Vdocuments - MX - Tradicoes Negras Politicas Brancas PDF

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Copyright © Ministério da Previdência Social

Todos os direitos reservados.

1ª edição
1ª impressão (2006): 5.000 exemplares
ISBN

Distribuição gratuita
Esta obra faz parte da “série especial”
da Coleção PREVIDÊNCIA SOCIAL

É permitida a reprodução parcial ou total desta obra desde que haja prévia autorização por escrito
do detentor de copyright e dos autores, exceto quando para fins de resenha e divulgação.
Proibido qualquer tipo de comercialização.

Tradições Negras,
Políticas Brancas
Previdência Social e populações afro-brasileiras

Gabriel O. Alvarez | Luiz Santos

Alvarez, Gabriel Omar.


Tradições negras, políticas brancas: previdência social e populações afro-brasileiras /
Gabriel Omar Alvarez, Luiz Santos. - Brasília: Ministério da Previdência Social –
MPS, 2006.
224 p. : il. – (Coleção Previdência Social. Série especial; v. 2)
Fotografias de Luiz Santos
ISBN - ??????????
1. Previdência social. 2. Assistência social. 3. Aposentadoria rural. 4. Negros.
5. Populações afro-brasileiras. 6. Inclusão social. Ministério da Previdência Social
I. Alvarez,Gabriel Omar II. Santos, Luiz. III. Título. IV. Subtítulo. Secretaria de Políticas de Previdência Social
Ministro da Previdência Social
Nelson Machado

Secretário Executivo
Carlos Eduardo Gabas

Secretário de Políticas de Previdência Social


Helmut Schwarzer

Diretor do Departamento do Regime Geral de Previdência Social


João Donadon

Diretor do Departamento dos Regimes de Previdência no Serviço Público


Delúbio Gomes Pereira da Silva

Chefe de Gabinete da Secretaria de Políticas de Previdência Social


Mônica Cabañas

Coordenador-Geral de Estudos Previdenciários

Tradições Negras,
Rafael Liberal Ferreira de Santana

Políticas Brancas
Ensaio antropológico e texto
Gabriel O. Alvarez

Ensaio fotográfico
Luiz Santos
Previdência Social e populações afro-brasileiras
Projeto cartográfico
Rafael Sanzio dos Anjos – CIGA/UnB

Coordenação editorial
Luiz Santos

Edição de fotografia
Luiz Santos e Gabriel O. Alvarez

Revisão de texto
Josiany Salles Rocha Gabriel O. Alvarez | Luiz Santos
Projeto gráfico
Sidney Rocha

Pré-impressão e impressão
Artprinter Gráficos & Editores

Todos as fotos desta publicação são de Luiz Santos, com exceção daquela na página 106, que é de
Gabriel O. Alvarez.
Nos processos técnicos desta publicação contamos, ainda, com o valoroso apoio de Bachar Samaan,
Gabriela Pires, Sebba Cavalcanti e Lorenzo Vagni.
Agradecimentos
Quando um trabalho desta envergadura chega ao fim, lembramo-nos de todos os que nos acompanharam nesse
longo caminho. Queremos agradecer àqueles do Ministério da Previdência Social, na Secretaria de Políticas de
Previdência Social, que tornaram possível a realização desta pesquisa: Helmut Schwarzer, Secretário de Políticas
de Previdência Social e Vinícius Pinheiro, ex-Secretário de Previdência Social. O último abriu as portas para a
realização deste trabalho, e o primeiro empenhou-se, pessoalmente, na orientação e na publicação dele.
Agradecemos também a Rafael Liberal Ferreira de Santana, Coordenador-Geral de Estudos Previdenciários da
SPS; Mônica Cabañas, Chefe de Gabinete da SPS; e a Tereza Ouro, Coordenadora do PEP à época do trabalho de
campo, os quais acompanharam esta pesquisa do início ao fim e foram atentos interlocutores deste diálogo da
antropologia com os estudos previdenciários.
O trabalho de campo não teria sido possível sem o apoio e a colaboração de nossos interlocutores.
Agradecemos especialmente o apoio dado por Txicão e a sabedoria cheia de graça de Zé Guará, dona Furtuosa e
dona Catarina no Brejo dos Crioulos. No Córrego da Misericórdia, foi fundamental o apoio de Eva. Nos terreiros
de candomblé, um agradecimento especial ao Pai Ari, presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro,
que nos introduziu em um universo incomensurável. Nosso agradecimento também à Mãe Luiza Gaiaku, Mãe
Caiudê, Mãe Ditinha e ao Pai Balbino, que nos abriram as portas de suas casas e seus altares, assim como ao Ojé
Baruê, que permitiu que compartilhássemos dos segredos dos Egum. Agradecemos ao povo dos Maracatus-nação
do Recife, em especial Ivaldo do Cambinda Estrela, Elda e Schacon do Maracatu Nação Porto Rico do Oriente,
em memória de Dona Mariú, que viveu 104 anos e morreu antes desta publicação, e às rainhas e calungas dos
maracatus visitados em Recife. Um agradecimento especial ao Manoel Papai, filho de Pai Adão, sacerdote de um
dos mais tradicionais terreiros da cidade do Recife. Agradecemos ainda aos presidentes, reis e tambozeiros das
Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí, da INSRHP de Chapada do Norte e
da Confraria de Olinda, particularmente Pedro Pereira dos Santos, Seu Vicente e Luiz Sapateiro (aposentado),
homem simples e sábio.
Um reconhecimento especial para Luiz Santos, Fotógrafo (com letra maiúscula) e companheiro, co-autor desta
pesquisa. As imagens dos aposentados em seus lugares cotidianos, os detalhes dos colares, as cores das roupas,
todos esses elementos visuais fazem parte de uma dimensão particular da comunicação desses aposentados com
o leitor, capturados nos retratos confeccionados por Luiz Santos.
Um agradecimento a Gabriela Nunes, que foi nossa assistente de pesquisa e que organizou a transcrição dos
depoimentos, realizou o levantamento bibliográfico e foi a primeira leitora da versão preliminar; com seu olhar
desde a negritude, participou do espírito do trabalho. Um agradecimento também aos alunos do curso de
Tradições Afro-brasileiras, aos quais lecionei no primeiro semestre de 2004, no Departamento de Antropologia
da Universidade de Brasília. Em sala de aula, discutimos a bibliografia acadêmica e o material empírico que
compõem o corpo deste livro.
Um agradecimento também a Rafael dos Anjos, que acrescentou uma projeção cartográfica aos dados levantados
no trabalho de campo. Cabe destacar que os mapas incluídos na obra são produto de uma trajetória de vinte
anos realizando uma cartografia que retrata a matriz africana do Brasil.
Finalmente, um forte abraço para Roberto, nosso motorista em Minas Gerais. Em Itinga, antes da construção da
ponte, quando cruzávamos de balsa o rio Jequitinhonha, sugeri a Roberto que perguntasse ao balseiro se sabia da
existência de algum grupo de Congado na cidade. Solicitei que fizesse a pergunta, porque ambos, o balseiro e o
motorista, tinham o característico sotaque carregado do interior de Minas. Roberto perguntou ao balseiro:
— “Você conhece o povo que mexe com Congado?”
Ao que o balseiro respondeu, solícito:
— “Eu mexo com gado, mas minha especialidade é cavalo”.
Apresentação

No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Previdência Social possui um papel
fundamental na extensão da proteção social do país. Por causa dos recursos transferidos pela
Previdência, cerca de 20,2 milhões de pessoas deixaram de viver abaixo da linha de pobreza,
segundo dados do IBGE de 2004. A Previdência, em um Estado de Bem-Estar moderno, ao
reconhecer o tempo de trajetória laboral dos indivíduos e conceder benefícios
correspondentes, repondo renda e combatendo a pobreza, gera segurança social e constitui-
se em uma das principais portas para a cidadania.
No caso brasileiro, grande parte dos impactos redistributivos da Previdência deve-se à
Previdência Rural, hoje reconhecida no mundo inteiro como um modelo inovador e bem
sucedido, que melhora de forma sustentada o tecido social rural. Suas características, que a
afastam do modelo contributivo estrito, passam a ser extremamente importantes quando se
analisa a relação entre a população negra e a Previdência Social no Brasil. É de conhecimento
geral que os indicadores sociais apontam historicamente para uma diferença pronunciada
entre brancos e não-brancos em praticamente todos os setores de políticas sociais. Não é
diferente na trajetória de brancos e negros no mercado de trabalho, cuja formalidade é
pressuposto para o acesso à Previdência contributiva. No entanto, sabemos hoje que negros e
mulheres, via de regra fragilizados no mercado de trabalho, têm sido relativamente mais
favorecidos pelo reconhecimento da condição de trabalhadores rurais pela Previdência Rural,
que não requer o histórico contributivo individual, mas a documentação do trabalho como
agricultor em regime de economia familiar.Vários dos depoimentos contidos neste livro
apontam nesta direção.
Tradições Negras, Políticas Brancas, escrito pelo professor Gabriel O. Alvarez, antropólogo da
Universidade de Brasília e colaborador do Ministério da Previdência Social, em parceria com o
fotógrafo documentarista Luiz Santos, retoma a série de estudos sobre os impactos da
Previdência a partir da ótica dos beneficiários, agora com o foco nas populações afro-
brasileiras. Ao visitarem os remanescentes de quilombos e a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, em Minas Gerais, os terreiros de candomblé e as baianas do
acarajé, na Bahia, e os maracatus de Recife, os autores verificaram que os benefícios
concedidos aos aposentados reforçaram seu lugar nas comunidades, em vez de afastá-los das
instituições tradicionais. Ademais, o estudo recupera uma importante discussão sobre a
negritude e cidadania no Brasil, temas para os quais o governo do presidente Lula demonstra
extrema sensibilidade, haja vista a criação de uma estrutura específica como a Secretaria
Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial - SEPPIR.
Os resultados deste livro nos levam a conhecer melhor os nossos segurados e beneficiários, o
que contribui substancialmente para o processo de construção da cidadania via Previdência. A Prefácio
inclusão social é uma visão estratégica deste governo, e, no âmbito da Previdência Social, a
inclusão se reflete em dois aspectos importantes: a garantia de acesso aos direitos
previdenciários e o fortalecimento do diálogo social, com participação da sociedade civil. Por
um lado, o fortalecimento do diálogo social vem se refletindo na maior participação da
sociedade civil na definição de políticas previdenciárias, por meio de medidas como o
restabelecimento dos Conselhos de Previdência Social. Por outro lado, a meta de garantia de
acesso aos direitos previdenciários vem inspirando um conjunto integrado de ações na área
de gestão, que temos conduzido com determinação.
Estamos acostumados com números, indicadores, análises quantitativas sobre a Previdência.
Este importante livro, contudo, com seu ensaio antropológico, depoimentos dos cidadãos e
Os estudos sobre impactos da Previdência são tradicionalmente focados em análises
belas fotografias, lança um outro olhar sobre os impactos qualitativos da Previdência e a vida
quantitativas. Até há pouco tempo, eram raros os trabalhos que privilegiassem a ótica dos
das pessoas. As conclusões do estudo nos dão a convicção de que estamos no caminho certo.
usuários da política previdenciária, em especial dos beneficiários. Nos últimos anos, a
É preciso reforçar a Previdência básica, pública, de caráter universal e buscar alternativas de
Secretaria de Políticas de Previdência Social do Ministério da Previdência – SPS/MPS tem
políticas para ampliar a cobertura para que o acesso ao direito previdenciário por parte dos
procurado preencher esta lacuna com a divulgação de resultados e encomendas de novas
segurados possa ser plenamente exercido.
pesquisas que avaliem os impactos qualitativos da Previdência em comunidades selecionadas.
O livro Tradições Negras, Políticas Brancas, além de seguir esta linha, contribui para suprir uma
outra carência: estudos que relacionam negritude e Previdência no Brasil.
Brasília, novembro de 2006 A discriminação enfrentada pela população negra na sociedade brasileira já foi analisada com
profundidade por diversos especialistas, como por exemplo o IPEA. Em um de nossos estudos
recentes, baseados na PNAD/IBGE 2004, a SPS reconstatou que há uma inserção fragilizada da
população negra em relação à branca no mercado de trabalho, com taxas de desemprego
maiores, postos de trabalho de pior qualidade e menores salários. Sabemos que a Previdência
NELSON MACHADO
MACHADO Social, em seu papel de repor a renda do trabalho nas situações de risco social – idade
Ministro de Estado da Previdência Social avançada, invalidez, morte, enfermidade, maternidade, acidente de trabalho, etc. – reflete
diversas distorções existentes no mercado de trabalho. A motivação para a realização deste
estudo foi exatamente captar, através de depoimentos dos próprios representantes das
populações negras, a imagem e o grau de importância que a Previdência Social possui em suas
vidas, bem como o papel corretor de iniqüidades que ela porventura possa desempenhar.
A SPS contratou para a coordenação do projeto o professor Gabriel O. Alvarez, antropólogo
da Universidade de Brasília, que possui vasta experiência em trabalhos desta natureza, autor
do belíssimo ensaio Amazônia Cidadã, de 2002, também encomendado e publicado pela SPS/
MPS, bem como o premiado fotógrafo documentarista Luiz Santos. Juntos, visitaram os
remanescentes de quilombos, em Minas Gerais, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos, no vale do Jequitinhonha, no mesmo estado, os terreiros de candomblé e
as baianas do acarajé, na Bahia, além dos maracatus do Recife. Ou seja, populações negras com
diversas formas de organização social, bem como suas principais instituições.
Uma das hipóteses inovadoras usadas pelos autores é a de que, em um país como o Brasil, a
associação de negritude exclusivamente à cor da pele pode ser questionável em termos de
pesquisa. Sendo um antropólogo cultural competente, Gabriel Alvarez aponta que as
instituições e tradições culturais, bem como a organização social, são tão reveladoras quanto a
cor da pele. A partir deste ângulo, entrelaçando a descrição da história viva, de ricas tradições
culturais, do sofrido cotidiano com imagens de sublime estética, o estudo caminha por
identificar como a Previdência Social logra ou não participar da vida destas comunidades.
Nas comunidades selecionadas, os autores identificaram beneficiários da Previdência e os outro lado, também foi destacado o papel social desempenhado pelos integrantes dos
entrevistaram. Através dos depoimentos, foi possível verificar as mudanças ocorridas em Maracatus, que compartilham tradições, sentimentos comuns e religiosidade e contribuem,
função da aposentadoria e as maneiras de utilização do dinheiro. A investigação permitiu através de atividades sociais voluntárias, para minimizar os efeitos da pobreza que os
também que se pudesse traçar um panorama da forma de vida tradicional de cada grupo, seja envolvem.
no dia-a-dia ou em momentos especiais, como as festas e os rituais, e as mudanças ocorridas Os resultados apresentados neste livro ratificam o fato de que a Previdência Rural brasileira é
nas últimas décadas, além das atividades no seio das instituições e as interações com o uma inovação mundial por utilizar mecanismos não-bismarckianos, ou seja, sem vinculação
restante da sociedade. Os técnicos locais da Previdência também foram entrevistados, e estrita entre contribuição e benefício. O critério de comprovação de condição de trabalho
através dos depoimentos foram colhidas importantes informações sobre as estratégias de rural – e não necessariamente contribuição monetária – permite um alto impacto de inclusão
ampliação do acesso ao direito previdenciário às comunidades negras. social de famílias trabalhadoras rurais pobres e melhora de forma sustentada o tecido social
Os resultados apontam para o importante papel dos idosos aposentados nas comunidades, rural. Por outro lado, o desafio de inclusão passa necessariamente por uma estratégia de
como já verificado em estudos anteriores. A concessão de um benefício previdenciário não incorporação do contingente urbano.
afasta esses idosos de suas instituições, como diversos estudiosos chegaram a acreditar no Lidar com a herança da informalidade e exclusão, produtos de modelos de desenvolvimento
passado, ao afirmar que a Previdência destruiria a solidariedade tradicional; ao contrário, a passados, requer múltiplas abordagens simultâneas. De um lado há falta de conhecimento
condição de segurado beneficiário fortalece a participação do idoso negro nas suas famílias e sobre a Previdência, o que requer o esforço de publicizar nosso sistema, inclusive por meio
comunidades. do Programa de Educação Previdenciária. Além disso, uma fiscalização cada vez mais rigorosa
No caso dos remanescentes de quilombos e dos idosos na Irmandade de Nossa Senhora do combate a sonegação e informalidade entre os empregadores que não assinam a carteira de
Rosário dos Homens Pretos, em Minas Gerais, o impacto da Previdência Rural é notável, pois seus trabalhadores. Modificações nas alíquotas de contribuição – como na desoneração
além de evitar situações de dependência e mesmo penúria, a percepção de um benefício parcial da folha de salários, na redução da alíquota dos contribuintes individuais de baixa
permite autonomia e lugar de destaque aos aposentados nas festas e rituais. renda ou na dedutibilidade do Imposto de Renda das contribuições patronais para as
Nos terreiros de candomblé, em Salvador, a imagem da Previdência ultrapassa os impactos trabalhadoras domésticas – podem auxiliar vários grupos sociais e setores de atividade
provenientes da concessão de benefícios. Consideram-na uma política pública que econômica específicos. Tudo isto, obviamente, também requer uma constelação
efetivamente reconheceu o candomblé como religião, ao permitir que pais e mães de santo macroeconômica mais favorável à geração de empregos formais do que foi aquela dos anos
pudessem contribuir – e se aposentar – no exercício de suas funções religiosas. Até o ano 80 e 90.
2000, pais e mães de santo tinham que declarar outra atividade profissional para recolher a Como lição do livro Tradições Negras, Políticas Brancas, fica que, além das medidas acima
contribuição e ter direitos aos benefícios. Importante destacar também o relevante trabalho mencionadas, uma alternativa de política talvez seja a continuidade no caminho de criação de
da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro no apoio e orientação aos representantes um benefício universal básico, não contributivo, que esteja baseado em critérios objetivos
dessas instituições religiosas. simples, como, por exemplo, ser residente no país e ter atingido determinada idade. Passos
Ainda em Salvador, os autores registraram as conseqüências de outra importante forma de rumo ao gradativo desacoplamento de critérios contributivos para a obtenção de um
reconhecimento de direito à população negra por parte da Previdência: o caso das baianas do benefício básico, que resgate o idoso de debaixo da linha da pobreza, o Brasil já têm dado por
acarajé – símbolo da cultura da Bahia. Na década de 90, essas mulheres tiveram o meio do aprofundamento da Previdência Rural nos anos 90, bem como do Benefício de
reconhecimento de sua atividade profissional para caracterização de trabalho artesanal Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social-LOAS, aperfeiçoado pelo Estatuto
autônomo junto à Previdência Social. A organização dessas baianas, especialmente através da do Idoso. Diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento estão fazendo a avaliação de
Associação das Baianas do Acarajé – ABA, favoreceu o contato com a Previdência através das se hoje é possível avançar nesta direção para suprir as lacunas de cobertura previdenciária
ações do Programa de Educação Previdenciária – PEP, do Ministério da Previdência, o que deixadas por mercados de trabalho fragilizados ao longo das últimas décadas.
resultou em uma interessante estratégia. Para conscientizar as baianas – muitas já idosas – a Tradições Negras, Políticas Brancas traz, para nós da Secretaria de Políticas de Previdência Social,
se filiarem, contribuir para a Previdência e ter direito a benefícios, os representantes do PEP um importante subsídio para a reflexão na formulação de políticas públicas. Espero que o
local encontraram uma solução extremamente criativa. Conseguiram disseminar a idéia de leitor aprecie este belo trabalho.
uma poupança diária, equivalente ao valor de um acarajé, para ser guardada em um “cofrinho”.
Ao final do mês, o “cofrinho” conteria o valor suficiente para a contribuição previdenciária.
Finalmente, o trabalho de campo visitou a população que participa dos Maracatus-nação,
Brasília, novembro de 2006
instituições urbanas, também de tradição afro-brasileira, localizadas na região norte de Recife.
Essas instituições possuem princípios de organização social similares aos observados na
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e nos terreiros de candomblé. Assim como em
praticamente todas as periferias de metrópoles brasileiras, a pobreza e a informalidade no HELMUT SCHWARZER
SCHWARZER
mercado de trabalho constituem enorme obstáculo ao acesso de direitos, em especial os Secretário de Políticas de Previdência Social
previdenciários. Tal fato foi constatado pelos autores no trabalho de campo em Recife. Por 14 15
Sumário

Introdução, 16

1. Populações negras em Minas Gerais:


Irmandades, garimpos e quilombos, 32
Remanescentes de quilombos: Quilombos de resistência e
remanescentes da exploração do ouro, 34
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, 68

2. Religiões africanas na Bahia e políticas de reconhecimento:


terreiros de Candomblé e Baianas do Acarajé, 96
As nações do candomblé, 112
Egum: culto aos antepassados, 126
Da descriminalização às políticas de reconhecimento,134

3. Maracatu Nação do Recife:


tradições afro-brasileiras e déficit social na periferia das metrópoles, 156
O Maracatu-nação, 158
A festa da calunga, 176
As sedes dos maracatus e a população da periferia, 186

4. Temas cruzados:
tradições afro-brasileiras e Previdência Social, 198

Bibliografia citada, 212

Anexo, 215

Mapas, 220
Introdução

A negritude e a questão racial no Brasil são temas repletos de nuances. A negritude constitui
um dos componentes da imagem tropical do Brasil e, ao mesmo tempo, é invisibilizada por
uma imagem de modernidade, pensada como branca ou, quando muito, mestiça.
De acordo com a situação social, as pessoas de pele escura identificam-se em diversas
categorias, como negro, moreno, negro-mestiço, preto, jambo, afro-brasileiro, pardo ou outras
denominações que aludem implícita e tangencialmente à questão racial. Existe um certo
racismo cordial que se revela ao tratar o interlocutor negro como moreno. Esse
branqueamento implica a negação da negritude. Em outras situações, o próprio negro
renega-a ao se identificar como pardo. No Brasil, os censos utilizam as categorias branco,
preto, pardo, amarelo ou indígena. Na hora da declaração, muitos identificam-se como pardos
porque consideram a classificação preto ofensiva, pois esse termo seria aplicável às coisas e
não às pessoas. Essa atitude gera uma distorção estatística, pois estabelece a categoria preto
como sinônimo de negro e introduz uma defasagem e subestimação das populações negras
no Brasil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) de 1976, introduziu a auto-atribuição no quesito cor/raça;
o resultado foi a existência de 136 “cores” diferentes (Schwarcz, 1999).
Segundo os dados da PNAD 2004, a população brasileira está composta por 93.604.435
brancos (51,4%), 76.635.241 pardos (42,1%), 10.739.709 pretos (5,9%), 763.456 amarelos
(0,4%) e 304.911 índios (0,2%), além de 12.356 na categoria ignorados. Estudos quantitativos,
como os realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), assumem a
categoria negro como resultado do somatório de pretos e pardos. Segundo esse princípio, a
população negra do Brasil é de 87.374.950 pessoas (48%). Essa metodologia pode ser
empregada em determinadas regiões, como no Rio de Janeiro ou em Salvador, mas produz
distorções ao ser aplicada a outros estados, onde diversas populações não-negras são
identificadas como pardas. Por outro lado, a categoria pardo inclui amplos setores não-
negros, muitos deles pertencentes à classe média da sociedade; isso gera um novo viés que
invisibiliza a desigualdade, subestimada pela inclusão de setores de maior poder aquisitivo.
Embora esse fator possa introduzir alguma distorção positiva, todas as análises quantitativas
apontam para a situação de desigualdade social e de discriminação sofrida por essas
populações (Alexandre Pinto e Marcelo Neri, 2000; Henriques, 2001; Soares, 2000). Apesar da
crescente produção de trabalhos sobre a negritude no Brasil, existe um vazio bibliográfico
sobre políticas de Previdência Social e populações negras. Quando analisados os indicadores
de raça e de população idosa em condições de pobreza, como assinala o trabalho de
Schwarzer e Querino (2002:33), verifica-se que: “A pobreza entre os idosos é negra. Dois
18 19
terços dos idosos pobres são negros”, se considerada, segundo os dados da PNAD, a com os moleques ¯ às vezes carregadas de sadismo — e
população com sessenta anos ou mais abaixo da linha de pobreza fixada pela Lei Orgânica de as primeiras experiências sexuais com as escravas negras
Assistência Social – LOAS. modelaram a subjetividade desses brasileiros. As
Existem diversos estudos sobre a negritude no Brasil; porém, o propósito aqui não é fazer aventuras sexuais do patrão com as escravas do serviço
uma revisão exaustiva da produção brasileira e internacional sobre o tema. No entanto, é doméstico da casa grande, as vinganças das patroas, as
indispensável, em um trabalho desta natureza, fazer algumas reflexões em torno dos aventuras dos adolescentes e os filhos mulatos faziam da
autores mais relevantes que abordaram essa questão. Eles devem ser vistos como família patriarcal uma instituição marcada por segredos e
intelectuais que expressaram o pensamento social do Brasil acerca da negritude. relações hierárquicas que criavam famílias extensas não
reconhecidas. Para Gilberto Freyre, a hibridação entre a
Neste estudo, a negritude não será trabalhada como raça, mas sim como uma construção
cultura portuguesa e a africana aconteceu na cama.
social; mais especificamente, um conjunto de tradições culturais que reproduzem sistemas
Criou-se uma imagem romântica do negro e de suas
de valores, instituições, uma forma de estar no mundo. Em um país como o Brasil, que
contribuições para a “cultura nacional”, com um
sofreu políticas de branqueamento amparadas pelo mito da democracia racial, as tradições
somatório de traços isolados, como palavras, comidas,
afro-brasileiras são a expressão de resistência das populações negras. A análise das
ritmos e sensualidade. No livro Casa Grande e Senzala, a
instituições tradicionais permite mostrar, a partir de sua cultura, a chegada da Previdência
família patriarcal e a plantação tornam-se o modelo que
junto a essas populações, invisibilizadas nas análises usuais. Uma antropologia das políticas
explica as relações raciais no nordeste. O trabalho nas
de Previdência passa por compreender o olhar do “outro” sobre as políticas públicas, um
plantações e as histórias de alcova modelaram a
“outro” personalizado por meio de suas imagens e depoimentos. É isso que este ensaio
mestiçagem e a hierarquia social como um fenômeno
antropológico-fotográfico visa apresentar aos formuladores de políticas.
brasileiro que se expressa na formulação da ideologia da
democracia racial.
A negritude no pensamento social brasileiro Na década de 1950, a UNESCO patrocinou uma série de
Nina Rodrigues, ao final do século XIX, realiza um importante esforço de sistematização estudos sobre as relações raciais no Brasil, cujo objetivo
sobre a origem e a religião das diferentes populações negras do Brasil. Para esse autor, o era contrastar a situação no país com outros países
Brasil era um laboratório que permitia estudar as populações africanas, suas crenças e marcados pelas tensões inter-raciais, como os Estados
religiões como amostras da África. A temática era, naquele momento, enquadrada no Unidos e a África do Sul. Esperava-se que esses estudos
paradigma criminalista. Artur Ramos (1988 [1934]) continua a obra, enquadrando seus pudessem sugerir políticas baseadas nas relações entre
estudos em um campo que oscila entre a antropologia e a psiquiatria. As preocupações em negros e brancos no Brasil como modelo para a criação
torno da raça e das crenças levaram-no a classificar a população negra brasileira em dois de novas políticas a serem aplicadas em países onde as
grandes troncos de acordo com suas zonas de origem na África negra. Apesar das diversas relações inter-raciais estavam marcadas por tensões e por
divisões étnicas, ele caracteriza uma população banto, com origem no Congo e em Angola, e aberta discriminação. Desse projeto, participaram
uma ioruba, proveniente dos reinos do Golfo do Benin. A primeira estaria concentrada nos Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, o
estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco; a segunda ocupa, predominantemente, antropólogo francês Roger Bastide, entre outros.
uma proporção do estado da Bahia. Para o autor, imbuído de uma ideologia evolucionista, os
Florestan Fernandes (1969, 1972) é um dos autores que
bantos teriam uma religião mais animista, se comparados aos iorubas. No caso dos primeiros,
assinala a situação de discriminação sofrida pela população
os feitiços seriam o traço mais marcante; já os povos iorubas teriam uma religião mais
negra, excluída do mercado após a abolição da escravatura.
sofisticada, cujos fetiches ocupam o centro de rituais elaborados e levam os participantes a
A transformação da economia baseada nas plantações com
estados de transe. Os trabalhos sobre religiões africanas desenvolvidos pelo autor explicavam
trabalho escravo em uma economia industrial-urbana
e classificavam os estados de transe característicos desses cultos. Procurava-se explicar o
atrelada às políticas migratórias marcou o destino dessas
diferente. Os negros eram vistos como algo extrínseco ao Brasil, não deixavam de ser
populações. Os migrantes europeus inseriram-se na nova
africanos, como mostra a ênfase na classificação dos diversos grupos que compunham a
estrutura de classes, e a população negra liberta foi
dicotomia banto/ioruba, descritos pelos trabalhos.
deslocada. Os dados estatísticos apresentam um Brasil com
Gilberto Freyre (2002 [1933]) introduziu o negro na imagem do Brasil. Era um negro profundas desigualdades regionais. Por um lado, a região
brasileiro descrito a partir da intimidade da convivência nas plantações de cana-de-açúcar. sul-sudeste com uma população majoritariamente branca,
Os trabalhos do autor caracterizaram o Brasil a partir do Nordeste e criaram a imagem destacada pela industrialização que a transformou em uma
luso-tropical do país. Para ele, a família patriarcal dos engenhos de cana-de-açúcar modelou das regiões mais dinâmicas do Brasil. Por outro, a região
a moral dessa formação social. A casa grande e a senzala estavam interligadas nos serviços e nordeste, majoritariamente negra, com elevados índices de
nos lençóis. A ama de leite negra do menino branco, as brincadeiras dos filhos do patrão 20 21
pobreza e uma distribuição de renda caracterizada pela
concentração em uma elite branca. O autor denuncia o caráter mítico da democracia racial A década de 1980 foi marcada pela mobilização e pelo florescimento dos movimentos
brasileira e apresenta a desigualdade social como produto da discriminação racial. sociais. O Movimento Negro Unificado concentra centenas de intelectuais que questionam
O racismo no Brasil caracteriza-se, segundo Florestan Fernandes (1972), pelo branqueamento a posição do negro na estrutura social brasileira. Se sua figura estava estigmatizada pela
no trato interpessoal; as desigualdades entre negros e brancos reproduziam-se sob o manto associação com a escravatura, era necessário reavaliar a negritude. Nesse contexto, surgem
de um racismo cordial. O racismo ficava invisibilizado, tanto pelo trato “gentil” ao evitar trabalhos que valorizam a negritude a partir das resistências dos quilombos. O Quilombo
referir-se ao interlocutor “de cor” como “negro”, como pela introjeção do preconceito. Os dos Palmares (1630-1694) e seu rei Zumbi transformam-se em ícone de liberdade e de luta
negros que conseguiam certa ascensão social o faziam ao preço da sua cultura, um contra o regime escravocrata (Nascimento, 1978; Moura, 1988). Cabe destacar a crescente
branqueamento produto da introjeção dos parâmetros do branco. Isso passa inclusive pela força política do movimento negro ao longo da década de 1990, assim como os espaços
negação da própria negritude e serve de fermento para a multiplicação de categorias usadas conquistados, a partir de 2003, na administração do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
para definir as pessoas “de cor”. Ser negro era sinônimo de descendente de escravos, e essa quando foi criada a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial
lembrança dissolver-se-ia mediante a multiplicação de categorias. (SEPPIR); com o impulso dado à Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura; e
com a nomeação do Sr. Gilberto Gil como o primeiro afro-brasileiro a ocupar o cargo de
Oracy Nogueira (1985) compara o racismo nos Estados Unidos e no Brasil. No primeiro,
Ministro da Cultura.
onde existe um preconceito de origem, existe uma linha divisória nítida entre as populações
negras e brancas. No preconceito de origem, basta a suposição de que o indivíduo descende
de um determinado grupo para que sofra o preconceito. Para os norte-americanos, basta uma Previdência, negritude e tradições culturais: os propósitos deste estudo
gota de sangue negro para assim ser considerado. No Brasil, devido à idéia da mestiçagem, a Vários trabalhos assinalam a discriminação enfrentada pelas populações negras do Brasil,
identificação de cor é ambígua e depende da estratificação. O preconceito de marca está como ela se traduz em desigualdade social. Os indicadores sobre a população negra
relacionado com a aparência, o sotaque, os gestos. Por outro lado, a discriminação de marca contrastam com os índices da população branca. Salário, educação, saúde e saneamento
está estreitamente relacionada à classe social. Assim, as pessoas de classes mais baixas são traduzem em cifras essa desigualdade ancorada na discriminação. Esses preconceitos
consideradas negras; mas, conforme ascendem na estratificação social, deixam de identificar-se refletem-se em uma participação desigual nos postos de trabalho, em menores salários e na
como negras e passam a se considerar “morenas” ou mestiças. A reduzida população “de cor” exploração trabalhista. Diversas análises de dados censitários revelam que a população
pertencente a estratos superiores chega a considerar ofensivas as referências à sua negritude. negra ganha salários inferiores aos da população branca, seus índices de escolaridade são
Cabe destacar que, nesse tipo de racismo, a etiqueta de comportamento inter-racial dá ênfase mais baixos e são poucos os que completam os estudos superiores. As populações negras
ao controle do comportamento dos indivíduos do grupo discriminador. Em contrapartida, habitam a região rural ou a periferia das grandes cidades. A falta de condições de higiene,
onde o preconceito é de origem, a ênfase recai sobre a conduta do grupo discriminado, como assim como a falta de água potável e de tratamento de esgoto, se reflete nos maiores
forma de conter a agressividade do grupo discriminador. Como assinala o autor: “onde o índices de mortalidade infantil. A desigualdade expressa-se na distribuição de renda.
preconceito é de marca, a ideologia é, ao mesmo tempo, assimilacionista e miscegenacionista;
Em relação ao mundo do trabalho, os dados mostram que os negros ingressam mais cedo no
onde é de origem, ela é segregacionista e racista” (Oracy Nogueira, 1986: 422).
mercado. Na faixa de idade entre 10 e 15 anos, uma idade crítica de preparação para a vida
Gilberto Freyre foi um dos ideólogos do modelo da democracia racial para explicar as laboral, a participação dos negros é muito superior à dos brancos. Ao longo da vida, a taxa de
relações raciais no Brasil. Essa construção ideológica foi desmontada por Florestan desemprego daqueles tende a ser maior do que a destes últimos. Além disso, os negros
Fernandes, mas foi Abdias do Nascimento (1978) um dos mais enfáticos ao denunciar o ocupam postos de trabalho de pior qualidade e, em geral, na informalidade. Na população
racismo neste país. Abdias do Nascimento criou, já em 1944, o grupo de Teatro branca, 43% ocupam postos de trabalho formais e 56,2%, informais. Dentre a população negra,
Experimental do Negro (TEM), no Rio de Janeiro, e apresentou as denúncias na FESTAC 771 1
II Festival Mundial das Artes e
só 33,5% dos postos de trabalho são formais, e 66,5% deles ocupam postos informais no
Culturas Negras, realizado em
sobre as políticas de branqueamento no Brasil e o genocídio sofrido pelo povo negro. Esse Lagos, na África, entre 15 de mercado de trabalho. Os dados indicam que os trabalhadores negros recebem remunerações
autor transformou-se, por mérito próprio, em um dos principais ícones do movimento janeiro e 12 de fevereiro de
inferiores pelos mesmos trabalhos e apresentam, ao longo das diferentes faixas etárias, índices
1977.
negro no Brasil e em uma bússola na luta contra a discriminação. Abdias do Nascimento de desemprego progressivamente maiores.
critica as visões folclorizantes sobre a cultura negra. Ele chama a atenção para observar
Como assinalam Paiva e Paiva (2003): “Fundamentalmente, os negros apresentam, mais que
essas tradições como um exemplo de resistência frente ao processo de genocídio cultural,
os brancos, uma inserção inadequada no mercado; enfrentam taxas de desemprego maiores,
empreendido pelos projetos modernizadores do Brasil. Esses projetos tinham como um de
sem que haja uma justificativa para isso; estão inseridos em postos de trabalho de pior
seus componentes, ao lado da industrialização e da expansão da fronteira agrícola, o
qualidade; e, finalmente, recebem menos, mesmo quando controlados estatisticamente os
branqueamento da população do país, seja pela miscigenação, seja pela migração de
atributos ligados aos rendimentos, como escolaridade e experiência profissional”. Está claro
contingentes europeus, ou ainda pela repressão das manifestações culturais negras. As
que essas condições enfrentadas no mercado de trabalho se refletem na cobertura
críticas realizadas à visão folclorizante a partir do movimento negro ressaltam que essas
previdenciária.
tradições são manifestações de resistência cultural. As lutas pelo reconhecimento permitem
Análises dos dados da PNAD/IBGE de 2004, realizadas pela Secretaria de Políticas de
que a análise não fique presa a essencialismos e concentre-se nas demandas por cidadania,
Previdência Social (SPS), apontam uma menor proporção de contribuintes negros no
um fato moderno, pleiteado pelas populações tradicionais. 22 23 Regime Geral de Previdência Social (RGPS), assim como um percentual maior da população
negra entre os segurados especiais (rurais) do RGPS, os quais correspondem a 8.545.888.
Deles, 5.278.005 enquadram-se na categoria dos negros (como somatória de pretos e
pardos). Por outro lado, mais de 40% da população negra não são contribuintes, um
percentual maior do que aquele encontrado entre os brancos. No Brasil, 28.513.007
trabalhadores não estão socialmente protegidos; ou seja, 38,70% da população. Desse total,
15.224.365 são negros; isso indica que 42,5% dos trabalhadores negros não estão
protegidos pelo sistema de Previdência Social.
Do total populacional do Brasil, 12.277.021 trabalhadores encontram-se desprotegidos, com
rendimento inferior a um salário mínimo. Desses, 7.422.178 são negros, ou seja, quase 60% do
total, o que corresponde a 20,70% da população negra entre 16 e 59 anos. A proporção da
população negra ocupada e desprotegida com capacidade contributiva segundo as faixas de
rendimento indica que os maiores percentuais de trabalhadores desprotegidos concentram-se
nas faixas mais baixas; 74% estão na faixa de 1 a 2 salários mínimos. Isso corresponde a mais
de 5.400.000 trabalhadores negros. Ao analisar essa parcela da população negra, de ocupados
e desprotegidos, podemos observar que a maior parte concentra-se na faixa etária de 30 a 39
anos, quase 30% do total; mais de 23% estão na faixa de 40 a 49 anos, com mais de 1.700.000
trabalhadores sem cobertura previdenciária.
Se analisada a proporção da população negra ocupada e desprotegida, com capacidade
contributiva, segundo posição no mercado de trabalho em 2004, pode-se observar que só
42,8% dela possui emprego com carteira assinada. O emprego sem carteira representa
19,2% do total ocupado e responde por 43,4% da população negra desprotegida. Outro
grupo importante são os que declaram trabalhar por conta própria. Eles representam 18%
do total de pessoas negras ocupadas e respondem por 40% da população negra
desprotegida. Finalmente, temos as trabalhadoras domésticas com carteira assinada, que
correspondem a 3,5% do total de ocupados; já as trabalhadoras domésticas sem carteira
representam 4,1% da população total e mais de 11% da população desprotegida. Ao agrupar
os dados sobre as populações negras por ramos de atividade, observa-se que a maior parte
de sua população sem cobertura previdenciária concentra-se nos setores de comércio e
reparação (23,68%); na construção (18,32%); na indústria de transformação (11,43%); e nos
serviços domésticos (11,31% do total).
Apesar de esses indicadores assinalarem as populações negras como um dos segmentos da
sociedade nacional em situação de “risco social”, chama a atenção o fato de que a maior
parte dos estudos previdenciários tenham-nas ignorado. A Previdência Social, enquadrada na
seguridade social, tal como definida na Constituição de 1988, tem de ser entendida como
uma política orientada para solucionar os problemas das populações brasileiras que se
encontram em situação de “risco social”. Embora grande parte da população negra esteja
enquadrada nos parâmetros utilizados para definir essa condição, é chamativa a ausência de
trabalhos destinados a analisar as políticas previdenciárias para esses grupos.
Diversos estudos mostram a importância das políticas de Previdência rural no combate à
pobreza nas regiões norte e nordeste do Brasil. Em vários municípios dessas regiões, os
benefícios recebidos pelos aposentados mobilizam importantes setores da economia local. As
aposentadorias para trabalhadores rurais, estruturadas a partir de um sistema não-
bismarckiano, transformaram-se, na década de noventa, em um dos mais importantes
mecanismos de redistribuição de renda no Brasil (Delgado e Cardoso, 2000).Vários trabalhos
qualitativos mostram como essas comunidades rurais utilizam esse dinheiro (Schwarzer, 2000)
24 25 e como ele é incorporado a partir dos usos e costumes dos diferentes grupos (Alvarez, 2002).
Apesar dos importantes avanços realizados no campo dos estudos previdenciários, ainda Moçambique não eram apenas escravos, mas príncipes, guerreiros, agricultores, sacerdotes,
existe um vazio bibliográfico em torno da questão “negritude e Previdência no Brasil”. Os homens, mulheres e crianças que vieram com suas culturas, seus valores, seus saberes. As
estudos sobre Previdência Social ignoraram a questão racial sistematicamente e, quando a trajetórias de vida variaram ao longo dos séculos; muitos deles ganharam a liberdade, alguns
abordam nos estudos quantitativos, produzem a imagem de uma população negra pobre, como alforriados, outros por meio da resistência, como a fuga e a reorganização em
explorada, caracterizada pela cor da pele, onde o componente cultural, a visão de mundo, fica quilombos. Escravos e alforriados reuniam-se em diversos tipos de sociedades, como a
excluído por não ser susceptível de quantificação (Escobar, 1996). ordem leiga de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, com suas irmandades, ou
O presente trabalho foi orientado segundo a hipótese de que, frente à invisibilização das nos terreiros, onde foi mantida a fidelidade ao culto dos orixás.
populações negras do Brasil, é possível visibilizá-las centrando-se não na cor da pele, mas na Juridicamente, o processo de abolição da escravatura foi marcado pela Lei do Ventre Livre, em
tradição cultural. 1871; a Lei dos Sexagenários, em 1885; e a Lei Áurea, em 1888, que pôs fim à escravatura. Em
Para realizar o presente estudo qualitativo, foram selecionadas diferentes populações 1891, Ruy Barbosa teria mandado queimar todos os arquivos que documentavam o tráfico
negras, com diversas formas de organização social, e analisaram-se também suas principais de escravos no Brasil, proclamando-os cidadãos da República. Por trás de um discurso de
instituições. À luz desse cenário, foram observados os tipos de benefícios previdenciários igualdade e cidadania, ocultava-se o propósito de evitar ações judiciais de indenização por
presentes nos diferentes grupos e as estratégias desenvolvidas pela Previdência para atingir parte dos antigos proprietários de escravos (Verger, 2002.a, Freyre, 2002).
esse público; além disso, são assinaladas, no final do trabalho, possíveis estratégias para Passaram-se pouco mais de cem anos desde essa integração forçada. O trauma traduz-se em
cobrir o déficit de políticas previdenciárias. Os capítulos iniciam-se com uma análise das uma invisibilização das populações negras, na discriminação ou ainda na criação de
formas de organização social e das tradições culturais e encerram-se com uma reflexão estereótipos que reforçam ou justificam sua posição social. Esse segmento negro,
sobre as políticas previdenciárias das quais participam. secularmente ignorado, quando não discriminado de maneira aberta, desenvolveu várias
A escassez de informações quantitativas sobre a Previdência entre as populações negras estratégias de ajuda mútua em diferentes contextos. Nas instituições em que esta pesquisa se
determinou a estratégia da pesquisa. O público-alvo foi delimitado a partir da interseção concentra – os remanescentes de quilombos, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
entre os beneficiários da Previdência e as instituições tradicionais das populações afro- Homens Pretos, os terreiros de candomblé e os maracatus –, a festa e a religião ocuparam um
brasileiras. Durante o trabalho de campo, a atenção foi focalizada nos remanescentes de papel central na reprodução da tradição e da solidariedade. Essas instituições negras foram
quilombos
quilombos, em Minas Gerais; na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens aqui estudadas, passando, metodologicamente, da cor da pele para a tradição cultural e a
Pretos
etos, no vale do Jequitinhonha, no mesmo estado; nos ter
Pretos terrreiros de candomblé
eiros candomblé, na Bahia; organização social. Igualar negritude à cor da pele é bastante problemático no Brasil, onde as
e nos maracatus do Recife. O leitor se perguntará: por que essas tradições? populações negras se auto-classificam por meio de um universo de categorias aplicadas em
diferentes contextos de negociação de posições sociais.
Para compreender essas tradições negras, é necessário remeter-se ao passado escravista. A
negritude no Brasil tem o estigma da escravidão. O tráfico de escravos, entre os séculos Este ensaio tem o propósito de informar o leitor sobre essas populações de modo
XVI e XVIII, trouxe ao Brasil milhões de africanos negros. Diversas estimativas assinalam o personalizado. Ao longo dos capítulos, a cultura e a sociedade são apresentadas como pano
transporte de uma população de quatro milhões de africanos como escravos ao Brasil. Essa de fundo sobre o qual se projetam os personagens. Todos os entrevistados foram
migração forçada teve vários fluxos, os mais antigos eram provenientes dos reinos do informados sobre os propósitos do trabalho e deram seu consentimento para as
Congo. Em um segundo período, vieram dos reinos do Congo e da Costa dos Escravos. Em entrevistas e as fotos. Em geral, as entrevistas foram feitas em um primeiro momento e a
um último ciclo, houve um forte comércio entre a Bahia e a costa do Benin, já sem a seguir passou-se à realização das fotos. Os depoimentos transmutaram-se e deram lugar a
mediação dos portugueses e seu sistema de triangulação comercial que envolvia África, uma apresentação cheia de códigos. As fotos representam um registro da pessoa por trás
Brasil e Portugal (Wolf, 1984). do depoimento, constituem uma expressão visual produzida de maneira espontânea, uma
performance ou apresentação visual da tradição para o leitor. Como já mostrou Pierre
Segundo Verger (2002.a), o tráfico de escravos entre a África e a Bahia pode ser dividido
Verger, as tradições afro-brasileiras privilegiam a tradição oral e as performances carregadas
em quatro períodos: a) ciclo da Guiné (segunda metade do século XVI); b) ciclo do Congo
de elementos visuais de grande poder simbólico. As fotos não são um simples elemento
e de Angola (século XVII); c) ciclo da Costa da Mina (três primeiros quartos do século
estético, elas falam ao entrelaçar significados, como os colares do candomblé ou a boneca
XVIII); d) ciclo da Baía de Benin (1770-1850). O autor assinala que, nas outras regiões do
do maracatu, cujos significados são explicados nos depoimentos.
Brasil, o segundo ciclo, Congo-Angola, prolongou-se até a abolição do tráfico de escravos.
Verger (2000, 2002.a, 2002.b) lidou especialmente com as relações entre a costa da Bahia e Este trabalho retoma as várias formas adquiridas pela negritude no Brasil. Elas não se esgotam;
o Golfo do Benin, que se manifestam no culto aos antigos orixás e voduns, semelhantes aos pelo contrário, assinalam diferenças, traduzem realidades distintas, falam de alternativas e da
praticados ainda hoje pelas populações ao sul do Daomé e do sudoeste da Nigéria. construção de uma cidadania plural, capaz de reconhecer as diferenças. O propósito aqui é
duplo: por um lado, visibilizar essas diferenças pelo reconhecimento das tradições afro-
Esses africanos foram transportados como força de trabalho escravo, mas trouxeram suas
brasileiras e identificar formas tradicionais de assistência; por outro, observar a chegada da
tradições. As crenças reproduziram-se no segredo e no sincretismo. O mimetismo foi a
Previdência para essas populações e analisar, na figura dos aposentados, a hibridação entre
estratégia de resistência frente ao mundo dos brancos, onde foram obrigados a integrar-se
esses espaços tradicionais de assistência e a cobertura oferecida pelo sistema previdenciário.
de forma subordinada. Os iorubas e Djè-djès trazidos da Costa do Ouro ou Costa dos
Escravos, dos antigos reinos do Benin, Fon e Ifé, os bantos do Congo, de Angola e 26 27 Durante a execução da pesquisa, foram identificadas instituições tradicionais entre
populações negras. Realizou-se um levantamento antropológico, que consistiu em
entrevistas semi-estruturadas com os aposentados desses grupos, na observação direta de
atividades sociais e das festas com elementos culturais afro-brasileiros, com registro
fotográfico e em vídeo digital. Sabe-se que o tempo de pesquisa, aproximadamente dez dias
em cada uma das localidades visitadas, foi pouco em termos de trabalho de campo
antropológico, mas as condições de sua realização em ritmo de consultoria impuseram essa
dinâmica. Realizou-se um trabalho intensivo, com foco nas instituições. Entrevistaram-se as
lideranças das organizações, e houve observação direta de eventos que acontecem tanto no
cotidiano como em momentos especiais, tais como rituais, festas e outros tipos de
apresentações. As lutas pelo reconhecimento permitiram uma abordagem centrada nas
tradições, mas considerando-as como processo político.
Durante o trabalho de campo também foram entrevistados técnicos da Previdência que
trabalham com essas populações tanto no atendimento direto (como o realizado pelo
PREVmóvel), como em atividades destinadas a ampliar a cobertura do sistema
previdenciário (como os técnicos do Programa de Educação Previdenciária - PEP/MPS).
As entrevistas com os aposentados e as pessoas idosas foram estruturadas a partir de
diferentes tópicos: apresentação, a forma de vida tradicional do grupo e as mudanças
ocorridas nas últimas décadas, o antes e o depois da aposentadoria, as atividades no
interior das instituições tradicionais de assistência e as interações com o resto da
sociedade, as mudanças decorrentes da aposentadoria e as formas de utilização do dinheiro.
Na primeira etapa do trabalho de campo, em Salvador, foram realizadas aproximadamente
18 entrevistas gravadas, o que constitui um acervo de 15 horas de gravação. Foram
entrevistados funcionários da Previdência, pais-de-santo, mães-de-santo e baianas do
acarajé. Cabe ressaltar que foram realizadas também entrevistas não gravadas, pois a
metodologia empregada demandou a localização de personagens-chave, o que terminou por
implicar diversas sondagens. Devido às restrições do grupo, as gravações em vídeo
resumem-se a vinte minutos nos quais aparecem rodas de terreiro e outros rituais do
candomblé.
Na segunda etapa do trabalho, no interior do estado de Minas Gerais, foram realizadas 28
entrevistas, totalizando 17 horas de gravação. Durante essa etapa, registraram-se, em vídeo,
aproximadamente duas horas e meia de fragmentos de entrevistas e festas nas quais os
aposentados desempenham um papel central. Entre esses eventos, estão o batuque e as
congadas nos remanescentes de quilombos e uma apresentação dos reis e dos tambozeiros
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí.
Na terceira etapa dessa pesquisa de campo, em Recife e municípios vizinhos, foram visitados
seis maracatus, três terreiros e a Confraria de Nossa Senhora do Rosário. Realizaram-se 23
entrevistas semi-estruturadas com aposentados, líderes dos maracatus, pais e mães-de-
santo, técnicos da Previdência, da Gerência do INSS e do PEP. Essas entrevistas somam mais
de catorze horas de gravação; realizou-se também um registro, em vídeo, dos ensaios e das
apresentações de maracatu. acadêmica que explore, de maneira exaustiva, o universo da negritude no Brasil. Seu
Nos próximos capítulos, serão expostos os resultados obtidos, com as limitações do tempo propósito é realizar um experimento de tradução cultural, confrontar o leitor,
e do ritmo intensivo impostos à pesquisa. Em dez dias para cada localidade, foi apenas possivelmente branco, com os depoimentos e os retratos desses cidadãos negros, seus
possível entrever as principais linhas que orientam as relações sociais, escutar as demandas pontos de vista, suas várias formas de ser brasileiro. Ao leitor é oferecido um espelho, onde
e observar algumas atividades dos grupos. Parte da interpretação das observações apóia-se poderá enxergar fragmentos do patrimônio cultural afro-brasileiro.
na literatura antropológica; outra parte é produto das distintas situações etnográficas
observadas no trabalho de campo. O propósito do livro não é realizar uma apresentação 28 29
32 33
1
Populações negras
em Minas Gerais:
irmandades, garimpos
e quilombos

