Ciência Tecnologia e Sociedade
Ciência Tecnologia e Sociedade
Ciência Tecnologia e Sociedade
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econômico da organização social, pois a tecnicidade manual responde à
liberação técnica dos órgãos faciais, os quais ficam disponíveis para a fala, tão
logo a evolução permita que os órgãos da fala e o olfato não precisem mais ser
utilizados para a detecção e captura de alimentos. A uma maior liberação da
mão corresponde um cérebro maior, pois liberação manual e redução dos
limites da abóbada craniana são dois termos de uma mesma equação. Para
cada espécie fica determinado um ciclo entre seus meios técnicos, ou melhor,
seu corpo e seus meios de organização, ou seja, seu cérebro. Nesta interação
dinâmica surgiu a ferramenta, incorporada às estruturas biológicas do
homem.
Leituras complementares
38
2.3 O significado da tecnologia
2
Dicionário Aurélio Eletrônico, Editora Nova Fronteira, V.2.0, julho de 1996.
39
conhecimento científico. O termo “tecnologia” seria utilizado, então, para
referir-se àqueles sistemas desenvolvidos levando em conta esse conhecimento
científico.
Os procedimentos tradicionais utilizados para fazer iogurte, queijo,
vinho ou cerveja seriam técnicas, enquanto a melhoria destes procedimentos, a
partir da obra de Pasteur e do desenvolvimento da microbiologia industrial,
seriam tecnologias. O mesmo poder-se-ia dizer da seleção artificial tradicional
(desde a revolução neolítica), e a melhoria genética que considera as leis da
herança formuladas por Mendel. A tecnologia do DNA recombinado seria um
passo posterior baseado na biologia molecular.
40
sobretudo conjuntos de enunciados que tratariam de explicar o mundo natural
de um modo objetivo, racional e livre de qualquer valor externo à própria
ciência. O conhecimento científico, para quem segue essa lógica filosófica, é
visto como um processo progressivo e acumulativo, articulado através de
teorias cada vez mais amplas e precisas que iam subsumindo e substituindo a
ciência do passado. Em alguns casos, as teorias científicas – sob a lógica do
positivismo – poderiam ser aplicadas gerando desse modo tecnologias. Não
obstante, a ciência pura em princípio não tinha nada a ver com a tecnologia,
posto que as teorias científicas eram um alvo anterior à qualquer tecnologia. Por
este motivo não poder-se-ia dizer que existe uma determinada tecnologia sem
uma teoria científica que a respalde. Porém, poderiam existir teorias científicas
sem contar com tecnologias. Na literatura especializada, essa forma de ver a
tecnologia é denominada de “imagem intelectualista da tecnologia”.
A partir dessa imagem intelectualista, depreende-se que as teorias
científicas são valorativamente neutras, ninguém pode exigir responsabilidades
dos cientistas a respeito de suas aplicações, quando são postas em prática. Em
todo caso, se tivesse que existir algum tipo de responsabilidade, esta deveria
recair sobre aqueles que fazem uso da ciência aplicada, isto é, da tecnologia. As
tecnologias, como formas de conhecimento científico, são valorativamente
neutras.
Em sua análise da historiografia da tecnologia, John M. Staundenmaier
(1985) argumenta que a tese da tecnologia como ciência aplicada tem sido
atacada em diferentes frentes. Seus principais argumentos são os seguintes:
41
• A especificidade do conhecimento tecnológico. Ainda que existam fortes
paralelismos entre as teorias científicas e as tecnológicas, os
pressupostos subjacentes são diferentes. Segundo Layton, a
tecnologia, por sua própria natureza, é menos abstrata e idealizada
que a ciência.
• A dependência da tecnologia das habilidades técnicas. A distinção entre a
técnica e a tecnologia se realiza em função da conexão desta última
com a ciência (tanto em relação com o conhecimento como com a
metodologia, o uso de ferramentas teóricas, etc.). Esta distinção não
implica que na tecnologia atual não desempenhem nenhum papel as
habilidades técnicas.
42
autonomia da tecnologia, já que esta se encontra fora de controle, e
então o que se deve fazer é destruí-la para voltar a uma sociedade
menos tecnológica e mais humanizada. O tecnootimista tem uma
posição contrária. É precisamente essa ausência de controle, seu caráter
autônomo, o que assegura a eficácia da tecnologia, e, por conseguinte,
sua ação benéfica frente a qualquer perturbação que ela pode gerar. No
momento pode-se assinalar que a idéia de uma investigação científica
objetiva, neutra, prévia e independente de suas possíveis aplicações
práticas pela tecnologia é uma ficção ideológica que não tem
correspondência com a atividade real dos projetos de pesquisa nos
quais os componentes científicos teóricos e tecnológicos práticos
resultam quase sempre indissociáveis do contexto social (González
García, López Cerezo e Luján, 1996, p. 133).
Leituras complementares
43
dependem, de alguma maneira, da visão que se tenha sobre a natureza da
tecnologia. Para abordar este problema é fundamental distinguir com precisão o
que é a tecnologia e o que é o conhecimento que a faz possível (Quintanilla e
Bravo, 1997; Quintanilla, 1998). Esta distinção é básica para poder-se analisar o
processo de mudança tecnológica e para caracterizar o conhecimento
tecnológico como tal.
De maneira mais precisa, podemos definir tentativamente a tecnologia
como uma coleção de sistemas projetados para realizar alguma função. Fala -se
então de tecnologia como sistema e não somente como artefato, para incluir tanto
instrumentos materiais como tecnologias de caráter organizativo (sistemas
impositivos, de saúde ou educativos, que podem estar fundamentados no
conhecimento científico).
