Capitulo 2
Capitulo 2
Capitulo 2
Capítulo 2
GÊNESIS
A Aliança
1. A PROMESSA
Abandonando tudo, toma a sua mulher, seu sobrinho Ló, com tudo o que
possuía, e foi para a terra de Canaã, terra que era destinada "à tua
descendência":
"Partiu, pois Abrão, como o Senhor lhe ordenara, e Ló foi
com ele. Tinha Abrão se-tenta e cinco anos quando saiu de
Harã. Abrão levou consigo a Sarai, sua mulher, e a Ló, filho
de seu irmão, e todos os bens que haviam adquirido, e as
pessoas que lhes acresceram em Harã; e foram à terra de
Canaã. Passou Abrão pela terra até o lugar de Siquém, até
o carvalho de Moré. Nesse tempo estavam os cananeus na
terra. Apareceu, porém, o Senhor a Abrão, e disse: À tua
descendência darei esta terra. Abrão, pois, edificou ali um
altar ao Senhor, que lhe aparecera. Então passou dali para
o monte ao oriente de Betel, e armou a sua tenda, ficando-
lhe Betel ao ocidente, e Hai ao oriente; também ali
edificou um altar ao Senhor, e invocou o nome do Senhor"
(Gn 12,4-8).
Essa atitude de Abrão assusta por demais, principalmente o cristão que não
pode concordar com essa entrega da esposa para ser levada ao harém do
faraó. Aqui também se impõe a necessidade de se deslocar mentalmente
ao tempo do acontecido e analisá-lo como então, não como hoje. 0ra,
Abrão estava consciente de sua missão e detentor de uma promessa de
Deus, a que tinha de corresponder eficazmente, ao que se aliam várias
outras situações peculiares. Uma delas é a da luta pela so-brevivência num
país hostil e de cultura diferente, acontecendo exatamente o que Abrão
havia previsto e temido, pelo que teve sua vida não somente poupada mas
enriqueceu-se "por causa dela, ganhando ovelhas, bois e jumentos,
escravos e escravas, mulas e camelos" (Gn 12,16). 0utra delas é a
inexistên-cia do mesmo conceito moral uniforme e organizado que temos
hoje, além de idêntica e adequada hie-rarquia de valores, mas normas de
conduta e comportamento as mais das vezes isoladas e rudimenta-res,
instintivas mesmo, ditadas pela sobrevivência. 0 que nos impõe é não o
condenar pelas nossas leis morais, já que se manifestava uma das
conseqüências do pecado original, sempre em conflito com o "justo",
tateando e debatendo-se, num mundo confuso e desordenado. Conclui-se
que houve uma in-tervenção de Deus em defesa da integridade ameaçada
de Sarai, protegendo-a, porque "o Senhor feriu o faraó e sua corte com
grandes flagelos por causa de Sarai, esposa de Abrão" (Gn 12,17 / Gn
20,4.14.16).
Este fato vai se repetir igualmente em Gerar, com Abimelec (Gn 20), bem
como a intervenção de Deus, salvaguardando de qualquer violação a
integridade de Sarai (Gn 12,17 / 20,3.4.14.16), e em defesa do casal,
protegendo e tutelando seus eleitos, uma vez que Sarai era "meia-irmã"
dele, filha do mesmo pai se bem que de mãe diferente (Gn 20,12-13). O
que se buscava era livrá-los da morte em vista da missão a que os elegera,
pelo que, tal como no Jardim do Éden, a proteção de Deus, que "fez para
eles túnicas de peles e os vestiu" (Gn 3,21), se repete. 0s desígnios de
Deus são irreversíveis, e para conduzir o Homem ao Paraíso, vai formar um
povo a partir de Abrão, que sai do Egito rico (Gn 13,2), retornando à Terra
de Canaã, "ao lugar onde anteriormente erigira um altar, e ali invocou o Se-
nhor" (Gn 13,4). De novo o sacrifício como centro do culto a Deus e da vida
do Patriarca. Da mesma maneira que ocorreu com Abrão, o povo dele
advindo também irá, pelo mesmo motivo da fome, para o Egito e de lá
também será expulso rico, pelo faraó (Gn 15,13 / Ex 12,36.51).