A população negra do estado de Minas Gerais, no interior do Brasil, é composta por


descendentes de escravos transportados para o trabalho nas minas, tanto na extração de
ouro, como de diamantes. O ciclo do ouro impulsionou o traslado dos escravos que
chegavam aos portos do Rio de Janeiro e da Bahia. Esses contingentes formaram uma
população predominantemente originária do Congo e de Angola, com a presença de nagôs
ou iorubas em menor número. Durante a época colonial e o império, a região foi modelada
pela exploração de ouro e diamante nos garimpos. Mata Machado (1943) apresenta uma
descrição das formas tradicionais de exploração aurífera. Esse autor, preocupado com a
perda das tradições negras na região, coleta e traduz diversos bissungos, cantos com
palavras em banto e em ioruba.
O trabalho de campo em Minas Gerais, realizado no Vale do Jequitinhonha e no norte do
estado, é apresentado a partir da análise dos remanescentes de quilombos e da Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Nos remanescentes de quilombos,
pesquisamos uma população descendente de um antigo quilombo de resistência e uma
outra descendente de escravos que trabalharam na extração de ouro. A Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, apesar de não ser uma instituição
exclusivamente mineira, ainda mantém sua vitalidade no estado. Antigamente a irmandade
era formada por escravos e alforriados, organizados em torno da instituição do rei do
Congo, e agrupava descendentes dos povos do Congo, de Angola e Moçambique.
A contraposição entre as comunidades remanescentes de quilombos que habitam a zona
rural e as irmandades congregadas nas cidades permitiu também analisar a cobertura
oferecida pela Previdência a populações rurais e urbanas, naturais de municípios do interior
do estado. 34 35
Remanescentes de quilombos:
quilombos de resistência e
remanescentes da exploração do ouro

Os quilombos remetem à imagem romântica de resistência, de grupos de escravos fugitivos


que reconstruíram suas sociedades negras no interior e travaram uma luta de guerrilha
contra o regime escravocrata. O mais emblemático dos quilombos foi o dos Palmares, o
qual, no século XVII, resistiu a diversas investidas do governo do império, financiadas pelos
produtores no interior de Alagoas. A imagem de Zumbi dos Palmares surge como um ícone
de liberdade e luta contra a escravatura. Outros quilombos históricos, como o de
Malunguinho em Pernambuco, nas proximidades do Recife, com suas incursões nas fazendas
e seus roubos nas estradas, contribuíram para formar essa imagem romântica, a qual levou
o quilombo a transformar-se em símbolo da resistência negra.
Almeida (2002) criticou a idealização dos quilombos a partir de definições da época
colonial. O autor assinala que a definição do século XVIII os caracterizava formalmente
como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda
que não tenham ranchos e nem se achem pilões neles”. Esse conceito foi formulado em
resposta ao rei de Portugal, em virtude de uma consulta do Conselho Ultramarino em
1740 (Almeida, 2002:47). Essa definição acabou por criar uma imagem congelada no tempo.
Junto aos quilombos de resistência, como Palmares e Malunguinho, existem outros tipos de
quilombos; alguns deles são produtos de heranças de terras que passaram de família em
família; outros, produtos de doações de falidos senhores de engenho ou, ainda, de terras
compradas com recursos do garimpo ou do trabalho assalariado. Há também populações
que se mantiveram autônomas dentro da esfera da grande propriedade.
Na atualidade, os remanescentes de quilombos caracterizam-se por serem populações
negras, majoritariamente rurais, com um relativo isolamento, o qual se traduz em um alto
grau de endogamia, com um passado imaginado comum e uma valorização do espaço e do
tempo. Esse é construído em uma seqüência iniciada com a opressão/escravidão, seguida
por um tempo de liberdade/abundância no quilombo e pelo tempo atual, marcado pela
pobreza e pelas lutas por terra. Esses grupos possuem também uma tradição cultural,
expressa em rezas, danças e festas tradicionais. A projeção territorial, as pautas de
comunicação, as marcas raciais e as tradições contribuem para delimitá-los de forma
análoga aos grupos étnicos. Assim como os diversos povos indígenas, os remanescentes de
quilombo foram afetados pelo avanço da sociedade nacional, caracterizada pela pressão no
intuito da posse de territórios mais produtivos e pela expropriação dos recursos
tradicionais. Pleitear o reconhecimento como remanescente de quilombos, segundo o 36 37
Artigo 68 das disposições transitórias da Constituição de 1988, possibilita que essas
populações tenham reconhecido o direito à terra (O‘Dower, 2002). Vale enfatizar o caráter
relativo do isolamento, uma vez que essas comunidades tiveram, tradicionalmente, um
contato com as localidades vizinhas mediado pelo comércio.
Existem aproximadamente 2.300 comunidades rurais no Brasil em condições de reivindicar
seu status de remanescente de quilombo, como mostra o levantamento realizado por
Rafael dos Anjos (2005). Durante o presente trabalho de campo, tivemos a oportunidade de
mapear a situação de duas comunidades remanescentes de quilombos: Br ejo dos Crioulos
Brejo Crioulos,
no norte de Minas Gerais, e Cór
Córrreg o da Misericór
ego dia
Misericórdia
dia, no município de Chapada do Norte,
no Vale do Jequitinhonha, no mesmo estado. A primeira, um antigo quilombo de resistência;
a segunda, um núcleo de população em uma antiga zona de mineração, onde os garimpos de
ouro eram explorados com trabalho escravo. Ambas as populações estão localizadas na
zona rural, em pequenos municípios do interior do estado. Neles, o atendimento da
Previdência é realizado por meio do PREVmóvel, uma unidade móvel de atendimento que
leva os serviços previdenciários montados no interior de um veículo utilitário e trabalha
em parceria com o Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) e com as Secretarias de
Assistência Social dos municípios.
O Brejo dos Crioulos está localizado na divisa dos municípios de São João da Ponte e
Varzelândia, no norte de Minas Gerais. Esse remanescente de quilombo está composto por
diversas famílias vinculadas pelo parentesco, que moram em sete localidades relativamente
próximas. Cada uma dessas localidades possui mais de trinta casas agrupadas pelas pressões
da expropriação das terras. Tivemos oportunidade de visitar duas delas: Araruba e
Caxambú.
O Brejo dos Crioulos foi o nome recebido pela “terra de negros”, onde se formou um antigo
quilombo de resistência. A memória oral permitiu reconstruir a genealogia da ocupação do
2
Observação pessoal de lugar desde o século XIX.2 O território era formado por terras baixas e alagadiças; a
João Batista de Almeida
Costa, que realizou estudos malária e a febre amarela faziam dele uma terra imprópria para os brancos e indígenas que
mais aprofundados na região.
Ver também Costa (1999).
lutavam pelo controle do território. Negros fugidos da escravidão no interior dos estados
da Bahia e de Minas Gerais encontraram nessas terras um lugar propício para se instalarem,
longe das pressões dos brancos e dos índios. A malária também atacava as populações
3
A anemia falciforme é negras, mas, devido à anemia falciforme3, o número de óbitos entre essas populações era
geneticamente transmitida
em diversas populações
menor. Segundo os relatos dos moradores:
negras. Esse tipo de anemia
outorga um formato de foice “O Brejo dos Crioulos é composto por sete comunidades, é uma terra grupal. O Brejo dos
aos glóbulos vermelhos, Crioulos conseguiu crescer muito, é um quilombo, mas conseguiu crescer porque na época
tornando-os resistentes à
infecção do protozoário da não sofreu ação do capitão do mato... assim de atacar, né! Antigamente, tinha os capitão do
“Essa área é a mata da Jaíba, é uma área quilombola.
Era uma mata assim, em falagem indígena, era pobre
malária. mato; eram contratados pelo fazendeiro para sair atrás dos quilombo, onde é que o pessoal
era uma área que dava muito sertão. Os índios não acampava dentro dos mato. Eles chegavam e atacavam, e aí que eles pegavam uns, outros
habitavam nessa área e você sabe que os índios corriam, outros morriam. O Brejo dos Crioulo já não sofreu essa ação do capitão do mato. O
tomavam os territórios dos negros. Os negros não povo desceu aqui a margem toda do Rio Verde e subiu aqui a margem. Aqui têm umas sete
tinham território, após que eles foi libertado, eles foi lagoas permanente, que não seca, e têm umas treze a catorze lagoas que secam. Aqui era
expulsado. Aí eles começaram a fugir da fazenda. Aí um lugar muito rico em peixe e frutos naturais, tinha muita caça; então, aqui era um alvo
também se eles acampassem em território indígena
eram mortos, aqui não. Nesta área chamada de mata preferido para os negro habitar.Tinha muito “cezão”, que é a malária, chamada de “cezão”.
da Jaíba, não existia homem branco e não existia O pessoal aqui sentia “cezão”, mas não conseguia morrer de “cezão”. Agora, já o pessoal
também índio nela....” branco, se viesse, morria de “cezão”. Aí o Brejo dos Crioulos conseguiu crescer. Mesmo com
a malária e tudo, o pessoal vivia livre, não tinha ninguém de fora. Não existia ninguém de
FRANCISCO, LIDERANÇA DE BREJO DOS CRIOULOS – MG
38 39 fora, não existia nada.Vivia aquele pessoal ali.
Essa área é a mata da Jaíba, é uma área quilombola. Era uma mata assim, em falagem
indígena, era pobre, dava muito sertão. Os índios não habitavam nessa área, e você sabe
que os índios tomavam os territórios dos negros. Os negros não tinham território; depois que
eles foram libertados, eles foram expulso, aí eles começaram a fugir da fazenda. Também, se
eles acampassem em território indígena, eram mortos; aqui não. Nesta área, chamada de
mata da Jaíba, não existia homem branco e não existia também índio nela. Então, para os
negros, foi uma área melhor que eles tiveram; daqui pra Jaíba, só via eles dizendo negão da
Jaíba, né!” (Francisco, liderança do Brejo dos Crioulos, MG.)
As diferentes comunidades do Brejo dos Crioulos são caracterizadas por uma densa rede de
relações de parentesco. Essas relações são orientadas segundo a inclusão nos três troncos
familiares principais que marcam a distância em relação às famílias originárias. Antigamente,
eram quatro troncos; mas, com a chegada de ex-escravos libertos e com o aumento da
população, um dos troncos tomou a decisão de migrar para o sul.
“É que esse local em que nóis estamos aqui, foi fundado por três irmãos, que é Moreno,
Leopoldo e Manoel Novo. Eles tocaram isso aqui tudinho. Então, isso aqui tá com pelo
menos cento e tantos anos; é aqui que nóis moramos, nesse local aqui. É por aí, a gente vem
crescendo, crescendo, vai chegando gente e aumentando o lugar. E depois, quando os
meninos nasciam, aqui era tudo mataria, aqui tudo, e tinha muita caça, peixe demais, e hoje
tá desse jeito.” (Ciriaco, Brejo dos Crioulos, MG.)
Os três troncos ainda orientam as relações sociais, e os novos membros da comunidade
traçam suas relações de parentesco de acordo com os antigos. O casamento entre primos
aparece como união preferencial entre os membros do grupo. O tempo é marcado pelas
genealogias que ordenam os mais novos e os mais velhos em função de alguém no grupo.
O passado é evocado como o “tempo dos antigos”, caracterizado pela fartura de caça,
pesca e de cultivos. As habitações, baixas, encontravam-se camufladas debaixo das árvores.
As camas, uma pequena elevação construída sobre o solo, permitia dormir acima do nível
da água nos períodos de enchente. As terras periodicamente alagadas produziam arroz em
abundância, o qual era vendido na cidade de Gorutuba - MG, a três ou quatro dias de
caminhada. Esse tipo de comércio permitia a aquisição de sal, pólvora e outros insumos.
“Na época dos antigos, aqui era o seguinte: nóis vivia aqui das lavouras; plantava arroz, feijão,
fava, catador; plantando, criando porco, gado, tudo solto aqui. Então, por aí foi crescendo,
aumentando e chega nesse ponto que tá hoje. Eu me lembro; aqui era um sertão, sabe! Agora,
foi o Capitão que descobriu aqui, e o povo chegou e tomou conta de tudo, o povo foi chegando
de fora e foi tomando conta disso. Antes do Capitão Enéas, aqui era um sertão. Tinha que
comprar era lá, pra vender também era lá. Não tinha outro lugar aqui.
Os pais da gente iam lá e vendiam; às vezes, engordavam um porco, não tinha quem
comprava aqui, tinha que tratar o toicinho e vender lá na cidade. Tinha que matar o porco,
fazer e depois pôr na carga e levar a carne dele a cavalo, de a pé. De lá, traziam os
produto pra aqui; você vê, feijão, arroz, essas coisas aqui produziam, mas o café e o sal aqui
era difícil, tinha que buscar em Januário.” (Sr. Manoel Fernando Sousa, 70 anos,
aposentado, Brejo dos Crioulos, MG.)
Nas épocas de escassez, as populações negras de outras localidades atravessavam o mato
para usufruírem da abundância existente no Brejo dos Crioulos, onde diferentes
comunidades do norte do estado de Minas Gerais se agrupavam. A exceção, naqueles
40 41 tempos áureos, foram as secas ocorridas em 1938 e em 1942, quando a população se viu
obrigada a comer raízes de árvores como o mucunã e outras espécies, que tinham de ser nada. Ele nóis fez correr de lá, colocou a polícia e colocou bagunça aí e
preparadas para não produzir “inchação”. Essas são as únicas referências à escassez em um queria atirar em nóis. Tinha vez que eu mesmo escondia debaixo da
tempo considerado de abundância. O tempo dos antigos é recordado como a época em cama, às vezes que ia assim, que caçou nóis, que não achou nóis
que as mulheres teciam o pano no tear e cortavam a roupa. A população do brejo vivia porque nóis tava debaixo da cama, aí nóis escondeu dele. Ele tava aqui
seminua e utilizava roupa quando ia à cidade. não era pra agradar, era pra tomar a terra da gente.
“Meu pai falava que, quando uma panela está vazia, tem que procurar. Porque entrou uma Meu pai passou 15 dias sem sair fora, sem comer, sem bater nas roças
fome, mas eu não sei o que era fome, que o povo comeu a raiz de pau, mucunã.Também, pra nóis comer. Na outra roça, lá de baixo, eles puseram o gado e
as águas não choveu pra poder a gente ter as coisas. No passado, caso chovia, a gente comeram a roça toda; aí, meu Deus!!! A maior parte do meu povo
plantava; gerou aquela mudinha de alagar, e fazia duas planta por ano pra poder vê se acabou, tudo de gente que tem meu é só esse menino, só esse, o outro
salvava. Ia na cidade e comprava milho, comprava feijão; comprava pra tornar a plantar, que entrou aqui dentro e o filho meu. A maior parte do meu povo todo
porque, se não plantasse, o aperto era certo mesmo. Eu estava conversando com o acabou. Eu tenho os filhos que tá tudo esparramado.” (Elisarla Pinheiro
delegado lá em Varzelândia, e ele estava falando que o avô dele vinha aqui pra comprar de Abril, 63 anos, aposentada, Brejo dos Crioulos, MG.)
coisa pra vender em Porteirinha.
Para os grupos de camponeses tradicionais, a divisão da terra é um
Ele tava falando que o meu avô trazia coisas pra vender aqui e aí trocava. Era justamente fator de pressão sobre a família, a qual recorre a arranjos como
porque, com as águas boas, colhia de tudo, mas depois que entrou essa fome que eu estou casamentos e migrações para manter as propriedades
falando, o trem foi estragando. Essa fome foi em 1938. É, teve duas fome enrustida assim, economicamente viáveis. No caso das populações negras, o
que chegou a comer raiz de mucunã. Aqui morreu dois de fome, morreu o filho do velho processo de expropriação das terras por fazendeiros brancos,
João, que comeu raiz de mucunã que não tinha sido tratada. Na época, não tinha recém estabelecidos na região, agrava as condições de pobreza
estrada pra ir pra fora, transporte pra comprar alguma coisa fora.” (Sr. Manoel enfrentadas por esses grupos.
Fernando Sousa, 70 anos, aposentado, Brejo dos Crioulos, MG.) Antes de passarmos à outra localidade visitada, detenhamo-nos no
Na década de 1950, com a criação das agências nacionais de desenvolvimento e com a ação depoimento de um dos moradores do Brejo dos Crioulos, que
da agência de saúde para a eliminação das doenças endêmicas, o Brejo dos Crioulos perdeu as terras tradicionalmente pertencentes a sua família para
experimentou a chegada da frente de expansão da sociedade nacional. Os planos de os novos fazendeiros da região:
desenvolvimento tornaram rentável a posse das terras para os brancos. A vegetação nativa “A gente já melhorou um pouco, melhorou mais um pouco. Que só com
foi desmatada para sua utilização no assentamento das vias férreas que passavam por o salário da gente já tava dando; com essa aposentadoria, eu considero
Montes Claros. que Deus abençoou a gente, que dura mais. Com a aposentadoria, tá sobrando mais um
“Então, o Capitão Enéas começou a abrir estrada nas matas. Começou a vir a Sucam, a pouco, dá pra eu mais minha mulher. Eu tô muito satisfeito. Me desculpa, se eu tiver falando
antiga Sucam combateu a malária. Aí começou a vir o homem branco, começou a vir gente errado; é que às vezes a gente pensa que está falando direito, mas pode tá falando errado.
porque têm umas terras muito boas aqui. Produzia muito arroz. Aí começaram, acabou o Meu filho, essa história aqui é o seguinte: eu estou com sessenta anos de idade, e aqui nóis
sossego dos negros, aquela união que tinha. O nego começou a perder terra, a ser expulso. somos muito favorável, mas hoje nóis tamo um pouco muito apertado, tá entendendo? O
Acabaram com o sossego; os brancos vêm pra cá, vivem desmanchando, desmanchando, aperto, que eu falo para vocês, é por isso. Bem, antigamente, no tempo do meu bisavô, do meu
mas mesmo assim a gente segura. O pessoal foi esparramar, mas tá aqui ainda a tradição, avô, eu tinha uma liberdade, aqui ninguém tinha essa paliação [cercas], dava pra todo mundo,
segura.Têm muitos remanescentes de quilombo aqui ainda, e todos têm seus aposentados.” faz uma roça aqui, amanhã outra acolá, e todo mundo concordava. Ah, depois que os
(Francisco, liderança do Brejo dos Crioulos, MG.) fazendeiros conheceu que nóis tava numa boa aqui dentro dos territórios, o fazendeiro chegou
A frente de expansão corporizou-se com o Capitão Enéas e outros fazendeiros, os quais apertando pra nós, apertando, apertando, apertando... e foi indo.
pressionaram essas populações negras a venderem suas terras. Teve lugar, então, um
Hoje, que eu estou com sessenta anos, eu ganho o pão de cada dia; mas na terra do senhor,
período de trabalho forçado na extração de madeira, que muitas vezes terminava com a
ou na terra daquele que me dê um pedaço pra mim trabalhar de meeiro. Eu tenho que
morte do operário, quando este tentava acertar os pagamentos para sair do
pedir: ‘me dá um pedaço de terra pra trabalhar milho?’ O que nóis tinha, o que meu bisavô
empreendimento. Em outras ocasiões, essas populações eram pressionadas por jagunços
deixou pro meu avô, os fazendeiros tomaram. O que fez meu avô? Ele saiu fora, e então
que soltavam as boiadas nos campos de cultivo e atiravam nos moradores das casas.
ficou nóis, nesse sofrimento. E, nesse sofrimento, nóis tá até hoje.
“Eles mesmo atiraram em mim, quando tavam tomando a terra nossa, só não pegou, né?
Provo pra vocês que eu não sou sujeito de contar mentira e mostro onde estou trabalhando;
Foram três tiros na porta da casa, quando era menina. Lembro pegando na roupa, chorando.
até hoje trabalho de meia. Quando eu colho seis saco de milho, eu tenho que dar três pro
Ele matou uma cachorra pertinho de mim, assim, pra tomar as terras nossa de ali em baixo.
dono de lá. Do que dá, é três pra lá e três pra mim. Se eu tivesse o local como antigamente,
Sabe que eu nem gosto de lembrar disso, quando eu vou lembrar, meu coração já bate ruim.
aqueles três que eu dei pra ele serviria pra mim, pra mim comprar um arroz, um açúcar,
42 43
Nóis tinha umas terras lá em baixo, o jagunço tomou nossa terra, agora nóis ficou sem
um café ou outras coisas que eu podia vender e deixar o resto pro meu gasto. Mas, como
eu não tenho a terra, eu sou obrigado a trabalhar de meia; então, o que eu faço? Na hora
que Deus abençoa, que dá, eu colho seis saco de milho; então, eu tenho que dar três pro
dono da terra. Que ele é dono, ou não é? Eu não sei. Ele falou que é dono, nóis é obrigado a
acompanhar. Que é a palavra dele, né? Então eu cedo pra ele três, e três eu levo pra casa.
Os três que eu levo pra casa eu não tenho condição de vender, porque, se eu vender, o que
eu vou comer? Se eu tivesse a terra, dava pra mim vender, aqueles três dava pra mim
comprar um saco de arroz, um saco de açúcar, outras coisas pra se manter. Mas, como a
gente é fraca, então fica obrigada a ficar chupando o dedo... chupando o dedo, chupando o
dedo... (Zé Guará, 61 anos, aposentado, Brejo dos Crioulos, MG.)
Como quem relata uma parábola, Zé Guará continua com seu relato sobre a situação dos
quilombolas depois da expropriação das terras da comunidade.
Eu estive falando com o padre da família: ‘Em casa somos eu e minha mulher; eu sustento
duas mulher, e a minha mulher sustenta dois home.’ Aí o cabra disse pra mim: ‘Por que você
vai falar isso? Ela é uma mulher tão direita, e você é tão direito? Rapaz, eu nunca vi sujeira
em vocês. Como vai falar uma coisa dessas?’ Eu digo: ‘Eu falo, eu falo que não é segredo.’
‘Por que você fala? Sua mulher não é dessa forma.’ ‘Você não é o dono da terra?’ ‘Sou.’ ‘O
senhor não me dá a terra pra trabalhar?’ ‘Dou.’ ‘Então, o dia que o senhor me dá a terra pra
trabalhar lá, cê não vai roçar nela, vai?’ ‘Não.’ ‘O senhor não me dá a mata bruta?’ ‘Dou.’ ‘O
dia que eu pego a foice pra roçar a mata lá, a minha mulher faz um café de manhã, me dá,
e eu vou pra roça trabalhar. Quando dá nove, dez horas, que o almoço daquele pessoal
daqui do interior é nove, dez horas, aí ela chega com o almoço pra mim, eu almoço, e ela
vai embora. Quando dá doze horas, ela chega com um café pra mim. Sua mulher está na
sua casa sentada, você está lá sentado, não? Não está, não?’ ‘Estou.’ ‘Pois é, o que é que você
me dá? Sua mulher leva o almoço pra mim?’ ‘Não.’ ‘Ela leva o café pra mim?’ ‘Não.’ ‘A minha
leva pra mim o café, leva almoço e, de tarde, quando chego em casa, ela tem a água morna
pra mim tomar banho, pra não dormir sujo. Sua mulher vai lá amornar a água pra mim
tomar banho?’ Ele diz: ‘Não’. ‘Pois é, tá vendo que minha mulher sustenta dois home, e eu,
duas mulher? Porque o dia que eu colho o mantimento, que eu corto, sua mulher está lá
sentada, não tá?’ Ele diz: ‘Tá.’ Pois é, vai pegar do meu mantimento pra ela rolar. ‘Senhora,
seu marido não recebe?’ ‘Recebe.’ ‘Você ajudou eu plantar?’ ‘Não.’ ‘Você ajudou eu coletar?’
‘Não.’ Pois é: ‘Ela levou lá uma xícara de café pra mim?’ ‘Não.’ ‘Quem levou não foi minha
mulher?’ ‘Foi.’ ‘É por isso que ela está sustentando dois home e eu sustento duas mulher,
verdade?’ Se eu tivesse a terra, eu não passava por isso, porque eu plantava e eu colhia o
que é meu.Verdade?
Isso aí eu explico pra vocês. Eu tenho 61 anos, aposentei, certo? Mas não esqueço o que já
passou comigo. Eu já comi o pão que o diabo amassou. Onze anos de idade, eu ganhava 50
centavos, ajudava minha mãe a criar cinco filhos. Ganhava quinhentos réis, trabalhava seis
dias na semana pra ganhar três mil réis. Não é mentira não! Nessa vida, eu trabalhei, estou
até hoje; mas eu espero que Deus e nosso presidente não deixe ficar nesta situação. Porque
nóis somos aposentados e eu recebo o salarinho, eu não vou pedir a Deus pra que esse
outro receba? Eu quero que todos recebam, entendeu? Porque eu estou sofrido e, meu
sofrimento, eu desejo que os outros não sofram, certo?
Eu estou falando a verdade.”
(Zé Guará, 61 anos, aposentado, Brejo dos Crioulos, MG.)
44 45
Esse depoimento sintetiza uma situação comum para muitas famílias do Brejo dos Crioulos, a desses remanescentes. O Cór Córrrego da Misericór
ego Misericórdia
dia, outro remanescente de quilombos
dia
consciência da exclusão social e da participação em uma ordem nacional (marcada pelo apelo visitado no Vale do Jequitinhonha, apresenta muitas semelhanças e algumas características
ao presidente). O depoimento traduz a sensação de expropriação, construída tanto pela diferentes relacionadas ao ciclo do ouro. Essa comunidade encontra-se localizada no
alegoria de trabalhar para dois homens e duas mulheres, quanto pela consciência da município de Chapada do Norte, pertencente à microrregião de Diamantina. Esse município
impotência frente à perda das terras tradicionais. Destacam-se também as demandas por está, tradicionalmente, ligado ao município de Minas Novas, antiga sede da comarca.
políticas sociais. A Previdência, uma das políticas de distribuição de renda que chega a essas Segundo os moradores, residiam, neste último, os fazendeiros e os que exploravam o ouro
comunidades, é altamente valorizada e permeia o depoimento do princípio ao fim. A demanda extraído dos garimpos mediante o trabalho escravo. O município de Chapada do Norte foi
é por inclusão em igualdade de condições. A aposentadoria apresenta-se como uma renda formado pelos descendentes desses escravos que trabalharam nos garimpos. A
periódica que brinda amparo à população idosa e mostra a possibilidade de essas populações, predominância da população negra chama a atenção; muitos deles são de grande estatura.
até há pouco tempo isoladas, serem contempladas pelas políticas da ordem nacional. Nas proximidades da cidade de Chapada do Norte, localizam-se diversas comunidades
Por outro lado, valoriza-se o passado como a época de fartura, e o presente caracteriza-se rurais negras, muitas das quais reivindicam seu reconhecimento como remanescentes de
pela expropriação da terra, pelo contraste com o passado, quando o acesso à terra obedecia quilombos: Cubas, Porções, Córrego da Rocha, Água Suja e Córrego da Misericórdia.
a arranjos tradicionais, ancorados no parentesco e não na propriedade privada. As relações de Escolhemos esta última localidade, entre outros motivos, porque o grupo, com as congadas,
trabalho encontram-se, agora, no colete de força da privatização do acesso à terra. Os novos participa da Festa de Nossa Senhora do Rosário, organizada pela Irmandade de Nossa
arranjos, trabalho como meeiro, reinscrevem práticas do trabalho tradicional – como no Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte.
cultivo de milho, feijão e mandioca – com novas formas de exploração pelas quais se tem de Essa população localiza-se às margens do Córrego da Misericórdia, que dá nome à
pagar metade da produção ao proprietário privado e branco das antigas terras tradicionais. Se comunidade formada por aproximadamente trinta casas dispersas, localizadas às margens
a apropriação aconteceu por meio de processos de documentação duvidosos para essas do córrego, quase seco. As terras arenosas que no passado deram ouro, abrigam essa
populações, as relações de meeiro, vistas como exploratórias, são um dos últimos recursos comunidade rural a 20 km da sede do município.
das famílias que querem permanecer em suas terras, ainda que, para isso, tenham de ficar,
Pode-se inferir que a comunidade está composta por descendentes de escravos trazidos para
conforme o depoimento, “chupando o dedo” e observar a ordem do branco.
trabalhar nos garimpos, mas a escravatura parece estar relegada ao esquecimento; um tema
Depois da quebra do vínculo com as famílias influentes de São João da Ponte e da não abordado, uma amnésia estrutural, o lugar do não dito. Essa sociedade apresenta-se como
apropriação das terras, essas populações foram relegadas ao esquecimento, marcado pelo formada por uma família extensa. Os descendentes do patriarca já morto encontram-se
déficit no acesso às políticas públicas. Recentemente, na década de 1990, algumas dispersos em diversas habitações distantes em centenas de metros umas das outras. Trilhas na
comunidades tiveram acesso à energia elétrica e ao funcionamento de um grupo escolar mata entrelaçam as casas, e o casamento entre primos entrelaça a família extensa. À
mantido por uma equipe de professores leigos. semelhança do Brejo, a maior parte dos moradores do Córrego da Misericórdia vive da roça,
O trabalho dos que permanecem no Brejo dos Crioulos continua marcado pelo ritmo em economia de subsistência. As limitações desse tipo de economia expulsam os mais jovens,
tradicional. O tempo de trabalho é determinado pelas variações climáticas, mais que vão buscar trabalho no cultivo da cana-de-açúcar em São Paulo, e favorece os casamentos
especificamente pela época de chuva (de setembro/outubro a janeiro) e de seca, o restante entre os filhos mais velhos. Na prática, esse arranjo matrimonial evita a fragmentação das
do ano. Antes do início das chuvas, ocorre a preparação dos terrenos para a roça. Com as pequenas propriedades rurais. A comunidade possui altos índices de endogamia, o que ordena
primeiras chuvas, realiza-se o plantio. as relações sociais em um denso entrelaçado orientado pelo parentesco.
“De roça, que nóis trabalha e trabalhava só na roça. Aqui nóis plantava mandioca, nóis O passado é valorizado desde a época em que o pequeno córrego ainda tinha ouro em
plantava feijão, plantava arroz. Meu pai andava com a casa cheia, comprava gado, nóis vivia suas margens. Os habitantes guardam a lembrança dos tempos áureos, quando viviam de
tudo na fartura. Hoje, é como se diz, eu só tô melhor porque sou aposentada, mas se eu garimpar ouro com as bateias nos rios da região.
não fosse aposentada, eu tava era morta. Ai, meu Deus do céu!” (Furtuosa, aposentada, “Fico em casa. Agora minha família tem pouco grão; agora, com a aposentadoria, tô
Brejo dos Crioulos, MG.) ajudando a criar esses neto meu. Trabalho era na roça, na bateia, garimpando. Agora eu
O trabalho na roça tem início às cinco horas da manhã e vai até as dez, quando se realiza a deixei, mas tudo isso eu fazia. Achava ouro.
