Vdocuments - MX - Tradicoes Negras Politicas Brancas PDF
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Vdocuments - MX - Tradicoes Negras Politicas Brancas PDF
1ª edição
1ª impressão (2006): 5.000 exemplares
ISBN
Distribuição gratuita
Esta obra faz parte da “série especial”
da Coleção PREVIDÊNCIA SOCIAL
É permitida a reprodução parcial ou total desta obra desde que haja prévia autorização por escrito
do detentor de copyright e dos autores, exceto quando para fins de resenha e divulgação.
Proibido qualquer tipo de comercialização.
Tradições Negras,
Políticas Brancas
Previdência Social e populações afro-brasileiras
Secretário Executivo
Carlos Eduardo Gabas
Tradições Negras,
Rafael Liberal Ferreira de Santana
Políticas Brancas
Ensaio antropológico e texto
Gabriel O. Alvarez
Ensaio fotográfico
Luiz Santos
Previdência Social e populações afro-brasileiras
Projeto cartográfico
Rafael Sanzio dos Anjos – CIGA/UnB
Coordenação editorial
Luiz Santos
Edição de fotografia
Luiz Santos e Gabriel O. Alvarez
Revisão de texto
Josiany Salles Rocha Gabriel O. Alvarez | Luiz Santos
Projeto gráfico
Sidney Rocha
Pré-impressão e impressão
Artprinter Gráficos & Editores
Todos as fotos desta publicação são de Luiz Santos, com exceção daquela na página 106, que é de
Gabriel O. Alvarez.
Nos processos técnicos desta publicação contamos, ainda, com o valoroso apoio de Bachar Samaan,
Gabriela Pires, Sebba Cavalcanti e Lorenzo Vagni.
Agradecimentos
Quando um trabalho desta envergadura chega ao fim, lembramo-nos de todos os que nos acompanharam nesse
longo caminho. Queremos agradecer àqueles do Ministério da Previdência Social, na Secretaria de Políticas de
Previdência Social, que tornaram possível a realização desta pesquisa: Helmut Schwarzer, Secretário de Políticas
de Previdência Social e Vinícius Pinheiro, ex-Secretário de Previdência Social. O último abriu as portas para a
realização deste trabalho, e o primeiro empenhou-se, pessoalmente, na orientação e na publicação dele.
Agradecemos também a Rafael Liberal Ferreira de Santana, Coordenador-Geral de Estudos Previdenciários da
SPS; Mônica Cabañas, Chefe de Gabinete da SPS; e a Tereza Ouro, Coordenadora do PEP à época do trabalho de
campo, os quais acompanharam esta pesquisa do início ao fim e foram atentos interlocutores deste diálogo da
antropologia com os estudos previdenciários.
O trabalho de campo não teria sido possível sem o apoio e a colaboração de nossos interlocutores.
Agradecemos especialmente o apoio dado por Txicão e a sabedoria cheia de graça de Zé Guará, dona Furtuosa e
dona Catarina no Brejo dos Crioulos. No Córrego da Misericórdia, foi fundamental o apoio de Eva. Nos terreiros
de candomblé, um agradecimento especial ao Pai Ari, presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro,
que nos introduziu em um universo incomensurável. Nosso agradecimento também à Mãe Luiza Gaiaku, Mãe
Caiudê, Mãe Ditinha e ao Pai Balbino, que nos abriram as portas de suas casas e seus altares, assim como ao Ojé
Baruê, que permitiu que compartilhássemos dos segredos dos Egum. Agradecemos ao povo dos Maracatus-nação
do Recife, em especial Ivaldo do Cambinda Estrela, Elda e Schacon do Maracatu Nação Porto Rico do Oriente,
em memória de Dona Mariú, que viveu 104 anos e morreu antes desta publicação, e às rainhas e calungas dos
maracatus visitados em Recife. Um agradecimento especial ao Manoel Papai, filho de Pai Adão, sacerdote de um
dos mais tradicionais terreiros da cidade do Recife. Agradecemos ainda aos presidentes, reis e tambozeiros das
Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí, da INSRHP de Chapada do Norte e
da Confraria de Olinda, particularmente Pedro Pereira dos Santos, Seu Vicente e Luiz Sapateiro (aposentado),
homem simples e sábio.
Um reconhecimento especial para Luiz Santos, Fotógrafo (com letra maiúscula) e companheiro, co-autor desta
pesquisa. As imagens dos aposentados em seus lugares cotidianos, os detalhes dos colares, as cores das roupas,
todos esses elementos visuais fazem parte de uma dimensão particular da comunicação desses aposentados com
o leitor, capturados nos retratos confeccionados por Luiz Santos.
Um agradecimento a Gabriela Nunes, que foi nossa assistente de pesquisa e que organizou a transcrição dos
depoimentos, realizou o levantamento bibliográfico e foi a primeira leitora da versão preliminar; com seu olhar
desde a negritude, participou do espírito do trabalho. Um agradecimento também aos alunos do curso de
Tradições Afro-brasileiras, aos quais lecionei no primeiro semestre de 2004, no Departamento de Antropologia
da Universidade de Brasília. Em sala de aula, discutimos a bibliografia acadêmica e o material empírico que
compõem o corpo deste livro.
Um agradecimento também a Rafael dos Anjos, que acrescentou uma projeção cartográfica aos dados levantados
no trabalho de campo. Cabe destacar que os mapas incluídos na obra são produto de uma trajetória de vinte
anos realizando uma cartografia que retrata a matriz africana do Brasil.
Finalmente, um forte abraço para Roberto, nosso motorista em Minas Gerais. Em Itinga, antes da construção da
ponte, quando cruzávamos de balsa o rio Jequitinhonha, sugeri a Roberto que perguntasse ao balseiro se sabia da
existência de algum grupo de Congado na cidade. Solicitei que fizesse a pergunta, porque ambos, o balseiro e o
motorista, tinham o característico sotaque carregado do interior de Minas. Roberto perguntou ao balseiro:
— “Você conhece o povo que mexe com Congado?”
Ao que o balseiro respondeu, solícito:
— “Eu mexo com gado, mas minha especialidade é cavalo”.
Apresentação
No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Previdência Social possui um papel
fundamental na extensão da proteção social do país. Por causa dos recursos transferidos pela
Previdência, cerca de 20,2 milhões de pessoas deixaram de viver abaixo da linha de pobreza,
segundo dados do IBGE de 2004. A Previdência, em um Estado de Bem-Estar moderno, ao
reconhecer o tempo de trajetória laboral dos indivíduos e conceder benefícios
correspondentes, repondo renda e combatendo a pobreza, gera segurança social e constitui-
se em uma das principais portas para a cidadania.
No caso brasileiro, grande parte dos impactos redistributivos da Previdência deve-se à
Previdência Rural, hoje reconhecida no mundo inteiro como um modelo inovador e bem
sucedido, que melhora de forma sustentada o tecido social rural. Suas características, que a
afastam do modelo contributivo estrito, passam a ser extremamente importantes quando se
analisa a relação entre a população negra e a Previdência Social no Brasil. É de conhecimento
geral que os indicadores sociais apontam historicamente para uma diferença pronunciada
entre brancos e não-brancos em praticamente todos os setores de políticas sociais. Não é
diferente na trajetória de brancos e negros no mercado de trabalho, cuja formalidade é
pressuposto para o acesso à Previdência contributiva. No entanto, sabemos hoje que negros e
mulheres, via de regra fragilizados no mercado de trabalho, têm sido relativamente mais
favorecidos pelo reconhecimento da condição de trabalhadores rurais pela Previdência Rural,
que não requer o histórico contributivo individual, mas a documentação do trabalho como
agricultor em regime de economia familiar.Vários dos depoimentos contidos neste livro
apontam nesta direção.
Tradições Negras, Políticas Brancas, escrito pelo professor Gabriel O. Alvarez, antropólogo da
Universidade de Brasília e colaborador do Ministério da Previdência Social, em parceria com o
fotógrafo documentarista Luiz Santos, retoma a série de estudos sobre os impactos da
Previdência a partir da ótica dos beneficiários, agora com o foco nas populações afro-
brasileiras. Ao visitarem os remanescentes de quilombos e a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, em Minas Gerais, os terreiros de candomblé e as baianas do
acarajé, na Bahia, e os maracatus de Recife, os autores verificaram que os benefícios
concedidos aos aposentados reforçaram seu lugar nas comunidades, em vez de afastá-los das
instituições tradicionais. Ademais, o estudo recupera uma importante discussão sobre a
negritude e cidadania no Brasil, temas para os quais o governo do presidente Lula demonstra
extrema sensibilidade, haja vista a criação de uma estrutura específica como a Secretaria
Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial - SEPPIR.
Os resultados deste livro nos levam a conhecer melhor os nossos segurados e beneficiários, o
que contribui substancialmente para o processo de construção da cidadania via Previdência. A Prefácio
inclusão social é uma visão estratégica deste governo, e, no âmbito da Previdência Social, a
inclusão se reflete em dois aspectos importantes: a garantia de acesso aos direitos
previdenciários e o fortalecimento do diálogo social, com participação da sociedade civil. Por
um lado, o fortalecimento do diálogo social vem se refletindo na maior participação da
sociedade civil na definição de políticas previdenciárias, por meio de medidas como o
restabelecimento dos Conselhos de Previdência Social. Por outro lado, a meta de garantia de
acesso aos direitos previdenciários vem inspirando um conjunto integrado de ações na área
de gestão, que temos conduzido com determinação.
Estamos acostumados com números, indicadores, análises quantitativas sobre a Previdência.
Este importante livro, contudo, com seu ensaio antropológico, depoimentos dos cidadãos e
Os estudos sobre impactos da Previdência são tradicionalmente focados em análises
belas fotografias, lança um outro olhar sobre os impactos qualitativos da Previdência e a vida
quantitativas. Até há pouco tempo, eram raros os trabalhos que privilegiassem a ótica dos
das pessoas. As conclusões do estudo nos dão a convicção de que estamos no caminho certo.
usuários da política previdenciária, em especial dos beneficiários. Nos últimos anos, a
É preciso reforçar a Previdência básica, pública, de caráter universal e buscar alternativas de
Secretaria de Políticas de Previdência Social do Ministério da Previdência – SPS/MPS tem
políticas para ampliar a cobertura para que o acesso ao direito previdenciário por parte dos
procurado preencher esta lacuna com a divulgação de resultados e encomendas de novas
segurados possa ser plenamente exercido.
pesquisas que avaliem os impactos qualitativos da Previdência em comunidades selecionadas.
O livro Tradições Negras, Políticas Brancas, além de seguir esta linha, contribui para suprir uma
outra carência: estudos que relacionam negritude e Previdência no Brasil.
Brasília, novembro de 2006 A discriminação enfrentada pela população negra na sociedade brasileira já foi analisada com
profundidade por diversos especialistas, como por exemplo o IPEA. Em um de nossos estudos
recentes, baseados na PNAD/IBGE 2004, a SPS reconstatou que há uma inserção fragilizada da
população negra em relação à branca no mercado de trabalho, com taxas de desemprego
maiores, postos de trabalho de pior qualidade e menores salários. Sabemos que a Previdência
NELSON MACHADO
MACHADO Social, em seu papel de repor a renda do trabalho nas situações de risco social – idade
Ministro de Estado da Previdência Social avançada, invalidez, morte, enfermidade, maternidade, acidente de trabalho, etc. – reflete
diversas distorções existentes no mercado de trabalho. A motivação para a realização deste
estudo foi exatamente captar, através de depoimentos dos próprios representantes das
populações negras, a imagem e o grau de importância que a Previdência Social possui em suas
vidas, bem como o papel corretor de iniqüidades que ela porventura possa desempenhar.
A SPS contratou para a coordenação do projeto o professor Gabriel O. Alvarez, antropólogo
da Universidade de Brasília, que possui vasta experiência em trabalhos desta natureza, autor
do belíssimo ensaio Amazônia Cidadã, de 2002, também encomendado e publicado pela SPS/
MPS, bem como o premiado fotógrafo documentarista Luiz Santos. Juntos, visitaram os
remanescentes de quilombos, em Minas Gerais, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos, no vale do Jequitinhonha, no mesmo estado, os terreiros de candomblé e
as baianas do acarajé, na Bahia, além dos maracatus do Recife. Ou seja, populações negras com
diversas formas de organização social, bem como suas principais instituições.
Uma das hipóteses inovadoras usadas pelos autores é a de que, em um país como o Brasil, a
associação de negritude exclusivamente à cor da pele pode ser questionável em termos de
pesquisa. Sendo um antropólogo cultural competente, Gabriel Alvarez aponta que as
instituições e tradições culturais, bem como a organização social, são tão reveladoras quanto a
cor da pele. A partir deste ângulo, entrelaçando a descrição da história viva, de ricas tradições
culturais, do sofrido cotidiano com imagens de sublime estética, o estudo caminha por
identificar como a Previdência Social logra ou não participar da vida destas comunidades.
Nas comunidades selecionadas, os autores identificaram beneficiários da Previdência e os outro lado, também foi destacado o papel social desempenhado pelos integrantes dos
entrevistaram. Através dos depoimentos, foi possível verificar as mudanças ocorridas em Maracatus, que compartilham tradições, sentimentos comuns e religiosidade e contribuem,
função da aposentadoria e as maneiras de utilização do dinheiro. A investigação permitiu através de atividades sociais voluntárias, para minimizar os efeitos da pobreza que os
também que se pudesse traçar um panorama da forma de vida tradicional de cada grupo, seja envolvem.
no dia-a-dia ou em momentos especiais, como as festas e os rituais, e as mudanças ocorridas Os resultados apresentados neste livro ratificam o fato de que a Previdência Rural brasileira é
nas últimas décadas, além das atividades no seio das instituições e as interações com o uma inovação mundial por utilizar mecanismos não-bismarckianos, ou seja, sem vinculação
restante da sociedade. Os técnicos locais da Previdência também foram entrevistados, e estrita entre contribuição e benefício. O critério de comprovação de condição de trabalho
através dos depoimentos foram colhidas importantes informações sobre as estratégias de rural – e não necessariamente contribuição monetária – permite um alto impacto de inclusão
ampliação do acesso ao direito previdenciário às comunidades negras. social de famílias trabalhadoras rurais pobres e melhora de forma sustentada o tecido social
Os resultados apontam para o importante papel dos idosos aposentados nas comunidades, rural. Por outro lado, o desafio de inclusão passa necessariamente por uma estratégia de
como já verificado em estudos anteriores. A concessão de um benefício previdenciário não incorporação do contingente urbano.
afasta esses idosos de suas instituições, como diversos estudiosos chegaram a acreditar no Lidar com a herança da informalidade e exclusão, produtos de modelos de desenvolvimento
passado, ao afirmar que a Previdência destruiria a solidariedade tradicional; ao contrário, a passados, requer múltiplas abordagens simultâneas. De um lado há falta de conhecimento
condição de segurado beneficiário fortalece a participação do idoso negro nas suas famílias e sobre a Previdência, o que requer o esforço de publicizar nosso sistema, inclusive por meio
comunidades. do Programa de Educação Previdenciária. Além disso, uma fiscalização cada vez mais rigorosa
No caso dos remanescentes de quilombos e dos idosos na Irmandade de Nossa Senhora do combate a sonegação e informalidade entre os empregadores que não assinam a carteira de
Rosário dos Homens Pretos, em Minas Gerais, o impacto da Previdência Rural é notável, pois seus trabalhadores. Modificações nas alíquotas de contribuição – como na desoneração
além de evitar situações de dependência e mesmo penúria, a percepção de um benefício parcial da folha de salários, na redução da alíquota dos contribuintes individuais de baixa
permite autonomia e lugar de destaque aos aposentados nas festas e rituais. renda ou na dedutibilidade do Imposto de Renda das contribuições patronais para as
Nos terreiros de candomblé, em Salvador, a imagem da Previdência ultrapassa os impactos trabalhadoras domésticas – podem auxiliar vários grupos sociais e setores de atividade
provenientes da concessão de benefícios. Consideram-na uma política pública que econômica específicos. Tudo isto, obviamente, também requer uma constelação
efetivamente reconheceu o candomblé como religião, ao permitir que pais e mães de santo macroeconômica mais favorável à geração de empregos formais do que foi aquela dos anos
pudessem contribuir – e se aposentar – no exercício de suas funções religiosas. Até o ano 80 e 90.
2000, pais e mães de santo tinham que declarar outra atividade profissional para recolher a Como lição do livro Tradições Negras, Políticas Brancas, fica que, além das medidas acima
contribuição e ter direitos aos benefícios. Importante destacar também o relevante trabalho mencionadas, uma alternativa de política talvez seja a continuidade no caminho de criação de
da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro no apoio e orientação aos representantes um benefício universal básico, não contributivo, que esteja baseado em critérios objetivos
dessas instituições religiosas. simples, como, por exemplo, ser residente no país e ter atingido determinada idade. Passos
Ainda em Salvador, os autores registraram as conseqüências de outra importante forma de rumo ao gradativo desacoplamento de critérios contributivos para a obtenção de um
reconhecimento de direito à população negra por parte da Previdência: o caso das baianas do benefício básico, que resgate o idoso de debaixo da linha da pobreza, o Brasil já têm dado por
acarajé – símbolo da cultura da Bahia. Na década de 90, essas mulheres tiveram o meio do aprofundamento da Previdência Rural nos anos 90, bem como do Benefício de
reconhecimento de sua atividade profissional para caracterização de trabalho artesanal Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social-LOAS, aperfeiçoado pelo Estatuto
autônomo junto à Previdência Social. A organização dessas baianas, especialmente através da do Idoso. Diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento estão fazendo a avaliação de
Associação das Baianas do Acarajé – ABA, favoreceu o contato com a Previdência através das se hoje é possível avançar nesta direção para suprir as lacunas de cobertura previdenciária
ações do Programa de Educação Previdenciária – PEP, do Ministério da Previdência, o que deixadas por mercados de trabalho fragilizados ao longo das últimas décadas.
resultou em uma interessante estratégia. Para conscientizar as baianas – muitas já idosas – a Tradições Negras, Políticas Brancas traz, para nós da Secretaria de Políticas de Previdência Social,
se filiarem, contribuir para a Previdência e ter direito a benefícios, os representantes do PEP um importante subsídio para a reflexão na formulação de políticas públicas. Espero que o
local encontraram uma solução extremamente criativa. Conseguiram disseminar a idéia de leitor aprecie este belo trabalho.
uma poupança diária, equivalente ao valor de um acarajé, para ser guardada em um “cofrinho”.
Ao final do mês, o “cofrinho” conteria o valor suficiente para a contribuição previdenciária.
Finalmente, o trabalho de campo visitou a população que participa dos Maracatus-nação,
Brasília, novembro de 2006
instituições urbanas, também de tradição afro-brasileira, localizadas na região norte de Recife.
Essas instituições possuem princípios de organização social similares aos observados na
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e nos terreiros de candomblé. Assim como em
praticamente todas as periferias de metrópoles brasileiras, a pobreza e a informalidade no HELMUT SCHWARZER
SCHWARZER
mercado de trabalho constituem enorme obstáculo ao acesso de direitos, em especial os Secretário de Políticas de Previdência Social
previdenciários. Tal fato foi constatado pelos autores no trabalho de campo em Recife. Por 14 15
Sumário
Introdução, 16
4. Temas cruzados:
tradições afro-brasileiras e Previdência Social, 198
Anexo, 215
Mapas, 220
Introdução
A negritude e a questão racial no Brasil são temas repletos de nuances. A negritude constitui
um dos componentes da imagem tropical do Brasil e, ao mesmo tempo, é invisibilizada por
uma imagem de modernidade, pensada como branca ou, quando muito, mestiça.
De acordo com a situação social, as pessoas de pele escura identificam-se em diversas
categorias, como negro, moreno, negro-mestiço, preto, jambo, afro-brasileiro, pardo ou outras
denominações que aludem implícita e tangencialmente à questão racial. Existe um certo
racismo cordial que se revela ao tratar o interlocutor negro como moreno. Esse
branqueamento implica a negação da negritude. Em outras situações, o próprio negro
renega-a ao se identificar como pardo. No Brasil, os censos utilizam as categorias branco,
preto, pardo, amarelo ou indígena. Na hora da declaração, muitos identificam-se como pardos
porque consideram a classificação preto ofensiva, pois esse termo seria aplicável às coisas e
não às pessoas. Essa atitude gera uma distorção estatística, pois estabelece a categoria preto
como sinônimo de negro e introduz uma defasagem e subestimação das populações negras
no Brasil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) de 1976, introduziu a auto-atribuição no quesito cor/raça;
o resultado foi a existência de 136 “cores” diferentes (Schwarcz, 1999).
Segundo os dados da PNAD 2004, a população brasileira está composta por 93.604.435
brancos (51,4%), 76.635.241 pardos (42,1%), 10.739.709 pretos (5,9%), 763.456 amarelos
(0,4%) e 304.911 índios (0,2%), além de 12.356 na categoria ignorados. Estudos quantitativos,
como os realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), assumem a
categoria negro como resultado do somatório de pretos e pardos. Segundo esse princípio, a
população negra do Brasil é de 87.374.950 pessoas (48%). Essa metodologia pode ser
empregada em determinadas regiões, como no Rio de Janeiro ou em Salvador, mas produz
distorções ao ser aplicada a outros estados, onde diversas populações não-negras são
identificadas como pardas. Por outro lado, a categoria pardo inclui amplos setores não-
negros, muitos deles pertencentes à classe média da sociedade; isso gera um novo viés que
invisibiliza a desigualdade, subestimada pela inclusão de setores de maior poder aquisitivo.
Embora esse fator possa introduzir alguma distorção positiva, todas as análises quantitativas
apontam para a situação de desigualdade social e de discriminação sofrida por essas
populações (Alexandre Pinto e Marcelo Neri, 2000; Henriques, 2001; Soares, 2000). Apesar da
crescente produção de trabalhos sobre a negritude no Brasil, existe um vazio bibliográfico
sobre políticas de Previdência Social e populações negras. Quando analisados os indicadores
de raça e de população idosa em condições de pobreza, como assinala o trabalho de
Schwarzer e Querino (2002:33), verifica-se que: “A pobreza entre os idosos é negra. Dois
18 19
terços dos idosos pobres são negros”, se considerada, segundo os dados da PNAD, a com os moleques ¯ às vezes carregadas de sadismo — e
população com sessenta anos ou mais abaixo da linha de pobreza fixada pela Lei Orgânica de as primeiras experiências sexuais com as escravas negras
Assistência Social – LOAS. modelaram a subjetividade desses brasileiros. As
Existem diversos estudos sobre a negritude no Brasil; porém, o propósito aqui não é fazer aventuras sexuais do patrão com as escravas do serviço
uma revisão exaustiva da produção brasileira e internacional sobre o tema. No entanto, é doméstico da casa grande, as vinganças das patroas, as
indispensável, em um trabalho desta natureza, fazer algumas reflexões em torno dos aventuras dos adolescentes e os filhos mulatos faziam da
autores mais relevantes que abordaram essa questão. Eles devem ser vistos como família patriarcal uma instituição marcada por segredos e
intelectuais que expressaram o pensamento social do Brasil acerca da negritude. relações hierárquicas que criavam famílias extensas não
reconhecidas. Para Gilberto Freyre, a hibridação entre a
Neste estudo, a negritude não será trabalhada como raça, mas sim como uma construção
cultura portuguesa e a africana aconteceu na cama.
social; mais especificamente, um conjunto de tradições culturais que reproduzem sistemas
Criou-se uma imagem romântica do negro e de suas
de valores, instituições, uma forma de estar no mundo. Em um país como o Brasil, que
contribuições para a “cultura nacional”, com um
sofreu políticas de branqueamento amparadas pelo mito da democracia racial, as tradições
somatório de traços isolados, como palavras, comidas,
afro-brasileiras são a expressão de resistência das populações negras. A análise das
ritmos e sensualidade. No livro Casa Grande e Senzala, a
instituições tradicionais permite mostrar, a partir de sua cultura, a chegada da Previdência
família patriarcal e a plantação tornam-se o modelo que
junto a essas populações, invisibilizadas nas análises usuais. Uma antropologia das políticas
explica as relações raciais no nordeste. O trabalho nas
de Previdência passa por compreender o olhar do “outro” sobre as políticas públicas, um
plantações e as histórias de alcova modelaram a
“outro” personalizado por meio de suas imagens e depoimentos. É isso que este ensaio
mestiçagem e a hierarquia social como um fenômeno
antropológico-fotográfico visa apresentar aos formuladores de políticas.
brasileiro que se expressa na formulação da ideologia da
democracia racial.
