A Família No Antigo Regime

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Introdução

Quando me propus a pegar neste tema para fazer um trabalho no âmbito da


cadeira de História Moderna (Economia e Sociedade), fui imediatamente fazer o que um
bom aprendiz de historiador deve fazer: pesquisar sobre a matéria. Assim fiz. De facto,
como em tudo o que nos é novidade, fiquei fascinado com o tema. Mas mais ainda por
se tratar de um tema em que os adeptos e defensores da Nova História podem aplicar
toda a sua vasta teoria e dialéctica; é um tema que atravessa transversalmente um
número considerável de disciplinas científicas, tais como, entre outras, a História, a
Etnologia e a Sociologia.
Fiquei igualmente intrigado com o número já considerável de obras sobre a
Família durante o Antigo Regime. Apesar de, ainda, como alguns autores referem, os
estudos sobre esta matéria estarem no seu ínicio. Seja como for, encontrei obras sobejas
para fazer uma boa pesquisa bibliográfica para conduzir o meu trabalho.
Tendo em conta uma série de aspectos, que passo a enumerar: 1 – a vasta
bibliografia sobre o tema; 2 – a própria vastidão do tema, que dá origens a teses; 3 – que
a nossa cadeira é generalista e não se cinge à História de Portugal; 4 – dado que a maior
parte da bibliografia que se encontra sobre o tema é originária em França e fala
particularmente do caso francês; tendo em conta este aspectos, é apenas natural que eu
tenha visto o caso francês com mais ênfase, o que não quer dizer que só vá falar dele.
Mas falarei dele com mais especificidade.
Porém, nem assim a tarefa se adivinhou fácil. Dada a extensão, como já referi
acima, e a exaustão com que alguns autores abordam a temática, tive de optar por tentar
ser o mais objectivo e sucinto possível, deixando, talvez, algumas questões da temática
por tratar.
Centrei a minha pesquisa em três obras principais: A Vida Conjugal no Antigo
Regime, de François Lebrun, A História da Família, obra dirigida Por André Bruguière,
a História de Portugal dirigida por José Mattoso, da Lexicultural, edição de 2002, e a
Nova História de Portuga, dirigida por Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques.
A primeira, A Vida Conjugal no Antigo Regime, de François Lebrun, é um
verdadeiro tratado para quem se queira inteirar sobre este assunto. Faz uma abordagem
muito completa ao tema, desde o início, ou seja, a escolha dos nubentes e o casamento,
até aos métodos contraceptivos que vigoravam na época, passando pela caracterização

1
da família propriamente dita, pelas relações entre os elementos do agregado, pela
sexualidade, entre outros. Porém, é uma obra que fala do caso francês e somente deste.
Outra das obras de que me muni foi A História da Família, obra dirigida por
André Burguière, e onde François Lebrun pontifica novamente ao escrever a meias com
Burguière o capítulo As mil e uma famílias da Europa, capítulo que mais trabalhei e que
mais interessava para o meu trabalho, julgo eu. Esta obra já aborda, como, aliás, o título
do capítulo indica, a Família do Antigo Regime na Europa, não se cingindo somente ao
caso francês.
As duas obras de História de Portugal tiveram como objectivo a busca de um
significado mais amplo e menos específico sobre o tema, ou seja, que me deixasse uma
impressão mais concisa sobre o tema, o que, de facto, veio a acontecer.

2
1ª Parte
O Casamento – Um Contrato Entre Duas Partes

O casamento tinha três funções essenciais no seio da sociedade do Antigo


Regime; a procriação, o prosseguimento da linhagem e o interesse económico.
A primeira, a procriação, liga-se directamente com as duas seguintes. Com o
prosseguimento da linhagem, pois deverá haver um filho varão que assuma as
responsabilidades de prosseguir a viabilidade económica da família. E com o interesse
económico, por uma razão que ainda hoje uma franja mais conservadora da sociedade
considera como essencial: a existência de mão-de-obra para laborar.
Ou seja, o casamento era tudo menos idílico. Nada de amor, muita
objectividade. O casamento era, na sua essência, um acordo entre o pai de um rapaz e o
pai de uma rapariga, isto é, um acordo estrictamente económico de viabilização das
famílias. Por algumas razões práticas; primeiro, garante que haja mão-de-obra para a
produção (François Lebrun diz “Unidade de consumo, a família é, também, unidade de
produção. Isto é verdade sobretudo no campo, em que a exploração agrícola é, quase
por definição, uma exploração familiar.”1), segundo, garante uma unidade familiar ela
própria passível de geração de riqueza.
Maria João Lourenço Pereira afirma que “no mundo rural, o casamento era
sobretudo uma forma de reprodução e produção de filhos que sustentassem o trabalho
familiar. Para a burguesia, o casamento servia de motor para a ascensão social da
família, através da ligação a outra família mais rica ou mais poderosa. No topo da
pirâmide social, o casamento significava a construção e sustentação de uma linhagem.”2
Ou seja, através de alguns testemunhos anteriores e deste de Maria João Lourenço
Pereira podemos inferir o que se disse ao início, sobre a pouca relação que um
matrimónio tinha com o afecto, com o amor. Era, sobretudo, uma relação económica ou
de carácter de propagação da linhagem.