pausa para o almoço. Depois da refeição, os trabalhos continuam até as dezessete horas, Pra garimpar, levava a bateia e uma pá. E pegava aquilo ali e rapava assim a areia. Quando
quando tem lugar a janta e, em seguida, o recolhimento para descansar. “A vida na rapava, tirava a areia na bateia, punha lá, trazia de lá. Abanava assim [girando o prato com
comunidade é como a das galinhas. A gente acorda cedo e vai dormir ao cair do sol.” Esse clima um leve movimento circular] até achar o ouro. Agora que eu deixei, porque a ‘espinhagem’
marca o ritmo social da época compreendida entre o início da chuva e o da seca, quando se não tá dando. Agora eu deixei e tô mais na roça.” (Maria dos Reis Rocha, 68 anos,
faz a colheita. Nesse mesmo período (meados de janeiro e início de fevereiro), verifica-se o aposentada, Córrego da Misericórdia.)
início do ciclo de festas, marcado pela Folia de Reis e as festas para o Santo. Durante esse
tempo de festas, acontece o pagamento das promessas; um conjunto de festeiros oferece Ao abordarmos o tema do ouro nas entrevistas, mandaram buscar, no interior de uma das
casas, uma velha bateia de madeira, ressecada, com uma rachadura, indelével marca da
comidas e bebidas aos participantes e dança ao som do batuque, ritmo tradicional banto.
46 47 passagem do tempo. As mulheres adultas ainda lembram como usar o prato de madeira
Passemos para outra comunidade a fim de esclarecer algumas variações na organização
para filtrar os cascalhos do rio com um leve balanço que leva o ouro a depositar-se no
fundo. Hoje, o rio está seco, e a demora das chuvas ameaça os incipientes brotos da roça.
Não tem mais ouro, nem água para abrir uma roça grande.
“Tem história do ouro, da comunidade; viviam mais era com ouro em pó. Até hoje muitos
procuram, mas lá não acha mais o ouro em pó... tem gente aí que criou a família com ouro
em pó e hoje não acha o ouro, não sei o que tá acontecendo com ele não.” (Eva, liderança
do Córrego da Misericórdia, MG.)
O ouro é idealizado como um ganho extraordinário e complementar à roça. Ele provém de
um trabalho individual, em contraposição à roça, representada como trabalho coletivo. Os
moradores das habitações dispersas reúnem-se, periodicamente, para o trabalho coletivo e
para as festas. Quando de nossa visita, em um domingo, encontramos o grupo reunido em
trabalho comunitário para realizar a construção da igreja. Vários homens e mulheres, muitos
deles aposentados, trabalhavam descascando os paus que seriam transformados em teto.
Eles trabalhavam na construção da igreja porque o padre ameaçou não voltar ao povoado
até que construíssem uma igrejinha. Atualmente, a capela funciona na sala da creche. No
mesmo espaço, a líder da comunidade realiza um trabalho preventivo na área de saúde.
As festas tradicionais, como os rituais, constroem a identidade dos grupos e criam
consciência social. Centremo-nos em suas festas, as quais, como ritual, constituem um
índice que nos permite observar um tempo social mais amplo e, especialmente, a existência
de instituições responsáveis pela reunião dos grupos em um espaço social cheio de
significados. Uma análise desses rituais possibilita enxergar suas diferenças e semelhanças.
Apesar das variações nas danças, na composição das coreografias e nos instrumentos
utilizados, eles expressam um momento extraordinário de encontro da comunidade, uma
representação das tradições recriadas em grupos distantes geograficamente.
Nas comunidades do Brejo dos Crioulos, as mulheres ocupam um lugar central na
estruturação das relações familiares. Esse fato obedece a diferentes motivos, entre os quais
se pode mencionar o costume tradicional dos homens de manterem distintos núcleos
4
Costa, 1999.
familiares: a família antiga, a velha e a nova4. Entre os motivos contemporâneos, pode-se
apontar a migração sazonal dos homens para participar da colheita do café.
Independentemente das razões, um dos fatos mais significativos é o papel de destaque
ocupado pelas mulheres durante o batuque. São elas que tocam a caixa, marcam o ritmo da
dança e cantam as diferentes toadas.
“Essa dança tá aqui há cento e poucos anos, ou antes. Essa dança que nóis tinha é uma
dança usada em festa. Quer dizer, em toda festa deles, eles faziam como se fosse de reza
mais religiosa, eles rezavam as rezas, faziam os dizeres antigos, os terço, as reza; aí, após a
dança, iam batucar no terreiro até o dia amanhecer, até às nove da manhã batucando as
danças típicas daqui. Não tinha os instrumentos, não tinha nada; tinha essas danças típicas
que eram os batuques, danças de sala, né?” (Francisco, liderança, Brejo dos Crioulos, MG).
“Botava batuque, a festa aqui era doze dias, treze dias de noite de reza. Todo dia tinha
batuque na festa. Têm muitas coisas que eu já esqueci – muito velho já – tem o xote, tinha
o batuque, tinha a dança de sala, tinha tudo.” (Elisarla Pinheiro de Abril, 63 anos,
aposentada, Brejo dos Crioulos, MG.)
“...As histórias era isso, tinha um batuque, tinha uma festa, nóis ia, pai não deixava ir na
escola. A escola nossa era trabalhar na roça. Depois nóis tinha festa, nóis ia. Num botava
nóis na aula, o estudo que ele botou foi trabalhar. Na festa que nóis ia, ele botava nóis pra
dançar um batuque, mas baile nóis não dançava. Nóis aprendeu a dançar baile porque nóis
via Sofrano tocar. Aí nóis passava, pegava a cabaça pra apanhar água e passava, quando ia
apanhar água. Aí nóis aprendeu, mas não porque pai ensinou nóis, porque ele botava nóis
pra trabalhar. Então, nóis tudo tem essa formação, é no serviço mesmo. Nóis não tem
estudo, nóis aqui, os irmãos tudo não tem estudo, que dessa época aqui não tinha escola.
De certos anos pra cá que tá tendo escola, e agora uma pessoa de minha idade não
aprende mais. Cê acha que aprende? Aprende não.” (Dona Catarina, 55 anos, aposentada,
Brejo dos Crioulos, MG.)
“Isso até hoje se bate uma viola, ela vai bem, ela não nega mesmo. Agora que tá parado.
Ninguém tá brincando mais, os batuqueiro já tão acabando tudo; depois que eles morrem,
acabou. Acabou. Era batuque, era dança de sala, era o brinquedão... Nóis tudo aqui, tanto de
gente, agora ficava aí, nóis... bota a viola aí, nóis dançava até o sol alto, um batuque, a
mesma coisa, hoje não tá o mesmo mais. Eu gostava de bater na perna... rolou ciúme
mesmo... muié bastava. O que passava rasteira na muié dançava! É, no batuque tem essa
dança de brigar. É! O home... aí a mulher vinha e encontrava, assim, e dava uma chegada
no saco, assim, do home. É isso... que parou, mas eu vou falar pro cê, que era bonito, era
bonito...” (Júlia, idade desconhecida, Brejo dos Crioulos, MG).
Para a dança do batuque, forma-se uma roda com os homens de um lado e as mulheres do
outro. No centro da roda, em pares, realizam-se as evoluções. Um homem e uma mulher
entram na roda de cada vez, realizam algumas evoluções e voltam aos seus lugares. A dança
possui, implícito, um forte conteúdo sexual. Antigamente, os mais velhos não permitiam aos
mais jovens participar do batuque como uma estratégia para reservar o acesso às mulheres.
Por outro lado, se um homem é inconveniente na dança, as mulheres literalmente o
derrubam no chão, provocando o constrangimento do participante. Esse jogo sutil de
5
Costa op. cit.
encontros durante a dança prolongava-se no mato.5 Arthur Ramos (1988:150) descreve a
dança com o nome de umbigada, identificando-a com a dança quizomba, de Angola.
Muitos dos aposentados entrevistados durante o dia, de aparência frágil e que, por vezes,
pareciam desmemoriados, participaram ativamente da dança. A festa tradicional e a dança
representam, para esses aposentados, o “bom viver”, o momento quando o grupo apresenta
a sua identidade e as relações sociais são atualizadas. A participação dos homens e das
mulheres no batuque reflete a estrutura social do grupo. Na dança, representa-se e coloca-
se em jogo o controle do acesso às mulheres. No batuque, participam as mulheres e os
homens mais velhos; antigamente, era proibida a participação dos mais jovens.
“Meu pai me conta um causo que o véio Benze... é o tio do meu pai, ele é pai da dona
Isaura. Ele... meu pai era, então, um rapaz mais novo. Antes, onde tava os mais velhos, os
mais novo tinha que respeitar; onde tavam os mais velhos, os mais novo mesmo... tinham
que recuar. Ele tinha desejo; aí, as muié que tava dançando tinha preferência pelos mais
velho, e os mais novo não tinha preferência. No meio daquelas muié, meu pai tinha aquele
desejo, mas num podia... os mais velho não deixavam... Aí meu pai sentia desejo de dar
umbigada naquelas muié...
E tinha muié gorda e tinha muié magra; então, meu pai ia na mata onde tinha as madeira,
o tamboril, que era madeira gorda, e usava como as muié gorda... E, quando era uma árvore
magra, fina, era a muié magra lá do batuque, certo? Então ele disse que o Benze o viu, e foi
seguindo ele. Ele não viu. Aí ele veio de cá, ele batucava de cá, assim, e encontrava com as
muié, chegava no pau, tam... Ele batucava e falava e fulano, só gritava o nome da muié e 50 51
52 53
dava uma chegada de saco no pau. Aí vai e vai, e o tio seguindo ele. Aí chegou num ponto cantando por causa daquele pé de milho todo enfeitado.Tinha biscoito, fazia uma comida,
que ele achou um tamborilzão bem grosso no meio do caminho e falou: ‘Ah...’ Fez um levava, quando chegava cantando do “terreiro”, no terreiro dos camaradas também, e
temorso assim... E ameaçou e foi lá e deu uma chegada assim e falou e fulano, o nome da pegava a bandeja com cachaça depois. Tinha era a bandeja com a cachaça enfeitada, você
muié, né? Ficou agarrado, sabe? Aí meu tio deu uma risada assim aberta, como ele nunca pegava e passava pra lá... a cozinheira entregava aos camarada a bandeja com a garrafa
tinha dado; aí meu pai não riu mais, nem brincou, porque o véio riu. Ele tava com vergonha enfeitada e recebia o pé de milho. Aí fazia aquela festa na chegada, e aguardavam a vinda,
porque tinha feito muito feio” (Francisco, liderança, Brejo dos Crioulos, MG.) os camaradas iam tomar o banho deles; e à noite tinha a brincadeira, tinha jantar e tinha
O batuque foi um tema recorrente entre os entrevistados. Perguntamos se podiam fazer as brincadeiras que é da congada, dança de sala, dança de roda, vários tipos de roda que
uma apresentação para registrarmos a dança. Eles mobilizaram-se rapidamente e tinham e, acabando, véio morre.
manifestaram dedicação e empenho na sua realização. Mandaram buscar as roupas que Esse véio morreu, as lavouras... o pessoal não ficou fazendo mais lavoura igual fazia, porque
confeccionaram para as apresentações e realizaram-na, excepcionalmente, à tarde, para que a chuva tá sendo muito pouca. Às vezes até tinha lugar que planta e dá qualquer coisa,
a luz natural fosse aproveitada para as fotografias. Os participantes desse grupo eram, em porque, conforme o tempo da chuva, plantou e não colhe nada do mesmo jeito, porque a
sua maioria, os aposentados entrevistados durante o dia, aos quais se somaram outros das chuva tá sendo pouca, né? E aí esse velho acabou morrendo e, quando esse velho morreu,
comunidades vizinhas. esse pessoal não tá fazendo mais aquela roça, aquela lavoura igual esse velho fazia. E esse
Essas festas, que duram a noite toda, funcionam como um ritual de inversão e de agregação. trabalho cultural ficou parado, porque mesmo esse pessoal que faz a roça não vai fazer
Como ritual de inversão, a festa, o espaço lúdico, contrasta-se com o dia, a hora de trabalho quantidade de fazer festa igual o véio fazia.” (Eva, liderança comunitária, Córrego da
e sacrifício. Como ritual de agregação, é o momento de o grupo fazer-se sensível para si e Misericórdia, MG.)
para os outros (Costa, 1999). Esse caráter de agregação é mais evidente e explícito nas Vale ressaltar alguns elementos dessa festa como ritual. Por um lado, a existência de ritos
festas do Córrego da Misericórdia. semelhantes em outros remanescentes de quilombos visitados, como a dança do auie entre
Passemos agora para as festas do outro grupo, na Chapada do Norte. As congadas têm sua as comunidades do Rio Trombetas, no Estado do Pará. Nessa dança, uma planta enfeitada
origem, segundo os habitantes do Córrego da Misericórdia, em uma antiga tradição mantida com fitas e moedas ocupa um lugar central nos festejos. Por outro lado, é possível inferir, a
na comunidade pelo pai do Sr. Cesário. Naquela época, quando chegava o tempo de partir do milho enfeitado, um simbolismo relacionado à fertilidade e à abundância que
preparar a terra, o dono do terreno convidava seus vizinhos para realizar o trabalho encerra o trabalho coletivo realizado pelos homens. Finalmente, a garrafa de cachaça, como
coletivo: “Ele convocava dez homens, mas apareciam vinte ou mais”. Enquanto os homens iam veremos, aparece também na festa da Irmandade. Nesse caso, indica o início da festa, um
preparar a roça, as mulheres permaneciam em casa, preparando a refeição. Ao finalizar o período de atualização da comunidade e um momento de permissão para certos
trabalho, eles escolhiam uma planta bonita, um pé de milho, que era todo enfeitado com comportamentos extraordinários, incomuns no cotidiano.
flores, fitas de cores e notas de dinheiro. Voltavam para a casa do anfitrião carregando o pé A música é executada por uma pequena banda de homens, composta por violões, pandeiros e
de milho enfeitado e eram recebidos pelas mulheres, as quais os esperavam com uma uma sanfona. Durante a festa, as danças são acompanhadas pelo consumo de cachaça e são
garrafa de pinga enfeitada. Eles davam o pé de milho e recebiam a garrafa de cachaça. permitidos comportamentos normalmente censurados. Liberdade e permissividade marcam
Depois desse intercâmbio ritual, começava a festa, quando comiam, bebiam e dançavam esses momentos, quando os homens, responsáveis por marcar o ritmo das danças, tentam
congada e outros ritmos até o raiar do sol. conquistar as moças. Aí a permissividade traduz-se no consumo de bebidas por parte,
“O que eu sei passar mais ou menos é o que a gente pegou do avô dele, né? É que inclusive, de adolescentes e crianças. Um ar de embriaguez permeia o ambiente marcado
justamente o avô dele era lavorista e, quando dava nesse tempo que se chamava pra plantar pelos cantos e pelos ritmos que encerram o trabalho coletivo em uma festa que se estende
lavoura, aí chamava e descia cinqüenta; só que hoje você chamou cinqüenta, vai dez, né? até o raiar do sol. Nessa dança coletiva, participam velhos, jovens e crianças. Durante nossa
curta estada na comunidade, pedimos que fizessem uma apresentação da congada, a fim de
Então ia essa turma pra roça trabalhar e, lá trabalhando, ele, o dono da roça, contratava os
registrar esse importante momento da vida comunitária. Ficamos emocionados ao ver, entre
camaradas e, no caso de ele ficar satisfeito e terminasse a lavoura durante o dia, à noite
os dançarinos e músicos, muitos dos aposentados entrevistados ao longo do dia.
fazia brincadeira para ele com os camaradas.
Como assinalamos anteriormente, os membros desses remanescentes de quilombos,
É, aquilo ele saía olhando o pé de milho que tivesse maior, umas flor, que na casa tinha no expropriados de suas terras mais produtivas, vivem hoje em uma economia de subsistência.
meio da roça; o nome é parreira, inclusive eu tenho até ele ali... Ele tava muito satisfeito e, As comunidades estão formadas basicamente pelos mais idosos, os primogênitos das
quando era tarde, já pegava aquele pé de milho e mandioca que achava no meio da roça, famílias e as crianças mais novas. Uma parte importante dos grupos viu-se forçada a migrar
pegava as flores que tinha encontrado e enfeitava esse pé de milho com dinheiro e trazia para trabalhar na colheita da cana-de-açúcar ou em outras atividades produtivas em outros
pra casa, e em casa tinha cozinheira que fazia a comida pra todos eles. estados. Esses migrantes voltam à comunidade para as festas do santo padroeiro, o
Aí ele enfeitava esse pé de milho que ficava lá com a bandeira, e traziam. Só que ele vinha contexto mais amplo que dá sentido aos batuques e às congadas. Nesses momentos, o
da roça cantando e, quando chegava em casa, encontrava aquela cozinheira também lá grupo se reagrega e atualiza os vínculos. Muitos dos migrantes enviam dinheiro a seus
com a garrafa de cachaça na mão, que era enfeitada também, justamente as mulheres com parentes para poderem participar da festa, como uma forma de pagar promessas. Outra
54 55 fonte de recursos utilizada para a realização dos festejos é o dinheiro dos aposentados, os
a cachaça e o dono da roça com o pé de milho enfeitado nas costa. Aí fica a turma
únicos que possuem uma renda fixa e regular nesses remanescentes de quilombos. vadiando, brincando com ele aqui no carrinho e tem outro neto, nasceu e criou aqui dentro de
Por fim, abordemos o tema do dinheiro nessas comunidades tradicionais. As principais fontes casa com a parteira.
de renda são as aposentadorias, e sua importância depreende-se das numerosas menções aos Olha pra vocês verem, esse meu osso dói demais, e porque eu já trabalhei demais e já
benefícios ao longo dos depoimentos. Essas rendas são complementadas com o dinheiro trabalhei muito, se você vê essa roça aí, desse pé de pau pra lá até embaixo é minha.Tenho
recebido dos que migraram e com a venda de alguns produtos oferecidos na feira ou no roça pra acolá, tenho o fundo de um brejo, mandei ar ar
ar,, tava aí com um quebr
arar adinho,
quebradinho,
mercado local. Esses produtos podem ser alguma saca de milho ou um saco de farinha. O fiquei sem os quebr adinho
quebradinho
adinho, mandei arar, qualquer hora que Deus abençoar e mandar a
dinheiro da aposentadoria é visto como aquele que os tira da linha de pobreza. divina [chuva], eu corro e planto. E essas terras daí eu vou dar de amigo, que eu não vou
“Com a aposentadoria mudou, eu fiquei foi boazona. Antes de eu aposentar, eu estava agüentar roçar, é problema demais, é febre demais, eu sinto problema nos músculos, e
sofrendo, eu tava sofrendo. Depois, com a aposentadoria, melhorou. Eita, graças a Deus, então eu vou dar de amigo, eu moro aqui.
moço.” (Dona Furtuosa, aposentada, Brejo dos Crioulos, MG.) É, crio uma galinha, então Deus dá o milho, e a gente vai comendo. Quem vai garantir
O dinheiro da aposentadoria, além de ser utilizado nas festas patronais, é usado na compra comprar carne cara do modo que tá? Então, a gente tem que fazer força, criar uma galinha,
de alimentos, remédios, bens duráveis e no transporte. Nos depoimentos, os aposentados criar um porco, não é? E tratar, jogar o milho, porque a gente não pode deixar só na
manifestam que, sem o dinheiro da aposentadoria, não poderiam viver. Com ele, cuidam da aposentadoria, e cada vez agora as coisas saem mais dinheiro. Olha aí, ó, agora mesmo eu tô
saúde tanto pela compra de medicamentos, como pela compra de diversos gêneros com dois meses que não compro um gás.Tem um fogão a lenha, mas agora pra fazer a
alimentícios. O depoimento a seguir ilustra a utilização dos recursos da aposentadoria comida só com a lenha da mata, a gente pega na mata. Como eu vou comprar um gás, com
também para o pagamento de serviços eventuais realizados pelos mais jovens, como arar a que dinheiro? Ai, eu não tô agüentando cortar com machado mais não.” (Dona Catarina, 55
terra ou cortar a lenha. anos, aposentada, Brejo dos Crioulos, MG.)
“Graças a meu bom Deus, depois que eu aposentei, não me falta as coisas dentro de casa; Outra compra altamente valorizada é a do botijão de gás, mas a renda não é suficiente para
eu compro saco de arroz, saco de feijão, eu compro quatro quilos de café, dez quilos de isso todos os meses, motivo pelo qual normalmente preparam os alimentos no fogão a
açúcar, meu sabão, eu tenho tudo; a sobra de um quebradinho eu guardo pra pagar conta lenha. Finalmente, outro gasto apontado é com a educação dos netos ou dos filhos de
de luz e eu ter o dinheiro pra eu pegar o ônibus. Agora, isso aí eu não escondo, beber uma criação, que acompanham esses aposentados em sua velhice, quando ficam sozinhos devido
cerveja, eu bebo. à migração ou à morte dos filhos biológicos. Outros depoimentos são enfáticos na compra
de carne, realizada quando vão receber os benefícios.
Então, o que eu tenho para contar é isso aí.Tô louvando a Deus, porque Deus preparou,
porque eu tenho o meu gainho, meu dinheirinho que todo mês eu apanho, graças a meu bom Furtuosa: – “Uai! Não, o que eles dá de dinheiro é bom, não tem que falar nada. É isso? É
Deus! Nunca fiquei com fome, graças a meu bom Deus! E essas duas meninas, ó, eu tenho bom. É, graças a Deus, com as coisas que tem, come carne com arroz, feijão com carne.
uma mulher que lava pra mim: é a esposa do meu filho. Eles têm filho e mora aqui comigo, Antes de aposentar, era difícil comer carne aqui. Bom, antes de aposentar não comia
mas depois eles vão fazer a casa deles. Pois é, eu tenho dois netos, aquele que o moço estava 56 57 mesmo não, mas aposentando, começamos a comer carne.”
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Francisco: – “Naquele tempo matava gado, eles comia carne, mas depois de um tempo que
deu pra viver, questão do território ficou pequeno, eles viveu em crise, não comia quase
carne. Eles comia mesmo, mas depois foi apertando, se foi perdendo, o que colhia não dava
mais pra família, aí passou uma crise e não comia quase carne, não tinha dinheiro. Depois
veio a aposentadoria, mesmo com o território pequeno, a gente é trabalhador rural, não
depende mais da terra pra trabalhar, mesmo com a terra pequena, está comendo carne;
não tanta, mas no dia que vai lá, compra uma carninha!”
Furtuosa: – “É, compra!!!”
Francisco: – “Como a família dela é pequena, dá pra comer carne, mas, se a família dela
fosse grande, também não dava pra comer carne o mês inteiro. O dia que vai lá, compra.
Passa muitos dias sem comer carne de vez em quando. Nóis não vamos falar que dá pra
comer o tempo inteiro, que também não dá.”
O emprego do dinheiro da aposentadoria é semelhante nas diferentes comunidades
remanescentes dos quilombos visitadas, como se pode concluir a partir do depoimento
seguinte. A aposentadoria não implica, necessariamente, deixar de trabalhar e é valorizada
como uma renda que permite custear os gastos necessários para alimentação e
medicamentos.
“O dinheiro da aposentadoria ajuda e muito. Eu era pobrezinha e fiquei sem pai, sem mãe.
Vivia lá bateando, na bateia, pra comprar alimentação.Tinha uma irmã minha que era
doente, ela não trabalhava; eu vivia trabalhando pra dar de comer. Eu plantava milho,
plantava tudo sozinha. Ainda ia bater bateia pra comprar alimentação.
Ajudou, favoreceu eu. Eu ainda faço minha roça, ainda não fico sem minha roça, mas ainda
faço, acabo mexendo aí, e a aposentadoria ajuda. A gente dá um jeito em casa com a ajuda
da aposentadoria e a gente vai tocando aí pra fora. Tem que gastar muito, comprando
remédio direto também.” (Adelina, 63 anos, aposentada, Córrego da Misericórdia.)
A aposentadoria é algo relativamente novo para esses grupos. Uns poucos a recebem desde
a época do FUNRURAL. A maior parte teve acesso aos benefícios durante a década de
1990 por meio de parcerias entre a Previdência e os sindicatos de trabalhadores rurais.
Um dos problemas enfrentados consiste na falta de documentos de identificação por parte
dessas populações que, até bem pouco tempo atrás, mantinham uma relação de autonomia
em relação a outros grupos sociais. Trazemos dois depoimentos de quilombolas, um de uma
pessoa ainda indocumentada e outro de uma aposentada que completou o processo de
documentação mobilizada pela expectativa de obtenção do benefício.
“Tem documento não. Logo que começou, tirou, mas tá parado. Não. Nada. Nunca. Batistério
meu? Eu não sei, se eu tiver não lembro, porque aqui, quando a gente nasce, ninguém sabe,
né? Agora, de batizado que eu vi, foi de uma menina minha, que batizou que eu vi. Mas
bem, o meu eu nunca vi. Antigamente, não tinha contato fora, então, não batizava. Há pouco
tempo que tem. No tempo meu, tinha não, no tempo meu, no tempo do pai dele aí, ó.
Não tirei batistério, não sei a idade não. A mãe minha nem deu ela pra mim. É, se ela tivesse
dado ela pra mim, eu sabia, mas ela não deu. Se pai que é pai não dá pro filho, né? Que se
tivesse sabido minha idade, tava bão, mas eu não sei de minha era. É porque eu não sei,
porque é os pais que deve de informar pros filho, né? Os pais não informam pra ninguém.”
(Júlia, idade desconhecida, aproximadamente 60 anos, Brejo dos Crioulos, MG.)
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Apenas algumas pessoas em condições de pleitear a aposentadoria como “trabalhador
rural” não possuem o benefício. É o caso de D. Júlia, indocumentada. Apesar dessa crítica, o
serviço tem o reconhecimento da população. As comunidades visitadas apresentam bons
índices de cobertura previdenciária; a maior parte dos idosos em condições de se
aposentarem usufrui do benefício, independentemente das questões de gênero.
“Pra mim, aposentar deu bem trabalho; porque eu não tinha os papeis certos, tudo certo.
Para eu aposentar, perdi cinco anos de aposentadoria. Me aposentei tava com sessenta
anos. Foi bem difícil pra mim. Eu aposentei no sindicato é de trabalhador rural. Cresci no
serviço, trabalhando mais com meu pai, né? Então continuei na enxada, no pé de cana e na
mandioca. Desde pequena trabalhando; imagina se não vai dar para aposentar, tá ruim pra
mim. Mas hoje deu certo. Faz três anos que aposentei.” (Adelina, 63 anos, aposentada,
Córrego da Misericórdia, MG.)
A Previdência é uma das poucas políticas sociais a chegar a esses grupos rurais que vivem pra colocar essa família que trabalha de volta pra produzir como produzia antes.
hoje de uma agricultura de subsistência. Espera-se que esses recursos permitam ajudar a
Aqui, antes, pra nóis, vendia arroz, feijão, vendia banana. Agora, nóis não temos fartura. Hoje
população abaixo da linha de pobreza a melhorar sua situação. Esses grupos reconhecem as
nóis encontra uma dificuldade dessa que... se não fosse o INSS mesmo, a gente não se
contradições enfrentadas e têm a Previdência como referência à possibilidade de as
aposentava, né? Tem salário-maternidade, tem ajudado muito a gente. Pelo menos quem
políticas nacionais chegarem às regiões rurais. Atualmente, a principal queixa é motivada
tem na casa um aposentado, já ajuda, né? Eu sinto aqui que o INSS tem ajudado muito.
pela demora na aplicação do artigo 68 das disposições transitórias da Constituição de 1988,
o qual trata do reconhecimento das terras dos remanescentes de quilombos. E depois quem tem uma aposentadoria, a coisa melhorou. Às vezes o pai da gente é
aposentado, o pai tem três, quatro, cinco filhos que é casado, mas ele não vai agüentar ver
“É o que o INSS tem. Mesmo antes de a gente ser reconhecido como remanescente de
aqueles filhos dele passar fome; às vezes ele ajuda com um peixe... então, arrumar um
quilombo, o INSS tem aposentado bem a gente. Aí, após o reconhecimento, também o INSS
biquinho pra modo dele manter. Depois que tem uma aposentadoria, acabou a miséria aqui.
vem vindo ajudar aqui na forma de combate à pobreza, com salário maternidade, mesmo a
Uns passam necessidades, mas não era uns muitos depois que teve a aposentadoria.”
aposentadoria, auxílio doença... E o INSS tem ajudado muito também nessa parte, estão
(Francisco, liderança do Brejo dos Crioulos, MG.)
tentando ajudar mais. Tamo aí pra receber.
Ao longo do capítulo, analisamos duas comunidades que reivindicam a condição de
Esse dinheiro é na comunidade. As pessoas fazem casa, arrumam casa e se alimentam
remanescentes de quilombos e preenchem os requisitos legais para terem suas terras assim
melhor.Você toma seus remédios melhor. Então, por aí já vai acabando mais com a pobreza,
demarcadas. Ambas as comunidades ocupam terras tradicionais; em um dos casos, é um
com as necessidades. E aqui mesmo, a mulher fez o salário maternidade, o crescimento de
quilombo como zona de refúgio; no outro, uma terra tradicionalmente ocupada por uma
uma casa, fez um barraquinho também depois que teve o INSS. É, os idosos têm seu
família extensa há várias gerações. As duas comunidades vivem em economia de agricultura
dinheiro pra melhor alimentar e comprar também seus remédios em paz, que a pessoa,
de subsistência e têm direito à aposentadoria rural como segurado especial. A tendência à
quando tá idoso, não tem como não ter as doenças. Eu acho que o INSS é ideal nessa
universalização da política de Previdência Social na área rural, juntamente com a política de
parte. Tem um pai de família também que tá adoentado, vem o auxílio doença. Então é por
atendimento descentralizado, criou uma rede capaz de atingir esses remanescentes de
aí, acho uma coisa que é pra entrar. Eu acho muito bom, assim, aproximar do INSS.
quilombos nas áreas rurais. Esse atendimento é realizado em parceria com sindicatos de
Porque as terras boas tava na mão do pessoal daqui. E a terra boa foi o alvo dos trabalhadores rurais e com as equipes da Previdência responsáveis por levar os serviços
fazendeiros, tá na mão deles; então, o pessoal não tem como plantar tudo aquilo que a por meio das agências montadas no PREVmóvel. Apesar dos problemas enfrentados quanto
gente deseja plantar mais. É, foram expulsos das suas terras, vieram juntados, são à posse da terra, essas populações rurais não estão excluídas do sistema de Previdência
trabalhador rural, mas tamo dependendo das nossas terra, né? Nóis hoje tamo com a causa Social. A Previdência apresenta-se, ao longo dos depoimentos, como referência à
na procuradoria, nóis tamo exigindo do governo o reconhecimento como remanescente de possibilidade de o governo produzir mudanças; por exemplo, na posse definitiva da terra.
quilombos.Toma uma providência prá nóis, pra resolver essa causa o mais rápido possível,

