobre a infância, podemos dizer que a
própria criança é política. Ela não é apenas vítima e recetora da perspetiva da política. A
criança conhece o jogo das forças elementares que produzem a política: a manipulação, a
crueldade, a liderança, a subjugação. Qualquer pessoa que lide com crianças sabe o que
significa politicamente não ter energia, força ou capacidade para opor-se a alguém que nos
está a subjugar. Finalmente as crianças assistem à política, têm curiosidade e o desejo até à
avidez de experimentar a performance mimética do mundo para onde irão, o mundo dos
adultos. Passado e memória é a única coisa que as crianças não têm e preenchem esse vazio
150
A POLÍTICA NÃO É PARA CRIANÇAS? OS TEMAS POLÍTICOS NA PROGRAMAÇÃO DO CCB FÁBRICA DAS
ARTES - UMA EXPERIÊNCIA DE ESCUTA SOBRE AS INFÂNCIAS E A SUA ARTE
com aquilo que é o mundo onde entretanto aparecem, porque o mundo assim lhes exige.
Digo que não só as crianças estão no interior da política como têm curiosidade sobre ela e
vivem-na entre si e com os seus adultos.
Escutar a infância é, em si mesmo, uma abertura à política. Se estão a ser ouvidos estão a ter
existência pública.
Em latim infância designa ausência de fala. Infans está formado por um prefixo privativo in,
privado de falar, incapaz de falar, o que não tem voz, portanto sem lugar na polis, (Kohan,
2003).
Foi a partir da sua escuta que estruturamos todo o trabalho de criação e receção das
propostas artística pelos espetadores. Trazíamos connosco algumas perguntas autênticas: O
que é a infância? Que arte é afinal a sua arte? (um oposto a “arte para a infância”) Qual a
dimensão educativa da programação da Fábrica das Artes?
Este Ciclo reuniu cinco espetáculos que partilham a transposição literária de histórias
autobiográficas para um espaço performativo íntimo, explorando os temas da Liberdade,
Resistência, Colonialismo, Refugiados, Revolução, Cidadania, Possibilidade de Ser. Dessas
cinco propostas artísticas selecionei três.
Cartas de Damasco pôs-se em cena a partir de e-mails trocados entre duas jovens que se
conhecem pela internet, Ana Lázaro, encenadora e Leen Rihawi, uma jovem de Damasco que
sonha ser escritora.
151
A POLÍTICA NÃO É PARA CRIANÇAS? OS TEMAS POLÍTICOS NA PROGRAMAÇÃO DO CCB FÁBRICA DAS
ARTES - UMA EXPERIÊNCIA DE ESCUTA SOBRE AS INFÂNCIAS E A SUA ARTE
A Minha Casa Era a Sede, um espetáculo de Judite Fernandes e Teresa Gentil: histórias
contadas a partir de infâncias passadas na clandestinidade política e na ruralidade católica.
Para a realizar Ciclo “Memórias de Intenção Política”, escolhemos artistas que no seio do
seu trabalho tivessem condições para assumir perspetivas que levassem a problematizar as
infâncias e a considerá-las na construção e comunicação da sua arte. Escolhemos artistas que
trabalham a partir da premissa autobiográfica. Queríamos ensaiar proximidades entre
juventude, política e participação. Tomamos a autobiografia como detonador para a
participação e a política como maneira pública de existirmos.
O sentido político que se inscreve no conjunto destes espetáculos passa pela atualidade
política que os temas propõem ou pela ressonância histórica que estes têm no presente. No
primeiro caso, “As Cartas de Damasco” coloca os jovens espectadores em relação com a
informação que já conheciam das noticias sobre a guerra na Síria e refugiados. A internet é a
paisagem de relação entre as duas personagens, Ana, a jovem encenadora portuguesa e
Leen, a jovem de Damasco que quer ser escritora. Os espectadores assistem ao
acontecimento do encontro casual entre elas através da projeção vídeo de um ecrã de
computador e à amizade e cumplicidade a ser arquitetada no decorrer da narrativa. Os
espectadores reconhecem-se nesse universo. Ficam silenciosos e suspensos e espreitam com
curiosidade para dentro do reconhecido e do novo, quando Ana e Leen contam da troca de
referências musicais entre elas; sobre como são os dias de uma jovem numa cidade em
guerra onde caem bombas, sobre ir à escola mesmo assim, sobre os dias sem água nem
eletricidade, sobre ser árabe mas não usar hijab (lenço na cabeça), sobre as roupas que gosta
ou os sonhos que sonha para o seu futuro, sobre a falta de liberdade.
(Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=R9H0WGT7gN0 )
“A Minha Casa Era a Sede” parte de um conto de Judite Fernandes sobre a sua infância. Filha
de um casal de operários, agentes políticos clandestinos de um partido da resistência à
152
A POLÍTICA NÃO É PARA CRIANÇAS? OS TEMAS POLÍTICOS NA PROGRAMAÇÃO DO CCB FÁBRICA DAS
ARTES - UMA EXPERIÊNCIA DE ESCUTA SOBRE AS INFÂNCIAS E A SUA ARTE
ditadura portuguesa, conta o que é viver escondido e desejar fazer uma pequena revolução,
conta como fez a transgressão da transgressão com a sua irmã, no desejo de ensaiar a
identificação ao comum das amigas, indo clandestinamente à missa e provando a hóstia.
Parece distante, mas, não só há uma aproximação aos contextos históricos recente como as
crianças sabem o que é estar escondido ou estar preso. As crianças também têm de se
libertar das suas infâncias limitativas.
(Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=YWruRDrjyY8 )
A veia mais vibrante que atravessa este ciclo da programação e que permite perceber o seu
sentido político e os deslocamentos que opera, é a inclusão de temas geralmente vistos fora
do universo infantil.
O facto é que crianças e jovens se relacionaram com as questões trazidas pelos espetáculos
como sendo suas também e formularam, com maior ou menor nitidez, interrogações e
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A POLÍTICA NÃO É PARA CRIANÇAS? OS TEMAS POLÍTICOS NA PROGRAMAÇÃO DO CCB FÁBRICA DAS
ARTES - UMA EXPERIÊNCIA DE ESCUTA SOBRE AS INFÂNCIAS E A SUA ARTE
Estes jovens tomam voz para falar das suas próprias experiências. Os temas que surgiram
passaram pela sujeição ao racismo, às questões de género, homossexualidade, exclusão
social e infância. Relacionam-se com curiosidade com os processos de criação e esse
desvendamento constitui-se como uma dimensão fortemente educativa, já que ela
pressupõe o desejo de criar também.
Eram, pois, estes os espaços de proximidade que queríamos alcançar. Afinal, a política somos
nós.
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A POLÍTICA NÃO É PARA CRIANÇAS? OS TEMAS POLÍTICOS NA PROGRAMAÇÃO DO CCB FÁBRICA DAS
ARTES - UMA EXPERIÊNCIA DE ESCUTA SOBRE AS INFÂNCIAS E A SUA ARTE
Ainda se ouve a voz gravada da Laura vinda da instalação por ela criada - uma porta bonita e
de uma planta iluminadas: Pleura... Onde vivo, onde me é permito pintar o abstrato que vive nas
superfícies abissais do meu cérebro, é possível respirar, asfixiados pelo peso do céu que nos
aprisiona no pensamento [...] Porta, que sempre promete, mas nem sempre cumpre [...].
Numa das nossas jornadas, durante uma pausa para o picnic no Jardim das Oliveiras, escutei
e registei uma conversa dos Amigos FA. “Ridícula!” Foi assim que os ouvi classificar o
anacronismo da escola numa conversa desencadeada entre eles:
“- As pessoas deviam poder escolher o que querem aprender. Não há oportunidade para os
alunos sentirem motivação. E depois põem esta ilusão na cabeça das pessoas de que os
adolescentes são desinteressados. São desinteressados porque não lhes deram escolha. E
porque nunca os deixaram falar.“
“- Tenho um colega que tem negativas. Dizem que é burro. Eu acho que ele é uma das
pessoas que conheço com maior capacidade.”
“- O que estamos a fazer aqui é educação porque, uma coisa que nos faz pensar, que nos
transforma, é educação.”
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A POLÍTICA NÃO É PARA CRIANÇAS? OS TEMAS POLÍTICOS NA PROGRAMAÇÃO DO CCB FÁBRICA DAS
ARTES - UMA EXPERIÊNCIA DE ESCUTA SOBRE AS INFÂNCIAS E A SUA ARTE
...Porta, onde uma mera passagem de luz é uma inacabável imensidão de liberdade perdida
nas memórias daqueles e daquelas que lutam consigo mesmos para encontrar uma
passagem, outra passagem para aquela inalcançável, mas tão acessível liberdade...
Referências Bibliográficas
Craveiro, J. (2016). Que Teatro é Este?”: Pensamento e Processo de Um Museu Vivo de
Memórias Pequenas E Esquecidas. Sinais De Cena, II, Nº 1, 27-48.
Kohan, W. (2003). Infância e educação em Platão. Educação e pesquisa. São Paulo. V.29, n.1, 11
– 26.
Wallenstein, M. (2014). Se não havia nada, como surgiu alguma coisa? Coleção
transversalidades, criação artística e filosofia para crianças. Lisboa: Fundação Centro
Cultural de Belém.
Wallenstein, M. (2016). O caminho da Fábrica das Artes. Nós Pensamos Todos em Nós. Lisboa:
Fundação Centro Cultural de Belém, 22-42.
156
Criatividade
inventiva, sentido
estético e capacidade
crítica no ensino das
artes
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER
TODOS OS MEDOS
Alexandra Baudouin
Faculdade de Belas Artes Universidade de Lisboa, [email protected]
Área Científica – Artes Plásticas
Resumo
Abstract
This article presents the program of art education workshops that took place in
the Museu Nacional de Arte Antiga in Lisbon, a program related to the triptych of
Hieronymus Bosch, “The Temptations of St. Anthony” (c. 1500), that belongs to
the museum. This painting it shows a victorious saint surrounded by rich colors
and original demonic figures. The connections created between the real and the
fantastic are resolved genially allowing the observer’s imagination to run free.
The exuberant parade of pantomimic figures does reflect on how the unknown
becomes scary. In this perspective, “The Temptations of St. Anthony” proved to
be a perfect starting point for the creation of scenarios, characters and masks
that would serve to combat personal fears. The emotional experience between
the knowledge of a work of art linking with one’s own imagination permits a
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
means of exteriorizing, by objects and images, the inner world that we have
inhabited since childhood.
INTRODUÇÃO
A investigação que temos desenvolvido nesta área enquanto docente de expressão plástica e
facilitadora em ações de educação artística, tem-se revelado um campo de intervenção que
promove o conhecimento de obras de arte, assim como amplia a capacidade de expressão
através de processos artísticos e criativos que integram várias áreas do conhecimento,
proporcionando um desenvolvimento integral da criança (Lowenfeld, 1970; Almeida, 1980;
Dewey, 2002; Munari, 2007; Vygotsky, 2012; Kandinsky, 1987).
Se a educação e, neste caso específico, a educação artística tem como propósito criar
interesse na cultura, será importante criar programas que sustentem a curiosidade, a
criatividade, onde seja possível estabelecer transversalidade entre todas as áreas do
conhecimento (Read, 1982).
O programa que aqui apresentamos, intitulado “A máscara – Uma tentação para vencer todos
os medos” aconteceu no Museu Nacional de Arte Antiga em julho de 2017, derivou
diretamente do tríptico de Hieronymus Bosch, “As tentações de Santo Antão” (c. 1500), um
quadro de altar do final da Idade Média que mostra um Santo vencedor rodeado por cores
ricas e originais figuras demoníacas. As conexões criadas entre o real e o fantástico são
resolvidas de forma genial permitindo ao observador percorrer vastos caminhos do seu
imaginário. Tal como se lê na introdução escrita por José Augusto-França (1994) no livro
“Bosch ou “O Visionário Integral”, este tríptico permite:
159
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
mostra o Santo inconsciente a ser transportado em braços. Por baixo da ponte três homens a
conversar e eis que aparece o surpreendente pássaro patinador. Noutro momento, que
acontece na zona superior do mesmo painel, pode-se observar Santo Antão no ar a ser
transportado por demónios voadores (Bosing, 2001).
No painel direito, aparece a rainha-demónio rodeada pela sua corte, Santo Antão quer
parecer invisível, mas dá de caras com uma figura diabólica. Ao fundo deste painel, está
representada a cidade da Rainha-demónio onde se avistam detalhes, tais como, o dragão
que nada no fosso e as chamas que saem do portão principal do castelo (Bosing, 2001).
O painel central exibe diabos de todas as formas e feitios e todos se dirigem para as ruínas
que estão ao centro. Perto das ruínas está uma mesa e ao seu lado uma mulher que oferece
uma taça a uma velha, sendo que entre as duas está Santo Antão ajoelhado e desviando o
olhar desta confusão para o observador, faz uma bênção com a mão direita. Dentro da
capela em ruínas (em frente ao santo) está Cristo na cruz, envolto pela luz milagrosa que
salvou Santo Antão (Bosing, 2001).
As faces externas, visíveis com o tríptico fechado (ou conforme está exposto no museu,
circulando pela zona posterior ao tríptico), apresentam uma pintura monocromática em tons
de cinzento que mostra o caminho percorrido por Jesus Cristo da prisão até ao Calvário.
Como refere José Augusto-França (1994):
O pintor sonha diante uma folha de papel como sonha diante um painel de carvalho.
Mas ele pode igualmente encher toda uma folha de esboços de mendigos ou de
vagabundos, toda uma coleção espantosa de figuras estropiadas, surpreendidas em
atitudes trágicas e cómicas, ao mesmo tempo, numa veia satírica que cobre um
realismo popular. […] Homem de sonhos diabólicos e homem de observações
realistas, Jerónimo Bosch viveu então duas vidas paralelas que não deixam de se
encontrar (p. 32).
VIAGEM ÀS TENTAÇÕES
Durante o mês de julho de 2017 decorreram no Museu Nacional de Arte Antiga as “Oficinas
de Verão”, uma oferta do Serviço de Educação que integrou vários programas. Cada “oficina”
decorreu ao longo de dois dias. As inscrições eram efetuadas no Serviço de Educação,
limitadas a dez participantes por “oficina” e com idades compreendidas entre os 7 e os 12
anos.
O programa “A máscara – Uma tentação para vencer todos os medos” decorreu em dois dias
com quatro sessões, duas no período da manhã e duas no período da tarde, conforme atesta
160
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
o quadro 1. Cada sessão teve um horário que permitia um intervalo a meio, o que
possibilitou aos participantes brincar nos jardins do Museu. Estes momentos lúdicos
possibilitaram a existência de uma aprendizagem socialmente construída.
Atividades
Dia 1 Dia 2
projetadas
Participaram neste programa quatro crianças: uma com 6 anos, duas com 8 anos e uma com
9 anos.
Na primeira sessão, coordenados com o serviço de educação do Museu, fomos com o grupo
de participantes até à sala onde o tríptico está em exposição. Os participantes sentaram-se
em frente da pintura e iniciou-se um diálogo inaugurado com a pergunta: “– O que veem
aqui?”. Esta questão proporcionou uma conversa sobre o que é um tríptico, como era a vida
na época em que foi realizada a pintura e até sobre a boa técnica do pintor, mas, acima de
tudo, abriu-se a janela para visitar o mundo fantástico de Bosch, repleto de figuras
fantásticas e demoníacas que perseguiam Santo Antão. Tudo acontecia na terra, no ar e na
água, numa superfície pictórica repleta de tons vivos de vermelhos e verdes intercalados com
os tons azuis e acastanhados. Os participantes falavam do que viam e refletiam em voz alta
sobre os acontecimentos do tríptico, faziam observações e associações com a sua vida
pessoal e com o presente, encontravam momentos cómicos, assustadores e outros que os
tranquilizavam. Durante esta conversa fomos atrás do tríptico para ver o que existia nas suas
portas. Surgiram as seguintes exclamações: “Ah! Estou a ver Jesus a ir para a cruz!”; “Esta
parte está toda a preto e branco!”; ou “Olha que estão a fazer-lhe mal, isto é muito
assustador!”.
161
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
Durante o percurso descrito, foi sempre promovido o diálogo entre todos, encaminhando
para o debate saudável de ideias e observações. Segundo Rika Burnham e Elliot Kai-Kee
(2011):
162
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
163
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
164
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
Com a sala escura, contaram a história para a pequena plateia, a projeção fez o cenário
ocupar todo o espaço e o uso performativo da máscara transformaram-na numa
camuflagem com a qual cada um ganhava poderes e de forma espontânea o medo era
erradicado.
165
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
CONCLUSÃO
Esta oficina permitiu criar afinidades que estão muito para além da história da arte e que se
relacionam com as referências de narrativas individuais, filmes ou histórias. A máscara
enquanto objeto de pantomímica, que pode proteger e esconder, possibilitou uma partilha
de experiências numa atividade com resultados estéticos muito satisfatórios para os
participantes, e que se articulou entre o jogar, o brincar e a aprendizagem.
Ao longo das quatro sessões, os participantes produziram objetos de valor simbólico que
permitiram habitar o maravilhoso, numa metodologia que facilitou encontrar outra forma de
diálogo estético. Uma partilha de experiências que abarcam as linguagens das expressões,
plástica e dramática (Eisner, 2004).
166
A MÁSCARA – UMA TENTAÇÃO PARA VENCER TODOS OS MEDOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Almeida, B. (1980). A Educação estético-visual no ensino escolar. Lisboa: Livros Horizonte.
Santos, J. (2009). É através da via emocional que a criança aprende o mundo exterior. Lisboa:
Assírio & Alvim.
Vygotsky, L. S. (2012). Imaginação e criatividade na infância. (J. P. Fróis, Trad.). Lisboa: Dinalivro.
(Trabalho original em Russo publicado em 1930).
167
O CORPO PRESENTE
OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA
DO DESENHO
Resumo
O presente artigo debruça-se sobre um projeto de investigação-ação
desenvolvido em contexto formal, cujo âmbito se situa no diálogo entre os
contextos escolar e museológico. Apresentar-se-á uma proposta de reflexão, em
torno do conceito de identidade, que acompanha o referido projeto de uma
turma de 11º ano do Curso Científico-Humanístico de Artes Visuais em visita ao
Museu Coleção Berardo; esse será um processo que acontecerá ao longo do
desenvolvimento de três Unidades de Trabalho conseguintes à visita, realizadas
em espaço escolar. A interpretação do tema sobre identidade individual,
identidade coletiva e o espaço vivencial culminou numa intervenção site specifc
onde a escola se transformou num museu transparente, imprevisível e mutável.
Ao longo do projeto, foram desenvolvidas estratégias para pensar a prática do
desenho na disciplina de Desenho A, valorizando o cruzamento com as práticas
artísticas contemporâneas, sobretudo a fotografia, a instalação e a performance.
Palavras-chave: cultura visual, espaço museológico, desenho, identidade, site
specific
Abstract
The present paper focuses on an action-research methodology project,
developed in a formal context, whose demesne is placed in the dialog between
scholar and museological contexts. A proposal for reflection will be presented,
encompassing the concept of identity that follows the aforesaid project of an 11 th
grade class from the Scientific-Humanistic course in Visual Arts, while visiting the
Coleção Berardo Museum; this will be a process to take place along the
development of three Work Units consequent to the visit, held in school ground.
The interpretation of the theme concerning individual and collective identities
and the existential space culminated in a site specific intervention, where the
school turned into a transparent museum, unforeseeable and changeable.
Throughout the project, strategies were developed to reflect the practice of
drawing in the discipline of Desenho A, valuing the crossing with contemporary
artistic practices, mainly photography, installation and performance.
Keywords: visual culture, museological space, drawing, identity, site specific
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
169
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
Freedman considera que as condições atuais da cultura visual nos obrigam a uma reflexão
sobre o potencial educativo das imagens no seio da democracia contemporânea. Posto isto, é
inevitável o confronto entre o seu poder expressivo e criador e o “espaço comum” no qual
confluem e interagem números incalculáveis de produções visuais, tendo em conta que as
liberdades, individual e coletiva, ganharam outros contornos, dada a influência da imagem
no quotidiano cultural, social e político. Esta democratização, segundo o autor, gera
confrontos entre os limites do espaço pessoal e coletivo: “The new conditions of visual culture
illustrate that personal freedoms no longer only involve matters of free speech. They concern
freedom of information in a range of visual art forms integral to the creation of individual and
group knowledge” (Freedman, 2003, p. 3).
Estar Presente
A visível lacuna no que toca ao domínio de referências visuais e artísticas, por parte de jovens
estudantes de Artes Visuais, aliada a uma desvalorização sobre a relação entre o processo
criativo, a cultura visual e a identidade, definiram as linhas de intervenção de um projeto que
cruza o museu de arte contemporânea e o contexto escolar, como meio de reflexão sobre
identidade.
170
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
museu foi estruturada em duas partes: uma direcionada para a temática do corpo
(identidade individual) e outra direcionada para uma compreensão sobre o outro (identidade
coletiva). Para a primeira parte foram selecionadas obras de três artistas pertencentes ao
núcleo de arte contemporânea (1960-2010): Larry Bell, Ana Mendieta e Helena Almeida, que
congregam explorações formais e conceptuais sobre o corpo e as suas possibilidades de
reflexão. A segunda-parte focou-se na exposição “Fernando Lemos: para um retrato coletivo
em Portugal, no fim dos anos 40”, que expande uma visão do corpo individual para o
coletivo.
O projeto foi desenhado e estruturado na sua possibilidade de contribuir para uma reflexão
sobre os diálogos entre contextos de educação formal e não-formal. Todavia, o contexto
predominante foi o espaço escolar. Interessou efetivamente que, depois da visita ao museu
realizada no início do projeto, existissem contributos das práticas de educação não-formal
que transitassem para o contexto formal. Por motivos de racionalização das visitas de estudo
ao longo do ano letivo, a turma só pôde dirigir-se uma vez ao museu. Tal contingência foi
preponderante para a necessidade de continuar a refletir sobre o espaço museológico em
contexto escolar. Nesse sentido, a planificação das atividades para cada unidade de trabalho
correspondeu à preocupação de estabelecer pontos de contacto entre os conteúdos
curriculares da disciplina de Desenho A com as referências visuais e concetuais abordadas na
visita e com o espaço escolar. Ao longos das três unidades de trabalho, recorreu-se a
diferentes estratégias pedagógicas que se inscrevem em técnicas inspiradas nas práticas
artísticas contemporâneas (por exemplo, focalização-concentração, improvisação, pesquisa
de materiais, experimentação, brainstorming, carácter site specific) e que permitiram o
surgimento de uma dinâmica de aula mais próxima da prática de atelier e do estúdio
enquanto espaço e terreno livre de criação, partilha e crítica. Estes diálogos interdisciplinares
entre as artes visuais e as artes performativas, são de extrema importância na valorização e
reflexão sobre o papel e presença do corpo do aluno no ato de criar. Como salienta Aldara
Bizarro (2017), ex-bailarina e coreógrafa:
171
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
172
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
Cada U.T. articulou diferentes dinâmicas em sala de aula e no espaço escolar, sendo que a
primeira, dada a proximidade temporal, se vinculou mais à reflexão sobre as referências
abordadas na visita. A segunda U.T. concentrou-se na exploração concetual e visual sobre o
coletivo, encerrando um espaço íntimo de partilha dentro do próprio atelier e a última U.T.
experimentou o caráter site specific de projetos de desenho instalado em diversos espaços
escolares. A última U. T. foi encarada como exercício-síntese de um processo de reflexão
sobre o conceito identidade e que questiona o espaço museológico fora das quatro paredes
do museu.
173
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
O corpo
Na aula seguinte à visita ao museu foram discutidas algumas ideias das obras e respetivos
artistas, colocando estas referências lado-a-lado com um excerto da obra literária de Luigi
Pirandello, “Um, Ninguém e Cem Mil”, que possibilitou um conjunto de reflexões sobre o
corpo e sua perceção.
174
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
Figura 1: Trabalho da aluna Bárbara para o exercício sobre O Corpo. Fonte: Própria
A análise de produções plásticas demonstrou que, para a maioria dos alunos da turma, foi
difícil criar uma narrativa visual sobre o corpo e a identidade individual sem recorrer a
estratégias referenciais figurativas. Revelou-se, portanto, mais frequente o recurso à
representação gráfica ou plástica do corpo, ou o apelo à participação do corpo através da
utilização do espelho, do que o recurso a estratégias formais não-figurativas.
O outro
Na segunda U.T., direcionada para a compreensão sobre a identidade coletiva e sobre o
Outro, houve a necessidade de desenvolver dois exercícios de carácter introdutório para a
reflexão sobre o Eu no coletivo, recuperando a obra de Fernando Lemos analisada na visita
ao museu. Nesse sentido, na primeira aula desta segunda U.T., foi pedido aos alunos que,
recorrendo à câmara fotográfica dos telemóveis, fotografassem o primeiro trabalho a fim de
criar uma série composta por seis imagens, a preto e branco. O intuito seria interpretar o
objeto fotografado com vista à sua desconstrução, enquanto estratégia compositiva e
interpretativa, recorrendo às potencialidades técnicas e expressivas da fotografia. Desta
forma, promoveu-se a criação de imagens novas, a partir de um objeto estético intimamente
conhecido, na possibilidade de criar diálogos entre um coletivo fotográfico. As opções
tomadas na conceção deste curto exercício prenderam-se essencialmente com a recuperação
de questões abordadas na obra de Fernando Lemos no espaço da sala de aula. Ao observar-
se, abaixo, a série de seis imagens apresentadas pelo aluno Marcelo (Figura 2),
compreendemos a capacidade discursiva gerada pela experimentação de questões formais e
a sua complementaridade - ideia fundamental no desenvolvimento desta U.T.
175
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
A par da relação com a obra de Fernando Lemos, tornou-se relevante pensar sobre o coletivo
num sentido de proximidade com a realidade dos alunos. A relação com o Outro pode ser
convocada através de inúmeras possibilidades. No entanto, refletir sobre a comunidade e o
contexto teria, necessariamente, que incluir um forte sentido de pertença. O segundo
exercício, dinamizado na terceira aula, foi pensado a fim de potenciar uma experiência física
concreta, impulsionadora de reações e conceções que valorizassem a presença e a relação
com o corpo do Outro enquanto relação livre, poética e transformadora.
Deste modo, os alunos realizaram um exercício de cariz performativo (Figura 3) para o qual
lhes foi sugerido percorrer em silêncio a área do recreio escolar, andando para trás. Para tal,
foi necessário que o nível de concentração e foco aumentasse, criando uma espécie de bolha,
na qual a respiração e a energia estavam congregadas em recolher informação do espaço
vazio que ficava na passagem dos corpos andando para trás. Ao invés do que acontece
quando se anda para a frente, deslocar-nos em marcha no sentido contrário permite que a
consciência do corpo aumente consideravelmente. Dada a falta de hábito na concretização
deste movimento, o corpo é obrigado a proteger-se (ativando o sentido de visão periférica),
concentrando-se e atentando na relação com os restantes - integrando assim uma massa
humana que respira em uníssono.
176
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
O espaço vivencial
Na primeira aula, da mesma forma que no início da segunda U.T. potenciaram-se
experiências concretas sobre a relação com o Outro, foi importante, no início da terceira U.T.,
dinamizar uma sessão focada em convocar, tornando presentes, reflexões em torno da
identidade individual e da identidade coletiva, desenvolvidas anteriormente. Assim, quando
os alunos chegaram à sala para dar início à aula, o espaço tinha sido organizado de outra
forma, criando uma área livre, na qual se colocou, no chão, um lençol. Sobre o lençol foi
colocada uma caixa de cartão com alguns materiais, sobretudo folhas, materiais riscadores,
envelopes e fotografias. Os alunos sentaram-se ou deitaram-se criando um círculo e deu-se
início a uma sequência de três exercícios (Figura 4).
177
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
No primeiro, o professor orientador do projeto começava uma frase em que cada aluno tinha
que repetir o início e concluir conforme entendesse, passando em círculo por todos os
elementos, até regressar ao professor e ser dado um novo início de frase. Utilizaram-se,
assim, os seguintes trechos: Sou igual à minha mãe em...; O último som que ouço antes de
adormecer é...; Se o meu corpo fosse de outro material seria de...; e por fim: Se pudesse
visitaria o atelier de... . Depois da última frase foi entregue a cada aluno um pedaço de papel
com todos os inícios de frase escritos, no qual cada um pôde escrever as respostas que tinha
dado. O objetivo deste exercício prendeu-se essencialmente com a possibilidade de convocar
e refletir sobre construções identitárias próprias, registando-as.
Para o segundo exercício, foi entregue a cada aluno uma folha branca A4 e um material
riscador e pediu-se que focassem a sua atenção no colega posicionado exatamente em
frente, na roda. Assim, colocando o lápis/esferográfica no papel, não poderiam levantá-lo
durante o registo gráfico e o olhar deveria manter-se focado no referente, e não no papel.
Este exercício, denominado de desenho cego exige um nível elevado de concentração no ato
de compreender o que se observa, neste caso, o corpo do Outro, para que o registo seja o
mais próximo do referente.
No terceiro exercício, pediu-se aos alunos que encontrassem uma posição confortável para o
corpo, que fechassem os olhos e que se concentrassem nos cinco sentidos. Neste momento,
circulou por todos os elementos um livro antigo para que sentissem o seu cheiro e para que
pensassem num lugar da memória convocado através do estímulo. Depois de todos o terem
sentido, já de olhos abertos, distribuiu-se papel de carta e um envelope por cada aluno,
178
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
tendo sido pedido que escrevessem uma carta a esse lugar do passado, despoletado pelo
estímulo olfativo.
Deste modo, os alunos terminaram a sessão com três elementos resultantes dos três
exercícios, permitindo i) convocar aspetos integrantes de construções identitárias, ii) olhar
pormenorizadamente sobre o outro através do desenho-cego e iii) escrever uma carta a um
lugar da memória, guardando-os dentro do envelope. Assim, no final da sessão foi oferecida
a cada aluno uma fotografia de um espaço que colocariam também dentro do envelope. A
imagem dizia respeito a um espaço da escola previamente escolhido e atribuído a cada
aluno. Sem dar mais explicações sobre o espaço, pediu-se que na aula seguinte trouxessem o
envelope com os seus elementos, pois esses estariam na base do enunciado do exercício da
terceira U.T.
Um dos aspetos positivos deste último trabalho prendeu-se essencialmente com muito do
que é exterior à criação (confortável até então) da obra de arte, em contexto escolar,
impulsionando que muitos alunos saíssem de uma conhecida zona de conforto. Sabiam, à
partida, que as propostas iriam dialogar de forma mais assertiva com o lugar e com quem as
contemplasse, o que tornava mais difícil o seu controlo absoluto. Nesse sentido, quem
integrou os contratempos provocados por alterações climatéricas e dos materiais,
intervenções alheias, críticas constantes, enquanto elementos de um jogo discursivo,
assumiu a necessidade de a arte contemporânea falar sobre o efémero.
179
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
O Que Fica
À Educação Artística colocam-se hoje grandes questões e desafios e aos seus educadores,
professores, artistas e mediadores, a tarefa de repensarem metodologias e estratégias no
sentido de contradizer a flagrante instrumentalização do ensino e dos seus agentes.
180
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
Estamos, portanto, em crer que o quarto e último ponto evidenciado, respeita à possibilidade
de experimentar o espaço museológico em contexto escolar, devolvendo à comunidade
educativa um processo realizado por uma parte dessa comunidade – a turma do 11º ano de
Artes Visuais – um processo de ensino-aprendizagem que decorreu desde a visita ao museu,
passando pelo trabalho em atelier e que, no fim, foi pulverizado e expandido a quem
efetivamente, pouco ou nada conhece de um museu de arte moderna e contemporânea. O
projeto permitiu que esta exploração fosse um desafio para quem vivenciou os quatro meses
de trabalho, bem como para quem, exterior ao processo, foi interpelado pela exposição Os
Artistas Morrem de Pé e por um conjunto de objetos estéticos profundamente vinculados à
realidade do espaço. O questionamento acerca do caráter site specific revelou-se
surpreendente para toda a comunidade educativa, no sentido em que esta estratégia pode
ser desenvolvida em projetos educativos futuros com o objetivo de explorar a escola e
transformar o seu potencial em matéria sensível e tangível. Conclui-se, portanto, que este
elemento pode ser mais explorado em contexto escolar, pelo facto de ser uma característica
181
O CORPO PRESENTE OU A PROCURA DE IDENTIDADE NA PRÁTICA DO DESENHO
Referências Bibliográficas
Bizarro, A. (2017). Da infância em movimento para a adolescência em pausa. In M. Assis, E
Gomes, J. Pereira & A. Pires (Eds.) Ensaios entre Arte e Educação (pp.42-43). Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
Hernández, F. (2000). Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de Trabalho. São Paulo:
Editora Arte Médicas.
