Capitulo 2

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Curso de Bíblia

Por José Haical Haddad

Capítulo 2

GÊNESIS
A Aliança
1. A PROMESSA

Aquela disposição de Deus em “plantar um jardim e nele colocar o Homem


que criara” (Gn 2,8) não sofrera solução de continuidade e persiste ativo,
apesar das conseqüências do pecado se manifestarem por toda a Criação.
Mas, Deus é inexorável em seus desígnios, os quais, inicialmente, passam
a tomar forma e vão se corporificar a partir de uma promessa que faz então
a outro justo, Abrão, descendente de Sem (Gn 11,10-32), da linhagem de
Set (Gn 5,3.6.30; 6,9-10).

Josué dirá, quando da conquista da Terra Prometida, que anteriormente


“Abraão servira a ou-tros deuses...” (Js 24,2). Hoje, POVO tem o sentido
peculiar de um agrupamento em uma determinada área, de pessoas que
possuem a mesma cultura, a mesma história, a mesma organização,
obedecem as mesmas leis e seguem costumes semelhantes. Antigamente,
nos tempos bíblicos, não! Um povo se identificava por seu deus ou deuses.
Acreditava-se em vários deuses e cada um ou mais deles tinha um
agrupamento humano que o servia e era por ele ou eles protegido. Assim,
cada clã tinha o seu deus ou deuses e o desvio de sua adoração e serviço
significava o afastamento do "convertido", tal como as palavras acima
indicam ter acontecido com Abrão. Havia sempre uma idéia subjacente de
soberano ditando normas para seus súditos ou vassalos. Isto pode ser
confirmado em outros trechos:

"Pois todos os povos andam, cada um em nome do seu


deus; mas nós andaremos para todo o sempre em o nome
de Yahweh nosso Deus" (Mq 4,5)

"Vinde, ó casa de Jacó, e andemos na luz de Yahweh. Mas


tu rejeitaste o teu povo, a casa de Jacó; porque desde
tempos antigos está cheio de adivinhos, como os filisteus,
e fazem alian-ças com os filhos dos estrangeiros" (Is 2,5-6).
É de se concluir que houve então uma conversão de Abrão, passando a
adorar e a servir a Iahweh, pelo que não pôde mais permanecer no mesmo
clã:

“Iahweh disse a Abrão: ‘Deixa teu país, tua parentela e a


casa de teu pai, e vai para o país que te mostrarei. Eu farei
de ti um grande povo, ...” (Gn 12,1-2).

E, em se convertendo, recebe de Deus uma Promessa:

“Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei,


engrandecerei teu nome; sê tu uma bênção! Abençoarei os
que te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem.
Por ti serão benditos todos os clãs da terra” (Gn 12,2-3).

Deus separa Abrão do meio de seu povo, para prepará-lo e conduzi-lo a


uma familiaridade e intimidade de vidas e a partir dele formar um povo, o
Povo de Iahweh - Deus. Apesar de ser grande privilégio ouvir tais palavras,
o obedecê-las foi-lhe sobremaneira penoso, heróico e incomum, verda-
deira provação. Exigiu na verdade enorme esforço e abnegação, que até
mesmo desguarnece cultural-mente Abrão e a sua família. Afastando-se de
seus iguais, de sua família, de seus parentes, de seus amigos e de sua
estabilidade econômica e tribal, fica humanamente desprotegido e expõe-se
à toda a sorte de dificuldades, comprometendo até mesmo a própria
sobrevivência. Naquele tempo afastar-se desses condicionamentos
culturais era ficar sujeito até mesmo à morte, pelo abandono entre
estranhos. Era a insegurança total! Mas, o seu papel na História da
Salvação se destinava, a partir de um especial chamamento, a uma
especial eleição. Abandona as divindades pagãs e a idolatria, converte-se a
Iahweh, que o toma para dele formar um Povo, o Povo de Iahweh. Não há
eleição ou vocação sem motivo, apenas por diletantismo ou sem uma
missão específica. Caberia ao Povo advindo de Abrão reconduzir o Homem
para a vida no Paraíso Perdido, ao Jardim de Deus, a ser significada na
Terra Prometida, agora a Abrão (Gn 12,7.14-17), futuramente ao Povo de
Deus (Ex 3,8), para aquela vida em comunhão e intimidade perdidas com a
Queda Original, tal como Jesus revelar-nos-á:

"...hoje estarás comigo no PARAÍSO" (Lc 23,43).

Humanamente falando, não é outro o Plano de Deus para a libertação do


Homem das desastro-sas conseqüências do seu afastamento da sua
original participação na vida divina. É um ato gratuito e fiel de Deus, fruto de
Sua Misericórdia e Justiça, uma coerência dinâmica que Lhe é imanente,
sem nenhum mérito do Homem. A vocação, a eleição e a missão são
gratuitas, às quais Deus somente su-bordina a Fé, condição de uma
entrega incondicional e obediente, resposta natural do Homem, intuiti-va
mesmo, em direção ao que Deus lhe oferece:

"Pela FÉ Abraão, sendo chamado, obedeceu, saindo para


um lugar que havia de receber por herança; e saiu, sem
saber para onde ia. Pela FÉ peregrinou na terra da
promessa, como em terra alheia, habitando em tendas..."
(Hb 11,8-9)

"Como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí,


perante aquele no qual creu, a saber, Deus, que vivifica os
mortos, e chama as coisas que não são, como se já fossem.
O qual, em esperança, creu contra a esperança, para que
se tornasse pai de muitas nações, conforme o que lhe fora
dito: Assim será a tua descendência; e sem se enfraquecer
na fé, considerou o seu pró-prio corpo já amortecido, pois
tinha quase cem anos, e o amortecimento do ventre de
Sara; contudo, à vista da promessa de Deus, não vacilou
por incredulidade, antes foi fortalecido na fé, dando glória
a Deus, e estando certíssimo de que o que Deus tinha
prometido, também era poderoso para o fazer. Pelo que
também isso lhe foi imputado como justiça" (Rm 4,17-20).

Para Abrão aquela promessa de “nele serem abençoadas todas as nações


da terra” (Gn 12,3), trazia em germe a existência de descendentes seus
com a estéril Sarai (Gn 11,30). Quando se apre-sentou o Protoevangelho foi
demonstrada a posição da mulher na História da Salvação e a esterilidade
habitual de todas as que lhe são vinculadas. (veja Capítulo I, n.º 8). Deixa-
se então conduzir por Deus, abandonando tudo e até mesmo a sua tribo,
familiares e parentes, para fazer-Lhe a vontade. Foi essa fé, com a atitude
que lhe adveio, que lhe valeu, também a qualidade de “justo”; e, o deslocar-
se de seu meio, entregar-se ao Plano de Deus, condicionou-o a ser “a
fonte” do Povo de Deus. Deu um povo para Deus, um agrupamento
humano em torno da Vontade dEle, subordinando-se apenas e tão so-
mente a Seus desígnios, um povo que vivesse em sua familiaridade e lhe
divulgasse a crença e a entre-ga por um testemunho vivo:

“...cumular-te-ei de bênçãos e farei a tua posteridade


numerosíssima como as estrelas do céu, e como a areia da
praia do mar..., e na tua descendência dir-se-ão benditas
todas as nações...” (Gn 22,17-18).

Abandonando tudo, toma a sua mulher, seu sobrinho Ló, com tudo o que
possuía, e foi para a terra de Canaã, terra que era destinada "à tua
descendência":
"Partiu, pois Abrão, como o Senhor lhe ordenara, e Ló foi
com ele. Tinha Abrão se-tenta e cinco anos quando saiu de
Harã. Abrão levou consigo a Sarai, sua mulher, e a Ló, filho
de seu irmão, e todos os bens que haviam adquirido, e as
pessoas que lhes acresceram em Harã; e foram à terra de
Canaã. Passou Abrão pela terra até o lugar de Siquém, até
o carvalho de Moré. Nesse tempo estavam os cananeus na
terra. Apareceu, porém, o Senhor a Abrão, e disse: À tua
descendência darei esta terra. Abrão, pois, edificou ali um
altar ao Senhor, que lhe aparecera. Então passou dali para
o monte ao oriente de Betel, e armou a sua tenda, ficando-
lhe Betel ao ocidente, e Hai ao oriente; também ali
edificou um altar ao Senhor, e invocou o nome do Senhor"
(Gn 12,4-8).

Os livros da Sagrada Escritura não foram escritos especialmente para nós,


mas para os Israelitas do tempo e resumidamente, os quais conheciam os
fatos e acontecimentos com os detalhes culturais da época, e se
destinavam à finalidades as mais das vezes litúrgicas. Eram apenas
auxiliares à memória ou recordação, dispensando-se os pormenores já
conhecidos. Este trecho é um exemplo característico disso: Abrão ao
percorrer a área que Deus lhe prometera, procura os "lugares altos", sob
uma árvore, um carvalho, onde os antigos cultuavam os seus deuses,
sacrificavam e se doutrinavam, para ali erguer um altar e invocar o Senhor,
e satisfazer as particularidades referentes a um sacrifício, desde então o
centro do culto. Abrão erradica os cultos pagãos ao "edificar um altar ao
Senhor, e invocando o nome do Senhor", continuando assim a "invocar o
Senhor" como se iniciou com Enós, o filho de Set (Gn 4,26).

2. ABRAÃO NO MUNDO DE ENTÃO

Prosseguindo a narrativa registra-se um episódio que mostra as condições


culturais do tempo em que Abrão começa a sua "peregrinação". Mostra-se
outra conseqüência do pecado: "era grande a fome na terra" (Gn 12,10), e
Abrão desce ao Egito, o celeiro do mundo de então, em busca de
sobrevivência:

"Perto de entrar no Egito, disse a Sarai, sua mulher: “Eu


sei que és bonita, vendo-te, os egípcios dirão ‘esta é a
mulher dele’ e matar-me-ão, conservando-te com vida.
Dize, te peço, que és minha irmã, para que me tratem bem
por tua causa e graças a ti minha vida seja salva”. Quando
Abrão entrou no Egito, os egípcios viram que sua mulher
era ver-dadeiramente muito bonita. Ao vê-la, os oficiais do
Faraó a elogiaram muito diante dele pelo que ela foi levada
para o palácio do Faraó. Quanto a Abrão, foi muito bem
tratado por causa dela, ganhando ovelhas, bois e
jumentos, escravos e escravas, mulas e came-los" (Gn 12,11-
16).

Essa atitude de Abrão assusta por demais, principalmente o cristão que não
pode concordar com essa entrega da esposa para ser levada ao harém do
faraó. Aqui também se impõe a necessidade de se deslocar mentalmente
ao tempo do acontecido e analisá-lo como então, não como hoje. 0ra,
Abrão estava consciente de sua missão e detentor de uma promessa de
Deus, a que tinha de corresponder eficazmente, ao que se aliam várias
outras situações peculiares. Uma delas é a da luta pela so-brevivência num
país hostil e de cultura diferente, acontecendo exatamente o que Abrão
havia previsto e temido, pelo que teve sua vida não somente poupada mas
enriqueceu-se "por causa dela, ganhando ovelhas, bois e jumentos,
escravos e escravas, mulas e camelos" (Gn 12,16). 0utra delas é a
inexistên-cia do mesmo conceito moral uniforme e organizado que temos
hoje, além de idêntica e adequada hie-rarquia de valores, mas normas de
conduta e comportamento as mais das vezes isoladas e rudimenta-res,
instintivas mesmo, ditadas pela sobrevivência. 0 que nos impõe é não o
condenar pelas nossas leis morais, já que se manifestava uma das
conseqüências do pecado original, sempre em conflito com o "justo",
tateando e debatendo-se, num mundo confuso e desordenado. Conclui-se
que houve uma in-tervenção de Deus em defesa da integridade ameaçada
de Sarai, protegendo-a, porque "o Senhor feriu o faraó e sua corte com
grandes flagelos por causa de Sarai, esposa de Abrão" (Gn 12,17 / Gn
20,4.14.16).

Este fato vai se repetir igualmente em Gerar, com Abimelec (Gn 20), bem
como a intervenção de Deus, salvaguardando de qualquer violação a
integridade de Sarai (Gn 12,17 / 20,3.4.14.16), e em defesa do casal,
protegendo e tutelando seus eleitos, uma vez que Sarai era "meia-irmã"
dele, filha do mesmo pai se bem que de mãe diferente (Gn 20,12-13). O
que se buscava era livrá-los da morte em vista da missão a que os elegera,
pelo que, tal como no Jardim do Éden, a proteção de Deus, que "fez para
eles túnicas de peles e os vestiu" (Gn 3,21), se repete. 0s desígnios de
Deus são irreversíveis, e para conduzir o Homem ao Paraíso, vai formar um
povo a partir de Abrão, que sai do Egito rico (Gn 13,2), retornando à Terra
de Canaã, "ao lugar onde anteriormente erigira um altar, e ali invocou o Se-
nhor" (Gn 13,4). De novo o sacrifício como centro do culto a Deus e da vida
do Patriarca. Da mesma maneira que ocorreu com Abrão, o povo dele
advindo também irá, pelo mesmo motivo da fome, para o Egito e de lá
também será expulso rico, pelo faraó (Gn 15,13 / Ex 12,36.51).

Surge sério problema entre os pastores de Abrão e os de Ló (Gn 13,5-12),


tendo em vista difi-culdades com o pastoreio em virtude da exiguidade das
pastagens, insuficientes para a movimentação de ambos os rebanhos.
Abrão não se deixa perturbar, e em nome da paz deixa ao sobrinho a
faculdade da escolha do local que melhor lhe servisse. Aparece de novo o
"justo" a se debater num mundo que lhe é hostil, atingindo até mesmo a sua
vida familiar, por circunstâncias advindas do desequilíbrio rei-nante na
natureza em conseqüência do pecado, bem como da agressividade até
mesmo de seus pasto-res com os de membro de sua própria família. Não é
outro o motivo por que o narrador inclui aqui esse episódio, em virtude do
que Abrão permanece na Terra de Canaã que lhe foi prometida, enquanto
Ló vai morar numa "cidade", como já se viu, desde Caim, vista como lugar
de perdição:

"Abrão permaneceu no país de Canaã, enquanto Ló se


estabeleceu nas cidades do vale e armava suas tendas até
Sodoma. Ora, os habitantes de Sodoma eram muito
perversos e pecavam gravemente contra o Senhor" (Gn
13,12-13).

Abrão é novamente premiado por sua fé, bem evidenciada pelo modo
pacífico de contornar e solucionar a divergência, sem perder ao menos de
leve o equilíbrio, mesmo sofrendo a injustiça do egoísmo de Ló, escolhendo
a melhor porção (Gn 13,10-12), ficando-lhe a da Promessa, pelo que Deus
a ratifica:

"O Senhor disse a Abrão, depois que Ló se separou dele:


“Levanta os olhos e, do lugar onde estás, contempla o
norte e o sul, o oriente e o ocidente. Toda essa terra que
vês, darei a ti e à tua descendência para sempre. Tornarei
tua descendência como o pó da terra. Se alguém pudesse
contar o pó da terra, contaria também tua descendência.
Levanta-te e percorre este país de ponta a ponta porque
será a ti que o darei”. Abrão levantou as tendas e foi morar
junto ao carvalho de Mambré, perto de Hebron, onde
construiu um altar para o Senhor" (Gn 13,14-18).

"...e à "tua descendência" para sempre" - São Paulo revela a existência


neste trecho de um anúncio de Cristo:

"Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à descendência


dele. Não diz: “e a teus descendentes”, como se fossem
muitos, mas fala de um só: e a tua descendência que é
Cristo" (Gl 3,16).

Já se percebe que na realidade Cristo é a razão primeira e única das


Escrituras Sagradas, e que o Antigo e o Novo Testamentos na verdade não
passam de um só, o anunciado naquele é cumprido neste, além da clara
presença de dificuldades inúmeras advindas dos desencontros causados
pelas con-seqüências do pecado em toda a criação que irá sanar:
"Porque a criação aguarda com ardente expectativa a
revelação dos filhos de Deus. Porquanto a criação ficou
sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa da-
quele que a sujeitou, na esperança de que também a
própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção,
para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque
sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e está
com dores de parto até agora" (Rm 8,19-22).

Abrão se depara com outra situação de fato, uma guerra entre cinco
cidades em virtude do que Ló com as suas posses é levado como parte do
saqueado de Sodoma e Gomorra pelos vencedores (Gn 14,1-12). Avisado,
Abrão vai em socorro do sobrinho, com um grupo de apenas trezentos e
dezoito homens, liberta-o e a todos os prisioneiros bem como recupera
todos os bens saqueados. Aparece aqui o justo em luta com o mundo que
lhe é totalmente avesso, onde não se porta como um covarde nem foge à
luta. Numa espécie de guerrilha ("à noite") vence e liberta tudo e todos,
além do seu sobrinho com seus pertences (Gn 14,15-16). O rei de Sodoma
lhe dá todos os bens e reclama as pessoas liber-tadas. Aparece então uma
figura misteriosa por demais:

"Ora, Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho;


pois era sacerdote do Deus Al-tíssimo; e abençoou a Abrão,
dizendo: bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, o Cria-dor
dos céus e da terra! E bendito seja o Deus Altíssimo, que
entregou os teus inimigos nas tuas mãos! E Abrão deu-lhe
o dízimo de tudo" (Gn 14,18-20).

Porém, o fato de Abrão receber dele uma bênção e pão e vinho, como
oferendas de sacrifício, e entregue o dízimo dos despojos advindos pela
vitória, evidenciam a identidade de uma fé comum:

"Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha


direita, até que eu ponha os teus inimigos por escabelo dos
teus pés. (...) Jurou o Senhor, e não se arrependerá: Tu és
sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec.
(Sl 110,1-4).

"Porque este Melquisedeque, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo,


que saiu ao encontro de Abraão quando este regressava da matança dos
reis, e o abençoou, a quem também Abraão separou o dízimo de tudo
sendo primeiramente, por interpretação do seu nome, rei de justiça, depois
também rei de Salém, que é rei de paz; sem pai, sem mãe, sem
genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida, mas feito
semelhan-te ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre.
Considerai, pois, quão grande era este, a quem até o patriarca Abraão deu
o dízimo dentre os melhores des-pojos (...) Ora, sem contradição alguma, o
menor é abençoado pelo maior". (Hb 7,1-7).

Vê-se que o Antigo Testamento transborda Cristo desde as primeiras


narrativas, prefigurando-O em quase todos os personagens que aparecem.
Assim Melquisedec "é feito semelhante ao Filho de Deus", e tal como Ele
"permanece sacerdote para sempre". É que a família ou tribo a que Jesus
per-tencia, Judá, segundo a sua genealogia, não fora destinada ao
exercício do sacerdócio, mas a tribo de Levi (Ex 29 / Nm 3,5+ e 8,14+). Isso
é o que diz a Epístola aos Hebreus:

"E os que dentre os filhos de Levi recebem o sacerdócio


têm ordem, segundo a lei, de tomar os dízimos do povo,
isto é, de seus irmãos, ainda que estes também tenham
saído dos lombos de Abraão; mas aquele cuja genealogia
não é contada entre eles, tomou dízimos de Abraão, e
abençoou ao que tinha as promessas" (Hb 7,5-6).

