Memória e Subjetividade

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Memória e subjetividade: de um

tempo para lembrar


Verli Petri*
Amanda Eloína Scherer**

Resumo Antes de um começo:


Queremos trazer neste artigo algu-
as razões de uma
mas reflexões, que consideramos fun- subjetividade pela
damentais, sobre a subjetividade e a
sua relação com a memória por meio
lembrança
da discursivização do lembrar. Nosso Foi em uma noite de tempestade que
propósito é render uma homenagem ela nos deixou… partiu silenciosamente,
à nossa colega Carme Regina Schons,
que partiu precocemente. A partir enquanto o vento rugia e a chuva caía
de nossas lembranças-homenagens, forte… era inverno no sul da América do
lembranças-vividas, lembranças-ex- Sul, aquela que tem “as veias abertas”,
perimentadas em parcerias e afetos
teóricos, queremos entender melhor o *
Graduada em Letras - Português Francês e Respectivas
eixo da composição eu + tu na consti- Literaturas pela Universidade Federal de Santa Maria
tuição da subjetividade. Para nós, tal (1994). Mestra em Letras pela Universidade Federal
composição tem em sua constituição de Santa Maria (1998). Doutora em Letras pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (2004), com
discursiva uma relação de nunca aca- pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas
bar, pois, ao lembrar, nos constituímos (2011). E-mail: [email protected]
como sujeitos em uma relação que ul- **
Professora Titular de Linguística da UFSM no Depar-
tamento de Letras Clássicas e Lingüística e professora
trapassa o jogo enunciativo da rever- da Graduação e da Pós-Graduação em Letras na mesma
sibilidade do eu e do tu, e podemos, universidade desde março de 1982. Graduada em Letras
dessa maneira, entender melhor o Francês pela UFSM (1973). Graduada em Linguística
Geral pela Université de Paris VIII - Vincennes, França
nosso objeto de pesquisa que é o fun- (1978). Com especialização em Língua Portuguesa pela
cionamento da língua pela memória UFSM (1980). Mestre e Doutora em Linguística, Semió-
discursiva. Nossa referência de sus- tica e Comunicação pela Université de Franche-Comté,
Besançon, França (Capes 1988/1992). Realizou estágio
tentação, no plano da interpretação, pós-doutoral na Université de Rennes 2, França (Capes
está tomada pelo campo teórico da 2000). Foi professora convidada, em 2012, na Université
de Franche-Comté, França, junto ao Centre de Recher-
análise de discurso empreendida por ches Interdisciplinaires e Transculturelles e, também,
Michel Pêcheux na França e interpre- da Faculdad de Filosofia y Letras da Universidad de
tada, no Brasil, por Eni Orlandi. Cadiz, Espanha. Em 2000, foi também professora
convidada do Institut Universitaire de Formation de
Maîtres em Mayotte.
Palavras-chave: Subjetividade. Sujei-
to. Memória. História. Interpretação. Data de submissão: mar. 2016 – Data de aceite: maio 2016
http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v12i1.5959