182
Práticas Artísticas na
comunidade
(Património/Museus
e em outros
contextos de
educação informal)
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE
LIBERDADE
Resumo
Abstract
The article has the aim of presenting and disseminating of the research that led
to the design of an Artistic Educational Program dedicated particularly young
people in conflict with the law and deprived of liberty. The research took place at
the Museum Berardo Colletion (Lisbon), within the education service, and with
the educational discipline of this museum that unfolded the activity (test) held in
socio-educational institution located in Brasilia, Brazil.
O Projeto
No ano de 2012 teve início o projeto “Um Sopro de Liberdade – Programa Artístico Educativo
Dedicado aos Jovens em Medida Socioeducativa de Internamento” -, no âmbito do trabalho
final do curso de mestrado em Museologia, pela Universidade Nova de Lisboa. Neste projeto,
a proposta que fora traçada consistiu no entendimento de que o museu é um local de
confinamento, onde objetos estão guardados, classificados e inventariados, logo, a
identidade, a história e a genealogia estão asseguradas. No interior destes ambientes,
encontram-se as atitudes que determinam comportamentos. A educação é uma delas.
Todavia, na sociedade contemporânea, as disciplinas já não permanecem, necessariamente,
restritas a quatro paredes do ambiente. Ao contrário, estas são maleáveis, mutáveis e criam
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
A conceção do Programa Artístico Educativo que aqui apresentamos foi elaborada como
forma de auxílio no processo de ressocialização e reinserção social de jovens em conflito com
a Lei e privados de liberdade. Para a promoção do projeto viu-se necessário a realização de
um estágio de investigação e pesquisa no Museu Coleção Berardo (Lisboa, Portugal), no
âmbito do serviço educativo, entre os anos de 2012 e 2013, bem como a investigação in situ
num centro socioeducativo de Brasília, Brasil, no ano de 2012 e 2013.
185
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
O Museu Coleção Berardo deu-se pela parceria, em 2006, entre o público (Governo do Estado
de Portugal) e o privado (colecionador José Berardo), que está estabelecida por protocolo 1”
(Centro Cultural de Belém – Nota Técnica, 1991) acordando o contrato de comodato da
Coleção Berardo, por dez anos. Ao Estado português ficou estipulada a incumbência de
ofertar condições adequadas para albergar a Coleção Berardo, enquanto que ao
comendador José Berardo esteve cometido disponibilizar a sua coleção de Arte Moderna e
Contemporânea. Portanto, desde 2007, o Estado recebe a Coleção Berardo no antigo módulo
3 do Centro Cultural de Belém (CCB) que, atualmente, é denominado Museu Coleção Berardo.
A coleção privada de José Berardo possui vultoso valor patrimonial, pois apresenta obras de
grandes nomes da história da arte, do século XX ao século XXI. O colecionador, ao firmar tal
contrato, assegura que a coleção deve ser apresentada, logo, democratizada a fim de
difundir cultura e provocando “encontros entre o grande público e a arte” (Chougnet,
Dempsey, Corne & Almeida, 2007, p. 9) em coerência com esta conceção, até meados da
metade do ano de 2017, a bilheteria 2 era cobrada somente quando decorriam exposições
temporárias de custos elevados.
1
Decreto-Lei nº 164/2006.
2
Contrariando os princípios da tradição portuguesa, que é a cobrança de taxa de bilheteria como
forma de angariação de verba, segundo Filipe Mascarenhas Serra (2007), em Práticas de Gestão nos
Museus Portugueses, p. 137.
186
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
Coleção Berardo
Ao percorrer a trajetória da Coleção Berardo são verificados nomes e peças ícones da arte
universal, num arco temporal que se estende desde o início do século XX à atualidade.
Ressalva-se que a coleção “não constitui uma lista enciclopédia, mas uma séria de conjuntos
coerentes” (Metternich, 2007, p. 4) que nos permite compreender a história da arte e as
transformações do humano durante o decurso dessa específica linha temporal.
O marco inicial da coleção é a obra cubista Tête de Femme, 1909, do pintor Pablo Picasso; o
Futurismo representa-se com Luigi Colombo Fillia, em Paesaggio Scenografico – Idolo
Meccanico, 1926; o Abstracionismo com o artista português Amadeo de Souza-Cardoso, em
Sem Título (Ponte), 1914; o Suprematismo pode ser identificado em Malevich, Suprematism: 34
Drawings, 1920; o Construtivismo é manipulado por El Lissitzky, em Kestnermappe Proun, Rob.
Levnis and Chapman GmbH Hannover; o abstracionismo holandês, De Stijl (que significa “O
Estilo”) ou Neoplasciticismo, representado por Piet Mondrian, em Tableau with Yellow, Black,
Blue and Grey, 1923.
É possível conferir o movimento de pintura Hard Edge (margem dura ou borda rígida) com o
trabalho de Josef Albers, em Study for Homage to the Square: Blond Autumn, 1964; a tendência
Pop Art representada por Andy Warhol, em Campbell’s Soup, 1965; a obra Bellatrix II, 1957, de
Vitor Vasarely representa a Op Art; o Hiper-Realismo pode ser conferido em Arden Anderson
and Norma Murphy, 1972, de John De Andrea. O Minimalismo é apresentado, por exemplo,
pelo artista Sol LeWitt, em Eight Sided Pyramid, 1992. O grupo Fluxus tem como um dos seus
representantes Joseph Beyus, em Plight Element, 1985; a Video Art conta com Bill Viola, em IL
Vapore, 1975; a Land Art expressada por Richard Long, em Sandstone Line, 1981; a Body Art
representada pela artista Ana Mendieta, em Facial Cosmetic Variation, Ed. 4/10, 1972.
Performance é linguagem da artista Jemina Stehli, em Photo Performance nº 31, with Larry Bell
Sculpture & Artist Lewis Amar, 2005. A fotografia é exemplificada por Cidy Sherman, em
Untitled (Vivienne Westwood), 1993. Como escultura da atualidade o exemplo da obra Eyes
Turned Inward, 1993, de Anish Kappor. A pintura contemporânea tem como representante
Adriana Varejão, em Tilework with Horizontal Incision, 1999. Só para mencionar alguns
exemplos maiores.
187
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
O setor educativo trabalha com o modelo de gestão holística, primando pela desenvoltura da
mobilidade, flexibilidade, desdobramento, inovação e reciclagem (Gallo, 2008). Os
educadores apropriam-se da comunicação, em diversos níveis, para dinamizar as atividades
temáticas, fundamentadas em estratégias ludo-pedagógicas e sensibilizações sinestésicas.
Os educadores visionam a mobilização e a apreensão do conteúdo por parte do participante,
que terá ferramentas para olhar, observar e criticar- se, a si próprio e ao mundo que o rodeia.
Este tipo de estratégia tem o referencial na afetividade da obra e por transferência será
percebida pelo participante da visita a partir do processo de fruição. Ou seja, o participante
compreenderá o processo criativo do artista e, então, estará convidado a devanear sobre as
intenções que levaram à produção artística.
Nas visitas cujas estratégias são jogos viabilizam-se incitações quanto à criatividade através
da emotividade, pois o fazer artístico e os desafios são promotores de expressão emotiva. E
sendo a estratégia do jogo o suporte de mediação e fruição de obras de arte, então, é
possível explanar uma infinidade de conteúdos. Por isso, é fundamental que a intenção seja
contextualizada com os objetivos da visita, mas que estes estejam enformados de
“entendimento, conhecimento e envolvimento, principalmente crítico, no nível social e até
mesmo político; do contexto histórico e de informação sobre os artistas observados e de seus
recursos preferidos para realização de suas obras” (Rosa & Scaléa 2006, p. 84).
188
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
As visitas que seguem a estratégia de reflexão crítica têm como fundamento proposições
relativas à crítica e à inteligibilidade. Exigem pesquisa e análise da obra de arte em diversas
perspetivas para ponderar conclusões relativas à compreensão do todo. Por isso, o visitante
ao observar o objeto artístico inicia o processo de leitura visual, que possibilita a perceção
dos tantos códigos e da correlação dos elementos compositivos que se justapõem para a
definição de significados.
Ao observar, ver, ler e refletir sobre a peça de arte, o visitante tem artifícios que o conduz à
tomada de consciência sobre aspetos do quotidiano, da realidade, bem como a factos de
caráter histórico, condições sociais, económicas e políticas, pois “o olhar crítico é uma das
maneiras que favorecem a reelaboração e a reconstrução cognitiva” (Rosa & Scaléa, 2006, p.
86).
189
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
A Abordagem Triangular é traduzida “através da magia do fazer, da leitura deste fazer e dos
fazeres de artistas populares e eruditos, e da contextualização destes artistas no seu tempo e
no seu espaço.” (Barbosa, 1991, p. 34).
A atividade que passaremos a relatar foi desenvolvida no módulo 1 da UIPP, entre novembro
e dezembro de 2012, janeiro de 2013, março e abril de 2013. Como pré-condição da ação
esteve estabelecida a participação coletiva dos jovens privados de liberdade 3, detidos
naquele módulo. A atividade, por sua vez, possui caráter continuado, com disciplina e
conteúdos definidos.
Figura 1: Jovens ao fundo do pátio, módulo 1, 2012. Ex-Unidade de Internação do Plano Piloto.
Fotografia de Adriana Prado.
3
Os jovens sentenciados na medida socioeducativa de internação - ou o mesmo que privação de
liberdade - são aqueles que cometeram reincidência de infrações ou atos infratores graves. Visto
que, nenhum jovem é privado de liberdade arbitrariamente e sem o parecer judicial (Regras de
Beijing, Capítulo 17).
190
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
No passo seguinte, foi entregue em cada quarto (aposento) um vídeo referente às grandes
navegações portuguesas, um vídeo tutorial de origami tsuru 4 e um kit para cada jovem.
Durante a entrega dos kits individuais, a investigadora realizou com os jovens mediação
fundamentada na reflexão crítica. Dialogou sobre as grandes navegações portuguesas,
indicou o objetivo do fazer artístico consubstanciando na criação de uma obra de arte
(móbile) para ser pendurada no pátio do módulo 1. A temática da obra foi o bairro histórico
de Lisboa, Belém.
Quando se falou a respeito da criação do móbile, o público-alvo interrogou sobre como seria
possível fazer arte dentro do módulo e o que era essa arte. A investigadora respondeu-lhes
que é possível fazer arte em qualquer lugar, basta querer expressar-se. Disse aos jovens que
a arte que eles estavam a criar não era certa nem errada, que não existem fórmulas nem
formas exatas, porque aquela é Arte Contemporânea. Neste tipo de arte é possível utilizar
diversos materiais, assim como as dobras de origamis tsuru ou até aqueles objetos que
vemos e utilizamos no quotidiano. Nesta ocasião, para traduzir a expressão, utiliza-se o
móbile como suporte e as grandes navegações como poética.
No meio do diálogo com os jovens, a investigadora também os ensinou e fez origami tsuru. A
ação junto do público-alvo ocorreu quando estavam trancados nos quartos, mas a
investigadora tinha autorização para permanecer no pátio do módulo e assim ter contacto
com eles, como durante o banho de sol dos jovens, em que a investigadora permanecia atrás
das grades, fora do pátio. Também se realizaram atividades externas ao módulo, no salão de
múltiplas atividades, em salas destinadas pela gestão pedagógica.
A investigadora mediava essas proposições explicando assuntos sobre Arte Efémera. Dizia ao
público-alvo que este suporte de arte era diferente, por exemplo, da pintura tradicional, pois
na Arte Efémera pensa-se o objeto com sentimento de liberdade, tanto no fazer como no
deixar que se desfaça. Aqui a relação deles (jovens criadores e participadores) junto do
objeto artístico seria praticamente unívoca, porque todo o evento exige um processo de
criação e um momento do acontecimento, por mais curto que seja.
4
Ave sagrada do Japão. Segundo a lenda, a ave pode viver até mil anos e tem o poder de conceder
desejos. A cada tsuru feito faz-se um desejo, depois de fazer mil tsurus, os pedidos podem ser
realizados.
191
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
Em sete dias os jovens infratores deveriam entregar pelo menos 4000 tsurus prontos. Em
menos tempo do que o esperado, em quatro dias, cerca de 3000 tsurus estavam prontos.
Outros 1000 tsurus foram entregues três dias depois.
Para formar a caravela tridimensional a partir do molde desenhado, era preciso coser os
origamis tsuru. Pensando no material mais apropriado, a investigadora conversou com o
engenheiro da UIPP que, pensando na segurança, aconselhou coser com fios de algodão.
Escolheu-se o fio de algodão de cor branca. Por outro lado, no decurso da atividade, diversos
obstáculos se interpuseram quanto ao acesso ao público-alvo. Na metade da segunda
semana, a dificuldade de trabalhar com os jovens atingiu o limite, no que compete ao
sistema de segurança da instituição, apesar de a investigadora possuir autorização oficial da
direção da Unidade de Internação do Plano Piloto para realização do trabalho.
Consequentemente, a investigadora, apoiada na concordância do diretor da Unidade de
Internação do Plano Piloto julgou que na circunstância o melhor seria abrandar a atividade,
por alguns dias.
O tempo esvaía e a obra deveria ser montada, o mais tardar, no dia 20 de dezembro 2012. A
inauguração teria lugar no dia 21 de dezembro de 2012, enquanto a obra de caráter efémero
permanecesse exposta, ou seja, no período de um dia.
192
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
plástico transparente (0,10 m x 0,20 m x 0,00006 m) com água contendo pigmento líquido de
cor azul. Foram cheias 400 unidades.
Primeiro, seis jovens foram libertados para auxiliar e receber orientação da montagem. Na
sequência, o banho de sol do lado B teve início. Enquanto os jovens estavam sentados ao
fundo do pátio, como é procedimento diário, a investigadora orientou sobre a montagem e
pôde sublinhar aspetos da efemeridade na Arte Contemporânea e na Arte Cinética. Naquele
dia, a permanência dos jovens dentro do pátio do módulo 1, para participar da atividade,
estava ao critério deles, pois havia a opção de jogar futebol de campo. Os jovens
organizaram-se e decidiram adotar o sistema de revezamento que, por vezes, é utilizado pelo
chefe do módulo 1.
Uma parte do público-alvo foi jogar futebol e outra parte participou na montagem e, algum
tempo depois, trocavam de atividade. A participação dos jovens em conflito com a Lei na
montagem do móbile foi encantadora, como já se explicará adiante.
Era uma festa, um festival de arte, cultura e lazer... Momento de construção e descontração,
emoção e subjetividade... Uma explosão de humanização ocorreu na tarde daquele dia... E o
vapor que pairava no ar não era somente de brincarem de "guerrinhas". Era um vapor
diferenciado. Havia energia envolvida. Sentia-se vitalidade, alegria e harmonia. Não houve
lugar para nenhuma infração durante todo o processo. O respeito manteve-se presente do
início ao fim. Nem sequer uma gota de água respingou na investigadora, durante a
montagem.
Quanto aos jovens do lado A, que estavam trancados nos quartos, observavam pelas frestas
e janela do aposento. Pediam para participar da montagem, porém tal não era possível, pois
os lados A e B não se podem misturar.
193
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
Ao final da tarde, soou a campainha de comando para que os jovens se encaminhassem para
o fundo do pátio. Eles respeitaram. E com autorização do chefe do módulo 1, apenas um
jovem se manteve no pátio para auxiliar na finalização da montagem. Enquanto o sol se
punha, a investigadora foi de quarto em quarto conversar sobre a obra “Caravela de Sonhos”
com os jovens, que já estavam trancados.
Nesta fase, ocorreu a leitura do objeto artístico, traduzida por jovens sentenciados à privação
de liberdade. Alguns deles perguntavam o que era aquilo e qual o significado. Muitas vezes a
investigadora pedia silêncio para que olhassem a obra, explicando que o silêncio auxilia a
leitura. Quando os jovens entendiam a caravela, era como uma descoberta. Assim eles
próprios reconheciam que era uma caravela de desejos e sonhos, afinal, o desenho no
móbile foi feito com tsurus. Os jovens disseram que as cores da obra eram “iguais ao colorido
dos sonhos”, ou seja, que os sonhos são coloridos, que a vida também é colorida.
194
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
representava o mar. E um deles disse: “Só pode ser o mar, o oceano!” Entre outras leituras
produzidas.
O encerramento da atividade selou-se com um abraço que a investigadora deu ao jovem que
a auxiliou a finalizar a montagem, que foi quem a apoiou e a acompanhou, desde o primeiro
dia que ela esteve no módulo 1 até o último saco de água amarrado ao fio de algodão, às
19h, de 20 de dezembro de 2012.
Ao mesmo tempo que recebiam o lanche, saíam da fila e sentavam-se no extenso chão do
pátio. O facto é que em qualquer lado que os jovens se sentassem, direcionados para o
interior daquela área, deparavam-se com a “Caravela de Sonhos”. Comeram, conversaram e,
simultaneamente, observaram o móbile... Ingerindo a obra de arte e digerindo-a.
No início da noite, depois do jantar, a investigadora pôde entrar no pátio para visitar os
jovens nos quartos. Entregou um saco-surpresa, contendo doces diversos, um panetone
(bolo tradicional da época natalícia, de origem italiana, muito popular no Brasil) e um gelado.
No percurso da visita, eles agradeciam, elogiavam, demonstravam carinho e afeição.
A temática do jogo da memória pode ser estruturada conforme as diversas faixas etárias.
Aqui adequamos o jogo para expor assuntos sobre as grandes navegações portuguesas:
Torre de Belém; Museu Coleção Berardo; Arte Cinética; Alexander Calder; Arte Efémera.
195
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
Ainda no cartão-postal, a investigadora utilizou dois tsurus como selo, para que um tsuru
ficasse com o destinatário do cartão e o outro fosse anexado à carta endereçada à
investigadora. Assim, cada parte fica com um ícone de recordação do feito: o tsuru. Via
correio, a Arte Postal alcançou a UIPP e adentrou quarto a quarto do módulo 1.
“Eu achei uma coisa muito diferenciado porque é uma coisa que a pessoa nunca vai acredita
que teve alguma vez em uma cadeia. eu achei muito legal. gostei muito. que tenha mais
vezes aqui no CAJE. O jogo da memória eu gostei porque uma coisa boa pra memória do
cara.
Gostaria muito que voltasse outras vezes. Muito obrigada pela as coisas que você entregou
pra nós. Que Deus lhe pague. Fique com Deus.”
5
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nenhum material que identifique o
indivíduo tem autorização para ser publicado. Por isso, utilizamos a transcrição e não a cópia do
material.
196
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
“Adriana eu vou iscreve esa carta so u que sei ese actividade que tu fais e bom dimas e
importante pra nois. Eu gostei desa actividade di papel. Eu acho bonito dimais. Ese luga
aonde você tava e muito bonito dimais. Continua asin qui deus vai ti ajuda te aonde você que
xega. Eu gosto muito du teu serviço. E muito bom. Felis páscoa.”
“O Dona Adriana muito obrigada pelo cartão postal. Aprendi muito com os teus tisuru. Todo
mundo la em casa gosto. Graças a deus to de quinzenal, espéro que eu póssa te vê ainda.
você é muito gente boa, gostei, do teu carisma, com nois aqui sem nenhum pré concêito, do
lanche também, e do barco que você fez. Muito obrigada pela tua atenção. Agradêcido.
Abraço, espéro que você tenha concluído teu projeto que nois fizemos aqui, por isso
correspondo tua carta. muito obrigado!”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este projeto teve a intenção de comprovar a viabilidade de o museu extravasar as suas
barreiras físicas e geográficas, podendo assim descolocar-se e atuar em qualquer parte do
mundo tal como no nosso caso num centro socioeducativo. Perante tal constatação, o museu
entra em consonância com os princípios enunciados, durante as décadas de 70 e 80 do
século XX, na Carta de Santiago do Chile (1972) (Cadernos de Museologia, 1999) e na
Declaração de Quebec (1984). Ambas visavam a democratização das coleções e apostavam na
difusão da educação, acreditando no trabalho dos museus junto à sociedade e ao serviço da
comunidade. Na Declaração de Quebec – Princípios de Base de uma Nova Museologia
(Cadernos de Museologia, 1999), defende-se que:
Por outra parte, o programa artístico educativo apresentado utiliza as artes e o património
como ferramentas para potencializar a capacidade criativa e expressiva do indivíduo; as
atividades propostas estimulam a valorização da perceção, bem como a autonomia, a
liberdade e a formação humanista do sujeito. Em suma, os conteúdos trabalhados
197
MUSEU E CÁRCERE POR UM SOPRO DE LIBERDADE
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Barbosa, A. M. (1991). A imagem no ensino da arte: nos anos oitenta e novos tempos. São Paulo:
Perspectiva. Porto Alegre: Fundação IOCHPE.
Chougnet, J-F., Dempsey, A., Corne, E., & Almeida, B. P. (Eds.) (2007). Museu Colecção Berardo:
um roteiro. Londres: Thames & Hudson.
Metternich, A. (Ed.) (2007). Museu Colecção Berardo. Lisboa: Connaissance dês Arts.
Rosa, N. S., & Scaléa, N. S. (2006). Arte-educação para professores: teorias e práticas na visitação
escolar. Rio de Janeiro: Pinakotheke.
Serra, F. M. (2007). Práticas de gestão nos museus portugueses. Lisboa: Universidade Católica
Editora.
Silva, I. C., & Seixas, M. M. (2009). Belém. Lisboa: Junta de Freguesia de Santa Maria de Belém.
198
PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
Abel Arez
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa
[email protected]
Educação Musical
Alfredo Dias
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa
[email protected]
Ciências Sociais
Joana Matos
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa
[email protected]
Artes Plásticas
Kátia Sá
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa
[email protected]
Artes Plásticas
Natália Vieira
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa
[email protected]
Teatro
Resumo
Abstract
The text presents the work process developed in the context of project ParticipArt
— Creation, Community and Development, which took place in historic center of
Seixal with the partnership of the Cultural Association L1B. The intervention
focused on research about memory of places, workmanship and living
experiences of the local community, included the participation of students and
graduate students of Visual Arts and Technologies degree, and Artistic and
Cultural Mediation degree of Superior School of Education of the Polytechnic
Institute of Lisbon. Through practices associated with Street Art or Community-
based Art, some approaches to local issues were proposed. These approaches,
within the scope of visual and performative arts (music and theatre), centre
around the passing of collective memory of places or labour, taking into account
the sharing of social, creative, technical and artistic knowledge as well as the
expression of intersubjectivities. In this sense, connections were developed
200
PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
INTRODUÇÃO
“Amanhã temos bom dia” foi o título encontrado para um espetáculo multidisciplinar (música,
teatro e artes visuais) que integrou um conjunto de intervenções artísticas previstas para o
centro histórico do Seixal, no âmbito do projeto ParticipART. Criação, Comunidade e
Desenvolvimento.
Através das práticas associadas à Street Art, Land Art ou Community-Based Art, são propostas
abordagens a problemáticas locais que envolvem a transmissão da memória coletiva dos
lugares, do trabalho ou o diálogo entre a arte e o habitat natural, tendo em conta a partilha
de saberes sociais, criativos, técnicos, artísticos, bem como a expressão de
intersubjetividades capazes de afirmar uma cidadania ativa. Ainda que, a escolha das
propostas de intervenção a desenvolver estivesse direcionada para contextos de natureza
local, as problemáticas que daqui emergem assumem contornos globais, já que derivam de
circunstâncias e dinâmicas originadas em conjunturas que lhe são exteriores, mas das quais
estão dependentes sob inúmeras maneiras. A tomada de consciência destas dinâmicas
201
PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
Assim, o espetáculo “Amanhã temos bom dia” surge como lugar de encontro dos processos
de pesquisa (visitas, entrevistas e pesquisa documental) e trabalho criativo dos estudantes,
professores, artistas, que, através da música e da intervenção nas ruas da zona histórica,
com imagens fotográficas, palavras, desenhos e projeção vídeo, permitiu retratar vivências e
identidades, construídas na relação com os lugares, os sons e os gestos.
202
PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
A Entrada Na Comunidade
A intervenção começou por ser pensada em conjunto com a L1B a partir de uma ideia chave
de desenvolver abordagens à street art em zonas particulares da malha urbana, nos becos e
esquinas. Esta ligação inicial entre a intervenção artística e o espaço urbano do centro
histórico esteve na base do desenvolvimento de um conjunto de processos de pesquisa que
permitiram delinear, com maior exatidão, as inúmeras vertentes que compõem a
problemática da memória dos lugares. Os contactos com a comunidade com vista à recolha
de informação passaram por várias modalidades:
c) A realização de entrevistas;
A três visitas iniciais permitiram delinear uma perspetiva de contornos gerais daquilo que
seriam a memória histórica e as vivências quotidianas a partir das décadas de 50 e 60 do
século XX, em que se cruzam o trabalho operário na empresa Mundet, o êxodo rural
provocado pela industrialização da margem sul do Tejo, ou o movimento associativo (com
203
PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
A informação recolhida nas visitas, que incluiu uma descrição e demonstração de processos,
espaços e ferramentas de trabalho industrial, bem como o relato de vivências quotidianas
pela voz de quem as experienciou diretamente ou indiretamente através da oralidade,
possibilitou identificar outros atores a integrar no processo de pesquisa, nomeadamente a
Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, a Sociedade Filarmónica União
Seixalense e a Associação Unitária de Reformados Pensionistas e Idosos de Paio Pires
(AURPIPP).
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PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
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PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
Os Processos Criativos
Música
Além dos contactos anteriormente referidos com as bandas filarmónicas do centro histórico
do Seixal (Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense e Sociedade Filarmónica
União Seixalense), foram ainda desenvolvidos contactos com várias outras organizações, tais
como escolas de música e grupos de percussão, bem como, individualmente, com músicos
provenientes do panorama pop-rock do Seixal não integrados em nenhuma estrutura
institucional. O convite foi ainda estendido nas redes sociais a todos os músicos locais que,
independentemente do seu percurso, “área musical” ou nível de proficiência, estivessem
dispostos a participar num processo de criação musical coletiva a partir das memórias do
concelho.
206
PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
O curto espaço temporal do processo bem como o total desconhecimento inicial do grupo e
das suas características, tornaram especialmente importante o desenvolvimento de
processos de diagnóstico e monitorização da resposta deste às propostas lançadas, bem
como a capacidade de reagir prontamente às dificuldades encontradas, através da
reconfiguração das propostas iniciais e adaptação das mesmas às idiossincrasias de cada
músico. Para isto, revelou-se especialmente útil a criação de um grupo virtual, numa rede
social, que se constituiu como espaço privilegiado para a continuação desta comunicação
entre sessões de trabalho, bem como o recurso às tecnologias do som para a criação de
materiais de apoio individualizados.
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PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
Artes Visuais
Considerando os temas anteriormente definidos a partir do trabalho de campo, foi realizada
uma seleção de referências visuais que integrou fotografias antigas de arquivo que
retratavam o Seixal nas décadas de 50 e 60 do século XX, imagens recolhidas durante as
visitas e durante a residência artística. A estas imagens vieram juntar-se as vozes dos
entrevistados (quer através de excertos textuais, quer orais) bem como as placas de azulejo
da toponímia do núcleo histórico.
208
PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
O preenchimento de espaços “vazios” foi uma das estratégias seguidas. Neste caso, as
fissuras em fachadas degradadas, aberturas na estrutura de postes de eletricidade, ou a
continuação das próprias placas da toponímia, entretanto incompletas pela queda de
fragmentos, foram preenchidas com frases, imagens impressas em transparências ou
desenho que, deixando antever a textura das paredes, apresentaram-se como elementos
integrados. O mesmo objetivo, de dialogar com o espaço foi seguido em outras opções de
instalação onde as intervenções integraram estruturas da arquitetura como portas,
parapeitos e fontes.
Tanto num caso como no outro houve uma preocupação em desmaterializar os meios
(através da utilização da luz ou de materiais transparentes como acetato, acrílico, entre
outros) bem como dar preferência a intervenções efémeras, por forma a diminuir o impacto,
na paisagem urbana, da degradação de intervenções de carácter mais permanente como
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PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
pinturas, stencils, stickers, posters, etc., sem contudo, prescindir de linguagens visuais
marcadas por uma estética contemporânea.
1- A dimensão artística
2- A dimensão educativa
3- A dimensão comunitária
A realização de uma intervenção artística que assumiu uma natureza interdisciplinar e que,
como tal, importa analisar à luz daquilo que são critérios e motivações artísticos e estéticos.
Neste sentido, existiu uma preocupação em harmonizar as intervenções no âmbito das artes
visuais e das artes performativas, incutindo-lhes um carácter efémero e optando por
linguagens artísticas contemporâneas. Desta forma, foi possível oferecer a possibilidade de
uma leitura multimodal da narrativa definida: por um lado, a natureza sequencial da
apresentação musical em conjunção com a projeção do filme de animação no Largo da Igreja
permitiu uma apresentação linear da narrativa. Por outro, os objetos instalados no espaço,
complementaram-na e enriquecem-na através de uma abordagem fragmentada dos temas,
associando a memória dos lugares (já que induzem a uma deambulação pela malha urbana)
à memória recente do espetáculo (Fig.5).
Através das opções artísticas assumidas, foi possível a realização de uma intervenção
marcada pelo compromisso entre a mobilização de códigos estéticos reconhecíveis pela
comunidade e a introdução de linguagens contemporâneas que possibilitam um
alargamento das perceções acerca da arte. Esta dimensão estético-artística justapõe-se a
uma dimensão educativa uma vez que uma das grandes finalidades do projeto seria
proporcionar aos estudantes e diplomados da ESELx um conjunto de experiências
extraescolares com e para a comunidade. Neste sentido, os processos de trabalho
desenvolvidos levantaram um conjunto de desafios no que toca à aquisição de competências
de pesquisa artística baseada na comunidade bem como na ligação entre modalidades
educativas formais e não formais. De facto, os processos criativos cruzaram-se com a
necessidade de estabelecer planos de negociação quer com a comunidade quer com os
restantes intervenientes.
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PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
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PARTICIPART - “AMANHÃ TEMOS BOM DIA”.
“o improviso neste projeto faz-nos realçar mais e faz-nos crescer mais como músicos (...)
muitas das vezes os maestros não nos ouvem, ou nós não conseguimos colocar as nossas
ideias, e o Abel nisso é 5 estrelas.” (Bruno)
“No conservatório nós também estamos a trabalhar em grupo, estamos numa orquestra,
mas aqui há a exploração do som, há também o trabalhar... ouvirmo-nos uns aos outros, que
nem sempre é possível numa orquestra com 40 pessoas”. (Rebeca)
Referências Bibliográficas
Adams, D., & Goldbard, A. (2001). Creative Community: The Art of Cultural Development. Nova
York: Rockefeller Foundation, Creativity & Culture Division.
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Nova York: Rockefeller Foundation.
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Hills, M., Mullet, J., & Carrol, S. (2007). Community-Based Participatory Action Research:
Transforming Multidisciplinary Practice in Primary Health Care. Rev Panam Salud Publica.
21(2-3),125-35.
212
O (LUGAR) DA EXPERIÊNCIA DO LIVRO
NA MEDIAÇÃO DA CRIANÇA COM O OUTRO
Resumo
Abstract
This research intends to observe the place of the book experience as an agent of
mediation in the universe of children and of these with the other, in the intra and
interpersonal relationship, analyzing their empathic manifestations through art
and playfulness. The study comes from the passion for books and the place they
occupy.
The aim of this study is to analyze a group of children between 5 and 10 years of
age who attend the public school and toy library in the Municipality of Cascais
and Estoril, through three stages, using an investigation / action methodology.
The first phase of the study aims to observe the children's experience with the
book, in the collection and analysis of their behavior in the context of the school
library. The second one intends to include families on Saturday, when is open to
the general public, and finally, will be presented the work developed by the
participants in an exhibition.
Introdução
Este trabalho pretende apresentar uma narrativa de investigação sobre o lugar da
experiência do livro no âmbito da mediação. A literatura tem vindo a apresentar diversos
estudos temáticos sobre livros como objetos singulares ou inseridos em coleções. Este
estudo centra-se na experiência e utilização do livro ancorado em exposições culturais
contemporâneas, onde o livro é elemento de reflexão e introspeção social.