1
Lebrun, François, A Vida Conjugal no Antigo Regime, Edições Rolim, Trad. de M. Carolina Querioga
Ramos N., Fevereiro de 1983.
2
Maria João Lourenço Pereira, Nova História de Portugal, Volume 5 – Portugal, do Renascimento à
Crise Dinástica, volume coordenado por João José Alves Dias, direcção de Joel Serrão e A.H. de Oliveira
Marques, Editorial Presença, Lisboa, 1ª edição, Maio, 1998.

3
As idade dos casamentos no século XVI era precoce, sendo a idade autorizada
para as mulheres os doze anos e para os homens os catorze anos; nas classes sociais
mais privilegiadas, a idade podia ainda ser mais precoce.
O casamento, como contrato que era (e que estava ao abrigo de disposições
legais, consuetudinárias ou escritas, como adiante veremos), tinha também de se sujeitar
aos dogmas e teologia da Igreja Católica, com grande poder sobre as mentalidades
vigentes.
Começando justamente pela última; desde S. Paulo e Santo Agostinho que o
direito francês ia beber ao ensinamento da Igreja, ou seja, o direito francês, na sua
forma escrita ou consuetudinária, inspirava-se nas correntes católicas para influenciar as
suas leis. Uma das premissas era a total subordinação da mulher em relação ao marido.
O marido detinha mesmo a autoridade plena e inteira. Coisa que se agrava, para a
mulher, com o aumento da importância do direito romano a partir do século XVI. O
homem impunha praticamente tudo à mulher: desde o seu nome, o seu domicílio e a sua
condição social. Mas mais; o homem detinha o controlo absoluto sobre os bens da
família, salvo a excepção de alguns dos bens fazer parte do dote da esposa. A mulher
não detinha qualquer capacidade jurídica para reivindicar fosse o que fosse. Esta
situação arrastou-se pelo Antigo Regime até aos nossos dias, onde ainda é
acaloradamente discutida: a posição da mulher e do homem na sociedade
contemporânea. Muitos autores dos séculos XVI, XVII e XVIII fizeram frequentemente
a apologia do sexo fraco, sendo que retiraram os argumentos à História e sobretudo à
Bíblia.
Existe, contudo, uma corrente feminista desde o século XV, sendo que um dos
mais sonantes e vigorosos defensores da causa de igualdade entre os sexos é o
beneditino do século XVIII Dom Caffiaux.
Sendo que a autoridade, dentro de casa e na relação, pertence ao marido, já nas
tarefas domésticas existia uma partilha. Rígida, mas uma partilha. Como descreve
Lebrun: “De modo geral, a repartição é muito complementar: para o marido as tarefas
profissionais; para a mulher, gestora dos bens existentes mais que a produtora de novos
bens, as tarefas domésticas, isto é, educar os filhos depois de os ter posto no mundo,
preparar as refeições, lavar a roupa, manter a casa limpa, administrando o marido o
dinheiro da casa.”1.

1
Lebrun, François “A Vida Conjugal no Antigo Regime”, Edições Rolim, Trad. de M. Carolina Querioga
Ramos N., Fevereiro de 1983.

4
Voltando um pouco atrás, e ao caso da administração dos bens da família pelo
homem. Por exemplo, na França do Midi, o dote romano vigora no Antigo Regime; o
dote é trazido pela mulher, dado por seus pais, e são colocados à disposição da gestão
do marido, pela comunhão total de bens. Contudo, a mulher tem direito a um dote que
serve só para os seus gastos, sendo que esse dote é dela e inalienável. Se há uma
comunhão entre o direito escrito e o direito consuetudinário, esse é, sem dúvida, a
afirmação de um poder autoritário por parte do marido, que é, assim, dono e senhor de
todos os bens da casa.
As visões sobre o casamento divergem entre protestantes e católicos, sendo
que para Lutero e Calvino o casamento não configurava um sacramento, mas apenas
uma instituição divina; ou seja, “é um estado que não tem nem menos nem mais valor
que o celibato e é um contrato baseado no consentimento mútuo.” 1. Ora, como este
consentimento mútuo implica grandes interesses espirituais e materiais, os filhos,
quando menores, sujeitam a o obrigatório acordo entre pais, no qual se reflecte a dinina
mão de Deus. Os protestantes chegaram mesmo a aceitar o divórcio, mas como
possibilidade teórica, sendo esta pouco utilizada.