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como nos ensinou Eduardo Galeano… A E, naquele dia, fomos nós que leva-
Carme nos disse tanto, escreveu tanto, mos a ela um pouco de poesia do nosso
lutou tanto… sua voz ressoa viva… mas Manoel de Barros. Enquanto líamos, ela
aquele dia amanheceu cinzento, de “cara sorria, sorvendo cada verso e identifi-
amarrada”, resmungando baixinho, cando-se, tantas vezes, pois ela também
com seus trovões ao longe, parece que era “uma apanhadora de desperdícios”
reclamando uma partida tão precoce e
e compactuava com o que dizia o poe-
confirmando que “a maior certeza que
ta: “eu sou da invencionática. Só uso a
temos é a impossibilidade de eliminar-
mos as incertezas” (SCHERER, 2011, palavra para compor meus silêncios”. A
p. 290). E, neste momento, o silêncio que leitura do poema em voz alta, naquele
fica no ar significa muito, faz barulho quarto de hospital, nos fez ver o quanto
dentro da gente e provoca um desejo éramos também invencionáticas, como
de poesia. Sim, falar de Carme Regina o poeta, mirando nosso reverso, esprei-
Schons, hoje, é falar de poesia, daquela tando nossa esperança... E a Carme nos
poesia que fez da análise de discurso dizia de sua experiência e de como fazer
um lugar diferenciado de produção do no futuro para se ter pesquisadores em
conhecimento linguístico; mas também nossa área, mas, sobretudo, nos dizia
daquela poesia que está nas tantas telas da importância de formarmos pessoas
pintadas por ela, no sorriso largo e na melhores para este mundo. De nossa
mão forte que segurava as nossas em
parte, nos colocávamos em frente à vida
uma visita que lhe fizemos em Passo
ilusória do apanhador de desperdícios,
Fundo, no mês de abril de 2015.1 Nada
melhor que João Guimarães Rosa para pois dávamos importância a tudo e,
nos descrever aquele encontro: principalmente, ao que muitos classifi-
cariam como “coisas desimportantes” e
O Menino me deu a mão: e o que mão a mão
diz é o curto; às vezes pode ser o mais adi- fazíamos projetos para o futuro... e rindo
vinhado e conteúdo; isto também. [...] Para deixávamos o poeta falar:
que refletir tudo no narrar, por menos e
menor? Aquele encontro nosso se deu sem o
razoável comum, sobrefalseado, como do que
só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que
estou contando, depois é que pude reunir
relembrado e verdadeiramente entendido –
porque, enquanto coisa assim se ata, a gente
sente mais é o que o corpo a próprio é: cora-
ção bem batendo. Do que o que: o real roda e
põe adiante. – ‘Essas são as horas da gente.
As outras, de todo tempo, são as horas de
todos’ – me explicou o compadre meu Que-
lemém. Que fosse como sendo o trivial do
viver feito uma água, dentro dela se esteja,
e que tudo ajuda e amortece – só rara vez se
consegue subir com a cabeça fora dela,  feito
um milagre: peixinho pediu (ROSA, 2001,
p. 154-155, grifo nosso).

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O apanhador de desperdícios que a memória é esburacada na sua
constituição. Buracos preenchidos por
Uso a palavra para compor meus silêncios.
um dizer que não se institucionaliza
Não gosto das palavras
fatigadas de informar. no discurso a não ser pelas ficções que
Dou mais respeito vamos encadeando para dar sentido ao
às que vivem de barriga no chão que ouvimos e compreendemos. E isso,
tipo água pedra sapo. sempre na ânsia constante de procurar
Entendo bem o sotaque das águas
um lugar de origem, uma causa primeira
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes. do nosso lembrar, um tempo fundado na
Prezo insetos mais que aviões. e pela memória discursiva. Portanto,
Prezo a velocidade aqui, não vamos tomar o nosso lembrar
das tartarugas mais que a dos mísseis. do ponto de vista linear, traçando dados
Tenho em mim um atraso de nascença.
e fatos sobre Carme Regina Schons,
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos. mas ele será construído pelas relações
Tenho abundância de ser feliz por isso. que estabelecemos entre o lembrar e o
Meu quintal é maior do que o mundo. esquecer, ajudando-nos a dar uma forma
Sou um apanhador de desperdícios: mais retórica, aquela das exigências ne-
Amo os restos
cessárias de um artigo acadêmico.
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
Vamos tratar da subjetividade no
[de canto. entremeio de nosso texto considerando
Porque eu não sou da informática: que, para se refletir sobre subjetividade,
eu sou da invencionática. dois eixos são importantes: o tempo e
Só uso a palavra para compor meus silêncios
o lugar. O tempo alçado pela memória
(BARROS, 2010, p. 328).
e o lugar, pelo impossível real de uma
presença. A partir deles, estamos en-
No começo era o verbo tendendo que a subjetividade é muito
ou por uma subjetividade maior do que a simples composição do
militante eu e do tu e mesmo da reversibilidade
proposta por Benveniste em seu famoso
Trazemos neste artigo algumas re- artigo Da subjetividade na linguagem
flexões por demais subjetivas, mas (1995); nos afastamos, de certa maneira,
que consideramos importantes, sobre pois estamos pensando a subjetividade a
o tema chamado para este número da partir do discurso, e não da enunciação.
revista Desenredo. Nossa proposta será Também é importante destacar que
desenvolvida a partir de uma escri- estaremos tratando a subjetividade em
tura discursivizada pelo memoriável suas relações com a memória, já que
do lembrar. Sabemos de antemão que compreendemos que a constituição do
precisamos esquecer para lembrar e sujeito na língua e na história é afetada