"e abençoou a Abrão, dizendo: bendito seja Abrão pelo


Deus Altíssimo, o Criador dos céus e da terra! E bendito
seja o Deus Altíssimo, que entregou os teus inimigos nas
tuas mãos! E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo" (Gn 14,19-20).

Prosseguindo a narrativa vê-se Abrão novamente se colocando em


contradição com o mundo, rejeitando os despojos a que tinha direito e de
boa vontade oferecidos, num claro reconhecimento de que os merecera.

"Então o rei de Sodoma disse a Abrão: Dá-me a mim as


pessoas; e os bens toma-os para ti. Abrão, porém,
respondeu ao rei de Sodoma: Levanto minha mão ao
Senhor, o Deus Altíssimo, o Criador dos céus e da terra,
jurando que não tomarei coisa alguma de tudo o que é teu,
nem um fio, nem uma correia de sapato, para que não
digas: Eu enriqueci a Abrão; salvo tão somente o que os
mancebos comeram, e a parte que toca aos homens Aner,
Escol e Manre, que foram comigo; que estes tomem a sua
parte" (Gn 14,21-24).

Não há dúvida alguma de que os fatos acontecidos geraram séria


dificuldade em Abrão, que acontecem sempre com aqueles eleitos de Deus,
colocados que são em posição não muito sintonizada com o mundo que os
cerca, pelo que o próprio Deus o busca fortalecer:

"Depois destes acontecimentos veio a palavra do Senhor a


Abrão numa visão, dizendo: Não temas, Abrão; eu sou o
teu escudo, o teu galardão será grandíssimo. Então disse
Abrão: Ó Senhor Deus, que me darás, visto que morro sem
filhos, e o herdeiro de mi-nha casa é o damasceno Eliezer?
Disse mais Abrão: A mim não me tens dado filhos; eis que
um nascido na minha casa será o meu herdeiro" (Gn 15,1-3).

Abrão está livre e desapegado dos bens materiais, é o que demonstram a


sua atitude com refe-rência às pastagens reclamadas por Ló e aqui aos
despojos a que tinha direito, mas está consciente de sua eleição e a quer
ver realizada. Mescla ainda à Obra de Deus suas providências humanas e
não se curva a nada, buscando apenas a vontade de Deus. Nem mesmo se
deixa dominar pela cobiça e ambi-ção, já se manifestando livre de uma das
primeiras conseqüências do rompimento do Homem com Deus, fruto do
primeiro lance do orgulho humano. Já se libertara por primeiro do apego
aos bens como um sentimento de segurança, deixando-o repousar apenas
em Deus. Demonstra a sua condição de livre, libertando os seus
semelhantes e não se apegando aos despojos, nem humanos nem
materiais. Só quem é livre liberta. Só liberta da cobiça e ambição quem é
livre da cobiça e ambição. Só liberta do pecado quem é livre do pecado. Ai
Abrão é "pré figura" de Cristo, eis que Cristo liberta do pecado por ser livre
do pecado.

A própria Bíblia quase sempre fornece os subsídios para se compreender


alguma obscuridade que apareça, tal como aqui a causa da reclamação de
Abrão. Num mundo que lhe era terrivelmente hostil, lutando com todas as
suas energias e usando de toda a paciência e controle possíveis, ainda não
vira se concretizar a Promessa que Deus lhe havia feito de que "toda essa
terra que vês, darei a ti e à tua descendência para sempre" (Gn 13,14-18).
Abrão não fora assaltado por aquela dúvida que contradiz a fé. Nunca! Foi
uma espécie de indecisão que lhe imprimiu a natureza, confusa ao avaliar
apenas as condições humanas, enfraquecidas pelas conseqüências do
pecado original, em confronto e em avaliação real em face da entrega
incondicional nas mãos de Deus que operava.

Tendo Deus lhe prometido dar e à descendência dele a terra em que


peregrinava, viu que nessa promessa estava embutida a geração de filhos
dele com sua mulher Sarai, e até aquele momento não vieram. É claro que
sentiu dificuldades em compreender a situação e assim "temeu", vindo
Deus em seu socorro, após ouvir que "morro sem filhos", e a quem deixar a
herança de Deus:

"Ao que lhe veio a palavra do Senhor, dizendo: Este não


será o teu herdeiro; mas aquele que sair das tuas
entranhas, esse será o teu herdeiro. Então o levou para
fora, e disse: Olha agora para o e conta as estrelas, se as
podes contar; e acrescentou-lhe: Assim será a tua
descendência" (Gn 15,4-5).
Era a recompensa da renúncia, daquela renúncia de si mesmo que
convulsionou e impulsionou a História da Salvação, dessa História que foi e
está sendo escrita exclusivamente por Deus, que pela Aliança refaz o
mesmo apelo do Éden ao coração do Homem. Ao chamado de Deus, Abrão
responde, após tão convulsionada esperança, mostrando o sinal indelével
que marcará a Obra da Redenção, a FÉ:

"Abrão creu em Deus, e isto foi-lhe creditado como justiça"


(Gn 15,6).

O sentido aqui é o que se lê: pela fé que teve a sua conta com Deus foi
quitada. Assim, a Fé de Abrão que lhe valeu a "justificação" e o tornar-se "o
Pai de todos os crentes" (Rm 4,11), serve de mo-delo perene para todos os
fiéis de todos os tempos

"Pela fé Abraão, sendo chamado, obedeceu, saindo para


um lugar que havia de receber por herança; e saiu, sem
saber para onde ia. Pela fé peregrinou na terra da
promessa, como em terra alheia, habitando em tendas com
Isaac e Jacó, herdeiros com ele da mesma promessa;
porque esperava a cidade que tem os fundamentos, da
qual o arqui-teto e edificador é Deus" (Hb 11,8-10).

Também São Tiago na sua Epístola vai a ela se referir, para vinculá-la à
necessidade de expres-são em obras para não ser uma "fé morta":

"Vês que a fé cooperou com as suas obras, e que pelas


obras a fé foi aperfeiçoada; e se cumpriu a escritura que
diz: E creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como
justiça, e foi chamado amigo de Deus" (Tg 2,22-23).

3. A ALIANÇA ESBOÇADA

Abrão prossegue apresentando as suas dificuldades a Deus com toda a


franqueza e liberdade que caracterizam uma amizade profunda e Deus por
sua vez o vai robustecendo e amadurecendo na fé:

"Disse-lhe mais: Eu sou o Senhor, que te tirei de Ur dos


caldeus, para te dar esta terra em herança. Ao que lhe
perguntou Abrão: Ó Senhor Deus, como saberei que hei de
herdá-la? Respondeu-lhe: Toma-me uma novilha de três
anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos,
uma rola e um pombinho. Ele, pois, lhe trouxe todos estes
animais, partiu-os pelo meio, e pôs cada parte deles em
frente da outra; mas as aves não partiu. E as aves de
rapina desciam sobre os cadáveres; Abrão, porém, as
enxotava. Ora, ao pôr do sol, caiu um profundo sono sobre
Abrão; e eis que lhe sobrevieram grande pavor e densas
trevas. (...) Quando o sol já estava posto, e era escuro, eis
um fogo fumegante e uma tocha de fogo, que passaram
por entre aquelas metades. Naquele mesmo dia fez o
Senhor uma Aliança com Abrão, dizendo: Á tua
descendência tenho dado esta terra, desde o rio do Egito
até o grande rio Eufrates; e o queneu, o quenizeu, o
cadmoneu, o heteu, o perizeu, os refains, o amorreu, o
cananeu, o girgaseu e o jebu-seu" (Gn 15,7-12.17-21).

Para melhor compreensão separamos os versículos 13-16 que anuncia um


fato a que já nos re-ferimos no comentário anterior: a identidade de
acontecimentos com o povo advindo de Abrão no Egito:

"Então disse o Senhor a Abrão: Sabe com certeza que a tua


descendência será peregri-na em terra alheia, e será
reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos
anos; sabe também que eu julgarei a nação a qual ela tem
de servir; e depois sairá com muitos bens. Tu, porém, irás
em paz para teus pais; em boa velhice serás sepultado. Na
quarta geração, porém, voltarão para cá; porque a medida
da iniqüidade dos amorreus não está ainda cheia" (Gn 15, 13-
16).

Esse episódio de repartir animais em duas partes, nos é por demais


estranho e incompreensível. Por isso dissemos acima e na Introdução que
a Bíblia não foi escrita especificamente para nós, mas para pessoas que
tinham familiaridade cultural com o acontecimento e conheciam
detalhadamente to-dos os fatos. Vamos procurar esclarecer a situação
partindo da própria Bíblia, segundo a qual, referin-do-se ao mesmo ritual:

"Entregarei os homens que transgrediram a minha Aliança,


e não cumpriram as palavras da Aliança que fizeram diante
de mim com o bezerro que dividiram em duas partes,
passando pelo meio das duas porções - os príncipes de
Judá, os príncipes de Jerusa-lém, os eunucos, os
sacerdotes, e todo o povo da terra, os mesmos que
passaram pelo meio das porções do bezerro, entregá-los-
ei, digo, na mão de seus inimigos, e na mão dos que
procuram a sua morte. Os cadáveres deles servirão de
pasto para as aves do céu e para os animais da terra" (Jr
34,18-20).

Verifica-se pelas palavras acima do Profeta Jeremias que se trata de um


juramento a cujo sacri-fício eram entregues os que não o cumprissem,
donde o pavor de Abrão, ouvindo uma referência futu-ra de Deus ao povo a
que dará origem, pelo que teme supondo referir-se a ele, apesar de
somente se evidenciar a presença de Deus significado no fogo a cruzar os
animais oferecidos. É que naquele ceri-monial Deus realmente incluía "a
sua descendência" (Gl 3,8), Jesus Cristo, que iria sofrer a punição pela
original violação humana. Mesmo assim Abrão é partícipe da Aliança de
Deus cujo início já se concretiza, com uso do fogo já representando a
presença de Deus em várias etapas da História da Sal-vação (Ex 3,2;
13,21; 19,18). Fica-lhe claro pelo juramento a vontade de Deus em dar-lhe
uma des-cendência numerosa como as estrelas do céu, e a quem daria
aquela terra em que peregrinava.
Passam-se dez anos e fica positivado que Sarai era estéril, a quem
naturalmente teria sido nar-rada esperançosamente a promessa, e ambos
encontram então uma maneira de resolvê-lo com um arti-fício, como sói
acontecer quando se pretende atender aos desígnios de Deus com uma
solução huma-na:

"Ora, Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava filhos. Tinha


ela uma serva egípcia, que se chamava Agar. Disse Sarai a
Abrão: Eis que o Senhor me tem impedido de ter filhos;
toma, pois, a minha serva; talvez eu possa ter filhos por
meio dela. E ouviu Abrão a voz de Sarai. Assim Sarai,
mulher de Abrão, tomou a Agar a egípcia, sua serva, e a
deu por mulher a Abrão seu marido, depois de Abrão ter
habitado dez anos na terra de Canaã. E ele conheceu a
Agar, e ela concebeu..." (Gn 16,1-4a).

Pelos costumes de então os filhos assim gerados eram considerados filhos


de Sarai, com o que satisfar-se-ia a promessa de Deus, há dez anos
passados. Após o engravidamento de Agar, vários fatos ocorrem,
característicos da cultura da época, mostrando que apesar do
"concubinato" de Abrão com ela, Sarai não perdera sua condição de
legítima, chegando, conforme exigira de Abrão, a oprimir de tal forma sua
escrava que ela fugiu. No deserto em desespero tem a visão do anjo que
determina o seu retorno e submissão à Sarai, com a promessa de fazer de
seu filho Ismael, como será chamado, um grande povo (Gn 16,4b-16).

4. A ALIANÇA ESTABELECIDA

Para Abrão e Sarai a condição básica para a grande posteridade dele ficara
então satisfeita com o nascimento de Ismael (Gn 16,15-16). Deus então se
manifesta e dá à Aliança uma nova dinâmica, até agora não vista:

"Quando Abrão tinha noventa e nove anos, apareceu-lhe o


Senhor e lhe disse: Eu sou El-Shaddai (=o Deus Todo-
Poderoso); anda em minha presença, e sê perfeito; e fir-
marei a minha Aliança contigo, e sobremaneira te
multiplicarei" (Gn 17,1).

Até então a Aliança era unilateral, sem nada exigir da conduta e


comportamento do Homem a não ser alguma forma de expressão ritual
qual aquela de "não comer o sangue dos animais" da Aliança do Dilúvio (Gn
9,4). Desta vez exige e promete: "anda em minha presença, e sê perfeito; e
firmarei a minha Aliança contigo, e sobremaneira te multiplicarei", e passa a
ser um acordo entre duas vontades conscientes. Busca-se assim recuperar
para o Homem a "imagem e semelhança de Deus" (Gn 1,26), que "deverá
refletir como num espelho" (2Cor 3,18), a "perfeição" divina, que não se
confunde com a "corrupção" advinda do mundo profano. "Andar na
'presença' de Deus", diferentemente de Adão e Eva que tiveram de se
'esconder' por causa da desordem que cometeram, é cumprir consciente e
fielmente a Sua Santa Vontade, não causando motivo, por sua conduta,
para dele se afastar. Ora, isso exige fé e tomada de consciência maiores
que o instinto de sobrevivência num mundo hostil e des-viado do seu
Criador. Estamos diante de uma das manifestações majestosas e solenes
de Iahweh (="teofania") que aqui recebe o nome de El-Shaddai (Ex 6,3 = "O
Todo Poderoso"), tanto que: "...Abrão se prostrou com o rosto em terra..."
(Gn 17,3a). O tempo de treze anos decorrido desde o nascimento de Ismael
faz admitir e supor algum motivo sério necessário à Aliança, apenas
esboçada e no seu nascedouro. Tudo indica que a solução humana de
Abrão e Sarai com a geração de Ismael exi-ge um amadurecimento de
ambos no conhecimento de Deus, eis que demonstraram com seu gesto
não compreender-LHE o desígnio, quanto às características e dimensões
dela:

"...e Deus falou-lhe, dizendo: Quanto a mim, eis que a


minha aliança é contigo, e serás pai de muitas nações; não
mais serás chamado Abrão, mas Abraão será o teu nome;
pois por pai de muitas nações te hei posto; far-te-ei
frutificar sobremaneira, e de ti farei nações, e reis sairão
de ti; estabelecerei a minha aliança contigo e com a tua
descendên-cia depois de ti em suas gerações, como aliança
perpétua, para te ser por Deus a ti e à tua descendência
depois de ti. Dar-te-ei a ti e à tua descendência depois de
ti a ter-ra de tuas peregrinações, toda a terra de Canaã,
em perpétua possessão; e serei o seu Deus" (Gn 17,3b-8).

Quando Abrão "prostra com o rosto em terra" (Gn 17,3) demonstra


eficazmente a sua adesão e fé incondicional em Deus, bem como a
aceitação dos termos da Aliança, agora com a firme e incondi-cional
exigência de obediência, culto e adoração exclusivos, e pelo próprio Deus
traduzido num sinal, o da circuncisão:
"Disse mais Deus a Abraão: Ora, quanto a ti, guardarás a
minha aliança, tu e a tua des-cendência depois de ti, nas
suas gerações. Esta é a minha aliança, que guardareis
entre mim e vós, e a tua descendência depois de ti: todo
varão dentre vós será circuncidado. Circuncidar-vos-eis na
carne do prepúcio; e isto será por sinal de aliança entre
mim e vós" (Gn 17,9-11).

Tão fundamental é essa instituição que o não cumprimento dela determina


que "...o que não se circuncidar na carne do prepúcio, será extirpado do
seu povo; violou a minha aliança" (Gn 17,13b-14). Todos os homens
estavam subordinados à exigência, até mesmo escravos e estrangeiros (Gn
17,12-14). Deus que lhe muda o nome de Abrão para Abraão (= "pai de
uma multidão"), também muda nome de Sarai (= "minha princesa") para
Sara (= "princesa"). Quando Deus dá o nome a alguém, elegendo-o para
uma missão, assume-lhe o domínio, "...chamei-te pelo nome, meu tu és" (Is
43,1c):

"Disse Deus a Abraão: Quanto a Sarai, tua, mulher, não lhe


chamarás mais Sarai, po-rém Sara será o seu nome.
Abençoá-la-ei, e também dela te darei um filho; sim,
abençoá-la-ei, e ela será mãe de nações; reis de povos
sairão dela". "Ao que se prostrou Abraão com o rosto em
terra, e riu-se, e disse no seu coração: A um homem de
cem anos há de nascer um filho? Dará à luz Sara, que tem
noventa anos?" (Gn 17,15-17).

A grande dificuldade de Abraão agora se concretizava, eis que o tempo


passava, urgia e não acontecia, e agora, numa idade avançada por demais,
quando não mais se podia esperar uma gravidez normal de Sara, Deus
vem anunciá-la. Por isso Abraão ri! Não um riso de dúvida, riu crendo,
possuí-do por grande alegria e achando graça pelo contraste com que os
fatos se manifestavam. No máximo só poderia ocorrer aquela indecisão que
lhe teria impresso a natureza confusa ao avaliar apenas ambas as
condições humanas, enfraquecidas pelas conseqüências do pecado original
em confronto com a rea-lidade. Renúncia de si que se acentua, indício de
maturidade religiosa, no marco inicial da História da Salvação, história que
foi e está sendo escrita exclusivamente por Deus, seu único Autor. São
desses momentos em que Deus coloca os seus eleitos face a face com a
realidade de Seus Planos e da Missão a que foram eleitos, provando-os e
amadurecendo-os para tal. Pelos costumes de então Ismael era fi-lho de
Sara, e sentindo-o como que rejeitado Abraão se preocupa, quer se
esclarecer e pede por ele: "depois disse Abraão a Deus: Oxalá que viva
Ismael diante de ti!" (Gn 17,18), como se pedisse que se lembrasse dele
também, que era outro filho seu:
" E Deus lhe respondeu: Na verdade, Sara, tua mulher, te
dará à luz um filho, e lhe chamarás Isaque; com ele
estabelecerei a minha aliança como aliança perpétua para
a sua descendência depois dele. E quanto a Ismael,
também te tenho ouvido; eis que o tenho abençoado, e fá-
lo-ei frutificar, e multiplicá-lo-ei grandemente; doze
príncipes gerará, e dele farei uma grande nação. A minha
aliança, porém, estabelece-rei com Isaque, que Sara te
dará à luz neste tempo determinado, no ano vindouro. Ao
acabar de falar com Abraão, subiu Deus diante dele" (Gn
17,19-22).