5
2ª Parte
Famílias – Tipologias

Em relação à formação das famílias, ou tipologia da estrutura familiar,


opõem--se duas teses. Uma, suportada pelo enorme sociólogo francês Emile Durkheim,
para quem “(...) a família conjugal moderna fundada sobre o casamento seria o termo de
uma longa evolução (...)”1; outra, que atacava fortemente esta de Durkheim, formada
por historiadores como Philippe Ariès, Georges Duby, Marc Bloch e René Konig entre
outros, que dizia que “(...) segundo as condições económicas, sociais, demográficas,
políticas, a família de facto, e de direito, adopta ora a forma conjugal ou nuclear, ora a
forma extensa (...)”2. Ou seja, é o próprio conceito de busca histórica que aqui está em
causa, opondo os homens da Nova História, que abrem as portas da História à
interdiscipliniridade, aos pensadores como Durkheim, mesmo não sendo este um
historiador de formação.
A familía conjugal era regra na Gália Romana. Porém, enquanto se verifica a
acentuada decandência do Estado durante o período de invasões germânicas – ou
bárbaras, como é vulgar denominar-se – e o nascimento de sociedades feudais, a família
extensa torna-se regra, apontando-se o facto de haver um incremento da protecção da
família e da propriedade contra o ataque exterior como o facto principal desta mudança.
Tanto na nobreza, como nos camponeses esta mudança é firmada.
Só se volta a ver uma tendência de claro retorno à família conjugal quando o
Estado volta a chamar a si as rédeas do poder e se centraliza cada vez mais. Essa
protecção volta a garantir unidades de exploração rural mais pequenas, ou seja, cuja
força motriz seja o da família conjugal.
É importante, neste particular, ressalvar que, apesar de tudo, Lebrun nos
afirma que “(...) mesmo entre o séc. IX e o séc. XIII, a família conjugal parece ter
permanecido maioritária nas classes populares (...)3” e na própria burguesia. Ou seja,
apesar de, ao que parece, a família conjugal ter notado algumas dificuldade durante o
período acima referido por Lebrun, nas classes populares esta ter-se-á aguentado como a
tipologia de família mais escolhida pelas gentes.
1
Lebrun, François “A Vida Conjugal no Antigo Regime”, Edições Rolim, Trad. de M. Carolina Querioga
Ramos N., Fevereiro de 1983.
2
Idem
3
Ibidem

6
Para se conseguir estruturar melhor o estudo dos diferentes tipos de famílias,
utilisa-se frequentemente a tipologia proposta por Peter Laslett, historiador inglês do
século XX que se notabilisou na pesquisa demográfica na História, por se ter justamente
apercebido da importância da observação dos números na compreensão da História, ou
seja, aplicou a tal interdiscipliniridade ao estudo, por exemplo, das famílias antigas,
estudo ao qual dedicou grande parte da sua vida, tendo escrito, sobre o tema, obras
importantes, as quais não tive possibilidade de estudar para a elaboração deste trabalho.
Ora, as tipologias de lares, como são apresentadas por Peter Laslett, são (este quadro foi
transcrito da obra de Lebrun a que me tenho reportado):
1. Os solitários: viúvos ou viúvas sem filhos, celibatários.
2. Os lares sem estrutura familiar, isto é, constituídos por pessoas
residindo juntas, aparentadas ou não, por exemplo um irmão e uma
irmã ambos celibatários.
3. As famílias conugais ou lares simples: casais casados com ou sem
filhos, viúvos ou viúvas com filhos.
4. As famílias extensas, isto é, as famílias conjugais aumentadas por
membros aparentados sem serem os próprios filhos; a família extensa
pode ser ascendente, se o membro suplementar é de uma geração mais
antiga que a do chefe da família, por exemplo o pai ou a mãe ou a
sogra deste; descendente, se o membro suplementar é de uma geração
mais recente, por exemplo um sobrinho recolhido depois da morte do
pai e da mãe; colateral, se se trata de um irmão, de uma irmã ou de um
primo do chefe de família.
5. Os agregados familiares formados por um núcleo principal e por um
núcleo secundário, podendo este ser ascendente, se se trata, por
exemplo, dos próprios pais do chefe de família do núcleo principal, ou
descendente, se se trata de um filho casado que viva, com a mulher e,
eventualmente, os filhos, em casa do seu pai que permaneceu o chefe
de família (é o modelo da família patriarcal ou família-cepa cara a
Frédéric Le Play); mas os dois núcleos podem ser colaterais e termos
então agregados familiares do tipo frèrêches reunindo dois ou vários
casais de irmãos e irmãs.
Transcrevi estes pontos que descrevem com pormenor a tipologia de Peter
Laslett referente aos diferentes tipos de lares por uma questão, confesso, de