44
seguros, publicidade, regulamentos, guardas de trânsito etc. Não é
possível entender uma tecnologia sem ter em conta a trama
sociotécnica da qual faz parte. Os enfoques para o estudo da
mudança tecnológica desenvolvidos por Hughes, Latour, Rip e
Callon enfatizam esta característica.
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O conceito de prática tecnológica “… vem a ser a aplicação do conhecimento
científico ou organizado nas tarefas práticas por meio de sistemas ordenados
que incluem as pessoas, as organizações, os organismos vivos e as máquinas”
(Pacey, 1983, p. 21).
Leitura complementar
46
2.4.2 O conhecimento tecnológico
47
da dinâmica de fluidos, no caso das substantivas, e a teoria da
decisão e a pesquisa operacional, nas teorias operativas. Nestas
últimas, não se trata de aplicação da ciência e sim do método da
ciência, pelo fato de serem teorias da ação.
Bunge (1969, p. 694) amplia o conceito de regra tecnológica: […] uma regra é uma
instrução para realizar um número finito de atos em uma dada ordem e com um
objetivo também dado. O esqueleto de uma regra pode simbolizar-se por uma cadeia
de sinais, como 1–2–3… –n, na qual cada número representa um ato correspondente;
no último ato, n é o único que separa do objetivo o operador que tenha executado
todas as operações menos n… Os enunciados de leis são descritivos e interpretativos,
as regras são normativas […] Enquanto os enunciados legais (referentes à ciência)
podem ser mais ou menos verdadeiros, as regras só podem ser mais ou menos
efetivas. Conforme Bunge (1969: 659), diferentemente das regras de conduta que
prescrevem o comportamento moral, das regras da atividade prática que não estão
submetidas ao controle tecnológico, e das regras da semântica e de sintaxes (de sinais),
as regras tecnológicas se fundamentam na investigação e na ação. As regras
tecnológicas não seriam exatamente convencionais, como podem ser as de conduta,
trabalho e símbolos, já que as tecnológicas se baseiam em um conjunto de fórmulas e
leis capazes de dar razão de sua efetividade; por exemplo, a regra que prescreve
lubrificar periodicamente os automóveis se baseia na lei de que os lubrificantes
diminuem o desgaste por fricção das partes, ao mesmo tempo em que se degradam; é,
por conseguinte, uma regra bem fundamentada.
Bunge (1969) esclarece que toda boa teoria tecnológica operativa terá ao
menos vários traços característicos das teorias da ciência: i) não que se refira
diretamente a partes da realidade, mas a modelos idealizados; ii) como
conseqüência do anterior, utiliza modelos teóricos; iii) pode fazer uso da
informação empírica e produzir predições e diagnósticos; iv) ser empiricamente
contrastável.
48
2.5 Filosofia da tecnologia
3
Preferimos manter a grafia “engenheiril”, no lugar, por exemplo, de “engenheira”, por considerarmo s
ser esta forma já bastante aceita e compreendida, além de ser compacta, portando já significado próprio
em português.
49
linguagem, estado) como progressiva projeção dos órgãos do corpo humano.
Em uma seção da fenomenologia do espírito, Hegel analisa a dinâmica
do que considera uma das relações sociais fundamentais: a que se produz entre
o amo e o servo. Segundo Hegel, o amo arriscou na luta seu ser físico e, por
conseguinte, ao vencer se transformou em amo. O servo teve medo da morte e,
na derrota, com o intuito de salvar sua vida física, aceitou a condição de servo, e
se converteu em um ser dependente do amo. A partir deste momento, o amo
utilizou o servo, o fez trabalhar para ele, limitando-se a gozar das coisas que o
servo construía. Neste tipo de relação se levou a cabo um movimento dialético,
que acabaria por provocar uma inversão de papéis. De fato, o amo terminaria
por tornar-se dependente das coisas, deixaria de ser independente, porque já
não saberia fazer o que fazia o servo, enquanto este, ao fazer as coisas, acabaria
por tornar-se independente delas. Quer dizer, o servo, através de seu trabalho
técnico, alcançaria sua própria dignidade, independentemente da opressão de
outros seres humanos. Para Hegel, mediante essa tarefa, o servo era capaz de
transformar o mundo, que desse modo era muito menos nobre que ele mesmo.
Do trabalho do servo surgiu o desejo pelo desenvolvimento tecnológico, o qual
seria capaz de libertá-lo do entorno físico, o que possibilitaria o nascimento da
idéia de uma nova sociedade livre e igualitária.
Ernst Kapp resgata essa tese da reflexão hegeliana para formular sua
filosofia da tecnologia. Para Kapp, as ferramentas e artefatos devem entender-se
como diferentes classes de projeções dos órgãos humanos. É uma idéia presente já
nos escritos de Aristóteles; no entanto, foi Kapp quem lhe deu uma elaboração
detalhada e sistemática.
Assim, a ferrovia é definida como uma exteriorização do sistema
circulatório, e o telégrafo como uma extensão do sistema nervoso. Contudo, a
filosofia de Kapp não se reduz a elaborar uma analogia dos instrumentos e dos
órgãos humanos, sendo que um dos pontos centrais de sua filosofia é a
aplicação de sua teoria a diferentes formas de organização social, estabelecendo,
por exemplo, que o Estado é uma extensão da vida mental.
50
unicamente de “instrumentos”. Não cabe uma distinção precisa entre o
“órgão da fisiologia” e o “instrumento da técnica”. Do mesmo modo
que na divisão interna do corpo denominamos órgãos aquelas
formações que se ocupam de proporcionar nutrição e sustento, assim
também àqueles sensores que medeiam as passagens entre exterior e
interior na percepção das coisas corresponde a denominação de órgãos
da estrutura externa, das extremidades (Kapp, 1877, p. 111).