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A Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Homens Pretos

Passemos agora aos núcleos urbanos, às vilas formadas na época da colonização, hoje, cidades
sedes dos municípios. É nesse contexto urbano que encontramos as Irmandades de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos. A Igreja teve um importante papel em relação às
populações negras, seja pelo apoio, pela omissão ou por ter servido de referência ao
sincretismo das crenças dessas populações. Nesta seção, será analisada a Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, criada por aqueles negros, escravos ou alforriados,
que se organizaram no seio da Igreja. No próximo capítulo, será analisado o candomblé, que
utilizou, por muito tempo, os santos católicos para continuar louvando seus orixás.
Gilberto Freyre descreve as irmandades negras como: “verdadeiras organizações de
disciplina, com os ‘reis do Congo’ exercendo autoridade sobre ‘vassalos” (2002:409).
Guerra-Peixe (1981) procura a origem das irmandades na instituição do Rei do Congo,
criada pelos portugueses para evitar rebeliões e insurreições entre os escravos. Segundo o
autor, as informações mais antigas sobre a instituição do Rei do Congo, em Pernambuco,
datam de 1711, em Olinda. Cada paróquia tinha seu rei, sua rainha e sua corte. Os reis
eram eleitos, e o ato solene da coroação e da posse acontecia no dia de Nossa Senhora do
Rosário, quando o pároco da freguesia coroava os reis. Ele assinala que, em Recife, essa
instituição foi estabelecida, pelo menos, em 1674, segundo registros de diversos reinados.
Com a proibição do tráfico de escravos e, finalmente, com a abolição da escravatura, a
instituição, segundo o autor, desaparece em meados do século XIX, mas persistiria em
Recife o “auto dos Congos”, como a representação de uma peça teatral, um auto-religioso.
Verger (2002.a:546) menciona a existência de diversas irmandades que agrupavam os
negros de acordo com suas nações de origem. O autor menciona também a existência de
juntas ou sociedades de alforria. O caso analisado por meio da documentação histórica
mostra a organização de escravos e libertos em uma sociedade que funcionava como uma
“caixa de empréstimo”. Segundo os documentos sistematizados, essas caixas de
empréstimos estavam organizadas de acordo com uma chefia, a qual recebia o dinheiro e
tomava conta das quantias recebidas como amortização e prêmios, além de um cobrador e
juízes que, em caráter ordinário, reuniam-se aos domingos. Os associados tinham o direito
de retirar o dinheiro em caso de necessidade. O propósito dessa poupança era conseguir o
recurso necessário para a compra das cartas de alforria. Quando o mutuário retirava o
dinheiro necessário para sua alforria, podia receber um empréstimo que depois devolveria à 70 71
junta com juros. O autor analisa o caso da Irmandade de Nossa Senhora da Soledade
Amparo dos Desvalidos, criada em 1832. O número de associados não era limitado, mas
tinham de ser pretos. O estatuto estabelecia, no seu artigo 3O, que era estritamente
proibido revelar a parentes ou amigos o discutido nas reuniões do comitê. Numerosos
membros dessa confraria eram, ao mesmo tempo, cristãos e muçulmanos e faziam parte da
Confraria de Nossa Senhora do Rosário das Pessoas de Cor, no Pelourinho.
Na mesma obra, Verger (2002.a:555) mostra como as várias nações africanas estavam
agrupadas em diferentes “cantos” da cidade e também organizadas em torno de confrarias
religiosas ligadas a diversas igrejas. Uma das mais antigas, fundada na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário do Pelourinho, em Salvador, BA, era a Confraria Venerável Ordem
Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo. Essa confraria, no ano de
1786, encaminhou uma carta às autoridades reais solicitando permissão para utilizar as
máscaras, realizar as danças e os cantos angolanos, assim como para usar os instrumentos
para “cantigas e louvações”. Os “daomeanos jejes” formaram, em 1752, a Confraria do
Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redempção dos Homens Pretos em torno da Igreja
do Corpo Santo, na cidade baixa. As mulheres nagô-iorubas da nação “queto” formaram a
Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte. O autor ainda observa que: “Foi à sombra desta
igreja que se reuniram os primeiros participantes nos cultos dos deuses africanos desta
nação queto” (Verger, 2002:555).
Sousa (2000) assinala que os terrenos da irmandade, onde estava construída a igreja,
serviam também para a construção de moradia para os escravos alforriados membros da
irmandade, o que criou verdadeiros bairros. Outras das preocupações eram com a “boa
morte” dos irmãos e com a organização das festas, durante as quais se apresentava,
cenograficamente, a organização social das irmandades.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ainda funciona em
pequenas cidades do interior de Minas Gerais. Em lugares como Olinda, Pernambuco, a
confraria ainda funciona em torno de um presidente e não tem reis, nem tambozeiros,
assim como não realiza a festa da nossa Senhora do Rosário. Em outras cidades, como
Sobral, no interior do Ceará, a confraria não funciona há décadas, mas ainda é possível
localizar alguns antigos participantes. As terras ao redor da igreja, antes destinadas à
construção de habitações para os alforriados, transformaram-se em bairros urbanos, tanto
em Sobral como em Olinda.
Durante o trabalho de campo, foi possível realizar entrevistas com participantes da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que funciona nas localidades
de Chapada do Norte e Araçuaí, ambas em Minas Gerais, assim como com participantes da
Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos em Olinda, Pernambuco. Essas
irmandades possuem registros datados do início do século XIX, mas presume-se que
vieram formalizar o funcionamento de irmandades já em atuação na época, no caso de
Olinda, desde 1667.
A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos remonta-nos ao Brasil
Imperial e, mais longe ainda, à época da colônia, quando as relações entre os homens e o
Estado eram mediadas pela Igreja. Antes da República, pertencer às diferentes irmandades
levava ao reconhecimento como pessoa, como cidadão. A participação na vida social e até
mesmo o direito a uma “boa morte” eram mediados pela Igreja, em particular para os
negros residentes na cidade, fossem livres, alforriados ou escravos.
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As irmandades, uma forma de organização leiga, constituíam diversos grupos dentro da
igreja. Na Europa medieval, esses agrupamentos eram marcados pela clivagem dos
diferentes ofícios; na América portuguesa, tiveram uma marca racial. Várias irmandades
tomaram parte da empreitada de colonização territorial/espiritual no Brasil. Com
freqüência, elas tinham uma clivagem racial, como ocorre com a Irmandade do Santíssimo,
composta exclusivamente de brancos, e com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário,
composta por negros.
“Naquela época, o negro não podia freqüentar igreja, ser enterrado como cristão. Aí o que
eles faziam? Eles chegavam ali e, dali pra trás, eles se reuniam. E construíram essa igreja ali,
escondida. Depois que eles construíram essa igreja, teve muita polêmica entre os negros, os
brancos da igreja do Amparo, os militares – que é São João a igreja dos Militares, aquela
que fica lá em cima – e Guadalupe, a igreja dos pardos. Aqui, como você está vendo, é
formado um triângulo de igrejas: Rosário, Amparo e Guadalupe e, no meio, a igreja de São
João dos militares, que era pra que não tivesse briga quando eles se encontrassem, na
época. Aí dá esse triângulo. Lá no Guadalupe, era a igreja dos homens pardos; Amparo, dos
homens brancos; e Rosário, dos negros. Aí eles construíram, no meio, a igreja dos militares,
na época. Foi quando, no Campo de Bonsucesso, tinha um quartel, aí na frente onde hoje
tem o campo de futebol.
Na igreja do Rosário, tinha um cemitério no assoalho dos negros. Porque esses negros
foram, nessa época, pessoas que não tinham… Eram discriminadas por toda a sociedade, e
queriam se valorizar. Através disso que eles brigaram pra encontrar toda essa parte, mas foi
com tempo.” (Nilson Canuto de Santana, presidente da Confraria de Nossa Senhora
do Rosário dos Homens Pretos, aposentado, Olinda, PE.)
A igreja oferecia poucos referentes negros, como São Benedito ou um dos reis magos,
Baltazar, também negro. Nesse contexto colonial e escravocrata, no qual os negros não
podiam compartilhar a igreja com os brancos, teve lugar a criação da Irmandade do Rosário
em torno do culto a São Benedito, o mouro, um dos poucos santos negros da igreja católica.
A imagem do santo está associada ao culto a Nossa Senhora do Rosário nas procissões:
“Ah, à tarde, a imagem segue em procissão, sempre acompanhada de São Benedito. Vai
Nossa Senhora na frente e São Benedito atrás, ou então São Benedito na frente e Nossa
Senhora atrás.” (Sr. Pedro Antonio Ribeiro Pereira, presidente da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)
Pensou-se a irmandade, inicialmente, como um espaço para a catequização e o controle das
populações negras. Com o tempo, essa ordem leiga foi ganhando autonomia e transformou-
se tanto numa sociedade de assistência aos irmãos mais necessitados, como em um lugar
para a reprodução das tradições africanas com certa transformação. Muitas das irmandades
organizaram-se nos séculos XVII e XVIII. No século XIX, frente às pressões da Igreja
Católica para a romanização da liturgia, para controle do catolicismo popular, as irmandades
passaram por um processo de formalização que incluiu, em um primeiro momento, o seu
registro frente ao governo e à Igreja (Sousa, 2000). A partir daí, tiveram de realizar um
registro de seus regulamentos e lavrar as atas das reuniões. Os Livros das irmandades,
datados de finais de 1800, transformaram-se em um valioso documento de testemunho da
antigüidade desses agrupamentos.
Diversos propósitos contribuíram para a sua criação. Tanto o auxílio aos irmãos
necessitados como a “boa morte” foram os objetivos responsáveis pela estruturação da 74 75
irmandade de forma permanente. Outro dos propósitos era a construção da igreja – que Dentro da Irmandade, a maior honra é ser o festeiro. É o rei quem se mobiliza para
levava o nome de Nossa Senhora do Rosário – e sua manutenção. Durante o século XVIII, oferecer a comida e a bebida consumida nesse ritual de comensalidade. Os fundos para a
os mortos eram enterrados na igreja; só a partir do século XIX, passaram a ser enterrados festa são levantados com as doações pedidas pelo festeiro e com a organização de um
em cemitérios públicos. Muitas das irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens leilão, onde são vendidas roupas e comidas. O prestígio do rei é proporcional à quantidade
Pretos, como a de Araçuaí, ainda têm um cemitério próprio nos fundos da igreja. Na época de alimentos e bebidas conseguidos para a festa.
do império, a cidadania era mediada pela Igreja, e os negros só podiam participar dela por “Bem antes da festa, uns quinze, vinte dias, clareia tudo pra quem é rei, porque aí você vai,
meio das irmandades. O negro que não participasse, não tinha direito a uma “boa morte”, porque realmente gasta muito, porque é uma festa tradicional, que nunca pode acabar essa
ou seja, a ser enterrado como um ser humano. tradição. Nós até queremos fazer um pouco de economia, mas não tem condições. Na festa,
“Porque, antigamente, os negros, quando morriam, eram jogados no mar. Então eles não tem; você gasta mesmo. E a pessoa que ajuda tem, já é tradição, um nicho cativo. O João
construíram, atrás da igreja, um cemitério para os negros, e essa Irmandade dava todo o apoio Neiva, ele sempre dá uma vaca pra matar pro dia da festa. Madre Iani faz a comida pros
à comunidade negra daqui de Olinda. Quando eles formaram essa Irmandade, em 1628... foi tambozeiros e pro resto, o pessoal da Irmandade ajuda.
formada aqui em Olinda, aí foi pra do Rosário dos Homens Pretos do Recife, e lá eles não Quando tem, no mês de agosto, quando vem chegando a festa, o rei e a rainha pegam a
tomaram a iniciativa de levar a coisa à frente. Depois foi pra Igarassu, na Igreja do Rosário dos coroa da mão do presidente pra retirar donativos. Cada um pega o que tem, e a pessoa dá
Homens Pretos. E lá também passou vários tempos e não teve como dar prosseguimento. Aí 20 centavos, 30 centavos, 1 real, 10 reais, pra ir juntando pra gastar na festa. Isso a gente
foi quando veio.Voltou novamente pra Olinda, em 1748, e foi quando foi formada a consegue, dá muito trabalho, mas vale a pena, porque o dia que você entrega, você fica todo
Irmandade. Aí ela passou a ser divulgada em todo o Brasil. Foi a primeira irmandade negra, de emocionado. Eu mesmo fiquei muito emocionado, porque, graças a Deus, a minha festa, eu
comunidade negra.” (Nilson Canuto de Santana, presidente da Confraria de Nossa como presidente, fui muito de sorte pra ganhar as coisas. E, gente, rei e rainha, sabendo
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, aposentado, Olinda, PE.) trabalhar, não gastam do dinheiro deles não. No segundo Domingo do mês, após a festa,
A festa de Nossa Senhora do Rosário é a expressão mais visível da Irmandade, o momento tem que declarar quanto ganhou e quanto sobrou. Às vezes a consciência da pessoa, em
durante o qual esta é representada e as tradições afro-brasileiras, atualizadas. Alguns caso de sobrar alguma coisa... você vê que devolve pra igreja. Se não sobrou, fazer o quê?”
autores, como Guerra-Peixe (1980) e Katarina Real (1990), vêem na coroação dos reis uma (Sr. Pedro Antônio Ribeiro Pereira, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do
analogia à coroação dos reis africanos do Congo, ou consideram a apresentação um auto- Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)
religioso ou uma reminiscência dessa instituição. Nosso interesse está nas suas implicações Na quinta-feira antes da festa,
como ritual, nos elementos simbólicos reproduzidos, na organização social que a sustenta. A lava-se a igreja. Nesse mesmo
festa transforma-se em um momento de inversão de hierarquias, onde os negros ocupam o dia, à noite, é oferecido o angu,
lugar central nos festejos em uma sociedade que os relegou à periferia. comida que lembra os tempos
Detenhamo-nos na descrição da série de eventos que compõem o ritual da festa de Nossa da escravidão. Além disso,
Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Essa série de eventos inicia-se vários meses antes antes do nascer do sol, as
da festa propriamente dita com a instalação da mesa do futuro festejo dos reis. Durante mulheres das comunidades
uma reunião de todos os membros da Irmandade, ocorre a eleição do rei festeiro, da rainha saem das suas casas,
e dos juízes. Essa eleição é realizada por votação secreta, e os candidatos têm de ser carregando suas vassouras de
membros da Irmandade. coqueiro. Na Irmandade de
O Rei e a Rainha, também conhecidos como festeiros, são eleitos anualmente. A eleição Nossa Senhora do Rosário
acontece de acordo com uma tríade de nomes propostos em assembléia. Os votos dos dos Homens Pretos de
irmãos definem quem serão os escolhidos. Atualmente, um dos eleitos pode ser branco ou Chapada do Norte, as
mestiço, mas o outro tem de ser negro. Segundo a tradição da Irmandade, caso os dois mulheres do Córrego da
indicados para o reinado sejam brancos, a eleição é anulada, e realiza-se uma nova votação. Misericórdia, apresentadas
Realizada a escolha dos reis, os tambozeiros anunciam a decisão com seu toque. A festa de como remanescentes de
Nossa Senhora do Rosário entrelaça as festas religiosas do catolicismo popular e os rituais quilombos, são as responsáveis
africanos, marcados pela presença dos tambozeiros. pela lavagem da igreja. Elas são
recebidas à porta da igreja
A festa é precedida pela organização de uma novena, da qual participam os membros da
pelos reis e pelos membros da
Irmandade. Cada um desses encontros é organizado por um grupo.Vale notar que a novena
Irmandade. Depois, o pessoal é
é um culto católico que dispensa a presença do sacerdote. Durante a sessão, os irmãos
conduzido, ao som dos
reúnem-se, rezam, passam recados à comunidade; ela é, antes de tudo, um momento de
tambores, até o rio, onde
encontro periódico e reforça tanto os vínculos dos homens com Deus como as relações
76 77 pegam a água para lavar a
dentro do grupo.
78 79
igreja. Após a lavagem, por volta das dezessete horas, é oferecido, na casa da rainha, o angu,
que simboliza os alimentos da época da escravatura. Esse angu de milho é acompanhado de
molho de abóbora e quiabo, alimentos antes oferecidos aos escravos.
As águas e o rio voltam a estar presentes no sábado, quando se retoma o ritual com a
busca da imagem da virgem depositada sobre as pedras no rio. Nessa parte do ritual, a
virgem é levada à igreja, ao som da congada e dos tambozeiros, em percussiva procissão.
“Quando é no sábado, tem a busca da imag imagem em de Nossa Senhora, na pedra do rio, e
voltam os rituais de tambor e de congado.Tudo acompanhado pela cidade. Busca, passa
pela casa do rei e da rainha, batuca, festeja. Daí volta para igreja, onde tem a festa ao meio
dia e, à noite, tem a celebração do mastr
mastro.o.
o.” (Teco, presidente da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Chapada do Norte, MG.)
Outros autores, como Leda Martins (1997), também chamam a atenção para a associação
entre a virgem e as águas.
“Uma das versões mais recorrentes em Minas nos conta que, no tempo da escravidão, os
negros escravos viram uma imagem da santa vagando nas águas do mar. Os brancos a
resgataram e entronizaram numa capela construída pelos escravos, mas na qual os negros
não podiam entrar. Apesar dos hinos, preces e oferendas, no dia seguinte, a imagem
desaparecia do altar e voltava ao mar. Após várias tentativas frustradas de manter a santa
na capela, os brancos rendem-se à insistência dos escravos e permitem que eles rezem para
a imagem à beira mar. Uma guarda de Congo dirige-se, então, para a praia e, com seu
ritmo saltitante, sua coreografia ligeira, suas cores vistosas, paramentos brilhantes e fitas
coloridas, canta e dança para a divindade. A imagem movimenta-se nas águas, alça-se sobre
o mar, mas não os acompanha.Vêm, então, os moçambiqueiros, pretos velhos, pobres, com
vestes simples, pés descalços, que trazem seus três tambores sagrados, os candombes, feitos
de madeira oca e revestidos por folhas de inhame e bananeira. Com seu canto grave e
gutural, seu ritmo pausado e denso, as gungas, seus patangomes e sua fé telúrica cativam a
santa que, sentada no tambor maior, o Santana ou Chama, acompanha-os devagar, sempre
devagar.” (Leda Martins, 1997: 45)
Para Leda Martins, essa narrativa implica três elementos: a descrição de uma situação de
repressão vivida pelos escravos; a reversão dessa situação com a retirada da santa; e a
instituição de uma hierarquia de outro poder, fundado em elementos míticos, como o
poder do som dos tambores, do canto e da dança. Canta-se a favor da divindade, celebram-
se as autoridades e, ao mesmo tempo, canta-se contra a escravidão, a falta de liberdade, a
opressão. É instaurada uma outra ordem social, ancorada nas hierarquias do reinado.
A associação entre a virgem e as águas pode ter outras implicações simbólicas se analisada
à luz de outro valor da Irmandade: a boa morte. A igreja e o cemitério não se organizam
em torno dessa virgem, proveniente das águas, de maneira gratuita. A morte também era
simbolizada, entre os grupos bantos, pelo termo “calunga”. Na tradição banto, o mar – as
águas – era chamado de “calunga grande”, enquanto a morte era chamada de “calunga
pequena”, talvez com base na crença de que essa água era a moradia dos mortos. A
associação da virgem com as águas está carregada de sentido. São as águas que guardam os
mortos, são elas que os conectam à África. Elas podem ser interpretadas, simbolicamente,
como a representação da viagem na qual os escravos vieram da África.
Depois dessas celebrações centradas na virgem e de sua aparição sobre as águas, tem lugar
o clímax do ritual, no domingo, com a preparação e a posse dos novos reis. 80 81
“Quando é dezessete horas, faz o fechamento, aí faz a marcha rápida, devolvendo a Santa.
Então, vai ter a celebração de posse da Irmandade. Os reis já estão lá posicionados, aí
existia a transferência da coroa, foi empossado o rei, aí tem o rreinado
einado
einado. O reinado é levado
aos reis. Primeiro entrega o que recebeu, a rainha que recebeu a coroa, depois o rei que
recebeu a coroa, depois a rainha que sai, depois o rei que sai. Tem que ser essa ordem, não
importa se às vezes você passa na porta de uns três, mas não pode entregar ele não.
Aí passa o toque do tambor com gana, aí os festejos finais da festa, o encerramento da
festa. Aí vêm os tambozeiros, a gente fala os tambozeiros: os pessoal que mais conhece o
tambor, que bate melhor, que sabe usar melhor o tambor, que esses dias participam
mesmo.” (Teco, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos, Chapada do Norte, MG.)
Como se depreende do relato, os reis – ou a instituição do reinado –ocupam um lugar
central em toda a série de eventos que compõem a festa de Nossa Senhora do Rosário; seu
lugar é tão proeminente que parece relegar a Santa católica a um segundo plano. Os reis
são a figura em torno da qual se estrutura uma corte composta por juízes, tesoureiros,
secretário e – na atualidade – o presidente da Irmandade. Esse modelo de ordem social real
serve para dotar o grupo de uma forma de organização e outorgar-lhe certa autonomia,
ainda que enquadrado dentro da Igreja. A mesa diretora, responsável pelo funcionamento da
Irmandade e pela prestação de contas, está composta por juízes, secretários, tesoureiro e
procurador.
A coroação é acompanhada de uma grande festa popular, durante a qual são oferecidos
alimentos e bebidas, conferindo-lhe um caráter de dádiva e de inversão social. A população
mais pobre, mobilizada pelo sistema de festas, oferece um banquete do qual se orgulham da
abundância e dos recursos angariados. A realização da festa implica mobilizar toda uma rede
de relações sociais, nas quais a honra do festeiro, seu prestígio, é medido em função das
relações que consegue mobilizar. Em contraposição ao rei soberano que impõe sua vontade,
“Depois vem a pr epar
prepar ação da posse dos que foram eleitos. O rei anterior transfere a
eparação vemos aqui um poder ancorado na reciprocidade. As pessoas colaboram com a celebração
coroa para outro. Aí começa, sete da manhã, escada do rei novo, escada do rei que vai sair, por pertencerem à Irmandade, por serem conhecidas do rei, por serem beneficiárias de
leva lá, apresenta para a Irmandade. Depois vai a marcha da Irmandade,, busca do cofr cofree , é antigos favores pessoais, ou por algum outro tipo de lealdade. É esse caráter de reciprocidade
um cofre muito antigo de madeira, muito antigo, onde fica os pertences da Irmandade. que leva alguns autores a qualificar o poder do rei como uma “falsa jurisdição”. Leda Martins
Chama marcha rápida. Aí é conferido todos os bens da Irmandade, na presença dos irmãos, (1997:47) ressalta que, tradicionalmente, havia dois pares de reis: os reis do Congo e os reis
onde é feita a pr estação de contas
prestação contas. Aí fica tudo na igreja lá, pro público saber tudo que a festeiros. Os primeiros tinham um caráter vitalício e de linhagem tradicional no congado, os
Irmandade tem e o que não tem, a parte dos bens pertencentes à Irmandade, a parte outros eram escolhidos anualmente. Enquanto os reis festeiros representam a Nossa Senhora
financeira, que fica no banco, e tudo prestado contas. E, aquele dia, os juízes ficam lá, do Rosário, a igreja e os santos, os reis do Congo simbolizam as nações negras africanas.
acompanhando tudo.” (Teco, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário Nesse sistema simbólico, o fato mais marcante é a oposição entre o rei e os tambozeiros,
dos Homens Pretos, Chapada do Norte, MG.) representantes do lado profano da festa, associado à feitiçaria. Segundo a interpretação dos
A prestação de contas e a busca do cofre só podem ser entendidas, em sua real dimensão, participantes, essa oposição tem como significado o romance contado pela seguinte história:
caso se considere que essas irmandades já funcionaram como verdadeiras caixas de antigamente, o rei tratava mal os negros, os castigava e os fazia passar fome. Certo dia, os
poupanças para os escravos, onde eles depositavam suas economias para poder comprar negros enfeitiçaram-no. Ele ficou doente e teve de recorrer aos tambozeiros para recuperar a
sua liberdade com a carta de alforria. Alguns escravos ofereciam seus serviços como saúde. Segundo a tradição, a partir desse dia, o rei começou a tratar bem os negros.
carregadores ou exerciam algum ofício nos dias de folga; outros, como lembram os “E se é uma tradição da festa, eu vejo falar que, naquela época, quando começou a Festa
membros mineiros, eram escravos na mineração e às vezes tinham a oportunidade de se de Nossa Senhora do Rosário, tinham os reis que dominavam os escravos. Então, naquela
apropriarem de alguma pepita de ouro e escondê-la entre os cabelos para, posteriormente, época, quando apertavam os escravos demais, eles começavam a ‘rezar’.
depositá-la na Irmandade. O cofre e a prestação de contas revivem as estratégias
implementadas para alcançarem a liberdade. Hoje em dia, os irmãos pagam uma pequena O rei e a rainha mandavam os capatazes judiar com os escravos, para fazer tudo.Tinha
taxa, a qual permite o funcionamento da Irmandade. 82 83 escravo que não agüentava, eles eram chicoteados para poder fazer a festa. Quando foi um
E na hora da saída deles, dá pra fazer o batuque deles. Eles cantaram...
como é que é mesmo, gente, que eles cantaram? ‘Ei, sai sai de cumeçar, oi
cumeçar, sai sai de cumeçar’. Aí tava saindo da igreja, quando começou a sair
da igreja, os escravos daquela época ganharam na festa do rei e da rainha e
começaram a cantar outras músicas, começaram a cantar outras músicas
que eu nem lembro agora... como é que foi a outra música? ‘Ei sá rainha, ei
sá rainha, até o ano que vem, até o ano que vem’. Desse modo aí, o rei ficou
junto com os escravos, não atrapalharam eles em mais nada, e aí
começaram a conviver com os escravos; isto é, fazendo a festa, né?
Aí, quando eles sentiam um pouco assim abatidos, os escravos começavam a
tocar o tambor, aí os reis vinham, aí foi que Nossa Senhora do Rosário
apareceu. Assim ficou a tradição da festa.” (Sr. Pedro Antônio Ribeiro
Pereira, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)
Esse episódio é representado ao longo da festa, quando os
tambozeiros, por meio de diferentes cantos, desafiam o rei. O ritual
encerra-se com uma dança, durante a qual o capitão do tambor, em um
gesto dadivoso, oferece simbolicamente cachaça ao rei, depois aos
tambozeiros e, por fim, faz uma dança com a garrafa de cachaça na
cabeça. Tivemos a oportunidade de presenciar essa parte do ritual,
apresentada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos de Araçuaí.
Segundo Porto (1997), os tambozeiros são os conhecedores dos
feitiços. No seu trabalho sobre a Festa de Nossa Senhora do Rosário
na Chapada do Norte, a autora diz ter coletado diversas histórias que
associam os tambozeiros ao uso de plantas medicinais para fazer
adormecer seus oponentes e ao uso de certa raiz de efeitos
estimulantes. Leda Martins (1997) ressalta o poder atribuído ao som
dos três tambores, chamados candomblés. Eles são o meio de
comunicação com o mundo dos espíritos, o meio que transporta os
sentidos à África. Os tambozeiros constituem um elemento
permanente, diferente do rei festeiro, eleito periodicamente.
Como se depreende dos relatos, a festa de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos envolve, em primeiro lugar, como núcleo duro, os
membros da irmandade; em segundo, as pessoas das comunidades e da
cidade, durante as novenas e os preparativos: os leilões, a quinta do angu
e outras atividades preparatórias que implicam uma complexa trama de
dia, um escravo teve uma visão de Nossa Senhora do Rosário, e começaram a fazer os prestações e contraprestações tradicionais. Finalmente, quando acontecem a procissão, a
tambores de pau. coroação e a festa propriamente dita, contam com a participação de toda a comunidade e de
muitos festeiros de outras localidades. Tais eventos transcendem os limites da cidade para
Aí, quando o rei mais a rainha chegaram, eles foram louvar eles naquele momento, batendo os mobilizar um universo social mais amplo.
tambores e cantando ‘vamos louvar seu rei, vamos louvar sua rainha, vamos louvar seu rei, vamos
A festa é o momento culminante e, durante essa série de eventos rituais, a Irmandade é
louvar sua rainha’. O rei se sentiu mal naquele momento, junto com a rainha. Aí os escravos
apresentada cenograficamente; mas ela, como instituição, tem uma existência permanente e
dominaram eles e trataram eles muito bem, fez um chá pra eles melhorar. Então, eles melhorou,
define-se como uma sociedade de apoio mútuo ou filantrópica. Os irmãos pagam uma anuidade
aí eles ficou assistindo os tambores bater e eles começou a cantar ‘eita Maria, eita Maria, adeus
utilizada para a manutenção do templo e para prestar auxílio em casos de necessidade, por
sinhô rei, adeus sinhô rei, até o ano que vem, até o ano que vem’. 84 85
exemplo, adoecimento de algum dos membros, realização de enterros, entre outras.
“Faz parte do nosso dia cotidiano, trabalho com boa vontade. Não tem nenhum ordenando,
mas a entidade é isso mesmo, é uma entidade filantrópica e não tem fins lucrativos. Nós
temos é que saber respeitar a verba que entra no município e também saber executar ela
pro povo ver que a gente tá fazendo alguma coisa.” (Sr. Pedro Antonio Ribeiro Pereira,
presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de
Araçuaí, MG, aposentado.)
Em Araçuaí, o cemitério da irmandade, nos fundos da igreja, continua a receber os irmãos
mortos. O cemitério e os tambores são temas abordados em suas reuniões.
“Nas reuniões da Irmandade, os temas são freqüência, gente que está precisando de mais
freqüência. Nós discutimos aí também várias coisas do problema comum que acontece em
qualquer entidade que surge, aí tem problemas pra resolver com sua família da entidade.
Coisas que tem pra fazer e que necessita fazer: se tem que arrecadar alguma coisa pra
poder fazer isso ou aquilo, ajudar os irmãos. Agora, a idéia é fazer uma casa à parte,
tambozeira. Nós estamos pensando em fazer uma casa ali, separada lá, até pra facilitar pra
gente não precisar ficar abrindo a igreja, porque a igreja já é uma coisa mais... tem que
levar mais a sério, não ficar ali dançando. Hoje a Irmandade já tem quase um cemitério lá
dentro, só para a Irmandade. E nesse cemitério, há 12-13 anos atrás, teve a idéia de a
gente fazer um negócio grande assim pra poder sepultar, porque ficava enchendo de
trabalho, cada um fazia um, cada um fazia um. E aí foi o jeito.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva,
72 anos, sapateiro e aposentado, Araçuaí, MG.)
Por ser uma Irmandade de ordem vitalícia, pode-se observar a participação ativa de diversos
aposentados. Alguns, mais idosos, participam como assessores e têm uma preocupação
especial em manter a tradição e evitar mudanças introduzidas pelos mais jovens. Um desses
aposentados fez-se de desentendido durante a entrevista. Ele, um antigo capitão do tambor,
Luiz Pereira dos Santos, de 85 anos, repetia que estava velho, que não se lembrava de mais
nada e queixava-se das mudanças. Quando a Irmandade realizou a apresentação, esse senhor
idoso, que mal conseguia andar, parecia um jovem puxando os tambozeiros e foi um dos que

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permaneceram mais tempo na roda cantando e puxando os tambores. pessoas que acabaram deixando de lado.Você tem que ter um pouco de sabedoria, ser mais
Por ser o reinado de um ano, dificilmente a mesma pessoa poderá ser rei mais de uma vez. esperto. Aí eu pago um salário, porque um de todo jeito eu pago, porque eu vou precisar disso
O Senhor Vicente, aposentado rural, com mais de oitenta anos de idade, orgulha-se de ter e eu pago.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos, sapateiro e aposentado.)
sido rei duas vezes; fato extraordinário e que mostra seu prestígio na Irmandade. Para esses aposentados urbanos, enquadrados em um regime contributivo, a Previdência
Social é vista como um seguro social e não como uma poupança, como são apresentados os
programas de aposentadoria privados que não fazem parte do Regime Geral da Previdência
Social. Os maiores temores relacionam-se, nesse caso, à possibilidade de inadimplência e aos
encargos da mora, caso não possam ser pagas as contribuições na data estabelecida. Diante
desses riscos, a opção dos trabalhadores autônomos é realizar a inscrição básica, que assegure
ao menos o benefício de um salário mínimo, uma vez cumprido o prazo de carência. O
sistema de aposentadoria a partir das contribuições é visto como um sistema financiado com
aportes individuais que pesam no orçamento e, em caso de mora, podem tornar-se
impossíveis de serem pagos. Além disso, o sistema não é visto como uma poupança, pois
imaginam que sucessivas reformas podem implicar em uma alteração do cálculo do benefício.
“Fiquei pagando no carnê até interar os anos deficientes quando fizer 65 anos, não cheguei
a contribuir 35. Com 65 anos, você tem direito, eu atingi os 65 anos, fui, peguei a
documentação, a carteira há muito tempo guardada, o carnê, cheguei no contador lá: ‘O que
que tá faltando agora?’ Aí: ‘Nada, você já fez 65 anos, acabou. Você tem direito à
aposentadoria com tempo proporcional’. Agora, a felicidade minha é de aposentar com
condições de continuar trabalhando, família já criada. Porque se você tiver com família para
sustentar, claro que com 200 reais não ia ter condições, mas já... a família já... a caçula
minha fez agora 27 anos, esse mês passado. Então, já está casada também, quer dizer, a
gente não tem mais essa obrigação, pode até ajudar, mas não tem mais a obrigação. Aí já tá
todo mundo casado, todo mundo já procurou seu lugar.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72
anos, sapateiro e aposentado.)
Para esses trabalhadores autônomos, a aposentadoria é percebida como uma renda
suplementar que compensa os menores ganhos decorrentes da idade avançada. Ela não é
vista como o afastamento compulsório do mercado de trabalho; pelo contrário, é
Na Chapada do Norte, a maior parte dos aposentados entrevistados recebia a
considerada um complemento dessa renda.
aposentadoria rural. Em Araçuaí, encontramos aposentados do setor público, ex-
funcionários da prefeitura da cidade e um aposentado como trabalhador autônomo, Ao saber que estávamos fazendo um trabalho para a Previdência, uma mulher negra, de
sapateiro, enquadrado como beneficiário urbano no Regime Geral da Previdência Social. idade avançada, veio ao nosso encontro para nos contar as penúrias pelas quais passava
Por ser um fenômeno urbano, os aposentados que participam da Irmandade conseguiram o porque tinham cortado sua aposentadoria. Embora a Irmandade se apresente como uma
benefício como autônomos ou como funcionários públicos da prefeitura. Encontramos instituição tradicional de assistência social, a autonomia é altamente valorizada entre seus
também aposentados rurais nesses pequenos municípios, onde se entrelaçam o rural e o membros. Ela pode prestar auxílio nos momentos de necessidade, mas não se valoriza o
urbano e muitos dos habitantes têm suas roças perto da cidade. depender da Irmandade. Os que participam dessa ordem valorizam mais o poder prestar
assistência aos irmãos necessitados do que receber aquela oferecida por eles. As formas
Observemos o depoimento de um desses aposentados, Luiz Gonzaga da Silva, conhecido
tradicionais de assistência não podem ocupar o lugar reservado ao sistema de seguridade
como Luiz Sapateiro, que exemplifica a lógica seguida pelos trabalhadores autônomos
social, apesar de ter sido constituída com o propósito, entre outros, de oferecer o auxílio
inscritos na Previdência e revela as impressões que a população mais humilde tem acerca da
não fornecido pelo Estado aos mais pobres, aos idosos e aos doentes. Da Irmandade,
aposentadoria.
esperam auxílio para terem uma boa morte e serem lembrados pelo curto reinado
“Eu aposentei com um salário só, porque você trabalhando... eu trabalhei muito tempo assim possibilitado pela festa. Nesse contexto urbano, o dinheiro tem um papel relevante na
de sapateiro, né? Então não tinha condições de eu continuar pagando também como compra de alimentos e medicamentos. Apesar disso, a aposentadoria não se apresenta
autônomo pra ganhar... pra tirar três salários, quatro salários. (...) Pra pagar no carnê todo mês como um fato tão marcante como entre as populações rurais, onde é constantemente
aquela quantia... pesa pra quem paga como autônomo, profissão simples dessa. Esse mês você mencionada e valorizada.
ganha o suficiente pra pagar sem peso nenhum, no outro, você já não ganha. Se você atr asa,
atrasa,
no outr
outroo mês é o dobr
dobroo e com jur os
os,, e aquilo vai acabando. Eu conheço centenas de
juros 88 89
A Previdência Social e as percepções sobre a Previdência entre as devida apenas ao chefe da família e tinha um valor de meio salário mínimo, já a pensão
populações analisadas equivalia a 30% do salário mínimo. O financiamento dos benefícios era feito com uma
A aposentadoria como trabalhador rural, para o segurado especial, e o Benefício de contribuição de 2,1% sobre o valor da comercialização da produção rural, além de uma
Prestação Continuada, BPC-idoso, previsto na LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social), alíquota de 2,4% sobre a folha de salários urbanos.
são as referências mais fortes entre os benefícios oferecidos pela Previdência. Embora o O PRORURAL/FUNRURAL significou um rompimento com os princípios do seguro social
BPC-idoso tenha caráter assistencial e seja de responsabilidade do Ministério do de padrão contributivo bismarckiano, o qual modelou a história da Previdência Social na
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, sua operacionalização é feita pelo INSS, o que América latina. “Houve ruptura com as noções de que: (i) a um benefício deve corresponder uma
faz parecer, para parte da população, que o benefício também é previdenciário, assim como contribuição; (ii) essa contribuição deve ser tripartite (segurado, empregador e Estado); e (iii) o
a aposentadoria rural. Ambos, por diferentes motivos, são benefícios não-contributivos, ou benefício resultante deve estar vinculado ao padrão de rendimentos pregressos do segurado”
de contribuição diferenciada, no caso de algumas aposentadorias rurais. Esse caráter não- (Delgado e Schwarzer, 2000:195/6; Schwarzer, 2000).
contributivo leva os usuários a percebê-los mais como um direito, deixando para um No contexto da redemocratização, esses benefícios foram incorporados ao Regime Geral
segundo plano o caráter de seguro social associado aos benefícios contributivos. A da Previdência Social por meio da Constituição de 1988 e de sua regulamentação pelas Leis
aposentadoria rural e, dentro dessa categoria, os benefícios do segurado especial são as n°. 8.212 e 8.213 em 1991. Essa incorporação provocou a extinção do tratamento
referências que orientam as representações sobre Previdência Social na zona rural e nas administrativo institucional separado que era dado ao regime da Previdência Social rural.
pequenas cidades do interior visitadas durante a pesquisa. Os trabalhadores rurais e os segurados em regime de produção familiar, chamados
Paradoxalmente, o regime militar (1964/1984) foi o responsável pela expansão da cobertura segurados especiais, foram incorporados ao plano dos benefícios normais do Regime Geral
previdenciária até os setores rurais da população por meio do PRORURAL/FUNRURAL da Previdência Social. Uma das conseqüências da mudança constitucional foi o
(1967/1971), como destacam Delgado e Schwarzer: “Entretanto, para relativizar essa aparência, estabelecimento de um piso de um salário mínimo para os benefícios. Por outro lado, a
basta lembrar que o próprio evento do nascimento da Previdência moderna, na Alemanha regulamentação contemplou as mulheres em igualdade de condições com os homens,
bismarckiana, é um exemplo clássico de como, em sociedade e economia de desenvolvimento tardio, independentemente do seu desempenho como chefes de família. Esse fato outorgou ao
um regime autoritário, imperial e patrimonialista serve-se de concessões em política social para programa um caráter pioneiro em termos de reconhecimento de gênero. Outra diferença
aplacar focos de oposição. Mais do que isso, por meio da natureza paternalista do vínculo de tratamento diz respeito ao tempo de carência, baseado na condição de trabalho rural e
estabelecido entre Estado e população afetada, logra criar profundos laços de lealdade e não no tempo de contribuição, como no caso dos segurados urbanos.
dependência dos beneficiários para com seu ‘soberano” (Delgado e Schwarzer, 2000:190). Outra modificação legislativa com impacto sobre os benefícios rurais foi a Lei n°. 8.742, de
Segundo os autores, essa política foi produto do encontro da vontade dos estrategistas do 1993, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Essa lei regulamentou a substituição da
regime para quem ela representou “a possibilidade de, por meio de um programa social de Renda Mensal Vitalícia (RMV) pelo Beneficio de Prestação Continuada (BPC) ou amparo
cunho paternalista e centralmente administrado, aumentar a dependência individual em assistencial de um salário mínimo. O BPC, nas suas modalidades idoso e pessoa portadora de
relação ao Estado e, além disso, cooptar organizações sociais tais como Sindicatos de deficiência, não faz mais distinção entre os universos de atividades rurais e urbanas, como
Trabalhadores Rurais” (ibidem). Por outro lado, os tecnocratas encarregados da também não prevê mais o requisito da contribuição prévia, que constava da RMV. Requer que
administração do sistema previdenciário identificavam-se com as diretivas da OIT, que viam a renda familiar per capita seja menor do que um quarto do salário mínimo e, na modalidade
na universalização da cobertura previdenciária um objetivo a ser atingido. 6
Até a instituição do Estatuto idoso, a idade de acesso atualmente prevista é de 65 anos para homens e mulheres6. Esse
do Idoso, em 2003, a idade
Em 1967, o INPS assumia o seguro de acidentes de trabalho, e formulava-se o PRORURAL, prevista para o BPC-idoso era benefício foi implementado a partir de 1996 (Delgado e Schwarzer, 2000:196).
de 67 anos.
voltado à prestação de serviços médicos para a população rural. Em 1969, criou-se um A aplicação dos dispositivos jurídicos que reconhecem direitos sociais mínimos para grupos
plano básico de Previdência para os empregados rurais; em 1971, ampliou-se o PRORURAL historicamente marginalizados – como trabalhadores e pequenos produtores em regime de
com o lançamento de benefícios monetários para a área rural; em 1973, estendeu-se o economia familiar rural e as mulheres igualadas em direitos aos homens trabalhadores –
seguro de acidentes de trabalho a essa área. Em 1974, foi criado o Ministério da Previdência criou um setor com cobertura social universal e acesso a um seguro de renda mínima
Social; e, em 1974/75, foi instituída a Renda Mensal Vitalícia, que dava cobertura a inválidos e (Delgado e Cardoso, 2000).
idosos até então excluídos do usufruto dos benefícios. “Do ponto de vista dos militares, Tanto os segurados especiais como o BPC previsto na LOAS apresentam importantes
ademais, a Previdência rural teria a qualidade de contribuir para a integração do setor rural ao mudanças nas percepções acerca do seguro social, por seu caráter não-contributivo. Uma
projeto de desenvolvimento nacional, manteria a ‘paz social’ e evitaria a intensificação da migração dessas transformações, no caso das aposentadorias rurais com base no tempo de trabalho
rural-urbana ao tornar disponível, no campo, uma infra-estrutura de assistência médica e benefícios e não nas contribuições, levou à percepção de que é possível se aposentar sem pagar as
monetários, mesmo que precariamente” (Delgado e Schwarzer, 2000:193). contribuições.
O PRORURAL/FUNRURAL beneficiava trabalhadores rurais dependentes ou autônomos “Tá, muitos aí hoje não pagam. Foi ontem mesmo, numa entrevista que eu vi na televisão,
em regime de economia familiar, pescadores (incluídos em 1972) e garimpeiros (a partir de eles entrevistando o pessoal sobre o negócio do INSS, e falou sobre aposentadoria e tudo. O
1975). Oferecia aposentadoria por idade aos 65 anos, aposentadoria por invalidez, pensão sujeito paga 40 rreais
eais
eais,, que muita ggente
muita ente ac ha pesado e acaba que ffica
acha ica sem pagar
pagar,, e a
para viúvas e órfãos, auxílio funeral e assistência médica. A aposentadoria por idade era 90 91
Pr
Preevidência ffica
ica vazia. E, depois, ela tem que atender essas pessoas sem contribuição vários segmentos de segurados: empregados, contribuinte individual (autônomo), contribuinte
nenhuma. facultativo, empregadas domésticas e segurado especial. Diferentemente das outras categorias,
onde o tempo de carência é computado com base no tempo de contribuição, no caso dos
No tempo que eu aposentei, parece que era 7 anos, e você já conquistava. Hoje são 15
segurados especiais, a carência é contabilizada com base no tempo de serviço na condição de
anos que você tem que contribuir, se você quiser aposentar no sentido que eu aposentei, dos
trabalhador rural. Portanto, o foco está no reconhecimento do trabalho, pelo que não se
65 anos. Homem 65, mulher 60, contribui 15 anos. Têm pessoas que se for contribuir 15
enquadra como política assistencial, mas sim como política previdenciária para enfrentar as
anos e já está com 60... igual eu usei o exemplo de uma dona, ela vai aposentar com 75
contingências previstas na convenção 102 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
anos se ela tiver 60 e começar a pagar agora.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos,
formulada em 1958. No caso da LOAS, trata-se de benefício assistencial, o qual é definido
sapateiro e aposentado.)
segundo a falta de condições econômicas e não está relacionado com o trabalho realizado
Os benefícios pouco ou não-contributivos, ao serem computados na mesma conta do pelo beneficiário. A condicionalidade da LOAS não passa pelo trabalho e está relacionada a
Regime Geral da Previdência Social, produzem um desequilíbrio nas despesas. A impressão uma renda inferior a ¼ do salário mínimo por pessoa na família, além da idade avançada ou
prevalecente no senso comum dos usuários é a de que os benefícios não-contributivos são deficiência.
responsáveis pelo “rombo” da Previdência. A falta de informações sobre o financiamento da
Nessas pequenas cidades do interior, como Chapada do Norte ou Araçuaí, que não
aposentadoria rural, como a alíquota sobre a comercialização dos produtos rurais e o
possuem uma agência da Previdência, o atendimento móvel e periódico realizado pelo
imposto sobre a folha de salários urbanos, assim como os aportes do Tesouro Nacional,
PREVmóvel transformou não apenas a dinâmica do atendimento, mas também as
levam à percepção errônea de serem os contribuintes individuais quem cobrem o déficit
percepções sobre a Previdência. Por meio do atendimento do PREVmóvel, algo tão abstrato
gerado pelos benefícios não-contributivos. Delgado e Abrahão de Castro (2003) assinalam
como o sistema previdenciário transforma-se em algo sensível, ao alcance da população.
que esse déficit seria melhor conceituado se diferenciássemos, dentro do Regime Geral da
Previdência Social, a Previdência como seguro social contratual para os setores urbanos e a A estreita parceria com Sindicatos de Trabalhadores Rurais faz com que o PREVmóvel seja
Previdência como seguridade social para os aposentados rurais. A separação desses dois associado aos benefícios para a população rural. As ações do PREVmóvel podem ampliar
tipos de Previdência pode levar a computar a Previdência rural como gasto com seguridade seu público-alvo a fim de incluir diversos setores urbanos e no sentido de uma
social e não como déficit do sistema previdenciário. universalização das políticas de seguridade social.
Na visão dos usuários, esse desequilíbrio orçamentário não pode ser solucionado às expensas Na cidade de Chapada do Norte, tivemos a oportunidade de entrevistar um ex-presidente
da seguridade social, percebida como um direito fundamental. Segundo o depoimento a seguir, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) e também capitão do tambor da Irmandade de
esse direito é visto como contraditório quanto à condicionalidade do BPC-idoso, que Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte. No seu depoimento,
estabelece como teto uma renda familiar de ¼ de salário mínimo por pessoa. ele conta as transformações pelas quais passou o atendimento às populações rurais.
Inicialmente, o sindicato tinha de oferecer transporte, alojamento e lugar de atendimento
“Ele falou assim, que não tem mais como aposentar, a não ser ela ser encostada por aos técnicos da Previdência que se mobilizavam até os municípios do interior. As campanhas
invalidez, que não tem condições de trabalhar; esse dir eito tem condição de rreceber
direito eceber
eram realizadas esporadicamente e tinham de contar com o apoio da prefeitura para
alguma coisa. Eles inventam tanta coisa pra ver se impede da pessoa aposentar: ‘Ah, você conseguir infra-estrutura. Uma das principais mudanças ocorridas no município foi a
não pode ter, sua casa já tem gente que tem uma renda de... tem gente só com salário implementação do atendimento por meio dos veículos utilitários da Previdência, que levam,
mínimo, o seu marido já ganha isso e tal’. Tá enrolando a pessoa. periodicamente, os serviços até a sede do STR. Com o PREVmóvel, os técnicos têm
Às vezes, quando chega a dizer ‘ó, tem direito’, você já não está quase no tempo de ganhar mobilidade e podem prestar atendimento no interior do estado, além de evitar o
mais nada, apesar de ser uma aposentadoria sem contribuição. Mas, de qualquer maneira, deslocamento dos usuários mais idosos e necessitados. Nessa nova parceria, o sindicato
eu, como pessoa, tinha o direito de viver. É difícil, o papel da Pr
Preevidência é uma coisa encarrega-se de realizar uma montagem preliminar dos processos e de organizar o
muito sér ia.
séria.
ia.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos, sapateiro e aposentado.) atendimento de diversas comunidades, enquanto o PREVmóvel permanece no município.
Nesse depoimento, as impressões sobre a Previdência e a LOAS têm limites difusos. Por um Uma central de computador, conectada à linha telefônica por um serviço gratuito (do tipo
lado, a aposentadoria é reconhecida como um direito que tem de ser garantido pelo Estado, 0800), permite realizar as consultas dos processos e outorgar os benefícios on-line, por
e isso inclui os benefícios não-contributivos, os quais, ao serem computados na mesma meio da Internet.
conta do RGPS, produziriam um desequilíbrio nas despesas. Esse desequilíbrio não pode ser “Olha, a parceria com o sindicato é o seguinte: quando vinha, antes de ter o PREVmóvel,
solucionado às custas da seguridade social, um direito fundamental, traduzido nesse vinham os funcionários para fazer os trabalhos na zona rural. O sindicato chegava em
depoimento como o direito de viver. Diamantina, às vezes pegava os funcionários em Diamantina – que era o posto que tinha –,
Cabe destacar, para desfazer mal-entendidos, as principais diferenças existentes entre os levava nas comunidades do povo do sindicato e ainda pagava cama e alimentação, algumas
benefícios previdenciários para segurados especiais, como os trabalhadores rurais em vezes. Agora, tinha vezes que eles falava que agora, dessa vez, não vai precisar de vocês
economia de subsistência, e os benefícios assistenciais estabelecidos pela Lei Orgânica de pagar a cama e nem a comida, mas, algumas vezes, tinha que pagar cama e comida pros
Assistência Social (LOAS), entre os quais está a LOAS-idoso. Do ponto de vista do Ministério funcionários. É! E pra ir nas comunidades, toda vida o sindicato arcou com tudo, com o
da Previdência Social, os trabalhadores rurais enquadram-se na Previdência como um dos 92 93 carro pra andar nas comunidades pra fazer a entrevista, as pesquisas com o pessoal. A
o carro, eles já vêm com o carro, e a alimentação eles pagam também; mas, no início, o
sindicato é que pagava tudo.” (Olimpo Rodrigues Soares, ex-presidente do Sindicato de
Trabalhadores Rurais, aposentado, Chapada do Norte, MG.)
A equipe do PREVmóvel está composta por um chefe, um técnico e um motorista, os quais
trabalham em parceria com sindicato de trabalhadores rurais. Os técnicos revezam-se
semanalmente; já o chefe da unidade sempre acompanha as viagens. O atendimento é
prestado próximo ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e o técnico realiza os
deslocamentos necessários para a realização de perícias e para levar os serviços até àquelas
pessoas que, por estarem incapacitadas, não podem deslocar-se até à unidade de
atendimento. De acordo com uma das técnicas, a maior recompensa desse trabalho é
poder ver a cara de felicidade dos idosos quando recebem o benefício depois de toda uma
vida de trabalho na lavoura.
“É muito difícil, umas viagens nossas estressam muito. E quando a gente não encontra gente
brava, né? Que não pode aposentar... igual a um dono de bar que quer aposentar como
trabalhador rural e ele fica bravo com a gente. É difícil.Teve uma colega da gente que o outro
queria matar ela, o moço veio de faca pra matar, e deu uma turma. Mas o moço, depois de duas
semanas... o homem morreu. Ela ficou limpa aí. A gente passa muito isso, mas é um trabalho
gostoso. Em compensação, com os trabalhadores... às vezes você atende... você aposenta a
pessoa, daí a pouco a pessoa chega com um pouquinho de polvilho, chega com um pouco de
farinha de mandioca feita na roça, vem um e dá um frango pra gente. É isso.Tem um lado muito
bom. A gente tem que ter carinho pelas pessoas; falam: ‘ó, eu tô rezando procê pra sempre’, ‘ó,
todo dia que eu dobro os joelhos, eu peço a Deus pra te proteger’. Isso é o lado legal da coisa. O
sorriso da pessoa quando aposenta, quando sabe que vai ter o dinheirinho pra receber todo mês
no período certo. Essa alegria é o que eu acho que mais ajuda a gente a vir na região. Os
contratempos são poucos, as vitórias são maiores, os prêmios são maiores: o sorriso na boca do
povo.” (Valda, técnica da Previdência, comissionada no PREVmóvel.)

gente tinha à disposição o carro com o motorista e um diretor do sindicato. No dia que não Uma das principais críticas feitas a esse tipo de parceria entre a Previdência e os sindicatos
tava um, tinha o outro, porque às vezes eles nem exigiam que fosse. Mas você sabe que o de trabalhadores rurais é que a ênfase nas aposentadorias poderia provocar uma distorção
pessoal é muito simples lá no mato; então, chega uma pessoa estranha: ‘Eu quero conversar na função dos STR e transformá-los, de uma entidade de classe, em uma entidade
com você!’, a pessoa assusta, não sabe, nem acredita que é a aposentadoria dele; às vezes especializada na prestação de serviços assistenciais (Schwarzer, 2000). Essas associações
fica com medo. Então a gente tinha que chegar e apresentar aquela pessoa. A gente, como sindicalistas recebem uma contribuição pela tramitação dos benefícios, a qual é descontada
sindicato, ia apresentar aquela pessoa. Aí eles conversavam tranqüilos, porque sabiam que da folha de pagamento dos aposentados. Esses recursos financiam, de forma indireta, o
não era nada. Então, o sindicato fazia isso. processo de organização no campo. Deve-se ter em conta que, ao longo da década, muitos
dos sindicatos rurais passaram por importantes mudanças na orientação política de seus
Outras vezes, precisava a gente levar o pessoal em Diamantina, a gente fretava o ônibus – dirigentes.
isso aconteceu umas três vezes –, a gente fretava o ônibus, e eles reservavam lá a vaga, e a
Outra crítica realizada pelos usuários sobre essa modalidade de atendimento diz respeito à
gente levava o ônibus cheio para fazer entrevista lá em Diamantina, e sempre o sindicato
ênfase dada aos sindicatos de trabalhadores rurais; isso faz com que a maioria dos
contribuindo. As passagens de ônibus pra Diamantina, os clientes pagavam; a gente fretava
atendimentos recaia sobre a aposentadoria para os trabalhadores rurais. Esse é, sem dúvida,
o ônibus, e eles pagavam. Aqueles que não podiam pagar, que não tinha como pagar, o
o benefício mais difundido. Em diversos casos, existe desconhecimento acerca de outros
sindicato pagava pra eles, então o sindicato contribuía. Essas pesquisas que o funcionário
benefícios, como os BPC da LOAS ou outros benefícios da Previdência, como salário-
vinha fazer na região eram livres de gastos, a gente pagava tudo, e o sindicato não cobrava
maternidade ou auxílio-doença. O salário-maternidade, em especial, não é conhecido por
do cliente nada, a gente passava pra ele gratuito.
uma parte dessas populações remanescentes de quilombos. Uma campanha informativa
Com o PREVmóvel, mudou o seguinte: a gente faz o trabalho, reúne o povo, passa a poderia, com poucos esforços, dar uma maior divulgação a esse tipo de benefício.
informação e organiza o atendimento. O sindicato só controla pra não fazer tumulto,
controla o povo. Agora, com o PREVmóvel, a despesa do sindicato é só com o telefone e
material de escritório. O sindicato já não tem mais despesa de carro, o PREVmóvel vem com 94 95
96 97
2 Religiões africanas na Bahia e
políticas de reconhecimento:
terreiros de Candomblé
e Baianas do Acarajé