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pela memória discursiva, pois é ela que cadas em nosso fazer na vida em geral
fornece “a condição do legível em relação e na vida acadêmica por consequência.
ao próprio legível” (PÊCHEUX, 1999, Mas, como elas se colocam em uma vida
p. 52). De fato, temos trabalhado com a de produção interrompida precocemente,
memória,2 categoria teórica e analítica como foi o caso de Carme Regina Schons?
que é objeto de diferentes disciplinas Para quem produz intensamente, da
na área das ciências humanas e sociais, forma da Carme, como funciona a noção
noção forte e complexa, talvez uma das de tempo? Como ele se fez parar para
categorias analíticas que mais contribui funcionar em outro tempo e lugar? O que
para os estudos sobre a constituição do da Carme permanece e nos interpela e
sujeito, tendo em vista que problematiza nos ajuda a afirmar que viver é militar,
a aproximação do passado com o presen- militar por uma causa maior que não
te e com o futuro, o que produz em nós se desfaz na história e que ultrapassa o
um efeito de sentido de estabilização tempo e o lugar? E como podemos medir
de um discurso que não cansa de nos o tempo e o lugar na produção artística,
escapar. A memória não se esgota em política, social, teórica e analítica de
palavras, ela é da ordem dos “deslimites” Carme Regina Schons? Temos convicção
(como nos ensina Manoel de Barros). de que não são apenas os parâmetros da
Capes ou do CNPq que vão dar conta
Um verbo primeiro dessa medição.
A Carme, ao nosso ver, era muito mais
[...] devemos nos preocupar em estar na do que uma pesquisadora produtiva, ela
história (SCHONS, 2010, p. 1) era o sujeito do e no discurso. Ela era
formadora de pesquisadores nos estudos
Qual é o campo de observação de um da linguagem, tanto na sua universidade
analista de discurso? Sabemos, o mais de origem quanto nas outras instituições
diversificado possível, o mais rico e in- em que contribuiu e com as quais criou
tenso que uma vida possa conter. Nunca laços e enlaces de pesquisa e de afetos.
estamos completos e nunca estaremos É o caso do lugar no qual trabalhamos,
saturados pelo nosso campo de obser- o Laboratório Corpus, do Programa de
vação. Da mesma forma, sabemos que Pós-Graduação em Letras da Universi-
nunca conseguiremos resumir em poucas dade de Santa Maria. Lugar que ela par-
palavras o que é do analista e o que é da ticipou intensamente, onde fez palestras
vida. Uma vida nossa de militância, uma e conferências, foi membro de mais de
vida de dedicação à compreensão das uma dezena de bancas de qualificação
práticas sociais e políticas engendradas e de defesas de mestrado e doutorado.
sempre na e pela teia do discurso. Sa- Para nós, a Carme inscreveu-se no
bemos, outrossim, que, por não sermos mundo da pesquisa e dos afetos apaixo-
completos, a falta e a falha estão imbri-

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nados, deixando sua marca distinta nas além do real e do imaginário do “dom de
pessoas e nos trabalhos “lidos”, ditos, iludir”, pois a Carme sempre lutou para
escritos por ela, orientados por ela. E, que nós entendêssemos, de fato, que os
em nosso caso, inventou uma maneira sentidos sempre podem ser outros!
própria de discursivizar a própria vida, Ao mesmo tempo, cada um de nós se
foi uma invencionática, como nos ensina ilude com tantas coisas desse mundo...
Manoel de Barros (no poema referido an- às vezes, nos perdemos dentro de um
teriormente) e a quem ela própria assim livro de poesia ou de análise de discurso
se identificava. ou de uma taça de um bom vinho tinto...
E, outra vez, estamos à véspera de no entanto, ali constitui-se também o su-
um outono úmido e abafado no interior jeito, aquele sujeito sobre o qual discorre
do Rio Grande do Sul, e neste ano não Michel Pêcheux (1995): o sujeito que se
vamos visitar a Carme, mas dizemos a coloca na ilusão de ser a origem, o cen-
nós mesmas “– Está tudo bem: ela nos tro e o grande controlador dos sentidos
habita!”. Seus dizeres estão em nossos das palavras e dos silêncios que produz!
dizeres, suas telas estão em nossas Sobretudo, o silêncio da partida.
casas, seu modo de ser nos constitui e
seus saberes são um pouco os nossos. É Um verbo segundo
pela leitura-saturação de sua produção
que nos sentimos plenos dela! E se a Somos condenados a interpretar, nos
falta vem? E ela sempre vem e nos dei- diz a análise de discurso. Somos conde-
xa atônitos... Vamos ler um pouco mais nados a viver o presente, nos diz o tempo.
ou muito mais e a saudade dará lugar Somos condenados a sentir um lugar
à curiosidade em saber, cada vez mais vazio, nos mostra o vácuo da presença
e mais, o que ela produziu e que ainda física. Porque interpretar é admitir a
ressoa em todos nós. contradição como constitutiva do sujeito
Mas quem é ou foi ela, afinal? Quan- e dos sentidos; é admitir o lugar da falta.
tas facetas compõem a imagem de Porque viver o presente é aceitar a con-
uma mulher como a Carme? Quantas tradição de se estar entre o passado e o
posições-sujeito poderiam ser identifi- futuro no mesmo instante paradoxal de
cadas em seu discurso e quais seriam ser e de não ser mais e, ainda, vir a ser
elas? Ou seja, aquele sujeito que é um e em um outro lugar e tempo.
que é muitos, aquele sujeito que é e que Viver o presente e fazer análise de
aceita ser a própria contradição. Aquele discurso é o nosso desafio diário, tendo
sujeito que experimentou intensamente em vista a necessidade de produção que
a vida, como nos ensina um dos versos nos toma: essa necessidade estranha
de Caetano Veloso: “Cada um sabe a dor que nos aprisiona e nos liberta, que nos
e a delícia de ser o que é”, para muito faz existir enquanto sujeito da ciência e
pesquisador; essa necessidade que nos