A negritude no pensamento social brasileiro Na década de 1950, a UNESCO patrocinou uma série de
Nina Rodrigues, ao final do século XIX, realiza um importante esforço de sistematização estudos sobre as relações raciais no Brasil, cujo objetivo
sobre a origem e a religião das diferentes populações negras do Brasil. Para esse autor, o era contrastar a situação no país com outros países
Brasil era um laboratório que permitia estudar as populações africanas, suas crenças e marcados pelas tensões inter-raciais, como os Estados
religiões como amostras da África. A temática era, naquele momento, enquadrada no Unidos e a África do Sul. Esperava-se que esses estudos
paradigma criminalista. Artur Ramos (1988 [1934]) continua a obra, enquadrando seus pudessem sugerir políticas baseadas nas relações entre
estudos em um campo que oscila entre a antropologia e a psiquiatria. As preocupações em negros e brancos no Brasil como modelo para a criação
torno da raça e das crenças levaram-no a classificar a população negra brasileira em dois de novas políticas a serem aplicadas em países onde as
grandes troncos de acordo com suas zonas de origem na África negra. Apesar das diversas relações inter-raciais estavam marcadas por tensões e por
divisões étnicas, ele caracteriza uma população banto, com origem no Congo e em Angola, e aberta discriminação. Desse projeto, participaram
uma ioruba, proveniente dos reinos do Golfo do Benin. A primeira estaria concentrada nos Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, o
estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco; a segunda ocupa, predominantemente, antropólogo francês Roger Bastide, entre outros.
uma proporção do estado da Bahia. Para o autor, imbuído de uma ideologia evolucionista, os
Florestan Fernandes (1969, 1972) é um dos autores que
bantos teriam uma religião mais animista, se comparados aos iorubas. No caso dos primeiros,
assinala a situação de discriminação sofrida pela população
os feitiços seriam o traço mais marcante; já os povos iorubas teriam uma religião mais
negra, excluída do mercado após a abolição da escravatura.
sofisticada, cujos fetiches ocupam o centro de rituais elaborados e levam os participantes a
A transformação da economia baseada nas plantações com
estados de transe. Os trabalhos sobre religiões africanas desenvolvidos pelo autor explicavam
trabalho escravo em uma economia industrial-urbana
e classificavam os estados de transe característicos desses cultos. Procurava-se explicar o
atrelada às políticas migratórias marcou o destino dessas
diferente. Os negros eram vistos como algo extrínseco ao Brasil, não deixavam de ser
populações. Os migrantes europeus inseriram-se na nova
africanos, como mostra a ênfase na classificação dos diversos grupos que compunham a
estrutura de classes, e a população negra liberta foi
dicotomia banto/ioruba, descritos pelos trabalhos.
deslocada. Os dados estatísticos apresentam um Brasil com
Gilberto Freyre (2002 [1933]) introduziu o negro na imagem do Brasil. Era um negro profundas desigualdades regionais. Por um lado, a região
brasileiro descrito a partir da intimidade da convivência nas plantações de cana-de-açúcar. sul-sudeste com uma população majoritariamente branca,
Os trabalhos do autor caracterizaram o Brasil a partir do Nordeste e criaram a imagem destacada pela industrialização que a transformou em uma
luso-tropical do país. Para ele, a família patriarcal dos engenhos de cana-de-açúcar modelou das regiões mais dinâmicas do Brasil. Por outro, a região
a moral dessa formação social. A casa grande e a senzala estavam interligadas nos serviços e nordeste, majoritariamente negra, com elevados índices de
nos lençóis. A ama de leite negra do menino branco, as brincadeiras dos filhos do patrão 20 21
pobreza e uma distribuição de renda caracterizada pela
concentração em uma elite branca. O autor denuncia o caráter mítico da democracia racial A década de 1980 foi marcada pela mobilização e pelo florescimento dos movimentos
brasileira e apresenta a desigualdade social como produto da discriminação racial. sociais. O Movimento Negro Unificado concentra centenas de intelectuais que questionam
O racismo no Brasil caracteriza-se, segundo Florestan Fernandes (1972), pelo branqueamento a posição do negro na estrutura social brasileira. Se sua figura estava estigmatizada pela
no trato interpessoal; as desigualdades entre negros e brancos reproduziam-se sob o manto associação com a escravatura, era necessário reavaliar a negritude. Nesse contexto, surgem
de um racismo cordial. O racismo ficava invisibilizado, tanto pelo trato “gentil” ao evitar trabalhos que valorizam a negritude a partir das resistências dos quilombos. O Quilombo
referir-se ao interlocutor “de cor” como “negro”, como pela introjeção do preconceito. Os dos Palmares (1630-1694) e seu rei Zumbi transformam-se em ícone de liberdade e de luta
negros que conseguiam certa ascensão social o faziam ao preço da sua cultura, um contra o regime escravocrata (Nascimento, 1978; Moura, 1988). Cabe destacar a crescente
branqueamento produto da introjeção dos parâmetros do branco. Isso passa inclusive pela força política do movimento negro ao longo da década de 1990, assim como os espaços
negação da própria negritude e serve de fermento para a multiplicação de categorias usadas conquistados, a partir de 2003, na administração do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
para definir as pessoas “de cor”. Ser negro era sinônimo de descendente de escravos, e essa quando foi criada a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial
lembrança dissolver-se-ia mediante a multiplicação de categorias. (SEPPIR); com o impulso dado à Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura; e
com a nomeação do Sr. Gilberto Gil como o primeiro afro-brasileiro a ocupar o cargo de
Oracy Nogueira (1985) compara o racismo nos Estados Unidos e no Brasil. No primeiro,
Ministro da Cultura.
onde existe um preconceito de origem, existe uma linha divisória nítida entre as populações
negras e brancas. No preconceito de origem, basta a suposição de que o indivíduo descende
de um determinado grupo para que sofra o preconceito. Para os norte-americanos, basta uma Previdência, negritude e tradições culturais: os propósitos deste estudo
gota de sangue negro para assim ser considerado. No Brasil, devido à idéia da mestiçagem, a Vários trabalhos assinalam a discriminação enfrentada pelas populações negras do Brasil,
identificação de cor é ambígua e depende da estratificação. O preconceito de marca está como ela se traduz em desigualdade social. Os indicadores sobre a população negra
relacionado com a aparência, o sotaque, os gestos. Por outro lado, a discriminação de marca contrastam com os índices da população branca. Salário, educação, saúde e saneamento
está estreitamente relacionada à classe social. Assim, as pessoas de classes mais baixas são traduzem em cifras essa desigualdade ancorada na discriminação. Esses preconceitos
consideradas negras; mas, conforme ascendem na estratificação social, deixam de identificar-se refletem-se em uma participação desigual nos postos de trabalho, em menores salários e na
como negras e passam a se considerar “morenas” ou mestiças. A reduzida população “de cor” exploração trabalhista. Diversas análises de dados censitários revelam que a população
pertencente a estratos superiores chega a considerar ofensivas as referências à sua negritude. negra ganha salários inferiores aos da população branca, seus índices de escolaridade são
Cabe destacar que, nesse tipo de racismo, a etiqueta de comportamento inter-racial dá ênfase mais baixos e são poucos os que completam os estudos superiores. As populações negras
ao controle do comportamento dos indivíduos do grupo discriminador. Em contrapartida, habitam a região rural ou a periferia das grandes cidades. A falta de condições de higiene,
onde o preconceito é de origem, a ênfase recai sobre a conduta do grupo discriminado, como assim como a falta de água potável e de tratamento de esgoto, se reflete nos maiores
forma de conter a agressividade do grupo discriminador. Como assinala o autor: “onde o índices de mortalidade infantil. A desigualdade expressa-se na distribuição de renda.
preconceito é de marca, a ideologia é, ao mesmo tempo, assimilacionista e miscegenacionista;
Em relação ao mundo do trabalho, os dados mostram que os negros ingressam mais cedo no
onde é de origem, ela é segregacionista e racista” (Oracy Nogueira, 1986: 422).
mercado. Na faixa de idade entre 10 e 15 anos, uma idade crítica de preparação para a vida
Gilberto Freyre foi um dos ideólogos do modelo da democracia racial para explicar as laboral, a participação dos negros é muito superior à dos brancos. Ao longo da vida, a taxa de
relações raciais no Brasil. Essa construção ideológica foi desmontada por Florestan desemprego daqueles tende a ser maior do que a destes últimos. Além disso, os negros
Fernandes, mas foi Abdias do Nascimento (1978) um dos mais enfáticos ao denunciar o ocupam postos de trabalho de pior qualidade e, em geral, na informalidade. Na população
racismo neste país. Abdias do Nascimento criou, já em 1944, o grupo de Teatro branca, 43% ocupam postos de trabalho formais e 56,2%, informais. Dentre a população negra,
Experimental do Negro (TEM), no Rio de Janeiro, e apresentou as denúncias na FESTAC 771 1
II Festival Mundial das Artes e
só 33,5% dos postos de trabalho são formais, e 66,5% deles ocupam postos informais no
Culturas Negras, realizado em
sobre as políticas de branqueamento no Brasil e o genocídio sofrido pelo povo negro. Esse Lagos, na África, entre 15 de mercado de trabalho. Os dados indicam que os trabalhadores negros recebem remunerações
autor transformou-se, por mérito próprio, em um dos principais ícones do movimento janeiro e 12 de fevereiro de
inferiores pelos mesmos trabalhos e apresentam, ao longo das diferentes faixas etárias, índices
1977.
negro no Brasil e em uma bússola na luta contra a discriminação. Abdias do Nascimento de desemprego progressivamente maiores.
critica as visões folclorizantes sobre a cultura negra. Ele chama a atenção para observar
Como assinalam Paiva e Paiva (2003): “Fundamentalmente, os negros apresentam, mais que
essas tradições como um exemplo de resistência frente ao processo de genocídio cultural,
os brancos, uma inserção inadequada no mercado; enfrentam taxas de desemprego maiores,
empreendido pelos projetos modernizadores do Brasil. Esses projetos tinham como um de
sem que haja uma justificativa para isso; estão inseridos em postos de trabalho de pior
seus componentes, ao lado da industrialização e da expansão da fronteira agrícola, o
qualidade; e, finalmente, recebem menos, mesmo quando controlados estatisticamente os
branqueamento da população do país, seja pela miscigenação, seja pela migração de
atributos ligados aos rendimentos, como escolaridade e experiência profissional”. Está claro
contingentes europeus, ou ainda pela repressão das manifestações culturais negras. As
que essas condições enfrentadas no mercado de trabalho se refletem na cobertura
críticas realizadas à visão folclorizante a partir do movimento negro ressaltam que essas
previdenciária.
tradições são manifestações de resistência cultural. As lutas pelo reconhecimento permitem
Análises dos dados da PNAD/IBGE de 2004, realizadas pela Secretaria de Políticas de
que a análise não fique presa a essencialismos e concentre-se nas demandas por cidadania,
Previdência Social (SPS), apontam uma menor proporção de contribuintes negros no
um fato moderno, pleiteado pelas populações tradicionais. 22 23 Regime Geral de Previdência Social (RGPS), assim como um percentual maior da população
negra entre os segurados especiais (rurais) do RGPS, os quais correspondem a 8.545.888.
Deles, 5.278.005 enquadram-se na categoria dos negros (como somatória de pretos e
pardos). Por outro lado, mais de 40% da população negra não são contribuintes, um
percentual maior do que aquele encontrado entre os brancos. No Brasil, 28.513.007
trabalhadores não estão socialmente protegidos; ou seja, 38,70% da população. Desse total,
15.224.365 são negros; isso indica que 42,5% dos trabalhadores negros não estão
protegidos pelo sistema de Previdência Social.
Do total populacional do Brasil, 12.277.021 trabalhadores encontram-se desprotegidos, com
rendimento inferior a um salário mínimo. Desses, 7.422.178 são negros, ou seja, quase 60% do
total, o que corresponde a 20,70% da população negra entre 16 e 59 anos. A proporção da
população negra ocupada e desprotegida com capacidade contributiva segundo as faixas de
rendimento indica que os maiores percentuais de trabalhadores desprotegidos concentram-se
nas faixas mais baixas; 74% estão na faixa de 1 a 2 salários mínimos. Isso corresponde a mais
de 5.400.000 trabalhadores negros. Ao analisar essa parcela da população negra, de ocupados
e desprotegidos, podemos observar que a maior parte concentra-se na faixa etária de 30 a 39
anos, quase 30% do total; mais de 23% estão na faixa de 40 a 49 anos, com mais de 1.700.000
trabalhadores sem cobertura previdenciária.
Se analisada a proporção da população negra ocupada e desprotegida, com capacidade
contributiva, segundo posição no mercado de trabalho em 2004, pode-se observar que só
42,8% dela possui emprego com carteira assinada. O emprego sem carteira representa
19,2% do total ocupado e responde por 43,4% da população negra desprotegida. Outro
grupo importante são os que declaram trabalhar por conta própria. Eles representam 18%
do total de pessoas negras ocupadas e respondem por 40% da população negra
desprotegida. Finalmente, temos as trabalhadoras domésticas com carteira assinada, que
correspondem a 3,5% do total de ocupados; já as trabalhadoras domésticas sem carteira
representam 4,1% da população total e mais de 11% da população desprotegida. Ao agrupar
os dados sobre as populações negras por ramos de atividade, observa-se que a maior parte
de sua população sem cobertura previdenciária concentra-se nos setores de comércio e
reparação (23,68%); na construção (18,32%); na indústria de transformação (11,43%); e nos
serviços domésticos (11,31% do total).
Apesar de esses indicadores assinalarem as populações negras como um dos segmentos da
sociedade nacional em situação de “risco social”, chama a atenção o fato de que a maior
parte dos estudos previdenciários tenham-nas ignorado. A Previdência Social, enquadrada na
seguridade social, tal como definida na Constituição de 1988, tem de ser entendida como
uma política orientada para solucionar os problemas das populações brasileiras que se
encontram em situação de “risco social”. Embora grande parte da população negra esteja
enquadrada nos parâmetros utilizados para definir essa condição, é chamativa a ausência de
trabalhos destinados a analisar as políticas previdenciárias para esses grupos.
Diversos estudos mostram a importância das políticas de Previdência rural no combate à
pobreza nas regiões norte e nordeste do Brasil. Em vários municípios dessas regiões, os
benefícios recebidos pelos aposentados mobilizam importantes setores da economia local. As
aposentadorias para trabalhadores rurais, estruturadas a partir de um sistema não-
bismarckiano, transformaram-se, na década de noventa, em um dos mais importantes
mecanismos de redistribuição de renda no Brasil (Delgado e Cardoso, 2000).Vários trabalhos
qualitativos mostram como essas comunidades rurais utilizam esse dinheiro (Schwarzer, 2000)
24 25 e como ele é incorporado a partir dos usos e costumes dos diferentes grupos (Alvarez, 2002).
Apesar dos importantes avanços realizados no campo dos estudos previdenciários, ainda Moçambique não eram apenas escravos, mas príncipes, guerreiros, agricultores, sacerdotes,
existe um vazio bibliográfico em torno da questão “negritude e Previdência no Brasil”. Os homens, mulheres e crianças que vieram com suas culturas, seus valores, seus saberes. As
estudos sobre Previdência Social ignoraram a questão racial sistematicamente e, quando a trajetórias de vida variaram ao longo dos séculos; muitos deles ganharam a liberdade, alguns
abordam nos estudos quantitativos, produzem a imagem de uma população negra pobre, como alforriados, outros por meio da resistência, como a fuga e a reorganização em
explorada, caracterizada pela cor da pele, onde o componente cultural, a visão de mundo, fica quilombos. Escravos e alforriados reuniam-se em diversos tipos de sociedades, como a
excluído por não ser susceptível de quantificação (Escobar, 1996). ordem leiga de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, com suas irmandades, ou
O presente trabalho foi orientado segundo a hipótese de que, frente à invisibilização das nos terreiros, onde foi mantida a fidelidade ao culto dos orixás.
populações negras do Brasil, é possível visibilizá-las centrando-se não na cor da pele, mas na Juridicamente, o processo de abolição da escravatura foi marcado pela Lei do Ventre Livre, em
tradição cultural. 1871; a Lei dos Sexagenários, em 1885; e a Lei Áurea, em 1888, que pôs fim à escravatura. Em
Para realizar o presente estudo qualitativo, foram selecionadas diferentes populações 1891, Ruy Barbosa teria mandado queimar todos os arquivos que documentavam o tráfico
negras, com diversas formas de organização social, e analisaram-se também suas principais de escravos no Brasil, proclamando-os cidadãos da República. Por trás de um discurso de
instituições. À luz desse cenário, foram observados os tipos de benefícios previdenciários igualdade e cidadania, ocultava-se o propósito de evitar ações judiciais de indenização por
presentes nos diferentes grupos e as estratégias desenvolvidas pela Previdência para atingir parte dos antigos proprietários de escravos (Verger, 2002.a, Freyre, 2002).
esse público; além disso, são assinaladas, no final do trabalho, possíveis estratégias para Passaram-se pouco mais de cem anos desde essa integração forçada. O trauma traduz-se em
cobrir o déficit de políticas previdenciárias. Os capítulos iniciam-se com uma análise das uma invisibilização das populações negras, na discriminação ou ainda na criação de
formas de organização social e das tradições culturais e encerram-se com uma reflexão estereótipos que reforçam ou justificam sua posição social. Esse segmento negro,
sobre as políticas previdenciárias das quais participam. secularmente ignorado, quando não discriminado de maneira aberta, desenvolveu várias
A escassez de informações quantitativas sobre a Previdência entre as populações negras estratégias de ajuda mútua em diferentes contextos. Nas instituições em que esta pesquisa se
determinou a estratégia da pesquisa. O público-alvo foi delimitado a partir da interseção concentra – os remanescentes de quilombos, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
entre os beneficiários da Previdência e as instituições tradicionais das populações afro- Homens Pretos, os terreiros de candomblé e os maracatus –, a festa e a religião ocuparam um
brasileiras. Durante o trabalho de campo, a atenção foi focalizada nos remanescentes de papel central na reprodução da tradição e da solidariedade. Essas instituições negras foram
quilombos
quilombos, em Minas Gerais; na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens aqui estudadas, passando, metodologicamente, da cor da pele para a tradição cultural e a
Pretos
etos, no vale do Jequitinhonha, no mesmo estado; nos ter
Pretos terrreiros de candomblé
eiros candomblé, na Bahia; organização social. Igualar negritude à cor da pele é bastante problemático no Brasil, onde as
e nos maracatus do Recife. O leitor se perguntará: por que essas tradições? populações negras se auto-classificam por meio de um universo de categorias aplicadas em
diferentes contextos de negociação de posições sociais.
Para compreender essas tradições negras, é necessário remeter-se ao passado escravista. A
negritude no Brasil tem o estigma da escravidão. O tráfico de escravos, entre os séculos Este ensaio tem o propósito de informar o leitor sobre essas populações de modo
XVI e XVIII, trouxe ao Brasil milhões de africanos negros. Diversas estimativas assinalam o personalizado. Ao longo dos capítulos, a cultura e a sociedade são apresentadas como pano
transporte de uma população de quatro milhões de africanos como escravos ao Brasil. Essa de fundo sobre o qual se projetam os personagens. Todos os entrevistados foram
migração forçada teve vários fluxos, os mais antigos eram provenientes dos reinos do informados sobre os propósitos do trabalho e deram seu consentimento para as
Congo. Em um segundo período, vieram dos reinos do Congo e da Costa dos Escravos. Em entrevistas e as fotos. Em geral, as entrevistas foram feitas em um primeiro momento e a
um último ciclo, houve um forte comércio entre a Bahia e a costa do Benin, já sem a seguir passou-se à realização das fotos. Os depoimentos transmutaram-se e deram lugar a
mediação dos portugueses e seu sistema de triangulação comercial que envolvia África, uma apresentação cheia de códigos. As fotos representam um registro da pessoa por trás
Brasil e Portugal (Wolf, 1984). do depoimento, constituem uma expressão visual produzida de maneira espontânea, uma
performance ou apresentação visual da tradição para o leitor. Como já mostrou Pierre
Segundo Verger (2002.a), o tráfico de escravos entre a África e a Bahia pode ser dividido
Verger, as tradições afro-brasileiras privilegiam a tradição oral e as performances carregadas
em quatro períodos: a) ciclo da Guiné (segunda metade do século XVI); b) ciclo do Congo
de elementos visuais de grande poder simbólico. As fotos não são um simples elemento
e de Angola (século XVII); c) ciclo da Costa da Mina (três primeiros quartos do século
estético, elas falam ao entrelaçar significados, como os colares do candomblé ou a boneca
XVIII); d) ciclo da Baía de Benin (1770-1850). O autor assinala que, nas outras regiões do
do maracatu, cujos significados são explicados nos depoimentos.
Brasil, o segundo ciclo, Congo-Angola, prolongou-se até a abolição do tráfico de escravos.
Verger (2000, 2002.a, 2002.b) lidou especialmente com as relações entre a costa da Bahia e Este trabalho retoma as várias formas adquiridas pela negritude no Brasil. Elas não se esgotam;
o Golfo do Benin, que se manifestam no culto aos antigos orixás e voduns, semelhantes aos pelo contrário, assinalam diferenças, traduzem realidades distintas, falam de alternativas e da
praticados ainda hoje pelas populações ao sul do Daomé e do sudoeste da Nigéria. construção de uma cidadania plural, capaz de reconhecer as diferenças. O propósito aqui é
duplo: por um lado, visibilizar essas diferenças pelo reconhecimento das tradições afro-
Esses africanos foram transportados como força de trabalho escravo, mas trouxeram suas
brasileiras e identificar formas tradicionais de assistência; por outro, observar a chegada da
tradições. As crenças reproduziram-se no segredo e no sincretismo. O mimetismo foi a
Previdência para essas populações e analisar, na figura dos aposentados, a hibridação entre
estratégia de resistência frente ao mundo dos brancos, onde foram obrigados a integrar-se
esses espaços tradicionais de assistência e a cobertura oferecida pelo sistema previdenciário.
de forma subordinada. Os iorubas e Djè-djès trazidos da Costa do Ouro ou Costa dos
Escravos, dos antigos reinos do Benin, Fon e Ifé, os bantos do Congo, de Angola e 26 27 Durante a execução da pesquisa, foram identificadas instituições tradicionais entre
populações negras. Realizou-se um levantamento antropológico, que consistiu em
entrevistas semi-estruturadas com os aposentados desses grupos, na observação direta de
atividades sociais e das festas com elementos culturais afro-brasileiros, com registro
fotográfico e em vídeo digital. Sabe-se que o tempo de pesquisa, aproximadamente dez dias
em cada uma das localidades visitadas, foi pouco em termos de trabalho de campo
antropológico, mas as condições de sua realização em ritmo de consultoria impuseram essa
dinâmica. Realizou-se um trabalho intensivo, com foco nas instituições. Entrevistaram-se as
lideranças das organizações, e houve observação direta de eventos que acontecem tanto no
cotidiano como em momentos especiais, tais como rituais, festas e outros tipos de
apresentações. As lutas pelo reconhecimento permitiram uma abordagem centrada nas
tradições, mas considerando-as como processo político.