Abrão é novamente premiado por sua fé, bem evidenciada pelo modo
pacífico de contornar e solucionar a divergência, sem perder ao menos de
leve o equilíbrio, mesmo sofrendo a injustiça do egoísmo de Ló, escolhendo
a melhor porção (Gn 13,10-12), ficando-lhe a da Promessa, pelo que Deus
a ratifica:
Abrão se depara com outra situação de fato, uma guerra entre cinco
cidades em virtude do que Ló com as suas posses é levado como parte do
saqueado de Sodoma e Gomorra pelos vencedores (Gn 14,1-12). Avisado,
Abrão vai em socorro do sobrinho, com um grupo de apenas trezentos e
dezoito homens, liberta-o e a todos os prisioneiros bem como recupera
todos os bens saqueados. Aparece aqui o justo em luta com o mundo que
lhe é totalmente avesso, onde não se porta como um covarde nem foge à
luta. Numa espécie de guerrilha ("à noite") vence e liberta tudo e todos,
além do seu sobrinho com seus pertences (Gn 14,15-16). O rei de Sodoma
lhe dá todos os bens e reclama as pessoas liber-tadas. Aparece então uma
figura misteriosa por demais:
Porém, o fato de Abrão receber dele uma bênção e pão e vinho, como
oferendas de sacrifício, e entregue o dízimo dos despojos advindos pela
vitória, evidenciam a identidade de uma fé comum:
O sentido aqui é o que se lê: pela fé que teve a sua conta com Deus foi
quitada. Assim, a Fé de Abrão que lhe valeu a "justificação" e o tornar-se "o
Pai de todos os crentes" (Rm 4,11), serve de mo-delo perene para todos os
fiéis de todos os tempos
Também São Tiago na sua Epístola vai a ela se referir, para vinculá-la à
necessidade de expres-são em obras para não ser uma "fé morta":
3. A ALIANÇA ESBOÇADA
4. A ALIANÇA ESTABELECIDA
Para Abrão e Sarai a condição básica para a grande posteridade dele ficara
então satisfeita com o nascimento de Ismael (Gn 16,15-16). Deus então se
manifesta e dá à Aliança uma nova dinâmica, até agora não vista:
Dada a notícia, afirma Deus que "descerei para ver se as suas obras
chegaram a ser como o clamor que chegou até mim, e, se não, o saberei",
evidenciando pelo "descerei" o sobrenatural do quadro apresentado, tendo
Abraão sido elevado até Ele. E é nesse estado sobrenatural que Abraão vai
demonstrar a sua "elevação" espiritual (Gn 18,22-33), quando aparece que
"quanto mais Amigo de Deus, mais amigo dos homens". É o efeito natural
da caridade, "o Amor de Deus que se "derrama no coração do Homem pela
Graça" (Rm 5,5), o estado da "elevação" de Abraão, "justificado pela sua
fé". Vai regateando com Deus, paulatinamente se esforçando para salvar a
tudo e a todos da punição iminente e justa. Intercede habilidosamente e
com toda a humildade possível representada pelo modo de se expressar
próprio do tempo, cuidadosa e lentamente vai decrescendo o número de
pessoas boas que possivelmente possam existir nas duas cidades até um
mínimo de dez, bem razoável, ficando claro que existisse uma pequena
quantidade de justos nas localidades, Deus as pouparia por causa deles.