7
comodidade. Mas, também, porque se me oferecia uma tarefa complicada colocá-los por
outras palavras que não as de Lebrun, já que ele introduz cada um dos tipos de lares de
uma forma concisa e explícita. De tal modo, configurou-se-me de maior sucesso a
transcrição dos pontos.
O que interessa, sobretudo, é dizer que as famílias eram núcleos
profundamente dinâmicos, intermutáveis entre si. Uma família conjugal poder-se-ia
transformar numa família extensa e esta num agregado familiar, tal como a mesma
família conjugal, poder-se-ia transformar num lar solitário. É bom chamar a atenção,
também, para o facto de nestes núcleos existirem, com frequência, criados, mas que
estes não alteram a tipologia de lar. Ou seja, não entram para as contas que se fazem
para promover a distinção entre os diferentes tipos de lares.
A tipologia de Laslett, aliás como toda e qualquer tentativa de
“engavetamento” de assuntos (se bem que com a sempre boa e louvável intenção de
facilitar o estudo de determinado assunto), pode esconder uma realidade bem mais
dinâmica e mutável. Talvez seja uma das críticas mais importantes ao trabalho de
Laslett. A família é sujeita a muitas pressões, quer sociais, quer psicológicas. A morte de
cônjuges, filhos, os casamento feito e refeito, são retratos de uma sociedade em
constante mudança, ainda para mais se atendermos ao facto da baixa esperança de vida
que era vigente na época.
Um dos problemas mais comuns na análise dos dados que temos para o
período do Antigo Regime, prende-se com o facto dos recenseamentos serem raros,
mas, pior que isso, os recenseamentos não são mais que um instantâneo numa data
precisa, sendo as comparações com o antes e o depois uma tarefa sujeita mais a
especulação do que propriamente a trabalho científico. Porém, nestes sucessivos
instantâneos que há por diferentes zonas da Europa, e a sua justaposição, realça mais os
contrastes geográficos, do que uma possível teoria evolucionista do núcleo familiar (a
tese de Durkheim, como acima referi). Mas mesmo neste ponto poderá haver uma certa
discussão. Visto que os diferentes recenseamentos, em diferentes regiões da Europa, nos
dão uma imagem desigual, não poderão eles próprios ser uma visão dessa evolução? De
uma Europa a várias velocidades e estágios do desenvolvimento urbano e do
capitalismo comercial? Estas questões são de resposta controversa e difícil; o que
contribui ainda mais para uma discussão acesa sobre estas matérias.
Outra limitação que se tem colocado a este tipo de estudos “(...) é o facto de a
composição dos grupos domésticos que tomam como indicador ter um significado

8
variável de acordo com os contextos e, de uma forma global, a tendência para inferirem
sentidos uniformes de comportamentos que podiam ter diferentes significados para os
seus protagonistas.”1 Ora, se me é permitido também, dentro da minha pequenez quer
no estudo do assunto em causa, quer nos meandros da História e da sua produção,
parece-me a mim muito correcta esta observação de Nuno G. Monteiro. Contudo, se se
colocar sempre a fasquia no estado de transe de pensar o que os outros pensavam, corre-
se o risco de tornar a História numa ciência obsoleta. Creio que se devem criar modelos
explicativos não dogmáticos, passíveis de discussão e aperfeiçoamento, sempre. Com
espírito crítico. Mas sempre com a noção de que as limitações são muitas. Neste caso,
como Nuno G. Monteiro afirma, inferir que sentidos e significados para uma família do
Antigo Regime podem ser diferentes para um historiador do nosso tempo, é uma
afirmação correcta, mas redundante do próprio trabalho do historiador. Temos que nos
tentar toldar de envenenamentos do exterior, mas sempre sabendo de que somos
indivíduos do nosso tempo.
Mas divago e divirjo do sentido do meu trabalho.
François Lebrun, afirma, com grande à-vontade, e termino assim este capítulo,
que “todos os estudos de história social o confirmam, muitas famílias extensas e
agregados familiares constituem apenas excepções pouco vincadas e sobretudo
temporárias ao modelo de família conjugal que (...) foi o modelo mais correntemente
vivido pelos franceses dos séculos XVI, XVII e XVIII.

3ª Parte

1
António Manuel Hespanha, História de Portugal, Volume 8 – O Antigo Regime, volume coordenado
por António Manuel Hespanha, direcção de José Mattoso, Lexicultural, 2002, Julho.