Durante o trabalho de campo também foram entrevistados técnicos da Previdência que
trabalham com essas populações tanto no atendimento direto (como o realizado pelo
PREVmóvel), como em atividades destinadas a ampliar a cobertura do sistema
previdenciário (como os técnicos do Programa de Educação Previdenciária - PEP/MPS).
As entrevistas com os aposentados e as pessoas idosas foram estruturadas a partir de
diferentes tópicos: apresentação, a forma de vida tradicional do grupo e as mudanças
ocorridas nas últimas décadas, o antes e o depois da aposentadoria, as atividades no
interior das instituições tradicionais de assistência e as interações com o resto da
sociedade, as mudanças decorrentes da aposentadoria e as formas de utilização do dinheiro.
Na primeira etapa do trabalho de campo, em Salvador, foram realizadas aproximadamente
18 entrevistas gravadas, o que constitui um acervo de 15 horas de gravação. Foram
entrevistados funcionários da Previdência, pais-de-santo, mães-de-santo e baianas do
acarajé. Cabe ressaltar que foram realizadas também entrevistas não gravadas, pois a
metodologia empregada demandou a localização de personagens-chave, o que terminou por
implicar diversas sondagens. Devido às restrições do grupo, as gravações em vídeo
resumem-se a vinte minutos nos quais aparecem rodas de terreiro e outros rituais do
candomblé.
Na segunda etapa do trabalho, no interior do estado de Minas Gerais, foram realizadas 28
entrevistas, totalizando 17 horas de gravação. Durante essa etapa, registraram-se, em vídeo,
aproximadamente duas horas e meia de fragmentos de entrevistas e festas nas quais os
aposentados desempenham um papel central. Entre esses eventos, estão o batuque e as
congadas nos remanescentes de quilombos e uma apresentação dos reis e dos tambozeiros
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí.
Na terceira etapa dessa pesquisa de campo, em Recife e municípios vizinhos, foram visitados
seis maracatus, três terreiros e a Confraria de Nossa Senhora do Rosário. Realizaram-se 23
entrevistas semi-estruturadas com aposentados, líderes dos maracatus, pais e mães-de-
santo, técnicos da Previdência, da Gerência do INSS e do PEP. Essas entrevistas somam mais
de catorze horas de gravação; realizou-se também um registro, em vídeo, dos ensaios e das
apresentações de maracatu. acadêmica que explore, de maneira exaustiva, o universo da negritude no Brasil. Seu
Nos próximos capítulos, serão expostos os resultados obtidos, com as limitações do tempo propósito é realizar um experimento de tradução cultural, confrontar o leitor,
e do ritmo intensivo impostos à pesquisa. Em dez dias para cada localidade, foi apenas possivelmente branco, com os depoimentos e os retratos desses cidadãos negros, seus
possível entrever as principais linhas que orientam as relações sociais, escutar as demandas pontos de vista, suas várias formas de ser brasileiro. Ao leitor é oferecido um espelho, onde
e observar algumas atividades dos grupos. Parte da interpretação das observações apóia-se poderá enxergar fragmentos do patrimônio cultural afro-brasileiro.
na literatura antropológica; outra parte é produto das distintas situações etnográficas
observadas no trabalho de campo. O propósito do livro não é realizar uma apresentação 28 29
32 33
1
Populações negras
em Minas Gerais:
irmandades, garimpos
e quilombos
66 67
68 69
A Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Homens Pretos
Passemos agora aos núcleos urbanos, às vilas formadas na época da colonização, hoje, cidades
sedes dos municípios. É nesse contexto urbano que encontramos as Irmandades de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos. A Igreja teve um importante papel em relação às
populações negras, seja pelo apoio, pela omissão ou por ter servido de referência ao
sincretismo das crenças dessas populações. Nesta seção, será analisada a Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, criada por aqueles negros, escravos ou alforriados,
que se organizaram no seio da Igreja. No próximo capítulo, será analisado o candomblé, que
utilizou, por muito tempo, os santos católicos para continuar louvando seus orixás.
Gilberto Freyre descreve as irmandades negras como: “verdadeiras organizações de
disciplina, com os ‘reis do Congo’ exercendo autoridade sobre ‘vassalos” (2002:409).
Guerra-Peixe (1981) procura a origem das irmandades na instituição do Rei do Congo,
criada pelos portugueses para evitar rebeliões e insurreições entre os escravos. Segundo o
autor, as informações mais antigas sobre a instituição do Rei do Congo, em Pernambuco,
datam de 1711, em Olinda. Cada paróquia tinha seu rei, sua rainha e sua corte. Os reis
eram eleitos, e o ato solene da coroação e da posse acontecia no dia de Nossa Senhora do
Rosário, quando o pároco da freguesia coroava os reis. Ele assinala que, em Recife, essa
instituição foi estabelecida, pelo menos, em 1674, segundo registros de diversos reinados.
Com a proibição do tráfico de escravos e, finalmente, com a abolição da escravatura, a
instituição, segundo o autor, desaparece em meados do século XIX, mas persistiria em
Recife o “auto dos Congos”, como a representação de uma peça teatral, um auto-religioso.
Verger (2002.a:546) menciona a existência de diversas irmandades que agrupavam os
negros de acordo com suas nações de origem. O autor menciona também a existência de
juntas ou sociedades de alforria. O caso analisado por meio da documentação histórica
mostra a organização de escravos e libertos em uma sociedade que funcionava como uma
“caixa de empréstimo”. Segundo os documentos sistematizados, essas caixas de
empréstimos estavam organizadas de acordo com uma chefia, a qual recebia o dinheiro e
tomava conta das quantias recebidas como amortização e prêmios, além de um cobrador e
juízes que, em caráter ordinário, reuniam-se aos domingos. Os associados tinham o direito
de retirar o dinheiro em caso de necessidade. O propósito dessa poupança era conseguir o
recurso necessário para a compra das cartas de alforria. Quando o mutuário retirava o
dinheiro necessário para sua alforria, podia receber um empréstimo que depois devolveria à 70 71
junta com juros. O autor analisa o caso da Irmandade de Nossa Senhora da Soledade
Amparo dos Desvalidos, criada em 1832. O número de associados não era limitado, mas
tinham de ser pretos. O estatuto estabelecia, no seu artigo 3O, que era estritamente
proibido revelar a parentes ou amigos o discutido nas reuniões do comitê. Numerosos
membros dessa confraria eram, ao mesmo tempo, cristãos e muçulmanos e faziam parte da
Confraria de Nossa Senhora do Rosário das Pessoas de Cor, no Pelourinho.
Na mesma obra, Verger (2002.a:555) mostra como as várias nações africanas estavam
agrupadas em diferentes “cantos” da cidade e também organizadas em torno de confrarias
religiosas ligadas a diversas igrejas. Uma das mais antigas, fundada na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário do Pelourinho, em Salvador, BA, era a Confraria Venerável Ordem
Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo. Essa confraria, no ano de
1786, encaminhou uma carta às autoridades reais solicitando permissão para utilizar as
máscaras, realizar as danças e os cantos angolanos, assim como para usar os instrumentos
para “cantigas e louvações”. Os “daomeanos jejes” formaram, em 1752, a Confraria do
Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redempção dos Homens Pretos em torno da Igreja
do Corpo Santo, na cidade baixa. As mulheres nagô-iorubas da nação “queto” formaram a
Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte. O autor ainda observa que: “Foi à sombra desta
igreja que se reuniram os primeiros participantes nos cultos dos deuses africanos desta
nação queto” (Verger, 2002:555).
Sousa (2000) assinala que os terrenos da irmandade, onde estava construída a igreja,
serviam também para a construção de moradia para os escravos alforriados membros da
irmandade, o que criou verdadeiros bairros. Outras das preocupações eram com a “boa
morte” dos irmãos e com a organização das festas, durante as quais se apresentava,
cenograficamente, a organização social das irmandades.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ainda funciona em
pequenas cidades do interior de Minas Gerais. Em lugares como Olinda, Pernambuco, a
confraria ainda funciona em torno de um presidente e não tem reis, nem tambozeiros,
assim como não realiza a festa da nossa Senhora do Rosário. Em outras cidades, como
Sobral, no interior do Ceará, a confraria não funciona há décadas, mas ainda é possível
localizar alguns antigos participantes. As terras ao redor da igreja, antes destinadas à
construção de habitações para os alforriados, transformaram-se em bairros urbanos, tanto
em Sobral como em Olinda.
Durante o trabalho de campo, foi possível realizar entrevistas com participantes da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que funciona nas localidades
de Chapada do Norte e Araçuaí, ambas em Minas Gerais, assim como com participantes da
Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos em Olinda, Pernambuco. Essas
irmandades possuem registros datados do início do século XIX, mas presume-se que
vieram formalizar o funcionamento de irmandades já em atuação na época, no caso de
Olinda, desde 1667.
A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos remonta-nos ao Brasil
Imperial e, mais longe ainda, à época da colônia, quando as relações entre os homens e o
Estado eram mediadas pela Igreja. Antes da República, pertencer às diferentes irmandades
levava ao reconhecimento como pessoa, como cidadão. A participação na vida social e até
mesmo o direito a uma “boa morte” eram mediados pela Igreja, em particular para os
negros residentes na cidade, fossem livres, alforriados ou escravos.
72 73
As irmandades, uma forma de organização leiga, constituíam diversos grupos dentro da
igreja. Na Europa medieval, esses agrupamentos eram marcados pela clivagem dos
diferentes ofícios; na América portuguesa, tiveram uma marca racial. Várias irmandades
tomaram parte da empreitada de colonização territorial/espiritual no Brasil. Com
freqüência, elas tinham uma clivagem racial, como ocorre com a Irmandade do Santíssimo,
composta exclusivamente de brancos, e com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário,
composta por negros.
“Naquela época, o negro não podia freqüentar igreja, ser enterrado como cristão. Aí o que
eles faziam? Eles chegavam ali e, dali pra trás, eles se reuniam. E construíram essa igreja ali,
escondida. Depois que eles construíram essa igreja, teve muita polêmica entre os negros, os
brancos da igreja do Amparo, os militares – que é São João a igreja dos Militares, aquela
que fica lá em cima – e Guadalupe, a igreja dos pardos. Aqui, como você está vendo, é
formado um triângulo de igrejas: Rosário, Amparo e Guadalupe e, no meio, a igreja de São
João dos militares, que era pra que não tivesse briga quando eles se encontrassem, na
época. Aí dá esse triângulo. Lá no Guadalupe, era a igreja dos homens pardos; Amparo, dos
homens brancos; e Rosário, dos negros. Aí eles construíram, no meio, a igreja dos militares,
na época. Foi quando, no Campo de Bonsucesso, tinha um quartel, aí na frente onde hoje
tem o campo de futebol.
Na igreja do Rosário, tinha um cemitério no assoalho dos negros. Porque esses negros
foram, nessa época, pessoas que não tinham… Eram discriminadas por toda a sociedade, e
queriam se valorizar. Através disso que eles brigaram pra encontrar toda essa parte, mas foi
com tempo.” (Nilson Canuto de Santana, presidente da Confraria de Nossa Senhora
do Rosário dos Homens Pretos, aposentado, Olinda, PE.)
A igreja oferecia poucos referentes negros, como São Benedito ou um dos reis magos,
Baltazar, também negro. Nesse contexto colonial e escravocrata, no qual os negros não
podiam compartilhar a igreja com os brancos, teve lugar a criação da Irmandade do Rosário
em torno do culto a São Benedito, o mouro, um dos poucos santos negros da igreja católica.
A imagem do santo está associada ao culto a Nossa Senhora do Rosário nas procissões:
“Ah, à tarde, a imagem segue em procissão, sempre acompanhada de São Benedito. Vai
Nossa Senhora na frente e São Benedito atrás, ou então São Benedito na frente e Nossa
Senhora atrás.” (Sr. Pedro Antonio Ribeiro Pereira, presidente da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)
Pensou-se a irmandade, inicialmente, como um espaço para a catequização e o controle das
populações negras. Com o tempo, essa ordem leiga foi ganhando autonomia e transformou-
se tanto numa sociedade de assistência aos irmãos mais necessitados, como em um lugar
para a reprodução das tradições africanas com certa transformação. Muitas das irmandades
organizaram-se nos séculos XVII e XVIII. No século XIX, frente às pressões da Igreja
Católica para a romanização da liturgia, para controle do catolicismo popular, as irmandades
passaram por um processo de formalização que incluiu, em um primeiro momento, o seu
registro frente ao governo e à Igreja (Sousa, 2000). A partir daí, tiveram de realizar um
registro de seus regulamentos e lavrar as atas das reuniões. Os Livros das irmandades,
datados de finais de 1800, transformaram-se em um valioso documento de testemunho da
antigüidade desses agrupamentos.
Diversos propósitos contribuíram para a sua criação. Tanto o auxílio aos irmãos
necessitados como a “boa morte” foram os objetivos responsáveis pela estruturação da 74 75
irmandade de forma permanente. Outro dos propósitos era a construção da igreja – que Dentro da Irmandade, a maior honra é ser o festeiro. É o rei quem se mobiliza para
levava o nome de Nossa Senhora do Rosário – e sua manutenção. Durante o século XVIII, oferecer a comida e a bebida consumida nesse ritual de comensalidade. Os fundos para a
os mortos eram enterrados na igreja; só a partir do século XIX, passaram a ser enterrados festa são levantados com as doações pedidas pelo festeiro e com a organização de um
em cemitérios públicos. Muitas das irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens leilão, onde são vendidas roupas e comidas. O prestígio do rei é proporcional à quantidade
Pretos, como a de Araçuaí, ainda têm um cemitério próprio nos fundos da igreja. Na época de alimentos e bebidas conseguidos para a festa.
do império, a cidadania era mediada pela Igreja, e os negros só podiam participar dela por “Bem antes da festa, uns quinze, vinte dias, clareia tudo pra quem é rei, porque aí você vai,
meio das irmandades. O negro que não participasse, não tinha direito a uma “boa morte”, porque realmente gasta muito, porque é uma festa tradicional, que nunca pode acabar essa
ou seja, a ser enterrado como um ser humano. tradição. Nós até queremos fazer um pouco de economia, mas não tem condições. Na festa,
“Porque, antigamente, os negros, quando morriam, eram jogados no mar. Então eles não tem; você gasta mesmo. E a pessoa que ajuda tem, já é tradição, um nicho cativo. O João
construíram, atrás da igreja, um cemitério para os negros, e essa Irmandade dava todo o apoio Neiva, ele sempre dá uma vaca pra matar pro dia da festa. Madre Iani faz a comida pros
à comunidade negra daqui de Olinda. Quando eles formaram essa Irmandade, em 1628... foi tambozeiros e pro resto, o pessoal da Irmandade ajuda.
formada aqui em Olinda, aí foi pra do Rosário dos Homens Pretos do Recife, e lá eles não Quando tem, no mês de agosto, quando vem chegando a festa, o rei e a rainha pegam a
tomaram a iniciativa de levar a coisa à frente. Depois foi pra Igarassu, na Igreja do Rosário dos coroa da mão do presidente pra retirar donativos. Cada um pega o que tem, e a pessoa dá
Homens Pretos. E lá também passou vários tempos e não teve como dar prosseguimento. Aí 20 centavos, 30 centavos, 1 real, 10 reais, pra ir juntando pra gastar na festa. Isso a gente
foi quando veio.Voltou novamente pra Olinda, em 1748, e foi quando foi formada a consegue, dá muito trabalho, mas vale a pena, porque o dia que você entrega, você fica todo
Irmandade. Aí ela passou a ser divulgada em todo o Brasil. Foi a primeira irmandade negra, de emocionado. Eu mesmo fiquei muito emocionado, porque, graças a Deus, a minha festa, eu
comunidade negra.” (Nilson Canuto de Santana, presidente da Confraria de Nossa como presidente, fui muito de sorte pra ganhar as coisas. E, gente, rei e rainha, sabendo
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, aposentado, Olinda, PE.) trabalhar, não gastam do dinheiro deles não. No segundo Domingo do mês, após a festa,
A festa de Nossa Senhora do Rosário é a expressão mais visível da Irmandade, o momento tem que declarar quanto ganhou e quanto sobrou. Às vezes a consciência da pessoa, em
durante o qual esta é representada e as tradições afro-brasileiras, atualizadas. Alguns caso de sobrar alguma coisa... você vê que devolve pra igreja. Se não sobrou, fazer o quê?”
autores, como Guerra-Peixe (1980) e Katarina Real (1990), vêem na coroação dos reis uma (Sr. Pedro Antônio Ribeiro Pereira, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do
analogia à coroação dos reis africanos do Congo, ou consideram a apresentação um auto- Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)
religioso ou uma reminiscência dessa instituição. Nosso interesse está nas suas implicações Na quinta-feira antes da festa,
como ritual, nos elementos simbólicos reproduzidos, na organização social que a sustenta. A lava-se a igreja. Nesse mesmo
festa transforma-se em um momento de inversão de hierarquias, onde os negros ocupam o dia, à noite, é oferecido o angu,
lugar central nos festejos em uma sociedade que os relegou à periferia. comida que lembra os tempos
Detenhamo-nos na descrição da série de eventos que compõem o ritual da festa de Nossa da escravidão. Além disso,
Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Essa série de eventos inicia-se vários meses antes antes do nascer do sol, as
da festa propriamente dita com a instalação da mesa do futuro festejo dos reis. Durante mulheres das comunidades
uma reunião de todos os membros da Irmandade, ocorre a eleição do rei festeiro, da rainha saem das suas casas,
e dos juízes. Essa eleição é realizada por votação secreta, e os candidatos têm de ser carregando suas vassouras de
membros da Irmandade. coqueiro. Na Irmandade de
O Rei e a Rainha, também conhecidos como festeiros, são eleitos anualmente. A eleição Nossa Senhora do Rosário
acontece de acordo com uma tríade de nomes propostos em assembléia. Os votos dos dos Homens Pretos de
irmãos definem quem serão os escolhidos. Atualmente, um dos eleitos pode ser branco ou Chapada do Norte, as
mestiço, mas o outro tem de ser negro. Segundo a tradição da Irmandade, caso os dois mulheres do Córrego da
indicados para o reinado sejam brancos, a eleição é anulada, e realiza-se uma nova votação. Misericórdia, apresentadas
Realizada a escolha dos reis, os tambozeiros anunciam a decisão com seu toque. A festa de como remanescentes de
Nossa Senhora do Rosário entrelaça as festas religiosas do catolicismo popular e os rituais quilombos, são as responsáveis
africanos, marcados pela presença dos tambozeiros. pela lavagem da igreja. Elas são
recebidas à porta da igreja
A festa é precedida pela organização de uma novena, da qual participam os membros da
pelos reis e pelos membros da
Irmandade. Cada um desses encontros é organizado por um grupo.Vale notar que a novena
Irmandade. Depois, o pessoal é
é um culto católico que dispensa a presença do sacerdote. Durante a sessão, os irmãos
conduzido, ao som dos
reúnem-se, rezam, passam recados à comunidade; ela é, antes de tudo, um momento de
tambores, até o rio, onde
encontro periódico e reforça tanto os vínculos dos homens com Deus como as relações
76 77 pegam a água para lavar a
dentro do grupo.
78 79
igreja. Após a lavagem, por volta das dezessete horas, é oferecido, na casa da rainha, o angu,
que simboliza os alimentos da época da escravatura. Esse angu de milho é acompanhado de
molho de abóbora e quiabo, alimentos antes oferecidos aos escravos.
As águas e o rio voltam a estar presentes no sábado, quando se retoma o ritual com a
busca da imagem da virgem depositada sobre as pedras no rio. Nessa parte do ritual, a
virgem é levada à igreja, ao som da congada e dos tambozeiros, em percussiva procissão.
“Quando é no sábado, tem a busca da imag imagem em de Nossa Senhora, na pedra do rio, e
voltam os rituais de tambor e de congado.Tudo acompanhado pela cidade. Busca, passa
pela casa do rei e da rainha, batuca, festeja. Daí volta para igreja, onde tem a festa ao meio
dia e, à noite, tem a celebração do mastr
mastro.o.
o.” (Teco, presidente da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Chapada do Norte, MG.)
Outros autores, como Leda Martins (1997), também chamam a atenção para a associação
entre a virgem e as águas.
“Uma das versões mais recorrentes em Minas nos conta que, no tempo da escravidão, os
negros escravos viram uma imagem da santa vagando nas águas do mar. Os brancos a
resgataram e entronizaram numa capela construída pelos escravos, mas na qual os negros
não podiam entrar. Apesar dos hinos, preces e oferendas, no dia seguinte, a imagem
desaparecia do altar e voltava ao mar. Após várias tentativas frustradas de manter a santa
na capela, os brancos rendem-se à insistência dos escravos e permitem que eles rezem para
a imagem à beira mar. Uma guarda de Congo dirige-se, então, para a praia e, com seu
ritmo saltitante, sua coreografia ligeira, suas cores vistosas, paramentos brilhantes e fitas
coloridas, canta e dança para a divindade. A imagem movimenta-se nas águas, alça-se sobre
o mar, mas não os acompanha.Vêm, então, os moçambiqueiros, pretos velhos, pobres, com
vestes simples, pés descalços, que trazem seus três tambores sagrados, os candombes, feitos
de madeira oca e revestidos por folhas de inhame e bananeira. Com seu canto grave e
gutural, seu ritmo pausado e denso, as gungas, seus patangomes e sua fé telúrica cativam a
santa que, sentada no tambor maior, o Santana ou Chama, acompanha-os devagar, sempre
devagar.” (Leda Martins, 1997: 45)
Para Leda Martins, essa narrativa implica três elementos: a descrição de uma situação de
repressão vivida pelos escravos; a reversão dessa situação com a retirada da santa; e a
instituição de uma hierarquia de outro poder, fundado em elementos míticos, como o
poder do som dos tambores, do canto e da dança. Canta-se a favor da divindade, celebram-
se as autoridades e, ao mesmo tempo, canta-se contra a escravidão, a falta de liberdade, a
opressão. É instaurada uma outra ordem social, ancorada nas hierarquias do reinado.
A associação entre a virgem e as águas pode ter outras implicações simbólicas se analisada
à luz de outro valor da Irmandade: a boa morte. A igreja e o cemitério não se organizam
em torno dessa virgem, proveniente das águas, de maneira gratuita. A morte também era
simbolizada, entre os grupos bantos, pelo termo “calunga”. Na tradição banto, o mar – as
águas – era chamado de “calunga grande”, enquanto a morte era chamada de “calunga
pequena”, talvez com base na crença de que essa água era a moradia dos mortos. A
associação da virgem com as águas está carregada de sentido. São as águas que guardam os
mortos, são elas que os conectam à África. Elas podem ser interpretadas, simbolicamente,
como a representação da viagem na qual os escravos vieram da África.
Depois dessas celebrações centradas na virgem e de sua aparição sobre as águas, tem lugar
o clímax do ritual, no domingo, com a preparação e a posse dos novos reis. 80 81
“Quando é dezessete horas, faz o fechamento, aí faz a marcha rápida, devolvendo a Santa.
Então, vai ter a celebração de posse da Irmandade. Os reis já estão lá posicionados, aí
existia a transferência da coroa, foi empossado o rei, aí tem o rreinado
einado
einado. O reinado é levado
aos reis. Primeiro entrega o que recebeu, a rainha que recebeu a coroa, depois o rei que
recebeu a coroa, depois a rainha que sai, depois o rei que sai. Tem que ser essa ordem, não
importa se às vezes você passa na porta de uns três, mas não pode entregar ele não.
Aí passa o toque do tambor com gana, aí os festejos finais da festa, o encerramento da
festa. Aí vêm os tambozeiros, a gente fala os tambozeiros: os pessoal que mais conhece o
tambor, que bate melhor, que sabe usar melhor o tambor, que esses dias participam
mesmo.” (Teco, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos, Chapada do Norte, MG.)