Prefigura esse quadro a Redenção que será operada por Jesus Cristo com
a Nova Aliança (Lc 22,20), unindo definitivamente o Homem a Deus na Sua
Igreja, a comunidade de seus discípulos refle-tindo a Graça e a Misericórdia
de Deus no mundo, que "perdoa a todo o lugar em atenção a eles" (Gn
18,26.28.30.31.32), "justificados" pelo Sangue do Cordeiro de Deus. Essa
comunhão de afetos entre Deus e Abraão, entre Deus e um Homem, é o
arquétipo da Caridade Cristã, tornada virtude humana na ação, mas de
fonte impulsionadora divina. Tal com lá, a caridade é a presença de Deus
entre os homens, em amizade e íntima comunhão de vidas, não mais entre
Criador e Criatura, mas entre Pai e Filho, que se difunde por mediação e
eleição dos "justos" a todos os outros, bons e maus. Repete-se sempre a
presença do "justo", do que faz a vontade de Deus, vivendo nos "caminhos
do Senhor, prati-cando a justiça e o direito" (Gn 18,19). Caridade é isso, é
viver a vontade de Deus para o Homem; começa em Deus e explode
radiante de beleza nos homens. O Homem não a cria, é fruto do amor e
misericórdia de Deus, propagando-se entre os homens assim como a fé e a
esperança. A caridade parte de Deus e não se confunde com nenhuma
ação humana, não se exaure na esmola nem em nenhuma assistência
social e supera qualquer atividade por mais humanitária que seja. A
caridade é a expressão da Aliança de Deus com o Homem:
Jesus nos revela que Sodoma e Gomorra, tal como o Dilúvio, é outra
expressão das conse-qüências do pecado na Criação, e é um anúncio do
quadro revolucionário a ser causado no mundo criado quando da revelação
do Filho do Homem, ao erradicar definitivamente o pecado:
Por primeiro, chama a atenção o "descerei" (Gn 18,21) tal como no relato
da Torre de Babel (Gn 11,6.7), mostrando a mesma concepção cultural de
um deus em figura de homem (visão "antro-pomórfica" de Deus), habitando
no "alto". Não pode ser diferente aqui a intenção do narrador, que-rendo
também evidenciar a continuidade e a coexistência das conseqüências do
pecado apesar da Ali-ança recém - contraída, vinculando ambos à
lembrança dos descendentes de Abraão para não perturba-rem mais ainda
pela sua conduta o cumprimento dos desígnios de Deus com a Aliança, que
vai recon-duzir o Homem à comunhão, intimidade e familiaridade perdidas:
Como Ló fora morar nas cidades pecadoras seria com elas vítima da
catástrofe. Mas, era ele também um "justo" e o narrador mostra como Deus
vem em socorro de seus fiéis e os protege, res-pondendo à eficaz
intervenção de Abraão em favor dos homens, e só as destrói após libertá-lo:
"Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava, e outro da
livre. To-davia o que era da escrava nasceu segundo a carne, mas, o que
era da livre, por pro-messa. O que se entende por alegoria: pois essas
mulheres são duas alianças; uma do monte Sinai, que dá à luz filhos para a
servidão, e que é Agar. Ora, esta Agar é o monte Sinai na Arábia e
corresponde à Jerusalém atual, pois é escrava com seus filhos. Mas a
Jerusalém que é de cima é livre; a qual é nossa mãe. Pois está escrito:
Alegra-te, estéril, que não dás à luz; esforça-te e clama, tu que não estás
de parto; porque mais são os fi-lhos da desolada do que os da que tem
marido. Ora vós, irmãos, sois filhos da promes-sa, como Isaac. Mas, como
naquele tempo o que nasceu segundo a carne perseguia ao que nasceu
segundo o Espírito, assim é também agora. Que diz, porém, a Escritura?
Lança fora a escrava e seu filho, porque de modo algum o filho da escrava
herdará com o filho da livre. Pelo que, irmãos, não somos filhos da
escrava, mas da livre" (Gl 4,22-31).
"Meu pai!
...
Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o
holocausto?
...
Deus proverá o cordeiro para o holocausto, meu filho...."
(Gn 22,7-8).
A prova a que Deus submete não se destina a um exame que Ele faz no
eleito para conhecê-lo, eis que o Deus Onisciente conhece tudo e todos
(1Sm 16,7). Destina-se ao amadurecimento e à toma-da de consciência
que cada um tenha de si mesmo e das dimensões da sua missão, dela
saindo então robustecido, pelo que Deus reforça e ratifica a Aliança.