9
As Relações Afectivas e de Poder Dentro da
Família – As Habitações

Como já fiz notar, o amor pouco tinha a ver com a formação de uma nova
família. Nas bases da formação da família do Antigo Regime estavam linhas dogmáticas
e práticas; a relação sexual como prosseguimento da linhagem (no caso das famílias
mais fidalgas isto assumia um papel mais importante que nas famílias camponesas e
mais pobres) e geração de mão-de-obra (filhos), e a união patrimonial de uma mulher e
um homem, ou seja, a economia.
Ou seja, com estas premissas percebe-se facilmente que um casal de recém
casados tinha, sobretudo, que responder socialmente (e juridicamente) a um contrato
efectuado, do que propriamente uma paixão arrebatada. Tudo era decidido entre os pais,
através de delicados rituais de diplomacia entre estes.
Filósofos, juristas, moralistas tentaram, através de sucessivas obras,
demonstrar que a própria natureza se tinha encarregue de ligar os elementos da natureza
pelo amor, quer o ser humano, quer o animal. Este “(...) amor (ou piedade) familiar
desdobrava-se em vários sentimentos recíprocos. O amor dos pais pelos filhos, superior
a todos os outros, funda-se no sentimento de que os pais se continuam nos filhos.”1 Ora
esta concepção da natureza do amor sob raízes profundamente pias e religiosas, tem
mais a ver com a legitimição da própria família em si, desde a legitimação da sua
formação, até às suas funções no seio da sociedade. Ainda segundo António Manuel
Hespanha, a família aparece-nos como um “universo totalitário”, onde tu é pensado em
termos de um, ao invés de em termos de dois; um sujeito, um interesse, um direito.
Discute-se se o amor de um pai pelos filhos seria superior ao do mesmo pela
sua própria esposa. Sendo que os filhos são o sinal da continuidade, da legitimação da
família, carne da sua carne, poderá supôr-se que o amor do pai pelos filhos tivesse um
significado simbólico mais forte e carregado, até devido, também, muitas vezes, à falta
de amor entre os cônjuges aquando do casamento. Porém, o amor da mãe pelo filho
pode manifestar-se mais intenso, devido a toda uma carga emocional produzida durante
todo período desde o pré-parto, ao pós-parto. Contudo, devido às idéias vigentes, e já

1
António Manuel Hespanha, História de Portugal, Volume 8 – O Antigo Regime, volume coordenado por
António Manuel Hespanha, direcção de José Mattoso, Lexicultural, 2002, Julho.

10
descritas, o pai lograva sempre das comparações do filho com ele, por outrém, para
elogiar as suas capacidades honoríficas, que viriam, certamente, do pai.
Como já se disse atrás, o chefe de família, o patriarca, o pater familias, era a
figura central da família, e era em redor dele que tudo girava. As relações entre homem
e mulher também já foram abordadas aquando o capítulo sobre o casamento. A mulher
deveria sempre obedecer ao marido, como estava estabelecido. Antes disso, tinha tido
que obedecer sempre aos seus pais. O marido poderia ser também o castigador da
mulher se esta incorresse em pequenas faltas.
Nas classes sociais mais abastadas, quando um primogénito nascia, a ocasião
era festejada grandemente. Tal como já referimos, as taxas de mortalidade nesta altura
são muito elevadas, o que poderia significar, em alguns casos, a morte das crianças,
mais vulneráveis, em tenra idade. Se o jovem vingasse, a continuação da linhagem
estava assegurada. Se não, ou se tivesse mais irmãos mas todos eles morressem,
procedia-se à legitimação dos bastardos como forma de perpetuar a linhagem.
A ligação de uma criança nestas classes abastadas quer com a sua mãe quer
com o seu pai, eram muito difusas, muito distantes; o aleitamento materno era feito
pelas amas de leite, mulheres de condições sociais inferiores em altura de amamentação;
se a criança fosse do sexo masculino, era entregue a um aio que se encarregava da sua
educação; se a criança fosse do sexo feminino, a relação com a mãe poderia ser mais
próxima, que se tinha de responsabilizar pela sua educação, quer através de outrém em
famílias também abastadas, quer através das casas de meios inferiores, mas sempre com
a sua supervisão.
No seio das famílias camponesas ou mais pobres, estas relações afectivas eram
diferentes, começando pelo relevo que tinha um primogénito. É óbvio que um
primogénito numa família, fosse ela camponesa ou não, segundo as leis vigentes era um
garante da continuidade quer da família, quer do património, quer do negócio. E, como
é óbvio, nada disto é desprezável. Porém, é assumido que um filho, ou filha, numa casa
rural, tem um destino bem diferente que os de uma casa de alguém de uma classe
privilegiada. Também os afectos que se produziam, eram bem diferentes. Até por uma
questão de proximidade. Uma casa pobre geralmente comportava uma ou duas divisões
onde a família vivia amontoada. A casa de um artesão ou de um comerciante podia ter
um piso térreo e outro andar. No piso térreo ficava a oficina, a cozinha e a sala. No
andar de cima, geralmente era uma divisão para todos. Ou seja, as relações de
proximidade poderiam relevar um tipo de afectos diferente. Como parece daqui

