Léon Bloy - Histórias Desagradáveis
Léon Bloy - Histórias Desagradáveis
Léon Bloy - Histórias Desagradáveis
BISTÓRIAS
DESAGRADÁVEIS
EDITORIAL ESTAMPA
LÉON BLOV, INDIGENTE E ENRAIVECIDO
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18 69- Aos .23 anos de idade, numa livraria, encontra
Barbey d'Au·revilly, admiração antiga a que não
vai saber resistir.
(Vai escutá-lo e segui-lo até sua casa; ser con
vertido ao catolicismo; ser convencido de que
é escritor, mais do que pintor.)
1870- Alista- se como franco-atirador durante a guerra
contra a Prússia. Cheio de fé, parece um cru
zado.
1873- N ovamente em ·Paris (depois de um emprego
na sua terra natal que o matou, quase, de
tédio). Será contabilista numa ·companhia de
caminhos de ferro, caixeiro de uma livraria,
ilustrador de manuscritos.
(Ao sabor de ·enormes dificuldades materiais,
Bloy vai mudando de empregos e de quartos.
Frequenta jornalistas do Chat Noir. Dá-se com
Paul Bourget, que mais tarde virá a detestar;
dá-se com Huysmans e Vllliers de l'lsle-Adam.)
1876- Estreia brilhante no jorna lismo, para .se fazer
rapidamente um cronista «insuportável». (Arre
dado pelos catóUcos, qu e me nio perdoam o
fôlego e a cor, vomitado pelos não-católicos,
que nio podem tragar o meu catolicismo, de
anternio exterminado, sempre, pcwque não
posso aclimatar-me a este mundo, sem ter
fortuna nem recursos, estou ·l·igado a ang6stiaa
cuja real enormidade só pode pesá-la Aquele
que sabe exactamente da nossa caPacidade de
sofrer.)
1877 - Encontro com o padre Tardif de Moidrey, que
virá a se r o grande m estre da sua vida con
templativa; encontro com Anne•Marie Roulé,
prostituta a quem amará de paixão louca e
cuja alma 1 ele p·r·etenderá «salvar».
(Rapidamente Anne-Marie ultrap assará o seu
mentor ·Parti lhará com ele uma vida que ficará
.
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Anne-Marie chegará a convencer ·Bioy de que
está próximo co fim dos tempos», fazendo-o
conhecedor do dia em .que esse fim terá lugar.
Ultrapassada a data sem ter havido qualquer
sinal de Apocalipse, a cólera de ·Bioy sobe até
à blasfémia.)
Tenta duas vezes, sem êxito, que o admitam
na Trapa da Grande Cartuxa.
1882 - Anne"Marie Roulé é i nternada num manicómio
(onde viverá durante 25 anos) e léon ·Bioy
escreve para diversos jornais, «por razões ali
mentares». (Nestas inomináveis coisas dirá -
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contos1 para jornais. (A necessidade da en
contrar temas para artigos .que tenham., ao
mesmo tempo, algu ma coisa que ver comigo
e com o Gil Blas, exaspera-me.) (Ahl Como
esta gente do Gil ·Bias ma obriga a ganhar
dUramente a vidal)
1890- Casa com Jeanne Molbeck, dinamarquesa que
partilhará da sua miúria até ao fim. (.Do casa
mente> vão nascer quatro filhos, dois mortos
nos primeiros tempos de vida - de priva.jõas,
segundo vários biógrafos de Léon Bloy.)
Publica Christophe Colomb Devant les Tau
reaux.
1892 - Publica Salu t Pour las Juifs, onde Israel surge
destinada a grande papel «nos últimos dias».
(Avanço à frente doa m eu s . pensamentos em
exf.lio, numa grande co luna de silêncio.)
1893- Sueur de Sang, reunião dos contos militares
pub.licados no G il Blas, recordações da guerra
dj! 18 70 transfiguradas, na sua maior parte,
em ficções «negras».
1894- Histoires Désobligeantas (Histórias Desagra
dáveis}.
1895 - A sua repercussão, como escritor, continua a
não ultrapassar um pequeno circulo de admi
radores que lhe admiram a violência e a cólera,
os esplendores da linguagem.
(É certo que ando c hei o de ódio, desde a in
fância, e ninguém amou· as pessoas com .inge
nuidade maior do que a m inha . Do mundo
abominei coisas, instituiçõas e leis. Tenho an
d a d o a votar ao mundo um ódio sem fim , e
as experiências que vivi só serviram para
exasperar asta pafxio.)
1897 -Ano de La Femme Pauvre, sua obra-prima (2}.
18 98 - Primeiro volume do seu diário: Le Mendiant
lngrat.
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1899 -Tio g randes as suas dificuldades materia is,
que resolve emigrar com a famflia para a Di
namarca, o pars onde vive a famflia de Jeanne,
sua mulher.
·Publica Le F i ls de Louis XVI, onde profetiza
as desgraças do séc. XX, assim: 'Como o uni
verso inteiro andará de automóvel ou velocr
pade, a ocasião de pular de alegria aproveitará
a muito poucos. Os rlli'08 pe6es indigentes
que tiverem escapado a extermJnios anteriores
serão QUldadosamente esmagados e tudo se
guirá, em f.:iria, para o duplo abismo que a
odiosa mecanizaçlo Invoca: o da imbecitidada
doa homens e o da esterllid8de das mulheres.
As pessoas vio «diVertir-SID em podridio e
·
demência.
Também deste ano Je m'Accuse, violento pan
fleto contra Zola, o «cretino dos ·PirenéuS».
1900 - Regresso ·cdesiludidoJ da •D i na marca.
1905 - Léon Bloy vive o ano mais ameno da sua vida.
Amigo pouco cómodo, e à margem dos outros
homens, pa rece agora ter arranjado quem lhe
aceite o carácter cdiffciiJ: o pintor Georges
Rouault, o compositor Georges Aurlc, gente das
letras como Jacques e Raissa Maritain. :Aifred
Valette e a sua mulher ftachilde conservam-no
na editora Mercure de ·Franca, apesar do me
díocre sucesso das suas obras.
1908 - L'lnvend8bre, terceiro volume do seu diário.
1914- A Grande Guerra acorda nele as antigá s pai
xões de 1870 e a sua impaciência ·capocali
ptica». Convencido de que vio realizar-se as
ameaças da caparlçioJ de La Salette, e a hu
manidade será atrozmente castigada, vive na
expectativa de uma catástrofe mundial.
1915 - (Eu podia ter-me feito •nto ou taumaturgo,
e fiz de mim um homem de letras! Nio exe
cutei,. estou certo, o que Deus pre1endia ci'e
mim. Pelo contrário: de Deua sonhei o que
eu pretendia e aos 68 anos aqufi me têm com
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as mãos cheias, apenas, de papet. [ . . . ] Estou
à espera dos Cossacos e do Espfrito Santo.)
1917- Morre a 3 de Novembro.
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descoberta de quase. tOdoa os suportes «reais» deste
guinho! sàngrento.
A qu� um século de distância, interessa muito
menoa quem estéve por detrás do banho fu.Jiginoso
onde Léon Bloy mergulhou oa homens e casoa do seu
tempo. Sobra-nos, sim, um «espectáculo»; uma Btitude
titerária de humor ren�id'o aos trac;oa mais ind'esejáveis
da hipocrisia, da avareza, da pobreza; interesSada em
desfear,· até ap insllportável, ine8$108, cegueiras· ou
caridades. E uma outra leitura - mais superficial, sem
dCavida, mas divertida- que vai de par com a clien
tella das ficções negra s e saboreia cn�eldades, nio fica
indiferente a esta encenação, pesadlssima e perversa,
de um reconhecirvel quotidiano.
A. F.
O VELHO DA CASA
ramo do comérc i o !
- A famíl i a ! Desgraça das d esgraças . E há
quem fa l e na m isericórd i a de Deus ! Diabo de
c a l acei ro , q u e nunca mais estica o pern i l !
Este monól ogo fi l i al , tão frequente, por des�
graça já perdera a frescura . Mme. Al exandre
gastava-o todos os d i as a l amentar o l ado
cori áceo da sorte que l he cab i a e embora se
comovesse , às vezes, era só por l he parecer
necessário divulgar a sua a l ma aos c l i entes
jovens que entend i a , m pouco a nobreza daqu e l a
choradei ra .
- Qu e b o m é o m e u paizi nho queri d o !
- arrulhava . - Se o papá soubesse como gos-
tamos d e s i ! � como se tivéssemos todas um
coração ú n i co. Como o papá sabe, a profissão
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não conta nada nestas coisas . Podemos ser
postas à margem, ser umas desg raçadas se
o papá quiser, mas l á o coração, esse fal a
sempre. É s ó a gente lembrar-se d a i nfância,
das alegrias da famíli a , tão puras . . . Pal'avra
que até me s i nto em êxtase quando vejo ci ran
dar na casa este velhote respeitável com a
sua coroa de cabelos brancos que até nos faz
pensar na pátria celesti al , etc . , etc .
A i nconsciência profissional desta doid iva
nas perm itia-l h e , nem se duvide, fu ncionar
com à-vontade idêntico em qualquer situação .
E o septuagenário do g rande 12, aquele hós
pede a lternadamente vesti do de glória e d e
sonra , estagnava à beira da filha - com a
tranqu i li dade ina lterável do seu crepúsculo de
vida - a rmado em maltrapilho de albergue
das margens do g rande colector.
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treante dois anos bastaram para dar cabo do
calvinistal
Depo is dele, quantos ! Recomendada sobre
tudo a senhores d iscretos , fez-se a modos que
u m arranj i nho de pais de família e assim p ros
segu i u , em plena au réol a de indecências , até
aos dezoito anos .
Mu l h e r séria e l a própria , de tanto roçar
pessoàs sérias, largou o crápu la e bebedolas
do pa i cuja frivo l i dade, ociosa agora , lhe re
voltava o coração.
Du rante q u i nze anos o abandonado empan
turrou-se de i nfortú nios.
Já sem mão para negócios, sem conseg uir
recuperar a astúcia de outros tempos , parecia
destas moscas ve l has que as a ranhas despre
zam e até já são incapazes de voa r por c i m a
dos exc rementos .
· Léontine foi mais fel iz e p rosperou. Sem
subir aos ·pr i meiros cargos da Galantaria Pú
b l i ca - que maneiras incorrigíveis de casca
-g rossa l he não permitiam ambicionar a d ita
dura - por entre subalternos empregos mano
brou com tamanha a rte e tão ambidextras
com placências que se mete u , insta l o u , açapou
com fi rmeza, na boa-va i-e l a . Sem esquecer
nunca que devia encher o copo antes do garra
fão dar á vo lta , tão bera foi para Deus e os
homens que chegou a desafiar a desgraça.
Desgraça que enfi m su rgiu na chistosa e
fantasmagórica figura do pai quase a afundar
-se de vez num abismo dos mais i nsondáveis .
O ve l ho pãnqego soubera que a fi l ha , a sua
Titine (agora quase célebre sob o nome de
Mme . Alexandre) com pulso magistra l gover
nava uma hospedaria onde os príncipes do
Extremo Oriente vinham descarregar o ouro e ,
bichoso, coberto de andrajos i mpuros, «Sem
cheta por dentro e por fora • , u m be l o. d i a foi
ca i r- l h e em casa . Tão favoráveis os fados, po-
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rém , que o a l tanei ro estafermo não teve outro
reméd io e acol heu-o entre as mais ostens ivas
demonstrações de amor, a p esar de enraivado
com a aparição.
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vociferar que tudo aqu i l o era u m verdade i ro
rom bo no seu comérci o e os safa rdanas dos
ve l hos azarentos deviam ser todos fuz i lados . . .
Quase_ chegava a ser h i d rofobia, o seu es
tado, e a vida faz i a-se-lhe i mpossível .
De passagem se d i ga que a Com u n a bem
mostrou como era i napta a revi gorar o vaci
lante negóci o. Não que . estivesse desempre
gada, a c l i e nte l a . O estabeleci mento nem se
quer tinha u m m i nuto de vago, pareci a u m a
i g reja .
A c l i ente l a , val h a-me Deus ! , é q u e . . . era u m
bando de bêbados sanguíneos, assassi nos , de
i nfames vad i o l as com g a l ões dos pés à cabeça
a quem elas serviam d e revó lver apontado, e
parti a tudo, tudo teria quei mado se a l guém
mostrasse audácia bastante para l he res isti r.
Agora nem a patroa berrava , imagi ne-se, a
patroa morria s i l en ciosamente de medo à es
pera que o Altíss i m o ajudasse.
Ajuda que não se fez tardar. Os versal h eses
tinham entrado em Pari s , ficou de repente a
saber-se ! Libertação ! O d i abo de uma sorte
negra , negra de todo, é qUe não l argou Mme .
A l exandre.
Levantaram uma barricada -no f i m da rua .
S ó l h es restava fechar a porta a sete chaves
e procederem todas como se estivessem mor
tas . O papá Ferd i na n d , esse foi compl etamente
esquecido.·
Tomada a barricada às duas da. tarde, os
federados abandonaram o bai rro a fug i r. Pouco
depois só uma pessoa andava por a l i , u m
ve l h ote franzino cujos passos ressoavam n o
g rande s i l êncio.
·
20•
idoso, e só quando o viram parado à porta do
grande 12 se aproxi mara m .
- ó tu , v e m cá e mostra essas unhas !
Desva i rado pelo terror, o vel hote deitava a
mão à s i n eta e tocava. _
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OS CATIVOS DE LONGJUMEAU
23
E m u ito emocionados, os longjumel ianos de
coração puro v i ram passar aquele casa l i n ho
que o veterinário da terra logo comparou ao
Pau l o e à V i rgín i a
.
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e procure aqui lo que quer, pois não consigo
conservar em l].'lim a imagem d o que me pede
o tempo sufi c iente para dar satisfação ao seu
ped ido.
M u itas vezes os esposos Fou rmi me l embra
ram aquel e sol itário . Dar o que l hes ped issem
não custaria, se acaso o retivessem u m i ns
tante na memóri a .
A s s u a s d i stracções fizeram-se famosas , e
fa lou-se delas até Corbe i l , mas como e l es não
ti nham a r de .q uem sofria ·com i sso parece
i nexp l i cáve l a resol ução · funesta» que pôs fim
àquelas vi das que tanta gente i nvejava .
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ú ltimo i nstante pega-se fogo à chami né, a meio
do cami n h o eu faço uma entorse, o vestido da
Ju l i ette rasga-se num matagal qual quer, .a dor
mecemos no canapé da s a l a de espera da
estação sem o ru ído do comboio ou o cl amor
do empregado nos acordar a tempo , etc ., etc .
Da ú ltima vez esqueci-me da carte i ra .
"Há q u i nze a n o s que esta situação se man
tém , digo-te m a i s uma vez, e s i nto agora que
o pri ncíp i o da nossa morte está contido n e l a .
C o m o sabes , por sua causa fa l hei em tudo,
pus-me de m a l com todos , passo por u m mons
tro de egoísmo e a pobre da mi nha J ul i ette
está natu ra l me nte envo l vi d a na mesma repro
vação . Desde que chegámos a este l ugar mal
d i to fa lte i a s etenta e quatro enterros , doze
casamentos , tri nta baptizados , u m m i l har de
visitas ou vo ltas que me e ram i nd i spensáve i s .
D e ixei a m i nha sogra morrer s e m vo ltar a vê-la
uma só vez , apesar d e ter estado doente um
·
ano i nte i ro, e por isso fi cámos sem três quar
tos da hE!rança que e l a nos ti rou raivosamente
acrescentando ao testamento u m cod i c i l o , na
vés pera da morte .