Deus insiste em seu desígnio ouvindo o pedido dele pelo filho e


reafirmando a continuidade da Aliança com um filho de Sara, não com o da
escrava. Pelo que Sara também rirá quando ouvir o mesmo anuncio de sua
gravidez (Gn 18,9-15) e quando der à luz e o nome ao filho, significado no
nome Isaac (Gn 21,6), que é derivado da raiz hebraica para a palavra riso.
Assim explicado o riso ai mencionado, verifica-se que não se duvidou de
Deus um instante sequer, tal como São Paulo esclare-ce, evidentemente da
concepção tradicional israelita:

"...a fim de que a promessa seja firme a toda a


descendência, não somente à que é da lei, mas também à
que é da fé que teve Abraão, o qual é pai de todos nós.
Como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí
perante aquele no qual creu, a saber, Deus, que vivifica os
mortos, e chama as coisas que não são, como se já fossem.
O qual, em esperança, creu contra a esperança, para que
se tornasse pai de muitas na-ções, conforme o que lhe fora
dito: Assim será a tua descendência; e sem se enfraque-cer
na fé, considerou o seu próprio corpo já amortecido, pois
tinha quase cem anos, e o amortecimento do ventre de
Sara; contudo, à vista da promessa de Deus, não vacilou
por incredulidade, antes foi fortalecido na fé, dando glória
a Deus, e estan-do certíssimo de que o que Deus tinha
prometido, também era poderoso para o fa-zer" (Rm 4,17-21).

Houvesse alguma dúvida, Abraão e Sara teriam recebido de Deus o mesmo


tratamento dado a Zacarias, o Pai de João Batista, que ficou mudo como
castigo de sua descrença (Lc 1,19-20). Por fim, Abraão imediatamente
parte para o cumprimento da Aliança e circuncida a todos os homens, a
partir de si mesmo e de seu filho Ismael (Gn 17,23-27). Essa instituição
será observada pelos seus descen-dentes de maneira tão severa e séria
que separar-se-á o mundo para eles em "circuncisos" e "incircun-cisos", e
quando do advento do cristianismo será a causa das crises iniciais de
conflito do judaísmo com a nova doutrina de Cristo.
A Aliança com o Homem é sempre um apelo de amor e comunhão de vidas
que parte de Deus, pois que por si só o Homem se tornou totalmente
impotente para fazê-lo, nada podendo conseguir por causa do abismo
erguido entre ambos pelas conseqüências dramáticas ocasionadas pelo
pecado origi-nal. Daí porque somente por ato livre de Deus é que se pode
conseguir seu cumprimento e eficácia, donde ser obra exclusiva dEle.
Amadurecido na fé e por ela justificado Abraão torna-se "Amigo de Deus"
(2Cro 20,7; Jdt 8,22; Is 41,8; Dn 3,35; Tg 2,23), vivendo então em Sua
intimidade e comunhão. Por isso, recebe a visita de três anjos e os
reconhece (Gn 18,1-33), considerados pelos Santos Padres dos primórdios
do cristianismo como "figuras" ou "anúncios" da Santíssima Trindade. É
que, quando a tradução não é "melhorada" pelo tradutor (que infelizmente
imprime à tradução sua opinião), os três são denominados ora em conjunto
(Gn 18,1), ora dois (Gn 18,20-22), ora um deles (Gn 18,23-33) pelo singular
"Meu Senhor", "tratando-os, de qualquer dos modos em que se
apresentem, como a uma só pessoa". São dois os motivos para a visita:
primeiro, ratificando os termos da Aliança contraída, o anúncio da gravidez
de Sara para o ano próximo. É quando chega a vez de Sara rir, tal como já
nos referimos acima, mais de surpresa e contentamento, nunca de dúvida
de fé, apesar do anjo insistir que "não há nada difícil para Deus" (Gn 18,14).
O segundo motivo foi comunicar a destruição de Sodoma e Gomorra, pois
considera-o tão "amigo" que dele não pode esconder "o que estou para
fazer" (Gn 18,17). Mas, tal comunicação tem outra finalidade, mais ligada à
Aliança:

"E disse o Senhor: Ocultarei eu a Abraão o que faço, visto


que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa
nação, e por meio dele serão benditas todas as nações da
terra? Porque eu o tenho escolhido, a fim de que ele
ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, para que
guardem o caminho do Senhor, para praticarem retidão e
justiça; a fim de que o Senhor faça vir sobre Abraão o que
a respeito dele tem fa-lado" (Gn 18,17-19).

É que a Aliança não se confinava a Abraão apenas, mas teria


prosseguimento em todos os seus termos com os seus descendentes por
meio dos quais "virá a ser uma grande e poderosa nação, e serão benditas
todas as nações da terra", desde que "seus filhos e a sua casa depois dele
guardem o cami-nho do Senhor, para praticarem retidão e justiça; a fim de
que o Senhor faça vir sobre Abraão o que a respeito dele tem falado". Por
isso a Aliança é conhecida também por Testamento, por causa da
continuidade do "legado" nas gerações subsequentes. Já se anuncia o
prosseguimento e a consecu-ção da Obra da Redenção do Homem na
descendência de Abraão - Jesus Cristo (Gl 3,16 / Mt 1,1):
"Ora, a Escritura, prevendo que Deus havia de justificar
pela fé os gentios, previamente anunciou a boa nova (= o
"Evangelho") a Abraão, dizendo: Em ti serão abençoadas
todas as nações. De modo que os que são da fé são
abençoados com o crente Abraão" (Gl 3,8-9).

Dada a notícia, afirma Deus que "descerei para ver se as suas obras
chegaram a ser como o clamor que chegou até mim, e, se não, o saberei",
evidenciando pelo "descerei" o sobrenatural do quadro apresentado, tendo
Abraão sido elevado até Ele. E é nesse estado sobrenatural que Abraão vai
demonstrar a sua "elevação" espiritual (Gn 18,22-33), quando aparece que
"quanto mais Amigo de Deus, mais amigo dos homens". É o efeito natural
da caridade, "o Amor de Deus que se "derrama no coração do Homem pela
Graça" (Rm 5,5), o estado da "elevação" de Abraão, "justificado pela sua
fé". Vai regateando com Deus, paulatinamente se esforçando para salvar a
tudo e a todos da punição iminente e justa. Intercede habilidosamente e
com toda a humildade possível representada pelo modo de se expressar
próprio do tempo, cuidadosa e lentamente vai decrescendo o número de
pessoas boas que possivelmente possam existir nas duas cidades até um
mínimo de dez, bem razoável, ficando claro que existisse uma pequena
quantidade de justos nas localidades, Deus as pouparia por causa deles.
Prefigura esse quadro a Redenção que será operada por Jesus Cristo com
a Nova Aliança (Lc 22,20), unindo definitivamente o Homem a Deus na Sua
Igreja, a comunidade de seus discípulos refle-tindo a Graça e a Misericórdia
de Deus no mundo, que "perdoa a todo o lugar em atenção a eles" (Gn
18,26.28.30.31.32), "justificados" pelo Sangue do Cordeiro de Deus. Essa
comunhão de afetos entre Deus e Abraão, entre Deus e um Homem, é o
arquétipo da Caridade Cristã, tornada virtude humana na ação, mas de
fonte impulsionadora divina. Tal com lá, a caridade é a presença de Deus
entre os homens, em amizade e íntima comunhão de vidas, não mais entre
Criador e Criatura, mas entre Pai e Filho, que se difunde por mediação e
eleição dos "justos" a todos os outros, bons e maus. Repete-se sempre a
presença do "justo", do que faz a vontade de Deus, vivendo nos "caminhos
do Senhor, prati-cando a justiça e o direito" (Gn 18,19). Caridade é isso, é
viver a vontade de Deus para o Homem; começa em Deus e explode
radiante de beleza nos homens. O Homem não a cria, é fruto do amor e
misericórdia de Deus, propagando-se entre os homens assim como a fé e a
esperança. A caridade parte de Deus e não se confunde com nenhuma
ação humana, não se exaure na esmola nem em nenhuma assistência
social e supera qualquer atividade por mais humanitária que seja. A
caridade é a expressão da Aliança de Deus com o Homem:

"Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o


ímpio, de modo que o justo seja como o ímpio; esteja isto
longe de ti. Não fará justiça o juiz de toda a terra?" (Gn
18,25)
A confiante e diplomática intervenção de Abraão dá ao contexto a viva e
colorida visão da in-timidade vivencial de ambos. Deus é o único autor do
amor entre os homens, "justos e injustos, bons e maus" (Mt 5,45). Na
prática quando Abraão se referia aos justos, conseguia a salvação "do justo
e do ímpio". Não pediu que afastasse da cidade os justos nem pediu ao
menos por seu sobrinho Ló. Pedin-do que nada destruísse por causa dos
justos intercedeu pelos bons e maus, numa tentativa de salvá-los da
destruição iminente. Sem Deus não há amor fraterno, não há fraternidade,
falta um ponto comum de referência, eis que não há fraternidade sem um
Pai comum.

5. A ALIANÇA E SODOMA E GOMORRA

Jesus nos revela que Sodoma e Gomorra, tal como o Dilúvio, é outra
expressão das conse-qüências do pecado na Criação, e é um anúncio do
quadro revolucionário a ser causado no mundo criado quando da revelação
do Filho do Homem, ao erradicar definitivamente o pecado:

"Como aconteceu nos dias de Noé, assim também será nos


dias do Filho do homem. Comiam, bebiam, casavam e
davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na
arca, e veio o dilúvio e os destruiu a todos. Como também
da mesma forma aconteceu nos dias de Ló: comiam,
bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam;
mas no dia em que Ló saiu de Sodoma choveu do céu fogo
e enxofre, e os destruiu a todos; assim será no dia em que
o Filho do homem se há de manifestar" (Lc 17,26-30).

O Evangelista coloca num mesmo plano o Dilúvio e Sodoma e Gomorra, e


os evidencia como transformações imprevisíveis, tal como acontecerá nos
dias da manifestação gloriosa do Filho do Ho-mem. É o que Jesus quis
alertar. Cabe-nos uma explicação para essa narrativa, tão idêntica às do
Dilú-vio e também da Torre de Babel, principalmente no colóquio franco e
aberto de Deus. Temos de apli-car novamente a mesma regra de nos
locomover abstratamente no tempo para a cultura do narrador. Que houve a
destruição das cidades houve, não há o que discutir. Porém, o importante é
o que signifi-cou para o narrador bíblico e o que corresponde ao
evidenciado pelos fatos. Estamos nos referindo ao "pecado" praticado nas
cidades e que recebeu a alcunha de "sodomia", formada a partir do nome
de Sodoma, para significar o homossexualismo então reinante (Gn 19,5) a
ponto de Ló reclamar a virgin-dade das filhas e ter coragem de oferecê-las
(Gn 19,8), pelo que foi rechaçado e atacado violentamen-te, sentindo-se
ofendidos pela intervenção e conduta moral dele, um "justo", que não se
contaminara com o mesmo pecado (Gn 19,9). Aparece aqui outra das
conseqüências do pecado original, agora numa manifestação da desordem
carnal e a da imoralidade generalizada na concupiscência advinda pela
inversão surgida do natural e normal.

Por primeiro, chama a atenção o "descerei" (Gn 18,21) tal como no relato
da Torre de Babel (Gn 11,6.7), mostrando a mesma concepção cultural de
um deus em figura de homem (visão "antro-pomórfica" de Deus), habitando
no "alto". Não pode ser diferente aqui a intenção do narrador, que-rendo
também evidenciar a continuidade e a coexistência das conseqüências do
pecado apesar da Ali-ança recém - contraída, vinculando ambos à
lembrança dos descendentes de Abraão para não perturba-rem mais ainda
pela sua conduta o cumprimento dos desígnios de Deus com a Aliança, que
vai recon-duzir o Homem à comunhão, intimidade e familiaridade perdidas:

"E disse o Senhor: Ocultarei eu a Abraão o que vou fazer,


visto que Abraão certamente virá a ser um grande e
poderoso povo, e por meio dele serão abençoadas todas as
na-ções da terra? Porque eu o escolhi, para que ele ordene
a seus filhos e a sua casa depois dele que guardem o
caminho do Senhor praticando a retidão e a justiça; para
que o Se-nhor cumpra em Abraão o que lhe foi predito" (Gn
18,17-19).

Como Ló fora morar nas cidades pecadoras seria com elas vítima da
catástrofe. Mas, era ele também um "justo" e o narrador mostra como Deus
vem em socorro de seus fiéis e os protege, res-pondendo à eficaz
intervenção de Abraão em favor dos homens, e só as destrói após libertá-lo:

"Porque se Deus não poupou (...) reduzindo a cinza as


cidades de Sodoma e Gomorra,
condenou-as à destruição, havendo-as posto para exemplo
aos que vivessem impia-mente; e se livrou ao justo Ló,
atribulado pela vida dissoluta daqueles perversos, por-que
este justo, habitando entre eles, por ver e ouvir, afligia
todos os dias a sua alma justa com as injustas obras deles;
também sabe o Senhor livrar da tentação os piedosos, e
reservar para o dia do juízo os injustos, que já estão sendo
castigados; especialmente aqueles que, seguindo a carne,
andam em imundas concupiscências, e desprezam toda
autoridade" (2Pe 2,4.6-10).

Pedro retoma a afirmação do narrador que já exprimia neste quadro


também e a seu modo a Obra da Redenção, principalmente quando insiste
com Ló para salvá-lo e a sua família (Gn 19,12-29), em atenção a Abraão:

"Ora, aconteceu que, destruindo Deus as cidades da


planície, lembrou-se de Abraão, e tirou Ló do meio da
destruição, enquanto aniquilava as cidades em que Ló
habitara" (Gn 19,29). / Apressa-te, escapa-te para lá;
porque nada poderei fazer enquanto não ti-veres ali
chegado..." (Gn 19,22).

Da destruição total somente restou Ló e duas filhas numa caverna, [morta


a mulher que foi pe-trificada em estátua de sal (Gn 19,16.26.30)], onde
praticam um "incesto" (Gn 19,36-37), com a "em-briaguez" do pai,
provocada por elas, supondo a inexistência da outros homens. Não deixa
de ser ou-tra cena isenta de críticas mesmo aos olhos daquela cultura,
apesar de ter sido necessário embriagar o pai para a consumação do ato,
tendo ocorrido uma força impulsionadora atuante por demais naqueles
tempos: a necessidade de descendência para o pai (Gn 19,32), num mundo
onde inexistia outros ho-mens. Não se pode deixar de ver ai atuando com
todas as forças o instinto de conservação da espécie a falar mais alto que
tudo; nem se pode estabelecer um julgamento com o aculturamento atual,
eis que tal necessidade de prole atualmente não tem o mesmo vigor. Da
mesma forma que após o Dilúvio aconteceu com Canaã (Gn 9,18-29),
aparece aqui outra justificativa para a inimizade reinante entre os israelitas
e dois outros povos parentes e vizinhos, os moabitas e os amonitas (Nm
22,1 / 26,3.63), tra-tados como "bastardos" (Dt 23,4), por serem eles
nascidos de um abominável "incesto" (Dt 27,20.23; Lv 18,6-18).

6. A ALIANÇA, ABRAÃO E ISAAC

Após essas situações dramáticas nasce Isaac (Gn 21,1-5), o Filho da


Promessa, causando gran-de alegria e regozijo. A esterilidade era motivo
de grande vergonha (Gn 30,23; 1Sm 1,5-8; 2Sm 6,23; Os 9,11) e a
fecundidade é sinal da presença de bênção de Deus. Por isso Sara se
regozija e manifesta tudo isso com o riso, como se nota das expressões
"Deus me deu motivo de riso e todo o que o ouvir rir-se-á comigo" e "lhe dei
um filho na sua velhice", "vantagens" de que se pode vangloriar. Daí vem
etimologicamente o nome de Isaac, que na sua raiz tem a conotação
indefinida "rir":

"Pelo que disse Sara: Deus me propiciou motivo de riso;


todo aquele que o ouvir, rir-se-á comigo. E acrescentou:
Quem diria a Abraão que Sara havia de amamentar fi-lhos?
no entanto lhe dei um filho na sua velhice" (Gn 21,6-7).

Mas, no dia em que se comemorava o seu desmame, Sara viu Ismael


"gracejar" dele, Isaac (Gn 21,9), naturalmente em torno de seu nome...,
alguma piada de mau gosto, por exemplo, dirigida por um já rapazola a um
recém desmamado, uma criança ainda. A antiga tensão familiar (Gn 16,4d-
6) não desanuviara e agora se manifestava tanto no gracejo de Ismael,
conhecedor de tudo o que acontecera e as conseqüências para ele sendo
já pressentidas, como na reação de Sara que, violentamente aproveita a
oportunidade e exige uma atitude definitiva de Abraão (Gn 21,10). Ele, em
obediência a Deus, que já valorizava a esposa legítima, ao impulso de uma
visão e promessa com referência ao futuro do filho se tornando um grande
povo, expulsa-o com Agar (Gn 21,11-14). Tais acontecimentos vão ser
identifi-cados de várias maneiras aos cristãos vindos do paganismo,
quando São Paulo os interpreta conforme a diferença entre Ismael o filho
advindo da vontade e plano do homem e Isaac o Filho da Promessa,
advindo da Vontade e do Plano de Deus:

"Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava, e outro da
livre. To-davia o que era da escrava nasceu segundo a carne, mas, o que
era da livre, por pro-messa. O que se entende por alegoria: pois essas
mulheres são duas alianças; uma do monte Sinai, que dá à luz filhos para a
servidão, e que é Agar. Ora, esta Agar é o monte Sinai na Arábia e
corresponde à Jerusalém atual, pois é escrava com seus filhos. Mas a
Jerusalém que é de cima é livre; a qual é nossa mãe. Pois está escrito:
Alegra-te, estéril, que não dás à luz; esforça-te e clama, tu que não estás
de parto; porque mais são os fi-lhos da desolada do que os da que tem
marido. Ora vós, irmãos, sois filhos da promes-sa, como Isaac. Mas, como
naquele tempo o que nasceu segundo a carne perseguia ao que nasceu
segundo o Espírito, assim é também agora. Que diz, porém, a Escritura?
Lança fora a escrava e seu filho, porque de modo algum o filho da escrava
herdará com o filho da livre. Pelo que, irmãos, não somos filhos da
escrava, mas da livre" (Gl 4,22-31).

"Não que a palavra de Deus haja falhado. Porque nem


todos os que são de Israel são israelitas; nem por serem
descendência de Abraão são todos filhos; mas: Em Isaac
será chamada a tua descendência. Isto é, não são os filhos
da carne que são filhos de Deus; mas os filhos da promessa
são contados como descendência. Porque a palavra da
promessa é esta: Por este tempo virei, e Sara terá um
filho" (Rm 9,6-9).