Durante o trabalho de campo em Salvador e em outros municípios da Bahia, centramos nossa


atenção no candomblé, tanto como religião, quanto como tradição cultural. A partir desse
ponto de vista, os terreiros são analisados como formas de organização social, como
instituições de reprodução cultural, de valores e hierarquias. Esses padrões estruturados de
interação entre os membros, diferentes das relações estabelecidas com os outros grupos,
contribuíram para a reprodução de tradições culturais de matriz africana no Brasil.
A religião, assim como a festa, constitui um momento especial nessa representação cultural.
Trata-se do momento em que a comunidade se reúne, quando a cultura é
performaticamente representada por meio de danças, músicas e cantos. Nessas periferias,
os terreiros configuram-se como uma forma de organização, onde uma série de tradições
imbricadas reconstruiu as crenças africanas e manteve vivas as tradições ancestrais. O
terreiro proporcionava o que o Estado moderno oferece aos seus cidadãos e que foi
secularmente negado às populações negras. No terreiro, o povo do candomblé encontra
assistência, comida, um lugar onde ficar em caso de necessidade e um sentido para a vida,
no complexo culto aos orixás.
No candomblé, como religião iniciática, o segredo, representado por uma pequena cabaça,
igba, ocupa um lugar central.
“Sabe-se que entre os Yoruba, o casal divino primitivo é constituído por Obatalá, o céu, e
Odudua, a terra, e que da união do céu e da terra nascem Aganjou, o firmamento, e
Yemanjá, as águas. Sabe-se também que este casal em cópula é representado por duas
metades de cabaça, fechadas uma sobre a outra, uma figurando a abóbada celeste, a terra
fecundada, cabaça sagrada chamada Igba.” (Bastide, 1961:97.)
98 99
Essa cabaça simboliza tanto a fecundidade como o segredo guardado em seu interior. O
segredo é um valor central nos candomblés da Bahia. Partes das cerimônias do culto aos
orixás são secretas, as iniciações e os fundamentos são secretos. Só podem ser revelados
aos iniciados. Os cantos, uma das formas de transmissão desses saberes africanos, são
ensinados na língua ioruba, por exemplo; mas o significado dos oriki, seu sentido em
português, é transmitido posteriormente, quase a conta-gotas, como uma forma de manter
e reproduzir a hierarquia. Somente os mais velhos conhecem o significado dos cantos e
escolhem atentamente a quem transmitir esses saberes.
Como o segredo ocupa um lugar central no candomblé, a nossa estratégia de pesquisa foi
olhar o terreiro como forma de organização social. Essa estratégia permitiu-nos, por um lado,
a partir da análise da organização social, chegar a alguns dos conteúdos culturais e, por outro,
analisar tanto a vida no interior dos terreiros, quanto sua relação com a vida fora deles. O
terreiro ou a roça do Santo é a base da organização social, nele se reproduz a tradição em um
imbricado tecido que entrelaça lugares e pessoas
com diferentes posições sociais e significados.
“A diferença que tem entre os terreiros de
Pernambuco e os da Bahia é muito pequena. A
Bahia é tudo isso porque criou o mundo do
candomblé. Mas o terreiro não é nada mais, nada
menos do que um espaço litúrgico onde se
guardam crianças, se guardam adultos e os
segredos de orixás. É uma comunidade religiosa
que tem pessoas boas e ruins. Existe uma
hierarquia do Abiã, que é uma pessoa não-iniciada,
até o Ebômim, que é uma pessoa que já pode
criar sua casa de candomblé. Então, se passa a ser
Abiã, Iaô e Ialorixá.Você pode ser Ogam como
homem, e mulher é Equede, pessoas que não
viram santo. Então existe uma estrutura.” (Manoel
Papai, pai-de-santo, Recife, PE.)
A hierarquia dentro do candomblé é marcada por
três posições: o ebômim, ou sacerdote; o noviço,
chamado iaô ou filho de santo; e o abiã, ou não-iniciado. A passagem entre essas posições
sociais é realizada por meio de diferentes rituais; em primeiro lugar, a iniciação, “dar de
7
Para uma descrição desses
comer à cabeça”, e depois a confirmação, ou “fazer a cabeça”.7 A condição de ebômim é rituais, veja Bastide, 1961:31
alcançada sete anos depois da confirmação. Nesse momento, o pai-de-santo ou a mãe-de- ss/38-56.
santo adquire o status sacer dotal e está em condições de abrir seu terreiro. As hierarquias
sacerdotal
são indicadas por um sistema de sinais, composto por colares, pela posição do manto, entre
outros indicadores da posição dos iniciados no candomblé.
Mãe Ditinha: – “O pai Ari vai me dar permissão, mas eu vou falar uma coisa que eu não
aceito, mas eu tenho que conviver com isso porque é o progresso que tá fazendo isso.
Porque, antigamente, entrando no candomblé, pela roupa se conhecia o grau que a pessoa
tinha: se era iaô nova, se já tinha 3 anos de santo, se já tinha 5, se já era ialorixá. Tanto a
roupa como a conta tem história, porque uma pessoa nova de santo não pode usar uma
conta assim. Não pode usar uma assim. Uma abiã também não pode. Uma pessoa que não
tem cargo não pode usar essa conta, só quem tem cargo é que pode. Hoje, todo mundo que 100 101
faz obrigação bota essa conta no pescoço. Eu não vou longe: eu tenho um filho de santo
que todo mundo da casa dele fez obrigação, ele bota uma conta dessa. É errado, porque
esta conta só recebemos na hora do cargo (de ebômim), após uma obrigação de sete anos.
Quando nós fazemos sete anos e que temos o cargo depois da confirmação; porque tem
pessoas que fazem sete anos, mas não têm capacidade pra cargo. Então esta pessoa
recebe esta conta. Esta daqui só a partir dos três anos é que pode usar, quando faz a
obrigação. Esta aqui só pode também depois dos sete anos. É igual à roupa.
A roupa também… é porque é o seguinte: a roupa é o luxo, vamos dizer, mas também tem
finalidade, porque as pessoas novas de santo têm que usar a roupa bem arrastando no chão.
Tem que usar um pano amarrado aqui. O pano da cabeça também não pode usar isso. Quer
dizer, a roupa tem uma parte muito fundamental no candomblé. À medida que os anos vão
passando, a gente vai subindo a saia um pouquinho; a pessoa nova de santo não usa salto. Eu
posso usar deste tamanho assim… essa peça também, que chama cibata, só usa quem já
tem obrigações, o novo não pode usar. Quer dizer, a roupa tem uma parte muito importante
dentro do candomblé. O vestuário tem uma indicação do sapato até o pano da cabeça.”
Pai Ari: – “Até o pano da cabeça. Ela aí tá trajada como ialorixá. Aí ela representa um cargo
de iá; como todas as iá, ela carrega o alacá do lado esquerdo. Ela representa que ela já tem
filhos de santo, netos de santo, então a pessoa é um agabá. O que é um agabá? É uma
pessoa velha no santo. Ela já é uma pessoa velha no santo, então ela usa aquele pano dela
que significa isso. Se ela estiver com a bata sem esse pano, ou usado na cintura, ou botando
o pano na costa, representa um ebômim. É uma pessoa que já tem obrigação de sete anos,
já é uma autoridade. Aí também significa ebômim, esse pano da costa dela passado aqui
representa que ela é uma autoridade.” ialorixá no culto; iyá bassé, responsável por preparar os alimentos especiais para as
divindades; iyá têbêxê, encarregadas de tomar as iniciativas dos cânticos nas festas públicas e
Mãe Ditinha: – “Quando uma pessoa que é entendida no candomblé vai entrar no privadas; iyalaxé, quem cuida do axé e das pedras sagradas do peji; a mãe pequena, iyá kêkêrê
candomblé, pelo traje já se sabe quem é que está ali. É a mesma coisa… eu posso estar ou jibonam; e finalmente o cargo de ialorixá, que administra o santuário.
normalmente de vestido ou de calça e com o pescoço cheio de conta. Aí eu chego só com
No sistema de cargos do terreiro, existem outras funções desempenhadas por pessoas que
essa, com a roupa normal, mas todo mundo vai saber que eu sou uma ialorixá. O colar é o
não podem cair em transe, as de ogã e ekede (ogan e ekedy para Bastide, op. cit.). Entre os ogãs,
que me identifica.”
temos dois tipos com funções diferentes. Um destes grupos, integrado por brancos, são uma
A vida nos terreiros é organizada hierarquicamente. Em primeiro lugar, está o ebômim, que espécie de protetores do terreiro, devido à sua situação social e sua posição na sociedade;
ocupa o cargo de mãe-de-santo ou ialorixá e o de pai-de-santo ou babalorixá. Na Bahia, os freqüentemente, eram chamados para defender os membros do terreiro das arbitrariedades
terreiros têm babalorixá ou ialorixá, apenas um deles. Em outros estados, como policiais; em outras ocasiões, prestam auxílio em caso de necessidade financeira. O outro tipo
Pernambuco, os terreiros possuem pai e mãe-de-santo. Outra denominação que traduz o de ogã forma uma espécie de sacerdócio secundário, encabeçado pelo peji-gã, encarregado do
sentido do cargo em ioruba é a de zelador do Santo (Carneiro, 1948; Ribeiro, 1978). Como altar e presidente do conselho administrativo, além do alagbê, que toca o rum e dirige a
diz o termo, trata-se de quem cuida do orixá principal da casa, quem mantém a tradição, música. Entre os ogãs, destaca-se o axogun, pessoa encarregada de fazer os sacrifícios. Para os
conhece os cantos, as rezas e as obrigações que devem ser seguidas em relação aos orixás. terreiros da tradição djè-djè, como se verá mais adiante, esse cargo recebe o nome de pejigum.
Antes de receber o cargo de ebômim, passa por um processo de iniciação que pode durar O alagbê é o responsável pelos atabaques, que ocupam um lugar central nos rituais. Ogãs e
sete, catorze ou vinte e um anos. Uma vez assumido o cargo, é preciso dedicar sua vida ao ekedes não “recebem o santo”, não incorporam as entidades.
Santo e ter condições de abrir seu próprio terreiro. Os ebômins, como sacerdotes, Além desses cargos fixos, existem outros que nem sempre têm titular e correspondem a
orientam os membros do terreiro no cumprimento das suas obrigações. Como dizia mãe funções extraordinárias dependentes das vontades dos deuses. Entre eles estão o de
Luiza Gaiaku em seu depoimento: “Tem coisa que só sacerdote pode fazer; no candomblé, é Ojuobá (olhos do rei), ligado a Xangô, e que tem o privilégio de agitar o xèrê; Wessa, que
o mesmo, tem coisa que só ebômim pode”. saúda as divindades, conhece os orikis e preside os sacrifícios; Iyanaso, dirigente de um culto
Iaôs é uma forma genérica de referir-se aos iniciados. De acordo com o gênero, podem ser especial a Xangô (Bastide, op. cit.). Em relação às hierarquias no interior dos cultos afro-
filhas de santo ou iyawo e filhos de santo ou iyaworixa. Depois de se tornarem ebômins, as brasileiros, apresentamos em anexo uma lista dos sistemas de cargos dos diferentes cultos,
filhas de santo podem desempenhar diversos cargos no santuário. Bastide (1961: 59-60) tal como aparece registrado no Código de Ética apresentado pela Federação Nacional do
menciona: dagã e sidagã, especializadas na celebração do padê de Exu; iyá mêrê, que auxilia a 102 103 Culto Afro-brasileiro.
As relações no terreiro criam um parentesco ritual e marcam relações sociais carregadas Em um lugar de destaque na sala, localiza-se a cadeira do pai
de reciprocidades, como no interior de uma grande f. Ninguém pode desobedecer ao ou da mãe-de-santo; perto dela, está o lugar reservado para
zelador do Santo; já este, em determinadas ocasiões, não pode recusar o pedido de uma os ogãs. Os homens e as mulheres iniciados ocupam lugares
ekede. Um ogã pode mandar parar um ritual se achar que tem algo errado acontecendo. A separados. Um lugar diferente é reservado para os visitantes,
relação com o pai ou a mãe-de-santo é marcada pelo respeito e pela reverência. Os filhos geralmente perto dos atabaques. O centro do salão é o local
de santo pedem a benção deles e os reverenciam. reservado para a realização das danças e evoluções dos
“Existe uma hierarquia de homenagens dentro do candomblé. Nós somos uma tradição de ebômins e iaôs, que marcam o ritual. Os atabaques têm um
homenagens. Mojubá é prestar homenagens. Em todas as religiões... na Igreja Católica, o Papa papel de relevância nas cerimônias. Eles são considerados
que é o Alabá; então, todo mundo que vai ao Papa rende homenagens, não é isso? Dentro do sagrados e têm nomes que variam de acordo com as
candomblé, o maior cargo é o Babá ou a Iá, são os cargos elevados. Então, se eu sou o pai diferentes nações. Por exemplo, entre os Keto, levam o nome
daquela casa, todos os filhos-de-santo têm que fazer aquela homenagem, não a eu como de rum, rumpi e le. Nos terreiros Keto, os tambores são
Babá, mas aquela homenagem que ele faz em consideração ao Orixá, ao pai maior da casa. tocados com baquetas, e o ajuste deles é realizado com
Eu represento o pai, estou aqui representando Ajagunã, que é o Orixá da casa, então, como cravelhas. Nos terreiros de angola, os atabaques são tocados
Ajagunã não está presente, eu estou representando o Orixá. É por isso que se faz toda aquela com as mãos e ajustados por meio de um sistema de cunhas.
reverência. Dentro do candomblé, tem que tomar benção: ‘benza, meu pai’, ‘benza, minha mãe’. O quarto do Santo, o peji, é uma sala na qual estão os
Existe aquele respeito fraterno dentro do candomblé, né? (Pai Ari, Salvador, BA.) fundamentos e as oferendas para o orixá do terreiro. Nele,
acontecem algumas das cerimônias privadas e os sacrifícios.
Por sua vez, a relação dos pais-de-santo com seus filhos-de-santo destaca-se pelo cuidado e
Ele é o altar onde estão os fetiches que representam os
pela assistência prestada em caso de necessidade. Os iniciados pelo mesmo ebômim são
orixás, seus fundamentos. O ronko é um quarto especial no
irmãos-de-santo. As relações entre esses irmãos são marcadas por uma forte solidariedade, e
qual permanecem os noviços durante os processos de
o vínculo renova-se com a participação nas festas dos terreiros. O parentesco ritual
iniciação. Quando o iniciado “faz a cabeça”, permanece
sobrepõe-se ao biológico, e as relações com os pais e irmãos orientam o universo social dos
vários dias ou meses recluso nessa câmara. Os ilê são os
iniciados. Essa sobreposição é tão forte que, em diversas entrevistas, foi necessário esclarecer
pequenos templos espalhados pela roça. Na Bahia, cada peji é
se os informantes referiam-se ao parentesco biológico ou ao “parentesco no santo”.
dedicado a um orixá. Já nos terreiros do Recife, observamos
Na tradição do candomblé, as características pessoais estão associadas aos orixás. Cada
pejis que continham os fundamentos de diferentes orixás.
pessoa está regida por dois orixás. O primeiro é o dominante, o outro é chamado de No ilê, ocorrem os sacrifícios e as cerimônias privadas,
“segunda cabeça”. Cada pessoa tem o seu e lhe devota um cuidado especial. Uma série de
momentos não abertos ao público. Esses templos são a casa
colares de contas com as cores dos orixás indica o nome daquele que rege os fiéis. Esses
dos orixás. Neles estão os fundamentos e os fetiches que
colares de contas não devem ser confundidos com os de miçangas, os quais indicam as encarnam o axé do orixá.
posições dentro do culto, como mencionado no início do capítulo.
Existe todo um sistema de festas. Um tipo de festas se relaciona com homenagens
Concentremo-nos, pois, nos terreiros, embora a instituição não seja o lugar físico. A
realizadas a determinados orixás e marcam um calendário litúrgico. Existem outras festas
instituição, no sentido antropológico do termo, são as pautas padronizadas de conduta, as
durante as quais são invocados os diferentes orixás da casa. Ao longo desse breve trabalho
relações sociais orientadas por determinados valores, que têm esse lugar como cenário. Os de campo, presenciamos uma festa para Omolu, que seguia o calendário litúrgico, e outra
terreiros, tradicionalmente, localizavam-se nas periferias das cidades. Com a expansão de
que tinha caráter de comemoração pessoal, um aniversário de santo de uma ialorixá que
Salvador, alguns ficaram dentro de áreas urbanas: Gantois e Casa Branca; outros localizam-se
tinha Oxum como orixá.
em bairros da periferia, onde moram muitos dos pais e mães-de-santo; outros terreiros,
Descrevamos, de forma genérica, a estrutura contida nas festas. Relatos similares podem ser
ainda, encontram-se a poucos quilômetros da cidade, em municípios vizinhos, como Lauro
encontrados em Bastide (1961) e Carneiro (1948); outros autores como Bastide e Verger
de Freitas e Cachoeirinha.
(2000, 2002) e Lünhing (2002) também fizeram descrições detalhadas de rituais tanto na
O terreiro é composto por diferentes partes. A roça, onde estão localizados os templos nos
Bahia como na África e incluem os orikis, cantos sagrados utilizados na invocação dos
quais se rende culto aos orixás, se cultivam diversas plantas, cujas folhas são utilizadas nos diferentes orixás.
rituais, e onde estão as árvores sagradas. O barracão consiste em uma grande sala onde são
As festas dos orixás, na Bahia, iniciam-se com uma fase privada, na qual se cumprem as
realizadas as cerimônias abertas ao público ou as festas do Santo. Ele é enfeitado com
obrigações e se realizam os sacrifícios. À noite, ocorre o candomblé ou a festa aberta ao
bandeiras de papel, cuja cor corresponde ao orixá homenageado na festa. Nessas ocasiões,
público. Por exemplo, uma das festas que tivemos a oportunidade de presenciar durante o
o salão pode ter a imagem de algum santo representante dos orixás. Esse conjunto
trabalho de campo iniciou-se às dez da manhã com diferentes sacrifícios. Nessa parte do
completa-se com um quarto, no qual se realiza a troca de roupas, como nas sacristias das
ritual, foram sacrificados vários animais, como aves, cabritos, pombos. A forma de realizar o
igrejas; uma cozinha, onde são preparados os alimentos para o santo; e vários outros
104 105 sacrifício e os animais utilizados variam de acordo com o orixá homenageado. Uma parte
quartos utilizados pelos que têm de prestar obrigações aos orixás.
106 107
do animal sacrificado é oferecida ao orixá, geralmente o sangue, os pés e a cabeça. O
restante dos animais é utilizado na preparação da comida que será oferecida aos
participantes da festa. A carne dos animais sacrificados é dividida conforme as hierarquias
dos participantes. Uma parte é doada aos pais-de-santo, ao ogã, que auxiliou na cerimônia, e
às ekedes. A outra parte será utilizada para preparar a comida da festa. O resto é doado,
como caridade, aos vizinhos do bairro, normalmente, necessitados.
Os sacrifícios são realizados ao som dos atabaques. Posteriormente, no peji, o ritmo será
marcado pelos cantos em língua ioruba. À noite, durante a festa, cantos e atabaques
combinam-se para a invocação dos orixás, que encarnam no “cavalo do santo”, os iaôs e
ebômins da casa.
As festas têm início com uma invocação a Exu, o mais temperamental dos orixás. Ele é visto
como um mensageiro entre o mundo dos homens e o dos orixás. O pade, a realização das
oferendas a Exu, tem como propósito apaziguá-lo, para poder contar com sua colaboração
e evitar que atrapalhe o ritual. Posteriormente, realiza-se uma invocação a Ogum, orixá
guerreiro que tem, entre outros atributos, o saber sobre os metais; sem ele, não é possível
fazer os sacrifícios. Seguem-se os diferentes toques destinados aos orixás. Eles variam de
acordo com o tipo de ritual. Durante a festa, os atabaques podem ser acompanhados por
sinetas de percussão duplas, chamadas agogô, ou simples, conhecidas como gam. Durante
essa parte pública da festa, a iyalorixá ou o babalorixá do terreiro dança ao ritmo dos
atabaques e dos cantos com os seus filhos-de-santo. Outras iaôs participam da roda no
centro do barracão, a qual gira no sentido anti-horário.
Os diferentes toques do atabaque e os cantos invocam distintos orixás. A roda é formada
no meio do salão, e os ritmos repetem-se até que os orixás encarnem nos participantes. As
convulsões, a posição das mãos e outros sinais mostram que o iniciado transformou-se em
“cavalo do santo”. As ekedes, então, retiram os colares, relógios e outros objetos da pessoa
em transe e a conduzem ao quarto onde é vestida com as roupas do orixá correspondente.
Pouco tempo depois, o orixá retorna ao salão e, de acordo com o tipo de festa, dança e
saúda os presentes, é homenageado e interage com o mundo dos homens.
Os orixás representam um complexo de relações sociais cujo significado é
metaforicamente expresso pelos romances que contam a vida de cada um. Nessas
narrativas, os santos relacionam-se com as forças da natureza, com seres míticos, dos quais
é possível reconstruir sua gênese histórica na África, com sentimentos e sistemas de
atitudes. Os diferentes orixás encontram-se relacionados por matrimônios e relações de
descendência e criação, os quais refletem uma ordem social africana. Iansã, que foi mulher
de Ogum, casou-se com Xangô depois de uma briga. Oxum foi a segunda mulher de Xangô.
Omolu, filho de Nanã, foi criado por Iemanjá. Cada um dos orixás está relacionado com
diferentes elementos da natureza e com vários tipos de saberes ou poderes. Iemanjá é o
orixá do mar; Iansã é a deusa da guerra, associada ao fogo; Ogum é o orixá da metalurgia e
dos metais; Omolu é o das doenças.
Uma descrição de cada orixá extrapolaria os limites deste ensaio. Como exemplo,
detenhamo-nos em um deles, Omolu, também conhecido como Obaluaiê. Segundo os
depoimentos coletados, ele seria o orixá que melhor representaria a Previdência. Cabe ressaltar
que, na Federação Nacional de Cultos Afro-brasileiros, a imagem desse orixá vestido com
palhas da costa é a mais presente em estatuetas e pinturas. Essa figura, associada à proteção
e ao auxílio em casos de doenças ou necessidades, foi descrita por Edson Carneiro (1948)
108 109 como o “médico dos pobres”.
Às segundas-feiras, na igreja de São Lázaro, em Salvador, as ialorixás oferecem banhos de
pipoca para limpar os fiéis. Segundo uma das ialorixás, com as mãos cheias de pipoca, “ele é
o único orixá que tem esta flor”. Por ser um poderoso guerreiro e, ao mesmo tempo, um
benfeitor nos casos de doença e necessidade, Omolu ou Obaluaiê é o orixá que poderia ser
mais facilmente identificado com as políticas de Previdência. Por outro lado, Omolu carrega
o xarara, estolho feito com folhas de palmeira e enfeitado com búzios, o qual carrega Egum
em seu interior. Mais adiante falaremos sobre os Egum.
Diversas comidas também estão associadas a determinados orixás. Durante o trabalho de
campo, levantamos um relato que conta a história do acarajé, entrelaçada nas tradições do
candomblé da Bahia. Conta a tradição da nação Keto que os primeiros terreiros de
candomblé de Itaparica foram criados pelas três Marias: Iacala, Iacose e Iatala. Elas deram
origem às primeiras casas de candomblé. Maria de Xangô, filha de Iacala, foi a primeira a
vender acarajés, a pedido de Iansã. Diz a história que Maria de Xangô recebeu da orixá o
pedido, que deveria vender os bolinhos de feijão miúdo, tradicionalmente oferecidos a Iansã.
Segundo a tradição, ela sairia com sua gamela oferecendo os bolinhos frios com tempero
quente. Originalmente, era só o bolo de feijão. No século XIX, os bolinhos de feijão fritos
em azeite-de-dendê ganharam tempero e camarão. Recentemente, na década de 1970,
agregaram o vatapá e, mais tarde, a salada. Acarajé seria uma palavra de origem ioruba
(acará significa bolo de pão e jé, comer). Essa comida africana recebe o nome de oxobô na
Nigéria. A venda de doces e quitutes, acarajés e abará, era um dos recursos das mulheres
do terreiro para poderem sustentar-se. Outras vendiam cocada ou outros quitutes, os quais
entraram para o gosto da população de Salvador.
O povo do candomblé tem uma vida cheia de obrigações, mas também tem sua vida fora
do terreiro. Grande parte pertence aos setores mais pobres da sociedade e sustenta-se em
empregos humildes. Outros, como as baianas, têm nos acarajés e nos quitutes uma forma
de trabalho artesanal e informal.
O terreiro, como forma de organização social, apóia seus membros nos momentos de
dificuldade. Vários autores, como Bastide (1961:67, 132), assinalaram o espírito de
solidariedade reinante entre os membros do terreiro: “Se por um lado, os sacerdotes ou
sacerdotisas supremas têm autoridade absoluta sobre os membros da confraria religiosa que
dirigem; por outro lado, têm também obrigações para com eles, tanto de assistência pecuniária
quanto moral, o que, em plena cidade da Bahia, torna os candomblés verdadeiras sociedades de
socorro mútuo, de auxílio fraterno, que mantém o espírito comunitário africano” (Bastide
1961:67). Esse fato reflete-se também nos depoimentos coletados:
“Eu cheguei aqui com seis meses de nascida, Intê Pá Oá de Axé, que minha mãe
Menininha... que o apelido era mãe Menininha, mas o nome dela era Maria Conceição
Escolástica Pinto. Com doze anos, eu já tô no Santo. Nasci em 1936, fiz santo, fiz meu orixá,
sou filha de Obaluaiê. Com doze anos, tô aqui até hoje, com esta vida toda aqui na casa do
candomblé. Depois que minha Mãe Menininha faleceu, tomou a posse a minha mãe Creusa.
Nanã, mãe dos orixás, não criou seu filho Omolu, que foi deixado na beira do mar. Os Eu fiquei com ela durante todo o tempo, até que nosso senhor chamou ela.Tô agora é com
caranguejos comeram sua carne e deixaram feridas na sua pele; por isso, veste uma minha mãe Carmem, estou acompanhando ela.
indumentária composta de palhas da costa, a qual cobre seu rosto e corpo. Iemanjá o A vida do candomblé é essa, a gente vem cumprir os orixás, vem, conversa. Por exemplo, hoje
encontrou e o criou. Omolu transformou-se em um grande guerreiro e conquistou vários mesmo é dia de Obaluaiê. Aí a gente vem, chegamos aqui sábado para ficar fazendo as
reinos. Pelas suas chagas, é considerado o orixá protetor da varíola e das doenças contagiosas. obrigação: carregar água, fazer o ossé, cumprir as obrigação toda, porque não pode dormir
No sincretismo afro-católico, ele está representado por São Lázaro, na Bahia, e por São fora. Para quem tá a obrigação, não pode dormir fora, tem que dormir na casa do candomblé.
Sebastião, no Rio de Janeiro. 110 111
Dorme tudo, a gente acorda, tomamos um banho e vai fazer o ossé8 dos
orixás. O ossé é a mudança da água para lavar as vasilhas dos orixás
que nós temos, é num quarto de santo para os orixás que a gente cultua.
E aí a gente vai fazer as comidas, os quitutes para os orixás. Depois, a
gente... quando chegou o horário, nós oferecemos, ainda é pros orixás. A
vida é essa, uma coisa boa.
Então, essa idade toda que eu tenho de santo e de idade é aqui nessa
casa do candomblé; elas todas me apóiam. Se a gente briga com o
marido, se o marido larga a gente, a gente corre pra aqui, ela acolhe a
gente, faz com a gente filha, filha mesmo, feito uma mãe materna. Ela
acolhe a gente aqui, a gente almoça, janta, ceia, passeia, a gente faz
tudo aqui nessa casa do candomblé. Coisa boa, gostosa. Quando uma
se desemprega, ela vem pra aqui, ela dá almoço, janta, ceia, dá uma
cesta básica pra gente comer, pra gente ter, pra gente se sustentar.
Quando a gente não pode, ela vem, ela dá um dinheiro. Elas não são
ruim não, ela mantêm a gente como filha, se a gente tropeçar, ela
ajuda a gente.” (Antônia Castro, 76 anos, Terreiro Mãe Menininha
do Gantois, não tem aposentadoria ou benefícios previdenciários.)
Por outro lado, cabe ressaltar que alguns dos terreiros desenvolvem
ações sociais junto à comunidade. No terreiro Axé Opô Afonjá, por
exemplo, funciona uma creche para as crianças do bairro. O terreiro Ilê
Axé Opô Ajagunã oferece creche, cursos de capacitação profissional, aulas
de informática, cursos sobre cultura afro e o aprendizado da construção
de instrumentos musicais. Participantes do Terreiro de Mãe Menininha do
Gantois organizaram as Filhas de Gandhi, um grupo de afoxé, e realizam
outras atividades: oferecem, por exemplo, cursos de formação
profissional, que vão da culinária ao turismo, passando pela cultura afro.
Pela sua forma de organização, os terreiros podem ser importantes
parceiros na implementação de programas sociais junto às comunidades.

8
Ossé: oferecimento
semanal de alimentos ao
orixá no seu dia especial
(Cacciatore, 1988:199).
112 113
As nações do candomblé

A floresta de símbolos apresentada pelos diferentes orixás mostra também variações de


acordo com as nações africanas que ordenam as várias tradições dentro do candomblé. A
relação com as nações tradicionais da África reflete as variações dos cultos africanos no
Brasil de acordo com seu lugar de origem. No candomblé, existem várias nações, as quais
podem ser notadas pelos diferentes nomes atribuídos aos orixás, pelos diversos elementos
de cultos ou nos cantos e rituais. Como exemplo, podemos indicar a diferença entre os
nomes dos orixás nas nações Keto, Djè-djè e Angola. Outra diferença já mencionada está na
forma de tocar os tambores, nos nomes dos tambores e em outros detalhes. Anexas,
encontram-se as hierarquias utilizadas pelas diversas nações. Algumas tradições,
praticamente extintas na África, mantêm-se vigorosas no Brasil. Segundo as estimativas dos
informantes, 75% dos terreiros da Bahia são Keto, 23% são Angola e o restante Keto / Djè-
djè; a nação Djè-djè está quase extinta na Bahia.
“Hoje, na Bahia, as casas tradicionais são as das raízes de Keto, pela história que vem do
século XVIII, pelas três Marias, que é a Iacala, Iacose e Iatala. Então, dessas três fundadoras
da nação Keto que nasceram: primeiro, a Casa Branca, na rua Vasco da Gama, Ilê Ialaxô;
depois, veio o Gantois; e depois do Gantois, nasceu o Ilê Axé Opô Afonjá. Todos os três são
sociedades: Sociedade Santa Cruz, Sociedade São Jorge e Sociedade Lia Masur, são as três
irmãs. Desses três segmentos nasceu, hoje, o meu pai-de-santo, que já é a segunda geração;
eu já sou a terceira geração da família de Keto. (Pai Ari, Salvador, Bahia.)
Podemos contrastar a fidelidade dessa genealogia com o levantamento realizado por Edson
Carneiro (1948:37), no qual apresenta os principais terreiros das nações Keto, Djè-djè,
Angola e Congo. Essa genealogia constatada na década de 1940 permanece fiel, exceto pelo
fato de que um dos terreiros apresentados como da Nação Congo é classificado agora
como Angola, possivelmente porque o informante é da nação Keto, mas não se deve
descartar uma fusão das nações banto. Ela aplica-se também a outras nações do candomblé:
“E temos hoje a geração da família de Angola, que nasceu do Bate Folha, com Maria
Neném, que foi a fundadora, e depois com o finado Bernardino. E hoje têm os segmentos: o
Bate Folha, o Bate Folhinha e o Folhinha do Angola. Então, hoje, já têm três segmentos dos 114 115
116 117
filhos da casa do Bate Folha. Nós temos outra família de Angola que é a família de Ciriaco. cuja particularidade é falar, dado que os orixás não falam. Nos terreiros de Angola, de
Aí já nasce o Tumba Junçara. O Tumba Junçara foi criando várias raízes, como tem hoje no tradição banto, essa entidade fala com os assistentes, dá conselhos e realiza curas.
Rio, em São Paulo, já raízes do Tumba Junçara de Angola. “No Angola, o orixá se chama de inkice. Mas, por exemplo, nós temos uma entidade no
Hoje, da raiz Djè-djè nós temos uma casa tradicional, que é o Bôgún, que é uma casa de Keto que se chama Logunedé. Logun é um cruzamento de um homem e uma mulher; então
muitos anos, mas que hoje está em recesso pela titular ter falecido, e a sucessão Djè-Djè exige ele é Oxóssi e Oxum. Já no Angola, ele é considerado Gongonbira: Gon, o homen, e bira, a
sete anos. Então, a casa fica sete anos em recesso; depois de sete anos é que a casa volta a mulher; um homem e dois sexos. Então, só é a tradição que muda de nação, mas a entidade
funcionar. É o que acontece.... do Bôgún nasce o Aventura, que era mais velho, mas a mãe-de- é a mesma.
santo do Aventura vem se dedicar ao Bôgún, e aí nasce o Aventura; do Aventura nasce mãe O pessoal confunde muito o Angola com Caboclo. Angola e caboclo não tem nada a ver.
Luiza Gaiakú. O Rumpayme é o terreiro dela, lá em Cachoeira, que você conheceu. Angola é tradição da África Ocidental, certo? E o Keto é Nigéria Barake. Então, o caboclo é
Essas são as famílias tradicionais, que hoje é o Keto, o Angola e o Djè-djè. Temos poucas brasileiro. Mas o povo confundiu, achavam que era o Angola que tem aquelas regras,
raízes de outras nações na Bahia, que era o finado Eduardo Ijêxá, que já faleceu, e hoje o mistura com caboclo, aí o pessoal confundiu Angola com caboclo, mas não tem nada a ver.
que nós temos de Ijêxá... a comprovação... o efã é Rui Pólvora, em Itabuna, e tem Mãe Caboclo é indígena, e Angola é inkice, igual ao Keto, só que ele recebe uma incorporação
Estelita aqui em Salvador, que já está uma senhora de idade, já perdeu a visão, ela que é o inkice. Como o Angola tinha inkice, e inkice significa o marco, a transformação do espírito,
pessoal único de Ijêxá, que consagra a nação Ijêxá. Temos o Caboclo, que tem uma como o caboclo era do mato, eles ligaram que o Angola tinha parte com o caboclo... Então,
denominação muito forte. Nós temos poucas pessoas de Caboclo e temos uma pessoa hoje, hoje, aqui na Bahia, eles fazem a festa do caboclo, aí bate Angola, que não tem nada a ver
que é Nivaldo Pena Branca, que é feita de Imoraxó. Tinha o finado Rufino e outros
segmentos que era Imoraxó, mas já foram. Hoje só existe uma pessoa que é feita de
Imoraxó aqui, é o Caboclo.” (Pai Ari, Salvador, Bahia.)
Durante a pesquisa de campo, visitamos também uma das últimas mães de santo Djè-Djè, a
qual disse não fazer mais as iniciações tradicionais. Essa mãe-de-santo, Luiza Gaiakú, do
terreiro Rumpayme Runtoloji, na sua juventude, foi a mais famosa baiana do acarajé. Ela foi
capa de jornais e musa inspiradora de Dorival Caymmi, quando este criou “O que é que a
baiana tem?”, em 1938. Hoje, aposentada, ainda deseja que seu terreiro seja tombado, a fim
de preservar os fundamentos da nação Djè-djè.
As diferentes nações dentro do candomblé remetem a uma África imaginada com
diversidade, inclusive de tradições. Não se trata de uma África homogênea ou nebulosa. Na
cultura afro-brasileira, as tradições chegam a reproduzir as línguas e os saberes de povos
africanos que, às vezes, encontram-se ameaçados no seu lugar de origem. As nações Keto e
Djè-djè estão localizadas no Benin e na Nigéria, na Costa dos Escravos, área dos reinos
Ioruba e Fon. As tradições banto, como as nações de Angola e do Congo, provêm do centro
e do sul da África. Essas diferenças refletem também certa profundidade temporal das
genealogias. Durante o século XVII, a importação de escravos tinha como origem os reinos
do Congo; já nos séculos XVIII e XIX, os fluxos de escravos têm como origem os reinos
Iorubas. Muitos dos cativos dessa última leva eram capturados durante as guerras de
expansão do povo Fon, do reino de Daomé (Verger, 2002.b).
Por exemplo, a nação Djè-djè, que corresponde aos reinos Fon, tem várias diferenças em
relação à nação Keto, hoje dominante na Bahia. Na cultura Djè-djè, os orixás recebem o
nome de voduns. Os principais também são cultuados pela nação Djè-djè, mas recebem
nomes diferentes. Por exemplo, Exu recebe o nome de Legba; Ogun responde pelo nome Gu;
Omolu é conhecido como Sapata ou Azoai; Oxóssi é Age; Xangô é conhecido como Sobo ou
Bade; Oxum recebe o nome de Aziri e Oxalá é conhecido por Olisasa ou Lisa (Berger, 2000).
Variações análogas ocorrem com os nomes dos orixás na tradição de Angola. Nos terreiros
de Angola, o inkice é o equivalente ao orixá da tradição ioruba. As tradições são inteligíveis
entre si e seguem classificações similares em termos de orixás e de suas atribuições. A
principal diferença está na presença de uma entidade muitas vezes apelidada de “caboclo”,
118 119
com o caboclo. Está aí rezando, o caboclo vinha e tinha que saudar o
Angola, que o inkice do Angola é como se fosse Orixá. Só que ele é um
inkice e fala. Ele só muda a tradição da origem da nação.” (Pai Ari,
Salvador, Bahia.)
Em síntese, o candomblé é uma religião iniciática, de tradição oral,
centrada no culto aos orixás. Os orixás são um princípio imaterial
representado pelo axé, a força que se relaciona com diferentes forças da
natureza, com cores distintas e com um sistema de atitudes transmitido
por romances que narram a vida dos orixás. Cada terreiro tem sua
comunidade moral composta pelos integrantes do axé da casa; na nação
Keto, denomina-se egbé.
Apesar das diferenças quanto às tradições e aos sistemas de nomes, o
sistema de representações é semelhante. À medida que passamos das
tradições iorubas, como Keto, às tradições banto, como Angola, os
elementos do culto aos antepassados e a presença de outros tipos de
entidades acentuam-se. Os limites difusos entre o candomblé e outros
cultos espiritistas tornam-se mais nítidos na umbanda, nas macumbas e
em outras variantes como a kimbanda.
Os terreiros organizam-se em diversos segmentos de acordo com a
linhagem estabelecida pelo “parentesco no santo”. Por outro lado, esses
segmentos organizam-se em nações que agrupam as diferentes tradições
do culto aos orixás. O candomblé poderia ser considerado um dos
núcleos duros da tradição afro-brasileira.

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Egum: culto aos antepassados

