CHAVES, Ernani. Duas Cartas de Nietzsche A Franz Overbeck
CHAVES, Ernani. Duas Cartas de Nietzsche A Franz Overbeck
CHAVES, Ernani. Duas Cartas de Nietzsche A Franz Overbeck
KSB, 8, p. 452-455.
Caro amigo,
Ontem, com tua carta em mãos, fiz meu habitual passeio das tardes
pelas cercanias de Turim. Por toda parte, a mais pura luz de outubro; o
caminho arborizado que me conduziu por aproximadamente uma hora ao
longo do Pó ainda estava pouco tocado pelo outono. Sou agora o homem mais
agradecido do mundo – outonalmente feliz em cada bom sentido da palavra:
é minha maior época de colheita. Tudo se torna leve para mim, tudo vai bem,
embora dificilmente alguém tenha tido nas mãos coisas tão grandiosas. Que
o primeiro livro da transvaloração de todos os valores esteja pronto, já impresso,
te comunico com um sentimento para o qual não tenho nenhuma palavra.
Serão quatro livros, publicados separadamente. Desta vez, como um velho
artilheiro, apresento meu maior canhão: temo ter dividido a história da
humanidade em duas partes. – Com este escrito, ao qual aludi em minha
última carta, em breve estaremos chegando ao fim: não posso perder
agora meu precioso tempo, por não ter muito, para me expressar com uma
precisão rigorosa. Tua citação de “Humano, demasiado humano” chegou
a tempo para ser incluída. – Este escrito já é cem vezes uma declaração de
guerra, com uma posterior detonação nas montanhas; em primeiro plano
1
Em meio à descomunal tensão desta época, um duelo com Wagner foi para mim um perfeito
descanso: também se faz necessário agora, quando adentro abertamente na guerra, justificar
publicamente pelo menos uma vez, que “tenho o pulso livre”...
2
Em francês, no original, “infelicidades” (N. do T.).
KSB, 8, p. 468-470.
Caro amigo,
3
Trata-se de Peter Gast, como sabemos (N. do T.).
4
O pintor francês Claude Lorrain (1600-1682) é considerado como o mais importante representante do
paisagismo clássico, tendo vivido a maior parte de sua vida na Itália. Foi chamado de maior “luminista”
de sua época, pelos efeitos dramáticos de luz que imprimia em suas obras. Os mais célebres paisagistas
do século XIX, holandeses, franceses e ingleses, foram bastante influenciados por ele. No mesmo
diapasão, Nietzsche cita Lorrain em carta a Peter Gast, de 30 de outubro de 1888, também escrita de
Turim, assim como em Ecce homo, Crepúsculo dos ídolos 3 (N. do T.).
5
Em francês, no original, “soberbo”, “esplêndido”, “belíssimo” (N. do T.).
trabalho e o bom humor vão indo cada vez mais em um tempo fortíssimo.6
Tratam-me também aqui comme il faut,7 com uma distinção extrema; há uma
maneira de me abrir as portas, que não havia vivenciado em nenhum outro
lugar. Reconhecendo que visito apenas belos lugares, um clássico alfaiate
também me alegra. – Tivemos estes dias a obscura pompa de um grandioso
funeral, do qual toda a Itália participou: o do conde Robilant, o tipo mais
honrado da aristocracia piemontina, em todo caso, filho natural do rei Carlo
Alberto, como se sabe aqui. Para mim a Itália perdeu um primeiro-ministro,
que não pode ser substituído. – Algo belo por perto: as belezas da aristocracia
de Turim se tornaram totalmente atrevidas, como a imagem das primeiras
belezas coroadas em Spaa.8 Aqui também se tem em vista imediatamente para
janeiro um concorso di belezza.9 – creio que eles têm todo o direito disso! Já vi,
diante de mim, na exposição da primavera, um tal concurso em portraits.10
Também nossa nova turiniana, a princesa Letícia Bonaparte, recém-casada
com o duque de Acosta estará com prazer no baile. Entrementes, recebi
verdadeiras cartas de homenagem pelo meu “Caso Wagner”. Chama-se o
livro não apenas uma obra de arte psicológica de primeira categoria, em
um domínio onde ninguém até então colocara os olhos. – Na psicologia
do músico, chama-se o esclarecimento acerca do caráter de décadence da nossa
música em geral um acontecimento histórico-cultural, algo que ninguém,
à exceção de mim, fizera: as palavras sobre Brahms seriam o extremo da
sagacidade psicológica. – O Sr. Spitteler expressou seu encantamento no
número de quinta-feira do “Bund”,11 o senhor Köselitz na “Kunstwart”; de
Paris dizem-me que é iminente um artigo na Nouvelle Revue.12 Boas notícias
6
Em italiano, no original, “intenso” (N. do T.).
7
Em francês, no original, “como deve ser”, “como é necessário” (N. do T.).
8
Cidade na província belga (N. do T.).
9
Em italiano, no original, “concurso de beleza” (N. do T.).
10
Em francês, no original, “retratos” (N. do T.).
11
Trata-se do escritor suíço Carl Spitteler, com quem Nietzsche manterá intensa correspondência
nos últimos anos saudáveis de sua vida. Spitteler publicou no número da revista “Der Bund”, de
8 de novembro de 1888, uma resenha positiva do Caso Wagner (N. do T.).
12
Trata-se de uma falsa notícia, que não se sabe como chegou a Nietzsche. De todo modo, em
1892, essa revista publicou um artigo sobre Nietzsche: “Un moraliste à rebours”, de B. Jeannine
(N. do T.).
Recebido: 10/07/2010
Received: 07/10/2010
Aprovado: 20/07/2010
Approved: 07/20/2010