Como se depreende do relato, os reis – ou a instituição do reinado –ocupam um lugar
central em toda a série de eventos que compõem a festa de Nossa Senhora do Rosário; seu
lugar é tão proeminente que parece relegar a Santa católica a um segundo plano. Os reis
são a figura em torno da qual se estrutura uma corte composta por juízes, tesoureiros,
secretário e – na atualidade – o presidente da Irmandade. Esse modelo de ordem social real
serve para dotar o grupo de uma forma de organização e outorgar-lhe certa autonomia,
ainda que enquadrado dentro da Igreja. A mesa diretora, responsável pelo funcionamento da
Irmandade e pela prestação de contas, está composta por juízes, secretários, tesoureiro e
procurador.
A coroação é acompanhada de uma grande festa popular, durante a qual são oferecidos
alimentos e bebidas, conferindo-lhe um caráter de dádiva e de inversão social. A população
mais pobre, mobilizada pelo sistema de festas, oferece um banquete do qual se orgulham da
abundância e dos recursos angariados. A realização da festa implica mobilizar toda uma rede
de relações sociais, nas quais a honra do festeiro, seu prestígio, é medido em função das
relações que consegue mobilizar. Em contraposição ao rei soberano que impõe sua vontade,
“Depois vem a pr epar
prepar ação da posse dos que foram eleitos. O rei anterior transfere a
eparação vemos aqui um poder ancorado na reciprocidade. As pessoas colaboram com a celebração
coroa para outro. Aí começa, sete da manhã, escada do rei novo, escada do rei que vai sair, por pertencerem à Irmandade, por serem conhecidas do rei, por serem beneficiárias de
leva lá, apresenta para a Irmandade. Depois vai a marcha da Irmandade,, busca do cofr cofree , é antigos favores pessoais, ou por algum outro tipo de lealdade. É esse caráter de reciprocidade
um cofre muito antigo de madeira, muito antigo, onde fica os pertences da Irmandade. que leva alguns autores a qualificar o poder do rei como uma “falsa jurisdição”. Leda Martins
Chama marcha rápida. Aí é conferido todos os bens da Irmandade, na presença dos irmãos, (1997:47) ressalta que, tradicionalmente, havia dois pares de reis: os reis do Congo e os reis
onde é feita a pr estação de contas
prestação contas. Aí fica tudo na igreja lá, pro público saber tudo que a festeiros. Os primeiros tinham um caráter vitalício e de linhagem tradicional no congado, os
Irmandade tem e o que não tem, a parte dos bens pertencentes à Irmandade, a parte outros eram escolhidos anualmente. Enquanto os reis festeiros representam a Nossa Senhora
financeira, que fica no banco, e tudo prestado contas. E, aquele dia, os juízes ficam lá, do Rosário, a igreja e os santos, os reis do Congo simbolizam as nações negras africanas.
acompanhando tudo.” (Teco, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário Nesse sistema simbólico, o fato mais marcante é a oposição entre o rei e os tambozeiros,
dos Homens Pretos, Chapada do Norte, MG.) representantes do lado profano da festa, associado à feitiçaria. Segundo a interpretação dos
A prestação de contas e a busca do cofre só podem ser entendidas, em sua real dimensão, participantes, essa oposição tem como significado o romance contado pela seguinte história:
caso se considere que essas irmandades já funcionaram como verdadeiras caixas de antigamente, o rei tratava mal os negros, os castigava e os fazia passar fome. Certo dia, os
poupanças para os escravos, onde eles depositavam suas economias para poder comprar negros enfeitiçaram-no. Ele ficou doente e teve de recorrer aos tambozeiros para recuperar a
sua liberdade com a carta de alforria. Alguns escravos ofereciam seus serviços como saúde. Segundo a tradição, a partir desse dia, o rei começou a tratar bem os negros.
carregadores ou exerciam algum ofício nos dias de folga; outros, como lembram os “E se é uma tradição da festa, eu vejo falar que, naquela época, quando começou a Festa
membros mineiros, eram escravos na mineração e às vezes tinham a oportunidade de se de Nossa Senhora do Rosário, tinham os reis que dominavam os escravos. Então, naquela
apropriarem de alguma pepita de ouro e escondê-la entre os cabelos para, posteriormente, época, quando apertavam os escravos demais, eles começavam a ‘rezar’.
depositá-la na Irmandade. O cofre e a prestação de contas revivem as estratégias
implementadas para alcançarem a liberdade. Hoje em dia, os irmãos pagam uma pequena O rei e a rainha mandavam os capatazes judiar com os escravos, para fazer tudo.Tinha
taxa, a qual permite o funcionamento da Irmandade. 82 83 escravo que não agüentava, eles eram chicoteados para poder fazer a festa. Quando foi um
E na hora da saída deles, dá pra fazer o batuque deles. Eles cantaram...
como é que é mesmo, gente, que eles cantaram? ‘Ei, sai sai de cumeçar, oi
cumeçar, sai sai de cumeçar’. Aí tava saindo da igreja, quando começou a sair
da igreja, os escravos daquela época ganharam na festa do rei e da rainha e
começaram a cantar outras músicas, começaram a cantar outras músicas
que eu nem lembro agora... como é que foi a outra música? ‘Ei sá rainha, ei
sá rainha, até o ano que vem, até o ano que vem’. Desse modo aí, o rei ficou
junto com os escravos, não atrapalharam eles em mais nada, e aí
começaram a conviver com os escravos; isto é, fazendo a festa, né?
Aí, quando eles sentiam um pouco assim abatidos, os escravos começavam a
tocar o tambor, aí os reis vinham, aí foi que Nossa Senhora do Rosário
apareceu. Assim ficou a tradição da festa.” (Sr. Pedro Antônio Ribeiro
Pereira, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)
Esse episódio é representado ao longo da festa, quando os
tambozeiros, por meio de diferentes cantos, desafiam o rei. O ritual
encerra-se com uma dança, durante a qual o capitão do tambor, em um
gesto dadivoso, oferece simbolicamente cachaça ao rei, depois aos
tambozeiros e, por fim, faz uma dança com a garrafa de cachaça na
cabeça. Tivemos a oportunidade de presenciar essa parte do ritual,
apresentada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos de Araçuaí.
Segundo Porto (1997), os tambozeiros são os conhecedores dos
feitiços. No seu trabalho sobre a Festa de Nossa Senhora do Rosário
na Chapada do Norte, a autora diz ter coletado diversas histórias que
associam os tambozeiros ao uso de plantas medicinais para fazer
adormecer seus oponentes e ao uso de certa raiz de efeitos
estimulantes. Leda Martins (1997) ressalta o poder atribuído ao som
dos três tambores, chamados candomblés. Eles são o meio de
comunicação com o mundo dos espíritos, o meio que transporta os
sentidos à África. Os tambozeiros constituem um elemento
permanente, diferente do rei festeiro, eleito periodicamente.
Como se depreende dos relatos, a festa de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos envolve, em primeiro lugar, como núcleo duro, os
membros da irmandade; em segundo, as pessoas das comunidades e da
cidade, durante as novenas e os preparativos: os leilões, a quinta do angu
e outras atividades preparatórias que implicam uma complexa trama de
dia, um escravo teve uma visão de Nossa Senhora do Rosário, e começaram a fazer os prestações e contraprestações tradicionais. Finalmente, quando acontecem a procissão, a
tambores de pau. coroação e a festa propriamente dita, contam com a participação de toda a comunidade e de
muitos festeiros de outras localidades. Tais eventos transcendem os limites da cidade para
Aí, quando o rei mais a rainha chegaram, eles foram louvar eles naquele momento, batendo os mobilizar um universo social mais amplo.
tambores e cantando ‘vamos louvar seu rei, vamos louvar sua rainha, vamos louvar seu rei, vamos
A festa é o momento culminante e, durante essa série de eventos rituais, a Irmandade é
louvar sua rainha’. O rei se sentiu mal naquele momento, junto com a rainha. Aí os escravos
apresentada cenograficamente; mas ela, como instituição, tem uma existência permanente e
dominaram eles e trataram eles muito bem, fez um chá pra eles melhorar. Então, eles melhorou,
define-se como uma sociedade de apoio mútuo ou filantrópica. Os irmãos pagam uma anuidade
aí eles ficou assistindo os tambores bater e eles começou a cantar ‘eita Maria, eita Maria, adeus
utilizada para a manutenção do templo e para prestar auxílio em casos de necessidade, por
sinhô rei, adeus sinhô rei, até o ano que vem, até o ano que vem’. 84 85
exemplo, adoecimento de algum dos membros, realização de enterros, entre outras.
“Faz parte do nosso dia cotidiano, trabalho com boa vontade. Não tem nenhum ordenando,
mas a entidade é isso mesmo, é uma entidade filantrópica e não tem fins lucrativos. Nós
temos é que saber respeitar a verba que entra no município e também saber executar ela
pro povo ver que a gente tá fazendo alguma coisa.” (Sr. Pedro Antonio Ribeiro Pereira,
presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de
Araçuaí, MG, aposentado.)
Em Araçuaí, o cemitério da irmandade, nos fundos da igreja, continua a receber os irmãos
mortos. O cemitério e os tambores são temas abordados em suas reuniões.
“Nas reuniões da Irmandade, os temas são freqüência, gente que está precisando de mais
freqüência. Nós discutimos aí também várias coisas do problema comum que acontece em
qualquer entidade que surge, aí tem problemas pra resolver com sua família da entidade.
Coisas que tem pra fazer e que necessita fazer: se tem que arrecadar alguma coisa pra
poder fazer isso ou aquilo, ajudar os irmãos. Agora, a idéia é fazer uma casa à parte,
tambozeira. Nós estamos pensando em fazer uma casa ali, separada lá, até pra facilitar pra
gente não precisar ficar abrindo a igreja, porque a igreja já é uma coisa mais... tem que
levar mais a sério, não ficar ali dançando. Hoje a Irmandade já tem quase um cemitério lá
dentro, só para a Irmandade. E nesse cemitério, há 12-13 anos atrás, teve a idéia de a
gente fazer um negócio grande assim pra poder sepultar, porque ficava enchendo de
trabalho, cada um fazia um, cada um fazia um. E aí foi o jeito.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva,
72 anos, sapateiro e aposentado, Araçuaí, MG.)
Por ser uma Irmandade de ordem vitalícia, pode-se observar a participação ativa de diversos
aposentados. Alguns, mais idosos, participam como assessores e têm uma preocupação
especial em manter a tradição e evitar mudanças introduzidas pelos mais jovens. Um desses
aposentados fez-se de desentendido durante a entrevista. Ele, um antigo capitão do tambor,
Luiz Pereira dos Santos, de 85 anos, repetia que estava velho, que não se lembrava de mais
nada e queixava-se das mudanças. Quando a Irmandade realizou a apresentação, esse senhor
idoso, que mal conseguia andar, parecia um jovem puxando os tambozeiros e foi um dos que
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permaneceram mais tempo na roda cantando e puxando os tambores. pessoas que acabaram deixando de lado.Você tem que ter um pouco de sabedoria, ser mais
Por ser o reinado de um ano, dificilmente a mesma pessoa poderá ser rei mais de uma vez. esperto. Aí eu pago um salário, porque um de todo jeito eu pago, porque eu vou precisar disso
O Senhor Vicente, aposentado rural, com mais de oitenta anos de idade, orgulha-se de ter e eu pago.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos, sapateiro e aposentado.)
sido rei duas vezes; fato extraordinário e que mostra seu prestígio na Irmandade. Para esses aposentados urbanos, enquadrados em um regime contributivo, a Previdência
Social é vista como um seguro social e não como uma poupança, como são apresentados os
programas de aposentadoria privados que não fazem parte do Regime Geral da Previdência
Social. Os maiores temores relacionam-se, nesse caso, à possibilidade de inadimplência e aos
encargos da mora, caso não possam ser pagas as contribuições na data estabelecida. Diante
desses riscos, a opção dos trabalhadores autônomos é realizar a inscrição básica, que assegure
ao menos o benefício de um salário mínimo, uma vez cumprido o prazo de carência. O
sistema de aposentadoria a partir das contribuições é visto como um sistema financiado com
aportes individuais que pesam no orçamento e, em caso de mora, podem tornar-se
impossíveis de serem pagos. Além disso, o sistema não é visto como uma poupança, pois
imaginam que sucessivas reformas podem implicar em uma alteração do cálculo do benefício.
“Fiquei pagando no carnê até interar os anos deficientes quando fizer 65 anos, não cheguei
a contribuir 35. Com 65 anos, você tem direito, eu atingi os 65 anos, fui, peguei a
documentação, a carteira há muito tempo guardada, o carnê, cheguei no contador lá: ‘O que
que tá faltando agora?’ Aí: ‘Nada, você já fez 65 anos, acabou. Você tem direito à
aposentadoria com tempo proporcional’. Agora, a felicidade minha é de aposentar com
condições de continuar trabalhando, família já criada. Porque se você tiver com família para
sustentar, claro que com 200 reais não ia ter condições, mas já... a família já... a caçula
minha fez agora 27 anos, esse mês passado. Então, já está casada também, quer dizer, a
gente não tem mais essa obrigação, pode até ajudar, mas não tem mais a obrigação. Aí já tá
todo mundo casado, todo mundo já procurou seu lugar.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72
anos, sapateiro e aposentado.)
Para esses trabalhadores autônomos, a aposentadoria é percebida como uma renda
suplementar que compensa os menores ganhos decorrentes da idade avançada. Ela não é
vista como o afastamento compulsório do mercado de trabalho; pelo contrário, é
Na Chapada do Norte, a maior parte dos aposentados entrevistados recebia a
considerada um complemento dessa renda.
aposentadoria rural. Em Araçuaí, encontramos aposentados do setor público, ex-
funcionários da prefeitura da cidade e um aposentado como trabalhador autônomo, Ao saber que estávamos fazendo um trabalho para a Previdência, uma mulher negra, de
sapateiro, enquadrado como beneficiário urbano no Regime Geral da Previdência Social. idade avançada, veio ao nosso encontro para nos contar as penúrias pelas quais passava
Por ser um fenômeno urbano, os aposentados que participam da Irmandade conseguiram o porque tinham cortado sua aposentadoria. Embora a Irmandade se apresente como uma
benefício como autônomos ou como funcionários públicos da prefeitura. Encontramos instituição tradicional de assistência social, a autonomia é altamente valorizada entre seus
também aposentados rurais nesses pequenos municípios, onde se entrelaçam o rural e o membros. Ela pode prestar auxílio nos momentos de necessidade, mas não se valoriza o
urbano e muitos dos habitantes têm suas roças perto da cidade. depender da Irmandade. Os que participam dessa ordem valorizam mais o poder prestar
assistência aos irmãos necessitados do que receber aquela oferecida por eles. As formas
Observemos o depoimento de um desses aposentados, Luiz Gonzaga da Silva, conhecido
tradicionais de assistência não podem ocupar o lugar reservado ao sistema de seguridade
como Luiz Sapateiro, que exemplifica a lógica seguida pelos trabalhadores autônomos
social, apesar de ter sido constituída com o propósito, entre outros, de oferecer o auxílio
inscritos na Previdência e revela as impressões que a população mais humilde tem acerca da
não fornecido pelo Estado aos mais pobres, aos idosos e aos doentes. Da Irmandade,
aposentadoria.
esperam auxílio para terem uma boa morte e serem lembrados pelo curto reinado
“Eu aposentei com um salário só, porque você trabalhando... eu trabalhei muito tempo assim possibilitado pela festa. Nesse contexto urbano, o dinheiro tem um papel relevante na
de sapateiro, né? Então não tinha condições de eu continuar pagando também como compra de alimentos e medicamentos. Apesar disso, a aposentadoria não se apresenta
autônomo pra ganhar... pra tirar três salários, quatro salários. (...) Pra pagar no carnê todo mês como um fato tão marcante como entre as populações rurais, onde é constantemente
aquela quantia... pesa pra quem paga como autônomo, profissão simples dessa. Esse mês você mencionada e valorizada.
ganha o suficiente pra pagar sem peso nenhum, no outro, você já não ganha. Se você atr asa,
atrasa,
no outr
outroo mês é o dobr
dobroo e com jur os
os,, e aquilo vai acabando. Eu conheço centenas de
juros 88 89
A Previdência Social e as percepções sobre a Previdência entre as devida apenas ao chefe da família e tinha um valor de meio salário mínimo, já a pensão
populações analisadas equivalia a 30% do salário mínimo. O financiamento dos benefícios era feito com uma
A aposentadoria como trabalhador rural, para o segurado especial, e o Benefício de contribuição de 2,1% sobre o valor da comercialização da produção rural, além de uma
Prestação Continuada, BPC-idoso, previsto na LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social), alíquota de 2,4% sobre a folha de salários urbanos.
são as referências mais fortes entre os benefícios oferecidos pela Previdência. Embora o O PRORURAL/FUNRURAL significou um rompimento com os princípios do seguro social
BPC-idoso tenha caráter assistencial e seja de responsabilidade do Ministério do de padrão contributivo bismarckiano, o qual modelou a história da Previdência Social na
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, sua operacionalização é feita pelo INSS, o que América latina. “Houve ruptura com as noções de que: (i) a um benefício deve corresponder uma
faz parecer, para parte da população, que o benefício também é previdenciário, assim como contribuição; (ii) essa contribuição deve ser tripartite (segurado, empregador e Estado); e (iii) o
a aposentadoria rural. Ambos, por diferentes motivos, são benefícios não-contributivos, ou benefício resultante deve estar vinculado ao padrão de rendimentos pregressos do segurado”
de contribuição diferenciada, no caso de algumas aposentadorias rurais. Esse caráter não- (Delgado e Schwarzer, 2000:195/6; Schwarzer, 2000).
contributivo leva os usuários a percebê-los mais como um direito, deixando para um No contexto da redemocratização, esses benefícios foram incorporados ao Regime Geral
segundo plano o caráter de seguro social associado aos benefícios contributivos. A da Previdência Social por meio da Constituição de 1988 e de sua regulamentação pelas Leis
aposentadoria rural e, dentro dessa categoria, os benefícios do segurado especial são as n°. 8.212 e 8.213 em 1991. Essa incorporação provocou a extinção do tratamento
referências que orientam as representações sobre Previdência Social na zona rural e nas administrativo institucional separado que era dado ao regime da Previdência Social rural.
pequenas cidades do interior visitadas durante a pesquisa. Os trabalhadores rurais e os segurados em regime de produção familiar, chamados
Paradoxalmente, o regime militar (1964/1984) foi o responsável pela expansão da cobertura segurados especiais, foram incorporados ao plano dos benefícios normais do Regime Geral
previdenciária até os setores rurais da população por meio do PRORURAL/FUNRURAL da Previdência Social. Uma das conseqüências da mudança constitucional foi o
(1967/1971), como destacam Delgado e Schwarzer: “Entretanto, para relativizar essa aparência, estabelecimento de um piso de um salário mínimo para os benefícios. Por outro lado, a
basta lembrar que o próprio evento do nascimento da Previdência moderna, na Alemanha regulamentação contemplou as mulheres em igualdade de condições com os homens,
bismarckiana, é um exemplo clássico de como, em sociedade e economia de desenvolvimento tardio, independentemente do seu desempenho como chefes de família. Esse fato outorgou ao
um regime autoritário, imperial e patrimonialista serve-se de concessões em política social para programa um caráter pioneiro em termos de reconhecimento de gênero. Outra diferença
aplacar focos de oposição. Mais do que isso, por meio da natureza paternalista do vínculo de tratamento diz respeito ao tempo de carência, baseado na condição de trabalho rural e
estabelecido entre Estado e população afetada, logra criar profundos laços de lealdade e não no tempo de contribuição, como no caso dos segurados urbanos.
dependência dos beneficiários para com seu ‘soberano” (Delgado e Schwarzer, 2000:190). Outra modificação legislativa com impacto sobre os benefícios rurais foi a Lei n°. 8.742, de
Segundo os autores, essa política foi produto do encontro da vontade dos estrategistas do 1993, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Essa lei regulamentou a substituição da
regime para quem ela representou “a possibilidade de, por meio de um programa social de Renda Mensal Vitalícia (RMV) pelo Beneficio de Prestação Continuada (BPC) ou amparo
cunho paternalista e centralmente administrado, aumentar a dependência individual em assistencial de um salário mínimo. O BPC, nas suas modalidades idoso e pessoa portadora de
relação ao Estado e, além disso, cooptar organizações sociais tais como Sindicatos de deficiência, não faz mais distinção entre os universos de atividades rurais e urbanas, como
Trabalhadores Rurais” (ibidem). Por outro lado, os tecnocratas encarregados da também não prevê mais o requisito da contribuição prévia, que constava da RMV. Requer que
administração do sistema previdenciário identificavam-se com as diretivas da OIT, que viam a renda familiar per capita seja menor do que um quarto do salário mínimo e, na modalidade
na universalização da cobertura previdenciária um objetivo a ser atingido. 6
Até a instituição do Estatuto idoso, a idade de acesso atualmente prevista é de 65 anos para homens e mulheres6. Esse
do Idoso, em 2003, a idade
Em 1967, o INPS assumia o seguro de acidentes de trabalho, e formulava-se o PRORURAL, prevista para o BPC-idoso era benefício foi implementado a partir de 1996 (Delgado e Schwarzer, 2000:196).
de 67 anos.
voltado à prestação de serviços médicos para a população rural. Em 1969, criou-se um A aplicação dos dispositivos jurídicos que reconhecem direitos sociais mínimos para grupos
plano básico de Previdência para os empregados rurais; em 1971, ampliou-se o PRORURAL historicamente marginalizados – como trabalhadores e pequenos produtores em regime de
com o lançamento de benefícios monetários para a área rural; em 1973, estendeu-se o economia familiar rural e as mulheres igualadas em direitos aos homens trabalhadores –
seguro de acidentes de trabalho a essa área. Em 1974, foi criado o Ministério da Previdência criou um setor com cobertura social universal e acesso a um seguro de renda mínima
Social; e, em 1974/75, foi instituída a Renda Mensal Vitalícia, que dava cobertura a inválidos e (Delgado e Cardoso, 2000).
idosos até então excluídos do usufruto dos benefícios. “Do ponto de vista dos militares, Tanto os segurados especiais como o BPC previsto na LOAS apresentam importantes
ademais, a Previdência rural teria a qualidade de contribuir para a integração do setor rural ao mudanças nas percepções acerca do seguro social, por seu caráter não-contributivo. Uma
projeto de desenvolvimento nacional, manteria a ‘paz social’ e evitaria a intensificação da migração dessas transformações, no caso das aposentadorias rurais com base no tempo de trabalho
rural-urbana ao tornar disponível, no campo, uma infra-estrutura de assistência médica e benefícios e não nas contribuições, levou à percepção de que é possível se aposentar sem pagar as
monetários, mesmo que precariamente” (Delgado e Schwarzer, 2000:193). contribuições.
