Antologiaconto
Antologiaconto
Antologiaconto
DO
CONTO PORTUGUS
CONTEMPORNEO
ANTOLOGIA
DO
CONTO PORTUGUS
CONTEMPORNEO
SELECO, PREFCIO E NOTAS BIOBIBLIOGRFICAS
DE LVARO SALEMA
MINISTRIO DA EDUCAO
Ttulo
ANTOLOGIA DO CONTO PORTUGUS CONTEMPORNEO
1. edio 1984
Tiragem
5000 exemplares
Composto e impresso:
Ocinas Grcas de Veiga & Antunes, Lda. Minerva do Comrcio
Fevereiro 1984
NDICE
ADVERTNCIA ..................................................................................5
PREFACIO ...........................................................................................6
RAL BRANDO A casa de hspedes .......................................... 12
AQUILINO RIBEIRO A reencarnao deliciosa ...........................19
FERREIRA DE CASTRO O Senhor dos Navegantes ..................... 30
JOO DE ARAJO CORREIA As velhas so o Diado .................42
JOS GOMES FERREIRA A sombra ............................................50
JOS RGIO Os trs reinos ............................................................55
VITORINO NEMSIO Mau agoiro ............................................... 63
JOS RODRIGUES MIGUIS O viajante clandestino .................70
DOMINGOS MONTEIRO Ressurreio ........................................81
BRANQUINHO DA FONSECA Histrias da meia noite ..............87
MIGUEL TORGA O Alma-Grande ................................................95
ALVES REDOL O rapaz no gostava das mos .......................... 102
MANUEL DA FONSECA Maria Altinha .................................... 107
LUS FORJAZ TRIGUEIROS Desportos de Inverno ................... 114
MRIO DIONISIO A lata de conserva ........................................ 120
VERGLIO FERREIRA Me Genoveva ....................................... 126
FERNANDO NAMORA O rapaz do tambor ............................... 134
SOPHIA DE MELO BREYNER ANDERSEN O Homem ........... 146
JORGE DE SENA O grande segredo ............................................ 151
CARLOS DE OLIVEIRA Os corvos ............................................ 157
MRIO BRAGA Balada .............................................................. 161
AGUSTINA BESSA-LUS Filosoa verde ................................... 165
URBANO TAVARES RODRIGUES A meia hora de sol .............. 172
JOS CARDOSO PIRES Os caminheiros ................................... 177
AUGUSTO ABELAIRA Ode (quase) martima ........................... 190
DAVID MOURO-FERREIRA Nem tudo histria ................... 198
HERBERTO HELDER O quarto .................................................. 205
MARIA ONDINA BRAGA A lio de ingls ...............................210
LDIA JORGE Os dois viajantes ..................................................220
VERGLIO ALBERTO VIEIRA O dia perfeito ............................231
ADVERTNCIA
5
PREFCIO
LVARO SALEMA
10
AUTORES E TEXTOS
RAL BRANDO
(1867-1930)
Singular ligao a destes tipos que o acaso reunira naquela casa de hspedes da
D. Felicidade: um doido, um anarquista, o Pita, a patroa, o Gregrio, antigo chefe
de repartio, que havia anos estava encarangado num quarto, uma velha que s
saa de noite e essa gura amarga, o Palhao, que passava horas e horas, como
se s a si prprio se escutasse. Todos tinham chegado ao m da vida, de unhas
arrepeladas para o gozo, com o aspecto das coisas servidas que se deitam fora.
Usados pela existncia, pela ambio e pela febre, arregalavam os olhos para a
vida. Neles havia o quer que era que inquietava e fazia pensar. Em vez de carem
duma secura atroz, tendo analisado de perto todos os sentimentos, o amor e a
amizade, a experincia dera-lhes tintas de sonho ao desespero: e era como se um
bicho de esgoto criasse asas e se pusesse a voar. O Doido sonhava e todas as
suas vises vagas caminhavam, numa atmosfera de beleza, para de sbito, num
pormenor, carem grotescas, aos pulos como um sapo. O Anarquista tinha gestos
de profeta, e na sua eloquncia havia rasgos de visionrio: como um vendaval que
arromba portas, assim ela entrava pelo sonho dentro, engrandecida. Evocava as
multides, a misria humana, a dor humana. O Pita era um mixto de lsofo e de
ladro. Sabia tudo, vendia tudo. Amara princesas e trazia um velho chale-manta,
que de tanto ter visto a misria parecia arrepiado. A Velha passava o dia a contar
as rugas diante do espelho, na raiva de se sentir escarnecida. Meditava quanto
tempo podia amar ainda, enganava-se e convencia-se de que no estava velha
nem feia. Punha ores no seio estancado e raso como uma tbua e arrepiava os
cabelos. noite saa, rodava nos stios escusos espera duma aventura de amor,
ou, desvairada, ia pelas ruas da cidade, a arrastar um chale prpura.
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O Pita s vezes seguia-a e espiava-a, com o olho cheio de curiosidade,
ruminando l por dentro:
Encontro-as s vezes nas ruas, caiadas aos sessenta anos e sonhando ainda
com a juventude. E so as que se atrevem, as que se expem aos riscos, porque
muitas como esta arrastam pelas casas de hspedes o seu sonho inapaziguado de
amor... F-la tmida e m o ter de viver duas vidas, uma de imaginao, outra de
realidade. Por isso tem o olhar desvairado para dentro, de quem segue um sonho e
anda neste mundo por acaso. Esta cidade trgica fez-lhe um cenrio perfeito, com
a noite em que a escumalha vem tona, as ruas esganadas e o vcio... Atrever-se-
ela?... Duvido... Viver tudo!... viver!...
Se todos estes seres se juntavam e conversavam, as suas palavras ardiam ou
gelavam; causavam arrepios, como lminas que de repente se desembainham e
cam no ar suspensas: eram feitas de cadveres ou de claridades... Umas vezes
pendiam para o sonho; outras para a terra.
Vocs todos tm pensado na vida destas criaturas?... Desde a mocidade que no
tiveram risos. Depois o pequeno emprego, nunca o gozo satisfeito, a imaginao
e o apetite sempre alerta. As mulheres! ainda um dia hei-de ter aquela mulher,
quando tiver dinheiro!... Nunca satiszeram o seu amor e o seu desejo. Aturaram
as insolncias dos patres e o desprezo do Metal. Nunca tiveram na vida ocasio
para praticar um crime que lhes desse o oiro ou o poder. Correram casas de
hspedes, a ruminar idias de ambio ou de dio, e essas mesmas diludas e
derrancadas... So srdidos, tm pequenas manias e inditos recantos de alma, e
nunca, como os pobres cavadores, viveram ao contacto da natureza, das grandes
rvores, da gua e da luz.
Acontecia que mesa, depois do jantar, na obscuridade que o Pita amava,
cavam de conversa. A princpio o Palhao no falava... Quase sempre fugia para
o quarto. Mas de uma vez, que se falara de amor, escutara e discutira: da caram
no hbito de se exasperarem com conversas, que o Pita tingia de sonho.
O Pita era um homem de barba hirsuta e olhar vivo nas rbitas fundas e sem
plpebras. Unhas, roera-as todas. Tinha a cincia da vida, visto que andara sempre
aos pontaps de toda a gente e se dava com a ral. Vivia custa de mulheres,
e como duma vez lhe perguntassem como arranjava ele, dono de semelhante
caveira, que as mulheres o amassem, disse com desprezo:
A mulher uma esnge.
Nessa noite o Anarquista lia uma proclamao para abrir o seu jornal A
Misria. Com o manuscrito na mo, o olhar incendiado, perguntou:
Pita, que lhe parece?...
E ele, seco, respondeu:
Muita losoa...
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Mas que diabo, Pita! Voc sabe que estimo a sua sabedoria... Diga a sua
opinio sincera...
Todos se absorveram no Pita, que passou a mo pela bola de bilhar que usava
em vez de cabea e a seguir falou:
No est mau de todo... Muito palavriado... Fale na terra e fale na misria...
Sabe que em Setbal, nos arrozais, para ganhar apenas o po negro, mulheres
trabalham na gua como bestas, at se cortarem pelas virilhas? Sabe que h
pequenas de oito anos, que se chegam sua beira com um ar de vcio e tm esta
frase trgica: Eu fao tudo!... ?
Muito decorativo, citou o vcio, que apenas noite corre como um esguicho de
lama pelos recantos negros da cidade. a fome? , disse ele. E alm disso
os burgueses esto dando ral, cheia de apetites e quimeras, um espectculo
desaforado...
Pita!...
Desaforado... Cite factos, encha-me esse papel de factos e bote ento se
quiser a losoa de fora. O palavriado no mau, mas porque os pobres
conhecem melhor a misria e o crime, que um desgraado me falava uma noite em
fazer saltar tudo...
A misria e o crime disse o Doido so velhos como a terra... Voc tem
visto tudo e tem sido tudo: j foi rico e j viveu de arranjar mulheres para os
outros... Mas escute: a questo mais funda... Suponha que sobre esta mesa est a
palpitar o Corao Humano... H coisas eternas. O que fez crescer o anarquismo,
como uma raivosa mar de lama esta coisa simples: o dio aos ricos e a
inveja... Voc, eu, todos os que aqui estamos juntos, o que daramos para ter o
Oiro, o Oiro com que se pagam as mulheres mais lindas, as quimricas mulheres
todas feitas para o gozo, e sobre cujo olhar negro a gente se debrua como sobre
um pssaro lendrio; o Oiro com que se tem o amor e se deitam a perder os nossos
inimigos?... Eu, vocs todos, temos feito de h muito este raciocnio: a vida dura
dez, vinte anos, depois segue-se...
A cova...
O nada. Portanto vale a pena gozar de todo o nosso crebro e de todos os
nossos nervos. Deixar o corao bater o mais que puder, satisfazer a valer todas as
paixes... S o Oiro que d isso e ningum recuar diante dum crime, certo da
impunidade, para o obter.
s vezes corre-se-lhe o risco...
Outrora esta vida era transitria... Quanto mais se sofria, mais duro era o po
e a dor mais negra, maior tambm na vida eterna era a felicidade. O dio contra
os ricos, os que gozam enquanto as mais criaturas sofrem, existia, mas havia a
certeza que iam para o inferno. Pagavam caro os beijos, a felicidade, o sonho...
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Agora a iluso cau por terra, a vida sfrega e a mar dos que esto vidos de
gozo sobe...
E o Pita resmungou, com o olho a luzir:
Vai ser um rico saquesinho...
Com mulheres violadas, sangue, apetites desenfreados, vaias contra a arte e
o belo...
o Oiro, o Oiro que tudo pode e tudo faz!... O Oiro que era ainda capaz de
fazer levantar da cama o prprio Gregrio!
E a dona Felicidade, que levantava os pratos, deu um suspiro to fundo como
se nela suspirassem todas as Donas Felicidades, desde a Dona Felicidade das
cavernas at Dona Felicidade contempornea.
Pita, a essa hora da noite, tinha espirros de gnio pela caveira, numa excitao
contra a vida e contra a dor. Pelo comeo da noite que Pita principiava a ser
amargo, com um grande desprezo pela sociedade. Pita tambm a essa hora estava
algo na mentira: embebedava-se com as decoraes sobre a misria e sobre o
corao humano, e a fantasia fazia-o perder-se, fazer grande, como um pintor que
na febre atirasse broxadas de gnio para a tela. Pita parecia uma evocao de Po.
Pita sentia, depois da bebida, o frio dos desgraados, a febre dos noctmbulos:
sabia a enxurro: e tinha na fantasia toda a prpura e toda a lama que as borboletas
tm nas asas, e que ele apanhara ao roar-se pelos boeiros imundos da cidade:
Eis aqui tem o amigo... O raciocnio um vcio com o qual se chega a tudo
at a ministro... Teoria vai, teoria vem palavras leva-as o vento... A verdade
amarga e nica esta: que na vida preciso sonhar, para no se morrer transido,
tantos so os pontaps que a gente leva na alma e noutra parte. Ou ento tem a
gente a necessidade de se endurecer e de pr o corao como uma pedra.
Pita!...
Como um calhau... V a um stio aonde se sofra ao hospital. Tenho-o
defronte da minha mansarda, o luzeiro sempre a arder nas janelas. O que est
aquela pobre gente toda a noite a tecer?... Aquele estupor de alambique de
sofrimento toda a noite resfolga...
De qu!...
De alambique disse, seco. uma imagem... E h coisas que se no curam,
que o que me revolta... Deixo-os sonhar... O sonho to necessrio pra a vida
como o po.
Eu, para meu uso, at os tenho inventado para certas horas de sofrimento e
quantas noites passo a imaginar ser rei ou ser carrasco!...
Atire-se-lhes com um pedao de sonho, como se fosse um pedao de po!...
O pior, Pita amigo, que o sonho desvaira-os...
Pois a questo essencialmente se reduz a isto: pertence aos homens de estado
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saber canalizar o sonho da ral, e desde que hoje ele se no pode aproveitar
nem para fazer conquistas, nem para fazer heris todo o esforo deve tender a
conserv-lo como lume sob cinzas inofensivo e latente. Destru-lo, arranc-lo,
uma tolice, pois que outro vir creia na minha experincia da vida substitu-lo,
e quem sabe se mais perigoso!...
Cau em meditao o Pita. Oito horas da noite e a calva incendiada por entre o
pelo sem cor. Nunca mais o puderam levar a falar sobre o mesmo assunto. Tinha
um grande desprezo por esta porcaria da vida e fugia agora para o pequename,
a tromba a bamboar-se-lhe sobre a boca, numa festa. Tirou da algibeira uma
boquilha de mbar com uma mulher em pelota e um prospecto da casa John &
Fixley, London Segurana e Mtodo, preos mdicos. Assassnio de todas as
sogras com o maior respeito e sem interveno da polcia.
Pita, ests aqui, ests na Penitenciria. V no que te metes, Pita!...
E ele, descendo as escadas, com jbilos na voz rouca:
Vou-me at ao pequename. A vida uma quimera!...
O Pita sabia tudo: conhecia os segredos de todas as famlias e os vcios de
todas as mulheres: em cada noite seria capaz de dizer quem estava para meter uma
bala nos miolos, falido e desonrado, e quem adormecia no colo de nuvem da mais
linda mulher da cidade. As suas conversas faziam frio: tinham dentro pesadelos
e lama. Fora amigo ntimo dum banqueiro, jornalista assalariado para cobrir de
infmias os inimigos do outro. Tinha tido dias em que fora rico e pagara todas as
suas fantasias e noites em que tremera de frio porta dos cafs, com a lista e
preos das criaturas que se vendem.
Das suas conversas com ele, o Palhao saa sempre com a cabea cheia de
fantasia e com um sabor amargo vida lama negra, onde vestgios, espirros
de oiro, tivessem sido esquecidos. A sua experincia do mal de viver dava-lhe,
fantasia rtila, recantos cheios de indito e de amargura, e era como se a sua alma
fosse sacudida diante dele de toda a poalha negra ou escarlate, que a existncia lhe
deixara... Depois do circo passeavam juntos at s primeiras tintas de alvorada.
quela hora s noctmbulos esguios quedavam pelas esquinas, guras que, ao p
dos restos de cartazes prpura, de grandes letras, faziam destaque e evocavam,
perto da pompa e da grandeza, a misria da cidade...
Depois da conversa com o Pita, o crebro em lume, ia pelo bairro pobre e
desdentado, procurando ver materializado o rasto de que ele lhe falara, como um
manto que cada um arrastasse, invisvel e tecido a ideias e a sofrimentos...
Pois qu!... lhe dissera o Pita donde provm que as feiticeiras leiam no
passado do homem?... Nada se perde, cada um traz consigo, cometa que arrasta a
cauda de lama ou de oiro, todo o seu passado, vestgios de ideias, crimes, horas
de amargura e horas em que se beijaram lbios de mulher, por quem a gente se
perde... Creia na minha experincia da vida!...
E para ver?... para ver esse rasto, que cada um traz consigo a nimba-lo,
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luaroso e ferido de lgrimas?... Sers tu, Pita amigo, o Diabo, e queres em troca a
minha alma?...
No, no sou, com pena o digo, o Diabo... Quem me dera ser o Diabo, para
ser moo, ter todo o oiro e todas as lindas mulheres da terra! Ai o pequename de
seios duros e lcteos de esttua! o oiro que d o poder, a considerao pblica,
os sorrisos de lbios de papoula das moas e a riqueza dos bancos!... No sou o
Diabo!
E, apontando com o seu dedo nodoso e descarnado para a cidade, disse:
Vai sofrer, espremer da Vida a experincia. Deixa que te calquem o corao,
assiste ao despedaar do teu sonho, tua humilhao, e depois sabers...
Tomando de respeito por tanto saber, com humildade se despediu:
Muito boas noites, senhor Pita!... Ento no toma mais nada?...
No tomo. Podes-te ir embora. Boa noite...
Com a cabea a escaldar, parecia-lhe agora ver realmente o que Pita lhe
aanara existir... Cada criatura que passava arrastava consigo uma cauda
poalha luminosa, doiro ou cinza, feita de luar ou de escarlate. Lentamente pde
distingui-los, classic-los, conforme o manto rgio ou pobre que traziam. E na
noite havia-os que deixavam um grande rasto rtilo, como estrlas cadentes, onde
gemiam ais de mgoa, prolongados com um som de viola que se parte. Mseros,
ressequidos e sacudidos pela dr, traziam uma cauda cr de cinza, com chuveiros
de mirades de centelhas de lgrimas, e a poetas nimbava-os uma pualha de luar
e de oiro. Velhas ardidas eram envolvidas por uma atmosfera baa, onde o
imortal amor inda luzia. E alguns deixavam atrs de si restos de mantos todos
prpuras, que se iam perder na lama e no esquecimento; outros, criminosos
decerto, caminhavam numa nuvem negra, onde pedaos sangrentos escorriam
como punhaladas, e havia-os todos verdes, de cambiantes innitas. Muitos
arrastavam caudas enormes pela lama, despedaavam-nas de encontro s esquinas,
e alguns procuravam deit-las fora para no mais pensarem num passado
tenebroso.
O homem material pensava o Palhao no existe. A vida uma
conveno. O que existe sonho, o sonho a nica realidade. Sonhar! sonhar!...
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AQUILINO RIBEIRO
(1885-1963)
Com obra muito vasta, abrangendo cerca de sessenta ttulos em que alternam
o romance, o conto, a biograa, a crnica, o ensaio histrico e literrio e, ainda,
um volume de teatro, Aqulino Ribeiro unanimemente reconhecido como o
mais vigoroso e pujante prosador portugus neste sculo. Quer dizer: como
criador de linguagem sobre um fundo vernculo tradicional ou regional, dando-
lhe corpo numa escrita literria. De raz rstica (da Beira interior e serrana)
fortemente reectida em grande parte da obra, o seu naturalismo visceral no
exclui o humor, em que se tem apontado a inspirao de Anatole France, e a
inveno novelstica exuberante a ultrapassar com largueza o real observado
ou experimentado e a aorar por vezes o fantstico e o mtico. Foi com o
livro de contos e novelas Jardim das Tormentas (1913), acolhido com notvel
xito, que abriu caminho publicao de sucessivas criaes ccionistas de
ambientao rural ou citadina, entre as quais ser justicado destacar pelo
poder transgurador da linguagem o romance A Vida Sinuosa (1918), a recolha
de contos Estrada de Santiago (1922), a crnica romanceada A Casa Grande
de Romariges (1957), o romance Quando os Lobos Uivam (1958), etc. As
biograas de Cervantes, de Camilo Castelo Branco e outras grandes guras da
literatura ou da histria, alm de poderosas criaes de estilo e para alm
do evidenciado pessimismo do Autor perante a natureza humana representam
amplos painis evocadores que as situam ao nvel dos bons romances. A evoluo
das correntes literrias, com a sucesso dos vrios modernismos em Portugal
desde 1915 e as alternncias de subjectivismo individualista e realismo social
que a foram demarcando, no tocaram de modo perceptvel a personalidade
literria profundamente original de Aquilino Ribeiro. O escritor prosseguiu o
seu rumo at ao nal da vida com inaltervel identidade no processo novelstico
e no casticismo da linguagem. A facndia verbal do prosador pode ter motivado
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um certo barroquismo no seu estilo mas teve a compens-lo uma intensidade
de expresso semntica com raros similares nas literaturas modernas. Foi o
primeiro escritor portugus proposto candidatura do Prmio Nobel, em 1960.
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A REENCARNAO DELICIOSA
Era uma velha, to velha que ningum diria quantos anos tinha. Dobrada sobre
o bordo, j a cabea lhe pendia para terra como abbora carneira do galho duma
rvore. E a corcunda tolhia-a de ver o cu.
Vivia numa cabana, abandonada por leproso ou profeta, na altura da escarpa,
antes de chegar ao lago, em que comeava a aparecer no cncavo a aldeia de
Tiberade e os colmos negros das casas pareciam sargaos ao lume de gua. Area,
s pele e osso, no reparavam nela os ladres da Samaria e possvel que a prpria
morte passasse sem a ver. Alm disso, como era pobre, nunca sua porta descia
canastra de peixe, nem vinham bater, parada a cla no caminho, destas mulheres
nmadas, negras e secas, a pedir por amor de Deus uma sede de gua para o lho,
cozido em febre nos seus braos. Necessitados que por ali transitassem deitavam
adiante, uns porque sabiam quanto a velha estava impossibilitada de obsquio,
outros a quem a choupana de adobes, coberta de musgos e com sardes em cada
fenda, tresandava a bruxaria.
Nuns tristes quintalinhos, com a sua gueirinha melanclica e duas cepas
cansadas, deserto e silncio volta, se resumia o seu mundo todo.
O maior sinal de vida davam-no em baixo as velas dos barcos quando saam
pesca; e, ainda nessas horas, garas adormecidas no pairavam mais de manso.
Eram os gritos dos pescadores: ala! arrasta! na faina de tirar as redes, quem
quebrava o mudo espanto da terra em redondo.
Mas a velha tinha rija perna. Apenas o sol nado, corria as ruas de Tiberade;
uns besugos, aqui, ao fazer a lota, a troco de qualquer demo; duas bocadas, ali,
de almocreve mais liberal em mar de farto; um migalho de po, acol, pelas
obrigaezinhas e assim acalentava os dias.
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Nas vizinhanas da Pscoa ia para as dunas espreitar o horizonte. Costumavam
atravessar por ali as caravanas que do Alto Jordo se dirigiam a Jerusalm, ora
imponentes e rpidas, de dromedrios, ora passeiras, com gente de p e de cavalo,
camelos de recova e burrinhos patriarcais, carregando levita ou beata sequiosa de
puricao.
Os pobres das aldeias esperavam-nas borda dos caminhos e junto dos poos
em que era costume acamparem e puxarem da merenda. Muitos ao faro da
esmola que os ricos iam largar Cidade Santa metiam de rusga com os arrieiros,
resignados s suas chufas e picardias. E porta do Templo, enquanto nos altares
grelhava o anho pascal, punham ao lu, clamando e gemendo, as pstulas que o
Senhor lhes dera e outras que faziam e agravavam por suas mos.
Cheios da beatitude do santo dos santos, os patrcios de barba em leque com
nojo cuspiam o bulo chusma srdida. Homens e mulheres engalnhavam-se a
apanharem a reles moeda de cobre, com grande risota dos mirones e legionrios e
ira dos vendilhes que expunham em tabuleirinhos de cedro que a branda aragem
virava caramelos e bugigangas de barro.
Mal viu o facalho que o feiticeiro sacou da tnica, a velha desmaiou. Quando
volveu a si, ao romper o Sol dentre os cedros, dizia uma voz por cima dela:
Salta c para fora...