·Desatasse eu a enumerar to l ices e desai
res ocas ionados por esta c i rcunstân c i a i ncrí
vel de não termos conseg u i d o s a i r d e Longju
meau , que nu nca mais acabar i a . Para resumi r
estamos cativos, de ora em d i a nte privados de
esperança , e vemos próximo o momento em
que esta s ituação de galeri anos se va i tornar
i nsuportáve l »
. . .
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sempre fe itas . Viveram sempre de abalada, na
i minência de uma viagem i nterm i n ável a paí
ses longínquos os ma i s perigosos e i n explo
rados .
Cerca de quarenta telegramas eu recebi
que anunciavam a sua partida i medi ata para
Borné u , Terra do Fogo, Nova Ze l â n d i a ou
G ronelân d i a .
A partida várias vezes esteve p o r um tri z ,
mas depo i s não partiam , nunca parti am porque
não pod i a m e não deviam parti r. Col i g avam-se
átomos e m o l écu l as para os travar.
U m d i a, há cerca de q u i nze anos , chegaram
porém a j u l gar que a fuga estava próxima.
Contra todas as expectativas , tinham conse
g u i do entra r numa carruagem de pri me i ra
c l asse que os l evaria a Versal hes . Libertação !
O c írcu l o mág i co i a afi nal romper-se .
Quando o comboi o arranco u , fi caram. Ti
nham-se metido num e l emento des l i gado do
conju nto que d evia permanecer n a estação .
Era preciso voltar ao pri ncípi o .
Infel i zmente , a ú n i ca vi agem que n ã o per
de ram-foi esta , que deci d i ram fazer agora . De
espécie tão con hecida que devi am tremer
muito quando se abalançaram a e l a !
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U MA IDEIA MEDlOCRE
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Estrebaria de uma inexorável mu l a , dessas que
na Ingl aterra ou na ci dade de Calvino s e edu
cam , com tantos cuidados , para transportar
caixões pi ntados de branco.
Não desejava , porém, Théophraste que o
i magi nassem protestante. D iz i a-se católi co até
à ponta dos cabelos e punha ostensivamente
o coração a secar nos tanchões da V i n ha dos
E l e itos .
De seu fundo era casto, e queria sobretudo
pa recê- l o . Casto como um prego, como uma
tesoura de podar, como um arenque fumado !
Os seus acól itos proc lamavam-no i ncorruptí
ve l , i ndesfo l h áve l , não menos alvo e l actes
cente do que a obsess iva capa dos anjos .
Olhava para as m u l heres - terei a coragem
d e d i zê-lo ? - como se fossem caca . Incitá-l o
a estro i n i ces teria s i do o cúmulo da demência.
De um modo gera l , desaprovava a aproxi ma
ção dos sexos e qualquer palavra evocadora
do amor pareci a-l he uma agressão pessoal .
Tão casto era , que até a saia dos zuavos e l e
teria condenado.
A q u i está a fisionomia deste chefe , a traços
l a rgos.
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Lexos que possu i margens cobertas de g l ór i a ,
e m Aveyron.
Levar-nos-ia a mal se ignorássemos que as
a rmas , as nobres e o rg u l hosas a rmas dos seus
antepassados , estavam esc u l p i das no pórtico
ou noutro s ítio da catedral de Albi ou de Car
cassone. A viagem era demasiado cara para
uma verificação: i n úti l , de resto, pois bastava
a sua pal avra de fidalgo.
Decal cadas atentamente na B i b l i oteca N a
cion a l , sobre papel de seda, tai s armas nunca
me foram mostradas mas a divisa Par la sam
bleu ! sempre me pareceu tão s i m p l es como
magnífica.
Em poucas pal avras, Théodore fasci nava e
seduzia os am igos cuj a ascendência mai s não
tinha, a i de m i m ! , do que borra-botas. Apesar
d i sso não pod ia ser o cabo daquela esquadra,
pois todo o bri l ho deve ceder ao bom-senso.
O baço mas i mpecáve l Théophraste é que os
reu n i ra num feixe, para não serem quebrados
pelas tempestades da vida. Ele é quem os man
ti nha ass i m , dia a d i a , ensinando-l hes a v i rtud e ,
a viver, a pensar, e o fervente Aqu i l es acei
tara com nobreza esta obed i ência ao orac u l a r
Nestor.
Théod u l e e Théoph i le podem ser despacha
dos em poucas pal avras . De notável o pri m e i ro
só tinha a aparente robustez do boi dóci I, e
cheio de i nconsciência, que poderia ser posto
a l avrar um cemitério . Sentia-se fel i císs i m o
p o r haver q u e m o conduzisse, e quase n ã o pre
cisava de l uz.
Pel o contrário, se o segundo andava é por
que tinha medo. Não achava aque l e feixe nem
mu ito espi ritual nem muito d ivertido mas,
como se deixara amarrar por Théophraste , nem
sequer ousava o pensamento de uma deserção
e tremia à ideia de desagradar a um homem
de tal forma receável .
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Ainda era um rapazinho, quase uma criança,
e ao que j u l go a sua i nte l i gência, a su�;� sensi
b i l i dade, mereciam mel hor sorte.
32
nada que · não amassem ou detestassem em
conjunto , · deixa rem de guardar segredos , l e
·
33
não queria j u l gou proceder bem casando com
o fidalgo cujo brasão até embel ezava a cate
dral de A l b i ou a de Carcasson e.
Não esto u , fique bem claro , a contar � h i s
tória i nfi n itamente comp l i cada deste ·c asa
mento que mod ifi cava , da forma mais rad ical
e profu nda, a exi stência mecâ n i ca dos nossos
herói s .
D i rei apenas q u e à s primeiras i nvestidas do
ma l , Théodore , fi el ao prog rama, abriu o cora
ção aos três ami gos cuja estupefacção subi u
'
ao mais a l to n íve l . Pri m e i ro, Théoph raste exa-
lou uma i n d i gnação sem l imites e espa l hou do
veneno mais negro , e em termos atrozes , por
todas as m u l heres sem excepção.
Pouco fa ltou para brigarem. Aquela Sai nte
-Vehme esteve a um passo da d i ssol ução.
Théodule l i quefazi a-se em dorc enquanto
Théoph i l e manti nha um s i l êncio fúnebre, se
cretame nte esfomeado de i ndependênc i a e fa
zendo votos para que a revo l u ção rebentasse,
não ousando embora declará-l o .
Depoi s aca l m a ram-se e o equ i l íbrio artificial
fo i restabeleci do; por u m i n stante erg u i d a ,
cada uma daquelas massas voltava a cai r e m
peso no a lvéo l o e o terrível pastor Théo
phraste , verificando que o rebanho ia afi nal
crescer de uma un idade, cedeu à esperança
de uma domi nação ma is amp l a .
E m b l oco os i nseparáveis foram ped i r , para
Théodore, a mão da i nfortu nada ; e e l a não v i u
o abi smo aonde caía p o r desejo cego de casar
com u m homem que era descendente dos bra
vos .
Logo no · primei ro dia o i nferno começou.
Ficara comb i nado que a vida em comum pros
seg u i r i a e, se é verdade os recém-casados
terem conseg u i do que os deixassem sós du
rante a noite, ta l como dantes todos estavam
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a pé a horas certas e não bel i scavam em nada
aquel a regra verdadei ramente monástica .
Todas as manhãs Théodore era obrigado a
rel ata r, com precisão, quanto fo ra consumado
nas trevas do quarto conjuga l ; e . a pobre mu
lher não tardou a descobri r, horrorizada , que
afi nal casara com quatro homens.
No dia seg u i nte ao daquele tri ste casamento
desenrol ou-se perante os seus o l hos o m a i s
terrível futu ro . V i u de frente a ignób i l estupi
dez do . mei a-ti gela que era o ma rido, a avi l
tante s ituação de escravatura que resultava
daquela associ ação de i mbec i s .
O od ioso Théophraste a b r i u e l eu e m voz
alta as suas cartas, na sua presença e na dos
outros el ementos do grupo. O b i são passeou
a bosta e a baba impura por confidências de
mu l heres; mães e raparigas .
Aprovada pelo marido , a tira n i a deste abo
m i náve l pedante exerceu-lhe uma d itadura na
roupa, no porte , no apetite, nas palavras, nos
o l hares , nos menores gestos .
Sufocada , espez i nhada , vergada , desespe
rada , c a i u no mai s profu ndo s i lêncio e, com
todo o coração , começou a desejar os bem
-aventu rados que viajavam de carreta fúnebre
e j á não acompanhavam mai s nenhum cortejo.
35
nhas observava m , zelosos , todas as suas an
danças .
A prisione i ra aproveitou este si mulacro de
l a rgueza para se embriagar de a res d i ferentes
daquel outro que havia no c l austro i nfame onde
nem ousava respi rar.
Fez vis itas aos pais e a ve l has amigas,
passeou no bul evar e ao longo do r i o , mas foi
pun i da com cenas d e u m a violência d i aból i ca
que a tornaram a i nd a mais i nfe l iz : porque às
suas qua l i dades , já d e s i encantadoras , Théo
dore acrescentava o c i ú m e digno de um Barba
Azu l da Kabíl i a .
Era demai s . E p o r isso aconteceu o que d e
via acontecer natura l mente, infal ivelmente,
sob u m ta l reg i m e .
Sem desag rado, M m e . Théodore ouvi u a
conversa d e um estranho que . surgia como
homem de g é n i o , se comparado àqu e l es i d i o
tas . Encontrou-l h e a bel eza de um Deus, por
que não se parecia -nada com e l es , j u l gou-o
de uma generosidade i nfi n ita , porque l h e fa lava
com ternu ra , e fez-se l ogo sua amante num
transporte de i n d i zível a l egri a .
O que depois sucedeu, vei o há d i as noti
ciado num jornal .
Disseram-m e , no entanto , que estavam os
quatro homens reun i dos , na noite da queda ,
quando o D i abo l hes apareceu!
CASTIGO TERRIVEL DE U M DENTISTA
37
parta m ! C l a ro · que 'venho para o senhor me
fazer cem parti ci pações de casamento !
- Ah s i m ! Po i s aqui tem os nossos mode
los, pode escol her. Desej a uma ti ragem de
l uxo em bon ito papel vergé, ou em japão i m
peri a l ?
- De l uxo , com m i l di abos ! A gente não se
casa todos os di a s ! Não me d iga que i a fazer
essa coisa e m papel de l i mpar o rabo ! Como
é evi dente , vai ser no que tiver aí de mai s
imperi a l . E veja l á bem , n ã o me pespegue uma
tarja negra, Deus santíss i m o !
Simplória criatu ra esta, do Vau g i rard ! O ti
póg rafo até receou que fosse u m destes l ou
cos que convém não excitar, l i m itando-se a
um protesto fraco pe l a suspe ita de descuido
que e l e l h e den unciava .
Quando chegou o momento de red i g i r o
texto, tremi a tanto a mão do c l i ente que vi u-se
o operário obrigado a escrever o que e l e
ditava:
- «O Senhor Doutor A l c i bi ade Gerbi l l on
tem a honra de parti c i pa r a V . Ex.• o seu
consórc i o com a men i na Anto i n ette Pl anchard .
A ceri mónia rea l i za-se na i g reja paroq u i a l de
Aubervi l l iers . »
- Vau g i rard e Aubervi l l i e rs ? São coisas que
não l i gam nada bem! - pensou o ti póg rafo ,
ao l iquidar o m a i s suavemente possíve l a fac
tu ra .
38
Gerb i l lon era um assassino privado de
repouso. Va i expl i cá-l o quem pode. O seu
cri me fora consumado da forma mais cobarde
e mai s ignób i l mas , bruto que era, sem ter
experi mentado nenhuma emoçã() , o remorso
só chegou a atacá-lo quando recebeu a mi ss iva
i mpressa - mi ssiva largamente tarjada de ne
gro - onde toda uma fam í l i a chorosa l h e
supli cava que ass i stisse à s exéqu i as da s u a
própria víti m a .
Esta obra-prima d e ti pografi a e n l ouqueceu-o ,
persegu i u-o , perdeu-o . Gerb i l lon começou a
arrancar dentes em be l íssimo estado, a auri
ficar desaje itadamente arnelas desprezíve i s , a
ati rar-se com afinco a gengivas prec iosas , a
aba l a r maxi lares que o tempo respe itara , a
i nfl i g i .r � sua c l i ente l a suplícios de uma total
novidad e .
Pesade l os sombrios apareceram de visita
ao seu covi l odontécn i co e sol itário, fazendo
ranger tudo, mesmo as d entadu ras de borracha
vu lcanizada que e l e próprio construía nas bo
carras de cidadãos desvai rados que o honra
vam com a sua confiança.
E a causa de ta l pertu rbação era , e m excl u
s ivo , a ménsagem tão banal que todos os
contri bui ntes i mportantes da vizinhança ti
nham aco l h ido de alma tranq u i l a . Adorador do
Mo loch dos I mbec i s , só Alci biade não fora
afi n a l perdoado por aquele I mpresso !
Poderemos rea l mente acred itar que e l e te
nha assass i nado, assas s i nado por amor?
Façamos a j ustiça de imputar o seu acto
às l e i tu ras de dentista , as ú n i cas que a l i men
tavam o cérebro deste criminoso.
À fo rça de encontrar nos romances-fol hetins
situações amorosas que se des l i ndavam de
forma trág ica, a pouco e pouco A l c i b iade ce
dera à tentação de suprimi r de vez u m ven-
39
dedor de guard a-chuvas obstác u l o da sua f i-
c i dade.
J
1
Soberbamente dentado , este jovem co m er
c iante :não dava azo a devastações na queixada
e estava prestes a casar com Anto i nette, fi l ha
do gordo q u i nq u i l h e i ro Planchard , criança ado
rável por quem Gerbi l l on se consu m i a , cal ado,
desde a hora em que lograra parti r-l he um
molar tubercu l oso e a tivera em fan i co nos
braços.
Estavam quase a ser pub l i cados os banhos
quando A l c i biade, usando o rápido poder de
decisão que faz tão receávei s os dentista s ,
mag i cou o extermínio do riva l .
N u ma manhã d e bátegas torrenc i a i.s , o ven
dedor de guarda-chuvas foi encontrado morto
na cama e o rel atório méd i co demonstrou que
u m ce l e rado d a mais peri gosa espécie estran
g u lara d u rante o sono aque l e i nfel i z .
Diaból ico, sabendo mel hor do que n i nguém
como as coi sas se tinham passado , ass i m
mesmo Gerb i l lon apo iou com audác i a este
j uízo , e até bri l hou de lógica i mp lacável na
prova c i entífica do desacato . As suas precau
ções tinham s i do bem tomadas e a Justiça ,
depois de u m i nquérito tão meticu l oso como
i n úti l , vi u-se obrigada a des i sti r da descoberta
do cul pado .
-4 0
aquela jovem tão cruel mente · ati ng ida faci l i
taram-l he, enfi m , o cam i n ho do seu coração.
A l i ás coração que em nada se pareci a com
um coração d ifíci l de tomar, uma babi l ó n i a de
coração . A fi l h a do q u i nq u i l he i ro era uma vir
gem razoável e tão cheia de saúde, que m u i to
pouco m e rg u l hou na dor.
Nada quis com a g l ória i núti l das l amenta
ções eternas, de forma nenhuma pretendeu
passa r por i n conso l áve l . E o denti sta segre
dava-lh e :
- N i n guém vive para os mortos . U m marido
perd ido, dez encontrados , etc.
U m pun hado d estas sentenças , extraídas do
mesmo a b i s m o , e l ogo a nobreza do arrancador
s e desvendou tra nscendente .
- O s e u coração é q u e eu gostava d e
a rranca r, m e n i na - pal avras decisivas q u e e l e
u m d i a l h e d i sse.