Termina aqui a prova de Abraão e, não só de Abraão, mas também do
próprio Isaac o qual mudo dela participou, demonstrando ambos, para a
"descendência" deles, aptidão e maturidade para o prosseguimento da
Aliança. E como sempre Abraão remata com o sacrifício do carneiro, de
cujo holocausto a eficácia se comprova nas palavras do Anjo:
Tal como com Abraão (Gn 18), com Isaac (Gn 26,2.24) ocorreu uma
manifestação sensível de Deus, uma teofania, neste episódio da "escada'
por cima da qual estava o Senhor" em que se profere a mesma bênção
para a posteridade de Abraão e a mesma promessa da herança da mesma
terra das suas peregrinações (Gn 12,7; 13,14-17; 22,17-18; 26,4.24), bem
como a mesma resposta do Patriarca eri-gindo um lugar de culto
acompanhado de um sacrifício, se bem que aqui com Jacó trata-se de uma
libação e a unção de uma pedra erigida em cipo, muito usado naqueles
tempos como testemunho ou prova de algum fato profano ou sagrado e
religioso (Gn 31,45; Js 4,9.20; 24,26-27) e até mesmo para as coisas de
Deus:
Pode-se até mesmo admitir a preferência de Jacó por este tipo de oferenda
dado o seu caráter mais pacífico ("...homem tranqüilo, habitante da tenda"
Gn 25,27c). Aqui com ele a teofania atinge um clímax com a presença da
narrativa de uma "escada", como que aquela da Torre de Babel, aqui
servindo de comprovação do elo de ligação entre os anjos que descem do
céu para seu ministério no mundo, como interpretaram os Santos Padres e
de que apesar da separação ou distância entre o céu e a terra, pode atingi-
lo sempre, aquele que ama a Deus. Vê-se com facilidade que por Jacó viria
o prosseguimento da História da Salvação que culminaria em Jesus Cristo,
motivo por que se caracterizam a "promessa" e a "aliança" com Abraão,
com Isaac e com Jacó (também em Gn 35,11-13 e 46,3-4), como
Messiânicas, e tal como seus antepassados faz do sacrifício o centro do
seu culto, prometendo erguer no local um santuário para o que destinará o
dízimo:
Seu encontro com Raquel, sua prima e pastora de ovelhas que as traz para
beber água, se dá de imediato num poço (Gn 29,1-14), repetindo, pela
presença de Deus dirigindo os acontecimentos, o mesmo que ocorreu
quando da busca de uma mulher para Isaac. É conduzido para a casa do
tio e lá fixa sua residência e passa a trabalhar, a ser explorado melhor dir-
se-ia. Apaixona-se por Raquel e aceita trabalhar sete anos para então
desposá-la. Mas, o sogro ardilosamente o desposa com Lia ao pretexto de
que não poderia casar a mais nova e permanecer com a mais velha
solteira. Descoberto o embuste, após o cerimonial concluído, introduzida a
esposa em sua tenda à surdina, Jacó reclama mas acaba aceitando
trabalhar mais sete anos para recebê-la daí a uma semana (Gn 29,14c-30).
Aparece então outra vez a esterilidade das mulheres dos Patriarcas e
vinculadas à História da Salvação, que só se tornavam férteis por uma ação
especial de Deus, por ser o Único Autor da Salvação:
Dessa união lhe advieram doze filhos e uma filha (Gn 29,32-30,24 / 35,16-
18), que deram ori-gem às doze tribos dos Filhos de Israel, o nome que
Deus dará a Jacó (Gn 32,29; 35,9), donde vai se formar o Povo de Israel.
Não há necessidade de se delongar no relato dos nascimentos de todos
eles, ficando para cada participante o dever de ler aquilo que não for aqui
exposto, completando seu conhe-cimento bíblico com seu próprio esforço,
evitando-se que o curso seja passivo. Basta relatar os nomes dos filhos de
Jacó, com os das mulheres e das concubinas que os geraram (Gn 35,23-
26):
Finalmente, Jacó volta à terra do Pai, e então procura Esaú para fazer as
pazes, ato de humil-dade (Gn 33,1-17), muito conforme a sua formação
pacífica e peculiar a um homem que vive em comunhão com Deus. Quando
estava a caminho teve medo e foi assaltado por grande angústia, o que lhe
significou uma luta misteriosa com o próprio Deus, pelo conflito íntimo
ensejado com Sua Vontade, ocasião em que o anjo lhe muda o nome para
Israel (Gn 32,23-32) pelo qual será para sempre conhecido, bem como o
povo formado pelos seus descendentes. Deste fato não há testemunhas,
tendo sido narrado pelo próprio Jacó. Mas, tudo vai sendo confirmado até
mesmo nos contrastes, que não param, e sua luta prossegue incansável:
Dina sua filha é ultrajada e apesar de se acertar com a família do ofen-sor o
casamento com ela, conseguindo até mesmo que se deixassem circuncidar,
convertendo-se ao Deus da Aliança, seus filhos Simão e Levi, irmãos
uterinos dela, atacam e matam todos os varões em vingança, deixando
Jacó em situação difícil perante os habitantes da região e com grave perigo
para a sobrevivência geral (Gn 33,18-34,31). Nem assim há o mais leve
sinal de perda de equilíbrio em Jacó. Recebe logo após, do próprio Deus, a
ratificação de tudo o que lhe foi prometido quando iniciou sua fuga (Gn
28,11-15) e quando lhe foi mudado o nome (Gn 32,24-29):
"Apareceu Deus outra vez a Jacó, quando ele voltou de
Mesopotâmia, e o abençoou. E disse-lhe Deus: O teu nome
é Jacó; não te chamarás mais Jacó, mas Israel será o teu
nome. E chamou-lhe Israel. Disse-lhe mais: Eu sou Deus
Todo-Poderoso; frutifica e multiplica-te; uma nação, sim,
uma multidão de nações sairá de ti, e reis procederão dos
teus lombos; a terra que dei a Abraão e a Isaac, a ti a
darei; também à tua descendência depois de ti a darei. E
Deus subiu dele, do lugar onde lhe falara. Então Jacó erigiu
um cipo no lugar onde Deus lhe falara, um cipo de pedra; e
sobre ele derramou uma libação e deitou-lhe também
azeite; e Jacó chamou Betel ao lugar onde Deus lhe falara"
(Gn 35,9-15).