Estava dentro da infusa, muito moldada com o barro, mas encolheu-se,
torceu-se com imprevista maleabilidade, e pulou fora. Soltando uns ah! uns ih!
gritinhos agudos como de cotovia que escapa gaiola, descobriu-se bonita de
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corpo e um sorriso de blandcia iluminou-lhe o rosto especioso. Especioso sabia
que era e, todavia, ainda se no vira ao espelho, traste diablico-divino que nunca
entrara naquela casa, pelo qual ela agora daria meio mundo. mas ao que abrangia
com os olhos tinha a sensao fsica do que era o resto. E s ento lhe acudiu
que fora uma triste velha, muito velha, que andava a dormir de p pelos caminhos
onde se assentava tomava-a o sono, irmo da morte, mais desalmado que um
ladro; riam dela por pancrcia; temiam-na por bruxa e que um dos belos
milagres da Galileia se havia representado em sua pessoa. E como houvesse
guardado o sagaz instinto de mulher, bamboleando-se e admirando-se, disse para
o velho, em frente dela baboso decerto com a obra e com mais nada:
Bem desgurada me vejo, no h dvida. Se no soubesse, no me
reconhecia. Nenhum deita-gatos era capaz de consertar melhor uma tigela
quebrada! Muito rico da graa de Deus s tu para assim obrares prodgios a troco
dumas colheres de papas!
Tive pena de ti porque notei que o teu corao andava triste.
Consolaste-me. Que paga queres?
Nada em ti me seduz. D graas ao Inefvel.
Manda, sou a tua escrava.
Essas palavras no me iludem. Tu o que adoras em mim o poder e no o
homem. Se te tomasse comigo, breve te arrependerias tambm. O homem, repara,
morreu em mim quando reconheci que a felicidade no est nos bens do deleite.
Onde est ento?
Onde menos se busca.
E onde que menos se busca? Parece uma adivinha...
Na arte de se conformar a gente.
Calou-se a deliciosa compreendendo que na palavra do velho todos os destinos
se equivaliam, as galas da formosura no lhe acarretando mais venturas que a sua
desamparada velhice. Mas tudo isso era retrica de jarretas, certa, j se deixa ver,
e ela cria-o piamente, mas nada mais temerrio em jovens. A questo toda era
enterrar os dentes no fruto sem morder o caroo, que amargo. E como o seu
entendimento era advertido tornou:
Com que hei-de retribuir to grande neza?
No tens nada que retribuir. As minhas mos so rotas a dar e fechadas a
receber.
Mas, por quem s, no me vais deixar aqui ao deus-dar...?!
No rosto do velho perpassou um sorriso mau, reexo talvez do seu desprezo
pelas iluses das criaturas. E disse:
Para mim no tens prstimo nenhum.
Com que cara o dizes! Ah, vocs os velhos a mim no me enganam. Por fora
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parecem uns santos, por dentro so sacos de lacraus. Para que me vieste tirar ao
meu sossego?
O destino esteve nas tuas mos.
Querias que pedisse a salvao? Pois no pedia! Quis ser rapariga, acabou-se.
Agora o que te pergunto isto: que queres tu que eu faa de mim?
Conforma-te.
Conformam-se os defuntos com o caixo. Os vivos no. Pe l na tua que o
meu corao desejava mas no sabia mais que desejar.
Calou-se o velho num instante e disse maneando a cabea:
Minha rica, puseste-te fora da vida por teu belo gosto. Querias amar, sofrer,
sentir o turbilho da existncia, julgando que no tinhas amado nem sofrido, e a
tua alma desentranhava-se a amar e a sofrer. Acabavas de cumprir fadrio igual
ao dos outros mortais e no estavas satisfeita. Coitada! Uma noite que o Diabo
soprou em teu peito bastou para te perder. A voz que ouvias era dele e de mais
ningum.
E como lhe lanasse um olhar inconfundivelmente zombador, ela que se
supunha forte e dominosa mirou-se e remirou-se com mincia e desconana dos
ps cabea, desde as linhas implexas s veladas, desde os membros livres s
cabeas de pombo dos seios de neve. E ao cabo do exame, embora os desgnios
transmitidos ao seu corao pelo canal do Demnio lhe parecessem os melhores,
desatou a chorar em fonte com mais sinceridade do que malcia.
Ai! a cintura dela, ao manear-se, parecia um anel suspenso; o pescoo, em vez
de prender a cabea, levantava-se para o cu, como se quisesse separ-la do tronco
e oferec-la de pasto s aves. As pernas, ah, as pernas que deviam ser feitas para
subir aos montes e s rvores, eram de tal pulcritude e matria que davam ideia do
prro quebradio.
Para que me serve este corpo intil? Dize l, mandigueiro, homem maligno,
para que me serve...?
Chorava e tornava a chorar lgrimas que lhe banhavam o rosto, ela prpria via
correr um o, sentia rolar em bagadas pelo seio como um rocio ao mesmo tempo
pungente e agradvel. Mas em vez da boa cabea de jumento intonsa e taciturna,
o homem que se debruava para ela tinha a face esqulida, dois plos espetados
sovela no lbio superior e outros dois no queixo, e olhos pequeninos de azeviche.
Por debaixo do fez saam-lhe apos de cabelo sujo, e a sua voz era sibilada e
diferente daquela com que travara despique, e essa voz pareceu-lhe conhecida ao
proferir:
Ento dorme para aqui ao relento sem se importar com a orvalhada? Est a
ganhar a morte, mulher...
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A velha esfregou os olhos, deu conta que era manh, e negou-se com todas as
veras da sua alma a aceitar a verdade desconsolada. Nessa esperana perguntou:
Tu no s Ibraim, o aguadeiro, pois no...?
Sou eu mesmo, pois quem havia de ser? Olha, olha, quebraram-lhe a infusa;
onde deito agora a gua?
Quebrou-se, sim, quebrou-se. Se tu soubesses!
A velha fechou as plpebras, decerto a retina interior espraiada em amenssimas
perspectivas, o que se adivinhava pela imobilidade e o silncio, e acabou por
dizer:
Tu querias voltar a ser novo, Ibraim?
Para qu...? Para carretar mais gua...?
A velha afundiu-se em seu mutismo e ele depois duma longa pausa
impacientou-se, que estava atrasado. E enquanto despedia a aviar os fregueses,
nada descontente por no ter que lhe encher a cantarinha, que j devia a semana,
cava ela a chorar, outra vez a chorar em fonte, no saberia dizer se o prejuzo que
lhe dera o zorato, se o doce sonho realizado.
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FERREIRA DE CASTRO
(1898-1974)
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O SENHOR DOS NAVEGANTES
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JOO DE ARAJO CORREIA
(1899-)
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AS VELHAS SO O DIABO
Ningum case com mulher velha. As velhas, ainda que paream santas, so o
demnio. Que o diga o Frederico. Tinha feito casa e perdeu-a por via da mulher,
mais velha do que ele trinta anos.
Este disparate de idades pareceu acertado ao Frederico no dia em que se
casou. Ele era um rapaz doente e pobre. Tinha-se estreado como cavador, mas
no provara bem na enxada. Derreou-o a primeira cava para toda a vida. Era um
pelm. Desistiu da vinha e fez-se comerciante. Melhor dizendo, fez-se feiro,
porque a palavra, comerciante na de mais para se aplicar ao modo de vida do
Frederico. Feiro, sim, porque o negcio do Frederico era vender na feira porcos
de criao. Achou que fez bem, casando com uma velha, porque essa velha tinha
alguma coisa de seu. Podia aumentar-lhe o negcio com o dote e dar-lhe respeito
casa com os cabelos brancos.
Embora doente, o Frederico era activo e at ambicioso. Madrugava como um
pssaro e s adormecia pela noite dentro, depois de ter feito de cabea as contas
do negcio.
Esta labuta, em vez de o enfraquecer, fazia-o homem. O ar livre, respirado
de costas direitas e independente, por feiras e caminhos, abria-lhe o apetite. No
tinha cor, mas, de ano para ano,. ia-se tornando menos seco e mais robusto.
Quando casou, j no era o rapazinho dbil que a primeira cava derreara. As
moas, quando o viram na igreja receber-se com uma velha, exclamaram: mal
empregado!
No h dvida que o casrio do Frederico foi interesseiro. A velha tinha de seu
uma casa ampla, situada fora do povo, mas o quintal... era o melhor pedao de
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cho da freguesia. De todas as vezes que o Frederico por ali passava a caminho das
feiras, namorava a casa e namorava a cerca. Parecia-lhe que as lojas subjacentes
ao prdio e aquele gordo torro ali ao p seriam boa cama e refeitrio farto para o
seu gado. Antes de casar com a proprietria, enamorou-se da propriedade.
Que, valha a verdade, a dona de to bela regalia casa e quintal tinha
tambm seu prstimo. Vivia sozinha e sozinha se desembaraava de toda a sua
lida, que no era pequena. Cavava a horta por suas mos, fazia de comer, lavava
os manachos, ia lenha, ponteava as meias, remendava as saias e cuidava do vivo
como ningum.
O vivo o porco ou porcos que habitam uma corte. a biologia sagrada de
uma vivenda. O vivo! Signica o ser vivo por excelncia. Ora, em sete freguesias
pegadas, ningum cuidava melhor dos entes que grunhem e no vem o cu do
que aquela mulher. O Frederico mercava-lhe as criaes a olhos fechados.
Da admirao da obra admirao da autora mediou um passo. Mulher que to
asseados bichos criava em sua loja merecia que um homem olhasse para ela. Viva!
A senhora Aninhas chamava-se Aninhas era mulher perfeita.
Destes cumprimentos, destas exclamaes sinceras, at ao casamento foi outro
passo. A casa, o quintal e a corte passaram por encanto categoria de emprio
comercial do Frederico. A loja, povoada de buliosos bcoros muito limpos,
sempre a coinchar com saudades da mama ou fome de lavagem, parecia uma
creche de criancinhas ruas. No meio deles, com uma vide na mo, a senhora
Aninhas gurava como ama sem touca, mas, com uma habilidade, um dedo
para aquilo, que espantava o negociante. Com dois ou trs monosslabos e umas
ccegas feitas com a vide no serro dos inocentes assim os comandava.
Era manifesta a prosperidade do Frederico em bens comprados ao redor da
casa hoje uma leira, amanh uma vinha, depois uma mata. Davam-lhe os
vizinhos, em suas avaliaes mentais um pouco invejosas, para cima de cem
contos. Como o vissem assim, to aumentado de teres, comearam a chamar-lhe
Tio Frederico e at senhor Frederico. Tanto tens tanto vales.
raro que o homem sofra mais do que uma paixo. A paixo do Frederico era
o negcio. Amava a mulher como auxiliar da sua prosperidade. Punha-a, no que
considerao, acima do cavalo que o levava feira. Extasiar-se, s se extasiava
diante dos bcoros, que representavam dinheiro. Chamava-os bic, bic com
ternura utilitria.
A mulher no era assim. Vivia para o marido. Solteira at aos cinquenta anos,
delirou quando se viu casada... e casada com um rapaz novo! Cheia de lgrimas
de jbilo na face arregoada pelos anos, arrumava a casa e fazia o jantar do marido.
Por amor dele, tornou-se avarenta sem deixar de ser limpa. Queria-lhe como
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lho e como esposo. Sabendo-o de compleio delicada, alimentava-o a preceito
com ovinhos crus furados com uma navalhinha. Obrigava-o a beb-los assim,
que era, na opinio dela, como faziam melhor. noite, como o sentisse exausto
das jornadas, no se punha a ma-lo com candonguices. Deixava-o adormecer a
contempl-lo como as mes contemplam os lhos adormecidos no colo.
O Frederico nunca se comovia com a ternura da esposa. Estimava-a como
consorte, mas no lhe retribua o dzimo do carinho. O to da sua vida era o
negcio. A esposa, a casa, o quintal, a corte, os bcoros, eram instrumentos do seu
ganha-po. Estava satisfeito, no arrependido de se ter casado. A senhora Aninhas,
ainda que velha, era o seu brao direito na luta que travara contra a doena e contra
a pobreza. Era sua scia. Prezava-a como tal.
No dia em que a senhora Aninhas percebeu que no passava de scia do
marido, quis morrer. Lembrou-se do pai e da me teve saudades da vida de
solteira. Ter-se-ia arrependido de casar se a no cegasse o orgulho de ter casado
com um rapaz novo. Toda desvanecida, evocava a cena do casamento, o n dado
na igreja.
Entretido com o negcio, o Frederico no pensava na mulher. Quando ia pelos
caminhos fora, no passo travado do cavalicoque, cata de porcos nos para
criao, pensava em porcos. Nem nas feiras, no auge do barulho, a imagem da
mulher lhe acudia. Era um feiro. Movia-o a nsia de feirar.
Hoje uma vinha, amanh um campo, depois uma tojeira ou um matareco, a
pouco e pouco o Frederico ia juntando as peas de um casal formoso. Parecia-
lhe, de cada vez que comprava uma propriedade, que aumentava a fora fsica. O
desaire sofrido na primeira cava ia vingando.
Toda a energia do Frederico se aguava no faro do dinheiro. Sabendo-o casado
com uma velha, algumas raparigas novas, vestidas de seda vegetal, diziam-lhe de
soslaio a sua graa quando o viam nas feiras. Sem lhes dizer vade-retro, sorriam-
lhe de vontade, mas o sorriso dele era indulgente, no conivente com o intuito das
moas.
A senhora Aninhas no acreditava na inocncia do Frederico. No compreendia
que rapaz to novo jejuasse tanto. Ela no acreditava. Sentia-se preterida por outra
ou outras mais novas do que ela. Chamava nomes feios a estas rivais imaginrias.
Cheirava a roupa do homem, virava-lhe os bolsos do avesso e inspeccionava-os
com mincia para surpreender qualquer pequena prova de culpa marital. Um dia
encontrou um plo preto aderente ao colete de pelcio do marido. Pegou no plo,
aproximou-o dos olhos do marido e exclamou:
Est aqui, ladro! Hei-de p-lo num relicrio at a dona aparecer. Quem ma
dera pilhar! Este cabelo de cigana. Gostas de ciganas, ham?
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mulher, isso no um cabelo. uma clina do nosso Mulato, explicou, com
vontade de rir, o Frederico.
Olha, mulher, continuou. O Mulato est na manjadoira. Chega-te a ele e vers
que lhe adita a clina.
A senhora Aninhas, meio sorridente, meio confusa, chegou-se a uma janela e
soprou o plo.
Assim ela varresse para sempre os zelos. Que no varria. Debalde defumava
a casa. Debalde mandava s bruxas a camisa do homem para anlise. As bruxas
davam amiga e que eram precisas rezas e esconjuros: terra de cemitrio, sal
derramado, sapo cozido, etc. Pobre Aninhas! Cumpria risca a receita das bruxas.
Debalde! Debalde! O seu corao no se aquietava.
Moeu dinheiro a senhora Aninhas para conseguir o apego carnal do Frederico.
Embora... Foi contraproducente esse dispndio. Ele, que a princpio lhe tolerava
os cimes, a pouco e pouco os aborreceu. Tanto os aborreceu, que os repeliu certa
noite com meia dzia de socos vibrados no rosto velho da senhora Aninhas. Da
por diante, deixou de dormir com ela. Passou a dormir numa tarimba, na loja do
Mulato, por cima da manjadoira.
A casa do Frederico ressentia-se desta desavena. Casa que fora limpa antes de
a senhora Aninhas se casar e durante anos depois do casamento, deixou de ser casa
para ser montureira. Na corte, os bcoros, deitados em ms camas, emagreciam
antes de ser vendidos, mngua de refeies pontuais. Cortava o corao ouvi-los
grunhir de fome.
O Frederico, homem que fora casto e trabalhador, amoleceu no negcio e
deixou-se seduzir pelas moas que rondavam as feiras com o corpo metido em
seda vegetal. Emagreceu como os bcoros. Perdeu o apetite.
A senhora Aninhas chorava do corao a magreza do marido. De noite, no
dormia. Espreitava-o da janela do quarto para ver se ele saa da cavalaria ou
se metia dentro alguma marafona. Os desvarios do Frederico eram perpetrados
em Lamego, na Rgua e em Vila Real, durante as feiras. No tinha pacto com
vizinha.
Em vo a senhora Aninhas espreitava o Frederico. Nunca o apanhou com a
boca na botija, como ela dizia. Uma manh porm, da janela do quarto, viu-o
cavalgar e partir para uma feira. Responsou-o a Santo Antnio como de costume.
Alongou os olhos no rasto do marido. Ps-se a chorar. Depois olhou indiferente
para umas mulheres que passavam debaixo da janela. Provavelmente, iam tambm
feira. Deix-las ir... L marchava, a rabo delas, sozinho como sempre, o sapateiro
da terra. Amigo de passear, ia vila por cinco ris de nada. s vezes ia comprar
um novelo de o. Outras vezes, ia comprar meio quilo de sola. No tinha quem lho
comprasse? Farto fosse ele de passear neste mundo e no outro. Atrs do sapateiro,
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caminhava uma mulher de idade, com o perico do cabelo erecto debaixo de uma
mantilha rota. Era a Brtola alcoviteira. Ao lado da Brtola, a olhar para o cho,
ia muito melada a Candidinha beata, rapariga linda e bem feita, mas triste como
a noite. Que ia ela fazer ao lado de semelhante coira? No a enojava a sombra de
uma coruja? Qual enojava? Olhou a furto para a cavalaria do Mulato, coseu-se
com a companheira e l seguiram ambas por ali abaixo. Ter com quem? No peito
da senhora Aninhas, deu-lhe salto o corao. Tate! A sonsa da Candidinha falava
com o seu homem.
Ficou a cismar, sem comer nem beber, presa janela todo o santo dia. Ali cou
at o escurecer. Viu chegar o marido, passar diante da porta do sapateiro, com
um rolo de sola debaixo do brao, e, na cauda do cortejo que regressava aldeia,
a sonsa da Candidinha, pisando a sombra da desavergonhada Brtola. Como de
manh, a Candidinha relanceou os olhos loja do Mulato.
Presa janela sem comer nem beber, com o peito arfante contra os vidros, a
Senhora Aninhas, ali especada, assim passou a noite.
Rompia a manh quando saiu da janela. Tocou o sino s av-marias, rezou
pelas bentas almas. Deitou gua num alguidar e lavou a cara. Depois saiu
do quarto, entrou a uma pequena sala e abriu uma gaveta. Fechou-a outra
vez e fugiu para a rua pelas traseiras da casa. Fez isto to subtil, que nem o
marido nem os porcos deram f.
Caminhou para a aldeia. Entrou numa rua estreita, deu meia dzia de passos
e logo se esbarrou com a Candidinha, que ia para a missa. Nem bons dias, nem
boas tardes. Levantou a mo direita, que levava escondida debaixo do avental.
luz matutina, com um brilho azul, cintilou uma navalha na mo da senhora
Aninhas. Foi um relmpago. A Candidinha caiu redonda, dizendo Jesus e deitando
um rio de sangue pelo lado esquerdo do peito. Sangrada, cou branca como uma
aucena.
Quando prenderam a senhora Aninhas, quando a levaram presena do
administrador, quando o carcereiro rodou sobre ela a chave da enxovia, ningum
lhe ouviu um lamento, ningum lhe viu uma lgrima. Encarava as pessoas com
expresso alegre. Voava-lhe ao vento a cabeleira branca como um pendo de
vitria.
A senhora Aninhas foi condenada a pena maior. Ao ouvir ler a sentena,
deu uma grande risada. Recolheu cadeia, entre duas praas da Guarda, com a
cabeleira branca esvoaante como um pendo de vitria.
Com a justia, o homem arruinou a casa, j desfalcada antes do crime por amor
dos zelos da senhora Aninhas. No dia seguinte ao julgamento, o Frederico foi
cadeia visitara mulher. Mal que o viu, a velha atraiu-o s grades com palavras
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meigas. Ele aproximou-se conado e comovido, mas a senhora Aninhas, em vez
de lhe fazer festas, escarrou-lhe na cara e ainda por cima lhe chamou porco.
Chamou-lhe porco e riu-se como uma doida.
Quando o Frederico, de volta ao lar deserto, a p, que vendera o cavalo, se
queixou aos amigos de tanta desgraa junta, consolaram-no os amigos, dizendo:
Olha, Frederico. As velhas so o Diabo!
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JOS GOMES FERREIRA
(1900-)
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JOS RGIO
(1901-1969)
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OS TRS REINOS
Era uma vez um rei claro, que tinha um reino: o reino do rei. Alm disso,
o rei tinha dois lhos gmeos. A me-rainha morrera para os dar luz. Importa
saber que esse era o reino do rei, e que os dois lhos do rei eram gmeos. Desde j,
porm, convm acrescentar que o rei tinha ainda um lho adoptivo, ou coisa que o
valha. Tambm a me deste morrera, j viva, deixando fama de um pouco ligeira
de costumes (no demais) e muito formosa. O marido fora um dos cortesos
favoritos do rei. Toda a gente, pois, achou bonito que o pequeno se criasse
no palcio, brincando familiarmente com os prncipes, e recebendo educao
quase igual sua. Toda a gente, sim, achou bonito! quase toda a gente. Mas,
associando vrios factos, muito boca pequena murmuravam os maledicentes
que no era s bonito como compreensvel, natural... Adiante se esclarecer este
caso. Evidentemente se torna que, dos dois prncipes gmeos, um havia de ser
considerado mais velho, coisa que pertencia aos fsicos determinar ou, como
quer que fosse, com mais direitos. Claro que seria esse o herdeiro do trono da
coroa, do ceptro, do ttulo de Majestade.
O tempo foi passando, e os dois irmos crescendo. Vieram os melhores sbios
indgenas, e at estrangeiros, para os educar. Do mesmo passo educavam o lho
adoptivo, que, como natural, tambm ia crescendo.
Ao herdeiro do trono eram dispensados cuidados especiais, porque reinar no
coisa fcil; nem de fcil ensinamento ou aprendizagem. Felizmente, o jovem
prncipe revelava aptides de excepo. Todos os Mestres contavam ao rei a
sua paixo pelos livros e a sofreguido da sua curiosidade. Mesmo nas horas
de recreio o prncipe se recreava folheando os cartapcios de pergaminho; e a
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sua cabea loira dobrava sobre os alfarrbios to amorosamente como sobre
um seio. Quando tal no sucedia, caa o prncipe numa espcie de alheamento,
ou parecia mergulhar em abstraces, meditaes, cogitaes talvez no muito
prprias dos seus verdes anos. Todos os Mestres? Mas no: O Mestre de esgrima,
o de equitao e o de dana eram mais reservados nos seus louvores.
Por esse tempo, o velho rei decidiu rmar um tratado de amizade com o rei do
reino vizinho. Longos anos se haviam guerreado. Agora, estavam ambos velhos.
A proximidade da sepultura restringe as ambies e faz embotar os impulsos
blicos. Nesse tratado cou assente que a princesa real do tal reino vizinho casaria
com o sbio prncipe. Ora a princesa noiva era feia, triste, cega dum olho, e
at j falara em se meter freira. Todos lamentaram a sorte do jovem prncipe
assim sacricado a razes de Estado. O prprio pai algoz o lamentava. Por m,
todos sorriram maliciosamente. Na corte da noiva feia, triste, cega dum olho e
mstica, havia donzelas e donas muito belas, de que falavam com entusiasmo
os embaixadores. Homem experimentado, El-Rei sorriu tambm e deixou de
lamentar o lho.
S o jovem prncipe parecia indiferente ao que se passava: Era como se nada
daquilo houvesse de ser com ele. A sua cabea loira pendia sobre os alfarrbios
to amorosamente como sobre um seio. Quando se levantava dos alfarrbios,
era para olhar no as estrelas da terra, mas as que cintilam demasiado longe.
Finalmente, deu em fechar-se na sua cmara. Dizia-se que andava a escrever um
grande livro. E saa de l com olhos de cego, um ar quase de esttua, um sorriso
alheio, feliz, idiota.
A pedido do rei, um dos seus Mestres ousou, um dia, aconselh-lo: Sua Alteza
no devia abusar do seu grande amor pelos livros. Decerto muito ensinam os
livros; mas o trato dos homens tambm; tambm as experincias pessoais e vivas.