Entre as diversas tradições do candomblé, abordaremos, mais uma vez, a nação Keto e um
de seus segredos revelados nesta pesquisa. Bastide (1961:167-ss), na sua apresentação do
candomblé, divide a religião em quatro partes diferenciadas: o culto aos orixás, nas mãos de
babalorixás e ialorixás; o conhecimento das plantas e das folhas, sob responsabilidade do
babaossain; a adivinhação do Ifá, nas mãos do babalaô; e o culto dos Egum, cujo sacerdote é
o ojé. Para Bastide, tal sacerdócio corresponde a uma estrutura quatripartite do mundo:
deuses, homens, natureza e os mortos ou a linhagem.
Na análise desses diferentes sacerdócios, Roger Bastide é enfático ao comentar as
dificuldades encontradas na obtenção de informações sobre os terreiros de Egum.
“O culto dos Egum pertence, na Bahia, à Sociedade dos Egum, e esta sociedade, aqui, como na
África, é uma ‘sociedade secreta’. De duas, uma: interrogam-se exteriormente alguns dos
membros, que não dão senão poucas informações e logo se refugiam no silêncio, ou então
penetra-se na sociedade, mas fica-se prisioneiro da lei do segredo. A morte é a condenação de
todos os que violam os mistérios dos Egum.” (Bastide, 1961: 169-170)
Os Egum representam o espírito dos antepassados, são os sacerdotes mortos que retornam
depois de sete anos para indicar seu sucessor. Na complexa trama do parentesco ritual
estabelecida pelo candomblé, “o parentesco no santo” permite construir linhagens ou
segmentos nas diferentes nações. Os Egum permitem construir outras genealogias, que têm
como referências os espíritos dos antepassados. Durante uma entrevista com o Pai Balbino,
ao ser indagado quanto aos seus ascendentes africanos, ele respondeu:
“Nunca ninguém estudou de onde veio na África. O povo era muito ignorante, não sabia
dessas coisas. Eu encontrei famílias da gente lá, num lugar que se chama Uidá, a família do
Daniel de Paula. E também tem ‘Kute Babá Egum’ nesse lugar. Mas isso foi uns doze anos
atrás. (...) Os antigos passavam só a religião mesmo. Esse povo da geração de meu pai era
tudo ignorante e eles não ligavam para esse tipo de coisa. Eles morriam, e a gente não sabia
como se chamava o bisavô, nem o tataravô. Eles não falavam, eles eram muito fechados. Não
conversavam nada não. Eles só contavam essa parte de Egum.Você sabe o que é Baba
Egum?” (Pai Balbino, Alapini, terreiro Ilê Axé Opô Aganju, Lauro de Freitas, BA.) 128 129
Na tradição Keto da Bahia, os terreiros de Egum estão por serem espíritos de pessoas iniciadas no santo, possuem
dedicados exclusivamente ao culto aos antepassados. Esses seus orixás, os quais também devem ser contemplados por
terreiros, originários da Ilha de Itaparica, apresentam meio de oferendas e sacrifícios. Ao cuidar dos fundamentos
diferenças significativas em relação aos outros terreiros de dos Egum, os orixás dos ancestrais também são
candomblé. contemplados, sacrifícios são oferecidos e renova-se o axé
A hierarquia do terreiro é estabelecida da seguinte forma: dos orixás. A cerimônia para invocar os Egum guarda
quem está passando pelo processo de iniciação ocupa o semelhanças, em sua estrutura, com aquela realizada nas
cargo de amuichan. Depois de iniciado, ocupa o cargo de ojé, festas dos orixás do candomblé. Inicia-se com a invocação de
após uma preparação de sete anos a partir da sua iniciação Exu, para que não atrapalhe os caminhos, e de Ogum, o deus
em Babá Egum. O ojé ocupa uma posição análoga à do dos metais, para a realização dos sacrifícios.
ebômim no culto aos orixás. A hierarquia dentro da nação “Porque, primeiramente, aqui, pra nós convocar Egum, nós temos
Babá Egum encontra-se anexa. que trabalhar com Exu, cantar pra Exu, cantar pra Omilé.Você vai
Visitamos o terreiro Alaba Ilê Adebolá, do Ojé Babagungun ver o que é Omilé, Omilé é o tempo. Aqui na seita de Egum, nós
Baruê. No candomblé da Bahia, os Egum são cuidados por chama Omilá, Omilá de Omilé. Esse Omilé chama Obaluaê, que é
um sacerdote especial, o ojé (ou odje). Os terreiros de o tempo. Aí nós canta pra Omilé, canta pra Ogum, entrega, chama
Egum não possuem babalorixá ou iyalorixá; as cerimônias Iansã, quando canta pra Balé. Aqui, Egum é apresentado com as
são dirigidas pelo ojé, o qual, com uma vara de nome dankô, obrigações que eu vim marcar aqui nesse chão, que é o carneiro, é
invoca e controla os Egum. Para preparar essa vara mágica, o negócio que nós dá pra fazer. Tem que ter a confirmação que
esfregam-se diversas plantas, tais como comigo-ninguém- nós foi... a gente primeiro faz a confirmação pra poder o Egum
pode, espada de São Jorge e Iroko. Os Egum são os espíritos sair.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)
dos antepassados, e o contato direto com os vivos poderia Os Eguns representam o espírito dos antepassados. Sete anos
ser fatal. Os Egum não podem ser vistos diretamente, nem após sua morte, realiza-se o ritual do Oapu, quando os
tocados. Com a vara, o ojé guia os Egum e mantém uma espíritos regressam à terra como Egum.
distância entre eles e os fiéis. À semelhança do candomblé, “O problema dos Egum é esse. O primeiro Egum vai representar
realizam-se diversos sacrifícios e cantos para convocar os Obabadebolá, que é o dono do terreiro. Ele pertence a Ogum; tem
Egum. a Genuda, que pertence a Oiá; tem o pai do meu tio, que chama
“A nossa nação é a nação dos Nagô. Nagô é parte da Babalategum, que é de Xangô. Aí, os Egum de cada um desses
África, e essa seita de Egum chama-se Egum-gungum porque é como os africanos chamam. que caiu têm seus orixás. Porque eles têm os orixás. Hoje eu sou um ojé, eu tenho meu
Aconteceu que meu avô, Pedro Daniel de Paula, que é o pai do Egum que o senhor vai ver orixá, eu sou de Oxalá e Iansã. Amanhã ou depois, quando eu falecer, eles vão me chamar e
ele aqui agora, Daniel de Paula, foi que me fez em 1961. Aí, aconteceu que eu levei esse aí vão dar as minhas obrigação. Pelas obrigação, você tem que receber... que nós chama
cargo, que já aprendeu, e até hoje eu tô agüentando, porque é uma herança dos nossos primeiramente Axoxé, e esse Axoxé, depois de sete anos, se chama Oapu, sair debaixo da
mais velhos, que vai passando de um para outro. Que amanhã ou depois, Olorum que é terra. O axoxé de acordo, eu como dono da casa, eu e mais outros que seriam da casa, que
Deus, me chamar, eu tenho que botar outra pessoa no meu lugar. Aqui é uma seita que não tiveram a permissão dos Egum, primeiramente Deus, sai para dançar. É, porque o que eu
pode parar, o terreiro é usos e usufrutos dessa seita. sei, como eu aprendi que o meu mais velho contou, foi assim. Eu faço aquilo que meus mais
velhos me ensinou. Eu não passo do meu limite.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)
Aí acabou pegando o aceite; é pra nós cumprir o nosso resguardo e dar todas as
obrigações. As obrigações que nós damos aqui dentro do terreiro é o Axó, que chama Arrô; é Após seu depoimento, Ojé Baruê apresentou os Egum do terreiro; os quais apareceram
o Abô, que é carneiro; Raquicó Miximetalá Bocan, que são quatro galos. Rabocó é bode pra com seu axó, vestimentas rituais que cobrem todo o corpo. É interessante comentar que
Exu,Tete-teté é cabra pra Iansã, acompanhado com Adié9. Para nós poder pegar esse
9
Adié: galinha, animal de falam com voz “cavernosa”. Tenho de confessar que, quando o ojé pediu que
preferência de vários
fundamento desse Egum, nós temos que dar tudo isso para apresentar o Egum. Quem orixás (Cacciatore, entrevistássemos o primeiro Egum, fiquei sem palavras. O segundo Egum falou por meio de
trouxe os Egum pra nosso Brasil foi Ogum e Iansã, que trouxe pra poder nós ser hoje Ojé, 1988:38). Ojé Baruê, revelando o caráter genealógico da organização de seu culto:
entendeu? Foi trazido por eles. Porque todas as partes desse orixá tem que ter seu Egum “Este Egum é meu avô, foi o dono desta sede. E esta sede aqui é de Balbino, que é pai do
assentado; no caso desta casa, é Ogum e Iansã.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.) Babalorixá hoje. O senhor sabe quem é Balbino. Ele não pôde ter esse cargo por causa de
Ogum é o orixá do metal, elemento presente nas facas com as quais realizam-se os Xangô, aí esse cargo ficou pra mim. Quando ele me dá Olorum que é Deus, me dando vida
sacrifícios. Iansã é o único orixá que não teme os mortos. Uma das sete Iansãs é e saúde, eu estou zelando Deus.
responsável pela passagem que conecta o mundo dos vivos com o dos mortos. Os Eguns,
130 131
Foto do Egum entrando vertical
Olorum é o orixá supremo, o criador. Ele não pode ser representado e não é cultuado nos
terreiros. Nesses terreiros de Egum, eles, os Egum, são os mediadores que comunicam com
Olorum. Os Egum têm de ser bem tratados. Existe uma lógica da reciprocidade. Se bem
tratados, em agradecimento, cuidam dos vivos, abrem caminhos, protegem contra as
adversidades. Essa lógica aplica-se tanto aos Egum quanto aos orixás.
“O senhor fica aqui na minha casa, se não lhe tratar bem, o senhor volta? Mas não. A
mesma coisa. Esse Egum aí é o mesmo, ele vai embora e vem no dia da festa. Aí ele vê a
festa dele e fica alegre, satisfeito. Ele aí é que traz mais os companheiros, porque tem
muitas pessoas que é morto. Daí, pra animar as pessoas, nós estamos tocando, aqui a porta
está aberta, aí aparece um bocado de pessoa, aí nós só vamos chamando, vai entrando,
senta aqui, um cafezinho, uma merenda. E vai agradando o povo pra poder nós ter o valor.
Uma coisa é eles, eles vão, “Vamos parar lá porque lá tem comida, tem sangue”. Sangue
eles não comem, recebem sangue que lhes jogam, aí que eles recebem o sacrifício.” (Ojé
Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)
Assistimos à invocação ao Egum e ao Babaegun-gungun, antepassado de um pai-de-santo, com
ascendência em Xangô. Os antepassados marcam as distâncias internas das nações do
candomblé, recriam as linhagens segmentárias dentro da religião. Por meio dos antepassados,
constroem-se as proximidades e as distâncias entre os galhos dessa árvore genealógica.
“Agora nós que somos Nagô, que temos uma tradição de Nagô, nós temos mais raízes porque
temos mais histórias, ele que é de Lessa Egum, ele é Gum-Gum Babá, então ele já tem uma
tradição muito forte com a gente Keto. Porque na nossa tradição, quando as três Marias
chegaram aqui, elas vieram com o Bangboxé, elas trouxeram Bangboxé, o Martiniano; então,
11
Segundo Verger (2002, eram pessoas que tinham um fundamento de Lessa Egum, com o Bangboxé.11
b:29), Bangboxé seria
Rodolfo Martins de
Andrade, que veio da
Eles próprios é que botaram o Axé de Egum em Ponta de Areia, donde ele foi feito. Dali é que
África junto a Iyanassô, saiu essa história. Se vê que nós não despachamos Exu, nós mandamos axexê, Ilê Axé Opô
uma das três Marias.
Afonjá, Casa Branca e Gantois, ele roda primeiro o axexê. Não pode despachar Exú.
Inamoejuba: Inamoe, o senhor do poder; Juba, mingau. Então, nós rodamos, falamos com os
nossos ancestrais que são os Egum, damos o mingau a Exu, nós chamamos os Egum, nós
invocamos a Iami, que são as mulheres do feitiço, aonde elas se transformam num Aparacá,
que é uma parte de Oxum. Elas se transformam, aí a gente manda ela seguir o caminho para
que, à noite, nós encontremos a nossa espiritualidade purificada. Na linguagem popular, se diz
assim que a coruja é o símbolo da inteligência; para nós, a coruja é o símbolo da Iami, que é a
mulher, a mulher que traz o segredo, a mulher que traz a maçonaria, certo?” (Pai Ari,
presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro.)
O Axexê é uma cerimônia ritual fúnebre dos candomblés, na qual os Egum são invocados.
Aqui, você sabe, uma festa dele é no dia 29 de Junho, São Pedro; eu aí Iami representa, coletivamente, todas as genitoras ancestrais míticas femininas (Odudua,
faço pra ele, se eu puder, se minha condição permite dar um Axó a ele, Nanã, Iemanjá, Oxum). Essas representações estão ligadas ao igba, a cabaça que representa
10
eu dou; se puder dar um abô10, um carneiro, eu dou, raquicó miximetalá, Abô: líquido feito com o segredo. Iami é simbolizada pela coruja, mas também pela cabaça que representa a mulher
folhas sagradas
quatro galos. E o ageim pra dá ao povo; o curim é o vinho pra fazer a maceradas em água das grávida, a que traz o segredo.
quartinhas do ronco
festa dele. Esses espíritos de luz que tá aí, quando chega aqui, que vê (Cacciatore, 1988:35). Os Egum não podem ser vistos, não podem ser tocados, não se pode falar deles;
todo mundo alegre, tocando, cantando, dando tio, se eles preferir aos representam a parte masculina. Iami representa a parte feminina. Ao mostrar-nos os Egum,
gritos que tá aí, é uma maior alegria. Essa alegria que ele põe aqui, eles estão revelando um dos mais guardados segredos do candomblé. Essa exposição de Egum à
levam pros pés de Olorum que é Deus. E pede ao Olorum que é Deus, Previdência tem de ser entendida com base na lógica da reciprocidade e do
muitos anos de vida e saúde a nós todos que estamos aqui olhando para reconhecimento. Não devemos esquecer que, há poucas décadas, os candomblés eram
ele. Gostou das palavras do Egum?” (Ojé Baruê) 132 133 perseguidos pela polícia.
134 135
Da descriminalização às políticas de
reconhecimento

Durante muito tempo, em lugar de respeito e tolerância para com o candomblé, a política
pública foi norteada pela repressão. O candomblé foi reprimido, principalmente durante a
época de Vargas e do Estado Novo. Entre 1930 e 1950, as reuniões eram freqüentemente
reprimidas pela polícia, e os praticantes do culto eram presos, humilhados e discriminados.
Pesquisadores do início do século XX, como Nina Rodrigues e Arthur Ramos, criaram suas
coleções de peças de cultos afro-brasileiros a partir do material apreendido pela polícia em
suas operações nas casas de candomblé. A mesma origem tiveram as peças que compõem o
acervo de vários museus, como o Museu de História de Alagoas. A discriminação e a
posterior descriminalização do culto permanecem vivas na memória dos mais velhos.
“A gente era discriminada em todos os sentidos, o candomblé era discriminado em todos os
sentidos. Primeiro, anos atrás, nós não tínhamos a liberdade que se tem hoje. A polícia
perseguia, os moleques abusavam, pessoas de posição mais elevada não queriam ser do
candomblé, porque achavam que era... como é que se diz?... era coisa para gente pequena,
coisa para gente muito baixa, inclusive diziam que era “negragem”, tá entendendo?
Porque ninguém tinha coragem, a gente era apedrejada, as gentes eram massacradas, a
gente andava correndo. Quem chegou agora não alcançou isso, mas eu alcancei. Por isso
que as casas, os terreiros grandes de candomblé, todos são distantes da cidade, porque não
se podia fazer festas no centro.
Hoje aqui eu abro, é pequenininho, deste tamanho, mas abriga terreiro, eu registrei, tem
obrigação, tudo bem, mas assim mesmo ainda tem quem persiga o candomblé. Aqui mesmo
já teve quem dissesse que daria queixa de mim na polícia porque eu estava tocando. Eu
toquei dois dias das cinco da tarde às onze da noite e já estava incomodando. Mas depois,
em conversa, fiquei sabendo que foi um crente [o que deu queixa]. Inclusive, os evangélicos
são os que mais nos perseguem. Hoje a polícia nos deixou em paz, o governo nos deixou
em paz, não tem mais ordem para ninguém prender ninguém, nós temos defesas porque já
foi criado... antes não tinha essa federação do afro. Hoje nós temos a Federação, que
qualquer problema que tenha, nós podemos ir lá, e eles tomam providência, e aquilo vai ser
apurado, mas ainda continua a perseguição, porque o evangelismo nos persegue. 136 137
Quando foi liberado, artificialmente, né? Tirava-se licença era na Delegacia Especial de Jogos e Ao longo do século XX, os terreiros foram abrindo-se para a participação da população
Costumes, mas eles não davam proteção.Tirava-se a licença para tocar, mas eles não nos branca, a qual foi incorporada aos cargos do terreiro desde a categoria de ogã até outros
davam proteção; o que fizesse tava feito e pronto.Tanta gente já foi presa, quanto pai-de-santo postos sacerdotais. Em alguns casos, a criação do cargo de ogã para figuras influentes no
com os atabaques na cabeça foram pra cadeia! As casas são distantes por isso; antes, chegava mundo dos brancos tinha como propósito a obtenção de apoio e mediação frente às
a polícia e prendiam, prendiam, botavam os atabaques na cabeça e levavam pro xadrez, se autoridades, a fim de evitar a repressão. Entre as figuras que ganharam esses títulos estão
tivesse tocando, prendiam sim, prendiam. Há poucos anos é que isso não acontece mais, mas vários artistas e escritores conhecidos. No Ilê Axé Opô Afonjá, foram Ministros de Xangô
já aconteceu muito. Eu era menina, eu me lembro, muita gente foi presa assim, levava filho-de- Jorge Amado – Otun Oba Onan Xokun; Carybé – Otun Oba Onan Xokun; Vivaldo Costa Lima
santo, levava pai-de-santo, levava atabaque, levava tudo. Sempre existiam, como é que se diz, o – Ossi Oba Elerin; Dorival Caymmi – Ossi Oba Onikoi; Antonio Olinto - Ossi Oba Até. No
pago deles, eles sempre recebiam as rebarbas deles, mas faziam isso, uns não iam. terreiro Ilê Iyá Nasso, Engenho Velho, Édison Carneiro foi Ogã de Xangô; Nina Rodrigues foi
Ogã de Oxalá no candomblé de Mãe Menininha do Gantois Ilê Iyá Omin Axé iyá Massê;
Aqui teve casos de polícia que ia aí a prender pai-de-santo e, quando chega lá, dá ordem de
Mario Cravo Júnior foi Ogã de Omolu no Ilê Oxumaré (Cacciatore, 1997: 237-238). Pierre
prisão e viraram no santo. Muitos passaram essa vergonha do orixá pegar ele, ele ir prender
Fatumbi Verger recebeu o grau de Babalaô na África e, no Ilê Axé Opô Afonjá, recebeu o
e... chegar lá..., e o orixá pegar. Quer dizer..., ficava o dito pelo não dito. Muitas coisas dessas
cargo de Ojuobá – olhos do rei – ligado a Xangô.
já aconteceu aqui. Era a polícia? Como é que o santo iria prender? O santo veio pra
envergonhar ele, para mostrar a ele que ele não poderia fazer aquilo. Tá entendendo? O A organização das diversas nações e a mobilização foram o caminho para obter o
santo desceu no policial, aconteceu.Você sabe disso, não sabe? reconhecimento como religião e pôr fim à repressão das autoridades policiais. Bastide
(1961:76) menciona, em seu livro, a criação da União de Seitas Afro-brasileiras, formada,
Era o Delegado Pedrinho, delegado mesmo, que mandava prender mesmo, mandava mesmo. originariamente, em 1937. Nos depoimentos levantados ao longo desta pesquisa, as
Era na época da cavalaria, quer dizer, eu venho desse tempo, de todo mundo se esconder, todo referências variam em torno de uma década. A Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro,
mundo sair descarregando. Eu não estou lhe contando nenhuma mentira. Se o senhor apurar, que funciona em Salvador, cujo presidente, Pai Ari, ciceroneou nosso trabalho, foi fundada em
o senhor vai ver que isso existia; muitos se calavam. Por quê? Por medo, porque, como diz, o 24 de novembro de 1946. Não sabemos se é a mesma organização ou uma reorganização da
candomblé é primitivo. Hoje todo mundo é do candomblé, já tem doutor, tem isso; mas entidade mais antiga. A Federação, ao longo de sua história, acumulou maiores atribuições.
naquele tempo, só tinha arraia miúda; então, todo mundo se calava, sofria e calava porque não
podia se defender. Hoje não. Hoje todo terreiro tem um personagem de mais alta posição e “Em 1946, a Federação nasceu, ela foi fundada; mas devido a não ter apoio dos órgãos
que já defende, não é isso? Mas, naquele tempo, só era arraia miúda, era carregador, era governamentais, que não há interesse dos governos da época, ela não teve grande força e
doceiro, era engraxate, baiana do acarajé. Porque os grandes não tinham coragem de dizer ‘eu argumento para lutar em prol dos terreiros. Em 1976, Roberto Santos foi governador do
sou’, quando chegava essas horas, eles se encolhiam e aí passavam uma vergonha. Estado da Bahia e ele... sendo governador, apesar de ser católico apostólico romano, mas a
pedidos de uma comissão de vários terreiros como Casa Branca, Axé Opô Afonjá, Bate Folha,
Eu já vi tenente, já vi major, já vi doutores chegarem no terreiro com toda a pose e, daqui a Bôgún e outros terreiros que fizeram um segmento... Então, foram ao governador, todos, né?
pouco, você vê ele entrar com a mão para trás. Eu tô falando que orixá é orixá, então isso é Foi aquela luta com o governador, e o governador liberou e disse que ia libertar o
que eu quero lhe dizer.” (Mãe Ditinha, 70 anos, aposentada como mãe-de-santo, candomblé da polícia. Na lavagem do Bomfim... o governador assinou um decreto na ladeira
Salvador, BA.) do Bomfim, libertando o candomblé da polícia. Então, a partir daquela data, o candomblé
O “toque” nunca foi totalmente permitido e, em muitas oportunidades, foi motivo de ficou desvinculado da polícia e deu poderes para que a Federação passasse a administrar
repressão. Durante a Primeira República e o Estado Novo, as religiões afro-brasileiras foram as casas de culto do Estado da Bahia.” (Pai Ari, presidente da Federação Nacional do
sistematicamente reprimidas (Lima, 2005). Até a década de 1970, os terreiros tinham de tirar Culto Afro-brasileiro, Salvador, Bahia.)
um alvará de funcionamento junto à Delegacia Especial de Jogos e Costumes, da Secretaria de Cabe ressaltar, no depoimento anterior, a expressão “libertar da polícia”. Apesar da
Segurança Pública. Tinham de avisar o dia em que iam realizar o “toque”, e a delegacia não declaração constitucional de liberdade de culto, o candomblé, na prática, não só não era
oferecia nenhum tipo de proteção. Muitas vezes, a polícia aparecia nos terreiros para dar uma reconhecido como religião como era criminalizado, e seus praticantes sujeitos a detenções
batida e levar todo o pessoal para a delegacia, com os atabaques na cabeça. Um tal delegado arbitrárias por parte das autoridades policiais. Para as elites da época, as crenças dos negros
Pedrinho era famoso por esse tipo de ação policial. Contam as pessoas que esse delegado eram consideradas fetichismo e não religião. A Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro
infernizou a vida do povo do candomblé até que, um dia, no meio de uma batida, o santo encabeçou a luta pela descriminalização e pelo reconhecimento como religião afro-brasileira.
desceu nele e ficou encarnado. Depois desse dia, não voltou a dar batidas nos terreiros de
As principais casas de candomblé organizaram-se para formar uma federação que defendesse
candomblé. Essa história, possivelmente, refere-se ao delegado Pedro Gorgulho, que foi
seus interesses. Depois de longas negociações com o poder público, conseguiram que a
repressor dos terreiros na década de 1920 na Bahia (Lima, 2005:103).
responsabilidade de fiscalizar as atividades dos terreiros passasse a ser atribuição da
Nenhum terreiro esteve a salvo das batidas da polícia, inclusive os mais antigos e Federação. No ano de 1976, o governador Roberto Santos assinou um decreto
respeitados passaram por esse constrangimento e por essa agressão consumada pela descriminalizando o candomblé e desvinculando os toques de candomblé da ação da polícia. A
apreensão dos objetos sagrados. Apesar dessa atitude repressiva que se estendeu por responsabilidade pelo culto passou à Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro, criada
séculos, mantiveram o culto aos orixás e as tradições africanas. 138 139 pelos principais pais e mães-de-santo. O decreto foi assinado e, em uma cerimônia no terreiro
140 141
do Pai Rufino, o governador recebeu um paxoru12 das mãos de Mãe Caiudê. 12
Paxoru é o nome do historicamente construída. Detenhamo-nos no
cajado de Oxalá.
Esse processo, que se inicia com a descriminalização, continua na luta pelo reconhecimento processo de luta pela obtenção de direitos
do candomblé como religião. Em 1988, a Constituição Federal do Brasil, também conhecida previdenciários. Esse processo de mobilização
como Constituição Cidadã, reconheceu a liberdade de cultos, mas o candomblé não era inicia-se com a demanda da aposentadoria
reconhecido como religião. Em 1989, na Constituição Estadual da Bahia, o candomblé foi para as baianas do acarajé. A luta pelos
reconhecido oficialmente como religião, segundo o artigo 275. direitos previdenciários leva à criação de uma
organização específica para elas. Uma vez que
As lutas pelo reconhecimento dos direitos previdenciários tiveram um importante papel no
obtiveram o reconhecimento dos seus
reconhecimento do candomblé como religião e ajudaram a reparar uma discriminação
direitos, a organização continuou trabalhando
em outros âmbitos, como a defesa do figurino
tradicional das baianas. Vejamos o
desenvolvimento desse processo segundo a
presidente da Associação das Baianas do
Acarajé (ABA) e uma das figuras chaves do
processo.
“Existem outros tipos de Previdência
privada, mas a gente fica naquela... não
sabe se acredita ou se não acredita.
Primeiro aquele contrato que eles dão com
as letras tão pequenininhas que a gente
não enxerga direito para ler e termina
assim, passando, e depois, quando a gente
vai reivindicar nossos direitos, a gente
esqueceu de ler alguma causa.
A Previdência é para pobre mesmo, todo
mundo já sabe, todo mundo sabe na ponta
da língua o que é a Previdência, para que
serve a Previdência. Se você não contribui
com a Previdência, você não tem futuro, e até mesmo as pessoas mais ignorantes, as
pessoas menos esclarecidas sabem o que é o INSS, né? Então, eu acho que é por aí. Minha
mãe teve um problema seriíssimo com a Previdência porque, antes de existir a ABA
[Associação das Baianas do Acarajé], existia e existe a Federação do Culto Afro-brasileiro,
que é uma entidade que cuida de terreiros de candomblé.
Eu fui criada por baiana. Minha mãe é baiana, eu também sou baiana. Eu sentia a
necessidade de minha mãe ter uma determinada coisa e não tinha porque não tinha uma
entidade específica que cuidasse dessa parte social, não é? E, pior ainda, eles não orientavam
ela, dizendo para elas que tinham que contribuir com a Previdência, que você ser associado
não lhe dá direito a você ter uma aposentadoria, nem por você ser sócio você tem direito de
se aposentar por aqui, porque aqui não é órgão empregatício, aqui é uma entidade como um
clube, como uma assistência médica, onde você escolhe para que lado você quer ir.
Minha mãe não tinha esse conhecimento; então, eles pegaram a carteira de trabalho da
minha mãe e deram um carimbo e deram uma assinatura lá, e na cabeça da minha mãe,
aquilo ali era uma assinatura de carteira aonde ia se descontar, aonde ia se pagar a
Previdência, aonde ia... Ninguém explicava isso para ela; eu, na época, também muito
adolescente, não entendia, e por aí foi.
142 143
Agora, há seis anos atrás, minha mãe teve um problema de tireóide e ficou muito doente, definidas como “em condição de risco social”, aquelas sem cobertura previdenciária. O PEP
muito doente mesmo. E eu senti a necessidade de aposentá-la pela idade que ela já tinha e está composto por técnicos da Previdência que vão ao encontro dos movimentos sociais e
também pela capacidade de trabalhar que ela não tinha mais. Aí fui procurar a Previdência. das organizações representantes dos setores não incluídos nas políticas de Previdência. O
Chegando lá, a assistente social falou para mim assim: ‘Cadê os carnês de contribuição?’ Aí propósito principal desse programa é disseminar informações sobre os direitos e deveres
eu falei: ‘Ela falou que não precisa porque ela é associada no Culto Afro’. Ela (a mãe) falou: dos cidadãos junto à Previdência e impulsionar a participação dos diferentes grupos no
‘Não, minha filha, eu tenho aqui minha carteira assinada pelo Culto Afro’. E falaram para sistema previdenciário. Por meio de várias estratégias, como encontros, palestras, reuniões
ela que essa era uma identidade errada, necessitava dos carnês de contribuição. Eu não com as lideranças, o programa consegue explicar a importância da incorporação à
esqueço disso porque ela repetia ‘n’ vezes: ‘Eu sou, eu pago ao Culto Afro-brasileiro, eles tem Previdência como seguro social. O PEP de Salvador desenvolve diversas atividades com
que me aposentar’. Aí a assistente social: ‘Não, senhora. Olha, minha filha, sua mãe precisa grupos de pescadores artesanais, feirantes, vendedores ambulantes, prostitutas, entre outros
contribuir pelo menos três anos para poder se aposentar’. Na época, era três anos, agora grupos excluídos. Vejamos os trabalhos realizados com as baianas do acarajé e nos terreiros
que é oito meses. Falei: ‘Mãe, e agora? A senhora não tem dinheiro, como é que a senhora de candomblé. Segundo o depoimento da coordenadora do PEP de Salvador:
vai se aposentar? Eu também não tenho para pagar, são três anos, faça a conta. Como é “O problema da baiana do acarajé é que, justamente, tem muita baiana velha, está
que a gente vai pagar isso? E a senhora precisa de uma assistência.” (Clarisse, presidente entendendo? Muitas baianas velhas que pensavam que podiam se aposentar só por já ser
da Associação das Baianas do Acarajé, Salvador, BA.) associada. Porque elas têm uma associação, né? Essa associação, elas pagam por mês; é
Como se depreende do depoimento, havia um problema e um mal-entendido: o não como o rural tem o sindicato, aí é a mesma coisa delas, elas já pensavam que, com o que
reconhecimento das baianas do acarajé como categoria de trabalhador artesanal, para sua pagavam à Federação, elas já podiam se aposentar.
inscrição como contribuinte individual, e a confusão entre o regime para os trabalhadores
Então, as baianas que estão chegando agora, essas novas é que estão tendo justamente um
urbanos, contributivo, e o regime para o segurado especial, para trabalhadores rurais, não-
novo conhecimento. Elas estão se despertando que a Previdência é uma coisa, a associação
contributivo ou não-bismarckiano. O problema foi solucionado com o reconhecimento da
é outra. Foi a mesma coisa das lavadeiras. A gente fez um trabalho aqui muito grande com
categoria das baianas do acarajé como trabalhadoras por conta própria e, portanto,
as lavadeiras de Abaeté. Então, elas tinham associação e pensavam que a associação já era
seguradas da Previdência Social na qualidade de contribuintes individuais, em 1998.
tudo. Porque elas fazem assim, eu não sei se o senhor já conhecia como é que o povo
O principal mal-entendido verificado na percepção das baianas do acarajé sobre a guarda documento: pega um saco, joga os documentos tudo dentro daquele saco, quando é
Previdência surgiu em torno da confusão entre os benefícios urbanos, contributivos e as no dia de vir para a Previdência, traz o saco, aí derruba assim aquele saco para procurar
aposentadorias rurais. Essa confusão revela as percepções sobre a Previdência como um toda aquela documentação.
direito desvinculado dos aportes. Como já mencionado no capítulo anterior, os
aposentados rurais enquadram-se em um sistema não-bismarckiano, em que o benefício É assim, agora elas estão se organizando; o Programa de Estabilidade Social está trabalhando
não está diretamente relacionado com as contribuições feitas pelos aposentados. O com este problema. O serviço social já vinha trabalhando nisso. É, o programa justamente está
financiamento do sistema provém de um imposto sobre a comercialização dos produtos despertando estas populações para como é que ela deve se proteger.” (Maria da Penha,
rurais e do extrativismo, além dos recursos do tesouro destinados a esse fim. Na opinião coordenadora do Programa de Educação Previdenciária, Salvador, BA.)
de Delgado, pela importância social desse gasto, ele teria de ser visto como uma despesa do A Previdência, por meio do Programa de Educação Previdenciária (PEP), realizou esforços
orçamento da Seguridade Social, em vez de impactar a despesa e conseqüentemente o para incorporar esses setores ao sistema. Uma das maiores dificuldades enfrentadas ao
déficit da Previdência (Delgado e Abrahão de Castro, 2003). trabalhar com esse grupo era como fazer para que essas mulheres, de renda modesta,
No sistema de aposentadorias rurais, os trabalhadores, para provar que se enquadram na conseguissem poupar o dinheiro necessário para realizar as contribuições que lhes dariam
categoria de trabalhador rural, em geral, filiam-se aos sindicatos de trabalhadores rurais, direito aos benefícios.
muitos destes criados para canalizar as demandas de aposentadoria. O fato de ser O Comitê de Educação Previdenciária de Salvador, BA, encontrou uma fórmula
praticamente uma regra ter de ser filiado a sindicatos de trabalhadores rurais leva os relativamente simples e criativa para que essas baianas conseguissem realizar suas
usuários desse serviço a imaginarem que, ao pagar o sindicato, estão pagando a Previdência. contribuições e, assim, ter direito aos benefícios. Por meio de diálogo, chegaram à
Na lógica das baianas, sua filiação à Confederação de Cultos Afro-brasileiros teria de ter o conclusão de que, se guardassem o equivalente a um acarajé por dia em um cofrinho, ao
mesmo significado que o pagamento dos trabalhadores rurais junto aos sindicatos. Essa final do mês teriam o dinheiro suficiente para realizar as contribuições previdenciárias. Essa
interpretação errônea levou uma parcela das baianas a criar uma associação independente poupança diária é interpretada pelas baianas do acarajé como uma “oferenda” nos códigos
da Federação, com o intuito de orientar suas sócias nas atividades além das questões do candomblé. Independentemente dessa interpretação cultural, a contribuição diária
religiosas. A criação de um movimento social pelo reconhecimento do direito à permite, no final do mês, pagar a prestação da Previdência.
aposentadoria é reveladora do valor atribuído à Previdência Social, e a Previdência soube A lógica de depositar um acarajé para a Previdência é entendida nos termos do sistema de
canalizar essa energia por meio das parcerias estabelecidas mediante o Programa de oferendas do candomblé. Ainda lembro quando, durante uma entrevista com um ogã, ele
Educação Previdenciária (PEP). ficou desorientado com a pergunta acerca da possibilidade de ter um Exu e não pedir nada
A Previdência Social, por meio do PEP, desenvolve diversas ações junto às populações 144 145 para ele. O pedido é a outra cara da oferenda, sem pedido não tem oferenda e sem
oferenda não tem Exu. Mas voltemos ao cofrinho da Previdência. significativo é que, uma vez satisfeitas as suas demandas iniciais, a organização continuou a
“Essa do cofrinho... a Previdência instituiu mesmo, institucionalizou a coisa. Porque elas existir e ampliou seu leque de ação a partir de outras demandas da categoria. Uma destas
gostaram, elas compraram aquele cofrinho de barro e botaram a marca da Previdência. demandas foi com a relação à descaracterização da comida tradicional por parte de ex-
Quando uma baiana vai se inscrever, ela dá o carnê da Previdência e dá o cofrinho. Esse baianas, convertidas a cultos evangélicos, que continuam a vender o tradicional bolinho
cofrinho até já deu um bocado de confusão, porque antes, o cofrinho, se botasse um real, rebatizado de bolinho de Jesus. O depoimento indica, ainda, como o reconhecimento do
dava para pagar a Previdência. Então, houve o aumento: ‘Agora vocês não botem mais um, direito à aposentadoria das baianas do acarajé impulsionou a luta dos pais-de-santo como
botem um e cinqüenta’. Elas protestavam: ‘Ah, mas não é possível! Daqui a pouco a gente ministros de ordem religiosa, com vistas à obtenção desse mesmo direito.
não sabe mais nem quanto é que vai botar nesse negócio!’ Mas aí nós começamos a fazer O reconhecimento do direito à aposentadoria para as baianas do acarajé foi um processo
esse trabalho, posteriormente... mais fácil comparado àquele dos pais e mães-de-santo, uma vez que as primeiras tiveram
reconhecida sua atividade de trabalhadoras artesanais, enquanto o reconhecimento do
Porque era assim, as baianas eram alinhadas ao Culto Afro. Era um só as baianas com a
benefício para os ebômins resultou no reconhecimento oficial do candomblé como religião.
Associação ao Culto afro. Posteriormente, eles se separaram, porque as baianas também
No caso das baianas, a demanda foi em torno da forma de classificar a atividade para serem
eram ligadas ao candomblé. Elas eram do candomblé. Hoje elas estão brigando justamente
consideradas contribuintes individuais. O reconhecimento dos ebômins como ministros de
para que não fique no candomblé, mas não seja da maneira como está hoje, porque hoje
ordem religiosa implicava o reconhecimento pleno do candomblé como religião, por parte
está todo mundo querendo ser baiana de acarajé, está entendendo? E elas não querem,
do Estado, inclusive no que tange ao direito à aposentadoria. As objeções do Estado eram
estão prevendo isso.
que as religiões afro-brasileiras não tinham uma doutrina, um corpo unificado de crenças.
Quando elas se desvincularam da associação, aí o que passou? Culto Afro só candomblé; e a Como assinalamos em nossa análise, a exigência de um corpus de crenças escrito ou uma
Associação das Baianas do Acarajé se separou. Aí, o que foi que aconteceu? Aconteceu um doutrina sistematizada entra em contradição com o fato de serem essas religiões iniciáticas,
problema também, já que o Culto Afro começou também a ter conhecimento da Previdência de tradição oral, em que o segredo tem um papel fundamental. Por outro lado, as diferentes
em nível de proteção social. Isso porquê? Porque elas não tinham despertado ainda, elas tradições bantos e iorubas criam um amplo leque que abarca orixás, Egum e inkices, que,
pensavam que, pagando a Associação, já podiam se aposentar. Aí começou a correr muita apesar da intercomunicabilidade, dificilmente poderiam ser homogeneizadas em um corpus
gente para o INSS para se aposentar pagando só a Associação, não pagava o INSS. Foi único. A solução encontrada pela Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro foi a criação de
quando verificou que não era possível, porque eles pagavam lá a Associação, o sindicato, e um código de ética. Um dos pontos desse código é a obrigação do período de preparação de
não estavam pagando a Previdência. Aí foi que começamos a fazer esse trabalho com o sete anos para o exercício do cargo de ebômim ou sacerdote. O código de ética está
pessoal do candomblé. Começamos a fazer também visitando, porque aqui são 4.850 construído como uma série de regras, em torno das quais existe o acordo entre as
terreiros na Bahia toda, né? federações reunidas na Federação Nacional e a explicitação de determinados pontos, como o
Nós começamos a fazer um trabalho com eles, principalmente com esse pessoal mais velho, sistema de cargos nas diferentes tradições. O registro dessas informações recebeu o nome de
mais antigo. Porque nos terreiros tem muita gente velha, muita gente que é pai-de-santo, Projeto de Reconhecimento da Resolução do Código de Ética Afro-brasileiro como Religião no Brasil.
mãe-de-santo, aqueles negócios todo de lá, aquela formalidade deles. Aí nós começamos a Depois de muitas reivindicações, no ano 2000, os pais e as mães-de-santo obtiveram o
fazer esse trabalho com eles, visitando a sede, vindo e fazendo mapas entre as palestras e reconhecimento do direito de se aposentarem como sacerdotes de cultos afro-brasileiros.
também nós chegamos pela Federação, porque eles têm a Federação, é um grupo local que “Em 1981, o ex-presidente da Federação de Cultos Afro-brasileiros requereu da Previdência
tem também um número muito grande de terreiros. Aqui na Bahia, em todo canto tem Social (na época era o INPS) a aposentadoria para titulares de terreiro e baianas
terreiro, aonde o senhor vai, vai ter terreiro de candomblé, muito, muito. vendedoras de acarajé. Daí foi dado o reconhecimento às baianas vendedoras de acarajé,
Foi quando a gente começou a fazer esse trabalho, e até hoje a gente ainda está nesse como trabalhadoras da parte artesanal. E foi indeferido o pedido dos titulares de terreiro
trabalho com eles. Eles encaminham para a gente orientar aqui, e fazemos também um por falta de dogma, segundo a legislação do INSS. Daí, fizemos um congresso. Desse
trabalho junto à Associação, que é no Pelourinho. Esses são os dois trabalhos. Agora, fora congresso, tiramos uns anais, averbamos esses anais no cartório e comprovamos para a
candomblé e as baianas, nós trabalhamos com os barraqueiros de praia, nós fizemos um Previdência Social que nós não tínhamos dogmas, tínhamos um código de ética.
trabalho na feira de São Joaquim... Olha aqui as baianas: as baianas são 3.500, viu? Estão Na nossa religião, há um código de ética. Daí, eles queriam saber, dentro desse código de
todas aqui. O Afro, 4.800; os barraqueiros, 780 barracas; e os ambulantes, 4.850 também.” ética, o que era um orixá, o que era ogã... Aí a gente passou, nesse código de ética, a falar
(Maria da Penha, coordenadora do PEP, Salvador, BA.) sobre a religião e falar da parte da iniciação até os sete anos, quando a pessoa se torna um
Este depoimento é relevante porque expõe as negociações em torno de estratégias que ebômim com a obrigação de sete anos e, a partir daí, passava a contribuir com a
permitissem a esses setores a realização das contribuições previdenciárias, como o Previdência como sacerdote.
cofrinho, que terminou por vincular o preço do acarajé às prestações da Previdência. Ele
Na época, Waldeck Ornélas era o Ministro [da Previdência]. Aí foi a estudo, como um bom
também apresenta o processo de mobilização social em torno de demandas previdenciárias
baiano, a pressão em cima dele direto... e aí concedeu, né? Deferiu-se o processo, e a mãe
e a criação de uma organização específica para canalizar as demandas das baianas. Um dado
146 147 Ditinha foi a primeira a aposentar. Depois da mãe Ditinha, já teve um bocado de senhoras
de idade que sempre caminhou na religião e conseguiu aposentadoria. Já tem um bocado área rural. Por outro lado, o reconhecimento tardio do direito dos pai e mães-de-santo à
de senhor aposentado; já tem também mães-de-santo que contribuíram com a Previdência e Previdência vem corroborar o preconceito que orientou um sistema previdenciário
já estão aposentadas.Temos também o aumento das pessoas, porque, no ano passado, foi elaborado a partir de parâmetros brancos, urbano-industriais e, por que não, católicos.
feita uma pesquisa, e nós já estávamos com dezoito mil pessoas contribuindo com a Essas mudanças políticas, como a inclusão das baianas do acarajé e dos pais-de-santo no
Previdência pelo código 19620/7; hoje cresceu. Nessa nova geração, nós temos 40% sistema previdenciário, são produto de lutas pelo reconhecimento. Essas lutas partem da
masculino, são 18 mil pessoas contribuindo já com a Previdência. O número é o código de tradição para a reivindicação de direitos ditos “modernos”. A estratégia das políticas de
identificação, que é 19620/7; esse é o código religioso. Na Previdência, eles vão passar a reconhecimento transcende uma política focal, tem o sentido de incorporar os diferentes
contribuir como contribuinte individual e, quando eles vão se aposentar, a FENACAB dá um grupos excluídos e favorece a tendência à universalização dos benefícios.
atestado religioso onde consta o tempo do exercício sacerdotal como ebômim.
Essas associações canalizaram as demandas desses movimentos sócio-religiosos e
Mais de setenta e sete anos de Previdência sem reconhecer os direitos dos sacerdotes dos engajaram-se na luta tanto pelo reconhecimento da diversidade religiosa como pelo direito
cultos afro-brasileiros. Até hoje ainda tem uns funcionários do INSS que dizem que não à aposentadoria. Tais fatos levaram esses movimentos a pleitear, de uma ou outra forma,
conhecem isso...” (Pai Ari, presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro, uma reformulação do conceito de cidadania para que contemple a diferença, transcenda o
Salvador, BA.) campo clássico dos direitos e deveres ao incorporar uma dimensão simbólica que inclua a
O direito à aposentadoria foi reconhecido oficialmente mediante um despacho da área diversidade cultural: o direito à diferença.
jurídica durante a gestão do então Ministro da Previdência e Assistência Social, o qual prevê O reconhecimento do povo do candomblé passa por seus expoentes mais idosos, uma vez
o direito dos ebômins de se enquadrarem na categoria de “ministro de confissão religiosa, que, nessa tradição oral, quando morrem os mais velhos, a perda para o grupo tem um
membro de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa” para os valor inestimável, pois uma parte do saber é perdida para sempre.
trâmites da aposentadoria. Esse despacho foi assinado em 21 de outubro de 2000. Para “E nós verificamos que aqui e em todas as casa de axé, em sua maioria... porque diferente
efetivar o trâmite, a Federação tem de emitir um certificado que ateste o exercício do das outras, de outras comunidades, nós valorizamos o nosso idoso. Eu não digo no caso dos
culto por mais de 14 anos. A aposentadoria para os pais e mães-de-santo levou ao índios, né? Tem um provérbio africano que diz assim: “Quando um idoso falece, é como se uma
reconhecimento de uma religião tradicional que, apesar da declaração de liberdade de biblioteca inteira se incendiasse”. É o nosso caso, cada mulher dessa que a gente perde, perde
cultos inscrita na Constituição de 1988, não era reconhecida pela Previdência e por outras muito, porque a nossa cultura é oral.Tem muita coisa escrita, muita produção, mas quais são
instituições do Estado. Encerremos esta sessão com o depoimento de Mãe Ditinha, as confiáveis? Quais não são? Não é verdade? Tem muita coisa que está escrita, mas nós
primeira mãe-de-santo a ser aposentada como Ebômim. Ela recorda o acontecimento com sabemos que a nossa cultura, a tradição nossa mesmo, é a cultura oral, aquilo que vai
as seguintes palavras: passando de pai para filho.” (Maria José, Terreiro de Mãe Menininha do Gantois, parceira
“Foi importante porque muita gente passou a acreditar mais nos dirigentes da Federação, do Programa de Estabilidade Social, Salvador, BA.)
vamos dizer assim, né? Porque até aí... hoje dizem que todo idoso tem direito a esse
benefício, mas eu não sabia, eu não sabia, tanto que eu procurei eu estava com sessenta e
poucos anos de idade e não sabia disso. E, através do candomblé, foi que eu vim a saber,
porque ele me convidou e tal, e que tava acontecendo isso e que já era realidade. Eu fui e
fiz. Daí foi um reboliço, foi televisão, tive uma semana de cama, era televisão, era jornal, era
isso, telefonema da Espanha, telefonema de outros países. Quer dizer, ‘propalou’. Aí foi um
benefício muito grande, porque nossa religião precisa de expansão, precisa porque já foi
muito, como é que se diz?... já foi muito discriminada. Então, uma coisa dessas veio levantar
mais um pouco o candomblé, e daí todo mundo agora se interessa, todo mundo quer, todo
mundo que estava fora tá voltando, tá entendendo? Porque já viram que é alguma coisa que
vale a pena, não só na parte religiosa, como também na parte material, porque aí é um
benefício material; e vamos em frente. Logo foi proclamada a religião que, até então, só era
preta, e isso beneficiou em tudo. Você vê que muita gente importante entrou, muita gente
importante ajudou, influenciou, e isso nos engrandeceu muito.” (Mãe Ditinha, aposentada,
70 anos, Salvador, BA.)
Em síntese, a análise das populações que participam do candomblé e são contempladas
pelos benefícios da Previdência permite assinalar, por um lado, as diferenças entre os
segurados especiais rurais e os segurados urbanos de baixa renda. No caso destes, a
Previdência aplica um sistema contributivo diferente da política previdenciária aplicada na
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Tem um provérbio africano que diz assim:
“Quando um idoso falece,
é como se uma biblioteca inteira
154 155 se incendiasse”.
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3 Maracatu Nação do Recife:
tradições afro-brasileiras e déficit
de política social na periferia das
metrópoles

A terceira etapa da pesquisa centrou-se na população negra das periferias


das cidades de grande porte. Em relação aos resultados obtidos nas duas
primeiras etapas, nos terreiros de candomblé, em Salvador, e nos quilombos
e na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em
Minas Gerais, considerou-se oportuna, de acordo com a coordenação da
pesquisa, a realização do terceiro trabalho de campo na cidade do Recife,
tendo como alvo a população que participa dos Maracatus-nação.
Assim como o Rio de Janeiro tem suas escolas de samba, Recife tem seus
maracatus. Os Maracatus-nação são de tradição afro-brasileira, e suas sedes
localizam-se na periferia da cidade, nos bairros populares, onde se
concentra a população negra da cidade. As representações em torno dessa
expressão cultural permitem compreender melhor certos aspectos da
tradição cultural africana, registrados nas etapas anteriores. As sedes dos
Maracatus-nação são instituições tradicionais que apresentam princípios de
organização social semelhantes aos observados nos terreiros de candomblé
e na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Por outro lado, ao comparar
as comunidades remanescentes de quilombos com as populações das
periferias das grandes cidades, destaca-se o déficit de políticas de
Previdência e Assistência Social no último grupo. Pela composição da
população e pela informalidade dos vínculos de trabalho, a população tem
menor cobertura previdenciária, e são poucos os que têm benefícios de
prestação continuada.