51
converte ocasionalmente em homem de Estado. No entanto, o tecnólogo
tem que permanecer sempre como tecnólogo […].
Esta ampliação da profissão técnica parece ser não somente bem -vinda,
mas também uma conseqüência necessária do enorme crescimento
econômico da sociedade moderna, e é um bom sinal de sua futura
evolução.
A pergunta surge em torno de se o tecnólogo moderno está preparado
para responder às novas demandas. Tal pergunta parece difícil de ser
respondida afirmativamente, porque não somente inclui o manejo de
nossa especialização no sentido de tecnologia prática, como também faz
alusão a uma visão de grande alcance: as interações entre tecnologia e
sociedade (Engelmeier, Allgemeine fragen der technick, Dinglers
Polytechnisches Journal, 31’1, n.2, 14 de janeiro de 1899, p. 21; citado
por Mitcham, 1989a, pp. 32-33).
52
Como assinala Mitcham (1994), pode-se resumir a filosofia da
tecnologia de Dessauer através da comparação de sua obra com a dos filósofos
da ciência, que se ocupavam de analisar a metodologia do conhecimento
científico ou discutiam as implicações de determinadas teorias para a
antropologia e a cosmologia. Segundo Dessauer, ambos enfoques estavam
equivocados ao não reconhecer o poder do conhecimento técnico, que se havia
transformado, no mundo moderno, em uma nova forma de existir para os seres
humanos.
Em 1926, Dessa uer publicou seu livro Philosophie der Technik, que teve
uma grande difusão até que foi proibido pelo regime nacional-socialista. Em
1956, edita um novo livro – Streit um die Technik (Discussão sobre a Técnica).
Não obstante, no prólogo do mesmo assinala que, na realidade, trata-se de uma
reedição do livro de 1926. Este livro se apresenta como uma defesa da técnica
em um momento em que se multiplicam os ataques contra ela.
O objetivo fundamental de Dessauer era oferecer uma análise kantiana
das precondições transcendentais do poder tecnológico, assim como refletir
sobre as implicações éticas de sua aplicação. Dessauer defendia que teria que
incluir uma quarta, nas três críticas Kantianas do conhecimento, da moral e da
estética: a crítica da produção tecnológ ica (Mitcham, 1989a, p. 46). Na Crítica da
razão pura, Kant tratava de buscar as condições do conhecimento, e defendia
que este está necessariamente limitado ao mundo dos sentidos, ao mundo dos
fenômenos, de forma que o conhecimento nunca pode chegar a conhecer as
coisas-em-si-mesmas. A Crítica da razão prática e a Crítica do juízo mantêm a
existência de uma realidade transcendental dos fenômenos como uma
precondição para o exercício do dever moral e do sentido da beleza. Tomando
como marco de referência estas teses kantianas, Dessauer defende que a
produção, em especial sob a forma de invenção tecnológica, proporciona um
contato positivo com as coisas-em-si-mesmas. A essência da tecnologia não se
encontra nem na manufatura industrial (que simplesmente dá lugar à produção
em massa de artefatos) nem nos produtos (que somente são consumidos por
usuários), mas sim no ato de criação da produção tecnológica (Mitcham, 1994,
p. 31). Dessauer identifica a inspiração criativa do técnico e do artista com o
objetivo de relacionar a engenharia com as humanidades.
53
Para Dessauer, a primeira característica dos objetos técnicos é sua
vinculação com as leis naturais. Um microscópio, um avião etc., funcionam
sempre de maneira causal e mediante um processo que se baseia nas leis da
natureza. Há uma harmonia entre a criação tecnológica e as leis da natureza. Ou
melhor, segundo Dessauer, a natureza e os propósitos humanos são condições
necessárias porém não suficientes para a existência da tecnologia.
Diferentemente dos processos naturais, na produção técnica a finalidade é
marcada pela imagem do objeto imaginada por seu criador humano. Neste
sentido, o trabalho interior do técnico põe o inventor em contato com uma quarta
realidade, a das soluções preestabelecidas para os problemas técnicos. Para
Dessauer, está claro que o que não existe não pode ser descoberto. Os inventos
técnicos são, pois, realizações das potencialidades ou dos entes possíveis, não
criações do nada absoluto. Por tal motivo, o trabalho interior do engenheiro
implica o contato com as coisas-em-si-mesmas transcendentais dos objetos
técnicos. Para Dessauer, no processo de invenção de um artefato há dois fatos
fundamentais: que a invenção, como artefato, não é algo que se encontre
previamente no mundo da aparência, e que, quando esta faz sua aparição
através do trabalho do engenheiro, o aparato realmente funciona. Portanto, a
invenção como tal não é somente um sonho, mas surge a partir de um encontro
cognitivo com a esfera das soluções preestabelecidas aos problemas técnicos.
O homem, como ser que não acaba na natureza, constrói seu meio
ambiente, sua esfera de percepção e de atuação por si mesmo. A
natureza virgem oferece ao corpo humano o mesmo que aos animais,
porém o homem amplia sem cessar seu meio ambiente em “percepção”
e em “ação”, construindo tudo aquilo que corresponde às capacidades e
necessidades de sua alma, e que designamos com o termo genérico de
civilização. Civilização é o que está mais além da natureza, superando o
físico, o vegetal e o animal, e que procede do cuidado humano
(Dessauer, 1956, p. 185).