Esses acontecimentos redundam para Abraão em atroz sofrimento,


debatendo-se entre as de-sordens de um mundo corrompido, coexistindo
com o mundo da Aliança no nascedouro. É de se ob-servar a existência de
narrativas muito estranhas para nós quanto aos costumes de então. Não
faz mal repetir que quando se lê a Bíblia deve-se evitar a precipitação de
um julgamento com base nos usos atuais, mas manter a naturalidade e
prestar atenção nesses procedimentos antigos, por demais encros-tados na
vida social e aparentando muitas vezes a forma de leis, dada a obrigação
que é imposta pelas próprias circunstâncias. No regime patriarcal, de
acordo com o conceito que dele se faz, uma mulher não poderia exigir com
a energia de Sara (Gn 21,10) que o marido expulsasse o próprio filho, com
a mãe, uma escrava então libertada, deixando-os sem nada, deserdando-o,
a não ser que o conceito seja precipitado e ao contrário existissem naquele
tempo normas sociais que assim autorizassem. Pode até mesmo parecer
uma espécie de alforria para a libertação da servidão de Agar, mas apesar
de tudo, isso não deixa de perturbar até mesmo o próprio Abraão que só o
fez após a intervenção de Deus com a promessa de protegê-los, já que "vai
tornar o filho um grande povo por ser da posteridade dele" (Gn 21,12-13).
Outra dificuldade aparece quanto ao acontecimento com Abimeleque em
Gerar, e já se analisou fato idêntico quando da estadia do casal no Egito e a
aliança com ele em Bersabéia, para a solução de pendência por causa de
poços de água (Gn 21,22-34), mostrando a continuidade da luta pela
sobrevivência a que se sujeitou até mesmo um "eleito". Cumpre ao leitor da
Bíblia sempre separar os costumes de então, não se deixando influenciar
no julgamento por questões assim acessórias, que não alteram em nada os
desígnios de Deus no desenrolar da História da Salvação, onde o escolhido
nelas vive e se debate. O essencial é que importa, qual seja, a fé vivida de
Abraão e demonstrada efi-cazmente por todos os seus atos:

"Abraão plantou uma tamargueira em Bersabéia, e invocou


ali o nome do Senhor, o Deus eterno. E peregrinou Abraão
na terra dos filisteus muito tempo" (Gn 21,33-34).

Esta presença de hostilidades do mundo contra o que sempre lutou Abraão


vai muito contribuir para a sua maturação e crescimento na fé, solidificando-
o para a missão que apenas se esboçava. Numa luta desigual, Abraão
ainda se vê em sérias dificuldades quanto aos costumes religiosos do tem-
po. São os momentos em que Deus coloca os seus eleitos face à face com
a realidade de Seus Planos e da Missão que lhe cabe, provando-os e
maturando-os para ela, momentos estes que chegam a ser dra-máticos.
Deus pede que lhe ofereça o próprio filho Isaac em sacrifício, o legítimo
herdeiro da Aliança, em quem concretizar-se-ia toda a esperança e solidez
da fé de Abraão:

"Sucedeu, depois destas coisas, que Deus provou a Abraão,


dizendo-lhe: Abraão! E este respondeu: Eis-me aqui.
Prosseguiu Deus: Toma agora teu filho, o teu único filho,
Isaac, a quem amas; vai à terra de Moriá, e oferece-o ali
em holocausto sobre um dos montes que te hei de
mostrar" (Gn 22,1-2).

A contradição é mais que evidente, pois ainda soavam aos ouvidos de


Abraão aquelas palavras de Deus, quando Lhe apresentara Ismael:

"...e lhe chamarás Isaac; com ele estabelecerei a minha


aliança como aliança per-pétua para a sua descendência
depois dele. (...) A minha aliança, porém, estabele-cerei
com Isaac, que Sara te dará à luz neste tempo
determinado, no ano vindouro" (Gn17,18-21).

Porém, apesar disso, Abraão não vacila, crê! A prontidão da obediência de


Abraão, levantan-do-se cedo para cumprir a ordem de Deus e a seqüência
súbita da narrativa o demonstra. A fé o leva à obediência, servindo-lhe de
alicerce. Conduz Isaac imediatamente ao monte determinado para sacrifi-
cá-lo, como uma oferenda a Deus. E, sacrificar Isaac, que já nascera por
obra de Deus, em virtude da esterilidade natural de Sara, que já nascera
consagrado, deveria soar-lhe como um absurdo. E a situa-ção o coloca face
a face com duas posições: de um lado Deus, do outro lado o filho. Abraão
escolheu Deus:

"Levantou-se Abraão de manhã cedo, selou o seu jumento,


e tomou consigo dois de seus servos e Isaque, seu filho; e,
cortou lenha para o holocausto, e partiu para o lu-gar que
Deus lhe dissera" (Gn 22,3).

Na opção por Deus é que se encontra a verdadeira libertação do Homem


de tudo que pode es-cravizá-lo, a começar pelo medo de que deve ter sido
assaltado, dada a confusão de emoções que pode ter sentido pela grande
contradição que ocorria. Já estava conformado com a esterilidade de Sara
e com Ismael sendo o seu único filho, quando o próprio Deus lhe acenara
com a felicidade de ter Isaac de sua mulher "legítima" Sara. Não pedira
mais um filho após aceitar o filho de Agar, escrava de Sara. E, agora, após
recebê-lo já quando a natureza lhe negava, vem Deus e exige dele o seu
holocausto, e o quer levar. Alguma coisa não estava nos eixos. Era um ser
humano, e sua reação seria humana, com todo o colorido sobrenatural do
acontecimento. E essa reação bem que poderia ser de medo, que é a
emoção natural que se tem quando se depara com situações contrárias,
contraditórias ou conflitantes, e até mesmo incompreensíveis. Na mente do
Patriarca ainda ressoava a voz de Deus dizendo-lhe ser "de Isaac que
nascerá a posteridade que terá o seu nome" (Gn 21,12); voz que lhe exige
agora a vítima Isaac em oferenda sacrificial. É uma grande dificuldade que
somente uma robusta fé consegue suportar e vencer. Claro lhe fica que
somente ele não entendia o acontecimento, Deus sabe o que faz e a fé de
Abraão completa tudo, apesar da enorme contradição. Para se cumprir o
que Deus afirmara quanto à Aliança, no sacrifício de Isaac a morte seria
vencida pela vida. Deus nele venceria a morte e a vida te-ria
prosseguimento, completamente restaurada. Isaac renasceria ali mesmo,
não morreria. Abraão teve assim em "figura" uma antevisão da
Ressurreição e nela creu, conforme o próprio Cristo dirá:

"Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia; viu-o, e


alegrou-se" (Jo 8,56).
Abraão não vacila e prossegue morro acima, consagrando a cada passo o
próprio filho. Perce-beu assim que já participava da Obra da Redenção do
Homem, e rejubilou-se com a sua proximidade:

"Pela fé Abraão, sendo provado, ofereceu Isaac; ofereceu o


seu unigênito aquele que recebera as promessas, e a quem
se havia dito: 'Em Isaac será assegurada a tua descen-
dência', julgando que Deus era poderoso para até dos
mortos o ressuscitar; e daí tam-bém em figura o recobrou"
(Hb 11,17-19).

Isaac carregava o lenho para a fogueira, Abraão o fogo sagrado. Morro


acima, ambos cami-nhavam ensimesmando, Abraão mudo de dor, Isaac
mudo de espanto:

"Meu pai!
...
Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o
holocausto?
...
Deus proverá o cordeiro para o holocausto, meu filho...."
(Gn 22,7-8).

Falou a fé. Abraão ainda esperava em Deus e prossegue morro acima,


consagrando a cada pas-so o próprio filho. Sentiu então participar da Obra
da Redenção do Homem, e rejubilou com a proxi-midade da concretização
da promessa de que "por ti serão abençoadas todas as nações da terra"
(Gn 12,3). Quando ultimava os preparativos para imolar o próprio filho
Isaac, cuja submissão à vontade do próprio pai, que o oferece em sacrifício
o identifica a Cristo com a Cruz (cfr. Santos Padres - Tertulia-no, Agostinho,
Cipriano etc.), um anjo o impede:

"Mas o anjo do Senhor lhe bradou desde o céu, e disse:


Abraão, Abraão! Ele respon-deu: Eis-me aqui. Então disse o
anjo: Não estendas a mão sobre o menino, e não lhe fa-ças
nenhum mal; porquanto agora sei que temes a Deus, visto
que não me negaste teu filho, o teu único filho. Nisso
levantou Abraão os olhos e olhou, e eis atrás de si um
carneiro embaraçado pelos chifres no mato; e foi Abraão,
tomou o carneiro e o ofere-ceu em holocausto em lugar de
seu filho. ..." (Gn 22,11-14).

Aqui se corporifica e recebe de Deus a aprovação a "substituição" eficaz do


ser humano por um animal, no caso "o cordeiro", em qualquer sacrifício
oferecido, no qual o ofertante é "substituído" pela vítima imolada,
recebendo ela a penitência dele, pelo que tomou o nome de resgate. Assim,
as palavras de Abraão a Isaac de que "Deus providenciará o cordeiro para
o sacrifício, meu filho" são proféticas e vão se concretizar no mesmo morro,
segundo antiga tradição (2Cro 3,1) no Sacrifício de Jesus Cristo na Cruz.
Maria como o "Novo Abraão", a Mãe dos Crentes, a Mãe da Igreja,
galgando o Calvário ao lado do Filho, tal como Abraão, que, como Isaac,
carregava o "Lenho" da Cruz, "cumpre" a Profecia de Abraão entregando ao
Pai "o cordeiro que o próprio Deus providenciara para o sacrifí-cio".

A prova a que Deus submete não se destina a um exame que Ele faz no
eleito para conhecê-lo, eis que o Deus Onisciente conhece tudo e todos
(1Sm 16,7). Destina-se ao amadurecimento e à toma-da de consciência
que cada um tenha de si mesmo e das dimensões da sua missão, dela
saindo então robustecido, pelo que Deus reforça e ratifica a Aliança.
Termina aqui a prova de Abraão e, não só de Abraão, mas também do
próprio Isaac o qual mudo dela participou, demonstrando ambos, para a
"descendência" deles, aptidão e maturidade para o prosseguimento da
Aliança. E como sempre Abraão remata com o sacrifício do carneiro, de
cujo holocausto a eficácia se comprova nas palavras do Anjo:

"Então o anjo do Senhor bradou a Abraão pela segunda vez


desde o céu, e disse: juro por mim mesmo, diz o Senhor,
porquanto fizeste isto, e não me negaste teu filho, o teu
único filho, que te cumularei de bênçãos, e multiplicarei
extraordinariamente a tua des-cendência, como as estrelas
do céu e como a areia que está na praia do mar; e a tua
descendência possuirá a porta dos seus inimigos; e em tua
descendência serão bendi-tas todas as nações da terra;
porquanto me obedeceste" (Gn 22,15-18).

Abraão, pela sua Fé, está no fundamento da Aliança, é o seu alicerce


humano e vai orientar sempre o caminho dela, sempre lembrado e sempre
exaltado (Sb 10,5; Eclo 44,19-22; 1Mb 2,52; Tg 2,20-24; Rm 4,1; Hb 11,8-
19), e até os dias de hoje, na Igreja de Cristo:

"Para reunir a humanidade dispersa, Deus escolheu Abrão,


chamando-o para "fora do seu país, da sua parentela e da
sua casa" (Gn12,1), para o fazer Abraão, quer dizer, "pai
duma multidão de nações" (Gn 17,5): "Em ti serão
abençoadas todas as nações da Ter-ra" (Gn 12,3 LXX)"
(Catecismo Da Igreja Católica n.º 59; v. também n.°s. 144-147;
422; 1079-1080; 1819; 2570-2572 etc.).

"Desde o princípio, Deus abençoa os seres vivos,


especialmente o homem e a mulher. A aliança com Noé e
todos os seres anima-dos renova esta bênção de
fecundidade, apesar do pecado do homem, que leva à
maldi-ção da terra. Mas, a partir de Abraão, a bênção
divina penetra história dos homens, que caminhava em
direção à morte, para a fazer regressar à vida, à sua fonte:
pela fé do "pai dos crentes" que recebe a bênção, é
inaugurada a história da salvação" (idem n.° 1080)

Essa fé valer-lhe-á o título de "Pai dos Crentes":

"E recebeu o sinal da circuncisão, selo da justiça da fé que


teve quando ainda não era circuncidado, para que fosse pai
de todos os crentes, estando eles na incircuncisão, a fim de
que a justiça lhes seja imputada, bem como fosse pai dos
circuncisos, dos que não somente são da circuncisão, mas
também andam nas pisadas daquela fé que teve nosso pai
Abraão, antes de ser circuncidado" (Rm 4,11-12)

"Sabei, pois, que os cren-tes é que são filhos de Abraão" (Gl


3,7).

7. A ALIANÇA E ISAAC, O FILHO DA PROMESSA

Existem determinados costumes antigos que não se identificam com o


aculturamento atual. Um deles é o de sempre se referir à genealogia das
pessoas de que toda a Escritura está cheia, desde Adão (Gn 5,1-32), Noé
(Gn 10,1-32), outras e assim até mesmo da criação (Gn 2,4).O interesse
principal é o de se conhecer a "origem", problema fundamental para os
israelitas em virtude da Aliança e da pos-sibilidade de conflito com uma
variedade enorme de pagãos com os mais "abomináveis" costumes (Gn
6,1-3) pela vinculação do clã a um ou mais deuses que em seus rituais
chegavam a oferecer em holo-causto até os filhos (Jr 32,35; 1Rs 16,34 2Rs
3,27; 23,10). Por tudo isso era necessário um conheci-mento mais
detalhado de cada um, evitando-se as mais das vezes o desvio ou a perda
definitiva de se-res queridos, ou a diminuição e até mesmo a perda do
patrimônio econômico da tribo pela evasão he-reditária dos bens,
principalmente de propriedades. Daí e por outros motivos importantes para
a pró-pria segurança, para a sobrevivência e para a cultura da época a
necessidade de sempre os observar, como soe encontrar nos entremeios
das narrativas a genealogia dos principais protagonistas. É tão fundamental
essa condição que até mesmo no Novo Testamento, São Mateus, que
escreve aos judeus, começa o seu Evangelho com uma genealogia que
demonstra Jesus como "Filho de Davi, Filho de Abraão" (Mt 1,1-16) e
Lucas, apesar de destinar o seu à Igreja Universal, faz o mesmo,
retrocedendo até Adão, dada a universalidade da salvação, mas levando
em conta a genealogia de Jesus (Lc 3,23-38).
Claro está que com o compromisso que assumira com os termos da Aliança
Abraão, já velho, e após a morte e sepultamento de Sara (Gn 23), se
preocupa com quem seria a futura esposa de Isaac. Solucionou a
dificuldade com uma de sua parentela (Gn 24,3-4), consciente da
genealogia de Nakor (Gn 22,20-24), seu irmão, apresentando o narrador a
"origem" de Rebeca, a futura esposa de Isaac, vinculando-a por sua vez à
linhagem de Set (Gn, 4,25) a progênie da História da Salvação, garantia de
fidelidade a Iahweh e à Aliança já em processo. É bom observar aqui que a
única porção de terra que Abraão possuiu como sua, adquirindo-a e
pagando por ela, foi o terreno onde sepultou sua mulher Sara (Gn 23), cujo
relato da compra mostra o ritual então em uso, que se pode até mesmo
denominar de "escritura pública" da compra, tal como diz o narrador que "foi
assegurado a Abraão por aquisição na presença dos heteus, e de todos os
que se achavam presentes na porta da cidade" (Gn 23,18). A "porta da
cidade" representava naqueles tempos o que hoje representam os cartórios
de registro de aquisição de propriedades, ou seja, a publicização, que é o
tornar de conhecimento público, geral, para não mais se revogar e
reconhecendo-se então a tradição da propriedade.

A principal preocupação de Abraão era a Aliança como manifesta ao exigir


sob juramento ("com a mão sob a coxa" Gn 24,2) para a escolha da noiva,
que não fosse das "filhas dos cananeus, no meio dos quais habito, mas irás
à minha terra natal e aos meus parentes e tomarás dali mulher para meu
filho Isaac" bem como "não tirasse seu filho da terra onde morava, que era
a propriedade que Deus prometera a sua descendência" (Gn 24,3-9). A
narrativa da "conquista" da noiva para Isaac deve ser lida, não com os
critérios da cultura de hoje, mas dentro das perspectivas do aculturamento
de en-tão, num mundo ainda rude, selvagem e bárbaro, onde a
sobrevivência se devia a detalhes hoje míni-mos, sem valor algum, mas
naqueles tempos de uma imposição até mesmo insuperável.

A pretensão do narrador não se limita ao casamento de Isaac, mas destaca


também a fé de Abraão que prevê a ajuda de Iahweh:

"O Senhor, Deus do céu, que me tirou da casa de meu pai e


da terra da minha parente-la, e que me falou, e que me
jurou, (...) ele enviará o seu anjo diante de si, para que to-
mes de lá mulher para meu filho" (Gn 24,7).

Não é só isso. Destaca também que Iahweh realmente de tudo participa,


atende e realmente faz com que a noiva seja encontrada na forma
imaginada e pedida pelo servo, junto ao poço onde ela sacia sua sede, a
dos animais e a da comitiva (Gn 24,12-14). Não pode ser simplesmente por
coincidência ou por um golpe de sorte que era uma sobrinha de Abraão,
cuja família acata o pedido e lhe entrega a filha para o casamento (Gn
24,10-61), percebendo os familiares que se tratava da vontade de Iahweh a
que deveriam acatar, significando isso que partilhavam a mesma fé (Gn
24,51), satisfazendo assim à segurança necessária à Aliança. Quando o
servo volta é recebido pelo próprio Isaac, que "saíra para prantear ('ou
meditar' - são válidas as duas traduções) no campo", a quem "narra tudo
que tinha acon-tecido com ele e Isaac introduziu Rebeca na tenda, e
recebeu-a por esposa e a amou" (Gn 24,66-67). Ora, o pranto de Isaac leva
à conclusão que Abraão morrera antes da chegada do servo, cumprida a
missão, motivo porque presta contas a Isaac. Mas, também não é só isso.
Narra dessa maneira que Isaac assumiu a Aliança, a quem "Abraão deu
tudo o que possuía" (Gn 24,36 e 25,5). A morte de Abraão vem em seguida
e em separado. É o modo como a Bíblia traz suas narrativas, terminando
uma e mesmo que algo a tivesse de interromper costuma narrá-lo em
separado.
Outros filhos de Abraão são apresentados destacando-se Madiã, na tribo de
quem Moisés futu-ramente irá se abrigar fugindo do faraó do Egito (Ex
2,15). Enumeram-se vários nomes de povos des-cendentes dele
demonstrando o quanto foi abençoado por Deus, destacando-se "doze
chefes de outros povos" (Gn 25,16) na descendência de Ismael, tal como
lhe prometera (Gn 17,20) e à Agar (Gn 16,10ss e 21,18), e a de Isaac, bem
menor - só dois filhos (Gn 25,24ss). Vai se repetir com Isaac o mesmo
drama por que passou seu Pai também em outros acontecimentos
semelhantes, maneira de se demonstrar escrituristicamente a identidade de
vida, de amadurecimento na fé e de missão (Gn 26,1-33). Frisa assim a
esterilidade de Rebeca e a intercessão de Isaac por ela (Gn 25,21) pelo
que gera dois filhos, cuja hostilidade se manifesta desde o útero:

"Ora, Isaac orou insistentemente ao Senhor por sua


mulher, porquanto ela era es-téril; e o Senhor ouviu as
suas orações, e Rebeca, sua mulher, concebeu. E os filhos
lutavam no ventre dela; então ela disse: Por que estou eu
assim? E foi consultar ao Se-nhor. Respondeu-lhe o Senhor:
Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão
das tuas estranhas, e um povo será mais forte do que o
outro povo, e o mais velho servirá ao mais moço.
Cumpridos que foram os dias para ela dar à luz, eis que
havia gêmeos no seu ventre. Saiu o primeiro, ruivo, todo
ele como um vestido de pelo; e chamaram-lhe Esaú. Depois
saiu o seu irmão, agarrada sua mão ao calcanhar de Esaú;
pelo que foi chamado Jacó. E Isaac tinha sessenta anos
quando Rebeca os deu à luz" (Gn 25,21-26).