Estado Da Arte
A revisão de literatura tem-se centrado na observação e fruição de exposições e leituras
contemporâneas, teses de doutoramento e mestrados nacionais ou internacionais e com
publicações posteriores a 2010. Recentemente, com a visita à exposição da Bienal de Arte de
Veneza em 2017, que apresentou no Pavilhão Central o Pavilhão dos Artistas e dos Livros
diversos artistas, como a obra de Abdullah Al Saadi que, por sua vez, apresentou a
transformação do livro-objeto com diversos suportes em diversas formas de leitura. Já Liu Ye
apresentou uma tela com pintura intitulada Book Paiting nº1, onde estava representado um
livro aberto à dimensão da mesma.
No Pavilhão Stirling foi apresentada a reflexão sobre a obra de Walter Benjamim: Unpacking
my Library pertencente ao evento dos projetos paralelos (Viva Arte Viva), onde foram exibidas
as obras das leituras preferidas dos artistas em contexto não formal. Conjuntamente, no
documentário de Kassel de 2017, Marta Minujín apresenta uma réplica do templo na
Acrópolis de Atenas – Parthenon. A obra é composta por cerca de 100.000 livros proibidos
que foram doados.
214
O (LUGAR) DA EXPERIÊNCIA DO LIVRO NA MEDIAÇÃO DA CRIANÇA COM O OUTRO
215
O (LUGAR) DA EXPERIÊNCIA DO LIVRO NA MEDIAÇÃO DA CRIANÇA COM O OUTRO
bibliotecas de cultura
bibliotecas de informação
bibliotecas de educação
Nos dias de hoje e à semelhança do que se importou dos Estados Unidos, associado ao
movimento Faça Você Mesmo (Do it yourself – DIY), no início da década de 2000, onde o
espaço se transforma para a experiência, criação e descoberta no local, pode-se acrescentar
à tipologia de Raul Proença a biblioteca de criação e inovação.
A curadoria da coleção das bibliotecas foi ganhando contornos mais inovadores e pode ser
entendida como uma área contemporânea a explorar. A noção de colecionismo é descrita por
Célia Oliveira (2017) como:
216
O (LUGAR) DA EXPERIÊNCIA DO LIVRO NA MEDIAÇÃO DA CRIANÇA COM O OUTRO
Cultural de Belém mantém regularmente a Litlle Free Library nas dinâmicas do mercadinho de
trocas uma vez por mês e recentemente outros edifícios públicos receberam o projeto Cabine
de Leitura.
Em Portugal desde 2010, vários espaços culturais foram reestruturados a nível de arquitetura
e design, no sentido de se aproximarem do público com o objetivo de estimular e aumentar o
consumo e a venda de livros. No entanto, uma visão mais alargada da noção de território
(espaço urbano) indutor de comunidades de aprendizagens, é apresentada por José Luis
Gonzáles Fernández (2017), como um espaço educador, que deve ser tido em conta e vivido
como um contentor de conhecimentos e promotor de incentivos para motivar e despertar a
necessidade dos utilizadores. A arquitetura contém e desperta no usufrutuário o que lhe é
destinado, fundindo e definindo os seus propósitos para a diluição dos limites entre a Arte, a
Arquitetura e a vida quotidiana, implicando o conceito de arquitetura lúdica para a
articulação entre arquitetura, educação e recriação (Aguiar, 2017).
As escolas que foram requalificadas a partir de 2010/2011, integram este programa com uma
ludo biblioteca que corresponde à ampliação da biblioteca escolar reformulada com a
atribuição de uma zona lúdica. De certa forma, corresponde a uma fusão das ludotecas com
as bibliotecas, onde existe um “playworker” para garantir a dinamização dos serviços e do
espaço, oferecendo uma diversidade de atividades, com propostas motivadoras e positivas
para crianças e famílias, no sentido de lhes restituir o poder participativo e adaptativo do
livro, leitura e ludicidade como uma ferramenta mediadora e transformadora da sociedade.
217
O (LUGAR) DA EXPERIÊNCIA DO LIVRO NA MEDIAÇÃO DA CRIANÇA COM O OUTRO
No âmbito museológico, a partir dos anos 80, o mediador foi ampliando o seu campo de
atuação e passou da representação de um modelo expositivo de transmissão de
conhecimentos e explicações, para um facilitador e construtor de ligações e narrativas entre
diversos assuntos, fomentando a capacidade de interação entre o público visitante. Segundo
Vygotsky (1998) a mediação, é uma propriedade cognitiva, referente à assimilação de
comportamentos sociais e culturais, que provoca um diálogo onde a efetiva aprendizagem
procede do coletivo para o individual. Neste sentido, as ludo bibliotecas escolares, com
abertura à comunidade, são espaços onde a atividade lúdica acontece, impulsionando o
desenvolvimento pessoal, sensorial e intelectual (Leite, 2017), na conceptualização, reflexão
sobre a diversidade e diferenciação expectáveis do lugar do livro no universo infantil.
Interessa compreender de que forma pode o livro ser objeto de intervenção no seu público.
Poderão as ludo bibliotecas favorecer o processo de mediação e participação numa
perspetiva crítica, criativa e transformadora?
Vários estudos têm apontado para a importância do brincar e consideram o espaço lúdico
(ludo biblioteca/brinquedoteca) como um espaço mediador de aprendizagens, de exploração
livre e ou orientada, possibilitando uma forma de aprendizagem natural e harmoniosa
apelando ao desenvolvimento sócio cultural.
Objetivos
Pretende-se com esta investigação compreender as experiências mediadoras da criança na
relação com o livro através de 3 etapas com os seguintes desafios: compreender como as
crianças se relacionam com o livro; observar e analisar de que forma as crianças podem ser
mediadoras na relação das famílias com o livro e as ludo bibliotecas; e de que forma as
crianças podem ser mediadoras da relação de diversos públicos com o livro. Pretende-se
perceber como é que as crianças experienciam o livro entre pares e com a família; realizar
uma cartografia da experiência do livro no universo da criança, e mapear a circulação dos
livros na relação da criança com os livros na exploração lúdica.
Metodologia
O trabalho contempla uma organização flexível e participativa, centrada no processo onde o
investigador se interessa por compreender o significado que os participantes atribuem às
experiências do momento. Ao longo da elaboração da tese, está contemplada a participação
em congressos, seminários ou outros eventos, no sentido de realizar um levantamento na
comunidade científica sobre questões e reflexões relacionadas com o lugar da experiência do
218
O (LUGAR) DA EXPERIÊNCIA DO LIVRO NA MEDIAÇÃO DA CRIANÇA COM O OUTRO
livro. Assim, no VII Congresso dos Jovens Investigadores realizado em 2017 no Instituto de
Psicologia, o desafio foi lançado em torno da problemática: o que representa o objeto livro
para cada um dos presentes, que responderam ao desafio com respostas escritas intuitivas
sobre o tema no suporte livro por eles escolhido, tal como representado na imagem.
219
O (LUGAR) DA EXPERIÊNCIA DO LIVRO NA MEDIAÇÃO DA CRIANÇA COM O OUTRO
Design thinking is a actually a deeply empathic and intuitive process that taps
into abilities we inherently all have but often overlook. [...] Instead, design
thinking relies on our ability to be intuitive, to recognize patters, to construct
ideas that resonate emotionally and rationally, and to be expressive through
action. [...] Adopting a designer’s mind set enables you to see problems as
opportunities and gives you confidence to star creating transformative solutions.
Conclusão
Pretende-se que a finalidade deste estudo seja investigar sobre as possíveis contribuições da
experiência do livro como elemento de mediação em contexto de ludo biblioteca (escolar,
comunitária e privada). Para o efeito, aplica-se um modelo de pesquisa flexível e
participativo, associada ao grupo e contexto a que pertence, bem como à sua família como
representante social, promovendo o interesse e o contributo no processo da construção de
um objeto artístico colaborativo.
220
O (LUGAR) DA EXPERIÊNCIA DO LIVRO NA MEDIAÇÃO DA CRIANÇA COM O OUTRO
Referências Bibliográficas
Aguiar, D. (2017). O Lúdico a partir do efémero. Lisboa: Ludic Architecture.
Assembleia das Nações Unidas (1989). Convenção sobre os direitos das crianças. Disponível em
https://www.unicef.pt/media/1206/0-convencao_direitos_crianca2004.pdf
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Gordo, A. & Pereira, J. (2012). Tarefas Infinitas. Museu da Calouste Gulbenkian. Galeria de
exposições temporárias. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Morrow, L., & Rand, M. (1991). Preparing the classroom environment to promote literacy during
play. In J. F. Christie (Ed.), Play and early literacy development. Albany, NY: State University
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and symbologies. Lisboa: Museologia & Interdisciplinaridade Vol.6, nº12 Jul/Dez
Tavares, G. (2013). Atlas do corpo e da imaginação. Teoria fragmentos e imagens. Lisboa: Editora
Caminho
221
Política Educativa,
Currículos e
Programas de Ensino
da Educação Artística:
conquistas e desafios
A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL
(2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE
ESTRUTURAS CURRICULARES E SISTEMA DE
APOIOS
Resumo
Abstract
Ten years after the World Conference on Arts Education (2006) held in Lisbon,
which gave rise to guidelines for the international promotion and appreciation of
this sector, it is opportune - given the political relevance of the event - to identify
and analyze specific legislative initiatives taken since then by the Portuguese
political forces. This study aims to understand the terms in which the discourse
on Arts Education was integrated by the State in the ten years following that
event, particularly in the definition of the curricular structures of the education
system and in the general funding support in this area. The general objectives
were to: i) map the publication of AE documents in Portugal between 2006 and
2016; ii) understand the political-pedagogical orientations for the formal AE area,
present in the documents published between 2006 and 2016; iii) understand the
terms in which the acts produced between 2006 and 2016 encourage the
creation of measures of support and funding to the AE. Within the interpretative
paradigm, this study adopts a qualitative approach based on document research
and analysis. The document corpus is composed of acts published in Diário da
República between 2006 and 2016, subordinated to the research "Arts Education".
In this paper we propose to analyze: (i) the guidelines of constitutional
governments (2006-2016) and the underlying ideological conceptions; (ii) the
relationship between ministerial entities and AE discourses and initiatives; (iii) the
main curricular options for this area; (iv) the "local" dimension of its
implementation; and (v) the direct and indirect promotion actions.
Key words: Arts Education, Political Action, Curricular Structures, Support and
Funding.
Enquadramento Do Estudo
Este artigo descreve e analisa processos e resultados da investigação em que assenta a
dissertação apresentada à Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa,
para a obtenção do grau de Mestre em Educação Artística (EA), na especialização de Teatro na
Educação. O estudo, através de um corpo documental composto por trezentos e três atos
publicados em Diário da República, dá enfoque a duas grandes áreas no âmbito da EA: as
estruturas curriculares e os apoios e incentivos. O estudo situa-se entre os anos de 2006 e
2016, tendo sido a Conferência Mundial de EA, que teve lugar em Lisboa, o mote que
delimitou o início da recolha dos documentos para análise.
224
A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Estado da Arte
A EA, ao longo dos anos, tem sido objeto de reflexão em múltiplos eventos e diferentes
contextos, não raras vezes, com altos patrocínios político-institucionais, tanto a nível nacional
como internacional (veja-se, a título de exemplo, a Conferência Mundial de EA e a Conferência
Nacional de EA, em 2006 e 2007, respetivamente). As reflexões e as recomendações
produzidas nestas ocasiões, nem sempre parecem ser acompanhadas por ações concretas,
incluindo no campo legislativo, como tem sido notado e considerando diversas perspetivas,
por vários autores (Assis, 2017; Fortuna, 2014; Xavier, 2010). Todavia, as artes são
reconhecidas como essenciais no processo educativo e de aprendizagem, pois como
observam Falcão, Pereira, Leite e Mendes (2016):
Segundo Coleman (2002), o modelo de ensino que continuamos a utilizar nestes últimos cem
anos, em que “the teacher, by necessity, is the source of all-important knowledge, and the student
is the recipient” (p. 3), é um modelo ultrapassado e limitado, se o que queremos é o aumento
da capacidade autónoma e de pensamento dos estudantes. Uma das características
essenciais da EA “é a facilidade com que esta área consegue desenvolver capacidades e
competências cognitivas e metacognitivas, promover educações a partir das suas linguagens
específicas, elaborando projectos de aprendizagem relevantes para os alunos e para as
comunidades, onde as escolas se inserem” (Eça, 2010, p. 138). A EA, concretamente em
contextos educativos formais, proporciona possibilidades reais de desenvolvimento e
alteração dos processos e da própria estrutura da educação, que Coleman (2002) identificou
como necessárias. Verifica-se, porém, que, em alguns países, como em Portugal nos últimos
anos, a opção tem sido a de enfraquecer as áreas artísticas nas estruturas curriculares,
dissociando-as dos core curriculum e/ou tornando-as opcionais, logo, não essenciais.
Considerando a longa história da EA, bem como as reconhecidas potencialidades das artes
na educação, torna-se forçoso concluir, com Assis (2017), que “[é] desconcertante que haja
consenso sobre o que precisa de mudar no atual sistema de ensino e que seja tão difícil e
lenta a concretização dessa mudança” (p. 22).
225
A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Foco e Metodologia
Este estudo, situado no paradigma interpretativo, é uma investigação histórica e documental
enquadrada na abordagem qualitativa, desenvolvida numa perspetiva descritiva e
interpretativa com carácter exploratório. O paradigma interpretativo “pretende substituir as
noções científicas de explicação, previsão e controlo do paradigma positivista pelas de
compreensão, significado e ação” (Coutinho, 2011, p. 16).
Este estudo considera duas áreas: as estruturas curriculares do sistema de ensino e os apoios
concedidos nesta área, por se considerarem essenciais enquanto espelhos das políticas
públicas. Constituem duas áreas prioritárias para os agentes governamentais, tanto pelo
impacto que as políticas educativas têm no campo social, como pela influência que a
atribuição de um maior ou menor volume de apoios pode ter ao nível das políticas e
ideologias. Consideramos que seriam áreas que constituíam fiéis barómetros para avaliar o
interesse político e ideológico das ações e intenções das instâncias governamentais. Centra-
se no interesse de sistematizar as opções e as linhas orientadoras relativas à EA,
especialmente em cinco vertentes: i) linhas orientadoras dos governos constitucionais (2006-
2016) e conceções ideológicas subjacentes; ii) relação entre as orgânicas ministeriais e os
discursos e as iniciativas sobre a EA; iii) principais opções curriculares para esta área; iv)
dimensão “local” da sua implementação; v) ações de promoção diretas e indiretas.
Os dados para o estudo em questão foram recolhidos no sítio oficial do Diário da República
Eletrónico (www.dre.pt), a partir da pesquisa da expressão “Educação Artística”. A pesquisa foi
realizada entre outubro de 2016 e julho de 2017. Após a recolha dos dados, foi feita a
respetiva análise documental, que, de acordo com Bell (1993), pode acontecer de duas
formas: ou como ferramenta para triangular dados ou utilizada de forma central, como neste
estudo, em que os próprios documentos são alvo de análise. Neste caso, optou-se por fazer
uma análise sistemática dos dados, com o objetivo de construir um texto crítico, em que se
apresenta o corpo textual dos documentos já de uma forma trabalhada e transformada.
227
A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Uma vez que os métodos de análise de dados neste tipo de estudo “implicam a aplicação de
processos técnicos relativamente precisos” (Quivy & Campenhoudt, 2008, p. 224), foi feita
inicialmente a inserção dos dados numa base (utilização do programa Excel), separando as
unidades de registo (UR) consideradas relevantes para o tema abordado (Flores, 1994), neste
caso a EA, a que se seguiu a categorização dos dados, tendo as categorias, subcategorias e
indicadores sido definidos a posteriori.
Neste estudo, cada unidade de registo corresponde ao texto selecionado dos documentos
publicados em Diário da República que se relaciona com a EA. Cada unidade de registo (UR)
corresponde, na maioria dos casos, a um documento analisado, existindo três documentos
que deram origem a duas UR cada. Por conseguinte, foram analisados 303 atos e
consideradas 306 UR.
Estrutura e funcionalidades
A base de dados construída no âmbito deste estudo, permitiu uma análise dos dados através
do cruzamento de diversas informações. Por forma a tornar possível a avaliação da
funcionalidade da base de dados pelo leitor, descrevemos cada uma das possibilidades que o
recurso comporta, apresentando as tabelas exatamente como elas estão presentes no
programa Excel. A base foi construída através de um sistema de identificação e associação de
filtros, permitindo ao utilizador selecionar as diversas combinações que mais lhe possam
interessar.
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Categorias
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Subcategorias
Para além da utilização dos filtros de pesquisa, baseados na categorização feita através das
UR, foram acrescentados filtros que permitem outro tipo de ligações, potenciadoras de
cruzamentos elucidativos em termos de resultados.
Assim, foi utilizado um filtro para a data, podendo existir uma seleção de qualquer um dos
onze anos em análise (2006 a 2016).
Outro filtro é referente ao tipo de documento publicado (Tabela 4), permitindo o acesso tanto
a normativos como a outras publicações.
O mesmo filtro permite também perceber a que série do Diário da República – primeira ou
segunda – pertencem os documentos publicados, sendo que a primeira série inclui os atos
normativos e a segunda série contempla os atos e contratos administrativos, entre outros
(DRE, Guia de Publicação dos Atos no Diário da República, s.d.).
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Indicadores
Delegação/subdelegação de competências
Contratos interadministrativos
Reorganização do Estado e das suas estruturas
Pareceres
Recomendações
Grandes opções dos planos
Orçamentos de Estado
Alterações em estruturas culturais públicas
Orgânica dos governos constitucionais
Orgânica dos ministérios
Orgânica e estruturas nucleares de direções gerais e regionais
Equipas e secções
Comissões e conselhos
Apoios por parte de ministérios
Programas e medidas
Benefícios fiscais
Utilidade pública
Autonomia e/ou paralelismo pedagógico
Organização, funcionamento e avaliação
Apoio financeiro
Estrutura, respostas e formas de organização
Apoios e financiamento
Pós-graduações
1º ciclo de estudos
2º ciclo de estudos
3º ciclo de estudos
Avaliação e transição para o ensino superior
Adoção de manuais escolares
Dimensão das turmas e número de alunos
Organização da rede escolar e do ano letivo
Educação Pré-escolar
Ensinos Básico e Secundário
Serviços Educativos
Espaços de apresentação/promoção cultural
Associativismo
Instituições de Solidariedade Social
Projetos culturais
Regulamentos e critérios - Atribuição de subsídios e apoios
Bolsas de estudo
Um ultimo filtro permite identificar o Governo Constitucional a que é referente cada um dos
atos publicados.
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Tipo de Documento
Decreto-lei
Lei
Despacho
Portaria
Edital
Declaração de Retificação
Resolução
Aviso
Deliberação
Regulamento
Anúncio
Programa de Governo
Orçamento de Estado
Planos
Decreto Regulamentar
Declaração
Despacho Normativo
Parecer
Recomendação
Contrato
O uso daquele filtro permite também visualizar o conjunto dos atos inventariados referentes
a cada Governo Constitucional. Tendo em conta o intervalo temporal do estudo, foram
considerados os XVII, XVIII, XIX, XX e XXI Governos Constitucionais.
Conteúdos pesquisáveis
As UR foram organizadas de acordo com indicadores (39), depois agrupados em
subcategorias (13). Estas foram reorganizadas em categorias (4), reunidas, por sua vez, no
mesmo tema de estudo: “Publicações em Educação Artística”.
Globalmente, constatamos que existiu uma maior produção de documentos, com publicação
efetiva, nos anos de 2012 e 2015 (Figura 1). Em contrapartida, os anos de 2006, 2007, 2013 e
2014 são aqueles em que se observa um menor volume de publicação de atos nesta área, em
Diário da República.
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Focando a análise nas subcategorias, podemos notar que o maior número de documentos
está associado às questões da representação que a EA tem ao nível do poder local, quer seja
através de documentos que promovem a autonomia e a descentralização, quer seja tendo
em conta as medidas que as autarquias promovem para proporcionar condições a diversas
ações na área da EA (Figura 3).
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
As subcategorias que refletem os apoios diretos e indiretos, são relativas a duas dimensões
distintas. Por um lado, constituem apoios que são atribuídos diretamente pelo Estado,
através dos seus ministérios ou das estruturas centrais, ou através das estruturas locais para
a área da EA. Quanto aos apoios indiretos, considerámos documentos que beneficiassem a
nível financeiro promotores na área da EA, sem ser necessariamente através de apoios
diretos, como por exemplo, através da redução de despesas com impostos ou mais valias
fiscais.
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
Uma vez que a Conferência Mundial de EA constitui o primeiro limite temporal deste estudo,
outro possível tópico para discussão é o dos impactos que aquele evento de dimensão
mundial, realizado em Lisboa, poderão ter tido na publicação de atos oficiais sobre a matéria.
Estes impactos poderão ser interessantes de analisar tanto em termos de quantidade de
publicações (existência de picos de atos publicados), como em termos de qualidade dos
mesmos (publicação de medidas políticas que confiram importância à EA, em particular no
que respeita às estruturas curriculares e aos apoios financeiros nesta área).
Um quarto tópico passível de análise será o da tendência, inferível a partir dos documentos
publicados, de políticas de autonomia e descentralização. Quanto a esta questão, será
interessante perceber, através da quantidade e do tipo de documentos publicados, o nível e a
natureza de descentralização e autonomia que transparecem nesses mesmos documentos,
ou seja, se incidem em questões meramente funcionais ou se promovem uma autonomia e
uma descentralização efetivas, por exemplo, com passagem de poder de decisão do poder
central para o poder local.
Um quinto tópico poderá incidir nas linhas orientadoras dos governos para a EA. Neste caso,
a partir da análise dos orçamentos de Estado e dos grandes planos dos governos dos onze
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
anos estudados, será relevante perceber os termos em que esta área foi considerada
naqueles documentos. Esta reflexão poderá reforçar ou acrescentar informação útil sobre as
designadas linhas orientadoras para esta área e sobre como elas têm sido entendidas na
esfera política ao longo daqueles anos.
Conclusões
O estudo que este artigo apresenta é, possivelmente, o primeiro com estas características
realizado em Portugal, tendo em conta o período delimitado, o corpo documental constituído
e a elaboração de um recurso – uma base de dados relativa a atos publicados sobre EA em
Diário da República, entre 2006 e 2016 – disponibilizada para consulta pública. O conjunto
destes atos permite-nos compreender, entre outros aspetos, a diversidade de iniciativas de
regulamentação e financiamento da EA. A base de dados, pela sua vertente instrumental e
entendida como recurso em permanente atualização, afigura-se-nos valiosa para todo o tipo
de pesquisa nesta área, desde a verificação pontual até às mais aprofundadas investigações.
Em síntese, dois eixos justificam, entre outros, a pertinência deste estudo, cujas conclusões
serão oportunamente, e em profundidade, apresentadas: por um lado, a relação estabelecida
– ou inferida – entre as matrizes ideológicas subjacentes às políticas governamentais e as
linhas orientadoras para a EA traçadas por cada executivo, verificadas a partir da análise dos
documentos publicados, uma vez que é através da publicação dos atos de importância
normativa e jurídica que a população toma conhecimento e consciência das ideias que as
instâncias políticas e governativas defendem e adotam; por outro lado, o papel que as
próprias instâncias políticas e governativas definem para si próprias na determinação do
rumo ideológico do país, visível, por exemplo, na forma como os governos integram uma
determinada área, como a EA, nos currículos de ensino e na expressão que essa mesma área
tem, em maior ou menor dimensão, no plano financeiro.
As perspetivas que este estudo abre, bem como a existência de um instrumento – base de
dados – que nos permite traçar caminhos e análises, esperamos que se constituam como um
ponto de partida profícuo. Talvez possa ser considerado como mais um motivo – e,
simultaneamente, fonte – para que mais e novas questões se desenhem e discutam em
torno do “lugar” ocupado pela área da EA nas políticas públicas em Portugal.
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A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL (2006-2016): UMA BASE DE DADOS SOBRE ESTRUTURAS
CURRICULARES E SISTEMA DE APOIOS
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EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM
OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-
2017)
Helena Cabeleira1
1
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa
[email protected]
Resumo
Abstract
The article discusses a set of events, facts and remarkable figures in the history
of art education in Portugal, since the late 18th century to the present. It seeks,
mainly, to identify and critically analyze the dynamics of continuity and rupture
that governed the process of emergence of artistic education as a field – with its
own experts, institutions, policies and specificities –, since the years 1970 to the
present.
Introdução
Ainda que o lugar das artes na escola pública portuguesa se tenha consolidado desde finais
do século XIX com o ensino do desenho e tenha sido defendido e reforçado pela mão de
muitas figuras emblemáticas da cultura portuguesa – que desempenharam o papel de
verdadeiros ‘heróis’ ou ‘cavaleiros solitários’ da causa da educação artística –, foi apenas
durante os anos 1970, na sequência da Reforma de Veiga Simão que a problemática das
relações entre arte e educação começou a ser sistematicamente discutida pelos especialistas
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
que então emergiam nesse campo, ao mesmo tempo que faziam emergir a própria educação
artística como um campo (Bourdieu, 2008). Na configuração desse ‘campo especializado’, ao
longo das décadas seguintes, foram-se tornando evidentes os dois problemas centrais do
processo de democratização do sistema de ensino e de integração das artes no currículo da
escola pública: por um lado, a formação pedagógica dos professores das diferentes
‘disciplinas artísticas’ (nos diversos níveis do ensino), por outro, o modo efetivo de integrar a
diversidade, complexidade e diferença das artes no currículo letivo.
Em pleno século XXI (ou seja, cerca de quarenta anos volvidos desde os primeiros debates
em torno do lugar das artes no sistema de ensino oficial), tornou-se incontestável para nós
que as ‘artes visuais’ foram aquelas (e porventura as únicas) que lograram assegurar um
lugar relativamente estável no currículo escolar público e, até mesmo, consolidar a
hegemonia do ‘visual’ sobre as ‘outras artes’ (música, teatro, dança). Não obstante, as artes
visuais – quer como disciplinas curriculares, quer como um campo especializado da
investigação educacional – permanecem numa condição ‘precária’ e ‘im-pensada’, porque
sistematicamente alheadas da sua própria história (longínqua e recente). Esta persistente
cegueira histórica tem-se feito acompanhar, no presente, de uma crónica ‘tensão latente’ no
interior da área curricular que, vendo-se continuamente confrontada com a ameaça de
extinção e marginalização no interior dos currículos letivos e, daí, com a permanente
necessidade de lutar pela sobrevivência e justificar as razões da sua própria existência, se
habituou a viver num estado de ‘beligerância defensiva’, perpetuada empiricamente no
quadro das relações institucionais e no discurso sobre si mesma (Dias, 2009, p. 6).
Tendo por objeto de estudo e análise um conjunto de documentos legais, estudos, relatórios
e pareceres emitidos quer pelas instâncias ministeriais e governativas, quer pelas diversas
instituições e especialistas do campo (CNE, APECV, APEVT, entre outros), é objetivo desta
comunicação refletir sobre alguns ‘factos’ e ‘figuras’ que marcaram, de forma decisiva, o
estado da educação artística em Portugal, nos últimos 50 anos. Em suma, propõe-se aqui um
olhar sistemático e crítico sobre alguns dos momentos-chave e protagonistas (históricos e
contemporâneos) dessa que tem sido uma luta intemporal pela integração e manutenção
das artes no currículo da escola portuguesa – ou melhor, a luta por uma política pública do
ensino das artes, ao alcance de todo o cidadão.
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EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
devem figurar num currículo escolar, não é uma matéria exclusivamente ‘pedagógica’, mas
uma declaração ‘política’. Do mesmo modo, a luta pela integração das artes no currículo da
escola pública portuguesa – ou melhor, a luta por uma política pública do ensino das artes –
vem de longe, perdendo-se na escuridão do esquecimento e nas vistas curtas que
atualmente informam as lutas do presente. Para não recuar a um tempo tão longínquo que
nos leve a perder de vista a história do presente que aqui nos importa, menciono apenas
alguns episódios que nos avivem a memória daquela que tem sido a missão monumental
(muitas vezes inglória e insana), levada a cabo pelos ‘heróis’ que, ao longo dos séculos,
pugnaram pela causa da educação artística em Portugal.
Começo com um dos meus heróis prediletos: Machado de Castro e o célebre Discurso sobre
as utilidades do Desenho (dedicado à Rainha N. S.ª, D. Maria I, e recitado em 1787 no Castelo
de S. Jorge na presença da Corte e Nobreza), onde argumenta que a fundação de uma
Academia de Belas Artes, financiada pelo Estado Português, ao invés de tratar-se de um
‘luxo’, consistia num ‘bem’ de primeira necessidade económica e social (senão mesmo
espiritual) para a Nação. Outra abordagem da educação artística surge com Almeida Garrett
em Da Educação (1829), onde, a pretexto da educação da futura soberana (D. Maria II), ensaia
um tratado de ‘educação geral’, defendendo aí a importância da dança, música e teatro na
‘instrução elementar da criança’. Mas seria apenas na Reforma Passos Manuel (1836-37), que
a introdução de novas disciplinas nos ‘planos de estudo’ da Instrução Primária, Secundária e
Superior se haveria de legislar, assinalando um marco na história do ensino artístico, não só
pela criação de novas instituições (Academias de Belas Artes, e Conservatórios de Artes e
Ofícios), mas pela inédita consideração dada ao desenho como matéria do currículo escolar
desde a instrução primária.
Porém, nesta primeira metade do século XIX, a “importância do desenho” no ensino público,
manter-se-ia “instável” e “indicada por maior ou menor estatuto relativo face às outras
disciplinas”. O desenho manter-se-ia nos currículos ligado ao “espírito racionalista” que
privilegiava o “geométrico” como “um estrito suporte à matemática” e, assim, a “formação de
uma elite social e intelectual” (Penin, 2011, pp. 3-4). Durante os anos 1870 (e seguintes),
Joaquim de Vasconcelos não se cansou de alertar os poderes públicos para o estado de
desconsideração absoluta em que se achava o nosso ensino e património artísticos. Na sua
ampla reflexão sobre a Reforma de Belas Artes (1877), não só defendeu a “utilidade do
desenho”, elevando-o “a base de todo o ensino artístico”, como o considerou uma forma de
“conhecimento” e uma “linguagem” específica, cujos benefícios desde o ensino primário até
ao superior seriam de duas ordens: “progresso industrial do país” e “desenvolvimento das
faculdades humanas” ou, como se dizia na época, “a educação do espírito” (Brito, 2014, p. 29).
Embora tenham sido várias as figuras proeminentes da cultura portuguesa que, desde o final
do século XVIII, advogaram a necessidade de uma educação artística pública, na segunda
metade do século XIX, o pensamento dos nossos governantes (e também de alguns ilustres
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EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
intelectuais da Geração de 70), focou-se nos dois problemas que mais afligiam a política
educativa: o “analfabetismo” e a falta de “competência técnica” nos ofícios. Precisávamos de
“uma instrução primária para todos” e de um “ensino superior para alguns”, mas também
precisávamos de “um outro tipo intermédio de escola que desse mais do que o saber ler,
escrever e contar” e que fornecesse “uma informação concreta e mínima, mas de real
utilidade” para o exercício das profissões que o país carecia. O problema da implementação
de “uma escola para as massas” fez com que “o essencial da discussão sobre educação
popular” ficasse circunscrita (de 1852 a 1983) ao “ensino técnico” e à “formação prática de
futuros operários”. Até porque “a escola técnica é, antes de mais uma escola para os outros,
ou para os filhos dos outros” (Grácio, 1986, pp. 12-13; Carvalho, 2008, p. 549; Cabeleira, 2013,
pp. 241-43).
Divididas entre a ‘formação do produtor’ e das ‘elites’ (Valente, 1974), as artes dispersaram-se
nos currículos de diferentes instituições de ensino, consoante as suas especialidades técnico-
profissionais e hierarquias de distinção sócio-cultural. A partir do final do século XIX (desde a
Reforma de Jaime Moniz, 1895), e com maior intensidade na primeira metade do século XX,
as artes foram reforçando o seu lugar nos currículos escolares pela mão da psicopedagogia
que então se impunha como ciência no quadro da internacionalização do movimento da
Escola Nova, fundamentando (na teoria e na prática) os benefícios do desenho e dos
trabalhos manuais na educação integral de todo o cidadão moderno. Ao desenho – entendido
como “sublime tecnológico” e instrumento de uma dupla “salvação” individual e nacional
(Martins, 2012, p. 118) –, vinham agora aliar-se os trabalhos manuais na consagração dos
“métodos de ensino intuitivo” e da “expressão livre”, inspirados nos princípios do self-
gouvernment e do learning by doing, advogados pela expertise pedagógica internacional. Em
Portugal, estes princípios foram introduzidos na Casa Pia de Lisboa, nas primeiras décadas
do século XX, por Aurélio da Costa Ferreira e Palyart Pinto Ferreira (Cabeleira, 2010, p.