54
naturalista romântica norte-americana, que se estende desde Ralph Aldo
Emerson até John Dewey. Esta tradição é mundana enquanto se preocupa pela
ecologia ambiental, pela harmonia da vida urbana, pela preservação da
natureza e pela sensibilidade para as formas orgânicas. E é romântica porque
defende que a natureza material não é o ponto final da explicação da atividade
orgânica, ao menos em sua forma humana. Para estes autores, a base da ação
humana é a mente e a aspiração de auto-realização criativa (Mitcham, 1994, p.
40).
Em 1930, Mumford publicou um breve artigo onde defendia que as
máquinas deveriam ser analisadas em termos de suas origens psicológicas e
práticas, e avaliadas tanto em função de sua validade ética e estética como
tecnológica (Mitcham, 1989a, p. 53). Em 1934, é editado seu livr o clássico Técnica
e civilização, onde trilha pelas mudanças que a máquina introduziu nas formas
da civilização ocidental, e trata de explicar as origens psicológicas e culturais da
tecnologia. Segundo Mumford, o desenvolvimento da máquina foi produzido
em três ondas sucessivas, que vão desde os primeiros aparatos que se serviam
do vento e da água (fase eotécnica), passando pelas máquinas que empregavam
o carvão e o aço, entre 1750 e 1900 (fase paleotécnica), para terminar com as
elétricas, compostas de diferentes ligas metálicas a partir de 1900 (fase
neotécnica).
Mumford pensa que as máquinas impõem uma série de limitações aos
homens fruto dos acidentes que têm acompanhado sua evolução, que surgem
da rejeição do orgânico e do vivo. Portanto, se a máquina é uma projeção dos
órgãos humanos, como defendem alguns filósofos na tradição engenheiril, é
somente entendida como limitação.
Em sua obra O mito da máquina, Mumford tem como objetivo explicar as
forças que têm determinado a tecnologia desde os tempos pré-históricos, e
como estas configuraram o homem moderno. Mumford não se limita a uma
análise da sociedade moderna, mas vai às origens da cultura humana. Assim,
por exemplo, rechaça a idéia do progresso humano como conseqüência do
controle de ferramentas e do domínio da natureza. Demonstra como as
ferramentas, em si mesmas, não podem desenvolver-se à margem da
linguagem, da cultura e da organização social. Para Mumford, há de se
considerar o homem não homo faber, mas homo sapiens. A base da humanidade
não é a manipulação, mas o pensamento, não são os instrumentos, mas as
mentes. Ou melhor, para Mumford, a essência da humanidade não é a
manipulação, mas a interpretação e o pensamento.
55
um grande número de novas invenções mecânicas, suprimindo os
processos e instituições antigas, e modificando a concepção tradicional
tanto das limitações humanas como das possibilidades técnicas
(Mumford, 1967, p. 4).
56
encontram no que Mumford define como a “megamáquina”: o
desenvolvimento de uma organização social rígida e hierárquica. Os primeiros
exemplos de megamáquinas podem ser encontrados nos grandes exércitos da
antigüidade ou nos grupos de trabalhadores das pirâmides do Egito ou da
Grande Muralha da China. Certamente, a megamáquina pode oferecer
importantes benefícios, mas sempre com o custo de desumanizar e limitar as
aspirações e desejos dos seres humanos. Com a chegada da Revolução
Industrial, a megamáquina tornou-se algo cotidiano. A conseqüência foi o mito
da máquina, ou a noção de que a megatecnologia é necessária e sempre benéfica
(ver Mumford, 1970, cap. 10).
Outro autor destacado nesta tradição é José Ortega y Gasset. Ortega
integra seus estudos da técnica dentro da corrente que ele mesmo definia como
“raciovitalismo”, que, como programa de investigação ontológica, nos permite
aceder a um marco de interpretação no qual os caracteres essenciais do
fenômeno estudado – neste caso, a técnica – se expressa através de sua
vinculação com a vida humana. O objetivo de Ortega é uma investigação de
índole “transcendental”, que busca estabelecer as características da técnica
desde um a priori raciovital: o homem é um ser técnico, e o que se trata é de
averiguar por que ele o é, atendendo para isso não a condições empíricas mas
sim “históricovitais” (Martín Serrano, 1989, p. 119).
Através desse programa de investigação Ortega elabora uma
perspectiva ontológica sobre a técnica, que complementa outros pontos de vista
a partir dos quais tal fenômeno pode ser considerado. Esta visão ontológica é,
sem dúvida, pioneira como modelo de indagação que, junto a idéias de
Heidegger em torno deste mesmo tema, tem de ser tomado sem a ilusão como
ponto de referência inevitável de toda especulação sobre o sentido da técnica e
seu papel na vida humana.
Ortega concebe a técnica como uma série de atos específicos do homem
realizados com o objetivo de satisfazer suas necessidades, modificando ou
reformando a natureza, e fazendo com que haja nela algo que não havia. A
técnica é vista como uma adaptação do sujeito ao meio. Ortega baseia sua
filosofia da tecnologia na idéia de que a vida humana está intimamente
relacionada com as circunstâncias. Ou melhor, não se trata de uma relação
passiva, mas sim de uma resposta ativa: o homem cria essas mesmas
circunstâncias.
Como assinala Mitcham (1994, p. 46), nesse processo de criatividade
existem duas etapas. A primeira é a imaginação criativa de um projeto do
mundo que o ser humano deseja conseguir, e a segunda é a realização material
desse projeto. Ou melhor, uma vez que a pessoa tenha imaginado e
desenvolvido criativamente qual é o seu projeto, existem certos requisitos
técnicos necessários para sua realização. Em função desta tese, Ortega defende
que há tantas classes de técnicas quanto projetos humanos. Ortega define os
57
seres humanos como homo faber. No entanto, tem de precisar que aqui faber não
se reduz à fabricação material, mas inclui também a criatividade espiritual.