11
resultante, as relações eram, de facto, mais próximas, mas nem por isso o pater familias
via a sua reverência diminuída. O centro da mesa, se a houvesse, era seu, e todos se
sentavam nela mediante uma hierarquia estabelecida. A mulher sentava-se a seu lado, o
mais próximo da cozinha possível. A ela competiam todas as tarefas que implicavam a
lide da casa, incluindo o cozinhar e servir o que fosse cozinhado. Neste contexto,
mesmo que houvesse criados, era à mulher que competia este afazer. Os criados
estavam também sentados à mesa. A seguir à mulher sentavam-se os filhos, depois as
filhos, e demais família que houvesse. Depois, os criados.
No campo, as casas são muito diferentes. Existe, também, uma grande divisão
que derve de dormitório para os pais e filhos; a sala é dominada pela lareira, que está no
centro, e, normalmente, tem o chão de terra batida; poderá ter uma ou duas divisões
adjacentes para os criados ou mesmo para os filhos mais crescidos; este edifício é
flanqueado pelo celeiro e pelo estábulo, tendo em cima um grande sótão.

4ª Parte

12
A Sexualidade

A sexualidade é, talvez, o assunto mais complicado de abordar. Não por me


considerar a mim próprio púdico, mas difícil de abordar pelas correntes e contra-
correntes que existiam, incongruências entre elas, poucas fontes, segundo os estudiosos
desta matéria do seio familiar, nas quais se possa crer com força.
O Catecismo de Agen (1677) diz que o casamento “é um sacramento instituído
para se ter filhos legitimamente, criando-os no temor a Deus”. O Catecismo de Nates
(1689) diz que “utilizar o casamento santamente, é utilizá-lo apenas para os bons fins,
isto é, materializar o desejo de ter filhos que possam um dia amar e adorar Deus.” Por
estas premissas se conclui o que já foi dito no capítulo primeiro do meu trabalho: que a
procriação deve ser o principal objectivo de um casamento, e não o amor entre os
esposos e a sua felicidade. Porém, também dizem o que se pode ler nas entrelinhas, e
que abordarei em seguida: que o acto sexual fora deste âmbito é fortemente reprimido e
condenável.
S. Tomás de Aquino, século XIII, vai pôr em causa outros dois santos da Igreja
Católica do século IV, S. Jerónimo e Santo Agostinho que afirmam que um homem peca
se se une à sua mulher sem intenção procriadora. Ora S. Tomás de Aquino contesta esta
tese dizendo que deve ser reconhecida a legitimidade da união sexual com o único
objectivo de evitar a incontinência. O jesuíta espanhol Tomás Sanchez no seu De sancto
matrimonii sacramento (1602) não crê condenável o acto sexual dos esposos sem
intenção de procriar, desde que também não façam nada para evitar a concepção.
Mas, apesar do que foi dito acima, e das teses e contra-teses, todos eles não
põem em causa o principal, que é a condenação veemente sob a forma de pecado mortal
de tudo o que pode desviar o acto sexual do seu objectivo criador. Práticas como o
coitus interruptus (ou crime de Onão) era fortemente reprimidas. S. Francisco de Sales,
à guisa de sûmula, diz, na sua Introduction à la Vie Devote (1608) que “a procriação dos
filhos é o principal objectivo do casamento; nunca nos podemos afastar desta
realidade.”. Também Richard Allestree no seu The Whole Duty of a Man (1663) faz uma
afirmação semelhante à de Tomás Sanchez e na senda de S. Francisco de Sales: “Sendo
dois os objectivos do casamento, a procriação dos filhos e a luta contra a fornicação,
nada deve ser feito que impeça o primeiro.”. Ou seja, mais uma condenação velada ao
coitus interruptus, crime que também Calvino classifica de “monstruoso”.