Al i ás , pal avras encantadoras que a educação
da q u e l a rapariga pod i a saborear e a fi zeram
resolver-se. De resto , Gerb i l lon e ra um m a
rido « passáve l • . O entend i mento foi fác i t e o
consórc i o . re a l i zou-s e .
Po r que s e envenenou c o m a . recordação do
mo rto uma fe l i cidade tão custosamente con,
q u i stad a ? Não querem l á ver que a parti ci pa
ção l utuosa, cuj a marca fi cava agora menos
forte, reaparec i a na i magi nação do crimi nos o ?
E e l e s e j u lgou denunci ádo d e u ma forma
tão estúpid a ? Na antevéspera do casamento
a obsessão reg ressara com força e a rrastara-o
à l o u c u ra - há pouco o vimos - fazendo-à
deambu l a r todo o santo d i a como um fug itivo,
nesta Pa ris que não era o l ocal onde e l e
morava , até à hora terrível em q u e recuperou
energ i as para encomendar as parti ci pações
àquele ti pógrafo de Vaugi rard que descob ri ra ,
j u l gava e l e , o s e u cri m e .
41
Va l e ra bem a pena ter sido tão finório , tão
desen rascado ! Ter sabido despistar a Justiça
e conqu i sta r, contra todas as expectativas , a
mão de uma m u l her idolatrad a ! Tudo i sto para
chegar à m i séria de ser atormentado por
a l ucinações !
42
com o rosto de um homem de tri nta anos , tão
prod i g i osamente parecido com o assassi nado
que Gerb i l lo n fug i u aos berros . Vad iou três
dias como um i nsensato . E já de volta na noite
seg u i nte , foi-se ao berço e estrangulou a
criança . Numa crise de sol uços.
O LOCUTóRIO DAS TARANTU LAS
45
T i n h a sempre um ar d e Sansão a rebentar
cordas ou quaisquer outras peias que os
fi l i steus i ngénuos tivessem pretend i do esten
der para enfaixá-lo dura nte o sono .
E o i nfe l i z d 'Aurev i l ly, que por s i n a l acabaria
em sucumb i r às tramas de uma a ranha negra
do ocu ltismo languedoc i ano [2), de forma a l
guma o d i o u espi caçar a raiva deste metrómano
vu lcânico i n capaz de aceitar deferências, m uito
d isti ntas f-ossem, se acaso não constituíssem
a mais a l ta ou mesmo exc l u s iva deferênci a .
O poeta chamava-se Damascàne Chabrol e
fora méd i co (3) . Mel hor, a i nda era méd ico, que
a med i c i na i mprime cunho tão forte como o
sacerdócio, d i ríamos . Sem necess idade ne
nhuma de ganhar a vida, depressa se fartou de
purgar ou anal isar secreções de comerc i antes .
E l e próprio vomitara a c l i ente l a - para não
usar uma pa l avra ma i s d u ra que tantas vezes
andava na · sua boca - e com generosidade se
ati rou a uma cu ltu ra de · versos a ma i s i n
tens iva (4) .
Nessa ocas ião acred itei que Damascàne
não era i nd i g no de todo a fe ri r a l i ra e , se
tenho fiel memória, foram do mesmo j u ízo-
a l gumas autoridades na matér i a .
Sabe Deus q u a l seria hoje a minha opi n ião!
Infe l i zmente , a vida é múito cu rta e de i ncerta
d u ração para eu me atrever a gastar o pre
cioso tec ido da existência a procurar, debaixo
de uma poe i ra d e vi nte e ci nco anos, as duas
ou três recolhas que deixou publi cadas .
46
Vou porém acrescentar que nenhum poema
dos que a sua mão escreveu (ad miti ndo g é n i o
neste fa l e c i do) poderia igualar o i negu a l ável
poema da no ite que passei com ele em sua
casa, na Rua de Fleurus , quatro d i as antes da
ho rríve l morte que teve , noite que não foi ,
não senhor - e n este ponto peço m e acred i
tem sem quaisquer reservas - no ite de amor.
47
Era d ifíc i l entrar-lhe em cas a . Parecia recear
que a l g uma coisa subti l , i nfi nitamente rara
e preciosa, fug i sse pela porta aberta , des
cesse a escada, passasse à frente do portei ro
taciturno e fosse profanar-se no me io da ver
gonha enorme dos cães rafe i ros . . .
A quem batesse não abri a , ou abria a medo,
mantendo a porta afastada só um mi l ímetro
da ombre i ra , com a mão l ivre a desenhar ges
tos largos e s i l enciários como se na casa
houvesse um qualquer agon izante sub l i me
cujo derradei ro susp i ro não pudesse o equ i l í
brio dos u n iversos d ispensar.
Se a vis ita tentava prossegu i r , apesar do
b i zarro aco l h i mento , não ficasse assustada
com os o l hos em chama dequele sol itário,
a i nda ass i m não conseg u i a entrar por falta de
rapidez e a porta bater numa rajada, como a
ratoei ra em c i m a do musaranho. M u ito rara
era uma temeridade destas , porém. Posso
afi ançar-vos que bem poucos se atreveram a
tanto.
Nestas ocasiões raras, o temíve l Damas
càne esfregava as mãos m e i o curvado, com
os dedos para baixo e as palmas j u nto do
queixo, exprimindo à pressa u ma a l egria de
can ibal autênti co.
Du rante uma hora as recri minações · reben
tavam em fanfarra . Damascàne transformava
-se numa torrente de l amú rias que ao princípio
não passava de ribombo surdo mas i a subi ndo
com o rumor que chegava das montanhas
azu i s , no horizonte, e depo i s se transformava
em rug ido rouco mai s e ma is c laro , expandido
como se fora uma toa l h a i mensa, por fim em
estrondo forte que ele para a l i traz i a , de arras
ta mentos , a l u i mentos , confusão de todos os
c l amores .
Tinha o coração a abarrota r daqu i l o ! Ao que
suponho, só a morte i mped i ri a que e l e voei-
48
ferass e de manhã à noite e até durante o sono
contra ed itores , jorna i s , a · Academ i a , sócios
da Coméd i a Francesa, de u m modo geral con
tra a corja humana que te i mava em não saber
recompensá-l o .
49
noite. Damascêne tomara precauções tão evi
dentes que perceb i l ogo como seria i n úti l qual
quer tentativa de i nterrupção da mi n h a parte ,
cu rta e legítima fosse.
- A Filha de Jefte! Drama b íb l i co em c i nco
actos - com eçou e l e , fitando-me com o l ha r
i m p l acáve l .
A o p r i n c íp i o o exercício não me desagrado u .
O l e itor tinha u m a voz Q i zarra de gastrá l g i co
que s u b i a sem esforço, dos baixos profu ndos
às notas i nfantis mais agudas . Falava o seu
d rama, na verdade representava-o , m u l ti p l i
cando gestos até se ajoe l har numa prece qu an
do a situação o exi g i a , cu rioso espectácu l o
que fo i capaz de diverti r-me u m a hora , isto é ,
enquanto durou o primei ro acto ; porque o
monstro l evava a sua consciência ao ponto
de repeti r várias vezes as cenas cuja beleza
receasse não ter transm itido i ntei ra , jamais
tranqu i l izado pelos meus protestos admi ra
tivos .
No segundo acto , poré m , já a m í m i ca per"
dera o encanto do i mprevi sto e comecei rea l
me nte a ouvi-lo.
Era l amentáve l . I magi ne-se uma bana l i dade
das mais poei rentas , estafadas, porcal honas
e féti das . Um amál gama assustador de Ra
c i n e , da boa criatura que é esse Gagne [5), de
Désaug i e rs . Estou a lembrar-me de u m d i s
cu rso sem f i m que o seu i mposs ível J u i z fazi a
sobre ag ricultura e econom i a soci a l . . .
No f i m do tercei ro acto fing i-me a braços
com uma necess idade súb ita d a espécie ma i s
v u l g a r , m i nha esperança de poder c h e g a r à
porta da escada , mas o homem nocivo foi
atrás de m i m .. .
50
Tive de engo l i r tudo até à me ia-noite , sacri
fício quase tão g rande como o da fi l h a do
Libertador de Is rae l .
51
mesa . Sem l argar a coronha, com a mão es
querda a segurar o manuscrito , acrescentou :
- Vou conti nuar ! . . .
O sup l íc i o durou até ao sol nascer, altu ra em
que o poeta se pôs de pé num movi mento
brusco, fechou a sanfona e declarou que i a
apanhar o combo i o .
- Vou v e r o papá - exp l i cou .
52
A FAVA
53
De quem a c u l p a ? Questão g rave e pendente
no meio dos frutei ras e dos merceei ros do
G ros-Ca i l lou . U ma carn i c e i ra h íspida, que o
belo Tertu l l i en desdenhara , acusava-o aberta
mente de i mpotência sem dar ouvidos às
objecções de urria colchoe i ra verrugosa que a
ta l respeito se d i z i a bem docu mentada.
O fa rmacêutico, esse dec l a rava que era
preciso dar tempo ao tempo antes de emitir
uma opi n i ão ; e, desi nteressada do l itíg i o , a
benevolente massa dos portei ros aprovava a
ci rcunspecção deste pensador.
D i z i a m os porte i ros com i mensa autoridade
que Roma e Pavia se não tinham feito num
d i a , bem estava o que bem acabava , o bu rro
devia a l bardar-se à vontade do dono, etc ., etc . ,
e por consequência haveria a pressupor q u e
m a i s d i a menos d i a o acontecimento favorável
fosse capaz de dar o retoque final na pros
peri dade ofuscante do queije i ro .
Q u e m ta l ouvi sse até j u l garia que fa l avam
do delfi m de França.
54
mugi dos dolorosos , das notificações extraj u
d i c i a i s que a si mesmo fez para acompanhar
na morte a sua C l émenti ne, com moratórias
muito próxi mas que, de resto, não fixava .
Do tempo em que estudei a · fundo este ho
mem s i m pático com quem estive , dez anos ,
de rel ações comerc i a i s atadas , pude confi rmar
um traço do seu carácter, admi rável mas pouco
d ivul gado.
Tertu l l i en sentia u m medo atroz de ser
cornuda . C h i fres todos os seus antepassados
tinham tido, desde há duzentos ou trezentos
anos , e a ternura que sentia pela m u l her era
principal mente a l i mentada na certeza i nque
brantáve l da i nteg ri dade da testa .
O seu reconhecimento por este facto che
gava a ter algo de ridículo e tocante . E depois
de reflectir mu ito acabet por achá-l o quase
trág ico e pergu ntar a m i m mesmo, espantado,
se a esteri l i dade escandalosa de C l é menti ne
não se expl icaria com certas e bem estranhas
dúvidas que Tertu l l i en pudesse ter a respeito
da sua própria identidade, pelo sub l i me receio
de pôr cornos a s i próprio - fecundando-a .
55
Ora a í mesmo é que a sorte mad rasta o es
perava e e l e ficou perante o l ábaro i rrisório
dos Tertu l l iens.
N a gaveta de u m móvel ínti mo, e m i steri osa
ao ponto do mais sombrio marido ser i ncapaz
de loca l i zá-l a , Tertu l l i en descobriu um maço
de cartas tão vol u moso como variado, capaz
de imped i r , u m segundo, que e l e mantivesse
o pé .
Ami gos e conheci dos todos tinham a l i pas
sado . Eu era a ú n i ca excepção , o que não en
tra ra no grupo que a sua m u l her amara .
Até o s empregados da casa - chegou a en
contrar a l g u mas ca rtas escritas por e l es em
pape l cor�de-rosa - tinham . sido s i m u lt�;�nea
mente g ratifi cados .
Tertu l l i t:m ficou com a certeza defi n itiva de
ter sido noite e dia enganado pel a defunta ,
fizesse que tempo fizesse , em todos os lados.
N a cama, na cave , no sótão, na l oja e até nas
ba rbas do queijo g ruyàre, ao re lento dos ro
q uefort e dos camembert.
Será i núti l acrescentar que esta correspon
dência suja poupava-o m u ito pouco. Da pri
m e i ra à ú ltima l i nha estava-se i ncansave l m ente
nas ti ntas para e l e .
Determ i nado funcionário dos te l é g rafos,
cuja finu ra de espírito era famosa , chegava
numa carta a troÇ ar d e l e da m a i s desag radável
mane i ra , com a l usões ou conselhos i m possí
ve is de publ icar aqu i .
E , para cu l m i nar, uma coisa . i naudita, exor
b i tante , fabu l osa , de fazer perder � tino à
constel ação do Capricórn i o :
Àquel e mortificante processo anexava-se
uma i nterm i nável série de pauzi nhos que o
espantaram e cuja presença parecia ao princí
pio i nexp.l icável . R ecorrendo, poré m , a uma
sagacidade d igna do subti l apache debruçado
sobre u m rasto de guerra , logrou Tertu l l ie n
56
i nundar-se de uma clari dade viva ao perceber
que o n ú mero daqueles objectos era precisa
mente igual ao dos adoradores que a sua
infi e l encorajara, e todos tinham enta l hes de
can ivete, uma multi dão d e borbul has idênticas
às que o pad e i ro faz na banca para marcar a
conta dos c l i ente s .
P e l o s vistos C l émenti ne e r a pessoa da m a i o r
ordem , preocupada c o m as s u a s contas !
Embor� esmagado de h u m i l hação, o marido
expri m i u o bem natural desejo de ficar a sós
com a morta e esteve fechado com ela d uas
ou três horas a fio, como um homem que pre
tende chora r à vontade a sua afl i ção.
57
garrafas sempre a c i rcular, pouco depois já
a refei ção se transformara- numa autêntica
gargal hada e n a altu ra do champanhe era mais
do que certo o tri unfo dos trocad i l hos . Os pa
lavrões começavam a rebentar quando um
g i gantesco bolo foi trazido à cena.
- Meus senhores - d isse Tertu l l i e n , de
pé - vamos esvaziar os copos à memória da
nossa querida morta . Vós todos pudestes co
n hecê-l a , aprec iar-lhe os senti mentos . Decerto
não podere i s esquecer o seu coração amável
e terno. Por i sso eu peço que vos deixe i s pe
ne.t rar - de um modo bem especial - pela
sua recordação, antes de encetado este bolo
-rei que ela te ria gostado tanto de parti l har
convosco .
Como não fu i amante da queij e i ra (porque
a não conhec i viva , ta lvez) estive ausente do
jantar e n u nca soube a quem cal hou na sorte
a rea l fava .
Sei , s i m , que a Justiça i n comodou o d i abó
l i co Tertu l l ien por e l e ter i nserido um coração
no� enormes flancos daquela g u l oseima re
cheada , o coraçãoz i n ho já apodrec ido da de
l ic iosa C l émenti ne.
58
ISTO AINDA PEGA FOGO
59
de objectos , sucedeu que u m caçador de l i
cornes tão opinioso como subti l , cél ebre pelas
suas doutri nas h i rcani anas e pel o seu facies
g l a bro (2) , j u l gou-se obri gado a fal a r :
60
à sua volta . Só de vê-lo tínhamos a sensação
de estar a comer tutano de vite l a , e as suas
mãos modestas despejavam todas as clemên
cias d isponíve i s . O passo m i údo dava-lhe u m
aspecto de homenzi n ho de açúcar a desl izar
sobre entranhas de coe l ho. I nterrogava com
ol har afável o céu que era seu amigo, nem se
duvide, camarada da maior i ntim idade. Por
certo, acabava de cumpri r com i ndi scutível
fervor os seus deveres de piedade e d i ri g i a-se
àquelas práticas fraternais que só os m i mos
do céu podem - um pouco tarde, d i ga-se de
passagem - recompensar.
· Do exame concl u í logo que tinha à m i n h a
frente u m a ave rara , e aproxi mei-me.
" M eu caro senhor - d isse · eu numa voz
rápida e surda - tome cuidado , que isto ainda
pega fogo!