Ortega divide a história da técnica em três etapas: as técnicas do acaso, as
técnicas do artesão e as técnicas dos engenheiros. O modo como descobre os meios
que considera oportunos para a realização de seu projeto pessoal se apresenta
como o elemento diferenciador entre estes três tipos de técnicas. Assim, na
primeira etapa Ortega defende que o acaso é o técnico, posto que é ele que
proporciona o invento. Nela os atos técnicos quase não se diferenciam do
conjunto dos atos naturais. Para o ser primitivo, fazer fogo é praticamente o
mesmo que andar, nadar, golpear etc. Na segunda etapa, o repertório dos atos
técnicos desenvolveu-se consideravelmente, sendo então necessário que
determinados homens se encarreguem deles e lhes dediquem sua vida: os
artesãos. Somente na terceira etapa, com o estabelecimento do modo analítico
associado ao nasc imento da ciência moderna, é que surge a técnica ou
tecnologia do engenheiro, e é precisamente nesse momento quando se pode
falar propriamente de tecnologia (ver o capítulo “O que é Sociedade?”).
4
Esses escritos de Ortega y Gasset remontam à década de 1930, de modo que a idéia de “selvagem” deve
ser tomada com o devido cuidado.
58
A aparição da tecnologia na terceira etapa leva inevitavelmente,
segundo Ortega, ao desvanecimento da faculdade imaginativa. Na antigüidade,
as pessoas eram totalmente conscientes das coisas que eram capazes de fazer,
de suas limitações e restrições. Assim, depois de haver imaginado um
determinado projeto, uma pessoa devia passar vários anos tentando resolver,
por exemplo, os problemas técnicos necessários para a realização desse projeto.
Na atualidade, segundo Ortega, as ilimitadas possibilidades que a tecnologia
abre diante nós e a facilidade de sua realização anulam o desafio dos projetos
humanos e apagam o brilho da vontade individual (Mitcham, 1994, p. 48).
Outro tratamento filosófico clássico na tradição humanística é o
realizado pelo filósofo alemão Martin Heidegger. Heidegger se propõe uma
reflexão sobre a tecnologia em um sentido geral, com o objetivo de alcançar
uma compreensão acerca da tecnologia moderna. Como Ortega, Heidegger
aborda o tema da tecnologia desde a perspectiva da ontologia. Heidegger
delineia a reflexão sobre a tecnologia em estreita relação com a questão do ser.
Heidegger pensa, inclusive, que a reflexão sobre a tecnologia pode ajudar a
compreender a questão fundamental do ser.
Heidegger faz uma reflexão sobre a tecnologia em diferentes obras, mas
sobretudo na que leva por título A pergunta pela técnica (1954). Nela, Heidegger
coloca a questão: o que é a técnica? Duas são as respostas comuns: a técnica é
um meio para certos fins, e a técnica é um quefazer do homem. Heidegger
afirma que, se estas definições são corretas, não dão conta do mais característico
da técnica. Estas definições não mostram a essência da técnica e, precisamente, a
ele interessa a pergunta pela essência do que é a tecnologia. A tecnologia é um
desocultar, um trazer à luz, um produzir com características particulares. A
tecnologia é uma classe de revelação que transforma e desafia a natureza para
gerar uma classe de energia que pode ser armazenada de forma independente e
ser transmitida posteriormente.
Isto não acontecia com a técnica antiga. Por exemplo, as pás do moinho
de vento estavam abandonadas ao movimento deste e desenvolviam um
trabalho mas não abriam as energias da corrente de ar para armazená-las. O
trabalho do camponês não agredia o campo, ao contrário, ele o cultivava e
cuidava dele, esperando que crescesse o trigo e produzisse o grão. Segundo
Heidegger, hoje em dia se provoca o ar para que proporcione nitrogênio; o
cultivo do campo converteu-se em indústria alimentícia; o solo é provocado
para que forneça mineral, por exemplo urânio; e este é provocado, por sua vez,
para que proporcione energia atômica que pode ser usada para a destruição ou
para utilidades e fins pacíficos. Quer dizer, na técnica moderna se dá um
constante solicitar, um provocar. A tecnologia moderna desafia a natureza.
Enquanto que o moinho de vento se mantém em uma estreita e respeitosa
relação com o meio ambiente (por exemplo, depende da terra de um modo que
a tecnologia moderna não necessita; os moinhos somente transmitem energia
59
através do movimento, de forma que se o vento não sopra não se pode fazer
nada), a central elétrica poucas vezes se ajusta ou complementa a natureza (não
só contamina o meio ambiente mas também sua localização vem determinada
pelas necessidades urbanas e não pelas características da paisagem, como no
caso dos moinhos tradicionais). Além disso, as tecnologias modernas têm uma
forma interna que é refém de cálculos estruturais, de forma que exibem sempre
o mesmo caráter seja qual for o lugar onde se instalem, à margem das
características da paisagem.
Um último autor que vamos mencionar brevemente nesta tradição é o
filósofo francês Jacques Ellul. Para Ellul, a tecnologia é o fenômeno mais
importante do mundo moderno. Assim, defende que o capital já não é o motor
da sociedade tal como sucedia no passado; agora é a tecnologia a força motriz
da sociedade, que define como a totalidade dos métodos aos quais a
racionalidade chegou e a eficácia absoluta em todos os campos da atividade
humana. O objetivo de Ellul em sua obra clássica de 1954 – La Technique – é
estudar a tecnologia do mesmo modo que Marx estudou o capitalismo um
século antes.