13
Assim sendo, e com toda esta prosápia teológica, a única maneira, que resulta
da análise destes pressupostos, para evitar a concepção não desejada, é a continência no
casamento.
“Os comportamentos sexuais dos Franceses do Antigo Regime são muito
largamente determinados por imperativos morais e religiosos.”1 Não só do franceses,
acrescentaria eu, mas de toda a Europa Católica, que estava subjugada as este cânones.
Sendo estes os caminhos onde os esposos do Antigo Regime se
movimentavam, convém saber o que se passava antes do sagrado matrimónio ser
celebrado, ou seja, a vida sexual destes rapazes e destas raparigas antes do casamento. O
panorama, devido a uma constante repressão do acto sexual que não fosse dentro do
matrimónio e para fins exclusivamente reprodutivos, não era favorável a um
desenvolvimento sexual normal dos jovens, se tivermos em conta aquilo que se conhece
hoje em termos de sexualidade e dos despertares, como os grandes trabalhos de
Sigmund Freud.
Lebrun chama-lhe “uma ascese colectiva”2 aos factores que se conjugam para
que não haja um grande número de filhos ilegítimos nesta altura; o grande medo do
pecado mortal, alimentado pelo clero reformador do século XVII e as idéias intrínsecas
à formação de um lar, ou do próprio significado de lar, ou seja, só quando se está certo
de se poder suportar as necessidades da sua futura família se deve investir neste fim,
isto é, a procriação. Deve acreditar-se nisto piamente? Deve olhar-se para estes motivos
com um olhar pensativo? Bom, seja como for, e, como disse antes, à luz dos
conhecimentos vastos que há hoje em dia sobre sexualidade, causa-me alguma
estranheza o facto dos rapazes irem, como se dizia, “novos” para o casamento. Ainda
para mais, nas classes mais desfavorecidas, como, geralmente a família dormia toda
numa mesma divisão, é natural que os próprios rebentos do casal começassem a
despertar para uma sexualidade bastante cedo. Se não, pelo menos colocaria,
certamente, questões sobre o acto.
Mas e quanto à castidade feminina? A denominada honra feminina? Lebrun,
novamente, é muito explícito neste particular ao afirmar que “a desonra [feminina]
reside menos na perda da virgindade, que é fácil de manter em segredo, que na «fatal
gordura» que é bem difícil de dissimular.”3
1
Lebrun, François “A Vida Conjugal no Antigo Regime”, Edições Rolim, Trad. de M. Carolina Querioga
Ramos N., Fevereiro de 1983
2
Idem
3
Lebrun, François “A Vida Conjugal no Antigo Regime”, Edições Rolim, Trad. de M. Carolina Querioga
Ramos N., Fevereiro de 1983

14
Ou seja, não era de estranhar que, sobretudo no campo, as brincadeiras entre
rapazes e raparigas fossem descambar em actos que fossem abertamente reprimidos
pelas autoridades eclesiásticas. O amor venal, a homossexualidade, a masturbação e a
sodomia era, concerteza, utilizados sobejas vezes na busca de prazer. Prazer reprimido,
é certo, mas sempre prazer.

Conclusão

15
Como disse no ínicio, não seria fácil abordar um trabalho como tanta
informação. Mas, também, é óbvio que me agradou esse mesmo facto de haver muita
informação para esmiuçar, para ler e para digerir. Contudo, não me foi possível colocar
aqui todos os assuntos que se abordam nesta temática, nem, no caso daqueles em que
falei, aprofundá-los de uma forma muito sistematizada.
Escolhi quatro grandes áreas essenciais. A do casamento, as abordagens de
Laslett (e o que pensam outros autores sobre elas) sobre as tipologias de famílias, as
relações afectivas e as habitações onde viviam as famílias e a sexualidade nesta altura.
No caso do casamento e da sexualidade, é óbvia a grande intervenção da
Igreja. O poder eclesiástico é, nesta altura, dono de uma moral rigorosa, sobre a qual
não podem restar dúvidas. As pessoas têm uma forte componente espiritual na sua vida,
com regras rígidas de vivênvia e de convivência, sem grande espaço para o prazer, para
o amor e para o deleito. Casamento e sexo são vistos como uma base para objectivos
concretos e bem definidos pela moral cristã. Mais que cristã, católica, diria. Apesar de,
como observámos, Lutero e Calvino terem dissidido em muita coisa em relação à velha
Igreja de Roma, nisto, apesar de nuances, tinham praticamente a mesma visão; o
casamento era uma forma de legitimação de duas pessoas de sexos opostos fazerem
filhos, procriaram, sem ser em pecado mortal perante Deus (podiam, obviamente,
divergir sobre se o casamento era um sacramento ou algo de menos sagrado, mas, no
fundo, as teses encontravam-se no facto atrás sitado). Também esta era a meta final do
acto sexual em si; um acto pecaminoso em si mesmo, mas que como era um meio para a
procriação deveria ser protegido, dentro do casamento.
O casamento, alvo, como já vimos, da vigilância apertada do poder
eclesiástico, era-o, também, do poder civil. O casamento assentava, para as leis em
vigor, escritas ou consuetudinárias, num contrato entre duas partes, como ainda hoje, de
duas pessoas do sexo oposto que os pais decidiam de antemão. Se o casamento hoje
ainda se pode afirmar como um contrato civil entre duas partes, já o mesmo não se pode
afirmar em relação à decisão de duas pessoas se casarem; ou seja, se dantes os pais de
ambos escolhiam qual o melhor casamento possível para os seus filhos, hoje a realidade
é diferente, baseando-se no amor, na maior parte dos casos, a união entre duas pessoas,
e não na arbitrariedade dos pais. Mas é importante perceber porque era assim e porque
se manteve durante tantos séculos desta forma. E penso que o fiz no texto. É que mais
que amor ou outro tipo de sentimentos, o casamento era um acto onde as famílias iam
buscar mais terras, mais mão-de-obra para um determinado ofício de um dos pais (ou