« Como sabe m , não é fáci l eu ficar espan
tado . Poi s bem , meus a m i gos , devo d izer-vos
que o efeito das m i nhas pal avras desconcer
tou-me durante várias horas , até à i mbec i l i
dade.
« A personagem fez-se verde, l ançou-me
o l hares doidos e desesperados de negro trin
cado por u m . crocodi lo , pôs-se a tremer como
uma avenida de choupos e ati rou-se para den
tro de um carro que desapareceu instantanea
mente .
• Aq u i está o que tinha para vos dizer. Se
esta experiência for bem feita , estou conven
cido de que dará, dezanove vezes em vi nte,
um resultado igual . J: só experi mentar. As
consc i ências modernas estão de tal forma
endividadas , que o primeiro audacioso fica
senhor delas desde que surja transformado em
trovão e c i rcu l e , como se fosse uma Górgon a ,
entre as mu ltidões respeitáve i s . •
- Com m i l diabos ! - exclamou o ton itroan
te Rodolosse . - J: curioso ouvi-lo fal a r dessa
61
mane i ra . Vou l e r-vos uma carta confidencial
q u e há vários dias trago comigo. Não sou
nenhum padre, para guardar segredo das con
fi ssões , e · a l iás não vou d i zer-vos quem foi
que a ass i no u . As confidências ao autor con
fi rmam e aj uramentam de ta l modo o �ng ra
çado paradoxo que acabámos de ouvi r l Não
tenho forças para fu rtar-vos a u m testemunho
tão concl udente .
« A ca rta que aqu i vêem - conti nuou e l e ,
exi b i ndo u m a fol h a de papel - é de u m arti sta
mu ito conhecido e perfeitamente respeitável .
Perfeita e absol utamente res-pei-tá-ve l , estão
a perceber?
" M eu caro senhor: há d i as tive a honra de
ver que notou em mim uma certa tri steza
i m possível de d i s s i par e cuja causa l h e es
capava . Como i nsisti u em conhecê- l a , deci do
-me hoje a satisfazê-lo.
« Trata-se de um terríve l e razoave l m ente pe
ri goso seg redo que a rrasto com igo há q u i nze
anos . Ao que parece , o senhor viu mais fundo,
em m i m , do que os outros homens. Por isso,
talvez não fique espantado . Ta lvez s i nta , mes
mo, uma résti a de pi edade por u m ind ivíduo
lamentável que o mundo j u l g a fe l iz mas vive
sempre atormentado por remorsos atrozes .
« Não i m porta . Agora vou entregar-me a s i ,
na esperança de s e r a l ivi ado de u m a parte do
fardo que d i a a dia me fica mais pesado.
Acabamos por ser obrigados a confessar-nos
a a l gu�m . e esco l ho-o para não fi car exposto
à tentação de m e abri r ao primeiro po l ícia
que me aparecer à frente , já que não tenho a
coragem de procu rar u m pad re.
• Não serei l ongo, descanse . . .
• Em 187 . tinha eu vi nte e sete anos e
. .
62
sem dúvida , por alguns pobres-d iabos herdei
ros da m i n h a angústi a . Eu andava devorado
pe l a mais baixa e odiosa i nveja. Cheio como
estava da beleza da m i nha a l m a , e não duvi
dando do meu génio, acaso poderia to l erar que
banal íssi m a gente - creti nos defi n itivos e
desprezívei s cancros - tivesse i mpunemente
casas , m u l heres , porcos, batatas, enquanto o
maior arti sta do mundo dorm i a num pavi l hão
coberto por estrel as castas ?
« Porque eu andava sem domicíl io, sem d i
nhei ro , às vezes até s e m bol sos , e o meu
estômago de adol escente recri m i nava a lei
dura do apetite mais i nsaci ável .
« Esti m u l ado por um trafi cante de carne hu
mana, comecei a fazer a corretagem dos s�
g u ros da vida a l heia e, sem conseg u i r desen
cantar a mais pequena apól ice, i a morrendo
l itera l mente de fome, no campo, e esforçava
-me por a l cançar Paris com os meus pés l igei
ros . . . ..
63
cer as quatro ou c i nco léguas que ai nda me
separavam de Paris , mas sentia tanta fome
que não perd i a ocas i ão e chore i .
" Como procurasse maq u i n a l mente nos far
rapos u m resto de pão, ou de qualquer outra
coisa, dei com um objecto que me parecia uma
ve l ha côdea . Corado de fel i c i dade, l evei-a à
boca .
« Era , poré m , uma caixa de fósforos . . .
« C l a ro que não engo l i essa mald ita caixa ,
essa caixa i nfame cuja presença não pude
expl icar mas era envi ada , sem dúvida, pelos
demón ios .
· « Entretanto , qualquer coisa desceu por m i m
abaixo , qualquer coisa melhor do q u e saciar
os i ntestinos. Satu rei-me , embriaguei-me, . re·
fresquei-me com o d e l e itáve l vinho do ódio
e da vi ngança . Reparei q ue uma brisa l eve
soprava , fug i da dos l ados da q u i nta .
« M eia hora mais tard e , já estava tudo a
·
o c u l pado . . . »
la neste ponto o nosso a m i go Rodol osse
quando um escu ltor, cuj.a barba sedosa eu
contemplava , fechou rap idamente o i nterruptor
do candeei ro que nos dava l uz . . .
Pudemos então ouv i r vários homens que
sol uçava m , nas trevas.
64
A BELIDA DO DINHEIRO
65
i n estimável de nada ver, privi légio de todos
os homen s , quase sem excepção, e critério
decisivo da sua superioridade em rel ação aos
b rutos .
Com emoção adivinhávamos que antes do
acidente seria um destes cegos notávei s cha
mados a ornamento da pátr i a , e dessa época
restava-lhe a melanco l i a de um príncipe das
trevas exi l ado na l uz.
Poré m , as oferendas não choviam no chapéu
ve l h o estendido a quem passava . Ati n g i do por
uma doença tão extraord i nári a , aquele mend i go
desconcertava a mun ificência dos devotos e
das devotas, fazi a-os apressar o passo mal
o viam no porta l do santuário.
Por i nsti nto desconfi avam de u m necessitado
que via o sol ao meio-d i a , co isa que só um
crime excepcional pod i a expl icar, um qual quer
sacri légio sem nome que ele ass i m expi ava.
Os transeuntes apontavam-no de longe à p ro
gen itura , como testemunho vivo das tem íveis
sentenças de Deus .
Chegavam a recear o contág io e , por causa
d i sso, o cura da paróquia estivera a ponto de
expu lsá-l o . Por sorte , um g rupo de hon rosos
sábios cuja competência não pod i a ser posta
em causa declarara, o mais peremptoriamente
poss íve l mas não sem acri món i a , que « aqui lo
não se pegava " .
66
psicólogo famoso a quem deu para escrever
com· p i ncéis de um só cabe lo ( 1 ) .
Ass i m n o s conhecemos e se estreitou a
i nt i m i dade deplorável que u m d i a viria a
sai r-me tão cara.
Deus me l ivre de ser duro para com um
pobre monstro enterrado há tanto tempo, i n
fel izmente, m a s aval i e-se como a i nfluência
de uma pessoa que me ensi nou o seg redo
- há tantos séc u l os esquecido - de d i sti n g u i r
o l eão do porco , o H i ma l a i a de um monte d e
esterco, fo i nefasta à m i n h a i magi nação jove m !
C i ência perigosa, q u e é , quase logrou per
der-me e por pouco me não l evou a parti l h a r
do desti no do m e u preceptor. Eu quase deixara
de tactear, uma pal avra que diz tudo .
G raças ao céu , poré m , a boa estrel a salvou
-me do abismo! Aos poucos conseg u i afastar-
-me deste ascendente funesto, romper em
defi n itivo o encanto e fazer boa figura entre
as toupei ras e os ceguetas que jogam a cabra
-cega da vida.
Fu i a tempo, fu i mesmo a tempo. Para m e
operar def i n itivamente da l uz vi-me forçado
a pagar à dextrici dade famosa de um ocu l i sta
de C h i cago com uma parte con s i derável das
m i nhas rendas.
67
que i gnoravam aqu i lo, ou então seres do mais
baixo povo que mu ito provavel mente possuíam
o mesmo pri ncípio da cl arividência, quando
cal hava l á o socorria m .
O cego da outra porta , homem justo e des
g raçado que faz ia belas receitas , nos d i as de
g rande carri l hão g ratificava-o com uma ofe
renda modesta .
Somava tudo muito pouco e a repu l s a que
e l e i nspi rava , maior dia a dia, l evava a crer
que em breve morresse.
Parecia mesmo que ti nha fe ito uma j u ra . Exi
bia a sua enferm i dade com c i n ismo, tal qual
os estropi ados , os pape i rosos , os u l cerosos,
os manetas ou os raq u íti cos nas festas devo
tas da provín c i a . Punha-a debaixo do nosso
nariz e forçava-nos , por ass i m dizer, a res�
p i rá-l a .
O nojo e a i n d i g nação públ i cos ati ngiam o
máximo e estava por u m fio a situação do
maland ri m quando sucedeu uma coisa tão
prod i g i osa como i nesperada.
O c l arividente teve uma herança d e u m
sobri n ho-neto da América que se fizera i nso
lentemente rico a fa lsificar guanos e fora de
vorado pelos can i b a i s da Araucân i a . . .
O ex-mend i g o não l he recl a mou os restos
mas aproveitou o facto para se meter na
pândeg a . Aq uela i nverosími l e quase mons
truosa · l u c i dez, que o fizera célebre e ao que
parec i a estivera a u m passo de s e transformar
em galopante, como a tísica que a pouca-ver
gonha prec i p ita , começou a evo l u i r ao con
trário.
M eses depois a cura fora rad ical - sem ope
ração . O ex-mend i go perdera toda a clarivi
dência e chegou a ficar surdo de todo. Vive
agora para encher a pança . Com a bel ida do
d i n h e i ro conseg u i u l i bertar-se , enfi m , do mun
do exterior.
éB
A TISANA
69
pen itencial e o rapaz, por m i l ag re o contrár,i o
de um p u l h a , receou i menso su rpreender con
fidências q u e l he não eram evidentemente
desti nadas .
Previ são que se rea l izou , de repente. Pare
ceu-l he que um violento remoi n ho se formava ,
ondas i móve is ri bombavam e se d i v i d i a m a
revelar u m monstro . Esmagado de susto , o
aud itor ouvi u pa l avras d i tas n u m tom de i m
pac i ê n c i a :
- Estou a dizer-lhe, meu padre, que deitei
·
70
Tão l onge quanto pod ia ver no passado dela,
nem u m só acto o b l íquo ou turvo, nenhuma
ruga, nenhum esconderij o . U ma bela estrada
branca a perder de vista , debaixo de um céu
claro. Porque a exi stência da pobre m u l her
fora exemplar e melancó l i ca .
Depois do marido, pessoa de q u e m o rapaz
mal se l embrava, ter morrido em Champigny ,
nu nca deixa ra o l uto e ocupara-se exclus iva
mente da educação do fi l h o , que nem um só
dia abandonava . Com receio de contactos ,
nu nca se di spusera a mandá-lo à escola e en
carrega ra-se de i nstru í-lo, constru i ndo- l h e a
a l ma com pedaços da sua . De um reg i m e des
tes tinha Jacques herdado uma sensi b i l i dade
I n q u i eta e nervos de uma vibração rara que o
expu nham a dores ridícu las - ou mesmo a
verdadei ros perigos .
Entrado na adol escência , as previsíve i s ram
bó i as que e l a não pôde evitar fizeram-na u m
pouco m a i s tri ste mas não l h e modificaram a
ternura. Não houve recri m i nações nem cenas
feitas e m s i l êncio. Como tantas outras , aque l a
m ã e ace itava o i n evitável .
Toda a gente , enfi m , se l h e referia com res
peito. Só aquele fi l ho tão querido se esforçava
agora por desprezá-la - desprezá-l a ajoel hado
e de o l hos mol hados como anjos que despre
zassem Deus por e l e não cumpr i r as promes-
·
sas ! . . .
Na verdade era de pôr qualquer pessoa
doida , fazê-l a dar berros pela rua . A sua mãe
envenenadora ! Que insensata coisa, u m m i l hão
de vezes absurda , i mpossível de todo e ass i m
mesmo certa ! Pois se e l a própria o d i ssera !
Até a rrancava a cabeça se não tinha s ido e l a . . .
Mas envenenar . . . quem ? Santo Deus ! Não
sabia d e homem, ali perto , que tivesse morrido
envenenado . E o seu pai não, que esse apa
nhara uma dose de metra l ha na barriga. E l e . . .
71
Nunca a sua mãe tenta r i a matá-lo. Além o
m a i s , nunca estivera de cama nem preci sava
)
de tisanas . Como se não soubesse a adoração
que a mãe l h e ti nha . Vi ra-a doente de p reo
cupação l ogo da pri m e i ra vez que l h e chegara
tarde a casa, por qualquer coisa que ta lvez
não tenha s i do m u i to l i mpa.
E se fosse u m caso anterior ao seu nasci
mento ? Não. O pai apaixonara-se pela bel eza
d e l a , e casara quando a sua mãe tinha apenas
i
vi nte a nos . H aver i a uma aventu ra dE antes do
casamento que pudesse justifica r · o crime?
Não. Con hecia a l i mpi dez daque l e passado cem
vezes referido. E a testemun há-l o · havia ·gente
da maior confi ança. Que motivo ; afi n a l , para
uma tão horríve l confissão? E por que havia
logo de calhar . . . s i m , por que havia l ogo de
calhar . . . ser ele a ouvi-l a ?
Quando regressou a casa , Jacques parec ia
embriagado de pavor e desespero .
l i do? Sentes-te m a l ?
- N ão - respondeu e l e - não estou doen �
te , apenas cansado do ca lor. N e m me àpetece
comer. E a mamã? Não estará por acaso i n
d i sposta ? N ão s a i u para apan har um pouco de
fresco ? Parece-me que a vi ao l onge, no c a i s .
- De facto s a í , mas n ã o pod ias ver-me n o
cai s . Fui confessar-me , al iás u m a c o i s a q u e
n ã o fazes há mu ito tempo , criatu ra m á !
J acques espantou-se p o r n ã o sufocar, não
ter caído redondo, de costas, como suced i a
n o s bons romances q u e já l era .
Afi nal sempre tinha havido uma confissão !
Era uma abo m i nável catástrofe , de facto , e
não apenas o pesadelo que e l e chegara a su-
por responsáve l por tudo aqu i lo, n u m mo
mento l ouco .
Não cai u mas empa l i deceu m a i s , ao ponto
de assustar a mãe.
- M e u querido, o que é que tens ? - per
nu ntou e l a . - Vejo que alguma coisa te faz
sofrer, uma . coisa que escondes à tua mãe.
Devias confi ar numa pessoa qiJe à sua frente
não vê mais n i nguém . . . M as que o l h a r o teu ,
tesouro querido ! . . . O que tens , que até m etes
medo ? . . .
E tomava-o nos braços, apaixonadamente .
- M eu fi l ho , dá-me atenção . . . Não sou ne
nhuma curiosa, como sabes , e não quero ar
mar em teu j u i z . Se achas que me não deves
di zer nada , não d i gas, mas ao menos de ixa
que eu trate de tL Deita-te enquanto preparo
uma refe ição l i ge i ra para comeres na cama.
Se dura nte a noite senti res febre , o mel hor
é tomares uma tisana . . .
Desta vez Jacques cai u , rea l mente .
- Até que enfi m ! - suspi rou e l a , estenden
do a mão mole para a campa i n h a .