O PRORURAL/FUNRURAL beneficiava trabalhadores rurais dependentes ou autônomos “Tá, muitos aí hoje não pagam. Foi ontem mesmo, numa entrevista que eu vi na televisão,
em regime de economia familiar, pescadores (incluídos em 1972) e garimpeiros (a partir de eles entrevistando o pessoal sobre o negócio do INSS, e falou sobre aposentadoria e tudo. O
1975). Oferecia aposentadoria por idade aos 65 anos, aposentadoria por invalidez, pensão sujeito paga 40 rreais
eais
eais,, que muita ggente
muita ente ac ha pesado e acaba que ffica
acha ica sem pagar
pagar,, e a
para viúvas e órfãos, auxílio funeral e assistência médica. A aposentadoria por idade era 90 91
Pr
Preevidência ffica
ica vazia. E, depois, ela tem que atender essas pessoas sem contribuição vários segmentos de segurados: empregados, contribuinte individual (autônomo), contribuinte
nenhuma. facultativo, empregadas domésticas e segurado especial. Diferentemente das outras categorias,
onde o tempo de carência é computado com base no tempo de contribuição, no caso dos
No tempo que eu aposentei, parece que era 7 anos, e você já conquistava. Hoje são 15
segurados especiais, a carência é contabilizada com base no tempo de serviço na condição de
anos que você tem que contribuir, se você quiser aposentar no sentido que eu aposentei, dos
trabalhador rural. Portanto, o foco está no reconhecimento do trabalho, pelo que não se
65 anos. Homem 65, mulher 60, contribui 15 anos. Têm pessoas que se for contribuir 15
enquadra como política assistencial, mas sim como política previdenciária para enfrentar as
anos e já está com 60... igual eu usei o exemplo de uma dona, ela vai aposentar com 75
contingências previstas na convenção 102 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
anos se ela tiver 60 e começar a pagar agora.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos,
formulada em 1958. No caso da LOAS, trata-se de benefício assistencial, o qual é definido
sapateiro e aposentado.)
segundo a falta de condições econômicas e não está relacionado com o trabalho realizado
Os benefícios pouco ou não-contributivos, ao serem computados na mesma conta do pelo beneficiário. A condicionalidade da LOAS não passa pelo trabalho e está relacionada a
Regime Geral da Previdência Social, produzem um desequilíbrio nas despesas. A impressão uma renda inferior a ¼ do salário mínimo por pessoa na família, além da idade avançada ou
prevalecente no senso comum dos usuários é a de que os benefícios não-contributivos são deficiência.
responsáveis pelo “rombo” da Previdência. A falta de informações sobre o financiamento da
Nessas pequenas cidades do interior, como Chapada do Norte ou Araçuaí, que não
aposentadoria rural, como a alíquota sobre a comercialização dos produtos rurais e o
possuem uma agência da Previdência, o atendimento móvel e periódico realizado pelo
imposto sobre a folha de salários urbanos, assim como os aportes do Tesouro Nacional,
PREVmóvel transformou não apenas a dinâmica do atendimento, mas também as
levam à percepção errônea de serem os contribuintes individuais quem cobrem o déficit
percepções sobre a Previdência. Por meio do atendimento do PREVmóvel, algo tão abstrato
gerado pelos benefícios não-contributivos. Delgado e Abrahão de Castro (2003) assinalam
como o sistema previdenciário transforma-se em algo sensível, ao alcance da população.
que esse déficit seria melhor conceituado se diferenciássemos, dentro do Regime Geral da
Previdência Social, a Previdência como seguro social contratual para os setores urbanos e a A estreita parceria com Sindicatos de Trabalhadores Rurais faz com que o PREVmóvel seja
Previdência como seguridade social para os aposentados rurais. A separação desses dois associado aos benefícios para a população rural. As ações do PREVmóvel podem ampliar
tipos de Previdência pode levar a computar a Previdência rural como gasto com seguridade seu público-alvo a fim de incluir diversos setores urbanos e no sentido de uma
social e não como déficit do sistema previdenciário. universalização das políticas de seguridade social.
Na visão dos usuários, esse desequilíbrio orçamentário não pode ser solucionado às expensas Na cidade de Chapada do Norte, tivemos a oportunidade de entrevistar um ex-presidente
da seguridade social, percebida como um direito fundamental. Segundo o depoimento a seguir, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) e também capitão do tambor da Irmandade de
esse direito é visto como contraditório quanto à condicionalidade do BPC-idoso, que Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte. No seu depoimento,
estabelece como teto uma renda familiar de ¼ de salário mínimo por pessoa. ele conta as transformações pelas quais passou o atendimento às populações rurais.
Inicialmente, o sindicato tinha de oferecer transporte, alojamento e lugar de atendimento
“Ele falou assim, que não tem mais como aposentar, a não ser ela ser encostada por aos técnicos da Previdência que se mobilizavam até os municípios do interior. As campanhas
invalidez, que não tem condições de trabalhar; esse dir eito tem condição de rreceber
direito eceber
eram realizadas esporadicamente e tinham de contar com o apoio da prefeitura para
alguma coisa. Eles inventam tanta coisa pra ver se impede da pessoa aposentar: ‘Ah, você conseguir infra-estrutura. Uma das principais mudanças ocorridas no município foi a
não pode ter, sua casa já tem gente que tem uma renda de... tem gente só com salário implementação do atendimento por meio dos veículos utilitários da Previdência, que levam,
mínimo, o seu marido já ganha isso e tal’. Tá enrolando a pessoa. periodicamente, os serviços até a sede do STR. Com o PREVmóvel, os técnicos têm
Às vezes, quando chega a dizer ‘ó, tem direito’, você já não está quase no tempo de ganhar mobilidade e podem prestar atendimento no interior do estado, além de evitar o
mais nada, apesar de ser uma aposentadoria sem contribuição. Mas, de qualquer maneira, deslocamento dos usuários mais idosos e necessitados. Nessa nova parceria, o sindicato
eu, como pessoa, tinha o direito de viver. É difícil, o papel da Pr
Preevidência é uma coisa encarrega-se de realizar uma montagem preliminar dos processos e de organizar o
muito sér ia.
séria.
ia.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos, sapateiro e aposentado.) atendimento de diversas comunidades, enquanto o PREVmóvel permanece no município.
Nesse depoimento, as impressões sobre a Previdência e a LOAS têm limites difusos. Por um Uma central de computador, conectada à linha telefônica por um serviço gratuito (do tipo
lado, a aposentadoria é reconhecida como um direito que tem de ser garantido pelo Estado, 0800), permite realizar as consultas dos processos e outorgar os benefícios on-line, por
e isso inclui os benefícios não-contributivos, os quais, ao serem computados na mesma meio da Internet.
conta do RGPS, produziriam um desequilíbrio nas despesas. Esse desequilíbrio não pode ser “Olha, a parceria com o sindicato é o seguinte: quando vinha, antes de ter o PREVmóvel,
solucionado às custas da seguridade social, um direito fundamental, traduzido nesse vinham os funcionários para fazer os trabalhos na zona rural. O sindicato chegava em
depoimento como o direito de viver. Diamantina, às vezes pegava os funcionários em Diamantina – que era o posto que tinha –,
Cabe destacar, para desfazer mal-entendidos, as principais diferenças existentes entre os levava nas comunidades do povo do sindicato e ainda pagava cama e alimentação, algumas
benefícios previdenciários para segurados especiais, como os trabalhadores rurais em vezes. Agora, tinha vezes que eles falava que agora, dessa vez, não vai precisar de vocês
economia de subsistência, e os benefícios assistenciais estabelecidos pela Lei Orgânica de pagar a cama e nem a comida, mas, algumas vezes, tinha que pagar cama e comida pros
Assistência Social (LOAS), entre os quais está a LOAS-idoso. Do ponto de vista do Ministério funcionários. É! E pra ir nas comunidades, toda vida o sindicato arcou com tudo, com o
da Previdência Social, os trabalhadores rurais enquadram-se na Previdência como um dos 92 93 carro pra andar nas comunidades pra fazer a entrevista, as pesquisas com o pessoal. A
o carro, eles já vêm com o carro, e a alimentação eles pagam também; mas, no início, o
sindicato é que pagava tudo.” (Olimpo Rodrigues Soares, ex-presidente do Sindicato de
Trabalhadores Rurais, aposentado, Chapada do Norte, MG.)
A equipe do PREVmóvel está composta por um chefe, um técnico e um motorista, os quais
trabalham em parceria com sindicato de trabalhadores rurais. Os técnicos revezam-se
semanalmente; já o chefe da unidade sempre acompanha as viagens. O atendimento é
prestado próximo ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e o técnico realiza os
deslocamentos necessários para a realização de perícias e para levar os serviços até àquelas
pessoas que, por estarem incapacitadas, não podem deslocar-se até à unidade de
atendimento. De acordo com uma das técnicas, a maior recompensa desse trabalho é
poder ver a cara de felicidade dos idosos quando recebem o benefício depois de toda uma
vida de trabalho na lavoura.
“É muito difícil, umas viagens nossas estressam muito. E quando a gente não encontra gente
brava, né? Que não pode aposentar... igual a um dono de bar que quer aposentar como
trabalhador rural e ele fica bravo com a gente. É difícil.Teve uma colega da gente que o outro
queria matar ela, o moço veio de faca pra matar, e deu uma turma. Mas o moço, depois de duas
semanas... o homem morreu. Ela ficou limpa aí. A gente passa muito isso, mas é um trabalho
gostoso. Em compensação, com os trabalhadores... às vezes você atende... você aposenta a
pessoa, daí a pouco a pessoa chega com um pouquinho de polvilho, chega com um pouco de
farinha de mandioca feita na roça, vem um e dá um frango pra gente. É isso.Tem um lado muito
bom. A gente tem que ter carinho pelas pessoas; falam: ‘ó, eu tô rezando procê pra sempre’, ‘ó,
todo dia que eu dobro os joelhos, eu peço a Deus pra te proteger’. Isso é o lado legal da coisa. O
sorriso da pessoa quando aposenta, quando sabe que vai ter o dinheirinho pra receber todo mês
no período certo. Essa alegria é o que eu acho que mais ajuda a gente a vir na região. Os
contratempos são poucos, as vitórias são maiores, os prêmios são maiores: o sorriso na boca do
povo.” (Valda, técnica da Previdência, comissionada no PREVmóvel.)
gente tinha à disposição o carro com o motorista e um diretor do sindicato. No dia que não Uma das principais críticas feitas a esse tipo de parceria entre a Previdência e os sindicatos
tava um, tinha o outro, porque às vezes eles nem exigiam que fosse. Mas você sabe que o de trabalhadores rurais é que a ênfase nas aposentadorias poderia provocar uma distorção
pessoal é muito simples lá no mato; então, chega uma pessoa estranha: ‘Eu quero conversar na função dos STR e transformá-los, de uma entidade de classe, em uma entidade
com você!’, a pessoa assusta, não sabe, nem acredita que é a aposentadoria dele; às vezes especializada na prestação de serviços assistenciais (Schwarzer, 2000). Essas associações
fica com medo. Então a gente tinha que chegar e apresentar aquela pessoa. A gente, como sindicalistas recebem uma contribuição pela tramitação dos benefícios, a qual é descontada
sindicato, ia apresentar aquela pessoa. Aí eles conversavam tranqüilos, porque sabiam que da folha de pagamento dos aposentados. Esses recursos financiam, de forma indireta, o
não era nada. Então, o sindicato fazia isso. processo de organização no campo. Deve-se ter em conta que, ao longo da década, muitos
dos sindicatos rurais passaram por importantes mudanças na orientação política de seus
Outras vezes, precisava a gente levar o pessoal em Diamantina, a gente fretava o ônibus – dirigentes.
isso aconteceu umas três vezes –, a gente fretava o ônibus, e eles reservavam lá a vaga, e a
Outra crítica realizada pelos usuários sobre essa modalidade de atendimento diz respeito à
gente levava o ônibus cheio para fazer entrevista lá em Diamantina, e sempre o sindicato
ênfase dada aos sindicatos de trabalhadores rurais; isso faz com que a maioria dos
contribuindo. As passagens de ônibus pra Diamantina, os clientes pagavam; a gente fretava
atendimentos recaia sobre a aposentadoria para os trabalhadores rurais. Esse é, sem dúvida,
o ônibus, e eles pagavam. Aqueles que não podiam pagar, que não tinha como pagar, o
o benefício mais difundido. Em diversos casos, existe desconhecimento acerca de outros
sindicato pagava pra eles, então o sindicato contribuía. Essas pesquisas que o funcionário
benefícios, como os BPC da LOAS ou outros benefícios da Previdência, como salário-
vinha fazer na região eram livres de gastos, a gente pagava tudo, e o sindicato não cobrava
maternidade ou auxílio-doença. O salário-maternidade, em especial, não é conhecido por
do cliente nada, a gente passava pra ele gratuito.
uma parte dessas populações remanescentes de quilombos. Uma campanha informativa
Com o PREVmóvel, mudou o seguinte: a gente faz o trabalho, reúne o povo, passa a poderia, com poucos esforços, dar uma maior divulgação a esse tipo de benefício.
informação e organiza o atendimento. O sindicato só controla pra não fazer tumulto,
controla o povo. Agora, com o PREVmóvel, a despesa do sindicato é só com o telefone e
material de escritório. O sindicato já não tem mais despesa de carro, o PREVmóvel vem com 94 95
96 97
2 Religiões africanas na Bahia e
políticas de reconhecimento:
terreiros de Candomblé
e Baianas do Acarajé
8
Ossé: oferecimento
semanal de alimentos ao
orixá no seu dia especial
(Cacciatore, 1988:199).
112 113
As nações do candomblé
120 121
122 123
124 125
126 127
Egum: culto aos antepassados
Entre as diversas tradições do candomblé, abordaremos, mais uma vez, a nação Keto e um
de seus segredos revelados nesta pesquisa. Bastide (1961:167-ss), na sua apresentação do
candomblé, divide a religião em quatro partes diferenciadas: o culto aos orixás, nas mãos de
babalorixás e ialorixás; o conhecimento das plantas e das folhas, sob responsabilidade do
babaossain; a adivinhação do Ifá, nas mãos do babalaô; e o culto dos Egum, cujo sacerdote é
o ojé. Para Bastide, tal sacerdócio corresponde a uma estrutura quatripartite do mundo:
deuses, homens, natureza e os mortos ou a linhagem.
Na análise desses diferentes sacerdócios, Roger Bastide é enfático ao comentar as
dificuldades encontradas na obtenção de informações sobre os terreiros de Egum.
“O culto dos Egum pertence, na Bahia, à Sociedade dos Egum, e esta sociedade, aqui, como na
África, é uma ‘sociedade secreta’. De duas, uma: interrogam-se exteriormente alguns dos
membros, que não dão senão poucas informações e logo se refugiam no silêncio, ou então
penetra-se na sociedade, mas fica-se prisioneiro da lei do segredo. A morte é a condenação de
todos os que violam os mistérios dos Egum.” (Bastide, 1961: 169-170)
Os Egum representam o espírito dos antepassados, são os sacerdotes mortos que retornam
depois de sete anos para indicar seu sucessor. Na complexa trama do parentesco ritual
estabelecida pelo candomblé, “o parentesco no santo” permite construir linhagens ou
segmentos nas diferentes nações. Os Egum permitem construir outras genealogias, que têm
como referências os espíritos dos antepassados. Durante uma entrevista com o Pai Balbino,
ao ser indagado quanto aos seus ascendentes africanos, ele respondeu:
“Nunca ninguém estudou de onde veio na África. O povo era muito ignorante, não sabia
dessas coisas. Eu encontrei famílias da gente lá, num lugar que se chama Uidá, a família do
Daniel de Paula. E também tem ‘Kute Babá Egum’ nesse lugar. Mas isso foi uns doze anos
atrás. (...) Os antigos passavam só a religião mesmo. Esse povo da geração de meu pai era
tudo ignorante e eles não ligavam para esse tipo de coisa. Eles morriam, e a gente não sabia
como se chamava o bisavô, nem o tataravô. Eles não falavam, eles eram muito fechados. Não
conversavam nada não. Eles só contavam essa parte de Egum.Você sabe o que é Baba
Egum?” (Pai Balbino, Alapini, terreiro Ilê Axé Opô Aganju, Lauro de Freitas, BA.) 128 129
Na tradição Keto da Bahia, os terreiros de Egum estão por serem espíritos de pessoas iniciadas no santo, possuem
dedicados exclusivamente ao culto aos antepassados. Esses seus orixás, os quais também devem ser contemplados por
terreiros, originários da Ilha de Itaparica, apresentam meio de oferendas e sacrifícios. Ao cuidar dos fundamentos
diferenças significativas em relação aos outros terreiros de dos Egum, os orixás dos ancestrais também são
candomblé. contemplados, sacrifícios são oferecidos e renova-se o axé
A hierarquia do terreiro é estabelecida da seguinte forma: dos orixás. A cerimônia para invocar os Egum guarda
quem está passando pelo processo de iniciação ocupa o semelhanças, em sua estrutura, com aquela realizada nas
cargo de amuichan. Depois de iniciado, ocupa o cargo de ojé, festas dos orixás do candomblé. Inicia-se com a invocação de
após uma preparação de sete anos a partir da sua iniciação Exu, para que não atrapalhe os caminhos, e de Ogum, o deus
em Babá Egum. O ojé ocupa uma posição análoga à do dos metais, para a realização dos sacrifícios.
ebômim no culto aos orixás. A hierarquia dentro da nação “Porque, primeiramente, aqui, pra nós convocar Egum, nós temos
Babá Egum encontra-se anexa. que trabalhar com Exu, cantar pra Exu, cantar pra Omilé.Você vai
Visitamos o terreiro Alaba Ilê Adebolá, do Ojé Babagungun ver o que é Omilé, Omilé é o tempo. Aqui na seita de Egum, nós
Baruê. No candomblé da Bahia, os Egum são cuidados por chama Omilá, Omilá de Omilé. Esse Omilé chama Obaluaê, que é
um sacerdote especial, o ojé (ou odje). Os terreiros de o tempo. Aí nós canta pra Omilé, canta pra Ogum, entrega, chama
Egum não possuem babalorixá ou iyalorixá; as cerimônias Iansã, quando canta pra Balé. Aqui, Egum é apresentado com as
são dirigidas pelo ojé, o qual, com uma vara de nome dankô, obrigações que eu vim marcar aqui nesse chão, que é o carneiro, é
invoca e controla os Egum. Para preparar essa vara mágica, o negócio que nós dá pra fazer. Tem que ter a confirmação que
esfregam-se diversas plantas, tais como comigo-ninguém- nós foi... a gente primeiro faz a confirmação pra poder o Egum
pode, espada de São Jorge e Iroko. Os Egum são os espíritos sair.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)
dos antepassados, e o contato direto com os vivos poderia Os Eguns representam o espírito dos antepassados. Sete anos
ser fatal. Os Egum não podem ser vistos diretamente, nem após sua morte, realiza-se o ritual do Oapu, quando os
tocados. Com a vara, o ojé guia os Egum e mantém uma espíritos regressam à terra como Egum.
distância entre eles e os fiéis. À semelhança do candomblé, “O problema dos Egum é esse. O primeiro Egum vai representar
realizam-se diversos sacrifícios e cantos para convocar os Obabadebolá, que é o dono do terreiro. Ele pertence a Ogum; tem
Egum. a Genuda, que pertence a Oiá; tem o pai do meu tio, que chama
“A nossa nação é a nação dos Nagô. Nagô é parte da Babalategum, que é de Xangô. Aí, os Egum de cada um desses
África, e essa seita de Egum chama-se Egum-gungum porque é como os africanos chamam. que caiu têm seus orixás. Porque eles têm os orixás. Hoje eu sou um ojé, eu tenho meu
Aconteceu que meu avô, Pedro Daniel de Paula, que é o pai do Egum que o senhor vai ver orixá, eu sou de Oxalá e Iansã. Amanhã ou depois, quando eu falecer, eles vão me chamar e
ele aqui agora, Daniel de Paula, foi que me fez em 1961. Aí, aconteceu que eu levei esse aí vão dar as minhas obrigação. Pelas obrigação, você tem que receber... que nós chama
cargo, que já aprendeu, e até hoje eu tô agüentando, porque é uma herança dos nossos primeiramente Axoxé, e esse Axoxé, depois de sete anos, se chama Oapu, sair debaixo da
mais velhos, que vai passando de um para outro. Que amanhã ou depois, Olorum que é terra. O axoxé de acordo, eu como dono da casa, eu e mais outros que seriam da casa, que
Deus, me chamar, eu tenho que botar outra pessoa no meu lugar. Aqui é uma seita que não tiveram a permissão dos Egum, primeiramente Deus, sai para dançar. É, porque o que eu
pode parar, o terreiro é usos e usufrutos dessa seita. sei, como eu aprendi que o meu mais velho contou, foi assim. Eu faço aquilo que meus mais
velhos me ensinou. Eu não passo do meu limite.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)
Aí acabou pegando o aceite; é pra nós cumprir o nosso resguardo e dar todas as
obrigações. As obrigações que nós damos aqui dentro do terreiro é o Axó, que chama Arrô; é Após seu depoimento, Ojé Baruê apresentou os Egum do terreiro; os quais apareceram
o Abô, que é carneiro; Raquicó Miximetalá Bocan, que são quatro galos. Rabocó é bode pra com seu axó, vestimentas rituais que cobrem todo o corpo. É interessante comentar que
Exu,Tete-teté é cabra pra Iansã, acompanhado com Adié9. Para nós poder pegar esse
9
Adié: galinha, animal de falam com voz “cavernosa”. Tenho de confessar que, quando o ojé pediu que
preferência de vários
fundamento desse Egum, nós temos que dar tudo isso para apresentar o Egum. Quem orixás (Cacciatore, entrevistássemos o primeiro Egum, fiquei sem palavras. O segundo Egum falou por meio de
trouxe os Egum pra nosso Brasil foi Ogum e Iansã, que trouxe pra poder nós ser hoje Ojé, 1988:38). Ojé Baruê, revelando o caráter genealógico da organização de seu culto:
entendeu? Foi trazido por eles. Porque todas as partes desse orixá tem que ter seu Egum “Este Egum é meu avô, foi o dono desta sede. E esta sede aqui é de Balbino, que é pai do
assentado; no caso desta casa, é Ogum e Iansã.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.) Babalorixá hoje. O senhor sabe quem é Balbino. Ele não pôde ter esse cargo por causa de
Ogum é o orixá do metal, elemento presente nas facas com as quais realizam-se os Xangô, aí esse cargo ficou pra mim. Quando ele me dá Olorum que é Deus, me dando vida
sacrifícios. Iansã é o único orixá que não teme os mortos. Uma das sete Iansãs é e saúde, eu estou zelando Deus.
responsável pela passagem que conecta o mundo dos vivos com o dos mortos. Os Eguns,
130 131
Foto do Egum entrando vertical
Olorum é o orixá supremo, o criador. Ele não pode ser representado e não é cultuado nos
terreiros. Nesses terreiros de Egum, eles, os Egum, são os mediadores que comunicam com
Olorum. Os Egum têm de ser bem tratados. Existe uma lógica da reciprocidade. Se bem
tratados, em agradecimento, cuidam dos vivos, abrem caminhos, protegem contra as
adversidades. Essa lógica aplica-se tanto aos Egum quanto aos orixás.
“O senhor fica aqui na minha casa, se não lhe tratar bem, o senhor volta? Mas não. A
mesma coisa. Esse Egum aí é o mesmo, ele vai embora e vem no dia da festa. Aí ele vê a
festa dele e fica alegre, satisfeito. Ele aí é que traz mais os companheiros, porque tem
muitas pessoas que é morto. Daí, pra animar as pessoas, nós estamos tocando, aqui a porta
está aberta, aí aparece um bocado de pessoa, aí nós só vamos chamando, vai entrando,
senta aqui, um cafezinho, uma merenda. E vai agradando o povo pra poder nós ter o valor.
Uma coisa é eles, eles vão, “Vamos parar lá porque lá tem comida, tem sangue”. Sangue
eles não comem, recebem sangue que lhes jogam, aí que eles recebem o sacrifício.” (Ojé
Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)
Assistimos à invocação ao Egum e ao Babaegun-gungun, antepassado de um pai-de-santo, com
ascendência em Xangô. Os antepassados marcam as distâncias internas das nações do
candomblé, recriam as linhagens segmentárias dentro da religião. Por meio dos antepassados,
constroem-se as proximidades e as distâncias entre os galhos dessa árvore genealógica.