São Paulo verá nesse acontecimento a "figura" da conversão dos pagãos,


tornando-se também "filhos da promessa" pela fé e não por qualquer obra
anterior que a merecesse:

"Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus;


mas os filhos da promessa são contados como
descendência. Porque a palavra da promessa é esta: Por
este tempo virei, e Sara terá um filho. E não somente isso,
mas também a Rebeca, que havia con-cebido de um, de
Isaac, nosso pai, pois não tendo os gêmeos ainda nascido,
nem tendo praticado bem ou mal, para que o propósito de
Deus segundo a eleição permanecesse firme, não por causa
das obras, mas por aquele que chama, foi-lhe dito: O maior
servirá o menor. Como está escrito: Amei a Jacó, e aborreci
a Esaú. (...) Que diremos pois? Que os gentios, que não
buscavam a justiça, alcançaram a justiça, mas a justiça que
vem da fé" (Rm 9,8-13.30).

É de se observar a esterilidade sempre presente nas mulheres dos


Patriarcas, contrastando com a fecundidade ou bênção embutida no
Protoevangelho (Gn 3,15) e na Promessa a Abraão de que "sua
descendência seria como as estrelas do céu e como a areia do mar" (Gn
22,17; 15,5). Já se antevê que a História da Salvação é Obra exclusiva de
Deus, o que se manifesta nesses pequenos detalhes da Sua Intervenção,
em atendimento ao pedido do eleito, pois é com Isaac que a Aliança se
confirma:

"E apareceu-lhe o Senhor e disse: Não desças ao Egito;


habita na terra que eu te disser; peregrina nesta terra, e
serei contigo e te abençoarei; porque a ti, e aos que
descende-rem de ti, darei todas estas terras, e confirmarei
o juramento que fiz a Abraão teu pai; e multiplicarei a tua
descendência como as estrelas do céu, e lhe darei todas
estas terras; e por meio dela serão benditas todas as
nações da terra; porquanto Abraão obe-deceu à minha voz,
e guardou o meu mandado, os meus preceitos, os meus
estatutos e as minhas leis" (Gn 26,2-5).

"E apareceu-lhe o Senhor na mesma noite e disse: Eu sou


o Deus de Abraão, teu pai; não temas, porque eu sou
contigo, e te abençoarei e multiplicarei a tua descendência
por amor do meu servo Abraão" (Gn 26,24).

E, prosseguindo a mesma missão, o mesmo culto tendo por centro o


sacrifício:

"Isaac, pois, edificou ali um altar e invocou o nome do


Senhor; então armou ali a sua tenda..." (Gn 26,25).

8. A ALIANÇA PROSSEGUE COM JACÓ, O PRIMOGÊNITO


Entre os institutos da Bíblia, cujo sentido se perdeu está também o da
Primogenitura, que manifesta sua influência e observância desde as suas
primeiras páginas. É o caso de Abel que "ofereceu um sacrifício a Deus dos
primogênitos (ou 'primícias' como em algumas Bíblias) de seu rebanho e
dos mais gordos" (Gn 4,4), enquanto Caim ofereceu "dos produtos da terra"
(Gn 4,3). Porquanto a única diferença entre as ofertas seja esta dos
primogênitos, não significando que Caim tivesse ofereci-do maus produtos,
já se evidencia a presença de alguma influência cultural que nos foge, pois
Deus "olhou para Abel e sua oferta e não olhou para Caim e sua oferta" (Gn
4,4-5). Também na relação ge-nealógica dos primeiros descendentes de
Adão (Gn 5) e após a Torre de Babel (Gn 11,10-32) o nome do primogênito
é o único mencionado, prosseguindo-se com a descendência dele. Mesmo
em outras genealogias ele sempre ocupa o primeiro lugar (Gn 9,18-10,32).

A suspeita de que algo de imperioso existe vai se confirmando a partir de


uma observação do narrador criticando o desprezo de Esaú por ela (Gn
25,34c) e da luta que trava com seu irmão Jacó, filhos de Isaac, e gêmeos,
por causa dela (Gn 27,1-28,5). Além disso, Esaú toma por esposas duas
pa-gãs da região (Gn 26,34). Tudo isso vai depor contra Esaú fazendo com
que se justifique sua perda para Jacó do direito de primogenitura, em tudo
gerenciado pela própria mãe, Rebeca. Aconteceu que, em certa ocasião,
Esaú, com fome, trocou com Jacó o seu direito de primogenitura por um
prato de lentilhas, por cujo absurdo é veementemente criticado pelo
narrador (Gn 25,34). Claro que Rebeca tomando disso conhecimento, e
também pelo desgosto por causa do casamento de Esaú com mulheres
hetéias, passa a se dedicar mais ainda a Jacó, o seu já predileto (Gn
25,28). Assim, à promessa do pai em dar a Esaú a denominada "bênção da
primogenitura", age disfarçando Jacó de maneiras a ludibriar Isaac, que já
estava velho e sem visão (Gn 27,1-17). Jacó consegue assim receber a
ambicionada e ir-reversível "bênção" (Gn 27,27-29) em lugar do irmão, que
na verdade a havia desprezado e trocado com ele pelo prato de lentilhas.

A importância desse fato se prende às reações dramáticas que lhe


sucedem, pelas quais se pode dimensionar o alcance cultural (Gn 27,30-
45). Quando chega Esaú da caça onde buscara o "guisado a gosto do pai"
(Gn 27,4) e é descoberta a substituição, "Isaac estremeceu tomado de
enorme terror", declarando ainda que, apesar de assim concedida,
"permanecerá abençoado" (Gn 27,33). Por sua vez " Esaú, ao ouvir as
palavras de seu pai, gritou altíssimo com grande e extremamente
amargurado brado, e disse a seu pai: Abençoa-me também a mim, meu pai!
(...) ...E chorando prorrompeu em altos gritos" e planeja matar o irmão (Gn
27,34.38.41). Tem-se mais conhecimento da importância da instituição com
a resposta de Isaac:

"Respondeu Isaac a Esaú: Eis que o tenho posto por senhor


sobre ti, e todos os seus irmãos lhe tenho dado por servos;
e de trigo e de mosto o provi. Que, pois, poderei eu fazer
por ti, meu filho?" (Gn 27,37).

Já se percebe que um dos privilégios outorgados com a "bênção" é a chefia


do clã ou da tribo, fato esse confirmado por outros trechos das Escrituras
(1Cro 26,10), pelo que recebia "dupla porção da herança" (Dt 21,17) pela
responsabilidade que assumia por todos os seus familiares e demais inte-
grantes. O assunto voltará a ser abordado no decorrer do curso eis que
outros elementos que entram na composição desse direito somente
poderão ser examinados futuramente em confronto com outras instituições.
Por enquanto é de se reter apenas o exposto.

Coerente com a bênção correspondente à primogenitura que proferiu, Isaac


confia-lhe o desen-rolar da Aliança, não sem antes admoestá-lo quando às
mulheres pagãs, ou cananéias. De certa manei-ra até se pode suspeitar de
que todo o narrado tenha sido arquitetado pelo casal para "destronar" Esaú
por se comprometer com as mulheres estranhas aos costumes israelitas,
principalmente levando-se em conta a advertência feita em conjunto com a
mesma bênção de Abraão:

"Isaac, pois, chamou Jacó, e o abençoou, e ordenou-lhe,


dizendo: Não tomes mulher dentre as filhas de Canaã.
Levanta-te, vai a Mesopotâmia, à casa de Betuel, pai de
tua mãe, e toma de lá uma mulher dentre as filhas de
Labão, irmão de tua mãe. Deus Todo-Poderoso te abençoe,
te faça frutificar e te multiplique, para que ve-nhas a ser
uma multidão de povos; e te dê a bênção de Abraão, a ti e
à tua des-cendência contigo, para que herdes a terra de
tuas peregrinações, que Deus deu a Abraão. Assim
despediu Isaque a Jacó, o qual foi a Mesopotâmia, para a
casa de La-bão, filho de Betuel, o arameu, irmão de
Rebeca, mãe de Jacó e de Esaú" (Gn 28,1-5).

Vê-se que quando ia para a Mesopotâmia, em busca de esposa e em fuga


de Esaú, Jacó, como seus antepassados Abraão e Isaac, tem uma visão
em que se lhe confirmam tanto a promessa como a Aliança:

"...por cima da escada estava o Senhor, que disse: Eu sou o


Senhor, o Deus de Abraão teu pai, e o Deus de Isaac; esta
terra em que estás deitado, eu a darei a ti e à tua
descendência; e a tua descendência será como o pó da
terra; dilatar-te-ás para o ocidente, para o oriente, para o
norte e para o sul; por meio de ti e da tua des-cendência
serão benditas todas as famílias da terra. Eis que estou
contigo, e te guardarei onde quer que fores, e te farei
tornar a esta terra; pois não te deixarei até que haja
cumprido aquilo de que te tenho falado" (Gn 28,13-15).

Tal como com Abraão (Gn 18), com Isaac (Gn 26,2.24) ocorreu uma
manifestação sensível de Deus, uma teofania, neste episódio da "escada'
por cima da qual estava o Senhor" em que se profere a mesma bênção
para a posteridade de Abraão e a mesma promessa da herança da mesma
terra das suas peregrinações (Gn 12,7; 13,14-17; 22,17-18; 26,4.24), bem
como a mesma resposta do Patriarca eri-gindo um lugar de culto
acompanhado de um sacrifício, se bem que aqui com Jacó trata-se de uma
libação e a unção de uma pedra erigida em cipo, muito usado naqueles
tempos como testemunho ou prova de algum fato profano ou sagrado e
religioso (Gn 31,45; Js 4,9.20; 24,26-27) e até mesmo para as coisas de
Deus:

"Pois os filhos de Israel ficarão por muitos dias sem rei,


sem príncipe, sem sacrifício, sem cipos, e sem éfode ou
terafins" (Os 3,4)

Israel é vide frondosa que dá o seu fruto; conforme a


abundância do seu fruto, assim multiplicou os altares;
conforme a prosperi-dade da terra, assim fizeram belos
cipos" (Os 10,1)

Tirarei as feitiçarias da tua mão, e não terás


adivinhadores; arrancarei do meio de ti as tuas imagens
esculpidas e os teus cipos; e não adorarás mais a obra das
tuas mãos" (Mq 5,12).

Pode-se até mesmo admitir a preferência de Jacó por este tipo de oferenda
dado o seu caráter mais pacífico ("...homem tranqüilo, habitante da tenda"
Gn 25,27c). Aqui com ele a teofania atinge um clímax com a presença da
narrativa de uma "escada", como que aquela da Torre de Babel, aqui
servindo de comprovação do elo de ligação entre os anjos que descem do
céu para seu ministério no mundo, como interpretaram os Santos Padres e
de que apesar da separação ou distância entre o céu e a terra, pode atingi-
lo sempre, aquele que ama a Deus. Vê-se com facilidade que por Jacó viria
o prosseguimento da História da Salvação que culminaria em Jesus Cristo,
motivo por que se caracterizam a "promessa" e a "aliança" com Abraão,
com Isaac e com Jacó (também em Gn 35,11-13 e 46,3-4), como
Messiânicas, e tal como seus antepassados faz do sacrifício o centro do
seu culto, prometendo erguer no local um santuário para o que destinará o
dízimo:

"E temeu, e disse: Quão terrível é este lugar! Este não é


outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos
céus. Jacó levantou-se de manhã cedo, tomou a pedra que
pusera debaixo da cabeça, e a pôs como cipo; e derramou-
lhe azeite em cima. E chamou aquele lugar Betel; porém o
nome da cidade antes era Luz. Fez também Jacó um voto,
dizendo: Se Deus for comigo e me guardar neste caminho
que vou seguindo, e me der pão para comer e vestes para
vestir, de modo que eu volte em paz à casa de meu pai, e
se o Senhor for o meu Deus, então esta pedra que tenho
posto como cipo será casa de Deus; e de tudo quanto me
deres, certamente te darei o dízimo" (Gn 28,17-22).

Jacó recebe de Deus tudo aquilo correspondente ao conteúdo da Aliança


de Abraão, já se an-tevendo a confirmação da Bênção recebida de Isaac,
contrariando assim uma opinião por demais gene-ralizada de que o ato de
Jacó e Rebeca fosse condenável, daqueles que se recusam a ver na
cultura dos antigos uma formação moral ainda rude e até mesmo
rudimentar e selvagem. Mas, mesmo que assim não fora, não se pode
esquecer que Esaú não deu à Primogenitura nem mesmo à Aliança os
valores que mereciam: à Primogenitura por tê-la desprezado (Gn 25,32) e
trocado por um prato de lentilhas com Jacó e à Aliança por contrair
casamento com mulheres hetéias, pagãs, como já se viu amplamente. E as
Escrituras não o condenam, ao contrário o louvam e respeitam:

"Foi ela ("a 'sabedoria") quem conduziu por veredas retas o


justo ('Jacó') que fugia da cólera de seu irmão; mostrou-lhe
o reino de Deus e lhe deu a conhecer os santos; pro-
porcionou-lhe êxito nos rudes labores e fez frutificar seus
trabalhos. Esteve a seu lado contra a cobiça dos que o
oprimiam e o enriqueceu. Protegeu-o contra os inimigos e
o defendeu daqueles que lhe armavam ciladas. Atuou como
árbitro a seu favor em rude combate, para ensinar-lhe que
a piedade é mais poderosa do que tudo" (Sb 10,10-12)

A bênção de todos os homens e a aliança, ele as fez


repousar sobre a cabeça de Jacó. Confirmou-o nas bênçãos
que eram dele, e concedeu-lhe o país em herança. E ele
divi-diu-o em lotes"...(Eclo 44,23).

Até Jesus o aponta junto aos Patriarcas, na bem-aventurança da Vida


Eterna:

"Digo-vos pois: Muitos virão do Oriente e do Ocidente


sentar-se à mesa com Abraão, Isaac e Jacó no reino dos
céus" (Mt 8,11).
Por outro lado, também Jesus Cristo usa a mesma imagem da sua visão,
porém a si mesmo se referindo como a "escada", colocando-se como a
união entre Deus e os Homens:

"E acrescentou: Em verdade, em verdade vos digo que


vereis o céu aberto, e os anjos de Deus subindo e descendo
sobre o Filho do homem" (Jo 1,51).

9. A ALIANÇA E AS DOZE TRIBOS DE ISRAEL (JACÓ)

Da mesma forma que Abraão e Isaac, Jacó também tem necessidade de


amadurecimento e conscientização para o exercício da Aliança,
aperfeiçoando-se para o seu prosseguimento e consecu-ção. Deus não faz
exceções nem mesmo aos seus eleitos e, apesar de terem uma missão a
cumprir, vi-vendo no mundo, têm de sofrer todas as conseqüências do
pecado que lhe aparecem. Assim, Jacó parte, fugindo para a casa de
Labão, o irmão de sua mãe Rebeca, e também em procura de uma mulher
que fosse de sua parentela, tal como lhe aconselharam ambos os pais,
tendo em vista o malogro que Esaú vai tentar corrigir tardiamente (Gn
26,34-35 e 28,6-9).

Seu encontro com Raquel, sua prima e pastora de ovelhas que as traz para
beber água, se dá de imediato num poço (Gn 29,1-14), repetindo, pela
presença de Deus dirigindo os acontecimentos, o mesmo que ocorreu
quando da busca de uma mulher para Isaac. É conduzido para a casa do
tio e lá fixa sua residência e passa a trabalhar, a ser explorado melhor dir-
se-ia. Apaixona-se por Raquel e aceita trabalhar sete anos para então
desposá-la. Mas, o sogro ardilosamente o desposa com Lia ao pretexto de
que não poderia casar a mais nova e permanecer com a mais velha
solteira. Descoberto o embuste, após o cerimonial concluído, introduzida a
esposa em sua tenda à surdina, Jacó reclama mas acaba aceitando
trabalhar mais sete anos para recebê-la daí a uma semana (Gn 29,14c-30).
Aparece então outra vez a esterilidade das mulheres dos Patriarcas e
vinculadas à História da Salvação, que só se tornavam férteis por uma ação
especial de Deus, por ser o Único Autor da Salvação:

"Viu, pois, o Senhor que Lia era desprezada tornou-a


fecunda; Raquel, porém, era es-téril" (Gn 29,31)

"Também lembrou-se Deus de Raquel, ouviu-a e a tornou


fecunda" (Gn 30,22).

Dessa união lhe advieram doze filhos e uma filha (Gn 29,32-30,24 / 35,16-
18), que deram ori-gem às doze tribos dos Filhos de Israel, o nome que
Deus dará a Jacó (Gn 32,29; 35,9), donde vai se formar o Povo de Israel.
Não há necessidade de se delongar no relato dos nascimentos de todos
eles, ficando para cada participante o dever de ler aquilo que não for aqui
exposto, completando seu conhe-cimento bíblico com seu próprio esforço,
evitando-se que o curso seja passivo. Basta relatar os nomes dos filhos de
Jacó, com os das mulheres e das concubinas que os geraram (Gn 35,23-
26):

 De Lia vieram: Rubem, Simão, Levi, Judá, Issacar, Zabulon e Dina


(mulher); e,
pela serva dela Zelfa: Gad e Aser.

 De Raquel vieram: José e Benjamim (Gn 35,16-18); e,


pela serva dela Bala: Dan e Neftali.

Vários elementos culturais já conhecidos se repetem, tanto a substituição


da mulher estéril por sua serva para lhe dar filhos, como o fato da mulher
mesma escolher um nome com um significado seu para o filho,
manifestando-se assim o prosseguimento da sua luta contra a serpente,
iniciada por Eva (Gn 3,15 / 4,25 - cfr. no Capítulo 1, sob o título O
Protoevangelho). Jacó tinha em mira principal-mente a Aliança contraída
com Deus, por ela se guia e por causa dela reclama, e pede para retornar à
sua terra, ou seja Terra Prometida a Abraão, a Isaac e a ele próprio. Um
fato normal e até mesmo cor-riqueiro naquele tempo, um filho buscar a
casa do pai, torna-se para ele por demais penoso e de difícil solução
amistosa. Decide-se então e foge "iludindo a vigilância de Labão",
aproveitando-se da ocupa-ção dele na tosquia, que descobrindo a fuga vai
em seu encalço e o alcança (Gn 31,1-23). Somente nessa ocasião é que o
pacífico Jacó esboça uma reação:

"Então irou-se Jacó e contendeu com Labão, dizendo: Qual


é a minha transgressão? qual é o meu pecado, que tão
furiosamente me tens perseguido? Depois de teres
apalpado todos os meus móveis, que achaste de todos os
móveis da tua casa? Põe-no aqui diante de meus irmãos e
de teus irmãos, para que eles julguem entre nós ambos.
Estes vinte anos estive eu contigo; as tuas ovelhas e as
tuas cabras nunca abortaram, e não comi os carneiros do
teu rebanho. Não te trouxe eu o despedaçado; eu sofri o
dano; da minha mão requerias tanto o furtado de dia como
o furtado de noite. Assim andava eu; de dia me consumia
o calor, e de noite a geada; e o sono me fugia dos olhos.
Estive vinte anos em tua casa; catorze anos te servi por
tuas duas filhas, e seis anos por teu rebanho; dez vezes
mudaste o meu salário. Se o Deus de meu pai, o Deus de
Abraão e o Temor de Isaque não fora por mim, certamente
hoje me mandarias embora vazio. Mas Deus tem visto a
minha aflição e o trabalho das minhas mãos, e repreendeu-
te ontem à noite" (Gn 31,36-42).