Alis, quase perigava a sade de Sua Alteza nessa vida sem ar que Sua Alteza
levava. Convinha que Sua Alteza se prendesse mais aos costumes da corte, aos
jogos e folguedos prprios da sua idade, aos acontecimentos do reino que havia
de governar. Nisso tomasse exemplo em seu irmo; at naquele que, no sendo
seu irmo, mais ou menos fora educado como tal, e to ladino se mostrava na
curiosidade por tudo que sua volta decorria... O moo prncipe ouvia-o como
se o no ouvisse, tando-o, sem o ver, com os seus esplndidos olhos de cego.
Nesse mesmo dia, ao m da tarde, estava-se mesa, era na rica sala de jantar.
O Mestre caiu na imprudncia de uma breve aluso ao que de manh, dissera
ao seu educando. Ento, o prncipe herdeiro levantou-se e respondeu: O meu
reino no deste mundo. Lera isto, num livro que fora de sua me. Todos
caram primeiro atnitos, depois constrangidos. O rei nem repetiu os seus pratos
favoritos. Tentou-se falar doutras coisas. E, no dia seguinte, o jovem prncipe
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herdeiro apareceu morto. Envenenara-se com ores perigosas que havia na estufa.
Estava nu, morria virgem, e tinha sobre o peito o livro que terminara essa noite.
Mais tarde se viu que era um grande livro.
Claro que houve gritos, espantos, choros, exquias magncas, exposio de
grandes veludos negros e gales de oiro. A noiva do morto sempre se meteu
monja. Era o que tinha a fazer! comentou o seu ex-futuro cunhado Com aquele
olho vesgo... E comeou ele, o irmo gmeo do morto, a ser preparado para o
difcil ofcio de reinar. No, no empalidecia este sobre alfarrbios de pergaminho!
Aos catorze anos, j comprometera uma nobre donzela da corte. As formosas
donas um pouco ligeiras de costumes (no demais), s as no comprometia por
j estarem comprometidas: pelo menos, com os respectivos maridos; pelo menos.
Morrer virgem no era com este. Como para a sua pessoa se haviam transferido,
agora, aquelas particulares atenes que sempre se xam sobre o herdeiro dum
trono, at certos pormenores da sua infncia eram agora recordados, repetidos
com sorridente complacncia: Que, por exemplo, fugia para os jardins nos dias
de chuva; e l davam com ele descalo, patinhando nas poas, ou estendido na
relva, a apanhar a gua do cu. Ou que se misturava com os rapazes da rua
para ir aos ninhos, ou jogar pedrada. Agora, perdia-se por caadas. Bailava to
bem que nem parecia um prncipe. Conversava familiarmente com os pajens, os
criados, os viles. Certas noites, escapulia-se disfarado para ir correr aventuras.
s vezes, fazia-se jardineiro: podava roseiras cantando canes da arraia mida
(nem sempre muito decentes) e at chegava a cavar com uma sachola! Dava
esmola aos mendigos por sua prpria mo. Duma vez, trouxera s costas um
miservel que achara desfalecido no caminho. Era moreno, gil, tinha bons
msculos, um esplndido apetite. E ningum como ele para divertir as damas com
histrias, anedotas, intrigas, mentiras, fantasias, e belisces socapa.
Os seus Mestres resolveram lim-lo, pod-lo como fazia ele s roseiras.
Compenetrado do seu papel de futuro rei, deixar-se-ia fazer um rei como se
quer. Todos diziam: Desta vez, temos homem! Pelo contraste, um certo d
humilhante recaa sobre a memria do irmo suicida...
O prncipe comeou a apurar a sua educao intelectual; e, felizmente, o novo
herdeiro revelava tambm aptides de excepo. Todos os Mestres contavam ao
rei a sua paixo pelas coisas e a viveza dos seus pontos de vista. Todos os Mestres?
Mas no: O Mestre de lnguas mortas, o de matemticas e o de protocolo eram
mais reservados nos seus louvores.
Por esse tempo, o velho rei decidiu fazer jurar seu lho herdeiro do trono.
Estava cansado, e sentia que a vida se lhe ia apagando. Mas, durante as cerimnias,
o prncipe herdeiro teve excentricidades, liberdades inslitas, sadas de humor que
chegaram a provocar o riso na ilustre assembleia, pouco dignas da solenidade
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do acto. De modo que, a pedido do rei, um dos seus Mestres se atreveu a
aconselh-lo: Sua Alteza no devia abusar da originalidade de seus espritos.
Atitudes h do entendimento, como formas de conduta, porventura apreciveis
em um qualquer; mas nem sempre convenientes num prncipe real. Urgia que Sua
Alteza renunciasse a dadas particularidades do seu temperamento, em ateno
ao alto papel que fora Deus servido distribuir-lhe... O prncipe ouvia-o sem nada
dizer. A expresso do seu rosto que era ambgua, como respirando uma ironia
que nenhum dos seus traos acusava. Nesse mesmo dia, ao m da tarde, estava-se
mesa, era na rica sala de jantar. O mesmo Mestre falava; embora subtil e
indirectamente, continuava a morigerar seu ilustre aluno. Ento, o prncipe real
ergueu-se e respondeu: O meu reino deste mundo. No lera isto em parte
alguma. Todos caram sem compreender, e pouco vontade. Tratou-se de coisas
vrias, com uma naturalidade ngida. O rei ergueu-se pouco depois. E, no dia
seguinte, o jovem prncipe herdeiro tinha desaparecido do palcio. Em vo se
zeram as mais diligentes e minuciosas inculcas por todo o reino. Correu mais
tarde que fugira numa carroa de saltimbancos nmadas.
Claro que houve consternao geral. O rei caiu de cama; j todos temiam
que no resistisse a este novo grande golpe. Ele que, durante tantos anos,
habilissimamente retivera nas mos a governao do seu reino to policiado, to
submetido, to dirigido, agora se via sem herdeiro natural que lhe sucedesse, e lhe
continuasse a obra. Dois lhos legtimos tivera: gmeos e to diferentes, senhores
de extraordinrios dons. Ambos como que o haviam renegado, renunciando
herana para que os preparara. E agora j no seu reino to disciplinado
fermentavam pequenos focos de anarquia, ainda pequenos mas que poderiam
alastrar. J as massas pressentiam a senilidade do pulso que to energicamente as
havia refreado.
Neste desconsolo, perdidos os seus dois lhos legtimos, ainda foi o tal
adoptivo que principiou a fazer-lhe companhia. J quase o no podia dispensar o
rei. Tambm o moo parecia no se poder afastar do seu leito. Sempre que lhe
era permitido falar, El-Rei conversava com ele. Coisa interessante!, nessas
prticas achava grande prazer. Como se disse, recebera o moo instruo idntica
dos prncipes, tendo sido educados quase no mesmo p. Em certos assuntos,
porm, que muito eram da especialidade do rei, mostrava uma curiosidade que
nenhum dos prncipes mostrara. Na histria poltica do reino, por exemplo; na sua
geograa humana; nas suas actuais relaes com o estrangeiro; na discusso das
suas Leis, etc. E a inteligncia que no tratamento destas questes manifestava
ridas, como geralmente so, para jovens por atrevimento que seja arm-lo,
no cava atrs da que noutras haviam manifestado os prncipes.
Ora, desaparecidos os dois herdeiros naturais do trono, chegado El-Rei ao
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ltimo quartel da vida, vrios pretendentes ao mesmo disputavam entre si seus
direitos. J, no palcio, fervia a intriga na sombra. J os pretendentes e partidrios
rivais se falavam com o sorriso amarelo nos lbios, o verdete do dio nos coraes.
Um ponto nico havia, em que todos se entendiam: a malquerena quele moo
que to visivelmente seduzia o velho rei. Pelos meios de que dispunha cada um,
cada um procurava desacreditar no esprito do velho rei o seu jovem amigo.
Decerto no passava isto despercebido do jovem. E o resultado foi no ser este,
mas eles, que eram pessoas da famlia real, quem o rei afastou da sua cmara,
at do seu pao. Por maquinaes do jovem? Sustentavam os escorraados que
sim! e espumavam de raiva e juravam tremendas vinganas futuras, atribuindo
quele moo uma to diablica intuio na intriga que suplantava toda e qualquer
experincia.
A ser isto verdade, poderiam quaisquer manejos do moo passar
incompreendidos do seu protector? O diabo sabe muito porque velho; e a
debilidade fsica do rei no se manifestava mentalmente. Dado o que depois
se passou, poder-se- admitir que a velha raposa astuta (como depois, lhe
chamavam os seus parentes escorraados) at apreciara o engenho com que o
moo ia tentando exautorar, junto do seu real amigo, aqueles grandes senhores
que, por seu turno, o procuravam desprestigiar a ele.
Ora o que depois se passou, foi o seguinte: Uma tarde, ao m da tarde, estavam
reunidos na cmara real os importantes da corte. O rei para a os convocara,
pois h algum tempo dava grandes sinais de melhoras. (Ainda no desta!
lamentavam os seus parentes tornados seus inimigos). E diante de todos, que
estavam sumamente intrigados, se dirigiu o rei ao seu jovem protegido, dizendo:
Tive dois lhos legtimos, que um aps outro sonhei me sucedessem. O reino
dum no era deste mundo. O do outro era-o por demais. Tu, qual o teu reino?
Um silncio pnico se fez, pois todos achavam estranhssima esta cena. Talvez o
moo hesitasse um momento; no mais que um momento. Logo respondeu: Que
reino pode ser o meu seno o vosso? Ento o rei chamou-o a si, apertou a sua
cabea contra o peito. Como j no podia fugir sensibilidade dos velhos, teve de
fazer um grande esforo para no soluar. Mais tarde declarou que sempre esse
fora, secretamente, o mais amado dos seus lhos, embora lho natural; que esse
ia ser perlhado, jurado herdeiro do trono; e que sem demora ele, rei, resignaria
no lho o poder real, pois no s estava cansado, como temia ver-se constrangido
a fazer por fora o que desde j faria de vontade...
Isto disse ele sorrindo. Olhava complacentemente o lho. Impossvel, porm
destrinar at que ponto no seu esprito de velha raposa astuta, esse conhecedor
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dos homens brincava ou no. E assim se disse, assim se fez. De nada valeram
as conspiraes dos pretendentes despeitados. Com a satisfao de ter um digno
sucessor para o seu reino, o velho rei restabeleceu-se, e ainda pde viver alguns
anos. Morreu de muito avanada idade. Laus Deo.
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VITORINO NEMSIO
(1901-1978)
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MAU AGOIRO
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JOS RODRIGUES MIGUIS
(1901-1980)
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O VIAJANTE CLANDESTINO
Nesse ano hoje to distante no tempo e nos usos dos homens, que por vezes
julgamos viver noutro mundo o Dezembro correu muito menos frio do que
habitualmente ao longo da costa do Atlntico: nevoento e chuvoso, e morno at,
como se a corrente, vinda l de baixo, do Golfo, antes de se alongar a caminho da
Europa, tivesse querido acercar-se do litoral para o aquecer e abrigar melhor das
guas glidas que descem da Gronelndia.
O Natal estava porta, e a neve sem chegar. Ora, um Natal sem neve nem
frio no festa nem nada. No rangem trens nas encostas e caminhos, no se
vem homens de neve com um chapu velho na cabea e o cachimbo entre os
dentes imaginrios, no h batalhas de bolas de neve, e nos tanques e lagos, que
no gelaram, no pode a gente patinar de mos dadas, com as faces vermelhas, o
cabelo solto, e o cachecol a esvoaar ao vento; no h gritos de jbilo e susto no
ar cristalino, nem o tinir das guizalhadas
Jingle bells, Jingle bells,
Jingle all the way...
que enche as noites estreladas dum eco de tempos lendrios. Nos relvados, em
frente das moradias, as rvores de Natal no espalham na alvura fofa do cho os
reexos silenciosos e multicores das suas luminrias, a sugerir calor, intimidade
e hospitalidade. A natureza escura e molhada, a nvoa e a chuva, os arvoredos
hirtos e desnudadas, tudo amortece o resplendor das casas, e abafa os repiques
dos campanrios, que de outro modo encheriam a vtrea sonoridade da noite.
Atravs das janelas irrompem no escuro os doirados clares da festa; l dentro,
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h sempre o mesmo entusiasmo e a mesma gula pelos presentes do Santa Klaus,
empilhados em torno da rvore fulgurante de luzes, nas suas embalagens de
luxo e fantasia. E o viajante solitrio e sem famlia que passa na estrada pode
entrever com melancolia os pares que danam, ou os rostos saciados e felizes
em volta da mesa bem guarnecida, a que preside um gordo e tostado peru. O
Natal ca domstico e recolhido, e perde a alegria pag que ecoa de risos e apelos
juvenis nos bosques e nos vales. No, um Natal sem neve, um Natal que no seja
branco, no festa nem nada: parece um Thanksgiving que se atrasou no
calendrio.
Ora isto deu-se (ou melhor, comeou) em Baltimore, que uma cidade algo
sombria, pacata e ordeira, embora muito menos triste do que a visionou o nosso
Poeta cidade triste entre as cidades, Baltimore! Ou talvez os seus sinos
tenham esquecido a rima do sinistro Never more, never more, que ele julgou ouvi-
los clamar, ecoando o Poe. preciso sair do centro, e percorrer os subrbios,
para se encontrar a atmosfera prpria da estao festiva. Quanto aos cais, so
soturnos, caticos, confusos, e aqui e alm ameaam runa os hangares e barraces
grisalhos, como velhos pardieiros ou igrejas rsticas abandonadas. So tristes os
portos decadentes, sobretudo de noite e nas pocas de crise! Mas respira-se uma
poesia sugestiva nestes molhes de estacaria luminosa e negra, onde as mars,
cansadas e oleosas, vm bater de manso o ritmo da sua cano de amor terra. H
cidades que parecem viver na intimidade dos dramas e segredos do mar; onde este
est sempre presente, em convvio com os homens. E nada fala tanto ao corao
do errante solitrio, como este apelo eterno do mar, junto aos cais.
Foi a um destes molhes meio esbarrondados que o navio atracou pela manh de
vinte e quatro de Dezembro, vindo do mar aberto e azul, da frica e dos trpicos.
Era um velho cargueiro esgalgado, de alta chamin enfarruscada, com grandes
remendos no casco a desfazer-se em ferrugem, e a linha de utuao muitos
palmos acima das ondas: uma dessas runas obscuras que singram vagarosamente
os sete mares do mundo, coxeando em busca de fregus, com roupas mal lavadas a
enxugar pelos cordames, e alguns marujos esqulidos acotovelados s amuradas,
a olhar a terra estranha. Um navio, em suma, que podia ter inspirado um conto
triste a Joseph Conrad ou a Pierre Mac Orlan.
A sua carga era pobre e variada: leo de palma, cocos, bananas verdes em
comeo de putrefaco, amendoim, duas dzias de fardos de algodo, e um
macaco mais ou menos domesticado, que adoecera em viagem e gemia numa
cama de trapos, com febre, queixoso da invernia.
Tambm vinha a bordo um passageiro, um s, de que no rezavam os livros
de navegao e que no pagara a passagem, entregue ao cuidado cmplice de
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dois marinheiros: escondido nas entranhas gemebundas do calhambeque, num
cubculo sem ar nem luz, junto das carvoeiras, na companhia das ratazanas. Quem
era e donde vinha ele? Ah, mas so perguntas, essas, que se no fazem nunca a
um destes homens magros, de rosto antes do tempo engelhado pelos trabalhos,
as privaes e os ventos forasteiros, com os olhos negros a luzir sombriamente
de medo e desconana no fundo das rbitas encovadas. Viria de Marrocos,
valhacouto de tantos desgraados? das Ilhas Perfumadas? da Costa dfrica?
Ningum o diria, nem que o soubesse, e ele menos que ningum. A ilegalidade
tem as suas leis, a sua moral e as suas combines, e o silncio a regra de ouro
dos pobres deste mundo. Quem o pusera a bordo? Quem o mantinha e sustentava
ali, durante a noite, em segredo, com os restos miserveis do rancho da tripulao
meio andrajosa? Mistrio, mistrio! A solidariedade outra lei sagrada entre os
homens que vivem margem da vida.
Tinha embarcado pela calada da noite nalgum porto desolado das fricas
ou dos Arquiplagos, e tudo. Algum o tinha guiado em silncio no labirinto
ressonante do cargueiro, e ali o deixara como um rato de poro. E ali, na sombra
sufocante, tinha transposto as claridades sem limites do oceano tropical, para dar
entrada no Inverno americano.
O Maria Alberta chamemos-lhe assim, escondendo-lhe o nome verdadeiro
e a matrcula cumpridas as formalidades da lei, despejou no cais deserto
e cinzento a escassa mercadoria. Os guindastes e cabrestantes rangeram, as
roldanas guincharam nos cadernais, os botals descreveram no ar bao a sua
incerta acrobacia, e os fardos, caixotes e engradados deram entrada nos hangares
varridos de ventania. A noite chegou cedo, e tudo recaiu no silncio. Os guardas e
funcionrios do cais foram-se quase todos embora, e o Maria Alberta sumiu-se
no esquecimento e na obscuridade, como um cavalo cansado e lazarento ao fundo
duma estrebaria.
Era a vspera de Natal, e cada qual procurou o seu conchego, a famlia
se a tinha, ou o recanto enfumarado dum bar de tectos baixos, com mulheres
esgrouvinhadas e descoloridas sob a maquilhagem, a beberricar whisky de m raa
e a meter moedas num juke-box trepidante de melodias quentes e ensolaradas, de
Califrnias e coqueirais que s existem
no sonho e no celulide. Para os homens que rastejam superfcie do globo
e da vida, de porto em porto como se ptria nenhuma os aceitasse, no h outro
refgio seno esse: e no m, uma cama de aluguer e uns braos de emprstimo.
O silncio escorreu sobre os molhes e hangares, raras luzes brilhavam, poucas
conseguiam vencer a espessura da nvoa a desfazer-se em chuva. Os mastros dos
cargueiros atracados em feixes perdiam-se no cu encarvoado. Mas a neblina cria
sempre, em volta dos portos, um manto de abrigo e clandestinidade.
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O capito desembarcou paisana, e foi sua vida: tinha uns negcios quaisquer
a tratar em Filadla. Atrs dele foi-se o imediato, depois alguns ociais e
pilotos, o enfermeiro, e at marinheiros. Alguns deles levavam uma garrata duma
aguardente intragvel, a que chamavam brandy, com que esperavam lubricar a
boa vontade dos funcionrios da Alfndega, de modo a passarem sem a apalpao
da ordem nem a inspeco aos embrulhos.
Os funcionrios, quase todos irlandeses, nutridos, bem pagos e agasalhados
nos seus quentes e macios uniformes, olhavam com um misto de d e espanto ou
ironia aqueles pobres martimos magrizelas e mal barbeados, que tiritavam dentro
das farpelas de ganga ou cotim desbotado, com remendos, raros deles envergando
um jaqueto razoavelmente coado, e com a gorra de malha ou a boina basca na
cabea. Que diacho de candonga que eles podiam transportar? Nenhum trazia
com certeza ouro, diamantes ou coca.... Aceitavam a garrata e deixavam-nos
passar: Merry Christmas! Depois voltavam ao seu pquer, ao cachimbo e ao
copo de bourbon. Os marujos sorriam, humildes, esfregavam as mos enregeladas,
e desapareciam no escuro, com as calas enrodilhadas nas canelas, convencidos de
que tinham ludibriado a vigilncia do Departamento do Tesouro. E que iam eles
fazer na terra dos dlares, em noite de Natal, com as suas pobres roupas e os seus
magros bolsos de embarcadios?
O passageiro tinha subido, j noite fechada, das entranhas da carvoeira, para
se esconder numa clarabia do convs, sob a qual havia espao para um homem
se deitar, como num esquife. (J ali tinham viajado outros, durante dias e at
semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte os
cordames eram estendais de gelo! com as roupinhas leves em que vinha do
Brasil, cara tolhido para o resto dos seus dias.) No comia desde que, manh
cedo, lhe tinham levado o caf amargoso e a bucha do po; a fome roa-o, e depois
do calor abafante das caldeiras, o frio hmido da noite inteiriou-o. Ali encaixado,
ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os
ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pr em
liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impacincia dele cresceu:
Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquec-lo, deix-lo a bordo
sozinho, metido naquela urna a morrer de fome e de frio?... Haveria diculdades
imprevistas ao seu desembarque?... A noite avanava com um vagar exasperante,
e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrara os
parcos haveres.
Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os pers dos barraces do porto, mais
longe fbricas, prdios, o claro mortio da cidade. Estava na Amrica,a dois
passos do trabalho e do po, a um salto do seu destino. E o corao batia-lhe de
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anseio. J tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo,
escondido e alimentado. Se havia mais algum por trs deles, isso no era da sua
conta. Restavam-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calas. Junto delas,
retinha na palma da mo suada um papel pudo, com um endereo, esse ponto
perdido na imensidade da Amrica desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para
l de Nova Iorque, em Long Island, a quantas lguas seria aquilo de Baltimore,
e quanto teria ele que palmilhar s cegas, para alcanar o seu destino?! (Se l
chegasse...) E uma data de nmeros, de portas e ruas, isso ele no entendia, no
entendia nada, no sabia patavina de ingls, s sabia que estava ali espera
que dispusessem dele, para comear vida nova, ou ento... Sozinho, diante do
desconhecido. No conhecia ningum, nesta terra envolta em noite e humidade.
Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imvel, impotente, com o corao do
tamanho dum feijo a zumbir-lhe no peito apertado.
Sonhava com a Amrica havia muitos anos. Vinha em busca dela como,
quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto um modo de falar)
tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses
porm eram felizes, no precisavam de passaporte, o mundo era ento um mistrio
aberto curiosidade e ambio de todos! Ele viajava escondido, embora no
buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braos, sabia pegar numa
enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro no andava agora aos pontaps,
quem caminhasse de olhos no cho ainda podia topar aqui e ali com algum penny
perdido assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanas dum alemo que da
Amrica voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo
Mundo ainda no tinha morrido no corao, ou seria no estmago?, dos homens.
Para alcan-lo tomara pelo caminho mais curto, que quase sempre o mais
arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de
m-morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmtico e claudicante.
O tempo correu e ele dormitou. De repente acordou sobressaltado, e
enclavinhou as mos no saco. Uma voz rouca segredava-lhe ao ouvido:
Salte c para fora, Seu Tom!
A clarabia estava levantada. Atirou com as pernas entanguidas para fora do
esquife, mas quando se quis pr em p elas recusaram-se a aguent-lo; doa-lhe a
barriga, tinha a bexiga a arrebentar, e uma sede de morte.
No me posso mexer!
O marujo murmurou qualquer coisa que ele no ouviu bem, uma praga com
certeza, e ps-se a esfregar-lhe com vigor as costas, as pernas e os braos.
Beba l um gole de cachaa. Aqui que vossemec no pode car. Veja se
se despacha, temos que aproveitar esta aberta, enquanto no anda nenhum guarda
no cais.
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Bebeu, sentiu um pouco de vida voltar-lhe aos membros, e pde enm andar.
Foi verter guas junto dum turco dos salva-vidas. O outro fumava, impaciente,
escondendo a brasa do cigarro na concha da mo morena. Pegue l uma bucha
pr viage. E agora tenha cautela, h?
Palpou o embrulho morno do farnel que o marujo lhe meteu na mo, e
encaminhou-se atrs dele para o castelo da popa em trevas. Tinham retirado a
prancha, mas nem que ela l estivesse: mesmo quela hora adiantada era perigoso
desembarcar a descoberto. O que ele tinha a fazer era transpor a amurada e descer
por um cabo da amarrao, como uma ratazana.
Chegara o momento difcil. Mas uma vez no cais, olho atrs olho adiante,
cosido com as sombras e as paredes, fazendo-se parte delas, era sumir-se no
desconhecido, e estava livre.