Ellul distingue entre o que denomina operações tecnológicas e fenômeno
tecnológico. As operações tecnológicas são múltiplas, tradicionais e
determinadas pelos aspectos contextuais. O fenômeno tecnológico (ou a
tecnologia) é único e define o marco que determina o modo exclusivo de fazer e
utilizar os artefatos, de forma que estes sejam capazes de dominar outras
formas da atividade humana. A distinção entre operações tecnológicas e
fenômeno tecnológico é similar à distinção mumfordiana entre as tecnologias
biotécnicas e as monotécnicas. Do mesmo modo, resgata a classificação de
Ortega na medida em que as tecnologias do acaso e as tecnologias do artesão
são, de certo modo, operações tecnológicas.
60
promover o prestígio da tecnologia. Assim, por exemplo, em 1909, criou um
boletim informativo que, depois de vários títulos, foi denominado Técnica e
Cultura. Tal boletim nasceu com a tarefa de refletir acerca da dimensão cultural
da tecnologia. A VDI deixou de publicar o boletim durante o regime nacional-
socialista, depois que este tentou em vão aproximar a associação dos seus
pontos de vista.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a tradição engenheiril da filosofia
da tecnologia experimentou um importante crescimento, devido em grande
parte ao sentimento de responsabilidade pelo papel que os engenheiros haviam
desempenhado durante a guerra. Como resume o engenheiro Albert Speer em
sua memória, Dentro do Terceiro Reich:
61
aproximação dos políticos e do público ao trabalho dos engenheiros através da
explicação desse tipo de atividade. A filosofia da tecnologia devia propor
também medidas éticas para a evolução da própria tecnologia. Finalmente,
como assinala I. Hronzsky, a filosofia da tecnologia devia conduzir a uma
alfabetização tecnológica do público, e a um impulso da dimensão ética da
tecnologia para promover certa consciência ética acerca do desenvolvimento
tecnológico (Hronzsky, 1998, p. 101). Em sua obra Para uma filosofia da tecnologia
interdisciplinar e pragmática: A tecnologia como o centro de uma reflexão
interdisciplinar e uma investigação sistemática, Hans Lenk e Günter Ropohl (1979)
sustentavam que os problemas do mundo tecnológico, dado seu caráter
multidimensional, só podem ser abordados com alguma possibilidade de êxito
partindo do pressuposto de uma participação ativa dos generalistas das ciências
sociais e dos universalistas da filosofia; e resolvidos de forma adequada
contando com a contribuição dos especialistas em engenharia. Para estes
autores se faz necessária uma cooperação efetiva entre engenheiros e filósofos
que se estenda pelos obsoletos departamentos e rom pa com as fronteiras
acadêmicas.
Um dos projetos iniciais do comitê “Humanidade e Tecnologia” foi a
avaliação crítica das diferentes interpretações da tecnologia. Este trabalho
analítico gerou uma série de artigos publicados em sua VDI-Nachrichten (seu
periódico semanal), compilados nos volumes anuais da Associação. Durante os
anos sessenta, a Associação realizou seu trabalho através de subcomitês e
mediante informes ocasionais; entretanto, a partir de 1967, instituiu o “dia dos
engenheiros”: um congresso bianual em que se discutiam temas relevantes. Em
1970, organizou um congresso em Ludwigshafen sobre as conseqüências
econômicas e sociais do progresso tecnológico, que recebeu uma extensa
cobertura por parte dos meios de comunicação (Mitcham, 1994, p. 71).
Durante os anos setenta e oitenta, a ética engenheiril, e em especial os
códigos éticos dos engenheiros, converteram-se em temas centrais para a VDI.
Desde princípios da década de setenta, a Associação realizou um considerável
esforço para alcançar uma com preensão adequada do que é e como se deveria
realizar a avaliação de tecnologias e a ética dos engenheiros. Um grupo de
trabalho da VDI, entre cujos membros se destacam Lenk, Ropohl, Huning e
Rapp, elaborou o Guia da VDI, onde se formula um código composto de oito
valores que tratam de conciliar princípios engenheiris, econômicos e éticos, e
onde se recomenda aos engenheiros que se orientem por eles.
Leitura complementar
62
2.6 Avaliação de tecnologias
63
âmbito importante de inovação nas políticas públicas sobre ciência e tecnologia
concerne à gestão das mesmas e a abertura dos procedimentos de tomada de
decisões sob o escrutínio social e a participação pública (ver a este respeito o
capítulo “O que é CTS?”).
64
Impactos indiretos
Uma das questões mais delicadas e importantes da análise de impactos na AT
é a identificação de impactos indiretos de enésima ordem. Um exemplo
clássico interessante de J. Coates (1971), sobre as conseqüências da televisão,
pode mostrar a importância desta questão.
• Primeira ordem: nova fonte de entretenimento e diversão nos lares.
• Segunda ordem: mais tempo em casa, deixa-se de ir a cafés e bares onde se
viam os amigos.
• Terceira ordem: os residentes de uma comunidade já não se encontram
com tanta freqüência e deixa-se de depender dos demais para o tempo de
lazer.
• Quarta ordem: os membros de uma comunidade começam a ser estranhos
entre si; aparecem dificuldades para tratar os problemas comuns; as
pessoas começam a sentir maior solidão.
• Quinta ordem: isolados dos vizinhos, os membros das famílias começam a
depender mais uns dos outros para a satisfação de suas necessidades
psicológicas.