114,123).
Com efeito, desde o final do século XIX, a disciplina de desenho foi-se afirmando,
consolidando um lugar inquestionável nos currículos do ensino público e, assim, impondo a
sua hegemonia (duplamente visual e manual) em detrimento das restantes artes. Os
diferentes currículos do desenho foram-se organizando e estabilizando uma estrutura e
conteúdos comuns (ensinos técnico e liceal). A partir de 1905 começa a observar-se a
emergência de “uma tendência que valoriza o Desenho como fator de desanuviamento
intelectual, educação moral e estética” (Brito, 2014, pp. 5-6). A este respeito, na 1ª República
as “ideologias educativas” e as “abordagens filosóficas” começam a convergir numa nova
“concepção da escola e do educando” que procura “aproximar o aluno e o professor” através
do potenciamento de uma “didática das matérias escolares” em “oposição ao ensino
dogmático e diretivo”, ou seja, uma didática em que “o interesse” da criança fornece o
leitmotiv da aprendizagem (Brito, 2014, p. 6; Fróis, 2005, pp. 183-184). É também neste
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EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
contexto que se começa a consolidar, entre nós, um imaginário social e cultural que identifica
sistematicamente “a arte” com os dois lugares que, desde então, lhe passaram a estar
reservados no interior do currículo escolar: “a arte” é aquilo que se faz nas disciplinas de
desenho e trabalhos manuais. Foi também dentro desta mesma racionalidade que equipara
“arte” a “desenho” e “trabalhos manuais”, que “a arte” passou a ser considerada “como factor
importante de educação”, segundo a convicção pedagógica generalizada de que “as
aprendizagens realizam-se sempre pela prática no aprender fazendo” (Fróis, 2005, p. 184). Isto
é, partindo do princípio defendido por Palyart Pinto Ferreira de que “na escola não há
espectadores, não deve haver senão actores, e são as crianças que devem representar a
peça” (Ferreira, 1914, p. 251). Na educação da Escola Nova “todas estas ideias são
acompanhadas pela apologia da inovação, mesmo no que diz respeito à alteração das
condições físicas da aprendizagem: a sala de aula deveria ser um espaço atractivo e alegre”
(Fróis, 2005, p. 184).
Juntam-se a estes primeiros defensores da “arte na escola” figuras como João de Barros que
durante a 1ª República se envolveu numa intensa campanha de sensibilização pública quanto
ao papel da arte na “sociedade democrática”, elogiando a criação dos primeiros Jardins-
Escola (1911-14) e a propagação do respetivo “método João de Deus” que lançara “as bases
da escola nacional moderna”: o respeito pela “personalidade” e “liberdade” da criança. A tese:
“a primeira educação deve ser artística” foi sobretudo apoiada por intelectuais-políticos como
Cardoso Júnior ou Leonardo Coimbra (CNE, 1999, p. 1577; Carvalho, 2008, p. 669), e também
por pedagogos como Faria de Vasconcelos e os membros do grupo Seara Nova (Marques,
2012).
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EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
Desde finais dos anos 1940 até 1970 – os chamados “anos de sementeira” do Movimento de
Educação pela Arte – duas linhagens de “pioneiros” e “militantes” (Santos, 2014[2013]) foram-
se afirmando e demarcando os seus dois respetivos territórios especializados (embora
convergentes) de atuação no campo da educação pela arte: por um lado, a linhagem de
educadores-artistas ou “metodólogos” (Brito, 2014, p. 8; Fróis, 2005, p. 189) que defenderam
as especificidades técnicas, cognitivas e comunicativas das linguagens artísticas (com
particular ênfase, na linguagem visual e respetivas didáticas) e, por outro, uma linhagem de
médicos e pedopsiquiatras que advogavam os benefícios curativos e formativos da arte na
revelação e desenvolvimento global da ‘personalidade’ e do ‘carácter’ de todo o ser humano.
Estes últimos foram claramente dominantes, como Arquimedes da Silva Santos, um defensor
da “importância da atividade pedagógica pelas expressões artísticas no desenvolvimento,
bio-sócio-psicologicamente, de crianças e adolescentes" (Santos, 2014 [2013]). Por outro lado,
é também no final dos anos 1940 que se assiste à emergência, em Portugal, da educação
artística no contexto dos museus, com as iniciativas de João Couto no Museu Nacional de
Arte Antiga (Fróis, 2005, p.185).
Num texto em Homenagem ao professor Calvet de Magalhães, Maria Emília Brederode dos
Santos confirma: “Nikias Skapinakis dá-nos conta da existência de dois grupos em Lisboa”,
integrados “no movimento que se gerou à volta dos conceitos de desenho e pintura livres". O
primeiro era formado pela professora Cecília Menano (escola Avé Maria e atelier particular),
pelo psiquiatra João dos Santos e ainda pelo professor brasileiro Augusto Rodrigues. O
segundo grupo assentava na colaboração de Calvet de Magalhães com a professora Alice
Gomes (Liceu Francês). Entre 1957 e 1961, o artista Nikias Skapinakis – então professor de
“Cursos Livres de Educação Artística” no Liceu Francês Charles Lepierre e também de
Educação Plástica e de Didática do Desenho, além de coorientador de estágios das alunas na
escola Beiral, no Instituto de Educadoras de Infância (dirigido por Mitsa) –, colaborou
regularmente com os dois grupos. Foi nesse contexto colaborativo que, em 1957, Nikias se
propôs “avaliar e denunciar a situação retrógrada do ensino escolar”, organizando o Ciclo de
Conferências: Educação Estética e Ensino Escolar, que contou com intervenções de vários
defensores da Educação pela Arte, em Lisboa e no Porto (Santos, 2014[2013]). As respetivas
comunicações viriam a ser publicadas em 1966 com prefácio de Delfim Santos.
A comunicação apresentada por João dos Santos nesse Ciclo de Conferências “é justamente
considerada como o acto fundador da Educação pela Arte em Portugal ao esclarecer os
conceitos de arte infantil, expressões artísticas, educação e ensino artístico” (Morais, 2013,
p.2). Por seu lado, Arquimedes Silva Santos, pedagogo e psiquiatra com forte implantação no
Centro de Investigação Pedagógica (CIP) criado em 1962 na Fundação Calouste Gulbenkian
(FCG), teve um papel essencial na formação de professores de arte e na difusão de uma
“visão integrada de todas as artes a partir de uma abordagem psicopedagógica muito
parecida com o que hoje entendemos por arte-terapia” (Eça, 2008, p. 28). Mas serão,
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EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
Ainda neste contexto, refira-se que o período temporal que se seguiu à instauração do
‘regime ditatorial’ (1926) tem sido pouco historiografado no que concerne à educação
artística. Dado que foi um período bastante fértil e conturbado em matéria de produção
legislativa, nem sempre os historiadores da educação deram atenção ao caso específico do
ensino artístico. Neste capítulo, em particular, muito há ainda por investigar. Para já, é-nos
impossível superar uma certa versão ‘oficial’ da história, que diz o seguinte: “o regime
ditatorial instaurado na sequência do 28 de Maio de 1926, não propiciaria o desenvolvimento
curricular destas matérias” (CNE, 1999, p. 1577).
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EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
‘oficiais’ – como foi o caso da própria Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) que, desde 1956,
funcionou como uma espécie de ministério da cultura ao lado ou na sombra das instituições
oficiais. Desde os anos 1950, assistimos em Portugal a uma irrupção de organismos culturais
ligados a diversos movimentos sociais (mais ou menos clandestinos e subversivos como, por
exemplo, o associativismo estudantil), no seio dos quais se constituíram inúmeros grupos e
agremiações dedicados ao teatro, ao cinema, à música e à dança, nas suas vertentes mais
‘amadoras’, ‘experimentais’ e ‘vanguardistas’. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, estes
organismos culturais desempenharam um papel de contestação ao regime ditatorial e às
suas políticas culturais monopolistas, afirmando-se efetivamente como instituições de uma
cultura artística bastarda – para retomar aqui uma expressão de Pierre Bourdieu – ao
advogarem para si um estatuto marginal e alternativo que as colocava na linha da frente de
uma contra-cultura intelectual e artística (anti-regime) cuja marca de distinção identitária se
afirmou, precisamente, a partir da normalização e naturalização de um discurso (e
posicionamento) essencialmente crítico em relação à ‘pedagogia tradicional’ e às fórmulas
educacionais ‘esclerosadas’ da escola pública ‘oficial’ (Cabeleira, 2013). Daqui se retira uma
espécie de regra para a educação artística em Portugal, regra essa que perpassa todo o
discurso dos artistas, alunos e professores de arte (quase sem excepção): “o tema escola há-
de prestar-se sempre a lamúrias” (Castro et al, 1980, p. 27).
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EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
efetivamente operado nos anos 1970, e a “educação visual” e “musical” se tenham tornado
“disciplinas obrigatórias do currículo de educação básica”, após essa mesma data, a
passagem das nomenclaturas às práticas não foi pacífica nem isenta de anacronismos. Com
efeito, só em 1986, com a publicação da primeira Lei de Bases do Sistema Educativo se
reuniriam condições para a efetiva “estabilização” da “atmosfera de experimentalismo vivida
no período revolucionário” (Eça, 2008, p. 30; Brito, 2014, p. 5, 147).
Esta atmosfera de experimentalismo vivida nos anos 1970 (e década seguinte), teve por
antecedente direto o projeto de reforma do Ministro da Educação Nacional, Galvão Teles, que
encomendou, para o efeito, um Parecer à Junta Nacional de Educação, designando como seu
relator António Lopes Ribeiro (por Despacho de 27 de janeiro de 1967). No mesmo ano, o
Ministro decretou a “realização de experiências pedagógicas em estabelecimentos de ensino
público”, incluindo na categoria de “experiências pedagógicas” algumas “inovações” como os
“ensaios de novos métodos didácticos” e o “funcionamento experimental de novos tipos de
estabelecimentos de ensino (escolas-piloto)” (MEN / GEPAE, 1967, pp. 269-270). Este
experimentalismo foi também potenciado pela FCG e pela equipa de especialistas que ali se
reuniram e que foram chamados a aconselhar o Ministro Veiga Simão no seu projeto de
Reforma.
Com efeito, uma certa memória e um certo discurso da educação artística sobre si mesma,
localiza o momento da sua emergência algures na década de 1950, entre o aparecimento da
FCG em 1956 e a criação da Associação Portuguesa de Educação pela Arte (APEA) em 1957.
Figuras como Madalena Perdigão, Arquimedes da Silva Santos, Alice Gomes, Cecília Menano,
João dos Santos, Delfim Santos, Rui Grácio, com formação específica no campo artístico,
pedopsiquiátrico, pedagógico (e outras), trabalharam nas várias frentes de combate, quer
pela integração da educação artística nos currículos da escola pública, quer pela
diversificação da oferta educativa não-formal em museus e instituições culturais. Foi também
esta geração que deu visibilidade (e gerou soluções) ao problema mais premente que então
se colocava: a formação de professores, dando origem à Escola Superior de Educação pela
Arte em 1971. No contexto da Reforma Veiga Simão, e na discussão alargada que ela gerou
em todos os setores da sociedade, esta geração de educadores afirmou o seu estatuto de
especialistas da educação artística, tendo efetivamente monopolizado os discursos e ações
sobre o tema. Sabemos hoje que muitas das propostas por eles avançadas não chegaram, na
época, a integrar os programas e os currículos do ensino artístico. Porém, o seu contributo
inspirou decisivamente as seguintes gerações e suas propostas de reestruturação dessa área
curricular.
No final dos anos 1960, a ideia de “democratização” do sistema educativo “chegou também
ao ensino artístico”. O Plano de Fomento acabaria por impactar o ensino artístico de dois
modos: por um lado, colocando na ordem do dia “a criação, consolidação e expansão” deste
tipo de ensino “de modo a minorar os efeitos geográficos e socioeconómicos” que até aí
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Enquanto obreiro do projeto de reforma democrática, o legado mais duradoiro deixado por
Arquimedes às gerações vindouras foi a “formação de professores”, consolidando a “ação
decisiva de metodólogos relevantes” para a “didática do desenho” nas décadas de 1950-70.
Um exemplo disso: a Conferência de Estágio (Liceu Normal Pedro Nunes, 1967) e as
“experiências introduzidas por Elisabete Oliveira” num período caracterizado pela “procura de
novos caminhos na disciplina de Desenho” (Brito, 2014, p. 8). Teresa Eça (2008) confirma:
Ao longo dos anos, Arquimedes contou a história das experiências e dos eventos ocorridos
nas instituições por onde passou e nas tarefas em que esteve envolvido. Concedeu várias
entrevistas e publicou títulos como: Perspectivas Psicopedagógicas (1977), Escola de educação
pela arte: uma experiência pedagógica no Conservatório Nacional de Lisboa (1981), Mediações
artístico-pedagógicas (1989), Breve retrospectiva do movimento da educação pela arte em
Portugal (2000), entre outros. Quanto às atividades desenvolvidas no CIP da FCG, “não se
conhecem os estudos que aí se realizaram, isto é, a concretização de acções de pesquisa
psicopedagógica” (Fróis, 2005, p.186). Sabe-se apenas que a Escola Superior de Educação
pela Arte foi objeto de uma avaliação realizada por Maria Emília Brederode Santos, Manuela
Malpique e Joana Pacheco de Castro (1994).
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Do sonho à realidade: “até à década de 80, a legislação que regulamentava o ensino artístico
remontava à década de 30” (CNE, 1999, p. 1577).
Desde finais dos anos 1960 até ao fim dos anos 80, o problema da formação de professores
foi o mais diagnosticado pelos grupos de trabalho nomeados pelo Governo para apresentar
resoluções a esse mesmo problema. No caso das “disciplinas de índole artística”, a situação
era de tal ordem que Rocha de Sousa acusava – ambos “governantes e governados” – de
“indolência cultural”, uma vez que desde 1932 se tinha tornado prática corrente incumbir “os
Cursos Superiores de Formação Artística – Pintura, Escultura e Arquitectura” de assegurar “a
capacidade bivalente para a exploração plástica e para a docência em torno dela” (Sousa,
1980, p. 70; Fróis, 2005, p. 187). Porém, ainda que as Escolas de Belas Artes (tornadas
‘superiores’ depois da reforma de 1957) tenham acolhido a “formação de professores”, o
facto é que “sempre rejeitaram qualquer responsabilidade na formação docente”, daí que o
Ministro Veiga Simão se tenha proposto “organizar a formação pedagógica dos docentes na
teoria e na prática”. Contudo, e uma vez que a criação dos Institutos Superiores de Educação
Artística não passou das “intenções”, “a possibilidade de a própria instituição formadora de
artistas participar na formação inicial de professores”, saiu gorada. Em plenos anos 2000
continuava a “colocar-se a sílaba tónica na exigência de uma formação adequada em Artes
Plásticas” (Saraiva, 2000, pp. 41-42).
249
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
No plano do ensino artístico especializado, os anos 1980 serão marcados, sobretudo, pelos
debates e iniciativas legislativas em torno da música. Durante décadas, este “subsistema” foi-
se construindo historicamente sob “o paradigma da especificidade” e, desse modo, “o
carácter excepcional destas aprendizagens conferir-lhe-iam um lugar à parte, inacessível aos
não iniciados”. Por outro lado, a “forte resistência à mudança” que caracterizava este
subsistema, fez com que “a administração sentisse especialmente necessidade de o
conhecer”. Por se tratar de “um caso à parte”, o ensino especializado da música foi o domínio
educativo mais “estudado fora da lógica do trabalho universitário”. O Decreto-Lei nº 310/83,
de 1 de julho foi a iniciativa legal que resumiu o prolongado desejo do Estado português em
procurar “regular estas aprendizagens, inserindo-as no interior do sistema educativo e
promovendo a sua integração curricular”. Porém, ainda que o Governo tivesse procurado,
sistematicamente ao longo de várias décadas, “sustentar e legitimar em estudos empíricos a
mudança política” no ensino da música, “a mudança insistia em tardar”. As medidas
legislativas tomadas na primeira metade dos anos 1980 pouco impacto produziriam nas duas
décadas subsequentes, tendo culminado, em 2006, numa encomenda do Ministério da
250
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
251
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
No fundo, a situação da educação artística em Portugal, nos anos 1990, podia resumir-se
nestes termos:
252
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
Não existindo, em Portugal, qualquer curso de formação avançada no campo artístico, “nos
anos 1990, muitos portugueses, professores de educação artística e psicólogos, foram cursar
especialização no estrangeiro, sobretudo na Espanha, Inglaterra e nos Estados Unidos.
Trouxeram tendências típicas da educação nesses países” (Eça, 2008, pp. 28-29). Talvez não
por mero acaso, o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura nomearam um “grupo
interministerial” (M. E. Brederode dos Santos coord.) para estudar o ensino artístico, cujo
“relatório síntese” sairia em Maio de 1996. No ano seguinte, um grupo de trabalho interno
(M. de Fátima Lambert coord.) era nomeado pelo Governo para “ir iniciando os trabalhos
necessários ao funcionamento da Comissão para o Ensino Artístico” e para fazer “o
253
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
Atenta a todas estas realidades, a FCG tratou de produzi-las antes de qualquer outra
instituição. Desde 1999 apostou, mais do que nunca, na investigação, inovação, qualidade.
254
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
Toda a história (por demais complexa) dos factos e eventos que se seguiram nas décadas
seguintes, fica aqui por esclarecer. Termino com a menção a mais dois eventos (sem
acrescentar grandes comentários). Em primeiro lugar, a famigerada Conferência Mundial
sobre Educação Artística da UNESCO (2006), onde a retórica em torno da “criatividade” e dos
“projectos de educação artística feitos em parceria no âmbito do ensino não formal” gerou
uma “onda de popularidade da educação no mundo da cultura oficial portuguesa” (Eça, 2008,
p. 34). Em segundo lugar, menciono o infame (segundo a opinião pública do sector) Estudo de
Avaliação do Ensino Artístico (publicado em 2007 sob coordenação de Domingos Fernandes),
que gerou uma onda de contestação no terreno do ensino artístico especializado da música.
No rescaldo da sua discussão pública (e do alarido que daí decorreu), a equipa responsável
pelo relatório assumia que, desde 2007, se mantinha “a mesma lógica da separação e da
fragmentação, própria de uma administração que, na prática, continuou a decidir como
sempre havia feito até então, ou seja, de forma casuística e sem uma estratégia e um rumo
definidos” (Fernandes, Ó & Paz, 2014, p. 2).
Em jeito de conclusão, deixo a imagem dessa espécie de cadáver esquisito que é hoje a
situação das educações artísticas, quer na escola pública, quer fora dela:
255
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA EM PORTUGAL: UM OLHAR SOBRE O ESTADO DO CAMPO (1970-2017)
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Arte/Educação/Educação
pela Arte: o papel das
Artes para o
desenvolvimento
integral do ser
humano
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS
NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO
DA CONTEMPORANEIDADE
Mónica Oliveira
Universidade Católica Portuguesa
CEDH -Centro de Estudos em Desenvolvimento Humano
Escola Superior de Educação Paula Frassinetti e
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade da UP
[email protected]
Resumo
Abstract
The study that intends to present, summarizes a research project, aimed at the
sustainable development in Pre-school Education. The project gathers a set of
activities related to different themes that integrate the current society. With a
transverse and flexible character, the activities aim to be challenging of multiple
knowledge through active methodologies and aim to promote in an integrated
way the different guidelines suggested for Pre-school Education, as well as to
present the most recent investigations in the area of artistic education. From this
project the following objectives emerge: i) Design and implement a set of artistic
proposals related to citizenship; ii) Understand the impact of the proposed
activities on children's learning. The qualitative research was carried out
considering a sample of 440 children and 20 educators. The instrument for data
collection focused on semi-structured interviews with educators. The results
indicate that the activities put into practice have proved to be fundamental for
the acquisition of several competences related to the integral development of the
child, namely, expression and representation of ideas and emotions, visual
perception, creativity, cooperation, autonomy, critical thinking and enabled
educators a new way of working, centred on pedagogical innovation, betting on
processes and not only on products, in paths and not only on goals, that allow us
to find other ways of organizing and living education through art capable of
meeting the demands of contemporaneity and processes of permanent change.
263
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
Constituindo-se a educação artística como uma área do saber que permite desenvolver a
criatividade, a comunicação e a construção de novas ideias, potenciadoras da exploração e da
transformação do mundo, ela torna-se uma das formas mais significativas de promoção da
cultura, constituindo-nos impulsionadores do desenvolvimento cultural. Neste sentido, a
educação tem como função desenvolver ou criar as disposições para a cultura, atuando como
suporte de uma prática duradoura e intensa já que, como afirma Baudrillard (1998), "não é
possível escaparmos à nossa própria cultura" (p. 60). Como tal, é importante que as crianças
sejam estimuladas desde cedo para o desenvolvimento de competências que lhes permitam
compreender o mundo que as rodeia para que possam contribuir para o desenvolvimento da
sua cultura, de forma refletida e construtiva.
Outro aspeto a considerar é a falta de momentos educativos para apreciar e fruir a arte.
Plasmado nas Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar (OCEPE), “é fundamental
que […], as crianças tenham oportunidade de apreciar, e de dialogar sobre aquilo que fazem
(as suas produções e as das outras crianças) e o que observam (natureza, obras de arte,
264
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
arquitetura, design, artefactos, etc.)” (Lopes da Silva, Marques, Mata & Rosa, 2016, p. 49), na
prática é desconsiderado pela maioria dos educadores. A criança não pode/não deve
continuar a ser vista apenas como um produtor espontâneo, mas sim como um sujeito
criativo, influenciado pela cultura, como um fruidor em potencial, tendo todo o património
artístico da humanidade à sua disposição. Como se pode ler nas OCEPE, a criança ao falar,
ver e interpretar imagens, “enriquece o seu imaginário, aprende novos saberes, integra-os
nos que já sabe, e experimenta criar novas imagens, desenvolvendo progressivamente a sua
sensibilidade estética e expressividade através de diversas modalidades (desenho, pintura,
colagens, técnica mista, assemblage, land art, modelagem, entre outras)” (Lopes da Silva,
Marques, Mata & Rosa, 2016, p. 49). Para tal, é essencial, por um lado, dotar os jardins-de-
infância, com “imagens de obras de arte […] de modo a que sejam um meio de alargamento
e enriquecimento cultural e de desenvolvimento da apreciação crítica” (Lopes da Silva,
Marques, Mata & Rosa, 2016, p.50) e, por outro lado, fornecer aos educadores os
instrumentos educativos necessários para que se sintam aptos a fruir as obras de arte e que
os aproxime da poética das manifestações artísticas, potenciando o seu aspeto cognitivo,
transformador e afetivo. Como afirma Bourdieu e Darbel (2007), “a obra de arte considerada
enquanto bem simbólico não existe como tal a não ser para quem detenha os meios de
apropriar-se dela, ou seja, decifrá-la” (p. 71). Mais se acrescenta, que os observadores menos
experientes não estão menos aptos a ver arte, têm, isso sim, menos ferramentas para o
fazer.
Salientamos ainda que é o descompasso entre o que se apresenta como arte na Educação
Pré-escolar e o que se produz como arte atualmente. Bourriaud (2009) afirma que “a arte é
uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo” (p. 147). E, neste sentido, a
arte contemporânea como meio de representação da nossa realidade, torna-se uma
construção social, espelhando a perceção que temos de nós próprios no mundo,
possibilitando-nos assumir modelos de identidade e comportamento. Tais representações
podem estimular uma reflexão sobre a própria vida, ajudando o indivíduo a compreender o
presente e a criar alternativas para o futuro, “também conscientiza os homens de sua união
uns com os outros na origem e no destino” (Dewey, 2010, p. 62). De uma forma geral, as
questões relativas às obras de arte apresentadas em contexto educativo dificilmente
abordam os tempos artísticos contemporâneos. A Educação de Infância tem demonstrado
ter alguma dificuldade em acompanhar as mudanças culturais e sociais que vivemos nas
últimas décadas nas artes visuais. Como principal consequência, a arte torna-se, na
educação, uma produção do passado, na qual tudo é muito distante dos dias de hoje e do
quotidiano das crianças, pese embora no documento oficial das OCEPE se possa ler: “A
capacidade de criar e apreciar é ainda alargada através do contacto e observação de
diferentes modalidades das artes visuais […], em diferentes contextos […] permitindo à
criança a inserção na cultura do mundo a que pertence” (Lopes da Silva, Marques, Mata &
Rosa, 2016, p. 50). As crianças precisam do contacto com as mais variadas formas de
265
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
manifestações artísticas para que possam experimentar e serem estimuladas para uma
reflexão sobre a própria vida.
A resposta a esta pergunta não é fácil. No entanto, não tem mais sentido pensar as artes
visuais na Educação Pré-escolar como um espaço “estanque” quando à nossa volta temos
uma sociedade em constante mudança (Eça, 2016). Acreditamos que será a partir da
construção de novos equilíbrios entre um processo radicado na reflexão crítica e uma ação
consciente, construtiva e inovadora que as alterações educativas se poderão fazer sentir.
“Fazer diferente ou fazer a diferença […] supõe-se um conhecimento agudo sobre o que a
escola tem sido. Todos precisamos não da verdade, como se ela fosse uma só, o que
felizmente não virá nunca a ser, mas precisamos da coragem da verdade para romper o
círculo e cerco em que estamos” (Ramos do Ó, 2016, p. 218).
Daí que se torne urgente eliminar distâncias entre arte e vida, interpretar e criar arte,
compreender e experimentar arte, entre o processo criativo e o resultado final, a
singularidade e a identidade coletiva. Assumir uma aproximação às práticas e processos
artísticos atuais, capazes de instigar uma mudança quer na forma de pensar a arte, quer no
modus operandi da educação artística, através do desenvolvimento de estratégias
pedagógicas diferenciadas, que favoreçam uma atitude de disponibilidade para uma
modificação constante do pensamento a partir das práticas, experimentações e
conhecimentos artísticos, conducentes ao sucesso e realização de cada criança, no quadro
sócio cultural da diversidade das sociedades e da heterogeneidade dos sujeitos.
266
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
E é neste encalço, tendo por base os pressupostos pedagógicos acima enunciados, que surge
o projeto intitulado: As Artes Visuais para o desenvolvimento da cidadania, que pretendeu
mobilizar as crianças e os educadores para a construção de uma educação para a
sustentabilidade, cidadania e diversidade cultural e que revela o mundo em que vivemos,
tendo por base a arte contemporânea. Tentando suprir algumas das lacunas antes
mencionadas existentes na Educação Pré-escolar, definiu-se uma arquitetura educativa que
teve por base pressupostos humanistas, de cooperação, fomentando a pesquisa como forma
de aprendizagem pela descoberta, tendo em consideração um caráter lúdico e heurístico
com o objetivo de motivar para a aprendizagem, onde se viveu a democracia, a tolerância e a
cidadania, pensando-se o mundo atual para nele se intervir (Canário, 2005). Este projeto, que
espelha a nossa cultura e o nosso património artístico, pretendeu ir ao encontro do
entendimento sobre o mundo em que vivemos, possibilitando diferentes formas de pensar e
ver, ou seja, diferentes leituras do nosso lugar no mundo que resultem na promoção de uma
cidadania ativa orientada para a transformação, para a mudança, para a inovação e para a
adaptação ao contexto atual.
Metodologia
No que diz respeito às técnicas de recolha de dados, foi realizada uma entrevista
semiestruturada aos educadores que participaram no projeto por permitir uma maior
liberdade de expressão e uma maior flexibilidade na condução das questões incluídas no
guião. Como salientam Bogdan e Biklen (1994), “A entrevista é utilizada para recolher dados
descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver
intuitivamente uma ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspetos do mundo”
(p. 134). Para o desenho do guião teve-se em consideração os objetivos do projeto: i)
Conceber e implementar um conjunto de propostas artísticas relacionadas com a cidadania;
ii) Compreender qual o impacto das atividades propostas na aprendizagem das crianças.
267
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
Procedimentos
Antes da implementação das atividades com as crianças, os educadores frequentaram uma
ação de formação de 50 horas presenciais com os seguintes objetivos: i) Desencadear a
reflexão crítica e sistemática sobre os conceitos que subjazem o projeto, nomeadamente
sobre arte contemporânea, cidadania e didática; ii) Conhecer e debater as temáticas das
atividades (O meu lugar no mundo; Eu e os outros; A minha família; Somos todos diferentes;
Em busca da vida saudável e [email protected]); iii) Desenvolver estratégias educativas
criativas, inovadoras, colaborativas e perceber o seu contributo para a mudança das práticas
pedagógicas.
As atividades foram implementadas no tempo que permeava cada uma das sessões
presenciais. Os educadores, no início de cada sessão, apresentavam a atividade colocada em
prática relatando a sua experiência com as crianças, partilhando contributos potenciadores
da aprendizagem, assim como constrangimentos que permitiram os reajustes necessários.
Os materiais, que suportaram a exploração das diferentes atividades, foram-lhes
disponibilizados no decorrer da ação de formação pela formadora (investigadora).
Participantes
A população alvo deste estudo é constituída por 440 crianças de 4 e 5 anos, que corresponde
a 10 salas de crianças de 4 anos e 10 salas de crianças de 5 anos do distrito do Porto. Da
amostra recolhida, 6 instituições são de Ensino Particular e 4 de Ensino Público. A
implementação das atividades envolveu 20 professores, cuja maioria possuí idades
compreendidas entre os 45 os 49 anos. Em termos de habilitações, 16 dos Educadores são
detentores do grau de mestre e 4 possuem o grau de licenciado.
268
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
Resultados
Apresentam-se de seguida e de forma resumida os principais resultados obtidos. Da análise
das entrevistas emergiram várias categorias (embora neste trabalho seja apresentada
apenas uma): O impacto das atividades na aprendizagem das crianças. Desta categoria
realçamos as seguintes subcategorias: Motivação e interesse na realização das atividades
propostas; Aquisição de novos conhecimentos; Desenvolvimento de competências. No que
concerne à motivação e interesse na realização das atividades propostas, no entender de
95% dos educadores, as atividades cativaram o interesse das crianças pelo facto de serem
inovadoras, rompendo com uma lógica educativa formatada e centrada em rotinas
expectáveis. No caso concreto, os textos que enunciam as atividades foram desafiantes,
promoveram uma interação e um diálogo aberto e reflexivo entre as crianças, que se podem
verificar nos seguintes testemunhos: “O título da atividade era enigmático e atrativo.” (E1); “O
texto da proposta criava sempre um grande impacto nas crianças e aguçava-lhes a
curiosidade.” (E6); “Queriam sempre ver mais obras artísticas e artistas para além dos
apresentados.” (E10). 80% dos interlocutores referiu também a importância das metodologias
serem problematizadoras, ativas e colaborativas: “as crianças tiveram de enfrentar desafios,
encontrar soluções para os problemas colocados pelas atividades.” (E4); “discutiram ideias
entre elas, antes e durante o processo criativo.” (E9). Já 75% dos educadores afirmaram que o
interesse das crianças nas atividades advinha do caráter lúdico e heurístico, como referem os
seguintes testemunhos: “as crianças enquanto desenvolviam as atividades, brincando,
estruturaram o pensamento, ultrapassaram dificuldades e isso é bastante inspirador.” (E12);
“a utilização do jogo como ferramenta pedagógica, permitiu às crianças encontrar soluções
alternativas, diversificadas e criativas” (P7); “o caráter lúdico “espicaçou” a participação das
crianças nas atividades.” (E8)
No que diz respeito à aquisição de novos conhecimentos, foi mencionado por 95% dos
educadores a aquisição de conhecimentos específicos da arte, mais concretamente de
diferentes técnicas e a exploração de diversos materiais, assim como o conhecimento de
obras de arte e artistas contemporâneos que suscitou nas crianças um maior respeito pelo
processo de produção e criação atual: “conheceram diferentes técnicas.” (E6); “Tiveram acesso
a diferentes materiais explorando as suas características e propriedades.” (E13); “Sabiam os
nomes de vários artistas e conseguiam identificar as caraterísticas da sua obra.” (E11). 80%
dos educadores afirmaram que as atividades permitiram às crianças ampliar o conhecimento
que possuem do mundo. Esta experiência deu-se através do diálogo que se estabeleceu
através da observação e fruição de trabalhos artísticos que lhes permitiram aceder aos seus
significados e mensagens e refletir sobre eles, indo ao encontro dos temas que fazem parte
do nosso quotidiano: “As crianças apresentavam interpretações das obras, mas o que mais
269
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
gostavam era de saber o que o artista queria transmitir.” (E17); “Perceberam que as obras
servem para comunicar ideias e falar da nossa vida.” (E3). Por último, 50% dos educadores
mencionaram que a aprendizagem foi pluridisciplinar integrando múltiplas inteligências,
diversas formas de aprendizagem de um modo harmonioso: “As crianças mobilizavam para
cada trabalho diferentes saberes.” (E9); “Encontram soluções integradoras de diferentes áreas
do conhecimento.” (E15).