Meta o farnel no saco, homem. E pendure-o do pescoo, como que voc
quer descer assim? No tenha medo, agarre-se bem e ande pr frente.
Trocaram um aperto de mo. O claro frouxo da cidade, a distncia, enegrecia
mais, por contraste, as vizinhanas. Ajeitou a trouxa ao pescoo, e sentiu-se
plido. A que altura estariam do cais? O marujo segurou-o, ajudou-o a transpor a
amurada fria e molhada, e ele agarrou-se corda com fora. Ouviu em cima um
murmrio:
Boa sorte! V com Deus.
Ficou sozinho, encangonchado no grosso cabo, spero e encharcado. Alguns
metros abaixo dele, invisvel, era o cais, a terra rme, a liberdade, o po amassado
com o suor do seu rosto. Saberia alcan-lo? Coragem! Sim, mas tinha o com-
licena que no lhe cabia nele uma agulha. Era como se estivesse entre mar e
cu, com o Credo na boca por todo amparo. Devagar, com o saco pendurado
ao pescoo a embaraar-lhe os movimentos, e de pernas ensarilhadas, deixou-se
escorregar. A palma das mos ardia-lhe na aspereza do cabo. O peso do corpo
puxava-o para o lado inferior, mas ele era magro e l conseguiu resistir gravidade
e manter-se equilibrado a cavalo na amarra.
Diante dos olhos s tinha agora o casco negro do navio, que no conseguia
destar, como se a ele se quisesse prender pelo magnetismo da vista. A gua
clapotava contra a estacaria, que rangia brandamente. Aquela gua era agora o seu
terror, e talvez viesse a ser o seu tmulo. Se a olhasse podia-lhe dar uma vertigem,
e ento...
Pela posio e balano mais amplo do cabo percebeu que ia a meio caminho.
Mas nem podia olhar para trs, nem via um palmo adiante do nariz, alm
do negrume do casco. Deixou-se escorregar mais um pedao, com diculdade,
porque o cabo se aproximava da horizontal, e, segurando-se com rmeza, saltou
e agitou uma perna, procura do contacto com a terra. Mas esta devia estar
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ainda fora do seu alcance. Descansou um migalho. O suor escorria-lhe na cara e
no pescoo, encharcava-lhe as costas. Se agora casse, era verdadeiramente um
homem ao mar: ningum dava por isso, e que dessem de bordo ningum lhe
acudia. Nem do cais deserto. No dia seguinte, ou s Deus sabe quando, o cadver
seria pescado, meio rodo dos peixes e dos caranguejos, ou inchado e fedorento,
a escorrer gua e lodo. Se o fosse!, porque tambm podia ir pelo mar abaixo...
Seria mais um desaparecido, ou um cadver annimo, sem parentes, amigos nem
conhecidos que o viessem identicar e reclamar. Longe, a famlia, qual no
escrevera em dois anos, continuaria por mais algum tempo espera dele, ou
de notcias: mas acabaria por esquec-lo. De bordo ningum dava por nada, ou
calavam-se. Quanto aos destinatrios, l em cascos de rolha, que lhes importava?
Nem sequer o conheciam. O comentrio indiferente Aquilo, se calhar o homem
nem chegou a embarcar! seria todo o seu responso e epito. Era como se
nunca tivesse existido.
Impelido pelo sbito terror de no existir, escorregou mais, tornou a agitar a
perna, em vo. Agora o corpo, na horizontal, e a oscilar com a amarra, no podia
arrancar-se gravidade nem recobrar a verticalidade. Ainda que o p esbarrasse
na beira do molhe, como que ele ia soltar-se, dar uma reviravolta e um pulo, para
cair em p? Nem pensar em pendurar-se pelos braos: caria abaixo do nvel do
cais, e ento que no havia esperana. No ousava desenvencilhar-se da espia
que o prendia terra e vida, para se endireitar e dar um salto. Nem sequer podia
virar a cabea para avaliar a que altura estava. Mais alguns minutos, que tanto lhe
durariam as foras, e a queda era fatal.
Teve a clara viso do seu estado a boca negra da morte espera dele, em
baixo, como um tubaro insacivel e intimamente amaldioou a hora em que lhe
dera para se meter nestas andanas: se no era marujo, no sabia trepar uma corda
nem sabia nadar! Suspenso entre dois nadas.
Encolheu-se todo e, com um esforo desesperado, conseguiu deslizar mais
um pouco: o p tocou por m na beira do molhe, e um bafo de lume veio-lhe
dele, subiu-lhe os membros, reanimou-o como um calor de ressurreio. O cais,
molhado e escorregadio, estava ao seu alcance! Mas por baixo era ainda o abismo
de gua. Encavalitado na amarra, crispado e dorido, desembaraou a custo a outra
perna, e agitou-as ambas, procura de apoio. As solas delgadas patinavam na
viscosidade do madeiramento gasto, ou no rebordo de ao. Se tentasse rmar-se
nelas, podia escorregar, perder o suporte do cabo, e dar o mergulho denitivo. A
suar em bica, trmulo do esforo, cou com as pernas pendentes e imveis.
Voltar para cima, nem pensar nisso: j no tinha foras para marinhar, e que as
tivesse, a bordo no o deixariam entrar nem car. Agora era respeitar o contrato,
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e escapulir-se ou morrer. Como uma mosca teimosa, que se agita para escapar
armadilha, tornou a fazer esforos para se apoiar no cais, e soltou uma praga em
voz alta:
Oh rais ta parta a minha sorte!
Nesse instante sentiu que alguma coisa de duro, mo ou tenaz, o agarrava
com violncia pelos rins, dando-lhe a sensao dum ferro em brasa, e teve
este pensamento de renncia Estou catralado! Mas, curioso, recobrou
simultaneamente a calma e a esperana.
O que quer que fosse puxou por ele com fora, e ele deixou-se levar
passivamente, at que, com o cordo do saco a estrafeg-lo, conseguiu endireitar o
corpo e rmar-se nas pernas bambas. Aquela mo de ferro, invisvel, arrepanhava-
lhe as roupas e as carnes, macerando-o e magoando-o. Depois, com um safano
supremo, quase o ergueu do cho e f-lo dar uma reviravolta.
Levantou os olhos e viu diante de si um grande vulto negro, um capote de
oleado reluzente de chuva, uma farda com botes de metal e uma chapa cor de
prata. O agente da polcia inclinou para ele o rosto vermelho e robusto:
Stowaway, eh? e sacudiu-o com energia, como se o quisesse despertar do
torpor. Passageiro clandestino? repetiu, e riu-se. You speak English?
Que pode um homem dizer em tais circunstncias? Tinham-lhe recomendado:
Haja o que houver, no abra bico. Faa-se de trouxa. Mas com aquela mo
brutal no se brincava, e ele respondeu:
Eu no espique inglish, eu no espique!
O agente largou uma risada de gozo e tornou a sacudi-lo:
No eespeek! No eespeek!
Tinha um hlito quente, de tabaco e whisky. Na fria humidade de Dezembro,
um homem precisa de alguma coisa que lhe aquea as entranhas, para andar assim
de ronda pelos cais desertos, entregue aos seus pensamentos. Depois, na noite de
festa, de porta em porta ao longo das tabernas e saloons da borda-dgua Merry
Christmas, Mack! h sempre quem tenha uma franqueza com a Autoridade, e
a gente no de pau, nem pode fazer uma desfeita, recusar... A verdade que
um trago ou dois dispem muitas vezes um homem a ser mais tolerante com as
fraquezas humanas.
Ficaram assim um pedao, frente a frente, ele espera, a contar os minutos de
vida, e o agente talvez a dar balano situao, a macerar-lhe devagar o ombro
magro na tenaz de ferro da manpula, e repetindo a meia-voz:
No eespeek, no eespeek...
Pequeno como um murganho, a tremer de medo e frio na fatiota leve, espera
da sentena quem sabe at se o guarda, enraivecido, no lhe ia dar um empurro,
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atir-lo gua? o passageiro clandestino olhava xamente os botes da farda, o
cassetete comprido e polido.
O agente disse ainda qualquer coisa que ele no entendeu, e apertou-lhe os
ombros com mais fora, a tactear-lhe os ossos, talvez a ensaiar esmagar-lhos pelo
simples prazer de exercer foras naquela fragilidade.
Depois, de repente, obrigou-o a dar meia volta, de cara terra, apoiou-lhe a
mo enorme e espalmada nas costas, e empurrou-o:
Now run!
No precisou de entender, e correu: correu sem saber aonde ia, nem se o guarda
lhe ia dar um tiro pelas costas como a um ladro das docas que desobedece
ordem de Alto!, ou se realmente o mandava embora, livre, sem o prender nem
o forar a regressar a bordo. Correu s cegas, a mastigar palavras sem tom nem
som, a esbarrar em paredes, a trepar em caixotes, em fardos, em cordames, em
mquinas, confuso e perdido, incapaz de encontrar a sada daquele labirinto.
Foi quando a voz do polcia lhe atirou distncia, pela rectaguarda:
Hey! Merry Christmas!...
O clandestino estacou, compreendendo vagamente, e s nesse instante se
lembrou que era Noite de Natal. Ento com a garganta apertada, a rir e a chorar,
transps umas calhas ferrovirias, pulou uma vedao de rede de arame, e deitou
a correr em campo aberto, nas trevas.
De longe, o claro agora mais vivo da cidade guiava-lhe os passos, como o
reexo de misteriosa estrela oculta, ou de lareira acesa, chamando-o consoada.
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DOMINGOS MONTEIRO
(1903-1980)
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RESSURREIO
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BRANQUINHO DA FONSECA
(1905-1974)
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HISTRIAS DA MEIA-NOITE
... Serra negra, que onde no pedra urze e tojo... Tem pouca roupa como
os pobres... E no Vero vm os sis queimar-lhe as costas, no Inverno, as pedras,
que so os ossos, estalam do gelo e o vento canta a moliana a quem no se ativer
a uma gabela de lanhio. Hoje est branca dum camado de geada, que d gosto a
gente chegar-se aqui fogueira que ferve o caldo. Os lobos l andam, a esta hora,
batedores de ladeiras, at se desenganarem e descerem aos povoados onde agucem
o dente... Est a fazer seis anos, dormi eu na toca dum castanheiro...
O menino quer freiras? interrompia a criada velha, farta daquelas bazas.
Pedro, o lho dos patres, com os seus catorze anos, tinha j uns modos de
homenzinho e dava pouca conana a velhas tontas. Para no interromper a treta
do Joo Meco, s abanou com a cabea, que sim. E a velhota, com um punhado de
milho na mo, limpou da cinza o granito quente e atirou para a pedra requeimada
os gros que iam abrir em or branca.
Joo Meco no perdeu o o ao discurso e voltou histria:
O patro disse-me assim: amanh vais ao pinhal da Sancha e marcas o
desbaste. Ainda a madrugada no apontava nas tralhiscas, saltei da cama, peguei
da roadoira e ala, fajardo!
L ests tu a rasgar baeta!... disse o moo dos bois, a entrar na cozinha.
No estou, no. H quem seja mais gabarola do que eu...
Essa no pra mim. E olha que trago que contar: vi agora um fantasma. O
rapaz da Ilda no podia ser, que o namoro acabou...
A rapariga olhou-o com desprezo e baixou-se para apanhar dois gros de milho
que tinham estoirado. Mas a velha comentou:
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No venhas j com invenes de tolo...
Eu?... (E acrescentou com ironia:) No h fantasmas e almas do outro
mundo? Ento a mo cortada do Janurio?
Pois sim... Mete-te com a tua vida.
Nega que contou?
Nego-te a ti, diabo negro.
Joo Meco, interrompido em sua prosa, cortou a discusso:
Vocs no me do licena que fale?
Espera a que no abafas.
E voltando-se para a velha, o moo dos bois, com o mesmo sorriso de troa,
intimou:
E a alma do Elias Gordo?
Nem magro...
Eu lhes conto... O Janurio era um criado c de casa, antes de vocs. Ora uma
certa noite houve mister de ir ao moinho e ali a ti Leonor desaou uma mocita que
tambm c estava, para irem as duas com ele ao passeio. Estava uma noite negra,
que no se via um palmo frente do nariz. Iam passadas. Mas no queriam dar
parte de fracas. E o Janurio comea a mo-las com histrias da meia-noite... A
candeia no dava luz, e elas abraadas uma outra, de cambulhada, e a rirem pra
ngir... A lanterna, negra do fumo, alumiava cegos e s mexia sombras... E ele a
dizer que se tinha trazido a luz no era para ver o caminho, que o passava de olhos
fechados, mas para os lobisomens verem que era ele e fugirem a tempo. Neste
comenos iam a chegar ao moinho e comeam a ouvir um grande gemido, que elas
as duas caram com o sangue coalhado. O Janurio sabia o que era, mas fez-se
lzudo. H-de ser o eixo da m... Torceu com o peso da gua... Ou no ser?...
Nem bulia ponta de aragem e quando ele abre a porta do moinho vem de l de
dentro um sopro e apaga o raio da lanterna...
Foi mesmo verdade.
Ah! santinha! Quem diz que no? Eu estou a rir porque me rio s do que no
deve ser... Diz vossemec.
E digo.
Ento deixe rir... Pois apaga-se a lanterna e ali a ti Leonor d um grito e vai
para se abraar Gracinda. A gente no pode pensar que era o Janurio que se
queria abraar a alguma delas. O caso que a tal Gracinda tinha desaparecido
e no podia ter cado ao rio, que havia ali um muro. O Janurio viu o caso
mal parado e entrou no moinho para encher a taleiga. Nisto, a nossa ti Leonor
sente uma coisa a mexer-lhe nas pernas e desalvora aos gritos. Valeu o Janurio
segur-la, que ele segurava bem as raparigas, e explicar que era o co, o Piloto...
que nem ali estava...
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Pois no estava, no. Ri-te, que tambm h-de haver quem se ria de ti.
Pois h-de... Mas deixe contar, ah, santinha!... E ele l traz a ti Leonor pr
moinho, mais morta que viva. Mas mal ela entra, sente um puxo na saia. E o
Janurio a explicar que tinha sido entalada na m...
E tambm no foi verdade que ele saiu de l com a mo cortada cerce, que
toda a gente disse que s podia ter sido com um machado? E ao outro dia algum
viu na m sinal de sangue? Cala-te l! Deixa estar a verdade quieta onde ela est.
Valha-te o poder de Nosso Senhor Jesus Cristo...
A est que foram fantasmas ou almas do outro mundo. esta a sua
verdade?... Pois onde as houver, dessas almas, vou eu l e trago um saco delas. Ah,
tiazinha! Temer dos vivos, cants dos mortos!...
Joo Meco interrompeu, com seu ar de lsofo:
Eu no acredito em fantasmas... Mas h.
No acreditas, mas h? Como isso?
H coisas que a gente pode no acreditar, e hav-las...
Est boa, essa!
Horas do Diabo, isso h... Ento em certas noites, por essas serras, preciso
um homem ser afoito.
Quando se leva medo que elas acontecem.
certo. Quem anda de noite topa lobo... A quem o dizes. O fantasma da
Catraia do Maneta, j eu vi e no fugi. L torcer caminho por fantasmas, nunca
fui desses. Nem mais nem menos, oiam bem esta: Andava eu de boas conversas
com uma rapariga de Eirigo, quando, certa noite, o cu caiu desfeito em gua,
com um estrebuchar de vento que um homem blhava o vira-virou. Mas estava
com a tineta de ir e ia mesmo. Pancada feita vai abaixo. Daqui, so duas horas de
serra acima, por caminhos onde Cristo nunca passou. Mas fui. Era uma rosa duma
cachopa, que at nem tinha perdo se no fosse.
Ora eu, quando saio aos gambozinos, pego no marmeleiro, que a rvore bem
plantada quer a estaca ilharga. No bolso a sevilhana, e ala, que quem vier
encontra rme. Estava uma noite de breu, mais negra que a dos infernos. De
bacamarte no era o perigo, que quem mo quisesse apontar tinha de mo chegar ao
nariz a cheirar. Quando, ao descer pr rio, pelo meio do pinhal, sinto de repente,
por cima da cabea, o desabar duma carrada de mato. At me agachei pr cho,
Eh! valente!... E ao mesmo tempo olho para cima e vejo uma coisa branca a
passar-me ao chapu. Nem pensei no que fazia, j o varapau ia no ar, e sinto uma
pancada nas mos, que o porrete voou-me das unhas. Logo outra na cabea, que
co espojado no cho, l o que era torna a desabar pela rama dos pinheiros abaixo.
A vem ele. S podia ser o fantasma do Maneta. O mesmo alvejar do que fosse,
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at me fez vento cara. E percebo que era outro corujo que nem um carneiro.
Sabem o que z? Deixei-me car sentado, a rir de mim, que ainda o melhor que
a gente pode fazer em certas ocasies.
Est de ver que o pau saltou-me das mos porque arreei com ele num
pinheiro, onde logo marrei com a testa, que foi o murro que me tombou. Agora
juntem-lhe uma voz a chamar e a gemer na outra encosta, que era um borrego
que o Lambicas tinha perdido no monte, e a tm como elas se inventam. Se juro
que era coruja, juro e torno a jurar. No que visse o passarolo bem visto. Mas era.
E dizem que as corujas do azar! A mim, aquela, deu-me sorte... Ou que fosse
fantasma... Tanto monta.
Baza que tu s, Joo Meco!
Pois sou... Mas no te conto outra, porque ento no tinhas nome pra me
chamar.
Na mo de cortia, a velha oferecia as ores de neve, os gros de milho abertos
na pedra quente.
Pedro comeou a trinc-los sem desviar a ateno ta nas palavras do
narrador.
E histrias de franceses?... Sabes alguma?
Essas so como as das almas penadas. Conta-se sempre mais uma... O
menino h-de ir comigo mas ao rio, ao Poo de Ala-Perna, para me ajudar a
apanhar a caldeirinha de oiro, da moira encantada que est l no fundo.
Pedro, mudo de espanto, abanava com a cabea, que sim. Mas a velha cortou
o sonho:
No faa caso, menino.
Nem a ouvia. E Joo Meco, em sua alta fantasia, voava j fora de tiro
H-de estar numa caverna... O rio, ali, faz um poo que no tem fundo.
H quem o tenha sondado com cinco cordas de carro, sem lhe chegar ao m. J
l desci duas vezes amarrado com uma pedra ao cinto. Comecei a descer com
os olhos abertos, e primeiro s via as razes das rvores, como cobras negras, e
uns peixes pretos que andavam volta de mim. Depois, a gua, mais pra baixo,
comeou a ser verde e luminosa, com muitas luzes de cor de azul, amarelo, cor de
laranja, cor de violeta. E ento comearam a sair dos buracos uns peixes grandes,
uns brancos, outros encarnados, com uns olhos que deitavam lume ou seriam de
diamantes. As paredes do rio, a j eram de pedra negra, com rosas de prata, e a
mim parecia-me que, em vez de ir a descer, ia a subir uma montanha de rochedo,
com o sol a nascer l atrs, pois via-se uma grande claridade. E fui dar a uma gruta
que tinha na entrada uns degraus que s podiam ser de oiro, e a gruta por dentro
era toda de vidro e tinha estrelas a brilharem. Ia eu a entrar e estavam uns lindos
cabelos a ondear na gua, e uma mo a pente-los com um pente de oiro no.
92
Mas veio uma grande cobra que se me envolveu ao de roda do pescoo, e ento
dei um puxo na corda, para iarem para cima. Quando me tiraram da gua, j no
dava acordo, e tiveram-me morto, estendido na erva...
Est visto que tu nem com uma pedra ao pescoo...
Mas enquanto andava l por baixo, andava bem, como se respirasse o ar... E
ainda l voltei duma outra vez. Ento levei uma faca. Mas no vi nada. O menino
pode acreditar que nessa hora que eu tive medo. (E baixou a voz, como quem
confessa um segredo:) Era um escuro como se a gua se tivesse tornado em tinta,
e um frio, que sentia os ossos a estalarem.... H-de ser este Vero, quando as guas
estiverem mais nas, que hei-de l voltar...
E eu que te hei-de amarrar a pedra ao pescoo... prometeu o moo dos
bois.
Ao cinto emendou Pedro com ingenuidade.
menino, para ele melhor ao pescoo. E uma m do moinho.
Vocs acreditam em almas do outro mundo e no acreditam em moiros, que
foi um povo que j houve antigamente? A est como o vosso juzo.
Tanto sei que h moiras e moiros, que sei que tu s um, e no te deitam a
cabea num cepo pr cortarem e porem-te l outra melhor...
Mas tenho palavreado pra te vender numa feira...
L isso s capaz: de enganar algum... resmunga a velha.
A si j no, ti Leonor.
Brinca com as da tua idade.
Brincar? No que elas querem-me logo a srio. Quanto lhe devo do
conselho?
Tenho mais pra te dar. Pagas no m. E toca a andar, que so horas. Quero
deixar a fogueira apagada. Ests a desaar uma criana pra ir pr rio com cordas,
procura das caldeirinhas de oiro, e no queres que te chamem ao menos maluco?
Eu quero... Se fosse igual aos outros, sem pensar em fantasias, que era um
triste desgraado. Hei-de desencantar a moira e entrar por aquela porta com ela na
minha frente, pra vocs verem o que uma rainha com o manto de seda e a coroa
de lumes... E eu com a caldeirinha de oiro cheia duma gua de onde voc bebe um
golo e ca logo uma rapariga de dezoito anos, capaz de um fantasma me cortar
a mo como ao Janurio... E o menino, se descobrir alguma moira encantada,
conte-me tudo, que eu acredito. No acredito em quem s v as coisas que toda
a gente pode ver... e no arrisca nem um dedo chuva... Boa noite!
93
Veio uma rabanada de vento, quando se abriu a porta da rua. E Joo Meco saiu
para o escuro, a assobiar, feliz e aventuroso, como se, desaparecendo nas trevas da
noite estrelada, entrasse, com seu passo natural, no encantado mundo das grandes
maravilhas.
94
MIGUEL TORGA
(1907-)
96
O ALMA-GRANDE
Riba Dal terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre Joo benze,
perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas.
Quem Deus?
um Ser todo poderoso, criador do Cu e da Terra.
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatrio, no h quem
possa desconar que por detrs da sagrada cartilha est plantado em sangue o
Pentateuco. Mas est. E hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa
a thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os ltimos retoques
pureza da ovelha, e receba da lngua moribunda e cobarde a consso daquele
segredo abafador.
Desses servos de Moiss, encarregados de abreviar as penas deste mundo e
salvar a honra do convento, o maior de que h memria o Alma-Grande.
Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado, uma rua onde mora
ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar
aquele pai da morte, j sabia que tinha de subir pela encosta acima como um barco
num mar encapelado.
Raios partam o vento!
Mas qu! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina,
sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanbria a varrer a ladeira.
Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome.
Tio Alma-Grande! Tio Alma-Grande!
L vai...
97
Da a nada a tenaz das suas mos e o peso do seu joelho passavam guia ao
moribundo.
Entrava, atravessava impvido e silencioso a multido que h trs dias, na sala,
esperava impaciente o ltimo alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro,
fechava a porta, e pouco depois saa com uma paz no rosto pelo menos igual
que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror
e gratido. s vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo
da conscincia e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que
no alto do Destelhado, sobrepondo-se fora do vento, o reclamava.
Tio Alma-Grande! Tio Alma-Grande!
L vai...
E aparecia porta logo a seguir.
Quando a hora do Isaac chegou, foi um lho, o Abel, que trepou a ladeira. O
garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da maneira estranha como
a me o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania.
Que tem o teu pai, rapaz?
O pequeno olhou xamente a cara seca do abafador.
Febre...
Bem, vamos ento l...
E que que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer?
V-lo...