16
dos dois, quem sabe), mas viabilidade financeira, etc. Ou seja, tudo isto funcionava
como uma espécie de caminho de sobrevivência, sobretudo para as famílias mais
carenciadas. Nas famílias aristocráticas, ou mais priviligiadas, o casamento tinha todas
as premissas que se disseram acima, mas acrescentava uma outra de carácter muito
importante para uma família abastada: o prosseguimento da linhagem, do nome.
Vimos neste trabalho, também, os diferentes tipos de habitação, desde a
habitação mais pobre, à rural e à habitação urbana. Vimos as diferenças e as
semelhanças que nelas ocorrem. Abordámos, dentro do possível e dentro do que se
conhece, o tipo de relações afectivas que se jogavam entre as diferentes famílias, sendo
que no caso das famílias mais abastadas e nas famílias aristocráticas, as relações são
mais distantes e frias, sobretudo entre o pai e o filho – filho que é, muitas vezes,
enviado para um aio para ser educado, passando-se tempos sem ver os pais – , menos
entre a mãe e a filha, se bem que o pormenor de a pequena criança ser alimentada por
uma ama de leite se torna de análise importante. No seio das famílias rurais, as relações
são mais próximas, fruto de um espaço de convivência, a casa, mais pequeno e restrito,
dormindo a família, muitas vezes, na mesma divisão da casa, o que parece indiciar uma
maior proximidade entre o grupo familiar. O grupo familiar também é visto como uma
força de conjunto, com tarefas bem definidas (as de casa para a mulher, ou algumas
mais que se relacionem com o ofício do homem, mas mais leves; as do ofício para o
homem, coadjuvado pelos filhos e demais membros masculinos da família que
convivam no mesmo tecto). O que se pretende com esta divisão de tarefas, parece-me, é
agilizar o próprio funcionamento da família, bem como aumentar os lucros, sempre que
possível, do ofício que a família tenha.
A família no Antigo Regime era tão peculiar como a de hoje em dia pode
parecer a um homem dessa época, fosse tal possível. Uma época fortemente alicerçada
sobre os moralismos da religião, sobre os medos de visões de inferno, incutidas pela
próprias Igreja. Onde a sexualidade era brutalmente reprimida e desaconselhada, a não
ser para os tais fins reprodutivos. Onde os casamentos não se faziam por qualquer tipo
de relação sentimental, mas sim estavam imbuídos de fortes questões económicas e de
organização do espaço. Esta era a família do Antigo Regime.

Bibliografia

17
LEBRUN, François, A Vida Conjugal no Antigo Regime, Edições Rolim, Trad. de M.
Carolina Querioga Ramos N., Fevereiro de 1983.

Nova História de Portugal, Volume 5 – Portugal, do Renascimento à Crise Dinástica,


artigo de Maria João Lourenço Pereira, volume coordenado por João José Alves Dias,
direcção de Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques, Editorial Presença, Lisboa, 1ª
edição, Maio, 1998.

História de Portugal, Volume 8 – O Antigo Regime, artigo de António Manuel


Hespanha, volume coordenado por António Manuel Hespanha, direcção de José
Mattoso, Lexicultural, 2002, Julho.

História da Família, Volume 3 – O Choque das Modernidades na Ásia, África, América


e Europa, artigos de André Bruguière e George Duby, direcção de André Burguière,
Christiane Klapisch-Zuber, Martine Segalne, Fraçoise Zonabend; Terramar, 1ª edição,
Fevereiro, 1998.

Índice

18
Capítulos Páginas

Introdução ........................................1

1ª Parte
O Casamento – Um Contrato Entre Duas
Partes .........................................
3
2ª Parte
Famílias – Tipologias
.........................................
3ª Parte 6
As Relações Afectivas e de Poder Dentro
da Família – As Habitações

4ª Parte .......................................1
A Sexualidade 0

Conclusão
.......................................1
Bibliografia 3

Índice .......................................1
6

.......................................1
8

.......................................1
9

19

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