“Agora nós que somos Nagô, que temos uma tradição de Nagô, nós temos mais raízes porque
temos mais histórias, ele que é de Lessa Egum, ele é Gum-Gum Babá, então ele já tem uma
tradição muito forte com a gente Keto. Porque na nossa tradição, quando as três Marias
chegaram aqui, elas vieram com o Bangboxé, elas trouxeram Bangboxé, o Martiniano; então,
11
Segundo Verger (2002, eram pessoas que tinham um fundamento de Lessa Egum, com o Bangboxé.11
b:29), Bangboxé seria
Rodolfo Martins de
Andrade, que veio da
Eles próprios é que botaram o Axé de Egum em Ponta de Areia, donde ele foi feito. Dali é que
África junto a Iyanassô, saiu essa história. Se vê que nós não despachamos Exu, nós mandamos axexê, Ilê Axé Opô
uma das três Marias.
Afonjá, Casa Branca e Gantois, ele roda primeiro o axexê. Não pode despachar Exú.
Inamoejuba: Inamoe, o senhor do poder; Juba, mingau. Então, nós rodamos, falamos com os
nossos ancestrais que são os Egum, damos o mingau a Exu, nós chamamos os Egum, nós
invocamos a Iami, que são as mulheres do feitiço, aonde elas se transformam num Aparacá,
que é uma parte de Oxum. Elas se transformam, aí a gente manda ela seguir o caminho para
que, à noite, nós encontremos a nossa espiritualidade purificada. Na linguagem popular, se diz
assim que a coruja é o símbolo da inteligência; para nós, a coruja é o símbolo da Iami, que é a
mulher, a mulher que traz o segredo, a mulher que traz a maçonaria, certo?” (Pai Ari,
presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro.)
O Axexê é uma cerimônia ritual fúnebre dos candomblés, na qual os Egum são invocados.
Aqui, você sabe, uma festa dele é no dia 29 de Junho, São Pedro; eu aí Iami representa, coletivamente, todas as genitoras ancestrais míticas femininas (Odudua,
faço pra ele, se eu puder, se minha condição permite dar um Axó a ele, Nanã, Iemanjá, Oxum). Essas representações estão ligadas ao igba, a cabaça que representa
10
eu dou; se puder dar um abô10, um carneiro, eu dou, raquicó miximetalá, Abô: líquido feito com o segredo. Iami é simbolizada pela coruja, mas também pela cabaça que representa a mulher
folhas sagradas
quatro galos. E o ageim pra dá ao povo; o curim é o vinho pra fazer a maceradas em água das grávida, a que traz o segredo.
quartinhas do ronco
festa dele. Esses espíritos de luz que tá aí, quando chega aqui, que vê (Cacciatore, 1988:35). Os Egum não podem ser vistos, não podem ser tocados, não se pode falar deles;
todo mundo alegre, tocando, cantando, dando tio, se eles preferir aos representam a parte masculina. Iami representa a parte feminina. Ao mostrar-nos os Egum,
gritos que tá aí, é uma maior alegria. Essa alegria que ele põe aqui, eles estão revelando um dos mais guardados segredos do candomblé. Essa exposição de Egum à
levam pros pés de Olorum que é Deus. E pede ao Olorum que é Deus, Previdência tem de ser entendida com base na lógica da reciprocidade e do
muitos anos de vida e saúde a nós todos que estamos aqui olhando para reconhecimento. Não devemos esquecer que, há poucas décadas, os candomblés eram
ele. Gostou das palavras do Egum?” (Ojé Baruê) 132 133 perseguidos pela polícia.
134 135
Da descriminalização às políticas de
reconhecimento
Durante muito tempo, em lugar de respeito e tolerância para com o candomblé, a política
pública foi norteada pela repressão. O candomblé foi reprimido, principalmente durante a
época de Vargas e do Estado Novo. Entre 1930 e 1950, as reuniões eram freqüentemente
reprimidas pela polícia, e os praticantes do culto eram presos, humilhados e discriminados.
Pesquisadores do início do século XX, como Nina Rodrigues e Arthur Ramos, criaram suas
coleções de peças de cultos afro-brasileiros a partir do material apreendido pela polícia em
suas operações nas casas de candomblé. A mesma origem tiveram as peças que compõem o
acervo de vários museus, como o Museu de História de Alagoas. A discriminação e a
posterior descriminalização do culto permanecem vivas na memória dos mais velhos.
“A gente era discriminada em todos os sentidos, o candomblé era discriminado em todos os
sentidos. Primeiro, anos atrás, nós não tínhamos a liberdade que se tem hoje. A polícia
perseguia, os moleques abusavam, pessoas de posição mais elevada não queriam ser do
candomblé, porque achavam que era... como é que se diz?... era coisa para gente pequena,
coisa para gente muito baixa, inclusive diziam que era “negragem”, tá entendendo?
Porque ninguém tinha coragem, a gente era apedrejada, as gentes eram massacradas, a
gente andava correndo. Quem chegou agora não alcançou isso, mas eu alcancei. Por isso
que as casas, os terreiros grandes de candomblé, todos são distantes da cidade, porque não
se podia fazer festas no centro.
Hoje aqui eu abro, é pequenininho, deste tamanho, mas abriga terreiro, eu registrei, tem
obrigação, tudo bem, mas assim mesmo ainda tem quem persiga o candomblé. Aqui mesmo
já teve quem dissesse que daria queixa de mim na polícia porque eu estava tocando. Eu
toquei dois dias das cinco da tarde às onze da noite e já estava incomodando. Mas depois,
em conversa, fiquei sabendo que foi um crente [o que deu queixa]. Inclusive, os evangélicos
são os que mais nos perseguem. Hoje a polícia nos deixou em paz, o governo nos deixou
em paz, não tem mais ordem para ninguém prender ninguém, nós temos defesas porque já
foi criado... antes não tinha essa federação do afro. Hoje nós temos a Federação, que
qualquer problema que tenha, nós podemos ir lá, e eles tomam providência, e aquilo vai ser
apurado, mas ainda continua a perseguição, porque o evangelismo nos persegue. 136 137
Quando foi liberado, artificialmente, né? Tirava-se licença era na Delegacia Especial de Jogos e Ao longo do século XX, os terreiros foram abrindo-se para a participação da população
Costumes, mas eles não davam proteção.Tirava-se a licença para tocar, mas eles não nos branca, a qual foi incorporada aos cargos do terreiro desde a categoria de ogã até outros
davam proteção; o que fizesse tava feito e pronto.Tanta gente já foi presa, quanto pai-de-santo postos sacerdotais. Em alguns casos, a criação do cargo de ogã para figuras influentes no
com os atabaques na cabeça foram pra cadeia! As casas são distantes por isso; antes, chegava mundo dos brancos tinha como propósito a obtenção de apoio e mediação frente às
a polícia e prendiam, prendiam, botavam os atabaques na cabeça e levavam pro xadrez, se autoridades, a fim de evitar a repressão. Entre as figuras que ganharam esses títulos estão
tivesse tocando, prendiam sim, prendiam. Há poucos anos é que isso não acontece mais, mas vários artistas e escritores conhecidos. No Ilê Axé Opô Afonjá, foram Ministros de Xangô
já aconteceu muito. Eu era menina, eu me lembro, muita gente foi presa assim, levava filho-de- Jorge Amado – Otun Oba Onan Xokun; Carybé – Otun Oba Onan Xokun; Vivaldo Costa Lima
santo, levava pai-de-santo, levava atabaque, levava tudo. Sempre existiam, como é que se diz, o – Ossi Oba Elerin; Dorival Caymmi – Ossi Oba Onikoi; Antonio Olinto - Ossi Oba Até. No
pago deles, eles sempre recebiam as rebarbas deles, mas faziam isso, uns não iam. terreiro Ilê Iyá Nasso, Engenho Velho, Édison Carneiro foi Ogã de Xangô; Nina Rodrigues foi
Ogã de Oxalá no candomblé de Mãe Menininha do Gantois Ilê Iyá Omin Axé iyá Massê;
Aqui teve casos de polícia que ia aí a prender pai-de-santo e, quando chega lá, dá ordem de
Mario Cravo Júnior foi Ogã de Omolu no Ilê Oxumaré (Cacciatore, 1997: 237-238). Pierre
prisão e viraram no santo. Muitos passaram essa vergonha do orixá pegar ele, ele ir prender
Fatumbi Verger recebeu o grau de Babalaô na África e, no Ilê Axé Opô Afonjá, recebeu o
e... chegar lá..., e o orixá pegar. Quer dizer..., ficava o dito pelo não dito. Muitas coisas dessas
cargo de Ojuobá – olhos do rei – ligado a Xangô.
já aconteceu aqui. Era a polícia? Como é que o santo iria prender? O santo veio pra
envergonhar ele, para mostrar a ele que ele não poderia fazer aquilo. Tá entendendo? O A organização das diversas nações e a mobilização foram o caminho para obter o
santo desceu no policial, aconteceu.Você sabe disso, não sabe? reconhecimento como religião e pôr fim à repressão das autoridades policiais. Bastide
(1961:76) menciona, em seu livro, a criação da União de Seitas Afro-brasileiras, formada,
Era o Delegado Pedrinho, delegado mesmo, que mandava prender mesmo, mandava mesmo. originariamente, em 1937. Nos depoimentos levantados ao longo desta pesquisa, as
Era na época da cavalaria, quer dizer, eu venho desse tempo, de todo mundo se esconder, todo referências variam em torno de uma década. A Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro,
mundo sair descarregando. Eu não estou lhe contando nenhuma mentira. Se o senhor apurar, que funciona em Salvador, cujo presidente, Pai Ari, ciceroneou nosso trabalho, foi fundada em
o senhor vai ver que isso existia; muitos se calavam. Por quê? Por medo, porque, como diz, o 24 de novembro de 1946. Não sabemos se é a mesma organização ou uma reorganização da
candomblé é primitivo. Hoje todo mundo é do candomblé, já tem doutor, tem isso; mas entidade mais antiga. A Federação, ao longo de sua história, acumulou maiores atribuições.
naquele tempo, só tinha arraia miúda; então, todo mundo se calava, sofria e calava porque não
podia se defender. Hoje não. Hoje todo terreiro tem um personagem de mais alta posição e “Em 1946, a Federação nasceu, ela foi fundada; mas devido a não ter apoio dos órgãos
que já defende, não é isso? Mas, naquele tempo, só era arraia miúda, era carregador, era governamentais, que não há interesse dos governos da época, ela não teve grande força e
doceiro, era engraxate, baiana do acarajé. Porque os grandes não tinham coragem de dizer ‘eu argumento para lutar em prol dos terreiros. Em 1976, Roberto Santos foi governador do
sou’, quando chegava essas horas, eles se encolhiam e aí passavam uma vergonha. Estado da Bahia e ele... sendo governador, apesar de ser católico apostólico romano, mas a
pedidos de uma comissão de vários terreiros como Casa Branca, Axé Opô Afonjá, Bate Folha,
Eu já vi tenente, já vi major, já vi doutores chegarem no terreiro com toda a pose e, daqui a Bôgún e outros terreiros que fizeram um segmento... Então, foram ao governador, todos, né?
pouco, você vê ele entrar com a mão para trás. Eu tô falando que orixá é orixá, então isso é Foi aquela luta com o governador, e o governador liberou e disse que ia libertar o
que eu quero lhe dizer.” (Mãe Ditinha, 70 anos, aposentada como mãe-de-santo, candomblé da polícia. Na lavagem do Bomfim... o governador assinou um decreto na ladeira
Salvador, BA.) do Bomfim, libertando o candomblé da polícia. Então, a partir daquela data, o candomblé
O “toque” nunca foi totalmente permitido e, em muitas oportunidades, foi motivo de ficou desvinculado da polícia e deu poderes para que a Federação passasse a administrar
repressão. Durante a Primeira República e o Estado Novo, as religiões afro-brasileiras foram as casas de culto do Estado da Bahia.” (Pai Ari, presidente da Federação Nacional do
sistematicamente reprimidas (Lima, 2005). Até a década de 1970, os terreiros tinham de tirar Culto Afro-brasileiro, Salvador, Bahia.)
um alvará de funcionamento junto à Delegacia Especial de Jogos e Costumes, da Secretaria de Cabe ressaltar, no depoimento anterior, a expressão “libertar da polícia”. Apesar da
Segurança Pública. Tinham de avisar o dia em que iam realizar o “toque”, e a delegacia não declaração constitucional de liberdade de culto, o candomblé, na prática, não só não era
oferecia nenhum tipo de proteção. Muitas vezes, a polícia aparecia nos terreiros para dar uma reconhecido como religião como era criminalizado, e seus praticantes sujeitos a detenções
batida e levar todo o pessoal para a delegacia, com os atabaques na cabeça. Um tal delegado arbitrárias por parte das autoridades policiais. Para as elites da época, as crenças dos negros
Pedrinho era famoso por esse tipo de ação policial. Contam as pessoas que esse delegado eram consideradas fetichismo e não religião. A Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro
infernizou a vida do povo do candomblé até que, um dia, no meio de uma batida, o santo encabeçou a luta pela descriminalização e pelo reconhecimento como religião afro-brasileira.
desceu nele e ficou encarnado. Depois desse dia, não voltou a dar batidas nos terreiros de
As principais casas de candomblé organizaram-se para formar uma federação que defendesse
candomblé. Essa história, possivelmente, refere-se ao delegado Pedro Gorgulho, que foi
seus interesses. Depois de longas negociações com o poder público, conseguiram que a
repressor dos terreiros na década de 1920 na Bahia (Lima, 2005:103).
responsabilidade de fiscalizar as atividades dos terreiros passasse a ser atribuição da
Nenhum terreiro esteve a salvo das batidas da polícia, inclusive os mais antigos e Federação. No ano de 1976, o governador Roberto Santos assinou um decreto
respeitados passaram por esse constrangimento e por essa agressão consumada pela descriminalizando o candomblé e desvinculando os toques de candomblé da ação da polícia. A
apreensão dos objetos sagrados. Apesar dessa atitude repressiva que se estendeu por responsabilidade pelo culto passou à Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro, criada
séculos, mantiveram o culto aos orixás e as tradições africanas. 138 139 pelos principais pais e mães-de-santo. O decreto foi assinado e, em uma cerimônia no terreiro
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do Pai Rufino, o governador recebeu um paxoru12 das mãos de Mãe Caiudê. 12
Paxoru é o nome do historicamente construída. Detenhamo-nos no
cajado de Oxalá.
Esse processo, que se inicia com a descriminalização, continua na luta pelo reconhecimento processo de luta pela obtenção de direitos
do candomblé como religião. Em 1988, a Constituição Federal do Brasil, também conhecida previdenciários. Esse processo de mobilização
como Constituição Cidadã, reconheceu a liberdade de cultos, mas o candomblé não era inicia-se com a demanda da aposentadoria
reconhecido como religião. Em 1989, na Constituição Estadual da Bahia, o candomblé foi para as baianas do acarajé. A luta pelos
reconhecido oficialmente como religião, segundo o artigo 275. direitos previdenciários leva à criação de uma
organização específica para elas. Uma vez que
As lutas pelo reconhecimento dos direitos previdenciários tiveram um importante papel no
obtiveram o reconhecimento dos seus
reconhecimento do candomblé como religião e ajudaram a reparar uma discriminação
direitos, a organização continuou trabalhando
em outros âmbitos, como a defesa do figurino
tradicional das baianas. Vejamos o
desenvolvimento desse processo segundo a
presidente da Associação das Baianas do
Acarajé (ABA) e uma das figuras chaves do
processo.
“Existem outros tipos de Previdência
privada, mas a gente fica naquela... não
sabe se acredita ou se não acredita.
Primeiro aquele contrato que eles dão com
as letras tão pequenininhas que a gente
não enxerga direito para ler e termina
assim, passando, e depois, quando a gente
vai reivindicar nossos direitos, a gente
esqueceu de ler alguma causa.
A Previdência é para pobre mesmo, todo
mundo já sabe, todo mundo sabe na ponta
da língua o que é a Previdência, para que
serve a Previdência. Se você não contribui
com a Previdência, você não tem futuro, e até mesmo as pessoas mais ignorantes, as
pessoas menos esclarecidas sabem o que é o INSS, né? Então, eu acho que é por aí. Minha
mãe teve um problema seriíssimo com a Previdência porque, antes de existir a ABA
[Associação das Baianas do Acarajé], existia e existe a Federação do Culto Afro-brasileiro,
que é uma entidade que cuida de terreiros de candomblé.
Eu fui criada por baiana. Minha mãe é baiana, eu também sou baiana. Eu sentia a
necessidade de minha mãe ter uma determinada coisa e não tinha porque não tinha uma
entidade específica que cuidasse dessa parte social, não é? E, pior ainda, eles não orientavam
ela, dizendo para elas que tinham que contribuir com a Previdência, que você ser associado
não lhe dá direito a você ter uma aposentadoria, nem por você ser sócio você tem direito de
se aposentar por aqui, porque aqui não é órgão empregatício, aqui é uma entidade como um
clube, como uma assistência médica, onde você escolhe para que lado você quer ir.
Minha mãe não tinha esse conhecimento; então, eles pegaram a carteira de trabalho da
minha mãe e deram um carimbo e deram uma assinatura lá, e na cabeça da minha mãe,
aquilo ali era uma assinatura de carteira aonde ia se descontar, aonde ia se pagar a
Previdência, aonde ia... Ninguém explicava isso para ela; eu, na época, também muito
adolescente, não entendia, e por aí foi.
142 143
Agora, há seis anos atrás, minha mãe teve um problema de tireóide e ficou muito doente, definidas como “em condição de risco social”, aquelas sem cobertura previdenciária. O PEP
muito doente mesmo. E eu senti a necessidade de aposentá-la pela idade que ela já tinha e está composto por técnicos da Previdência que vão ao encontro dos movimentos sociais e
também pela capacidade de trabalhar que ela não tinha mais. Aí fui procurar a Previdência. das organizações representantes dos setores não incluídos nas políticas de Previdência. O
Chegando lá, a assistente social falou para mim assim: ‘Cadê os carnês de contribuição?’ Aí propósito principal desse programa é disseminar informações sobre os direitos e deveres
eu falei: ‘Ela falou que não precisa porque ela é associada no Culto Afro’. Ela (a mãe) falou: dos cidadãos junto à Previdência e impulsionar a participação dos diferentes grupos no
‘Não, minha filha, eu tenho aqui minha carteira assinada pelo Culto Afro’. E falaram para sistema previdenciário. Por meio de várias estratégias, como encontros, palestras, reuniões
ela que essa era uma identidade errada, necessitava dos carnês de contribuição. Eu não com as lideranças, o programa consegue explicar a importância da incorporação à
esqueço disso porque ela repetia ‘n’ vezes: ‘Eu sou, eu pago ao Culto Afro-brasileiro, eles tem Previdência como seguro social. O PEP de Salvador desenvolve diversas atividades com
que me aposentar’. Aí a assistente social: ‘Não, senhora. Olha, minha filha, sua mãe precisa grupos de pescadores artesanais, feirantes, vendedores ambulantes, prostitutas, entre outros
contribuir pelo menos três anos para poder se aposentar’. Na época, era três anos, agora grupos excluídos. Vejamos os trabalhos realizados com as baianas do acarajé e nos terreiros
que é oito meses. Falei: ‘Mãe, e agora? A senhora não tem dinheiro, como é que a senhora de candomblé. Segundo o depoimento da coordenadora do PEP de Salvador:
vai se aposentar? Eu também não tenho para pagar, são três anos, faça a conta. Como é “O problema da baiana do acarajé é que, justamente, tem muita baiana velha, está
que a gente vai pagar isso? E a senhora precisa de uma assistência.” (Clarisse, presidente entendendo? Muitas baianas velhas que pensavam que podiam se aposentar só por já ser
da Associação das Baianas do Acarajé, Salvador, BA.) associada. Porque elas têm uma associação, né? Essa associação, elas pagam por mês; é
Como se depreende do depoimento, havia um problema e um mal-entendido: o não como o rural tem o sindicato, aí é a mesma coisa delas, elas já pensavam que, com o que
reconhecimento das baianas do acarajé como categoria de trabalhador artesanal, para sua pagavam à Federação, elas já podiam se aposentar.
inscrição como contribuinte individual, e a confusão entre o regime para os trabalhadores
Então, as baianas que estão chegando agora, essas novas é que estão tendo justamente um
urbanos, contributivo, e o regime para o segurado especial, para trabalhadores rurais, não-
novo conhecimento. Elas estão se despertando que a Previdência é uma coisa, a associação
contributivo ou não-bismarckiano. O problema foi solucionado com o reconhecimento da
é outra. Foi a mesma coisa das lavadeiras. A gente fez um trabalho aqui muito grande com
categoria das baianas do acarajé como trabalhadoras por conta própria e, portanto,
as lavadeiras de Abaeté. Então, elas tinham associação e pensavam que a associação já era
seguradas da Previdência Social na qualidade de contribuintes individuais, em 1998.
tudo. Porque elas fazem assim, eu não sei se o senhor já conhecia como é que o povo
O principal mal-entendido verificado na percepção das baianas do acarajé sobre a guarda documento: pega um saco, joga os documentos tudo dentro daquele saco, quando é
Previdência surgiu em torno da confusão entre os benefícios urbanos, contributivos e as no dia de vir para a Previdência, traz o saco, aí derruba assim aquele saco para procurar
aposentadorias rurais. Essa confusão revela as percepções sobre a Previdência como um toda aquela documentação.
direito desvinculado dos aportes. Como já mencionado no capítulo anterior, os
aposentados rurais enquadram-se em um sistema não-bismarckiano, em que o benefício É assim, agora elas estão se organizando; o Programa de Estabilidade Social está trabalhando
não está diretamente relacionado com as contribuições feitas pelos aposentados. O com este problema. O serviço social já vinha trabalhando nisso. É, o programa justamente está
financiamento do sistema provém de um imposto sobre a comercialização dos produtos despertando estas populações para como é que ela deve se proteger.” (Maria da Penha,
rurais e do extrativismo, além dos recursos do tesouro destinados a esse fim. Na opinião coordenadora do Programa de Educação Previdenciária, Salvador, BA.)
de Delgado, pela importância social desse gasto, ele teria de ser visto como uma despesa do A Previdência, por meio do Programa de Educação Previdenciária (PEP), realizou esforços
orçamento da Seguridade Social, em vez de impactar a despesa e conseqüentemente o para incorporar esses setores ao sistema. Uma das maiores dificuldades enfrentadas ao
déficit da Previdência (Delgado e Abrahão de Castro, 2003). trabalhar com esse grupo era como fazer para que essas mulheres, de renda modesta,
No sistema de aposentadorias rurais, os trabalhadores, para provar que se enquadram na conseguissem poupar o dinheiro necessário para realizar as contribuições que lhes dariam
categoria de trabalhador rural, em geral, filiam-se aos sindicatos de trabalhadores rurais, direito aos benefícios.
muitos destes criados para canalizar as demandas de aposentadoria. O fato de ser O Comitê de Educação Previdenciária de Salvador, BA, encontrou uma fórmula
praticamente uma regra ter de ser filiado a sindicatos de trabalhadores rurais leva os relativamente simples e criativa para que essas baianas conseguissem realizar suas
usuários desse serviço a imaginarem que, ao pagar o sindicato, estão pagando a Previdência. contribuições e, assim, ter direito aos benefícios. Por meio de diálogo, chegaram à
Na lógica das baianas, sua filiação à Confederação de Cultos Afro-brasileiros teria de ter o conclusão de que, se guardassem o equivalente a um acarajé por dia em um cofrinho, ao
mesmo significado que o pagamento dos trabalhadores rurais junto aos sindicatos. Essa final do mês teriam o dinheiro suficiente para realizar as contribuições previdenciárias. Essa
interpretação errônea levou uma parcela das baianas a criar uma associação independente poupança diária é interpretada pelas baianas do acarajé como uma “oferenda” nos códigos
da Federação, com o intuito de orientar suas sócias nas atividades além das questões do candomblé. Independentemente dessa interpretação cultural, a contribuição diária
religiosas. A criação de um movimento social pelo reconhecimento do direito à permite, no final do mês, pagar a prestação da Previdência.
aposentadoria é reveladora do valor atribuído à Previdência Social, e a Previdência soube A lógica de depositar um acarajé para a Previdência é entendida nos termos do sistema de
canalizar essa energia por meio das parcerias estabelecidas mediante o Programa de oferendas do candomblé. Ainda lembro quando, durante uma entrevista com um ogã, ele
Educação Previdenciária (PEP). ficou desorientado com a pergunta acerca da possibilidade de ter um Exu e não pedir nada
A Previdência Social, por meio do PEP, desenvolve diversas ações junto às populações 144 145 para ele. O pedido é a outra cara da oferenda, sem pedido não tem oferenda e sem
oferenda não tem Exu. Mas voltemos ao cofrinho da Previdência. significativo é que, uma vez satisfeitas as suas demandas iniciais, a organização continuou a
“Essa do cofrinho... a Previdência instituiu mesmo, institucionalizou a coisa. Porque elas existir e ampliou seu leque de ação a partir de outras demandas da categoria. Uma destas
gostaram, elas compraram aquele cofrinho de barro e botaram a marca da Previdência. demandas foi com a relação à descaracterização da comida tradicional por parte de ex-
Quando uma baiana vai se inscrever, ela dá o carnê da Previdência e dá o cofrinho. Esse baianas, convertidas a cultos evangélicos, que continuam a vender o tradicional bolinho
cofrinho até já deu um bocado de confusão, porque antes, o cofrinho, se botasse um real, rebatizado de bolinho de Jesus. O depoimento indica, ainda, como o reconhecimento do
dava para pagar a Previdência. Então, houve o aumento: ‘Agora vocês não botem mais um, direito à aposentadoria das baianas do acarajé impulsionou a luta dos pais-de-santo como
botem um e cinqüenta’. Elas protestavam: ‘Ah, mas não é possível! Daqui a pouco a gente ministros de ordem religiosa, com vistas à obtenção desse mesmo direito.
não sabe mais nem quanto é que vai botar nesse negócio!’ Mas aí nós começamos a fazer O reconhecimento do direito à aposentadoria para as baianas do acarajé foi um processo
esse trabalho, posteriormente... mais fácil comparado àquele dos pais e mães-de-santo, uma vez que as primeiras tiveram
reconhecida sua atividade de trabalhadoras artesanais, enquanto o reconhecimento do
Porque era assim, as baianas eram alinhadas ao Culto Afro. Era um só as baianas com a
benefício para os ebômins resultou no reconhecimento oficial do candomblé como religião.