Pela rua abaixo s o vento falava. Rouco de tanto bradar, monocrdico,
persistente, era nele que tinha expresso a intimidade de ambos: um, o pequeno,
nervoso, inquieto, a braos com pressentimentos confusos, que se recusavam a
sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino de abreviar a
morte como um rio aceita o seu movimento.
Em casa havia lgrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do Alma-
Grande secou tudo. Atrs dos seus passos lentos e pesados pelo corredor cava
uma angstia calada, com a respirao suspensa.
O que que lhe vai fazer? perguntou de novo o Abel, agora me, quando
a porta do quarto se fechou.
A Lia respondeu ao lho com duas lgrimas silenciosas pela cara abaixo.
L dentro, o Isaac, na cama alagada de suor, parecia ter chegado ao m.
Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como que s esperava
a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia quinze dias. Um febro tal
que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir e acabou por aconselhar que
tratassem do caixo. Mas o Isaac era cedro do Lbano, rijo, no cerne. Depois
desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o comer. E sempre de olhinho
vivo. Gemia, gemia, nava-se, mas sempre com aquelas duas contas de azeviche
98
a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma sombra estranha; e a
mulher, a Lia, abriu mo da esperana. Dois dias mais, e como na sala a D. Rosa
lembrasse a conssozinha, um irmo do Isaac, o Daniel, chegou-se cunhada
e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do Alma-Grande. A Lia, a
princpio, reagiu quanto pde. Mas a perspectiva do padre Joo a entrar-lhe pela
casa dentro venceu-a. Mal rompeu a manh, com uma voz que fez medo ao lho,
mandou-o chamar o abafador.
Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um combate que
quase sempre se trava de corpo estendido. O inimigo era uma parte de si mesmo
apostada em perd-lo. E a outra metade, um pedao de ser nobre e agradecido
seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas tmporas
abaixo e um ritmo apressado da respirao davam sinal de guerra. Mas de nada
mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza
e a solenidade de tal hora.
Por desgraa, o Alma-Grande no podia ver aquilo. Insensvel profundidade
dos mistrios da vida, sem o estremecimento de uma bra sequer, avanou para o
leito num automatismo rotineiro. O seu papel no era olhar; era ir inteiro com as
mos ao pescoo, com o joelho arca do peito, e retirar-se uns minutos depois,
como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua funo.
No seu castelo Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboio metia ar
na fornalha, espesso, clido, activo, o suor ia brotando do vulco.
A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos paralizados e mudos. S no
quarto havia movimento e palpitao.
Calado, o Alma-Grande avanou. Mas quando de mos abertas e .joelho
dobrado ia a cair sobre o Isaac, f-lo parar uma voz diferente de todas as que
ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro mundo, e dizia:
No... Ainda no... Ainda no...
Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos
sfregos e angustiados, sem se deter na sua misso sagrada! Quantas vezes! Desta,
porm, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.
No... No... Ainda no......
Um pano escuro que at ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se
de cima abaixo. E o abafador, paralizado entre as trevas do hbito e a luz que
rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino.
No... Ainda no... Ainda no...
99
Era terrvel o que se passava. luta que o Isaac sustentava contra foras que
nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois homens, um a saber
que ia matar, outro que sabia que ia ser morto.
Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro, a medir-se.
Pesado, o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue martelava nas
tmporas do Alma-Grande.
Foi um rudo sbito e um guincho de uma porta que fez explodir aquela
concentrao. O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um peso suspenso e
de repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma palavra s. Apenas um
baque surdo, e as mos sfregas do assassino procura do pescoo do Isaac.
Mas a porta que rangera dera entrada a algum. A um vulto que o Alma-Grande
adivinhava atrs das costas, parado, lvido, a tentar compreender.
Um esforo supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a
presena atnita do Abel, tiraram s mos e ao joelho do Alma-Grande a fora
habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos
tragos o o de vida que encontrava pelo caminho! Bem que se lhe avivava na
conscincia a certeza de que era matar a razo do seu destino! Em vo. O puro
instinto no tinha coragem para empurrar aquelas mos e aquele joelho diante de
uma testemunha.
Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual do agonizante,
voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aitos olhos do pequeno,
que o varavam, silenciosamente, sau. Atravessou a sala cabisbaixo, longe da
grandeza trgica das outras vezes. Deixava atrs de si a vida, e a vida no lhe dava
grandeza.
Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado, entrou no quarto,
o lho estava sentado na cama, com a pequena mo na testa do pai. A criana
debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu corao ditava-lhe a mozita
ali, na fronte escaldante do que lhe dera o
ser, do mesmo modo que lhe ordenara j a entrada sorrateira e inquieta no
quarto.
E foi talvez a mo inocente e lial que fez correr novamente na testa do Isaac
o sangue da conana. Sem consso, vinte dias depois comia o caldo ao lume
como se nada tivesse sido. E nada tinha sido realmente para toda a gente da terra,
menos para ele, para o pequeno e para o Alma-Grande. Os outros passaram da
agonia morte e da morte ressurreio, na inconscincia de quem passa do calor
100
ao frio e do frio novamente ao calor. S os trs sabiam, de maneiras diversas, que
o drama fora mais negro e profundo. O Isaac vira as garras da morte ao natural;
o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escurido do seu poo; o garoto, esse,
pressentira coisas que no podia claricar ainda no pensamento.
Vagaroso, o tempo foi deslisando; e com ele apagara-se j de todo na lembrana
da terra a doena do Isaac. Missa e Sabath.
Os trs, porm, debruavam-se sem descanso sobre o lago onde se reectia a
imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava, olhava, e via a
vingana; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava, e via o medo;
o pequeno, inocente, via apenas a angstia de no entender. E os trs formavam
como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoao. No se falavam, fora
do lho a pedir a bno ao pai, do pai a dar-lha, e de uma saudao ambgua e
monossilbica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas traziam-se guardados
uns aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a hora em que, para a
eternidade, varressem do cu das conscincias a nuvem pesada que o toldava.
E esse momento, nalmente chegou.
Vinha o Alma-Grande de ver a lha e os netos, em Bobadela, quando o Isaac,
que o seguia como um co de la, lhe saltou estrada. Testemunhas, s Deus e o
Abel, que, sem o pai dar conta, o acompanhava tambm por toda a parte, e olhava
a cena escondido atrs de um frago.
No matars...
Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros
caminhos, como o prprio Alma-Grande sabia.
No matars...
O Isaac, porm, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos implacveis que
lhe vira nas horas de agonia.
No... No...
Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E quando o Alma-Grande foi a
dar conta, estrebuchava no cho, de costas, com o pescoo apertado nas mos do
outro, e com a tbua do corao sob o peso innito de um joelho.
No... No...
O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do Alma-Grande, e ouvia o
esforo da respirao a forar o garrote.
No...
Possantes, inexorveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um
estertor apenas, estavam em paz os trs. O Isaac tinha a sua vingana, o Alma-
Grande j no sentia medo, e a criana compreendera, anal.
(De Novos Contos da Montanha, 1944)
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ALVES REDOL
(1911-1969)
103
O RAPAZ NO GOSTAVA DAS MOS
106
MANUEL DA FONSECA
(1911-)
108
MARIA ALTINHA
113
LUS FORJAZ TRIGUEIROS
(1915-)
115
DESPORTOS DE INVERNO
119
MRIO DIONSIO
(1916-)
121
A LATA DE CONSERVA
125
VERGLIO FERREIRA
(1916-)
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ME GENOVEVA
Todas as tardes ela vinha com o cesto da costura para o sol do corredor, se a
tarde era de Inverno, ou para a sombra da gueira, se era nos calores do Vero.
Ali estava agora, direita ainda, frente ao vento da tarde funda de Agosto, um vento
largo e calmo de cu e de montanha. Mas to grande era a certeza de sossego
sua volta, to aberta de paz e de sinal, que a cabea lhe tombou para o tronco
da gueira e as mos e os olhos se entregaram uno de uma morte merecida.
Quanto tempo? Abriu os olhos e sentiu-se verdadeira no seu corpo fatigado, como
fora verdadeira toda a dor que conquistara.
Me Genoveva!
H quanto tempo? Um dia, ele voltara da fbrica mais cedo que de costume.
Tinha as mos certas, o olhar certo, uma certeza to presente em todo o seu corpo
forte, que era quase como se no tivesse um destino. Assim Genoveva o foi esperar
ao limite mais extremo da sua conana, serena, branca e loura, alta e loura como
a glria. E tendo-se apenas tado longamente um ao outro, reconheceram-se por
detrs da sucesso dos sculos, hmidos de origem, inndveis de apelo, como
tocados, para sempre, de um esquecido indcio divino.
Vicente!
Depois veio o Inverno e a baba do vento e as noites sem fundo como o capuz de
um condenado. A montanha espadada combateu brutamente contra o cu, caram
sobre o mundo tumultos de trovoadas, chuvas e nevoeiros esmagaram a terra de
pavor. Mas havia para Genoveva, no centro de tudo isso, uma oculta defesa, no
bem contra o perigo do cu e da montanha, no bem contra o terror do mistrio,
mas contra uma plida suspeita de morte, que se alongava pelas noites solitrias.
128
Vicente dizia-lhe que uma nova ao ia ser posta a trabalhar ou que se falava em
aumentar a fria, ou at mesmo que sentia o corpo fatigado. E tudo isto, sado
da sua boca, era to forte de perfeio e de verdade, to como o bafo quente de
quem nos aconchega a roupa, que o mais era a memria de um pesadelo morto.
Assim, como toda a sua vida falava de promessa e de futuro, quando depois
do Inverno voltou a Primavera e, depois da Primavera e do Vero, o Outono
lhes trouxe um lho, ela no se surpreendeu. S o marido pareceu embaraado
de medo e deslumbramento, diante de um prodgio maior do que ele e que, no
entanto, incrivelmente, tinha o destino do seu sangue e sua raa. Ou talvez que
nesse olhar longo e calado em que envolvera o lho, ele quisesse apenas trasvasar-
lhe tudo quanto julgava no lhe ter dado ao nascer; porque, dez dias depois, o
correo do tambor das cardas apanhava-o pelo casaco e arremessava-o contra
os caibros do tecto. Trs vezes o corpo desconjuntado de Vicente atravessou o
espao, trs vezes os companheiros clamaram sobre o estrpito das mquinas.
Quando, por m, algum parou o motor, Vicente foi desprendido da correia e
deitado em silncio no cho. Tinha os ossos todos britados, o corpo. numa papa
sangrenta. E to desgurado de tortura e de sangue, que os companheiros
no ousavam reconhec-lo nem toc-lo. S as mos seguras da mulher, to
certas como se as no comandasse, conheciam o lugar da sua boca, dos seus
olhos e do seu olhar. E pousando-as longamente naquela face destruda, a
as esqueceu, confraternizando com o sangue, como se esperasse que Vicente
adormecesse enm, ou que ela fosse investida, de algum modo, numa parte
daquele sofrimento.
Depois partiu dali desvairada, atirada num grito, e precipitou-se, com um
cime assassino, sobre o lho que era seu. E subjugada pela voz absoluta da morte
e da criao, o amor ao lho grudava-a a si prpria, atirava-a contra o futuro como
uma fora escura da terra. S trs meses depois, corroda de cansao, consentiu
que um senhor que lhe viera pr na mesa um envelope fechado, lhe levasse o lho,
o registasse, o baptizasse e lho trouxesse, enm, como o nome inteiro do pai. S
depois consentiu que a vida recomeasse.
J o vasto silncio do Inverno caa de novo sobre a aldeia e o vale. Era agora
uma lcida aridez de prados de gelo, uma alegria mortal de longas neves, como
a inocncia de um cadver de criana em urna branca, era o sol rpido e triste,
os cavernosos urros da tormenta. Mas agora tudo clamava, duramente, pela
angstia de Genoveva, perseguindo-lhe os dias e as noites. E umas vezes chorando
sobre o lho, com o desespero de um amor impotente e desgraado, investindo,
outras vezes, de coragem alta, contra o dio da morte, a promessa renasceu-lhe
nalmente no corao. Contava os dias nos segundos, pelo esforo dos trabalhos
avulsos casas lavadas, carregos, sol a sol no campo com o suor da sua entrega
129
pedido a cada parte de si. Mas, repentinamente, a virgindade de um mundo nasceu
em roda do lho. Com uma voz que j no era a dela nem a do silncio indefeso da
criana, surgiu um dia, ali, diante de si, na certeza irrevogvel dos muros negros
da casa, a enorme verdade de um ser que falava, que pedia, que pensava. De si at
ao lho, ia agora o milagre de uma fraternidade nova, ia quase uma surpresa de
dois ausentes que se encontram, como aquela que Genoveva sentira em face do
marido, quando reconheceu que o amava. Com um espanto que nunca supusera,
ela via crescer, sua face, o prodgio de um deus que impetuosamente recriava a
terra e os cus. O pequeno dizia me, po, lua, e a lua e o po e ela prpria
existiam realmente, levantavam-se para a vida pela primeira vez, ou surgiam to
diferentes e to novos que era como se s ento tivessem sido criados. Porque a
lua era o apelo de uma inocncia inteira, e no um cansao do m; o po, apenas
uma forma que se cumpre, e no um dio necessrio; e to nova era agora nela
a verdade de ser me, porque to-s ela e to a medo at agora o soubera, que
Genoveva se curvou de humildade e gratido, diante de si e do lho, como um
mistrio de uma vontade divina anunciada.
Vicente cresceu como tudo o que tem de crescer. Percorreu os caminhos da
montanha, comeu a fruta verde dos quintais, foi escola como os lhos da sorte.
Mas um dia, o senhor misterioso atalhou-a com uma proposta inesperada:
Entra j. Chegam os estudos que tem. Dentro de cinco anos, ganha como um
verdadeiro operrio.
E Genoveva estremeceu, a uma sbita memria vermelha de sangue. E afogada
de angstia, disse:
No!
Mas o homem tinha razes da vida, razes da dura necessidade que no
levavam em conta os sustos da memria. Tinha-as o homem, tinha-as a gente da
vizinhana e at mesmo as tinha aquela parte de si mesma a quem ela dissera
no. E Genoveva cedeu. Numa manh alta de estrelas, Vicente ergueu-se
investido de uma fora desconhecida. Havia silncio no cu, a montanha dormia
ainda, longamente, as estradas iam desertas pelo mundo. Genoveva abriu a janela
para a solido da manh e esperou. Era talvez possvel que qualquer carro parasse,
que a vizinha Clotilde viesse soltar as galinhas, que acontecesse, enm, naquela
manh absoluta, qualquer coisa humana e ntima mais forte do que o silncio e
a ameaa. Mas nem o carro passou nem a Clotilde se ergueu. S dois homens,
algum tempo depois, saram do ventre da noite, vieram bater porta, chamaram
por Vicente. E ele foi com os companheiros, atravessou o troo da estrada, j
branca na madrugada, e desapareceu.
130
Me Genoveva! H quanto tempo?
Ento Genoveva estremeceu de leve, mas to fundo, que tudo nela o sentiu.
Algum tempo cou janela da sua solido at que a manh foi subindo por
detrs da montanha e as galinhas de Clotilde encheram a vizinhana e os homens
atravessaram os campos, gravados de submisso. E segura agora de que tudo
estava acontecendo normalmente, Genoveva fechou enm a janela. Mas de sbito,
na mudez slida da casa, de novo uma voz quente e annima, vinda de trs lhe
falou ao ouvido, serena e rme como voz de eternidade. Genoveva voltou-se
devagar para a janela, e olhou atravs dela a estrada branca, e depois da estrada
branca a montanha, e depois da montanha a memria silenciosa de tudo. Era
possvel que o lho tivesse partido para sempre. Mas tudo cara to calmo e
natural que ela prpria se no atrevia a sofrer. Foi esper-lo, todavia, nessa tarde,
no bem ao limite da sua conana, ou torre do desespero ou sequer curva da
estrada de areia branca onde ele se perdera, mas somente ao receio breve da janela
da manh. E ele ergueu-se, por m, na ponta da estrada branca, to alto e to forte
como uma jura comprida.
Meu lho.
Clotilde fechava as galinhas, os homens regressavam dos campos, a noite
vinha chegando hora prometida. Mas Genoveva j no acreditava na verdade
ntima de tudo isso. Porque havia, alm do mais, a coragem do lho, uma coragem
excessiva, j s desao, que mal parecia ter em conta a proteco que ela tinha
para lhe dar e a certeza humilde de que havia morte no mundo. Por isso Genoveva
se recolheu ao seu amor vencido e a cou ouvindo, num silncio resignado, toda
a sbita glria de Vicente, cantada a leo e a ao na inocncia do seu corpo.
Finalmente, o lho calou-se no fundo da noite. Ento Genoveva olhou pelos
vidros da janela e pensou: Sem uma nuvem. Vem-se todas as estrelas.
E amanh s cinco disse o lho.
Sim.
Durante longos anos, Vicente partiu pelas madrugadas frias de Inverno, pelas
manhs altas de Vero. E sempre com ele partia a esperana de que voltasse
com a noite. Ele voltava, umas vezes antes da noite, outras vezes depois; mas
todos os dias qualquer coisa partia com ele pela manh e dizia adeus a Genoveva
para nunca mais. S o amor voltava inteiro com ele, se bem que houvesse agora
grandes sales de portas fechadas para l da sala amiga onde ambos se tavam.
Contra o corao alarmado, ela sentia embaterem os gritos de l de dentro,
clamores de uma esperana terrvel, altas colunas de silncio como saudaes
morte. Quando porm ele voltava sala quente dos dois, de novo Genoveva
o reconhecia inteiramente como seu. Ela pensava ento no caminho percorrido
por ambos, desde a hora de sangue do marido. E via-se a si levando o lho pela
131
mo, via depois o lho crescer, caminhar frente, deix-la a ela pra trs e voltar
nalmente, de novo, para lhe dar a ela a mo outra vez. E Genoveva dava-lhe a
sua, maternalmente, fraternalmente, lialmente. Porque s vezes o pai verdadeiro
era ele e era ele o irmo verdadeiro. E todavia, mais do que nunca Vicente desejava
ou consentia agora em ser seu lho. Por isso, era sempre na dimenso da pureza e
submisso que ele contava dos silncios de amargura, da fria e da esperana, de
tudo o que era suspeita e rudo, para l do amor dos dois. E ento, ungido na fronte
por um bafo de infncia, tudo nele subitamente era inocncia e verdade como um
bibe sujo de terra. Mas precisamente, como iria o mundo perdoar-lhe a inocncia?
Assim, quando tudo cou esclarecido, entre os dois, ela cerrou os olhos de bno
e ps-se espera da morte.
E a morte veio, no subitamente, mas devagar, para que ela a estivesse
esperando mesmo depois de estar presente. Numa tarde cansada de Agosto,
Vicente no voltou. Genoveva esperou-o at que a noite desceu, esperou-o depois
de a noite vir e depois de a lua quente subir ao alto da montanha, e depois mesmo
que um companheiro do lho a veio avisar secretamente de que Vicente no viria.
Esperou-o toda a noite com a lua e as estrelas e a sua solido. Ele no veio mais.
Mas numa noite, exactamente numa noite como aquela, suspensa de luar e
de silncio, um homem emergiu do ptio fronteiro, agora inundado de lua como
um lago fosforescente. E numa voz inteira, forte e todavia submissa, o homem
clamou:
Me Genoveva!
Na parede do fundo, a lua projectava um ramo de oliveira que bulia, silencioso,
e se abria, devagar, numa suave or de sombra. Voltada um pouco para dentro da
sala, Genoveva sangrou de surpresa e de espera quela voz estranha em que no
entanto ouvira esse sinal sem engano, j to seu conhecido, de dois destinos que se
chamam um ao outro, innitamente, por cima de todo o dio e de todo o sonho da
vida. E de facto, quando o homem nocturno falou e contou de Vicente, Genoveva
reconheceu, sem uma perturbao, que o amor do lho, atravs do seu combate,
da sua esperana, lhe estendia, para sempre, a mo rme, na mo daquele amigo.
E Genoveva tomou-lha longamente e pousou-lhe as suas nos ombros e sagrou-o
tambm a ele como seu lho, desde o mais fundo do cansao do seu ventre.
Mas desde ento os lhos de Genoveva tornaram-se to numerosos, que
toda a voz carnal do seu amor se esgotava e cumpria. Vinham de noite, pelas
manhs surdas, algumas vezes mesmo s horas pblicas do dia. Mas em qualquer
momento, a um simples olhar deles, Genoveva reconhecia-os e amava-os logo,
irremediavelmente, com uma pureza humilde e profunda. Assim, como quando
Vicente lhe falava, ela escutava as vozes deles apenas na sua piedade serena.
Todos eles contavam da esperana, da justia, do amor, e Genoveva acreditava.
132
Porm no acreditava apenas porque a justia estivesse certa e a glria estivesse
certa, mas porque, depois de tudo, acontecia s vezes pedir-lhe algum deles
que lhe consertasse a velha roupa ou lhe ensinasse o bom remdio para uma
constipao...
At que um dia Vicente voltou, tocado de sinal e de vertigem, como a fachada
de um palcio iluminado. Mas quando se sentou no seu lugar, mesa da cozinha, e
o vento do Inverno se levantou sobre a casa, logo tudo foi verdadeiro e bom desde
o princpio.
Como vens cansado!
A chuva despedaava-se contra a vidraa, um clamor de tempestade varria toda
a montanha, uma noite verduga rangia em torno da casa os grossos dentes do dio.
E ao alarido daqueles urros nocturnos, outra vez, de Genoveva para o lho desceu
o gesto da proteco e da bno.
Fechados de resguardo e de intimidade, era como se Vicente se tivesse
escapado perseguio da noite e a noite casse porta ladrando furiosamente,
como um rancor de ces ao tronco de uma rvore por onde a presa fugiu. Pela
madrugada, porm, quando a noite o estava ainda esperando, esquecido do perigo,
Vicente partiu. E a noite o tomou e levou para sempre.
Foi trs meses depois, que Genoveva o foi ver ao cume do seu destino.
Separava-os um mundo de fria e de sangue; mas Vicente deu um passo, venceu o
sangue e a fria e abraou Genoveva e disse bem alto com a voz perfeita de todos
os outros lhos:
Me Genoveva!
H quanto tempo? Ali estava agora, direita ainda um pouco, frente ao vento
largo daquela tarde de Agosto. Era um vento calmo, quente como um apelo de
morte. Doa-lhe suavemente a cabea, ou no bem a cabea talvez, nem talvez
mesmo a memria de tudo, mas, mais fundo do que isso, a raz de estar vivendo,
como um limite atingido. J a noite vinha crescendo devagar e as rvores subiam
mais alto no cu profundo. Ento, ampliando-se desde o largo do horizonte,
milhares de bocas clamaram ao mesmo tempo, enchendo todos os sculos do
passado e do futuro:
Me Genoveva!
E Genoveva, subitamente, sentiu-se iluminada, docemente ungida de um sinal
de maternidade para todos os tempos da esperana e do amor. Suspenso sobre
as cabeas, sobre a glria do canto dos seus lhos, um grande gesto de bno
unia-os como um ventre. At que, hora quente da lua cheia, fechada de um
silncio nal, segura de que tudo se cumprira em perfeio, Genoveva sentiu que
a cabea lhe tombava e para sempre adormeceu.
133
FERNANDO NAMORA
(1919-)
135
O RAPAZ DO TAMBOR
Em casa havia um tambor. Tinham-lho oferecido dois anos antes, pelo Natal.
Mas o garoto no soubera regrar o entusiasmo, e as pessoas da casa e os vizinhos
no suportando a barulheira, quiseram obrigar o pai a esconder-lho. O pai, porm,
era um bom companheiro, um bom tipo: no lho escondera nem proibira; dissera
assim:
Jnito: o tambor gasta-se com tanto uso. E, ainda que eu viesse a comprar-te
outro, sei que seria sempre deste que tu gostarias. Acho que deverias tocar s de
tempos a tempos, aos domingos. Desse modo, a pele do tambor poder durar uma
vida inteira.