Revendo com mais detalhes o acontecimento é de se destacar a firmeza da


fé de Jacó que se traduz em profunda e humilde paciência, que a tudo sofre
resignadamente, sem esboçar reação alguma, confiando em Deus que lhe
prometera, quando iniciou "sua peregrinação" (Gn 47,9), "estou contigo e
proteger-te-ei onde quer que vás, e te reconduzirei a esta terra" (Gn 28,15).
Então, pediu para partir e o seu pagamento (Gn 30,25-28), notando-se que
até aquele momento não trabalhara ainda para si mesmo e reconhecendo
Labão que seus bens aumentaram graças à bênção de Deus a Jacó (Gn
30,29-30). Não se chegava a uma composição justa e Jacó então propõe
voltar ao trabalho do sogro e receber em pagamento os animais do rebanho
que viessem a nascer "malhados e mosqueados" daquela data em diante
(Gn 30,31-34). Tudo assim combinado, Labão imediatamente separa do
rebanho todos os animais "malhados e mosqueados" entrega-os aos filhos,
afastando-os três dias de distância, para impossibilitar Jacó de conseguir
seu pagamento (Gn 30,35-36). É Deus que vem em socorro de seu eleito
em virtude da Aliança que continua com ele (Gn 28,12-15):

"Disse o Senhor, então, a Jacó: Volta para a terra de teus


pais e para a tua paren-tela; e eu serei contigo. Pelo que
Jacó mandou chamar a Raquel e a Lia ao campo, onde
estava o seu rebanho, e lhes disse: vejo que o rosto de
vosso pai para comigo não é como anteriormente; porém o
Deus de meu pai tem estado comigo. Ora, vós mesmas
sabeis que com todas as minhas forças tenho servido a
vosso pai. Mas vosso pai me tem enganado, e dez vezes
mudou o meu salário; Deus, porém, não lhe permitiu que
me fizesse mal. Quando ele dizia assim: Os salpicados
serão o teu salário; então todo o rebanho dava salpicados.
E quando ele dizia assim: Os lis-trados serão o teu salário,
então todo o rebanho dava listrados. De modo que Deus
tem tirado o gado de vosso pai, e mo tem dado a mim. Pois
sucedeu que, ao tempo em que o rebanho concebia,
levantei os olhos e num sonho vi que os bodes que cobriam
o rebanho eram listrados, salpicados e malhados. Disse-me
o anjo de Deus no sonho: Jacó! Eu respondi: Eis-me aqui.
Prosseguiu o anjo: Levanta os teus olhos e vê que todos os
bodes que cobrem o rebanho são listrados, salpicados e
malhados; porque tenho visto tudo o que Labão te vem
fazendo. Eu sou o Deus de Betel, onde ungiste um cipo,
onde me fizeste um voto; levanta-te, pois, sai-te desta
terra e volta para a terra da tua parentela" (Gn 31,3-13).
Percebendo o embuste Jacó reagiu com habilidade para tentar conseguir
recuperar o que lhe pertencia (Gn 30,37-43), mas não conseguiu se libertar
e o seu sogro continua espoliando-o (Gn 31,6-16.36-42), tendo sido ainda
difamado pelos cunhados, que se juntam ao pai para mais ainda o maltra-
tar (Gn 31,1-2). Foi necessário que o próprio Deus lhe manifestasse como
transcrito (Gn 31,3-13), levando-o a trocar idéias com suas mulheres que
lhe demonstraram que, ao contrário do costume, La-bão em vez de dar-lhe
o dote legal, ficara com todo o direito delas, incentivando-o à separação
(Gn 31,4-18). Assim encorajado foge com os seus familiares e bens.

Quando o alcança, Labão a princípio o agride e, após a reação dele, se


contorce todo, fingindo amor estremado pelas filhas e netos, em que não
integra Jacó, nunca incluído (Gn 31,26-28). Após alguma altercação fazem
as pazes e Jacó oferece então um sacrifício do qual participam toda a
família e volta tranqüilo para Isaac (Gn 31,18-54). Não deixa de ser um
incômodo a reclamação de Labão pelos seus "deuses" (Gn 31,30-35), mas
não se deve esquecer de que se acreditava em vários "deuses" bem como
assim se denominavam poderes intermediários, as mais das vezes
imaginários e fruto de su-perstições, espécie de "talismãs", que se
infiltravam na fé ainda em formação, pelo que não se deve assustar nem se
preocupar. Deus não tratou a verdadeira ciência religiosa de maneira
diferente das outras ciências e, do mesmo modo que da alquimia, o homem
caminhou para a Química, do curandeirismo para a Medicina modernas,
assim também caminhou da feitiçaria, da magia e das superstições, que se
mesclavam no campo doutrinário, para a Plena Revelação por Jesus Cristo
que a tudo vai depurar.

Finalmente, Jacó volta à terra do Pai, e então procura Esaú para fazer as
pazes, ato de humil-dade (Gn 33,1-17), muito conforme a sua formação
pacífica e peculiar a um homem que vive em comunhão com Deus. Quando
estava a caminho teve medo e foi assaltado por grande angústia, o que lhe
significou uma luta misteriosa com o próprio Deus, pelo conflito íntimo
ensejado com Sua Vontade, ocasião em que o anjo lhe muda o nome para
Israel (Gn 32,23-32) pelo qual será para sempre conhecido, bem como o
povo formado pelos seus descendentes. Deste fato não há testemunhas,
tendo sido narrado pelo próprio Jacó. Mas, tudo vai sendo confirmado até
mesmo nos contrastes, que não param, e sua luta prossegue incansável:
Dina sua filha é ultrajada e apesar de se acertar com a família do ofen-sor o
casamento com ela, conseguindo até mesmo que se deixassem circuncidar,
convertendo-se ao Deus da Aliança, seus filhos Simão e Levi, irmãos
uterinos dela, atacam e matam todos os varões em vingança, deixando
Jacó em situação difícil perante os habitantes da região e com grave perigo
para a sobrevivência geral (Gn 33,18-34,31). Nem assim há o mais leve
sinal de perda de equilíbrio em Jacó. Recebe logo após, do próprio Deus, a
ratificação de tudo o que lhe foi prometido quando iniciou sua fuga (Gn
28,11-15) e quando lhe foi mudado o nome (Gn 32,24-29):
"Apareceu Deus outra vez a Jacó, quando ele voltou de
Mesopotâmia, e o abençoou. E disse-lhe Deus: O teu nome
é Jacó; não te chamarás mais Jacó, mas Israel será o teu
nome. E chamou-lhe Israel. Disse-lhe mais: Eu sou Deus
Todo-Poderoso; frutifica e multiplica-te; uma nação, sim,
uma multidão de nações sairá de ti, e reis procederão dos
teus lombos; a terra que dei a Abraão e a Isaac, a ti a
darei; também à tua descendência depois de ti a darei. E
Deus subiu dele, do lugar onde lhe falara. Então Jacó erigiu
um cipo no lugar onde Deus lhe falara, um cipo de pedra; e
sobre ele derramou uma libação e deitou-lhe também
azeite; e Jacó chamou Betel ao lugar onde Deus lhe falara"
(Gn 35,9-15).

O sacrifício novamente como o centro do culto dos Patriarcas vai ser


oferecido em cumpri-mento ao prometido por Jacó (Gn 28,10-22), agora
Israel, em Betel, no mesmo local, junto ao carva-lhal onde Abraão já havia
erigido um altar e oferecido sacrifício (Gn 12,6-8; 22,14), dando um sentido
de prosseguimento à Aliança. Porém, em obediência a uma ordem
específica de Deus quanto ao cumprimento do compromisso de Jacó de
erigir ali um santuário, era preciso uma purificação geral de tudo o que
fosse profano, uma conversão geral tal como havia prometido (Gn 28,21 -
"...o Senhor será o meu Deus..."), pelo que determina:

"Depois disse Deus a Jacó: Levanta-te, sobe a Betel e habita ali; e ergue ali
um altar ao Deus que te apareceu quando fugias da face de Esaú, teu
irmão. Então disse Jacó à sua família, e a todos os que com ele estavam:
Lançai fora os deuses estra-nhos que há no meio de vós, e purificai-vos e
mudai as vossas vestes. Levantemo-nos, e subamos a Betel; ali farei um
altar ao Deus que me respondeu no dia da minha angústia, e que foi
comigo no caminho por onde andei. Entregaram, pois, a Jacó todos os
deuses estranhos, que tinham nas mãos, e as arrecadas que pendiam das
suas orelhas; e Jacó os enterrou debaixo do carvalho que está junto a
Siquém. (...) Assim chegou Jacó à Luz (...) Edificou ali um altar, e chamou
ao lugar de "O Deus de Betel"; porque ali Deus se lhe tinha manifestado
quando fugia da face de seu irmão" (Gn 35,1-7).

Com esse gesto Jacó manifesta publicamente e para sempre a sua adesão,
a de sua família e a dos seus descendentes, exclusiva e incondicional a
Deus; do mesmo modo, será objeto de outra ratificação igual, séculos
depois, no mesmo lugar e quando da Conquista da Terra Prometida, por
Josué:

"... temei ao Senhor, e servi-o com sinceridade e com


verdade; deitai fora os deu-ses a que serviram vossos pais
dalém do Rio, e no Egito, e servi ao Senhor. Mas, se vos
parece mal o servirdes ao Senhor, escolhei hoje a quem
haveis de servir; se aos deuses a quem serviram vossos
pais, que estavam além do Rio, ou aos deuses dos
amorreus, em cuja terra habitais. Porém eu e a minha casa
serviremos ao Senhor. Então respondeu o povo, e disse:
Longe esteja de nós o abandonarmos ao Senhor para
servirmos a outros deuses: porque o Senhor é o nosso
Deus..." (Js 24,13-17).

Também foi nesse mesmo local que Jesus Cristo se encontrou com a
Samaritana, "cumprindo" (Mt 5,17) semelhante propósito:

"...achava-se ali o poço de Jacó. Jesus, pois, cansado da


viagem, sentou-se assim junto do poço; era cerca da hora
sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água. Disse-lhe
Jesus: Dá-me de beber. Pois seus discípulos tinham ido à
cidade comprar comida. Disse-lhe então a mulher
samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a
mim, que sou mulher samaritana? (Porque os judeus não se
comunicam com os samaritanos.) Respondeu-lhe Jesus: Se
tivesses conhecido o dom de Deus e quem é o que te diz:
Dá-me de beber, tu lhe terias pedido e ele te haveria dado
água viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que
tirá-la, e o poço é fundo; donde, pois, tens essa água viva?
És tu, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos
deu o poço, do qual também ele mesmo bebeu, e os filhos,
e o seu gado?" (Jo 4,6-12).

Jesus repete a mesma atividade de Jacó, confirmada por Josué, de


reconduzir o Homem para Deus pela Aliança, dando-lhe então "pleno
cumprimento" (Mt 5,17), na mesma porção de terra onde Jacó se purificou
com todos os seus, onde também Josué repetiu a operação com o já Povo
de Israel e no mesmo lugar que Jacó doou ao seu filho predileto, José:

"Os ossos de José, que os filhos de Israel trouxeram do


Egito, foram enterrados em Siquém, naquela parte do
campo que Jacó comprara aos filhos de Hamor, pai de
Siquém, por cem peças de prata, e que se tornara herança
dos filhos de José" (Js 24,32).

Tanto é assim que a própria Samaritana Lhe diz:

"És tu, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos
deu o poço, do qual tam-bém ele mesmo bebeu, e os filhos,
e o seu gado?" (Jo 4,12) / "Disse-lhe a mulher: Se-nhor, vejo
que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós
dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar" (Jo
4,19-20).

Ao que Jesus lhe responde, tal como Jacó e Josué, "definindo toda e
qualquer adoração daí em diante, e revelando a verdadeira natureza do
Deus de Israel", bem como pela primeira vez em todo o Evangelho
confessa-se o Cristo:

"Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me, a hora vem, em que nem


neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas
vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai
procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e é
necessário que os que o adoram o ado-rem em espírito e
em verdade. Replicou-lhe a mulher: Eu sei que vem o
Messias (que se chama o Cristo); quando ele vier há de nos
anunciar todas as coisas. Disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que
falo contigo" (Jo 4,21-26)

Claro fica, pela própria Revelação de Jesus à Samaritana, que a reta final
da formação do Povo de Israel começara com aquele ato de Jacó, em
Betel. Esse local é o repositório das mais antigas e sólidas tradições dos
Patriarcas, a começar com Abrão erigindo ali um altar, tornando-o um lugar
sagra-do (Gn 12,6+; 13,3), mais tarde comprado por Jacó erguendo ali
outro (Gn 35,1-15) em cumprimento de sua promessa (Gn 28,10-22). Além
disso foi escolhido pelo próprio Moisés para nele Josué, "atra-vessado o
Jordão", ratificar a Aliança (Js 8,30-35) com o Povo de Israel então formado
(Dt 27,1-10). Jesus retoma todo o acontecimento anterior e, vinculando todo
o passado israelita com a Sua Presença no mesmo monte onde "se
atiraram fora os deuses estranhos", revela o estabelecimento dos "novos
adoradores de Deus em espírito e em verdade", isto é, não mais na carne e
no exterior, mas no coração e a partir do interior do Homem, fruto da Graça.

O quadro a seguir mostra melhor que palavras:

JOSUÉ (Js 24,1.14-16.26-


JACÓ (Gn 35,1-7) JESUS (Jo 4,19-26)
26)
"Disse-lhe a mulher:
"Depois disse Deus a Jacó: Senhor, vejo que és
"Josué reuniu em Siquém
Levanta-te, sobe a Betel e profeta. Nossos pais
habita ali; e ergue ali um altar todas as tribos de Israel adoraram neste monte,
(...)
ao Deus que te apareceu e vós dizeis que em
quando fugias da face de Esaú, Jerusalém é o lugar
teu irmão. onde se deve adorar"
(Jo 4,19-20).
"E Josué disse a todo o
Então disse Jacó à sua família, povo: (...)Agora, pois,
"Disse-lhe Jesus:
e a todos os que com ele esta- temei ao Se-nhor, e servi-
vam: o com sincerida-de e com
verdade;
Mulher, crê-me, a hora
Lançai fora os deuses estra- deitai fora os deuses a
vem, em que nem neste
nhos que há no meio de vós, e que serviram vossos pais
monte, nem em
purificai-vos e mudai as vos-sas dalém do Rio, e no Egito,
Jerusalém adorareis o
vestes. e servi ao Se-nhor.
Pai.
(...) Mas a hora vem, e
Mas, se vos parece mal o
Levantemo-nos, e subamos a agora é, em que os
servir-des ao Senhor,
Betel; ali farei um altar ao Deus verdadeiros adorado-res
escolhei hoje a quem
que me respondeu no dia da adorarão o Pai em
haveis de servir; se aos
minha angústia, e que foi espírito e em verdade;
deuses a quem serviram
comigo no caminho por onde (...)Deus é Espíri-to, e é
vossos pais, (...). Porém
andei. necessário que os que o
eu e a minha casa
adoram o adorem em
serviremos ao Senhor.
espírito e em verdade.
Então respondeu o povo,
"Entregaram, pois, a Jacó todos Replicou-lhe a mulher:
e disse: Longe esteja de
os deuses estranhos (...)e Jacó Eu sei que vem o
nós o abandonarmos ao
os enterrou debaixo do Messias (que se chama
Senhor para servirmos a
carvalho que está junto a o Cristo); quando ele
outros deu-ses: porque o
Siquém. Então partiram; vier há de nos anunciar
Senhor é o nosso Deus
(...).todo o povo que estava todas as coisas.
(...)
com ele. Edificou ali um altar
Disse o povo a Josué:
(...) e chamou ao lugar Deus - Disse-lhe Jesus:
Servi-remos ao Senhor
Betel; porque ali Deus se lhe Eu o sou, eu que falo
nosso Deus, e
tinha manifestado..." contigo" (Jo 4,21-26).
obedeceremos à sua voz.

Voltando ao assunto em estudo, surgem então para Jacó dois fatos novos
bem dolorosos. Em primeiro lugar a morte de Raquel ao dar à luz Benjamim
[a quem, antes de expirar, ela deu o nome de "Bennoni (= filho de minha
dor) e que Jacó mudou para "Benyamin" (= filho de minha direita) (Gn
35,16-21)]; e, em seguida, a traição de seu filho primogênito "pernoitando"
com sua concubina Bala (Gn 35,22), ato naquele tempo considerado como
condenável "incesto".

Finalmente, volta Jacó para a "residência oficial" dos Patriarcas, em Mamré,


que se denomina também Hebron, onde e quando falece Isaac (Gn 35,27-
29). Prosseguindo o narrador inclui genealogias a partir da de Esaú que se
mesclou com os gentios ou pagãos da região, comprometendo a Aliança na
sua geração, ficando definitivamente desligado dela.
10. A ALIANÇA E JOSÉ, O "PRIMOGÊNITO" DE JACÓ

José, o filho primogênito de Raquel, a amada de Jacó, é um dos marcos


mais importantes da História da Salvação, cuja significação nunca se
apagará nem da memória Israelita nem da Cristã. Com ele se encerra um
período fundamental, a Era dos Patriarcas, e se abre outro, a Era do Povo
de Israel, em prosseguimento à concretização da Aliança. Manifesta-se a
fertilidade de bênçãos de Deus que se vai avolumando num crescendo e
em uníssono com os seus desígnios, sempre presente, tirando da obra da
maldade humana, fruto do pecado, o bem e a sua consumação. Quer assim
conduzir o Homem para o seu lugar - o Jardim do Éden, qual seja, para a
vida em comunhão com Ele. E os acontecimen-tos que se vão sucedendo,
muitas vezes contraditórios com a lógica que deveria ter um plano de Deus
bem traçado, humanamente falando, parecem comprometer seu sucesso. A
História de José, conhecido como "José do Egito" retrata a verdade de que
nada perturba a concretização de sua vontade e que do mal humano
sempre retira o bem e a Sua Justiça, traduzida na realização dos Seus
Desígnios, como ensina a Igreja:

"Assim, com o tempo, é possível descobrir que Deus, na


sua onipotente Providência, pode tirar um bem das
conseqüências dum mal (mesmo moral), causado pelas
criaturas: 'Não, não fostes vós - diz José a seus irmãos -
que me fizestes vir para aqui. Foi Deus. (...) Meditastes
contra mim o mal: o desígnio de Deus aproveitou-o para o
bem... e um povo numeroso foi salvo' (Gn 45,8; 50,2). Do
maior mal moral jamais praticado, como foi o repúdio e a
morte do Filho de Deus, causado pelos pecados de todos os
homens, Deus, pela superabundância da sua graça (Rm
5,20), tirou o maior dos bens: a glorifi-cação de Cristo e a
nossa redenção. Mas nem por isso o mal se transforma em
bem" (Catecismo da Igreja Católica, n.º 312).