Associação ao Culto afro. Posteriormente, eles se separaram, porque as baianas também
No caso das baianas, a demanda foi em torno da forma de classificar a atividade para serem
eram ligadas ao candomblé. Elas eram do candomblé. Hoje elas estão brigando justamente
consideradas contribuintes individuais. O reconhecimento dos ebômins como ministros de
para que não fique no candomblé, mas não seja da maneira como está hoje, porque hoje
ordem religiosa implicava o reconhecimento pleno do candomblé como religião, por parte
está todo mundo querendo ser baiana de acarajé, está entendendo? E elas não querem,
do Estado, inclusive no que tange ao direito à aposentadoria. As objeções do Estado eram
estão prevendo isso.
que as religiões afro-brasileiras não tinham uma doutrina, um corpo unificado de crenças.
Quando elas se desvincularam da associação, aí o que passou? Culto Afro só candomblé; e a Como assinalamos em nossa análise, a exigência de um corpus de crenças escrito ou uma
Associação das Baianas do Acarajé se separou. Aí, o que foi que aconteceu? Aconteceu um doutrina sistematizada entra em contradição com o fato de serem essas religiões iniciáticas,
problema também, já que o Culto Afro começou também a ter conhecimento da Previdência de tradição oral, em que o segredo tem um papel fundamental. Por outro lado, as diferentes
em nível de proteção social. Isso porquê? Porque elas não tinham despertado ainda, elas tradições bantos e iorubas criam um amplo leque que abarca orixás, Egum e inkices, que,
pensavam que, pagando a Associação, já podiam se aposentar. Aí começou a correr muita apesar da intercomunicabilidade, dificilmente poderiam ser homogeneizadas em um corpus
gente para o INSS para se aposentar pagando só a Associação, não pagava o INSS. Foi único. A solução encontrada pela Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro foi a criação de
quando verificou que não era possível, porque eles pagavam lá a Associação, o sindicato, e um código de ética. Um dos pontos desse código é a obrigação do período de preparação de
não estavam pagando a Previdência. Aí foi que começamos a fazer esse trabalho com o sete anos para o exercício do cargo de ebômim ou sacerdote. O código de ética está
pessoal do candomblé. Começamos a fazer também visitando, porque aqui são 4.850 construído como uma série de regras, em torno das quais existe o acordo entre as
terreiros na Bahia toda, né? federações reunidas na Federação Nacional e a explicitação de determinados pontos, como o
Nós começamos a fazer um trabalho com eles, principalmente com esse pessoal mais velho, sistema de cargos nas diferentes tradições. O registro dessas informações recebeu o nome de
mais antigo. Porque nos terreiros tem muita gente velha, muita gente que é pai-de-santo, Projeto de Reconhecimento da Resolução do Código de Ética Afro-brasileiro como Religião no Brasil.
mãe-de-santo, aqueles negócios todo de lá, aquela formalidade deles. Aí nós começamos a Depois de muitas reivindicações, no ano 2000, os pais e as mães-de-santo obtiveram o
fazer esse trabalho com eles, visitando a sede, vindo e fazendo mapas entre as palestras e reconhecimento do direito de se aposentarem como sacerdotes de cultos afro-brasileiros.
também nós chegamos pela Federação, porque eles têm a Federação, é um grupo local que “Em 1981, o ex-presidente da Federação de Cultos Afro-brasileiros requereu da Previdência
tem também um número muito grande de terreiros. Aqui na Bahia, em todo canto tem Social (na época era o INPS) a aposentadoria para titulares de terreiro e baianas
terreiro, aonde o senhor vai, vai ter terreiro de candomblé, muito, muito. vendedoras de acarajé. Daí foi dado o reconhecimento às baianas vendedoras de acarajé,
Foi quando a gente começou a fazer esse trabalho, e até hoje a gente ainda está nesse como trabalhadoras da parte artesanal. E foi indeferido o pedido dos titulares de terreiro
trabalho com eles. Eles encaminham para a gente orientar aqui, e fazemos também um por falta de dogma, segundo a legislação do INSS. Daí, fizemos um congresso. Desse
trabalho junto à Associação, que é no Pelourinho. Esses são os dois trabalhos. Agora, fora congresso, tiramos uns anais, averbamos esses anais no cartório e comprovamos para a
candomblé e as baianas, nós trabalhamos com os barraqueiros de praia, nós fizemos um Previdência Social que nós não tínhamos dogmas, tínhamos um código de ética.
trabalho na feira de São Joaquim... Olha aqui as baianas: as baianas são 3.500, viu? Estão Na nossa religião, há um código de ética. Daí, eles queriam saber, dentro desse código de
todas aqui. O Afro, 4.800; os barraqueiros, 780 barracas; e os ambulantes, 4.850 também.” ética, o que era um orixá, o que era ogã... Aí a gente passou, nesse código de ética, a falar
(Maria da Penha, coordenadora do PEP, Salvador, BA.) sobre a religião e falar da parte da iniciação até os sete anos, quando a pessoa se torna um
Este depoimento é relevante porque expõe as negociações em torno de estratégias que ebômim com a obrigação de sete anos e, a partir daí, passava a contribuir com a
permitissem a esses setores a realização das contribuições previdenciárias, como o Previdência como sacerdote.
cofrinho, que terminou por vincular o preço do acarajé às prestações da Previdência. Ele
Na época, Waldeck Ornélas era o Ministro [da Previdência]. Aí foi a estudo, como um bom
também apresenta o processo de mobilização social em torno de demandas previdenciárias
baiano, a pressão em cima dele direto... e aí concedeu, né? Deferiu-se o processo, e a mãe
e a criação de uma organização específica para canalizar as demandas das baianas. Um dado
146 147 Ditinha foi a primeira a aposentar. Depois da mãe Ditinha, já teve um bocado de senhoras
de idade que sempre caminhou na religião e conseguiu aposentadoria. Já tem um bocado área rural. Por outro lado, o reconhecimento tardio do direito dos pai e mães-de-santo à
de senhor aposentado; já tem também mães-de-santo que contribuíram com a Previdência e Previdência vem corroborar o preconceito que orientou um sistema previdenciário
já estão aposentadas.Temos também o aumento das pessoas, porque, no ano passado, foi elaborado a partir de parâmetros brancos, urbano-industriais e, por que não, católicos.
feita uma pesquisa, e nós já estávamos com dezoito mil pessoas contribuindo com a Essas mudanças políticas, como a inclusão das baianas do acarajé e dos pais-de-santo no
Previdência pelo código 19620/7; hoje cresceu. Nessa nova geração, nós temos 40% sistema previdenciário, são produto de lutas pelo reconhecimento. Essas lutas partem da
masculino, são 18 mil pessoas contribuindo já com a Previdência. O número é o código de tradição para a reivindicação de direitos ditos “modernos”. A estratégia das políticas de
identificação, que é 19620/7; esse é o código religioso. Na Previdência, eles vão passar a reconhecimento transcende uma política focal, tem o sentido de incorporar os diferentes
contribuir como contribuinte individual e, quando eles vão se aposentar, a FENACAB dá um grupos excluídos e favorece a tendência à universalização dos benefícios.
atestado religioso onde consta o tempo do exercício sacerdotal como ebômim.
Essas associações canalizaram as demandas desses movimentos sócio-religiosos e
Mais de setenta e sete anos de Previdência sem reconhecer os direitos dos sacerdotes dos engajaram-se na luta tanto pelo reconhecimento da diversidade religiosa como pelo direito
cultos afro-brasileiros. Até hoje ainda tem uns funcionários do INSS que dizem que não à aposentadoria. Tais fatos levaram esses movimentos a pleitear, de uma ou outra forma,
conhecem isso...” (Pai Ari, presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro, uma reformulação do conceito de cidadania para que contemple a diferença, transcenda o
Salvador, BA.) campo clássico dos direitos e deveres ao incorporar uma dimensão simbólica que inclua a
O direito à aposentadoria foi reconhecido oficialmente mediante um despacho da área diversidade cultural: o direito à diferença.
jurídica durante a gestão do então Ministro da Previdência e Assistência Social, o qual prevê O reconhecimento do povo do candomblé passa por seus expoentes mais idosos, uma vez
o direito dos ebômins de se enquadrarem na categoria de “ministro de confissão religiosa, que, nessa tradição oral, quando morrem os mais velhos, a perda para o grupo tem um
membro de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa” para os valor inestimável, pois uma parte do saber é perdida para sempre.
trâmites da aposentadoria. Esse despacho foi assinado em 21 de outubro de 2000. Para “E nós verificamos que aqui e em todas as casa de axé, em sua maioria... porque diferente
efetivar o trâmite, a Federação tem de emitir um certificado que ateste o exercício do das outras, de outras comunidades, nós valorizamos o nosso idoso. Eu não digo no caso dos
culto por mais de 14 anos. A aposentadoria para os pais e mães-de-santo levou ao índios, né? Tem um provérbio africano que diz assim: “Quando um idoso falece, é como se uma
reconhecimento de uma religião tradicional que, apesar da declaração de liberdade de biblioteca inteira se incendiasse”. É o nosso caso, cada mulher dessa que a gente perde, perde
cultos inscrita na Constituição de 1988, não era reconhecida pela Previdência e por outras muito, porque a nossa cultura é oral.Tem muita coisa escrita, muita produção, mas quais são
instituições do Estado. Encerremos esta sessão com o depoimento de Mãe Ditinha, as confiáveis? Quais não são? Não é verdade? Tem muita coisa que está escrita, mas nós
primeira mãe-de-santo a ser aposentada como Ebômim. Ela recorda o acontecimento com sabemos que a nossa cultura, a tradição nossa mesmo, é a cultura oral, aquilo que vai
as seguintes palavras: passando de pai para filho.” (Maria José, Terreiro de Mãe Menininha do Gantois, parceira
“Foi importante porque muita gente passou a acreditar mais nos dirigentes da Federação, do Programa de Estabilidade Social, Salvador, BA.)
vamos dizer assim, né? Porque até aí... hoje dizem que todo idoso tem direito a esse
benefício, mas eu não sabia, eu não sabia, tanto que eu procurei eu estava com sessenta e
poucos anos de idade e não sabia disso. E, através do candomblé, foi que eu vim a saber,
porque ele me convidou e tal, e que tava acontecendo isso e que já era realidade. Eu fui e
fiz. Daí foi um reboliço, foi televisão, tive uma semana de cama, era televisão, era jornal, era
isso, telefonema da Espanha, telefonema de outros países. Quer dizer, ‘propalou’. Aí foi um
benefício muito grande, porque nossa religião precisa de expansão, precisa porque já foi
muito, como é que se diz?... já foi muito discriminada. Então, uma coisa dessas veio levantar
mais um pouco o candomblé, e daí todo mundo agora se interessa, todo mundo quer, todo
mundo que estava fora tá voltando, tá entendendo? Porque já viram que é alguma coisa que
vale a pena, não só na parte religiosa, como também na parte material, porque aí é um
benefício material; e vamos em frente. Logo foi proclamada a religião que, até então, só era
preta, e isso beneficiou em tudo. Você vê que muita gente importante entrou, muita gente
importante ajudou, influenciou, e isso nos engrandeceu muito.” (Mãe Ditinha, aposentada,
70 anos, Salvador, BA.)
Em síntese, a análise das populações que participam do candomblé e são contempladas
pelos benefícios da Previdência permite assinalar, por um lado, as diferenças entre os
segurados especiais rurais e os segurados urbanos de baixa renda. No caso destes, a
Previdência aplica um sistema contributivo diferente da política previdenciária aplicada na
148 149
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152 153
Tem um provérbio africano que diz assim:
“Quando um idoso falece,
é como se uma biblioteca inteira
154 155 se incendiasse”.
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3 Maracatu Nação do Recife:
tradições afro-brasileiras e déficit
de política social na periferia das
metrópoles
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O Maracatu-nação
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A festa da calunga
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As sedes dos maracatus
e a população da periferia
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4 Temas
cruzados:
tradições afro-brasileiras e
Previdência Social
O princípio que orientou a pesquisa foi o da tradição cultural como resistência e como forma
de organização social. A negritude não pode ser reduzida à cor da pele, nem a política social
pode ser pensada como se pensava a modernidade antigamente, inscrita sobre uma tábula
rasa. O desafio é formular uma política que tenda à universalização dos benefícios e
contemple a diversidade das tradições culturais. Observamos a presença ativa dos
aposentados nas diversas instituições: aposentados rurais nas comunidades remanescentes de
quilombos, aposentados como ministros de ordem religiosa nos candomblés, funcionários
públicos e autônomos nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário.
O sistema previdenciário foi instituído há mais de oitenta anos no Brasil. Inicialmente
pensado para operários brancos urbanos e, por que não, católicos, só recentemente foi
reconhecido o direito dessas populações negras aos benefícios previdenciários: a
aposentadoria rural, que se fez extensiva na Constituição de 1988; a aposentadoria para as
baianas do acarajé, reconhecidas como trabalhadoras autônomas na década de 90; e a
aposentadoria para os pais-de-santo, ebômins, como ministros de ordem religiosa, no ano
2000.
O principal déficit de políticas previdenciárias localiza-se nas periferias das grandes cidades,
onde mora uma população urbana majoritariamente negra, com altos índices de
desemprego e trabalho informal. Em um país como o Brasil, onde a pobreza é negra, o
principal desafio é pensar uma política previdenciária não-bismarckiana, orientada para essas
populações que, do ponto de vista do Ministério da Previdência Social, poderiam estar
enquadradas na situação de risco social.
Um olhar orientado pela tradição cultural acerta em cheio as populações excluídas das
políticas sociais. Nesse sentido, as instituições analisadas podem constituir-se em
importantes parceiras para a ampliação da cobertura do sistema previdenciário. O
reconhecimento das tradições favorece o fortalecimento e a auto-estima desses grupos.
Sem reconhecimento reproduz-se a situação de invisibilidade e de exclusão sofrida por
estes grupos.
198 199
Os fatos sociais analisados mostram tradições culturais e formas de organização social. As
festas reatualizam identidades de resistência cultural e revelam verdadeiras redes de
relações sociais. Para essas populações, a cidadania, enquanto pertencimento ao Estado
nacional, passa pela realização de seus direitos sociais, mas também passa pelo
reconhecimento da sua identidade tradicional. As diversas instituições tradicionais em
questão podem ser parceiras estratégicas para iniciativas de inclusão previdenciária.
A perspectiva desenvolvida nesta pesquisa ao cruzar tradições afro-brasileiras e políticas de
Previdência põe em xeque a dicotomia tradicional/moderno ao mostrar como essas
instituições articularam muitas iniciativas de luta pelo reconhecimento
dos direitos previdenciários. Desses lugares tradicionais de quilombolas,
irmandades, terreiros e maracatus, surgem demandas por igualdade de
direitos para trabalhadores rurais, artesanais e ministros de ordens
religiosas. À medida em que as reivindicações encontram eco no Estado,
ampliam-se, na prática, os horizontes de uma cidadania cada vez mais
plural.
Esta pesquisa, ao situar-se neste campo cruzado, entre as formas
culturalmente tradicionais de assistência das populações negras e os
beneficiários das políticas de Previdência e Assistência Social modernas,
mostra-nos aposentados que participam, sem contradição, dos mundos
tradicional e moderno. As formas de assistência tradicionais da cultura
afro-brasileira foram modeladas pela exclusão a que foram submetidas
as populações negras e, como mostramos nos diferentes grupos, ainda
continuam vigentes em vários contextos. Apesar dessa presença, não se
pode cobrar delas que cumpram o papel do Estado, inscrito na
Constituição: o de oferecer proteção social aos cidadãos brasileiros.
O estudo também mostra que os benefícios outorgados a esses
aposentados, longe de afastá-los das instituições tradicionais, reforça
seu lugar nas diversas instituições. Esse fortalecimento chega por
diferentes caminhos: pelas contribuições dos aposentados rurais nas
festas dos remanescentes de quilombos, pela autonomia dos idosos
participantes da Irmandade do Rosário ou pelo reconhecimento do
caráter sacerdotal dos ebômins das religiões afro-brasileiras.
A modernidade não pode ser pensada como um fato novo inscrito
sobre uma tábula rasa. Pelo contrário, a modernização tem de ter como
horizonte a realização dos direitos sociais e culturais dos diversos
cidadãos que fazem parte de um Estado nacional plural. A cidadania
deve assegurar o direito à diferença, uma diferença geralmente não
enxergada, invisibilizada, apesar de separada por poucos quilômetros, como nos
remanescentes, ou por apenas um muro, como no caso dos terreiros. Um direito a uma
diferença ancorada em uma visão de mundo e não só na cor da pele.
Ao longo do trabalho, exploramos diferentes formas tradicionais de assistência entre as
populações negras, tais como: o trabalho coletivo entre os quilombolas e as festas tradicionais;
a assistência aos irmãos necessitados na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, nos terreiros de candomblé e nos maracatus. Observamos a presença ativa
dos aposentados nas várias instituições tradicionais. Esses aposentados recebiam diferentes
200 201 tipos de benefícios. No caso dos remanescentes de quilombos, o acesso ao benefício era pela
categoria de trabalhadores rurais. Já no caso da Irmandade, encontramos aposentados como
funcionários públicos ou como autônomos. Para os terreiros, existem categorias específicas,
como o reconhecimento da atividade de ministros de cultos religiosos para os pais e mães-
de-santo, e o reconhecimento do seu ofício como trabalhadoras artesanais, para as baianas do
acarajé. Apesar da existência dessas categorias, tivemos a oportunidade de observar, no caso
dos terreiros, alguns pais-de-santo que contribuíam como funcionários públicos e uma mãe-
de-santo aposentada como trabalhadora rural. Os maracatus deixaram evidente o déficit de
proteção social nas periferias das grandes cidades, principalmente nos setores onde vive uma
população pobre e urbana.
Nas diferentes categorias analisadas, encontramos uma parte da população que não tem
acesso aos benefícios, seja por estar indocumentada, no caso dos remanescentes; por
motivos desconhecidos, possivelmente entraves burocráticos, no caso da irmandade; ou por
não terem realizado contribuições, no caso dos terreiros. Esses dados indicam, por um lado,
a extensão dos benefícios e a tendência à universalização da cobertura; mas,
simultaneamente, apresentam sinais da falta de informação desses grupos e, principalmente,
da dificuldade da Previdência em atuar junto às populações negras urbanas das periferias.
No caso dos remanescentes de quilombos, a aposentadoria rural tem uma ampla difusão, mas
não acontece o mesmo com benefícios como salário-maternidade ou auxílio-doença. Não
possuímos esse tipo de informação acerca dos participantes da Irmandade, mas é possível que
enfrentem uma situação análoga, pois trata-se de uma população urbana, pobre e discriminada,
com pouco acesso à informação. No caso dos terreiros, a Federação Nacional do Culto Afro-
brasileiro cumpre o papel de informar, mas encontra-se fortemente centralizada no estado da
Bahia. Pais e mães-de-santo de outros estados, como o Rio de Janeiro, têm de reportar-se à
Federação em Salvador para obter os documentos necessários, por exemplo, a declaração de
exercício do ofício sacerdotal como ebômim. No interior de Minas Gerais, encontramos
terreiros que não tinham informações sobre o direito à aposentadoria e desconheciam a
existência da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro. No Recife, existem várias
federações, o que resulta em fragmentação e descrédito.
A comparação do acesso às políticas de Previdência Social entre essas populações negras
evidencia a grande penetração e eficiência de um sistema não-bismarckiano aplicado nas áreas
rurais. O sistema de aposentadorias rurais para homens e mulheres, sem distinções de raça,
tem uma ampla difusão e contempla as populações negras que se enquadram nas condições
legais: ter sido trabalhador rural por um período pré-estabelecido ou, no caso dos benefícos
assitencias da LOAS, ter 65 anos ou mais e pertencer a um grupo familiar cujo rendimento
202 203 seja inferior a ¼ do salário mínimo.
Nas pequenas cidades do interior, encontramos aposentados que conseguiram o benefício
como funcionários públicos dos municípios e o caso de um aposentado que contribuiu
como autônomo: Luiz, o Sapateiro. Nas cidades de grande porte, como Salvador ou Recife,
fez-se evidente o déficit das políticas previdenciárias para as populações negras urbanas
moradoras das periferias. A demanda das baianas levou-as a se organizarem para a luta pelo
que concebiam como direito e a conseguirem o reconhecimento da categoria para
obtenção do direito aos benefícios.
Nos bairros do Recife, o benefício previdenciário é conhecido como “Instituto” e dá
prestígio ao beneficiário, que recebe periodicamente seu dinheiro em um contexto
marcado pelo desemprego e pela informalidade. As altas taxas de desemprego, o trabalho
informal e a falta de registros, como a carteira de trabalho, excluem esses grupos do
sistema de Previdência urbano, pensado para trabalhadores com carteira de trabalho
assinada e com aportes tripartites: do trabalhador, do empregador e do Estado. Essa é uma
condição cumprida, em parte, no importante setor industrial do Brasil. Estas condições
dificilmente poderão ser cumpridas pelas populações das periferias urbanas. O desenho de
políticas de inclusão social que contemplem essas populações e sua diversidade é um dos
grandes desafios a serem enfrentados pela Previdência Social. A Previdência foi pensada
inicialmente em função da situação dos trabalhadores brancos. A constituição de 1988 e a
legislação posterior estenderam o direito a uma aposentadoria não-contributiva aos
trabalhadores rurais e às minorias: indígenas, alforriados e populações tradicionais vivendo
em regime de agricde subsistência. Os resultados alcançados com os programas de
Previdência rural podem fornecer os moldes para políticas sociais que contemplem essas
populações do Brasil, onde a pobreza é negra e urbana.