Tem razo, pai. Tocarei s aos domingos. Mas posso dormir com ele nos
outros dias?
Claro que podia. O pai, alis, facilitava os desejos de toda a gente.
E Jnito passou a dormir com o tambor, tal como a irm dormia com a boneca
de olhos verdes, depois de lhe despir o vestido de renda, para no o amachucar.
Contudo, antes de haver um tambor l em casa, verdadeiro, que se podia
apalpar com as mos, existia j outro, na gravura da parede da sala. Era uma
pintura com tons sanguneos, que representava uma grande batalha: soldados
com uniformes napolenicos, bandeiras enrugadas por um vento herico, cavalos
furiosos, com os nervos or da pele e patas dianteiras erguidas sobre um inimigo
que ia ser esmagado. E o rapaz do tambor ao centro, em corpo inteiro, soberbo,
tendo na cabea um barrete afunilado de um azul-turquesa. Uma luz incendiada,
vinda no se sabe donde, caa-lhe em cheio sobre as mos, enquanto o resto do
quadro se dissolvia numa penumbra poeirenta. Mas se os cavalos erguiam as
136
patas medonhas, se os soldados mantinham rmes as baionetas luzidias, se as
bandeiras utuavam, gloriosas, ao vento, era porque o tambor os inamava. O
tambor era um apelo, um contgio, uma labareda. E que som, que ritmo, que
trovoada! Repercutia por toda a casa. Jnito tinha os ouvidos aturdidos pela sua
voz poderosa e admirava-se muitas vezes, tando o pai, a me, o tio, a irm, que
ningum mais mostrasse ouvi-lo; que as pessoas no se levantassem das cadeiras,
de repente, e, seduzidas, fossem praticar um acto de bravura.
Jnito zera muitas perguntas ao pai sobre o signicado da pintura. Quem
eram os soldados, que pas tinha aquela bonita bandeira; quem era, sobretudo, o
rapaz do tambor. Um garoto poderia ser chamado a comandar uma batalha?
O pai no gostava de falar de guerras. E a gente podia admirar-se de como ele
deixara car na parede aquele quadro que se referia a coisas detestadas. Jnito no
sabia que essa gravura, um pouco desbotada j, pertencera ao av, leitor de feitos
do general corso, e que o av a estimara como se se tratasse de um braso familiar.
O av, por certo, era dos que ouvira o rufar do tambor.
E tu, no o ouves, Guida? repetia Jnito impaciente. A irm poderia
compreend-lo. Tambm os sentidos de Guida eram sensveis a um mundo
interdito aos adultos.
Apuravam ambos o ouvido. E Guida, por m, ouvia, l muito ao longe, o
tropear confuso dos cavalos e o incitamento grave e glorioso do tambor. De uma
das vezes, pareceu-lhe mesmo que aqueles soldados se mexiam, que iam sair do
quadro para dentro da sala, que o gume acerado das baionetas vinha espetar-se nos
olhos que o tavam. Muito plida, chorosa, disse:
Tenho medo. No quero escutar mais o tambor.
Deix-lo: Jnito escut-lo-ia sozinho. E no lhe dessem mais nada at ao m
da vida mas dessem-lhe um tambor.
Quando, na manh de Natal, ao acordar, se lhe deparou o tambor cabeceira da
cama, o seu corao quase no teve foras para a surpresa. Num momento, deixou
de bater. Jnito correu sala, afogueado, e experimentou copiar, com o maior
escrpulo, o porte, a expresso, a energia do rapaz do tambor. Acordou meio
mundo a tocar o brinquedo durante a manh. Enfureceu meio mundo a toc-lo
todos os dias, a toda a hora, at que o pai o preveniu:
Jnito: o tambor gasta-se com tanto uso.
O pai era um bom pai. Um homem viril, de cabea bem erguida. E os
cabelos! Fartos, grisalhos, majestosos. Quando ele, a fazer valer uma opinio,
levava os dedos cabea a domesticar uma madeixa indcil que lhe caa para
os olhos, que gesto soberbo! Como apetecia dizer-lhe: Faz isso outra vez,
pai! O pai era o mais poderoso dos homens. Trabalhava numa fbrica de
plsticos, nos arredores, e tinha de sair cedo de casa para apanhar o comboio.
137
Jnito s o via pelo m da tarde. O pai, ao regressar, sentava-se na cadeira
de verga, cachimbo na boca, uma ruga spera na testa, um livro na mo. Jnito
acocorado no tapete, seria capaz de estar ali horas a o, apenas a olh-lo.
Por isso mesmo, odiava aqueles sujeitos desconhecidos que vinham visitar o
pai noite, fechando-se com ele l dentro, numa saleta onde havia uma mquina
de costura, uma secretria e uma mesa redonda que servia, em certas ocasies,
para a famlia jogar as cartas. E muitos livros, claro. O pai nunca se fartava de
livros.
Quem so aqueles senhores, me?
Amigos do pai.
Porque no vm para aqui e falam com a gente?
No pode ser, Jnito. O pai d-lhes explicaes. Precisam de sossego.
E ns no podemos ouvir explicaes?
So coisas s deles. Coisas de estudo. Para exames.
Mas eu tambm tenho exames.
Aqueles so exames mais adiantados.
Como o mundo dos adultos era esquisito e intrigante!
Jnito espreitava suspeitosamente esses companheiros do pai. Espreitava-os da
janela, cerca da hora em que eles deveriam chegar. No gostava deles. No se
pareciam com os soldados do quadro, nem com o pai, nem com o tio. No sorriam.
E roubavam-lhe quase todo o tempo em que ele poderia conversar com o pai.
Quando eu for grande, poderei ouvir as explicaes?
O pai dizia que sim. Ainda se o tempo passasse depressa! O tempo, no entanto,
estava sempre no mesmo stio.
Os domingos, porm, pertenciam aos dois. Domingos bons. Iam a um jardim
ou ao campo escolher folhas exticas para um lbum, ao futebol e, com frequncia,
aos bairros humildes de certas zonas da cidade. Jnito sentia uma espcie
de intimidao, ou de nojo, ou de culpa, ao aproximar-se dessas casas sujas,
agachadas na bruma, onde morava gente ainda mais suja. Para que teimava o pai
em vir ali, em conviver com desconhecidos? Que tinha para lhes dizer? Havia
coisas misteriosas no procedimento do pai e Jnito enciumava-se de no participar
de todas elas.
Agora brinca com estes meninos, enquanto eu me entretenho com uns
amigos.
Eles entravam num bar e Jnito e os rapazelhos, depois de uma sondagem
cautelosa, acabavam por inventar um jogo divertido. Anal, eram companheiros
reinadios. E Jnito deixava mesmo de reparar que eles tinham as mos sebentas e
os cales esfrangalhados.
Pai: posso mostrar-lhes o tambor?
138
Podes. Mas no lhes fales de soldados. Ningum deve gostar de guerras.
Porqu, pai? Ento os soldados no so valentes?
As pessoas devem mostrar-se valentes de outro modo.
Como?
Sendo boas umas para as outras. Sacricando-se, se for preciso.
Jnito no lhes levou o tambor. Um tambor sem batalhas no servia para nada.
Em outros domingos, o pai ia cedo para a rua, mas combinavam, de vspera,
encontrarem-se num certo caf. Jnito cava muito orgulhoso dessas combinaes
de homem para homem, e ainda orgulhoso por deixarem-no ir sozinho at ao local
do encontro. Era um cafezito na praa do municpio, donde partiam os comboios
que levavam para a montanha os burgueses fugidos da neblina. Havia l uma
caixa de msica. Vinham rapazes e raparigas, sentavam-se, turbulentos, a uma
das mesas, com o ar de quem estava em casa ou de quem alugara o caf s para
eles, e iam deitando moedas na mquina. Cada moeda, cada msica. Maravilhoso.
Por isso, Jnito mentia quando a Guida se queixava. S a ti que o pai convida
para irem ao caf, e ele respondia: Ao caf no vo raparigas. Iam, j se v.
E deitavam moedas na caixa da msica e batiam as palmas, desengonando o
corpo, e faziam um chinfrim de quem no ligava mesmo nada s outras pessoas
presentes.
Ia encontrar o pai na companhia de algum desconhecido, falando-lhe num tom
grave e secreto, ou a escrever nuns cadernos e sempre com dois ou trs.livros
empilhados ao lado da xcara de caf. Que escrevia o pai, que livros eram aqueles,
que gente o visitava ao sero? Roa-o por vezes o pressentimento incmodo e
revoltado de que o pai tinha uma vida dupla, de que havia nele duas pessoas: a que
lhe falava docemente de coisas prximas, visveis, que se misturava mesa com a
famlia, que era real e acessvel, e outra obscura, clandestina, que se temia.
At que uma noite aconteceu aquilo. Ouviu-se um automvel travar de repente,
ali na rua. Os pneus chiaram no piso orvalhado. Passos na escada e algum bateu
porta. A me adivinhara fosse o que fosse: no meio da sala, sem um gesto, parecia
assombrada. E depois dirigiu-se janela, afastando, a medo, as cortinas.
Vem aqui ver, Arnaldo.
O pai espreitou por detrs dela e, de sbito, correu tal saleta dos fundos e
veio de l com tantos papis que no lhe cabiam nos braos. O tio pegou neles
e preparou-se para saltar pela janela das traseiras, que dava para o quintal dos
vizinhos. Antes, porm, ainda disse:
Vem tambm, Arnaldo!
O pai tinha a ruga da testa muito funda e a madeixa a escurecer-lhe os olhos.
Mas estava sereno. Acenou vigorosamente que no.
139
Vem, no percas tempo!
No adiantava. Agora j no h perigo.
Batiam porta com mais fora e insistncia. O tio, de expresso esgazeada,
desapareceu. Esperaram que batessem ainda uma, duas vezes, e a me, por m, foi
abrir. Jnito, de corao apertado, sentiu o mesmo que naquele dia ao ouvir pela
primeira vez o granizo esmagar-se abruptamente de encontro s vidraas, antes da
trovoada. A expectativa de um acontecimento informe e terrvel.
Vai para o quarto, depressa, Jnito!
O granizo, o granizo. Ele ainda viu os homens a passarem a porta, de chapu
enterrado na cabea, o rosto na sombra. Jnito foi outra janela espiar a rua:
l estava o automvel. Parado, sinistro. Faz medo um automvel negro, imvel,
dentro da noite. E por detrs dele, um jipe. Viu uns guardas sarem do jipe e
dividirem-se pelos dois lados do passeio at que a nvoa os sorveu. Tinham
espingardas, espingardas verdadeiras.
O pai esteve uns meses ausente. E era estranho que as visitas da casa, de um
dia para o outro, tivessem deixado de aparecer. Como se toda a gente soubesse ou
adivinhasse que o pai andava em viagem.
Onde est o pai? Quem eram aqueles homens? Para onde o levaram?
E a me respondia:
Foi para uma viagem.
Ento aqueles homens eram amigos?
Homens daqueles no so amigos.
E o tio intervinha, com dio na voz:
So bichos.
Mas por que razo as pessoas grandes no explicavam as coisas de modo que
se percebesse? Que se passava com o pai, com o tio, que se passava naquela casa?
Muita coisa mudara desde a partida do pai. Desde a noite em que os homens
de chapu na cabea, ou os bichos (como dizia o tio), tinham vindo busc-lo no
automvel sinistro.
Ah, mas isso no voltaria a acontecer! Jnito olhava com fervor para a gravura
da parede, para o rapaz de barrete azul a inamar com a sua exortao a coragem
dos soldados, e cava certo de que, se tivesse pegado tambm no seu tambor,
naquela noite, os homens (ou os bichos) que haviam entrado pela porta sem tirar o
chapu da cabea teriam fugido de medo. Jnito no se iludira: o pai no sara de
casa por sua livre vontade, no andava em viagem. Mas que zera o pai para que
algum lhe quisesse mal? E por que motivo a me, o tio, os vizinhos e ele prprio,
Jnito, no o haviam defendido? Faltara a todos qualquer coisa um tambor.
E durante todos os meses pardacentos em que o pai estivera longe da famlia,
Jnito, com um sentimento de culpa, no tirou o tambor de cima da prateleira.
140
Quando o pai voltou, era outro. Mais cabelos grisalhos e desmanchados. E
magro, ento! O dorso velho, uma face triste. Jnito foi esconder-se algumas
vezes no quarto para chorar. Tinham-lhe roubado a alegria viril e jovem de seu
pai. No lhe fez perguntas. L no ntimo acusava o pai de no partilhar com ele o
mundo nebuloso onde morava a outra metade da sua vida.
O tempo, por m, foi recuperando os hbitos antigos. Os mesmos passeios,
as mesmas visitas, o caf de certos domingos. Nem uma palavra, porm, do
que acontecera. Sentiam-se ambos, nesse silncio espesso, como mutuamente
cmplices de um ressentimento longnquo, mas sempre presente.
Num dia, contudo, em que foram praia, logo que o pai saiu da barraca com
as costas nuas, lhe varou os olhos uma cicatriz, ainda tmida, que cortava em
diagonal a sua carne musculada. Jnito cou de gestos suspensos.
Que foi isso, pai?
Ca h tempos sobre uns estilhaos de vidro.
Mas eu no te vi o casaco rasgado!
Nessa ocasio estava despido.
Despido?
O pai mentira-lhe. O pai era mentiroso. Jnito dobrou-se todo para a frente,
escondendo os olhos, e ps-se a soluar. Mordia a boca, arranhou o rosto, mas no
podia sofrear o choro.
O pai esperou que ele acalmasse, enquanto as suas mos fortes e hesitantes lhe
acariciavam os ombros. Mais tarde, levou-o praia fora, a caminho dos rochedos,
onde s vezes iam apreciar algum pescador solitrio.
Ouve Jnito... Esta cicatriz que tu viste no foi de nenhuma queda. Mas eu
no sabia como dizer-to.
Jnito ps-se de novo a soluar e logo, enervadamente, enxugou os olhos com
as mos, perguntando numa voz decidida:
Quem te fez isso?
Lembras-te daquela noite em que... sa de casa?
Foram eles, ento?
Foram.
E tu... deixaste? Deixaste que eles te levassem?
No havia outro remdio. Ouve, lho: h coisas que s um homem pode
entender.
Jnito baixou a cabea e disse, triturando as palavras, quase
imperceptivelmente:
Eu sou um homem.
O pai decerto no o ouvira; de sbito, apontando um barco que entrava na
barra, desconversou:
141
O navio vai a caminho do farol. Est l daqui a um instantinho. Vamos ver se
chegamos primeiro do que ele?
Jnito acompanhou-o sem entusiasmo e, a meio da corrida, sentou-se na areia,
amuado e taciturno. O pai mentira. O pai deixara-se prender. Deixara que lhe
zessem uma cicatriz infame nas costas. No era valente como os soldados da
gravura da sala.
Jnito nunca se sentira to longe e to arredado do mundo dos grandes como
naqueles dias em que bastava que se fosse rua, ou janela, ou se visse entrar
em casa algum da famlia, para que os sentidos cassem impregnados de uma
agitao contagiosa e sufocada que precisasse de romper a crosta que a fechara
numa priso. As pessoas no tinham parana. Eram como as formigas que ele,
certa vez, soprara boca de um formigueiro e que tinham desvairado para um e
outro lado procura do motivo que as zera desviar. Os desconhecidos, na rua,
ao olharem-se, pareciam comprometidos numa vasta e idntica conspirao. At
a alegria da gente grande, das palavras aos gestos, era ambgua, densa, terrvel.
O pai, o tio, e ainda a me, dantes to discretos nas conversas mesa, falavam
agora animadamente, apenas pelo desejo de falar e de se ouvirem, como garotos
palradores na vspera de um acontecimento.
Jnito foi captando alguns pormenores. O pai comprava trs e quatro jornais
ao dia e discutia-os, a punho fechado, com os amigos. E os vizinhos, saudando-se
por tudo e por nada, faziam o mesmo: vinham da rua e saam de casa a ler jornais,
puxavam-nos, com sofreguido, dos braos dos ardinas. Que acontecera? Quem
eram esses nomes que andavam na boca de toda a gente e que os jornais repetiam
todos os dias? Escusado perguntar. No lho diriam. E que intenso desejo, que
inquietao tinham modicado as pessoas o pai, a me, os vizinhos, a rua, a
cidade inteira? Quando algum respirava e Jnito sentia o mesmo , o ar era
espesso, vibrtil, quente, embora se pressentisse que essa opresso iria terminar
num imenso alvio. Jnito apercebia-se bem de que no era uma coisa que
acontecera mas sim que iria acontecer.
Numa das noites, o pai saiu de casa com o tio, demorou-se por l umas horas
e, ao regressar, nem reparou que nenhum dos lhos se deitara ainda. Alvoreado,
disse de rompante para a me de Jnito:
As ruas esto cheias de polcias. E, nas margens do canal, h tanques.
Tanques? O pai dissera tanques? Ah, agora compreendia todo aquele
desassossego! Ia dar-se uma batalha. Bandeiras, tambores, soldados. O pai devia
acautelar-se, ao menos com uma espingarda.
No dia seguinte, o pai no foi ao emprego. Andava pela casa como um bicho
enjaulado. Bicho, no! Bichos eram os outros, os homens que lhe haviam entrado
142
em casa de chapu na cabea. Almoou mais cedo do que habitualmente e, antes
de vestir o casaco, puxou o lho de lado:
No deves ir hoje rua, Jnito. Promete-me.
Jnito no respondeu.
Prometes?
Porqu?
Hs-de ouvir muita gente na rua. Gritos, talvez, ou, pelo menos, gente aos
berros, como no futebol. Fica em casa, acontea o que acontecer.
Gente aqui, na nossa rua?
Em todas as ruas. Mas talvez mais nesta do que nas outras. Prometes?
E janela, posso ir?
Talvez, com cuidado.
Que aconteceu, pai? Uma festa?
Muitas pessoas vo esperar algum que chega no comboio. E depois
acompanham-no. Devem passar por aqui.
Anal, no era a guerra. No havia tanques nem soldados. Algum senhor
importante regressava dos albergues da montanha.
Quem , pai? Um jogador de futebol? De que clube?
No um jogador de futebol. Prometes?
O pai j vestira o casaco. Jnito concedeu, sem convico:
Prometo.
Da a segundos foi para a janela. A mesma atmosfera que parecia enrolar-se
na garganta. A rua estava deserta e nela se sentia o arfar de multides. Uma faca
poderia cortar, como um pedao de po, o ar que se respirava. O pai dissera que
havia polcias por todo o lado. Anal, sempre deviam preparar uma batalha e o
homem do comboio viera para a dirigir. Ah, como seria formidvel, uma batalha!
Uma hora depois, Jnito ouviu um rumor grosso, crescente, l longe. Uma
enxurrada que se aproximava. E o ar fez-se ainda mais encorpado. A ansiedade
de Jnito tornara-se dolorosa. Apetecia-lhe correr pela casa, partir coisas, rasgar
coisas, ir ao encontro da enxurrada. Prometes? Vieram alguns polcias para os
dois lados do passeio, em jeito de emboscada. E depois mais outros. Por m, eram
dois cordes a todo o comprimento da rua.
Guida! Guida! Chega aqui para ver!
Guida trepou para uma cadeira e ps-se tambm janela. A me no aparecia,
estava na cozinha, ou no ptio, ou quem sabe se tambm se escapara para a rua.
S ele estava ali prisioneiro. Prometes? Tinha de cumprir a promessa. Polcias,
sempre mais polcias e gente que, sem olhar, corria para os lados da enxurrada.
Mas estes polcias no tinham espingardas, a guerra no era com eles. Os que, na
tal noite, lhe haviam roubado o pai, esses, sim, tinham espingardas.
143
No vejo nada, Jnito.
J vais ver.
Pois. Ele sabia que iriam esperar um homem ao comboio, um homem mais
fabuloso do que um jogador de futebol. O pai dissera-lho.
E foi ento que uma imensa turba surgiu, de chofre, no extremo da rua. Em
silncio. E quanto mais se aproximava, maior o silncio. Um silncio medonho,
denso, orquestrado, que batia de encontro s paredes, de encontro aos tmpanos
e os deixava obstrudos. Pessoas. Muitas pessoas. Daquela distncia e dentro da
nvoa pareciam iguais. Marchavam num passo certo, predestinado, e dir-se-ia que
se um dique se levantasse na sua frente elas passariam da mesma forma, com o
mesmo passo, tal como um punho atravessa uma folha de papel. A polcia recuava.
Quem eram eles? Qual o seu destino onde terminaria a sua fora solidria e
brbara? Era aquilo uma guerra? Uma guerra sem bandeiras e sem gritos? Mas,
sem bandeiras, sem canhes e sem gritos, Jnito sentia-lhes o mesmo incndio
dos homens da gravura da sala e, de sbito, percebia que toda a vida secreta dos
adultos acabara de se desvendar.
E, nisto, viu o pai entre eles.
O pai, Guida! Olha o pai!
Viu-o, antes de mais, pelo gesto de domar o cabelo revolto. Era ele. O pai era
um soldado. No tinha medo.
Eh, pai! gritou.
Qualquer grito, porm, era logo sorvido pelo silncio. Ningum o ouviria.
E, tambm abruptamente, a enxurrada quebrou. Ou melhor: correu sobre ela
um vento contrrio, vergando-lhe as cristas, como acontece s hastes das searas
quando uma brisa doida muda de direco. L no fundo, a polcia formara uma
parede. E, por detrs, ainda outra parede, eriada de espingardas hirtas, espera
que os corpos, passivamente, viessem oferecer-se. Anal, eram os mesmos que
tinham vindo na tal noite.
Da multido partiu uma voz, um ronco surdo, uma onda que rebenta e logo se
pe em movimento, Ah, como Jnito, de corao transido, desejava que a sua febre
pudesse comunicar-se enxurrada e robustecer-lhe a raiva e o mpeto! E quando
a multido acometeu de novo, como um touro ferido, de novo a parede eriada
de espingardas a fez recuar. A enxurrada desmantelara-se. Dela desprendiam-se
pessoas que corriam sem destino, logo absorvidas pela muralha de polcias. Reses
que desertam e so devoradas. Eles iam car vencidos. No atravessariam a
parede.
Jnito passou as mos pela testa gelada e hmida. Quase o gesto do pai. O pai
no podia ser vencido. De sbito, olhou a gravura da sala. Os cavalos hericos, os
soldados, o tambor. Era de um tambor que eles precisavam. Prometes? No,
pai, no posso prometer.
144
Comeou a tocar o tambor ainda antes de chegar rua. E sempre a tocar
foi abrindo caminho na multido hesitante e esboroada. At l frente. Onde a
enxurrada poderia morrer ou vencer.
Horas depois, os curiosos que vieram observar os buracos que as balas tinham
aberto nas frontarias dos prdios procuravam ainda a mancha de sangue que, ao
centro da rua, marcava o lugar onde outra das balas acertara no peito do rapaz do
tambor. Mas algum a zera desaparecer. E os curiosos iam-se embora concluindo
que os homens das espingardas, quando matam, no deixam ndoas. Apenas
buracos.
145
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
(1919-)
148
Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vivido. As imagens
passaram oscilantes, um pouco trmulas e rpidas. Mas no encontrei nada. E
tentei reunir e rever todas as memrias de quadros, de livros, de fotograas. Mas a
imagem do homem continuava sozinha: a cabea levantada que olhava o cu com
uma expresso de innita solido, de abandono e de pergunta.
E no fundo da memria, trazidas pela imagem, muito devagar, uma por uma,
inconfundveis, apareceram as palavras:
Pai, Pai, porque me abandonaste?
Ento compreendi porque que o homem que eu deixara para trs no era um
estranho. A sua imagem era exactamente igual outra imagem que se formara no
meu esprito quando eu li:
Pai, Pai, porque me abandonaste?
Era aquela a posio da cabea, era aquele o olhar, era aquele o sofrimento, era
aquele o abandono, aquela a solido.