Como toda a família humana, a família de Jacó também tinha seus dramas
e problemas peculiares. É natural que Jacó tivesse uma predileção especial
por José, filho de sua amada, o "primogênito do seu coração" e tanto é
assim que lhe tecera uma "túnica talar" (Gn 37,3c). Este tipo de túnica
caracteriza bem o valor que José tinha aos olhos do pai, uma dessas
túnicas usadas pelos elementos que integravam uma corte real, de mangas
e cavas largas e de longo comprimento, que por si só se impunha como
algo de majestoso e incomum, capaz até mesmo de incentivar o ciúme, e
incentivou, o dos irmãos que tomaram ódio dele (Gn 37,4). Mesmo porque
José também sonhara com os irmãos e os pais lhe prestando reverências
reais (Gn 37,6-11). E, quando Jacó o mandou em procura dos irmãos que
estavam pastoreando o gado em local distante, acertaram atirá-lo numa
cisterna vazia para depois de lá retirá-lo e vendê-lo como escravo aos
Madianitas ou Ismaelitas, ambos descendentes de Abraão, não se sabendo
com exatidão. Cabe aqui uma observação importante: - muitas das
narrações das Escrituras vêm-nos de diferentes tradições e são duplicadas
ou mescladas, até mesmo triplicadas, gerando alguma confusão. Não se
deve rejeitá-las simplesmente, mas somar as informações que nos trazem
sem as desprezar, eis que se referem a um mesmo fato real, alterado as
mais das vezes pela natureza das fontes. Assim a narração de que teriam
sido os ismaelitas ou madianitas não modifica a realidade de que José fora
vendido pelos irmãos, fato confirmado pelo restante da exposição. A Jacó
levaram apenas a sua túnica talar toda embebida em sangue, causando-lhe
mais um sofrimento atroz e levando-o a um luto estremado (Gn 37,31-35).
Já se fala aqui na vida após a morte: "chorando descerei a meu filho
debaixo da terra", tal como se acreditava, lá ficando no estado em que se
falecia (Gn 37,35 / Gn 44,29 / Nm 16,30), sendo ainda uma ofuscada
"figura" do nosso Purgatório, ou Mansão dos Mortos.

Neste ponto a história é cortada intercalando-se uma ocorrência com Judá


digna de nota em virtude de registrar uma instituição, a Lei do Levirato, que
impunha ao cunhado (= "levir") a obriga-ção de casar-se com a viúva do
irmão, para lhe suscitar prole (Gn 38,8), herdeiro, o qual seria descen-
dência do falecido para todos os efeitos legais e religiosos, e não dele. São
costumes que se solidificam em instituições sagradas. Judá não se
importando com a sorte da sua nora fê-la, para salvaguardar os direitos
seus e de seu marido, disfarçar-se de "mulher pública cultual", qual seja
uma mulher que ofe-recia seu corpo à divindade em "prostituição sagrada"
(Dt 23,18; Os 4,14; 1Rs 14,24; 15,12; 2Rs 23,7), conseguindo
ardilosamente uma relação sexual com o sogro Judá, recém enviuvado (Gn
38,12), sabendo-se que, na falta de irmãos do falecido, um parente próximo
(até mesmo o pai) satisfaria o costume, da qual adveio dois filhos gêmeos
(Gn 38,14-30), um dos quais se chamou Farés, que foi antepassado do Rei
Davi (1Cro 2,4-5 / Rt 4,18-21).

Terminado o parêntesis de Judá o narrador volta-se novamente para José,


que no Egito é ven-dido a Putifar, oficial e chefe da guarda do faraó (Gn
37,1-36) e acaba trabalhando na casa dele, gozando de sua plena
confiança pois "Deus estava com ele e por seu meio levava a bom termo
tudo o que empreendia, pelo que pôs em suas mãos todos os seus bens"
(Gn 39,1-6). A mulher pretendeu seduzi-lo, que "por fidelidade ao seu
senhor e a Deus" (Gn 39,9) recusou-a, levando-a a vingar-se acusando-o
falsamente, fato que o leva à prisão, onde se repete a "bênção de Deus em
José" fazendo com que gozasse da confiança do carcereiro (Gn 39,10-23).
Ai na prisão fica conhecendo, presos como ele, o padeiro e o copeiro reais,
dos quais desvendou os sonhos, indo, tal como interpretara, o padeiro para
a forca e o copeiro de volta às suas funções (Gn 40,1-22), "mas o copeiro
se esqueceu de José" a quem prometera pedir ao faraó que o libertasse,
inocente que era de todas as acusações que lhe fizeram (Gn 40,23 / 40,14-
15).

11. JOSÉ PASSA A GOVERNAR O EGITO

Apesar disso, Deus, "que tem os seus caminhos", vem em seu socorro e o
faraó tem dois so-nhos que o incomodam (Gn 41,1-7). Naqueles tempos
acreditar em sonhos como previsões de futuro era muito comum, por
demais valorizados e até mesmo aproveitados por Deus, que sempre se
utiliza da cultura humana para seus desígnios. Vê-se que atua na hora
certa, podendo-se crer que impediu que o copeiro se lembrasse antes da
hora, até que se criasse uma situação favorável, não apenas ao seu eleito
em si, mas ao prosseguimento da Aliança por meio dele. O faraó não
encontra quem o tranqüilize com a solução e então o copeiro se lembra e
sugere o nome de José, a quem se apresentou os sonhos. O famoso sonho
das "vacas magras e das vacas gordas", e o das " espigas mirradas e
queimadas, e espigas granosas e cheias" umas devorando as outras, pelo
que José pressagiou sete anos de fartura e sete anos de escassez.

Manifesta-se então a sabedoria de José que ainda sugeriu um plano de


ação que tanto convenceu que foi promovido a uma espécie de Primeiro
Ministro do Faraó (Gn 41,38-44) para a execução. É realmente ótimo
administrador e durante os anos de fartura José adquiriu e armazenou o
máximo do trigo produzido que pôde, para distribuí-lo no tempo da
escassez e de fome que atingiu o mundo todo de então (Gn 41,53-57). Por
causa disso os filhos de Jacó vão, a mando do pai, ao Egito em busca de
provisões e são reconhecidos por José, mas não o reconhecem. Não há
necessidade de se narrar aqui toda a história com todos os detalhes, mas
deverá ela ser totalmente lida e até mesmo estudada com calma. José foi
visto pelos Padres dos Primórdios como uma "figura" de Jesus, que
vendido pelos irmãos, humilhado e após grande sofrimento, inocente e
resignado, atinge a glória, os perdoa, salva e prepara-lhes um lugar.

José que já demonstrara especial sabedoria e discernimento no governo,


também vai fazê-lo no trato com seus irmãos. Imediatamente após
reconhecê-los, formando eles um grupo coeso de dez "es-trangeiros", os
acusa de espiões, estratagema que usa para forçá-los a se identificarem
totalmente, pelo que fornecem todos os detalhes familiares. Conhecia-os
suficientemente bem pelo que lhe fizeram e até mesmo os motivos, por isso
quis notícias do pai e principalmente da integridade do único irmão uterino,
Benjamim, também filho de Raquel, a amada, fonte dos ciúmes que poder-
lhe-iam ter infligido igual represália. Fez tudo o que pôde até conseguir que
o trouxessem a sua presença para vê-lo e se certificar de sua incolumidade.
Também com tais manobras e não deixando transparecer que entendia o
que conversavam, ouviu quando manifestaram com angústia o
arrependimento do que fizeram com ele, aceitando os dissabores por que
José os fazia passar como se fora um castigo pelo que lhe haviam feito de
mal. Depois de muita peripécia, buscando conhecer e certificando-se da
condição moral e das condições de vida dos irmãos, seu relacionamento
com o pai e principalmente com o seu irmão Benjamim, depois de prová-
los, José se dá a conhecer (Gn 42-45):

"Disse, então, José a seus irmãos: Eu sou José; vive ainda meu pai? E
seus irmãos não lhe puderam responder, pois estavam pasmados diante
dele. José disse mais a seus ir-mãos: Chegai-vos a mim, peço-vos. E eles
se chegaram. Então ele prosseguiu: Eu sou José, vosso irmão, a quem
vendestes para o Egito. Agora, pois, não vos entris-teçais, nem vos
aborreçais por me haverdes vendido para cá; porque para preservar vida é
que Deus me enviou adiante de vós. Porque já houve dois anos de fome na
terra, e ainda restam cinco anos em que não haverá lavoura nem sega.
Deus enviou-me adiante de vós, para conservar-vos descendência na terra,
e para guardar-vos em vida por um grande livramento. Assim não fostes
vós que me enviastes para cá, senão Deus, que me tem posto por pai de
Faraó, e por senhor de toda a sua casa, e como governador sobre toda a
terra do Egito" (Gn 45,3-8).

Aparece aqui além de grande sabedoria de José o seu conhecimento das


coisas de Deus pelo que tranqüiliza os irmãos, com o mesmo sinal da
presença da fé aliada com o amor pelos homens que vimos em Abraão,
reconhecendo em todo o acontecimento o dedo de Deus a tudo dirigindo
(Gn 50,19). Levam a notícia de que estava vivo e de sua posição ao pai,
que demorou a crer e não foi fácil convencê-lo de que José, além de vivo,
governava o Egito:

"Então subiram do Egito, vieram à terra de Canaã, a Jacó seu pai, e lhe
anunciaram, dizendo: José ainda vive, e é governador de toda a terra do
Egito. E o seu coração des-maiou, porque não os acreditava. Quando,
porém, eles lhe contaram todas as palavras que José lhes falara, e vendo
Jacó, seu pai, os carros que José enviara para levá-lo, rea-nimou-se-lhe o
espírito; e disse Israel: Basta; ainda vive meu filho José; eu irei e o verei
antes que morra. Partiu, pois, Israel com tudo quanto tinha e veio a
Bersabéia, onde ofereceu sacrifícios ao Deus de seu pai Isaac"(Gn 45,25-
46,1).

A princípio quis apenas rever seu filho antes de morrer. Chegando a


Bersabéia, local onde residia Abraão, temeu pelo prosseguimento da
Aliança em terra estranha distinta da prometida, até aquele momento
indefinido, o que o levou ao oferecimento do sacrifício, buscando saber qual
seria a vontade de Deus:

"Partiu, pois, Israel com tudo quanto tinha e veio a


Bersabéia, onde ofereceu sacrifí-cios ao Deus de seu pai
Isaque. Falou Deus a Israel em visões de noite, e disse:
Jacó, Jacó! Respondeu Jacó: Eis-me aqui. E Deus disse: Eu
sou Deus, o Deus de teu pai; não temas descer para o
Egito; porque eu te farei ali uma grande nação. Eu desce-
rei contigo para o Egito, e certamente te farei tornar a
subir; e José porá a sua mão so-bre os teus olhos" (Gn 46,1-
4).

O "não temas" da resposta evidencia a indecisão de Jacó, temor que


sempre assalta o eleito face ao contraditório do mundo com os planos de
Deus (Gn 15,1; 26,24c). Após o sacrifício e pela visão que teve fica-lhe
claro que no Egito, em prosseguimento da Aliança, formar-se-ia dele "uma
grande nação" e então desce, não mais para apenas "ver José antes de
morrer", mas com todos os seus familiares e bens, toda a Tribo dos Filhos
de Israel. Lá fixariam residência "em peregrinação", mas desde o início com
certa animosidade, pois "os egípcios detestam todos os pastores de
rebanhos" (Gn 46,33-34), o antigo preconceito aos nômades naturalmente.
Assim previu José, levando-os para a região de Gessem, onde poderiam
permanecer ou se mover sem molestar ou serem molestados, e onde a sua
religião poderia ser preservada incólume, sem se contaminar com a
idolatria egípcia.

12. A ALIANÇA E AS BÊNÇÃOS DE JACÓ NO EGITO

Após tal reviravolta, Jacó, já vivendo no Egito, se volta para a rotina do


passado e passa a se lembrar de vários acontecimentos que lhe exigiram a
atenção na época, agora quase esquecidos, com os quais até se
conformara e que agora se lhe apresentavam novamente com vigor
renovado:

"...viremos, eu e tua mãe, e teus irmãos, a inclinar-nos com o rosto em terra


dian-te de ti? ... seu pai meditava o caso no seu coração" (Gn 37,10-11).

É mais que evidente que "meditava o caso no seu coração" quanto ao que
ocorria com referência à Aliança procurando saber por onde Deus a
prosseguiria. Tudo lhe mostrava então que era por meio de José e sua
descendência que ela se concretizaria, e passa a agir na direção que se lhe
descortinava "o sinal dos tempos". Com o seu desaparecimento tudo
mudara e Jacó passara a viver de acordo com o que Deus dispusera, uma
vez que por si mesmo nada podia fazer. Agora, porém, que "o sonho de
José se realiza" tal como "meditava", exige do filho, por primeiro, que não o
sepulte em terra estrangeira, naquele tempo comparado a uma terrível
maldição, fazendo-o jurar "com a mão debaixo da coxa", comprometendo-
se assim na própria virilidade tal como se usava (Gn 47,29-31). Em
segundo lugar, sabendo para onde caminhava o Plano de Deus com
referência à Aliança, passa a preparar o terreno onde plantar a Bênção da
Primogenitura e onde transplantar a Bênção da Aliança, tal como foi esta
prometida a Abraão, que a deu ao seu pai Isaac e este lha transmitiu, como
vinha de novo "meditando em seu coração" (Gn 37,11). Adoecendo, José
leva-lhe seus dois filhos, Efraim e Manassés, nascidos no Egito de seu
casamento com Asenete (Gn 41,45.50-52). Concluído que é em José que
te-ria prosseguimento, é a ele que destina ambas as bênçãos, e lhe entrega
a dupla parte da herança (Dt 21,17) em forma de adoção dos dois filhos
dele como seus, tornando-os herdeiros como qualquer um dos outros filhos
e com eles concorrendo à herança (Gn 48,5-6):

"E disse Jacó a José: O Deus Todo-Poderoso me apareceu em Luz, na


terra de Canaã, e me abençoou, e me disse: 'Eis que te farei frutificar e te
multiplicarei; tornar-te-ei uma multidão de povos e darei esta terra à tua
descendência depois de ti, em possessão perpétua'. Agora, pois, os teus
dois filhos, que nasceram na terra do Egito antes que eu viesse a ti no
Egito, são meus: Efraim e Manassés serão meus, como Rúben e Simeão;
mas a prole que tiveres depois deles será tua; se-gundo o nome de seus
irmãos serão eles chamados na sua herança. (...) Quem são es-tes?
Respondeu José a seu pai: Eles são meus filhos, que Deus me tem dado
aqui. Continuou Israel: Trazei-mos aqui, e eu os abençoarei. (...) E José
tomou os dois, a Efraim com a sua mão direita, à esquerda de Israel, e a
Manassés com a sua mão es-querda, à direita de Israel, e assim os fez
chegar a ele. Mas Israel, estendendo a mão direita, colocou-a sobre a
cabeça de Efraim, que era o menor, e a esquerda sobre a cabeça de
Manassés, dirigindo as mãos assim propositadamente, sendo embora este
o primogênito. E abençoou a José, dizendo: O Deus em cuja presença
andaram os meus pais Abraão e Isaac, o Deus que tem sido o meu pastor
durante toda a minha vida até este dia, o anjo que me tem livrado de todo o
mal, abençoe estes meninos, e seja chamado neles o meu nome, e o nome
de meus pais Abraão e Isaac; e multipliquem-se abundantemente no meio
da terra" (Gn 48,3-16).

Acreditava-se que pelas mãos se comunicavam estado, poderes ou


virtudes da pessoa (Lv 1,4), mais ainda pela mão direita, que era assim
depositada na cabeça do primogênito, alvo de maior bênção. Há uma
inversão e Jacó abençoa Efraim como se fora o mais velho de José e
Manassés como o mais novo, anunciando a preeminência dele sobre o
irmão maior (Gn 48,17-20). Apesar do protesto do pai deles, encerra esse
primeiro momento praticando o ato a que se propusera, mantendo as mãos
trocadas, repetindo a mesma tônica da bênção de Abraão (Gn 12,2-3) e,
separadamente a José, antecipa uma doação de propriedade (Gn 38,18-20)
antes da conquista e do sorteio que se fará da Terra Prometida:

"Depois disse Israel a José: Eis que eu morro; mas Deus


será convosco, e vos fará tor-nar para a terra de vossos
pais. E eu te dou um pedaço de terra a mais do que a teus
irmãos, o qual tomei com a minha espada e com o meu
arco da mão dos amorreus" (Gn 48,21-22).

Essa determinação tem a mesma dimensão da que fará José a seus irmãos
(Gn 50,24-25), o que evidencia a transitoriedade da mudança do tribo para
o Egito. Além disso, consoante a Bênção de Ja-có, a Tribo de Efraim na
realidade será bem mais numerosa e de grande projeção e poder no seio
do Povo de Israel, e irá se destacar durante a Monarquia, quando irá
fundar, constituir e conduzir o Reino do Norte, na sedição das tribos (1Rs
11,26 / 1Rs 12). Sua preeminência será tão notória que o próprio Moisés a
afirmará, já no seu tempo, comparando-a com Manassés:

"...Eis o seu novilho primogênito; ele tem majestade; e os


seus chifres são chifres de boi selvagem; com eles
rechaçará todos os povos, sim, todas as extremidades da
terra. Tais são as miríades de Efraim, e tais são os milhares
de Manassés" (Dt 33,17c).

Além disso, aqui nesse trecho, o próprio Moisés trata José como "novilho
primogênito, com majestade e chifres de boi selvagem". Esta narrativa da
Bênção dos filhos de José é um ótimo exemplo daquela Regra oferecida na
Introdução para não se ater aos capítulos e versículos, mas sempre
observar o começo e o fim do assunto que se lê. Observe-se que a divisão
entre capítulo 48 e 49 não tem sentido e é aleatória, não se tratando de
momentos diferentes mas do prosseguimento de um mesmo ato, a Bênção
de Jacó a todos os seus filhos. Então, após confirmar a Aliança de Abraão,
com a distribuição inicial da Bênção para José e seus filhos Efraim e
Manassés, Jacó se volta para seus outros filhos e completa o seu trabalho
com uma locução, que se conhece ora como oráculo (Gn 49,1b) ora como
bênção (Gn 49,28c):

"Depois chamou Jacó a seus filhos, e disse: Ajuntai-vos


para que eu vos anuncie o que vos há de acontecer nos
dias vindouros. Ajuntai-vos, e ouvi, filhos de Jacó; ouvi a
Israel vosso pai..." (Gn 49,1-2) / "Todas estas são as doze
tribos de Israel: e isto é o que lhes falou seu pai quando os
abençoou; a cada um deles abençoou segundo a sua
bênção" (Gn 49,28).