Também foram mencionadas, por 85% dos educadores, competências transversais das quais
se destacam a relação interpessoal, a autonomia, a cooperação e o pensamento crítico: “As
crianças além de descobrirem o seu mundo pessoal relacionar-se com os outros”(E4);
“Enfrentaram desafios buscando soluções artísticas sem recorrer à ajuda da educadora”
(E19); ”Trabalharam sempre em conjunto, ajudando-se uns aos outros.”(E9); “Apresentaram
uma consciência crítica, identificando problemas/situações e apresentando soluções”(E6).
Considerações Finais
A educação atual, influenciada por profundas incertezas, deve ser olhada como um período
impregnado de dúvidas e problemas diversificados, mas também impregnado de
possibilidades e mudanças que nos podem levar a (re)inventar soluções, a produzir
alternativas, a gerar respostas divergentes e plurais, a olhar de maneira diferenciada as
práticas pedagógicas. E este projeto é disso exemplo, pois a implementação das atividades
teve uma ampla e positiva receção por parte dos educadores e das crianças e consequências
educativas que ficaram plasmadas na promoção de oportunidades de aprendizagem e no
desenvolvimento de competências que concorrem para a construção de cidadãos críticos,
éticos e participativos nos contextos que integram. O projeto buscou novas ideias em vez de
uma linha contínua baseada na tradição e na rigidez, foi ao encontro da diferença e da
270
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
A intervenção educativa, centrada nas artes visuais, converteu-se numa narrativa educativa
cujos recursos permitiram às crianças e aos educadores conhecer novos mundos, mais
alargados e diferenciados, adequando-os às exigências de uma sociedade, também ela, num
processo de mutação profunda. Freire (2011) afirma que “ensinar exige compreender que a
educação é uma forma de intervenção no mundo” (p. 98). Abriu possibilidades às crianças de
ser, pensar e fazer de forma inventiva, sensível e criativa, permitindo-lhes vivenciar novas
formas de comunidade e conceber de modo mais amplo a alteridade. Para tal, muito
contribuiu a utilização de metodologias ativas, de descoberta e problematizadoras, marcada
pela ação/experiência através da qual as crianças tiveram oportunidade de questionar e de
refletir sobre o conhecimento artístico com vista a construir e resolver problemas. Como diz
Fabre (2011), “Educar […] não pode ser impor um caminho, é antes dar uma bússola e mapas
para que cada um invente o seu próprio caminho, sem se perder em labirintos” (p. 19).
Outro aspeto a salientar no projeto foi a sua dimensão interdisciplinar através da articulação
de múltiplos saberes de acordo com uma lógica de aprendizagem rizomática,
verdadeiramente apta a responder ao mundo real. Eça (2010) afirma que “se apontarmos
para uma educação de qualidade, teremos de destruir tabus e práticas rotineiras baseadas
na discriminação e na competição, teremos de iniciar algo de novo, […] e mais perto do
diálogo interdisciplinar” (p. 131). Aliado a este aspeto surgiu o caráter lúdico das atividades,
promovendo um ambiente estimulante e desafiador. O jogo, a brincadeira, torna-se uma
“ferramenta ideal de aprendizagem, na medida em que se propõe estímulo ao interesse do
aluno, desenvolve níveis diferentes de sua experiência pessoa e social, ajuda-o a construir
novas descobertas, desenvolve e enriquece sua personalidade” (Santos, 2000, p. 37). Por
último, é ainda de realçar que as práticas artísticas encerram em si mesmo um conjunto de
conhecimentos que levam ao desenvolvimento de competências como a expressão e
representação de ideias e emoções, a perceção visual, a criatividade, bem como a relação
interpessoal, a autonomia, a cooperação e o pensamento crítico que são fundamentais para
o desenvolvimento integral da criança.
271
UM NOVO OLHAR SOBRE AS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: UM DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO
ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA
DE DESENVOLVIMENTO COGNITIVO,
AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO
1º CICLO DO ENSINO BÁSICO
Resumo
Abstract
In this paper we present a project that intends to perceive the importance of the
creation and elaboration of projects of artistic contents of global and
collaborative nature. In this typology of the project, the actors had the possibility
of improving several skills such as cognitive, creative, playful and musical in a
context of artistic and musical practice. It was developed within the scope of
curricular enrichment activities, so that those involved were in interaction and
strict collaboration, creating an artistic and musical content where the students
had a fundamental role in determining their technical-expressive contents. In this
project were involved 17 children between the ages of 6 and 9 years old. As
objectives, we intend to understand how this type of didactic-pedagogical
approach broadens the cognitive, creative, playful and musical skills of the
students, as well as how it strengthens the motivation and the capacity of
conception, production and memorization of contents by the stakeholders. In
this sense, a show was developed for which diverse contents of literary, musical,
scenic, dramatic and musical nature were created, and it was presented publicly.
For being considered fundamental, the theoretical aspects related to motivation,
creativity, dramatic and musical expression, improvisation and memorization will
be approached. Finally, we will also show the elements that express the need to
develop artistic and cultural practices in the classroom, at the level of the training
of students not only in the first cycle of basic education, but throughout their
training cycle.
Introdução
A criação de um objeto de arte, seja ele de que natureza for, possua ele as intenções que
possuir, é um processo que exibe o que de si o criador interprende e quer outorgar. Na sua
conceção, decisões e ruturas surgem a todo o tempo, sendo que a obra se manifesta não só
no conjunto desses atos, como no confronto constante de dois contrários, de duas forças das
quais o equilíbrio, sendo uma constante, se declara quase sempre escasso. A proposta de
implementação de um projeto colaborativo nas áreas das expressões procura ser um meio e
uma forma de empreender a criação de espaços de arte que se pretendem plurais e veículos
não só de aprendizagem mas, e sobretudo, de concretização de espaços de criação e
desenvolvimento da motivação para o desempenho de atividades e formas de expressão
artística que de outra forma não estariam disponíveis dentro do contexto escolar tradicional.
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA DE
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA DE
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
social e da comunicação interpessoal. Por outro lado, não será importante a escola promover
e expandir o sentido criativo dos seus alunos? Ao nível da iniciação musical não será
necessário, senão essencial, incentivar os alunos a criar as suas próprias músicas e letras
relacionadas com as suas vivências, sonhos e fantasias? A criação de coreografias e jogos
musicais associados a textos, sons, passagens musicais não se revelará um meio de
desenvolvimento físico-motor e sócio-afetivo?
O Processo Colaborativo
Para a elaboração de um projeto desta natureza, como é o caso de A Branca de Neve e os Sete
Foliões, foi escolhido como procedimento a construção e implementação de um projeto de
natureza colaborativa. Nesta tipologia de trabalho, todos os participantes são chamados a
intervir no processo, sejam eles pais, professores, alunos, assistentes operacionais, órgãos
consultivos e diretivos, comunidade, família. Sabendo da necessidade de formar, não só do
ponto de vista académico e científico, mas sobretudo do ponto de vista moral, social, ético e
cívico, foi decidido que seria realizado um espetáculo onde se apresentariam e trabalhariam
conteúdos delineados e planeados segundo os conteúdos e critérios de avaliação presentes
nos programas e metas curriculares dos alunos, mas também aqueles decorrentes dos
assuntos e temas da atualidade, e que são do conhecimento, discussão e reflexão geral,
nomeadamente a inclusão, o respeito, a diferença, a indiferença, o nós, o eu e o outro (Lopes
da Silva, 2016).
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA DE
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
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DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
espírito crítico face ao sonoro vivenciado e à forma como este poderia ser utilizado e recriado
no contexto de A Branca de Neve e os Sete Foliões. Por outro lado, quando necessário foi
solicitado aos intervenientes a criação de pequenas peças e excertos musicais para que as
mesmas integrassem o conjunto. Em seguida, procedeu-se ao ensaio de todo o conjunto da
obra criada e recriada, bem como à sua encenação num espaço de mais de dez sessões.
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA DE
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
Construção Do Projeto
Sabemos que todo o processo de criação implica a interrogação constante, o
questionamento. Os processos de corte e continuidade, bem como a sobreposição de
elementos distintos, por vezes díspares, que conduzem a resultados singulares, alargando
horizontes, permitem ao sujeito desenvolver mecanismos de pesquisa e autenticidade, de
escrita e comunicação ímpares. Estes são, no nosso entender, de cabal importância para a
aquisição de conhecimento. Não se trata somente de encontrar mas, acima de tudo, de
recorrer a uma memória adquirida noutros contextos e lugares, uma memória que mostre
bem as vivências, bem como o contexto e significação geográficos das mesmas (Sharp, 2004).
No desenvolvimento do processo colaborativo que desencadeou a realização do espetáculo A
Branca de Neve e os Sete Foliões, as crianças foram chamadas a intervir na determinação dos
seus conteúdos musicais e artísticos. Todas as ideias foram ouvidas, debatidas e aceites,
valorizando-se a intervenção das crianças nos contributos dados para a determinação do
produto final realizado, aula a aula, sessão a sessão, de uma forma metódica, colaborativa,
original e interpessoal. Na construção do projeto, o primeiro dos desafios foi o de encontrar
um tema adequado. Este deveria estar relacionado com os interesses e vivências das crianças
para que se tornasse apelativo e agradável à constante e continuada intervenção, bem como
ser realizável no tempo previsto e com os meios possíveis a todos (e que como sabemos
escasseiam na maior parte das instituições). Assim ficou decidido que todos deveriam
colaborar na decisão do tema inicial e dele gostarem, para que todos se sentissem motivados
para a concretização dos seus diversos conteúdos e para a implementação das suas
diferentes fases, bem como da sua realização final. Neste sentido, e como já referido, foi
selecionada a história infantil – A Branca de Neve e os Sete Anões. No entanto, e porque a
criação do espetáculo implicava a recriação da referida história de forma a incentivar a
criatividade, foi proposto que o tema fosse modificado de forma a permitir a discussão e a
reflexão sobre temas tão atuais como a identidade e a diferença, a inclusão e a rejeição, o
nós, o eu e o outro, de forma a discutir a necessidade de aceitação de todos e de cada um,
numa sociedade multirracial e multicultural como é a nossa. Neste fazer foi proposta a
alteração do tema para A Branca de Neve e os Sete Foliões. Por outro lado, e de forma a
permitir o estudo e reflexão sobre o tema reciclagem, todos deveriam ter a possibilidade de
conceber e executar o seu figurino sem a necessidade de despender monetariamente
qualquer quantia, e assim proceder de forma sustentável. Em outro, o espetáculo deveria ser
realizável em qualquer espaço físico e material de modo a estar acessível a todos e poder
determinar-se como factor de inclusão e transformação social, educacional, moral e cívica.
Neste sentido, e pelo facto de se constituir um factor de inclusão e transformação social,
educacional, moral e cívica, foram propostos, depois de analisados e discutidos os assuntos
refletidos no tema principal, diversos tópicos relacionados com as vivências, experiências,
atitudes e atividades preferidas das crianças, assim como da sua família, de acordo com o
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DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
tema base da história infantil selecionada. O agente responsável por cada grupo de trabalho,
recolheu as ideias saídas do trabalho criativo e colaborativo dos elementos pertencentes ao
seu próprio grupo. O objetivo principal era determinar características e ações a desenvolver
nas várias cenas propostas no guião, criar textos alusivos aos temas/tópicos selecionados,
com ou sem rima, embora se demonstrasse que com rima seria mais aliciante de usar.
Após todos os grupos terem terminado o seu trabalho, foram recolhidos os materiais e, de
forma colaborativa, selecionados os textos a utilizar. O processo não foi fácil exigindo tato e
diplomacia por parte dos dirigentes dos referidos grupos. Neste sentido, foram adquiridas
competências de diálogo e cooperação, aceitação e compromisso por parte de todos. Os
textos e as letras das canções propostas, inseridas nas canções e excertos musicais
selecionados do conjunto de materiais fruídos, discutidos e trabalhados, deram
progressivamente corpo ao espetáculo. Caso fosse necessário, ajustavam-se alguns versos e
sílabas de forma a respeitar a prosódia e a natureza da melodia e do ritmo. Numa segunda
fase, procedeu-se à sua inclusão no conjunto da narrativa de A Branca de Neve e os Sete
Foliões.
O facto de saber que há algo de pessoal concebido para o conjunto e para o todo, cativa o
interesse do agente na sua criação, acelerando o processo de memorização. Para facilitar o
processo de construção, encenação, ensaio e realização do espetáculo, o guião da história foi
construído de forma sequencial em várias cenas. Foram previstas seis cenas de forma a
melhor controlar a sequência dos conteúdos narrativos, musicais e cénicos, bem como a
aquisição dos diferentes conteúdos, sua memorização, ensaio e narração (ver Tabela 1).
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA DE
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BÁSICO
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DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
pela narrativa, facto que constitui um fator de motivação para a aprendizagem e prática
musical e interpretativa das mesmas. Contudo, no final foi selecionado um conjunto de
unicamente 6 canções, canções essas correspondentes às 6 cenas previstas no guião da
história (ver Tabela 2). As letras das canções foram trabalhadas em conjunto por todos os
intervenientes de forma a respeitar o que fora previamente determinado e construído pelos
alunos, mas também numa ação profunda por parte dos professores. Os textos inicialmente
realizados continham diversos desvios à prosódia e à constituição dos versos e sua relação
com a métrica da componente musical recriada. Por outro lado, foi necessário escolher
aqueles que se mostraram mais adequados ao guião (entretanto composto) e à dimensão
conseguida. No conjunto dos Sete Foliões, e fruto da natureza de cada um, o texto mostrou-
se muito completo, complexo e exigente do ponto de vista da narrativa. Assim sendo foi
decidido que se segmentaria de forma a ser mais fácil e rápida a sua memorização e
posterior concretização em obra. Do trabalho realizado surgiram os textos abaixo descritos
(ver Tabelas 3 e 4).
Tabela 2 – Designação dos temas das canções de A Branca de Neve e os Sete Foliões
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA DE
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
Tabela 3 – Excertos dos textos das cenas 1 a 3 de A Branca de Neve e os Sete Foliões
Cena – O Reino Encantado Cena - O Espelho Mágico Cena - A casa dos anões
Branca de Neve nasceu A Bruxa má descobriu Brincava na floresta
Num reino nunca No seu espelho fascinada Rezingão a reclamar
encontrado Que Branca de Neve vivia Com Branca de Neve
Que a uma história conduz Na floresta encantada arrumando
Nunca ela contada A sua casa de encantar
E logo pensou fazer
O seu pai que não sabia Uma maldade feroz Sete camas ela tinha
Com a Bruxa má casou Pegou num disfarce e lá foi Onde Branca de Neve caiu
Que alva a princesa era Para a floresta veloz e agitada Cansada de trabalhar
E do seu trono a destronou Quando a sua casa descobriu
(...)
Para a floresta fugiu Fugia da Rainha má
Sem demoras nem atrasos Que bruxa se tornara
E um reino de amor Sempre que ao espelho inquira
descobriu Da sua beleza nevada
Na floresta encantada
Tabela 4 – Excertos dos textos referentes às cenas 4 a 6 de A Branca de Neve e os Sete Foliões
Cena – Branca de Neve na Cena - O Príncipe
Cena – Os sete Foliões
Floresta Encantada Encantado
Sete foliões foram felizes Mas o Espelho a traiu E o príncipe que passava
Na floresta encantada E à Bruxa má revelou Ao ouvir tanto alarido
Para onde fugiu a princesa A existência da floresta Deparou-se com a princesa
Da Bruxa má sitiada Onde Branca se refugiou Em seu leito dormindo
Quando Feliz se aproximou E lá foi ela com a maçã Apaixonado ficou o Príncipe
Junto do seu leito deitada Que a princesa envenenou Ao olhar tanta beleza
Desmaiou de susto e Valeu-nos o príncipe Que seu cavalo parou
espanto encantado Para buscar a princesa
Com a beleza encontrada Que a este reino chegou
(...) E num beijo acordou
Miudinho de seu nome A princesa desmaiada
De espanto caiu redondo Os foliões contentes
E logo Sabichão se riu Com a princesa ressuscitada
Com tamanho estrondo
(...) Casaram e foram felizes
Faltou Rezingão falar O Príncipe e a Princesa
E todos o escutaram Foram logo a correr
Pois a sua alegria fazia furor Para o Castelo encantado
Na floresta encantada
(...)
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DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
E assim a obra nasce como no caso de A Branca de Neve e os Sete Foliões, de uma atividade
construída, encenada e apresentada no contexto da área de Expressão e Comunicação
constante nas Áreas de Conteúdo das Orientações Curriculares, Domínio da Educação
Artística, tendo como base perspetivas e estratégias comuns que englobam diferentes
linguagens, cuja especificidade determina a introdução de quatro subdomínios: artes visuais,
jogo dramático/teatro, música e dança (Magalhães, 1964). O contexto educativo em que
surge ilustra bem todos os aspetos sobre os quais até agora refletimos, bem como o
ambiente sócio e educativo que releva. Salientamos que o grupo manifestou uma clara
necessidade em elaborar uma atividade que o demonstrasse, englobando e refletindo todas
estas valências. Ponderando largamente sobre o assunto a abordar, decidiu-se pela recriação
da história infantil, um espetáculo apresentado publicamente como já referido. Por outro
lado, e de acordo com o documento das Orientações Curriculares, na educação artística, a
intencionalidade do professor e do educador é essencial para o desenvolvimento da
criatividade, alargando e enriquecendo a sua representação simbólica e sentido estético,
através do contacto com diversas manifestações artísticas de diversas épocas, culturas e
estilos, de modo a incentivar o seu espírito crítico perante diferentes visões do mundo (Lopes
da Silva, 2016). Assim sendo, o processo de criação, global, colaborativo e interativo, mostra-
se pertinente no desenvolvimento das capacidades cognitivas, organizativas, criativas e
musicais, bem como na ampliação da motivação e da capacidade de memorização e de
envolvimento social e afetivo dos intervenientes.
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DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
Sendo estas estratégias comuns a toda a educação artística e havendo diversas formas de
articulação e complementaridade entre as diferentes linguagens, propusemos que estas
fossem apresentadas como subdomínios, que realçassem as especificidades de cada uma
contribuindo para o desenvolvimento das capacidades cognitivas, fruitivas, éticas e sociais de
todos os intervenientes. Neste sentido, e na elaboração do texto, todos os intervenientes se
socorreram de ideias que ilustraram as dinâmicas próprias a uma sociedade que vive de
imagens e aparências. Foram criadas diversas situações em palco que decorreram de forma
simultânea para que os tempos das atividades se cruzassem. Esta sobreposição de cenas e a
utilização de elementos multimédia, permitiram o desenlace contínuo de situações
entrecortadas por comentários que cortavam o discurso sem, no entanto, o aniquilar, pois, as
cenas, decorriam simultaneamente (Sete Foliões). O objetivo era sobrepor tempos
dissemelhantes numa mesma peça, jogando com a maneira como decorria a sua perceção
temporal. Tínhamos, e à semelhança de algumas obras contemporâneas, a presença de
distintas velocidades de realização e a confluência de várias situações do dia-a-dia (à
semelhança da história original). A música, toda ela composta por fragmentos que se
sequenciavam e sobrepunham a uma base que sustentava a cena e que esteve presente do
início ao fim da peça, foi constituída por canções infantis recriadas, sons da natureza e dos
ambientes próprios aos descritos na peça, revelando-se, neste caso, uma ajuda preciosa para
o resultado final. O elemento multimédia sustentou todo o cenário e toda a cena, sendo
importantíssimo na definição da luminosidade do palco e do jogo/desenho de luzes
construído revelou-se um desafio para os mais velhos. Da responsabilidade dos docentes
envolvidos, exigiu da sua parte uma aquisição de conhecimentos que não possuíam,
revelando-se também, e por isso, importante enquanto fator de desenvolvimento de
competências e conteúdos da sua parte.
Conclusão
Dentro do processo colaborativo, a interferência na criação alheia é um momento
extremamente delicado, pois se na fase de confrontação de ideias o trabalho corre
normalmente, o mesmo pode não acontecer quando existe interferência na criação e
definição dos materiais que compõem o projeto. Para superar e transitar com mais
desenvoltura nesse momento fundamental do processo criativo é necessário que se preserve
as funções de cada uma das partes envolvidas. De um lado existe total liberdade de criação e
interferência, mas de outro é vedado a um criador assumir as funções do outro. Neste
sentido, a responsabilidade de cada um alcança não só a sua área de ação, mas também a
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA DE
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
A criação de uma ação artística com a intenção do analisado manifesta, chegando mesmo
desde a elaboração do texto, da cena, dos momentos musicais e da sua encenação e
teatralização, o levantamento e a reflexão, por parte de todos, de questões que determinam
o equilíbrio, a forma, o conteúdo e a natureza desse mesmo conteúdo. Todas as tentativas de
construção e desconstrução dos elementos discursivos numa obra são o impulso necessário
à procura de uma verdade, a um questionamento e a uma evolução do pensamento humano.
Paralelamente, a expressão e comunicação através do corpo, numa manifestação verbal e
não-verbal e a prática performativa são atividades que possibilitam o desenvolvimento da
capacidade criativa e imaginativa dos sujeitos envolvidos no processo de ensino e
aprendizagem, promovendo a recriação de experiências de vida, bem como a de situações
imaginárias da sua própria criação. As vantagens e benefícios da expressão dramática e
musical no ser humano são inúmeros e conhecidos. Podemos referir que existem
determinadas capacidades físicas que não podem ser ignoradas no desenvolvimento de uma
boa expressão corporal, tais como a coordenação, o equilíbrio corporal ou a fluência de
movimentos. É neste campo que a expressão dramática e a expressão musical se fundem,
promovendo a utilização do corpo como instrumento e meio de expressão e aquisição de
competências. A utilização de arquétipos e técnicas comuns à composição musical para a
criação de espetáculos onde a confluência de saber e saberes, aliada às diversas formas de
questionamento do objeto artístico, com a criação de textos, assim como todo o trabalho de
composição de personagens e cenários, permite ao aluno, que não pertence ao universo
artístico, de contactar com realidades complementares das que normalmente se lhe
afiguram, permitindo-lhe não só o trabalho contínuo em equipa, mas, e também, a
responsabilização perante um resultado que se quer coerente e capaz de transmitir uma
mensagem pela qual são responsáveis e que poderá influenciar positiva ou negativamente o
outro. Simultaneamente, todo o trabalho de pesquisa histórica, cultural, musical ou outra
envolvidos no processo, mostram-se de cabal importância no processo educativo, pelo
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PROCESSOS COLABORATIVOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E MUSICAL COMO FERRAMENTA DE
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, AFETIVO E CIVILIZACIONAL EM ALUNOS DO 1º CICLO DO ENSINO
BÁSICO
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287
ANTES DA ARTE E ATRAVÉS DA ARTE:
PARA A INSTALAÇÃO BENIGNA DA
INCERTEZA NA EDUCAÇÃO
Resumo
Abstract
This paper, near the essay configuration, settles in the observation of artistic
formations in schools of 1st Cycle Basic Education. In it, we reflect on how the
benign introduction of uncertainty in education could contribute to the inversion
of the hyper-rationalized educational paradigm, bringing it positively closer to
the Freirean ontological perspective.
Nesse sentido, optamos por iniciar o texto com uma nota prévia, em jeito de autoanálise. Por
motivos de ordem vária, talvez pela vontade sincera de operar uma mudança no paradigma
de sistemas educativos em falência, somos levados em lutas altruístas que se acercam
perigosamente do umbigo. Passamos a explicar. Catarina Martins (2013) refere que “the arts
in education were developed as salvation narratives of the soul” (p. 68); essas narrativas
enquadram-se em momentos específicos da história da educação, nomeadamente na dos
289
ANTES DA ARTE E ATRAVÉS DA ARTE: PARA A INSTALAÇÃO BENIGNA DA INCERTEZA NA EDUCAÇÃO
O que queremos fixar, neste ponto inicial do texto, passa, em primeiro lugar, pela ideia de
que é preciso pensar a educação de uma forma global, entrecruzando diferentes áreas e, em
segundo lugar, que os “inimigos” da arte estão, por vezes, dentro da própria arte e que quem
faz ou defende a arte são, em alguns casos, as próprias pessoas que a tentam integrar nos
sistemas educacionais, propondo narrativas que a afastam em vez de a aproximar. O que
afirmámos parte da constatação de que algumas práticas observadas recorrem, de facto, à
arte, mas fazem-no de formas instrumentais, superficiais, exclusivamente lúdicas,
desvinculadas socioculturalmente, ou de outras formas nocivas. O movimento criado pelo
ímpeto esbarra, em muitos casos, na compreensão que se constrói da arte e naquilo em que
a tentam transformar para que se possa integrar em sistemas que, originariamente, não são
idealizados para as receber ou que, quando as recebem, as configuram à sua imagem.
290
ANTES DA ARTE E ATRAVÉS DA ARTE: PARA A INSTALAÇÃO BENIGNA DA INCERTEZA NA EDUCAÇÃO
Como iremos referir, a propósito das observações efetuadas, quando ouvimos falar de arte
na educação e, cada vez se discute mais a problemática, parece estar-se a tentar encaixar um
quadrado num espaço triangular. Provocatoriamente, a arte poderia colocar em evidência
questões filosóficas que nos levariam a discutir a validade das formas geométricas, o
conceito de medida espácio-temporal, ou as noções de normalidade e loucura à luz da
psicologia comportamental, mas se olharmos apenas à dificuldade física que a situação
enunciada apresenta, reparamos que estamos a tentar adaptar o inadaptável; se
assumirmos, arriscadamente, que a arte talvez não tenha lugar nos sistemas educacionais tal
como eles existem, seremos, perplexamente, mais livres, ou livres outros, para repensar o
problema. É aqui, neste ponto sensível e polémico, que alicerçamos a hipótese que expomos
neste texto. Teremos, talvez, que colocar-nos antes da arte (se isso é possível), ainda que
pensando através desta, para problematizarmos a própria relação entre os dois conceitos e
para procurarmos uma possibilidade harmoniosa de integração na educação que,
porventura, esteja num vazio por vir ou por ver.
Comecemos por abordar três linhas iniciais da problemática, que enquadram o nosso
posicionamento e que constituem, nomeadamente a última, o elo de ligação para o tema
central do artigo.
291
ANTES DA ARTE E ATRAVÉS DA ARTE: PARA A INSTALAÇÃO BENIGNA DA INCERTEZA NA EDUCAÇÃO
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ANTES DA ARTE E ATRAVÉS DA ARTE: PARA A INSTALAÇÃO BENIGNA DA INCERTEZA NA EDUCAÇÃO
A terceira questão, ligada às anteriores, é a dos professores. Nos casos observados, em que
artistas e/ou formadores realizavam uma série de formações durante o período letivo, o
professor estava na sala de aula, embora casos houvesse em que se ausentava por períodos
de duração variável. Essa relação, professor-formador, é interessante e complexa, derivando
daí, na maior parte dos casos, o melhor ou pior desenrolar das sessões. O mais importante,
contudo, tem que ver com atos pedagógico-didáticos observados que configuram um
posicionamento conceptual e ideológico preocupante relativamente ao papel da arte na
educação e que, no caso estudado, teve implicações diretas no trabalho desenvolvido pelos
formadores. Como referimos na questão do tempo, percebemos, e os formadores
depararam-se com as dificuldades daí advindas, que os alunos estavam parcamente
preparados para lidar com diferentes tipos de expressão artística, aliás, contemplados nos
documentos orientadores. Como Raul Brandão (2003) escreveu, “O hábito tem profundidades
de légua” (p. 39). Se nas horas destinadas às expressões artísticas os alunos se limitavam,
como foi percebido, a colorirem fotocópias ou a compensarem matérias de outras disciplinas,
tornava-se mais difícil promover ou implementar outro tipo de práticas. Mas, para além, das
questões técnicas, e a arte é muito mais do que execução (5), levantaram-se outras, de um
âmbito mais profundo, que estavam relacionadas, pensamos, com uma interiorização de um
certo entendimento de arte e de artístico. Observamos atos que se configuram, na sua
globalidade, persistência e lógica, como uma moralização estética e ideológica, normalizando
e regulando o corpo de educandos numa massa uniforme de repetidores. Condutas que
passavam, em alguns casos, pela destituição do valor artístico de determinada obra (6) que o
aluno realizava, legitimando essa desvalorização em argumentos sem validade artística,
científica ou, mais importante, pedagógica. Argumentos colados a uma preconceção
questionável daquilo que é ou não arte, devendo um desenho, por exemplo, seguir
determinados padrões de proporção anatómica válidos à luz desse entendimento frágil,
erguido por diversos motivos alguns dos quais enraizados inconscientemente.
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Há, todavia, outras explicações que, como referimos, nos parecem bastante mais profundas e
preocupantes. Foi, em parte, o sentimento de uma angústia que deriva de um problema
aparentemente irresolúvel que nos permitiu elaborar a proposta de pensamento que agora
apresentamos: refletir a partir de um posicionamento anterior ao da tentativa malograda de
encaixar um quadrado num triângulo. O vírus instalou-se endemicamente, urge pensar a
arte na educação antes da arte na educação, mas procurando entendimento através da arte.
Para esse fim, expomos dois paradoxos que nos ajudam na leitura da problemática.
O que este paradoxo traz é uma hipótese para entender que os problemas de integração da
arte na educação estão tacitamente ligados aos que lhe são exteriores (7). A educação
pública, pelas instituições que a representam, as escolas, está obviamente ligada aos
contextos em que se insere e aos indivíduos que têm vida para além das suas paredes,
inclusivamente os professores. O desafio passa, seguramente, pela compreensão das esferas
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O segundo paradoxo estabelece-se facilmente e tem como dois pólos as conceções objetiva e
subjetiva de arte, que parecem dividir o indivisível. A primeira estabelece padrões de
aceitação (e comodidade) que levam a que a arte possa ser integrada nos sistemas de ensino.
Trata-se, no entanto, de uma manipulação da arte, instrumentalmente limitada, para se
colocar ao serviço de mecanismos de domesticação, de replicação e de controlo (no sentido
foucaultiano). Essa ferramenta é utilizada com a legitimidade vinculativa da avaliação – de
que são sinais irredutíveis as incompreensíveis provas de expressões artísticas do 1º ciclo. A
certeza do que é ou pode ser avaliável quantitativamente, em grelhas esvaziadas de sentido
e significado, produz didáticas empobrecedoras artística e pedagogicamente, perpetuando
modelos normalizadores e anti criativos. Esse espartilho ideológico, que divide a arte em
duas ilhas, a da luz (do que se pode verificar, medir, regular) e a da sombra (do que
dificilmente se mede ou engaveta), fomenta que se prolonguem os aulidos da mitificação e
mistificação da arte e do seu flanco obscuro, entendido como subjetivo, onde residem os
pseudo-misteriosos segredos da criação. Se aceitarmos essa separação, o paradoxo adensa-
se porque talvez seja na penumbra, um lugar entre a luz e a sombra, que estão as dimensões
pedagógicas mais interessantes. É na união desses pólos que reside o sentido maior da arte,
confluindo intrinsecamente para a constituição positiva da sua inutilidade e força, e para o
seu posicionamento epistemológico e filosófico ambíguo, aberto, incerto, por um lado, e, por
outro, para a sua instrumentalização aquando de uma abordagem que a utilize num sentido
multidimensional – cognitivo, sensorial, emocional, físico, técnico, performativo,
interpretativo, etc.
À separação paradoxal que permite a entrada do objetivo e barra a do subjetivo deve propor-
se uma união profícua entre secções (que talvez não sejam dissociáveis) conferindo à arte,
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enfim, um significado pedagógico relevante. Contudo, para que isso possa acontecer,
teremos que pôr em causa fundações antigas que persistentemente minam a entrada da
arte nas escolas. Essa revolução só poderá ser feita através de uma problematização
profunda do adquirido, do certo, do conhecido, testando a validade da construção realizada
até ao presente, no fundo, procurando a validade do ponto em que nos encontramos, como
aqui chegamos e quem é que somos (ou vamos sendo, no sentido freireano). Só através
desse retorno – reconhecemos, extremamente complexo – poderemos mudar o triângulo. Ou
pelo menos tentar, já que as perguntas são mais do que as respostas.