É q u e o fi lho tinha u m aneurisma em ú l ti mo
wau e a mãe u m amante sem nenhuma von
tade d e ser padrasto . Bana l íss i m o d rama con
sumado há três anos nas vizinhanças de Sai nt
·Germai n-des-Prês e cujo palco foi uma casa
onde vive , por s i na l , u m empreitei ro de demo
l i ções. . .(2)
73
DOIS FANTASMAS
75
fama de ter s ido esp i a , esta Corinne dos sar
cófagos nunca chegou a conso l a r-se de não
ter casado outrora com u m homem célebre
q u e , j u l gava e l a , a i d o l atrara .
Em tempos i dos bonita , ao que d iz i a m vá
rios pa leógrafo s , res ignara-se a plantar nas
suas próprias ru ínas , tre m u l amente , a árvore
da ' l i berdade fi l osófica.
Sempre vesti d a de negro até à ponta das
unhas, de cabelos armados à n i n ho de cego
n h a , as raras fatias de s i própria que uma de
cência toda britâ n i ca l h e perm itia ex i b i r eram
pegajosas pe l o sarro espesso q u e as revestia
e cujos pri m e i ros a l uv i ões remontava m , por
certo , à Revo l u ção de J u l ho .
De rosto lembrava u m a batata frita passada
por queijo ra lado e as suas mãos , para usar
as pa l avras de u m provérbio escandi navo , ti
nham « desenterrado a b isavó » .
Toda a s u a pessoa, enfi m , chei rava a pata
mar de sexto piso de um hote l de v i g és i ma
c l asse, o que não i mped i a de ser m u ito admi
ra da por u m g rupo de i n g l esas jovens e de
i ndependência assegu rada por cri ações de
gado ou pe l o tráfi co i nternacional dos precio
sos negros que só na ve l h ice branquei a m .
Chegadas dos loca i s m a i s d i versos do R e i no
U n i d o , estas jovens apareciam em casa de
M l l e . Tesson para aprender l iteratura e os
modos d isti ntíssi mos do grande sécu l o , dos
q u a i s seria a ú ltima e mais i l ustre professora ,
Contasse embora M l l e . Tesson que as suas
d i scípu las g raciosas fossem mais a m i gas do
que a l unas. Ta lvez por experiência própri a ,
j u l g à va o coração das raparigas u m a b i s m o d e
i nfâm i as e d e crimes, encorajava-as a ter con
fi ança n e l a , atenazava-as com questões bizar
ras , ped i dos sugestivos e corruptores , fazen
do-se construtora das suas a l ma s .
76
Em troca destas confissões que a desseden
tavam oferecia-l hes protecção . E, como tinha
fa ma de m u l her mu ito superior, a maioria dos
frangos daq u e l e g a l i n heiro de ixava devassar
por compl eto a sua própria h i stór i a e as h i s
tóri as, mais 'ou · menos puxavantes , dos pais
e das pessoas d a sua roda .
D izendo-se embora cató l i ca , quanto a rel i
gião M l l e . Tesson não aprovava a m i ssa e fa
l ava com entusi asmo vivo das belezas protes- ·
tantes.
77
n hecidos os r i be i ros , as nascentes · e o sabão
·de-mars e l h a .
S i m , porque era um a n j o pouco l i mpo, que
pena, e chego mesmo a pensar que está aqui
a origem pouco d ivu l gada da atracção que or
bito u este planeta doido à C l éopâtre fixa e
cons iderada astro sáb i o .
Seria d ifíc i l d izer q u e m l evava a pa lma n a
i mundíc i e . Tratava-se de uma e m u l ação d e suj i
dade, verdade i ro assalto de côdea , antago
n i smo de nódoas e sedi mentos i mpuros , com
petição de pu lveru l ências , confl ito de rasgões
e farrapadas , torneio de exa lações rapos e i ras,
bafios , rel e ntos e e m p i reumas.
Não obstante , as duas criatu ras amavam-se,
i sentas de toda a ceg u e i ra , e constantemente
se j u l gavam com i ndependência extrema.
- Real mente, que grande porcal hona me
s a i u aquela Pénépol e - clarinava a d u Tes
s o n . - Só u ma d raga poderia l i mpá-l a .
- N ã o posso conceber q u e a nossa querida
C l éopâtre s e des mazel e a tal ponto - .flautava
por sua vez m iss Magpi e . - Até parece que
jurou mete r noj o . Era bem fe ito que o Sanea
mento l h e mandasse um g rupo de l i mpeza .
Apesar d i sto , as duas passavam i nfin ita
mente bem e a am izade corria-l hes às m i l ma
ravi l h a s .
78
Pe lo contrário, Pénélope afi rmava que o ca
same 1P era um estado de ignomínia e a pre
tensa necessidade de dorm i r com um homem
uma abom i nação i m possfve l de suportar.
As .d uas vi rgens desencrostáve i s d i scutia m
muitas vezes este assunto e a vitória pertencia
sempre à devorante C l éopâtre, que se d i vertia
ao esfa re l a r as objecções da sua adversária .
S ó n u m ponto l h e ced i a , o d a evidente i nfe
rioridade dos homens, e tanto prazer isto dava
a miss Magpie que a d i scussão chegava ao
te rmo .
Ass i m como ass i m , estava assente qu e a
u n i ão dos sexos não passava de u m a l e i fis io
l ó g i ca e o horror m u i to l egítimo das m u l h eres
d i sti ntas por este acasal amento fei o , só na
aparência poderia ser u ltrapassado .
- M as há fa lta de m u l heres na l i teratu ra
- conc l u ía a doutora , com energi a - e o casa-
mento é a ú n i ca forma de l á chegarmos . Acon
teça o que tiver de acontecer! Se aparecerem
homens ao nosso lado, paci ênc i a !
Certo d i a , n a s costas da a m i g a , C l éopâtre
fundou u m a agênc i a matri mon i a l . Era u m a
agênc i a pequen i n a , mu ito d i screta , que s ó
agitava o archote d a s ofertas e procuras e m
jorna i s d e u m a correcção a toda a prova .
U m prospecto anón imo em papel rosado i n
formava ()S amadores que o Anjo da Guarda
do Lar só faz i a « Casamentos de amor • e re
cusava meter-se em mani gâncias de d i n h e i ro ,
n ã o ofereci a vi rg i ndades duvidosas, n ã o pu
nha esparre l as e g i rândolas de m i l hões a c i n
t i l a r aos o l hos dos aventu rei ros .
Não. O aposto lado exc l usivo d 'O Anjo da
Guarda e ra aproxi mar • corações de primei ra
q u a l idade • qu� não chegariam de outro modo
a conh ecer-se, faci l itar encontros e colóquios
de i nocênci a g a ranti da. Tocava à chamada das
canduras ignoradas , dos l írios na sombra , das
79
a l mas puras e machucadas que o mundo não
sabe compreender. Em defi n i tivo , só se pres
tava a a l ianças de co mpleta e absol uta i rra
p reensão .
Esta nobre empresa teve a l g u m sucesso,
Trémulas de esperanças , ve l has purezas jorra
ram dos seus antros e correram a esvazi a r
econom ias n a s mãos de C l éopâtre .
U ma professora genovesa , mu ito austera , e
u m vel hote condecorado , afável ao máxi m o ,
recebiam as vis itas e red i g i a m a correspon
dênc i a .
· A fun dadora só i nterv i n ha n o s casos difíceis
em que era p recisa eloquência e dava , nessas
ocasiões, p e l o nome de M m e . Aristid e .
U m belo d i a , corri a a estação • em que todas
as coisas se amam e reproduzem » , Pénél ope
s i m , Pénél ope - apresentou-se na agência a
rec lamar o esposo idea l ! . . .
Tenho pena de lá não ter estado , mas parece
que as suas exigências eram excess ivas e
M m e . Aristide fo i chamada a i ntervir.
Que encontro e que cena ! Cl éopâtre , enrai
vada por ver o seu anoni mato a descoberto,
e Pené lope fu riosa por ser apanhada em fla
grante del ito de concupiscênci a , puseram as
a l mas ao l é u . E eram verdadei ras a l mas de
megeta, mil vezes mais fedorentas e o d i osas
do que as carcaças onde vivi a m , e cada qual
despejou · a sua na cabeça da outra , como se
fossem bac i os !
80
A RELIGI.AO DO SR. PLEUR
81
Mas não eram conhecidos pormenores. Quem
sabe até se tinha vári as.
Pretendeu a l enda que e l e dorm ia n u m antro
obscuro , debaixo de uma escada de serviço,
entre a cana l ização das l atri nas e o a l oja
mento do porte i ro i d i otizado por uma tal vizi
nhança .
D i sseram-me que passava os reci bos de a l u
guer em pedaços de cartaz rasgado, por eco
nom i a , e os inqu i l i nos m a i s esperta l haços i a m
vendê-los a col eccionadores astuci osos .
Também se contava a h i stór i a , que ficou
famosa , de uma sopa fantástica s i stemati ca
mente feita domi ngo à noite , e obrigada a a l i
mentá-lo pela semana i nte i ra ; e que seis d i as
a fio era uti l izada , fri a , para e l e não gastar
carvão.
Como é natu ra l , à terça-fe i ra esta substân
c i a a l i mentar tornava-se fétida. E então , com
modos reverentes de cura que abre o taber
nácu l o , de um pequeno armário chumbado . à
parede, que devia conter papé i s estranhos,
ti rava u m a garrafa de vel h íssi mo rum por certo
reco l h ido em q11alquer naufrág i o .
N u m copo m i núsculo deitava a l g u mas gotas
ra ras e fortifi cava-se, na esperança de as sa
borea r depoi s de engo l ida a cataplasma. Ter
m i nada, poré m , a operação :
- Agora que já comeste a sopa - dizia
não vais ter o teu copi nho de rum !
E vertia n a garrafa o precioso l íquido, o mais
des leal mente possível . A l i á s , fineza recomen
dáve l que em tri nta ou quarenta anos sempre
foi coroada de êxito .
82
Budapeste ou Amesterdão ! A mente i mag i na
tiva de u m Prometeu não chegaria para desen
canta r, ne l e , o menor l i neamento arcai co .
Decretada p o r i mprecadores suba lternos , a
alcunha de Shylock ( 1 ) revoltava como qual
quer b l asfé m i a porque este avarento só ex
p r i m i a chateza ! Só nas c rostas e no fedor de
a n i ma l morto era terrível . Mas, até n i sso, de
u m desencorajante modern i s mo. N ão, a i mun
dície não lhe garantia as boas-vi ndas em ne
nhum abismo.
De aspecto , pelo menos , só conseg u i a pare
cer o B U R G U ÊS, o M edíocre, o · M atador de
Ci snes • no dize·r de V i l l i ers [2) , consu mado e
defi nitivamente termi nado , como deve surg i r
n o final dos finais, quando o s Tremores saírem
do cov i l e a s a l mas sujas s e manifesta rem à
l uz do d i a !
Se o S r . P l e u r pod i a estar i nocente d a pros
titu i ção das palavras , teríamos ao menos de
compa rá-lo a qualquer profeta horrível que ·
83
de estar vivos quando afi nal estáve i s abaixo
dos mortos. ó safardanas h i pócritas , que em
mim detestai s o denunci ante s i l encioso das
vossas infâ m i as ! O horror material que vos
i nspiro dá a medida exacta às abom i nações do
vosso pensamento . Porque afi nal , se estou bi
choso, a que hei-de atribuí-lo senão a vós mes
mos, que me fervi l ha i s no fundo do coração?
O o l har deste sujeito era particu l a rmente
i nsuportável às m u l heres elegantes que e l e
pareci a execrar fixando-as , p o r vezes , com u m
c l arão m a i s b ranco do que o fósforo d o s ossuá
rios , o l hade l a fúnebre e viscosa que fi cava
col ada à carne d e l as como a sal iva dos bru
cól acos , e elas l evavam cons i g o , a bram i r de
horror.
- ó m i nha querida, vamos ter u m encon
tro , não vamos ? - j u l gavam ouvi r . - Vou
l eva r-te de vis ita à m i nha l i nda fossa e então
verás que bon ito manto de l esmas e escarave
l hos te darei para rea lçar a b rancura da tua
d iv i na pe l e . A paixão que por ti s i nto tem tena
zes de caranguejo, e podes estar ce rta de que
os meus be ijos valem mais do que todos os
d ivó rcios. S i m , porque u m dia também tu hás
-de chei rar mal , ó ratinha cor-de-rosa, h ás-de
c h e i rar vo l u ptuosamente mal ao meu l ado,
quando não passarmos os dois de u m g rande
p i vete à luz das estrelas . . .
B4
Ouvíamos qualquer co.isa como pata ou
pate, conforme os casos . Chegávamos a não
ouvi r nada de nada . A pa lavra evaporava-se .
Era a modos que u m pudor súbito, u m a cor
tina a c a i r de repente por c i m a de um santuá
rio, um i nopi nado temor de parecer obsceno
por deixar o ído l o de peito ao l é u .
Se a coisa vos d iverte, i maginai u m escu l
tor fanático, u m Pi grn aleão sang u i nário e ado
c i cado a procurar convosco um ponto de vi sta
para a sua G a l ateia e a fazer-nos recuar ma
n hosam ente até um a l çapão, aberto para vos
engol i r .
Tão fo rte era a s u a pa ixão p e l o D i n h e i ro ,
que mu ita gente se enganava . A este i mpeni
tente devoto do mea l h e i ro, e do cofre-forte ,
atribu íram-se vi sões horríveis - desconfian
ças in u ito i njustas mas acred itadas por vários
sábios exegetas da vida privada a l heia que o
tinham su rpreendido com m u l heres e crianças
em m i steriosos co lóqu ios de passeio.
Às vezes , o c u l to expr i m i a-se-lhe por c i r
c u n l ocuções arrebatadas de uma tal ordem
que a babosa erecção do seu fervor atenuava
de estranha forma aq uela fisionom i a de covei ro
c a l c i nado, e o seu seio exal ava suspi ros deso
nestos , ao ponto d e · podermos desc u l par os
vasos d e menor e l e i ção onde deixava cai r a
sua pa l avra rara , se acaso eles não sentissem
passar, entre ambos , a h i pocondríaca majes
tade da Idolatria.
85
n udando-se à m i nha frente , o Sr. Pleur d i ver
ti u-se a d e i xa r-me bem entus i asmado.
J u l go-me o ú n i co a ter-lhe ouvido confidên
c i a s . Acrescento que esta recordação me aju
dou i menso a suportar u m destino m a i s do
que sovina e, apesar da personagem ter mor
rido há m u ito tempo, a m i n ha consc iência hoje
press iona-me a testemunhar a favor de u m a
pessoa tão mal conhec i d a .
Vários homens da m i nha geração podem
l e mbrar-se do fi m trág i co que ele teve e m uito
ru ído fez nos ú lti mos anos do I m pério.
O assass i n ato , cujos pormenores souberam
as gazetas l evar-me até às reg iões do Cabo
Norte , por certo foi da espéci e mais bana l ; e
os bi ltres que o pe rpetraram , confessemo-lo,
m u i to pouco d i g nos da cel ebridade que os ba
fejou .
O ve l hote foi s i mpl esmente estrangu l ado no
seu covi l n i doroso , por band idos até então pri
vados de cel ebridade que afi rmaram não ter
outro móbi l a l é m do roubo. Algumas c i rcuns
tâncias que apenas diziam respeito ao passado
da víti m a , e continuavam i n expl i cáve i s , em
vão excitara m , e por vários meses , a sagaci
dade dos seus contemporâneos .
Por f i m , j u l gou-se adivinhar ou compreender
q u e o Sr. P l e u r não fora o que parecia ter sido.
Numa pa l avra , os assassi nos d e má sorte,
que a l i ás se deixara m apanhar com fac i l idade
extrema na toca do avarento , não ti nham con
seguido descobr i r nenhum tesou ro ; e o Estado ,
apesar de e l e t e r morrido sem testamento e
sem herdei ros natura i s , não pôde deitar a fa
te ixa a nenhuma propriedade mobi l i ária ou
i mobi l i ária.