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O Maracatu-nação

Concentremo-nos no Maracatu-nação, também conhecido como maracatu de baque virado.


Esse maracatu é de tradição urbana, ancorado em elementos culturais afro-brasileiros de
tradição banto. O maracatu rural é um fenômeno mais recente, que traz manifestações do
interior do estado, da zona da mata e que tomou emprestados elementos do maracatu
tradicional. Diferenciam-se também no ritmo, daí a denominação baque virado para o
maracatu tradicional, e baque solto para o maracatu rural.
O Maracatu-nação é um fenômeno urbano, localizado geograficamente na zona norte do
Recife, em bairros com população majoritariamente negra. Neles, concentra-se a população
de baixa renda, grande parte com emprego informal ou desempregada. Esses bairros sofrem
problemas de saneamento, apresentam déficit de assistência e políticas sociais e baixo
índice de escolaridade. Existem ali altos índices de criminalidade, tráfico de drogas e óbitos
relacionados à violência. Com um pano de fundo católico, uma parte da população alinha-se
sob cultos afro-brasileiros, e outra porção dela converteu-se aos cultos protestantes. A
polaridade entre crentes e praticantes do Xangô e da Jurema orienta as relações sociais. Na
seção anterior, descrevemos diferentes variações do candomblé na Bahia, as quais servirão
de base para entender a variação Xangô-Nagô, nação predominante em Recife, e suas
vinculações com o Maracatu-nação.
Na introdução do livro Maracatus do Recife (Guerra Peixe, 1980), o editor e diretor
executivo da Fundação de Cultura da cidade do Recife realiza uma sintética descrição do
maracatu, uma definição, por extensão, de como se apresenta aos olhos de quem assiste ao
desfile de carnaval:
“O Maracatu é apenas um cortejo. Um cortejo de coroação, onde as figuras do Rei e da
Rainha destacam-se de todo o préstito: dois ou mais lampiões de carbureto, duas negras
trazendo as calungas (damas-do-paço), arqueiros, baliza, porta-estandarte (embaixador),
damas de frente, personagens da corte em dois cordões de baianas, soberanos (Rei e
Rainha) protegidos pela umbela, que é conduzida por um escravo, lanceiros e batuqueiros,
que vêm fechar o cortejo real.” (Guerra Peixe, 1980:4)
160 161
Guerra Peixe (1980) procura as origens do maracatu na instituição do Rei do Congo. Para contraste faz-se evidente ao comparar a pompa do cortejo do maracatu, apresentado como
o autor, o Rei do Congo, uma instituição implementada pela igreja, permitia – por meio da um ator coletivo, com os dançarinos de frevo, que, com suas sombrinhas, se emaranham em
influência dos reis consagrados pela igreja – um certo controle sobre as populações negras. um mar de individualidades.
Segundo ele, com a ajuda da igreja e de suas instituições, a ordem imperial conseguia As representações sociais sobre maracatu remontam à explicação sobre os tempos da
controlar as populações negras. Com o fim de tal instituição no século XIX, a coroação dos escravatura, na época do império, quando o direito elementar a uma boa morte estava
reis do Congo teria perdurado como auto-de-fé religioso. O maracatu seria uma mediado pelo pertencimento à Confraria de Nossa Senhora do Rosário. A igreja de Nossa
reminiscência desses autos-de-fé, dessa teatralização da coroação dos reis do Congo Senhora do Rosário de Olinda, uma das primeiras construídas pela Irmandade de Nossa
transformada em cortejo real, que se apresenta nos desfiles de carnaval. Guerra Peixe Senhora do Rosário dos Homens Pretos, tinha um conjunto composto pela igreja, o
(1980:35) levanta a hipótese de que o primeiro rei do Maracatu Elefante tenha sido um dos cemitério, a bica-de-água e outra casa destinada ao “Rei do Congo”. Esta habitação foi
últimos reis coroados pela igreja na instituição do Rei do Congo. vendida para restaurar o telhado da igreja, destruído por um raio na década de 1970.
O autor faz uma das descrições clássicas do maracatu e indica as relações desse “folguedo” “A primeira comunidade negra, foi aqui que eles fundaram, os negros alforriados, foi quando
com o Xangô do Recife ao analisar uma das figuras centrais do cortejo, a “dama-do-paço”, eles fizeram a Igreja do Rosário dos Homens Pretos, construíram a bica e aquele casarão
que carrega as calungas. Ele reconhece o significado religioso das bonecas e descreve a que tem na frente da igreja. E ali morava quem? Morava o Rei Nagô, que era do
dama-do-paço por analogia ao papel desempenhado pela mãe pequena nos terreiros do candomblé. O candomblé, que na época não podia participar da igreja, porque tinha a
Xangô. “As calungas – bonecas representam os antepassados e mestiços do cortejo”. eucaristia da igreja e tinha o santíssimo. É a única igreja do Brasil que tem alpendre. Você
(Guerra Peixe, 1980:45) viu aquele alpendre que tem lá na frente? O alpendre é feito um terraço. O alpendre era
Katarina Real (1990) compartilha o ponto de vista que relaciona os maracatus à instituição para quando chegava a solenidade na época de Xangô, do maracatu, tudo que fazia parte
do Rei do Congo, com a diferença de que, se para Guerra Peixe o maracatu era uma do candomblé não podia entrar pela porta da igreja por causa do santíssimo. Naquela
reminiscência, para ela é uma sobrevivência: época não podia. Aí o que eles faziam? Eles chegavam ali e, dali pra trás, eles se reuniam.”
“(...) temos ainda em Pernambuco sobreviventes das antigas “nações africanas”, cuja (Nilson Canuto de Santana, aposentado, presidente da Confraria de Nossa Senhora
manifestação carnavalesca é o “cortejo régio”, com reis e rainhas, denominado hoje de do Rosário dos Homens Pretos, Olinda, PE.)
“Maracatu”. No discurso dos participantes do maracatu: “o Rei do Congo era designado pela igreja e tinha
E o aspecto mais extraordinário desse cortejo régio tem sido sua grande estabilidade no como função evitar rebeliões entre a população negra. Depois da abolição da escravatura, o Rei do
tempo, isto é, durante muito mais de cem anos, o cortejo do Maracatu-Nação tem Congo deixou de existir e as diferentes nações puderam ter seus reis” (Shacon, Maracatu Nação
permanecido inteiramente “estável”, virtualmente sem modificação.” (Real, 1990:59) Porto Rico). No contexto do maracatu, “nação” tem de ser entendido como sinônimo de
candomblé. A nação está formada pelos que freqüentam a sede do maracatu e participam
A estabilidade pode ser observada na estrutura característica do Maracatu-nação. Ela é tanto do terreiro como dos esforços para a apresentação do carnaval.
descrita por cinco características assinaladas pela autora: a presença do Rei, da Rainha e da
sua corte; a presença das calungas ou bonecas; a composição da orquestra de Baque Virado, “Primeiro vocês têm que ficar bem conscientes de uma coisa: hoje, aqui em Pernambuco,
com vários bumbos ou zabumbas que fazem a polirritmia sem a presença de qualquer não são todos os maracatus que têm o conhecimento religioso. Preste atenção ao que vou
instrumento de sopro; a “preferência pelas pessoas de cor preta”; e a ligação mais ou dizer a vocês: vocês vão conhecer outros maracatus e vocês vão ver o que eu estou dizendo;
menos estreita com os cultos de Xangô de influência Nagô. que você, quando entra na casa, já sabe que o maracatu é aqui. Se entra naquela porta ali,
vocês vão ver os orixás; passou da outra porta, já vê o Xangô; sobe e vê o barracão, você já
Katarina Real (1990) assinala que a vida social nas sedes das nações está estreitamente
sabe que tá no maracatu! Você vai ver outros maracatus... você não vai ver nada disso,
associada aos “santos” (orixás), quer dizer, a atividades mais de cunho religioso do que
porque outros maracatus não tão seguindo a linha do candomblé, estão virando pop,
profano (op. cit, p. 68). Fora o carnaval, as principais apresentações do maracatu acontecem
levando pro lado pop, esquecendo a questão religiosa e trabalhando pra fazer turista, botar
em “toques” religiosos: “Reis”, em janeiro; São Jorge (Ogum), em abril; N.S. do Carmo
branco no samba, como eu chamo, e esquece a comunidade.
(Oxum), em julho; Cosme e Damião, em setembro; N. S. da Conceição (Iemanjá), em
dezembro; e em datas patrióticas como 13 de maio (abolição) e 15 de novembro, quando, Você chegou aqui em casa e viu o quê? O que você viu hoje, não é porque vocês vinham
segundo a autora, realizam toques especiais. não. Hoje tinha pouco, tem dia de eu ter quase 30 crianças aqui dentro, fora os adultos que
Verger (in Lüning, 2002) relaciona o maracatu às procissões da igreja portuguesa medieval. pagam pra eu ensinar. E é uma zoada, bicho, eu divido as turmas. Amanhã tem mais quinze,
Essas procissões religiosas barulhentas das irmandades, relatadas por diversos cronistas da hoje teve quinze, daqui a pouco tá cheio. Isso é maracatu; isso é a nação; isso sem falar na
época colonial, vieram refugiar-se no carnaval de rua. Para o autor, o maracatu, originário da questão religiosa. Hoje as pessoas dizem que nem você falou pra mim: o maracatu tem um
procissão religiosa dos reis do Congo, foi incorporado ao carnaval. pé no candomblé. Não é só um pé não. Maracatu é um culto todo do candomblé, todo.
Outro ponto assinalado por Bastide (1945) é o caráter coletivo do carnaval negro, em Pro maracatu sair, temos que arriar a obrigação pros santos, pro maracatu ir a outro lugar, ou
contraste com o caráter individualista do carnaval dos brancos. No carnaval do Recife, o pra qualquer outra coisa, os orixás têm que comer, a boneca tem que ser arriada. Nós temos
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a nossa boneca, Inês, que ela só sai duas vezes por ano, no carnaval: uma vez na coroação e Um rei e uma rainha negra, um negão no pai, príncipes e princesas, todo mundo negro. Isso
outra na passarela. Que ela é arriada perto de Xangô, perto de Iansã. Iansã é o iabalá da pra eles era engraçado, pra gente não era. Pra gente, a gente tava louvando um trabalho
minha mãe, que é a rainha do maracatu. Os únicos orixás coroados da seita foram Iansã e que já tinha feito lá atrás. Tão entendendo mais ou menos a base da coisa? É você gostar
Xangô. Então, existe essa relação que é direta e objetiva: maracatu, simplesmente, é um de consertar, é você ter que fabricar carro, mas tá proibido de fabricar carro. Mas você
candomblé disfarçado. Entendeu? Porque foi pra isso que o maracatu surgiu. fabrica o carro lá atrás e, na frente da casa, coloca um carro de mão e tenta colocar um
motor nele. Eu passo e acho engraçado: ‘olha, querendo colocar motor num carro de mão, tá
O maracatu, quando surgiu, quando existiam as nações que eram comandadas pelos Reis
ficando doido?’ Mentira, lá atrás o trabalho tá pronto, eu não tô vendo, mas tô achando
do Congo desde o século XVII, que não eram administradas pelos babalorixás e ialorixás,
engraçado o que estás fazendo. É mais ou menos essa a base, a intenção com que o
mas sim pelos Reis do Congo, por questões políticas...Tinha o Rei do Congo, que dominava
maracatu foi criado: disfarçar a questão religiosa do candomblé, porque tava perseguido.”
as nações, porque o Rei do Congo comia na mão de seus governantes, os governadores;
(Shacom, liderança do Maracatu Nação Porto Rico, bairro do Pina, Recife, PE.)
então, qualquer coisa, o escravo tava amarrado. Em 1889, foi que veio a questão religiosa,
que entregaram as suas nações aos seus babalorixás ou ialorixás, e que as nações podiam Na interpretação de lideranças de diferentes maracatus, essa foi a forma encontrada pelos
difundir e se espalhar. Hoje, tem Porto Rico, Elefante etc. Elas são comandadas por seus negros para cultuar seus orixás em procissão nas ruas da cidade. O rei costuma ser um
babalorixás. E hoje, o único maracatu que tem uma ialorixá comandando ele e uma rainha, babalorixá, e a rainha, uma ialorixá. Na interpretação dos participantes do Maracatu Nação
a única rainha coroada de Pernambuco, é aqui em Porto Rico. Porque minha mãe hoje é Porto Rico, eles representam Xangô e Iansã. As calungas, por sua vez, representam a rainha
ialorixá, é ebômim e foi coroada como rainha na igreja.” (Shacom, liderança do Maracatu e a princesa, que corresponderiam às orixás Iansã e Oxum. Como assinalado mais adiante, é
Nação Porto Rico, Bairro do Pina, Recife, PE.) bem possível que representem também o espírito dos antepassados. A explicação da
representação desses orixás em detrimento de outros tem uma resposta lógica dentro do
Em suas apresentações, o maracatu mimetiza-se na figura de uma corte européia, da época
candomblé: “esses são os únicos orixás que têm coroa”. Uma terceira calunga, presente no
do império. O cortejo é aberto pelo embaixador ou porta-bandeira, que leva o estandarte
Maracatu Nação Porto Rico, simboliza a pombagira, também conhecida como bruxa.
da nação. O estandarte, ricamente decorado, anuncia a chegada da corte real da nação. Ele é
seguido pelas damas-do-paço, que levam as calungas. O rei e a rainha, debaixo de um As calungas articulam maracatu e Xangô. No discurso dos entrevistados, elas são as
guarda-sol chamado pálio, símbolo do poder dos reis, são acompanhados por uma corte verdadeiras donas do candomblé. As calungas, como fetiche, representariam diferentes orixás
composta por duques e duquesas, soldados e diferentes tipos de baianas. A procissão e o Egum de mortos do terreiro. Em algumas das nações, elas relacionam-se também com o
encerra-se com o batuque, composto de caixas, agogô e um grande número de tambores, mundo dos espíritos por meio do culto da Jurema, no qual representam espíritos mestres.
também conhecidos como alfaias, que oscila entre vinte a sessenta. Como assinalamos anteriormente, existe uma forte ligação entre o Maracatu-nação e o
“Agora, dentro do Maracatu, nós temos... vou falar... as peças principais, que é as calungas, candomblé, a ponto de vários termos serem utilizados como sinônimos por muitos dos
a dama-de-paço, que segura a calunga. A calunga é a boneca. Nós temos o rei e a rainha, o entrevistados. Cada Maracatu-nação está fortemente ligado a um ou mais terreiros. O
escravo que segura o pálio, vassalo e vassala, príncipe e princesa, embaixador e embaixatriz, maracatu, para ser nação, tem de ter os fundamentos de um orixá, cuidar dos Egum dos
conde e condessa, imperador e imperatriz, a corte. Vêm as baianas de chitão, que podemos seus mortos, e a calunga tem de cumprir as obrigações com o santo.
chamar de serviçais, as baianas de branco, vêm as baianas ricas, que são as convidadas da O Xangô do Recife, freqüentemente, é associado à prática de umbanda e da Jurema. Essa
corte, que vêm com uma fantasia mais bonita. Temos o lanceiro, que são os soldados que mistura foi definida por uma informante da seguinte forma: “Em Recife, todo Xangô tem
ficam fora do reino. E temos os batuqueiros, esses são as peças principais, o abajur e o fumaça”. Manoel Papai, dono de um dos terreiros mais prestigiados da cidade, fez questão
soldado romano… de ressaltar que os orixás não falam, os que falam são os outros espíritos invocados na
Jurema. A fumaça faz referência a pombagiras, aos pretos velhos e aos espíritos dos mestres
Assim é questão de uma sátira; o maracatu é muito uma sátira. O maracatu foi criado pra
e das mestras. Os terreiros de Xangô, em suas distintas variações, possuem tambores
poder esconder a questão religiosa.Teve uma época que foi proibida a questão religiosa. O
diferentes dos atabaques. Nos terreiros que misturam Xangô e Jurema, o peji, onde se
candomblé foi perseguido, e então, nessa perseguição, o único meio que os escravos
encontra guardado o axé dos orixás, localiza-se à direita dos atabaques; à esquerda, está o
encontraram pra poder bater o seu tambor e cultivar os seus orixás foi criando alguma coisa
peji dedicado aos exus e aos espíritos dos mestres.
que os brancos, ao ver, não iam discriminar, iam achar engraçado e iam entrar na onda.
“Jurema é uma árvore, um pé de planta bonito, cheiroso, gostoso, mas bravo. Cada pé de
Então, foi aí que o maracatu apareceu. O maracatu não, tô colocando o nome maracatu árvore representa um mestre. No culto da Jurema, só entra mestres, caboclos, índios e,
agora, mas antes eram as nações. Essas nações resolveram usar os atabaques de baqueta; eventualmente, preto velho. No culto de orixás, só orixá. Embora as pessoas que jogam a
uns tocando em mãos, outros, de baqueta. Com o baque de maracatu, mas com a dança de pombagira como mestra... mas a pombagira está dentro do terreiro, porque ela é um exu
candomblé. As danças não mudam nada. O que eles louvavam no baque? Os orixás. Por angolano, mas é um exu. A Jurema nasceu só para cuidar desses espíritos de pessoas que
trás, todos os santos, orixás, estavam comendo; arriavam a obrigação para todos os orixás, eram curandeiros, índios, caboclos e que tinham o saber. Então ele morreu, e o espírito
todo mundo com a obrigação pronta.Todo mundo no xirê, mas os brancos nem se tocavam. voltou pra fazer caridade. É uma das coisas mais bonitas que eu conheço, fora o candomblé,
Por quê? O que eles viam? Uma negra de rainha. Pô, negra de rainha é foda, né bicho? que pra mim é a mais bonita mesmo. Eu vou ter no sábado uma festa de Jurema.
Imagina uma negra de rainha imitando a corte de Portugal, imitando a corte da Inglaterra. 166 167
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Existe uma árvore que é a própria Jurema. O culto nasce desse pé de planta, o culto aos
caboclos nasce desse pé de planta. Então, toda a casa de mestres tem que ter Jurema, tem
que cantar pra Jurema, tem o mestre Jurema. Tudo gira em torno dessa árvore.” (Manoel
Papai, Centro Cultural Afro Pai Adão, Recife, PE.)
No Xangô do Recife, o culto aos orixás e o culto à Jurema sobrepõem-se, agregando
sentidos de forma sintética, em um sincretismo de raiz africana. Por exemplo, as calungas,
que representam Iansã e Oxóssi e são a rainha e a princesa na clave dos orixás, têm um
outro sentido marcado pelo nome, associado a um dos espíritos do culto da Jurema. Cada
boneca representa, simultaneamente, os orixás e diferentes espíritos da jurema.
Segundo diversos depoimentos, assim como os iniciados no candomblé, as bonecas cumprem
suas obrigações e, antes do carnaval, devem guardar reparo, ou seja, permanecer no ronkó
durante um período que pode chegar a dois meses. No peji, as bonecas recebem sua comida
e sua bebida. Esses rituais são destinados a reforçar a calunga espiritualmente, para que possa
proteger o maracatu dos feitiços dos inimigos, dos terreiros de outros maracatus. Essas
bonecas podem ser de madeira ou de pano.
“Sim, de madeira, e são vestidas. Elas representam... elas têm um… eu não diria um fetiche.
Não posso reduzir a calunga a isso. É como se a calunga fosse uma espécie de símbolo,
também não posso dizer vestígio totêmico, é inapropriado. É um personagem, não vivo,
aonde se depositam os axés, quando se sacrifica, quando a gente dá de comer à cabeça.
Por exemplo, o Cambinda Estrela tem donos. Quais são os donos do Cambinda Estrela?
Xangô, Iansã e Oxum. Daí as suas cores, vermelho e amarelo. Quero deixar claro que isso é
uma ressignificação, quando ele foi surgindo, quando ele foi reinventado, ele não foi
inventado com tal proposta. Quem o fundou, não fundou com tais propostas. Mas,
atualmente, se diz que Cambinda Estrela é de Xangô, Iansã e Oxum, por causa de suas
cores, vermelho e amarelo, e pela predominância dos filhos-de-santo. Há muitos filhos-de-
santo de Xangô aqui em Pernambuco, por isso que o termo não é nem candomblé, é
Xangô. Candomblé é mais na Bahia, assim como no Maranhão é Casa de Minas, Tambor de
Minas, mais relacionado aos Axanti e tal. Mas, assim, a calunga, ela recebe o axé, o sangue.
O sangue do animal sacrificado chama-se axé. Então os axés são depositados na calunga. E
ela tem a função de proteger o grupo durante o carnaval. Ela também é um contra-egum,
um contra-feitiço. Ela corta as demandas que vêm de fora. Uma outra nação manda pra ela,
ela corta a demanda.” (Ivaldo de França, liderança do Maracatu Nação Cambinda Estrela,
bairro de Campina do Barreto, Recife, PE.)
“A calunga que recebe a obrigação e vai pra rua também. Ela sai sim com uma pessoa
indicada pra aquilo, com todo o regime, com todo o respeito. Aquela pessoa não bebe e não
fuma, porque aquela calunga está com obrigação. Então, a gente faz o serviço e tudo.
Aquela pessoa fica dois, três dias no salão com os orixás, que é pra poder ter competência
de pegar naquela calunga. E de tudinho, o principal e o importante é essa calunga. O
mestre não importa muito. O importante é eles dois. Não é a corte, nem a rainha, nem os
reis, não são as Catarina. O que importa são as bonecas. As calungas são o nosso pai, é a
apresentação da nossa religião.” (Jaciresse, rainha do Maracatu Cambinda Estrela).
Cada maracatu pode ser conhecido por sua calunga. A imagem simboliza os espíritos dos
antepassados e, com freqüência, carrega um romance que a liga à história da nação.
“No maracatu, o mais importante é a boneca; porque o maracatu pode estar muito bom,
mas se não tiver boneca não é maracatu. 170 171
Antigamente, na época da escravidão, os homens trabalhavam, e, na senzala, ficavam os
escravos velhos que já não tinham força para o trabalho. Lá na senzala, tinha a feiticeira,
que ficava fazendo as obrigações para os negros e cuidando da parte espiritual. Que
quando passou, que a preta Velha que ficava na senzala morreu, todo o mundo ficou doido,
parecia que todos os negros iam morrer.
Então, quando a velha Inês morreu, os negros tiraram a foto: pegaram um pano, molharam
em cera e colocaram no rosto da velha, nos lábios dela, nos olhos, em todo canto e depois
tiraram pra fazer uma boneca de madeira. Esse foi o molde a partir do qual fizeram a
boneca. E eu tenho ela, toda velha, bem velhinha. Ela é Inês, Dona Inês, era a dona da
senzala. Ela morreu, os negros endoidaram, mas riscaram tudo direitinho como era feito, e
fez aquela máscara, e fez a cópia, e fizeram de madeira.
Essa é a história da calunga. Essa bonequinha tá na minha mão, que vai de mão em mão.
Vai pra museu, sai, vai pra mão de quem pega, vai pra museu, e sai, e vai pra mão de quem
pega. Ela passou desse João Francisco do Itar pra José França, Pedro França. De Pedro
França, passou pra seu Eudes Chagas. Agora de Pedro França, já passou pra Clube Misto,
quando ele morreu, seu Eudes já pegou e juntou com Catarina Real e foram na beira do
mar encontrar o nascente do sol. Aí quando nasceu o sol, ele disse: em vez de Porto Rico, o
nome do Maracatu vai ser Maracatu Nação Porto Rico do Oriente.
A boneca simboliza a rainha e o rei. A boneca significa a legítima rainha, a segunda
boneca… uma é rainha, a outra é a princesa legítima, e a terceira é a pombagira.
Entendeu?” (Elda, Rainha do Maracatu Nação Porto Rico).
Como mostra essa narrativa, independentemente da veracidade dos fatos, o nome da
calunga sintetiza a vida da pessoa cujo axé está na boneca. No Maracatu Nação Porto Rico,
a calunga Inês representa uma antiga ialorixá, da época da escravidão. Segundo a narrativa
dessa nação, quando a velha Inês morreu, os escravos copiaram as feições do seu rosto com
um pano. Com o modelo, fizeram a calunga que está no maracatu até os dias de hoje. A
autenticidade desses fatos decorre mais da fé religiosa do que de qualquer registro
documental ou das especulações locais em torno da continuidade entre o antigo Maracatu
Nação Porto Rico do Sr. Eudes e o Maracatu Nação Porto Rico da rainha Elda. Lima (2005)
realiza uma revisão sobre as fontes clássicas e aponta diversas inconsistências e erros na
história dos maracatus.
Toda calunga tem um nome e uma história associada a ela. A calunga do Maracatu Estrela
Brilhante de Igarassu é Emília; as calungas do Maracatu Nação Gato Preto são Jupira e
Laurunda; as do Maracatu Estrela Brilhante são Joventina e Erundina. Ivanize de Xangô,
rainha do Maracatu Nação Encanto da Alegria, relata-nos a história de suas calungas, Dona
Brígida e Dona Alice.
“Minhas calungas tão lá dentro. Pega aquelas calungas… Não, o Sr. bebeu. Bebeu, não pega
nas minhas calungas. E minhas calungas comem… pegam obrigação. Os nomes das calungas:,
Dona Brígida, é a amarela; a outra é Dona Alice. Alice era uma ialorixá que já se foi, Alice
Novais. E aqui é Sabrina Brígida, é uma ialorixá muito falada lá no Morro do Pascoal e ela é
muito minha amiga; então, ela deu o nome a essa. E essa de Iansã é Dona Alice, Dona Alice
Novais que era mãe-de-santo do rei do maracatu.” (Ivanize de Xangô, rainha do Maracatu
Nação Encanto da Alegria, bairro de Bomba do Hemetério, Recife, PE.)

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A festa da calunga

Uma vez por ano, realiza-se a festa da calunga. No dia de


nossa visita ao Maracatu Nação Porto Rico, presenciamos a
festa da calunga Princesa Isabel. O início da cerimônia é
similar às festas de candomblé. As pessoas vão chegando e
concentrando-se no barracão onde já estão soando os
atabaques nas mãos de ogãs do terreiro. São os mesmos
jovens que participam do maracatu. O segmento do
candomblé a que pertence o terreiro, assim como a nação
Keto, toca os atabaques com baquetas, quando a batida é
para o orixá. Um dos detalhes que chama a atenção é o
fato de os atabaques serem tocados com as mãos. No
centro do salão, as iaôs dançam em um círculo, em sentido
anti-horário. Quando chegam as ialorixás, principalmente as
de maior idade, sentam-se em cadeiras mais confortáveis e
recebem o pedido da benção por parte dos mais jovens e
de menor hierarquia. Aos poucos, somam-se à roda no
centro do terreiro, onde continuam participando de um
sistema no qual as saudações e as “benzas” refletem as
hierarquias do terreiro.
Dona Elda, ialorixá do terreiro, sai da dança e, com um
movimento de cumplicidade e escusa, mostra o joelho
esquerdo inflamado. Não posso deixar de lembrar o joelho
da calunga Dona Inês, detalhadamente deformado.Volta para
a roda. Os tambores soam mais freneticamente. Iaôs e
ialorixás começam a encarnar os espíritos. As posições das
mãos, espasmos, movimentos marcados são sinais do estado
de transe. Aos poucos, as pessoas em estado de transe são
levadas pelas ekedes ao quarto onde serão vestidas e 178 179
enfeitadas. Um tempo depois, sai do quarto um jovem, vestido de pombagira; seus
movimentos parecem os de uma cigana. Dança no meio do salão, implica com um ou outro
homem. Participa de uma troca de cantos e provocações com o ogã que toca o atabaque. A
cigana bebe vinho tinto e fuma um charuto, fala com um e outro, dança e torna-se centro das
atenções por mais de uma hora. O público canta e bate palmas. Finalmente, a cigana retira-se.
Continua o som dos atabaques, alguns participantes dançam, com passos do candomblé/
maracatu, em uma pequena roda no centro do salão, que gira em sentido anti-horário.
Depois de uma longa espera, a porta da câmara volta a ser aberta e surge a Princesa Isabel,
encarnada em Dona Elda. Sua vestimenta, rosa choque e coberta de brilhos, é igual à da
calunga da Princesa Isabel. Apresenta-se e realiza uma evolução com cada um dos homens
do maracatu, que se inicia com o ogã de cargo mais alto na casa, passa pelos batuqueiros
até chegar às pessoas da comunidade. O movimento é repetido com cada um deles. Inicia-
se segurando a mão direita, dão-se alguns passos, e a dança termina com a Princesa Isabel
deixando-se cair sobre o braço esquerdo que segura seu corpo. O público canta e
acompanha o ritmo com palmas. Depois de terminar as saudações e realizar uma evolução
com cada um dos homens integrantes do maracatu, a princesa dança, dá alguns passos,
sozinha, no meio do salão e vai sentar-se em uma cadeira especialmente colocada, contra a
parede, localizada à esquerda dos atabaques.
Em continuação, saem da câmara as mulheres que encarnaram os “espíritos dos mestres”.
Cada uma dessas cinco mulheres, com seus vestidos de tons brilhantes, avança pelo salão,
fumando e com uma taça de vinho na mão. Cada uma delas é seguida por seu cambono, que
acende os cigarros, junta a cinza e mantém a taça cheia. Elas saúdam os presentes e dirigem-se
a suas cadeiras, colocadas à esquerda da princesa. Nesse momento, os participantes da festa
aproximam-se, conversam com os espíritos encarnados, pedem conselhos para seus
problemas, realizam consultas, conversam com essas entidades que soltam fumaça. À diferença
do candomblé, no qual os orixás mantêm uma certa distância e não se comunicam, a não ser
por meio dos ebômins, nesses cultos, como na Jurema, prevalece uma interação direta com as
entidades, colocadas em um plano além do bem e do mal. Essas entidades implicam com os
presentes; como pombagira, são sedutoras; como exus, abrem e fecham os caminhos. Mais
tarde, o ritual é encerrado ao som dos tambores do maracatu.
A forte ligação entre o maracatu e o Xangô e a Jurema, simbolizada pela calunga, cria um
pano de fundo cultural compartilhado entre os membros do maracatu e amplos setores da
população desses bairros populares. Esta parcela da população é fortemente discriminada
pelos “crentes”. A religião aparece como um dos fatores culturais que tem um papel
significativo na construção da identidade desses grupos.
“O Maracatu Nação Cambinda Estrela tem esse trabalho social e ele tem esse discurso
político muito forte. Então, por exemplo, à medida que nós colocamos o maracatu na rua,
nós colocamos em discussão a questão da liberdade religiosa. Nós contextualizamos ao
público que nós somos praticantes de Xangô e da Jurema e, como tal, não temos vergonha
disso; pelo contrário, isso faz parte da nossa identidade.” (Ivaldo de França, liderança do
Maracatu Nação Cambinda Estrela, bairro de Campina do Barreto, Recife, PE).
A defesa das crenças, frente às pressões de facções intolerantes da população, transformam
os maracatus em uma instituição de resistência, que fornece uma estrutura para a
organização desta parcela discriminada da população.

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As sedes dos maracatus
e a população da periferia

Na atualidade, o maracatu tem sua mais importante apresentação no


carnaval da cidade do Recife. Os diferentes maracatus apresentam-se
durante os três dias de folia, desfilam na passarela e participam do
concurso que indicará a agremiação campeã. O carnaval, como
acontecimento extraordinário, vem coroar os esforços realizados nas
sedes durante todo o ano para a apresentação na passarela.
Na sede do maracatu, ocorrem a confecção das fantasias exibidas pela
corte real, os ensaios gerais – realizados poucos dias antes do desfile – e
os ensaios dos batuqueiros, intensificados nos meses que antecedem ao
carnaval. Na sede, freqüentemente, funciona também um terreiro de Xangô
e/ou Jurema.
A sede do maracatu, muitas vezes, funciona na casa do “dono” do
maracatu, que pode ser a rainha, o presidente, o diretor ou a pessoa que
organiza as atividades da agremiação. O ideal, para alguns dos entrevistados,
seria que cada maracatu funcionasse em uma casa própria em seu bairro.
Nos maracatus visitados, os barracões funcionam na casa de quem os
organiza. Em algumas ocasiões, o terreiro, construído junto a casa, serve de
lugar de ensaio. Quando não dispõem de terreiro e funcionam na casa do
organizador, a alternativa é organizar o batuque na rua.
As ruas da periferia, visitadas durante o trabalho de campo, contrastam
com o resto da cidade pelo escasso número de carros e pela grande
quantidade de pedestres: pessoas sentadas na calçada, nas mesas dos
botecos, ou simplesmente paradas às portas das casas, conversando e
tomando um ar fresco ao final do dia. As crianças brincam na rua, jogam
bola, mas, quando o baque do maracatu começa a soar, aglomeram-se para
brincar e dançar. Muitos dos maracatus oferecem aulas de percussão para
as crianças do bairro. Em outros, como no Maracatu Nação Cambinda
Estrela, para estar no batuque os jovens têm de freqüentar a escola. 186 187
Devido aos altos índices de analfabetismo no bairro, a agremiação abriu uma sala onde são dessas populações. Os equipamentos culturais resumem-se a algum campinho de futebol
oferecidos cursos de alfabetização, com o fim de viabilizar a inserção dos meninos no sem gramado e empoeirado, colégios de primeira série mal equipados e superlotados e um
sistema de ensino oficial. No Maracatu Nação Encanto da Alegria, a sala da casa que era centro cultural em um dos bairros. A principal política cultural a contemplar esses grupos é
utilizada como terreiro foi cedida à escola do bairro, que teve sua capacidade esgotada pelo o patrocínio para o desfile de carnaval. Os maracatus, com a mobilização em torno das
excesso de alunos e optou por usar o local como sala de aula.
A sede do maracatu, como instituição, articula diferentes famílias do bairro que participam
dona célia, cor sedes, ora por motivos religiosos, ora musicais, orientam as relações sociais, apresentam-se
como o núcleo de uma rede de interações sociais das quais participam as pessoas do
da apresentação e do terreiro. Na preparação do carnaval, a rainha e o carnavalesco bairro. As lideranças dos Maracatus-nação visitados durante o trabalho de campo têm
trabalham intensamente durante o ano todo. Elaboram as fantasias a serem confeccionadas consciência do lugar que ocupam e associam o maracatu a um trabalho social informal.
e os estandartes. Faltando seis meses para o carnaval, o pessoal do batuque faz ensaios “O trabalho social é o seguinte: aqui, a semana todinha, e esses meninos não saem daqui de
semanais para coordenar o ritmo dos tambores. A maior parte dos batuqueiros é iniciada casa. Uns vêm almoçar, outros vêm tomar café, vêm passar o dia trabalhando, fazendo
no Xangô; alguns deles são ogãs no terreiro da sede. Perguntamos se a corte, as baianas e compras, passar o dia desmanchando e montando de novo. Final de semana, é ensaio, como
os outros integrantes do maracatu não precisavam ensaiar. A resposta foi, em diversas você viu. Então, aqui em casa, a minha mãe tá sempre coberta de pessoas. Isso, eles
ocasiões, um não com mistura de assombro e ingenuidade. “Pra que, se os passos são os confeccionam os instrumentos; lá em cima, o pessoal costura, corta, pinta. Enfim, é trabalho
mesmos que os do terreiro?” o ano todo. Aí eu pergunto: sabe qual o custo que a gente tem? Nenhum. A gente não tem
Nos meses que antecedem a apresentação, realizam-se coletas no bairro e pleiteiam-se ajuda de custo de ninguém, de ninguém. É uma sai daqui, pega tanto, bota aqui, outro pega
recursos junto à prefeitura e à comissão carnavalesca para intensificar os preparativos. São tanto, bota aqui. E começa a construção, aí pára porque não deu pra terminar, e amanhã
tiradas as medidas dos participantes do desfile e são confeccionadas as roupas, o bairro se pega um dinheirinho, volta de novo e termina. Não tem ajuda de ninguém. Por isso que eu
mobiliza em torno do maracatu. Realizam-se coletas para comprar os tecidos, disputam-se falo, o trabalho que nós fazemos é legal porque a gente consegue que as pessoas tenham
as vagas para participar da confecção das roupas, o que significa também um emprego conhecimento das dificuldades e trabalhamos para supera-las.” (Shacom, liderança do
temporário. Depois da apresentação, os batuqueiros receberão noventa reais, trinta por Maracatu Nação Porto Rico, bairro do Pina, Recife, PE.)
cada dia de apresentação, e o porta-estandarte receberá cinqüenta reais. Um modesto Como assinalamos anteriormente, as sedes dos maracatus funcionam nos bairros pobres,
pagamento em reconhecimento do esforço. As pessoas não participam do maracatu por sobretudo na periferia do Recife Norte. No bairro de Chão de Estrelas, em companhia da
causa do dinheiro. A participação no maracatu gera um sentimento de pertencimento a um liderança do maracatu, procuramos localizar beneficiários da Previdência. A população do
coletivo, de participar de um grupo social que compartilha tradições, sentimentos comuns e bairro é, em sua maior parte, composta por jovens desempregados ou que trabalham na
religiosidade. Esse sentido de pertencimento serve de base para a realização de diversos informalidade. O alto índice de óbitos traduz-se no comentário: “este ano perdemos só dois
trabalhos sociais nestes bairros da região norte do Recife, bairros da periferia que batuqueiros. No ano passado, foram quatro batuqueiros mortos. Usam o campo de futebol como
apresentam um marcado déficit social. lugar de desova para deixar os corpos”. São poucos os velhos no bairro, e os que possuem
“O meu interesse era o de não fazer mais um maracatu para desfilar, para ir às ruas. Não me benefícios são menos ainda.
interessava mais um maracatu para desfilar no carnaval. Meu interesse era criar um que Os benefícios da Previdência são chamados de “Instituto”, uma abreviação do antigo
servisse de instrumento de luta política, pra desenvolver socialmente a comunidade, que é Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). A aposentadoria ou a pensão vitalícia dá
muito carente. Aqui nós temos muitos assassinatos. Muitos garotos que eu ensinei a bater uma posição de destaque aos beneficiários; eles são poucos e recebem dinheiro todo mês.
maracatu foram assassinados, já morreram; muitos desfilantes já morreram. Perdemos Em muitos casos, são a única renda fixa do núcleo familiar. Entre os aposentados
bordadeiros, perdemos muitas pessoas que detinham o conhecimento de muitos modos de entrevistados no bairro, podemos mencionar a Dona Célia, do Maracatu Nação Cambinda
fazer, muitos ofícios. Enfim, a minha intenção, em particular, era fazer um maracatu, mas um Estrela, que recebe uma aposentadoria por invalidez.
maracatu não pra desfilar apenas. Então, eu dizia pra mim mesmo: ‘é preciso pôr este
“Eu tenho 65. A aposentadoria eu recebo por doença, né? Porque eu lavava pra fora, eu sou
maracatu para desenvolver socialmente a comunidade’. Mas havia outros interesses em jogo,
doméstica; aí peguei uma doença, e a moça teve pena de mim. Aí chegou e me aposentou,
como existem até hoje. Eu não sei quais eram os interesses de Pai Gerivaldo, ou de Pai
me levou para o médico, e lá ele me aposentou. Tá fazendo seis anos. Agora o dinheiro aí é
Marivaldo, ou de Pai Washington, ou de Mãe Telinha, ou de Pai Valdemir, não sei. O Cambinda
pouco, mas dá pra remediar. Dá pra quebrar o galho. Aqui na casa tem quase doze pessoas,
Estrela se identifica bastante com as lutas sociais da comunidade. Ele tem uma sala de
é tudo filho, neto... Essa daqui é minha neta, também sai no maracatu. Tenho quatro filhas e
alfabetização, tem um curso de batuque, de ensinar percussão aos garotos daqui. Ele tem esse
dois homens, e o resto tudo tem neto e bisneto. Mora tudo agarrado comigo, meus netos
trabalho social e ele tem esse discurso político muito forte.” (Ivaldo de França, liderança do
tudinho. Minha neta, eu tenho essa daí, tenho Cíntia, tenho Marineide, tenho, no total, uns
Maracatu Nação Cambinda Estrela, bairro de Campina do Barreto, Recife, PE.)
cinco aqui dentro de casa. Agora só aí que a vida é muito dura, estão todos sem emprego.
A cidade do Recife, segmentada etnicamente e ordenada hierarquicamente como tantas Só quem junta sou eu. Tem um que... esse que faz o maracatu como porta-estandarte, que
outras cidades, apresenta um elevado déficit social nos bairros da periferia. São localidades puxa carroça, apanha papel. Mas assim Deus vai dando a sorte pra eu viver, né?
onde as políticas sociais têm dificuldade de chegar, muitas vezes por falta de identificação de
parceiros, outras vezes por desinteresse ou, simplesmente, por não enxergar a problemática 188 189
O dinheiro, quando chega, já é a conta O depoimento continua e descreve as condições nas quais vive a família que depende do
de pagar a venda que eu compro. É a dinheiro do benefício para sobreviver. As rendas dos outros membros da família são
venda que eu compro... que o senhor escassas e esporádicas. O salário mínimo que recebe a título de aposentadoria é o dinheiro
sabe, né? Muita gente aqui pra gente com o qual mantém a casa onde moram doze pessoas, entre filhos e netos. Graças ao
comprar e comer... não dá pra nada. “Instituto”, ela tem crédito no comércio local. O único membro da família com trabalho
Não compro nem um chinelo, eu só “fixo” é o filho mais velho. Ele coleta papelão com um carrinho de mão. Também participa
faço pagar a barraca que compro. É, do maracatu e brilha como porta-estandarte, anunciando a passagem da corte real.
ele, o rapaz ali me vende. ‘Não passe Depois de percorrer o bairro, encontramos outro beneficiário. Esse outro caso é o de
fome não, que a senhora tá na idade. “Pequeno”, como é apelidado Ronaldo Teixeira Nascimento, de 16 anos. Ele tem problemas
E eu sei que a senhora é uma criatura de saúde e ficou incapacitado. Segundo a mãe, teve problemas no “baço” e teve de receber
boa.’ Mas, eu tenho que pagar com o tratamento no hospital, “cuspia sangue”. Hoje, com um benefício previdenciário, é “o
instituto na mão.Tenho crédito porque homem da casa” e sustenta a mãe e os cinco irmãos desempregados.
eu tenho uns trocadinhos, porque, se
Outro benefício que deveria ser encontrado entre essas populações é o benefício
eu não tivesse, eu acho que eles não
assistencial da LOAS; para enquadrar-se nela, como já mencionado, é necessário ter no
ficavam assim, né?” (Dona Célia, 65
mínimo 65 anos e comprovar uma renda por pessoa (cônjuge e dependentes menores de
anos, aposentada por invalidez,
21 anos) inferior a um quarto do salário mínimo. Não são poucas as pessoas que poderiam
Chão de Estrelas, Recife, PE.)
enquadrar-se nesse perfil, mas muitas delas não têm informações e não sabem como
Nesse contexto de subemprego e efetivar seus direitos. Na Gerência do INSS do Recife, os dados são agrupados por agências.
informalidade, poucos têm acesso ao Para a região norte do Recife, as informações podem ser consultadas a partir da Agência de
sistema previdenciário. Dona Célia obteve Casa Forte, um bairro de classe média, com algumas antigas residências senhoriais, o que
o benefício, quando trabalhava como dificulta desagregar os dados para os bairros de Chão de Estrelas, Alto José do Pinho ou
empregada doméstica, lavando roupa, Beberibe.
possivelmente sem carteira de trabalho A análise quantitativa indica que a população negra socialmente desprotegida é aquela que
assinada. A aposentadoria não é vista trabalha na construção civil e no serviço doméstico, sem carteira de trabalho assinada. Essas
como um direito, como se depreende pessoas, assim como muitas que trabalham com carteira, moram nesses populosos bairros da
deste depoimento: “peguei uma doença, e a periferia. As agências da Previdência ficam no centro e, freqüentemente, estão congestionadas.
moça teve pena de mim. Aí chegou e me Para essa população, enfrentar as agências implica gastos com transporte, tempo de
aposentou, me levou para o médico, e lá ele deslocamento e filas intermináveis, o que desestimula a procura pelos serviços. Levar os
me aposentou”. O “Instituto”, antes de ser serviços até os usuários, de forma análoga à parceria entre o PREVmóvel e os sindicatos de
um direito concedido pela Previdência trabalhadores rurais, pode ser uma estratégia para desafogar o atendimento nas agências.
Social, é visto como o produto de uma Neste caso, os maracatus ou outras instituições tradicionais que realizam algum tipo de
mediação, graças a uma relação de trabalho social podem ser parceiros potenciais nessa estratégia. Os maracatus poderiam ser
dependência. A aposentadoria, pensada parceiros do Programa de Educação Previdenciária ou de outros programas de seguridade
originalmente para trabalhadores brancos social. As sedes, que tradicionalmente funcionam de portas abertas para a comunidade, tornar-
urbanos, não oferece cobertura para se-iam excelente estrutura para a implementação de ações dirigidas à população das
importantes setores das periferias das periferias, pobre, negra e excluída das redes de proteção social.
metrópoles, excluídos do sistema
No fechamento deste capítulo, trazemos para o leitor um dos depoimentos mais
previdenciário.
190 191 significativos e emotivos deste trabalho. Ele foi colhido no final do estudo de campo. Era
noite em Olinda, fotógrafo e antropólogo, andávamos pelas ladeiras da cidade, quando
cruzamos com uma velhinha vestida de branco e com uma rosa vermelha nas mãos. Fomos
ao seu encontro, e a amável senhora relatou a história que agora reproduzimos.
Curiosamente, foi o único depoimento a falar da escravatura e reflete a vida dela, bem
como a memória de tantos brasileiros negros. Talvez, pelo inesperado do encontro, por sua
crua representatividade – ela poderia ser a avó de muitos dos entrevistados – é o único
depoimento que não traz o nome do seu autor, que apelidamos, carinhosa e
simbolicamente, de “a velhinha da rosa”:
“Minha mãe morreu com 95. Eles foram escravos mesmo. Ele, quando ele chegou aqui em
Recife, Olinda era construída, e Pernambuco tava construindo ainda.Tinha muita coisa. Ele,
que eu não sei muito explicar direito, porque ele dizia coisa pouca pra gente, né? Mas aí,
quando ele veio pra aqui, o Recife tava começando. Ele veio vendido por 4 pães de açúcar,
por tábuas de pão de açúcar, e ele chegou aqui em Recife com 14 anos. Aí ele foi trabalhar
na casa dos brancos; chamavam-se “os brancos”. Ele passou muito tempo trabalhando,
levando as moças. Ele só levava no cabriolé e voltava no cabriolé. Cabriolé hoje não é mais
cabriolé, é carro-de-boi. No cabriolé, ficava as moças na frente e aquele carro atrás, e ele ia
levar e ia buscar. Ele tinha muito cuidado, ele trabalhava pra isso, vivia nessa luta, nessa vida.
Ele nem fumava, nem bebia. Depois, quando foram libertos os escravos, ele ficou com
aquela liberdade; mas é que nós não conhecia nada da família dele, nem pai, nem mãe,
nem irmão, nem ninguém. Todos da família de meu pai morreu na forca. Minha avó por
parte de pai morreu na forca, o pai de meu pai morreu também na forca, os dois irmão
meus assim, acabaram com eles lá, porque realmente minha mãe casou-se nunca
conhecendo ninguém.
Minha mãe era morena forte, ela era Angola, era de Angola. Minha mãe era Angola, e minha
avó também era Angola misturada com caboclo. Agora, só meu pai que era africano puro,
puro, puro. Ele tinha a orelha assim por dentro, ele era todo marcado de corrente, marcado
das cinturãozada que ele levava, porque ele apanhava muito pra aprender, porque se ele
fugisse, aí era fácil pra pegarem. Os irmãos dele, acabaram com eles, irmão, pai, família,
tudo; só quem se salvou foi ele. Aí quando ele chegou aqui em Pernambuco, novo, começou a
trabalhar. Quando foram libertos os escravo, aí ele ficou liberto e foi trabalhar nos engenho
de cana. Ficou lá na agricultura, trabalhando na agricultura. Foi quando a minha mãe
conheceu ele, muito novo, assim com seus 30 anos, em Macaparana. Naquela época em
que Antônio Severino era Lampião. Já ouviu falar?
É, naquela época... A minha mãe é de Macaparana. É onde vivia Lampião, Maria Bonita,
esse povo todo fazendo aquele desate... meu pai chegou até o conhecer. É, quando
acabaram com o povo de Lampião, Maria Bonita, esse povo também todo, aí foi quando a
minha mãe veio com meu pai, casou-se, e foram viver em Pernambuco.
Meu pai contava que os escravos apanhava muito, pilava muito café, era assim muito Agora... eu sou uma pessoa assim... que eu acho que eu tô velha já; não agüento mais
malvado, não tinha liberdade na vida, não podia vestir roupa, eram aquelas tangas. Agora, decorar algumas coisas, mas eu gosto muito de ler e, às vezes, não entendo um pouquinho,
tinha o cafezal que eles faziam, e tinha o cafezal pra eles morarem, e tinha a seita dele assim de longe, daqueles pensamentos de meu pai. Eu acho que se ele tivesse vivo, ele era
africana que, realmente, hoje aqui é o baque, e lá não era assim. Ele dizia assim: que fazia uma pessoa de muito retorno do meu lado, porque ele me queria muito bem, porque eu era
aquela fogueira, aí juntava aqueles negros, com aquela meia roupa, aquela sunga, aí fazia uma das filhas que era mais ao lado dele, sobre a seita.
aquela roda, pegava as caça que hoje fazem um despacho. Aqui no Xangô faz despacho,
Então eu sou uma pessoa que admiro demais, que tenho aquele amor... Eu sou uma pessoa
pega, bota, pega galinha, mata, corta, vai faz aquele... Lá não. Eles abriam, cortava e botava
vidente, ouço, escuto, vejo, entendeu? É, já é um dom de meus pais, meus africanos. Só tem
na fogueira. Ali eles destrinchavam, comia aquilo assim, só fazia mesmo tirar assim tudo,
uma coisa comigo que eu adoro e não pode faltar, é reza. Eu rezo muito, eu rezo muito. Já é
porque os antepassados, a falange dos africanos, eram diferentes, não é como agora. Agora
como da família de meus pais, porque meus pais eram assim. Meus pais, eles rezavam
é baque, aí, quando eu tô vestida da África, quando eu tô vestida com as roupas de santo,
muito, era muita gente pra rezar e era muita coisa, muita oração, muitas coisas boas... Eu,
quando eu tô cheia das minhas pulseiras, das minhas jóias, eu sou uma africana. É como
como era menina, tenho que decorar. Mas depois da minha idade, que eu fui crescendo, aí
meu pai dizia: ‘a minha filha vai puxar a mim’, e realmente gosto demais da seita. Me visto,
fui entendendo, fui chegando assim, fui chegando lá, fui olhando, aí fui chegando de
já tirei vários retratos assim na Federação, porque realmente eu tenho cisma de... eu tenho
pouquinho. Chegou, mas chegou de pouquinho, porque, realmente, da minha família todinha,
dom de ser mesmo como sou. Então, meus filhos ficam assim: ‘mas minha mãe, a senhora tá
dos meus filhos, só quem vive da seita sou eu, e sei que amo demais e não saio nunca...
velha, vamos parar com isso’.
Porque meu pai morreu e nunca foi outra coisa a não ser da seita; agora, só que ele tava
Porque isso aí, dizem assim, ‘é feitiçaria’, mas não é não. Isso aí é um retumbo africano, é muito velhinho... velhinho, velhinho. Ele cortava a língua, hoje não corta língua, mas ele
uma coisa, é uma história, é um histórico que a gente tem que ser como era. A minha cortava. Eu posso cortar a língua assim, se eu tiver com uma entidade africana. Cortar a
religião é assim, é um histórico dos africanos. Agora, essa turma de agora que não conhece... língua assim, o invisível, quando volta, quando chega e empolga, aquela admiração que
Aí fica debochando, dizendo ‘é feiticeiro’, mas não é não, é uma coisa assim daquela época chega na pessoa, a pessoa corta a língua, fala diferente, como língua de estrangeiro. Eu não
dos negros. É aquela coisa, da época dos negros, como eles faziam, como os negros corto, mas meu pai cortava, porque ele era estrangeiro; ninguém dizia que era. Mas, meu
dançavam, como brincavam, como os negros davam aquela obrigação. Antigamente não era Deus, eu fico com aquela saudade... Eu tenho pra mim que meu pai não é morto, é vivo e
assim, e meu pai era um deles, meu pai, meu avô por parte de pai, a minha avó por parte junto de mim. Então é assim.Você gostou demais?” (A velhinha da Rosa, Olinda, PE.)
de mãe. Só que eram muito judiados, porque eram escravos e nada podiam fazer.