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seduz com o brilho do “novo”, de uma que carrega consigo a possibilidade de
outra leitura e, depois, nos lineariza por- transformação, de devir, de retomadas
que o novo imediatamente se estabiliza que podem sempre significar diferente.
no fio do discurso, passando a constituir Muitos, como Michel Pêcheux (1995) e
um outro lugar de memória, um outro Jean-Jacques Courtine (1999), já dis-
lugar na história. E como nos fala o poeta seram que a memória é feita de esbu-
escritor: racamentos e saturações, das práticas
Comigo, as coisas não têm hoje e ant’ôntem sociais que se instalam entre o lembrar
amanhã: é sempre. Tormentos. Sei que te- e o esquecer, mas como saber o que é
nho culpas em aberto. Mas quando foi que falta e o que é excesso? Como saber o que
minha culpa começou? O senhor por ora mal
me entenderá, se é que no fim me entenderá. lembrar e o que esquecer? Os impasses
Mas a vida não é entendível (ROSA, 2001, entre o lembrar e o esquecer são muitos
p. 156, grifo nosso). e não param de se reinventar. Não há
De fato, quando estamos estudando uma memória que faça justiça com o que
as questões de memória, deparamo-nos de fato aconteceu, mas isso lhe parece
com as tensas relações entre passado, muito próprio já que ela não é da ordem
presente e futuro: ora estão bem demar- dos julgamentos comuns. A memória está
cados no tempo do verbo no discurso, ora aí, ela nos toca, é possível ler e sentir, é
nos confundem entre os movimentos de possível discorrer longamente sobre ela,
lembrar, esquecer e prospectar. Nesse é possível sorvê-la gole a gole, uns mais
espaço de tensão também constituem-se doces e outros mais amargos, mas não é
os sujeitos. Estamos refletindo sobre o preciso julgar, dizer o que é bom ou ruim.
processo de construção de subjetivida- A memória nos diz, simplesmente: “Você
des, e ele passa, necessariamente, pelos não está só!”.
caminhos do ler, descrever e interpretar Quando estamos escrevendo um texto
que Michel Pêcheux nos dá a conhecer em para homenagear a Carme, em um aba-
O discurso: estrutura ou acontecimento fado e úmido resto de verão que teima
(1997), sendo que o interpretar configura- em invadir o outono, a lembrança viva de
-se como o espaço de transformação e de sua partida é uma constante, difícil es-
possibilidade da criação do novo, dando quecer... e a falta se faz presença e forte.
visibilidade às subjetividades. E como São documentos, vozes, livros, músicas,
Carme nos ensina: “[...] a leitura como testemunhos, telas, risos desconfiados,
um gesto de civilidade se faz ‘tomando discursos inflamados, testemunhos,
posições’, pela conversão das Palavras em críticas, gargalhadas sonoras, poemas,
ações políticas” (SCHONS, 2010, p. 2). convicções teóricas, olhares atentos, his-
O fio do discurso remete-nos a uma tórias de outros tempos, imagens, fotos,
categoria conceitual de memória como silêncios... E o tempo? O tempo é remédio
algo capaz de abarcar a continuidade amargo que teima em nos curar...