F i cou então estabe l ec i do que o defunto não
possuía absol utamente nada . . . a l é m do subsí
d i o vita l íc i o e de u m a g i gantesca fortu na i na-
86
tacavelmente a l i enada nas mãos de certo
Bispo.
I m possíve l saber no que se tinham trans
formado as cons iderávei s somas que deviam
ter- l h e passado nas mãos dura nte tantos anos
em que ele próprio passou reci bos a verdadei
ros esquadrões de i n qu i l i nos .
Nenhum títu l o , nenhum va lor, nada de nada
excepto a famosa garrafa de rum esvaziada
pelos estrangul adores .
87
braço, to<;lo saltitante, na i m i nência de preci
pitá-lo nos cagatórios da popu laça.
« Só vivia para dar cumpri mento a este acto ,
e forçoso é acred itar que extraía dele prazeres
furi osos ; a sua a l egria chegava a ser del írio
quando tinha ocas i ão de oferecer o espectá�
culo a pobres-d iabos que morri am de fom e .
« D ispunha de tri nta m i l francos de ·renda,
o tipo , e queixava-se de que o pão estava
caro !
" M edite nesta h i stória verdadeira, q u e até.
parece um apólogo ! ,. .
Real mente , não tive oportu n i dade de beijar
os andrajos do Sr. Pleur, m as a sua narrativa
foi de molde a eu j u l g a r que por baixo d e m i m
gal opava toda a Cavalaria dos abi smos.
88
cação , e i m p l o ro-o pelos Seus l angores como
pelas Suas Alegrias e Sua G lória:
« M eu rapaz ! U m d i a há-de compreender
como este Deus se avi l ta por nossa causa.
Lembre-se do outro maníaco ! Vej a a que em
prego a m a l ícia dos homens O conden a i
" . . . P e l o que me d i z respeito, há tri nta anos
não me atrevo a tocar-Lh e ! . . . S i m , rapaz , há
tri nta anos não me atrevo a pôr as patas sujas
numa moeda de c i nquenta cênti mos ! Quando
os meus i nqu i l i nos me pagam , recebo-l hes o
D i n h e i ro n u m a caixa prec iosa , fe ita de · ma
de i ra de ol ivei ra que tocou o Túmu l o de Cristo .
Nem u m só d i a fico com E l e .
« Se quer sabê-l o , s o u um penitente d o Di·
nheiro.
« Com i n expri m ívei s conso l ações , por E l e
suporto o facto d e o s homens me des preza
rem , de até os a n i mais se assustarem com i go
e todos os d ias da m i n h a vida eu ser crucifi·
cado pe l a mais pavorosa das m i sérias . . . ,.
Aprofundei a existência m i steriosa deste
homem para vi s l u mbrar que o seu d i scurso
era todo s i mbó l ico. Confesso, poré m , que as
Pa lavras Santas tão rudemente adaptadas me
assustaram um pouco.
Vi-o l evanta r-se de repente , com os braços
esticados para o céu, a i nda estou a recordá-lo
parecido com uma forca gemi nada de onde
pendessem os andrajos pod res de u m anti go
supl i c i ad o .
- As pessoas fartam-se de d izer que sou
um ayarento terrível - gritou e l e . - Poi s bem !
Um d ia conte-l hes que descob'ri o seguríss i mo
esconderijo de que nenhum avarento se tinha
lembrado antes de m i m :
« Enfio o meu Dinheiro n o Seio dos Pobres! . . .
« Pu b l i q ue i sto, meu rapaz, no d i a em q'ue o
Desprezo e a Dor tiverem fe ito de s i um ho·
89
mem suficientemente grande para ambicionar
a honra suprema de ser i n compreendido.
90
A OLTIMA COZEDURA
91
que soubera eJ evá�lo do quase nada ao p i ná�
c u l o de u m a dezena de m i l hões .
N u m entusi asmo i ngénuo de ve l ho soldado,
contava as gue rras i nterm i návei s que fizera à
concorrência e diverti a-se a re lembrar o ti ro
teio heróico, por vezes, dos i nventários .
A exemplo de Carlos V, abdi cara do i mpé
rio da factura para abraçar m u ito s i m p l es
mente u m a vida superior.
Em suma, com meios de vida e demasi ado
vel h o para ter a vel e i dade de conservar muito
tempo o go l pe de vi sta do homem de negóc ios,
esse qualquer co isa de espontâneo que des
concerta a praça e arruína as mani gâncias dos
competidores , tivera o senso de aprese·n tar
uma vantajosa demissão do poderio comercial
antes que a estre la da sua patente começasse
·
a fraquejar.
92
confrontá-los com as grosse i ras tri bu l ações
dos i n d igentes cujo dever, aci m a de tudo , é
sofrer. Como se os andrajos e a falta de co
mida pudessem comparar-se com a angústi a
da morte ! Porque a l e i é esta : ás pessoas
morrem a sério se possuírem. Para dar a a l m a
a o criador há que ter capita i s , e as pessoas
não querem compreendê-lo. A morte não passa
de uma separação do D i n h e i ro . Quem não tem
D i n h e i ro não tem vida e não sabe, portanto ,
morrer. ,
Cheio de pensamentos destes - mais pro
fundos do que e l e j u l gava - o aplai nador de
ca ixões trabal hava de a l m a i ntei ra na abo l i ção
da angústia morta l .
Teve a honra d e s e r u m dos pri m e i ros a
fomentar a . concepção generosa do Cremató
rio. Segundo este pensador, o trad icional
horror à morte é sobretudo ocas i onado pela
pavorosa i magem da decompos ição. Nos comí
cios dos i nc i neradores , que o t i n ham e l eito
pres idente , pormenorizava as fases dessa de
compo s i ção desenrolando com a eloquência
do medo toda a quím i ca subterrânea . Por exem
plo, a i.d e i a de transformar-se em flor revo l
tava ao máximo a sua i magi nação de guarda
-l ivros .
- Não quero ser carcaça ! - m u g i a . - Vou
exi g i r que me quei mem logo a seg u i r à morte ,
me ca l c i n e m , reduzam a c i nzas . porque o fogo
purifica tudo , etc .
Fo i p l enamente atendido, como a segu i r ve
remos .
93
Atrevo-me a d izer que D i eudonné Labal barie
a i nda era mais admi ráve l do que o pai . Con
cebido numa hora de insigne triunfo sobre
concorrentes temerários , em pl eno i dea l rea l i
zava vi rtudes só l i das que as casas de créd ito
m a i s sérias podem descontar .
Aos q u i nze a n o s já a p l i cara todas as suas
econom i as e exi b i a uma figura tão del gada
como u m l ivro . Consultado, poré m , esse l i vro
de contas, e l e nada nos reve l ava de frívol o .
O cúmu l o da i nj ustiça teria s i d o censu rar
- l h e um m i nuto de entu s i asmo ou um ataque
de te rnura i nsensata , repri m i do fosse, a pro
pós ito de qualquer co isa, sobre qualquer
assunto .
Quando fa l ava , o fe l iz p a i era obrigado a
apo i a r-se na caixa ou no balcão , mu ito ébrio
d e ter procri ado u m fi l ho ass i m .
U m a ta l bênção de fi l ho a i nda vive e pros
pera . Em três anos de órfão chegou mesmo
a d up l i car o seu patri món i o e soube fazer-se
adorar por uma riquíss i ma pastora de tarta
rugas que a i nda há pouco casou com e l e .
M u ita gente i ri a reconhecê-lo, tenho a certeza,
se acaso eu não temesse ofender- l h e os l írios
da modéstia tentando esboçar, aqu i , a - sua
i magem amáve l .
Ad i v i n h e quem puder. Será excessivo eu
dec l a rar que a sua fisionom i a é de belo répti l
e por háb ito faz-se acompanhar de um molosso
monstruosís s i mo em corpu l ê n c i a ?
M as aqu i t ê m a h i stó ria i nfin itamente pouco
d ivu l gada da morte e dos funera i s do pa i . E
ao amador de emoções suaves convido-o já
a i nte rromper a l e itura .
94
Sem ceder a choros i núteis que são puro des
perd ício, sem gastar o • estofo • precioso da
sua própria vida, quero dizer •O tempo • se
gundo a expressão nobre de Benjam i n Franc
k l i n que e l e citava a cada passo , pôs tudo em
ordem, sem perder u m i nstante p reparou tudo .
A s dez e tri nta e ci nco já o s jornais esta
vam avisados do seu l uto , a dor que sentia
desfo l hava-se em m i l exemplares por toda a
rosa dos ventos - parti ci pações encomenda
das e j u d i c iosamente executadas com g rande
antecedência.
Observação idêntica quanto à pl aca de már
more negro desti nada ao Columbarium, na
qual pod ia ver-se uma fén ix de asas abertas ,
entre l aba redas, com a terrífica i nscrição
RENASCEREI
95
Adm i n i strativa e reg u lamentarmente execu
tada com tábuas leves , para desaparecer num
ápice àquela atmosfera de setecentos g raus,
o esq u i fe repousava na carreta mecânica cujas
antenas de meta l , ati radas com toda a força,
merg u l ham na forna l h a os mortos e recuam
soltando um g rito , movi mento de sístole e
d íasto l e executado em c i nco segundos .
D i eudonné para a l i estava , no seu reco l h i
mento d e fi l ho , quando saiu u m ruído da car
reta .
. .
96
.Y AMOS L.( SER RAZO.(VEIS!
97
fortuna que ameal hara , o alto bri l ho do nome
que várias e g ritantes gerações i l ustrara m ,
t i n h a m escavado lonjuras i ntransponívei s en
tre e l e e a m u ltidão v i l oa .
Gozava , enfi m , de u m a consideração i n g l esa
ao máximo, que nada pareci a bel iscar, pas
sando, decerto com razão , por exemplo exci
tante (tão precioso, embora ! ) de i nteg ridade
profi ssional .
Vamos ser obri gados a acred itar que uma
preocupação estranha o obcecava , pois não
respondia à fi l ha e , mais lento a i nda do que
era hábito, com g randes ol hos afe itos às
expressões d i g nas fixava u m obj ecto qualquer
que se i m p r i m i a , i núti l de todo, na sua reti na.
A sua mane i ra , Chau monte l adorava aque l a
fi lha tão amável que p o r m i l ag re se fizera
uma l i nda rapariga e cuja mãe fora há dez
anos enterrada , vítima de um fu l m i nante ataque
de pavor. .�
98
- Não podes compreend�r i sto, m i nha fi
lha - acabou por declarar o vel ho com a maior
austeridade.
E, co m o u m homem cansado d e carregar o
mundo, l evantou-se da mesa e saiu a passo
lento sem acrescentar uma pal avra que o
traísse .
99
doním i co que e l e frequentava , puseram- l h e o
defi n itivo nome de Cadáver.
Particularidade bem s i n istra : ao andar, as
suas arti cul ações esta l avam como as de Pedro
o Crue l , segundo se d i z . . .
1 00
· flor campestre a ser co l h id a » e tiveste a
genti leza de me oferecer averbando-l he uma
ded i catória sugestiva - realmente tinhas man-
·
1 01
o cochei ro parar, que eu pretendo descer
aqui . •
- M a i s u ma pal avra - balbuciou o i nfel iz
Chaumontel que acabava de trambu l har dez
m i l degraus . - Posso matar-me, já reparou?
O outro desatou a ri r e respondeu-l he do
estribo com pa lavras não isentas de profun
d i dade :
- Que medo posso eu ter? Os porcos nunca
s e mata m .
1 02
UMA MÁRTIR
1 03
Cheia de raiva , ava l i ando i molações e sacri
fícios, esta querida a l m a d i z i a consigo própria
que e ra du ríss i mo viver há vi nte a nos para
uma fi l ha tão i ng rata que abandonava a mãe
daquela fo rma, mal casava, para segu i r um
estranho com manifesta fa lta de pudor e que
não tardaria a profaná-la, sem dúvi da, com
carícias lascivas .
- Ah ! Que grande satisfação os nossos fi
l hos sabem dar-nos ! I ma g i n e - de forma quase
i ncons c i ente ela fa l ava com o subche-Fe da
estação que se aproxi m ara e a exortava , cheio
de civil idade, a desaparecer da l i - i mag i n e que
os trazemos ao mundo com dores tão abomi ná
veis que o senhor nem pode ava l i á-las, edu
camo-los no temor de Deus, procuramos que
se pareçam com os anjos para serem d i g no�
de cantar eternamente aos pés do Cord e i ro !
noite e d i a ped i mos p o r e l es sem descanso j
du rante um terço da vida , para bem das sua s
a l mas ternas cumpri mos penitências que s ó
de pensar nelas estremeço, e a recompensa é
esta ! Somos abandonadas , fique o senhor a
saber, largadas como u m farrapo, como l ixo ,
mal aparece u m fi nório qualquer que temos a
estupi dez de receber, porque tem ar de bom
cristão , e logo ali abusa e macu l a u m coração
i nocente , se me perm ite sugere-lhe visões
i m pu ras , faz' uma jovem educada na mais
santa i g norância acreditar que as festinhas
de u m marido de carne vão dar-l he a l egrias
mais vivas do que as efusões de uma ternu ra
de mãe .. . .
• Fique o senhor a saber o que acontece .
Pode mesmo teste m u nhá-lo no d i a do j u ízo
f i n a l ! Estou abandonada, desprezada, tra ída,
soz i n h a no m u ndo, sem consolação nem espe
rança. Ponha-se no meu l ugar . . . ..
--: A senhora pode acred itar que comparti l ho
do seu desgosto - respondeu e l e - mas é
1 04
meu dever d izer-l he que as ex1 gencias do
serviço não perm item que a de ixe ficar aqui
ma is tempo . Embora contrariado, tenho a obri
gação de ped i r-lhe que se reti re .
E; com u m a desped ida destas , a mãe do
lorosa s u m i u-se i mp l orando ao céu, u m a vez
mais, um testemunho para a i mensidade do
seu l uto .
1 05
Res u m i ndo, fo i uma i rrepreensíve l esposa
- Deus meu ! - i ncansável a atra i r bênçãos
das mais raras à ·casa comerc i a l de um i m beci1
malfa zejo que não houve meio de entender
a fel ic idade em que vivia.
Anos passados sobre o casamento , esta
márt i r a i nda jovem e ao que parece muito
apétitcisa , fo i um belo d i a apanhada pela odiosa
personagem em convívio com um cava l h e i ro
por s i na l pouco vestido.
Eram de ta l ordem as c i rcunstâncias que só
u m cego , também surdo como a morte , po
deria a l i mentar dúvidas .
A austera d evota ench ifrava-o com u m · en
tus iasmo tão evidentemente parti l hado que,
não tivesse em bora basta ntes l etras para o
nome de N i non l h e assentar bem , tinha outro,
seu, quase tão belo como aque l e .
De peitaça ao vento V i rg i n i e avançou e,
numa voz m u ito suave , numa voz de g ravidade
e doçura profundas , d i sse ao homem estu
pefacto :
- Meu a m i g o , estou a tratar de negóci os
com o senhor conde. Vá .atender os seus c l i en
tes , vá l
E fechou a porta .
Fo i o fi m . Duas horas mais ta rde V i rg i n i e
com u n i cava a o marido q u e só voltaria a d i ri g i r
- l h e a pal avra em caso de u rgênc i a , estava
fa rta de condescender até ao n ível da sua
alma de caixe i ro , na verdade era bem lamen
táve l ter sacrificado as suas esperanças de
v i rgem m u i to jovem a um casca-grossa sem
ideal e tão i ndel icado , ai nda por c i m a , que
a esp i ava.