Durante as visitas às diferentes localidades, foram observadas as estratégias implementadas
pelo Programa de Educação Previdenciária, cujo objetivo é ampliar a cobertura
previdenciária para as populações excluídas do sistema de proteção social. Dessa análise
comparativa, pode-se assinalar como dado positivo a capilaridade da cobertura das
aposentadorias rurais. A parceria entre os sindicatos de trabalhadores rurais e a
Previdência, mediante o deslocamento dos serviços com o PREVmóvel, permitiu incorporar
ao sistema a maior parte dos trabalhadores rurais que vivem em uma economia de
subsistência. A estreita parceria leva a confundir a ação da Previdência com os serviços do
sindicato, priorizando os benefícios rurais em detrimento de outros serviços e benefícios
da Previdência. Em algumas localidades, as mulheres não solicitavam salário-maternidade
porque a Previdência era associada ao sindicato e apenas às aposentadorias rurais. O
PREVmóvel poderia ampliar seu leque de parcerias, que incluem basicamente o sindicato de
trabalhadores rurais e a secretaria de assistência social do município.
Nas cidades visitadas, Recife e Salvador, entrevistamos os técnicos e estagiários que
participam do Programa de Educação Previdenciária. O PEP do Recife prioriza as ações de
comunicação massiva, como programas de rádio, participação em programas de TV e
panfletagem. Essas ações dirigidas a um público não específico, à primeira vista, não chegam
às populações visitadas, tanto nos terreiros como na zona norte, nos bairros que
concentram os maracatus. O atendimento a essas populações é feito na agência de Casa
Forte, um bairro de classe média, onde vivem algumas famílias tradicionais da cidade. Essa
disposição do atendimento agrupa os dados e invisibiliza as informações sobre os bairros
pobres, as quais são mascaradas nos indicadores por conta da inclusão dos setores médios.
O PEP de Salvador implementou uma estratégia de trabalho que focaliza os grupos não 204 205
incluídos no sistema de proteção social: trabalhadores informais e outras categorias, como dos diferentes, dos excluídos devido a preconceitos, dos invisibilizados.
prostitutas, feirantes, barraqueiros de praia, pescadores, lavadeiras e vendedores ambulantes. Neste trabalho, procuramos visibilizar as diferenças, por contraste com outros trabalhos que
O trabalho é realizado em parceria com as associações e os sindicatos que agrupam essas as apagam na procura pela igualdade. Não podemos, tampouco, universalizar essas identidades
categorias; por exemplo, as associações de feirantes, de prostitutas e das baianas do acarajé. tradicionais, nem transformá-las em limites rígidos que estendam ou imponham essas
Mediante a realização de cursos de formadores sobre a Previdência, divulga os diferentes características à totalidade da população. Se as projetarmos dessa forma, corremos o risco de
benefícios e as condições necessárias para ter acesso aos serviços oferecidos pela cair na essencialização das identidades, ou o que é pior, de transformá-las em estereótipos ou
Previdência. Esses formadores, muitas vezes os próprios dirigentes da associação, caricaturas de como deveria ser um negro, um índio ou uma mulher. Ao criar estereótipos,
reproduzem a informação, levando-a à grande parte dos associados. A estratégia de recriam-se barreiras, onde, na realidade, temos relações fluidas porosas, hibridações.
parcerias mostrou-se eficaz na inclusão de diversos grupos de populações afro-brasileiras,
Em nossa análise, entramos pelas relações sociais para chegar ao plano das tradições. Não
como as baianas do acarajé e os pais e mães-de-santo dos candomblés da Bahia.
trabalhamos com um conceito romântico de cultura, com um todo homogêneo e coerente.
A cidadania, muitas vezes, foi pensada a partir dos movimentos sociais, organizados em Pelo contrário, a cultura apresenta-se como um entrelaçamento de diversas tradições
torno de diversas demandas por ampliação dos seus limites. Esses movimentos, como africanas e brasileiras, as quais se mesclam e formam novos desenhos.
atores coletivos em uma sociedade capitalista, podem ser classificados de acordo com a
A preocupação com a morte é uma constante em todas as culturas. A busca pela “boa
orientação de suas reivindicações. Diversos autores assinalam que os mais variados
morte”, nas diferentes tradições, sugere a importância que um benefício do tipo auxílio-
movimentos clamam por igualdade de condições em uma sociedade, de fato, desigual. As
funeral poderia ter para essas populações.
demandas são pela intervenção do Estado para a criação das condições de igualdade, que
Podemos ordenar as características, tanto das diferentes tradições afro-brasileiras como
orientam a ideologia liberal. Podem ser por igualdade no campo do trabalho, do mercado
das suas entidades, em um continuum que vai desde as calungas até os eguns, passando
ou de acesso aos recursos do Estado, incluindo cargos e relações fisiológicas. Outro tipo de
pelos inkices e orixás. Essa seqüência pode ser interpretada ao longo de uma escala que as
movimento social ancora-se na diferença, e o motor da mobilização é a defesa das
agrupa desde as mais públicas – o Maracatu, que desfila na rua, ou a Irmandade, que se
diferenças ameaçadas pela condição de minoria étnica, racial, sexual, entre outras, frente às
reúne em torno da igreja – até as mais secretas – o culto dos Egum. Cabe ressaltar que,
pressões do mercado ou do Estado. Reivindica-se não ficar excluído das políticas por estar
apesar do segredo em torno dos orixás, as deidades africanas são amplamente conhecidas
invisibilizado. O desafio está na implementação de políticas universais que contemplem a
no Brasil. Em contraposição a essa publicidade em torno dos orixás, favorecida pelo
diferença. O ideal político é a ampliação do espaço público, para que nele tenha lugar a voz
sincretismo religioso com a Igreja Católica, os eguns são o segredo, a parte mais protegida
dessa tradição africana. Como antepassados, são o vínculo com a origem, são a África
invisível. Uma vez dimensionada a importância desse segredo, podemos valorizar o gesto de
consideração com a Previdência – não conosco: fotógrafo e antropólogo –, o qual se deu
pela apresentação no terreiro de Egum. Ela foi realizada para colaborar com a pesquisa da
Previdência, uma das instituições que reconheceu o candomblé como religião e outorgou,
para os ebômins, os mesmos direitos dos ministros de outros cultos religiosos. Esse
reconhecimento implica um outro: o da diferença, da ampliação da cidadania para que
contemple a diversidade de tradições culturais.
Como assinalamos, na periferia das grandes cidades, nos bairros mais pobres, onde se
concentra uma população majoritariamente negra, encontramos o principal déficit de
políticas de Previdência. Para superar esse déficit, a formulação de uma política
previdenciária não-bismarckiana é uma das medidas a serem pensadas para estender a
cobertura previdenciária às populações excluídas. Algumas alternativas incluem, também, um
seguro a um custo menor, que oferecesse benefícios mais limitados, ou alguma nova
categoria de segurado facultativo no âmbito do Regime Geral da Previdência Social. Cabe
destacar que a extensão dos direitos a esses setores da população está relacionada a uma
política de Previdência e não de assistência, pois o reconhecimento do trabalho realizado
por essas populações é central, apesar do seu caráter informal ou de difícil enquadramento
nos parâmetros da Previdência, como ocorreu com as baianas do acarajé. Por outro lado,
não basta a promulgação de uma lei. É necessário chegar a essas populações para difundir,
tornar públicas e implementar as reformulações. Nesse sentido, os Maracatus ou outras
instituições análogas podem ser uma porta de entrada para a chegada da Previdência a
206 207 esses grupos.
Durante o transcorrer da pesquisa, observamos as estratégias implementadas pelo PEP no
trabalho junto a diversos segmentos da sociedade. No caso das populações rurais, a
principal estratégia apóia-se no PREVmóvel, como forma de levar os serviços da
Previdência até as populações rurais. O PREVmóvel, com o intuito de descentralizar o
atendimento, revolucionou a relação da Previdência com as populações de municípios do
interior, distantes das grandes cidades. Não detectamos nenhum tipo de limitação para a
implementação de uma estratégia análoga nas periferias das grandes cidades. A parceria, que
no interior é desenvolvida com os sindicatos de trabalhadores rurais, poderia ser
implementada com outros tipos de atores sociais, desde associações de moradores até
associações culturais, como os Maracatus ou as Irmandades.
A implementação de estratégias do tipo universal, tendentes a atingir um público amplo,
com panfletagem e divulgação na mídia, não alcançou as populações visitadas. Um motivo a
ser apontado é que, no Brasil, o universal é branco; ou, como assinalaram vários autores, as
populações negras, assim como outros grupos de excluídos, são invisibilizados na
construção dessa idéia de universal.
As lutas pelo reconhecimento, em Salvador, levaram a equipe do PEP a trabalhar junto às
populações, com uma ação focal, que teve por objetivo a inclusão social dos grupos não
atendidos pela Previdência, como as baianas do acarajé e os ministros das ordens religiosas
afro-brasileiras. A estratégia de comunicação direta permitiu implementar ações que se
estenderam a outros segmentos, como foi o caso do “cofrinho da Previdência” das baianas
do acarajé. O trabalho corpo a corpo e a comunicação direta com os diferentes grupos
excluídos permitiram a inclusão de amplos segmentos da população, tais como feirantes,
pescadores e trabalhadores ambulantes.
Ao longo deste ensaio antropológico-fotográfico, com uma perspectiva qualitativa,
assinalamos aspectos relacionados às populações tradicionais, suas formas de organização e
assistência social e seu acesso aos direitos previdenciários. A perspectiva antropológica,
entendida como a arte da tradução cultural, faz-se presente no diálogo estabelecido entre
as pessoas apresentadas no trabalho, nos seus depoimentos e nas imagens captadas.
Esperamos que esse diálogo entre o leitor e os personagens aqui retratados seja eloqüente
quanto à necessidade de pensar as diferenças na formulação de políticas que tendem à
universalização. A presença das lutas pelo reconhecimento nos quilombos, nas irmandades,
nos terreiros e nos maracatus é um sinal da vitalidade dessas tradições como resistência
cultural e um indicador da imperiosa necessidade de levar em conta o direito à diferença na
formulação de políticas de atendimento a populações menos favorecidas. Sem
reconhecimento, não há auto-estima, e sem auto-estima, não há inclusão social.
208 209
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“KKetu/Nagô Alagbede: pessoa que trabalha no ramo de
Verger, Pierre. Os Libertos: sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX. Salvador,
Corrupio, 1992. Abokun: ogan que cultua Ogum. ferro e metais e forja as ferramentas do Axé.
Adô: cabaça. Alajopa: pessoa de Ode, que leva a caça
Verger, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos Orixás. Salvador, Corrupio, 1997.
Adoxum: pessoas feitas de santo. para ele.
Verger, Pierre. Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga
Aficode: chefe do Aramafá (seis corpos), Aleikoko: árvore sagrada cujo tronco
Costa dos Escravos, na África. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
ligado ao Ilê de Ode. sustenta o Orum e que atravessa os nove
Vergee, Pierre. Fluxos e Refluxos: do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os espaços.
Santos, dos séculos XVII a XIX. Salvador, Corrupio, 2002a. Agbeni Oyê: posto paralelo a Mayê, divide a
mesma causa. Alugbin: ogan de Oxalufa e Oxaguian, que
Verger, Pierre Fatumbi. Orixás: Deuses Iorubas na África e no Novo Mundo. Salvador, Corrupio, 2002b. toca o Ilu dedicado a Oxalá.
Agimuda: relação com o Ipadê Exu. Aquela
Wolf, Eric. Europa y los pueblos sin Historia. México, Fondo de Cultura Económica, 1984. Apokan: ligado ao Ilê de Omolu.
que carrega a espada. Título feminino usado
no culto de Oyá e Geledé. Arametã: conselho reponsável pelo culto e
Aiyaba Ewe: responsável em determinados pela organização da festa de Orixá.
atos e obrigações de “cantar folhas”. Assogbá: ogan ligado ao Ilê Omolu e a
Geralmente são filhas de Oxum. cultos de Obaluaye, Nanã, Egum e Exu.
Aiybá: bate o ejé em grandes obrigações. Axogun: responsável pelos sacrifícios. Traz
Tem subposto Otum e Osi. axé de Ogum. Trabalha em conjunto com
Àjòiè: camareira do Orixá. Ekedi. Iyalorixá/Babalorixá, Oloyês e Ogans. Não
pode errar. Responsável direto pelos
Akòwé Ilê Xangô: é a secretária da casa de
sacrifícios do início ao fim do ato. Soberano
Xangô. Zelo, Orô e compras.
nestas obrigações, é quem se comunica com
Alabawy: pessoa que trabalha na área
o Orixá para quem se destina a obrigação,
jurídica e cuida dos interesses civis do axé.
transmitindo a Iyalaxé as respostas e
Alagbá: âmbito civil do axé. mandamentos. Deve ser chamado de Pai.
Alagbê: responsável pelos toques rituais, Também possui sub-posto Otum e Osi.
pela alimentação, conservação e Babalossain: responsável pela colheita de
preservação dos Ilus, os instrumentos folhas. Cargo de extrema importância.
musicais sagrados. No ciclo de festas, é
Balóde: ogan de Ode.
obrigado a levantar de madrugada para que
Balógun: título ligado ao Ilê de Ogum.
faça a alvorada durante mais ou menos 40
minutos. Se uma autoridade de outro Axé Egbé: o conjunto dos membros de uma casa
chegar ao Ilê, o Alagbê tem de lhe prestar de santo.
homenagem, “dobrar o Ilu” e oferecer até Elémòsó: ogan ou Ajoie de Oxaguian, ligado
sua própria cadeira. Também possui ao Ilê de Oxalá.
214 215
subposto. Gymu: Àjòiè de Omolu, que cuida de tudo o
que se relaciona com Omolu, Nanã e Leyn: pessoa que zela Ogun ou Ode. Ang ola / Bantu
Angola método simplificado de se consultar o
Ossayin. Lorogum: festa ritual da qual participam Dimba Inkice: são as obrigações dadas aos inkice, em feituras, pequenas obrigações ou
Ibó: relativo aos Egum. Ilê Ibó é o mesmo todos os Orixás e que revive a ida deles à santos. a coisa de informação imediata. É jogado em
que casa de Egum. guerra. Dimba Nkise: são as obrigações realizadas qualquer lugar, já que o jogo Kassumbenca
Iwin Dunse: ligado ao Ilê de Oxalá. Maaawo: grande confiança. para o Nkise. só é feito no apejó. O obi deve ser jogado
no prato de barro com efum espalhado
Iyabassé: responsável pelo preparo dos Mayê: Mexe com as coisas mais secretas do Dizungu Lilumbe: saída do santo.
(pó). Uma vela acesa deverá estar ao lado.
alimentos sagrados. Todos os Olorixás axé, ligadas à iniciação do Adoxu. Dizungu Nlungu: ordem do barco.
O obi tem 4 partidas. Deve-se saber quais
podem auxiliá-la, sendo a única responsável Mojubá: saudação respeitosa. 1ª - Kamoxi Mona Xikola. são as partes masculinas e femininas.
por qualquer falha eventual. Oba Odofin: ligado ao Ilê Oxalá. 2ª - Kaiari Mona Xikola. a) 1 pedaço masculino aberto (Nbô)
Iyadagan: auxilia Iyamoro e vice-versa. Odu: Espécie de signo que rege a existência 3ª - Katatu Mona Xikola. b) 1 pedaço feminino aberto (Muntó)
Também possui subpostos: Otun-ogan e de uma pessoa durante a vida. 4ª - Kakuãna Mona Xikola. c) 1 pedaço masculino aberto, 1 feminino
Osi-dagan.
Odum: ano ritual de uma casa de Eakota Tororó ou Mameto Ndenge: mãe
Iyaefun ou Babaefun: responsável pela aberto (Umbalá)
candomblé; o mesmo que ano. pequena.
pintura dos Iyawos. d) 2 pedaços masculinos abertos (Ageá)
Ogòtún: ligado ao Ilê Oxum. Kalungombe: Tata de Numbi (Egum).
Iyaegbé ou Babaegbé: é a segunda pessoa do e) 2 pedaços femininos abertos (Umbé)
Ojibonã: A mãe criadeira. Kijingu: cargo dado no jambeeressu (cuia).
axé, conselheira/o responsável pela f) 2 pedaços femininos abertos, 1 masculino
Ojuoba: posto de honra do Ilê Xangô e Kijingu:cargo, ou seja, entrega de Cuia.
manutenção da ordem, da tradição e da aberto (Baté)
possui subposto Otum e Osi.
hierarquia. Posto paralelo ao de Iyalorixá ou Kinsaba: colhedor de folhas. g) 2 pedaços masculinos abertos, 1 feminino
Babalorixá. Ológum: cargo masculino. Despacha os ebós
Kissicaram Gombe: ogan aberto (Sianá)
das grandes obrigações. A preferência é
Iyalabaké: responsável pela alimentação do Kissicarangombe: o mesmo que Ogan. h) 2 masculinos abertos, 2 femininos
dada aos filhos de Ogum.
iniciado, enquanto este se encontrar de Kivonda: o que sacrifica os animais. abertos (Dumbá)
obrigação. Olopondá: grande responsabilidade na
Kota: são EGBOMIS, filhos com mais de sete i) Nenhum aberto (Olezó)
iniciação, no âmbito altamente secreto.
Iyalaxé: Mãe do axé, a que distribui o axé. É anos de feitura. Obs.: A leitura das caídas constitui segredo; por
quem escolhe os Oloyés de acordo com as Oloya: cargo feminino. Despacha os ebós
Kota: são pessoas com mais de 7 anos de isso deixamos de mencionar aqui outras
determinações superiores. das grandes obrigações na falta de Ológum.
obrigações feitas. informações.
São filhas de Oyá.
Iyalorixá ou Babalorixá: Mãe ou Pai-de- Sukurankise: troca das águas das quartinhas.
Omolàrà: posto de confiança. Kufumala: defumações.
santo; é o posto mais elevado do ilê; tem a
Kumbi Ngoma: dias de toque. Tata ingoma: tocados de atabaques.
função de iniciar ou complementar o ato de Opaxorô: cajado de Oxalá.
Kutala: herdeiro da casa. Tata Kamukengo: pai pequeno.
iniciação dos olorixás. Orô: canto e dança específicos de um orixá.
Makota: ekedi. Tata Kinsaba: colhedor de folhas.
Iyamoro: responsável pelo Ipadê de Exu, Ossi: lado esquerdo, ou seja, a 3ª pessoa.
junto com a Agimuda, a Agba e a Igèna. Makota: o mesmo que Ekedi. Tata Kumbuí: tocador de atabaques.
Otum: a pessoa do lado direito, ou seja, a 2ª
Iyaquequerê: Mãe pequena do axé ou da pessoa. Mameto Kamukengo: mãe pequena. Tata Ndenge: pai pequeno.
comunidade. Sempre pronta para ajudar e Oxu: elemento ritual que confirma a Mameto Nkise: zeladora. Tata Nganga: jogador de búzios (caçueto).
ensinar todos no ilê. iniciação da Iyaô. Mameto Ria Inkice: mãe, zeladora. Tata pokô: o que sacrifica os animais.
Iyarubá: carrega a esteira do iniciado. Usa Oyês: os cargos de uma casa. Mona Inkice: filho de santo. Tata Ria Inkice: pai, zelador.
toalha de orixá no ombro. Sarapegbé: mensageiros de coisas civis e de Mona Muzenza: iniciado na nação Angola. Tata Vumbí: Ogan ligado à casa dos mortos.
Iyasihá: Aiyaba que segura o estandarte de awo. Mona Nkise: filho de santo. Tata Xicarongongo: tocador de atabaques.
Oxalá. Sobalóju: título masculino e feminino. Sendo Tata: pai.
Mona Xikola: é o iniciado, Yaô.
Iyatojuomó: responsável pelas crianças do o mais importante e atraente, o preferido Tateto Nkise: zelador.
Munzenza: é o preterido ao culto,
axé. do rei. impropriamente chamado de Yaô. O termo Zakaê Npanzo: árvore (troncos) colocada
Kaweó: ligado ao Ilê de Ossaiyn. Telololá: aquela que acompanha os Obas de muzenza significa noviça. nas portas dos santos.
Kólàbà: responsável pelo Làbà, símbolo de Xangô. Muzenza: o mesmo significado de Iyaô. Obs.: Esses troncos representam os
Xangô. Xirê: dança. ancestrais (Baculu).
Nengua Nkise: zeladora.
Labã: saco de couro, usado por Xangô. Ypery: ogan ou Ajòiè de Ode. 216 217 O Jogo de Obi: O Jogo de Obi é um
Jeje / Mar rim
Marrim
Acicinacaba: Vodum.
(Fon: Bábáwato).
Barriseton: iniciatório de Averequete.
Anexo 2 – mapas
Açobá: Título de Aziri. Cota Guaré: Título de entidades de chefes
Açoinodum: todos os voduns juntos. religiosos. (Fon: Senhor Bará Leba).
Adamachiô: iniciador do cântico. Dejô: Ekedi
Adunoblé: nome de Averequete. Derê: mãe pequena
Adunxo: nome de iniciado de Azoane. Dioroji: Família da Nice (Fon: Basuhô
Agajá Maçan: nome do Vodum. Gedeji).
Agonglô:Vodum real. Dote: mãe-de-santo
Ainã, Airoço: título de Xapatá. Gaiakú:mãe-de-santo
Ajunto, Ajato, Junto: espécie de anjo da Mutô: Ogan
guarda. Pejigan: zelador do Peji.
Aladanu: nome de Ajantó. Rombono: pai-de-santo
Alafrequetiana: nome do cântico Ruedô: saudação para Besseim.
Averequete.
Alogue: Vodum da família de Dambirá. Umbanda
Aloje: bracelete de Xapatá. Babãs: mãe-de-santo
Alopé, Aloque: pedido de benção (sic). Cambando: autoridade com cargo de
Arronoviçavá:Vodum da família de Dariece, homem ou Ogan.
irmão de Noedona. Cambas: todos os filhos.
Aseto: altar dos voduns. Ganga: pai-de-santo
Assem, Axé: os objetos sagrados, o Mucamba: autoridade com cargo (Ekedi).
fundamento do terreiro. Obs.: As Cambas só poderão abrir templos
Ataxô: nome de Leba. de Umbanda, após a obrigação de 7 anos, ou
Atigã: Zelador do atim. seja, o cargo. (...)
Atimlocô: gameleira branca.
Atinsá: árvore consagrada a um vodum, Egum
matagal. Alabá: espécie de pai pequeno.
Atinsen: nome do ronko. Alagba Osi: auxiliar 3ª pessoa.
Avamunha: toque de atabaque. Alagba Otum: auxiliar 2ª pessoa.
Axegã: zelador do axé. Alágba: chefe ou sacerdote Ojé.
Babá: pai (Fon:Bábá) Alapini: cargo supremo
Bacanão: sacerdote (Fon: boko nó) Amuichan: cargo de iniciação na nação Baba
Badê: título de Sobô-Badê Vodum família de Egum.
quni-oço (Fon: gbáde). Ojé: cargo de Ebomi, pessoa com sete anos
Bagono, Bagone, Bagalo: Vodum de família de de iniciada em Baba Egum.
Dambirá. Osi Alabá: 3ª pessoa.
Bajigan: a mesma coisa que Axogum. Otum Alabá: 2ª pessoa.
Baranatô: nome iniciativo de Zomadonu
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Este livro foi composto nas fontes Century Schoolbook 11/14 e GillSans 11/14,
miolo impresso em papel sappi 150 g/m2, capas em papel Couché 120 g/m2 revestido
de papelão pinho, e sobrecapas em couché 150 g/m2, com tiragem de 5.000 exemplares,
entre os meses de outubro e novembro de 2006.