Ao que tudo indica porém, teria sido proferida próximo da própria morte
que, com o desenrolar da História do Povo de Israel, foi sendo acrescida de
fatos pertinentes às tribos que tinham referência até mesmo remota com as
palavras de Jacó, mantidos no contexto pelo narrador tudo o que lhe
chegou por tradição oral, e na forma de um poema. Isso acontece muito em
Bíblia eis que não se escreve o fato no momento de sua ocorrência, mas
muito tempo após, já mesclado com várias acomodações. Por causa disso,
é necessário que o oráculo de Judá seja examinado, principalmente no seu
conteúdo religioso, destacando-se o seu teor messiânico. Ainda, no aspecto
cultural é de se verificar a existência de detalhes da primogenitura que vai
nos realçar a sua importância, principalmente quando se dirige a Rubem,
que como já vimos traiu o pai, praticando um "incesto" com a concubina
dele, Bala, a serva de Raquel (Gn 35,22):

"Rúben, tu és meu primogênito, minha força e as primícias


do meu vigor, preemi-nente em dignidade e preeminente
em poder. Impetuoso como a água, não reterás a
preeminência; porquanto subiste ao leito de teu pai; então
o profanaste. Sim, ele su-biu à minha cama" (Gn 49,3-4).

Este trecho exibe parte da importância do primogênito principalmente


quando o define como "minha força e as primícias do meu vigor", qual seja,
onde se manifesta a força geradora de Jacó com toda a capacidade, no
sentido bíblico de "primícias", como o impulso inicial e o princípio de
fecundidade, anunciando farta colheita. Por isso é por natureza
"preeminente em dignidade e preeminente em poder", sendo assim por si
só, uma qualidade de sua própria constituição (cfr. Gn 43,33). Tudo isso ele
perdeu - "subiste ao leito de teu pai, e o profanaste", "não te pertencerá
mais a preeminência que tens direito de gozar". Essa preeminência
compreende até mesmo a chefia do clã ou da tribo ou da família:

"De Hosa, dos filhos de Merári, foram filhos: Sínri o chefe,


ainda que não era o pri-mogênito, contudo seu pai o
constituiu chefe..." (1Cro 26,10).

O pai tinha o direito de ratificar ou retirar o direito do primogênito. Assim,


perdido por Ru-bem, o direito teria de ir logicamente para Simeão e Levi,
mas, por sua vez, também traíram o pai (Gn 34,25-31), no caso de Dina, e
não o recebem, com o ato deles não querendo compactuar Jacó:

"Simeão e Levi são irmãos; as suas espadas são


instrumentos de violência. No seu con-cílio não entres, ó
minha alma! com a sua assembléia não te ajuntes, ó minha
glória! porque no seu furor mataram homens, e na sua ira
estropiaram bois. Maldito o seu fu-ror, porque violento!
maldita a sua ira, porque cruel! Dividi-los-ei em Jacó, e os
es-palharei em Israel" (Gn 49,5-7).

A frase "dividi-los-ei em Jacó e os espalharei em Israel" mostra a


modificação operada no texto com os acontecimentos que ocorreram após
o seu pronunciamento. Jacó não tinha condições de saber que o seu povo
seria conhecido por "Israel", nem que ambas as tribos seriam tragadas
pelas outras, praticamente desaparecendo. Mas, ambos praticaram juntos o
ato injusto e comprometedor de que se ressente ainda e juntos deveriam
participar das conseqüências e da mesma perda. Assim, além de não gozar
da Primogenitura, Simeão vai se mesclar no território de Judá (Js 19,1-9) e
Levi, apesar do exercício do sacerdócio que lhe adveio pela postura no
episódio do Bezerro de Ouro (Ex 32,26-29), teve suas propriedades
disseminadas por toda a nação (Js 21,1-40). Ora, os vaticínios bíblicos
nunca são mencionados assim com tanta clareza, sem simbologia
adequada e misteriosa. Por causa desse fato, não faz mal repetir, o que se
referiu a cada um e a todos os filhos de Israel, bem como aquilo do vaticínio
de Jacó que se entendeu haver sido cumprido de alguma forma, foi
"esclarecido" por um redator posterior, acrescido e incorporado ao contexto,
o que se denomina de glosa, que os copistas e tradutores respeitaram e
mantiveram como parte do conteúdo.

Percebe-se que deve ter sido um problema difícil para Jacó esse de
desenvolver e conciliar o prosseguimento da Aliança entre os filhos, pois
caso seguisse uma ordem normal e lógica, a primoge-nitura caberia agora a
Judá, que assim esperava, ficando definido o caminho. Não que
necessariamente devesse seguir uma hierarquia determinada pela ordem
cronológica dos nascimentos, mas deve ter se-guido uma qualquer, mesmo
que pensada, planejada e amadurecida no decorrer de sua vida toda. Ago-
ra, o advento de José da forma como aconteceu alterou tudo clamando por
uma revisão, já que um novo elemento vem integrar a disposição racional já
deliberada e pronta. Principalmente por "conser-var na memória os fatos"
(Gn 37,11b), e já lhe "ter urdido uma túnica talar" (Gn 37,3c), e os "sonhos
que teve" (Gn 37,5.9), que naquele tempo eram vistos como presságios do
futuro, o convencerem en-tão do lugar onde iria desaguar a corrente da
Aliança. Sendo assim, o que planejara com o seu desapa-recimento ficaria
alterado não mais se admitindo que seguiria tudo apenas em Judá e, com o
retorno de José, impunha-se uma revisão total, pelo que parece afirmar:

"Judá, a ti te louvarão teus irmãos; a tua mão será sobre o


pescoço de teus inimigos: diante de ti se prostrarão os
filhos de teu pai. Judá é um leão novo. Voltaste da presa,
meu filho. Ele se encurva e se deita como um leão, e como
uma leoa; quem o desperta-rá? O cetro não se afastará de
Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que
venha aquele a quem pertence; e a ele obedecerão os
povos. Atando ele o seu jumentinho à vide, e o filho da sua
jumenta à videira seleta, lava as suas roupas em vinho e a
sua vestidura em sangue de uvas. Os olhos serão
escurecidos pelo vinho, e os dentes brancos de leite" (Gn
49,8-12).

O colorido messiânico desse vaticínio é facilmente visível, onde aparece a


força guerreira (Gn 49,9), fartura e prosperidade (Gn 49,11-12), realçadas
com imagens simbólicas, sem necessidade de muita análise. É preciso,
porém, ler um trecho de um livro bem adiante, para melhor precisar outros
acontecimentos a que se subordinaram esse oráculo de Jacó, modificando-
o:

"Quanto aos filhos de Rúben, o primogênito de Israel, pois


ele era o primogênito; mas, porquanto profanara a cama
de seu pai, deu-se a sua primogenitura aos filhos de José,
filho de Israel, de sorte que a sua genealogia não é
contada segundo o direito da primogenitura; pois Judá
prevaleceu sobre seus irmãos, e dele proveio o príncipe;
porém a primogenitura foi de José..." (1Cro 5,1-2).

E é o próprio redator do livro de Crônicas quem nos revela, pela boca de


Davi, o modo como Judá prevaleceu sobre seus irmãos:

"Todavia o Senhor Deus de Israel escolheu-me de toda a


casa de meu pai, para ser rei sobre Israel para sempre;
porque a Judá escolheu por príncipe, e na casa de Judá a
casa de meu pai, e entre os filhos de meu pai se agradou
de mim para me fazer rei sobre todo o Israel" (1Cro 28,4).

Assim, em Davi, descendente de Judá, foi cumprido o oráculo:

"Judá, a ti te louvarão teus irmãos; a tua mão será sobre o


pescoço de teus inimi-gos: diante de ti se prostrarão os
filhos de teu pai" (Gn 49,8).

Uma comparação mostrará que já nos primórdios se dava a esse oráculo


um sentido profundamente messiânico, como se lê em Apocalipse, que tirou
a denominação de "leão" para Jesus das palavras de Jacó:

Gn 49,9 Ap 5,5
"E disse-me um dentre os anciãos: Não chores;
Judá é um
eis que o
leãozinho. Voltaste da presa, meu
filho.
Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi,
Ele se encurva e se deita como um
venceu para abrir o livro e romper os seus sete
leão,
selos."
e como uma leoa; quem o
despertará?"

E é muito aceitável esse conteúdo messiânico por causa de um fato muito


conhecido do Evangelho de Mateus, quando nos narra a visita dos Reis
Magos, onde é digno de nota o que perguntaram e o que aconteceu por
causa disso:

"Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do


oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo. O rei
Herodes, ouvindo isso, perturbou-se, e com ele toda a Jeru-
salém; e, reunindo todos os principais sacerdotes e os
escribas do povo, pergunta-va-lhes onde havia de nascer o
Cristo. Responderam-lhe eles: Em Belém da Ju-déia..." (Mt
2,2-5).

Com base neste trecho, pergunta-se:

 "O rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se..." - ora, somente por ter
nascido um menino a quem estrangeiros qualificavam de "rei dos
judeus"?

 Além disso, "os principais sacerdotes e os escribas", por sua vez,


souberam dizer onde nasceria o Cristo (em hebraico, o Messias)?

Essas indagações mostram que ao tempo de Herodes, o Messias (Cristo,


em grego) era esperado, eis que o rei se perturbou e só quis saber "onde
nasceria", do que foi informado, tendo como certa a sua existência. É que
quando Herodes, que não era israelita nem da Tribo de Judá, foi nomeado
rei por Roma, quando o cetro não mais pertenceu à Tribo de Judá, cumpria-
se o vaticínio de Jacó, uma vez que "viria já aquele a quem pertence e a ele
obedecerão os povos" (Gn 49,10cd). Tanto é as-sim, que, com base nas
informações que recebeu, "Herodes mandou matar todos os meninos de
até dois anos" (Mt 2,16), pelo que o Evangelista viu cumprido antigo oráculo
(Jr 31,15).

Tudo mostra que, pelos acontecimentos acrescidos, a Judá foi preservada a


chefia quando Israel se constituísse como os outros povos em reino, já que
fala em "cetro", com um colorido "messiâ-nico". Não é oportuno se discutir
isso aqui mas parece uma glosa para justificar a posse de Judá pela coroa
israelita, eis que impossível para Jacó prever que Israel seria uma
monarquia em certa ocasião histórica, pela imprecisão normal de todos os
vaticínios que a Escritura no oferece (Gn 49,1-10), e a resistência oferecida
por Samuel com base na doutrina quando o povo a pediu (1Sm 8).
Porém, a José é dada a Bênção da Primogenitura, com todos os seus
elementos, "todas as bênçãos", inclusive a indispensável consagração,
prosseguindo-se nele a Aliança:

"José é um ramo frutífero, ramo frutífero junto a uma fonte; seus raminhos
se estendem sobre o muro. Os flecheiros lhe deram amargura, e o
flecharam e perseguiram, mas o seu arco permaneceu firme, e os seus
braços foram fortalecidos pelas mãos do Pode-roso de Jacó, o Pastor, o
Rochedo de Israel, pelo Deus de teu pai, o qual te ajuda-rá, e pelo Todo-
Poderoso, o qual te abençoara, com bênçãos dos céus em cima, com
bênçãos do abismo que jaz embaixo, com bênçãos dos seios e da madre.
As bênçãos de teu pai excedem as bênçãos dos montes eternos, as coisas
desejadas dos eternos outeiros; sejam elas sobre a cabeça de José, e
sobre o alto da cabeça daquele que foi consagrado de seus irmãos" (Gn
49,22-26).

À tribo de Efraim, "pela imposição da mão direita de Jacó", caberia então o


exercício da chefia do clã, após José, na forma da tradição cultural,
correspondente ao equilíbrio tribal em vigor na época. Tudo fica mais claro
com uma revisão sucinta do passado, que agora nos impõe para maior
clareza e necessidade ao raciocínio. É que José era o filho predileto de
Jacó e os seus irmãos o odiavam por isso e por sonhos dele que previam
sua supremacia futura (Gn 37,3-4.5-11), sonhos esses que se cumpri-ram
(Gn 42,6.9). José e Judá são os dois filhos primogênitos de ambas as
mulheres de Jacó, Raquel e Lia. De Lia, Judá seria o primogênito em lugar
de Rúben, Simeão e Levi que perderam o direito (Gn 49,4-6); e, de Raquel,
José, a quem Jacó amava com predileção e a quem devolveu a
primogenitura. Por sua vez fora a tribo de Judá abençoada por Jacó com
um colorido messiânico (Gn 49,8-12), e ca-bia-lhe o direito da primogenitura
na ordem cronológica de nascimento (Gn 29,31-35). Assim como Esaú
odiou de morte a Jacó por causa da primogenitura, pelo mesmo motivo é de
se esperar o ressen-timento de Judá quando seria destinada por predileção
a José. Não se deve perder de mira que foi Judá quem chefiou a venda de
José para os ismaelitas (Gn 37,26-27), contra a vontade de Rúben que o
que-ria restituir ileso ao pai (Gn 37,22), e isso se deu antes da bênção de
Jacó (Gn 49). E, no futuro, tanto com a correspondente bênção, como com
Efraim e Manassés igualados a Rúben e Simeão (Gn 48,5) e na porção
maior dada a José (Gn 48,22), Jacó restabelece a José o seu lugar. A isso é
que Judá não concorda, se propõe e consegue retomá-la. Assim, os
antagonismos familiares fervilhavam, fermentan-do-se uma divisão futura
que irá certamente ocorrer. Não é à toa que em Dt. 21,17 se vai proibir a
preferência do pai pelo primogênito da mulher amada, coincidência demais
com os fatos da tribo de Jacó.

Os demais elementos integrantes do oráculo de Jacó e atinentes a seus


outros filhos, as mais das vezes históricos ou geográficos de cada tribo,
podem ser facilmente verificados na medida em que os demais livros da
Bíblia mencionarem o nome deles, quando então dever-se-á fazer uma
comparação com esse texto. A essa altura é bom que se recorde que nem
sempre é possível conhecer de imediato todos os detalhes integrantes das
Escrituras, eis que condicionando-se à cultura humana com todas as suas
implicações, muitas vezes hoje não se pode compreender com exatidão o
sentido das narrativas escritas para os homens daquele tempo e não para
os atuais. Um exemplo melhor esclarecerá: suponhamos que alguém
nesses dias escreva algo assim: "então embananou o meio do campo e
tudo acabou em samba". Ora, se tal escrito for guardado durante quatro mil
anos e então alguém ler essa frase, se desconhecer a "bananada", o
"futebol" e a "nossa música", entenderá alguma coisa? Claro que não, e
aquilo que hoje não tem nenhum mistério para nós, ele não irá nunca
compreender se não fizer um estudo aprofundado de nossa cultura. E se
não conseguir fazê-lo terá que se contentar com uma compreensão total de
nossa época e enquadrar a afirmação o melhor possível. Assim acontece
muitas ve-zes quando se lê a Bíblia. Jesus Cristo é quem vai esclarecer o
que é essencial, com a Revelação defi-nitiva que faz, e que sem Ele é
impossível, como afirma São Paulo (2Cor 3,14-16).

erminadas as Bênçãos, Jacó se despede:

"Depois lhes deu ordem, dizendo-lhes: Eu estou para ser


congregado ao meu povo; sepultai-me com meus pais, na
cova que está no campo de Efrom, o heteu, na cova que
está no campo de Macpela, que está em frente de Manre,
na terra de Canaã, cova esta que Abraão comprou de
Efrom, o heteu, juntamente com o respectivo campo, como
propriedade de sepultura. Ali sepultaram a Abraão e a
Sara, sua mulher; ali sepultaram a Isaque e a Rebeca, sua
mulher; e ali eu sepultei a Lia. O campo e a cova que está
nele foram comprados aos filhos de Hete. Acabando Jacó
de dar estas instruções a seus fi-lhos, encolheu os seus pés
na cama, expirou e foi congregado ao seu povo" (Gn 49,29-
33).

Quando Abraão comprou a gruta onde sepultou Sara (Gn 23,1-20), tal como
se pensava na antigüidade, tomou posse da Terra Prometida, sua
residência para sempre, e é para o mesmo lugar que deverá ser
transportado Jacó, "para ser congregado ao seu povo", tal como se
acreditava na "vida após a morte", como se verá também em outros lugares
da Escritura, o que foi feito (Gn 50,7-14). Sepultado o pai, José é assediado
pelos irmãos, que dele agora temiam uma represália pelo que lhe fizeram,
ao que lhes comunica a isenção de qualquer mágoa e de profunda fé na
direção dos acontecimentos por Deus (Gn 50,15-21). E, quando se
aproxima o fim de seus dias, bem vividos, dita as últimas ordens a seus
irmãos, o que comprova a sua qualidade de "chefe", de "primogênito no
exercício de suas funções" em direção aos compromissos da Aliança:

"Depois disse José a seus irmãos: Eu morro; mas Deus


certamente vos visitará, e vos fará subir desta terra para a
terra que jurou a Abraão, a Isaque e a Jacó. E José fez jurar
os filhos de Israel, dizendo: Certamente Deus vos visitará,
e fareis transportar daqui os meus ossos. Assim morreu
José, tendo cento e dez anos de idade; e o embalsamaram
e o puseram num caixão no Egito" (Gn 50,24-26).

"Moisés levou consigo os ossos de José, porquanto havia


este solenemente ajuramentado os filhos de Israel,
dizendo: Cer-tamente Deus vos visitará; e vós haveis de
levar daqui convosco os meus ossos" (Ex 13,19) / "Os ossos
de José, que os filhos de Israel trouxeram do Egito, foram
enterra-dos em Siquém, naquela parte do campo que Jacó
comprara aos filhos de Hamor, pai de Siquém, por cem
peças de prata, e que se tornara herança dos filhos de
José" (Js 24,32) .

Aqui termina o Livro de Gênesis, base de todo estudo da Bíblia, trazendo


gloriosa e santa história dos Patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, que lançaram
os fundamentos de nossa fé. Nenhuma menção honrosa será maior que a
da própria Igreja, cujos alicerces lançaram e ergueram:

"Para reunir a humanidade dispersa, Deus escolheu Abrão,


chamando-o para "fora do seu país, da sua parentela e da
sua casa" (Gn 12,1), para o fazer Abraão, quer dizer, "pai
duma multidão de nações" (Gn 17,5): "Em ti serão
abençoadas todas as nações da Terra" [Gn 12,3 LXX (cfr. Gl
3,8)]".

"O povo saído de Abraão será o depositário da promessa


feita aos patriarcas, o povo eleito (Rm 11,28), chamado a
preparar a reunião, um dia, de todos os filhos de Deus na
unidade da Igreja (Jo 11,52; 10,16). Será o tronco em que
serão enxertados os pagãos tornados crentes (Rm 11,17-
18,24)".

"Os patriarcas, os profetas e outras personagens do Antigo


Testamento foram, e se-rão sempre, venerados como
santos, em todas as tradições litúrgicas da Igreja"
(Catecismo da Igreja Católica, n s.º 59, 60 e 61 - destaques
a propósito)".

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