"Depois disse Deus a Jacó: Levanta-te, sobe a Betel e habita ali; e ergue ali
um altar ao Deus que te apareceu quando fugias da face de Esaú, teu
irmão. Então disse Jacó à sua família, e a todos os que com ele estavam:
Lançai fora os deuses estra-nhos que há no meio de vós, e purificai-vos e
mudai as vossas vestes. Levantemo-nos, e subamos a Betel; ali farei um
altar ao Deus que me respondeu no dia da minha angústia, e que foi
comigo no caminho por onde andei. Entregaram, pois, a Jacó todos os
deuses estranhos, que tinham nas mãos, e as arrecadas que pendiam das
suas orelhas; e Jacó os enterrou debaixo do carvalho que está junto a
Siquém. (...) Assim chegou Jacó à Luz (...) Edificou ali um altar, e chamou
ao lugar de "O Deus de Betel"; porque ali Deus se lhe tinha manifestado
quando fugia da face de seu irmão" (Gn 35,1-7).
Com esse gesto Jacó manifesta publicamente e para sempre a sua adesão,
a de sua família e a dos seus descendentes, exclusiva e incondicional a
Deus; do mesmo modo, será objeto de outra ratificação igual, séculos
depois, no mesmo lugar e quando da Conquista da Terra Prometida, por
Josué:
Também foi nesse mesmo local que Jesus Cristo se encontrou com a
Samaritana, "cumprindo" (Mt 5,17) semelhante propósito:
"És tu, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos
deu o poço, do qual tam-bém ele mesmo bebeu, e os filhos,
e o seu gado?" (Jo 4,12) / "Disse-lhe a mulher: Se-nhor, vejo
que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós
dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar" (Jo
4,19-20).
Ao que Jesus lhe responde, tal como Jacó e Josué, "definindo toda e
qualquer adoração daí em diante, e revelando a verdadeira natureza do
Deus de Israel", bem como pela primeira vez em todo o Evangelho
confessa-se o Cristo:
Claro fica, pela própria Revelação de Jesus à Samaritana, que a reta final
da formação do Povo de Israel começara com aquele ato de Jacó, em
Betel. Esse local é o repositório das mais antigas e sólidas tradições dos
Patriarcas, a começar com Abrão erigindo ali um altar, tornando-o um lugar
sagra-do (Gn 12,6+; 13,3), mais tarde comprado por Jacó erguendo ali
outro (Gn 35,1-15) em cumprimento de sua promessa (Gn 28,10-22). Além
disso foi escolhido pelo próprio Moisés para nele Josué, "atra-vessado o
Jordão", ratificar a Aliança (Js 8,30-35) com o Povo de Israel então formado
(Dt 27,1-10). Jesus retoma todo o acontecimento anterior e, vinculando todo
o passado israelita com a Sua Presença no mesmo monte onde "se
atiraram fora os deuses estranhos", revela o estabelecimento dos "novos
adoradores de Deus em espírito e em verdade", isto é, não mais na carne e
no exterior, mas no coração e a partir do interior do Homem, fruto da Graça.