• Sexta ordem : As fortes demandas psicológicas dos companheiros geram
frustrações quando não se cumprem as expectativas; a separação e o
divórcio crescem.
65
e justiça. Essa política permite despojar as minorias de seus direitos
para servir ao bem da maioria, à utilidade geral.
• Violação da igualdade de direitos. As crianças estariam pagando muito
mais que as demais pessoas os efeitos do desenvolvimento
tecnológico da energia nuclear, já que é mais grave a exposição de
crianças a pequenas quantidades de radiação (por cada rad de
radiação há uma probabilidade três a seis vezes maior de que as
crianças contraiam câncer).
• Confusão entre o que é normal e o que é moral. Está na suposição de que
tudo o que é normal, por exemplo a morte por radiação, é moral,
confundindo que todo o normal, que não é nem bom nem ruim por
si mesmo, nem sempre é moral.
• Os produtores de usinas nucleares devem ser os responsáveis por seu
controle. Essa prática viola evidentemente os princípios de jogo
limpo e de desinteresse. Também este princípio facilitou que a
sanção e a compensação dependam que se prove que tais acidentes
não foram “intencionais”, e que produziram efeitos observáveis
para a saúde; não se pode esquecer que os cânceres induzidos por
radiação podem ter um período de latência até mesmo de quarenta
anos; portanto, é improvável que sejam observáveis imediatamente.
Leitura complementar
66
2.6.2 Modelos gerais de avaliação de tecnologias
67
2.6.3 O modelo de Avaliação Construtiva de Tecnologias (ACT)
68
Com relação às iniciativas práticas para levar a cabo uma ACT, e para
fazer frente às hipóteses antes mencionadas, destacam-se a organização de
conferências estratégicas nos Países Baixos e os congressos análogos na
Dinamarca e outros países (González García, López Cerezo e Luján, 1996). O
modelo holandês serviu de base para algumas propostas e experiências de
avaliação construtiva de impacto ambiental na Espanha. As fases destas
experiências, normalmente focalizadas em conflitos sociais relacionados com a
inovação tecnológica ou a intervenção ambiental, são normalmente as
seguintes:
69
• a aprendizagem da avaliação tecnológica através de simulações
educativas dispõe aos cidadãos os instrumentos para identificar e
antecipar as conseqüências sociais, culturais, ambientais e políticas das
inovações tecnológicas reais;
• é óbvio que o melhor cenário para a aprendizagem social, no que diz
respeito às conseqüências das tecnologias, deve ser o educacional,
porque é este que permite adquirir hábitos da participação pública em
seu controle antes que tal participação já não seja possível.
70
3) especialistas tecnocientíficos dos quais se demanda assessoramento para a
avaliação dessa tecnologia (instituições de pesquisa ou avaliação sobre o
tema…);
4) mediadores com capacidade para o seguimento e a ampliação pública da
controvérsia (meios de comunicação) ou instâncias com responsabilidade
pública na tomada de decisões sobre a implantação dessa tecnologia
(administração, conselho escolar…).
Em seu livro Rebeldes contra o futuro, Kilpatrick Sale (1996) defende que
há muito o que aprender do movimento ludita do século 19 sobre oposição à
mudança tecnológica. Segundo Sale, podemos aprender muito dos luditas,
ainda que sejam tão distantes e tão diferentes de nós, como também distante e
diferente era sua época da nossa. Nossa sociedade está enraizada no
desenvolvimento da Revolução Industrial, a qual os luditas se opuseram tão
energicamente. Neste sentido, mudaram as máquinas, mas a base para o
surgimento de qualquer tipo de máquina (seus teares e nossos computadores,
seus trens a vapor e nossos trens de alta velocidade), isto é, o sistema industrial,
não mudou excessivamente.
O movimento ludita, que operou entre 1811 e 1816, foi um movimento
cuidadosamente organizado e disciplinado, o que lhe proporcionou uma alta
efetividade em seus ataques, causando importantes danos. Tratava-se de um
movimento com suficiente apoio popular, de forma que os luditas puderam
atuar no anonimato, apesar das ameaças oficiais e das grandes recompensas
oferecidas a todo aquele que desse informação sobre eles. Tudo isso nos permite
entrever que os luditas eram unicamente a parte visível de uma insurreição
mais ampla. Entre 1811 e 1816, ergueu-se um amplo apoio aos trabalhadores
que se ressentiam amargamente das novas reduções salariais, da exploração
infantil, da supressão das leis e costumes que em uma época haviam protegido
os trabalhadores qualificados. Seu descontentamento se expressou mediante a
destruição de máquinas, a maioria da indústria têxtil. Desde então, o termo
“ludita” passou a significar uma oposição radical à tecnologia.
Concretamente, Sale sustenta que há algumas lições que podemos
aprender do movimento ludita do século 19:
71
• As tecnologias não são neutras e, ainda que algumas sejam benéficas,
também há outras prejudiciais. Na opinião de Sale, os luditas nos
ensinaram que as máquinas não são neutras: são construídas, na
maioria dos casos, valorizando somente fatores de caráter econômico
que correspondem aos interesses de uns poucos, enquanto costumam
ser marginalizados, por serem considerados irrelevantes, os aspectos
sociais, culturais e do meio ambiente. Portanto, a tecnologia não é
neutra, como sustentam muitos tecnófilos. De fato, não podemos ver
as tecnologias como um conjunto de ferramentas ou dispositivos, de
maior ou menor complexidade, que podem ser utilizados para o bem
ou para o mal. Muito pelo contrário, as tecnologias expressam valores
e ideologias das sociedades e dos grupos que as geram. Assim, uma
cultura triunfalista e violenta é a base para produzir ferramentas
triunfalistas e violentas. Por exemplo, quando o industrialismo
americano transformou a agricultura depois da Segunda Guerra
Mundial, o fez com tudo aquilo que havia aprendido no campo de
batalha: utilizando tratores projetados tomando como base os tanques
de guerra; pulverizadores aéreos utilizando os aviões de guerra;
pesticidas e herbicidas desenvolvidos a partir das bombas químicas…
72
na cultura.