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A memória viva lateja em nossas dos já-ditos, tecendo redes discursivas
têmporas, mas ainda não temos o dis- ainda não articuladas em uma subjeti-
tanciamento temporal que organiza os vidade sem limite. Nos textos da Carme,
arquivos e dá conta da passagem do hoje, o que temos são rastros de uma per-
tempo, o que temos são narrativas da manência no tempo presente, um efeito,
ordem do pessoal e do profissional que portanto, duradouro e privilegiado dela
se tocam, sinalizando que a existência em nós. O que nos importa é que algo da
da Carme fez diferença para os estudos fragilidade da vida acaba se tornando,
do discurso e para todos aqueles que se por meio da sua escrita, algo presente. O
filiam a essa perspectiva teórica, que é que temos, ao reler sua produção acadê-
também uma tomada de posição na vida: mica, é uma possibilidade de lutar contra
ninguém fica ileso depois de conhecer a o nosso esquecimento...
análise de discurso. É uma questão de
memória, é uma questão de constituição Com a Carme... uma
de sujeitos, é uma questão de escrita.
Entendemos que a memória funciona
relação de nunca acabar3
também como um instrumento político, [...] quando tomamos as transformações
próprio às coletividades, mas ela não é só da língua não apenas em seus aspectos
isso, ela transborda, inunda, ressignifica cronológicos e consideramos a sua his-
as práticas sociais. toricidade, é preciso considerar também
o político e o simbólico
Para Carme, a escrita constituiu-se
(SCHONS; DAGNEZE, 2011, p. 55).
como um espaço aberto para o simbólico,
para a construção das subjetividades e,
O que faz a língua falhar, resvalar,
consequentemente, para o exercício da
rodopiar e não deixar levar? O que faz
autoria. Para essa autora,
a língua ficar presa, parada, angustia-
[...] quando escrevemos, estamos sempre da, dolorida, mas pronta para revelar e
fazendo rascunhos em nossas vidas, os
quais se cruzam com tantas outras vidas revelar-se pela memória de um tempo
rascunhadas e (re)desenhadas (SCHONS, que não volta mais, mas que insiste em
2005, p. 140). permanecer. Permanecer pelo afeto, pela
É pela escrita e reescrita que o su- resistência mesmo da memória em nos fa-
jeito se reinventa sempre. Nos escritos zer ver que a morte, por mais perversa que
da Carme, encontramos marcas das seja, não conseguirá apagar o enlace de
suas leituras atentas e críticas, gestos sujeitos constituídos por histórias avessas
de interpretação bem particulares, mo- e travessas e, ao mesmo tempo, pelos afe-
dos de resistência bastante singulares. tos teóricos e pelo espaço da interlocução
Podemos observar, no seu discurso, o na subjetividade do ato em si de lembrar.
movimento entre produção, reprodução e Sabemos que somos tomados sempre
transformação, outros dizeres irrompem por um real impossível, o real da vida

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duradoura e sem fim. Mas, quando nos lembranças de um tempo já passado,
damos conta que o real acaba se tor- mas tão presente...
nando uma ficção sem medidas e sem
tempo, procuramos um outro real, uma Mémoire et subjectivité: du
outra via, para continuarmos projetan- temps pour un souvenir
do o nosso impossível, aquele que nos
permite continuar lutando pela perma- Résumé
nência ilusória de um sempre pertencer. Nous voudrions explorer dans cet
Pertencer a um todo à procura constante article quelques réflexions que nous
de uma origem do sentido de viver. A considérons importantes sur la sub-
jectivité et son rapport avec la mé-
Carme que conhecemos tinha uma vida,
moire par la discursivité de nos sou-
era plena em memórias... aquelas cons- venirs. Notre but principal est de
truídas pelas vivências e pelas leituras, rendre hommage à notre collègue
mas também aquelas advindas das Carme Regina Schons décédée préco-
cement. A partir de nos souvenirs-
tradições herdadas, sempre retomadas
-hommage, de nos souvenirs-vécus, de
e redimensionadas, mas presentes em nos souvenirs-expérimentés ensemble
tudo o que ela era. Há um processo de et à partir de notre relation amica-
ressignificação que nunca se acaba e do le et théorique, nous voudrions com-
qual não temos plena consciência, mas prendre mieux l’axe de la composition
je+tu dans constitution de la subjec-
nos constitui pela alteridade, nessa tivité. Pour nous cette composition
relação de entremeio entre sujeitos e tient à son intérieur un rapport qui
histórias vividas, em nosso identificar-se n’est pas possible de clôturer puisque,
e contraidentificar-se na interioridade do au moment du souvenir, nous nous
constituions comme sujet dans et par
mesmo e do já outro; não apenas em uma
le langage dans un jeu qui dépasse
reversibilidade sem limite, mas em uma la réversibilité du je et du tu et de
relação dialética material na afirmação cette façon nous pourrons compren-
de uma liberdade que está no fundo de dre mieux notre objet de recherche :
nós-mesmos e pela qual nos afirmamos le fonctionnement de la langue par
la mémoire discursive. Notre position
enquanto pessoas... a liberdade susten- théorique est soutenue, dans le plan
tada pelo movimento, graças ao qual a de l’interprétation, par l’analyse de
alteridade vem a ser o que somos com a discours proposée par Michel Pêcheux
Carme e sem ela... en France et développé au Brésil par
Eni Orlandi.
Para nós, refletir sobre subjetividade
e memória nos traz – à superfície da vida Mots-clés: Subjectivité. Sujet. Mémoi-
– histórias vividas cheias de faltas, de fu- re. Histoire. Interprétation.
ros, de rendas desfiadas pelo tempo, mas
ainda intactas na sua beleza particular,
fazendo resistir nossas lembranças...