Comecemos com uma pergunta: porque é que o habitual é habitual? Martin Heidegger
(2008) diz-nos que o “que nos parece natural é unicamente o habitual do há muito adquirido,
que fez esquecer o inabitual, donde provém. Este inabitual, todavia, surpreendeu um dia o
homem como algo de estranho, e levou o pensamento ao espanto” (p. 17). Não entrando na
complexidade do conceito de espanto, caro ao filósofo alemão, parece-nos de relevada
importância pensar em formas de questionamento ancoradas nessa raiz; um
questionamento agressivo, que coloque em ação o choque originário do espanto. Se o
espanto é uma raridade que se vai desvanecendo com os anos (e devemos perguntar
porquê), o espanto agressivo é-o ainda mais, e essa capacidade de agarrar e mobilizar o
momento gerador de uma série de dimensões relevantes para o interesse efetivo e
emocionalizado é o único canal para aprendizagens e partilhas significativas. Essa raridade é,
ainda, altamente paradoxal, já que seria de esperar que os sujeitos envolvidos num processo
de crescimento e de desenvolvimento, onde há uma cornucópia infinita de coisas por vir, se
espantassem frequentemente. A realidade escolar, no entanto, e com algumas exceções,
devolve-nos uma monotonia cinzenta, como um lago de águas quietas onde se vão deixando
desmaiar criaturas outrora vivas, cintilantes, curiosas. É urgente questionar o habitual,
mobilizando e promovendo condições para que emirjam o espanto, o ímpeto, a empatia, a
energia, e a pergunta disruptiva, reconfigurando o paradigma da certeza e do equilíbrio, que
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Alberto Pimenta (2014), no livro o “Bestiário Lusitano”, coloca um papagaio a refletir sobre a
mesma questão:
aprendi a dizer o que dizem que se pode dizer, diz ele de dentro da sua gaiola,
mas como dizem que o que se pode dizer apenas é o que já foi dito, diz ele de
dentro da sua gaiola, só aprendi a dizer o que já foi dito, diz ele, e como não
aprendi também a dizer o que ainda não foi dito, diz ele, não sei se só digo aquilo
que sei ou se só sei aquilo que digo (p. 7).
Neste excerto, está presente a ideia de Heidegger (2008), o que é aquilo que já sabemos? ou
o que é o habitual e porque é habitual? mas Alberto Pimenta (2014) adiciona as perguntas: o
que aprendemos? como aprendemos? aquilo que dizemos é o que sabemos? aquilo que
dizemos é o que já foi dito? Estas questões poder-nos-iam levar a complexas indagações
filosófico-linguísticas e metafísicas, mas, essencialmente, problematizam, revolucionam até, a
forma como podemos pensar naquilo que dizemos e porque o dizemos, instituindo senão
uma perplexidade fundamental pelo menos um foco direcionado à origem das certezas,
tanto dos conceitos e das ideias como das formas de os expressar – duas dimensões
fundamentais e intrinsecamente ligadas. Para além dessa relação intrincada, o papagaio
propõe que aquilo que dizemos está, muitas vezes, apenas ancorado no que está para trás,
no passado; se essa premissa é evidente é igualmente claro que não deveria ser a razão para
não questionarmos as fundações dessa propriedade e, se necessário, subvertê-las
positivamente. Mas, porque assim não funcionam as instituições educacionais, na sua
maioria, incorporamos na nossa identidade a ideia (e até a impossibilidade cognitiva) de que
o mundo ruirá se arriscarmos outra coisa, outra linguagem, outro pensamento, outra cor,
outra atitude, outro gesto, outro outro, presos que estamos àquilo que nos deixam, ou não,
ser e acontecer. Nesse sentido, da permissão que nós mesmos sejamos e aconteçamos, de
múltiplas formas, e focando novamente nos alunos, Hannah Arendt (2000) sublinha que a
educação é “o lugar em que se decide se se amam suficientemente as nossas crianças para
não as expulsar do nosso mundo […], para não lhes retirar a possibilidade de realizar
qualquer coisa de novo, qualquer coisa que não tínhamos previsto” (pp. 52-53).
Assumindo […] que qualquer indivíduo criativo é sempre um ser do seu tempo e
da sua época, sustentamos que a cultura determina substancialmente a
orientação e a produção criativas, sendo crucial que se reúnam, em paralelo,
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Mas, como se criam as condições e de que condições falamos? Para abordarmos essa
questão, teremos que recorrer à natureza (se é que há uma) da existência, que tem a ver,
afinal, com uma questão tão simples como a da sinceridade; do retorno à existência
ontológica; da admissão do que somos ou, como supracitado, do que vamos sendo, segundo
a perspetiva freireana.
Paulo Freire (1997) deixou-nos um legado inestimável para a compreensão profunda, aberta
e complexa dos sujeitos, da existência, do ser. Ele fala de uma “ontológica vocação de ser
sujeito” (Freire, 1997, p. 36) e de uma educação que não negue essa condição. Essa ontologia,
que Paulo Freire foi desenvolvendo ao longo da sua obra, assenta, fundamentalmente, na
caracterização do sujeito enquanto um ser incompleto, inacabado e inconcluso. Essa
perspetiva de nada serviria se ficasse infundada numa ideia vaga, e óbvia, da incompletude
dos seres sempre nascentes que somos, todavia, a leitura que o autor nos propõe é de que
essas dimensões dos sujeitos estão em ligação constante e mutável com os contextos
pessoais, comunitários e culturais, mas também com o próprio tempo, de que o homem tem
consciência, que lhe devolve a finitude da sua condição mas que lhe permite interferir e
transformar(-se) com o mundo. A conscientização freireana e, por isso, os métodos
desenvolvidos pelo educador, ergue-se primeiro pela compreensão da incompletude
ontológica que deve firmar a complexidade e subjetividade de cada ser humano e do mundo
que habitam. É, portanto, impossível erguer algum tipo de epistemologia educacional se não
se alicerçar o edifício metodológico e ideológico na conceção de que nada está acabado e de
que tudo está em devir, sendo e acontecendo, numa mutação em que a única constante é a
incerteza. Nada tão simples e tão complicado como isto. Mas essa conscientização, que gera
sentido e significado reais, é uma miragem nos sistemas educacionais hiper-racionalistas que
privilegiam e premeiam comportamentos de repetição, de controlo, de formatação, de
aprisionamento de expressividades individuais, em nome de uma preconceção que capturou
os sujeitos numa idealização que lhes firmou o perímetro, cercando-os de estigmatizações,
rótulos e classificações, cada marca subtraindo uma fração daquilo que poderia mas que já
não vai ser aquele sujeito coartado, desviado, então, da sua inteira vocação ontológica.
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tempo em que o sujeito se vai construindo através de dimensões negadas nas escolas como
a hesitação, a dúvida, o desequilíbrio, o erro, a ambiguidade, a subjetividade, a imperfeição,
a perda, a fragilidade?
Todos nós, uns negando mais do que outros, nos definimos por entre essas dimensões
líquidas que aqui agrupamos sob o conceito da incerteza. Um conceito que permeia
inevitavelmente tudo quanto constitua a vida, o acontecimento flutuante e imprevisível vida,
mas que é afastado de um sistema preditivo e predatório como é o educacional; o primeiro
no sentido em que procura prever, nomear, classificar, controlar todos os elementos desse
sistema, o segundo na medida em que, com essa obsessão, arruína a ontológica vocação de
ser sujeito de crianças em pleno desenvolvimento, retirando-lhes, de certa forma e sem
querermos ser fatalistas, a própria vida, através de um golpe violento na sua liberdade.
Albert Camus (2016) fala da “nostalgia de unidade, esse apetite de absoluto, [que] ilustra o
movimento essencial do drama humano” (p. 26). E continua,
se tento alcançar este «eu» de que me apodero, se tento defini-lo e resumi-lo, ele
não é mais do que água a escorrer-me por entre os dedos. […] Mesmo este
coração, que é o meu, ficar-me-á para sempre incompreensível. O fosso entre a
certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a essa
certeza, nunca estará cheio. Serei para sempre estranho a mim mesmo (p. 27).
A certeza não é mais do que uma ilusão; uma ilusão propagada a todas as dimensões da vida
pública e introduzindo-se na privada, camuflando, perigosamente, manifestações pessoais
que se desenvolvem exclusivamente no interior de sujeitos perturbados com a sua própria
diferença, dúvida ou dor. A educação tem o dever ético de se transformar, invertendo a
normalidade insana da certeza, em que encarrilou, para a anormalidade sã da incerteza.
Falamos de uma incerteza – não “que aconteça ao homem desorientar-se, perder-se na sua
vida, mas que a situação do homem, a vida, é a desorientação, é estar perdido” (Ortega y
Gasset, 2000, p. 103).
Mas como se faz? Como se instala benignamente a incerteza na educação? Não temos uma
resposta evidente para essa questão, muito teria que mudar: ideologias e matrizes
civilizacionais e políticas, formação de professores, espaços escolares, filosofias e métodos
pedagógicos e didáticos, currículos, etc. Porém, o que parece uma montanha inescalável
pode ter pequenos pontos de apoio por onde se a possa ir escalando, um pé de cada vez. A
ordem da mudança é também complexa, mas há situações que podem ir mudando, sem
necessidade de transformações radicais ou até utópicas. Na autonomia da sala de aula, por
exemplo, há um espaço privilegiado de liberdade para o professor trabalhar com os alunos.
Bem sabemos como esse espaço está condicionado pelo currículo, pela formação do
professor, pelo tempo, pelo número de alunos, pelas metas, pela avaliação, mas, ainda
assim, não deixa de ser um espaço de moderada liberdade. E aqui, sim, a arte pode ter um
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papel fundamental, mas apenas depois de enraizada a mudança mental que propomos,
assumindo a incerteza como um barco à deriva de que todos somos tripulantes e utilizando-a
em benefício da educação e do desenvolvimento dos alunos, como retomaremos.
Também ao nível curricular poderão ser tomadas decisões (das quais vemos os primeiros
passos com a medida da Autonomia e Flexibilidade Curricular, esperemos pela concretização
e resultados) que flexibilizem os programas, reduzam as matérias e, acima de tudo, criem
conteúdos significativos para os alunos, com os quais se identifiquem, e que permitam que
parte desses conteúdos sejam definidos a nível local, pelos professores e pelos alunos,
abrindo espaço a que especificidades culturais se manifestem, valorizando e promovendo
ligações comunitárias e criando novas relações e significados, transformando e
reinterpretando património cultural local. Nada disto é novo mas, e de forma mais direta com
tópico da incerteza, que se elaborem os currículos através de matrizes que não estejam tão
fortemente vinculadas a um paradigma hiper-racionalista e quantitativo, descerrando as
portas das salas de aula para a entrada de tempos e de espaços destinados a um trabalho
mais livre, porventura nato de propostas espontâneas ou previamente pensadas que
coloquem os alunos, e os professores, perante a ambiguidade, o inesperado, de algum modo
num desequilíbrio que os incline para a necessidade de encontrar estratégias de
investigação, produção, expressão e comunicação criativas. No fundo, criando as tais
condições para que a criatividade e a liberdade surjam, sem que tenham de estar amarradas
a metas, a avaliações normalizadas (outras formas há de avaliar) ou a objetivos irrealistas
que frustram todos os atores dos contextos educacionais e os remetem para esferas
limitadas da existência.
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levou a que os alunos criassem vínculos fortes com os objetos criados e com todas as
dimensões que a estes estavam associadas. Foram processos em que claramente
ultrapassaram a exclusividade do lúdico e do técnico, que normalmente associavam à arte,
para perceberem que outros saberes, inteligências, emoções, sentidos, perceções,
capacidades, se conjugam na elaboração de um objeto que é, afinal, muito mais do que um
objeto desligado deles, mas que se configura como um símbolo, um fragmento de cultura e
de tempo, onde aprendizagens significativas ocorreram e das quais fizeram parte. Eis se não
quando da incerteza se enraízam na memória experiências, paradoxalmente, preenchidas de
concretude, de sentido, de significado, de valor.
Como colocado por Valquaresma e Coimbra (2013), “a educação artística possui o potencial
de se constituir como um caminho de futuro na educação” (p. 144). Pensamos que esse
caminho terá que ser feito, necessariamente, repensando as estruturas rígidas que
estabelecem os mecanismos pedagógico-didáticos no sentido de as maleabilizar, adquirindo
a educação um sentido totalmente revolucionário a bem da vocação ontológica dos sujeitos e
do mundo em que habitam. A perspetiva da incerteza carrega também um sentido ecológico
e transformador, que só a noção de tempo devolve, incutindo-nos a responsabilidade de
localizar os problemas físicos e metafísicos que nos envolvem e caracterizam, deixando de os
negar e assumindo que é necessária e urgente uma mudança de paradigma civilizacional e,
portanto, educacional (com atenção às ortodoxias!). Um pé de cada vez, assentes no profícuo
equilíbrio do desequilíbrio, talvez alcancemos o topo da montanha.
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ANTES DA ARTE E ATRAVÉS DA ARTE: PARA A INSTALAÇÃO BENIGNA DA INCERTEZA NA EDUCAÇÃO
Notas
1. Enquadrado no doutoramento em curso, financiado pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, no âmbito da bolsa de investigação com a referência SFRH/BD/52518/2014.
2. Jorge Ramos do Ó propõe, “o maior enfrentamento que possamos fazer a qualquer lógica
de dominação é o de proclamar que todo o conhecimento é de natureza essencialmente
«poético-performativa»” (Niza, 2012, p. 33).
5. J. Krishnamurti apresenta uma ideia interessante, ainda que passível de ser contestada: “A
existência humana é dor, alegria, beleza, fealdade, amor e, quando a compreendemos como
um todo, em cada nível, essa compreensão cria a sua própria técnica. Mas o contrário não se
aplica: a técnica nunca produzirá uma compreensão criativa” (2016, p. 16).
6. Bertrand Russel refere que o “homem civilizado é aquele que, quando não pode admirar,
aspira mais a compreender do que a reprovar” (2000, p. 79).
7. Krishnamurti refere que a “educação está intimamente relacionada com a crise mundial
atual e o educador que vê as causas deste caos generalizado deve perguntar a si mesmo
como é que vai despertar a inteligência no estudante, ajudando, assim, a geração seguinte a
não gerar mais conflito e desgraça” (2016, p. 21). Também Hannah Arendt apresenta uma
visão sobre essa relação, colocando a tónica na responsabilidade do educador que “dá” um
mundo aos alunos: “os educadores fazem sempre figura de representantes de um mundo do
qual, embora não tenha sido construído por eles, devem assumir a responsabilidade, mesmo
quando, secreta ou abertamente, o desejam diferente do que é. (…) a sua [do professor]
autoridade funda-se no seu papel de responsável pelo mundo” (2000, p. 43). Da perspetiva da
criança “objecto da educação, apresenta-se ao educador sob um duplo aspecto: ela é nova no
mundo que lhe é estranho, e ela está em devir” (p. 37).
8. Valquaresma & Coimbra dizem que “a criatividade e a inovação parecem ser uma última
esperança para a retórica dos discursos economicistas actuais. Quase como se fosse a única
ferramenta capaz de garantir a vitória perante as adversidades do mundo competitivo em
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que vivemos, a criatividade corrompe-se como valor, degrada-se como conceito e tende a
dissociar-se de dinâmicas psicológicas intra e interpessoais teoricamente fundadas e
metodologicamente fiscalizadas” (2013, p. 134). E afirmam que “a frequência da escola é um
momento chave do desenvolvimento, crucial para a livre expressão do pensamento criativo”
(p. 137).
Referências Bibliográficas
Arendt, H. (2000). A Crise na Educação. In O. Pombo (Org.), Quatro textos excêntricos. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 21-52.
Freire, P. (1967). Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra.
Lipovetsky, G., & Serroy, J. (2014). O Capitalismo Estético na Era da Globalização. Lisboa: Edições
70.
Martins, C. (2013). The Arts in Education as Police Tecnhologies. Governing the Child’s Soul.
European Education, 43(3), 67-84.
Niza, S. (2012). Sérgio Niza. Escritos sobre Educação. Lisboa: Edições Tinta-da-China.
Ortega y Gasset (2000). Sobre o Estudar e o Estudante. In Quatro textos excêntricos. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 87-103
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ANTES DA ARTE E ATRAVÉS DA ARTE: PARA A INSTALAÇÃO BENIGNA DA INCERTEZA NA EDUCAÇÃO
Valquaresma, A., & Coimbra, J. L. (2013). Criatividade e Educação. A educação artística como o
caminho do futuro? Educação, Sociedade & Culturas - Contemporaneidade na Educação
Artística, 40, 131-146
Vygotsky, L. (2004). Imagination and creativity in childhood. Journal of Russian and East
European Psychology, 42(1), 7-97
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A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA
ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS
EXPERIÊNCIAS DAS ESCOLAS MODERNAS DE
SÃO PAULO
Resumo
Abstract
Introdução
As mudanças no âmbito económico no Brasil pré-república, no final do século XIX, serviram
de estímulo para um forte fluxo imigratório de mão de obra europeia, em sua maioria,
oriundos de Portugal, Itália e Espanha 1. Foi com esses imigrantes que o anarquismo chegou
ao Brasil e conquistou adeptos na pequena camada operária que se formava no país. Cabe-
nos ressalvar que a economia brasileira era predominantemente agrária e que, mesmo com
a abolição da escravidão, em 1888 sustentava-se na produção e exportação de café,
predominante na região sudeste do país (Fausto, 1977). Porém, a formação dessa nova classe
social gerou impactos significativos na então nova república da América Latina que, com a
bandeira hasteada sob a influência do positivismo (ainda que o liberalismo fosse a
contrapartida ideológica que disputava seu lugar), não trouxe grandes e novas mudanças em
suas instituições.
A nova força de trabalho encontrava-se sem nenhum amparo de leis que assegurassem o
mínimo de condições de vida saudável. Começam então a surgir os sindicatos e as
associações que abrigaram essas trabalhadoras e trabalhadores desamparados pelo Estado.
É nesses espaços que o anarquismo conquista adeptos por ser uma ideologia que
reivindicava (e reivindica) melhores condições para aquela nova classe operária. Nesse
período, os sindicatos e associações ainda permaneciam sem nenhuma relação com o
Estado, o que possibilitou a independência em suas escolhas ideológicas. Com isso, o
anarquismo foi amplamente divulgado entre as trabalhadoras e trabalhadores através de
jornais e periódicos produzidos, inclusive, em espanhol, italiano e francês (Moraes, 2013).
Diante deste quadro de exclusão social, refletida também na exclusão dessa mão de obra das
escolas, somada às péssimas condições de trabalho e à ampla divulgação do pensamento
anarquista como forma de reivindicação e resistência, escolas libertárias são fundadas nas
principais regiões do Brasil. Como destacou Moraes (2013):
Uma primeira ocorrência [das escolas libertárias aqui no Brasil] foi a Escola União
Operária, fundada no Rio Grande do Sul em 1895, provavelmente originária da
iniciativa dos ex-integrantes da Colônia Cecília, como indica Rodrigues, seguida
da criação, também naquele estado, na cidade de Porto Alegre, de uma escola
fundada em homenagem a Elisée Reclus, a Escola Elisée Reclus, local que o
militante anarquista teria visitado em sua passagem ao Brasil. E São Paulo, a
1
Não podemos negligenciar também que o estímulo à imigração europeia no Brasil está relacionado
com os projetos de branqueamento do país, sobretudo com o fim da escravidão no ano de 1888.
Não é nosso propósito abrir amplamente para discussão o racismo explícito nessa política de
imigração, ainda que se faça necessário lembrar o quanto a historiografia tradicional brasileira
tentou omitir, sobretudo nos estudos da República Velha realizados por historiadores a partir do
ano de 1950. Para maiores informações, consultar Lara, S. H. (1998). Escravidão, Cidadania e
História do Trabalho no Brasil. Revista Graduados de História v. 16, pp. 25-38.
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A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DAS
ESCOLAS MODERNAS DE SÃO PAULO
Porém, as escolas nas quais usaremos como referência neste trabalho são as Escolas
Modernas n.1 e n.2, fundadas na cidade de São Paulo em 1913. O nome “Escola Moderna”
refere-se a Escuela Moderna de Barcelona, fundada em 1901 pelo militante catalão Francisco
Ferrer y Guardia. Anticlerical e defensor do que ele chamava de educação racionalista,
Guardia foi perseguido pelo Estado espanhol por suas práticas políticas, sendo a Escuela
fechada no ano de 1906. Até que em 1909, acusado de mandante de um atentado terrorista
na Semana Trágica, foi condenado à morte. Após ser fuzilado, os grupos anarquistas do
mundo todo mobilizaram-se a ponto de Ferrer, na época, tornar-se uma espécie de mártir
para o movimento. A morte de Ferrer foi culminante também para que em outras partes do
mundo fundassem escolas que seguissem os modelos da Escuela Moderna. Ferrer já havia
publicado um livro que divulgava a sua escola e seu pensamento pedagógico e, logo após o
encerramento das escolas, fundou em Paris a Liga Internacional para a educação racional da
infância, na qual se forneciam bases para que outras escolas fossem fundadas sob a
orientação da escola modelo.
Ambas as escolas defendiam uma “educação artística intelectual e moral” com o objetivo de
despertar o “sentimento do belo, do verdadeiro e do bom” através do conhecimento “das
ciências e das artes”2. No programa curricular apresentado pelas escolas, localizamos
disciplinas como o desenho e a música, mas também há evidências da presença do teatro,
inclusivé como forma de ação e divulgação do pensamento libertário. Para além da educação
racionalista desenvolvida por Ferrer, devemos considerar também o conceito de educação
integral que, para os anarquistas, é fundamental no processo e nas relações de
ensino/aprendizagem.
2
Textos sobre as Escolas Modernas podem ser encontrados em alguns jornais anarquistas da época
na sessão de propaganda, como é o caso do jornal “A Lanterna”. As propagandas das Escolas
vinham acompanhadas por esta chamada.
307
A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DAS
ESCOLAS MODERNAS DE SÃO PAULO
3
Centro de Documentação e Memória da UNESP (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”); Centro de Memória da Educação da USP (Universidade de São Paulo); Unidade Especial de
Informação e Memória da UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos).
4
Localizada na Unidade Especial de Informação e Memória da UFSCAR.
5
Há uma controvérsia em relação à atuação pedagógica de Tolstói. Alguns autores reivindicam a
experiência da Iasnaia Poliana como sendo a primeira escola democrática. Porém, devido à sua ação
estar muito próxima do pensamento libertário, os anarquistas reivindicam como sendo uma
experiência e ação própria do movimento. Cabe destacar que, no caso, pelo facto de Tolstói ser
assumidamente católico, muito dos anarquistas o chamam de anarco-cristão.
308
A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DAS
ESCOLAS MODERNAS DE SÃO PAULO
Neste ponto chama-nos a atenção de que Tolstói cria um espaço onde a criança ou o jovem
possa ser escutado, possa fazer e construir suas próprias experiências e, assim, a construção
do conhecimento faz-se sem coerção, castigos, premiações – típicos da escola tradicional da
época. Em outras palavras:
Numa publicação feita no Brasil com os textos de obras pedagógicas do Tolstói, inclusive com
relatos de experiência do autor em aulas na Iasnaia Poliana, encontramos textos sobre o
ensino de desenho e música:
Inicialmente, o escritor narra uma cena de passeio pelo campo, numa tarde de
verão, na qual alguns alunos puseram-se a cantar uma melodia popular que era
de seus gostos. Em sua descrição, Tolstói conta que os jovens começaram a se
dividir em vozes [...] formando pequenos coros. Além disso, ele fala a respeito de
dois alunos que transcreveram em notação musical tais melodias [...]. Porém, a
particularidade é que esses conteúdos [musicais] eram transmitidos [e
estimulados] através da prática, ou seja, cantando. Tanto que, nesse relatório,
Tolstói levanta cinco pontos decorrentes de sua experiência, sendo a ‘3) para que
o ensino de música deixa [sic] marcar e seja aprendido de boa vontade, é
309
A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DAS
ESCOLAS MODERNAS DE SÃO PAULO
Chamamos a atenção para o relato de música feita por Tolstói por dois motivos: o primeiro
deles é a questão da música e do desenho, no contexto brasileiro, fazerem parte do currículo
da educação formal como também nas práticas libertárias. O segundo motivo, é o ponto de
semelhança metodológica na qual é tratada estas disciplinas nas mais diversas experiências
anarquistas e nos mais diversos contextos. Através deles também podemos observar as
características da educação integral.
Nesta perspetiva, Ferrer é o segundo autor fundamental para entendermos o que as Escolas
Modernas de São Paulo compreendiam por educação integral. O anarquista catalão, na
verdade, elabora o que chama de ensino racional. Para ele, nas palavras de Gallo (2014), a
educação racional é uma proposta:
310
A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DAS
ESCOLAS MODERNAS DE SÃO PAULO
Colméia, como chamava a pequena propriedade, de escola (ou algo do género) na qual Fauré
fazia parte e defendia que o aprendizado de suas crianças e jovens deveria acontecer numa
complexidade de atividades que se relacionava ao se divertir, ao fazer (prática) e aos estudos
teóricos. As várias oficinas de diversas atividades presentes na “comunidade” possibilitavam
que todo o estudante desempenhasse atividades manuais que refletiam até mesmo na
autogestão6 do grupo. Construíam móveis para venda e um dos principais objetivos dessa
prática era propiciar ao aluno a experiência do fazer e criar móveis belos como forma de que
não só a aluna e o aluno possam ter a experiência da criação estética como também a
trabalhadora e o trabalhador que adquire aqueles móveis com baixo custo tenham igual
direito de possuir objetos não só de qualidade material, mas também de qualidade artística
(Faure, 2015). Em resumo, o que Ferrer, Faure e as experiências das Escolas Modernas de São
Paulo pensam sobre a educação, integra como um caminho não só para a construção plena
do conhecimento, mas também como um caminho para a experiência estética. Não é à toa
que as Escolas Modernas anunciavam uma educação baseada “nas ciências e nas artes”,
como eram divulgadas nas pequenas propagadas dos jornas libertários.
6
Autogestão é um dos fundamentos do anarquismo.
311
A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DAS
ESCOLAS MODERNAS DE SÃO PAULO
Apesar de não sabermos de como as disciplinas, como o Desenho, eram trabalhadas nas
Escolas7, sabemos pelos relatos dos estudantes que estes eram estimulados a desenhar e a
reproduzir paisagens, objetos ou qualquer outro elemento que os chamasse a atenção, ou
ainda que desenhassem algo que se relacionasse ao conteúdo trabalhado durante as
excursões.
Um rápido olhar sobre estas práticas levam-nos a concluir que a educação integral é a
congregação de todas as possibilidades de vivências e experiências que conectem as várias
potencialidades dos seres humanos não só individualmente, mas também coletivamente, na
medida em que os expõem para a realidade em que vivem; expõem para que desenhem e
cantem a respeito do que se vive; que escrevam sobre sua condição e o questione, que ajam
sobre ele; que o modifiquem.
7
Porém, sabemos que elas aconteciam graças à publicação de um dos jornais produzidos pelas
Escolas chamado “O Início”. No final de uma das edições, há a chamada para a classe desenho, que
era lecionada pela professora Isabel Ramal que, segundo o jornal, era presidente da Associação
Artística Feminina do Brás. Não encontramos informações sobre a professora e sobre a Associação
para que pudéssemos falar a respeito neste trabalho.
312
A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DAS
ESCOLAS MODERNAS DE SÃO PAULO
Conclusão
Apesar das dificuldades de se falar sobre a educação integral libertária no contexto brasileiro,
é curioso perceber como as formas de conceber, ainda que pelas poucas evidências que nos
restam, as relações entre o conhecimento e a experiência e também a forma de como elas se
articulam, coloca a noção de educação integral – fundamental para se compreender a
educação libertária – como principal elemento não só de desenvolvimento das capacidades e
habilidades dos sujeitos, mas também o insere na realidade em que vive, situando-o na sua
condição, enquanto indivíduo marginalizado político e social.
Em suma, refletir sobre as práticas libertárias e sobre o que é a educação integral sob a ótica
anarquista, faz com que percebamos a atualidade de um pensamento que se contrapõe às
crises e às marginalizações. A nossa leitura atual destas experiências num contexto de
retrocessos e onde o exercício de preservar a memória é constantemente ameaçado sendo
uma contribuição no sentido de criar rupturas no que cada vez vem sendo imposto pelos
aparatos ideológicos do Estado. Ou seja, a atualidade sobre tais reflexões é perceber que a
sua história, sua memória, suas práticas e ações são um ato de resistência.
Referências Bibliográficas
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313
A EDUCAÇÃO INTEGRAL NA PERSPETIVA ANARQUISTA: REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DAS
ESCOLAS MODERNAS DE SÃO PAULO
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Paulo. Recuperado de
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314
Estratégias de ensino
e avaliação
inovadoras no ensino
das Artes
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM:
REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA
PRÁTICA CURRICULAR E DA FORMAÇÃO DE
EDUCADORES E PROFESSORES EM
EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
RESUMO
ABSTRACT
We try to discuss models and strategies that can ensure, both in the daily
practices of Kindergartens and Schools and in the training of teachers: i) an
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
We mobilize data and reflection on the experience and evaluation resulting from
the development, since 2015, of an intervention project (I-A) in Artistic Education
in a Grouping of Schools in Abrantes. We propose some reflections based on
which we can better understand and make curricular decisions in the context of
Artistic Education.
- crítica / reflexiva (no sentido de que são construções sociais, tradutoras de prevalências de
paradigmas, de equilíbrios de poder, de praxis necessariamente comprometidas).
317
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Assim, dos pontos de vista sociológico, psicológico e cultural, estes elementos constituem-se
como identificadores partilhados (por profissionais da área em causa, assim como nas
conceções dos cidadãos em geral) que dão corpo e sustentam as representações do que é
ser… (artista, educador, etc). Do conjunto de descritores de profissionalidade identificados
pela referida autora, retemos os seguintes: i) uma função social autónoma; ii) um saber
próprio, específico para o desempenho dessa função; iii) poder sobre a própria atividade,
quer no plano da competência reflexiva e auto-avaliativa, quer no plano das decisões
sustentadas no saber próprio, que as legitima; iv) a pertença a uma comunidade de prática
com cultura e identidade profissionais próprias.
O saber próprio parece-nos ser central, já que toda a ação do profissional, distinto de todos
os outros profissionais, se sustenta num corpo de conhecimentos e competências que lhe
conferem um papel e função próprios, a capacidade e poder de decisão e de fazer progredir
o seu próprio saber, assim como a identidade partilhada entre o grupo de seus pares. Sendo
certo que as conceções existentes a propósito de qualquer corpo de profissionais (quer
dentro desse corpo quer fora dele), refletem os percursos histórico-culturais e os contextos
sócio-políticos de inserção da profissão na comunidade, apresentando-se, portanto, em cada
momento, como representações provisórias e em permanente construção.
Se perguntarmos a um profissional das Artes qual é o seu saber próprio (coisa que fizemos
de modo aleatório e totalmente descomprometido) ouviremos responder algo como: “criar,
ou recriar… interpretar… exprimir através de uma linguagem própria… o artista dá-nos (a
todos) o contexto das coisas, retrata, representa, o presente, o passado e também o futuro.”
318
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
319
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Se nos entendemos quanto à ideia “essencial” de interação entre campos de saber, não é tão
fácil operacionalizar a prática da Educação Artística, implicando mobilizá-los em “doses”
apropriadas, em cada momento, aos objetivos que se definem para os processos educativos
em causa. Diferenciaremos aqui, por questões meramente pragmáticas: processos
educativos COM BASE nas Artes (Educação pela Arte); processos educativos EM áreas
artísticas (Educação em Artes); processos educativos ENVOLVENDO áreas artísticas (Educação
Artística [integrada]).
320
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Parece consensual que a Educação Artística, nesta aceção que explicitámos, não visa formar
artistas, mas indivíduos que saibam reconhecer, de modo consciente e crítico, signos ou
elementos das linguagens artísticas dentro dos múltiplos âmbitos da Cultura, apreciar,
explorar, porventura criar ou recriar as mais diversas “formas” nas áreas em causa, mas
fundamentalmente apropriarem-se de modos criativos de pensar e comunicar. O campo das
Artes, pela sua própria natureza, é um campo privilegiado de transferência de experiências
situadas para competências de pensamento abstrato, pela flexibilidade e conexão que
321
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Educação do que quer que seja, efetivamente, não é promover a absorção passiva de
conhecimentos, antes representa fazer uma mediação da vivência e apropriação de saber,
com recurso ao pensamento crítico, e num contexto de relação com outro, com outros, e de
gestão de processos de comunicação intersubjetiva. Esses contextos de mediação educativos
são largamente responsáveis pela construção identitária de crianças e jovens em especial,
pelo seu autoconceito enquanto aprendentes, pelas competências que desenvolvem ou
deixam adormecidas, pelas trajetórias que alimentam ou abandonam, pelas
potencialidades / virtualidades que descobrem e ajudam a descobrir ou que ignoram e
ajudam a morrer.