Voltando ao assunto em estudo, surgem então para Jacó dois fatos novos
bem dolorosos. Em primeiro lugar a morte de Raquel ao dar à luz Benjamim
[a quem, antes de expirar, ela deu o nome de "Bennoni (= filho de minha
dor) e que Jacó mudou para "Benyamin" (= filho de minha direita) (Gn
35,16-21)]; e, em seguida, a traição de seu filho primogênito "pernoitando"
com sua concubina Bala (Gn 35,22), ato naquele tempo considerado como
condenável "incesto".
Como toda a família humana, a família de Jacó também tinha seus dramas
e problemas peculiares. É natural que Jacó tivesse uma predileção especial
por José, filho de sua amada, o "primogênito do seu coração" e tanto é
assim que lhe tecera uma "túnica talar" (Gn 37,3c). Este tipo de túnica
caracteriza bem o valor que José tinha aos olhos do pai, uma dessas
túnicas usadas pelos elementos que integravam uma corte real, de mangas
e cavas largas e de longo comprimento, que por si só se impunha como
algo de majestoso e incomum, capaz até mesmo de incentivar o ciúme, e
incentivou, o dos irmãos que tomaram ódio dele (Gn 37,4). Mesmo porque
José também sonhara com os irmãos e os pais lhe prestando reverências
reais (Gn 37,6-11). E, quando Jacó o mandou em procura dos irmãos que
estavam pastoreando o gado em local distante, acertaram atirá-lo numa
cisterna vazia para depois de lá retirá-lo e vendê-lo como escravo aos
Madianitas ou Ismaelitas, ambos descendentes de Abraão, não se sabendo
com exatidão. Cabe aqui uma observação importante: - muitas das
narrações das Escrituras vêm-nos de diferentes tradições e são duplicadas
ou mescladas, até mesmo triplicadas, gerando alguma confusão. Não se
deve rejeitá-las simplesmente, mas somar as informações que nos trazem
sem as desprezar, eis que se referem a um mesmo fato real, alterado as
mais das vezes pela natureza das fontes. Assim a narração de que teriam
sido os ismaelitas ou madianitas não modifica a realidade de que José fora
vendido pelos irmãos, fato confirmado pelo restante da exposição. A Jacó
levaram apenas a sua túnica talar toda embebida em sangue, causando-lhe
mais um sofrimento atroz e levando-o a um luto estremado (Gn 37,31-35).
Já se fala aqui na vida após a morte: "chorando descerei a meu filho
debaixo da terra", tal como se acreditava, lá ficando no estado em que se
falecia (Gn 37,35 / Gn 44,29 / Nm 16,30), sendo ainda uma ofuscada
"figura" do nosso Purgatório, ou Mansão dos Mortos.
Apesar disso, Deus, "que tem os seus caminhos", vem em seu socorro e o
faraó tem dois so-nhos que o incomodam (Gn 41,1-7). Naqueles tempos
acreditar em sonhos como previsões de futuro era muito comum, por
demais valorizados e até mesmo aproveitados por Deus, que sempre se
utiliza da cultura humana para seus desígnios. Vê-se que atua na hora
certa, podendo-se crer que impediu que o copeiro se lembrasse antes da
hora, até que se criasse uma situação favorável, não apenas ao seu eleito
em si, mas ao prosseguimento da Aliança por meio dele. O faraó não
encontra quem o tranqüilize com a solução e então o copeiro se lembra e
sugere o nome de José, a quem se apresentou os sonhos. O famoso sonho
das "vacas magras e das vacas gordas", e o das " espigas mirradas e
queimadas, e espigas granosas e cheias" umas devorando as outras, pelo
que José pressagiou sete anos de fartura e sete anos de escassez.
"Disse, então, José a seus irmãos: Eu sou José; vive ainda meu pai? E
seus irmãos não lhe puderam responder, pois estavam pasmados diante
dele. José disse mais a seus ir-mãos: Chegai-vos a mim, peço-vos. E eles
se chegaram. Então ele prosseguiu: Eu sou José, vosso irmão, a quem
vendestes para o Egito. Agora, pois, não vos entris-teçais, nem vos
aborreçais por me haverdes vendido para cá; porque para preservar vida é
que Deus me enviou adiante de vós. Porque já houve dois anos de fome na
terra, e ainda restam cinco anos em que não haverá lavoura nem sega.