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196 197
4 Temas
cruzados:
tradições afro-brasileiras e
Previdência Social

O princípio que orientou a pesquisa foi o da tradição cultural como resistência e como forma
de organização social. A negritude não pode ser reduzida à cor da pele, nem a política social
pode ser pensada como se pensava a modernidade antigamente, inscrita sobre uma tábula
rasa. O desafio é formular uma política que tenda à universalização dos benefícios e
contemple a diversidade das tradições culturais. Observamos a presença ativa dos
aposentados nas diversas instituições: aposentados rurais nas comunidades remanescentes de
quilombos, aposentados como ministros de ordem religiosa nos candomblés, funcionários
públicos e autônomos nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário.
O sistema previdenciário foi instituído há mais de oitenta anos no Brasil. Inicialmente
pensado para operários brancos urbanos e, por que não, católicos, só recentemente foi
reconhecido o direito dessas populações negras aos benefícios previdenciários: a
aposentadoria rural, que se fez extensiva na Constituição de 1988; a aposentadoria para as
baianas do acarajé, reconhecidas como trabalhadoras autônomas na década de 90; e a
aposentadoria para os pais-de-santo, ebômins, como ministros de ordem religiosa, no ano
2000.
O principal déficit de políticas previdenciárias localiza-se nas periferias das grandes cidades,
onde mora uma população urbana majoritariamente negra, com altos índices de
desemprego e trabalho informal. Em um país como o Brasil, onde a pobreza é negra, o
principal desafio é pensar uma política previdenciária não-bismarckiana, orientada para essas
populações que, do ponto de vista do Ministério da Previdência Social, poderiam estar
enquadradas na situação de risco social.
Um olhar orientado pela tradição cultural acerta em cheio as populações excluídas das
políticas sociais. Nesse sentido, as instituições analisadas podem constituir-se em
importantes parceiras para a ampliação da cobertura do sistema previdenciário. O
reconhecimento das tradições favorece o fortalecimento e a auto-estima desses grupos.
Sem reconhecimento reproduz-se a situação de invisibilidade e de exclusão sofrida por
estes grupos.
198 199
Os fatos sociais analisados mostram tradições culturais e formas de organização social. As
festas reatualizam identidades de resistência cultural e revelam verdadeiras redes de
relações sociais. Para essas populações, a cidadania, enquanto pertencimento ao Estado
nacional, passa pela realização de seus direitos sociais, mas também passa pelo
reconhecimento da sua identidade tradicional. As diversas instituições tradicionais em
questão podem ser parceiras estratégicas para iniciativas de inclusão previdenciária.
A perspectiva desenvolvida nesta pesquisa ao cruzar tradições afro-brasileiras e políticas de
Previdência põe em xeque a dicotomia tradicional/moderno ao mostrar como essas
instituições articularam muitas iniciativas de luta pelo reconhecimento
dos direitos previdenciários. Desses lugares tradicionais de quilombolas,
irmandades, terreiros e maracatus, surgem demandas por igualdade de
direitos para trabalhadores rurais, artesanais e ministros de ordens
religiosas. À medida em que as reivindicações encontram eco no Estado,
ampliam-se, na prática, os horizontes de uma cidadania cada vez mais
plural.
Esta pesquisa, ao situar-se neste campo cruzado, entre as formas
culturalmente tradicionais de assistência das populações negras e os
beneficiários das políticas de Previdência e Assistência Social modernas,
mostra-nos aposentados que participam, sem contradição, dos mundos
tradicional e moderno. As formas de assistência tradicionais da cultura
afro-brasileira foram modeladas pela exclusão a que foram submetidas
as populações negras e, como mostramos nos diferentes grupos, ainda
continuam vigentes em vários contextos. Apesar dessa presença, não se
pode cobrar delas que cumpram o papel do Estado, inscrito na
Constituição: o de oferecer proteção social aos cidadãos brasileiros.
O estudo também mostra que os benefícios outorgados a esses
aposentados, longe de afastá-los das instituições tradicionais, reforça
seu lugar nas diversas instituições. Esse fortalecimento chega por
diferentes caminhos: pelas contribuições dos aposentados rurais nas
festas dos remanescentes de quilombos, pela autonomia dos idosos
participantes da Irmandade do Rosário ou pelo reconhecimento do
caráter sacerdotal dos ebômins das religiões afro-brasileiras.
A modernidade não pode ser pensada como um fato novo inscrito
sobre uma tábula rasa. Pelo contrário, a modernização tem de ter como
horizonte a realização dos direitos sociais e culturais dos diversos
cidadãos que fazem parte de um Estado nacional plural. A cidadania
deve assegurar o direito à diferença, uma diferença geralmente não
enxergada, invisibilizada, apesar de separada por poucos quilômetros, como nos
remanescentes, ou por apenas um muro, como no caso dos terreiros. Um direito a uma
diferença ancorada em uma visão de mundo e não só na cor da pele.
Ao longo do trabalho, exploramos diferentes formas tradicionais de assistência entre as
populações negras, tais como: o trabalho coletivo entre os quilombolas e as festas tradicionais;
a assistência aos irmãos necessitados na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, nos terreiros de candomblé e nos maracatus. Observamos a presença ativa
dos aposentados nas várias instituições tradicionais. Esses aposentados recebiam diferentes
200 201 tipos de benefícios. No caso dos remanescentes de quilombos, o acesso ao benefício era pela
categoria de trabalhadores rurais. Já no caso da Irmandade, encontramos aposentados como
funcionários públicos ou como autônomos. Para os terreiros, existem categorias específicas,
como o reconhecimento da atividade de ministros de cultos religiosos para os pais e mães-
de-santo, e o reconhecimento do seu ofício como trabalhadoras artesanais, para as baianas do
acarajé. Apesar da existência dessas categorias, tivemos a oportunidade de observar, no caso
dos terreiros, alguns pais-de-santo que contribuíam como funcionários públicos e uma mãe-
de-santo aposentada como trabalhadora rural. Os maracatus deixaram evidente o déficit de
proteção social nas periferias das grandes cidades, principalmente nos setores onde vive uma
população pobre e urbana.
Nas diferentes categorias analisadas, encontramos uma parte da população que não tem
acesso aos benefícios, seja por estar indocumentada, no caso dos remanescentes; por
motivos desconhecidos, possivelmente entraves burocráticos, no caso da irmandade; ou por
não terem realizado contribuições, no caso dos terreiros. Esses dados indicam, por um lado,
a extensão dos benefícios e a tendência à universalização da cobertura; mas,
simultaneamente, apresentam sinais da falta de informação desses grupos e, principalmente,
da dificuldade da Previdência em atuar junto às populações negras urbanas das periferias.
No caso dos remanescentes de quilombos, a aposentadoria rural tem uma ampla difusão, mas
não acontece o mesmo com benefícios como salário-maternidade ou auxílio-doença. Não
possuímos esse tipo de informação acerca dos participantes da Irmandade, mas é possível que
enfrentem uma situação análoga, pois trata-se de uma população urbana, pobre e discriminada,
com pouco acesso à informação. No caso dos terreiros, a Federação Nacional do Culto Afro-
brasileiro cumpre o papel de informar, mas encontra-se fortemente centralizada no estado da
Bahia. Pais e mães-de-santo de outros estados, como o Rio de Janeiro, têm de reportar-se à
Federação em Salvador para obter os documentos necessários, por exemplo, a declaração de
exercício do ofício sacerdotal como ebômim. No interior de Minas Gerais, encontramos
terreiros que não tinham informações sobre o direito à aposentadoria e desconheciam a
existência da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro. No Recife, existem várias
federações, o que resulta em fragmentação e descrédito.
A comparação do acesso às políticas de Previdência Social entre essas populações negras
evidencia a grande penetração e eficiência de um sistema não-bismarckiano aplicado nas áreas
rurais. O sistema de aposentadorias rurais para homens e mulheres, sem distinções de raça,
tem uma ampla difusão e contempla as populações negras que se enquadram nas condições
legais: ter sido trabalhador rural por um período pré-estabelecido ou, no caso dos benefícos
assitencias da LOAS, ter 65 anos ou mais e pertencer a um grupo familiar cujo rendimento
202 203 seja inferior a ¼ do salário mínimo.
Nas pequenas cidades do interior, encontramos aposentados que conseguiram o benefício
como funcionários públicos dos municípios e o caso de um aposentado que contribuiu
como autônomo: Luiz, o Sapateiro. Nas cidades de grande porte, como Salvador ou Recife,
fez-se evidente o déficit das políticas previdenciárias para as populações negras urbanas
moradoras das periferias. A demanda das baianas levou-as a se organizarem para a luta pelo
que concebiam como direito e a conseguirem o reconhecimento da categoria para
obtenção do direito aos benefícios.
Nos bairros do Recife, o benefício previdenciário é conhecido como “Instituto” e dá
prestígio ao beneficiário, que recebe periodicamente seu dinheiro em um contexto
marcado pelo desemprego e pela informalidade. As altas taxas de desemprego, o trabalho
informal e a falta de registros, como a carteira de trabalho, excluem esses grupos do
sistema de Previdência urbano, pensado para trabalhadores com carteira de trabalho
assinada e com aportes tripartites: do trabalhador, do empregador e do Estado. Essa é uma
condição cumprida, em parte, no importante setor industrial do Brasil. Estas condições
dificilmente poderão ser cumpridas pelas populações das periferias urbanas. O desenho de
políticas de inclusão social que contemplem essas populações e sua diversidade é um dos
grandes desafios a serem enfrentados pela Previdência Social. A Previdência foi pensada
inicialmente em função da situação dos trabalhadores brancos. A constituição de 1988 e a
legislação posterior estenderam o direito a uma aposentadoria não-contributiva aos
trabalhadores rurais e às minorias: indígenas, alforriados e populações tradicionais vivendo
em regime de agricde subsistência. Os resultados alcançados com os programas de
Previdência rural podem fornecer os moldes para políticas sociais que contemplem essas
populações do Brasil, onde a pobreza é negra e urbana.
Durante as visitas às diferentes localidades, foram observadas as estratégias implementadas
pelo Programa de Educação Previdenciária, cujo objetivo é ampliar a cobertura
previdenciária para as populações excluídas do sistema de proteção social. Dessa análise
comparativa, pode-se assinalar como dado positivo a capilaridade da cobertura das
aposentadorias rurais. A parceria entre os sindicatos de trabalhadores rurais e a
Previdência, mediante o deslocamento dos serviços com o PREVmóvel, permitiu incorporar
ao sistema a maior parte dos trabalhadores rurais que vivem em uma economia de
subsistência. A estreita parceria leva a confundir a ação da Previdência com os serviços do
sindicato, priorizando os benefícios rurais em detrimento de outros serviços e benefícios
da Previdência. Em algumas localidades, as mulheres não solicitavam salário-maternidade
porque a Previdência era associada ao sindicato e apenas às aposentadorias rurais. O
PREVmóvel poderia ampliar seu leque de parcerias, que incluem basicamente o sindicato de
trabalhadores rurais e a secretaria de assistência social do município.
Nas cidades visitadas, Recife e Salvador, entrevistamos os técnicos e estagiários que
participam do Programa de Educação Previdenciária. O PEP do Recife prioriza as ações de
comunicação massiva, como programas de rádio, participação em programas de TV e
panfletagem. Essas ações dirigidas a um público não específico, à primeira vista, não chegam
às populações visitadas, tanto nos terreiros como na zona norte, nos bairros que
concentram os maracatus. O atendimento a essas populações é feito na agência de Casa
Forte, um bairro de classe média, onde vivem algumas famílias tradicionais da cidade. Essa
disposição do atendimento agrupa os dados e invisibiliza as informações sobre os bairros
pobres, as quais são mascaradas nos indicadores por conta da inclusão dos setores médios.
O PEP de Salvador implementou uma estratégia de trabalho que focaliza os grupos não 204 205
incluídos no sistema de proteção social: trabalhadores informais e outras categorias, como dos diferentes, dos excluídos devido a preconceitos, dos invisibilizados.
prostitutas, feirantes, barraqueiros de praia, pescadores, lavadeiras e vendedores ambulantes. Neste trabalho, procuramos visibilizar as diferenças, por contraste com outros trabalhos que
O trabalho é realizado em parceria com as associações e os sindicatos que agrupam essas as apagam na procura pela igualdade. Não podemos, tampouco, universalizar essas identidades
categorias; por exemplo, as associações de feirantes, de prostitutas e das baianas do acarajé. tradicionais, nem transformá-las em limites rígidos que estendam ou imponham essas
Mediante a realização de cursos de formadores sobre a Previdência, divulga os diferentes características à totalidade da população. Se as projetarmos dessa forma, corremos o risco de
benefícios e as condições necessárias para ter acesso aos serviços oferecidos pela cair na essencialização das identidades, ou o que é pior, de transformá-las em estereótipos ou
Previdência. Esses formadores, muitas vezes os próprios dirigentes da associação, caricaturas de como deveria ser um negro, um índio ou uma mulher. Ao criar estereótipos,
reproduzem a informação, levando-a à grande parte dos associados. A estratégia de recriam-se barreiras, onde, na realidade, temos relações fluidas porosas, hibridações.
parcerias mostrou-se eficaz na inclusão de diversos grupos de populações afro-brasileiras,
Em nossa análise, entramos pelas relações sociais para chegar ao plano das tradições. Não
como as baianas do acarajé e os pais e mães-de-santo dos candomblés da Bahia.
trabalhamos com um conceito romântico de cultura, com um todo homogêneo e coerente.
A cidadania, muitas vezes, foi pensada a partir dos movimentos sociais, organizados em Pelo contrário, a cultura apresenta-se como um entrelaçamento de diversas tradições
torno de diversas demandas por ampliação dos seus limites. Esses movimentos, como africanas e brasileiras, as quais se mesclam e formam novos desenhos.
atores coletivos em uma sociedade capitalista, podem ser classificados de acordo com a
A preocupação com a morte é uma constante em todas as culturas. A busca pela “boa
orientação de suas reivindicações. Diversos autores assinalam que os mais variados
morte”, nas diferentes tradições, sugere a importância que um benefício do tipo auxílio-
movimentos clamam por igualdade de condições em uma sociedade, de fato, desigual. As
funeral poderia ter para essas populações.
demandas são pela intervenção do Estado para a criação das condições de igualdade, que
Podemos ordenar as características, tanto das diferentes tradições afro-brasileiras como
orientam a ideologia liberal. Podem ser por igualdade no campo do trabalho, do mercado
das suas entidades, em um continuum que vai desde as calungas até os eguns, passando
ou de acesso aos recursos do Estado, incluindo cargos e relações fisiológicas. Outro tipo de
pelos inkices e orixás. Essa seqüência pode ser interpretada ao longo de uma escala que as
movimento social ancora-se na diferença, e o motor da mobilização é a defesa das
agrupa desde as mais públicas – o Maracatu, que desfila na rua, ou a Irmandade, que se
diferenças ameaçadas pela condição de minoria étnica, racial, sexual, entre outras, frente às
reúne em torno da igreja – até as mais secretas – o culto dos Egum. Cabe ressaltar que,
pressões do mercado ou do Estado. Reivindica-se não ficar excluído das políticas por estar
apesar do segredo em torno dos orixás, as deidades africanas são amplamente conhecidas
invisibilizado. O desafio está na implementação de políticas universais que contemplem a
no Brasil. Em contraposição a essa publicidade em torno dos orixás, favorecida pelo
diferença. O ideal político é a ampliação do espaço público, para que nele tenha lugar a voz
sincretismo religioso com a Igreja Católica, os eguns são o segredo, a parte mais protegida
dessa tradição africana. Como antepassados, são o vínculo com a origem, são a África
invisível. Uma vez dimensionada a importância desse segredo, podemos valorizar o gesto de
consideração com a Previdência – não conosco: fotógrafo e antropólogo –, o qual se deu
pela apresentação no terreiro de Egum. Ela foi realizada para colaborar com a pesquisa da
Previdência, uma das instituições que reconheceu o candomblé como religião e outorgou,
para os ebômins, os mesmos direitos dos ministros de outros cultos religiosos. Esse
reconhecimento implica um outro: o da diferença, da ampliação da cidadania para que
contemple a diversidade de tradições culturais.
Como assinalamos, na periferia das grandes cidades, nos bairros mais pobres, onde se
concentra uma população majoritariamente negra, encontramos o principal déficit de
políticas de Previdência. Para superar esse déficit, a formulação de uma política
previdenciária não-bismarckiana é uma das medidas a serem pensadas para estender a
cobertura previdenciária às populações excluídas. Algumas alternativas incluem, também, um
seguro a um custo menor, que oferecesse benefícios mais limitados, ou alguma nova
categoria de segurado facultativo no âmbito do Regime Geral da Previdência Social. Cabe
destacar que a extensão dos direitos a esses setores da população está relacionada a uma
política de Previdência e não de assistência, pois o reconhecimento do trabalho realizado
por essas populações é central, apesar do seu caráter informal ou de difícil enquadramento
nos parâmetros da Previdência, como ocorreu com as baianas do acarajé. Por outro lado,
não basta a promulgação de uma lei. É necessário chegar a essas populações para difundir,
tornar públicas e implementar as reformulações. Nesse sentido, os Maracatus ou outras
instituições análogas podem ser uma porta de entrada para a chegada da Previdência a
206 207 esses grupos.
Durante o transcorrer da pesquisa, observamos as estratégias implementadas pelo PEP no
trabalho junto a diversos segmentos da sociedade. No caso das populações rurais, a
principal estratégia apóia-se no PREVmóvel, como forma de levar os serviços da
Previdência até as populações rurais. O PREVmóvel, com o intuito de descentralizar o
atendimento, revolucionou a relação da Previdência com as populações de municípios do
interior, distantes das grandes cidades. Não detectamos nenhum tipo de limitação para a
implementação de uma estratégia análoga nas periferias das grandes cidades. A parceria, que
no interior é desenvolvida com os sindicatos de trabalhadores rurais, poderia ser
implementada com outros tipos de atores sociais, desde associações de moradores até
associações culturais, como os Maracatus ou as Irmandades.
A implementação de estratégias do tipo universal, tendentes a atingir um público amplo,
com panfletagem e divulgação na mídia, não alcançou as populações visitadas. Um motivo a
ser apontado é que, no Brasil, o universal é branco; ou, como assinalaram vários autores, as
populações negras, assim como outros grupos de excluídos, são invisibilizados na
construção dessa idéia de universal.
As lutas pelo reconhecimento, em Salvador, levaram a equipe do PEP a trabalhar junto às
populações, com uma ação focal, que teve por objetivo a inclusão social dos grupos não
atendidos pela Previdência, como as baianas do acarajé e os ministros das ordens religiosas
afro-brasileiras. A estratégia de comunicação direta permitiu implementar ações que se
estenderam a outros segmentos, como foi o caso do “cofrinho da Previdência” das baianas
do acarajé. O trabalho corpo a corpo e a comunicação direta com os diferentes grupos
excluídos permitiram a inclusão de amplos segmentos da população, tais como feirantes,
pescadores e trabalhadores ambulantes.
Ao longo deste ensaio antropológico-fotográfico, com uma perspectiva qualitativa,
assinalamos aspectos relacionados às populações tradicionais, suas formas de organização e
assistência social e seu acesso aos direitos previdenciários. A perspectiva antropológica,
entendida como a arte da tradução cultural, faz-se presente no diálogo estabelecido entre
as pessoas apresentadas no trabalho, nos seus depoimentos e nas imagens captadas.
Esperamos que esse diálogo entre o leitor e os personagens aqui retratados seja eloqüente
quanto à necessidade de pensar as diferenças na formulação de políticas que tendem à
universalização. A presença das lutas pelo reconhecimento nos quilombos, nas irmandades,
nos terreiros e nos maracatus é um sinal da vitalidade dessas tradições como resistência
cultural e um indicador da imperiosa necessidade de levar em conta o direito à diferença na
formulação de políticas de atendimento a populações menos favorecidas. Sem
reconhecimento, não há auto-estima, e sem auto-estima, não há inclusão social.

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210 211
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“KKetu/Nagô Alagbede: pessoa que trabalha no ramo de
Verger, Pierre. Os Libertos: sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX. Salvador,
Corrupio, 1992. Abokun: ogan que cultua Ogum. ferro e metais e forja as ferramentas do Axé.
Adô: cabaça. Alajopa: pessoa de Ode, que leva a caça
Verger, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos Orixás. Salvador, Corrupio, 1997.
Adoxum: pessoas feitas de santo. para ele.
Verger, Pierre. Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga
Aficode: chefe do Aramafá (seis corpos), Aleikoko: árvore sagrada cujo tronco
Costa dos Escravos, na África. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
ligado ao Ilê de Ode. sustenta o Orum e que atravessa os nove
Vergee, Pierre. Fluxos e Refluxos: do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os espaços.
Santos, dos séculos XVII a XIX. Salvador, Corrupio, 2002a. Agbeni Oyê: posto paralelo a Mayê, divide a
mesma causa. Alugbin: ogan de Oxalufa e Oxaguian, que
Verger, Pierre Fatumbi. Orixás: Deuses Iorubas na África e no Novo Mundo. Salvador, Corrupio, 2002b. toca o Ilu dedicado a Oxalá.
Agimuda: relação com o Ipadê Exu. Aquela
Wolf, Eric. Europa y los pueblos sin Historia. México, Fondo de Cultura Económica, 1984. Apokan: ligado ao Ilê de Omolu.
que carrega a espada. Título feminino usado
no culto de Oyá e Geledé. Arametã: conselho reponsável pelo culto e
Aiyaba Ewe: responsável em determinados pela organização da festa de Orixá.
atos e obrigações de “cantar folhas”. Assogbá: ogan ligado ao Ilê Omolu e a
Geralmente são filhas de Oxum. cultos de Obaluaye, Nanã, Egum e Exu.
Aiybá: bate o ejé em grandes obrigações. Axogun: responsável pelos sacrifícios. Traz
Tem subposto Otum e Osi. axé de Ogum. Trabalha em conjunto com
Àjòiè: camareira do Orixá. Ekedi. Iyalorixá/Babalorixá, Oloyês e Ogans. Não
pode errar. Responsável direto pelos
Akòwé Ilê Xangô: é a secretária da casa de
sacrifícios do início ao fim do ato. Soberano
Xangô. Zelo, Orô e compras.
nestas obrigações, é quem se comunica com
Alabawy: pessoa que trabalha na área
o Orixá para quem se destina a obrigação,
jurídica e cuida dos interesses civis do axé.
transmitindo a Iyalaxé as respostas e
Alagbá: âmbito civil do axé. mandamentos. Deve ser chamado de Pai.
Alagbê: responsável pelos toques rituais, Também possui sub-posto Otum e Osi.
pela alimentação, conservação e Babalossain: responsável pela colheita de
preservação dos Ilus, os instrumentos folhas. Cargo de extrema importância.
musicais sagrados. No ciclo de festas, é
Balóde: ogan de Ode.
obrigado a levantar de madrugada para que
Balógun: título ligado ao Ilê de Ogum.
faça a alvorada durante mais ou menos 40
minutos. Se uma autoridade de outro Axé Egbé: o conjunto dos membros de uma casa
chegar ao Ilê, o Alagbê tem de lhe prestar de santo.
homenagem, “dobrar o Ilu” e oferecer até Elémòsó: ogan ou Ajoie de Oxaguian, ligado
sua própria cadeira. Também possui ao Ilê de Oxalá.
214 215
subposto. Gymu: Àjòiè de Omolu, que cuida de tudo o
que se relaciona com Omolu, Nanã e Leyn: pessoa que zela Ogun ou Ode. Ang ola / Bantu
Angola método simplificado de se consultar o
Ossayin. Lorogum: festa ritual da qual participam Dimba Inkice: são as obrigações dadas aos inkice, em feituras, pequenas obrigações ou
Ibó: relativo aos Egum. Ilê Ibó é o mesmo todos os Orixás e que revive a ida deles à santos. a coisa de informação imediata. É jogado em
que casa de Egum. guerra. Dimba Nkise: são as obrigações realizadas qualquer lugar, já que o jogo Kassumbenca
Iwin Dunse: ligado ao Ilê de Oxalá. Maaawo: grande confiança. para o Nkise. só é feito no apejó. O obi deve ser jogado
no prato de barro com efum espalhado
Iyabassé: responsável pelo preparo dos Mayê: Mexe com as coisas mais secretas do Dizungu Lilumbe: saída do santo.
(pó). Uma vela acesa deverá estar ao lado.
alimentos sagrados. Todos os Olorixás axé, ligadas à iniciação do Adoxu. Dizungu Nlungu: ordem do barco.
O obi tem 4 partidas. Deve-se saber quais
podem auxiliá-la, sendo a única responsável Mojubá: saudação respeitosa. 1ª - Kamoxi Mona Xikola. são as partes masculinas e femininas.
por qualquer falha eventual. Oba Odofin: ligado ao Ilê Oxalá. 2ª - Kaiari Mona Xikola. a) 1 pedaço masculino aberto (Nbô)
Iyadagan: auxilia Iyamoro e vice-versa. Odu: Espécie de signo que rege a existência 3ª - Katatu Mona Xikola. b) 1 pedaço feminino aberto (Muntó)
Também possui subpostos: Otun-ogan e de uma pessoa durante a vida. 4ª - Kakuãna Mona Xikola. c) 1 pedaço masculino aberto, 1 feminino
Osi-dagan.
Odum: ano ritual de uma casa de Eakota Tororó ou Mameto Ndenge: mãe
Iyaefun ou Babaefun: responsável pela aberto (Umbalá)
candomblé; o mesmo que ano. pequena.
pintura dos Iyawos. d) 2 pedaços masculinos abertos (Ageá)
Ogòtún: ligado ao Ilê Oxum. Kalungombe: Tata de Numbi (Egum).
Iyaegbé ou Babaegbé: é a segunda pessoa do e) 2 pedaços femininos abertos (Umbé)
Ojibonã: A mãe criadeira. Kijingu: cargo dado no jambeeressu (cuia).
axé, conselheira/o responsável pela f) 2 pedaços femininos abertos, 1 masculino
Ojuoba: posto de honra do Ilê Xangô e Kijingu:cargo, ou seja, entrega de Cuia.
manutenção da ordem, da tradição e da aberto (Baté)
possui subposto Otum e Osi.
hierarquia. Posto paralelo ao de Iyalorixá ou Kinsaba: colhedor de folhas. g) 2 pedaços masculinos abertos, 1 feminino
Babalorixá. Ológum: cargo masculino. Despacha os ebós
Kissicaram Gombe: ogan aberto (Sianá)
das grandes obrigações. A preferência é
Iyalabaké: responsável pela alimentação do Kissicarangombe: o mesmo que Ogan. h) 2 masculinos abertos, 2 femininos
dada aos filhos de Ogum.
iniciado, enquanto este se encontrar de Kivonda: o que sacrifica os animais. abertos (Dumbá)
obrigação. Olopondá: grande responsabilidade na
Kota: são EGBOMIS, filhos com mais de sete i) Nenhum aberto (Olezó)
iniciação, no âmbito altamente secreto.
Iyalaxé: Mãe do axé, a que distribui o axé. É anos de feitura. Obs.: A leitura das caídas constitui segredo; por
quem escolhe os Oloyés de acordo com as Oloya: cargo feminino. Despacha os ebós
Kota: são pessoas com mais de 7 anos de isso deixamos de mencionar aqui outras
determinações superiores. das grandes obrigações na falta de Ológum.
obrigações feitas. informações.
São filhas de Oyá.
Iyalorixá ou Babalorixá: Mãe ou Pai-de- Sukurankise: troca das águas das quartinhas.
Omolàrà: posto de confiança. Kufumala: defumações.
santo; é o posto mais elevado do ilê; tem a
Kumbi Ngoma: dias de toque. Tata ingoma: tocados de atabaques.
função de iniciar ou complementar o ato de Opaxorô: cajado de Oxalá.
Kutala: herdeiro da casa. Tata Kamukengo: pai pequeno.
iniciação dos olorixás. Orô: canto e dança específicos de um orixá.
Makota: ekedi. Tata Kinsaba: colhedor de folhas.
Iyamoro: responsável pelo Ipadê de Exu, Ossi: lado esquerdo, ou seja, a 3ª pessoa.
junto com a Agimuda, a Agba e a Igèna. Makota: o mesmo que Ekedi. Tata Kumbuí: tocador de atabaques.
Otum: a pessoa do lado direito, ou seja, a 2ª
Iyaquequerê: Mãe pequena do axé ou da pessoa. Mameto Kamukengo: mãe pequena. Tata Ndenge: pai pequeno.
comunidade. Sempre pronta para ajudar e Oxu: elemento ritual que confirma a Mameto Nkise: zeladora. Tata Nganga: jogador de búzios (caçueto).
ensinar todos no ilê. iniciação da Iyaô. Mameto Ria Inkice: mãe, zeladora. Tata pokô: o que sacrifica os animais.
Iyarubá: carrega a esteira do iniciado. Usa Oyês: os cargos de uma casa. Mona Inkice: filho de santo. Tata Ria Inkice: pai, zelador.
toalha de orixá no ombro. Sarapegbé: mensageiros de coisas civis e de Mona Muzenza: iniciado na nação Angola. Tata Vumbí: Ogan ligado à casa dos mortos.
Iyasihá: Aiyaba que segura o estandarte de awo. Mona Nkise: filho de santo. Tata Xicarongongo: tocador de atabaques.
Oxalá. Sobalóju: título masculino e feminino. Sendo Tata: pai.
Mona Xikola: é o iniciado, Yaô.
Iyatojuomó: responsável pelas crianças do o mais importante e atraente, o preferido Tateto Nkise: zelador.
Munzenza: é o preterido ao culto,
axé. do rei. impropriamente chamado de Yaô. O termo Zakaê Npanzo: árvore (troncos) colocada
Kaweó: ligado ao Ilê de Ossaiyn. Telololá: aquela que acompanha os Obas de muzenza significa noviça. nas portas dos santos.
Kólàbà: responsável pelo Làbà, símbolo de Xangô. Muzenza: o mesmo significado de Iyaô. Obs.: Esses troncos representam os
Xangô. Xirê: dança. ancestrais (Baculu).
Nengua Nkise: zeladora.
Labã: saco de couro, usado por Xangô. Ypery: ogan ou Ajòiè de Ode. 216 217 O Jogo de Obi: O Jogo de Obi é um
Jeje / Mar rim
Marrim
Acicinacaba: Vodum.
(Fon: Bábáwato).
Barriseton: iniciatório de Averequete.
Anexo 2 – mapas
Açobá: Título de Aziri. Cota Guaré: Título de entidades de chefes
Açoinodum: todos os voduns juntos. religiosos. (Fon: Senhor Bará Leba).
Adamachiô: iniciador do cântico. Dejô: Ekedi
Adunoblé: nome de Averequete. Derê: mãe pequena
Adunxo: nome de iniciado de Azoane. Dioroji: Família da Nice (Fon: Basuhô
Agajá Maçan: nome do Vodum. Gedeji).
Agonglô:Vodum real. Dote: mãe-de-santo
Ainã, Airoço: título de Xapatá. Gaiakú:mãe-de-santo
Ajunto, Ajato, Junto: espécie de anjo da Mutô: Ogan
guarda. Pejigan: zelador do Peji.
Aladanu: nome de Ajantó. Rombono: pai-de-santo
Alafrequetiana: nome do cântico Ruedô: saudação para Besseim.
Averequete.
Alogue: Vodum da família de Dambirá. Umbanda
Aloje: bracelete de Xapatá. Babãs: mãe-de-santo
Alopé, Aloque: pedido de benção (sic). Cambando: autoridade com cargo de
Arronoviçavá:Vodum da família de Dariece, homem ou Ogan.
irmão de Noedona. Cambas: todos os filhos.
Aseto: altar dos voduns. Ganga: pai-de-santo
Assem, Axé: os objetos sagrados, o Mucamba: autoridade com cargo (Ekedi).
fundamento do terreiro. Obs.: As Cambas só poderão abrir templos
Ataxô: nome de Leba. de Umbanda, após a obrigação de 7 anos, ou
Atigã: Zelador do atim. seja, o cargo. (...)
Atimlocô: gameleira branca.
Atinsá: árvore consagrada a um vodum, Egum
matagal. Alabá: espécie de pai pequeno.
Atinsen: nome do ronko. Alagba Osi: auxiliar 3ª pessoa.
Avamunha: toque de atabaque. Alagba Otum: auxiliar 2ª pessoa.
Axegã: zelador do axé. Alágba: chefe ou sacerdote Ojé.
Babá: pai (Fon:Bábá) Alapini: cargo supremo
Bacanão: sacerdote (Fon: boko nó) Amuichan: cargo de iniciação na nação Baba
Badê: título de Sobô-Badê Vodum família de Egum.
quni-oço (Fon: gbáde). Ojé: cargo de Ebomi, pessoa com sete anos
Bagono, Bagone, Bagalo: Vodum de família de de iniciada em Baba Egum.
Dambirá. Osi Alabá: 3ª pessoa.
Bajigan: a mesma coisa que Axogum. Otum Alabá: 2ª pessoa.
Baranatô: nome iniciativo de Zomadonu

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Este livro foi composto nas fontes Century Schoolbook 11/14 e GillSans 11/14,
miolo impresso em papel sappi 150 g/m2, capas em papel Couché 120 g/m2 revestido
de papelão pinho, e sobrecapas em couché 150 g/m2, com tiragem de 5.000 exemplares,
entre os meses de outubro e novembro de 2006.

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