Para alm da dureza e das traies dos homens, para alm da agonia da carne,
comeava a prova do ltimo suplcio: o silncio de Deus.
E os cus parecem desertos e vazios sobre as cidades escuras.
Voltei para trs. Subi contra a corrente o rio da multido. Temi t-lo perdido.
Havia muita gente, ombros, cabeas, ombros. Mas de repente vio-o.
Tinha parado, mas continuava a segurar a criana e a olhar o cu.
Corri, empurrando quase as pessoas. Estava j a dois passos dele. Mas nesse
momento, exactamente, o homem caiu no cho. Da sua boca corria um rio de
sangue e nos seus olhos havia ainda a mesma expresso de innita pacincia.
A criana cara com ele e chorava no meio do passeio, escondendo a cara na
saia do seu vestido manchado de sangue.
Ento a multido parou e formou um crculo volta do homem. Ombros mais
fortes do que os meus empurraram-me para trs. Eu estava do lado de fora do
crculo. Tentei atravess-lo, mas no consegui. As pessoas apertadas umas contra
as outras eram como um nico corpo fechado. minha frente estavam homens
mais altos do que eu que me impediam de ver. Quis espreitar, pedi licena, tentei
empurrar, mas ningum me deixou passar. Ouvi lamentaes, ordens, apitos.
Depois veio uma ambulncia. Quando o crculo se abriu, o homem. e a criana
tinham desaparecido.
A multido dispersou-se e eu quei no meio do passeio, caminhando para a
frente, levada pelo movimento da cidade.
149
Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso
lado. Pelas ruas.
150
JORGE DE SENA
(1919-1978)
152
O GRANDE SEGREDO
Alli me mostrarias
aquello que mi alma pretendia (...)
Fechou a porta da cela atrs de si, e cou parada, encostada porta, sentindo a
madeira dura na nuca, atravs do vu. A luz da lamparina, no oratrio, bruxuleava
lenta, s vezes crepitante, e espalhava uma claridade a que ela reconhecia, mais
que via, a mesa junto da janela, com os livros pousados, e o genuexrio, e o catre
de tbuas, e as lajes carcomidas. Sabia perfeitamente o que a esperava. Sentira
nitidamente, ao levantar-se da ceia, e depois, na igreja, durante as oraes, que
mais uma vez ia sofrer a visita... Como o corpo se recusava a despegar-se da
porta, para car desamparado na cela, assim tambm, mentalmente, as palavras
se recusavam a nomear o horror que a esperava. Tremia: a pele, como a memria,
retraa-se num palpitar ansioso, de que as mos j se levantavam num gesto de
repulsa. Era superior s suas foras tudo aquilo; no suportava mais. Apetecia-
lhe gritar por socorro, rebolar no cho, fugir pelos corredores e pelo campo fora.
Tudo seria prefervel. Mil vezes ser assaltada por mendigos leprosos, mil vezes
ser violada brutalmente por soldados e bandidos, mil vezes ser vendida como
escrava. Mil vezes a repetio de tudo isso que, na sua pregressa vida, conhecera.
Mil vezes viver a desgraa que essa vida fora, antes de, como um refgio enm
conseguido custa de tanta misria, se abrirem na sua frente, e se fecharem sobre
ela, as portas do mosteiro. Quando, enm, entrara nele, tambm como agora se
153
encostara porta, no a despedir-se do mundo, mas a sentir que tudo cara l fora,
e ela renasceria, teria nalmente a ressurreio da sua vida que o peso de uma
pedra imensa, que era o seu destino, no permitia que surgisse e caminhasse. Mas,
ali dentro, e dentro da ressurreio, esperava-a o horror inominvel de ser eleita,
de ser visitada, de ser amada mais do que possvel.
Abanou a um lado e outro a cabea. No. No. Por piedade, no. As dores
medonhas que sofrera ao ser possuda com violncia por um monstro de dimenses
incrveis, nada eram a comparar com o que, nestes momentos, sucedia no seu
esprito. E, no entanto, a semelhana era muita, era tanta, era de mais.
Quando o claro comeou a surgir entre a janela, e o oratrio, cerrou os olhos,
escorregou ao longo da porta, agarrou no rosrio e percorreu as contas que lhe
fugiam. No era uma tentao que repelia assim; mas era, como bem sabia, um
esforo para que o cu se contentasse com as relaes espirituais de uma orao.
Todavia, tudo no seu corpo aito lhe armava que seria intil. O claro aumentou,
como sempre, e, como sempre, mesmo de olhos fechados ela via o perfume da
imensidade luminosa que suprimia as paredes da cela e a envolvia numa ternura
tpida que lhe doa na medula dos ossos. Tambm a msica, suavssima, lhe doa
assim; e, no entanto, essa msica, que, sem ouvir, sentia, no se misturava
claridade, era antes um acompanhamento, um fundo sobre que a luz se tornava
mais aberta e mais imensa. No tardariam as vozes que lhe apertariam todos os
recantos do corpo, como tenazes ardentes, ou como lbios, ventosas, lnguas.
Num esforo doloroso, abriu os olhos. A claridade enchia a cela toda, e o catre,
o oratrio, os livros, o genuexrio, a mesa, as lajes, as portas da janela, a prpria
lamparina, tudo utuava numa ondulao cadenciada, num torvelinho sem peso,
e navegava como de velas pandas, e esteiras rebrilhantes sussurravam de todas as
coisas como ao longo do casco de um navio.
Agora eram o hbito e o vu, o cilcio que trazia cinta, e o rosrio, que,
devagarinho, levantavam voo e entravam na sarabanda macia. A brutalidade
sufocante e dilacerante penetrava-a j, enquanto o desfalecimento lhe triturava as
vsceras e os ossos. Tudo nela se abria e despedaava, eram milhares de agulhas
que a picavam, facas que a rasgavam, colunas que a enchiam, cataratas que a
afogavam, chamas que ardiam sobre guas luminosas, cantantes, e pousavam
como fogos-ftuos pelo corpo dela.
Crispando-se numa ltima recusa, mas ao mesmo tempo cedendo para que
aquilo acabasse, inundou-se de uma ardncia cristalina, que se esvaa do seu
mago, l onde a Presena, enchendo-a, martelava os limites dissolvidos da
carne. A luz atingiu um brilho insuportvel, a msica atroava tudo, sentiu-se
viscosamente banhada de clamores e apelos que lhe mordiam... E, na treva e no
silncio sbitos, sentiu, nas costas, na nuca e nas pernas, a dureza violenta e fria
das lajes em que, do ar, cara.
154
Abriu os olhos na escurido. O corpo dorido e descomposto, o frio e a
lamparina que ardia bruxuleante, recordaram-lhe que entrara na cela; mas, com
veemncia, horror, revoltada humildade, no recordou mais nada. Deixou-se car
estendida, saboreando uma incomodidade que era exaurido repouso. E comeou a
ouvir o murmrio das rezas, a voz da madre abadessa, sussurros que se destacavam
e reconhecia.
Leves pancadas soaram na porta, o fecho estalou, e a madre e mais duas
entraram recortadas no claro difuso que vinha do corredor, onde as rezas
continuavam. Viu-lhes os hbitos junto do rosto, e as pregas subiam a sumir-se
no escuro. Tinham vindo, como sempre, escutar, ciumentas dos favores que
a cumulavam, apiedadas do sofrimento que lhe cabia em sorte, atradas e
atemorizadas, rezando para a ajudarem e tambm para participarem daquele claro
sonoro que extravasava pelas frinchas da porta. Quando assim se curvavam para
ela, e a levantavam, e carinhosamente a deitavam no catre, e cavam de joelhos,
enchendo a cela e o corredor, rezando com ela, no imaginariam a vergonha
imensa que a turturava, ora diversa, ou igual que sentira quando o emir, no meio
da tenda, mandara que a despissem e os soldados, uns aps outros, a possussem
em pblico. Ela recusara fazer parte, como primeira esposa, do harm, e ele, que
a estimava e preferia, e a comprara aos piratas e a trouxera com requintes de
delicadeza, mandara que os eunucos a estendessem no div e a segurassem.
Deitada no catre, de olhos fechados, apagou da memria todas as recordaes.
Sentia-se descer lentamente, num poo sombrio e hmido, sem fundo. Nem a
presena delas, nem as vozes delas, nada podiam contra a solido e o silncio.
Era este o momento que, anal, mais temia. Era nestes momentos que, bem
sabia, ela consentia na visita prxima, cedia antecipadamente ao apelo e luz,
quando viessem. No dia seguinte, pela madrugada, aps um sono ptreo, tudo
teria passado. As outras irms cruzariam por ela, saudando-a com deferncia,
trocando ou tentando trocar um olhar comovido, um sorriso amvel. A abadessa
cham-la-ia para conversar de coisas correntes, de notcias dos exrcitos e dos
parentes, dos combates em Jerusalm, e do Santo Seplcro. E subitamente, na
cela, no claustro, no jardim, na adega, quando estivesse s, amanh mesmo, daqui
a um ms, de dia ou de noite, tudo se repetia e recomeava. certo que, por
mais que zesse, ocasies havia em que se afastavam dela as outras, a deixavam
s, como se a propiciarem a repetio de acontecimentos que eram honra do
convento. E grandes senhores ou pobres mendigos vinham para tentar v-la,
atravs das grades do coro, ou pediam para que ela os tocasse. A abadessa arrast-
la-ia, de olhos fechados, pegar-lhe-ia na mo, que enaria pelas grades, e ela
sentiria que lhe choravam nela e lha babavam de beijos. A prpria abadessa,
trazendo-a em silncio de volta ao claustro, lhe limparia a mo.
155
Recolheu sobre o seio a mo que pendia para fora do catre, e agora lhe
beijavam. Suspirou. Dentro dos olhos fechados, viu o crucixo que havia na igreja
da sua terra natal, l longe, h tanto tempo, nos conns da Europa. Foi uma
surpresa esquisita que a percorreu trmula da cabea aos ps. Nunca mais o revira,
nem o recordara sem o rever, nem sequer no esprito lhe passara a lembrana, no
reconhecida, de lembrar-se dele. A imagem sorria para ela, e ento ela, menina
olhando em volta para vericar se estava s, erguera a mo para o cendal que o
cingia, e tentara levant-lo para espreitar. Porque ele no podia deixar de ser como
os outros homens. Mas o cendal, que parecia de to na e leve seda, era esculpido
na madeira, e ela baixara tristemente a mo, sentindo que a curiosidade lhe fora
castigada.
Abriu os olhos, e viu que estava s. Uma paz, uma tranquilidade, uma
saciedade que no estava nela, mas no ar que a rodeava, deslaavam-lhe as
derradeiras crispaes do corpo contuso. Ainda, mas muito distantes, sentia dores
dispersas, ou localizadas onde a violncia fora maior. Mas o bem-estar era enorme
e contraiu-lhe os lbios num sorriso. O grande segredo, agora sabia o grande
segredo. E adormeceu.
O claro recomeou a encher a cela, mas no aumentou mais, nem ressoava.
Antes cou em torno dela, como um dossel, uma atenta e vigilante ternura, que,
debruada sobre ela, a contemplasse, to dorida e esmagada, respirar tranquila.
156
CARLOS DE OLIVEIRA
(1921-1981)
Alm de uma obra de poeta com denitiva presena neste sculo de grandes
poetas portugueses, Carlos de Oliveira foi construindo ao longo da vida, em
incessante decantao e apuramento de estilo, uma constelao de romances
reveladores da sua grande qualidade de artista literrio. Na concepo rigorista
da expresso e no esforo de artce da escrita que lhe desse o mais justo
contorno no se dissociaram nunca o poeta e o prosador novelstico. So idnticas
e constantes na obra do Autor, em ambas as direces, a sobriedade linear, o
domnio e concentrao semntica da palavra como signicado, a coerncia
na composio em que se reectem os comportamentos e linguagem das
personagens, a maior vibrao contida na simplicidade tenazmente conseguida.
A exigncia do construtor de co ancou-se em estruturas rigorosas e
demorada lavra nos romances Casa na Duna (1943), Alcateia (1944), Pequenos
Burgueses (1948), Uma Abelha na Chuva (1953) e Finisterra (1978). Foi talvez
essa mesma exigncia que desviou Carlos de Oliveira do conto (pela sua sumria
imediatidade), de que aoram apenas alguns exemplos ou meras aproximaes
em passos dos romances e nos textos multmodos de O Aprendiz de Feiticeiro
(1971). De qualquer modo, caram a sugeridas virtualidades que o escritor
parece no ter querido explorar. Mestre no desenho de guras tpicas, de
baixas ambies ou de pequenos-burgueses laminados pelo progresso, como
o deniu Joo Gaspar Simes, no poderia car Carlos de Oliveira ausente
nesta antologia, que pretende ser mais que o testemunho circunscrito de um
gnero literrio e apontar as direces fundamentais da prosa novelstica em
Portugal nas ltimas dcadas. Ora, no enquadramento longo do Neo-Realismo,
que vem at plena actualidade, foi este escritor um dos seus expoentes mais
representativos e a sua obra uma lio de ofcio literrio sempre insacivel de
procuradas perfeies. Como escreveu Mrio Dionsio, a obra de Carlos de
Oliveira uma das realidades mais perdurveis da literatura portuguesa dos
nossos dias obra de um grande escritor que nunca se fechou naquilo que
criou.
157
OS CORVOS
160
MRIO BRAGA
(1921-)
164
AGUSTINA BESSA LUS
(1922-)
166
FILOSOFIA VERDE
Numa dessas madrugadas em que o nevoeiro parece que d aos becos mais
sinistros como que uma comunicao de claridade, de luar, dois homens tentavam
abrigar-se do frio, no limiar um tanto avanado dum portal. Maltrapilhos, de
barba rala ambos, no falavam. Apenas abraavam a arcada do prprio peito,
agasalhando as mos, pecas e de falanges lvidas, nos sovacos e sob as cavas dos
casacos pinges, prenda decerto dalguma benecncia ou dalgum monturo. No
se poder denir a sua prosso, sem que um riso extasiado nos assome aos lbios
um riso de Falstaff que sonha, ou de Mestfeles que faz metafsica. Aqueles
dois homens, que se amparavam com o prprio bafo, pertenciam a um gnero
que, por ser ilegal, tem mais assegurada a sua continuidade. Eram simplesmente
caadores de mortes sbitas. Oh, todos ns sabemos o que so mortes sbitas!
Uma apoplexia para classes abastadas, quando o heri transita de um bairro ao
outro, dum extremo ao outro da tica, e reconhece anal que no lhe valera dar um
passo, pois a morte faz com que se toquem todos os extremos. O m, que nunca
nos parece prematuro, mas sim fatal, dos annimos, e este no tem designao
nem assopra os ventos da curiosidade.
Aqueles dois seres nocturnos viviam dessa empresa, mais macabra ainda por
ser ridcula, de sgar os falecidos na via pblica, os que a congesto vitimou
ou o corao deteve no caminho, os que o frio tolheu na posio de quem ainda
aspira do colo materno o afago, ou os que a fome prostrou, unhando a terra e
colando nela uma boca ainda esperanada, humilde. Quando o aspecto do morto
denunciava um burgus, ainda que de limitadas rendas, subtraam-no ao carro que
fazia o intercmbio entre esses paradeiros de acaso e a morgue, entregavam-no
167
a domiclio, e esperavam, como bons funcionrios, a gorjeta. Nas reas em
que actuavam, travavam relaes com o polcia de giro, bons homens sempre,
que usavam a violncia mais por serem timoratos do que arrojados. No raro,
merc duma piedade compadresca, os caadores de mortes sbitas, cavam-lhes
sob proteco. E dessa autoridade bonachona, que nem auscultava a razo para
esquecer a lei, provinham as informaes mais cobiadas.
Ento, senhor guarda, esta noite, nada?
No h nada...
Separavam-se. Um acoitando-se nas goelas dos portais, perto da carreta que
as sombras ocultavam; o outro prosseguindo na ronda, o capote salpicado de um
orvalho no, que era como limalha de prata que viesse oscilando no nevoeiro.
Essa era, ao parecer, uma das noites em que no havia nada. Os dois vigias
em vo velavam no seu lugar estratgico, saltitando a p-coxinho para no se
entorpecerem e proferindo pragas surdas e sem clera. Naquela ruela esbicada por
salincias de velhas varandas, experimentava-se a sensao de assistir ao estertorar
do silncio. Eram como clamores ltrados por um tempo innito, gemidos que as
prprias pedras emitiam, um impar de fadiga resignada, de dor que a sua prpria
conscincia de eternidade faz passiva, sem, porm, a amortecer. Um dos homens
tinha recuado mais para o vo do portal, buscando um nicho onde encolher-se e
possivelmente dormitar. O outro falou-lhe, movendo a custo os beios brancos.
No pares, h, se no queres vir nos jornais!
Deixa l... murmurou o que dobrara sobre si mesmo, o rosto mergulhado
no seio, entre as lapelas bambas do casaco. E no disse mais nada; cou-se quieto,
esforando-se por concentrar todo o calor, evitando os movimentos, que eram
como agulhadas penetrando-lhe a pele amolecida, gasta, como um pano que se
usou demasiado. No extremo da rua rolhada pela treva, ouviu-se, tnue e distinto,
o sinal do guarda.
Temos freguesia, vamos disse o que permanecia de p, pulando e
sacudindo-se como algum que sofre uma queimadura. Vamos repetiu. Sau
para o passeio; as alpercatas pegavam-se-lhe nas lajes hmidas, e ele tremia,
muito embebido no nevoeiro, onde se recortava como uma silhueta verde-cinza
ligeiramente prateada nas bordas.
H um tipo a perto esclareceu o guarda. Teso como um carapau, e eu s
queria saber como vocs se vo arranjar com ele. Parece que est morto desde o
princpio do mundo, e conservava-se assim bem at que ele acabasse.
Ele h sangues que coalham logo, h disse, conspcuo e condencial, o
caador de mortes sbitas, enquanto caminhava. Reparou que o companheiro no
o seguia, e rogou-lhe algumas pragas, a que a falta de solenidade e convico
devia esmorecer os efeitos.
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C est o sujeito. Faz-me arranjo...
Abaixou-se at junto do corpo, e voltou-o. A lanterna iluminou uma face hirta,
com uma amolgadura de queda na tmpora; lquidos viscosos corriam-lhe das
narinas, e a boca, cerrada, tinha uma expresso mstica e quase sorridente. Parecia
pertencer a essa classe de escriturrios que tm a sua originalidade, como
uma marca de fogo, no macilento da tez, na expresso batida e no terrvel
do olhar abandonado, vil porque nada espera, sem que, porm, se tenha nele
extinguido a presso dos desejos. Sob a borda das mangas do rapado sobretudo,
tinha ainda vestidos os canhes de sarja preta, que os elsticos, gastos, faziam
soltos nos pulsos. Voltava talvez dum sero de contabilidade, de escrita, recurso
extraordinrio das suas necessidades, onde adeja sempre um terror de misria,
mais esgotante que o combate, em campo aberto, com a prpria misria. Tinha
no dedo mdio um calo que o apoio da caneta provocara, e que estava um
tanto penetrado de tinta violeta. Mas as unhas eram longas, esmeradas, polidas,
como as dum guitarrista; usava-as em bico, aduncas, muito limadas nos bordos,
apuradas com esse capricho ingnuo que , s vezes, um tique manaco, uma
espcie de conforto ocioso numa vida estrangulada de inquietaes, de perigos,
ou simplesmente de rasa mediocridade. Quantas coisas estranhas, complexas,
denunciavam aquelas unhas em garra, sopradas com um bafo, lustradas na manga
ou na anela da cala, tasquinhadas a lmina e a canivete, miradas a distncia com
anlise, com aprovao, com crtica! Que profundas maravilhas de aspiraes
audaciosas, ardentes, elas traziam superfcie do homem cujos passos, cujas
palavras, cujo ritmo de realidade no eram mais que trivialidade, chateza, um rojar
de coisas e pensamentos vos!
O guarda desviou-se um pouco; o estalido da lanterna ao apagar-se, teve a
ressonncia duma aldraba na, de cobre, que se deixa cair.
Chama l o outro, e aviem-se disse, desabrido. Entregou o carto do morto,
que retirara da carteira. Andam com sorte. s vezes no h jeitos de a gente os
identicar.
Mais uma vez, o caador de mortes sbitas olhou sua volta, procurando o
companheiro, sibilando palavres e ameaas, pulando como um orango que se
excita. Por m, retrocedeu para a viela onde zera atalaia, numa corrida chegou
ao portal, que franqueou para tropear no vulto que, enrodilhado, o queixo enado
entre os joelhos, parecia dormir. Abanou-o, pondo no gesto uma brutalidade, e,
sem contudo pensar inteiramente nele, chamou-o pelo nome, com uma entoao
irada e fraterna. Mas, por sua vez, o outro tinha morrido; no havia j um hlito
de vida, e energia, de calor, nessa carcaa que jazia enovelada como uma bola de
alinhavos, inconsciente, mole. Tinha as plpebras fechadas e dormia, sim, com
uma ruga de perplexidade na fronte e que, desfeita, lhe desenharia uma linha mais
169
clara, tanto tempo a trouxera, desde a infncia talvez a criara e se habituara a ela.
Dormia, no mais cego, agora que os seus olhos se vidravam, frios como bolas
de berlinde, e, como elas, irisados de cores que parecem nubladas, perdidas, sob
a superfcie do vidro opaco e que os muitos golpes riscaram. Os seus cabelos
so o nico agasalho da sua nuca, que, dobrada, parece oferecer-se a um cutelo
de magarefe; as suas mos esto entrelaadas, apertando o vazio; o seu corao
est agora tranquilo, e ele dorme. Como esses bolores que crescem nas valas,
nas podrides, e delas extraem a sua prpria forma, no inspira nojo, nem sequer
desgosto. Porm, se virmos sob essa matria, essa cor de fungo, uma pele humana,
o fssil dum sorriso, dum esgar, duma aspirao humana, ento o nosso peito
ceder com a intensidade do assombro do assombro, da incredulidade, da
surpresa, e nada mais. No h dor que dedicar, pena para sentir. Apenas espanto,
humilhao, desejo de reverter tambm a esse destino que nos faa irmos no
inferno e na lama, j que a luz escassa e o acaso um insulto que, poupando-nos,
nos envergonha.
O homem caador de mortes sbitas cismava, junto do companheiro. Conhecia-
lhe a amiga, um ente torcido como um tronco que no oriu. Dizer que ela lhe
tinha amor emprestar ao amor um novo sentido; uma vez que aquela dedicao
de besta enferma, aquelas traies de fmea que, na fossa da continuidade mais
estiolada e rida, procura ainda a esperana, a aventura, tudo isso um estado
de amor e de dio, a prpria raz da vida, unidade e dualidade fatais. Ela receb-
lo-ia com os clamores uivados que partem mais dos nervos que do corao, havia
de chor-lo depois, beijando-o com esses mimos que nos fazem voltar o rosto
angustiado, porque s nas criaturas jovens, nos que so belos e trazem em si o
sinete esplndido da vitalidade no brilho do olhar, no cndido fogo dos sentidos,
s nesses os admitimos.
H pensou o homem o outro morto... E eis que o dilema se lhe agurava
insolvel. Arrastando o amigo para o quartelho onde, como uma lava, escorria
a humidade, e onde o receberia a terrvel mulher, que o crivaria de culpas e
de injrias, perderia aqueloutro cadver cujo transporte lhe renderia o seu lucro
daquela noite e talvez de muitos dias mais. Duas vezes se moveu para deixar o
corpo no seu cncavo de portal, e outras tantas parou, hesitou e volveu. O morto
era apenas um fardo, mas to presente como se um sentido vivo o explicasse,
lhe insinuasse poderes e leis. H o outro... pensava ainda o homem. E
via um postigo envidraado que se abria, ouvia uma voz ensonada, trpega,
agastada pela campainha a desoras; depois, as exclamaes trmulas, as luzes
que se ascendem, os passos que se arrastam na passadeira, soluos que vibram,
sufocados, amordaados; por m, a mo que gratica e fecha lentamente a porta,
como quem se isola e divide dois mundos, dois pedaos de vida.