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Notas _______. Papel da memória. In: ACHARD,
P. et al. Papel da memória. Trad. José Horta
1
Uma primeira versão deste texto foi publi-
Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-58.
cada no site do Laboratório Corpus, no dia _______. O discurso: estrutura ou aconteci-
14 de julho de 2015. Disponível em: <http:// mento. Trad. Eni P. Orlandi. 2. ed. Campinas:
corpus.ufsm.br/index.php/2015-04-09-12-42- Pontes, 1997.
08/noticias/688-homenagem-a-carme-regina-
-schons-em-14-de-julho-de-2015>. SCHERER, A. E. Apêndice ou raízes errantes
2
Cf. PETRI, V. De “garganta do diabo” para para se pensar sobre um tema. In: SCHONS,
“ponte sobre o vale do menino Deus”: reflexões Carme Regina; CAZARIN, Ercília Ana (Org.).
acerca das práticas sociais e dos modos de Língua, escola e mídia. Passo Fundo: UPF
designar o espaço público. RUA – Revista do
Editora, 2011. v. 1. p. 280-294.
Laboratório de Estudos Urbanos do Núcleo de
Desenvolvimento da Criatividade da Unicamp, SCHONS, C. R. Escrita, efeito de memória
Campinas, v. 1, n. 16, p. 66-82, 2010; e SCHE- e produção de sentidos. In: SCHONS, C. R.;
RER, A. E. O papel da memória ou a memória RÖSING, T. M. K. (Org.). Questões de escrita.
do papel de Pêcheux para os estudos linguístico-
Passo Fundo: UPF Editora, 2005. p. 138-156.
-discursivos. Estudos da Linguagem, Vitória da
Conquista, v. 1, n. 1, p. 119-123, 2005. _______. Leitura e civilidade: um estudo
3
Este subtítulo faz referência ao título da obra discursivo de práticas de silenciamentos
de Gadet e Pêcheux (2004). pela violência “costurada” no corpo infantil.
Organon, Porto Alegre: Ufrgs, v. 24, n. 48,
Referências 2010. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/in-
dex.php/organon/article/view/28647/17325>.
Acesso em: 7 mar. 2016.
BENVENISTE, E. Da subjetividade na lin-
SCHONS, C. R.; DAGNEZE, C. S. Trapace-
guagem. In: _______. Problemas de Linguísti-
ando a língua no governo Médici: um estudo
ca Geral I. 4. ed. Trad. Maria da Glória Novak
sobre o imaginário de língua pelo jornal O
e Maria Luisa Neri. Campinas: Unicamp/
Pasquim. Linguagem em (Dis)curso, Tuba-
Pontes, 1995. p. 284-293.
rão, v. 11, n. 1, p. 37-57, jan./abr. 2011.
BARROS, M. de. Poesia completa. São Paulo:
Leya, 2010.
COURTINE, J.-J. O chapéu de clémentis.
In: INDIRSKY, F.; FERREIRA, M. C. L.
(Org.). Os múltiplos territórios da análise
do discurso. Porto Alegre: Sagra Luszzatto,
1999. p. 15-22.
GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A
língua inatingível: o discurso na história da
linguística. Trad. B. Mariani e M. E. C. de
Mello. Campinas: Pontes, 2004.
ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 19. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P.
Orlandi. 2. ed. Campinas: Unicamp, 1995.

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