Mas voltemos à questão da Educação que não educa (necessariamente nem apenas) para o
que lhe fornece conteúdo (Artes, Matemática, etc).
322
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Não são, portanto, os “conteúdos” que dão conteúdo à Educação, mas sim o conjunto de
conteúdos considerados necessários num dado momento e num dado contexto, organizados
de determinada maneira, com uma dada sequência, articulados entre si e/ou mobilizados no
seu conjunto, no contexto do desenvolvimento e gestão do currículo que esses conteúdos
servem.
323
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
antes que possam ser mobilizadas, ou se, pelo contrário, devem ser essas ferramentas
mobilizadas no contexto da solução de problemas ou do desenvolvimento de projetos, sendo
por essa via apropriadas de modo integrado e contextualizado. A primeira perspetiva
caracteriza melhor a abordagem curricular persistente, com a sua quadrícula disciplinar
“clássica”, a segunda caracteriza melhor outras abordagens desenvolvimentistas,
construtivistas, na senda de preocupações com o sentido atribuído às aprendizagens como
forma de garantir a apropriação de competências. A Integração curricular que defendemos
situa-nos nesta última perspetiva (Beane, 2002; Pombo, 2004). A estratégia (integradora),
entendida como modo de organizar as experiências de aprendizagem que desejamos
proporcionar aos alunos (diferentemente de listagens ou agregados de tópicos ou de
atividades), desenha-se a nosso ver numa lógica de Projeto.
A ideia de Projeto atravessa efetivamente toda a ação curricular que vise adaptar,
contextualizar, integrar. O processo de conceber um currículo integrado e contextualizado,
converte-o num projeto, que comporta necessariamente uma dimensão de projeção no
futuro desejado, antecipatória, mas também a dimensão da ação presente, contingente,
aberta à reflexão. O projeto confere ao ato de ensinar o quadro mais fundamental da ação, já
que lhe clarifica as epistemologias, os contextos, os percursos e os modos de regulação e,
assim, se constitui como um importante instrumento estratégico dessa ação.
A conceção de Projeto Curricular (da Escola ou grupos de Escolas, dos cursos e/ou dos
grupos-turma de alunos) implica, no entanto, uma lógica de relação com o saber que não é
compaginável com formatos fragmentadores, aditivos, de conteúdos mais ou menos inertes.
Implica um processo de “pilotagem” que assuma as competências enquanto referenciais
nucleares dos processos de aprender e ensinar e os docentes enquanto principais
construtores e gestores do currículo. Implica ligar/religar conhecimentos, discutir conexões,
implica pensamento interdisciplinar e estratégias de autorregulação.
A Educação Artística reveste-se de uma especificidade interdisciplinar, uma vez que mobiliza,
no seu conjunto, linguagens diferenciadas (verbal, corporal, visual, musical…) cada uma com
predominâncias de técnicas e nomenclatura próprias. Os saberes próprios dos artistas
plásticos, dos escritores, dos músicos, constituem-se como “áreas” de expressividade dotadas
de relativa autonomia, e que, por isso, é preciso não só explorar e trabalhar de modos e em
momentos diferenciados, mas também colocar em relação, estabelecer ligações, permitir a
sua mobilização combinada /articulada. A especificidade interdisciplinar de que falamos, por
assim dizer “interna” ao campo das Artes, extravasa este campo quando colocado em diálogo
/ em paralelo curricular com outros campos de conhecimento, também considerados
necessários à formação das crianças e jovens. Voltamos, portanto, ao plano da gestão
curricular, e da necessidade de organizar modos de trabalho pedagógico centrados, já não
em objetivos e conteúdos definidos atomisticamente (constituindo-se como fins em si
próprios, numa lógica aditiva), mas centrados em competências integradoras do contributo
324
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
O Projeto EducARTE
O projeto EducARTE nasceu do propósito de contribuir para o sucesso do Curso Básico de
Música, em regime integrado que no ano letivo de 2014/2015 se iniciou a partir do 5º ano de
escolaridade na Escola Dr. Manuel Fernandes, sede do Agrupamento de Escolas n o 2 de
Abrantes.
Se num momento inicial a parceria estabelecida com a ESE de Santarém e com a Sociedade
Artística Tramagalense (uma associação cultural centenária do Concelho de Abrantes) visava
suprir a falta de instrumentos que poderia comprometer o funcionamento de algumas
classes de instrumento, rapidamente o âmbito da colaboração se alargou, tornando-a mais
ambiciosa: para além das questões materiais importava dar sustentabilidade ao Curso Básico
de Música, garantindo, nos anos subsequentes, um número desejável de candidatos.
Um tal objetivo implicou considerar uma intervenção ao nível do 1º CEB, que se revestiria de
um duplo interesse, na medida em que permitiria também, e em simultâneo, contribuir para
suprir a lacuna existente neste nível de ensino relativamente às áreas das Expressões
325
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Como facilmente se percebe, estes dois objetivos estão intrinsecamente ligados, uma vez que
a sustentabilidade do Curso Básico de Música ao nível da sua procura no 2º CEB, nos anos
seguintes, dependia, em grande medida, da capacidade de, no nível anterior, realizar um
trabalho que promovesse um satisfatório domínio das linguagens artísticas (e da musical em
particular), permitindo identificar aptidões nestas áreas e motivando crianças (e famílias)
para continuar a aprofundar o seu conhecimento e a desenvolver as competências musicais.
O projeto a implementar no 1º CEB foi pensado para um período de 4 anos, sem contar com
o ano piloto, o Ano 0, que coincidiu com o início do funcionamento do Curso Básico de
Música. Este Ano 0 visava testar um modelo de trabalho assente na coadjuvação, em que o
coadjuvante/formador (papel assumido pela primeira autora deste artigo), trabalhou, entre
janeiro e junho de 2014-15, com 7 turmas do 4º ano de escolaridade de 4 das 6 escolas do 1º
CEB do Agrupamento de Escolas no 2 de Abrantes.
Desde o seu início o projeto tem, pois, uma dimensão de intervenção direta com as crianças e
uma dimensão de formação contextualizada dos docentes que têm vindo a assegurar essa
intervenção, assumindo a função de professores coadjuvantes. Nos anos 1, 2 e 3 (em curso)
estão abrangidas todas as turmas do 1º ao 4º ano de escolaridade (30 no ano 1, 2015-16; 28
no ano 2, 2016-17; 27 no ano 3, 2017-18). Promoveu-se a colocação (afetação ao Projeto) de 3
professores, com os quais se mantém um compromisso de formação, supervisão,
colaboração no projeto enquanto participantes ativos e co-investigadores.
Independentemente do ano de escolaridade em que os docentes são chamados a trabalhar,
e da sua própria experiência profissional nesta área, o trabalho pressupõe partir de um
mesmo patamar de conhecimento específico, em qualquer das áreas expressivas envolvidas.
Assim, tratar-se-á de um processo de construção curricular dupla: no plano do trabalho com
as crianças e jovens do 1º CEB, a apropriação gradual de conceitos e princípios das
linguagens expressivas, e a sua integração no conjunto dos tempos e tarefas de
326
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Esta formação foi concebida para 4 anos (Níveis I, II, III e IV), enquadrada na Formação
Contínua (creditada) e na modalidade de Curso, com a duração de 150 horas anuais. A
formação acontece todas as semanas, ao longo do ano letivo, contemplando a supervisão em
contexto de trabalho e um dia destinado às sessões teórico-práticas. Os formandos são
professores coadjuvantes, em todas as turmas do 1º CEB do Agrupamento. A opção de
alargar a formação no tempo e de ir incluindo gradualmente as várias áreas artísticas
prende-se com a multiplicidade e complexidade das linguagens que elas envolvem e que os
professores reconhecem não dominar. Exigir o domínio de todas em simultâneo e ao mesmo
tempo um trabalho de qualidade com as crianças que as englobe a todas pode, em nosso
entender, ter um efeito inibidor pela insegurança que provoca. Quando feito de forma
gradual, o alargamento surge de forma natural e inevitável, acompanhando o próprio
crescimento do profissional a este nível.
A Música atravessa os 4 anos da formação, sendo acompanhada, em cada ano, por uma das
outras áreas das expressões artísticas. Este maior peso da Música tem não só a ver com o
objetivo inicialmente definido de contribuir para a sustentabilidade do Curso Básico de
Música em regime integrado, mas também com o facto de um número muito significativo de
professores do 1º CEB referir que a Música é a área que mais inseguranças e receios suscita,
por ser aquela que consideram mais complexa e relativamente à qual se sentem menos
preparados.
327
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
17), inquéritos dirigidos aos profissionais do Curso Básico de Música; entrevistas coletivas
com os grupos de crianças envolvidos no projeto; registos de notas de campo das
formadoras da ESE; recolha documental: documentos e materiais resultantes da avaliação
dos próprios formandos, que incluirá: i) o conjunto de planificações de trabalho realizadas,
incluindo materiais; ii) o caderno de notas de campo, no qual deverão ser registados todos os
elementos relevantes da trajetória formativa, incluindo dados de observação e análise dos
alunos / turmas, dos seus próprios questionamentos e soluções, fichas de leitura, pesquisas
realizadas, encontros formais e informais, etc.; iii) uma reflexão final, que inclui uma síntese
analítica do processo, com autoavaliação.
328
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
- “… ajudou-me a ter contacto com outras abordagens e técnicas com as quais não
contactava desde a formação inicial. As expressões artísticas passaram a ser
encaradas [por todos professores] com maior seriedade e rigor” (14)
329
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
- “Os E.E. reconheceram e valorizaram estas aulas como uma condição necessária
para a melhoria da aprendizagem dos seus educandos” (26)
Questionados sobre se teriam alguma sugestão a fazer, que permita melhorar a eficiência e/
ou aumentar o impacto do projeto num futuro próximo, a larga maioria dos docentes refere
a necessidade (alguns falam mesmo de “obrigatoriedade”!) de o Projeto ter continuidade. Há
algumas referências à extensão do projeto, quer a outras áreas como Expressão físico-
motora, Dança, etc., quer a outros níveis de ensino, como a Educação Pré-Escolar, quer a
mais docentes do Agrupamento: “Formação para todos os docentes que ainda não a
frequentaram para falarmos todos a “mesma linguagem” e os nossos alunos poderem vir a
ganhar” (12).
“É de destacar pela sua importância o Projeto na área das Expressões Artísticas: considera-se
uma importante mais-valia, não só pela aprendizagem dos conteúdos nas áreas da Educação
Musical e Expressão Dramática, mas também pelas competências transversais que
proporciona em termos de: concentração e evolução, os alunos adquiram novas formas de
aprender a lidar com situações de possível nervosismo (exercícios de respiração e
relaxamento), mas principalmente na forma como contribui para o equilíbrio da criança
enquanto ser humano: as artes necessitam de um espaço próprio, mas que seja ao mesmo
tempo lúdico e proactivo, na vida escolar dos alunos onde estes possam explorar a plenitude
das suas aptidões e capacidades. Recomenda-se assim vivamente a continuação deste
projeto para o próximo ano letivo”
“Este projeto foi uma mais valia que motivou a turma de forma transversal. As competências
adquiridas nestas áreas contribuíram de forma positiva para o desenvolvimento/sucesso no
desempenho dos alunos nas restantes áreas do currículo”
330
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Conclusão
O contexto em que emerge o projeto educARTE resulta de um interesse genuíno e um
verdadeiro empenho por parte do Agrupamento em causa na promoção de uma educação
artística de qualidade.
331
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Os dados de que dispomos até ao momento indicam que este modelo de formação e de
intervenção tem a vantagem de permitir um efeito multiplicador que se gera entre
professores coadjuvantes e professores titulares, potenciando também práticas colaborativas
que favorecem a reflexão e a regulação da ação educativa. A coadjuvação que, como tivemos
oportunidade de testemunhar, é frequentemente vista como “invasora”, tende a tornar-se
uma mais-valia, pois ao proporcionar uma supervisão recíproca, terá impactos importantes
ao nível do desenvolvimento profissional dos intervenientes e, consequentemente, das
aprendizagens das crianças.
Também deste ponto de vista das aprendizagens há evidências de grande consenso entre os
profissionais e nos órgãos intermédios de gestão, de que o trabalho desenvolvido ao longo
dos últimos 3 anos apresenta impactos visíveis: - ao nível da melhoria global do
desempenho, com transferência a todas as áreas curriculares de competências adquiridas no
plano da concentração da atenção, da memorização e da compreensão; - ao nível da
melhoria dos seus comportamentos e atitudes, acréscimo significativo da motivação,
interesse, envolvimento; - ao nível das dinâmicas grupais, com acréscimo de
responsabilização pelas tarefas, capacidade de colaboração e respeito pelos colegas.
332
ARTE, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO, DA PRÁTICA CURRICULAR E
DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
A Educação Artística é um contexto de ação docente que acreditamos contribuirá para criar a
ruptura de que algumas práticas instituídas parecem carecer, muito especialmente nos
primeiros anos de escolaridade. Pela sua própria natureza, reverte toda a tendência para pré-
construir sentidos para os processos de ensinar e aprender (materiais curriculares, regras de
ação, procedimentos padronizados de desenvolvimento curricular), e torna presente a
criatividade, a motivação e o pensamento de que a Escola e as nossas crianças carecem.
Referências Bibliográficas
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DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E PROFESSORES EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA.
Libânio, A. M. S. (2013). Educação pela Arte: Uma experiência para dar sentido aos sentidos.
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Schulman, L.S. (1987). “Knowledge and Teaching: foundations of the new reform”, em Harvard
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334
A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA
PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO
CONVERTER UMA PREOCUPAÇÃO EM
DESAFIO?
Sofia Ré1
1
Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e de Estudos em
Belas-Artes, [email protected]
Resumo
Abstract
This paper focuses on national collective identities, and seeks to highlight the
concern that this theme registers and deserves in our times.
Moreover, the challenge of constructing a collective that does not erase the
differences of its elements is a challenge of the Arts Education itself as a
bicephalic disciplinary field.
Introdução
Este trabalho insere-se na investigação que me encontro a desenvolver, desde setembro de
2016, no âmbito do Programa Doutoral em Educação Artística, duplamente titulado pela
Universidade do Porto e pela Universidade de Lisboa. A partilha e a exposição da minha
pesquisa aos diferentes olhares da comunidade científica, motivaram a apresentação de
algumas ideias que venho explorando no meu Projeto de Doutoramento e que intitulei
precisamente de: Do excesso de identidade à identidade zero: desafios significativos para a
Educação Artística.
336
A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
essas distinções não são assim tão óbvias. O impulso colonizador não era alheio a esta
estratégia de congregação de diferentes territórios e culturas sob a égide de uma mesma
identidade nacional. Era notória a vontade dos portugueses sentirem a diferença como sua,
ainda assim carregada com simbolismo que em nada as refletia.
Objetivos E Metodologia
Nessa linha, e com este trabalho, importa demonstrar como a identidade coletiva na
atualidade se deve constituir como uma preocupação para a Educação, ainda que sem o
devido reflexo nas políticas e na legislação. Por outro lado, existindo essa preocupação,
instala-se a necessidade de dar resposta ao problema: como trabalhar a identidade coletiva
baseada na diferença e não na homogeneidade? O objetivo geral deste artigo pretende, por
isso, posicionar a Educação Artística como campo privilegiado para abordar estas questões e
preocupações, problematizando-as no contexto da educação formal. Daí decorrem os
objetivos específicos deste trabalho que compreendem: 1. demonstrar como a identidade
coletiva na atualidade se deve constituir como uma preocupação; 2. converter essa
preocupação num desafio para a Educação Artística, argumentando sobre o valor estratégico
que esta poderá proporcionar ao lidar com as especificidades deste problema.
Começo por enraizar o trabalho numa esteira teórica, passando a caracterizar outros aspetos
de contextualização educativa e social, dos quais relevam a argumentação da identidade
coletiva como uma preocupação que merece ser encarada como desafio.
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
Enquadramento teórico
Sustentando-me numa aturada revisão de literatura, constato que a identidade nacional é
um conceito vasto, de aceção lata, sendo que na categorização das fontes bibliográficas,
tenho vindo a agrupar os seus principais aspetos no espetro de um ou mais dos seguintes
eixos bipolares (Fig. 1): Individual / Coletivo, no sentido da formação da identidade se efetuar
de baixo para cima ou de cima para baixo; Dentro / Fora, no sentido da inclusão ou exclusão
por referência a um limite ou fronteira que encerram um coletivo político, territorial ou
cultural; Passado / Futuro, na forma como a identidade nacional se constrói por enraizamento
num passado mítico ou através de um projeto visionário de futuro; Diferença /
Homogeneidade, por via da necessidade de homogeneizar o coletivo, muitas vezes
instrumentalizando a educação para esse efeito, por não se conhecer outra forma de lidar
com a diferença que não seja eliminá-la; Nós / Outros, que revela uma construção identitária
por oposição, quando não ressentimento; Essência / Construção, que expressa a oposição das
teorias essencialistas às teorias modernas da identidade nacional; e por fim, Afeto / Razão,
um eixo que extrema os sentimentos de pertença em sentimento patriótico e vinculações
racionais ou irracionais, de que são exemplo a pertença meramente constitucional, ou a
pertença por adesão consciente ou inconsciente a uma cultura nacional.
A identidade nacional é, assim, construída no seio das tensões destes eixos, sendo que as
polaridades disputam entre si um lugar de importância na perspetiva de cada autor. Por essa
razão, sobre o mesmo conceito, a miríade de posições teóricas não tem uma posição linear
no intervalo bipolar, mas o posicionamento radial, em função da tensão entre as polaridades
que cada autor sobrevaloriza.
Figura 1: Ilustração da estrutura de tensão entre eixos bipolares, detetada na análise da revisão de
literatura, relativamente ao conceito de identidade nacional. Fonte: própria.
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
Bipolaridade Coletivo-Individual
Primeiramente, importa salientar a distinção de níveis na identidade, com abrangências que
compreendem a esfera do sujeito, o self social e o self coletivo (Brewer & Gardner, 1996).
Efetivamente, mesmo a um nível coletivo, podemos constatar o que Anthony D. Smith (2001)
designa por identidades múltiplas e que permite a um português ver-se simultaneamente
como ibérico, mediterrânico, europeu, ocidental ou global. Com a criação do Estado-nação, a
identidade nacional surge como aparentemente criada de baixo para cima, do individual para
o coletivo, sendo que na realidade se trata de uma construção fruto da congeminação das
elites e não propriamente da emergência de uma personificação abstrata de um coletivo a
partir das suas bases (Gellner, 1993; Anderson, 2006).
Bipolaridade Dentro-Fora
A tensão que esta polaridade introduz determina uma forma de construção dos coletivos
nacionais que implica, naturalmente, a existência de uma delimitação que extravasa o
próprio conceito de fronteira territorial. Mais do que a definição geográfica de um território
geográfico a que se pertence está em causa uma linha imaginária que traça o que pertence,
ou não, a um coletivo nacional. Boaventura Sousa Santos (1994), por seu lado, defende que o
nosso país assume uma posição periférica, uma vez que a “a cultura portuguesa não tem
conteúdo. Tem apenas forma, e essa forma é a fronteira, ou a zona fronteiriça” (p. 47).
Constituindo-se como zona híbrida, palco de atravessamentos e convivências, Portugal
separa, tanto quanto conecta, o colonialismo do qual nunca foi um centro efetivo e a
integração europeia.
A construção da identidade nacional nesta polaridade impõe-se pela forma como ela
congrega o coletivo no seio de uma delimitação, que se pode referir a um território, uma
etnicidade, mas também a uma língua, essa fronteira invisível (Castells, 1998). Porém, como
Judith Butler e Spivak (2007) afirmam: “If the state is what “binds”, it is also what can and does
unbind” (p. 4), demarcando, claramente, quem está dentro e quem fica de fora.
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
Bipolaridade Homogeneidade-Diferença
Anthony D. Smith (1997) considera que “Uma nação pode assim ser definida como uma
determinada população humana, que partilha um território histórico, mitos e memórias comuns,
uma cultura pública de massas, uma economia comum e direitos e deveres legais comuns a todos
os membros” (p. 28). A construção do coletivo, segundo este autor, assenta no fator da
homogeneidade, em que se procura simultaneamente construir-se face a um Outro (o
estrangeiro, o outsider) e, simultaneamente, incorporar o Outro (a diferença) no seu seio
(Smith, 2001). A homogeneidade é, em si, uma forma de diferenciação dos Outros. A
incorporação da diferença, nesse sentido, é sempre um apagamento daquilo que a distingue
de um todo homogéneo.
Bipolaridade Passado-Futuro
Na perspetiva de Manuel Castells (1998) as nações são “cultural communes constructed in
people’s minds and collective memory by sharing of history and political projects” (p. 51). Isto é,
uma abstração assente na memória do passado e programada para um futuro. Das três
formas de construção da identidade definidas por este autor, é a identidade de projeto
aquela que se constrói em função de um devir comum.
Bipolaridade Essência-Construção
As construções da identidade nacional em tensão nesta polaridade extremam-se ou numa
essência comum, própria dos indivíduos, ou numa construção forjada imprimida no coletivo
por imperativos políticos e por meios que muito devem à educação. Os autores essencialistas
que se inserem nas teorias primordialíssimas de que Özkirimli (2010) nos fala procuram
encontrar as características essenciais, partindo do pressuposto de que elas estiveram
sempre presentes e intactas. A arqueologia mítica baseada na etnogenia, de que são
exemplo as teses lusitanistas no Portugal do final do século XIX, procura retomar
características de povos antepassados, como se elas se tivessem cristalizado no tempo.
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
massas (Hobsbawm & Ranger, 1985); seja na imaginação de uma comunidade capaz de
funcionar como elo comum entre indivíduos (Anderson, 2006).
Bipolaridade Nós-Eles
Esta oposição reflete a forma como a construção da identidade coletiva nacional pode focar-
se no seu interior ou, em alternativa, ser produto de um confrontamento com Outro. Castells
(1998) refere que ao falar de nações falamos no Nós, mas logo de seguida no Eles, como se a
identidade de uns fosse indissociável da identidade dos outros. Trata-se de uma situação
particularmente visível nas competições desportivas internacionais em que, ao despertar os
vínculos coletivos, o afrontamento já não é só de equipas, mas de nações.
Bipolaridade Afeto-Razão
Onésimo Teotónio de Almeida (2017) reforça essa dupla vertente afetiva e racional quando
define “a identidade como união de vontades e não como união de traços culturais e
linguísticos e muito menos biológicos” (p. 60), no entendimento de um querer pertencer, um
estar-junto. Contudo, se um coletivo nacional se pode alicerçar em motivações racionais
como pacto de proteção e defesa de interesses mútuos, é nas motivações menos racionais
que ele se aprofunda. Nestas se contam as motivações afetivas do sentimento de pertença e
amor à pátria, mas também as mais instintivas e inconscientes de que são exemplo o “hot
nationalism”, ou nacionalismo ao rubro, de Hutchinson (2006) e o “banal nationalism” de Billig
(2004).
Enquadramento social
A fronteira passou de novo a ser uma palavra de ordem. A Europa vê-se atravessada pela
diferença que já nem o mar Mediterrâneo consegue separar e suspensão do Acordo de
Schengen anuncia que a livre circulação de pessoas, afinal, tem os seus limites. Cerram-se as
fronteiras e os migrantes ficam de fora.
Por momentos, o nosso contexto presente parece esquecer a inevitabilidade dos efeitos da
globalização, tornando patente um crescente divisionismo e crispação. O processo do Brexit,
a tentativa de independência da Catalunha e, até do outro lado do Atlântico, o tão prometido
muro entre os Estados Unidos da América e o México, parecem denunciar as fragilidades da
convivência pacífica entre nações. Stuart Hall (1997), já no final do século XX, alertava para a
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
Em Portugal essas perceções foram analisadas num estudo divulgado em fevereiro deste
ano, que confrontava o “Portugal que temos e o que imaginamos” (Social Data Lab & GFK,
2017), tecendo um retrato pouco abonatório. Relativamente aos países da União Europeia,
pertencemos aos países com reduzido acolhimento de população estrangeira (cerca de 4%).
Não obstante, neste inquérito, a perceção de 58% dos portugueses é de que a população
estrangeira em Portugal é muito maior do que na União Europeia, sendo que 47%
manifestaram expressamente o desejo de ter menos estrangeiros no nosso país. O atraso na
área da educação, relativamente aos outros países, é apontado como um fator que «terá
reflexos óbvios noutras características mais próximas das “mentalidades”. A herança
salazarista do “orgulhosamente sós” poderá ser uma delas» (Social Data Lab & GFK, 2017).
É preocupante que num país com um elevado nível de homogeneidade, a diferença se faça
ainda sentir de forma tão expressiva e, sobretudo, sem contornos positivos.
Enquadramento educativo
Relativamente à forma como esta questão é encarada na educação, recorri à legislação para
aferir a importância que é concedida a esta temática. As referências encontradas não só
pecam pela escassez como pelos perigos que encerram.
Em primeiro lugar, o carácter transversal e fragmentado com que estas questões poderão ser
tratadas pode conduzir na prática a um silenciamento desta temática, pois não há como
competir com a enorme extensão dos programas curriculares. Ainda que esta possa ser uma
preocupação, possibilita que a Educação Artística possa assumir essa responsabilidade.
Outro motivo de receio é o facto de que a citada “valorização da língua e cultura
portuguesas” não fazer menção ao possível/natural enriquecimento por convivência com
outras culturas, tratando aquelas como conceitos em redoma, que se administram aos
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
alunos e que não são alvo de atualização. Avista-se assim o perigo das visões essencialistas
se apoderarem do problema.
Realidades incorporadas
Ao longo dos tempos, a escola constitui-se como um lugar histórico de construção de
identidades coletivas de carácter: religioso, como os jesuítas; político, na educação para os
cidadãos-eleitores; e cultural, na construção de uma ideia de nação. Estas construções
desenvolviam-se numa lógica de cima para baixo, inculcando, imprimindo, evangelizando um
coletivo de indivíduos através de dispositivos como a Ratio Studorium, os catecismos políticos
e institucionais ou os manuais escolares do Estado Novo (Ré, 2017).
A fantasia de uma “comunidade imaginada” ao nível das elites religiosa, política e cultural é
incorporada quer por via da educação escolar, quer por vias mais subliminares como o
flagging de Michael Billig (2004). A estratégia descrita por este autor traduz-se literalmente na
nossa língua como embandeirar, contudo, carrega uma subtileza que não assiste ao vocábulo
em português. Consiste numa forma de assinalar (flagging) a nação de forma consistente e,
por vezes, pouco evidente, através de lembretes que permitam instalar nos indivíduos uma
disposição para mobilizar a nação em momentos de crise. É nestes termos que Billig (2004)
descreve o que designa por nacionalismo banal, isto é, o nacionalismo do dia-a-dia que, por
isso, nos passa despercebido. Todavia, os seus efeitos são incorporados, pois “Like a mobile
phone, this piece of psychological equipment lies quiet for most of the time. Then, the crisis occurs
- the president calls; bells ring; the citizens answer - and the patriotic identity is connected" (Billing,
2004, p. 7).
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
Numa era em que o indivíduo não é mais um mero recetor de informação na esfera digital,
onde as primaveras não têm lugar apenas por imperativos climáticos, sendo construídas pela
força dos sujeitos e pela capacidade de se unirem através das redes sociais (Primavera Árabe,
2010), não faz sentido que a construção deste coletivo se remeta a uma aceitação passiva de
uma construção desenhada num gabinete, ou que insistentemente irrompe no nosso mundo
visual sem sequer darmos por ela.
Se, como Berger e Luckmann (1991 [1966]), considerarmos que a realidade é socialmente
construída, compreendemos que a institucionalização das representações dos indivíduos
cria, de facto, uma realidade. Uma representação mental produz assim um efeito real, numa
dialética que tem efeitos sobre os próprios indivíduos, como aliás os autores atestam: “man
produces reality and thereby produces himself” (p. 204). O homem cria a realidade mas, porque
ela também o transforma, ele cria-se a si próprio.
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
produção de uma representação da realidade, que não passam de resíduos sem qualquer
função a não ser essa.
A potencialidade deste conceito surge com Jacques Rancière (2010), que o descreve como
uma democratização do que é insignificante e acessório. É o resíduo, mais do que qualquer
outro elemento de liminar importância, o responsável por criar a ideia de realidade.
A este “processo de materialização que estabiliza ao longo do tempo para produzir o efeito
de limite, de fixidez e de superfície”, Judith Butler (1993, p. 9) designa por “matéria”,e é sobre
esta matéria, a reificação da identidade cultural nacional, que incide a minha investigação.
Nas palavras de Stuart Hall “Uma cultura nacional é um discurso, uma maneira de construir
significados” (1997, p. 55), mas a construção da identidade coletiva é, sobretudo, da ordem
do tornar real. Constroem-se e reificam-se realidades aparentemente estáticas, estáveis e
estanques, quase como um senso comum materializado por sedimentação de significados,
cuja principal ação é toldar a nossa visão no que respeita às diferentes possibilidades de
imaginar o real (Laclau, 1990).
A matéria em questão
O campo empírico de incidência da minha pesquisa reporta-se à matéria, à coisificação da
identidade cultural nacional, que está presente de forma subtil e permanente no nosso dia-a-
dia, disponível para assimilação acrítica.
O campo da cultura visual, cuja própria definição é alvo de grande debate, torna-se o
principal recurso da minha pesquisa, por diversas razões. Paul Duncum (2001) explora a
dicotomia do próprio termo ao enfatizar o aspeto da visualidade dos artefactos e de um
significado iminentemente visual, mas também da cultura onde aqueles se produzem e
circulam, onde o contexto é valorizado em dialética com o objeto. Porém, a cultura visual aos
olhos de outros autores, não se resume apenas aos artefactos visuais e ao contexto em que
são produzidos, envolve o ato subjetivo de ver e as práticas culturais do olhar (Hernández,
2005). Isto pressupõe, igualmente, por via dos discursos instalados, aquilo que somos
implicitamente formatados para não ver.
A matéria que me proponho estudar pode ser encontrada no contexto das Artes Visuais e do
circuito económico, nas lojas de lembranças turísticas e em lojas que exploram o conceito da
portugalidade nos seus produtos. Interessam-me, particularmente, as representações da
identidade cultural nacional de tipo visual, passíveis de serem utilizadas como recurso
educativo na Educação Artística de domínio visual.
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
interpretations of national, state, or local character” (p. 30), contrapondo versões criadas pelos
alunos em sala de aula, que pudessem refletir com maior precisão a sua identidade cultural.
O projeto de Duncum denunciava a distância entre a motivação do mercado de turismo para
manter vivas as tradições ou para construir uma versão do carácter nacional que fosse mais
comerciável.
Os discursos veiculados pelas propostas artísticas e pelas propostas comerciais não são,
naturalmente, idênticos. No entanto, há que reconhecer que existem agendas ocultas a que
estes discursos pretendem dar resposta e que elas se efetivam por via da reificação.
Isto leva-nos a outra interpretação do estado das coisas. O Estado, enquanto força que
representa a rigidez de uma estrutura, que congrega os indivíduos num coletivo e lhe dá
forma, está presente nestes pequenos objetos, nestes discursos materializados. É o Estado
nas coisas. Contudo, existe algo de imaterial que, tal como o galo do tempo de José Dias
Cardoso, se ativa por reação às condições do seu contexto. É nesta noção de instabilidade e
flutuação própria do entendimento atual de identidade (Brubaker & Cooper, 2000), quer por
via da constante transformação ou da ativação e desativação de identidades, que constato
que o estado das coisas, apesar da aparência sólida, é na realidade um estado fluído. Zygmunt
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
Bauman (2001) descreve a modernidade líquida como um período que possibilita uma maior
esfera de ação ao indivíduo, longe dos registos rígidos impostos pela estrutura social. Ele
introduz o conceito de líquido exatamente em termos da física dos materiais, onde distingue
a estabilidade e rigidez das estruturas moleculares dos sólidos, por oposição à fluidez própria
dos líquidos: “liquids, unlike solids, cannot easily hold their shape. Fluids, so to speak, neither fix
space nor bind time” (Bauman, 2001, p. 2). Ao verter, salpicar, pingar, derramar, os líquidos, tal
como Bauman os descreve, implicam necessariamente o tempo e uma forma de
relacionamento com o espaço, e isto é dizer que eles apresentam qualidades performativas.