Fi l ha de u m bede l , que era, na ocorrência
não esqueceu deixar vincada a superioridade
da sua esti rpe .
De então para d i a nte, a cri stã dos p r i m e i ros
séculos empun hou a pa l m a , e a existênc i a do
1 06
pobre e domado carnudo transformou-se num
I nferno, num lago de amargor mu ito profundo
que o arrastou à bebida e fê-lo i d i ota ao ponto
de terem consegu i do abafá-lo, plausível e
caritativamente , n u m asi lo.
1 07
quarto mandamento de Deus não conservaria
a sua força .
Da l i em d i ante todos os meios l h e parece
ram bons , já que uma i ntenção p i edosa l he
não deixaria de pe rfu mar as manigâncias, ve
nenosas fossem .
Para dar cumpri mento a u m desíg n i o tão
l ouváve l , a márti r passou a fomentar a deson ra
do genro e da fi l h a com en redos e truques de ·
toda a espéc i e .
O pri m e i ro v i u-se i ncri m i nado de vícios
monstruosos , de hábitos i nfames confi rmados
por abo m i náve i s testemunhas. A segu nda re
cebeu cartas que bem poderiam ser datadas
de Sodoma.
G rande Pande i ro escrevia a l a m e ntá- l a , Dedo
na Regue ifa fazi a- l h e saber que cc aqu i lo não
ficaria por a l i » . O l eito nupcial dos recém
-casados fo i submerso por i ntei ro numa tor
rente de l ixo .
O marido i a sucumbi ndo aos poucos , debaixo
de um número · i nfin ito de mensagens anóni
mas e pseudóni mas das mais variadas formas,
mas sempre untuosas e satu radas de tri steza
mu ito afáve l que o i nformava m , cheias de
precaução , sobre o passado pouco l i mpo da
sua compa n h e i ra que sou bera apod recer, com
o hál ito , meia centena de rapari gas nos dor
m itórios do pensi onato , e não l h e teria dado,
senhora de um dote daqueles , mais do que a
ba ixa e rud i mentar v i rg i ndade do corpo.
Nada poderá expri m i r a mal dade d i abó l ica,
a competência i nfernal que mexia os cord é i s
deste ·enredo, s a b i a dosear d iari amente o s
venenos horrorosos do i nfanti cíd io.
A s i tuação d u rou mais de seis meses . Os
desg raçados , que ao pri ncípio só sentiam por
aqu i lo um p rofu ndo desprezo , foram depois
domi nados pelo pavor de uma perseg u i ção
tenaz.
1 08
Vieram a saber que as cartas daquela fonte
Ig norada se espa l hava m , dos patrões à cria
dagem , por todas as vivendas à volta , e ati n
giam pessoas i mportantes de cidades e al
deias q u e e l es passaram a atravessar mu ito
de fug i d a .
Foram atenazados p o r u ma angústi a pân i ca ,
I m parável ; foram arranhados por desconfian
ças i rreparávei s , d e nada l hes val endo saber
que e ram absu rdas . Por fi m , rebo laram numa
cl oaca de melanco l i a .
De ixaram d e pode r dorm i r e comer, as suas
al mas extravasara m-se nos abi smos pál i dos
onde as espe ranças se d i l uem, e chegou o d i a
e m q u e morreram j untos à mesma hora e no
mesmo l ugar, sem ser possível defi n i r com
muito rigor o modo por que tinham deixado
de sofrer.
A mãe , que os seg u i a como u m tubarão ,
soube exi b i r fartamente aquele sui cíd io para
l hes ti rar o d i reito à sepultu ra cristã . E agora
é márti r , cada vez mais a Márti r , e d i a a d i a
ascende c o m a maior desenvoltura a o terce i ro
céu , d izendo a c rónica da Rua de Constanti
nopla que a desoras , todas as noites, ela cos
tu ma rep icar um criado de quarto , robustís
simo.
1 09
O .fiM DO D. JUAN
JULES VALLf:S
1 1 1
noventa anos . M a l verifi cado prodíg i o , todavia,
mas ace ito pelo entusiasmo de alguns d iscí·
pulos que já tinham , também e l es, u ltrapassado
os sessenta .
A verdade se d i g a : o Marquês Hector da
Torre de Pisa i rrad i ava como uma custód ia.
E passava por indiscutível que a l g u mas rai nhas
ti n ha m morrido d e amor • ao entrar-lhe no
quarto • , por sua causa so l u çara todo um povo
de arianas .
M u ito tempo antes do cél ebre Beauvivier
que nos consola , o marquês soubera adjud icar
a sua pessoa e transformá-la e m acções. Daí
a opu lência que exi b i a . Mesmo no fim dos
d i as , famíl i as das mais a ltivas pagaram carís
s i mo os b i l hetes da sua al cova . . .
Pelo me nos rezava ass i m a lenda, aceita
pelo m undo i ntei ro , sobre este devorador de
corações que tinha alguns botões das cuecas
e ncastoados em bri ncos ai nda agora o l h ados
como i n esti máve is jóias.
- Nada d isso, meu caro senhor - i nterrom·
peu uma parte i ra . - É verdade que não assisti
à morte desse crápu l a , mas nenhum rxi on,
posso garanti r-lho, foi tão cruel mente casti·
gado como e l e . Pode o senhor i magi nar o que
quiser, e a i nda ass i m l h e ga ranto que n u n ca
saberá chegar a u m horror daqueles . · Ora
sente-se aí nesse aborto , que l h e estende os
b raços , e p reste-me atenção, que esta manhã
venho com ve i a narrativa .
112
d i n h e i ro , como u m verdade i ro mestre , mas
l i mitou-se a exi bi ções privadas . por somas
altas que a l iás apl i cava com c u i dado extremo
nos empreend i mentos mais sérios . O faro de
especu l ador que sempre demonstrou no meio
das piores comp l i cações ficou bem conhecido.
« O i nteresse d i sto é medíocre , poré m . Numa
época em que os homens andam todos ao
engate, quase sem excepção, o putanato deste
cava l h e i ro e as suas concomitantes aptidões
fi nance i ras nada têm de i naudito . São coisas
que l igam bem .
· O q u e tenho para l he oferecer é m u ito
mel hor. Prometi um horror difi c i l mente i magi
nável , não fo i ? Se a sua sede de exp iação não
se aplacar depo i s da m i n ha h i stória, nada será
capaz d e saciá-l a .
• E antes de ma i s : sabe o que tinha e l e a
expiar? Não? O senhor, como os outros , pensa
que ele teve uma existência m a i s ou menos
od iosa de vam p i ro exc l usivamente ocupado
nas suas i nfâ m i a s , durante o período de quase
um sécu l o em que foi correndo como um ·
1 1 3
· Oue parvoíce a m i n h a partejar a pri m e i ra,
e dez anos mais tarde a segunda, l á para o fi m
do rei nado de Lu ís Fi l i pe, como se fossem
porte i ras ou m u l heres da vida! Num e noutro
casos o marquês i ns isti ra para não haver n i n
guém ao pé de nós .
« Da pri m e i ra vez trouxemos a o mundo uma
espécie de caprípede sem ol hos nem boca ,
com uma espécie de membrana m o l e pendu
rada à g u i sa de nariz, que eu nem quero des
crever, ó i mpress ionáve l criatu ra . . . Dotado
de um sangue-frio de morto , o Torre de Pisa
de itou as mãos ao aborto , antes de eu poder
opor-me , e ofereceu-o aos beijos da mãe que
duas horas mais tarde morreu de o ter vi sto .
• E o segu ndo fi l ho do marquês , que saiu
com d uas cabeças n u m corpo em fuso, sem
braços nem pernas , foi uma segunda edi ção
'
da mesma i magem.
" Desta vez a partu ri ente nem pôde vê-lo.
Enro l e i a coi s i nha abominável no meu aventa l
e corri para fora do quarto . Perdi a c l i ente l a
d o nobre senhor m a s adivinhei mu itas coi sas
e mais tarde vi m a saber de outras . . . ,.
1 14
" Não fosse aqu i l o que a i nda agora ouvi u ,
n i nguém contestaria que este homem era ape
nas um canal h a horríve l e mal c hegaria a
merecer que o mencionássemos . Mas a coisa
é outra , volto a repetir, e o casti go que teve
va i fazê-lo tremer, se acaso puder com preen
dê-lo.
•Já reparou como é estranho que a mesma
Identidade do monstruoso fenómeno se tenha
repetido, a dez anos de i nterva l o , em duas
m u l heres legíti mas com quem ele casou , aqui
para nós, por d i nheiro ? Estou convencida
de que a expe riência daria sempre o mesmo
resu ltado.
« Pa ra fa l a r c laro, o marquês era u m idólatra,
um fervoroso e · rigoroso idól atra de i nterior
configu rado à i magem do seu Deus , cujas ten
tativas de progenitura só eram capazes de
reproduzir exteriormente esse Deus.
« Em casa, num oratório i l u m i nado com l uz
misteriosa , e l e adorava a parte do seu corpo
que os sacerdotes de C i be l e tinham outrora
em g rande honra . Mandara um hábi l artesão
moldar sobre si próprio o objecto , exposto
numa espéc i e de tabernácu l o e que recebi a
a s preces desse cori bante que o s m undanos
jul garam estroina - tal como os ca l o i ros de
med i c i n a engo l i ram que o bud i sta Charcot era
méd ico . N unca havemos de saber quantas
pessoas são coisa diferente do que parecem ,
aos ol hos dos seus contemporâneos .
.. o seu verdade i ro cri me era éste , meu caro
senhor, e u m supremo atentado a quem mais
fundo sabe e vê. O resto vinha todo daí.
• Agora veja que dez anos de expiação e l e
teve , até à véspera da morte :
· Todas as noites , um vel hote corpul ento e
bel íss i m o , que as mais altan e i ras tinham ama
do e agora se fizera conhecido das que andam
1 1 5
na vida , e ra i nvariave l mente apanhado na
sombra , à hora dos ú lti mos engates .
• El as conheci am-lhe o gosto e o d i álogo
estabel ecia-se, do l ado da m u l her crapu l oso
ao máxi mo, do l ado dele mu ito h u m i l de porque
estava empenhado no papel de porcal hão con
s u m i do por inconfessávei s desejos .
.. como é natu ral, ao f i m de alguns m i n utos
medidos n u m i nfal ível cronómetro , acabavam
por entender-se .
« E, encostada à parede, a m u l her estendia
- l h e então os pés, alternadamente , e o octo
genário a grun h i r de êxtase e de roj o pelo
·
1 16
SACRILIÉGIO FALHADO
1 17
declaro que eu própria d i sponho de pouquís
si mos i nstantes. Tenho à espera o meu décimo
séti mo amante, u m i mbec i l adoráve l a quem
resolvi entregar corpo e a l ma dentro de uma
hora ou duas .
· Como sou descrente , o mais possível , faço
tudo o que me agrada . Tenho horror aos po
bres , abom i no a dor e, como tão bem d i sse um
poeta j udeu que o senhor não · conhece, prefi ro
as más consci ências aos maus dentes .
· Estou-me compl etamente nas ti ntas para o
vosso Deus sangrento e nada tenho com as
absolvi ções que o senhor d i stri bui por esta
gente da a l d e i a . No entanto , o meu marido é
"'
um deputado vi rtuoso e sucede que precisa
da admi ração dos e l eitores . Aqu i na terra o
que não i riam d izer se a viscondessa des
Egards fa ltasse às páscoas ?
• É nosso dever dar o exemplo e aqu i estou
a anunciar-l he que vou ter a a l egria de receber
das suas mãos o pão dos anjos, na m i ssa
solene do próximo domingo.
·E agora , como o tempo normal de uma con
fissão já term i nou e as a l mas pi edosas que
nos rodeiam já devem estar sufi cientemente
edificadas corri os meus senti mentos cristãos ,
eu não teria qualquer descu l pa se continuasse
a açam barcar o seu m i n i stério. Por isso reti
ro-me, com a modéstia adequada às pecadoras
que acabam de reconc i l i ar-se com o Sa lvador,
e peço-lhe que nos dê a honra de ir ao caste lo
o mais depressa possível para eu poder retri
bu i r a atenção da sua santa mesa . •
Prosternada u m m i nuto aos pés do altar, com
certeza para uma oração fervorosa , a castelã
saiu da i g reja como a fragata do porto , lar
gando uma estei ra de perfumes estranhos que
as a ldeãs respi raram como se fossem a l ecri ns
do paraíso .
1 18
No d i a seg u i nte, mal acabava a m i ssa, o p re
gador s u b i u aos Egards e ped i u para ser
anunciado à Bru n i ssende.
Os criados bem-pensantes adm i raram nele
o ec l esi ástico de compri mento inus itado, uma
espéc i e de fen icóptero sacerdotal que po
deríamos ju lgar especialmente moldado para
encontrar ovel has perd idas ou d racmas de
ve l ha prata , d ifíce i s de achar debaixo de mó
veis sumptuosos , em morad ias ricas onde se
ac l i matou a desordem .
A sua face marcava sessenta anos , como
a esca l a de estiagem marca as g randes cheias
de um r i o , e naquele momento ofereci a , derro
tado e preocupado por inexpr i m íveis cu idados ,
o espectácu l o de uma bondade de ru m i nante .
O pregador fo i i rltroduzido, mas teve de
espera r mais de uma hora . H oje todos sabemos
como é dever de u m padre aguardar que as
belas damas saiam da cama, se têm vagar e
condescendência de recebê-lo .
.....,.... Ah ! Que surpresa agradável , meu querido
pad re ! - d i sse a vi scondessa quando se d ig
nou , enfi m , a aparecer. - Apesar de ter sal
tado da cama para recebê-l o , estou com medo
de tê-lo feito esperar mu ito ! J u ro que não fo i
de propós ito e conto com a sua caridade para
saber descu l par uma mundana incapaz de pre
ver a g raça deste seu bom-d i a tão mati nal .
- Há c i nco horas que o sol já nasceu , m i
n h a senhora . Depois disso vários m i l hões d e
cri stãos já sofreram e mu itos deles agoniza m ,
por s i n a l , desesperados no . m i nuto q u e passa . . .
- respondeu o m i ssionário cheio de aspe
·
reza . - Pode acreditar que eu não teria vi ndo
Incomodá-la tão cedo , nem sequer mais tarde,
se a honra de Deus não estivesse em causa . . .
· Devo-lhe uma noite crue l , m i nha · senhora,
e esta manhã até parecia que um anjo terrível
1 1 9
m e arrastava pelos cabel os em d i recção à sua
porta . Aqui estou a perg u ntar-lhe se está pre-
·
em pl eno j u ízo ?
- Eu pod ia fazer- l h e a mesma pergunta , se
nhora, mas com certeza não va leria de nada . . .
Sei bem o que estou a · d izer - acrescentou
e l e , numa voz tão baixa que pareci a causar
a l g u m a i mpressão - sei-o m u itíss i mo · bem.
Já se esqueceu daqu i l o que se passou na
i g reja , entre nós doi s ?
- Lem b ro-me de q u e o m e u padre aceitou
a m i nha confi ssão para o sacramento da peni
tê nci a . Por outro l ado também sei que o se
g redo da confissão é i nvioláve l . Só i sto .
Houve um s i l êncio.
- Resta-me ensi nar-lhe o que a senhora não
sabe, ou não quer saber. Poi s seja. O que lá
foi fazer é u m abomi nável desafio a Deus .
N ão satisfeita em profanar tão fe iamente , e
por maldade pura, o sacramento que a i nda
agora se atreveu a nomear, fo i dar-me conhe
c i mento da d is pos i ção em que está de come
ter o mais horrível sacri légio . . . Como é na
tu ra l , a senhora contou com o s i l êncio de um
i nfe l iz padre que está obrigado pelo sagrado
ca rácter do sacramento . . . Talvez eu pudesse
responder- l h e que não sou obri gado a guardar
seg redo de uma confissão que não existiu ,
m a s dá-se o caso destas fórmu las serem tão
1 20
ntmtas que valem tanto fing idas como o ver
dadei ro a cto Vou calar-me, mas é meu dever
.