73
resistência à tecnologia em nossos dias é precisamente gerar esse
debate de que careceu o movimento ludita do século 19; um debate
baseado na participação e na gestão democrática da ciência e da
tecnologia, em que todos os envolvidos, incluídos os cidadãos
comuns que sofrem as conseqüências do desenvolvimento científico-
tecnológico, possam emitir suas opiniões sempre sob a garantia de
uma adequada formação e informação.
74
Como apontávamos anteriormente, não somente as vítimas diretas da
tecnologia pertencem a esses grupos, mas também aqueles cidadãos
especialmente preocupados e sensibilizados, como são os participantes em
campanhas contra resíduos tóxicos, o uso de pesticidas, o corte desmedido de
árvores, a experimentação com animais… Um dos grupos de maior êxito foi o
dos ativistas antinucleares nos Estados Unidos, que se opuseram às armas
nucleares e às centrais nucleares, sendo capazes de evitar a construção de novas
centrais em todos os estados desde 1978. Sua oposição incluiu todo tipo de
atividades: manifestações, marchas, concertos e inclusive sabotagens.
Na década de oitenta se desenvolveu o que se conhece como o
“ecotage”. Trata-se de uma forma de protesto iniciada pelo grupo ecologista
Earth First, uma organização radical cujo lema era “nenhuma concessão na
defesa da terra”. Sua estratégia consistia em parar as intrusões e ataques ao
meio valendo-se tanto de meios legais como de outros tipos de atividades, tais
como furar pneus das máquinas utilizadas para cortar lenha, bloquear as
estradas para impedir que caminhões ingressassem nos bosques, introduzir
pregos nas árvores para evitar que fossem cortadas com serras de corrente, etc.
O objetivo fundamental de tal grupo, como se assinalou em suas publicações
gratuitas, é desmantelar o sistema industrial atual. Como disse um de seus
membros antes de ser detido por derrubar uma torre de alta tensão: “não
somente proteger a natureza, mas também atravessar uma barra na roda da
máquina que é o sistema industrial”.
Na atualidade, há múltiplos grupos que empregam a técnica do
ecotage; um claro exemplo conhecido por todos constitui muitas das ações de
Greenpeace. Também abundam grupos centrados na proteção dos direitos dos
animais (lançam tinta nos casacos de pele, destroem laboratórios em que se
fazem experimentos com animais e os liberam…).
Em algumas passagens do livro de Robert Pirsig, Zen e a arte de
manutenção de motocicletas, o protagonista, Chris, pergunta-se como é possível
que acerca de uma questão tão simples como é o cuidado de suas motocicletas
pudesse existir uma atitude tão diferente entre ele e seu amigo John.
75
que tive em mente o desempenho da moto e esta se introduz na
conversação, cessa a boa marcha do diálogo. A conversação deixa de
progredir. Há um silêncio […]. Pude chegar a crer que esta era,
meramente, uma peculiar atitude sua com respeito às motocicletas;
porém, mais tarde descobri que se estendia a outras coisas […]
Enquanto esperava por ele uma manhã em sua cozinha, antes de
realizar a viagem, notei que a torneira gotejava e recordei que já
gotejava da última vez que estive ali […]. Isto me obrigou a perguntar-
me se influiria em seus nervos aquele drip-drip-drip semana após
semana, um ano após outro […]. Não se trata da manutenção da moto,
nem da torneira. É toda a tecnologia que o aborrece. […] John se evade
cada vez que surge o tema da reparação da moto, inclusive quando é
evidente que esta o faz padecer. É tecnologia. Se vai de moto é para
afastar-se da tecnologia através da campina, sob o sol e o ar fresco.
Quando eu o devolvo precisamente ao ponto e ao lugar dos que crê
haver finalmente escapado, isso não faz senão causar-lhe uma
desagradável sensação glacial. Por esta razão, a conversação sempre se
interrompe e se congela quando traz à tona esse tema (Pirsig, 1994).
2.8 Conclusão
76
técnicas). Por sua vez, o conhecimento codificado é formado por conhecimento
científico, por conhecimento tecnológico relacionado com a ciência (conteúdo e
método), por conhecimento desenvolvido na própria atividade tecnológica e
por conhecimento técnico.
Numa visão mais compreensiva, duas tradições filosóficas, a
engenheiril e a humanística, teorizaram de modos distintos a natureza da
tecnologia e sua relação com o ser humano; duas tradições que, como mostra a
reflexão gerada pela VDI alemã, necessitam complementar-se mutuamente para
oferecer uma visão adequada do fenômeno tecnológico. A tecnologia é uma
projeção do ser humano no seu entorno, mas ante a qual convém manter uma
atitude crítica, pois nem sempre ela tem oferecido os efeitos desejados,
voltando-se freqüentemente contra nós como o monstro que se voltou contra
Victor Frankestein.
Trata-se, em última instância, de desenvolver formas de convivência
com a tecnologia no mundo atual que nos permitam corrigir os erros do
passado – expressos tão eloqüentemente pelo movimento ludita – e adaptar as
máquinas às necessidades e aspirações do ser humano.
2.9 Bibliografia
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