Deus enviou-me adiante de vós, para conservar-vos descendência na terra,
e para guardar-vos em vida por um grande livramento. Assim não fostes
vós que me enviastes para cá, senão Deus, que me tem posto por pai de
Faraó, e por senhor de toda a sua casa, e como governador sobre toda a
terra do Egito" (Gn 45,3-8).
"Então subiram do Egito, vieram à terra de Canaã, a Jacó seu pai, e lhe
anunciaram, dizendo: José ainda vive, e é governador de toda a terra do
Egito. E o seu coração des-maiou, porque não os acreditava. Quando,
porém, eles lhe contaram todas as palavras que José lhes falara, e vendo
Jacó, seu pai, os carros que José enviara para levá-lo, rea-nimou-se-lhe o
espírito; e disse Israel: Basta; ainda vive meu filho José; eu irei e o verei
antes que morra. Partiu, pois, Israel com tudo quanto tinha e veio a
Bersabéia, onde ofereceu sacrifícios ao Deus de seu pai Isaac"(Gn 45,25-
46,1).
É mais que evidente que "meditava o caso no seu coração" quanto ao que
ocorria com referência à Aliança procurando saber por onde Deus a
prosseguiria. Tudo lhe mostrava então que era por meio de José e sua
descendência que ela se concretizaria, e passa a agir na direção que se lhe
descortinava "o sinal dos tempos". Com o seu desaparecimento tudo
mudara e Jacó passara a viver de acordo com o que Deus dispusera, uma
vez que por si mesmo nada podia fazer. Agora, porém, que "o sonho de
José se realiza" tal como "meditava", exige do filho, por primeiro, que não o
sepulte em terra estrangeira, naquele tempo comparado a uma terrível
maldição, fazendo-o jurar "com a mão debaixo da coxa", comprometendo-
se assim na própria virilidade tal como se usava (Gn 47,29-31). Em
segundo lugar, sabendo para onde caminhava o Plano de Deus com
referência à Aliança, passa a preparar o terreno onde plantar a Bênção da
Primogenitura e onde transplantar a Bênção da Aliança, tal como foi esta
prometida a Abraão, que a deu ao seu pai Isaac e este lha transmitiu, como
vinha de novo "meditando em seu coração" (Gn 37,11). Adoecendo, José
leva-lhe seus dois filhos, Efraim e Manassés, nascidos no Egito de seu
casamento com Asenete (Gn 41,45.50-52). Concluído que é em José que
te-ria prosseguimento, é a ele que destina ambas as bênçãos, e lhe entrega
a dupla parte da herança (Dt 21,17) em forma de adoção dos dois filhos
dele como seus, tornando-os herdeiros como qualquer um dos outros filhos
e com eles concorrendo à herança (Gn 48,5-6):
Essa determinação tem a mesma dimensão da que fará José a seus irmãos
(Gn 50,24-25), o que evidencia a transitoriedade da mudança do tribo para
o Egito. Além disso, consoante a Bênção de Ja-có, a Tribo de Efraim na
realidade será bem mais numerosa e de grande projeção e poder no seio
do Povo de Israel, e irá se destacar durante a Monarquia, quando irá
fundar, constituir e conduzir o Reino do Norte, na sedição das tribos (1Rs
11,26 / 1Rs 12). Sua preeminência será tão notória que o próprio Moisés a
afirmará, já no seu tempo, comparando-a com Manassés:
Além disso, aqui nesse trecho, o próprio Moisés trata José como "novilho
primogênito, com majestade e chifres de boi selvagem". Esta narrativa da
Bênção dos filhos de José é um ótimo exemplo daquela Regra oferecida na
Introdução para não se ater aos capítulos e versículos, mas sempre
observar o começo e o fim do assunto que se lê. Observe-se que a divisão
entre capítulo 48 e 49 não tem sentido e é aleatória, não se tratando de
momentos diferentes mas do prosseguimento de um mesmo ato, a Bênção
de Jacó a todos os seus filhos. Então, após confirmar a Aliança de Abraão,
com a distribuição inicial da Bênção para José e seus filhos Efraim e
Manassés, Jacó se volta para seus outros filhos e completa o seu trabalho
com uma locução, que se conhece ora como oráculo (Gn 49,1b) ora como
bênção (Gn 49,28c):
Ao que tudo indica porém, teria sido proferida próximo da própria morte
que, com o desenrolar da História do Povo de Israel, foi sendo acrescida de