170
Com um gemido de renncia e de rancor contra si mesmo e o tirano que assim
o vencia, pegou no companheiro morto, colocou-o na carreta, e afastou-se com
ele. Tragou-os a ambos o boqueiro do beco que desabrochava em novos laos
de artrias sujas e solitrias. De longe, na fulgurao verde do nevoeiro, parecia
ele uma raiz que a terra expeliu, que se mantm superfcie, nodosa e aniquilada,
com pequenos tumultos de seiva criando inesperados milagres de vida. Como as
oliveiras da ilha de Maiorca, secas, centenrias, devoradas do tempo, mirradas e
esbracejantes como impotentes fantasmas que se contorcem numa dor esttica,
dor que a prpria conscincia de eternidade faz passiva, sem, porm, a minorar,
como essas rvores mortais, de cujos braos extintos brota, um dia, um pequeno
ramo estuante e verde, assim era ele. Como a losoa verde duma folha tenra,
encantadora e brilhante, assim era a generosidade do homem que se afastava com
a carreta, donde pendiam os membros inertes do morto. E toda a sua histria
estava talvez na losoa verde daquela noite.
171
URBANO TAVARES RODRIGUES
(1923-)
173
A MEIA HORA DE SOL
176
JOS CARDOSO PIRES
(1925-)
178
OS CAMINHEIROS
189
AUGUSTO ABELAIRA
(1926-)
191
ODE (QUASE) MARTIMA
...telefono, escrevo uma carta, uma dessas cartas que nunca escrevi (que nunca
escreverei), humilho-me, se necessrio for. Ou nem telefono, nem escrevo, nem...
E co espera, e o que acontecer acontecer e o que no acontecer no acontecer
para qu meter-me nisso (embora isso seja a minha vida)? Melhor, muito
melhor: durante dois ou trs dias ponho de parte o homem que deu o nome na
recepo do hotel (se quisesse dava um nome falso, no me pediram o carto
de identidade), ponho tambm de parte o homem que h-de ir-se embora no
momento imediato a ter pago a conta (pagarei a conta, aijo-me s de imaginar
que podem supor que no tenciono pagar a conta). E ento: em que vai pensar
quem abdica do seu prprio passado (como se fosse possvel!), quem abdica do
seu prprio futuro?
Talvez nos peixes que no v, que sei mergulhados ali em frente no oceano. Ou
na chuva que molha os teus cabelos, escorre pelo teu rosto, pela tua gabardine
o defeito das gabardines de plstico: em vez de agarrarem a chuva, repelem-na,
deixam-na deslizar velozmente para dentro dos sapatos! Mas, mesmo assim, ainda
bem que trouxeste a gabardine, quem teria dito que havia de chover (Natal na
praa, Pscoa ao borralho)?
Ainda bem que trouxeste a gabardine, mas no fales muito nela, pois pertence
ainda ao teu passado (pertencer ao teu futuro), no fales do oceano (tambm
pertence ao teu passado, tambm pertence ao teu futuro, embora seja prefervel
dizeres mar , oceano uma palavra para as grandes ocasies, no para o dia-a-
dia), fala de... Ah, fala, diz coisas, se te atreves, cujo sujeito no sejas tu, coisas em
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que ques de fora e que possam ser ditas como se no existisses e as no dissesses,
coisas que no precisam de ser ditas nem sonhadas para existirem: chuva, noite,
mar. Mas quem v chover, quem v a noite e o mar? Sujeito: tu. Erro evidente,
sujeito: eu.
Eu com um passado e um futuro (muito mais um passado e um futuro do que
um presente), eu (ou tu, se preferes tratar-me por tu para te desdobrares, para
teres a iluso do dilogo, a iluso de que no estou s). Eis-te pois a falar comigo
prprio (com o meu passado, com o teu futuro, no com este supercial presente
de trs dias), comigo prprio, Joaquim Alberto, a falar em voz alta, aqui de noite e
na praia, de noite e frente ao mar, a chuva nos cabelos (uma constipao amanh).
E espera. Sim, espera de qu, nessa noite de Natal?
De um milagre, escndalo!
Um longo arrepio atravessando o corpo que teu (que s tu, que sou eu, no
m de contas). Porque se acaso hoje no tem sido noite de Natal, estarias aqui
espera de qualquer coisa (embora descrente, embora ateu), espera dum milagre,
escndalo? Um arrepio, um desses arrepios que vm certamente da memria das
clulas herdadas de teus avs.
Ou nada disso. Ests aqui (estou aqui) por ser noite de Natal, certo. Mas no
por ser noite de Natal, e sim porque hoje feriado. Estarias aqui tambm espera
do mesmo milagre, embora sem te lembrares de lhe chamar milagre, se hoje se
festejasse a descoberta do Brasil ou a proclamao da Repblica?
E nessa noite de Natal (dez de Junho, cinco de Outubro?) suspendes
subitamente a tua vida, sentes-te tentado a dividi-la em duas partes, o passado e
o futuro, procuras descobrir o que vais fazer desse teu (desse meu) futuro, pensas
numa transformao radical... mas se, por acaso, Joaquim Alberto, aparecesse
agora aqui a teu lado aquela inglesa do hotel, se comeasse a falar-te, se me levasse
consigo, no adiarias imediatamente para amanh o instante da transformao
imediata? Neste momento no trocarias todo o teu futuro regenerado por uma
noite (ou duas ou trs) nos braos dessa inglesa (ou doutra) por culpa de quem,
ao jantar, mudaste discretamente a posio da tua cadeira e comeste um tudo-
nada inclinado para a esquerda de modo a mais completamente lhe apreciares
as pernas, melhor surpreenderes o que as saias esconderiam se te mantivesses
direito? E a muito leve mas contnua dor de estmago (responsvel, quem sabe?,
pelo teu flego metafsico, pela tua insatisfao, pelo teu desejo de te regenerares)
no ser o resultado inevitvel da maneira como jantaste?
Paro um instante, imagino-me de sbito numa gruta de eremita ou na Tebaida,
em cima duma coluna, grito: Vade retro, Satana! O pecado, o grande, o verdadeiro
pecado, no est na carne, nas fraquezas da carne, mas nas dvidas que exprimes
acerca de mim prprio, na minha tendncia para no te levar a srio.
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Vade retro, Satana! Esfrego as mos, vejo-te no deserto (e como se estivesses
realmente fora de mim, ocupasses um espao diferente, como se no fosse eu),
penso: porque estarias no deserto, l nesses primeiros sculos do cristianismo, que
fora te teria empurrado para l, que fantasmas povoariam a tua noite de Natal?
Mulheres, no. Perturbado por veres os cristos acusarem-se uns aos outros
fugindo para no seres perseguido, tu que no poderias ser perseguidor...? Que
no poderias ser perseguidor porque no tinhas foras para s-lo ou porque no
o desejavas? Ou seria a tua tolerncia, o teu desejo de liberdade, um sintoma
somente da tua fraqueza? s um perseguidor que de ti prprio te escondes, todos
ns seremos perseguidores no mais profundo das nossas almas?
Sim, como seria bom passar agora as mos pelo corpo da inglesa (dessa ou
doutra), sentir nos dedos a doce penugem das pernas dela, eternizar tais momentos
no h depois, no h antes, s h agora. Ou estar junto de ti, Filomena, ou
telefonar-te.
L ao longe, vencendo o nevoeiro, a noite espessa, a chuva, atravessando o mar
um risco contnuo (descontnuo) de luz. Um barco, embora eu no veja o barco.
Um velho cargueiro ingls, clssico sua maneira? No sei quem, encostado
amurada, ver luzes, mas no as que eu vejo, as luzes do hotel, invisvel tambm; e
um ponto vermelho, certamente a ponta dum cigarro h-de concluir , mas sem
adivinhar de que lado est o cigarro e, portanto, de que lado estar o homem que
sou eu.
No te preocupes digo-lhe ento , sabe simplesmente que tambm penso
em ti, mas sem sequer ter como ponto de referncia a ponta dum cigarro.
Aproveitar esta noite, pr as ideias em ordem! Comear pelo princpio, l
nesse instante em que certo animal pela primeira vez ops o polegar aos outros
dedos da mo (mas no do p)? Ou no momento, bem mais prximo, em que a
tua mulher, h quase um ms, se foi embora, dizendo numa carta que no podia
continuar a viver contigo?
Ou talvez devas comear pelo m. Por exemplo: sem que eu suspeite,
subitamente rompe-se uma artria no teu crebro... Apura os ouvidos, ouve,
ouve com ateno, ela comea j a... Dentro de segundos, Joaquim Alberto,
responde-me: ests preparado para morrer, tu que te hospedaste num hotel, que
vives dezasseis ou dezassete sculos depois de poderes ter ido para o deserto?
Estarei preparado para morrer?
Ah, as grandes, as grandes frases, as grandes perguntas, mas como bom diz-
las, ouvires-te repetir o que tantas vezes foi repetido muitos sculos atrs! Estarei
preparado para morrer? No fundo, isto: zeste tudo quanto deverias ter feito,
agora que j nada poders fazer? Neste instante em que, de sbito, num relmpago
(a artria a romper-se), toda a minha vida passa diante dos teus olhos antes de
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mergulharmos ambos no silncio denitivo, z tudo quanto me sentia obrigado a
fazer? Posso, nesta noite de Natal (neste dez de Junho, neste cinco de Outubro),
encarar repousadamente o silncio porque estou sem esse pecado mortal? Alguma
vez arrisquei a minha vida como tantos homens arriscaram a deles, os Guevara,
os Camillo Torres ou, mais nobres ainda, esses cujo nome ningum sabe e que
j sabiam que nunca seria sabido os annimos absolutos, embora no haja
annimos absolutos? Eu, que em certos momentos me trato por tu tu, que em
outros momentos te tratas por eu, neste dilogo intil j algumas vezes me
surpreendi te surpreendeste a dizer ns? Ns - no um eu, no um tu. Ns,
anonimamente...,
Tu (ou eu), que contestas o mundo, falando cobardemente com o oceano (nem
sequer com o mar).
Um homem de setenta e dois anos, aparentemente sessenta. E bem vestido,
embora com modstia, muito bem penteado, falando vagarosamente como se
estivesse a dar uma explicao a um estrangeiro ou como se o estrangeiro fosse
ele e sentisse diculdade em achar as palavras exactas. Era isso numa papelaria,
enquanto eu aguardava a minha vez e ele falava com um amigo. Logo a seguir o
amigo foi-se embora, o homem continuou a conversa, primeiro dirigia-se a toda
a gente, depois comeou a falar apenas comigo. Tinha estado muito doente, tanto
que uma vizinha dissera para a mulher: O Senhor Marques no se safa. Repetiu
isto umas trs ou quatro vezes durante a conversa. Estive to mal que at uma
vizinha disse... Estive morte acrescentou. Mas sou to saudvel que resisti.
Para a semana devo ser operado a um pulmo. A minha mulher no quer, tem
medo. Sabe? Casei tarde, no tive lhos. D-me uma saudade dela... Eu tanto se
me dava como no de morrer. J vivi o suciente, trabalho de manh noite e,
para lhe ser franco, esta que a verdade, tenho de trabalhar at o meu ltimo
momento de vida. Uma reforma de quinhentos escudos, imagine! Uma vez, uma
s vez, fomos Holanda ao desao do Benca. Estas coisas no se podem repetir,
claro. E depois tivemos de apertar os cordes bolsa. Para lhe ser franco
repetia muitas vezes , s preciso de continuar a viver por causa da minha mulher,
coitadinha. Abriu a carteira e mostrou a fotograa: uma mulher gorda, com
culos, uma permanente feita num cabeleireiro barato.
Como? Estou aqui a resumir para mim prprio uma cena a que assisti, que no
precisa portanto de ser evocada com todos estes pormenores, que no precisa de
palavras, de palavras distribudas por um discurso coerente, para que eu a recorde!
Porque descrevo o que no preciso de descrever?
No ento para mim que estou a falar. Falo com algum.
Se acreditasse em Deus, a segunda pessoa escondida no tom da minha voz
talvez fosse Deus. Se acreditasse na Morte (na entidade Morte, a tal que tem uma
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grande foice e que j foi muitas vezes retratada h seis sculos), seria com ela que
estaria a falar: Tu, Morte! Ou com a noite, ou com o mar, ou com a chuva.
Mas no, tenho a lucidez bastante para no cair em semelhantes armadilhas. Falo
pois para o silncio. Para? No, falo pois em silncio, quebro com a minha voz o
silncio (no ouo nem o vento, nem a chuva, nem o mar). Se escrevesse, ainda
era possvel admitir um leitor subentendido nas minhas palavras. Mas no escrevo
e falo em voz alta precisamente por estar sozinho. Ou desejoso de que me ouam
alguns ouvidos encobertos pela noite? E assim:
Sofro, a primeira vez na minha vida que me atrevo a dizer a algum que
sofro, pois sempre achei ridculo, sempre achei uma fraqueza, sempre achei que
o homem deve esconder dos outros (e de si prprio!) os prprios sofrimentos,
sempre vivi como se falasse em voz alta, mas para que os outros (e eu!) tivessem
de mim uma certa e determinada imagem.
Uma certa e determinada imagem. Qual? Que tenho eu procurado que pensem
de mim os outros, independentemente do que sou (ou imagino ser)? E quais outros,
visto que nem todos os outros me interessam? Precisamente: que interlocutores
tenho eu escondido, em silncio, para a minha vida, de quem so as sombras que
dialogam comigo quando me encontro s?
Olho em volta (digo que olho em volta), no esteja algum (ou uma sombra
e as sombras podem ter ouvidos) a observar-me porque sempre procurei que
os outros vissem em mim um homem seguro, um pouco cptico, certo, mas seguro,
com meia dzia de convices inabalveis, pelo menos acerca de meia dzia
de pontos fundamentais. Quem so os homens que no devem ouvir o que neste
momento digo? E os outros, esses a quem contaste a histria do marido que tinha
saudades da mulher? Tu, que contaste essa histria como se a escrevesses, que
falas como se escrevesses, que escreves em voz alta, que como se j assistisses
leitura dessas palavras que anal nem sequer foram escritas... Quem as l, quem
imagino eu que l estas palavras, a quem as escrevi, eu que no as escrevi nem
escrevo...?
Espera, Morte, espera um momento, no me deixes morrer antes de
descobrires esses ouvintes (ouvintes que s o foram porque ausentes), quem so, a
quem que neste momento dirijo este discurso, eu, que no estou a falar contigo,
Morte, que no acredito na tua foice, nos teus ouvidos, que no acredito sequer na
ruptura imediata duma artria, eu, sabedor de que no existes, pelo menos como
ser a quem se possa dirigir a palavra, que njo falar contigo porque sei que no
podes ouvir-me, porque sei que tu no s tu nem ningum.
E ter ento a humildade de dizer Filomena:
Vem... Volta... Filomena que saiu de casa h quase um ms, que nem
sequer saiu de casa por amor de outro homem, que saiu de casa somente por sair
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de casa, que saiu de casa (disse) porque eu no a amava com loucura, no sabia
falar com ela. Que caria fora uns tempos at saber se deveria ou no voltar.
Pouco importa, pouco importa. Aqui a queixar-me de nunca ter tido
ouvintes reais, de s os admitir quando falo. comigo prprio mas alguma
vez fui ouvinte, fui interlocutor, de ti, por exemplo, Filomena, alguma
vez permiti que me dissessem Sofro! ou sempre, quando algum ia
para te dizer Sofro!, sempre lhe trocaste as voltas, sempre te encheste
de pnico, sempre lhe impediste a consso, tiveste medo do sofrimento
alheio...?
Espera ento, morte imaginria, artria imaginariamente a romper-se, mas
ainda intacta, espera mais alguns instantes, deixa-me saber tambm: quem so os
outros, todos os outros que um dia se dirigiram a mim, a quem eu impedi de se
dirigirem a mim, que s puderam falar-me imaginariamente, porque eu era mais
humano nos sonhos deles do que na minha prpria pessoa? Esses que precisam
dos meus ouvidos, que precisam da minha voz, e a quem eu tenho negado ouvidos
e voz, esses que no so o velho de setenta e dois anos de idade que anal ouviste
(s porque ele te impediu de no o ouvires), esses que esto mais prximos de ti.
Joaquim Alberto, sofro!
E responder...
Mas que respondeste ao velho de setenta e dois anos, esse velho que ao falar
contigo no era contigo que falava, pois no sabia quem eu era?
Tu, para quem tu e eu so uma e a mesma coisa, so eu, tu que no sabes
acalmar o sofrimento alheio, ser ns, tu que falas como se escrevesses, que nunca
disseste em voz alta:
Chora, faz-te bem chorar, meu amor.
197
DAVID MOURO-FERREIRA
(1927-)
D-me a tua mo. Fujamos daqui. L fora no deve tardar o nascimento do Sol.
Abrir-se- para ns dois um pequeno bar onde no entro h muitos anos, e num
relance vericarei que nada se modicou: a mesma leve poeira de condncias,
como que esquecida em cima de mveis; o mesmo recanto sem ningum, junto
da janela de onde se v o mar; o mesmo tecto e as mesmas paredes escuras, de
madeira encerada. Tudo ntimo, aconchegado, como se estivssemos na cabina de
um navio.
Sentar-me-ei na poltrona que ca no vo da janela; olharei o mar, espera que
o dia nasa; e tu a meu lado, recuada na sombra, continuars aguardando que seja
eu o primeiro a dizer alguma coisa.
preciso inventar? Ou contar a verdade? S o que invento me comove; s a
verdade te emociona. Teremos ento de deitar sorte: ainda no sei qual de ns
merece agora reaprender a chorar.
204
HERBERTO HLDER
(1930-)
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O QUARTO
Ele pareceu no entender a minha aluso. Voltou para mim o rosto irnico e
perguntou: A que se referia?
morte respondi eu.
Sim, eu tambm falava da morte. Mas surpreendeu-me que voc estivesse a
pensar no mesmo.
Pensamos todos no mesmo, a partir de certa altura.
Talvez murmurou, e a sua voz tinha uma ponta de orgulho. Mas nem
todos da mesma maneira. Sabe que sou forte? por isso que penso nela. Detesto
a fraqueza que se remedeia na imaginao do m. No creio em nada. No desejo
crer seja no que for.
Pensa que vai morrer quando quiser?
Ele olhou-me em cheio e sorriu. Tinha a cabea viva e nobre de um homem
antigo. Parecia saber muito, e realmente em nada devia acreditar. Notava-se-lho
no olhar, que era culto e virilmente triste.
isso. Eu preparo a minha morte. Um verdadeiro homem tem direitos e
deveres em relao sua morte. Sabe que estou a construir uma casa?
Sim, j mo disse.
Conhece o stio? E as palavras aludiam a todo um mundo de signicaes.
No entanto, a voz era imperturbvel. Este homem morreria dentro da sua morte.
Conheo. Fica na outra costa da Ilha. Atrs, h a montanha sem rvores.
Pedras e urzes. Pavoroso. Em frente, o mar. O mar l bravio.
gua cinzenta e branca. Por detrs, a grande montanha onde s andam
cabras. Mas na plancie, ao lado direito, existem muitas rvores onde o vento
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do mar vem bater. De noite, aquilo vibra e uiva. E, no outro lado, estende-se a
terra arenosa. Quando h tempestade, de uma beleza diablica. Bom para nos
sentirmos ss e saber se ainda h em ns o orgulho do medo.
Compreendo que construa a a sua casa.
Construo a casa muito devagar. a minha ltima tarefa. Obrigo os operrios
a trabalhar lentamente. Esto espantados. O capataz supe que sou louco. Nunca
custou to cara uma casa de um s piso. Quando car pronta, j nada mais terei
a fazer. Seria horrvel procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato. Isto de
sangue. Meu av correu mundo e veio morrer na cama onde nascera. Meu pai
foi voluntrio para a guerra, depois de me ter gerado, e l morreu. Tudo homens
que zeram uma tarefa e nela puseram a signicao da vida. E deramse por
cumpridos, regressando ou morrendo. No sabedoria? No quero ser ftil. o
nico pecado do esprito. Ponho toda a minha fora religiosa na razo da vida, que
dada pela oportunidade e qualidade da morte.
Riu.
Sabe que sou um homem religioso?
No entanto...
Claro, no acredito em nada do que diz respeito a isso... a essas coisas... da
imortalidade da alma... da existncia de Deus... no bem e no mal... na caridade
e piedade... Detesto essas crenas e virtudes da baixa religiosidade. O meu
pensamento religioso de outra ordem...
Talvez creia disse eu na necessidade de manter incorruptvel o sentimento
da vida. Talvez tambm o dever da morte...
Quer exprimi-lo assim? Vejo as suas mos fazerem um gesto subtil e
inacabado de irnica concepo. Talvez seja quase isso... Aos vinte e cinco anos
fui viajar. Percorri a Europa, a Amrica do Sul, frica. Estive na Austrlia, no
Japo. Vivi alguns anos em vrias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena.
No h raas nem pases. O homem estpido. E precisa de ser amado e amar.
um ser repugnante. Hoje sei am-lo, assim repugnante. Aos quarenta anos deixei
de viajar. Fiquei em Paris. Aos quarenta e cinco xei-me em Lisboa. Cinco anos
mais tarde, vim para a Ilha. E os crculos foram-se apertando cada vez mais. Hoje
no saio deste caf e do hotel, quando no estou a seguir o andamento das obras.
Daqui a algum tempo, mudo-me para a casa. Depois... Compreende o que digo,
quando falo do meu esprito religioso?
Sim, parece-me que sim...
A casa tem trs quartos, alm de cozinha, casa de banho e despensas. Um
o quarto de dormir; o outro, a sala de jantar; e o terceiro... No adivinha?... No,
no pode adivinhar...
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Noutras circunstncias eu diria que era, por exemplo, a biblioteca...
Noutras circunstncias. Agora no leio. Vou morrer. Oua: a casa toda
assoalhada. As casas so naturalmente assoalhadas, no assim?
Claro.
Sim, mas esse quarto no assoalhado.
Mais um espanto para o capataz disse eu, sorrindo.
E para si tambm.
Tambm para mim. Porque no assoalha esse quarto?
Durante um ano ou dois vou viver naquela montanha, na mata, na terra
arenosa em frente do mar. Vou entrar e sair da casa e passear por esses lugares
todos. Em seguida sentirei que no devo sair mais, e carei em casa, andando de
um quarto para outro.
No quarto sem soalho, tambm?
No respondeu.
Lembra-se de eu lhe ter falado no vento martimo a bater nos pinheiros? E na
alta montanha intransitvel, por detrs da casa?
Lembro-me. Eu conheo tambm o stio, como lhe disse.
O barulho do mar e do vento. A ideia da montanha impraticvel. A terra
arenosa por ali adiante. E a solido. E, sobretudo, saber que j no pode haver
qualquer espcie de medo. Ento fecharei todas as portas da casa, a porta para fora
e as portas dos quartos entre si. Ficarei no quarto sem soalho e deitar-me-ei no
cho. Hei-de ouvir o mar e o vento, e hei-de saber que a montanha est atrs de
mim, poderosa e s. Poderei ouvir tambm o sussurro da terra hmida debaixo do
meu corpo. Encostarei a cara a essa terra profundssima. At que morrerei.
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MARIA ONDINA BRAGA
(1932-)
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A LIO DE INGLS
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LDIA JORGE
(1946-)
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OS DOIS VIAJANTES
(Indito, 1982)
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VERGLIO ALBERTO VIEIRA
(1950-)
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NA CAPA UM LEO DA AUTORIA DE COLUMBANO RETRATO DE RAL BRANDO.
NO MUSEU NACIONAL DE ARTE CONTEMPORNEA. LISBOA. (1896).
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