É neste ponto que convoco Judtih Butler (1990) e o seu entendimento de identidade como
algo de performativo, múltiplo e fragmentado, para o opor à reificação de uma essência
originária. Todavia, não o faço sem protestos: “If [identity] it is fluid, how can we understand the
ways in which self-understandings may harden, congeal, and crystallize?” (Brubaker & Cooper,
2000, p. 1).
A Educação Artística, e por meio do recurso às linguagens simbólicas das Artes e à conceção
de discursos visuais metafóricos, que possam produzir na matéria conceitos de identidade
coletiva que espelhem a diversidade que compõem as turmas de alunos em Portugal,
afigura-se assim como o domínio mais bem posicionado para abordar este desafio, que deve
continuar a ser uma preocupação da sociedade atual.
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
O desafio para a Educação Artística não é, porém, o dos caminhos que percorre, seja na
materialidade ou na performatividade associadas à identidade coletiva. O verdadeiro desafio
é, com recurso a esses meios, pensar as identidades coletivas fora dos moldes em que elas
têm vindo a ser delineadas, donde releva o fator da homogeneidade por oposição à
diferença, mas também a verticalidade da construção de cima para baixo (das elites para os
indivíduos) ou de baixo para cima (das manifestações do nacionalismo do dia-a-dia). Pensar
numa identidade coletiva a partir da diferença que percorre os seus elementos, numa
horizontalidade que quebra os fluxos verticais, parece ser também um desafio da própria
Educação Artística, enquanto campo disciplinar que se debate para afirmar uma identidade
que dê corpo ao diálogo entre os discursos intrínsecos das Artes e da Educação. Baldacchino
estabelece esse paralelo ao referir que: “how we come to relate art with education pertains to
the same sense of being by which many individuals or communities figured out how to think and
do the impossible” (Baldacchino, 2015, p. 77).
Pensar coletivos com base nas suas diferenças pode ser, à partida, tão contraditório quanto
impossível. Eric Kaufmann (2017) parece lançar uma luz sobre esta questão ao salientar a
importância dos fluxos horizontais entre pares na construção da identidade nacional, ao
suportar-se na teoria da complexidade para defender o impacto dramático que pequenos
esforços individuais podem ter na construção da identidade coletiva. Nas palavras deste
autor “national identity is like a forest, emerging from peer-to-peer flows and feedbacks more than
via state direction, especially in our post-industrial, democratic age” (Kaufmann, 2017, p. 12).
A identidade coletiva, aliás, tal como a educação artística, partilha este desafio identitário: o
de se constituírem como um acontecimento.
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A ABORDAGEM DA IDENTIDADE COLETIVA PELA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA: COMO CONVERTER UMA
PREOCUPAÇÃO EM DESAFIO?
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350
PATRIMÓNIO MUSICAL PORTUGUÊS NA
FORMAÇÃO MUSICAL: DO
DESCONHECIMENTO À RIQUEZA DIDÁTICA
DAS OBRAS DE COMPOSITORES NACIONAIS
DO FINAL DO SÉCULO XIX E DA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XX
Resumo
Abstract
The analysis of the responses to the initial questionnaire revealed a high lack of
knowledge of composers and repertoires. The search of song sheets was
arduous, but profitable. This was followed by an analysis and selection, in the
search for the best suited to 5th grade. Having been contextualized, analyzed
and studied some songs, the results obtained through the application of the final
questionnaire showed the aesthetic and didactic richness of the works of
Portuguese composers of the mentioned period, thus contributing to the
dissemination and knowledge of this valuable heritage.
352
PATRIMÓNIO MUSICAL PORTUGUÊS NA FORMAÇÃO MUSICAL: DO DESCONHECIMENTO À RIQUEZA
DIDÁTICA DAS OBRAS DE COMPOSITORES NACIONAIS DO FINAL DO SÉCULO XIX E DA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XX
1. Introdução
Quando questionamos, informalmente, alunos que frequentam o ensino especializado da
Música sobre compositores nacionais de música erudita, em geral, verificamos que existe
grande desconhecimento e desinteresse. Ao referirmo-nos a tais compositores,
consideramos os que desenvolveram a sua criação musical, predominantemente, entre a
segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Assim, debruçamo-nos,
neste estudo, sobre Luís de Freitas Branco (1890-1955), Fernando Lopes-Graça (1906-1994),
José Viana da Mota (1868-1948), Ruy Coelho (1889-1986), Francisco Lacerda (1869-1934),
António Fragoso (1897-1918) e Ivo Cruz (1908-1985).
Era nosso pressuposto que as composições dos autores apontados apresentassem não só
alto teor estético como, também, elevado potencial didático e metodológico. Assim, as suas
obras poderiam constituir recursos preciosos para o ensino da Formação Musical. A nossa
investigação (Lopes, 2016) foi, então, pensada de modo a que os alunos desenvolvessem a
sua aprendizagem musical através de materiais e suportes de música nacional, ou seja,
tirando partido de reportório de compositores portugueses, como os atrás recordados. A
estratégia para ensinar os conteúdos baseava-se na análise de textos musicais publicados na
época referida. Toda a pesquisa e análise realizada à volta dessas canções possibilitaria
adaptar exercícios e conceitos a aprender pelos alunos, de modo a responder às exigências
do programa e às competências que seria necessário desenvolver no 5º grau.
Partimos, então, da convicção de que existia uma lacuna no ensino da música no que diz
respeito ao estudo, interpretação e divulgação das obras daqueles autores. Assim,
didaticamente, a nossa intenção assentava no propósito de orientar o estudo, a divulgação e
o conhecimento de reportório português dos referidos compositores, trabalhando,
simultaneamente, os conteúdos programáticos da disciplina de Formação Musical. O
diagnóstico da situação inicial que tomámos como justificação do estudo contribuiu para
melhor conceber e planear a ação a desenvolver.
353
PATRIMÓNIO MUSICAL PORTUGUÊS NA FORMAÇÃO MUSICAL: DO DESCONHECIMENTO À RIQUEZA
DIDÁTICA DAS OBRAS DE COMPOSITORES NACIONAIS DO FINAL DO SÉCULO XIX E DA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XX
O estudo foi, assim, desenvolvido tendo como orientadora a seguinte questão: A utilização
de reportório nacional do final do século XIX e da primeira metade do século XX, em vez do
habitual reportório internacional, contribui para desenvolver as competências esperadas no
5.º grau do ensino especializado de música?
Para dar resposta à questão formulada, definiram-se os seguintes objetivos: (i) Identificar se
os alunos conhecem, estudam e interpretam canções destes compositores na Formação
Musical; (ii) Recolher, analisar e selecionar reportório com vista a ajustá-lo à Formação
Musical; (iii) Analisar se o reportório selecionado se adequa ao ensino e aprendizagem dos
alunos do 5º grau na Formação Musical.
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O povo português possui um grande número de canções lindíssimas e de grande
antiguidade.
Quando somos confrontados com a palavra “compositores”, os primeiros nomes que afloram
à nossa memória são, geralmente, os de compositores internacionais de grande relevo, como
Bach, Beethoven ou Mozart. Se nos perguntam o nome de algum compositor do nosso país,
não respondemos com a mesma rapidez e confiança. Até podemos conhecer alguns nomes,
mas o nosso pensamento não está habituado a confrontar-se com tal questão e a maioria
dos portugueses não sabe, de facto, dar resposta a esta pergunta. E por que é que isto
acontece? Por que é que o povo português conhece melhor os compositores internacionais
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METADE DO SÉCULO XX
do que os nacionais? Não será por não terem obras de elevada qualidade musical, mas com
elevada probabilidade pela ausência de divulgação, nomeadamente nas próprias escolas de
ensino especializado da música.
A falta de divulgação de reportório português desde a segunda metade do Séc. XVI, sejam
canções ou instrumentais, é um dos fatores que leva ao desconhecimento dos compositores
nacionais (Salwa, 2010). E isto não acontece apenas com a música erudita. Hoje em dia, basta
ligarmos o rádio ou a televisão para constatarmos que a presença de outras músicas, que
não a nacional, é muito superior. Nem todos os países funcionam da mesma forma no que
diz respeito ao apreço evidenciado pelo seu património cultural e à atenção que lhe é dada.
Swanwick (2006) organizou e divulgou um método pedagógico que valoriza e assenta no uso
de canções em que o folclore húngaro se mistura com a música erudita internacional.
É, portanto, normal, que os portugueses, desde há muitos anos e até tarde no século XX,
estivessem habituados a ouvir mais canções europeias do que portuguesas (Amado, 1995).
No entanto, a falta de conhecimento de compositores nacionais não se deve apenas à
existência tardia de canções portuguesas, até porque existem músicas instrumentais escritas
por compositores portugueses sem serem apenas canções (Lacerda, 1997).
Tendo em conta a pouca divulgação que existe deste reportório e dos compositores, não
podemos exigir ao povo português, mesmo que erudito, que saiba reconhecer tão bem
nomes como Viana da Mota ou Luís de Freitas Branco, em comparação com Bach, Beethoven
ou Mozart. No entanto, pensamos que esta lacuna se torna mais preocupante quando
levantamos estas mesmas questões aos alunos do ensino especializado de música e eles não
sabem responder.
Também há a referir que tendo começado cedo, na Europa, o cultivo da música os músicos se
apropriaram da música do povo e a tornaram erudita para ser ouvida e cantada por todos,
reconhecendo-lhe um elevado estatuto, nomeadamente, para a Formação Musical, e é nesta
senda que se releva o valor da música dos povos (Gordon, 2000) e o valor dos materiais
usados no ensino e aprendizagem de música (Swanwik, 2006).
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METADE DO SÉCULO XX
Atualmente, torna-se muito mais fácil para os professores encontrarem materiais de trabalho
para as aulas onde se faça referência a compositores estrangeiros, pois existe pouquíssimo
repositório português à disposição. Nos manuais de Formação Musical que existem
aparecem exercícios e partituras para análise e conhecimento dos alunos, mas os exemplos
utilizados não são portugueses. Basta, assim, que um professor recorra a esses materiais,
escolha uma canção e a trabalhe nas aulas, pois esses manuais já trazem as partituras
analisadas, para contribuir para a completa supremacia da música estrangeira. Ao mesmo
tempo, o professor não despende tempo a procurar canções e a analisá-las previamente,
tornando-lhe o trabalho mais facilitado; contudo, neste registo, o afastamento das canções e
de outras obras de compositores portugueses vai-se acentuando. Para reverter esta situação,
cabe, então, aos professores do ensino artístico em Portugal adaptarem os recursos
didáticos e encontrarem metodologias para diminuir este desconhecimento dos alunos
relativamente à canção portuguesa.
Para este estudo foram escolhidos textos musicais da autoria dos compositores atrás
referidos. Contudo, aqui, apenas apresentamos a análise de canções de três destes autores:
Francisco Lacerda (1869-1934), Luís de Freitas Branco (1890-1955) e Fernando Lopes-Graça
(1906-1994).
Expomos apenas três exemplos (dos vários utilizados) de canções portuguesas que
analisámos para trabalhar nas aulas de Formação Musical. Para além da caraterização global
do período musical, foi dada aos alunos uma síntese biográfica de cada compositor.
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METADE DO SÉCULO XX
Começa com dois compassos no piano e no terceiro compasso entra a voz. A parte do piano
encontra-se a fazer sequências de segundas descendentes, como podemos verificar na figura
1.
A primeira frase melódica começa na nota Lá, e a segunda frase (compasso 11) começa na
nota Si, ou seja, uma segunda acima da frase inicial, respeitando sempre este intervalo ao
longo da frase melódica.
No compasso 18 e no compasso 20, surge a nota Ré#, que vem da tonalidade de Mi menor
harmónica, ou seja, é o sétimo grau subido.
As duas primeiras frases tinham como ritmo uma semínima com ponto, duas colcheias com
ponto e uma mínima com ponto. As restantes frases da voz começam todas com colcheias no
primeiro compasso. No compasso 22, a primeira colcheia da voz (Fá) não pertence ao acorde,
assim como a nota Ré na voz mais grave do piano, pois estamos no acorde do VI grau - Dó,
Mi e Sol (fig. 2).
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METADE DO SÉCULO XX
O ritmo utilizado pela voz consiste apenas em semínimas (três em toda a peça), uma mínima
(nota final), colcheias e semicolcheias (maioritariamente).
No que diz respeito à parte de piano, começa com colcheias, fazendo intervalos de 8ª com a
tónica, na voz mais grave. Na voz mais aguda do piano, começa utilizando também colcheias
e semicolcheias. A partir do compasso 4, quando começa a voz, o piano passa a fazer ritmos
mais simples (mínimas e semínimas), contrastando com o ritmo utilizado vocalmente.
Assim que termina a primeira parte da melodia, o piano repete o começo na peça, até entrar
novamente a voz. Quando a voz entra pela segunda vez, o piano volta a ter como ritmo as
semínimas e as mínimas, juntamente com duas colcheias, desta vez.
No compasso 34, o piano passa a tocar com duas claves de Fá. No compasso 37, a voz de
cima volta a ser escrita na clave de Sol e no penúltimo e último compasso, volta a ser escrita
na clave de Fá, terminando assim a peça.
No compasso 36, a peça sofre uma modulação, passando de Mib menor, para a tonalidade
de Mib Maior.
Sempre que começa uma frase melódica, o piano harmoniza com o acorde do primeiro grau.
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METADE DO SÉCULO XX
No que diz respeito à harmonia, podemos verificar que a harmonia utilizada na primeira
parte da melodia repete-se para acompanhar a segunda frase melódica.
A peça começa com uma sequência feita pela voz mais grave do piano, que começa com as
notas (fazendo entre elas intervalos de 8ªP) Ré, Mi, Fá, Mi e novamente Ré, repetindo-se o
resto da sequência mais duas vezes, ou seja, esta sequência surge três vezes seguidas. Após
estas sequências, existem mais dois compassos com notas em graus conjuntos e após estes
dois compassos, surge novamente a sequência anterior.
Nesta peça, o compositor dá grande destaque às sequências e aos graus conjuntos, pois ao
longo de toda a peça, o compositor recorre à utilização deste tipo de acompanhamento.
Para além da sequência utilizada anteriormente, surge ainda uma nova sequência, a partir do
compasso 15, ou seja, no compasso onde se inicia também a alternância entre o binário e o
ternário, desta vez começando uma 3.ª acima, com as notas Fá, Sol, Lá, Sol, Fá, Mi, Ré, Dó, Si,
Lá, Sol, Lá, Ré, Dó, Ré, Lá e Ré, fazendo entre elas também intervalos de 8ªP. Na parte final da
canção, onde volta a aparecer a alternância entre os compassos binário e ternário, esta
última sequência repete-se.
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METADE DO SÉCULO XX
Nos compassos 24, 30 e 31, na parte do piano, surge a nota Dó#, que na tonalidade em que a
peça está escrita (Ré m), é a sensível, ou seja, o VII grau (Fig. 5).
No que diz respeito à parte da voz, todas as frases melódicas começam na tónica (Ré) e
apenas uma delas termina na dominante (Lá), todas as restantes frases, terminam também
na tónica (Ré menor).
É uma peça que exige grande extensão vocal, pois a nota mais aguda é o Fá (da última linha
da pauta na clave de sol) e nem todos os alunos conseguem atingir vocalmente essa nota. No
entanto, essa nota mais aguda pode ser cantada uma oitava abaixo, pois a frase melódica
onde essa nota surge, é possível de ser cantada na oitava inferior.
Após reproduzir a canção uma primeira vez, esta repete-se novamente, a partir do compasso
5 até ao final.
5. METODOLOGIA DO ESTUDO
A investigação em que se insere o estudo aqui apresentado centrou-se numa metodologia de
índole qualitativa, com parte desenvolvida nas aulas de Formação Musical, numa abordagem
associada a Investigação-Ação (Máximo-Esteves, 2008), que aqui não é desenvolvida, e parte
descritiva através da análise de dados recolhidos através de dois questionários. O primeiro
foi respondido por 56 alunos de várias escolas de ensino especializado de música do país e o
segundo por 13 alunos da turma de Formação Musical onde a investigação-ação foi
desenvolvida. Foram, depois, comparados os resultados dos questionários iniciais com os
questionários finais da turma do estudo. Os objetivos destes questionários eram, no
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METADE DO SÉCULO XX
questionário inicial, avaliar o nível de conhecimento que os alunos, em geral, tinham sobre
compositores portugueses do final do século XIX e da primeira metade do século XX e suas
obras, e, no final, analisar a opinião relativamente ao interesse dos alunos por aquela música
nacional e os seus conhecimentos, bem como comparar as respostas com as do questionário
inicial, e averiguar se o projeto desenvolvido tinha obtido os resultados globalmente
pretendidos. Deste modo, o desenvolvimento do estudo assentou em três fases principais:
- Na segunda fase, em parte sobreposta com a primeira, foi feita uma pesquisa em
arquivos e conservatórios nacionais e uma análise de partituras de canto e piano dos
compositores referidos.
6. ANÁLISE DE RESULTADOS
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Quando se questiona se “já tiveste contacto com algum reportório de algum dos
compositores da lista”, a maior percentagem (75%) é de desconhecimento, e à questão se
“desde que iniciaste os teus estudos de música, tens trabalhado mais com reportório
nacional ou estrangeiro?”, a quase totalidade (95%) aponta o reportório estrangeiro como o
que é mais trabalhado.
Relativamente à pergunta “gostavas de saber mais sobre a música portuguesa deste período
da história da música?”, a maior percentagem vai para a resposta afirmativa não sendo,
contudo, muito expressiva (68%).
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Gráfico 5: Gosto por saber mais sobre música Gráfico 6: Reconhecimento de vantagens no
portuguesa do final do séc. XIX e início do XX estudo de reportório nacional
Quando questionados se, para além das aulas de Formação Musical, já tinham tido contacto
ao longo do ano letivo com reportório dos compositores mencionados, 77% respondeu que
nunca teve. A quase a totalidade dos alunos afirmou que gostava de continuar a trabalhar
mais a música portuguesa do período que analisámos.
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De realçar que todos os alunos acharam vantajoso trabalhar reportório nacional nas aulas de
Formação Musical e também todos acharam que foi possível trabalhar todos os conteúdos
do Programa da disciplina com o recurso ao reportório nacional.
7. CONCLUSÃO
Surgiram algumas dificuldades no que diz respeito à pesquisa de partituras de canções do
final do século XIX e primeira metade do século XX, pois existem em pouca quantidade e nem
sempre com a qualidade adequada. Após a seleção das partituras que reuniam os critérios
de utilização no 5º grau, foi feita uma análise de cada uma delas para que, posteriormente,
essa análise as transformasse em recursos didáticos para as aulas.
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METADE DO SÉCULO XX
Do estudo podemos concluir que nas escolas de ensino artístico de música do país em que
recolhemos informações e opiniões de alunos do 5º grau, a utilização de reportório
estrangeiro é praticamente generalizada na Formação Musical. Daí que o desconhecimento
de reportório de compositores portugueses, nomeadamente, dos finais do século XIX e
princípios do século XX, seja muito elevado. Aliás, desde o início dos seus estudos musicais,
os alunos, praticamente, só têm trabalhado reportório de compositores estrangeiros.
Contudo, evidencia-se que gostariam de saber mais sobre a música portuguesa desse
período e, expressivamente, achariam vantajoso em trabalhar nas aulas tal reportório. A
maioria dos alunos nunca teve contacto com esses reportórios.
Durante as aulas com recurso às canções dos compositores selecionados, os nossos alunos
demonstraram elevado interesse e uma boa participação. Todos encararam positivamente o
trabalho desenvolvido e lhe reconheceram importância, quer para eles, quer para o ensino
da música, em geral. Tal como se pode verificar na análise realizada ao questionário final,
pode-se concluir que os alunos gostaram da música que trabalharam nas aulas, com
preferência para a canção “Firmeza” de Fernando Lopes-Graça. Sobressai também que
gostavam de continuar a trabalhar mais nas aulas a música portuguesa do período
considerado. Todos acharam vantajosa a experiência e todos acharam que foi possível
trabalhar os conteúdos do programa da Formação Musical através do reportório de canções
desses compositores portugueses.
Este estudo comprovou a existência de uma lacuna no ensino da música em Portugal, mas,
ao mesmo tempo, a boa aceitação das canções portuguesas do final do século XIX e
princípios do século XX pelos alunos.
REFERÊNCIAS
Alcobia, I. M. O. (2014). Obras para voz e piano de Frederico de Freitas: a vocalidade entre
fado e canção erudita. Tese de Doutoramento em Música. Aveiro: Departamento de
Comunicação e Arte, Universidade de Aveiro.
Bettencourt da Câmara, J. (1999). O essencial sobre a Música Portuguesa para Canto e Piano.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
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DIDÁTICA DAS OBRAS DE COMPOSITORES NACIONAIS DO FINAL DO SÉCULO XIX E DA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XX
Brito, M. C.; Cymbron, L. (1992). História da Música Portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta.
Cruz, C. B. (s/d). Zoltan Kodály – Um novo conceito de Formação Musical e a sua aplicação nas
escolas húngaras. In: http://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/1451/1/zoltan_1988.pdf
(acedido em 2/12/2017).
Lacerda, F. (1997). Obras para Canto e Piano. Angra do Heroísmo: Direção Regional da
Cultura.
Lopes, J. (2016). Canções Portuguesas da segunda metade do século XIX e primeira metade
do século XX aplicadas ao ensino especializado da música (Formação Musical de 5º
grau). Tese de Mestrado em Ensino de Música: Escola Superior de Artes Aplicadas,
Instituto Politécnico de Castelo Branco, Castelo Branco.
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Workshops
WORKSHOP DE ARTERAPIA
369
WORKSHOP DE EDUCAÇÃO ARTÍSTICA
371
WORKSHOP DE MÚSICA E DANÇA
(…)
Foi aos dois docentes mais idosos da ESEV, ambos professores na grande área disciplinar das
Artes (eu nas Artes Visuais e Plásticas e o Jorge Fraga nas Artes Performativas e
Cénicas/Dramáticas) que foi feito o convite para falarmos na sessão de encerramento deste
Congresso. Portanto, achou-se por bem privilegiar a fala da experiência docente de dois
gerontes (ainda lúcidos e conscientes, esperando estar ainda longe da previsível futura
senilidade ou da ameaça da Alzheimer).
Foi-me pedido que falasse sobre Educação Artística, tema geral do Congresso. E sobre o que
foi dito nas várias comunicações de metodólogos, desenvolvimentistas curriculares,
tecnólogos educativos, investigadores em Educação Artística, pedagogos encartados … e
afins.
E vou começar logo pela minha discordância antiga sobre a nomeação deste específico
ensino que dá o nome a este evento, que eu nomearia antes como Ensino Artístico. (Parece-
me que este modo de identificar esta particular forma de instrução pública deverá provir
certamente da fórmula «Educação pela Arte», divulgada inicialmente por Herbert Read).
Não aprecio, de todo, a designação de Educação para as diversas formas de Ensino Público.
Nunca apreciei esta esdrúxula nomeação, generalizada a outras disciplinas do ensino, que
em comum partilham a mesma desconsideração social: Educação Visual, Educação Musical,
Educação Física, Educação Rítmica, … Educação Dramática (esta não é assim chamada, ainda
bem, aparece como Expressão, Expressão Dramática … Artes Performativas, designações
mais recentes … e mais apropriadas). São o resultado taxinómico de arrevesadas
nomenclaturas epistemológicas avançadas pelos ideólogos do Ministério da Educação (o qual
deveria chamar-se antes Ministério da Instrução Pública, designação que remonta à 1ª
República).
A origem desta desagradável e a meu ver desadequada designação, que no meu caso não
me coibo de caricaturar como «Educação do Olho», ou «Educação das Vistas» (ou, de uma
maneira mais suave e poética, como «Educação do Olhar»), vem, muito provavelmente, da
nomeação avançada pela tradução anglófona do vocábulo grego antigo – PAIDEIA –
palavra/conceito que traduz a ideia da uma formação plena e integral do cidadão, na sua
igual dignidade cívica na Polis da democrática Atenas clássica. Algo como uma instrução
LUÍS CALHEIROS PROFESSOR ADJUNTO DA ÁREA DAS ARTES VISUAIS DA ESEV
Não sei, ao certo, como chamaria melhor este ensino artístico. Talvez a designação de Artes
Visuais/Artes Plásticas fosse mais adequada. Educação Física, por maioria de razão, para
ultrapassar óbvios equívocos com a disciplina da Física, ciência (quase) exacta, seria melhor
nomeada, seguramente, como Ginástica, englobando esta designação as variadas
actividades pedagógicas e didáticas da motricidade, da cinestesia, do desporto, praticadas no
Ginásio. A Educação Musical seria melhor designada por Música, simplesmente. Todas as
práticas disciplinares de instrução pública devem ser chamadas Ensino e não Educação. A
instrução de matérias do conhecimento é ministrada nas escolas – é Ensino. Educação é
(deve ser) dada em casa ou nas comunidades familiares e próximas.
Educação é saudar na rua – bom dia, boa tarde, boa noite, faça favor, muito obrigado, grato,
agradecido, … ceder o lugar aos mais velhos. Educação é o paulatino moldar quotidiano, pelo
exemplo e pela palavra, dos princípios que devem reger os jovens, com a finalidade da
formação do seu carácter e do seu consequente bom relacionamento em sociedade, o
respeito pelas boas normas de convivência e convívio social. Educação é o estímulo certo
para a honra e a honestidade, para a verdade dos afectos, para a parcimónia, para a
gentileza, a delicadeza, a cordialidade, a cortesia, o respeito por todos os outros, mormente
os mais fracos e desprotegidos. Educação é a aquisição dos valores mais edificantes quanto à
ética social (a solidariedade, a fraternidade). Educação é o saber estar à mesa ... e saber
comer o bolo-rei !!!
E pelo que fica dito se estabelece que o Ensino engloba todas as outras actividades
formadoras não confundíveis com Educação.
Mas ainda quanto às (chamadas) Educações citadas, convém termos plena consciência do
generalizado grau de incomodidade social e cultural e das queixas gerais de
desconsideração, de desprestígio, de desrespeito, tendo em conta o prestígio certo das
outras áreas do ensino, consideradas (mais) importantes (e mais fundamentais): (a língua) o
Português, a Matemática. Para além da Física e da Química, das Ciências da Natureza e do
Estudo do Meio. E estando as Humanidades, a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas,
pouco mais que as Artes, em estágio continuado num limbo de alguma suspeita.
Penso que o ensino das Artes foi histórica e endemicamente visto como pouco útil para as
aprendizagens do cidadão. Como uma gardénia a enfeitar a lapela de um fraque de um
dandy desocupado e festivo.
375
LUÍS CALHEIROS PROFESSOR ADJUNTO DA ÁREA DAS ARTES VISUAIS DA ESEV
Mas o desamor indiferente pelas Artes, e nomeadamente pela Pintura, é pecado antigo da
cultura portuguesa, como já o é bem patente no teor das cartas do artista Francisco de
Olanda, dirigidas ao seu mecenas, o Infante Dom Luís de Portugal-Avis (primeira metade do
século XVI): «(…) como é pouco estimada no reino de Portugal a excelsa arte da Pintura, tão
apreciada e bem-quista na pátria de Mícer Miquelangelo Buonarroti, meu mestre (…)».
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LUÍS CALHEIROS PROFESSOR ADJUNTO DA ÁREA DAS ARTES VISUAIS DA ESEV
Enfim, como vemos e fica dito, a Cultura, as Artes, as Humanidades, são formas de
conhecimento do mundo e da vida que enriquecem sobremaneira a condição cívica, a
independência social, autonomia política, perante os poderes, todos os poderes.
Por isso foram e são actividades e conhecimentos ferreamente combatidos pelos déspotas.
Do Chile de Pinochet ao Brasil de Temer e aos EUA de Trump. E também nós tivemos de
suportar a ignorância satisfeita de uma década miserável de incultura e sectarismo
geracional de yuppies tecnocratas, liderados por um primeiro ministro que, apesar de nunca
ter dúvidas e raramente se enganar, não sabia quantos cantos tinham «Os Lusíadas», e,
pasme-se, por um secretário-de-estado da cultura que apreciava muito os (inexistentes)
concertos de violino de Chopin. E os planos de estudo curriculares dos diversos graus de
ensino ressentiram-se da liderança nefasta dessa miopia inculta.
Mas entenda-se, a chamada Educação Artística não ensina ninguém a ser artista. Ensina
antes a fruir e apreciar a arte, com a suficiência e desenvoltura de cidadãos civilizados e de
cultura sofisticada. Educação Artística é Ensino de Cultura Artística, que se deverá querer
directo, próximo, generalizado, estimulante e entusiasmante pela horizontalidade e troca
transdisciplinar dos saberes.
Penso que quanto a Arte e Conhecimento Artístico o que nos deve mover é «aprender a
ensinar para ensinar a aprender» (eis um bom lema para as instituições de ensino,
nomeadamente as Escolas Superiores de Educação).
Lembro-me de quando ensinei Estética – 20 anos – na ESEV, não esquecer o dito de Ludwig
Wittgenstein: «Do que não sabemos o melhor á calar» (parecendo um comentário à
espirituosa afirmação de Santo Agostinho sobre o Tempo - «quando não me perguntam eu
sei o que é mas se me perguntarem já não sei!».
Mas sobre Arte o mesmo autor falava do vocábulo nomeador como um termo polissémico,
que abrangia tamanha variedade de formas, actividades, acções, disciplinas, enquadradas
pelo seu conceito abstracto. Como identificar o todo pela parte – o epíteto pela substância
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LUÍS CALHEIROS PROFESSOR ADJUNTO DA ÁREA DAS ARTES VISUAIS DA ESEV
total. A obra-de-arte pela Arte. Usando a analogia informática – o visor do computador pelo
inteiro hardware.
A Arte é o tudo do mito e o nada dele, como a nomeava Fernando Pessoa. Lembro-me de
avançar, a partir de «Theatrum Philosophicum», de Michel Foucault, a trilogia teleológica da
Arte, segundo os mestres da suspeita (ou da desconfiança) – Nietzsche, Freud e Marx. Assim
era Transcendência relativa, moderada e laica para Nietzsche. Prazer hedonista, catártico e
sublimador para Freud. Testemunho humano existencial para Marx.
A Arte apela sempre para o Novo. Por meio da contemplação, pelo espanto, pela inquietação,
pelo questionamento, pela especulação, pela inovação (conseguida pelo concurso da
criatividade, da imaginação, da invenção), pela experimentação, pela reflexão, pela
consciência crítica, e sobretudo pela resistência à negatividade do mundo e da vida, que é o
que devemos veicular pelo ensino artístico aos cidadãos que querem aprender alguma coisa
connosco.
Não podemos desistir de lutar pela valorização da função sublimadora da Arte, mesmo nas
mais difíceis contingências políticas! Há um caso curioso que é alento de esperança, mesmo
nas piores condições de liberdade: a relação complicada da Arte com a situação política
repressiva do Estado Novo salazarista. Trata-se da contestação feita aos grandes painéis
pintados por Almada Negreiros em vários edifícios públicos de Lisboa.
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LUÍS CALHEIROS PROFESSOR ADJUNTO DA ÁREA DAS ARTES VISUAIS DA ESEV
E vou terminar.
Foi-me dito que devia ultimar a minha fala com um pensamento positivo. Tamanha tarefa
para um pessimista que sou. Confesso que não consigo ter a tranquilidade serena das
«saudades do futuro» (na feliz expressão do genial prosador, o P.e António Vieira). Porque o
futuro tem-se revelado crescentemente ameaçador.
Resta-me avançar uma reflexão que me tem sempre inspirado, citação de Antonio Gramsi: «O
que me guia é um pensamento dinâmico que conjuga, de modo dialéctico, o pessimismo da
razão com o optimismo da vontade».
Disse !
LC
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ANA SOUTO E MELO
COORDENADORA DO CIEA
Enquanto espaço privilegiado de investigação, o CIEA terá sempre por princípio a ideia de
efemeridade do conhecimento, a tolerância e aceitação de diferentes ideias e pontos de vista,
uma vez que é através da diversidade que encontramos o melhor.
Espero que todos se tenham inquietado tanto quanto nós e que o CIEA tenha proporcionado
a reflexão necessária para impulsionar o caminho que a educação artística deve fazer no
futuro. Até sempre!