Concl usão :
No domingo de Páscoa a igrej a estava cheia
e Bru n i ssende, mais ofuscante do que nunca,
sentada no seu banco de sen hora feudal do
cantão.
O pregador insisti ra em d izer a m i ssa solene.
Lera o Evangelho das Essências e da Ressu rrei
ção , despojara-se dos ornamentos e aparecera
no pú l p ito.
A sua pal i dez era grande e, de sobrepel iz,
parecia aqu e l e anjo vestido de branco que as
santas m u l h e res ti nham vi sto no tú m u l o .
Inso l i tamente, poré m , fa lou sobre o texto
Eden pauperes et saturabuntur, os pobres co
merão e serão saci ados .
Fa lou mais de uma hora, ta lvez à espera
de que o fô l ego l h é fa ltasse, de tanto fa l a r
a morte l h e chegasse . A pal avra exa ltou-se-lhe
1 21
até e l e ficar qualquer coisa de assustador,
l u m i noso , sobrenatu ra l .
Este homem sem eloquência fói subl i me.
De ta l forma expri m i u a pobreza , que o seu
auditório and rajoso pareceu um congresso de
potentados , a a ltanei ra viscondessa acabou
por exi b i r um a r de desg raçada i mpel i da a
mendigar o seu pão.
No momento da comunhão pascal aconteceu
s i mp l esmente isto :
Bru n issende fo i a pri me i ra a ajoelhar-se.
E quando o rebanho dos h u m i ldes se aproxi mou
do a ltar recuou de repente, como se tivesse
vi sto um m u ro de chamas . O padre , que já
desc ia o ú ltimo deg rau do a ltar para se d i ri·
g i r à santa mesa, d e c i bório em punho, voltou
a subi-lo precipitadamente . . .
Foi preciso, depo i s , purificar o santuário.
E todos os anos, naque l e dia, é l evada a cabo
uma ceri món i a lavatória onde todos põem o
maior escrúpulo.
Quanto à vi scondessa des Egards, parece
que continua viva embora não passe, depois
daqu i lo, de uma reles habitante dos túmu
los . . .
1 22
O GABINETE DE LEITURA
1 23
l h e fa l ava m . em constru i r um segundo l oca l ,
declamava a s i mprecações de H ecuba no pró
prio texto de Eu rípedes.
Não que fa ltasse d i n h e i ro a este tradutor de
F i l óstrato , d esde a famosa herança que fizera
d e l e um propri etário i m portante .
A l ite ratura contemporânea, porém - a que
era a l i mento dos Panard, sobretudo os saídos
do seu fl anco - não tinha nenhum i nteresse
para ele e queria que todos se contentassem
com o gab i nete exi stente , fazendo ore l h as
moucas às i n s i nuações optativas dos seus
h e rde i ros.
O mais i nto l erável competidor de Panard
e ra o tio J usti n i e n , coronel da gendarmeria
aposentado que nu nca de l á arrancava .
Consegu i sse entrar, o a n i m a l , e todas as
súpl i cas e ram i n úte i s , todas as l ágri mas . An
tes de acabar com as suas pape l agens fazi a-os
esperar uma hora .
S e a o menos este botifarras, este gagá mal
-che i roso q u e não chegava a fazer nada , des
dentado fornecedor da gu i l hoti na , tivesse mo
tivos serios para prolongar tanto as s uas esta
d i a s , para s e atrasar ass i m no g a b i n ete pre
cioso, três ou q uatro vezes por d i a !
M a s não . Aqu e l a desgraça de veterano,
que o céu se obsti nava a não rachar, n u nca
fora capaz d e l e r outra coisa a l é m da descri ção
dos s i n a i s dos malfe i tores , ou ordens de cap
tura .
- O que faz vossemecê aí dentro , Deus
sa ntíss i m o ! - g ritava a tia Pl ectrude erguen
do os braços áridos às estre las , já que era
vu lgar e l e l evantar-s e a meio da noite.
- Estou a pôr a m i nha correspondênci a em
d i a - era a resposta , concentrando nela a
f i n eza de u m gendarme a quem não é poss íve-l
fazer-se o n i nho atrás da ore l h a .
1 24
M a i s do que nenhum outro , O rthodoxi e vivia
desventu rada com a situação-. Era uma rapariga
de graça pouco vu lgar, com rel ações l iterárias
e l i ções de b i c i c l eta .
Nessa altu ra já l ançado em pl eno s i mbo l i s
mo, o seu i rmão Athanase apresentara-lhe
Aomano-Spada , chefe-de-esco l a cujas raízes
gregas causaram excepcional agrado ao ve l ho
Panard . E o avisado Romano aproveitou este
aco l h i mento para meter no ,c aso o grande Papa
d i a mantopou los , seu i nseparáve l amigo.
As desconfianças bem l egíti mas do profes
sor chegaram a ser venci das o bastante para ,
um be l o d i a , não ser poss íve l evitar que o i n i
gualáve l , sobre-em i nente Périto i n e, se d i g
nasse a comparecer sem ceri món i a , com o
maior à-vontade, acompan hado da sua auréol a
d e traba l ho.
Alargada a mesa , foi a vez de aparecerem
vários Klephtes que, por amor a Pi ndo, tiveram
ocas ião de g oza r a hospita l idade de Panard .
A verdade se d i g a : u m aumento tão grande
de convivas a i nda tornava mais i n acessível o
cubícu l o que Justi nien passou a ocupar como
nunca, por maldade, abandonando-o apenas
para fazer à mesa i rremissíveis i nco nve n iên
cias.
Volto a repeti r que uma ta l ci rcunstância
carregava o tom do quadro, e Orthodoxie so
fria . Sofrimento que se e s p a l hava aos seus
recantos mais ínti mos.
1 25
Má sorte a sua, poré m , que a obrigava a
romper audaciosamente com u m vel hote cheio
d e preconceitos e a quem esta afl uênc i a de
apósto los i n q u i etava ; que já fal ava em despe
d i r a Atica e o Peloponeso !
Angusti ada, Orthodoxi e via aproximar-se o
momento em que teria de ficar l i m itada a tra·
ta r, e l a própr i a , da sua cu ltura . . .
Ah ! Se ao menos Panard deixasse que e l es
l essem as bri l hantes produções dos ps icólogos
e dos magos !
Mas nem pensar n i sso era bom . Todas as
obras nova s , que autores ou ed itores envia
va m ded i cadas ao severo membro do Instituto,
eram exped i das i l l ico pa ra o gab i n ete i rrisório
onde n i nguém era senhor de ficar reco l h ido
u m quarto d e hora .
E será desnecessário d izer q u e não havia
outro recurso. Só a l i as pessoas pod i a m ins
tru i r-se , mas t i rar de l á uma brochura era coisa
a pôr com p l etamente de parte . Não deixaria
de exp l o d i r , terrível , a raiva do ve l ho prefe ito
que tudo esquadrinhava, se alguém tivesse
a ideia de tira r um l ivro , que fosse, daquela
bibl i oteca privativa e cata logada pel a sua
memória i m p l acáve l . Poss i b i l idade de l ê-los,
só lá.
A verdade , poré m , é que Justi n i en abusava .
As fo l has fi cavam n u m ta l estado depo i s de
ele compulsar estudos sobre costu mes, ou
reco l has poéti cas , que às outras pessoas só
restava renunciar a percorrê-las, entre gemi
dos. Nem as dedicatórias eram poupadas.
A senti menta l Orthodoxie, .essa perd i a a
cabeça . Privada repenti namente de u m capí
tulo decis ivo que por certo a teria esclarecido,
não encontrava o fio às h i stórias ; apesar da
sua i n experiência era forçada a construi r epi
sódios improvávei s , a conjectu rar desen l aces
i m possíve i s .
1'26
A necess i dade é mãe de · todo o engenho,
ao que se diz, e esta h i stória veríd i ca vai
fornecer-nos a prova.
U m d i a , apareceú l á em casa um robusto
moço de fretes carregando com as obras com
pletas do célebre romancista Borborigmo, que
em boa hora fora traduzido ( 1 ) .
Desde há muito aquela rapariga sonhava
l e r as pág i nas emo l i entes e fi l armóni cas do
rel axado moscovita , mas era de prever que a
s ua m o l e preciosa não escapasse ao vulgar
destino dos papé i s l íricos ou docum entários
que enchiam conti nuamente o gabinete - de
l e itura .
Não havia um m i n uto a perder. Para conj u ra r
a catástrofe , Orthodoxie foi ter com a t i a
Roxe l ane, que também era louca p o r l iteratura
e logo a segu i r a e l a a mais eufó n i ca da fa
mília.
E a l iás n ã o menos semítica d o q u e Pana rd ,
que a tinha em consi deração atenta pelos
amávei s capit;;�is que ela possu ía e man ipulava
com prudência apreciáve l . Da inquis i ção do
maníaco só e l a escapava ; o seu l i m i a r era·
respeitado .
Em breves i nstantes as duas u rd i ram u m a
conspi ração que fazia o grande homem escapar
às mãos profanadoras do coronel da gendar
meri a . Corrompida por i l usórias promessas ,
Pa l myre fo i quem arrastou o . fardo para o
qua rto de Roxelane.
Belos d ias se viveram. Tia e sobri nha l e ra m
e chora ram ju ntas . . .
Por desgraça, a vibrante Orthodoxie não
pôde contar o seu . entusiasmo na medida acon
sel háve l . Por sua cu l pa deixou escapar algu mas
1 27
ideias e metáforas eslavas que, certa manhã,
despertaram a desconfi ança de Panard .
J u l gando que fa l ava de ouro , a i mprudente
articu lara a palavra rublo e e l e l evantara-se da.
mesa , como ati ngido por u m c l a rão súbito , pre- ·
c ! pitando-se para o gabi nete n o momento
exacto em que Justi n i e n de lá saía.
Du ra nte m u ito tempo ouvi ram-no saquear
os arquivos , mas n i nguém teve coragem de
mexe r-se, po i s parec ia próxima a tempestade.
Panard acabou por vo ltar s i multaneamente
pá l ido e verm e l ho, parec ido com um cavaco
m a l apagado quando l h e dá a brisa.
- Onde estão os meus Borborig mos ? - d i s
se n u m berro .
I nformada da tragéd i a , a tia Pl ectrude ten
tou desviar para Justi n i e n o c i c lone, mas o
gendarme j u rou pela c ruz e . pelas suas botas
que desconfiavam d e l e i njustamente , não sen
do poss ível a l guém duvidar da sua veracidade.
Por sua vez Orthodoxie, no cúmulo do susto ,
c u l pou obstinadamente os seus i rmãos Atha
nase, H é l iodore e Démétri u s , que do assu nto
não sabiam patavina, tendo sido muito fác i l
o l úcido patriarca ti rar a l i mpo a s u a i nocên
cia.
Como o caso era g rave , o castigo surgia
proporcional ao del ito . Fo i preciso restitui r
o s preciosos a l farráb ios , fazê-los segu i r a
estrada dos antecessores , e o três vezes
odioso tio é que se aproveitou deles quase
em exc l u s ivo, embrenhando-se com tal força
naquela l iteratura que só na hora das refei ções
·
saía do antro .
Orthodoxie teve uma dor lanci nante mas
consegu i u conformar-se. Chegou mesmo a
com preender que era aquele o j u ízo ú ltimo de
todos os papéis h u manos, era vu lgar ler-se
daquele modo · nas famíl i as em que a razão
predo m i na e as tangíveis fel icidades são mais
1 28
esti mávei s do que as e l ucubrações decepcio
nantes de a l guns sonhadores . . .
Mas , o que estou e u a d izer? Não será ver
dade que Orthodoxie descobriu a verdade pro
funda do axioma que uma das nossas poetisas
formu lou e passou a ser, para e l a , um pri ncíp i o
d e luz?
Que antes de falarmos devemos dar à língua
1ete voltas na boca . . . do vizinho?
1 29
JOCASTA NA M Ã . VIDA
Senhor,
Quando receber esta carta já eu devo ir a
caminho de Africa, onde vou tentar que me
matem de maneira honrosa . E se isto tiver
o nome de . suicídio, julgo ass i m mesmo que
será aceitáve l , até para um cató l ico como ·· o
senhor.
� bem verdade que estou farto de viver;
absol uta e i rremed iavel mente cansado daquilo
a que sabujos e i mbecis chamam a vida.
Dê-me a honra de acred itar, senhor, que
tenho os negócios em ordem . Não devo di
nhe i ro a n i nguém, não haverá credor que m e
chore. E os poucos rendimentos que uti l izei
de modo pouco nobre, depois de mim i rão
parar a mãos puras .
Não tenho famí l i a ; por outro lado, o grupo
dos meus amigos ou conhecidos mal chega a
va ler u m pensamento . Se exceptuarmos ' um
cão bem hum i lde; n inguém dará pela mi nha
fa lta quando eu desaparecer . .
Mas ante s de desaparecer resolvi confiar
-lhe um ·segredo de ignomínia e tristeza pavo
rosas cuja · d ivu l gação acredito que · possa,
ta lvez , aproveitar a alguns.
1 '3 1
Desde já escl areço que tem toda a l i berdade
de pub l i car esta confidência anónima a menos
que, em consciência, j u l gue . mais prático des
truí- l a .
U m a vez escrita e posta no correio, ser-me-á
tão a l heia como qualquer d rama desconhec i do
que d u rma nos l i mbos da i magi nação de u m
romancista . Além d i sso já tomei med idas su
ficientemente meditadas para que alguém
possa i dentificar-me .
Proceda, poi s , como entender. E quanto a o
poema, é ass i m :
1 .3 :.1
Dois anos a l i fi q uei privado de cultura, �o
cui dado i n d i ferente de uma camponesa resse
quida que me a l i mentava o mais sovinamente
possíve l e deixava andar, todo o d i a , na va
diagem .
E a m i nha querida mamã, que estava entre
os mortos ! .. .
nha mãe.
. Al iás, l e mbrança cheia de d e l ícias, l u m i nosa
e tranqu ilizante ! . Tendo-a perdido tão cedo , ei.J
não conseguia reconstitu i r-lhe os traços mas
imaginava-a encantadora ao máxi mo, i mortal
n a , doçura dos afagos .
. 1 34
Da ú ltima vez que a vi , fi cou-me o ar muito
triste e m e i go dessa mãe querida, tão meigo,
tão profundamente triste que só de pensar
nele me s i nto esvaído de compaixão . . .
1 35
ordem de u m amanuense-chefe que devi a i n i- ·
mundo.
Mostrando-se bom rapaz , cada vez m a i s , . a
pouco e pouco se transformou no meu i n i c i a
dor de l i berti nagens , d i gnou-se apanhar bebe
dei ras .c omigo e deu-me a conhecer locais
: bel íssi mos .
' 1 36
Atamanquemos , porém , o episódio fi na l .
U m a noite , sabendo mu ito bem o que fazia,
o reles daquele homem deu-me o endereço
- não duvido que o tivesse guardado para
o momento oportuno - de uma mulher encan
tadora , apesar de madura, muito capaz de me
I nundar com todas as del ícias.
E duas horas passadas já eu estava na
cama com a mi nha mãe, que al iás só me
reconheceu no dia seguinte.
Aceite , etc .
1 37
LIVRO 8
I1\\1 \1\1 1 \\\l \1 \1\1 1 \\1\1 \\\I I\\1 1 1\\1 \1 \\\1 1 \\1 \\1 1 1\\1
!11 9 7897 2330 2363 11