fatos pertinentes às tribos que tinham referência até mesmo remota com as
palavras de Jacó, mantidos no contexto pelo narrador tudo o que lhe
chegou por tradição oral, e na forma de um poema. Isso acontece muito em
Bíblia eis que não se escreve o fato no momento de sua ocorrência, mas
muito tempo após, já mesclado com várias acomodações. Por causa disso,
é necessário que o oráculo de Judá seja examinado, principalmente no seu
conteúdo religioso, destacando-se o seu teor messiânico. Ainda, no aspecto
cultural é de se verificar a existência de detalhes da primogenitura que vai
nos realçar a sua importância, principalmente quando se dirige a Rubem,
que como já vimos traiu o pai, praticando um "incesto" com a concubina
dele, Bala, a serva de Raquel (Gn 35,22):
Percebe-se que deve ter sido um problema difícil para Jacó esse de
desenvolver e conciliar o prosseguimento da Aliança entre os filhos, pois
caso seguisse uma ordem normal e lógica, a primoge-nitura caberia agora a
Judá, que assim esperava, ficando definido o caminho. Não que
necessariamente devesse seguir uma hierarquia determinada pela ordem
cronológica dos nascimentos, mas deve ter se-guido uma qualquer, mesmo
que pensada, planejada e amadurecida no decorrer de sua vida toda. Ago-
ra, o advento de José da forma como aconteceu alterou tudo clamando por
uma revisão, já que um novo elemento vem integrar a disposição racional já
deliberada e pronta. Principalmente por "conser-var na memória os fatos"
(Gn 37,11b), e já lhe "ter urdido uma túnica talar" (Gn 37,3c), e os "sonhos
que teve" (Gn 37,5.9), que naquele tempo eram vistos como presságios do
futuro, o convencerem en-tão do lugar onde iria desaguar a corrente da
Aliança. Sendo assim, o que planejara com o seu desapa-recimento ficaria
alterado não mais se admitindo que seguiria tudo apenas em Judá e, com o
retorno de José, impunha-se uma revisão total, pelo que parece afirmar:
Gn 49,9 Ap 5,5
"E disse-me um dentre os anciãos: Não chores;
Judá é um
eis que o
leãozinho. Voltaste da presa, meu
filho.
Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi,
Ele se encurva e se deita como um
venceu para abrir o livro e romper os seus sete
leão,
selos."
e como uma leoa; quem o
despertará?"
"O rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se..." - ora, somente por ter
nascido um menino a quem estrangeiros qualificavam de "rei dos
judeus"?
"José é um ramo frutífero, ramo frutífero junto a uma fonte; seus raminhos
se estendem sobre o muro. Os flecheiros lhe deram amargura, e o
flecharam e perseguiram, mas o seu arco permaneceu firme, e os seus
braços foram fortalecidos pelas mãos do Pode-roso de Jacó, o Pastor, o
Rochedo de Israel, pelo Deus de teu pai, o qual te ajuda-rá, e pelo Todo-
Poderoso, o qual te abençoara, com bênçãos dos céus em cima, com
bênçãos do abismo que jaz embaixo, com bênçãos dos seios e da madre.
As bênçãos de teu pai excedem as bênçãos dos montes eternos, as coisas
desejadas dos eternos outeiros; sejam elas sobre a cabeça de José, e
sobre o alto da cabeça daquele que foi consagrado de seus irmãos" (Gn
49,22-26).
Quando Abraão comprou a gruta onde sepultou Sara (Gn 23,1-20), tal como
se pensava na antigüidade, tomou posse da Terra Prometida, sua
residência para sempre, e é para o mesmo lugar que deverá ser
transportado Jacó, "para ser congregado ao seu povo", tal como se
acreditava na "vida após a morte", como se verá também em outros lugares
da Escritura, o que foi feito (Gn 50,7-14). Sepultado o pai, José é assediado
pelos irmãos, que dele agora temiam uma represália pelo que lhe fizeram,
ao que lhes comunica a isenção de qualquer mágoa e de profunda fé na
direção dos acontecimentos por Deus (Gn 50,15-21). E, quando se
aproxima o fim de seus dias, bem vividos, dita as últimas ordens a seus
irmãos, o que comprova a sua qualidade de "chefe", de "primogênito no
exercício de suas funções" em direção aos compromissos da Aliança: