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ANTOLOGIA

DO
CONTO PORTUGUS
CONTEMPORNEO
ANTOLOGIA
DO
CONTO PORTUGUS
CONTEMPORNEO
SELECO, PREFCIO E NOTAS BIOBIBLIOGRFICAS
DE LVARO SALEMA

MINISTRIO DA EDUCAO
Ttulo
ANTOLOGIA DO CONTO PORTUGUS CONTEMPORNEO

1. edio 1984

Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa


Secretaria de Estado do Ensino Superior
Ministrio da Educao

Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa


Diviso de Publicaes
Praa do Prncipe Real, 14-1 1200 Lisboa
Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pases

Tiragem
5000 exemplares

Composto e impresso:
Ocinas Grcas de Veiga & Antunes, Lda. Minerva do Comrcio

Fevereiro 1984
NDICE

ADVERTNCIA ..................................................................................5
PREFACIO ...........................................................................................6
RAL BRANDO A casa de hspedes .......................................... 12
AQUILINO RIBEIRO A reencarnao deliciosa ...........................19
FERREIRA DE CASTRO O Senhor dos Navegantes ..................... 30
JOO DE ARAJO CORREIA As velhas so o Diado .................42
JOS GOMES FERREIRA A sombra ............................................50
JOS RGIO Os trs reinos ............................................................55
VITORINO NEMSIO Mau agoiro ............................................... 63
JOS RODRIGUES MIGUIS O viajante clandestino .................70
DOMINGOS MONTEIRO Ressurreio ........................................81
BRANQUINHO DA FONSECA Histrias da meia noite ..............87
MIGUEL TORGA O Alma-Grande ................................................95
ALVES REDOL O rapaz no gostava das mos .......................... 102
MANUEL DA FONSECA Maria Altinha .................................... 107
LUS FORJAZ TRIGUEIROS Desportos de Inverno ................... 114
MRIO DIONISIO A lata de conserva ........................................ 120
VERGLIO FERREIRA Me Genoveva ....................................... 126
FERNANDO NAMORA O rapaz do tambor ............................... 134
SOPHIA DE MELO BREYNER ANDERSEN O Homem ........... 146
JORGE DE SENA O grande segredo ............................................ 151
CARLOS DE OLIVEIRA Os corvos ............................................ 157
MRIO BRAGA Balada .............................................................. 161
AGUSTINA BESSA-LUS Filosoa verde ................................... 165
URBANO TAVARES RODRIGUES A meia hora de sol .............. 172
JOS CARDOSO PIRES Os caminheiros ................................... 177
AUGUSTO ABELAIRA Ode (quase) martima ........................... 190
DAVID MOURO-FERREIRA Nem tudo histria ................... 198
HERBERTO HELDER O quarto .................................................. 205
MARIA ONDINA BRAGA A lio de ingls ...............................210
LDIA JORGE Os dois viajantes ..................................................220
VERGLIO ALBERTO VIEIRA O dia perfeito ............................231
ADVERTNCIA

A presente Antologia, editada pelo Instituto de Cultura e Lngua


Portuguesa, destina-se principalmente a apoiar a aco pedaggica exercida
atravs dos Leitorados que o Instituto mantm em dezenas de Universidades
estrangeiras onde ministrado o ensino da lngua portuguesa e divulgada
a nossa cultura, bem como a outras instituies que prossigam os mesmos
objectivos. Numa amostragem que teve de ser necessariamente connada
para que o volume no excedesse as convenientes propores, so aqui
apresentados em reproduo integral contos escolhidos de trinta autores
que guram entre os mais representativos da nossa literatura nos ltimos
anos. E, na sua diversidade e signicao, pretende-se que com eles sejam
testemunhados no s alguns dos valores fundamentais dessa literatura
como tambm uma maneira de ser portuguesa em que se reectem a
identidade e a originalidade nacionais, alimentadas por oito sculos de
histria.
As breves notas biobibliogrcas que precedem os textos dos autores
seleccionados contm um mnimo de informao e de caracterizao
literria que visa a sugerir o seu estudo mais demorado, sobretudo no
mbito do ensino ou da leitura orientada em que esta Antologia dever
inserir-se. Pela mesma razo e como antecipada armao de conana
no professorado, com conhecimento ou iniciao j denidos na lngua e na
cultura portuguesas se dispensou na estrutura do volume a acumulao de
anotaes e comentrios esclarecedores dos textos. apenas um contributo
no essencial que com esta colectnea se intenta fornecer ao ensino e
divulgao da literatura portuguesa no estrangeiro e com ela a implcita
homenagem do Instituto aos que tm devotadamente servido essa misso,
do mais alto e perene interesse para o Portugal de hoje e de amanh.

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PREFCIO

De razes to alongadas em dimenso histrica como a prpria nacionalidade,


com os seus j ultrapassados oito sculos de existncia autnoma, a literatura
portuguesa acumulou no decurso desse dilatado tempo um somatrio de valores
que podem legitimamente alinhar com largueza no patrimnio cultural da
humanidade. A estreiteza da sua divulgao e projeco em outras lnguas, por
motivos que tm sido versatilmente analisados e que no se limitam barreira
lingustica por outros povos superada, constitui agrante injustia a reclamar
reparao e a publicao no estrangeiro de antologias traduzidas poder ser
para esse efeito instrumento valioso.
Mais rica e mais altamente qualicada em certos gneros do que em outros,
como todas as literaturas nacionais, nem por isso a diversidade daqueles valores
tem deixado de testemunhar na literatura portuguesa o que se arma e documenta
nela de representativo das vivncias multiformes de um povo com iniludveis
caractersticas que o diferenciam dos demais. nos gneros mais cultivados, mais
valorizados e mais signicantes dessas vivncias, porm, que se poder encontrar
em maior plenitude a genuinidade de um estar no mundo especicamente
portugus, ao mesmo tempo que as criaes de mais generalizvel interesse
para leitores estrangeiros. Tais gneros sero, na literatura portuguesa parece
que mais reconhecidamente, em mais amplo consenso a poesia e o conto. Na
poesia, para alm de inevitveis diculdades na traduo em outras lnguas,
algumas guras maiores tm conseguido transpor o obstculo conquistando uma
audincia mundial que no cessa de alargar-se: o caso de Cames (1525
?-1580) e, j em notvel medida, o de Fernando Pessoa (1888-1935). Mas no que
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respeita ao conto, em que o obstculo lingustico incomparavelmente menos
sensvel, ser lcito desejar e esperar que a irradiao internacional de autores
portugueses assuma a amplitude que os seus incontestveis valores estticos e de
expresso do humano fundamental justicam.
A essa inteno e possibilidade se deve, primacialmente, a edio da
presente antologia do conto portugus contemporneo. A publicao em lngua
portuguesa ser, intencionadamente, o ponto de partida para edies em outras
lnguas de larga utilizao internacional. Arredando deliberadamente a tentao
erudita de incluir na colectnea uma amostragem de textos de autores de
distanciadas pocas, partiu-se do critrio de que tal intuito, a realizar-se em
termos signicativos, no poderia deixar de avolumar excessivamente a dimenso
do livro, alm de implicar para tradutores e leitores a diculdade de integrao
em pocas histrico-literrias, em temticas e em estilos muito diferentes dos que
alimentam o interesse e o gosto mais correntes da leitura. Por isso se balizou a
antologia num mbito de contemporaneidade que abrange os ltimos sessenta
anos. O que se pretende com esta edio, de facto, o acesso to aberto quanto
possvel, na verso portuguesa inicial para os leitores a que for acessvel a
lngua, nas verses em outras lnguas atravs do veculo da traduo para
muitos mais leitores, a uma panormica do conto portugus com interesse vivo
para largos pblicos. Mais determinadamente: para estudantes e estudiosos de
nacionalidades e de formaes as mais diversas.
Para alm deste propsito pragmtico, ser oportuno salientar nesta anotao
prefacial que a narrativa curta, condensando um episdio, um caso humano ou a
perspectivao duma gura e da sua circunstancialidade, teve tradicionalmente
grande lugar na literatura portuguesa. Desponta com os relatos lendrios, mais
ou menos efabulados, que povoam as crnicas medievais, os livros de linhagens
e as evocaes hagiolgicas dos frades cistercienses de Alcobaa; ganha forma
novelstica mais ntida com as narrativas cavaleirescas dos sculos XV e XVI;
assume-se denidamente nos Contos e Histrias de Proveito e Exemplo (1575)
de Gonalo Trancoso; prossegue uma trajectria verstil nos sculos XVII e XVIII
em narrativas apologticas como as de Manuel Bernardes e da freira Maria do
Cu e nas histrias epigramticas de vrios autores setecentistas. O Romantismo
e, logo a seguir, o Realismo e o Naturalismo do sculo XIX renovaram e
enriqueceram numerosamente o gnero nas temticas e nos estilos, em aorao
muitssimo diversicada que vai de Garrett com as suas revivescncias do
romanceiro tradicional aos contos de composio multifacetada que preenchem
em grande escala a obra de escritores de primeiro plano como Camilo Castelo
Branco, Ea de Queirs, Jlio Diniz, Teixeira de Queirs, Fialho de Almeida e
tantos outros. Ao longo do sculo XX j decorrido o conto o molde dilecto
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da realizao literria de escritores inmeros, abrangendo vasta panormica
em que se reectem consubstanciadamente a evoluo de correntes de raiz mais
genuinamente nacional e as inuncias recebidas das mais vrias origens.
Nesse percurso se poder constatar que o conto, como acentuou
penetrantemente Andre Crabb Rocha, casa-se bem com o temperamento
portugus, feito de pronta emoo e rpida catarse. E outro qualicado
historiador e crtico da literatura, Jacinto do Prado Coelho, observou com
idntica justeza que lugar-comum da teoria literria assinalar anidades que
aproximam o gnero conto da poesia, corroborando assim o paralelo uir
dos dois gneros na histria literria portuguesa, que traduz em ambos uma
temperamentalidade ou ideossincrasia caracterizante nacionais.
O conto portugus contemporneo, de que se apresenta nesta antologia uma
smula necessariamente restringida a trs dezenas de autores, d testemunho
agrante, sem prejuzo das suas diversidades, da permanncia duma longa
tradio. E, ao mesmo tempo, reecte o vigor e a qualidade das inovaes de
temtica e de estilo resultantes da personalidade prpria de cada um dos autores
representados e da assimilao de inuncias recebidas das mais variadas
origens. Na continuidade da linha nacional evidenciada, em muitos casos,
a perenidade da lio dos dois maiores prosadores e criadores ccionistas
portugueses do sculo XIX: Camilo Castelo Branco e Ea de Queirs. Mas
tambm se rastreiam os inuxos de correntes epocais e de escritores estrangeiros
de mais poderosa irradiao, amoldados pelos autores maneira nacional
e prpria especicidade da lngua que seu veculo na escrita. Em Ral
Brando, por exemplo como em Jos Rgio e Agustina Bessa Lus, entre outros
desvenda-se a sugesto, que pode alis volver-se em meras coincidncias
tendenciais ou similaridades de temperamento, do revolvente e inquieto gnio de
Dostoievski. Nos escritores revelados nas dcadas que decorrem, grosso modo,
entre 1920 e 1940 como sero mais perceptivelmente os casos de Nemsio,
Branquinho da Fonseca, ainda do citado Rgio podero descortinar-se ecos
mais ou menos ntidos de Marcel Proust e Andr Gide, de Valry e Joyce. Nos
contistas da corrente designada em Portugal por Neo-Realismo, (ou Realismo
Socialista), como Redol, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Mrio Dionsio,
o exemplo de temas populistas e de intencionalidades sociais nas obras dos
brasileiros Jorge Amado e Graciliano Ramos, dos americanos Steinbeck e
Faulkner, dos soviticos Gorki, Cholokov e Gladkov, do italiano Silone, fez-se
sentir notoriamente. O surrealismo europeu aora em Jos Gomes Ferreira e em
Jorge de Sena, como o existencialismo sartriano tocou inegavelmente Verglio
Ferreira e parece ressuscitar em formas peculiares na co de Ldia Jorge.
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Na teia das sugestes criativas que se entrecruzam num mundo cada vez
mais urgentemente comunicante, a literatura portuguesa no poderia manter-se
imune a inuncias externas, como as literaturas de quaisquer outros pases.
Sem prejuzo dos seus peculiarismos, no se fechou aos ventos que correm no
mundo. Mas a fora da sua personalidade prpria permitiu-lhe talvez at
mais acentuadamente na poca contempornea do que em sculos anteriores
absorver e assimilar o que recebeu de fora, imprimindo-lhe com maior ou menor
intensidade, consoante os autores, uma originalidade patente. Assim se vericar
com evidncia que a caracterizao nacional dos ccionistas portugueses mais
representativos sobreleva os apports exteriores, denunciando no conjunto uma
vincada realidade vivencial de razes bem mergulhadas na sua terra e no seu
povo. E essa revela-se na constante propenso potica, em todos inltrada e em
muitos extravasada fortemente, sem excluso dos escritores de mais voluntarizado
realismo, como Ferreira de Castro, Redol, Manuel da Fonseca e tantos outros;
na tendncia para a evaso em espaos de irrealidade, tomando a forma do
visionrio em Ral Brando, do mstico em Jos Rgio, do onrico em David
Mouro-Ferreira, do fantstico em vrios, incluindo Aquilino Ribeiro, como se
atesta na narrativa escolhida para este livro; na frequncia com que o burlesco
se conjuga com o trgico, como muito tpico na maneira de ser portuguesa;
no predomnio das atmosferas rsticas, signicativas de um pas que se tem
mantido retardado nas vias da moderna industrializao e testemunhadas
mais ostensivamente em autores da linha camiliana, como Arajo Correia e
Domingos Monteiro, tal como nos neo-realistas de inteno social interventora;
no regionalismo provincial, rstico ou de pequenos burgos, a traduzir obsesses
evocadoras de tempos perdidos (reais ou sonhados) e a exprimir-se no
sentimento da saudade; na reiterada explorao lrico-sentimental, que se
arma particularmente em escritores como Augusto Abelaira e Urbano Tavares
Rodrigues, no entanto de vinculao muito europeia e moderna; e at na
referenciao a situaes de resistncia e de luta contra a ditadura que dominou
o pas desde 1926 a 1974, mais declarada nas narrativas de Fernando Namora
e de Urbano, latente em vrias outras. Em tudo isso se representam formas
mltiplas mas convergentes da maneira de ser e da experincia portuguesa na sua
transposio para a escrita literria.
A escolha dos autores que preenchem esta antologia, deixando de fora
muitssimos cuja presena seria aqui justicada, obedeceu a uma conjugao de
critrios muitssimo discutvel, sem dvida em que se procurou fundir vrios
factores; a qualidade artstica intrnseca, a projeco nacional e internacional
mais evidenciada, a signicncia dos textos como expoentes de tendncias e de
diversicadas linguagens, a representatividade do seu portuguesismo. No dever
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esquecer-se, no entanto, como bvio mas justicadamente se tem dito em outras
oportunidades, que uma antologia sempre uma proposta e que esta uma entre
vrias propostas possveis, igualmente legtimas e igualmente contestveis. Como
proposta multi-condicionada se apresenta a leitores portugueses e estrangeiros
e, quanto a estes ltimos, das mais diversas latitudes com a esperana maior
de que possa servir de incentivo a mais largas e autnomas pesquisas no mbito
dilatado da literatura portuguesa de hoje e de outrora.

LVARO SALEMA

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AUTORES E TEXTOS
RAL BRANDO
(1867-1930)

Foi precisamente com um livro de contos, Impresses e Paisagens (1890),


muito impregnado de intenes naturalistas prevalecentes na poca, que Ral
Brando iniciou a sua trajectria literria, depois dispersada por variados
gneros: o teatro, os livros de viagens e paisagismo, os esboos de interpretao
de certos perodos da histria portuguesa, o memorialismo mas sempre
avultando entre esses gneros as narrativas mais ou menos denidamente
novelsticas de intenso impressionismo trgico e burlesco. Destacam-se, nesta
direco criativa, Os Pobres (1906) Hmus (1917), A Morte do Palhao e
o Mistrio da rvore (1926) e o livro pstumo O Pobre de Pedir (1931).
A exaltao sentimental, o espraiamento do sonho, por vezes o fantstico
lembrando Edgar Poe, a viso dostoievskiana da dor e do absurdo como essncias
da vida, o pantesmo lrico perante a natureza, um sentido constante de piedade
em modulao anarquista na observao da misria e dos miserveis, so timbres
permanentes na obra de Ral Brando e marcam-lhe um cunho inconfundvel.
Com ela teve incio de facto a modernidade na literatura portuguesa, quanto
aos temas e quanto s formas textuais, justicando a sua profunda inuncia
em sucessivas geraes de escritores at actualidade. Por outro lado, a
espontaneidade tumulturia da linguagem e a ausncia de composio estruturada
no processo narrativo tm justicado as restries da crtica mais objectiva
qualidade literria essencial da obra de Ral Brando, muito marcada pelo
imediatismo com que a emoo transportada escrita e pelo simplismo no
delineamento das personagens. Mas, para alm de tudo isso, como acentuou
o ensasta e crtico Jacinto do Prado Coelho, este escritor apresenta-se como
um surpreendente precursor do romance-monlogo que se comunica pelo
simbolismo de personagens-fantoches, atmosferas e farrapos de aco. O conto,
como condensao narrativa e descritiva, o gnero em que mais vivamente
se congura, com todas as suas imperfeies e grandezas, o gnio literrio
inovador de Ral Brando.
12
A CASA DE HSPEDES

Singular ligao a destes tipos que o acaso reunira naquela casa de hspedes da
D. Felicidade: um doido, um anarquista, o Pita, a patroa, o Gregrio, antigo chefe
de repartio, que havia anos estava encarangado num quarto, uma velha que s
saa de noite e essa gura amarga, o Palhao, que passava horas e horas, como
se s a si prprio se escutasse. Todos tinham chegado ao m da vida, de unhas
arrepeladas para o gozo, com o aspecto das coisas servidas que se deitam fora.
Usados pela existncia, pela ambio e pela febre, arregalavam os olhos para a
vida. Neles havia o quer que era que inquietava e fazia pensar. Em vez de carem
duma secura atroz, tendo analisado de perto todos os sentimentos, o amor e a
amizade, a experincia dera-lhes tintas de sonho ao desespero: e era como se um
bicho de esgoto criasse asas e se pusesse a voar. O Doido sonhava e todas as
suas vises vagas caminhavam, numa atmosfera de beleza, para de sbito, num
pormenor, carem grotescas, aos pulos como um sapo. O Anarquista tinha gestos
de profeta, e na sua eloquncia havia rasgos de visionrio: como um vendaval que
arromba portas, assim ela entrava pelo sonho dentro, engrandecida. Evocava as
multides, a misria humana, a dor humana. O Pita era um mixto de lsofo e de
ladro. Sabia tudo, vendia tudo. Amara princesas e trazia um velho chale-manta,
que de tanto ter visto a misria parecia arrepiado. A Velha passava o dia a contar
as rugas diante do espelho, na raiva de se sentir escarnecida. Meditava quanto
tempo podia amar ainda, enganava-se e convencia-se de que no estava velha
nem feia. Punha ores no seio estancado e raso como uma tbua e arrepiava os
cabelos. noite saa, rodava nos stios escusos espera duma aventura de amor,
ou, desvairada, ia pelas ruas da cidade, a arrastar um chale prpura.
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O Pita s vezes seguia-a e espiava-a, com o olho cheio de curiosidade,
ruminando l por dentro:
Encontro-as s vezes nas ruas, caiadas aos sessenta anos e sonhando ainda
com a juventude. E so as que se atrevem, as que se expem aos riscos, porque
muitas como esta arrastam pelas casas de hspedes o seu sonho inapaziguado de
amor... F-la tmida e m o ter de viver duas vidas, uma de imaginao, outra de
realidade. Por isso tem o olhar desvairado para dentro, de quem segue um sonho e
anda neste mundo por acaso. Esta cidade trgica fez-lhe um cenrio perfeito, com
a noite em que a escumalha vem tona, as ruas esganadas e o vcio... Atrever-se-
ela?... Duvido... Viver tudo!... viver!...
Se todos estes seres se juntavam e conversavam, as suas palavras ardiam ou
gelavam; causavam arrepios, como lminas que de repente se desembainham e
cam no ar suspensas: eram feitas de cadveres ou de claridades... Umas vezes
pendiam para o sonho; outras para a terra.
Vocs todos tm pensado na vida destas criaturas?... Desde a mocidade que no
tiveram risos. Depois o pequeno emprego, nunca o gozo satisfeito, a imaginao
e o apetite sempre alerta. As mulheres! ainda um dia hei-de ter aquela mulher,
quando tiver dinheiro!... Nunca satiszeram o seu amor e o seu desejo. Aturaram
as insolncias dos patres e o desprezo do Metal. Nunca tiveram na vida ocasio
para praticar um crime que lhes desse o oiro ou o poder. Correram casas de
hspedes, a ruminar idias de ambio ou de dio, e essas mesmas diludas e
derrancadas... So srdidos, tm pequenas manias e inditos recantos de alma, e
nunca, como os pobres cavadores, viveram ao contacto da natureza, das grandes
rvores, da gua e da luz.
Acontecia que mesa, depois do jantar, na obscuridade que o Pita amava,
cavam de conversa. A princpio o Palhao no falava... Quase sempre fugia para
o quarto. Mas de uma vez, que se falara de amor, escutara e discutira: da caram
no hbito de se exasperarem com conversas, que o Pita tingia de sonho.
O Pita era um homem de barba hirsuta e olhar vivo nas rbitas fundas e sem
plpebras. Unhas, roera-as todas. Tinha a cincia da vida, visto que andara sempre
aos pontaps de toda a gente e se dava com a ral. Vivia custa de mulheres,
e como duma vez lhe perguntassem como arranjava ele, dono de semelhante
caveira, que as mulheres o amassem, disse com desprezo:
A mulher uma esnge.
Nessa noite o Anarquista lia uma proclamao para abrir o seu jornal A
Misria. Com o manuscrito na mo, o olhar incendiado, perguntou:
Pita, que lhe parece?...
E ele, seco, respondeu:
Muita losoa...
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Mas que diabo, Pita! Voc sabe que estimo a sua sabedoria... Diga a sua
opinio sincera...
Todos se absorveram no Pita, que passou a mo pela bola de bilhar que usava
em vez de cabea e a seguir falou:
No est mau de todo... Muito palavriado... Fale na terra e fale na misria...
Sabe que em Setbal, nos arrozais, para ganhar apenas o po negro, mulheres
trabalham na gua como bestas, at se cortarem pelas virilhas? Sabe que h
pequenas de oito anos, que se chegam sua beira com um ar de vcio e tm esta
frase trgica: Eu fao tudo!... ?
Muito decorativo, citou o vcio, que apenas noite corre como um esguicho de
lama pelos recantos negros da cidade. a fome? , disse ele. E alm disso
os burgueses esto dando ral, cheia de apetites e quimeras, um espectculo
desaforado...
Pita!...
Desaforado... Cite factos, encha-me esse papel de factos e bote ento se
quiser a losoa de fora. O palavriado no mau, mas porque os pobres
conhecem melhor a misria e o crime, que um desgraado me falava uma noite em
fazer saltar tudo...
A misria e o crime disse o Doido so velhos como a terra... Voc tem
visto tudo e tem sido tudo: j foi rico e j viveu de arranjar mulheres para os
outros... Mas escute: a questo mais funda... Suponha que sobre esta mesa est a
palpitar o Corao Humano... H coisas eternas. O que fez crescer o anarquismo,
como uma raivosa mar de lama esta coisa simples: o dio aos ricos e a
inveja... Voc, eu, todos os que aqui estamos juntos, o que daramos para ter o
Oiro, o Oiro com que se pagam as mulheres mais lindas, as quimricas mulheres
todas feitas para o gozo, e sobre cujo olhar negro a gente se debrua como sobre
um pssaro lendrio; o Oiro com que se tem o amor e se deitam a perder os nossos
inimigos?... Eu, vocs todos, temos feito de h muito este raciocnio: a vida dura
dez, vinte anos, depois segue-se...
A cova...
O nada. Portanto vale a pena gozar de todo o nosso crebro e de todos os
nossos nervos. Deixar o corao bater o mais que puder, satisfazer a valer todas as
paixes... S o Oiro que d isso e ningum recuar diante dum crime, certo da
impunidade, para o obter.
s vezes corre-se-lhe o risco...
Outrora esta vida era transitria... Quanto mais se sofria, mais duro era o po
e a dor mais negra, maior tambm na vida eterna era a felicidade. O dio contra
os ricos, os que gozam enquanto as mais criaturas sofrem, existia, mas havia a
certeza que iam para o inferno. Pagavam caro os beijos, a felicidade, o sonho...
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Agora a iluso cau por terra, a vida sfrega e a mar dos que esto vidos de
gozo sobe...
E o Pita resmungou, com o olho a luzir:
Vai ser um rico saquesinho...
Com mulheres violadas, sangue, apetites desenfreados, vaias contra a arte e
o belo...
o Oiro, o Oiro que tudo pode e tudo faz!... O Oiro que era ainda capaz de
fazer levantar da cama o prprio Gregrio!
E a dona Felicidade, que levantava os pratos, deu um suspiro to fundo como
se nela suspirassem todas as Donas Felicidades, desde a Dona Felicidade das
cavernas at Dona Felicidade contempornea.
Pita, a essa hora da noite, tinha espirros de gnio pela caveira, numa excitao
contra a vida e contra a dor. Pelo comeo da noite que Pita principiava a ser
amargo, com um grande desprezo pela sociedade. Pita tambm a essa hora estava
algo na mentira: embebedava-se com as decoraes sobre a misria e sobre o
corao humano, e a fantasia fazia-o perder-se, fazer grande, como um pintor que
na febre atirasse broxadas de gnio para a tela. Pita parecia uma evocao de Po.
Pita sentia, depois da bebida, o frio dos desgraados, a febre dos noctmbulos:
sabia a enxurro: e tinha na fantasia toda a prpura e toda a lama que as borboletas
tm nas asas, e que ele apanhara ao roar-se pelos boeiros imundos da cidade:
Eis aqui tem o amigo... O raciocnio um vcio com o qual se chega a tudo
at a ministro... Teoria vai, teoria vem palavras leva-as o vento... A verdade
amarga e nica esta: que na vida preciso sonhar, para no se morrer transido,
tantos so os pontaps que a gente leva na alma e noutra parte. Ou ento tem a
gente a necessidade de se endurecer e de pr o corao como uma pedra.
Pita!...
Como um calhau... V a um stio aonde se sofra ao hospital. Tenho-o
defronte da minha mansarda, o luzeiro sempre a arder nas janelas. O que est
aquela pobre gente toda a noite a tecer?... Aquele estupor de alambique de
sofrimento toda a noite resfolga...
De qu!...
De alambique disse, seco. uma imagem... E h coisas que se no curam,
que o que me revolta... Deixo-os sonhar... O sonho to necessrio pra a vida
como o po.
Eu, para meu uso, at os tenho inventado para certas horas de sofrimento e
quantas noites passo a imaginar ser rei ou ser carrasco!...
Atire-se-lhes com um pedao de sonho, como se fosse um pedao de po!...
O pior, Pita amigo, que o sonho desvaira-os...
Pois a questo essencialmente se reduz a isto: pertence aos homens de estado
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saber canalizar o sonho da ral, e desde que hoje ele se no pode aproveitar
nem para fazer conquistas, nem para fazer heris todo o esforo deve tender a
conserv-lo como lume sob cinzas inofensivo e latente. Destru-lo, arranc-lo,
uma tolice, pois que outro vir creia na minha experincia da vida substitu-lo,
e quem sabe se mais perigoso!...
Cau em meditao o Pita. Oito horas da noite e a calva incendiada por entre o
pelo sem cor. Nunca mais o puderam levar a falar sobre o mesmo assunto. Tinha
um grande desprezo por esta porcaria da vida e fugia agora para o pequename,
a tromba a bamboar-se-lhe sobre a boca, numa festa. Tirou da algibeira uma
boquilha de mbar com uma mulher em pelota e um prospecto da casa John &
Fixley, London Segurana e Mtodo, preos mdicos. Assassnio de todas as
sogras com o maior respeito e sem interveno da polcia.
Pita, ests aqui, ests na Penitenciria. V no que te metes, Pita!...
E ele, descendo as escadas, com jbilos na voz rouca:
Vou-me at ao pequename. A vida uma quimera!...
O Pita sabia tudo: conhecia os segredos de todas as famlias e os vcios de
todas as mulheres: em cada noite seria capaz de dizer quem estava para meter uma
bala nos miolos, falido e desonrado, e quem adormecia no colo de nuvem da mais
linda mulher da cidade. As suas conversas faziam frio: tinham dentro pesadelos
e lama. Fora amigo ntimo dum banqueiro, jornalista assalariado para cobrir de
infmias os inimigos do outro. Tinha tido dias em que fora rico e pagara todas as
suas fantasias e noites em que tremera de frio porta dos cafs, com a lista e
preos das criaturas que se vendem.
Das suas conversas com ele, o Palhao saa sempre com a cabea cheia de
fantasia e com um sabor amargo vida lama negra, onde vestgios, espirros
de oiro, tivessem sido esquecidos. A sua experincia do mal de viver dava-lhe,
fantasia rtila, recantos cheios de indito e de amargura, e era como se a sua alma
fosse sacudida diante dele de toda a poalha negra ou escarlate, que a existncia lhe
deixara... Depois do circo passeavam juntos at s primeiras tintas de alvorada.
quela hora s noctmbulos esguios quedavam pelas esquinas, guras que, ao p
dos restos de cartazes prpura, de grandes letras, faziam destaque e evocavam,
perto da pompa e da grandeza, a misria da cidade...
Depois da conversa com o Pita, o crebro em lume, ia pelo bairro pobre e
desdentado, procurando ver materializado o rasto de que ele lhe falara, como um
manto que cada um arrastasse, invisvel e tecido a ideias e a sofrimentos...
Pois qu!... lhe dissera o Pita donde provm que as feiticeiras leiam no
passado do homem?... Nada se perde, cada um traz consigo, cometa que arrasta a
cauda de lama ou de oiro, todo o seu passado, vestgios de ideias, crimes, horas
de amargura e horas em que se beijaram lbios de mulher, por quem a gente se
perde... Creia na minha experincia da vida!...
E para ver?... para ver esse rasto, que cada um traz consigo a nimba-lo,
17
luaroso e ferido de lgrimas?... Sers tu, Pita amigo, o Diabo, e queres em troca a
minha alma?...
No, no sou, com pena o digo, o Diabo... Quem me dera ser o Diabo, para
ser moo, ter todo o oiro e todas as lindas mulheres da terra! Ai o pequename de
seios duros e lcteos de esttua! o oiro que d o poder, a considerao pblica,
os sorrisos de lbios de papoula das moas e a riqueza dos bancos!... No sou o
Diabo!
E, apontando com o seu dedo nodoso e descarnado para a cidade, disse:
Vai sofrer, espremer da Vida a experincia. Deixa que te calquem o corao,
assiste ao despedaar do teu sonho, tua humilhao, e depois sabers...
Tomando de respeito por tanto saber, com humildade se despediu:
Muito boas noites, senhor Pita!... Ento no toma mais nada?...
No tomo. Podes-te ir embora. Boa noite...
Com a cabea a escaldar, parecia-lhe agora ver realmente o que Pita lhe
aanara existir... Cada criatura que passava arrastava consigo uma cauda
poalha luminosa, doiro ou cinza, feita de luar ou de escarlate. Lentamente pde
distingui-los, classic-los, conforme o manto rgio ou pobre que traziam. E na
noite havia-os que deixavam um grande rasto rtilo, como estrlas cadentes, onde
gemiam ais de mgoa, prolongados com um som de viola que se parte. Mseros,
ressequidos e sacudidos pela dr, traziam uma cauda cr de cinza, com chuveiros
de mirades de centelhas de lgrimas, e a poetas nimbava-os uma pualha de luar
e de oiro. Velhas ardidas eram envolvidas por uma atmosfera baa, onde o
imortal amor inda luzia. E alguns deixavam atrs de si restos de mantos todos
prpuras, que se iam perder na lama e no esquecimento; outros, criminosos
decerto, caminhavam numa nuvem negra, onde pedaos sangrentos escorriam
como punhaladas, e havia-os todos verdes, de cambiantes innitas. Muitos
arrastavam caudas enormes pela lama, despedaavam-nas de encontro s esquinas,
e alguns procuravam deit-las fora para no mais pensarem num passado
tenebroso.
O homem material pensava o Palhao no existe. A vida uma
conveno. O que existe sonho, o sonho a nica realidade. Sonhar! sonhar!...

(De A morte do palhao, 1926)

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AQUILINO RIBEIRO

(1885-1963)

Com obra muito vasta, abrangendo cerca de sessenta ttulos em que alternam
o romance, o conto, a biograa, a crnica, o ensaio histrico e literrio e, ainda,
um volume de teatro, Aqulino Ribeiro unanimemente reconhecido como o
mais vigoroso e pujante prosador portugus neste sculo. Quer dizer: como
criador de linguagem sobre um fundo vernculo tradicional ou regional, dando-
lhe corpo numa escrita literria. De raz rstica (da Beira interior e serrana)
fortemente reectida em grande parte da obra, o seu naturalismo visceral no
exclui o humor, em que se tem apontado a inspirao de Anatole France, e a
inveno novelstica exuberante a ultrapassar com largueza o real observado
ou experimentado e a aorar por vezes o fantstico e o mtico. Foi com o
livro de contos e novelas Jardim das Tormentas (1913), acolhido com notvel
xito, que abriu caminho publicao de sucessivas criaes ccionistas de
ambientao rural ou citadina, entre as quais ser justicado destacar pelo
poder transgurador da linguagem o romance A Vida Sinuosa (1918), a recolha
de contos Estrada de Santiago (1922), a crnica romanceada A Casa Grande
de Romariges (1957), o romance Quando os Lobos Uivam (1958), etc. As
biograas de Cervantes, de Camilo Castelo Branco e outras grandes guras da
literatura ou da histria, alm de poderosas criaes de estilo e para alm
do evidenciado pessimismo do Autor perante a natureza humana representam
amplos painis evocadores que as situam ao nvel dos bons romances. A evoluo
das correntes literrias, com a sucesso dos vrios modernismos em Portugal
desde 1915 e as alternncias de subjectivismo individualista e realismo social
que a foram demarcando, no tocaram de modo perceptvel a personalidade
literria profundamente original de Aquilino Ribeiro. O escritor prosseguiu o
seu rumo at ao nal da vida com inaltervel identidade no processo novelstico
e no casticismo da linguagem. A facndia verbal do prosador pode ter motivado
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um certo barroquismo no seu estilo mas teve a compens-lo uma intensidade
de expresso semntica com raros similares nas literaturas modernas. Foi o
primeiro escritor portugus proposto candidatura do Prmio Nobel, em 1960.

20
A REENCARNAO DELICIOSA

Era uma velha, to velha que ningum diria quantos anos tinha. Dobrada sobre
o bordo, j a cabea lhe pendia para terra como abbora carneira do galho duma
rvore. E a corcunda tolhia-a de ver o cu.
Vivia numa cabana, abandonada por leproso ou profeta, na altura da escarpa,
antes de chegar ao lago, em que comeava a aparecer no cncavo a aldeia de
Tiberade e os colmos negros das casas pareciam sargaos ao lume de gua. Area,
s pele e osso, no reparavam nela os ladres da Samaria e possvel que a prpria
morte passasse sem a ver. Alm disso, como era pobre, nunca sua porta descia
canastra de peixe, nem vinham bater, parada a cla no caminho, destas mulheres
nmadas, negras e secas, a pedir por amor de Deus uma sede de gua para o lho,
cozido em febre nos seus braos. Necessitados que por ali transitassem deitavam
adiante, uns porque sabiam quanto a velha estava impossibilitada de obsquio,
outros a quem a choupana de adobes, coberta de musgos e com sardes em cada
fenda, tresandava a bruxaria.
Nuns tristes quintalinhos, com a sua gueirinha melanclica e duas cepas
cansadas, deserto e silncio volta, se resumia o seu mundo todo.
O maior sinal de vida davam-no em baixo as velas dos barcos quando saam
pesca; e, ainda nessas horas, garas adormecidas no pairavam mais de manso.
Eram os gritos dos pescadores: ala! arrasta! na faina de tirar as redes, quem
quebrava o mudo espanto da terra em redondo.
Mas a velha tinha rija perna. Apenas o sol nado, corria as ruas de Tiberade;
uns besugos, aqui, ao fazer a lota, a troco de qualquer demo; duas bocadas, ali,
de almocreve mais liberal em mar de farto; um migalho de po, acol, pelas
obrigaezinhas e assim acalentava os dias.
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Nas vizinhanas da Pscoa ia para as dunas espreitar o horizonte. Costumavam
atravessar por ali as caravanas que do Alto Jordo se dirigiam a Jerusalm, ora
imponentes e rpidas, de dromedrios, ora passeiras, com gente de p e de cavalo,
camelos de recova e burrinhos patriarcais, carregando levita ou beata sequiosa de
puricao.
Os pobres das aldeias esperavam-nas borda dos caminhos e junto dos poos
em que era costume acamparem e puxarem da merenda. Muitos ao faro da
esmola que os ricos iam largar Cidade Santa metiam de rusga com os arrieiros,
resignados s suas chufas e picardias. E porta do Templo, enquanto nos altares
grelhava o anho pascal, punham ao lu, clamando e gemendo, as pstulas que o
Senhor lhes dera e outras que faziam e agravavam por suas mos.
Cheios da beatitude do santo dos santos, os patrcios de barba em leque com
nojo cuspiam o bulo chusma srdida. Homens e mulheres engalnhavam-se a
apanharem a reles moeda de cobre, com grande risota dos mirones e legionrios e
ira dos vendilhes que expunham em tabuleirinhos de cedro que a branda aragem
virava caramelos e bugigangas de barro.

Pscoa fora, quando os estalajadeiros da Cidade Santa deitavam contas


ganhua, punha-se o rebotalho das doze tribos a caminho dos seus lugares. Taleiga
s costas, tanto mais taluda quanta a esmola era fraca, como sucede de ordinrio
na vida mendicante, l iam de seu mole pelas interminveis estradas romanas. E
rezando porta dos rabinos de teres, continuavam a amealhar o seu ceitil.
Anos a o zera a velha de Tiberade esta romaria; desde que se achou escassa
de foras para to grande jornada, ia postar-se debaixo das palmeiras espera que
passassem as caravanas. E a mo incansvel, falta do siclo de bronze, sempre
colhia a sua cdea dura ou talhadinha de melancia deste ou daquele, a poder de
respons-los ao santo padre Abrao.
No peditrio, matraqueando s portas com o seu pauzinho, ou recolhida na
choupana, a velha falava alto consigo e com Deus. Com Deus, sobretudo, a quem
as vezes que orava, acabava sempre por pedir que a levasse. Que andava ela a
fazer no mundo? Porque no vinha a boa e caridosa morte busc-la?... Falecia o
pescador, pai de lhos; falecia o lavradorzinho deixando a mulher ao desamparo
e o campo a monte; dela, que tinha os dias cheios, o Senhor Deus misericordioso
no se lembrava! E por que razo? No era til a ningum; no dava sombra a
ser vivo; no fazia sentido algum na Terra! Deus tivesse piedade e a chamasse,
e seria como raio de luz, o mais fraquinho raio de luz que se extinguisse em dia
hibernal.
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Uma tarde, ao entrar na choupana, sentiu grande angstia e apressou-se a dar
graas, supondo que era chegado o seu m. O Deus Senhor havia-a guardado
uma longa vida, no lhe deixando sofrer enxovalho nem doena. Uma longa vida
andara ela com o Deus Senhor to perfeitamente o sentindo a seu lado, que o
mesmo era v-lo. Via-o em pleno ermo, na sombra dos sicmoros e na deliciosa
consolao das cisternas beira do deserto; via-o nas belas coisas e belas criaturas
que se ofereciam vista, torres e palcios, tendas de mercadores e alcaarias do
pas listeu, formosas nazarenas e prncipes de Israel esbeltos como ciprestes;
nunca deixava de v-lo na sua choa de paredes to estreladas que a noite rompia
por ela dentro como fera pelo covil; aquela mesma hora estava a v-lo ali, aldeia
de pescadores, no lago, azul lquido de dia, veludo negro recamado de oiro
noite, e at no prprio deserto, a tristeza do qual em to invarivel desdobre era
or ainda da sua bizarria. Um anjo podia vir busc-la para a conduzir ao seio de
Abrao, que no se achava em falta; podia vir que se no deixava saudades to-
pouco as levava. Nunca amara, nunca zera sofrer. E se era certo as cortess e
os publicanos encontrarem por vezes abertas as portas do Cu, ela to mona da
vida, to desprezvel do mundo, tinha assento marcado direita do Eterno. Podia
morrer em sossego.
E confortada com semelhantes pensamentos se deitou e, dormindo, teve um
sonho, sonho de fumo mais capitoso que a mirra pura. Voz azeda de profeta falava-
lhe e o seio dela pouco a pouco ia-se enchendo de confuso:
Velha, julgas que vais morrer e enganas-te. Tens ainda que durar, viver a tua
vida. Como foi coisa que no zeste, o Senhor no perdoou. Tens que recomear.
Pobre de ti...!? Pobre de ti, se o Senhor te chamasse assim intil e v ao seu
divino pretrio! Porque a tua vida, velha, como o rolo do papiro dado ao escriba
para registar a lei e que o escriba deixou em branco; e, esquecido, saltando em
claro, entrou com ele a traa e a runa do templo. Que conceito pode merecer aos
olhos do Senhor o escriba desmazelado? Pois tu pecaste como ele. Quando as tuas
faces eram morenas e apetitosas como o po boca do forno e na tua garganta
gorjeavam rouxinis, no foste moa. Quando os seios te entumesceram e as ancas
te arredondaram de modo a poderes trazer um Sanso ou um Messias, no foste
mulher. Fizeste da falsa virtude barreira contra a verdade e murcharam entretanto
as rosas do teu rosto e sorveu-se-te o peito como fruto desprezado na rvore. Pior
que a gueira brava de que reza a escritura, que sempre d sombra aos pssaros
e lenha ao fogo, caste rebelde ordem da natureza. Infeliz, olha em roda de ti
para o mistrio da criao; os seres todos l vo exactos em cumprir os passos
do trnsito incompreensvel que a vida, abrasando-se nas npcias, tantas vezes
o leito de amor derivando em leito de morte. Agora repara: dentro do conjunto
de fatalidades que algemam a criatura ao mundo, a ela pertence a faculdade
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de escolher caminho, tomar direita ou tomar esquerda, modelar em suma a
vontade na vida corrente como o escriba afeioa as letras que ho-de traduzir os
mandamentos da lei. Que uso zeste do rolo que te deram a encher? s cortess
deparar-se- misericrdia no seio de Deus porque sofreram; aos salteadores da
Samaria perdo na sua magnanimidade porque penaram; aos publicanos graas
em sua clemncia porque tero amado e por seus joelhos engatinhado lhos. No
amaste, no geraste, no sofreste na carne, a tua vida no mais que blasfmia.
Mas Deus, em sua compaixo, amerceou-se de ti e quer que vivas. Sim, vivers
at que ele debaixo de mil formas habite em teu corpo e alma.
Acordou a pobre mulher e rompeu em choro desfeito. Era a vida que a
chamava em vez da morte a levar. E chorando, repesa duma existncia safra como
pedra no meio de trigal, suspirou:
Meus verdes anos, meus verdes anos, quem mos dera!
Um dia, boca da noite, caa o Sol detrs dos montes, a velha cabeceava
acocorada na soleira da porta. Os pescadores do lago tinham festejado o seu santo
padroeiro e com os crscimos das bodeganas no houve pobre que no tirasse
o ventre de misrias. Ela voltava cheia como uma urca. Arrastando o quadril,
deixara-se cair para ali, com um olho irreal contemplando Deus e o mundo, com o
outro, semimorto, dormitando. A certa altura apareceu Matatias o zorato, a pedir
dois golinhos de gua por alma de seu pai. Tambm estava com sede, e fez-lhe
sinal para entrar dentro e buscar a infusa que ainda de manh lhe enchera Ibraim.
No cu nuvens pardas, com debrum de prpura, pareciam um acampamento de
tendas reais. Tocado pela aragem, o fumo das cozinhas de Tiberade varria pelos
campos, rescendente de cedro e tamarindo. Cheirava a peixe frito, o peixe frito
do m de funo, e desta feita no lhe cresceu gua na boca ideia das mesas
fartas com o bom azeite de Gaza alumiando nos pratos como sol. E estava nisto,
chegou-se um mendigo a ela e pediu dormida. Vinha arrimado ao bordo e que era
de Nazar ou seu termo inculcavam-no os cabelos que lhe desciam para as costas
em branca juba. Repetiu o pobre de Deus a cantilena e ela estava em mand-lo
para a aldeia onde as varreduras seriam de sobra para lhe matar a fome, mas
ao v-lo to humilde, to mortinho de fadiga, com cabeorra de jumento, achou
melhor dar-lhe pousada, embora no tivesse mais que meia tigela de farinha na
arca e duas lgrimas de azeite na almotolia. Depois de cearem e renderem graas,
alapardou-se o pedinte ao borralho e adormeceu. Manh cedo, ainda o primeiro
maarico no andaria a bicar na greda do lago, a velha que tinha o sono leve ouviu
dizer:
Santinha, santinha! Est a nascer o Sol, so horas de me pr a caminho.
Agora ouve: j que de to boa mente recebeste o pobre de Deus, o pobre quer
deixar-te uma lembrana. Pede por boca...
24
Pede por boca repetiu ela assombrada com o que via, pois o velho irradiava
como a sar a de reb.
Pede tornou ele que no pedirs em vo.
Ela sorriu um sorriso que levou tempo a espairecer, visto em seu rosto h muito
tempo nem alegria ou gra a desfranzir as rugas, mas ao claro que derramava a
fronte do homem e ainda por ser aquela terra de milagres acreditou de boa-f e
respondeu:
Quero ser rapariga!
Ficou o pobre muito despeitado por ela no ter pedido a salva o ou um plo
da barba de Daniel, mas palavra dada no volta atrs. ardil, porm, virtude
contra o louco e o borracho e objectou:
em, mas para isso necessrio meter-te forma...
forma... ? Que isso?
Antes de mais nada tenho de cortar-te em postas... meter tudo numa panela,
e depois p r ao lume a cozer.
uvindo enunciar a tremenda receita quedou a velha perplexa e confrangida
de medo. Deveras no lhe causava pavor aquela morte que chega de improviso e
zs! arranca com a pessoa como lobo com a cordeira: as l a morte que d senha
porta, bate e torna a bater, agarra, e farta-se de puxar, irra! Por outra, tornar a
orir mo a e bonita, reatar o o da vida atrs, l bem longe, quando certas bocas
morriam pela sua boca tinha sal e indito sabor. Era de resto o seu sonho, o sonho
que a cometia tantas vezes quando julgava com ansiedade sempre viva que coros
de anjos voadores vinham com tiorbas e pandeiros busc-la para o reino da gl ria.
No valia, pois, a pena aceitar aquela espcie de morte, uma vez que no era o
abismo negro, sem ar, sem luz e sem fundo, em que se cai para todo o sempre, mas
um vau a passar, sem se dar conta, duma margem para outra, e ainda mais ela que
se fartava de suspirar pelo ltimo dia!
ulher, faz-me d ver-te assim joguete do pr prio pensamento proferiu em
voz paternal o velho que parecia ler a descoberto nos cora es. pensamento
inventa, compara, distingue, mas a realidade terrestre sempre a mesma inaltervel
realidade. Por onde quer que a tomes sofrimento; como quer que a vivas
desiluso; por muito que tentes sosm-la a mesma igual, molesta realidade.
A mulher, felizmente para ela, no compreendia a losoa do bruxo e uma
curiosidade nova, que imprevistamente se acendera em seu peito e que consistia
em renovar em si o destino, decidiu-a a aceitar o lance. Pesava-lhe j o estril
passado; pesava-lhe ter deixado a vida em branco como o escriba desmazelado da
parbola. Depois, como ouvira certo dia a um levita que apenas se no realizavam
os sonhos que no tm formosura, afoitou-se. Ah, mas estaria muito tempo a
cozer...?!
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O homem abriu os braos em sinal de que a cozedura era condio de muitas
coisas que no estavam bem nas suas mos, e que mais valia ter um desejo menos
metafsico...
Ora essa! mandaste-me pedir por boca, pedi. pecado querer ser nova?
loucura. Considera e torna a pedir.
Nada, nada! interps ela, atravessando-se a qualquer endrmina do bruxo.
Quero ser rapariga e acabou-se.
Meu Deus, que vontade to delirante para corpo to desgraado! gemeu
ele, torcendo-se todo num pattico de mau gosto.
O meu santo prometeu, prometeu. Nesta altura da vida outra coisa no me
tenta tornou ela aferrada sua entrevista miragem.
Pediu ele uma vasilha em que havia de operar a sublime metamorfose. Ela
que era avisada apresentou-lhe um pote grande, panudo e bem assente nas trs
pernas, em que caberia o sarrabulho dum Golias e no se perderia osso com
a fervura, por mais pequenino que fosse. Mas ele desejou coisa mais jeitosa e
manejvel.
Trouxe ento a mulher a infusa da gua, a nica vasilha mais que havia em
casa, mas em que de sorte ela caberia, embora se tratasse dum recipiente de
capacidade mais que mediana. O homem contemplou-a: era esbelta como a
torre de David e delicada como palmeira nova. No bojo tinha mais harmonia
que onda de gua a subir em cisterna de alabastro; as asas que suspendiam o
bocal ao alto, lembravam mos a toucar uma fronte com diadema; a curva era
lenta, ampla, melanclica e sumida como a linha surpreendida mais requintada
voluptuosidade. Toda ela de talhe to excelso, gargalo alto, fundo estreito, asas
to altivas que a velha, reparando bem, mais assustada cou. Era milagre se a
infusa no tombasse e no se perdesse por l bocadinho que zesse falta, depois,
perfeio de rapariga. Mas o homem desptico proferiu:
Em que camos?
E a velha entregou-se, cobiosa de percorrer de novo a estrada em que,
olhando do alto do seu desejo como de montanha pelo vale coberto de nvoa, no
destrinava alegrias de tristezas, a Primavera do luto das almas, e todo o temvel
tropel de tormentas emboscadas no tnue gozo.

Mal viu o facalho que o feiticeiro sacou da tnica, a velha desmaiou. Quando
volveu a si, ao romper o Sol dentre os cedros, dizia uma voz por cima dela:
Salta c para fora...
Estava dentro da infusa, muito moldada com o barro, mas encolheu-se,
torceu-se com imprevista maleabilidade, e pulou fora. Soltando uns ah! uns ih!
gritinhos agudos como de cotovia que escapa gaiola, descobriu-se bonita de
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corpo e um sorriso de blandcia iluminou-lhe o rosto especioso. Especioso sabia
que era e, todavia, ainda se no vira ao espelho, traste diablico-divino que nunca
entrara naquela casa, pelo qual ela agora daria meio mundo. mas ao que abrangia
com os olhos tinha a sensao fsica do que era o resto. E s ento lhe acudiu
que fora uma triste velha, muito velha, que andava a dormir de p pelos caminhos
onde se assentava tomava-a o sono, irmo da morte, mais desalmado que um
ladro; riam dela por pancrcia; temiam-na por bruxa e que um dos belos
milagres da Galileia se havia representado em sua pessoa. E como houvesse
guardado o sagaz instinto de mulher, bamboleando-se e admirando-se, disse para
o velho, em frente dela baboso decerto com a obra e com mais nada:
Bem desgurada me vejo, no h dvida. Se no soubesse, no me
reconhecia. Nenhum deita-gatos era capaz de consertar melhor uma tigela
quebrada! Muito rico da graa de Deus s tu para assim obrares prodgios a troco
dumas colheres de papas!
Tive pena de ti porque notei que o teu corao andava triste.
Consolaste-me. Que paga queres?
Nada em ti me seduz. D graas ao Inefvel.
Manda, sou a tua escrava.
Essas palavras no me iludem. Tu o que adoras em mim o poder e no o
homem. Se te tomasse comigo, breve te arrependerias tambm. O homem, repara,
morreu em mim quando reconheci que a felicidade no est nos bens do deleite.
Onde est ento?
Onde menos se busca.
E onde que menos se busca? Parece uma adivinha...
Na arte de se conformar a gente.
Calou-se a deliciosa compreendendo que na palavra do velho todos os destinos
se equivaliam, as galas da formosura no lhe acarretando mais venturas que a sua
desamparada velhice. Mas tudo isso era retrica de jarretas, certa, j se deixa ver,
e ela cria-o piamente, mas nada mais temerrio em jovens. A questo toda era
enterrar os dentes no fruto sem morder o caroo, que amargo. E como o seu
entendimento era advertido tornou:
Com que hei-de retribuir to grande neza?
No tens nada que retribuir. As minhas mos so rotas a dar e fechadas a
receber.
Mas, por quem s, no me vais deixar aqui ao deus-dar...?!
No rosto do velho perpassou um sorriso mau, reexo talvez do seu desprezo
pelas iluses das criaturas. E disse:
Para mim no tens prstimo nenhum.
Com que cara o dizes! Ah, vocs os velhos a mim no me enganam. Por fora
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parecem uns santos, por dentro so sacos de lacraus. Para que me vieste tirar ao
meu sossego?
O destino esteve nas tuas mos.
Querias que pedisse a salvao? Pois no pedia! Quis ser rapariga, acabou-se.
Agora o que te pergunto isto: que queres tu que eu faa de mim?
Conforma-te.
Conformam-se os defuntos com o caixo. Os vivos no. Pe l na tua que o
meu corao desejava mas no sabia mais que desejar.
Calou-se o velho num instante e disse maneando a cabea:
Minha rica, puseste-te fora da vida por teu belo gosto. Querias amar, sofrer,
sentir o turbilho da existncia, julgando que no tinhas amado nem sofrido, e a
tua alma desentranhava-se a amar e a sofrer. Acabavas de cumprir fadrio igual
ao dos outros mortais e no estavas satisfeita. Coitada! Uma noite que o Diabo
soprou em teu peito bastou para te perder. A voz que ouvias era dele e de mais
ningum.
E como lhe lanasse um olhar inconfundivelmente zombador, ela que se
supunha forte e dominosa mirou-se e remirou-se com mincia e desconana dos
ps cabea, desde as linhas implexas s veladas, desde os membros livres s
cabeas de pombo dos seios de neve. E ao cabo do exame, embora os desgnios
transmitidos ao seu corao pelo canal do Demnio lhe parecessem os melhores,
desatou a chorar em fonte com mais sinceridade do que malcia.
Ai! a cintura dela, ao manear-se, parecia um anel suspenso; o pescoo, em vez
de prender a cabea, levantava-se para o cu, como se quisesse separ-la do tronco
e oferec-la de pasto s aves. As pernas, ah, as pernas que deviam ser feitas para
subir aos montes e s rvores, eram de tal pulcritude e matria que davam ideia do
prro quebradio.
Para que me serve este corpo intil? Dize l, mandigueiro, homem maligno,
para que me serve...?

Chorava e tornava a chorar lgrimas que lhe banhavam o rosto, ela prpria via
correr um o, sentia rolar em bagadas pelo seio como um rocio ao mesmo tempo
pungente e agradvel. Mas em vez da boa cabea de jumento intonsa e taciturna,
o homem que se debruava para ela tinha a face esqulida, dois plos espetados
sovela no lbio superior e outros dois no queixo, e olhos pequeninos de azeviche.
Por debaixo do fez saam-lhe apos de cabelo sujo, e a sua voz era sibilada e
diferente daquela com que travara despique, e essa voz pareceu-lhe conhecida ao
proferir:
Ento dorme para aqui ao relento sem se importar com a orvalhada? Est a
ganhar a morte, mulher...
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A velha esfregou os olhos, deu conta que era manh, e negou-se com todas as
veras da sua alma a aceitar a verdade desconsolada. Nessa esperana perguntou:
Tu no s Ibraim, o aguadeiro, pois no...?
Sou eu mesmo, pois quem havia de ser? Olha, olha, quebraram-lhe a infusa;
onde deito agora a gua?
Quebrou-se, sim, quebrou-se. Se tu soubesses!
A velha fechou as plpebras, decerto a retina interior espraiada em amenssimas
perspectivas, o que se adivinhava pela imobilidade e o silncio, e acabou por
dizer:
Tu querias voltar a ser novo, Ibraim?
Para qu...? Para carretar mais gua...?
A velha afundiu-se em seu mutismo e ele depois duma longa pausa
impacientou-se, que estava atrasado. E enquanto despedia a aviar os fregueses,
nada descontente por no ter que lhe encher a cantarinha, que j devia a semana,
cava ela a chorar, outra vez a chorar em fonte, no saberia dizer se o prejuzo que
lhe dera o zorato, se o doce sonho realizado.

(De Quando ao Gavio cai a pena, 1935)

29
FERREIRA DE CASTRO

(1898-1974)

Emigrante lanado desamparadamente na rudeza e nos espantos da selva


amaznica aos doze anos, Jos Maria Ferreira de Castro colheu dessa experincia
singular e dolorosa, logo a seguir dos amargores da luta pela vida e pelo xito,
as inspiraes fundamentais da sua obra. Depois de versteis tentativas juvenis
como ccionista, a publicao dos romances Emigrantes (1928) e A Selva (1930)
deu ao escritor uma projeco literria que no tardou a alcanar extraordinria
irradiao mundial. Para isso contribuiu consideravelmente a traduo francesa
do segundo daqueles livros por Blaise Cendrars. Outros romances de temticas
diferenciadas, porm, consagraram posteriormente o romancista, no s no
mbito literrio portugus como no de muitos outros pases, em tradues nas
mais diversas lnguas. A simplicidade e naturalidade correntia da linguagem,
sem prejuzo do seu poder de expresso dos sentimentos mais vivos no homem
comum, a sensibilidade perante a dor, a expressa ou implcita esperana
humanstica no resgate da misria e da opresso, zeram de Ferreira de Castro
um escritor francamente aberto s multides, intrprete de um populismo
generoso que capta espontaneamente a simpatia e a adeso. Pelas mesmas razes
se dever consider-lo um precursor das geraes literrias que assumiram,
desde o nal da dcada de 30, uma misso social e interventora da arte, no s
em Portugal e no Brasil como, decerto, em outros pases. Foi sobretudo como
romancista e como autor de livros de viagens Pequenos Mundos e Velhas
Civilizaes (1937), A Volta ao Mundo (1944), As Maravilhas Artsticas do
Mundo (1963) , sempre a testemunhar a dramtica experincia da humanidade
no decurso dos sculos, que Ferreira de Castro armou primacialmente a sua
individualidade literria. Mas o conto no est ausente na obra que escreveu,
quer nas raras composies do gnero que se lhe conhecem, quer em muitos
trechos de romance e at de livros de outra ndole que condensam relances
de casos e guras inseridas no contexto. Sem agrante originalidade de estilo
30
nem de inveno romanesca, que nas criaes mais conseguidas se cinge
essencialmente experincia vivida ou directamente observada, a sua obra
ascendeu universalidade concreta a de um largo pblico mundial pela
limpidez com que traduziu as vivncias do homem sofredor, o sentimento de
amor pelos humildes e a conana no seu resgatado futuro.

31
O SENHOR DOS NAVEGANTES

Branca, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina, a capela do


Senhor dos Navegantes divisa-se de longe, como um farol. E a ela, mais do que
a uma luz que brilhasse na noite atlntica, os pescadores enviavam esperanas e
desesperos quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do mar. Porque
cava alta, ao m de ngreme, pedregoso carreiro, raras gentes l iam, salvo em
dia de festa, com morteiros e larmnica, uma vez cada ano. Faiscando pela
sua solido e largueza panormica, eu encontrara, porm, maneira de a atingir,
naquelas tardes de estio, sem me fatigar. Para subir s montanhas, um livro vale
mais do que um bordo e, com um livro sob o brao, punha-me a caminho. Logo
que as pernas se cansavam, sentava-me e lia, enquanto os melros iam cantando nas
velhas rvores da encosta. Sem o livro, pequeno seria o meu repouso e continuaria
a ascenso antes de refeito, que a tendncia de quem anda, leve rodas, leve hlices
ou apenas, modestamente, os ps com que nasceu, , j se sabe, chegar com
brevidade ao ponto de destino mesmo que nada tenha l que fazer. Com um
livro, outra coisa. Sendo bom, prende-nos mais tempo do que os braos duma
mulher e s desejamos interromper a sua leitura no nal dum captulo ou em
pargrafo onde possamos retom-la facilmente. Entretanto, as pernas recobram
foras.
Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes,
demorei-me a contemplar o mar vasto que dali se descortinava, ento muito
sereno, com suas velas graciosas e fugidias. Em baixo, estendia-se a grande
praia semi-selvagem. direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde
contrastando, espaireciam casitas modernas, todas faceiras e coloridas, ao passo
32
que, da banda oposta, aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em forma
de ilha sobre a areia e to velhas, negras e rodas pelos anos como se fossem
as mesmas que deixaram ali os primeiros habitantes do litoral. Dir-se-ia que
o tempo parara do lado onde se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes de
colaborao com a morte, para se activar apenas naquele onde se descansava
sombra tranquila dos pinheiros.
Aps esse longo olhar de amor com que todos os dias eu envolvia o oceano,
a terra e o cu, sentei-me e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porm,
que abri o livro, um rumor veio de dentro da capela. Surpreendido, voltei-me e
notei que a porta estava semi-aberta. Era a primeira vez que isto me acontecia.
At ento, eu encontrara sempre ali o maior silncio, um abandono total, com
esse sabor potico, no, voejante, que parece destilado pelo ar e prprio das
ermidas que padroam as montanhas. Agora, os rumores continuavam. Senti e vi
um homem transpor a porta. Trazia os braos fechados sobre numerosos ex-votos
barcos de cera e pequenos quadros, ingnuas pinturas feitas sobre madeira. Ao
dar comigo, estacou, contrariado; teve, em seguida, uma expresso incerta, logo
um movimento de indiferena, e dirigiu-se, resoluto, para o extremo do adro.
Desse lado, o anco da colina descia quase a pique, at um matorral que se
estendia l em baixo. Era um temvel despenhadeiro e, para defesa de quem vinha
ao Senhor dos Navegantes, haviam construdo ali um murozito, que, da banda
de dentro, formava bancada, em semi-crculo. Nessa parte do adro o homem se
sentou, a uns quatro metros de mim.
Descontente com a sua presena inoportuna, eu ia baixar, de novo, os olhos
sobre o livro, quando ele me disse:
Provavelmente, o senhor pensa que sou um ladro... No verdade?
certo que eu havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado
as suas foras em relao s minhas e concludo que, em caso de luta, talvez ele
me vencesse. No que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados,
enquanto eu no chegara ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e
os braos muito mais possantes do que estes, to franzinos, de que eu me servia
para pegar no livro. Os seus olhos claros no precisavam de culos, ao passo que
os meus, sem o auxlio de vidros, no me permitiriam dar dois passos seguros,
mesmo para fugir. E embora as linhas fsicas dele no se mostrassem rudes, o fato
que trazia, gasto, poeirento, e no sei mais o qu de seu todo, sugeriam a ideia de
homem habituado a trilhar as estradas do Mundo, de varapau na mo, ao assalto
da vida.
Hesitei, talvez, alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me ouvir,
acrescentou:
33
No, no sou um ladro. Isto e apontava os ex-votos pertence-me. Eu
que no os mereo...
Denitivamente perturbado, respondi, enm, qualquer coisa, no me recordo o
qu, uma necedade por certo, e ele voltou:
O senhor no de c, pois no? Est a veranear na praia?
Estou.
Logo vi. A gente da terra no tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe
basta o trabalho.
No entendi logo se ele falava assim para me ser desagradvel ou simplesmente
para demonstrar a sua perspiccia.
Os seus olhos voltaram a xar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura,
mas senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo dizer:
O senhor esteja sua vontade. Eu no me demoro. E no tenha medo de
mim. No fao mal a ningum. Todos ns, certo, j algum dia zemos mal e
eu z um grande mal, mas isso foi h muito ano... A sua voz repetiu, de modo
profundo: H muito ano...
claro que no tenho medo declarei, num tom frio. Na verdade, porm, eu
enervara-me. Tornei a abrir o livro e ngi ler.
O homem calou-se. Vergado sobre os ex-votos, as suas mos iam desfazendo
os barcos de cera e arremessando-os para o abismo, para o saral que havia l no
fundo. Deles reteve apenas a extremidade dum mastrozito com a sua bandeirola,
que fez voltejar na ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice que se tem para
as coisas frgeis, e logo enou na botoeira do casaco. Depois, estendeu o brao,
agarrou uma pedra e deu-se a partir os quadros onde se viam embarcaes de pesca
em luta com o mar embravecido e o Senhor dos Navegantes de p sobre nuvens.
Todos eles tinham datas, algumas seculares, e legendas de reconhecimento, com
muitos erros ortogrcos e mal desenhadas letras. O homem lia-as antes de
despedaar as pequenas tbuas onde elas estavam inscritas e, em seguida, lanava
os destroos l para baixo, para o mesmo lugar dos barquitos de cera. Entretanto,
parecia falar sozinho:
Nunca salvei ningum. Ningum! Eu bem o desejaria fazer, mas j no tinha
foras para isso. Se estes se livraram da morte, foi apenas por circunstncias
favorveis...
Levantou-se e voltou a entrar na capela. Pensei ser o momento de me retirar.
Ele ia julgar que eu era cobarde, mas isso no me importava. Verdadeiramente
disse a mim prprio o que busco nesta colina sossego, e sossego, hoje, no
existe aqui.
Antes, porm, de eu haver tomado uma deciso denitiva, o homem surgiu,
novamente, no adro, com outra braada de ex-votos. Eram, agora, mos, seios,
34
cabeas e ps de cera. Ou por falta de pacincia para os desfazer um a um ou por
lhe ser anojoso partir aqueles smiles de membros humanos, que lhe acordariam,
porventura, remotas supersties, ele acercou-se do murozito e lanou os ex-votos,
duma s vez, para as profundidades do desladeiro. Depois, quedou-se, um
momento, como eu zera antes, a contemplar o oceano.
O senhor gosta disto? perguntou, voltando-se ligeiramente para mim.
Isto bonito respondi-lhe. um magnco panorama...
Sim, no feio... murmurou. Podia ter sado muito melhor, mas, enm...
j os romanos gostavam deste stio. Ningum o sabe ainda, seno eu, mas a
verdade que houve aqui um crasto. Olhe, acol, esquerda, antes de se entrar no
adro, se algum escavar, encontrar restos de sepulturas... E praia, l em baixo,
chegaram a vir muitas galeras... Existia, ento, um pequeno porto, que o tempo
assoreou...
Surpreendiam-me os seus conhecimentos e a propriedade com que falava.
Tentei examin-lo melhor, mas o homem encontrava-se novamente de costas,
sempre de olhos xos ao longe.
Efectivamente disse-me, depois se olharmos bem para a terra, para o mar
e para o cu e se pensarmos na grande variedade de seres que h no Mundo e
em todo este admirvel equilbrio planetrio, parece-nos que estamos perante um
milagre. No assim? A si tambm no lhe parece o mesmo, quando pensa, por
exemplo, nas vidas submarinas?
Sem dvida, o Mundo muito variado e...
Ele interrompeu-me:
Eu sei que todos os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo.
Um simples insecto, que encontramos num monte e que podemos facilmente
esmagar com o p, se ele no fugir, capaz de levar-nos a meditar sobre o mistrio
da criao, capaz de arrastar o nosso pensamento por caminhos obscuros que,
momentos antes, no tnhamos sequer admitido percorrer...
O homem interrogou-me bruscamente:
O senhor o que ? Qual a sua prosso?
Eu disse-lha e ele pareceu contente:
Ah, muito bem! Ento pode compreender... No verdade que o Mundo
parece feito por uma imaginao portentosa? Por uma inteligncia que nenhum
homem pode igualar?
Algumas vezes tenho reectido sobre isso... confessei, modestamente.
A est! exclamou ele. A est. Mas o senhor engana-se! Pelo menos,
engana-se em metade...
Aproximou-se mais de mim. Eu estava sentado, ele de p; eu tinha de olh-lo
de baixo para cima e sempre com receio de que estendesse as mos e me
dominasse.
35
Ora diga-me uma coisa. Nunca lhe pareceu que essa inteligncia havia cado
a meio do seu trabalho? Que no tinha ido at onde parece que pretendia ir?
No sei. A nossa razo tem limites. Para alm da nossa razo podem existir
outras razes, que no so explicveis...
Era a, justamente, onde eu queria chegar! Ao dizer isto, o homem
sentou-se ao meu lado, dobrando-se levemente para a frente, com os braos
apoiados nas pernas e as mos juntas. A sua voz adquiriu, ento, um murmurejar
de condncias e de quem no sente pressa alguma:
Tudo correu muito bem, a princpio declarou, como se continuasse uma
narrativa interrompida. Eu tinha um poder innito. E uma imaginao para alm
de todos os prodgios. At eu prprio me admiro, hoje, disso. Bastava pensar
uma coisa e o meu pensamento materializava-se rapidamente, adquirindo forma e
vida. A minha fantasia no encontrava limite algum e os prprios habitantes das
profundidades deste mar que estamos vendo o atestam. um prazer que o senhor
no conhece tornar realidade o prprio absurdo. Mas, nesse tempo, tambm eu
no sentia esse prazer; eu no fazia ideia alguma do que era absurdo e do que
era lgico, do que era belo e do que era feio, do que era bom e do que era mau.
Estas denies s se estabeleceram mais tarde, justamente quando surgiram os
limites... Eu criava, criava, como num delrio. E no h dvida de que a minha
principal obra foi isso a que os homens chamam Universo, a mecnica celeste, o
Innito... os senhores andam, com a vossa cincia, a colocar l algumas balizas,
mas trabalho mais difcil do que se quisesse remover com uma colher de ch a
terra duma montanha...
Enquanto falava, o homem olhava para o cho, como se no desejasse ver nos
meus olhos o efeito das suas palavras. Depois, mudou o tom de voz:
Um dia, porm, senti-me decadente. As aves, por exemplo, so um indcio
do meu declnio. No sei se o senhor viajado, se conhece a sia e a Amrica, as
grandes orestas tropicais onde h aves maravilhosas.
Mas se no conhece, no importa; tem visto isso, pelo menos, nos livros com
estampas multicolores. Parece-lhe no verdade? que h uma diversidade
deslumbrante, uma fantasia inesgotvel no mundo das aves. Pois no assim! Se
observar bem, ver que no assim. A minha imaginao havia j comeado a
diminuir, comeava j a aproximar-se do que viria a ser a imaginao dos homens.
Criei um pssaro e os outros foram apenas variantes. Utilizei o primeiro modelo
e -lo de todos os tamanhos, desde a avestruz, to grande que pode ser cavalgada,
at o colibri, que, de minsculo, se confunde com um insecto. A seguir, -lo de
todas as cores e com todas as combinaes de cores. Depois, em vez de criar,
pus-me a exagerar determinadas parcelas do que j havia feito. E cheguei, assim,
at caricatura da minha prpria obra. A algumas aves limitei-me a esticar-lhes
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as pernas, as caudas ou os bicos, de tal forma que estes caram grotescos e
muito maiores do que o corpo. A outras dei-lhes uma amplitude de asas de que
no careciam ou deixei-lhes apenas uns simples cotos. Variei-lhes, tambm, o
fulgor dos olhos e a composio dos seus gorgeios, deixando umas eternamente
mudas e obrigando outras a cantarem at na hora da morte. Mas tudo isso eram
simples pormenores, porque, no fundo, a ave, a ideia fundamental, era a mesma.
Eu parecia um desses artistas que realizou, certo dia, uma descoberta feliz e
passou, depois, o resto da vida a lutar desesperadamente para dar a iluso de que
no se repetia, quando, na realidade, no fazia outra coisa seno plagiar-se a si
prprio...
O homem calou-se subitamente e, soerguendo a cabea, olhou-me pela
primeira vez, desde que se havia sentado.
O senhor est a pensar que sou um louco, no verdade?
Foi, ento que, por meu turno, baixei os olhos, admitindo de novo que ele
poderia, em qualquer momento, lanar-me por cima do murozito de resguardo,
como zera aos ex-votos.
No, senhor. Estou a ouvi-lo com muito interesse. O que acontece que se
vai fazendo tarde...
Ele examinou atentamente o cu, como se medisse o Tempo:
No, tarde, no ... So apenas cinco horas... D c um cigarro.
Passei-lhe o mao, ele meteu-lhe os dedos, riscou, devagar, um fsforo, soltou
o fumo e tornou:
Com o mundo vegetal acontece a mesma coisa. O que uma rvore? O
que uma planta? Uma raiz metida na terra. Para evitar a monotonia, tive de dar
variedade s folhas, s ores, aos frutos e aos aromas. Mesmo aos troncos. Mas,
apesar de tudo, sempre uma raiz metida na terra. Ora no era isso que eu queria.
Eu no queria o Mundo submetido a uma repetio perptua. Eu desejava que ele
se modicasse constantemente. O senhor j pensou que poderiam perfeitamente
existir bosques areos e que o homem deveria andar no fundo dos mares ou no
espao celeste com tanta facilidade como anda aqui na terra? O senhor no v que
os homens esto todos os dias a procurar corrigir os defeitos do meu trabalho? O
que um avio ou um escafandro seno um remendo minha obra? Mesmo os
que me adoram, passam a vida a discordar de mim e a tentarem emendar o que
eu z. Quando imploram as minhas graas para as suas infelicidades, no fazem,
no fundo, outra coisa do que censurar-me, pois o que uma splica seno uma
revolta que no se pode exteriorizar? Sorriu vagamente e ajuntou: S no me
amaldioam porque ainda me julgam mais forte do que eles...
Voltou a calar-se. Depois, calcou o cigarro, ainda quase inteiro, e, com um tom
doce, melanclico, confessou:
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Eles tm razo, coitados! Sucumbi antes de realizar integralmente a minha
obra. O que devia ser mutvel tornou-se imutvel e as leis que caram a reger o
Mundo so impiedosas. Eu s me lembrei de criar o homem muito tarde. J havia
feito os outros animais, j havia mesmo esgotado toda a fantasia no exagero dos
pormenores, quando me ocorreu uma outra variante. A minha tendncia fora, at
a, dar aos bichos quatro apoios sobre a terra ou sobre as rvores. Pois bem! Aos
novos seres eu daria, como s aves, apenas duas patas. Mas o senhor no pode
imaginar o que senti ao ver de p, entre os outros, o novo casal. Eu estava a
criar o canguru e to impressionado quei que lhe pus logo dois embries de
pernas e deixei-o incompleto para todo o sempre. No meio dos outros bichos,
que se moviam alegremente, com jubilosos rudos na manh da sua vida, o
homem e a mulher, nicos que eram verticais, dir-se-iam dois pinguins entre um
bando de pssaros chilreantes. Ele olhava ao longe, sem saber como orientar-se.
Mostrava-se to triste, to incerto no seu destino, que tive de repente pena dele.
Porque fora talhado ao alto, o seu prprio sexo se apresentava menos oculto do
que o dos outros animais e parecia vex-lo. No ocaso do meu poder, eu comeara
a atribuir, por fraqueza imaginativa, diferentes funes a um mesmo rgo. Para
as aves bastara-me um tubo de vazo; para os outros viventes criei, inutilmente,
dois e ao segundo impus uma dupla utilidade. Quando veriquei o erro, era
demasiado tarde: dali em diante, a prpria vida humana brotaria dum cano de
esgoto. Assim, a piedade que eu senti pelo homem ia-se tornando cada vez maior.
Hesitei um momento e decidi: a este que eu me darei. a este que eu darei o
que ainda resta de grande em mim E fundi a minha decadncia, o crepsculo da
minha potestade, naquele melanclico animal. Foi outro erro, o meu maior
erro. O homem cara com todas as aspiraes dum deus e no era completamente
deus. Surgiram, devido a isso, inmeros conitos. O homem queria ser eterno
como o deus que ele guardava dentro de si e era, pelo contrrio, to efmero como
os outros animais. Queria ser feliz, impelido por aquela obscura reminiscncia
de quando uma parte dele me pertencia a mim, sua divindade, e havia de
passar milnios sobre milnios a lutar para ser feliz, sem nunca o poder ser por
muito tempo. S o era integralmente por alguns minutos e justamente quando
fecundava novas dores humanas. Eu havia-o deixado to desamparado e com
tantos problemas a resolver, que a prpria caverna, em vez de ser apenas um ponto
de partida, foi, ao contrrio, um ponto de chegada a sua primeira conquista.
O Mundo cara imperfeito e o homem com uma nsia de perfeio impossvel.
O Mundo cara incompleto, injusto e sem nalidade visvel e o homem deu-se
a lutar para que o Mundo tivesse para ele tudo aquilo que o Mundo no tinha.
Quando no pode lutar de outra maneira, recorre s hipteses. So as hipteses
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que o tm amparado desde que ele vive. Eu sinto remorsos, creia, por tudo quanto
z... Sinto especialmente remorsos por tudo quanto no cheguei a fazer...
O meu interlocutor levantou-se, meteu as mos nos bolsos e caminhou, como
opresso, at extremidade do muro que nos protegia do abismo. Vi-o olhar l para
baixo, para os destroos dos ex-votos, vi-o, depois, estender a vista at ao mar e,
em seguida, voltar-se para mim:
Ento, eu prprio comecei a lutar tambm contra a minha obra. claro que,
ao fundir-me no primeiro homem, quei mortal como ele. Mas gozo, ao contrrio
dos outros, o privilgio de guardar memria das muitas vidas que tenho vivido.
Lembro-me de tudo desde o comeo do Tempo, desde que z o Mundo. E nisso
est o meu principal sofrimento, porque a memria, para quem praticou o mal, ,
como se sabe, o maior castigo que existe. Sofro ainda porque os homens levam,
s vezes, milhares de anos para acreditar no que evidente. Quando lhes digo a
verdade, eles maltratam-me. Quando lhes grito, por exemplo: O Mundo est mal
feito e preciso, dentro das vossas possibilidades humanas, corrigir o Mundo
os mais fracos, os mais ingnuos, cam a olhar para mim, duvidosos ainda
sobre se ou no verdade o que lhes digo, enquanto os mais fortes mandam
imediatamente perseguir-me. Se, para me defender, declaro: Tenho a certeza de
que est mal feito, pois fui eu prprio quem o fez ento consideram-me louco,
bruxo, hereje, visionrio, e perseguem-me da mesma maneira. Poucas vezes tenho
morrido na cama, como morrem os generais e a maioria dos outros homens.
Ao contrrio, tenho sido esquartejado, queimado vivo, crucicado, enforcado,
fuzilado, guilhotinado, electrocutado e gaseado. A cada uma das minhas vidas foi
sempre aplicada a moda a que cada poca e cada povo obedecem para matar os
seus inimigos. Disso no tenho que me queixar... acrescentou, com um sorriso.
H pouco, contei-lhe que, ali, entrada do adro, se encontra um velho cemitrio
romano. Decerto, o senhor no acreditou. Compreendo perfeitamente: no seu
lugar, eu tambm duvidaria. Mas pode ter a certeza de que estou l... Ou, se j no
existe resduo algum do meu corpo de ento, deve estar l, pelo menos, uma fbula
que eu usava nesse perodo. Enterraram-me ali depois de me terem supliciado
brutalmente, s por eu haver dito que, como criador que fora do Mundo, vivia a
penitenciar-me do meu tremendo erro. Eles julgaram que, com isso, eu pretendia
ser mais importante do que o imperador de Roma e liquidaram-me...
Um bando de gaivotas ladeou a colina, sobrevoando a praia. A luz da tarde
ia diminuindo de intensidade e dando cores suaves aos arredores da capelita, ao
prprio adro, onde a voz do homem prosseguia:
Se eu lhe contasse o que observei e sofri atravs dos Tempos! Mas nunca
mais acabaria e vejo que o senhor est com pressa... O que me valeu nos ltimos
sculos foi a inveno da tipograa. Sem isso, teria sofrido ainda mais, dado que
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as minhas ltimas vidas passei-as, quase inteiramente, nas prises. Assim, sempre
arranjo alguma coisa para ler. Tenho lido muito, muito; desde h quatrocentos
anos quase no fao outra coisa. Por um lado, a leitura distrai-me, leva-me a
esquecer a cadeia; por outro, tortura-me, pois pelos livros dos homens que eu
vejo, sobretudo, o drama que criei... Ultimamente, l no manicmio, s queriam
dar-me livros optimistas, livros em prol. Os mdicos armavam que essas obras
no me despertariam ideias sombrias... Mas eu protestei imediatamente...
Ah, o senhor esteve no manicmio? perguntei; de modo tmido.
Estive respondeu-me ele, com naturalidade. No tenha medo de me
ofender, pois desde o princpio adivinhei que o senhor pensa que eu sou um louco.
No me ofende nada... Todos tm pensado de mim a mesma coisa, j lhe disse.
Estive e l estaria ainda se, ontem, no tenho conseguido fugir. Estava l ia j
para oito anos. E sabe porqu? Porque, um dia, entrei numa igreja e gritei aos
crentes que se encontravam ajoelhados: No vos resigneis, pois o Mundo que eu
z muito imperfeito e, portanto, precisa mais do vosso esforo do que da vossa
resignao. Imperfeito h-de ele ser sempre e vs tambm; contudo, em muita
coisa podeis aperfeioar o Mundo e a vs prprios. Mas no de joelhos que o
fareis; de p e a lutar! Quem vos fala j foi Deus e sabe porque fala assim
O homem olhou-me, como se, desta vez, lhe interessasse conhecer a minha
reaco. Vendo que eu continuava calado, teve um sorriso melanclico e
continuou:
O que eu fui dizer! S as imagens dos santos caram impassveis... Mas o
Cristo, no altar-mor, parecia contemplar-me meigamente, com um ar secreto de
cumplicidade. Dos is, uns olhavam para mim, escandalizados, outros faziam
esforos para no se rir... Junto do altar da Senhora dos Aitos encontrava-se,
ajoelhada, uma pobre mulher, a nica que, naquela manh, estava ali com
verdadeira uno. Ela tinha um lho morte e no tinha recurso algum, nem para
o mdico, nem para os medicamentos para nada. Viera ali pedir ao cu que lhe
salvasse o lho, pois era o cu a ltima esperana que lhe restava. Senti tanta pena
por essa me infeliz, que me aproximei do altar, estendi os braos para a imagem
de Nossa Senhora dos Aitos e tirei-lhe do pescoo um dos muitos cordes de oiro
que os devotos lhe haviam oferecido. Entreguei-o mulher e disse-lhe: Vende-o
e vai a correr chamar o mdico! Mas a mulher, depois de limpar as lgrimas,
encarou-me com repugnncia, como se eu fosse o prprio diabo e recusou o
cordo. Teimei: Despacha-te, seno o teu lho pode morrer! Ela continuou
a recusar e a olhar-me com desprezo. Ento, sempre com piedade por ela e
pelo lho, resolvi mentir: Anda! Pega l! No tenhas escrpulos!, Eu sou o
instrumento de que Nossa Senhora dos Aitos se serviu para te ajudar. Ela
hesitou um momento. Olhou a imagem, olhou para mim, mas no cheguei a saber
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se se havia decidido a aceitar aquilo. A igreja enchera-se de gritos: louco!
Louco! ladro! ladro! Quer roubar a Nossa Senhora dos Aitos! Um
polcia, que estava tambm ajoelhado, levantou-se, avanou para mim, tirou-me o
cordo e p-lo, de novo, ao pescoo da imagem. Depois ordenou-me que sasse
na sua companhia... O senhor est a ver o que aconteceu... Se, ontem, no apanho
um guarda distrado e no salto o muro, no estaria agora aqui a falar consigo...
Ofereci-lhe outro cigarro. Ele recusou-o com um gesto.
So horas de irmo-nos embora disse, empregando o plural, como se
estivesse certo de que eu partiria, com ele, do Senhor dos Navegantes. Realmente,
eu deixara de o temer.
Atravessmos o adro. Ao passarmos junto do local que ele me dissera haver
sido um cemitrio romano, vi-o deter-se. Os seus olhos pareciam buscar, sob as
plantas silvestres, um determinado stio. Encontrou-o, decerto, porque, vergando
a cabea, gritou para dentro da terra:
C estou! Ouves? C estou e vou continuar a lutar!

(De A Misso, 1947)

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JOO DE ARAJO CORREIA

(1899-)

Continuador a um sculo de distncia da grande esteira narrativa e estilstica


aberta por Camilo Castelo Branco, sempre xado com inaltervel enraizamento
regionalista nas terras e nas gentes do vale do Douro portugus, Joo de
Arajo Correia criou uma vasta obra de contista com bem caracterizada
individualizao. Em muitos dos seus passos, essa obra quase se identica com
a do autor de crnicas, que tambm tem sido assiduamente, na transposio
para a escrita literria de casos e situaes observados no real imediato. Isso
mesmo, porm, juntamente com um estilo de marcada inspirao nos clssicos
da lngua ou na autenticidade da linguagem popular, confere criao ccionista
de Joo de Arajo Correia, representada em dezenas de ttulos, uma vivacidade
de expresso humana em que se condensa com plenitude a solidariedade com
os homens que (no Douro) mourejam, isto , padecem. A experincia de
mdico rural, que foi durante longos anos, em contacto directo e dirio com a
dor, as lutas, os incidentes e tambm o pitoresco das populaes camponesas e
serranas, envolvendo-se consequentemente numa viso cida da vida, alimenta
em diversidade e autenticidade as narrativas curtas que preenchem a maior parte
da obra deste escritor. Livros como Contos Brbaros (1939), Contos Durienses
(1941), Folhas de Xisto (1959), Rio Morto (1973), Tempo Revolvido (1974),
entre muitos mais, documentam a energia e colorido da linguagem descritiva ou
dialogal com que o Autor soube captar em traos breves, incisivos e agrantes,
as situaes e o desenho de personagens. Na sua verdade, com frequncia
se dilatam do connamento regional a um mais largo sentido de essencial
humanidade. A conciso narrativa e descritiva uma das caractersticas e
tambm uma fora de comunicao deste contista que ultrapassa a aparncia
de supercial visualidade dos seus quadros novelsticos pela intensidade dos
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dramas vividos que neles se contm. No havendo atingido, talvez pela disperso
temtica e ausncia de estruturas romanescas, o primeiro plano da projeco
literria em grande pblico, a obra de Arajo Correia um lo de grande
riqueza testemunhal e lingustica.

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AS VELHAS SO O DIABO

Ningum case com mulher velha. As velhas, ainda que paream santas, so o
demnio. Que o diga o Frederico. Tinha feito casa e perdeu-a por via da mulher,
mais velha do que ele trinta anos.
Este disparate de idades pareceu acertado ao Frederico no dia em que se
casou. Ele era um rapaz doente e pobre. Tinha-se estreado como cavador, mas
no provara bem na enxada. Derreou-o a primeira cava para toda a vida. Era um
pelm. Desistiu da vinha e fez-se comerciante. Melhor dizendo, fez-se feiro,
porque a palavra, comerciante na de mais para se aplicar ao modo de vida do
Frederico. Feiro, sim, porque o negcio do Frederico era vender na feira porcos
de criao. Achou que fez bem, casando com uma velha, porque essa velha tinha
alguma coisa de seu. Podia aumentar-lhe o negcio com o dote e dar-lhe respeito
casa com os cabelos brancos.
Embora doente, o Frederico era activo e at ambicioso. Madrugava como um
pssaro e s adormecia pela noite dentro, depois de ter feito de cabea as contas
do negcio.
Esta labuta, em vez de o enfraquecer, fazia-o homem. O ar livre, respirado
de costas direitas e independente, por feiras e caminhos, abria-lhe o apetite. No
tinha cor, mas, de ano para ano,. ia-se tornando menos seco e mais robusto.
Quando casou, j no era o rapazinho dbil que a primeira cava derreara. As
moas, quando o viram na igreja receber-se com uma velha, exclamaram: mal
empregado!
No h dvida que o casrio do Frederico foi interesseiro. A velha tinha de seu
uma casa ampla, situada fora do povo, mas o quintal... era o melhor pedao de
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cho da freguesia. De todas as vezes que o Frederico por ali passava a caminho das
feiras, namorava a casa e namorava a cerca. Parecia-lhe que as lojas subjacentes
ao prdio e aquele gordo torro ali ao p seriam boa cama e refeitrio farto para o
seu gado. Antes de casar com a proprietria, enamorou-se da propriedade.
Que, valha a verdade, a dona de to bela regalia casa e quintal tinha
tambm seu prstimo. Vivia sozinha e sozinha se desembaraava de toda a sua
lida, que no era pequena. Cavava a horta por suas mos, fazia de comer, lavava
os manachos, ia lenha, ponteava as meias, remendava as saias e cuidava do vivo
como ningum.
O vivo o porco ou porcos que habitam uma corte. a biologia sagrada de
uma vivenda. O vivo! Signica o ser vivo por excelncia. Ora, em sete freguesias
pegadas, ningum cuidava melhor dos entes que grunhem e no vem o cu do
que aquela mulher. O Frederico mercava-lhe as criaes a olhos fechados.
Da admirao da obra admirao da autora mediou um passo. Mulher que to
asseados bichos criava em sua loja merecia que um homem olhasse para ela. Viva!
A senhora Aninhas chamava-se Aninhas era mulher perfeita.
Destes cumprimentos, destas exclamaes sinceras, at ao casamento foi outro
passo. A casa, o quintal e a corte passaram por encanto categoria de emprio
comercial do Frederico. A loja, povoada de buliosos bcoros muito limpos,
sempre a coinchar com saudades da mama ou fome de lavagem, parecia uma
creche de criancinhas ruas. No meio deles, com uma vide na mo, a senhora
Aninhas gurava como ama sem touca, mas, com uma habilidade, um dedo
para aquilo, que espantava o negociante. Com dois ou trs monosslabos e umas
ccegas feitas com a vide no serro dos inocentes assim os comandava.
Era manifesta a prosperidade do Frederico em bens comprados ao redor da
casa hoje uma leira, amanh uma vinha, depois uma mata. Davam-lhe os
vizinhos, em suas avaliaes mentais um pouco invejosas, para cima de cem
contos. Como o vissem assim, to aumentado de teres, comearam a chamar-lhe
Tio Frederico e at senhor Frederico. Tanto tens tanto vales.
raro que o homem sofra mais do que uma paixo. A paixo do Frederico era
o negcio. Amava a mulher como auxiliar da sua prosperidade. Punha-a, no que
considerao, acima do cavalo que o levava feira. Extasiar-se, s se extasiava
diante dos bcoros, que representavam dinheiro. Chamava-os bic, bic com
ternura utilitria.
A mulher no era assim. Vivia para o marido. Solteira at aos cinquenta anos,
delirou quando se viu casada... e casada com um rapaz novo! Cheia de lgrimas
de jbilo na face arregoada pelos anos, arrumava a casa e fazia o jantar do marido.
Por amor dele, tornou-se avarenta sem deixar de ser limpa. Queria-lhe como
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lho e como esposo. Sabendo-o de compleio delicada, alimentava-o a preceito
com ovinhos crus furados com uma navalhinha. Obrigava-o a beb-los assim,
que era, na opinio dela, como faziam melhor. noite, como o sentisse exausto
das jornadas, no se punha a ma-lo com candonguices. Deixava-o adormecer a
contempl-lo como as mes contemplam os lhos adormecidos no colo.
O Frederico nunca se comovia com a ternura da esposa. Estimava-a como
consorte, mas no lhe retribua o dzimo do carinho. O to da sua vida era o
negcio. A esposa, a casa, o quintal, a corte, os bcoros, eram instrumentos do seu
ganha-po. Estava satisfeito, no arrependido de se ter casado. A senhora Aninhas,
ainda que velha, era o seu brao direito na luta que travara contra a doena e contra
a pobreza. Era sua scia. Prezava-a como tal.
No dia em que a senhora Aninhas percebeu que no passava de scia do
marido, quis morrer. Lembrou-se do pai e da me teve saudades da vida de
solteira. Ter-se-ia arrependido de casar se a no cegasse o orgulho de ter casado
com um rapaz novo. Toda desvanecida, evocava a cena do casamento, o n dado
na igreja.
Entretido com o negcio, o Frederico no pensava na mulher. Quando ia pelos
caminhos fora, no passo travado do cavalicoque, cata de porcos nos para
criao, pensava em porcos. Nem nas feiras, no auge do barulho, a imagem da
mulher lhe acudia. Era um feiro. Movia-o a nsia de feirar.
Hoje uma vinha, amanh um campo, depois uma tojeira ou um matareco, a
pouco e pouco o Frederico ia juntando as peas de um casal formoso. Parecia-
lhe, de cada vez que comprava uma propriedade, que aumentava a fora fsica. O
desaire sofrido na primeira cava ia vingando.
Toda a energia do Frederico se aguava no faro do dinheiro. Sabendo-o casado
com uma velha, algumas raparigas novas, vestidas de seda vegetal, diziam-lhe de
soslaio a sua graa quando o viam nas feiras. Sem lhes dizer vade-retro, sorriam-
lhe de vontade, mas o sorriso dele era indulgente, no conivente com o intuito das
moas.
A senhora Aninhas no acreditava na inocncia do Frederico. No compreendia
que rapaz to novo jejuasse tanto. Ela no acreditava. Sentia-se preterida por outra
ou outras mais novas do que ela. Chamava nomes feios a estas rivais imaginrias.
Cheirava a roupa do homem, virava-lhe os bolsos do avesso e inspeccionava-os
com mincia para surpreender qualquer pequena prova de culpa marital. Um dia
encontrou um plo preto aderente ao colete de pelcio do marido. Pegou no plo,
aproximou-o dos olhos do marido e exclamou:
Est aqui, ladro! Hei-de p-lo num relicrio at a dona aparecer. Quem ma
dera pilhar! Este cabelo de cigana. Gostas de ciganas, ham?
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mulher, isso no um cabelo. uma clina do nosso Mulato, explicou, com
vontade de rir, o Frederico.
Olha, mulher, continuou. O Mulato est na manjadoira. Chega-te a ele e vers
que lhe adita a clina.
A senhora Aninhas, meio sorridente, meio confusa, chegou-se a uma janela e
soprou o plo.
Assim ela varresse para sempre os zelos. Que no varria. Debalde defumava
a casa. Debalde mandava s bruxas a camisa do homem para anlise. As bruxas
davam amiga e que eram precisas rezas e esconjuros: terra de cemitrio, sal
derramado, sapo cozido, etc. Pobre Aninhas! Cumpria risca a receita das bruxas.
Debalde! Debalde! O seu corao no se aquietava.
Moeu dinheiro a senhora Aninhas para conseguir o apego carnal do Frederico.
Embora... Foi contraproducente esse dispndio. Ele, que a princpio lhe tolerava
os cimes, a pouco e pouco os aborreceu. Tanto os aborreceu, que os repeliu certa
noite com meia dzia de socos vibrados no rosto velho da senhora Aninhas. Da
por diante, deixou de dormir com ela. Passou a dormir numa tarimba, na loja do
Mulato, por cima da manjadoira.
A casa do Frederico ressentia-se desta desavena. Casa que fora limpa antes de
a senhora Aninhas se casar e durante anos depois do casamento, deixou de ser casa
para ser montureira. Na corte, os bcoros, deitados em ms camas, emagreciam
antes de ser vendidos, mngua de refeies pontuais. Cortava o corao ouvi-los
grunhir de fome.
O Frederico, homem que fora casto e trabalhador, amoleceu no negcio e
deixou-se seduzir pelas moas que rondavam as feiras com o corpo metido em
seda vegetal. Emagreceu como os bcoros. Perdeu o apetite.
A senhora Aninhas chorava do corao a magreza do marido. De noite, no
dormia. Espreitava-o da janela do quarto para ver se ele saa da cavalaria ou
se metia dentro alguma marafona. Os desvarios do Frederico eram perpetrados
em Lamego, na Rgua e em Vila Real, durante as feiras. No tinha pacto com
vizinha.
Em vo a senhora Aninhas espreitava o Frederico. Nunca o apanhou com a
boca na botija, como ela dizia. Uma manh porm, da janela do quarto, viu-o
cavalgar e partir para uma feira. Responsou-o a Santo Antnio como de costume.
Alongou os olhos no rasto do marido. Ps-se a chorar. Depois olhou indiferente
para umas mulheres que passavam debaixo da janela. Provavelmente, iam tambm
feira. Deix-las ir... L marchava, a rabo delas, sozinho como sempre, o sapateiro
da terra. Amigo de passear, ia vila por cinco ris de nada. s vezes ia comprar
um novelo de o. Outras vezes, ia comprar meio quilo de sola. No tinha quem lho
comprasse? Farto fosse ele de passear neste mundo e no outro. Atrs do sapateiro,
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caminhava uma mulher de idade, com o perico do cabelo erecto debaixo de uma
mantilha rota. Era a Brtola alcoviteira. Ao lado da Brtola, a olhar para o cho,
ia muito melada a Candidinha beata, rapariga linda e bem feita, mas triste como
a noite. Que ia ela fazer ao lado de semelhante coira? No a enojava a sombra de
uma coruja? Qual enojava? Olhou a furto para a cavalaria do Mulato, coseu-se
com a companheira e l seguiram ambas por ali abaixo. Ter com quem? No peito
da senhora Aninhas, deu-lhe salto o corao. Tate! A sonsa da Candidinha falava
com o seu homem.
Ficou a cismar, sem comer nem beber, presa janela todo o santo dia. Ali cou
at o escurecer. Viu chegar o marido, passar diante da porta do sapateiro, com
um rolo de sola debaixo do brao, e, na cauda do cortejo que regressava aldeia,
a sonsa da Candidinha, pisando a sombra da desavergonhada Brtola. Como de
manh, a Candidinha relanceou os olhos loja do Mulato.
Presa janela sem comer nem beber, com o peito arfante contra os vidros, a
Senhora Aninhas, ali especada, assim passou a noite.
Rompia a manh quando saiu da janela. Tocou o sino s av-marias, rezou
pelas bentas almas. Deitou gua num alguidar e lavou a cara. Depois saiu
do quarto, entrou a uma pequena sala e abriu uma gaveta. Fechou-a outra
vez e fugiu para a rua pelas traseiras da casa. Fez isto to subtil, que nem o
marido nem os porcos deram f.
Caminhou para a aldeia. Entrou numa rua estreita, deu meia dzia de passos
e logo se esbarrou com a Candidinha, que ia para a missa. Nem bons dias, nem
boas tardes. Levantou a mo direita, que levava escondida debaixo do avental.
luz matutina, com um brilho azul, cintilou uma navalha na mo da senhora
Aninhas. Foi um relmpago. A Candidinha caiu redonda, dizendo Jesus e deitando
um rio de sangue pelo lado esquerdo do peito. Sangrada, cou branca como uma
aucena.
Quando prenderam a senhora Aninhas, quando a levaram presena do
administrador, quando o carcereiro rodou sobre ela a chave da enxovia, ningum
lhe ouviu um lamento, ningum lhe viu uma lgrima. Encarava as pessoas com
expresso alegre. Voava-lhe ao vento a cabeleira branca como um pendo de
vitria.
A senhora Aninhas foi condenada a pena maior. Ao ouvir ler a sentena,
deu uma grande risada. Recolheu cadeia, entre duas praas da Guarda, com a
cabeleira branca esvoaante como um pendo de vitria.
Com a justia, o homem arruinou a casa, j desfalcada antes do crime por amor
dos zelos da senhora Aninhas. No dia seguinte ao julgamento, o Frederico foi
cadeia visitara mulher. Mal que o viu, a velha atraiu-o s grades com palavras
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meigas. Ele aproximou-se conado e comovido, mas a senhora Aninhas, em vez
de lhe fazer festas, escarrou-lhe na cara e ainda por cima lhe chamou porco.
Chamou-lhe porco e riu-se como uma doida.
Quando o Frederico, de volta ao lar deserto, a p, que vendera o cavalo, se
queixou aos amigos de tanta desgraa junta, consolaram-no os amigos, dizendo:
Olha, Frederico. As velhas so o Diabo!

(De Terra Ingrata, 1946)

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JOS GOMES FERREIRA

(1900-)

Uma vasta e multifacetada experincia literria conduziu este escritor, que


tambm um dos mais relevantes poetas do sculo XX portugus, de tentativas
novelsticas de juventude muito marcadas por formalismos precrios a uma
obra de narrador fortemente expressiva das inquietaes e dramas do seu longo
tempo de vida. No sendo um surrealista na acepo denida do termo, h muito
de surrealizante na sua propenso para representar em metforas com carga
simblica paradoxal e por vezes desconcertante a sua maneira algo visionria
de representar o real. No sendo um neo-realista, quis deliberadamente alinhar
com a gerao que optou por essa via no sentido duma literatura poltica e
socialmente engage, acentuando nos textos ccionistas e memorialsticos
uma insistente atitude de denncia das injustias na sociedade classista. Por
isso a sua obra de poeta e de prosador quase sempre de leitura mais ou
menos complexa, esmaltada de barroquismos no desenho de guras e casos
e exigindo do leitor algum esforo de decifrao nas relacionaes do real
com o simblico. Em exemplo raro, s depois dos cinquenta anos de idade
foi reunindo, refundindo ou criando para publicao colectneas de contos,
por vezes de evocaes experienciais em andamento de memrias, mas
mesmo nesses casos assumindo-se na composio e na representao como
matria novelstica. Na dupla mas conjugada linha assim praticada se situam
obras como O Mundo dos Outros (1950), Tempo Escandinavo (1969), O Irreal
Quotidiano (1971), etc. Em linhas mais libertas de fantasia e simbolizao
potica inserem-se os romances Aventuras de Joo Sem Medo (1963) e O
Sabor das Trevas (1976). As narrativas de Jos Gomes Ferreira, como tem
sido acentuado pela crtica, so jogadas reiteradamente entre os contrastes da
trivialidade e do sonho, do eu individual e do eu social, impregnando-se
duma linguagem que tem muitas anidades com a do poeta lrico e lhes
enriquece virtualmente o ntimo sentido.
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A SOMBRA

A um dia assim como o de hoje costumo chamar, no meu calo, de poeta em


frias, dia incoincidente.
O cu desde manh que se conserva azul com gradaes cruas de quadro mau;
as rvores escorrem verde e chilreios de pssaros; as ruas riscam-se da rapidez
das sombras. Uma serenidade tpida cinge toda esta paisagem de trapeiras e de
ceroulas a secarem ao sol numa sinfonia natural de cores, pombas, luz e rvores
com ores azuis no Largo do Rato.
Pois foi precisamente hoje dia de sol, de andorinhas, de rvores azuis, etc.
que os homens resolveram no coincidir com a natureza. Foi precisamente
hoje que todos vieram para a rua com tempestades por dentro, num estoirar de
trovoada interior a rasar as almas de ls a ls, como relmpagos negros nos olhos
sorumbticos e troves no furor justo daquela mulher, de giga cabea, aos berros
para uma senhorita encostada ao parapeito da janela do seu terceiro andar com os
braos papudos de nada fazer:
Se quiser, venha c a baixo, sua gulosa!
Mal deitei o nariz fora da porta, logo pressenti o desconcerto do dia, bem
visvel nesta no-coincidncia do azul do cu com as carantonhas de palmo e meio
das pessoas que me acotovelavam na rua.
A minha tambm deve estar de meter medo pensei. E disfaradamente
mirei-me no espelho lateral duma montra.
Mas no cheguei a qualquer concluso. Limitei-me a vericar mais uma vez o
espanto de trazer por fora um ser to completamente diferente de mim e pus-me
de novo a caminho.
51
Agora, porm, j no ia s.
Colada ao meu silncio, com pinchos de tonta, saltitava uma velhota de farripas
e chinelos rotos, com uma criana de mama ao colo, enrolada num xaile com
rendas de misria.
No me conhecia, mas falava-me com esse -vontade dos velhos que j no
perdem tempo a fazer cerimnias com a vida:
Veja o que a minha lhinha me deixou nos braos, nesta idade... Coitadinha!
Est no hospital toda podre. At cheira mal!... Tudo por causa da parteira que lhe
carregou na barriga e...
Ah, no! Hoje no me comoves, velha dos diabos! Hoje faz sol, h cu azul, a
alegria canta nas guas das mangueiras dos regadores das ruas e no quero passar
todo o dia com o peso do teu menino ao colo dentro de mim. Tenho muita pena,
minha rica, lastimo muito o teu pequenino drama (para ti, talvez, o desabar de mil
universos num quarto sem janelas), mas basta.
No consinto que venhas, p ante p, sub-repticiamente, esmagar-me o corao
com essa mo encarquilhada de pobre velha que nunca teve cu azul.
E tu vale-me tambm, Anjo da Fleuma. Salva-me! Pinta-me de frio; avulta
mais os vincos desta bendita cara de pau que repele os homens, e tapa-me bem
os ouvidos para no voltar a escutar mais condncias lastimosas nem carpires de
dramas guitarra.
Mas qual! O queixume persegue-me como um rasto... At no elctrico.
Logo hoje, em que me apetecia apenas existir como uma coisa qualquer a
vegetar ao sol, que encontrei o 26.
Quem o 26? Sei l!
Sou o 26 da 4. B do Liceu de Cames... No te lembras de mim, p?
Lembro-me l agora. No me faltava mais nada seno gastar crebro a
recordar-me do passado, com um futuro to perto. Mas ele em compensao
conhece-me bem. At sabe a minha alcunha desses bons tempos de cales, de
jogo da barra e de azedumes no Parque Eduardo VII:
Eras o Cabea, p!... Pois eu sou o 26 da 4.a B. No te lembras, p?
No me lembro, mas digo-lhe que sim para no o desiludir. E, abro, com
esforo enorme, um sorriso que mal cobre o frio da caveira. Mas ele repara l no
sorriso! O que quer falar, falar, falar... Desde que deixou o liceu, nada mais de
importante (de aristocrtico ia eu a escrever) lhe sucedeu na vida, para sempre
amarrada quele passado da 4.a B. Alis nem chegou a acabar o curso. O meu pai
morreu e...
(L vem histria pensei eu. L vem histria!) E veio. Uma histria anloga a
milhes de histrias banais, sofridas por milhes de homens tambm banais, que
no tm culpa de que a Dor na vida no possua a fantasia dalga dos poetas.
52
Fiquei com toda a famlia s costas: me e trs irmos. No fazes ideia do
que tenho passado, p! Infelizmente, despediram-me do emprego e...
Tudo isso muito bonito, 26, mas hoje no quero aigir-me, percebeste?
Escusas de perder o teu latim de queixas comigo. Conta-me partidas do liceu,
se quiseres, naquela cerca do passado to cheia de gritaria, de sol e de joelhos
feridos...
Mas l nnias no. No estragues o cu azul dos outros, 26. Adeus, 26! Tenho
muito que fazer, 26! Desculpa, 26!
E saltei do elctrico.
Em vo, porm. Hoje acordei com cara de muro das lamentaes e no
consegui intrujar o Destino.
Estava escrito que, durante todo o dia, amigos, inimigos e indiferentes me
chorassem no seio amores no correspondidos, tentativas de suicdio, lhos com
sarampelo, doenas nervosas, desgraas, carestia da vida, pieguices, V. Ex.
quer ter a bondade de me emprestar dez tostes para uma sopa?, destroos,
cantocho... E, principalmente, a Lamria, o lacrimejar, o faduncho da impotncia
que parece ter substitudo de vez o protesto viril, o soco na mesa, o silncio rme
do desespero calcado no corao ou as gargalhadas hericas daquele meu amigo
que certo dia me condenciou, a rejubilar com os olhos tristes:
Estou contentssimo. Imagina que me aconteceu um drama Dostoievski...
No tenho cheta, perdi o emprego e hoje o senhorio deu-me ordem de despejo.
Enm: o coro da choradeira tornou-se to insistente, to forte que confesso
me contagiou tambm. Pouco a pouco, senti galgar-me o desejo chorincas de
desafogar, com a primeira pessoa que encontrasse, a primeira amargura amarela
que me viesse boca.
Mas resisti. Alonguei ainda mais esta bendita cara de pau (no me abandones,
Anjo da Fleuma!) e no meio da tarde, j febril, decidi regressar a penates, lvido
de angstias alheias. Porm, ainda me restava atravessar a prova suprema.
Ao dobrar a esquina de certa rua deserta, quando seguia distrado o deslizar
da minha sombra no cho, eis que me surgiu de sbito na frente uma mulher alta,
gorda, de pele oleosa e formas abundantes mal contidas por um vestido preto a
luzir de sebo.
Deitou-me um olhar rpido de anlise e, de imprevisto, com agilidade de
acrobata, agarrou-me nos pulsos, encostou-me parede, entornou-se-me toda em
cima do peito at me tirar a respirao e, apontando-me uma pistola, chorosa na
voz implorativa, intimidou-me:
A minha mezinha est a morrer! preciso absolutamente de 20 escudos.
D-mos!
53
Zaranza, esmagado por aquela inundao de formas, sufocado com o cheiro
a suor da ibusteira, no tive foras para resistir e entreguei-lhe a tremura duma
nota de 20 escudos.
Contente do xito, to fcil, a megera, lobrigando outras notas na carteira,
resolveu voltar carga.
Meteu mais alguns cartuchos de lgrimas na pistola, ncou-me outra vez as
mos aos pulsos, entornou de novo todas as suas abundncias em cima de mim e
intimou-me numa voz sem tergiversaes:
A minha mezinha est moribunda. Preciso absolutamente de 42 escudos e
50 centavos para remdios. D-me mais 20 escudos.
Mas desta vez no me verguei.
Cheio duma clera negra de vergonha que vinha do frio dos ossos, sacudi-a aos
urros: no, no e NO!
E fugi.
Fugi vexado, espezinhado, torvo, condodo de mim mesmo, e com vontade
trmula de comear tambm a lamurinhar, em objurgatrias de raiva e cinza nos
cabelos:
Ai que desgraado eu sou! Ai que triste vida a minha!
Calei-me porque me aconteceu ento uma coisa extraordinria...
(O que vo ler, a seguir, mentira evidentemente; mas faam de conta que
acreditam, para esta reportagem potica car com um desfecho digno, sim?)
Como ia dizendo, calei-me porque me aconteceu qualquer coisa de
extraordinrio.
De repente, a minha sombra no cho levou um dedo boca e imps-me
silncio:
Psiu! Caludinha! Se queres lamentar-te, vai para casa e fecha-te num quarto
s escuras para no maares os outros. Mas caludinha, ouviste?
E como ainda lhe parecesse ver nos meus olhos atnitos um lampejo
de desobedincia, a Sombra no esteve com meias medidas: ergueu-se e
esbofeteou-me.
E depois, tranquilamente, voltou a deitar-se ao sol no cho, a olhar para o cu
azul...

(De O Mundo dos Outros, 1950)

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JOS RGIO

(1901-1969)

Reectindo em aspectos essenciais a grande vaga individualista e subjectivista


do perturbado perodo que se seguiu guerra de 1914-18 na Europa, fundador da
revista Presena e principal inspirador do movimento esttico que atravs dela
se exprimiu, Jos Rgio (Jos Maria Reis Pereira) foi como poeta, dramaturgo,
romancista e contista, alm de ensasta e crtico, a gura mais relevante do
Segundo Modernismo portugus. Superou na sua obra o destrutivismo anrquico
da gerao que o precedeu e que teve como representao mais alta o poeta
Fernando Pessoa , impondo criao literria, em todos os gneros que
cultivou, uma disciplina de estilo que correspondeu seguramente mincia e
rigor da anlise psicolgica. E foi esta a via que perlhou reiteradamente para
realizar (e sugerir a outros) uma literatura viva, liberta de formalismos e
convencionalidades. Para alm da sua vasta obra potica e de romances como
Jogo da Cabra Cega (1934) e o ciclo A Velha Casa (cinco volumes, 1945 a 1966,
no concludo) so muito signicativas do estilo e da temtica de Jos Rgio
as duas recolhas de contos Histrias de Mulheres (1946) e H Mais Mundos
(1962). Neles conrma o Autor o seu processo de nura extrema na expresso
da vida interior das personagens, de que os respectivos comportamentos so
eco testemunhal, maneira de Marcel Proust, mas com individualidade plena
de problemtica expressa e de estilo. A densidade da indagao introspectiva,
a percepo aguda dos conitos que se travam entre a aspirao da pureza e
as fatalidades do quotidiano grosseiro, uma religiosidade que reveste a forma
essencial de preocupaes morais transcendentalizadas no debate do Bem e
do Mal, uma linguagem sempre subtil e sinuosa, imprimem obra de Rgio
uma caracterizao inconfundvel. H nessa obra novelstica, como lhe apontou
Eugnio Lisboa, um encanto intenso mas privado, envolvendo para muitos
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leitores um certo risco de monotonia. Mas nesse encanto que se dene
mais exactamente a atmosfera de que o escritor embebeu as suas narrativas,
a projectarem no espao literrio portugus uma vasta corrente da literatura
mundial neste sculo.

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OS TRS REINOS

Era uma vez um rei claro, que tinha um reino: o reino do rei. Alm disso,
o rei tinha dois lhos gmeos. A me-rainha morrera para os dar luz. Importa
saber que esse era o reino do rei, e que os dois lhos do rei eram gmeos. Desde j,
porm, convm acrescentar que o rei tinha ainda um lho adoptivo, ou coisa que o
valha. Tambm a me deste morrera, j viva, deixando fama de um pouco ligeira
de costumes (no demais) e muito formosa. O marido fora um dos cortesos
favoritos do rei. Toda a gente, pois, achou bonito que o pequeno se criasse
no palcio, brincando familiarmente com os prncipes, e recebendo educao
quase igual sua. Toda a gente, sim, achou bonito! quase toda a gente. Mas,
associando vrios factos, muito boca pequena murmuravam os maledicentes
que no era s bonito como compreensvel, natural... Adiante se esclarecer este
caso. Evidentemente se torna que, dos dois prncipes gmeos, um havia de ser
considerado mais velho, coisa que pertencia aos fsicos determinar ou, como
quer que fosse, com mais direitos. Claro que seria esse o herdeiro do trono da
coroa, do ceptro, do ttulo de Majestade.
O tempo foi passando, e os dois irmos crescendo. Vieram os melhores sbios
indgenas, e at estrangeiros, para os educar. Do mesmo passo educavam o lho
adoptivo, que, como natural, tambm ia crescendo.
Ao herdeiro do trono eram dispensados cuidados especiais, porque reinar no
coisa fcil; nem de fcil ensinamento ou aprendizagem. Felizmente, o jovem
prncipe revelava aptides de excepo. Todos os Mestres contavam ao rei a
sua paixo pelos livros e a sofreguido da sua curiosidade. Mesmo nas horas
de recreio o prncipe se recreava folheando os cartapcios de pergaminho; e a
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sua cabea loira dobrava sobre os alfarrbios to amorosamente como sobre
um seio. Quando tal no sucedia, caa o prncipe numa espcie de alheamento,
ou parecia mergulhar em abstraces, meditaes, cogitaes talvez no muito
prprias dos seus verdes anos. Todos os Mestres? Mas no: O Mestre de esgrima,
o de equitao e o de dana eram mais reservados nos seus louvores.
Por esse tempo, o velho rei decidiu rmar um tratado de amizade com o rei do
reino vizinho. Longos anos se haviam guerreado. Agora, estavam ambos velhos.
A proximidade da sepultura restringe as ambies e faz embotar os impulsos
blicos. Nesse tratado cou assente que a princesa real do tal reino vizinho casaria
com o sbio prncipe. Ora a princesa noiva era feia, triste, cega dum olho, e
at j falara em se meter freira. Todos lamentaram a sorte do jovem prncipe
assim sacricado a razes de Estado. O prprio pai algoz o lamentava. Por m,
todos sorriram maliciosamente. Na corte da noiva feia, triste, cega dum olho e
mstica, havia donzelas e donas muito belas, de que falavam com entusiasmo
os embaixadores. Homem experimentado, El-Rei sorriu tambm e deixou de
lamentar o lho.
S o jovem prncipe parecia indiferente ao que se passava: Era como se nada
daquilo houvesse de ser com ele. A sua cabea loira pendia sobre os alfarrbios
to amorosamente como sobre um seio. Quando se levantava dos alfarrbios,
era para olhar no as estrelas da terra, mas as que cintilam demasiado longe.
Finalmente, deu em fechar-se na sua cmara. Dizia-se que andava a escrever um
grande livro. E saa de l com olhos de cego, um ar quase de esttua, um sorriso
alheio, feliz, idiota.
A pedido do rei, um dos seus Mestres ousou, um dia, aconselh-lo: Sua Alteza
no devia abusar do seu grande amor pelos livros. Decerto muito ensinam os
livros; mas o trato dos homens tambm; tambm as experincias pessoais e vivas.
Alis, quase perigava a sade de Sua Alteza nessa vida sem ar que Sua Alteza
levava. Convinha que Sua Alteza se prendesse mais aos costumes da corte, aos
jogos e folguedos prprios da sua idade, aos acontecimentos do reino que havia
de governar. Nisso tomasse exemplo em seu irmo; at naquele que, no sendo
seu irmo, mais ou menos fora educado como tal, e to ladino se mostrava na
curiosidade por tudo que sua volta decorria... O moo prncipe ouvia-o como
se o no ouvisse, tando-o, sem o ver, com os seus esplndidos olhos de cego.
Nesse mesmo dia, ao m da tarde, estava-se mesa, era na rica sala de jantar.
O Mestre caiu na imprudncia de uma breve aluso ao que de manh, dissera
ao seu educando. Ento, o prncipe herdeiro levantou-se e respondeu: O meu
reino no deste mundo. Lera isto, num livro que fora de sua me. Todos
caram primeiro atnitos, depois constrangidos. O rei nem repetiu os seus pratos
favoritos. Tentou-se falar doutras coisas. E, no dia seguinte, o jovem prncipe
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herdeiro apareceu morto. Envenenara-se com ores perigosas que havia na estufa.
Estava nu, morria virgem, e tinha sobre o peito o livro que terminara essa noite.
Mais tarde se viu que era um grande livro.
Claro que houve gritos, espantos, choros, exquias magncas, exposio de
grandes veludos negros e gales de oiro. A noiva do morto sempre se meteu
monja. Era o que tinha a fazer! comentou o seu ex-futuro cunhado Com aquele
olho vesgo... E comeou ele, o irmo gmeo do morto, a ser preparado para o
difcil ofcio de reinar. No, no empalidecia este sobre alfarrbios de pergaminho!
Aos catorze anos, j comprometera uma nobre donzela da corte. As formosas
donas um pouco ligeiras de costumes (no demais), s as no comprometia por
j estarem comprometidas: pelo menos, com os respectivos maridos; pelo menos.
Morrer virgem no era com este. Como para a sua pessoa se haviam transferido,
agora, aquelas particulares atenes que sempre se xam sobre o herdeiro dum
trono, at certos pormenores da sua infncia eram agora recordados, repetidos
com sorridente complacncia: Que, por exemplo, fugia para os jardins nos dias
de chuva; e l davam com ele descalo, patinhando nas poas, ou estendido na
relva, a apanhar a gua do cu. Ou que se misturava com os rapazes da rua
para ir aos ninhos, ou jogar pedrada. Agora, perdia-se por caadas. Bailava to
bem que nem parecia um prncipe. Conversava familiarmente com os pajens, os
criados, os viles. Certas noites, escapulia-se disfarado para ir correr aventuras.
s vezes, fazia-se jardineiro: podava roseiras cantando canes da arraia mida
(nem sempre muito decentes) e at chegava a cavar com uma sachola! Dava
esmola aos mendigos por sua prpria mo. Duma vez, trouxera s costas um
miservel que achara desfalecido no caminho. Era moreno, gil, tinha bons
msculos, um esplndido apetite. E ningum como ele para divertir as damas com
histrias, anedotas, intrigas, mentiras, fantasias, e belisces socapa.
Os seus Mestres resolveram lim-lo, pod-lo como fazia ele s roseiras.
Compenetrado do seu papel de futuro rei, deixar-se-ia fazer um rei como se
quer. Todos diziam: Desta vez, temos homem! Pelo contraste, um certo d
humilhante recaa sobre a memria do irmo suicida...
O prncipe comeou a apurar a sua educao intelectual; e, felizmente, o novo
herdeiro revelava tambm aptides de excepo. Todos os Mestres contavam ao
rei a sua paixo pelas coisas e a viveza dos seus pontos de vista. Todos os Mestres?
Mas no: O Mestre de lnguas mortas, o de matemticas e o de protocolo eram
mais reservados nos seus louvores.
Por esse tempo, o velho rei decidiu fazer jurar seu lho herdeiro do trono.
Estava cansado, e sentia que a vida se lhe ia apagando. Mas, durante as cerimnias,
o prncipe herdeiro teve excentricidades, liberdades inslitas, sadas de humor que
chegaram a provocar o riso na ilustre assembleia, pouco dignas da solenidade
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do acto. De modo que, a pedido do rei, um dos seus Mestres se atreveu a
aconselh-lo: Sua Alteza no devia abusar da originalidade de seus espritos.
Atitudes h do entendimento, como formas de conduta, porventura apreciveis
em um qualquer; mas nem sempre convenientes num prncipe real. Urgia que Sua
Alteza renunciasse a dadas particularidades do seu temperamento, em ateno
ao alto papel que fora Deus servido distribuir-lhe... O prncipe ouvia-o sem nada
dizer. A expresso do seu rosto que era ambgua, como respirando uma ironia
que nenhum dos seus traos acusava. Nesse mesmo dia, ao m da tarde, estava-se
mesa, era na rica sala de jantar. O mesmo Mestre falava; embora subtil e
indirectamente, continuava a morigerar seu ilustre aluno. Ento, o prncipe real
ergueu-se e respondeu: O meu reino deste mundo. No lera isto em parte
alguma. Todos caram sem compreender, e pouco vontade. Tratou-se de coisas
vrias, com uma naturalidade ngida. O rei ergueu-se pouco depois. E, no dia
seguinte, o jovem prncipe herdeiro tinha desaparecido do palcio. Em vo se
zeram as mais diligentes e minuciosas inculcas por todo o reino. Correu mais
tarde que fugira numa carroa de saltimbancos nmadas.
Claro que houve consternao geral. O rei caiu de cama; j todos temiam
que no resistisse a este novo grande golpe. Ele que, durante tantos anos,
habilissimamente retivera nas mos a governao do seu reino to policiado, to
submetido, to dirigido, agora se via sem herdeiro natural que lhe sucedesse, e lhe
continuasse a obra. Dois lhos legtimos tivera: gmeos e to diferentes, senhores
de extraordinrios dons. Ambos como que o haviam renegado, renunciando
herana para que os preparara. E agora j no seu reino to disciplinado
fermentavam pequenos focos de anarquia, ainda pequenos mas que poderiam
alastrar. J as massas pressentiam a senilidade do pulso que to energicamente as
havia refreado.
Neste desconsolo, perdidos os seus dois lhos legtimos, ainda foi o tal
adoptivo que principiou a fazer-lhe companhia. J quase o no podia dispensar o
rei. Tambm o moo parecia no se poder afastar do seu leito. Sempre que lhe
era permitido falar, El-Rei conversava com ele. Coisa interessante!, nessas
prticas achava grande prazer. Como se disse, recebera o moo instruo idntica
dos prncipes, tendo sido educados quase no mesmo p. Em certos assuntos,
porm, que muito eram da especialidade do rei, mostrava uma curiosidade que
nenhum dos prncipes mostrara. Na histria poltica do reino, por exemplo; na sua
geograa humana; nas suas actuais relaes com o estrangeiro; na discusso das
suas Leis, etc. E a inteligncia que no tratamento destas questes manifestava
ridas, como geralmente so, para jovens por atrevimento que seja arm-lo,
no cava atrs da que noutras haviam manifestado os prncipes.
Ora, desaparecidos os dois herdeiros naturais do trono, chegado El-Rei ao
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ltimo quartel da vida, vrios pretendentes ao mesmo disputavam entre si seus
direitos. J, no palcio, fervia a intriga na sombra. J os pretendentes e partidrios
rivais se falavam com o sorriso amarelo nos lbios, o verdete do dio nos coraes.
Um ponto nico havia, em que todos se entendiam: a malquerena quele moo
que to visivelmente seduzia o velho rei. Pelos meios de que dispunha cada um,
cada um procurava desacreditar no esprito do velho rei o seu jovem amigo.
Decerto no passava isto despercebido do jovem. E o resultado foi no ser este,
mas eles, que eram pessoas da famlia real, quem o rei afastou da sua cmara,
at do seu pao. Por maquinaes do jovem? Sustentavam os escorraados que
sim! e espumavam de raiva e juravam tremendas vinganas futuras, atribuindo
quele moo uma to diablica intuio na intriga que suplantava toda e qualquer
experincia.
A ser isto verdade, poderiam quaisquer manejos do moo passar
incompreendidos do seu protector? O diabo sabe muito porque velho; e a
debilidade fsica do rei no se manifestava mentalmente. Dado o que depois
se passou, poder-se- admitir que a velha raposa astuta (como depois, lhe
chamavam os seus parentes escorraados) at apreciara o engenho com que o
moo ia tentando exautorar, junto do seu real amigo, aqueles grandes senhores
que, por seu turno, o procuravam desprestigiar a ele.
Ora o que depois se passou, foi o seguinte: Uma tarde, ao m da tarde, estavam
reunidos na cmara real os importantes da corte. O rei para a os convocara,
pois h algum tempo dava grandes sinais de melhoras. (Ainda no desta!
lamentavam os seus parentes tornados seus inimigos). E diante de todos, que
estavam sumamente intrigados, se dirigiu o rei ao seu jovem protegido, dizendo:
Tive dois lhos legtimos, que um aps outro sonhei me sucedessem. O reino
dum no era deste mundo. O do outro era-o por demais. Tu, qual o teu reino?
Um silncio pnico se fez, pois todos achavam estranhssima esta cena. Talvez o
moo hesitasse um momento; no mais que um momento. Logo respondeu: Que
reino pode ser o meu seno o vosso? Ento o rei chamou-o a si, apertou a sua
cabea contra o peito. Como j no podia fugir sensibilidade dos velhos, teve de
fazer um grande esforo para no soluar. Mais tarde declarou que sempre esse
fora, secretamente, o mais amado dos seus lhos, embora lho natural; que esse
ia ser perlhado, jurado herdeiro do trono; e que sem demora ele, rei, resignaria
no lho o poder real, pois no s estava cansado, como temia ver-se constrangido
a fazer por fora o que desde j faria de vontade...
Isto disse ele sorrindo. Olhava complacentemente o lho. Impossvel, porm
destrinar at que ponto no seu esprito de velha raposa astuta, esse conhecedor
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dos homens brincava ou no. E assim se disse, assim se fez. De nada valeram
as conspiraes dos pretendentes despeitados. Com a satisfao de ter um digno
sucessor para o seu reino, o velho rei restabeleceu-se, e ainda pde viver alguns
anos. Morreu de muito avanada idade. Laus Deo.

(De H mais Mundos, 1962)

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VITORINO NEMSIO

(1901-1978)

Nascido na Ilha Terceira (Aores), em ambiente de enraizadas tradies


localistas, Vitorino Nemsio (Mendes Pinheiro da Silva) iniciou a carreira
literria como contista (Pao do Milhafre, 1924), logo consagrando a sua criativa
vocao de ccionista com o romance Varanda de Pilatos (1926) e mais
tarde, em plenitude assumida de narrador e de prosador, com o romance Mau
Tempo no Canal (1944). A inspirao regionalista aoriana marcou vivamente
esses e outros livros que publicou, no s na localizao das narrativas
como na caracterizao das personagens e muitas vezes na linguagem, no
s descritiva como dialogal. Vitorino Nemsio dispersou-se, entretanto, como
escritor multifacetado em que o exerccio do professorado universitrio teve
por vezes inuncia em obras numerosas de historiograa literria, entre
as quais so de denitivo e clssico mrito os seus estudos sobre Alexandre
Herculano, de poesia nitidamente personalizada e original, de ensaio, biograa
e crnica. Em todos os gneros demarcou sempre o escritor um estilo peculiar,
pela uncia, vivacidade expressiva e, como acentuou Jacinto do Prado Coelho,
pela presena em escrita duma personalidade riqussima e dctil. Os seus
livros de novelas, como A Casa Fechada (1937), os contos de O Mistrio
do Pao do Milhafre (1949), os textos de composio hbrida entre a crnica
e a co como os de Corsrio das Ilhas (1956) e Viagens ao P da Porta
(1967), conrmam a adensada arte de sugestionador do vivido e de prosador
de grande virtuosidade, conjugando a hbil captao da linguagem popular
(regional aoriana e de outras reas) com a aptido do estilista culto. As razes
vindas de Camilo na representao de atmosferas provinciais, de Ea de Queirs
na nura da cadncia prosdica e na ironia, da novelstica francesa e inglesa
moderna no entrosamento complexo dos planos temporais e das situaes
humanas, fundem-se nas narrativas de Nemsio com mestria rara. Em toda a
sua obra, como escreveu Manuel Antunes, foi homem numeroso e de muitos
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ritmos, mas sempre inserindo poesia na sua linguagem em que subjaz um
sentimentalismo saudoso. Do perene fundo aoriano, que nunca se dissipou na
diversidade dos gneros, alargou Nemsio o sentido essencial da sua obra a
um universalismo que no teve ainda a consagrao merecida nas verses para
outras lnguas.

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MAU AGOIRO

A Canada do Bzio era uma bocarra, um deserto. No se via vivalma. S as


faias da terra e as do norte vingavam ali entre silvas... suor de sangue! escorralho
do Rei dos Reis coroado por mangao! O lugarejo molhava as suas abas naquele
mar podre e morto, a matutar como um tolo nos penedos da Ponta do Cavalo
vigiada dos garajaus ou ento, bravo e alto, fora de suas estribeiras, atirando a
espuma s poas.
Era da que uns pinheiritos poucos mas bons e baixos como uma quadrilha
de ladres se atreviam a subir com os braos cheios de pinhas: uns, cornudos
e torcidos; outros, esbracejando direitos no meio da lava e dos faiais. Pareciam
talhados nos lombos verdes do mar e atirados vivos costa. O vento carpinteiro
levava-lhes a agulha e o cheiro delicado da resina. Vento excomungado, que
parecia falar-lhes ao ouvido: Abriguem-se vocs! V... Abaixem-se a!
A casa da Cacena cava plantada neste inferno. A Canada do Bzio parecia
uma goela aberta noite. Vizinhana nenhuma. S de vero havia um pouco de
alegria e de cor nalguma ma madura. O ms de Abril comeava a consolar quem
no via carregado de ores brancas e de botes cor-de-rosa. O pssego amadurecia
tarde, corado duma banda s. A faia do Norte, de casca sardenta, cobria-se de
bagas meladas que era um louvar a Deus! Em Setembro as uvas tingiam as pernas
dos homens enterrados nos lagares e o vinho esgichava nas dornas, enquanto as
cisternas vazias mostravam os fundos cor de telha, e o grilo, nas gretas, era um
saudoso namorado. De noite, a lua subia a terrao. De dia, o sol era um rei em seu
balco...
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Ah! Mas, dobrado o cabo de Todos-los-Santos e dos Fiis Defuntos, a casa da
Cacena era uma barca or do mar das vinhas. Turvava-se tudo. O cebolinho de
ao p do forno cava de cabelo ceifado: Aqueles casebres mais pareciam fojos de
bruxas do que tectos de gente baptizada. Se no fosse algum molho de palha que
o Menino Jesus sempre acende, o Inverno era frio como a neve e negro como um
tio.
Ora, seriam umas trs da manh (gua, se Deus a dava!) quando Joo se ergueu
do quente da enxerga e disse para a velha:
So horas, minha Me! Aquea-me uma pinga de leite...
A Cacena era uma triste mulher, sozinha neste mundo. O Rei, ou l quem quer
que que bebe o sangue dos pobres, tirara-lhe o bordo da velhice mandando-
lhe o lho s sortes e levando-o para o Castelo. De nada serviram os pedidos
ao Doutor, a este e quele: os cambos de ofertas; os presentes; uma ave ou duas
debaixo do leno, algravitadas, bravas nos corredores. Tempo perdido! O rapaz
cou apurado para caanha. E ento veio a recruta, com madrugadas, frios, muito
poucas dispensas... As correias da mochila levaram-lhe uma tira do lombo; as
botas do Caso zeram-lhe um calo de sangue. Enm, j praa pronta, houve a
peste numnica em Santa Brbara e ele foi destacado l para os quintos...
Entretanto a triste Necessidade (a feiticeira!) fazia o seu p de alferes porta
da casa sem homem. Primeiro, a coivinha atempou; passante disso, morreu a
leitoa empachada. E um belo dia, de manh, um tio de lume queimou as faias
da cozedura, o fogo passou-se copeira, e, emmentes o diabo esfrega um olho
(cruzes!), o forro do stio ardia todo. Acudiu-lhe a vizinhana em peso (ningum
est livre de trabalhos!) e fora de gua e de machado salvaram o resto da
poisada seja pelo santo amor-Deus!.
Quando Joo soube disto, no Castelo, chorou malaguetas curtidas e quase se
ps de joelhos:
S uns dias meu promeiro! Foi a casinha que me ardeu... A prove da minha
me st prli sozinha, sem ter quem no ganhe...
Ento o Capito, com pena dele, fez cantar Ordem aqueles trs diazinhos
a benefcio dos fundos do caldeiro, como se dizia na Peluda. Joo andou a
tirar umas esmolas para ajuda da casa, com dois amigalhaos, como quem pede
para toiros. Um deu vinte tbuas de forro; outro, uma mancheia de telha; outro,
os barrotes, de amor-Deus. O Niquinha tirou dois dias de obras, e l levantaram
ambos a cozinha, com frechais e asnas novas.
Que mais quer, minha Me? disse ele, cobrindo a velhota de beijos. Nem
que vossemec se tornasse agora a casar... N lh-de chover pinga dentro, se Ds
quiser!...
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E, com efeito, no choveu. Mas vem o caim dum p de vento, uma noite, e leva
de guinda o postigo envidraado para cima duma ria de silvas.
Mais zero a Nosso Senhor Jasu-Cristo! cramou a Cacena resignada, de
mos postas. E ps um rolho de trapos no buraco do seu postigo.
Mas desde esse dia reparou que, muito madrugada, mal luzia o buraco, vinha
um biquinho esfregar-se melgueiramente no chumao, e logo, pela calada, trs
unhinhas de nada riscavam. Aquilo era no batente ora, se no! O certo era
que se no ouvia mais nada seno dali a um pedao: Umas asinhas midas
vinham espenujar-se no trapo; uns pios de aio pareciam picar-nos o juzo como
pontinhas de alnetes.
Era ao azular da hora de alva. No quarto da pobre Cacena, por cima da cama,
a telha de vidro ia-se enchendo de or de anil e azulo, a todo o comprimento; e,
assim abaulada, cismava-se no caixo de um pagozinho que um anjo levava para
o cu.
Trs dias e trs noites a o a Cacena malucou naquilo. Anal... labandeiras!
Eram as labandeiras! So passarinhos brandos de asa, de rabo de forquilha, que s
vezes malucam nos caminhos em riba de burgalhaus, e que, ao ouvirem o passo
mais toa, tremem da passarinha, do duas guinadas de espreita e pem-se ao
fresco, todas repatanadas, at encontrarem solido.
Desde menina que a Cacena com elas vivia e labutava, mas benzendo-se:
no porque levem bruxedo, mas porque a triste sina se apega adonde elas
apontam os biquinhos. A coderniz pior. Quando Herodes mandou botar o bando
e degolar os Inocentes, que Jos prantou a Senhora mai-lo Menino na burra e
abalou para o Egipto, as codernizes, amassadas nos restolhos, davam f daqueles
santos pelingrinos e, voando baixo, toca a chocalheirar:
C vo eles! C vo eles!
Mas as labandeiras vinham e, com a rabadilha em forquilha, l iam apagando
as passadas do santo carpinteiro e os sinais dos cascos da jumenta. Por isso o
Senhor disse paqueta da coderniz:
Deixa tu estar, corsaira, que no hs-de pr p em ramo verde! E Nossa
Senhora apartou as labandeiras para suas galinhas. Mas l que tm pitafe, tm.
Donde lhe vem, no sei. Tm-no co elas
Agora, de mais a mais viva e apartada do lho, Cacena pareciam de
propsito aquelas andadas dos bicos peneirando-se, salpicando o telhado com as
asinhas de rasto, de ponta a ponta do cume.
Uma tarde, estando a cardar l de ovelha, porta, deu f de que uma delas
aporava na dana. Era um gorgulho de ave, de olho vivo. Bateu-lhe as palmas, de
c; pegou numa pedrinha, uma coisa de nada, e varejou-lha rente. Mas o bicho fez
a modo um pouco caso e veio tombando duma asa at lha passar rente boca.
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Jasus!
Disse isto e, em menos dum amn, o Trigueiro que passa da cidade:
Boa noite, tia Cacena! O s Joo l deu baixa espital.
Que me dizes?! Ai, so m lho me morre!...
No se aija, serva de Deus! Aquilho no h-de ser nada... Veja mis se lhe
manda coisa duma quarta de aucre.
Essa noite desceu como um fugido justia; as cancelas do cu fecharam-se de
repente. A terra cou como uma furna negra, sem o mais leve claro; a escurido
das canadas parecia tinta de escrever. s vezes, dentro em casa, um vento parecia
danar de porta a porta, que batia, a moda do Pirolito que bate, que bate... Pirolito
que j bateu...
Como se lhe tivessem dado com um barrote nos peitos, a Cacena meteu-se para
dentro de casa e afundou no xailinho a sua triste cisma. A panela da ceia cantava
com gua choca e feijes. Em baixo, na pedra do lar, a cinza e a sombra do lume
jogavam Pata-Cega.
Passaram-se quase oito dias e o Trigueiro sem trazer notcia de alvios do
doente. s vezes, para no ouvir a velha, furtava-lhe a volta e seguia pelo Rebalde
at Praia. A tia Cacena passava as manhs no trabanaco, sentada a remendar;
tarde engaroupava-se no xailinho e esperava o carteiro sua porta. Fazia para a
ceia coives espernegadas. Daquela boca para baixo no lhe passava oitra coisa.
Enm, o Natal chegou. Chega sempre. Umas vezes frio, outras chuva...
H anos sem uma coisa nem outra e sempre pobreza! sempre desconsolos e
lgrimas em casa de quem nas chora! Tambm h casas sem vagar nem gua para
vert-las; outras so to alegres ou to tristes, que nem cara tm de coisssima
nenhuma!
na maior parte dessas casas que o Menino Jesus reina entre trigos sem terra,
e a que se come bolo-rei, go passado, cabao, canja de galinha...
D Deus nozes a quem n tem dentes! Ter u~a pessoa a mo incarangada a
pontos de le custar a apanhar a ponta do xaile se Pele cai, e hav-las senhoronas,
que s chomar a aia que as venha vestir e calar! Mum grande o mundo, graces
a Deus! E maior ainda a Mezricrdia Devina!
Quem fosse Missa do Galo!... Galo? Qu dele os espores? Caldo de
frango nunca fez mal a doente, nem a velha. Mis o poleiro, deu-le o rato...
foi-se toda a ninhada da pedrs. Joo, que que tens? Joo, tu oives! A manta
de ampua est ali na caixa; queres-ia-a? N te dou lenis de linho, que os n
tenho, meu home! Mis st calado, lho! St caladinho, qua me vai mato e
j vem, meu amor! Vamos cozer de tarde, pois... ! N te dou po de milho azedo,
discansa! O milho amarelo secou no tirante e na burra estes dois meses, lho!
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Fao-te um esfregalho... Fao-te um esfregalho...
E, vai da, h casas ricas e casas proves. Deus d o frio cunforme a roipa.
Nosso Senhor Jesu-Cristo nasceu em Belm para nos remir e salvar e, vai, Herodes
Antipas manda botar o bando: Que toda a criena nacida por li seja degolada im
cuntinente... Por isso Jos pegou no bordo, escanchou a Senhora na burra co
anjo de Deus colo e se largou pr Egito. D-me dali o bordozinho, no oives?
Joo st pior... Burra na na tenho, mis tenho pernas. O Egito ser no Castelo?
Quem tem boca vai a Roma. S eu incaranguei
Na Canada do Bzio o Natal desse ano no podia ser mais festejado. As
estrelas prprias dum cu limpo e frio brilharam por cima da casinha consertada
depois do fogo. Um soldado magro como um co e de barba de dias deitava a me
velha e tonta na cama e aquecia-lhe o caldo da panela.

(De O Mistrio do Pao do Milhafre, 1949)

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JOS RODRIGUES MIGUIS

(1901-1980)

Na diversidade das linhas de transio da novelstica portuguesa ao longo


dos decnios medianos deste sculo, oscilando entre o psicologismo e o
realismo social, a obra de Rodrigues Miguis singularizou-se pela superao
dessa anttese ou combinao coerente das suas directrizes. Depois duma fugaz
experincia de sugesto dostoievskiana com a novela Pscoa Feliz (1932), em
simultneo com actividades de pedagogo e de jornalista poltico o escritor teve
de exilar-se nos Estados Unidos, com frequentes visitas a Portugal depois da
II Guerra, mas s em 1946 voltou a publicar obra de co: o volume de
contos e novelas Onde a Noite se Acaba, inicialmente publicada no Brasil.
Outro intervalo longo se seguiu at edio dos contos e novelas reunidos sob
o ttulo Lah (1958). Da por diante foi Rodrigues Miguis autor de contacto
assduo com o pblico, lanando em Portugal sucessivos romances, entre os
quais Escola do Paraso (1960) e O Milagre Segundo Salom (dois volumes,
1975), narrativas de cunho autobiogrco e at policial e colectneas de contos
e novelas como Gente da Terceira Classe (1962). Neste livro, designadamente,
predominam os temas ccionais relacionados com a emigrao portuguesa para
a Amrica do Norte. O processo naturalista na efabulao, vindo do nal do
sculo XIX, foi renovado por este Autor na descrio rigorosa de costumes
ou de emigrantes ou colhidas com frequncia na evocao da vida lisboeta
que conheceu na juventude. Essa observao minuciosa e estrita, porm, foi
enriquecida pelo escritor com uma viso dramtica dos caracteres e dos conitos
humanos, de que se desprende muitas vezes um timbre sarcstico subtil. O
delineamento de tipos portugueses caractersticos no se reduziu, na descrio e
anlise de Miguis, a esquematismos deformados. Est sempre nela associada,
como acentuou David Mouro-Ferreira, a um pensamento social denido
mas vasto, uma imaginao psicolgica librrima e autnoma. Por isso a
sua denncia das opresses sociais e das injustias, muitas vezes conguradas
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como frutos inelutveis de destinos colectivos sem remdio, no assume cunho
panetrio nem politicamente intencionalizado. A observao exacta, servida por
uma linguagem precisa, clara e sem especiosismos lexicais ou de composio,
o valor maior na criao ccionista de Rodrigues Miguis.

71
O VIAJANTE CLANDESTINO

Nesse ano hoje to distante no tempo e nos usos dos homens, que por vezes
julgamos viver noutro mundo o Dezembro correu muito menos frio do que
habitualmente ao longo da costa do Atlntico: nevoento e chuvoso, e morno at,
como se a corrente, vinda l de baixo, do Golfo, antes de se alongar a caminho da
Europa, tivesse querido acercar-se do litoral para o aquecer e abrigar melhor das
guas glidas que descem da Gronelndia.
O Natal estava porta, e a neve sem chegar. Ora, um Natal sem neve nem
frio no festa nem nada. No rangem trens nas encostas e caminhos, no se
vem homens de neve com um chapu velho na cabea e o cachimbo entre os
dentes imaginrios, no h batalhas de bolas de neve, e nos tanques e lagos, que
no gelaram, no pode a gente patinar de mos dadas, com as faces vermelhas, o
cabelo solto, e o cachecol a esvoaar ao vento; no h gritos de jbilo e susto no
ar cristalino, nem o tinir das guizalhadas
Jingle bells, Jingle bells,
Jingle all the way...
que enche as noites estreladas dum eco de tempos lendrios. Nos relvados, em
frente das moradias, as rvores de Natal no espalham na alvura fofa do cho os
reexos silenciosos e multicores das suas luminrias, a sugerir calor, intimidade
e hospitalidade. A natureza escura e molhada, a nvoa e a chuva, os arvoredos
hirtos e desnudadas, tudo amortece o resplendor das casas, e abafa os repiques
dos campanrios, que de outro modo encheriam a vtrea sonoridade da noite.
Atravs das janelas irrompem no escuro os doirados clares da festa; l dentro,
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h sempre o mesmo entusiasmo e a mesma gula pelos presentes do Santa Klaus,
empilhados em torno da rvore fulgurante de luzes, nas suas embalagens de
luxo e fantasia. E o viajante solitrio e sem famlia que passa na estrada pode
entrever com melancolia os pares que danam, ou os rostos saciados e felizes
em volta da mesa bem guarnecida, a que preside um gordo e tostado peru. O
Natal ca domstico e recolhido, e perde a alegria pag que ecoa de risos e apelos
juvenis nos bosques e nos vales. No, um Natal sem neve, um Natal que no seja
branco, no festa nem nada: parece um Thanksgiving que se atrasou no
calendrio.
Ora isto deu-se (ou melhor, comeou) em Baltimore, que uma cidade algo
sombria, pacata e ordeira, embora muito menos triste do que a visionou o nosso
Poeta cidade triste entre as cidades, Baltimore! Ou talvez os seus sinos
tenham esquecido a rima do sinistro Never more, never more, que ele julgou ouvi-
los clamar, ecoando o Poe. preciso sair do centro, e percorrer os subrbios,
para se encontrar a atmosfera prpria da estao festiva. Quanto aos cais, so
soturnos, caticos, confusos, e aqui e alm ameaam runa os hangares e barraces
grisalhos, como velhos pardieiros ou igrejas rsticas abandonadas. So tristes os
portos decadentes, sobretudo de noite e nas pocas de crise! Mas respira-se uma
poesia sugestiva nestes molhes de estacaria luminosa e negra, onde as mars,
cansadas e oleosas, vm bater de manso o ritmo da sua cano de amor terra. H
cidades que parecem viver na intimidade dos dramas e segredos do mar; onde este
est sempre presente, em convvio com os homens. E nada fala tanto ao corao
do errante solitrio, como este apelo eterno do mar, junto aos cais.
Foi a um destes molhes meio esbarrondados que o navio atracou pela manh de
vinte e quatro de Dezembro, vindo do mar aberto e azul, da frica e dos trpicos.
Era um velho cargueiro esgalgado, de alta chamin enfarruscada, com grandes
remendos no casco a desfazer-se em ferrugem, e a linha de utuao muitos
palmos acima das ondas: uma dessas runas obscuras que singram vagarosamente
os sete mares do mundo, coxeando em busca de fregus, com roupas mal lavadas a
enxugar pelos cordames, e alguns marujos esqulidos acotovelados s amuradas,
a olhar a terra estranha. Um navio, em suma, que podia ter inspirado um conto
triste a Joseph Conrad ou a Pierre Mac Orlan.
A sua carga era pobre e variada: leo de palma, cocos, bananas verdes em
comeo de putrefaco, amendoim, duas dzias de fardos de algodo, e um
macaco mais ou menos domesticado, que adoecera em viagem e gemia numa
cama de trapos, com febre, queixoso da invernia.
Tambm vinha a bordo um passageiro, um s, de que no rezavam os livros
de navegao e que no pagara a passagem, entregue ao cuidado cmplice de
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dois marinheiros: escondido nas entranhas gemebundas do calhambeque, num
cubculo sem ar nem luz, junto das carvoeiras, na companhia das ratazanas. Quem
era e donde vinha ele? Ah, mas so perguntas, essas, que se no fazem nunca a
um destes homens magros, de rosto antes do tempo engelhado pelos trabalhos,
as privaes e os ventos forasteiros, com os olhos negros a luzir sombriamente
de medo e desconana no fundo das rbitas encovadas. Viria de Marrocos,
valhacouto de tantos desgraados? das Ilhas Perfumadas? da Costa dfrica?
Ningum o diria, nem que o soubesse, e ele menos que ningum. A ilegalidade
tem as suas leis, a sua moral e as suas combines, e o silncio a regra de ouro
dos pobres deste mundo. Quem o pusera a bordo? Quem o mantinha e sustentava
ali, durante a noite, em segredo, com os restos miserveis do rancho da tripulao
meio andrajosa? Mistrio, mistrio! A solidariedade outra lei sagrada entre os
homens que vivem margem da vida.
Tinha embarcado pela calada da noite nalgum porto desolado das fricas
ou dos Arquiplagos, e tudo. Algum o tinha guiado em silncio no labirinto
ressonante do cargueiro, e ali o deixara como um rato de poro. E ali, na sombra
sufocante, tinha transposto as claridades sem limites do oceano tropical, para dar
entrada no Inverno americano.
O Maria Alberta chamemos-lhe assim, escondendo-lhe o nome verdadeiro
e a matrcula cumpridas as formalidades da lei, despejou no cais deserto
e cinzento a escassa mercadoria. Os guindastes e cabrestantes rangeram, as
roldanas guincharam nos cadernais, os botals descreveram no ar bao a sua
incerta acrobacia, e os fardos, caixotes e engradados deram entrada nos hangares
varridos de ventania. A noite chegou cedo, e tudo recaiu no silncio. Os guardas e
funcionrios do cais foram-se quase todos embora, e o Maria Alberta sumiu-se
no esquecimento e na obscuridade, como um cavalo cansado e lazarento ao fundo
duma estrebaria.
Era a vspera de Natal, e cada qual procurou o seu conchego, a famlia
se a tinha, ou o recanto enfumarado dum bar de tectos baixos, com mulheres
esgrouvinhadas e descoloridas sob a maquilhagem, a beberricar whisky de m raa
e a meter moedas num juke-box trepidante de melodias quentes e ensolaradas, de
Califrnias e coqueirais que s existem
no sonho e no celulide. Para os homens que rastejam superfcie do globo
e da vida, de porto em porto como se ptria nenhuma os aceitasse, no h outro
refgio seno esse: e no m, uma cama de aluguer e uns braos de emprstimo.
O silncio escorreu sobre os molhes e hangares, raras luzes brilhavam, poucas
conseguiam vencer a espessura da nvoa a desfazer-se em chuva. Os mastros dos
cargueiros atracados em feixes perdiam-se no cu encarvoado. Mas a neblina cria
sempre, em volta dos portos, um manto de abrigo e clandestinidade.
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O capito desembarcou paisana, e foi sua vida: tinha uns negcios quaisquer
a tratar em Filadla. Atrs dele foi-se o imediato, depois alguns ociais e
pilotos, o enfermeiro, e at marinheiros. Alguns deles levavam uma garrata duma
aguardente intragvel, a que chamavam brandy, com que esperavam lubricar a
boa vontade dos funcionrios da Alfndega, de modo a passarem sem a apalpao
da ordem nem a inspeco aos embrulhos.
Os funcionrios, quase todos irlandeses, nutridos, bem pagos e agasalhados
nos seus quentes e macios uniformes, olhavam com um misto de d e espanto ou
ironia aqueles pobres martimos magrizelas e mal barbeados, que tiritavam dentro
das farpelas de ganga ou cotim desbotado, com remendos, raros deles envergando
um jaqueto razoavelmente coado, e com a gorra de malha ou a boina basca na
cabea. Que diacho de candonga que eles podiam transportar? Nenhum trazia
com certeza ouro, diamantes ou coca.... Aceitavam a garrata e deixavam-nos
passar: Merry Christmas! Depois voltavam ao seu pquer, ao cachimbo e ao
copo de bourbon. Os marujos sorriam, humildes, esfregavam as mos enregeladas,
e desapareciam no escuro, com as calas enrodilhadas nas canelas, convencidos de
que tinham ludibriado a vigilncia do Departamento do Tesouro. E que iam eles
fazer na terra dos dlares, em noite de Natal, com as suas pobres roupas e os seus
magros bolsos de embarcadios?
O passageiro tinha subido, j noite fechada, das entranhas da carvoeira, para
se esconder numa clarabia do convs, sob a qual havia espao para um homem
se deitar, como num esquife. (J ali tinham viajado outros, durante dias e at
semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte os
cordames eram estendais de gelo! com as roupinhas leves em que vinha do
Brasil, cara tolhido para o resto dos seus dias.) No comia desde que, manh
cedo, lhe tinham levado o caf amargoso e a bucha do po; a fome roa-o, e depois
do calor abafante das caldeiras, o frio hmido da noite inteiriou-o. Ali encaixado,
ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os
ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pr em
liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impacincia dele cresceu:
Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquec-lo, deix-lo a bordo
sozinho, metido naquela urna a morrer de fome e de frio?... Haveria diculdades
imprevistas ao seu desembarque?... A noite avanava com um vagar exasperante,
e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrara os
parcos haveres.
Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os pers dos barraces do porto, mais
longe fbricas, prdios, o claro mortio da cidade. Estava na Amrica,a dois
passos do trabalho e do po, a um salto do seu destino. E o corao batia-lhe de
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anseio. J tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo,
escondido e alimentado. Se havia mais algum por trs deles, isso no era da sua
conta. Restavam-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calas. Junto delas,
retinha na palma da mo suada um papel pudo, com um endereo, esse ponto
perdido na imensidade da Amrica desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para
l de Nova Iorque, em Long Island, a quantas lguas seria aquilo de Baltimore,
e quanto teria ele que palmilhar s cegas, para alcanar o seu destino?! (Se l
chegasse...) E uma data de nmeros, de portas e ruas, isso ele no entendia, no
entendia nada, no sabia patavina de ingls, s sabia que estava ali espera
que dispusessem dele, para comear vida nova, ou ento... Sozinho, diante do
desconhecido. No conhecia ningum, nesta terra envolta em noite e humidade.
Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imvel, impotente, com o corao do
tamanho dum feijo a zumbir-lhe no peito apertado.
Sonhava com a Amrica havia muitos anos. Vinha em busca dela como,
quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto um modo de falar)
tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses
porm eram felizes, no precisavam de passaporte, o mundo era ento um mistrio
aberto curiosidade e ambio de todos! Ele viajava escondido, embora no
buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braos, sabia pegar numa
enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro no andava agora aos pontaps,
quem caminhasse de olhos no cho ainda podia topar aqui e ali com algum penny
perdido assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanas dum alemo que da
Amrica voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo
Mundo ainda no tinha morrido no corao, ou seria no estmago?, dos homens.
Para alcan-lo tomara pelo caminho mais curto, que quase sempre o mais
arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de
m-morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmtico e claudicante.
O tempo correu e ele dormitou. De repente acordou sobressaltado, e
enclavinhou as mos no saco. Uma voz rouca segredava-lhe ao ouvido:
Salte c para fora, Seu Tom!
A clarabia estava levantada. Atirou com as pernas entanguidas para fora do
esquife, mas quando se quis pr em p elas recusaram-se a aguent-lo; doa-lhe a
barriga, tinha a bexiga a arrebentar, e uma sede de morte.
No me posso mexer!
O marujo murmurou qualquer coisa que ele no ouviu bem, uma praga com
certeza, e ps-se a esfregar-lhe com vigor as costas, as pernas e os braos.
Beba l um gole de cachaa. Aqui que vossemec no pode car. Veja se
se despacha, temos que aproveitar esta aberta, enquanto no anda nenhum guarda
no cais.
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Bebeu, sentiu um pouco de vida voltar-lhe aos membros, e pde enm andar.
Foi verter guas junto dum turco dos salva-vidas. O outro fumava, impaciente,
escondendo a brasa do cigarro na concha da mo morena. Pegue l uma bucha
pr viage. E agora tenha cautela, h?
Palpou o embrulho morno do farnel que o marujo lhe meteu na mo, e
encaminhou-se atrs dele para o castelo da popa em trevas. Tinham retirado a
prancha, mas nem que ela l estivesse: mesmo quela hora adiantada era perigoso
desembarcar a descoberto. O que ele tinha a fazer era transpor a amurada e descer
por um cabo da amarrao, como uma ratazana.
Chegara o momento difcil. Mas uma vez no cais, olho atrs olho adiante,
cosido com as sombras e as paredes, fazendo-se parte delas, era sumir-se no
desconhecido, e estava livre.
Meta o farnel no saco, homem. E pendure-o do pescoo, como que voc
quer descer assim? No tenha medo, agarre-se bem e ande pr frente.
Trocaram um aperto de mo. O claro frouxo da cidade, a distncia, enegrecia
mais, por contraste, as vizinhanas. Ajeitou a trouxa ao pescoo, e sentiu-se
plido. A que altura estariam do cais? O marujo segurou-o, ajudou-o a transpor a
amurada fria e molhada, e ele agarrou-se corda com fora. Ouviu em cima um
murmrio:
Boa sorte! V com Deus.
Ficou sozinho, encangonchado no grosso cabo, spero e encharcado. Alguns
metros abaixo dele, invisvel, era o cais, a terra rme, a liberdade, o po amassado
com o suor do seu rosto. Saberia alcan-lo? Coragem! Sim, mas tinha o com-
licena que no lhe cabia nele uma agulha. Era como se estivesse entre mar e
cu, com o Credo na boca por todo amparo. Devagar, com o saco pendurado
ao pescoo a embaraar-lhe os movimentos, e de pernas ensarilhadas, deixou-se
escorregar. A palma das mos ardia-lhe na aspereza do cabo. O peso do corpo
puxava-o para o lado inferior, mas ele era magro e l conseguiu resistir gravidade
e manter-se equilibrado a cavalo na amarra.
Diante dos olhos s tinha agora o casco negro do navio, que no conseguia
destar, como se a ele se quisesse prender pelo magnetismo da vista. A gua
clapotava contra a estacaria, que rangia brandamente. Aquela gua era agora o seu
terror, e talvez viesse a ser o seu tmulo. Se a olhasse podia-lhe dar uma vertigem,
e ento...
Pela posio e balano mais amplo do cabo percebeu que ia a meio caminho.
Mas nem podia olhar para trs, nem via um palmo adiante do nariz, alm
do negrume do casco. Deixou-se escorregar mais um pedao, com diculdade,
porque o cabo se aproximava da horizontal, e, segurando-se com rmeza, saltou
e agitou uma perna, procura do contacto com a terra. Mas esta devia estar
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ainda fora do seu alcance. Descansou um migalho. O suor escorria-lhe na cara e
no pescoo, encharcava-lhe as costas. Se agora casse, era verdadeiramente um
homem ao mar: ningum dava por isso, e que dessem de bordo ningum lhe
acudia. Nem do cais deserto. No dia seguinte, ou s Deus sabe quando, o cadver
seria pescado, meio rodo dos peixes e dos caranguejos, ou inchado e fedorento,
a escorrer gua e lodo. Se o fosse!, porque tambm podia ir pelo mar abaixo...
Seria mais um desaparecido, ou um cadver annimo, sem parentes, amigos nem
conhecidos que o viessem identicar e reclamar. Longe, a famlia, qual no
escrevera em dois anos, continuaria por mais algum tempo espera dele, ou
de notcias: mas acabaria por esquec-lo. De bordo ningum dava por nada, ou
calavam-se. Quanto aos destinatrios, l em cascos de rolha, que lhes importava?
Nem sequer o conheciam. O comentrio indiferente Aquilo, se calhar o homem
nem chegou a embarcar! seria todo o seu responso e epito. Era como se
nunca tivesse existido.
Impelido pelo sbito terror de no existir, escorregou mais, tornou a agitar a
perna, em vo. Agora o corpo, na horizontal, e a oscilar com a amarra, no podia
arrancar-se gravidade nem recobrar a verticalidade. Ainda que o p esbarrasse
na beira do molhe, como que ele ia soltar-se, dar uma reviravolta e um pulo, para
cair em p? Nem pensar em pendurar-se pelos braos: caria abaixo do nvel do
cais, e ento que no havia esperana. No ousava desenvencilhar-se da espia
que o prendia terra e vida, para se endireitar e dar um salto. Nem sequer podia
virar a cabea para avaliar a que altura estava. Mais alguns minutos, que tanto lhe
durariam as foras, e a queda era fatal.
Teve a clara viso do seu estado a boca negra da morte espera dele, em
baixo, como um tubaro insacivel e intimamente amaldioou a hora em que lhe
dera para se meter nestas andanas: se no era marujo, no sabia trepar uma corda
nem sabia nadar! Suspenso entre dois nadas.
Encolheu-se todo e, com um esforo desesperado, conseguiu deslizar mais
um pouco: o p tocou por m na beira do molhe, e um bafo de lume veio-lhe
dele, subiu-lhe os membros, reanimou-o como um calor de ressurreio. O cais,
molhado e escorregadio, estava ao seu alcance! Mas por baixo era ainda o abismo
de gua. Encavalitado na amarra, crispado e dorido, desembaraou a custo a outra
perna, e agitou-as ambas, procura de apoio. As solas delgadas patinavam na
viscosidade do madeiramento gasto, ou no rebordo de ao. Se tentasse rmar-se
nelas, podia escorregar, perder o suporte do cabo, e dar o mergulho denitivo. A
suar em bica, trmulo do esforo, cou com as pernas pendentes e imveis.
Voltar para cima, nem pensar nisso: j no tinha foras para marinhar, e que as
tivesse, a bordo no o deixariam entrar nem car. Agora era respeitar o contrato,
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e escapulir-se ou morrer. Como uma mosca teimosa, que se agita para escapar
armadilha, tornou a fazer esforos para se apoiar no cais, e soltou uma praga em
voz alta:
Oh rais ta parta a minha sorte!
Nesse instante sentiu que alguma coisa de duro, mo ou tenaz, o agarrava
com violncia pelos rins, dando-lhe a sensao dum ferro em brasa, e teve
este pensamento de renncia Estou catralado! Mas, curioso, recobrou
simultaneamente a calma e a esperana.
O que quer que fosse puxou por ele com fora, e ele deixou-se levar
passivamente, at que, com o cordo do saco a estrafeg-lo, conseguiu endireitar o
corpo e rmar-se nas pernas bambas. Aquela mo de ferro, invisvel, arrepanhava-
lhe as roupas e as carnes, macerando-o e magoando-o. Depois, com um safano
supremo, quase o ergueu do cho e f-lo dar uma reviravolta.
Levantou os olhos e viu diante de si um grande vulto negro, um capote de
oleado reluzente de chuva, uma farda com botes de metal e uma chapa cor de
prata. O agente da polcia inclinou para ele o rosto vermelho e robusto:
Stowaway, eh? e sacudiu-o com energia, como se o quisesse despertar do
torpor. Passageiro clandestino? repetiu, e riu-se. You speak English?
Que pode um homem dizer em tais circunstncias? Tinham-lhe recomendado:
Haja o que houver, no abra bico. Faa-se de trouxa. Mas com aquela mo
brutal no se brincava, e ele respondeu:
Eu no espique inglish, eu no espique!
O agente largou uma risada de gozo e tornou a sacudi-lo:
No eespeek! No eespeek!
Tinha um hlito quente, de tabaco e whisky. Na fria humidade de Dezembro,
um homem precisa de alguma coisa que lhe aquea as entranhas, para andar assim
de ronda pelos cais desertos, entregue aos seus pensamentos. Depois, na noite de
festa, de porta em porta ao longo das tabernas e saloons da borda-dgua Merry
Christmas, Mack! h sempre quem tenha uma franqueza com a Autoridade, e
a gente no de pau, nem pode fazer uma desfeita, recusar... A verdade que
um trago ou dois dispem muitas vezes um homem a ser mais tolerante com as
fraquezas humanas.
Ficaram assim um pedao, frente a frente, ele espera, a contar os minutos de
vida, e o agente talvez a dar balano situao, a macerar-lhe devagar o ombro
magro na tenaz de ferro da manpula, e repetindo a meia-voz:
No eespeek, no eespeek...
Pequeno como um murganho, a tremer de medo e frio na fatiota leve, espera
da sentena quem sabe at se o guarda, enraivecido, no lhe ia dar um empurro,
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atir-lo gua? o passageiro clandestino olhava xamente os botes da farda, o
cassetete comprido e polido.
O agente disse ainda qualquer coisa que ele no entendeu, e apertou-lhe os
ombros com mais fora, a tactear-lhe os ossos, talvez a ensaiar esmagar-lhos pelo
simples prazer de exercer foras naquela fragilidade.
Depois, de repente, obrigou-o a dar meia volta, de cara terra, apoiou-lhe a
mo enorme e espalmada nas costas, e empurrou-o:
Now run!
No precisou de entender, e correu: correu sem saber aonde ia, nem se o guarda
lhe ia dar um tiro pelas costas como a um ladro das docas que desobedece
ordem de Alto!, ou se realmente o mandava embora, livre, sem o prender nem
o forar a regressar a bordo. Correu s cegas, a mastigar palavras sem tom nem
som, a esbarrar em paredes, a trepar em caixotes, em fardos, em cordames, em
mquinas, confuso e perdido, incapaz de encontrar a sada daquele labirinto.
Foi quando a voz do polcia lhe atirou distncia, pela rectaguarda:
Hey! Merry Christmas!...
O clandestino estacou, compreendendo vagamente, e s nesse instante se
lembrou que era Noite de Natal. Ento com a garganta apertada, a rir e a chorar,
transps umas calhas ferrovirias, pulou uma vedao de rede de arame, e deitou
a correr em campo aberto, nas trevas.
De longe, o claro agora mais vivo da cidade guiava-lhe os passos, como o
reexo de misteriosa estrela oculta, ou de lareira acesa, chamando-o consoada.

(De Gente de Terceira Classe, 1962)

80
DOMINGOS MONTEIRO

(1903-1980)

uma personalidade literria particularmente bem marcada como contista,


pela prontido com que condensa em narrativas muitas vezes breves um caso
humano, um episdio inesperado ou um estado acidental de conscincia, a
que Domingos Monteiro deniu em obra vasta e primacialmente connada
no gnero. Foi numa dolorosa experincia vivida que encontrou matria de
observao ambiental e psicolgica para o seu primeiro livro: Enfermaria,
Priso e Casa Morturia (1943). Mas, nascido e muito convivido em terras
serranas de Trs-os-Montes, conservou desse fundo rstico o gosto pelos temas,
meios sociais e mentalidades da regio. Assim conjugou um realismo por vezes
agreste com a expresso sentimental em que a gente camponesa envolve as suas
tpicas maneiras de idealizao da realidade e, sobretudo, a sua propenso para
o fantstico e o maravilhoso. Desse sedimento, intercalado pela descrio de
casos no regionalizados, alargando-se do elementar ao complexo da condio
humana, se alimentam, entre vrios outros, livros como O Mal e o Bem (1945),
O Caminho para L (1947), Contos do Dia e da Noite (1952), Histrias
Castelhanas (1955), Histrias Deste Mundo e do Outro (1961), O Dia Marcado
(1963), Contos do Natal (1964), Histrias das Horas Vagas (1966), A Vinha
da Maldio e Outras Histrias (1969), O Destino e a Aventura (1971), O
Sobreiro dos Enforcados (1978). O crtico e ensasta Antnio Quadros salientou
especialmente em Domingos Monteiro o dom natural de contar histrias, a
noo do ritmo, a sbia preparao do climax, a possibilidade de criar um espao
imaginrio em que o real se apresenta simultaneamente no mais patente e no
mais simblico. Tais caractersticas imprimem arte de narrar deste contista
um andamento e um uxo de realidade evidenciada e de fantasias que tornam
mais aliciante a leitura das suas narrativas. Representando uma linha tradicional
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de temas e de estilo na novelstica portuguesa, a obra de Domingos Monteiro
assume-se com modernidade na conteno de rebuscados efeitos e na brusca
intensidade com que precipita o dramtico, o fantstico ou o pitoresco na
sequncia textual.

82
RESSURREIO

A mulher tirou as mos debaixo do avental e perguntou numa voz despida de


qualquer inexo amvel:
O que deseja? Depois, atentando melhor na gura miservel do interlocutor,
acrescentou, asperamente elucidativa: A entrada no por aqui, pela escada de
servio...
Mas o homem no despegava. Tinha uma teimosia humilde e inabalvel:
Quero falar ao senhor... Ele que me mandou chamar...
A si? Havia uma ironia maldosa na interrogao. Ah, ele manda chamar
muita gente e depois no a recebe... s vezes uma romaria...
Calou-se um instante e xou o homem.
Nos olhos dele havia uma doura atenta e compassiva. Parecia-lhe que aquele
homem, com o fato remendado, o cabelo rapado, as alpercatas rotas, a tiritar de
frio, o ar clssico do vagabundo das estradas, estava com pena dela. Sentiu-se
chocada e, ao mesmo tempo, intimidada. A sua vaidade agressiva de porteira de
casa rica, diluira-se. Pensou que era absurdo, que era o contrrio do que devia
ser, mas aquele homem estava com pena dela. Teve um sobressalto de vergonha e
inquiriu quase humilde:
por causa de algum anncio, no ?
Sim, um anncio a chamar por mim... No o li, que no sei ler nem escrever.
Foi um companheiro que me disse...
E quem digo ao senhor que ?
Diga-lhe que Nosso Senhor Jesus Cristo.
A mulher afastou-se deixando a porta entreaberta.
83
O homem ouviu o rudo de passos no corredor e depois bater a uma porta.
Est aqui um homem que quer falar com V. Ex..
Quem ?
Diz que Nosso Senhor Jesus Cristo.
No conheo...
Houve um instante de silncio e depois, algum gritou de dentro:
Ah, j sei... Espere... Mande entrar.
Por aqui...
Foi guiando os passos do homem at porta do fundo.
J aqui est.
Que entre...
O pintor cou a olhar para o homem que acabava de chegar e desatou a rir.
Essa boa! Essa muito boa!... Ento voc julga que...
Vestia com o trajo dos artistas de Montmartre casaco de veludo, o cachimbo
ao canto da boca, numa das mos a paleta, e, na outra, o pincel.
A luz entrava diluda pela cpula envidraada do atelier, e caa em cheio
sobre o modelo. Estava nua, apenas com um ligeiro sendal a envolver-lhe a cintura
e o cabelo negro e comprido atirado para a frente a aorar as pontas dos seios.
Via-se que era uma pose procurada e um pouco articial.
Ironicamente, o pintor fez as apresentaes:
O Cristo... A Madalena...
lho, deixa-te de graas... Fecha mas a porta que estou com frio.
Nos lbios deslizou-lhe um sorriso, ao mesmo tempo, impdico e contrafeito:
Posso vestir-me?
Podes.
Num gesto lento foi fechar a porta.
A mim sucede-me cada uma... Virou-se para o homem e inquiriu: Voc
veio por causa do anncio? Com certeza? Do anncio em que eu pedia um modelo
para o Cristo da minha alegoria: Nosso Senhor voltou ao mundo?...
Sim Senhor.
E voc, com esses cabelos cortados escovinha, as barbas rapadas,
supunha-se nas condies? Ou pensa que basta ter fome, ter o rosto esqulido e os
olhos lnguidos e sonhadores? Estava agora junto dele e tava-o curiosamente:
Foi a necessidade apenas que o trouxe, ou qu? Se eu pusesse um anncio para
me passear o co, voc tambm aparecia, no verdade? A voz compadeceu-se:
Eu bem sei que a necessidade no tem lei e um topa-a-tudo. Em todo o caso...
Espere... Zulmira, vem c...
A cabea da rapariga assomou por detrs do biombo ande estava a vestir-se.
J vou...
84
Aproximou-se vagarosamente.
Vestida, tornara-se numa rapariguinha da cidade, quase insignicante. Uma
espcie de vergonha travava-lhe os passos.
Anda c ver gritou impaciente. Tu j viste alguma vez uns olhos assim?
Sentia-se que estava impressionado. curioso! Repara bem... Tem o fulgor
dos olhos dos grandes iniciados... E a boca, ahn? Que energia e que candura, ao
mesmo tempo... E o queixo? Repara bem no vigor e na doura desta linha...
O entusiasmo caiu-lhe de repente. Mas sem barba e sem cabelo, nada feito.
No lhe vou pr uma barba e um cabelo postios, nem vou imagin-las... Sou um
realista, percebeu?... Preciso de ver e palpar... S sei pintar assim: com pelos, com
carnes, com sangue...
Estava encolerizado.
seu idiota!... Porque que voc rapou o cabelo e cortou as barbas?
No fui eu, foram eles...
Eles, quem?
Eles, os guardas...
Falava numa voz clara e harmoniosa, a voz bblica das parbolas.
Prenderam-me... Disseram-me que era proibido andar a passear pelas ruas,
sem fazer nada. Raparam-me o cabelo e cortaram-me a barba. Depois disseram-me
que eu era um vagabundo e que se me tornassem a prender, me mandavam no sei
para onde. Foi ento que um companheiro me disse que o senhor queria falar com
Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi por isso que vim...
E porque havia de vir voc especialmente?
porque... Sabe?... Eu sou o prprio.
O qu?... Voc o prprio Nosso Senhor Jesus Cristo?
Sou, embora no me acredite... Mas eu no levo a mal. J sabia que me ia
suceder isto... Foi o que aconteceu da outra vez. Na Judeia tambm poucos me
acreditaram. Foi por isso que me prenderam... e me crucicaram. Mas j lhes
perdoei. a razo porque pedi a meu Pai para me deixar voltar...
Muito me conta... Ests a ouvir, Zulmira? E esta?
A rapariga aproximara-se sem dizer palavra. Um fulgor inquieto acordara nos
seus olhos e as mos juntaram-se num jeito de orao.
Aposto, que ests tentada a lavar-lhe os ps com essncias e a enxug-los
com os teus cabelos... Em todo o caso, no to aconselho.
Ela lanou-lhe um olhar furioso e no respondeu. Depois numa voz suplicante,
insistiu:
Conte... No faa caso do que ele diz. uma alma perdida... E depois?
Meu Pai no me queria deixar vir: No, Meu Filho, disse-me Ele intil
como j foi outrora... E desta vez vo-Te fazer pior. Em vez de Te pregarem na
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Cruz, ters de arrast-la toda a vida! Ters de passar por todas as misrias! Hs-de
sofrer a tortura da fome e do crcere, ho-de internar-Te como louco e, o que
pior, no Te ho-de acreditar! No, no consinto. Mas eu supliquei: Pai, a culpa
no deles, nossa, principalmente Tua... Minha! No h nada que eu receie
tanto como a clera de Meu Pai, mas estava resolvido a afront-la: Sim, Pai...
Mas Ele, com grande surpresa, interrogou com brandura: Minha porqu, Filho?
Porque nunca Te esqueceste de que Eu o era... Porque Me zeste nascer sem
pecado... Porque no Me deixaste correr os riscos dos outros homens e Me deste
o poder de fazer milagres... Se no Me sentiam igual a eles, como havia Eu de
redimi-los?.
Bem, vai sentenciou Ele mas depois no chames por Mim, nem invoques
o Meu Nome! No, pai. Suceda o que suceder, Eu no o farei...
E Tua Me? interrogou a rapariga, ansiosa: E Nossa Senhora?
Nossa Senhora limitou-se a chorar como todas as Mes quando vem partir
um lho para uma aventura perigosa... Mas no me desencorajou e, pelo contrrio,
disse-me: Vai, Filho, a Tua obrigao! Uma tarefa deve levar-se at ao m... e
Tu caste a meio caminho. Estarei sempre a Teu lado! E agora, sinto que Ela
que me fala pela tua voz...
O pintor no destava o grupo formado pelos dois. O pincel tremia-lhe na mo
e uma emoo violenta penetrava-o. Ah, ele bem a conhecia! Era a inquietao
sublime dos momentos de inspirao. Em silncio, afastou-se e comeou a pintar.
As guras cresciam na tela, como que vindas de dentro, e tomavam corpo, to
humanas que quase tinha medo de as magoar.
Era um Cristo estranho aquele, curvado sob um fardo e com as mos cheias
de calos, em vez de chagas. Dos olhos esparzia-se uma obstinada iluso, e o suor
escorria-lhe s bagadas dos msculos tensos, mais vivo e mais ardente do que o
sangue. Uma gura difana de mulher, ia-lhe limpando a fronte, e da sua boca
entreaberta nascia uma promessa imaterial de beijos puros.
Quando o pintor levantou os olhos do seu trabalho, viu apenas o modelo que o
observava atentamente.
E Ele? Ele onde est? interrogou ansioso.
Foi-se embora... Disse que no te perturbasse e que a sua misso estava
cumprida. Que j te tinha restitudo a f em ti mesmo e que, anal tambm tinhas
acreditado nele...

(De Contos do Dia e da Noite, 1952)

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BRANQUINHO DA FONSECA

(1905-1974)

Fundador, com Jos Rgio e Joo Gaspar Simes, da revista Presena, em


1927, e membro destacado do movimento que ela representou sob o signo
duma literatura viva, voltada essencialmente para a anlise psicolgica e
para os contrastes pessoalmente vividos entre a realidade e o sonho, Antnio
Jos Branquinho da Fonseca deu lugar predominante ao conto na sua criao
ccionista. A obra-prima que mais altamente a caracteriza, o Baro (1942),
uma novela de composio densamente trabalhada entre o real e o fantstico;
e o romance Porta de Minerva ilustra a capacidade do escritor na construo
de narrativas mais longamente estruturada, desdobrando-se em planos mltiplos
com todos os ingredientes duma problemtica de juventude. Mas foi com
o livro de contos Zonas (1932) que deu comeo sua armao literria,
conrmando-a nesse rumo com Caminhos Magnticos (1938), Rio Turvo (1945)
e Bandeira Preta (1956). Deu com estes livros a medida reiterada duma arte
de composio novelstica sabiamente ordenada, com delineamento rigoroso
e dramatismo ostensivo de personagens e de situaes. O desenho narrativo
realista conjugado por Branquinho da Fonseca com atmosferas frequentemente
mticas, exprimindo-se numa linguagem namente irnica ou lrica de grande
pureza. A relativa escassez da obra do escritor ser, talvez, signicante duma
lavra lenta e laboriosa em que procurou tenazmente a maior expressividade
na maior depurao formal. Por esse rumo de artista literrio exigente, que o
situa ao nvel de qualicados escritores europeus e americanos da sua poca,
evidenciou o poder de sugerir um halo de mistrio, de medo ou pesadelo
indenido, de constante surpresa na perseguio de um imprevisto ideal que
scar Lopes lhe atribuiu com justeza. E esse poder sugestivo foi posto prova
com idntico conseguimento nos temas de ambiente rstico ou de ambiente
citadino e ilocalizado, por vezes transpostos identicamente para um espao
imaginativo em que dada a essncia do caricatural potico ou do lirismo no
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grotesco, como Jos Rgio acentuou relativamente a O Baro. Branquinho da
Fonseca , reconhecidamente, um dos ccionistas portugueses contemporneos
com mais evidentes virtualidades de divulgao internacional, ainda no
realizada.

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HISTRIAS DA MEIA-NOITE

... Serra negra, que onde no pedra urze e tojo... Tem pouca roupa como
os pobres... E no Vero vm os sis queimar-lhe as costas, no Inverno, as pedras,
que so os ossos, estalam do gelo e o vento canta a moliana a quem no se ativer
a uma gabela de lanhio. Hoje est branca dum camado de geada, que d gosto a
gente chegar-se aqui fogueira que ferve o caldo. Os lobos l andam, a esta hora,
batedores de ladeiras, at se desenganarem e descerem aos povoados onde agucem
o dente... Est a fazer seis anos, dormi eu na toca dum castanheiro...
O menino quer freiras? interrompia a criada velha, farta daquelas bazas.
Pedro, o lho dos patres, com os seus catorze anos, tinha j uns modos de
homenzinho e dava pouca conana a velhas tontas. Para no interromper a treta
do Joo Meco, s abanou com a cabea, que sim. E a velhota, com um punhado de
milho na mo, limpou da cinza o granito quente e atirou para a pedra requeimada
os gros que iam abrir em or branca.
Joo Meco no perdeu o o ao discurso e voltou histria:
O patro disse-me assim: amanh vais ao pinhal da Sancha e marcas o
desbaste. Ainda a madrugada no apontava nas tralhiscas, saltei da cama, peguei
da roadoira e ala, fajardo!
L ests tu a rasgar baeta!... disse o moo dos bois, a entrar na cozinha.
No estou, no. H quem seja mais gabarola do que eu...
Essa no pra mim. E olha que trago que contar: vi agora um fantasma. O
rapaz da Ilda no podia ser, que o namoro acabou...
A rapariga olhou-o com desprezo e baixou-se para apanhar dois gros de milho
que tinham estoirado. Mas a velha comentou:
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No venhas j com invenes de tolo...
Eu?... (E acrescentou com ironia:) No h fantasmas e almas do outro
mundo? Ento a mo cortada do Janurio?
Pois sim... Mete-te com a tua vida.
Nega que contou?
Nego-te a ti, diabo negro.
Joo Meco, interrompido em sua prosa, cortou a discusso:
Vocs no me do licena que fale?
Espera a que no abafas.
E voltando-se para a velha, o moo dos bois, com o mesmo sorriso de troa,
intimou:
E a alma do Elias Gordo?
Nem magro...
Eu lhes conto... O Janurio era um criado c de casa, antes de vocs. Ora uma
certa noite houve mister de ir ao moinho e ali a ti Leonor desaou uma mocita que
tambm c estava, para irem as duas com ele ao passeio. Estava uma noite negra,
que no se via um palmo frente do nariz. Iam passadas. Mas no queriam dar
parte de fracas. E o Janurio comea a mo-las com histrias da meia-noite... A
candeia no dava luz, e elas abraadas uma outra, de cambulhada, e a rirem pra
ngir... A lanterna, negra do fumo, alumiava cegos e s mexia sombras... E ele a
dizer que se tinha trazido a luz no era para ver o caminho, que o passava de olhos
fechados, mas para os lobisomens verem que era ele e fugirem a tempo. Neste
comenos iam a chegar ao moinho e comeam a ouvir um grande gemido, que elas
as duas caram com o sangue coalhado. O Janurio sabia o que era, mas fez-se
lzudo. H-de ser o eixo da m... Torceu com o peso da gua... Ou no ser?...
Nem bulia ponta de aragem e quando ele abre a porta do moinho vem de l de
dentro um sopro e apaga o raio da lanterna...
Foi mesmo verdade.
Ah! santinha! Quem diz que no? Eu estou a rir porque me rio s do que no
deve ser... Diz vossemec.
E digo.
Ento deixe rir... Pois apaga-se a lanterna e ali a ti Leonor d um grito e vai
para se abraar Gracinda. A gente no pode pensar que era o Janurio que se
queria abraar a alguma delas. O caso que a tal Gracinda tinha desaparecido
e no podia ter cado ao rio, que havia ali um muro. O Janurio viu o caso
mal parado e entrou no moinho para encher a taleiga. Nisto, a nossa ti Leonor
sente uma coisa a mexer-lhe nas pernas e desalvora aos gritos. Valeu o Janurio
segur-la, que ele segurava bem as raparigas, e explicar que era o co, o Piloto...
que nem ali estava...
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Pois no estava, no. Ri-te, que tambm h-de haver quem se ria de ti.
Pois h-de... Mas deixe contar, ah, santinha!... E ele l traz a ti Leonor pr
moinho, mais morta que viva. Mas mal ela entra, sente um puxo na saia. E o
Janurio a explicar que tinha sido entalada na m...
E tambm no foi verdade que ele saiu de l com a mo cortada cerce, que
toda a gente disse que s podia ter sido com um machado? E ao outro dia algum
viu na m sinal de sangue? Cala-te l! Deixa estar a verdade quieta onde ela est.
Valha-te o poder de Nosso Senhor Jesus Cristo...
A est que foram fantasmas ou almas do outro mundo. esta a sua
verdade?... Pois onde as houver, dessas almas, vou eu l e trago um saco delas. Ah,
tiazinha! Temer dos vivos, cants dos mortos!...
Joo Meco interrompeu, com seu ar de lsofo:
Eu no acredito em fantasmas... Mas h.
No acreditas, mas h? Como isso?
H coisas que a gente pode no acreditar, e hav-las...
Est boa, essa!
Horas do Diabo, isso h... Ento em certas noites, por essas serras, preciso
um homem ser afoito.
Quando se leva medo que elas acontecem.
certo. Quem anda de noite topa lobo... A quem o dizes. O fantasma da
Catraia do Maneta, j eu vi e no fugi. L torcer caminho por fantasmas, nunca
fui desses. Nem mais nem menos, oiam bem esta: Andava eu de boas conversas
com uma rapariga de Eirigo, quando, certa noite, o cu caiu desfeito em gua,
com um estrebuchar de vento que um homem blhava o vira-virou. Mas estava
com a tineta de ir e ia mesmo. Pancada feita vai abaixo. Daqui, so duas horas de
serra acima, por caminhos onde Cristo nunca passou. Mas fui. Era uma rosa duma
cachopa, que at nem tinha perdo se no fosse.
Ora eu, quando saio aos gambozinos, pego no marmeleiro, que a rvore bem
plantada quer a estaca ilharga. No bolso a sevilhana, e ala, que quem vier
encontra rme. Estava uma noite de breu, mais negra que a dos infernos. De
bacamarte no era o perigo, que quem mo quisesse apontar tinha de mo chegar ao
nariz a cheirar. Quando, ao descer pr rio, pelo meio do pinhal, sinto de repente,
por cima da cabea, o desabar duma carrada de mato. At me agachei pr cho,
Eh! valente!... E ao mesmo tempo olho para cima e vejo uma coisa branca a
passar-me ao chapu. Nem pensei no que fazia, j o varapau ia no ar, e sinto uma
pancada nas mos, que o porrete voou-me das unhas. Logo outra na cabea, que
co espojado no cho, l o que era torna a desabar pela rama dos pinheiros abaixo.
A vem ele. S podia ser o fantasma do Maneta. O mesmo alvejar do que fosse,
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at me fez vento cara. E percebo que era outro corujo que nem um carneiro.
Sabem o que z? Deixei-me car sentado, a rir de mim, que ainda o melhor que
a gente pode fazer em certas ocasies.
Est de ver que o pau saltou-me das mos porque arreei com ele num
pinheiro, onde logo marrei com a testa, que foi o murro que me tombou. Agora
juntem-lhe uma voz a chamar e a gemer na outra encosta, que era um borrego
que o Lambicas tinha perdido no monte, e a tm como elas se inventam. Se juro
que era coruja, juro e torno a jurar. No que visse o passarolo bem visto. Mas era.
E dizem que as corujas do azar! A mim, aquela, deu-me sorte... Ou que fosse
fantasma... Tanto monta.
Baza que tu s, Joo Meco!
Pois sou... Mas no te conto outra, porque ento no tinhas nome pra me
chamar.
Na mo de cortia, a velha oferecia as ores de neve, os gros de milho abertos
na pedra quente.
Pedro comeou a trinc-los sem desviar a ateno ta nas palavras do
narrador.
E histrias de franceses?... Sabes alguma?
Essas so como as das almas penadas. Conta-se sempre mais uma... O
menino h-de ir comigo mas ao rio, ao Poo de Ala-Perna, para me ajudar a
apanhar a caldeirinha de oiro, da moira encantada que est l no fundo.
Pedro, mudo de espanto, abanava com a cabea, que sim. Mas a velha cortou
o sonho:
No faa caso, menino.
Nem a ouvia. E Joo Meco, em sua alta fantasia, voava j fora de tiro
H-de estar numa caverna... O rio, ali, faz um poo que no tem fundo.
H quem o tenha sondado com cinco cordas de carro, sem lhe chegar ao m. J
l desci duas vezes amarrado com uma pedra ao cinto. Comecei a descer com
os olhos abertos, e primeiro s via as razes das rvores, como cobras negras, e
uns peixes pretos que andavam volta de mim. Depois, a gua, mais pra baixo,
comeou a ser verde e luminosa, com muitas luzes de cor de azul, amarelo, cor de
laranja, cor de violeta. E ento comearam a sair dos buracos uns peixes grandes,
uns brancos, outros encarnados, com uns olhos que deitavam lume ou seriam de
diamantes. As paredes do rio, a j eram de pedra negra, com rosas de prata, e a
mim parecia-me que, em vez de ir a descer, ia a subir uma montanha de rochedo,
com o sol a nascer l atrs, pois via-se uma grande claridade. E fui dar a uma gruta
que tinha na entrada uns degraus que s podiam ser de oiro, e a gruta por dentro
era toda de vidro e tinha estrelas a brilharem. Ia eu a entrar e estavam uns lindos
cabelos a ondear na gua, e uma mo a pente-los com um pente de oiro no.
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Mas veio uma grande cobra que se me envolveu ao de roda do pescoo, e ento
dei um puxo na corda, para iarem para cima. Quando me tiraram da gua, j no
dava acordo, e tiveram-me morto, estendido na erva...
Est visto que tu nem com uma pedra ao pescoo...
Mas enquanto andava l por baixo, andava bem, como se respirasse o ar... E
ainda l voltei duma outra vez. Ento levei uma faca. Mas no vi nada. O menino
pode acreditar que nessa hora que eu tive medo. (E baixou a voz, como quem
confessa um segredo:) Era um escuro como se a gua se tivesse tornado em tinta,
e um frio, que sentia os ossos a estalarem.... H-de ser este Vero, quando as guas
estiverem mais nas, que hei-de l voltar...
E eu que te hei-de amarrar a pedra ao pescoo... prometeu o moo dos
bois.
Ao cinto emendou Pedro com ingenuidade.
menino, para ele melhor ao pescoo. E uma m do moinho.
Vocs acreditam em almas do outro mundo e no acreditam em moiros, que
foi um povo que j houve antigamente? A est como o vosso juzo.
Tanto sei que h moiras e moiros, que sei que tu s um, e no te deitam a
cabea num cepo pr cortarem e porem-te l outra melhor...
Mas tenho palavreado pra te vender numa feira...
L isso s capaz: de enganar algum... resmunga a velha.
A si j no, ti Leonor.
Brinca com as da tua idade.
Brincar? No que elas querem-me logo a srio. Quanto lhe devo do
conselho?
Tenho mais pra te dar. Pagas no m. E toca a andar, que so horas. Quero
deixar a fogueira apagada. Ests a desaar uma criana pra ir pr rio com cordas,
procura das caldeirinhas de oiro, e no queres que te chamem ao menos maluco?
Eu quero... Se fosse igual aos outros, sem pensar em fantasias, que era um
triste desgraado. Hei-de desencantar a moira e entrar por aquela porta com ela na
minha frente, pra vocs verem o que uma rainha com o manto de seda e a coroa
de lumes... E eu com a caldeirinha de oiro cheia duma gua de onde voc bebe um
golo e ca logo uma rapariga de dezoito anos, capaz de um fantasma me cortar
a mo como ao Janurio... E o menino, se descobrir alguma moira encantada,
conte-me tudo, que eu acredito. No acredito em quem s v as coisas que toda
a gente pode ver... e no arrisca nem um dedo chuva... Boa noite!
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Veio uma rabanada de vento, quando se abriu a porta da rua. E Joo Meco saiu
para o escuro, a assobiar, feliz e aventuroso, como se, desaparecendo nas trevas da
noite estrelada, entrasse, com seu passo natural, no encantado mundo das grandes
maravilhas.

(De Bandeira Preta, 1956)

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MIGUEL TORGA

(1907-)

O nome literrio Miguel Torga o pseudnimo de Adolfo Correia da Rocha,


nascido de modestos lavradores de Trs-os-Montes, emigrante e trabalhador
no Brasil aos treze anos, formando-se depois em medicina na Universidade
de Coimbra e desde ento exercendo clinica. Fez parte por algum tempo do
grupo da revista Presena no incio da sua vida literria, durante demorados
anos connada quase em exclusivo poesia. Foi neste gnero que a sua
forte personalidade de escritor se armou com maior relevo na literatura
portuguesa deste sculo e, como caso raro, ganhou maior projeco internacional,
representada em importantes prmios e homenagens recebidos no estrangeiro.
Como prosador, a autobiograa A Criao do Mundo (4 vols., iniciada em
1937) e a miscelnea de memorialismo, divagaes ntimas, impresses de
viagem e poemas avulsos intitulada Dirio (13 vols., publicados desde 1941 at
1983) deram-lhe lugar de relevo pelo estilo muito pessoal e pela intensidade da
extroverso escrita da vida interior. Intentou o romance (O Senhor Ventura,
1943, e Vindima 1945) mas sem grande xito e pouco acrescentando de
signicativo obra de poeta e prosador. Foi como contista, de facto, que melhor
assinalou a sua qualidade na co, muito vinculado nos temas e ambientes
radicao do homem na natureza e transgurando esse fundamento telrico
pelo dramatismo consubstanciado nas motivaes humanas, bem como pelas
implicaes simblicas e poticas da linguagem. Uma directa rudeza poetizada
pelo inocncia vital e pela resistncia s fatalidades opressoras o timbre
dominante nos contos de Bichos (1940), Contos da Montanha (1941), Rua
(1942), Novos Contos da Montanha (1944), Pedras Lavradas (1951), etc., em
que as personagens homens ou animais tipicam o que mais autntico
e visceral na vida e o que h de poderoso escala csmica na armao
individual da liberdade. Como acentuou Jacinto do Prado Coelho, os casos e
guras ganham um sentido que os transcende, modelando-os o escritor entre
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a realidade mais spera e a idealizao que lhes imprime grandeza simblica.
O processo de contista de Miguel Torga foi comparado com o de Maupassant;
mas a carga signicante das situaes incursas nas suas narrativas supera
o naturalismo e condensa na inveno ou na observao do real uma tica
humanista que se defronta com a dramaticidade intrnseca da vida e com o fatum
que a rege.

96
O ALMA-GRANDE

Riba Dal terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre Joo benze,
perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas.
Quem Deus?
um Ser todo poderoso, criador do Cu e da Terra.
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatrio, no h quem
possa desconar que por detrs da sagrada cartilha est plantado em sangue o
Pentateuco. Mas est. E hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa
a thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os ltimos retoques
pureza da ovelha, e receba da lngua moribunda e cobarde a consso daquele
segredo abafador.
Desses servos de Moiss, encarregados de abreviar as penas deste mundo e
salvar a honra do convento, o maior de que h memria o Alma-Grande.
Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado, uma rua onde mora
ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar
aquele pai da morte, j sabia que tinha de subir pela encosta acima como um barco
num mar encapelado.
Raios partam o vento!
Mas qu! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina,
sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanbria a varrer a ladeira.
Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome.
Tio Alma-Grande! Tio Alma-Grande!
L vai...
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Da a nada a tenaz das suas mos e o peso do seu joelho passavam guia ao
moribundo.
Entrava, atravessava impvido e silencioso a multido que h trs dias, na sala,
esperava impaciente o ltimo alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro,
fechava a porta, e pouco depois saa com uma paz no rosto pelo menos igual
que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror
e gratido. s vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo
da conscincia e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que
no alto do Destelhado, sobrepondo-se fora do vento, o reclamava.
Tio Alma-Grande! Tio Alma-Grande!
L vai...
E aparecia porta logo a seguir.
Quando a hora do Isaac chegou, foi um lho, o Abel, que trepou a ladeira. O
garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da maneira estranha como
a me o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania.
Que tem o teu pai, rapaz?
O pequeno olhou xamente a cara seca do abafador.
Febre...
Bem, vamos ento l...
E que que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer?
V-lo...
Pela rua abaixo s o vento falava. Rouco de tanto bradar, monocrdico,
persistente, era nele que tinha expresso a intimidade de ambos: um, o pequeno,
nervoso, inquieto, a braos com pressentimentos confusos, que se recusavam a
sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino de abreviar a
morte como um rio aceita o seu movimento.
Em casa havia lgrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do Alma-
Grande secou tudo. Atrs dos seus passos lentos e pesados pelo corredor cava
uma angstia calada, com a respirao suspensa.
O que que lhe vai fazer? perguntou de novo o Abel, agora me, quando
a porta do quarto se fechou.
A Lia respondeu ao lho com duas lgrimas silenciosas pela cara abaixo.
L dentro, o Isaac, na cama alagada de suor, parecia ter chegado ao m.
Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como que s esperava
a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia quinze dias. Um febro tal
que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir e acabou por aconselhar que
tratassem do caixo. Mas o Isaac era cedro do Lbano, rijo, no cerne. Depois
desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o comer. E sempre de olhinho
vivo. Gemia, gemia, nava-se, mas sempre com aquelas duas contas de azeviche
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a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma sombra estranha; e a
mulher, a Lia, abriu mo da esperana. Dois dias mais, e como na sala a D. Rosa
lembrasse a conssozinha, um irmo do Isaac, o Daniel, chegou-se cunhada
e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do Alma-Grande. A Lia, a
princpio, reagiu quanto pde. Mas a perspectiva do padre Joo a entrar-lhe pela
casa dentro venceu-a. Mal rompeu a manh, com uma voz que fez medo ao lho,
mandou-o chamar o abafador.
Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um combate que
quase sempre se trava de corpo estendido. O inimigo era uma parte de si mesmo
apostada em perd-lo. E a outra metade, um pedao de ser nobre e agradecido
seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas tmporas
abaixo e um ritmo apressado da respirao davam sinal de guerra. Mas de nada
mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza
e a solenidade de tal hora.
Por desgraa, o Alma-Grande no podia ver aquilo. Insensvel profundidade
dos mistrios da vida, sem o estremecimento de uma bra sequer, avanou para o
leito num automatismo rotineiro. O seu papel no era olhar; era ir inteiro com as
mos ao pescoo, com o joelho arca do peito, e retirar-se uns minutos depois,
como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua funo.
No seu castelo Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboio metia ar
na fornalha, espesso, clido, activo, o suor ia brotando do vulco.
A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos paralizados e mudos. S no
quarto havia movimento e palpitao.
Calado, o Alma-Grande avanou. Mas quando de mos abertas e .joelho
dobrado ia a cair sobre o Isaac, f-lo parar uma voz diferente de todas as que
ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro mundo, e dizia:
No... Ainda no... Ainda no...
Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos
sfregos e angustiados, sem se deter na sua misso sagrada! Quantas vezes! Desta,
porm, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.
No... No... Ainda no......
Um pano escuro que at ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se
de cima abaixo. E o abafador, paralizado entre as trevas do hbito e a luz que
rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino.
No... Ainda no... Ainda no...
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Era terrvel o que se passava. luta que o Isaac sustentava contra foras que
nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois homens, um a saber
que ia matar, outro que sabia que ia ser morto.
Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro, a medir-se.
Pesado, o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue martelava nas
tmporas do Alma-Grande.
Foi um rudo sbito e um guincho de uma porta que fez explodir aquela
concentrao. O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um peso suspenso e
de repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma palavra s. Apenas um
baque surdo, e as mos sfregas do assassino procura do pescoo do Isaac.
Mas a porta que rangera dera entrada a algum. A um vulto que o Alma-Grande
adivinhava atrs das costas, parado, lvido, a tentar compreender.
Um esforo supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a
presena atnita do Abel, tiraram s mos e ao joelho do Alma-Grande a fora
habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos
tragos o o de vida que encontrava pelo caminho! Bem que se lhe avivava na
conscincia a certeza de que era matar a razo do seu destino! Em vo. O puro
instinto no tinha coragem para empurrar aquelas mos e aquele joelho diante de
uma testemunha.
Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual do agonizante,
voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aitos olhos do pequeno,
que o varavam, silenciosamente, sau. Atravessou a sala cabisbaixo, longe da
grandeza trgica das outras vezes. Deixava atrs de si a vida, e a vida no lhe dava
grandeza.
Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado, entrou no quarto,
o lho estava sentado na cama, com a pequena mo na testa do pai. A criana
debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu corao ditava-lhe a mozita
ali, na fronte escaldante do que lhe dera o
ser, do mesmo modo que lhe ordenara j a entrada sorrateira e inquieta no
quarto.
E foi talvez a mo inocente e lial que fez correr novamente na testa do Isaac
o sangue da conana. Sem consso, vinte dias depois comia o caldo ao lume
como se nada tivesse sido. E nada tinha sido realmente para toda a gente da terra,
menos para ele, para o pequeno e para o Alma-Grande. Os outros passaram da
agonia morte e da morte ressurreio, na inconscincia de quem passa do calor
100
ao frio e do frio novamente ao calor. S os trs sabiam, de maneiras diversas, que
o drama fora mais negro e profundo. O Isaac vira as garras da morte ao natural;
o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escurido do seu poo; o garoto, esse,
pressentira coisas que no podia claricar ainda no pensamento.
Vagaroso, o tempo foi deslisando; e com ele apagara-se j de todo na lembrana
da terra a doena do Isaac. Missa e Sabath.
Os trs, porm, debruavam-se sem descanso sobre o lago onde se reectia a
imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava, olhava, e via a
vingana; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava, e via o medo;
o pequeno, inocente, via apenas a angstia de no entender. E os trs formavam
como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoao. No se falavam, fora
do lho a pedir a bno ao pai, do pai a dar-lha, e de uma saudao ambgua e
monossilbica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas traziam-se guardados
uns aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a hora em que, para a
eternidade, varressem do cu das conscincias a nuvem pesada que o toldava.
E esse momento, nalmente chegou.
Vinha o Alma-Grande de ver a lha e os netos, em Bobadela, quando o Isaac,
que o seguia como um co de la, lhe saltou estrada. Testemunhas, s Deus e o
Abel, que, sem o pai dar conta, o acompanhava tambm por toda a parte, e olhava
a cena escondido atrs de um frago.
No matars...
Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros
caminhos, como o prprio Alma-Grande sabia.
No matars...
O Isaac, porm, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos implacveis que
lhe vira nas horas de agonia.
No... No...
Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E quando o Alma-Grande foi a
dar conta, estrebuchava no cho, de costas, com o pescoo apertado nas mos do
outro, e com a tbua do corao sob o peso innito de um joelho.
No... No...
O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do Alma-Grande, e ouvia o
esforo da respirao a forar o garrote.
No...
Possantes, inexorveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um
estertor apenas, estavam em paz os trs. O Isaac tinha a sua vingana, o Alma-
Grande j no sentia medo, e a criana compreendera, anal.
(De Novos Contos da Montanha, 1944)

101
ALVES REDOL

(1911-1969)

Nascido e muito vivenciado na regio do Ribatejo, onde os contrastes


sociais entre os explorados e os exploradores so de mais imperiosa evidncia,
Antnio Alves Redol surgiu desde a juventude como expoente e intrprete duma
gerao de escritores que perlhou energicamente a misso interventora da
literatura no processo histrico imediato. Autodidacta e de formao e prtica
poltica marxistas, coube-lhe o papel de iniciador do Neo-Realismo (ou realismo
socialista) em Portugal no domnio da prosa de co. E, tocado decisivamente
pela realidade mais agressiva da misria e da espoliao nas populaes, rurais,
foi nesse ambiente que situou, como outros companheiros da sua corrente
literria, a maior parte dos livros que escreveu. O primeiro romance, Gaibus
(1939), como os que se lhe seguiram com maior signicado de denncia social
e mais positiva qualidade de escrita Avieiros (1942), Fanga (1943), A Barca
dos Sete Lemes (1958) e, mais do que qualquer outro, Barranco de Cegos
(1962) so de localizao ribatejana. Publicou tambm, entretanto, um ciclo de
romances que tm por cenrio o vale vinhateiro do rio Douro, um romance sobre
a vida e costumes dos pescadores da Nazar e alguns de atmosfera citadina
estes ltimos, numa perspectiva global, menos conseguidos literariamente.
Nos volumes de contos e novelas Nasci com Passaporte de Turista (1940),
Esplio (1944) e Histrias Auentes (1963) a congnita propenso poetizante
de Alves Redol, que, apesar do seu optado realismo social, tambm se inltra
assiduamente no romances, exprime-se com maior liberdade e mais superfcie,
caracterizando em peculiar estilo os estratos classistas e as personagens que os
representam. Foi a tendncia lrica que abriu caminho na sua obra de romancista
(e talvez com maior frequncia no conto) aos ingredientes romnticos e
fantsticos assinalados por Urbano Tavares Rodrigues em muitos passos da
obra. Mas este escritor manteve-se inalteravelmente el ao intuito de misso
combatente da literatura perlhado na juventude, perseverando com incessante
102
esforo no enriquecimento e justeza da verdade das suas personagens e no
apuro da escrita literria. Esse esforo consagra-se com mais evidente xito na
criao primacial que o romance Barranco de Cegos. Alves Redol deixou
tambm obra signicativa no teatro, com caracterizao mais audaciosa do
processo mas de essncia literria e humanstica muito semelhante dos seus
romances e contos.

103
O RAPAZ NO GOSTAVA DAS MOS

Talhado em angstia mansa, o rapaz entrou na taberna, pediu uma garrafa


cheia de vinho e regressou porta, levando o olhar fosco para alm das casas,
como se tivesse deixado atrs de si qualquer coisa fundamental ou viesse acossado
por um bicho fero. Parecia temeroso ou atormentado. Agarrava-se nas mos a dor
que no cabia dentro de si.
Altarro e enxuto, vergava um pouco pelos rins, onde a camisa fraldiqueira e
suja lhe saltava das calas derreadas. Tinha cara de menino assustado.
Ah vida! disse para a rua quase num grito.
Devia julgar-se sozinho com a vida para lhe atirar aquela acusao irada.
Quando reparou que tambm ns andvamos na mesma lia, quis perceber para
quem falava, olhou volta e atirou para o monte a sua pergunta:
Para que quer um homem a vida?...
Depois encolheu os ombros com resignao e desdm, indo sentar-se ponta
do banco encostado parede. Pegou na garrafa, mirou-a luz que vinha da porta
e voltou a pous-la no marmorite do balco.
Abanava as mos longas. Pensava que se as no tivesse no estaria ali to
longe. Pudera vir ao mundo lzaro das duas e andaria agora pela sua terra, batendo
feiras na ganhua de mendigo.
Era por isso que remirava as mos com desprezo.
Atirou com o chapu salgadio de suor para a nuca, arrancou o leno do
pescoo e limpou a testa. Fez aquilo para no car quieto.
Quando pegou de novo na garrafa teve uma cortesia:
So servidos?...
104
Uma escala de vozes respondeu-lhe obrigado!
Ento o rapaz limpou a boca com a manga da camisa e comeou a beber. Todos
voltmos a cabea para v-lo beber. Ele percebeu-o, sentiu que reparavam nele,
coisa que no lhe acontecia h muito tempo. Cheio de brio, mamou a garrafa
at ao m. Voltou a limpar a boca, estendeu a garrafa ao taberneiro e mandou-a
encher.
J agora preparo a cama... Dorme-se melhor em cima de vinho do que numa
esteira...
Largou o chasco e no sorriu. A verdade que tambm no lhe achmos
graa.
Ontem o gajo do automvel ps-me umas suas, o lho da me. S hoje
vi. Cheguei noite a Bucelas com uns camaradas... Viemos todos pr vindima do
patro Soisa, o Tino de Soisa. E o lho da me do chfer andou ca gente s
voltas e vai ao m pede cinquenta malris. Por uma lgua cinquenta malris. Se
calhar ao Soisa leva dez... Povo a roubar povo, no h coisa mais feia nem coisa
mais certa...
Num repente calou-se assustado. Fez agulha conversa:
A gente bebe vinho, mas no bebe juzo... O lho da me do chfer h-de
gastar o dinheiro que roubou nossa desgraa com remdios de botica... No lhe
quero outro mal... O meu mal outro...
Meteu a garrafa boca sem a gala de se limpar. Levou-a de um trago at
meio.
Andar quase dois dias de camineta, a butes e de comboio para arranjar
servio... E viva! Na minha terra um homem quer matar o corpo e no encontra.
No percebo porqu, encarou comigo. Vi que os olhos baos de tristeza se
iluminavam de raiva.
Terra pobre h-de dizer o senhor... Qual nada, qual qu! H l lavradores
com terras que nem condados. Metem-lhe dentro trs ou quatro feiras-atadeiras e
aquilo um bafo. A gente, os homens, acarretam lenha como as mulheres. Vo
jornas a dezoito malris. E para quem quer... Quem no quer madrao. Pra
quem no quer h lazeira ou cadeia...
Voltou a sentar-se.
Trabalho de mulheres pr gente repetiu duas vezes com escrnio. Pois
que quem l as mulheres; talvez elas um dia sejam tantas que acabem por cap-
los. Se a minha mo tivesse capado o meu pai no tinha eu vindo ao mundo...
No gostou da ideia e p-la mais ao jeito:
Mais valia que a minha me me tivesse desfeito a cabea numa parede
quando me viu nascer...
Na madorra do pranto seco, suspirou: Ah vida!...
105
Vossemecs no gostam da gente... A gente vem de to longe tirar o trabalho
aos que c moram. Est certo!...
O vinho comeava a trocar-lhe as voltas. Enrolavam-se-lhe as palavras e as
ideias.
Est certo, no! Porque no h coisa mais desgraada do que andar longe
da nossa terra a padecer... Os padecimentos na nossa terra doem menos; saram
mais depressa. Na minha terra no havia nenhum chfer que me levasse cinquenta
malris por meia lgua. o mesmo que roubar um cego...
Voltou a abanar as mos.
Vossemec gosta das suas mos?!... Diga l, homem!
As mos nunca me zeram mal...
E bem?!
Faziam-me falta...
Pois a mim, no. Se no tivesse mos, nunca abalava da minha terra.
Deixava-me morrer de fome, mas no abalava. Nunca abalava da minha terra...
Pedia esmola. Os lavradores sempre me davam alguma coisa. No me mandavam
apanhar lenha... Vossemec j viu um homem a apanhar lenha?... pior que ser
mulher magana em terra de soldados.
E cuspiu no cho da taberna com raiva de provocar um terramoto.

(De Histrias Auentes, 1963)

106
MANUEL DA FONSECA

(1911-)

De origem provincial e formao autodidctica, como Alves Redol, com


razes experienciais muito vinculadas no Alentejo, Manuel da Fonseca escritor
de tendncia lrica ainda mais acentuada, alis expressa numa obra de poeta
com importante signicao, no s no mbito do Neo-Realismo em que se
manteve inalteravelmente integrado como no da poesia portuguesa em geral.
Como prosador, os seus romances Cerromaior (1943) e Seara de Vento (1958)
representam com intensa sugestividade a ambincia humana dos pequenos
burgos e dos ncleos camponeses mais ou menos isolados do Alentejo, revelando
uma arte de composio narrativa vocacionalmente moldada com segurana
incomum e uma linguagem em que a conteno se conjuga melodicamente com
um halo potico peculiar. So essas, tambm, as qualidades mais relevantes
na obra de Manuel da Fonseca como contista: Aldeia Nova (1942), O Fogo e
as Cinzas (1951), O Anjo no Trapzio, (1968) e Tempo de Solido (1973). A
insinuao potica nas narrativas deste escritor, to decididamente engag
nos intuitos de combate social como os neo-realistas mais combativos, levou
Mrio Dionsio a acentuar que impossvel encontrar uma separao essencial
entre a sua poesia e a sua prosa de co, entre o seu conto e o seu romance,
entre as personagens das suas narrativas e as da sua poesia. E, no entanto, a
prosa novelstica de Manuel da Fonseca no cede em nenhum passo retrica,
sentimental ou panetria, e ao empolamento, contm-se numa pureza e rigor
exemplares, alcana a expresso do dramtico com sobriedade que mais adensa
a sua fora expressiva e justica a qualicao valorativa de classicismo
que lhe foi dada pela crtica mais insuspeita. O sentido de fatalidade, a marca
intrnseca de solido inelutvel das pessoas e a nota frequente do picaresco, bem
caractersticas da co portuguesa, enriquecem na sua essncia signicante a
107
obra deste escritor de poucos mas aliciantes livros. O seu regionalismo, como
armou Jorge de Sena, chamado a exprimir uma viso generosa da vida
uma viso em que se conciliam com eloquncia rara realismo e poesia.

108
MARIA ALTINHA

Todos os anos, mulheres que vivem l para o sul, ao p do mar, atravessam as


serras e espalham-se pela plancie, para a monda e para o trabalho dos arrozais.
Trazem cantigas alegres e falas rumorosas, e o povo das vilas junta-se nos largos
para as ver passar a caminho das herdades. E, nos primeiros dias da faina, hora a
que o manajeiro tem as palavras mais desejadas para os que andam curvados entre
as espigas ou enterrados no lodo das vrzeas, quando o sol desaparece e cigarras
e ralos arrastam um traquinar que se perde pelos longes, as mulheres de ao p do
mar cantam coisas novas e coloridas.
Em volta do lume, malteses e ganhes calam as vozes pesadas e cam-se a
ouvi-las, com os olhos parados na noite, pensando nas terras da beira-mar, l
donde elas vieram. Que as cantigas das moas do sul tm o brilho das guas e
a vivacidade das ondas. E as suas gargalhadas so naturais como um pincho de
gua trespassado de sol, saltando numa rocha. Elas trazem a frescura do mar para
a charneca desolada.
Por isso o povo das vilas se junta nos largos para as ver passar, e malteses e
ganhes cam calados a ouvi-las, depois da faina, quando a noite se derrama de
estrelas, pela terra.
Maria Altinha pela primeira vez saiu da aldeia e a longa viagem foi uma coisa
nova para ela.
Ficaram para trs as serras e amendoeiras e caminhos murados e hortas de terra
solta com rvores carregadas de frutos. E os laranjais e as casinhas brancas e as
noras chiando pelas encostas. E o sussurro azul embalador do mar e o cheiro do
mar que o vento trazia at janela do seu quarto. E a me fazendo cestinhos de
109
palma porta da casa, e os irmozinhos vendendo-os pelas vilas tudo, tudo cou
para trs, l para longe... Agora, era aquele descampado raso e poeirento, com
grandes montados de onde em onde, e sempre raso, bravio e deserto.
Mas que importava? Depois voltaria para a aldeia com o dinheiro ganho no seu
novo trabalho, e nem a me nem os irmos passariam fome quando viessem os
frios do Inverno.
... Logo que chegasse a casa, a me abra-la-ia chorando, e ela, com um
sorriso rasgado, havia de mostrar o seu saquito de chita cheiinho de dinheiro. E
pela calada da noite, com a chuva batendo na telha e o vento correndo l por fora,
em volta da lareira ouvi-la-iam contar as coisas daquelas terras; os irmos fazendo
perguntas e olhando-a de olhos brilhantes, admirados das respostas.
Depois, o mais novinho, vencido pelo sono, tombaria a cabecita para o seu colo
e o outro logo a seguir tambm. S o mais velho teimaria em ouvir at chegar
aquele peso maior que as suas foras a puxar-lhe as pestanas e a fechar-lhe os
olhos. Ela e a me iriam deit-los e deitar-se. E a chuva e o vento no fariam
medo porque, com um ou outro trabalho que aparecesse, as economias levadas da
plancie chegariam para todo o Inverno, sem que a fome entrasse em casa.
Por isso a sua voz clara trasbordava de alegria quando cantava e os malteses
quedavam-se a ouvi-la at o sono vir.
Valdanim, mal engolia o naco duro, arrastava-se para o p da casa pegada ao
celeiro onde dormiam as mulheres. Prli cava, de. cigarro apagado, a olhar Maria
Altinha e a sorrir-lhe; uns dentes enormes debaixo do bigode, os braos pousados
sobre os joelhos.
Vinham as cantigas, os risos as mulheres do sul venciam os homens da
plancie naqueles primeiros dias.
Mas, agora, tudo mudava a pouco e pouco. J a malta arrastava um coro pesado
pelas quebradas e a voz das mulheres esmorecia. Comeavam a sentir na carne
a faina dolorosa; desde a manh noite, debaixo de um sol abrasador. O ar
escaldante da plancie secara a frescura do mar. S as cantigas dolentes soavam
pela calada da noite.
E Valdanim tomava flego deitando a cabea para trs, os olhos tos em Maria
Altinha como se .cantasse s para ela, embora a sua voz se perdesse na toada igual
das outras vozes da malta. Embora; Valdanim cantava para ela e, j quando a via,
no era s aquele sorriso parado, uns dentes enormes debaixo do bigode era
tambm uma frase atrevida:
Maria Altinha, uma noite destas hei-de falar-te a preceito...
Mas a moa no respondia e Valdanim enrolava-se na manta, pensando que
um caso daqueles no queria conversa, mas sim uns braos bem fortes em
110
volta da cintura de Maria Altinha... Um torpor tomava o corpo do homem,
parecia afundar-se. Puxava a manta para a cabea, os olhos voltados para o
cu fechavam-se lentamente. Num momento era s Maria Altinha em todos os
sentidos. E adormecia. Um sono toda a noite, sem pesadelos nem sonhos. L
pela madrugada, aquele despertar doloroso, o corpo torcendo-se todo numa nsia
revoltada. Mal acordado ainda, toca a andar com a malta a caminho da vrzea.
Era a gua fria do charco, subindo pelas pernas, que os acordava a todos de
vez.
Pareciam condenados.
O cu baixo limitava, em volta, o horizonte escurecido. Outeiros e cabeos nus,
onde em onde um sobreiro engelhado com os ramos torcidos, solitrio. No meio
da vrzea, pernas enterradas at s coxas, cintura dobrada, em la, as mulheres
metiam os braos na gua remexendo no fundo. Aqui e alm um homem.
Ds que o sol vinha desfazendo os vus hmidos da madrugada e depois
queimando como lume at que se ia embora, as mulheres, de saias repuxadas
entre as pernas, mangas arregaadas, chapinhavam no pntano mondando o
arroz.
Mosquitos zumbindo riscavam a gua barrenta, um fedor acre entupia as
narinas e parecia entrar por todos os poros da pele. Com o meter das mos para
o fundo, pequeninas ondulaes partiam, concntricas, ao redor dos braos, e
bolhas de ar vinham gorgolejando e rebentavam superfcie, avivando o fedor,
mesmo por baixo do nariz. Porque o rosto das mulheres quase roava no lodo
quando davam um passo em frente, farrapos de madeixas cadas sobre a testa
oscilavam pingando. E as mulheres acamavam os cabelos e coavam as babas dos
mosquitos com os dedos engelhados.
O capataz, na vala, olhava duro, mandando. Aqui e alm, um homem. O sol de
brasa pegado nas costas, o horizonte escurecido.
Pareciam condenados.
Por um anoitecer pesado de tristeza, campos fora s se ouvia o ralhar das
cigarras e grilos. Maria Altinha sentiu as primeiras febres. Esteve dez dias sem ir
vrzea. Dez dias sozinha, tremendo de frio e suores em cima da saca, tapada com
a manta, a um canto da casa da arrumao. Vinha o carreiro da vila com a caixinha
redonda cheia de hstias e Maria Altinha sem ir monda...
Um dia fez como os outros: meteu-se no arrozal amarelinha de sezes. Quando
comeavam a bater-lhe os dentes saa da gua e deitava-se na terra, a tremer dos
ps cabea. Era um quartel perdido; o capataz l estava traando o risco no
papel.
Ao chegar sbado, aquela semana tivera s trs dias para ela.
111
Valdanim, uma tarde, saiu da vrzea muito antes do sol-posto. Que no podia,
que tinha uma dor. O capataz consentiu m cara, riscando o papel.
Valdanim, coxeando, tomou o caminho do monte. Mas passada a encosta
deixou de coxear e acelerou o passo.
Nuvens escuras de trovoada toldavam o cu. Um bafo morno tocava na pele da
malta da monda, arrepiando-a de suores frios.
Valdanim corria para o monte.
Para trs, cada vez mais para trs, cavam homens e mulheres enterrados no
arrozal, dobrados, com as mos remexendo no fundo.
Pareciam condenados.
Deitada sobre a saca, Maria Altinha dir-se-ia adormecida.
Nesse dia nem se levantara para ir ao trabalho. Viera aquele tremor brusco
e, sozinha no monte, lutara tentando cerrar os dentes, crispando os dedos no
fato. Um frio de morte tomava-lhe os membros e os dentes batiam acompanhados
pelo gemido estrangulado que lhe vinha do peito. Em vo, numa luta dolorosa, o
corpo retesado forava por dominar os movimentos desordenados e contnuos. E
sozinha: longe era a casa e longe era a me!...
Depois o frio desapareceu lentamente e com ele o tremor. Ficou extenuada,
o corpo quebrado, a cabea latejante como se ardessem dentro labaredas de uma
fornalha. E aquele calor foi descendo para o corpo. Ardia; o suor repassava,
envolvia-a toda numa calda pegajosa. Pesadelos, um rudo colossal ia e vinha, ora
intenso, insuportvel, ora brando e caricioso, adormecedor. Falava gesticulando,
chorava, ria. Os olhos escancarados tentavam ver, mas, no escuro, s passavam
coisas disformes e rpidas, alucinantes. L vinha o rudo crescendo, crescendo
at estalar como um trovo dentro do crebro. E passava esvado num sussurro
longnquo. Tambm o calor se fora e os pesadelos terminavam. Ficaram aquelas
camarinhas de suor e o corpo sem foras para nada. Agora, Maria Altinha dir-se-ia
adormecida.
E mal ouviu uns passos cautelosos que se aproximavam e uma voz que lhe
soprava perto dos ouvidos. Mos acariciavam-lhe os cabelos, o rosto e os seios.
Mos enormes. Tudo vago, embalador como um sonho. Depois aquela dor aguda
no ventre; uma punhalada rasgando-a!
Maria Altinha gritou, mas uns lbios grossos amachucaram-lhe a boca numa
nsia brutal.
Agora, o povo das vilas nem conhece as mulheres que voltam das searas e dos
arrozais quando as v passar, no largo, de jornada para o sul. Vo sequinhas e
amarelas como se fossem velhas sem uma fala, sem um sorriso o rosto parado
debaixo do leno.
112
E aquela moa que tanto cantava e ria, prli vai, murcha, calada como uma
sombra. S l por dentro os pensamentos se enrodilham numa amargura sem m...
Vir o Inverno com chuvas e ventos e vir a fome para aquela casinha humilde
da aldeia... E o irmozito mais novo h-de tossir toda a noite e a me h-de chorar
pelos cantos e nada, nada ela poder fazer!...
As outras mulheres parecem pensar o mesmo; to caladas e sumidas nos lenos
que mal se lhes v a cara.
Por isso o povo das vilas sai dos largos desiludido e costuma dizer daquela
gente que vem do sul, l de ao p do mar:
todos os anos o mesmo. Vm cantando e voltam chorando...
(De Aldeia Nova, 1942)

113
LUS FORJAZ TRIGUEIROS

(1915-)

na crnica, no ensaio literrio e na crtica, sempre com largas aberturas


ao desenho de guras namente matizadas, insero de autores e obras nos
seus peculiares espaos de vida e descrio de paisagens em que se enquadrou
humanamente experincia histrica, que Lus Forjaz Trigueiros tem assumido
lugar de maior relevo na literatura e na cultura portuguesas contemporneas. Esse
predomnio de gneros no-ccionistas tem contribudo para deixar em injusta
sombra, sobretudo para pblicos leitores mais vastos, a qualidade relevante do
contista que em Caminhos sem Luz (1936), Ainda h Estrelas no Cu (1942),
Boa Noite, Pai (1955) e O Carro do Feno (1974) deixou demonstradas notveis
virtualidades, passando-as realizao escrita, de composio e de estilo. Numa
linha que, sob aspectos fundamentais, pode apontar-se como marcadamente
queirosiana, caracterizada pela elegncia, em que se inltra com frequncia uma
discreta ironia, a criao narrativa deste escritor consegue penetrantes efeitos.
So eles revelados, de modo mais agrante, na condensao em breves traos
duma situao, de um caso humano ou de um episdico relance de personagem.
Como apontou Joo Gaspar Simes, a clareza do estilo, a desenvoltura de
ideias, o trao concreto, o comentrio irnico, a profundidade subjacente
aparncia supercial, constituem a especca atmosfera em que se move a
personalidade criativa de Lus Forjaz Trigueiros. Nesses aspectos, foi aparentado
tambm maneira novelstica do grande escritor brasileiro Machado de Assis
e da estirpe que o tem continuado. E se a sua prosa de contista se apresenta
acentuadamente intelectual na expresso comunicada, com o crtico e o cronista
observador a subjugarem o contexto ccional, nem por isso se desvanece atravs
dela a sensibilidade que se conjugou na sua origem, imprimindo vibrao e
contida emoo aos casos narrados. Sem connamentos optados de escola
ou corrente literria, a obra de Forjaz Trigueiros testemunha nos seus traos
fundamentais uma das vertentes da moderna novelstica portuguesa: a mais
114
voltada para um esprito e um gosto isentos de provincianidade, na representao
de ambientes citadinos em que o circunstancial e o local podem ser mais
prontamente universalizveis.

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DESPORTOS DE INVERNO

Os largos vidros embaciados era como se transpirassem de frio. Exactamente:


transpiravam de frio. Mas, l dentro, as pequenas mesas, apesar de muito juntas
para aproveitar o espao exguo, no ajudavam a intimidade dos clientes entre
si. Somente os que se ajeitavam, num esforo, em cada uma delas, esses, tinham
de falar em voz baixa para no serem ouvidos pelo vizinho. Conspirao de
pastelaria, mais inofensiva decerto que a de caf.
Mas ningum conspirava de coisa nenhuma. S que o portugus mdio
discreto, no gosta de dar nas vistas nem que os outros saibam da sua vida.
No havia sequer jovens casais entendidos, que j dispensam hoje a conversa
de ch e bolos, o que se compreende. Mdia etria, como se usa dizer agora
dos frequentadores da Smarta naquela tarde? A dos quarenta anos para cima,
isto , gente de idade, os mais velhos talvez ainda presos a hbitos, herdados ou
adquiridos, dum certo tipo de conversa gratuita e nisso que ela diferente, ali, da
de outros cafs ou pastelarias, seja a conversa idealista ou tumultuosa, quezilenta
ou ressentida, frustrada ou desiludida.
H uma dignidade sui generis na Smarta, com sua ambiguidade de freguesia
ou funo. Um certo burguesismo inofensivo na plataforma do ve o clock tea,
senhoras serdias, cansadas das compras nos saldos do bairro ou que, vindas da
Baixa, esperam ali o m da hora de ponta para conseguirem um lugar no autocarro
e lograrem uma espcie de comunicao humana nem que seja s nos olhos
curiosos, muito atentos aos outros, e que lhes falta na exiguidade dos dois quartos
assoalhados onde vo enclausurarando seus dias sem cor. L em baixo, ao balco,
diferente, e rapazes ou raparigas muito novos ainda, ou jovens empregados na
116
rea, que emborcam a qualquer hora, num bom intervalo fugidio, o seu galo
nutritivo, que depois do trabalho viro ao encontro com o amigo exigente ou
matine das seis e meia e acabam as mais das vezes por jantar apenas outro
galo, ou, em casa, a sopa de pacote. Na cave do restaurante, a maioria
composta de turistas mdios, estrangeiros que at no Inverno nos cobiam o sol,
pessoas dotadas do bem inestimvel de acharem graa a tudo, saborearem tudo.
A cave da Smarta, essa tem mais carcter, podia ter sido uma espcie de mini-
Lipp lisboeta, com suas ceias nocturnas, depois do teatro ou do cinema, quando,
volta de 1960, ali se juntavam, noite fora, escritores ou artistas, uma certa bomia
resignada a um certo conforto. Mas a ambio, modesta embora, acabou por ser
vencida pelas exigncias dos horrios de trabalho do pessoal.
Muito apertadas, pois, as mesas, naquela espcie de palco sem cenrio
nem vedetas, gurantes apenas, e, junto da que eu escolhera, duas senhoras,
acima dos meus clculos, falavam pouco uma com a outra e iam olhando os
circunstantes, para l da pintura dos olhos, j cansada quela hora. Noutra
mesa, trs sujeitos incaractersticos: dois liam desinteressadamente os vespertinos,
enquanto o terceiro olhava o frio atravs dos vidros e, silencioso, pedia de vez em
quando um dos jornais para ver, distrado, os principais ttulos. E logo o pousava
de novo sobre a mesa ou o restitua ao vizinho, esvaziando o resto da garrafa de
cerveja, esquecida. As duas senhoras da mesa contgua no se contentavam em
conversar muito; ambas faziam grandes gestos ilustrativos, exibindo feias unhas
demasiado vermelhas a rematarem fatigados dedos pr-gotosos. Um visco de m
de dia sem imaginao.
O meu amigo chegara, procurara mesa, divisara-me de longe, numa alegria:
Posso sentar-me aqui, contigo? Podia, pois. Conhecemo-nos desde midos,
andamos juntos, adolescncia fora, mas a verdade que no o encontro muitas
vezes nos caminhos duma Lisboa to dispersa e, por mim, tambm no fao
muito por isso. As amizades que foram um erro do tempo so s vezes as mais
perdurveis: no h hiptese de decepo ou atrito, por mais diferentes que sejam
os gostos ou os caminhos da idade adulta. Sei vagamente que faz negcios, tem
mulher e lhos, vive bem. So outros os seus interesses, nunca indaguei muito
deles, mas quando nos encontramos ou me v ao longe na rua e corre para mim,
para no me deixar fugir, sempre, da parte dele, a mesma satisfao de ntimo
feliz, o mesmo tuteamento a que correspondo desajeitado, as mesmas evocaes
dum passado que gosta de saber comum: Lembras-te, p, quando fomos uma
noite beber para aquela tasca das Portas de Santo Anto? Apanhmos um pifo!
(O meu amigo no tem s uma memria incmoda, esfora por manter-se jovem
e aprendeu a terminologia dos lhos). Sentou-se, mandou vir uma cerveja, passou
revista sala, inquiridor, como se isso lhe fosse um ritual. E, realmente, era-o, pois
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logo me disse, sem mais nem menos, com experincia de conhecedor desiludido:
Isto hoje est fraco. Mas naquela mesa l em baixo, j viste... No percebi.
Naquela mesa l em baixo, desconcertava-me. Mas entendi pouco depois, era a
assistncia que estava fraca, muitos homens, a maioria das senhoras acima da
tal mdia dos quarenta anos. Fraco. Mas j ele insistia: Repara bem, naquela
mesa l em baixo, esquerda. Reparei, z-lhe a vontade. Era efectivamente a
nica senhora ali, naquela tarde, que valia a pena olhar... Jovem ainda, esbelta,
duma elegncia simples, nem se tornaria notada, apesar da sua juventude, a quem
fosse ali, ao contrrio dele, apenas para fugir ao frio ou entreter o estmago at
ao jantar. No entanto, eu conhecia-a de a ver na pastelaria, notara mesmo logo
primeira vez que os culos escuros e a natural descrio lhe davam certo ar de
mistrio e sobretudo reparara no carinho com que se entendiam, ela e o mido de
nove ou dez anos, no mais, que a acompanhava sempre no rpido ch e bolos que
iam ali tomar. O meu amigo pensou o mesmo porque nem me deixou dizer nada,
tocou-me no brao, condente: J me notou, no tira os olhos de mim, logo que
me sentei dei por ela, natural. Deve ser me e lho, ou ento irm mais velha,
mas bem que se farta! (Eis um sintoma da idade que lhe escapou, pensei eu.
Estava espera de que ele a achasse gira, muito gira. Foi mais ou menos na nossa
juventude ia reectindo porque ele no me deixava falar que se comeou a
dizer que uma mulher estava ou era muito bem. E era agora a nossa juventude
que, despaisados verbais, vinha agora ali, de repente, superfcie da conversa.
Felizmente ele no percebeu, tinha mais em que pensar.)
A partir de ento foi a antiga manobra, nem sequer discreta, uma espcie
de desporto fora de moda, e eu, entre envergonhado e aborrecido assistindo
cena. Abrira o jornal frente dos olhos para disfarar ou para, baixando-o
de vez em quando, chamar a ateno da jovem para o manejo quase ingnuo,
decerto ingnuo. No entanto, com alguma curiosidade, eu esperava o desfecho do
episdio.
Dez, vinte minutos, correram na tarde mole, de anonimato e pastelaria. Os
olhos do meu amigo iam inchando, gulosos, conseguira tudo o que pretendia:
reduzir-me condio obscura de espectador do seu xito, da sua juventude, de
como, anal, o tempo nada tinha mudado, pelo contrrio tudo lhe continuava fcil.
Insistia: No olhes para l, no v ela julgar que eu te chamei a ateno, mas
quando puderes repara que no tira os olhos de mim... Hesitou, foi diplomata:
Ou pelo menos da mesa... Mas do lugar onde est no te v, no para ti que ela
olha. para mim, j percebi, at j mandou o pequeno ao balco buscar qualquer
coisa para car mais vontade. No a conheces? S de vista, daqui, vem c
muitas vezes.
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Pouco depois a nossa vizinha levantou-se, deu a mo ao pequeno, atravessou
serenamente a sala para sair. O meu amigo acenava para o empregado, dispunha-se,
tambm ele, a retirar-se, a no perder a oportunidade de abord-la, falar-lhe,
ajud-la, decerto, a encontrar um txi, o resto seria fcil, ele no mo dizia mas
eu ia-lhe lendo na expresso nervosa. Alis, conrmou-mo quando me pediu: Se
no te importas, paga-me a despesa, no posso perder isso... E o empregado, que
no h maneira de vir! Perguntei-lhe, severo:
Onde vais, com tanta pressa?
Pois onde hei-de ir? Ter com ela, falar-lhe, perguntar-lhe o nmero do
telefone...
Deixa-te disso! Temos muito que conversar ainda e comecei a pensar em
assuntos possveis, no encontrei nenhum para exemplo , coisas importantes!
Indignou-se:
Nada pode ser mais importante do que isto, desculpa! No viste como ela
estava interessada?
No vais. Sou bastante teu amigo, percebes?, para no te deixar ir. Se
perderes esta oportunidade ters outras, bem melhores, asseguro-te!
Devo ter sido categrico, porque voltou a tirar o sobretudo que j tinha vestido,
p-lo outra vez na cadeira do lado, e inquiriu-me, com certa inquietao?
Tu conhece-la? No me pareceu... Desculpa se z asneira... Devia ter pensado
que ela estava a olhar para ti, mas com o mido ao lado, no podia falar-te.
Desculpa.
Estava realmente perturbado, esvaziava o resto da cerveja no copo, para cobrar
nimo.
Hesitei, por simples piedade, se devia, ou no dizer-lhe tudo tanto mais que
tudo era anal to simples.
Foi a minha vez, mas por outras e bem diferentes razes, de abrir o jornal,
de percorrer os ttulos sem sequer os ler, de procurar certa naturalidade pouco
fcil. Mas vi-o to desassossegado, to inquieto que lhe expliquei com a maior
simplicidade que conhecia muito bem de a ver ali, como j lhe dissera, a esbelta
senhora; que os empregados me tinham dito em tempos que ela ia l quase
todos os dias com o pequeno e que este a acompanhava sempre, lho ou irmo,
nem o sabiam, porque ela era cega e por isso usava culos escuros assim to
carregados. E acrescentei que no podia queixar-se de no o ter avisado, pois, no
seu entusiasmo, ele nem me deixara dizer nada.
Despediu-se da a pouco, embaraado. Desde ento no voltei a encontr-lo.
Ou antes: no voltou a encontrar-me.
(De O Carro do Feno, 1974)

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MRIO DIONSIO

(1916-)

Doutrinador primacial, desde muito jovem, das correntes literrias


renovadoras que tomaram corpo, pelo nal dos anos 30, no Neo-Realismo,
ao mesmo tempo que iniciava a sua obra de poeta e crtico, Mrio Dionsio
armou-se como narrador novelstico com denida personalidade ao publicar
em1944 o livro de contos O Dia Cinzento (reeditado em 1967 e incluindo
novos textos daquela poca). O intuito ento armado pelo Autor era o de
acordar naqueles que o lessem a conscincia da injustia social e a necessidade
de agirem contra ela. Assim alinhado com a vontade de empenhamento da
sua gerao, veio demonstrar com os seus contos que o Neo-Realismo no se
conna denncia e anlise da explorao dos pobres nos meios rurais, que
predominavam na obra de co dos seus companheiros de caminho; os temas
de O Dia Cinzento so de ambincia urbana bem acentuada e neles se insere uma
preocupao que no meramente complementar de observao psicolgica ou
mesmo uma expresso intelectual que lhes enriquece o contedo e o sentido.
Por isso, precisamente, acentuou Mrio Sacramento que a dialctica interna
gerao de 40 teve e tem no autor deste livro um dos seus marcos fundamentais.
E, em direco similar, Fernando Namora apontou no livro uma densidade
de atmosferas a que no falta um disciplinado regramento. Entretanto,
Mrio Dionsio dedicou grande parte da sua actividade intelectual crtica e
interpretao de artes plsticas, publicando diversos estudos nesse sector e, com
maior relevo, o amplssimo ensaio A Paleta e o Mundo (2 vols., 1956-1962),
alm de livros de poesia em portugus e em francs. S em 1969 reapareceu
como prosador e ccionista com o romance No H Morte Nem Princpio,
renovando (ou inovando) profundamente o estilo narrativo, numa cadncia
evocadora que ui como corrente de conscincia na reconstruo em escrita
da vida experimentada, de desiluses sofridas entre sonhos que se esvaem ou
ressuscitam e de ambientes sufocados no tempo portugus de ditadura repressiva.
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Sensibilidade contida, rigor intelectual, ironia disseminada, indagao da vida
interior no prprio decurso do circunstancial ou do simplesmente casual,
individualizam a composio novelstica e a linguagem deste escritor. Sob
mltiplos aspectos ele um dos mais representativos da sua gerao arduamente
posta prova.

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A LATA DE CONSERVA

A rapariga loura deixou-se car em frente do espelho. Enterrou os dedos ao


acaso pelos cabelos, viu-os cair, preguiosos, para a testa, e puxou-os para trs
de modo que voltassem a cair, preguiosos, para a frente. Cingiu ao corpo o robe
branco de l dos Pirinus e deixou-o desprender-se. Tanto fazia.
O sol de Inverno entornava-se pela casa dentro, sobre aquele desalinho em que
os amigos tinham deixado tudo na vspera. Ainda por cima o Roberto entornara
um cinzeiro na carpette antes de sair. Que maada! Porque que a Margarida no
viera ainda arranjar a sala? Talvez fosse cedo. Dez e meia. Era ainda muito cedo.
A Margarida tinha muito que fazer antes de arrumar a sala. Nem era preciso que
aquilo estivesse em ordem antes das quatro ou cinco da tarde. Ningum aparecia
nunca antes das cinco.
Uma cara no espelho. Passava os olhos indolentes pela cara. A sua cara. A testa
onde uma ruga despontava, os olhos claros que bem podiam ser um bocadinho
maiores, as faces agora ligeiramente encovadas, a boca descorada. Os cabelos;
sim, eram bonitos. Tinha uma fora prpria, uma vida prpria, com a mecha
rebelde que caa para a frente, brilhando no vinco da onda. Puxou-os para trs de
novo e de novo os deixou cair, preguiosos, para a testa. Cingiu o robe. Deixou-o
desprender-se. Tanto fazia.
Pela porta entreaberta, ouvia o barulho da gua a cair na banheira. E, mais
longe, do outro lado do corredor, os passos curtos e apressados da criada. Invejava
aquela vida s vezes. Toda a tarde para dentro e para fora. Fazer qualquer coisa.
No dar pelo tempo.
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Os olhos pousavam nas coisas ao acaso. Cinzeiros cheios de cinza e de pontas
de cigarro marcadas de bton, jornais, almofadas e cadeiras, fora do lugar, clices
sujos. O banho ia levar, como sempre, um tempo imenso a preparar. Sentou-se
num maple, pegou num livro qualquer que cara em cima da mesa, abriu-o,
folheou-o. Voltou a p-lo na mesa. Voltou a pegar nele, a folhe-lo. Fazer qualquer
coisa enquanto a gua corria. No dar pelo tempo.
Uma das abas do robe escorregou mansamente dos joelhos at que uma das
pernas da rapariga loura cou completamente descoberta. Deixou-a assim. Uma
perna comprida, branca, lisa, macia, embora magra. J estava a precisar de rapar
os plos outra vez. Folheava o livro. Lia uma frase aqui, outra alm. Uma pgina
ou duas. Que lhe interessava aquilo? Uma manh inteira sua frente. Ningum
antes das cinco.
Se telefonasse? Mas o Roberto assustar-se-ia. Suporia que estava a sentir-se
mal e caria irritado ao perceber que telefonara sem motivo, s para matar o
tempo, para lhe fazer perder tempo. Tanto tempo! Faltava ainda tanto tempo!
Faltava sempre tanto tempo para tudo!
Pousou a mo no ventre e ps-se a tacte-lo, com cuidado, com carinho.
Ficou a acarici-lo com as mos magras e longas que pareciam feitas para aquilo
mesmo. Sete meses ainda! O Roberto dizia que ele seria o que ela fosse durante
aqueles sete meses. No devia entregar-se a esse enfado em que andava sempre.
Devia sentir-se alegre, forte, decidida. Devia evitar todos os choques, todos os
aborrecimentos. Devia, devia, devia.
Levantou-se, atirou o livro para cima do maple e apertou o robe novamente.
Encostou-se janela com o cortinado na mo, para ver a rua, o movimento, a vida.
Esquecer a sala desarrumada, o cinzeiro que o Roberto entornara, os copos sujos,
os livros, os jornais, o rudo da gua a cair na banheira.
De manh, a rua tinha mais movimento. Mas sem interesse. Altas rvores, nuas
de folhas, mortas. Criadas de aventais claros e sacos de compras. Um ou outro
homem apressado. A mercearia do Soares na esquina e a pequena tabacaria em
frente com a montra cheia de embalagens vistosas sempre iguais. Era uma rua
calma, muito larga, batida pelo sol, onde ele havia de passear num carro que ela
prpria empurraria ou a Margarida.
Do outro lado do vidro, a manh estava fria. As raparigas que entravam e saam
da mercearia do Soares tinham o nariz vermelho, esfregavam as mos, corriam.
Dois garotos descalos, que passaram por baixo da janela a apregoar cautelas,
tinham tambm os narizitos vermelhos. Mal ouvia o prego. Uma criada parou
a tagarelar com os rapazes, no tinha f naquele nmero. Como todos os dias.
rvores nuas, a mercearia do Soares na esquina, a tabacaria mesmo em frente.
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Mas, de sbito, a rua animou-se. Um rapazelho saiu da mercearia como
uma echa e, logo a seguir, a correr tambm e a gritar, o prprio Soares. Que
homenzinho ridculo, o Soares, assim a correr e a gritar. Porque ele gritava! A
rapariga loura reconheceu no rapazelho um dos garotos que acabavam de subir a
rua com as cautelas. E o Soares devia gritar com muita energia porque, atravs do
vidro, ela percebeu perfeitamente que dizia: Agarra! Agarra!
Donde surgiu tanta gente? Tanta gente a correr e a gritar: Agarra! Agarra!?
Mesmo sem abrir a janela, a rapariga acompanhava a cena toda. Pessoas acudiam
s portas, juntavam-se em grupos na esquina, a perguntar, a comentar, muito
excitadas, enquanto na mercearia um empregado novito, de guarda-p, gesticulava,
repetindo a quem ia chegando o que se tinha passado.
Apanhariam o garoto? A rapariga comeou a desejar que no. Achava ridcula
a gura do Soares, muito gordo e muito baixo, a correr desajeitadamente,
congestionado, aos gritos. E aquela fria toda contra uma criana punha-a, sem
saber porque, do lado dela.
Mas j as cabeas se voltavam para o comeo da rua. Um polcia trazia o
garoto bem seguro por um brao. E, um pouco atrs, rubro de indignao e de
cansao, o Soares mostrava para a direita e para a esquerda um pequeno objecto
que explicava tudo. Era uma lata de conserva.
O garoto roubara. Como arranjara coragem para fazer aquilo? Entrar numa
loja, estender a mo, roubar. Quando vira o Soares, de cabea perdida, aos berros
no lhe ocorrera que poderia ir atrs dum ladro. Porque o garoto roubara. Aquele
sujeitinho roubara, era um ladro.
Faziam agora porta da mercearia uma pequena reconstituio do crime.
Percebia que o rapaz queria dar qualquer explicao que ningum aceitava.
Chorava, protestava, desfazia-se em lgrimas. Mas que queria o pobre explicar?
E, de repente, deu um saco, tentou fugir. Ento o guarda assentou-lhe a mo no
pescoo, sacudiu-o e, afastando os curiosos levou-o pela rua acima.
Vai lev-lo, meu Deus!, disse a rapariga loura. Para que fez ele aquilo?
Os grupos dispersaram-se. Cada um voltou sua vida. Os passeios caram
novamente tranquilos. Novamente o silncio, as rvores imveis, a mercearia do
Soares na esquina com o aspecto de sempre, a tabacaria mesmo em frente.
Nos ouvidos da rapariga loura, o choro desesperado do rapaz das cautelas
no cessava. E ps-se inquieta. Ter-lhe-ia aquilo feito mal? O Roberto dizia
que ele seria o que ela fosse naqueles sete meses. Devia sentir-se forte, alegre,
decidida. Devia evitar todos os choques, todos os aborrecimentos. Qualquer
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emoo violenta poderia prejudic-lo. Passava as mos no ventre a acarinh-lo, a
proteg-lo. Para que fora janela? Porque no cara a ler? Porque no telefonara
ao Roberto? Que iria acontecer-lhe por causa dum garoto qualquer que andava a
roubar latas de conserva?
A Margarida no corredor:
O banho est pronto, minha senhora. A trinta e seis graus.
Est bem respondeu a rapariga loura sem se voltar. Vou j.
Voltou-se. Deixou cair a mo. E o cortinado desprendeu-se e cou a oscilar
com indolncia nas suas longas pregas transparentes.

(De O Dia Cinzento e Outros Contos, 1967)

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VERGLIO FERREIRA

(1916-)

Inicialmente ligado ao Neo-Realismo na sua primeira fase, em que marcou


presena de relevo com os romances O Caminho Fica Longe (1943) e Vago J
(1946), Verglio Ferreira percorreu desde o nal da dcada de 40 uma inquieta
evoluo que j se reecte no romance Mudana (1954) e se arma plenamente
em Manh Submersa (1954) e Apario (1959). O existencialismo de Sartre
e o voluntarismo anarquizante de Andr Malraux foram as tnicas inuenciais
dominantes nessa trajectria, integradas numa autenticidade manifesta de
temperamento pessoal. Com ela continuou a evoluir para uma perturbada e
amarga viso do mundo e do homem sob o signo de um essencial negativismo
pelo absurdo que tudo envolve. Romances mais recentes, como Ntido Nulo
(1971) e Rpida a Sombra (1975) do conta do caminho percorrido pelo Autor,
a traduzir uma grande densidade psicolgica e com veemncia de estilo em
que exprime as suas preocupaes obsessivas do desencontro das almas, da
solido irremedivel, da presena dominadora da morte em todos os passos
da vida, do angustiado refgio na evocao da infncia. Buscando a verdade
humana dos outros atravs da sondagem de si mesmo, Verglio Ferreira deu
sua obra o cunho quase incessante de um individualismo para o qual encontrou
a linguagem literria adequada uma linguagem que ao mesmo tempo
potica (impressionista-expressionista) e ensastica (no sentido existencial
duma experincia profunda e vital, como a deniu Jacinto do Prado Coelho.
A obra do ensasta, em que se destacam Cartas ao Futuro (1958), Espao do
Invisvel (3 vols., 1967-1977) e Invocao ao Meu Corpo (1969), constitui um
contraponto especulativo e crtico do romancista, em nvel de grande uncia
de pensamento e com largas margens de autoanlise. As narrativas curtas de
Verglio Ferreira foram editadas em 1976 sob o sumrio ttulo de Contos e
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desvendam, em alguns casos, novos prismas da personalidade criativa do escritor
na apreenso dramatizante do real. O seu conceito de liberdade incondicionada
da arte revela-se nesses textos sob formas por vezes mais positivas de observao
das verdades humanas alheias e de menor egotismo.

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ME GENOVEVA

Todas as tardes ela vinha com o cesto da costura para o sol do corredor, se a
tarde era de Inverno, ou para a sombra da gueira, se era nos calores do Vero.
Ali estava agora, direita ainda, frente ao vento da tarde funda de Agosto, um vento
largo e calmo de cu e de montanha. Mas to grande era a certeza de sossego
sua volta, to aberta de paz e de sinal, que a cabea lhe tombou para o tronco
da gueira e as mos e os olhos se entregaram uno de uma morte merecida.
Quanto tempo? Abriu os olhos e sentiu-se verdadeira no seu corpo fatigado, como
fora verdadeira toda a dor que conquistara.
Me Genoveva!
H quanto tempo? Um dia, ele voltara da fbrica mais cedo que de costume.
Tinha as mos certas, o olhar certo, uma certeza to presente em todo o seu corpo
forte, que era quase como se no tivesse um destino. Assim Genoveva o foi esperar
ao limite mais extremo da sua conana, serena, branca e loura, alta e loura como
a glria. E tendo-se apenas tado longamente um ao outro, reconheceram-se por
detrs da sucesso dos sculos, hmidos de origem, inndveis de apelo, como
tocados, para sempre, de um esquecido indcio divino.
Vicente!
Depois veio o Inverno e a baba do vento e as noites sem fundo como o capuz de
um condenado. A montanha espadada combateu brutamente contra o cu, caram
sobre o mundo tumultos de trovoadas, chuvas e nevoeiros esmagaram a terra de
pavor. Mas havia para Genoveva, no centro de tudo isso, uma oculta defesa, no
bem contra o perigo do cu e da montanha, no bem contra o terror do mistrio,
mas contra uma plida suspeita de morte, que se alongava pelas noites solitrias.
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Vicente dizia-lhe que uma nova ao ia ser posta a trabalhar ou que se falava em
aumentar a fria, ou at mesmo que sentia o corpo fatigado. E tudo isto, sado
da sua boca, era to forte de perfeio e de verdade, to como o bafo quente de
quem nos aconchega a roupa, que o mais era a memria de um pesadelo morto.
Assim, como toda a sua vida falava de promessa e de futuro, quando depois
do Inverno voltou a Primavera e, depois da Primavera e do Vero, o Outono
lhes trouxe um lho, ela no se surpreendeu. S o marido pareceu embaraado
de medo e deslumbramento, diante de um prodgio maior do que ele e que, no
entanto, incrivelmente, tinha o destino do seu sangue e sua raa. Ou talvez que
nesse olhar longo e calado em que envolvera o lho, ele quisesse apenas trasvasar-
lhe tudo quanto julgava no lhe ter dado ao nascer; porque, dez dias depois, o
correo do tambor das cardas apanhava-o pelo casaco e arremessava-o contra
os caibros do tecto. Trs vezes o corpo desconjuntado de Vicente atravessou o
espao, trs vezes os companheiros clamaram sobre o estrpito das mquinas.
Quando, por m, algum parou o motor, Vicente foi desprendido da correia e
deitado em silncio no cho. Tinha os ossos todos britados, o corpo. numa papa
sangrenta. E to desgurado de tortura e de sangue, que os companheiros
no ousavam reconhec-lo nem toc-lo. S as mos seguras da mulher, to
certas como se as no comandasse, conheciam o lugar da sua boca, dos seus
olhos e do seu olhar. E pousando-as longamente naquela face destruda, a
as esqueceu, confraternizando com o sangue, como se esperasse que Vicente
adormecesse enm, ou que ela fosse investida, de algum modo, numa parte
daquele sofrimento.
Depois partiu dali desvairada, atirada num grito, e precipitou-se, com um
cime assassino, sobre o lho que era seu. E subjugada pela voz absoluta da morte
e da criao, o amor ao lho grudava-a a si prpria, atirava-a contra o futuro como
uma fora escura da terra. S trs meses depois, corroda de cansao, consentiu
que um senhor que lhe viera pr na mesa um envelope fechado, lhe levasse o lho,
o registasse, o baptizasse e lho trouxesse, enm, como o nome inteiro do pai. S
depois consentiu que a vida recomeasse.
J o vasto silncio do Inverno caa de novo sobre a aldeia e o vale. Era agora
uma lcida aridez de prados de gelo, uma alegria mortal de longas neves, como
a inocncia de um cadver de criana em urna branca, era o sol rpido e triste,
os cavernosos urros da tormenta. Mas agora tudo clamava, duramente, pela
angstia de Genoveva, perseguindo-lhe os dias e as noites. E umas vezes chorando
sobre o lho, com o desespero de um amor impotente e desgraado, investindo,
outras vezes, de coragem alta, contra o dio da morte, a promessa renasceu-lhe
nalmente no corao. Contava os dias nos segundos, pelo esforo dos trabalhos
avulsos casas lavadas, carregos, sol a sol no campo com o suor da sua entrega
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pedido a cada parte de si. Mas, repentinamente, a virgindade de um mundo nasceu
em roda do lho. Com uma voz que j no era a dela nem a do silncio indefeso da
criana, surgiu um dia, ali, diante de si, na certeza irrevogvel dos muros negros
da casa, a enorme verdade de um ser que falava, que pedia, que pensava. De si at
ao lho, ia agora o milagre de uma fraternidade nova, ia quase uma surpresa de
dois ausentes que se encontram, como aquela que Genoveva sentira em face do
marido, quando reconheceu que o amava. Com um espanto que nunca supusera,
ela via crescer, sua face, o prodgio de um deus que impetuosamente recriava a
terra e os cus. O pequeno dizia me, po, lua, e a lua e o po e ela prpria
existiam realmente, levantavam-se para a vida pela primeira vez, ou surgiam to
diferentes e to novos que era como se s ento tivessem sido criados. Porque a
lua era o apelo de uma inocncia inteira, e no um cansao do m; o po, apenas
uma forma que se cumpre, e no um dio necessrio; e to nova era agora nela
a verdade de ser me, porque to-s ela e to a medo at agora o soubera, que
Genoveva se curvou de humildade e gratido, diante de si e do lho, como um
mistrio de uma vontade divina anunciada.
Vicente cresceu como tudo o que tem de crescer. Percorreu os caminhos da
montanha, comeu a fruta verde dos quintais, foi escola como os lhos da sorte.
Mas um dia, o senhor misterioso atalhou-a com uma proposta inesperada:
Entra j. Chegam os estudos que tem. Dentro de cinco anos, ganha como um
verdadeiro operrio.
E Genoveva estremeceu, a uma sbita memria vermelha de sangue. E afogada
de angstia, disse:
No!
Mas o homem tinha razes da vida, razes da dura necessidade que no
levavam em conta os sustos da memria. Tinha-as o homem, tinha-as a gente da
vizinhana e at mesmo as tinha aquela parte de si mesma a quem ela dissera
no. E Genoveva cedeu. Numa manh alta de estrelas, Vicente ergueu-se
investido de uma fora desconhecida. Havia silncio no cu, a montanha dormia
ainda, longamente, as estradas iam desertas pelo mundo. Genoveva abriu a janela
para a solido da manh e esperou. Era talvez possvel que qualquer carro parasse,
que a vizinha Clotilde viesse soltar as galinhas, que acontecesse, enm, naquela
manh absoluta, qualquer coisa humana e ntima mais forte do que o silncio e
a ameaa. Mas nem o carro passou nem a Clotilde se ergueu. S dois homens,
algum tempo depois, saram do ventre da noite, vieram bater porta, chamaram
por Vicente. E ele foi com os companheiros, atravessou o troo da estrada, j
branca na madrugada, e desapareceu.
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Me Genoveva! H quanto tempo?
Ento Genoveva estremeceu de leve, mas to fundo, que tudo nela o sentiu.
Algum tempo cou janela da sua solido at que a manh foi subindo por
detrs da montanha e as galinhas de Clotilde encheram a vizinhana e os homens
atravessaram os campos, gravados de submisso. E segura agora de que tudo
estava acontecendo normalmente, Genoveva fechou enm a janela. Mas de sbito,
na mudez slida da casa, de novo uma voz quente e annima, vinda de trs lhe
falou ao ouvido, serena e rme como voz de eternidade. Genoveva voltou-se
devagar para a janela, e olhou atravs dela a estrada branca, e depois da estrada
branca a montanha, e depois da montanha a memria silenciosa de tudo. Era
possvel que o lho tivesse partido para sempre. Mas tudo cara to calmo e
natural que ela prpria se no atrevia a sofrer. Foi esper-lo, todavia, nessa tarde,
no bem ao limite da sua conana, ou torre do desespero ou sequer curva da
estrada de areia branca onde ele se perdera, mas somente ao receio breve da janela
da manh. E ele ergueu-se, por m, na ponta da estrada branca, to alto e to forte
como uma jura comprida.
Meu lho.
Clotilde fechava as galinhas, os homens regressavam dos campos, a noite
vinha chegando hora prometida. Mas Genoveva j no acreditava na verdade
ntima de tudo isso. Porque havia, alm do mais, a coragem do lho, uma coragem
excessiva, j s desao, que mal parecia ter em conta a proteco que ela tinha
para lhe dar e a certeza humilde de que havia morte no mundo. Por isso Genoveva
se recolheu ao seu amor vencido e a cou ouvindo, num silncio resignado, toda
a sbita glria de Vicente, cantada a leo e a ao na inocncia do seu corpo.
Finalmente, o lho calou-se no fundo da noite. Ento Genoveva olhou pelos
vidros da janela e pensou: Sem uma nuvem. Vem-se todas as estrelas.
E amanh s cinco disse o lho.
Sim.
Durante longos anos, Vicente partiu pelas madrugadas frias de Inverno, pelas
manhs altas de Vero. E sempre com ele partia a esperana de que voltasse
com a noite. Ele voltava, umas vezes antes da noite, outras vezes depois; mas
todos os dias qualquer coisa partia com ele pela manh e dizia adeus a Genoveva
para nunca mais. S o amor voltava inteiro com ele, se bem que houvesse agora
grandes sales de portas fechadas para l da sala amiga onde ambos se tavam.
Contra o corao alarmado, ela sentia embaterem os gritos de l de dentro,
clamores de uma esperana terrvel, altas colunas de silncio como saudaes
morte. Quando porm ele voltava sala quente dos dois, de novo Genoveva
o reconhecia inteiramente como seu. Ela pensava ento no caminho percorrido
por ambos, desde a hora de sangue do marido. E via-se a si levando o lho pela
131
mo, via depois o lho crescer, caminhar frente, deix-la a ela pra trs e voltar
nalmente, de novo, para lhe dar a ela a mo outra vez. E Genoveva dava-lhe a
sua, maternalmente, fraternalmente, lialmente. Porque s vezes o pai verdadeiro
era ele e era ele o irmo verdadeiro. E todavia, mais do que nunca Vicente desejava
ou consentia agora em ser seu lho. Por isso, era sempre na dimenso da pureza e
submisso que ele contava dos silncios de amargura, da fria e da esperana, de
tudo o que era suspeita e rudo, para l do amor dos dois. E ento, ungido na fronte
por um bafo de infncia, tudo nele subitamente era inocncia e verdade como um
bibe sujo de terra. Mas precisamente, como iria o mundo perdoar-lhe a inocncia?
Assim, quando tudo cou esclarecido, entre os dois, ela cerrou os olhos de bno
e ps-se espera da morte.
E a morte veio, no subitamente, mas devagar, para que ela a estivesse
esperando mesmo depois de estar presente. Numa tarde cansada de Agosto,
Vicente no voltou. Genoveva esperou-o at que a noite desceu, esperou-o depois
de a noite vir e depois de a lua quente subir ao alto da montanha, e depois mesmo
que um companheiro do lho a veio avisar secretamente de que Vicente no viria.
Esperou-o toda a noite com a lua e as estrelas e a sua solido. Ele no veio mais.
Mas numa noite, exactamente numa noite como aquela, suspensa de luar e
de silncio, um homem emergiu do ptio fronteiro, agora inundado de lua como
um lago fosforescente. E numa voz inteira, forte e todavia submissa, o homem
clamou:
Me Genoveva!
Na parede do fundo, a lua projectava um ramo de oliveira que bulia, silencioso,
e se abria, devagar, numa suave or de sombra. Voltada um pouco para dentro da
sala, Genoveva sangrou de surpresa e de espera quela voz estranha em que no
entanto ouvira esse sinal sem engano, j to seu conhecido, de dois destinos que se
chamam um ao outro, innitamente, por cima de todo o dio e de todo o sonho da
vida. E de facto, quando o homem nocturno falou e contou de Vicente, Genoveva
reconheceu, sem uma perturbao, que o amor do lho, atravs do seu combate,
da sua esperana, lhe estendia, para sempre, a mo rme, na mo daquele amigo.
E Genoveva tomou-lha longamente e pousou-lhe as suas nos ombros e sagrou-o
tambm a ele como seu lho, desde o mais fundo do cansao do seu ventre.
Mas desde ento os lhos de Genoveva tornaram-se to numerosos, que
toda a voz carnal do seu amor se esgotava e cumpria. Vinham de noite, pelas
manhs surdas, algumas vezes mesmo s horas pblicas do dia. Mas em qualquer
momento, a um simples olhar deles, Genoveva reconhecia-os e amava-os logo,
irremediavelmente, com uma pureza humilde e profunda. Assim, como quando
Vicente lhe falava, ela escutava as vozes deles apenas na sua piedade serena.
Todos eles contavam da esperana, da justia, do amor, e Genoveva acreditava.
132
Porm no acreditava apenas porque a justia estivesse certa e a glria estivesse
certa, mas porque, depois de tudo, acontecia s vezes pedir-lhe algum deles
que lhe consertasse a velha roupa ou lhe ensinasse o bom remdio para uma
constipao...
At que um dia Vicente voltou, tocado de sinal e de vertigem, como a fachada
de um palcio iluminado. Mas quando se sentou no seu lugar, mesa da cozinha, e
o vento do Inverno se levantou sobre a casa, logo tudo foi verdadeiro e bom desde
o princpio.
Como vens cansado!
A chuva despedaava-se contra a vidraa, um clamor de tempestade varria toda
a montanha, uma noite verduga rangia em torno da casa os grossos dentes do dio.
E ao alarido daqueles urros nocturnos, outra vez, de Genoveva para o lho desceu
o gesto da proteco e da bno.
Fechados de resguardo e de intimidade, era como se Vicente se tivesse
escapado perseguio da noite e a noite casse porta ladrando furiosamente,
como um rancor de ces ao tronco de uma rvore por onde a presa fugiu. Pela
madrugada, porm, quando a noite o estava ainda esperando, esquecido do perigo,
Vicente partiu. E a noite o tomou e levou para sempre.
Foi trs meses depois, que Genoveva o foi ver ao cume do seu destino.
Separava-os um mundo de fria e de sangue; mas Vicente deu um passo, venceu o
sangue e a fria e abraou Genoveva e disse bem alto com a voz perfeita de todos
os outros lhos:
Me Genoveva!
H quanto tempo? Ali estava agora, direita ainda um pouco, frente ao vento
largo daquela tarde de Agosto. Era um vento calmo, quente como um apelo de
morte. Doa-lhe suavemente a cabea, ou no bem a cabea talvez, nem talvez
mesmo a memria de tudo, mas, mais fundo do que isso, a raz de estar vivendo,
como um limite atingido. J a noite vinha crescendo devagar e as rvores subiam
mais alto no cu profundo. Ento, ampliando-se desde o largo do horizonte,
milhares de bocas clamaram ao mesmo tempo, enchendo todos os sculos do
passado e do futuro:
Me Genoveva!
E Genoveva, subitamente, sentiu-se iluminada, docemente ungida de um sinal
de maternidade para todos os tempos da esperana e do amor. Suspenso sobre
as cabeas, sobre a glria do canto dos seus lhos, um grande gesto de bno
unia-os como um ventre. At que, hora quente da lua cheia, fechada de um
silncio nal, segura de que tudo se cumprira em perfeio, Genoveva sentiu que
a cabea lhe tombava e para sempre adormeceu.

(De Contos, 1976)

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FERNANDO NAMORA

(1919-)

A intensa e ostensiva verdade vivencial e a implcita ou muitas vezes


explcita vocao de dilogo com os seus leitores que distinguem a obra de
Fernando Namora como romancista e contista bastam para justicar a grande
projeco nacional e a irradiao internacional crescente que a tm consagrado.
Depois de Ferreira de Castro este o primeiro caso de um escritor moderno que
vence largamente (e no acidentalmente) a barreira do isolamento da literatura
portuguesa. O seu estilo, de extrema nitidez formal, e o depurado desenho,
chegando virtuosidade, na composio narrativa, abrem prontamente aos
leitores, portugueses ou estrangeiros, um espao de comunicao em que se
conjugam as adeses pela sensibilidade e o entendimento pela participao que
a todos oferecida nas realidades mltiplas da vida. Essas potencialidades de
abertura ao humano, no mais simples e no mais complexo, revelam-se desde
os primeiros livros de Fernando Namora, em que se espelha a sua experincia
de infncia e de juventude: As Sete Partidas do Mundo (1938) e Fogo na
Noite Escura (1943); impem-se com amplitude nos romances do ciclo rural,
mais empenhadamente neo-realistas, como Casa da Malta (1945), A Noite e a
Madrugada (1950) e O Trigo e o Joio (1954); ganham maior aprofundamento
psicolgico e versatilidade de caracterizao das personagens nos romances de
ambincia urbana: O Homem disfarado (1957), Domingo Tarde (1961), Os
Clandestinos (1972), O Rio Triste (1982). Mais prximos do conto ou da novela
curta, embora o Autor tivesse preferido sempre design-los por narrativas, so
os textos de co reunidos nas duas sries de Retalhos da Vida de Um Mdico
(1949 e 1963) e em Cidade Solitria (1959), atingindo muitas vezes o nvel de
condensadas obras-primas de gnero. A mesma comunicabilidade e segurana
de delineamentos dos romances evidenciam-se na obra do contista. Fernando
Namora tambm autor de livros de poesia da crnica romanceada Dilogo
134
em Setembro (1966), que um relato de encontros e observaes cosmopolitas
com grande riqueza de observao humanstica, de volumes de crnicas e relatos
de viagens em relevante indagao sociolgica de problemas cruciais do nosso
tempo.

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O RAPAZ DO TAMBOR

Em casa havia um tambor. Tinham-lho oferecido dois anos antes, pelo Natal.
Mas o garoto no soubera regrar o entusiasmo, e as pessoas da casa e os vizinhos
no suportando a barulheira, quiseram obrigar o pai a esconder-lho. O pai, porm,
era um bom companheiro, um bom tipo: no lho escondera nem proibira; dissera
assim:
Jnito: o tambor gasta-se com tanto uso. E, ainda que eu viesse a comprar-te
outro, sei que seria sempre deste que tu gostarias. Acho que deverias tocar s de
tempos a tempos, aos domingos. Desse modo, a pele do tambor poder durar uma
vida inteira.
Tem razo, pai. Tocarei s aos domingos. Mas posso dormir com ele nos
outros dias?
Claro que podia. O pai, alis, facilitava os desejos de toda a gente.
E Jnito passou a dormir com o tambor, tal como a irm dormia com a boneca
de olhos verdes, depois de lhe despir o vestido de renda, para no o amachucar.
Contudo, antes de haver um tambor l em casa, verdadeiro, que se podia
apalpar com as mos, existia j outro, na gravura da parede da sala. Era uma
pintura com tons sanguneos, que representava uma grande batalha: soldados
com uniformes napolenicos, bandeiras enrugadas por um vento herico, cavalos
furiosos, com os nervos or da pele e patas dianteiras erguidas sobre um inimigo
que ia ser esmagado. E o rapaz do tambor ao centro, em corpo inteiro, soberbo,
tendo na cabea um barrete afunilado de um azul-turquesa. Uma luz incendiada,
vinda no se sabe donde, caa-lhe em cheio sobre as mos, enquanto o resto do
quadro se dissolvia numa penumbra poeirenta. Mas se os cavalos erguiam as
136
patas medonhas, se os soldados mantinham rmes as baionetas luzidias, se as
bandeiras utuavam, gloriosas, ao vento, era porque o tambor os inamava. O
tambor era um apelo, um contgio, uma labareda. E que som, que ritmo, que
trovoada! Repercutia por toda a casa. Jnito tinha os ouvidos aturdidos pela sua
voz poderosa e admirava-se muitas vezes, tando o pai, a me, o tio, a irm, que
ningum mais mostrasse ouvi-lo; que as pessoas no se levantassem das cadeiras,
de repente, e, seduzidas, fossem praticar um acto de bravura.
Jnito zera muitas perguntas ao pai sobre o signicado da pintura. Quem
eram os soldados, que pas tinha aquela bonita bandeira; quem era, sobretudo, o
rapaz do tambor. Um garoto poderia ser chamado a comandar uma batalha?
O pai no gostava de falar de guerras. E a gente podia admirar-se de como ele
deixara car na parede aquele quadro que se referia a coisas detestadas. Jnito no
sabia que essa gravura, um pouco desbotada j, pertencera ao av, leitor de feitos
do general corso, e que o av a estimara como se se tratasse de um braso familiar.
O av, por certo, era dos que ouvira o rufar do tambor.
E tu, no o ouves, Guida? repetia Jnito impaciente. A irm poderia
compreend-lo. Tambm os sentidos de Guida eram sensveis a um mundo
interdito aos adultos.
Apuravam ambos o ouvido. E Guida, por m, ouvia, l muito ao longe, o
tropear confuso dos cavalos e o incitamento grave e glorioso do tambor. De uma
das vezes, pareceu-lhe mesmo que aqueles soldados se mexiam, que iam sair do
quadro para dentro da sala, que o gume acerado das baionetas vinha espetar-se nos
olhos que o tavam. Muito plida, chorosa, disse:
Tenho medo. No quero escutar mais o tambor.
Deix-lo: Jnito escut-lo-ia sozinho. E no lhe dessem mais nada at ao m
da vida mas dessem-lhe um tambor.
Quando, na manh de Natal, ao acordar, se lhe deparou o tambor cabeceira da
cama, o seu corao quase no teve foras para a surpresa. Num momento, deixou
de bater. Jnito correu sala, afogueado, e experimentou copiar, com o maior
escrpulo, o porte, a expresso, a energia do rapaz do tambor. Acordou meio
mundo a tocar o brinquedo durante a manh. Enfureceu meio mundo a toc-lo
todos os dias, a toda a hora, at que o pai o preveniu:
Jnito: o tambor gasta-se com tanto uso.
O pai era um bom pai. Um homem viril, de cabea bem erguida. E os
cabelos! Fartos, grisalhos, majestosos. Quando ele, a fazer valer uma opinio,
levava os dedos cabea a domesticar uma madeixa indcil que lhe caa para
os olhos, que gesto soberbo! Como apetecia dizer-lhe: Faz isso outra vez,
pai! O pai era o mais poderoso dos homens. Trabalhava numa fbrica de
plsticos, nos arredores, e tinha de sair cedo de casa para apanhar o comboio.
137
Jnito s o via pelo m da tarde. O pai, ao regressar, sentava-se na cadeira
de verga, cachimbo na boca, uma ruga spera na testa, um livro na mo. Jnito
acocorado no tapete, seria capaz de estar ali horas a o, apenas a olh-lo.
Por isso mesmo, odiava aqueles sujeitos desconhecidos que vinham visitar o
pai noite, fechando-se com ele l dentro, numa saleta onde havia uma mquina
de costura, uma secretria e uma mesa redonda que servia, em certas ocasies,
para a famlia jogar as cartas. E muitos livros, claro. O pai nunca se fartava de
livros.
Quem so aqueles senhores, me?
Amigos do pai.
Porque no vm para aqui e falam com a gente?
No pode ser, Jnito. O pai d-lhes explicaes. Precisam de sossego.
E ns no podemos ouvir explicaes?
So coisas s deles. Coisas de estudo. Para exames.
Mas eu tambm tenho exames.
Aqueles so exames mais adiantados.
Como o mundo dos adultos era esquisito e intrigante!
Jnito espreitava suspeitosamente esses companheiros do pai. Espreitava-os da
janela, cerca da hora em que eles deveriam chegar. No gostava deles. No se
pareciam com os soldados do quadro, nem com o pai, nem com o tio. No sorriam.
E roubavam-lhe quase todo o tempo em que ele poderia conversar com o pai.
Quando eu for grande, poderei ouvir as explicaes?
O pai dizia que sim. Ainda se o tempo passasse depressa! O tempo, no entanto,
estava sempre no mesmo stio.
Os domingos, porm, pertenciam aos dois. Domingos bons. Iam a um jardim
ou ao campo escolher folhas exticas para um lbum, ao futebol e, com frequncia,
aos bairros humildes de certas zonas da cidade. Jnito sentia uma espcie
de intimidao, ou de nojo, ou de culpa, ao aproximar-se dessas casas sujas,
agachadas na bruma, onde morava gente ainda mais suja. Para que teimava o pai
em vir ali, em conviver com desconhecidos? Que tinha para lhes dizer? Havia
coisas misteriosas no procedimento do pai e Jnito enciumava-se de no participar
de todas elas.
Agora brinca com estes meninos, enquanto eu me entretenho com uns
amigos.
Eles entravam num bar e Jnito e os rapazelhos, depois de uma sondagem
cautelosa, acabavam por inventar um jogo divertido. Anal, eram companheiros
reinadios. E Jnito deixava mesmo de reparar que eles tinham as mos sebentas e
os cales esfrangalhados.
Pai: posso mostrar-lhes o tambor?
138
Podes. Mas no lhes fales de soldados. Ningum deve gostar de guerras.
Porqu, pai? Ento os soldados no so valentes?
As pessoas devem mostrar-se valentes de outro modo.
Como?
Sendo boas umas para as outras. Sacricando-se, se for preciso.
Jnito no lhes levou o tambor. Um tambor sem batalhas no servia para nada.
Em outros domingos, o pai ia cedo para a rua, mas combinavam, de vspera,
encontrarem-se num certo caf. Jnito cava muito orgulhoso dessas combinaes
de homem para homem, e ainda orgulhoso por deixarem-no ir sozinho at ao local
do encontro. Era um cafezito na praa do municpio, donde partiam os comboios
que levavam para a montanha os burgueses fugidos da neblina. Havia l uma
caixa de msica. Vinham rapazes e raparigas, sentavam-se, turbulentos, a uma
das mesas, com o ar de quem estava em casa ou de quem alugara o caf s para
eles, e iam deitando moedas na mquina. Cada moeda, cada msica. Maravilhoso.
Por isso, Jnito mentia quando a Guida se queixava. S a ti que o pai convida
para irem ao caf, e ele respondia: Ao caf no vo raparigas. Iam, j se v.
E deitavam moedas na caixa da msica e batiam as palmas, desengonando o
corpo, e faziam um chinfrim de quem no ligava mesmo nada s outras pessoas
presentes.
Ia encontrar o pai na companhia de algum desconhecido, falando-lhe num tom
grave e secreto, ou a escrever nuns cadernos e sempre com dois ou trs.livros
empilhados ao lado da xcara de caf. Que escrevia o pai, que livros eram aqueles,
que gente o visitava ao sero? Roa-o por vezes o pressentimento incmodo e
revoltado de que o pai tinha uma vida dupla, de que havia nele duas pessoas: a que
lhe falava docemente de coisas prximas, visveis, que se misturava mesa com a
famlia, que era real e acessvel, e outra obscura, clandestina, que se temia.
At que uma noite aconteceu aquilo. Ouviu-se um automvel travar de repente,
ali na rua. Os pneus chiaram no piso orvalhado. Passos na escada e algum bateu
porta. A me adivinhara fosse o que fosse: no meio da sala, sem um gesto, parecia
assombrada. E depois dirigiu-se janela, afastando, a medo, as cortinas.
Vem aqui ver, Arnaldo.
O pai espreitou por detrs dela e, de sbito, correu tal saleta dos fundos e
veio de l com tantos papis que no lhe cabiam nos braos. O tio pegou neles
e preparou-se para saltar pela janela das traseiras, que dava para o quintal dos
vizinhos. Antes, porm, ainda disse:
Vem tambm, Arnaldo!
O pai tinha a ruga da testa muito funda e a madeixa a escurecer-lhe os olhos.
Mas estava sereno. Acenou vigorosamente que no.
139
Vem, no percas tempo!
No adiantava. Agora j no h perigo.
Batiam porta com mais fora e insistncia. O tio, de expresso esgazeada,
desapareceu. Esperaram que batessem ainda uma, duas vezes, e a me, por m, foi
abrir. Jnito, de corao apertado, sentiu o mesmo que naquele dia ao ouvir pela
primeira vez o granizo esmagar-se abruptamente de encontro s vidraas, antes da
trovoada. A expectativa de um acontecimento informe e terrvel.
Vai para o quarto, depressa, Jnito!
O granizo, o granizo. Ele ainda viu os homens a passarem a porta, de chapu
enterrado na cabea, o rosto na sombra. Jnito foi outra janela espiar a rua:
l estava o automvel. Parado, sinistro. Faz medo um automvel negro, imvel,
dentro da noite. E por detrs dele, um jipe. Viu uns guardas sarem do jipe e
dividirem-se pelos dois lados do passeio at que a nvoa os sorveu. Tinham
espingardas, espingardas verdadeiras.
O pai esteve uns meses ausente. E era estranho que as visitas da casa, de um
dia para o outro, tivessem deixado de aparecer. Como se toda a gente soubesse ou
adivinhasse que o pai andava em viagem.
Onde est o pai? Quem eram aqueles homens? Para onde o levaram?
E a me respondia:
Foi para uma viagem.
Ento aqueles homens eram amigos?
Homens daqueles no so amigos.
E o tio intervinha, com dio na voz:
So bichos.
Mas por que razo as pessoas grandes no explicavam as coisas de modo que
se percebesse? Que se passava com o pai, com o tio, que se passava naquela casa?
Muita coisa mudara desde a partida do pai. Desde a noite em que os homens
de chapu na cabea, ou os bichos (como dizia o tio), tinham vindo busc-lo no
automvel sinistro.
Ah, mas isso no voltaria a acontecer! Jnito olhava com fervor para a gravura
da parede, para o rapaz de barrete azul a inamar com a sua exortao a coragem
dos soldados, e cava certo de que, se tivesse pegado tambm no seu tambor,
naquela noite, os homens (ou os bichos) que haviam entrado pela porta sem tirar o
chapu da cabea teriam fugido de medo. Jnito no se iludira: o pai no sara de
casa por sua livre vontade, no andava em viagem. Mas que zera o pai para que
algum lhe quisesse mal? E por que motivo a me, o tio, os vizinhos e ele prprio,
Jnito, no o haviam defendido? Faltara a todos qualquer coisa um tambor.
E durante todos os meses pardacentos em que o pai estivera longe da famlia,
Jnito, com um sentimento de culpa, no tirou o tambor de cima da prateleira.
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Quando o pai voltou, era outro. Mais cabelos grisalhos e desmanchados. E
magro, ento! O dorso velho, uma face triste. Jnito foi esconder-se algumas
vezes no quarto para chorar. Tinham-lhe roubado a alegria viril e jovem de seu
pai. No lhe fez perguntas. L no ntimo acusava o pai de no partilhar com ele o
mundo nebuloso onde morava a outra metade da sua vida.
O tempo, por m, foi recuperando os hbitos antigos. Os mesmos passeios,
as mesmas visitas, o caf de certos domingos. Nem uma palavra, porm, do
que acontecera. Sentiam-se ambos, nesse silncio espesso, como mutuamente
cmplices de um ressentimento longnquo, mas sempre presente.
Num dia, contudo, em que foram praia, logo que o pai saiu da barraca com
as costas nuas, lhe varou os olhos uma cicatriz, ainda tmida, que cortava em
diagonal a sua carne musculada. Jnito cou de gestos suspensos.
Que foi isso, pai?
Ca h tempos sobre uns estilhaos de vidro.
Mas eu no te vi o casaco rasgado!
Nessa ocasio estava despido.
Despido?
O pai mentira-lhe. O pai era mentiroso. Jnito dobrou-se todo para a frente,
escondendo os olhos, e ps-se a soluar. Mordia a boca, arranhou o rosto, mas no
podia sofrear o choro.
O pai esperou que ele acalmasse, enquanto as suas mos fortes e hesitantes lhe
acariciavam os ombros. Mais tarde, levou-o praia fora, a caminho dos rochedos,
onde s vezes iam apreciar algum pescador solitrio.
Ouve Jnito... Esta cicatriz que tu viste no foi de nenhuma queda. Mas eu
no sabia como dizer-to.
Jnito ps-se de novo a soluar e logo, enervadamente, enxugou os olhos com
as mos, perguntando numa voz decidida:
Quem te fez isso?
Lembras-te daquela noite em que... sa de casa?
Foram eles, ento?
Foram.
E tu... deixaste? Deixaste que eles te levassem?
No havia outro remdio. Ouve, lho: h coisas que s um homem pode
entender.
Jnito baixou a cabea e disse, triturando as palavras, quase
imperceptivelmente:
Eu sou um homem.
O pai decerto no o ouvira; de sbito, apontando um barco que entrava na
barra, desconversou:
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O navio vai a caminho do farol. Est l daqui a um instantinho. Vamos ver se
chegamos primeiro do que ele?
Jnito acompanhou-o sem entusiasmo e, a meio da corrida, sentou-se na areia,
amuado e taciturno. O pai mentira. O pai deixara-se prender. Deixara que lhe
zessem uma cicatriz infame nas costas. No era valente como os soldados da
gravura da sala.
Jnito nunca se sentira to longe e to arredado do mundo dos grandes como
naqueles dias em que bastava que se fosse rua, ou janela, ou se visse entrar
em casa algum da famlia, para que os sentidos cassem impregnados de uma
agitao contagiosa e sufocada que precisasse de romper a crosta que a fechara
numa priso. As pessoas no tinham parana. Eram como as formigas que ele,
certa vez, soprara boca de um formigueiro e que tinham desvairado para um e
outro lado procura do motivo que as zera desviar. Os desconhecidos, na rua,
ao olharem-se, pareciam comprometidos numa vasta e idntica conspirao. At
a alegria da gente grande, das palavras aos gestos, era ambgua, densa, terrvel.
O pai, o tio, e ainda a me, dantes to discretos nas conversas mesa, falavam
agora animadamente, apenas pelo desejo de falar e de se ouvirem, como garotos
palradores na vspera de um acontecimento.
Jnito foi captando alguns pormenores. O pai comprava trs e quatro jornais
ao dia e discutia-os, a punho fechado, com os amigos. E os vizinhos, saudando-se
por tudo e por nada, faziam o mesmo: vinham da rua e saam de casa a ler jornais,
puxavam-nos, com sofreguido, dos braos dos ardinas. Que acontecera? Quem
eram esses nomes que andavam na boca de toda a gente e que os jornais repetiam
todos os dias? Escusado perguntar. No lho diriam. E que intenso desejo, que
inquietao tinham modicado as pessoas o pai, a me, os vizinhos, a rua, a
cidade inteira? Quando algum respirava e Jnito sentia o mesmo , o ar era
espesso, vibrtil, quente, embora se pressentisse que essa opresso iria terminar
num imenso alvio. Jnito apercebia-se bem de que no era uma coisa que
acontecera mas sim que iria acontecer.
Numa das noites, o pai saiu de casa com o tio, demorou-se por l umas horas
e, ao regressar, nem reparou que nenhum dos lhos se deitara ainda. Alvoreado,
disse de rompante para a me de Jnito:
As ruas esto cheias de polcias. E, nas margens do canal, h tanques.
Tanques? O pai dissera tanques? Ah, agora compreendia todo aquele
desassossego! Ia dar-se uma batalha. Bandeiras, tambores, soldados. O pai devia
acautelar-se, ao menos com uma espingarda.
No dia seguinte, o pai no foi ao emprego. Andava pela casa como um bicho
enjaulado. Bicho, no! Bichos eram os outros, os homens que lhe haviam entrado
142
em casa de chapu na cabea. Almoou mais cedo do que habitualmente e, antes
de vestir o casaco, puxou o lho de lado:
No deves ir hoje rua, Jnito. Promete-me.
Jnito no respondeu.
Prometes?
Porqu?
Hs-de ouvir muita gente na rua. Gritos, talvez, ou, pelo menos, gente aos
berros, como no futebol. Fica em casa, acontea o que acontecer.
Gente aqui, na nossa rua?
Em todas as ruas. Mas talvez mais nesta do que nas outras. Prometes?
E janela, posso ir?
Talvez, com cuidado.
Que aconteceu, pai? Uma festa?
Muitas pessoas vo esperar algum que chega no comboio. E depois
acompanham-no. Devem passar por aqui.
Anal, no era a guerra. No havia tanques nem soldados. Algum senhor
importante regressava dos albergues da montanha.
Quem , pai? Um jogador de futebol? De que clube?
No um jogador de futebol. Prometes?
O pai j vestira o casaco. Jnito concedeu, sem convico:
Prometo.
Da a segundos foi para a janela. A mesma atmosfera que parecia enrolar-se
na garganta. A rua estava deserta e nela se sentia o arfar de multides. Uma faca
poderia cortar, como um pedao de po, o ar que se respirava. O pai dissera que
havia polcias por todo o lado. Anal, sempre deviam preparar uma batalha e o
homem do comboio viera para a dirigir. Ah, como seria formidvel, uma batalha!
Uma hora depois, Jnito ouviu um rumor grosso, crescente, l longe. Uma
enxurrada que se aproximava. E o ar fez-se ainda mais encorpado. A ansiedade
de Jnito tornara-se dolorosa. Apetecia-lhe correr pela casa, partir coisas, rasgar
coisas, ir ao encontro da enxurrada. Prometes? Vieram alguns polcias para os
dois lados do passeio, em jeito de emboscada. E depois mais outros. Por m, eram
dois cordes a todo o comprimento da rua.
Guida! Guida! Chega aqui para ver!
Guida trepou para uma cadeira e ps-se tambm janela. A me no aparecia,
estava na cozinha, ou no ptio, ou quem sabe se tambm se escapara para a rua.
S ele estava ali prisioneiro. Prometes? Tinha de cumprir a promessa. Polcias,
sempre mais polcias e gente que, sem olhar, corria para os lados da enxurrada.
Mas estes polcias no tinham espingardas, a guerra no era com eles. Os que, na
tal noite, lhe haviam roubado o pai, esses, sim, tinham espingardas.
143
No vejo nada, Jnito.
J vais ver.
Pois. Ele sabia que iriam esperar um homem ao comboio, um homem mais
fabuloso do que um jogador de futebol. O pai dissera-lho.
E foi ento que uma imensa turba surgiu, de chofre, no extremo da rua. Em
silncio. E quanto mais se aproximava, maior o silncio. Um silncio medonho,
denso, orquestrado, que batia de encontro s paredes, de encontro aos tmpanos
e os deixava obstrudos. Pessoas. Muitas pessoas. Daquela distncia e dentro da
nvoa pareciam iguais. Marchavam num passo certo, predestinado, e dir-se-ia que
se um dique se levantasse na sua frente elas passariam da mesma forma, com o
mesmo passo, tal como um punho atravessa uma folha de papel. A polcia recuava.
Quem eram eles? Qual o seu destino onde terminaria a sua fora solidria e
brbara? Era aquilo uma guerra? Uma guerra sem bandeiras e sem gritos? Mas,
sem bandeiras, sem canhes e sem gritos, Jnito sentia-lhes o mesmo incndio
dos homens da gravura da sala e, de sbito, percebia que toda a vida secreta dos
adultos acabara de se desvendar.
E, nisto, viu o pai entre eles.
O pai, Guida! Olha o pai!
Viu-o, antes de mais, pelo gesto de domar o cabelo revolto. Era ele. O pai era
um soldado. No tinha medo.
Eh, pai! gritou.
Qualquer grito, porm, era logo sorvido pelo silncio. Ningum o ouviria.
E, tambm abruptamente, a enxurrada quebrou. Ou melhor: correu sobre ela
um vento contrrio, vergando-lhe as cristas, como acontece s hastes das searas
quando uma brisa doida muda de direco. L no fundo, a polcia formara uma
parede. E, por detrs, ainda outra parede, eriada de espingardas hirtas, espera
que os corpos, passivamente, viessem oferecer-se. Anal, eram os mesmos que
tinham vindo na tal noite.
Da multido partiu uma voz, um ronco surdo, uma onda que rebenta e logo se
pe em movimento, Ah, como Jnito, de corao transido, desejava que a sua febre
pudesse comunicar-se enxurrada e robustecer-lhe a raiva e o mpeto! E quando
a multido acometeu de novo, como um touro ferido, de novo a parede eriada
de espingardas a fez recuar. A enxurrada desmantelara-se. Dela desprendiam-se
pessoas que corriam sem destino, logo absorvidas pela muralha de polcias. Reses
que desertam e so devoradas. Eles iam car vencidos. No atravessariam a
parede.
Jnito passou as mos pela testa gelada e hmida. Quase o gesto do pai. O pai
no podia ser vencido. De sbito, olhou a gravura da sala. Os cavalos hericos, os
soldados, o tambor. Era de um tambor que eles precisavam. Prometes? No,
pai, no posso prometer.
144
Comeou a tocar o tambor ainda antes de chegar rua. E sempre a tocar
foi abrindo caminho na multido hesitante e esboroada. At l frente. Onde a
enxurrada poderia morrer ou vencer.
Horas depois, os curiosos que vieram observar os buracos que as balas tinham
aberto nas frontarias dos prdios procuravam ainda a mancha de sangue que, ao
centro da rua, marcava o lugar onde outra das balas acertara no peito do rapaz do
tambor. Mas algum a zera desaparecer. E os curiosos iam-se embora concluindo
que os homens das espingardas, quando matam, no deixam ndoas. Apenas
buracos.

(De Cidade Solitria, 1959)

145
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

(1919-)

A vocao preponderante de poetisa, que lhe mereceu lugar de alto prestgio


na moderna lrica portuguesa, assumiu outra face na obra de Sophia Andresen
com a sua criao de contista. Tambm esta portadora, fundamentalmente,
duma sensibilidade que se insinua atravs da efabulao e duma constante carga
simblica ou mtica em nvel potico, a que se ajustou um estilo de envolvente
doura e harmonia. A prosa desta Autora, como a sua poesia, apresenta-se,
no dizer de Urbano Tavares Rodrigues, como o espelho fantstico duma
sensibilidade. E nesse espelho que tomam expresso humana os aspectos
emocionalmente vistos da natureza e nesta vm a fundir-se os sentimentos
e estados de conscincia das personagens imaginadas. esta demiurgia
transguradora que inspira a obra extensa de literatura infantil publicada por
Sophia Andresen, constituindo para alm do seu intuito imediato uma fonte de
leitura potica capaz de seduzir nos seus acordes de musicalidade verbal ou
na sua sequncia de imagens os leitores adultos esteticamente mais exigentes.
tambm a substncia lrica essencial em toda a obra da escritora, mas
aqui geralmente identicada com uma tica de raz evanglica, que d corpo
s narrativas reunidas em Contos Exemplares (1962). As personagens que
perpassam nelas so smbolos de tipos humanos ou de ideias e sentimentos
que se personalizam para assumirem a fora exemplar de realidades vivas.
E, como assinalou Jos Palla e Carmo, a presena de um pensamento
intrinsecamente e essencialmente potico que eleva esse livro a um lugar
cimeiro da nossa produo literria. A linguagem de Sophia Andresen na
criao ccionista conserva, em agrante identidade, o cadenciado andamento,
a pureza e a suavidade expressional da sua poesia. Mesmo no realar inelutvel
das fealdades humanas, em contraste com a beleza das coisas, com tudo
o que perfumado e maravilhoso no mundo natural, a escrita novelstica da
Autora desprende-se do que possa haver nessas fealdades de tosco e agreste para
que no se perca nelas o ritmo do essencial.
146
O HOMEM

Era uma tarde do m de Novembro, j sem nenhum Outono.


A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O cu estava alto, desolado,
cor de frio. Os homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios.
Os carros passavam depressa.
Deviam ser quatro horas da tarde dum dia sem sol nem chuva.
Havia muita gente na rua naquele dia. Eu caminhava no passeio, depressa. A
certa altura encontrei-me atrs dum homem muito pobremente vestido que levava
ao colo uma criana loira, uma daquelas crianas cuja beleza quase no se pode
descrever. a beleza de uma madrugada de Vero, a beleza duma rosa, a beleza do
orvalho, unidas incrvel beleza duma inocncia humana. Instintivamente o meu
olhar cou um momento preso na cara da criana. Mas o homem caminhava muito
devagar, e eu, levada pelo movimento da cidade, passei sua frente. Mas ao passar
voltei a cabea para trs para ver mais uma vez a criana.
Foi ento que vi o homem. Imediatamente parei. Era um homem
extraordinariamente belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam
inscritos a misria, o abandono, a solido. O seu fato, que tendo perdido a cor,
tinha cado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome. O cabelo
era castanho-claro, apartado ao meio, ligeiramente comprido. A barba por cortar
h muitos dias crescia em ponta. Estreitamente esculpida pela pobreza, a cara
mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os
olhos claros, luminosos de solido e de doura. No prprio instante em que eu o
vi, o homem levantou a cabea para o cu.
147
Como contar o seu gesto?
Era um cu alto, sem resposta, cor de frio. O homem levantou a cabea
no gesto de algum que, tendo ultrapassado um limite, j nada tem para dar e
se volta para fora procurando uma resposta. A sua cara escorria sofrimento. A
sua expresso era simultaneamente resignao, espanto e pergunta. Caminhava
lentamente, muito lentamente, do lado de dentro do passeio, rente ao muro.
Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta.
Com a cabea levantada, olhava o cu. Mas o cu eram plancies e plancies de
silncio.
Tudo isto se passou num momento e, por isso, eu, que me lembro nitidamente
do fato do homem, da sua cara, do seu olhar e dos seus gestos, no consigo rever
com clareza o que se passou dentro de mim. Foi como se tivesse cado vazia
olhando o homem.
A multido no parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem
estava sozinho, sozinho. Rios de gente passavam sem o ver.
S eu tinha parado, mas inutilmente. O homem no me olhava. Quis fazer
alguma coisa, mas no sabia o qu. Era como se a sua solido estivesse para alm
de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse
tarde de mais para qualquer palavra e j nada tivesse remdio. Era como se eu
tivesse as mos atadas. Assim s vezes nos sonhos queremos agir e no podemos.
O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio,
contra o sentido da multido. Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do
homem. Ningum o via caminhar lentamente, to lentamente, com a cabea
erguida e com uma criana nos braos rente ao muro de pedra fria.
Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas
eu tinha a alma e as mos pesadas de indeciso. No via bem. S sabia hesitar
e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade
empurrava-me e um relgio bateu horas.
Lembrei-me de que tinha algum minha espera e que estava atrasada. As
pessoas que no viam o homem comeavam a ver-me a mim. Era impossvel
continuar assim parada.
Ento, como o nadador que apanhado numa corrente e desiste de lutar e se
deixa ir com a gua, assim eu deixei de me opor ao movimento da multido e me
deixei levar pela onda de gente para longe do homem.
Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeas, a imagem
do homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensao
confusa de que nele havia alguma coisa ou algum que eu reconhecia.

148
Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vivido. As imagens
passaram oscilantes, um pouco trmulas e rpidas. Mas no encontrei nada. E
tentei reunir e rever todas as memrias de quadros, de livros, de fotograas. Mas a
imagem do homem continuava sozinha: a cabea levantada que olhava o cu com
uma expresso de innita solido, de abandono e de pergunta.
E no fundo da memria, trazidas pela imagem, muito devagar, uma por uma,
inconfundveis, apareceram as palavras:
Pai, Pai, porque me abandonaste?
Ento compreendi porque que o homem que eu deixara para trs no era um
estranho. A sua imagem era exactamente igual outra imagem que se formara no
meu esprito quando eu li:
Pai, Pai, porque me abandonaste?
Era aquela a posio da cabea, era aquele o olhar, era aquele o sofrimento, era
aquele o abandono, aquela a solido.
Para alm da dureza e das traies dos homens, para alm da agonia da carne,
comeava a prova do ltimo suplcio: o silncio de Deus.
E os cus parecem desertos e vazios sobre as cidades escuras.

Voltei para trs. Subi contra a corrente o rio da multido. Temi t-lo perdido.
Havia muita gente, ombros, cabeas, ombros. Mas de repente vio-o.
Tinha parado, mas continuava a segurar a criana e a olhar o cu.
Corri, empurrando quase as pessoas. Estava j a dois passos dele. Mas nesse
momento, exactamente, o homem caiu no cho. Da sua boca corria um rio de
sangue e nos seus olhos havia ainda a mesma expresso de innita pacincia.
A criana cara com ele e chorava no meio do passeio, escondendo a cara na
saia do seu vestido manchado de sangue.
Ento a multido parou e formou um crculo volta do homem. Ombros mais
fortes do que os meus empurraram-me para trs. Eu estava do lado de fora do
crculo. Tentei atravess-lo, mas no consegui. As pessoas apertadas umas contra
as outras eram como um nico corpo fechado. minha frente estavam homens
mais altos do que eu que me impediam de ver. Quis espreitar, pedi licena, tentei
empurrar, mas ningum me deixou passar. Ouvi lamentaes, ordens, apitos.
Depois veio uma ambulncia. Quando o crculo se abriu, o homem. e a criana
tinham desaparecido.
A multido dispersou-se e eu quei no meio do passeio, caminhando para a
frente, levada pelo movimento da cidade.
149
Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso
lado. Pelas ruas.

(De Contos Exemplares, 1962)

150
JORGE DE SENA

(1919-1978)

A excepcional capacidade criativa de Jorge de Sena, como polgrafo que


abarcou os domnios mais diversos da cultura e da arte literria, teve na
poesia a sua expresso mais original e mais vincadamente personalizada. A
obra do ensasta, historigrafo da literatura, crtico e polemista vastssima,
destacando-se nela os estudos sobre Cames e Fernando Pessoa. Mas no
resultou diminuda nem insignicativa, nessa pluralidade, a criao do contista
que, na opinio de David Mouro-Ferreira, o qualica como um dos nossos
novelistas mais poderosos, mais arrojados e mais versteis, de mais largos
recursos de linguagem e de mais livre imaginao. Nesse nvel se situam os
livros de contos e novelas Andanas do Demnio (1960), Novas Andanas do
Demnio (1966) e Os Gro-Capites (1976), bem como o romance Sinais de
Fogo (1979), publicado postumamente, supe-se que incompleto, e que seria,
como o Autor deixou referenciado, a primeira parte de um vasto ciclo que no
sei se chegarei a escrever projectado retrato vivencial da sua gerao numa
longa trajectria demarcada entre 1936 e 1959. Nos prefcios aos mencionados
livros de contos e novelas deixou Jorge de Sena explicitado o seu processo de
ccionista, aludindo ao demorado tempo em que os temas se mantinham em
suspenso, espera de oportunidade para serem denitivamente escritos,
e xando de vez experincias vividas, testemunhadas ou adivinhadas. E tudo
isso, acentuou, num realismo que se quis integral. Um realismo, de facto
o de Jorge de Sena que no exclui o fantstico e o onrico e que na linguagem
narrativa absorve a impresso vivaz do concreto, a ironia ou mesmo o duro
sarcasmo, a fantasia sem limitaes, o inconformismo indignado e o amor
inquieto pela humanidade. Se certo que a co de Jorge de Sena se apresenta
sob vrios aspectos como catarse e assim a interpretou Jacinto do Prado
Coelho: ....com frequncia um autobiograsmo que se furta ironicamente
151
identicao tambm parece evidente que a ultrapassa pela objectividade
do dramatismo e pela diversicao dos motivos essenciais que inspiram os
casos narrados. A energia invulgar de um temperamento e de uma inteligncia
que zeram da criao literria uma forma activa de combate contra esto
y aquello, como diria Unamuno esto presentes com veemncia na obra
novelstica de Jorge de Sena, como nos demais gneros em que se desdobrou.

152
O GRANDE SEGREDO

Alli me mostrarias
aquello que mi alma pretendia (...)

JUAN DE LA CRUZ Cantico Espiritual

Fechou a porta da cela atrs de si, e cou parada, encostada porta, sentindo a
madeira dura na nuca, atravs do vu. A luz da lamparina, no oratrio, bruxuleava
lenta, s vezes crepitante, e espalhava uma claridade a que ela reconhecia, mais
que via, a mesa junto da janela, com os livros pousados, e o genuexrio, e o catre
de tbuas, e as lajes carcomidas. Sabia perfeitamente o que a esperava. Sentira
nitidamente, ao levantar-se da ceia, e depois, na igreja, durante as oraes, que
mais uma vez ia sofrer a visita... Como o corpo se recusava a despegar-se da
porta, para car desamparado na cela, assim tambm, mentalmente, as palavras
se recusavam a nomear o horror que a esperava. Tremia: a pele, como a memria,
retraa-se num palpitar ansioso, de que as mos j se levantavam num gesto de
repulsa. Era superior s suas foras tudo aquilo; no suportava mais. Apetecia-
lhe gritar por socorro, rebolar no cho, fugir pelos corredores e pelo campo fora.
Tudo seria prefervel. Mil vezes ser assaltada por mendigos leprosos, mil vezes
ser violada brutalmente por soldados e bandidos, mil vezes ser vendida como
escrava. Mil vezes a repetio de tudo isso que, na sua pregressa vida, conhecera.
Mil vezes viver a desgraa que essa vida fora, antes de, como um refgio enm
conseguido custa de tanta misria, se abrirem na sua frente, e se fecharem sobre
ela, as portas do mosteiro. Quando, enm, entrara nele, tambm como agora se
153
encostara porta, no a despedir-se do mundo, mas a sentir que tudo cara l fora,
e ela renasceria, teria nalmente a ressurreio da sua vida que o peso de uma
pedra imensa, que era o seu destino, no permitia que surgisse e caminhasse. Mas,
ali dentro, e dentro da ressurreio, esperava-a o horror inominvel de ser eleita,
de ser visitada, de ser amada mais do que possvel.
Abanou a um lado e outro a cabea. No. No. Por piedade, no. As dores
medonhas que sofrera ao ser possuda com violncia por um monstro de dimenses
incrveis, nada eram a comparar com o que, nestes momentos, sucedia no seu
esprito. E, no entanto, a semelhana era muita, era tanta, era de mais.
Quando o claro comeou a surgir entre a janela, e o oratrio, cerrou os olhos,
escorregou ao longo da porta, agarrou no rosrio e percorreu as contas que lhe
fugiam. No era uma tentao que repelia assim; mas era, como bem sabia, um
esforo para que o cu se contentasse com as relaes espirituais de uma orao.
Todavia, tudo no seu corpo aito lhe armava que seria intil. O claro aumentou,
como sempre, e, como sempre, mesmo de olhos fechados ela via o perfume da
imensidade luminosa que suprimia as paredes da cela e a envolvia numa ternura
tpida que lhe doa na medula dos ossos. Tambm a msica, suavssima, lhe doa
assim; e, no entanto, essa msica, que, sem ouvir, sentia, no se misturava
claridade, era antes um acompanhamento, um fundo sobre que a luz se tornava
mais aberta e mais imensa. No tardariam as vozes que lhe apertariam todos os
recantos do corpo, como tenazes ardentes, ou como lbios, ventosas, lnguas.
Num esforo doloroso, abriu os olhos. A claridade enchia a cela toda, e o catre,
o oratrio, os livros, o genuexrio, a mesa, as lajes, as portas da janela, a prpria
lamparina, tudo utuava numa ondulao cadenciada, num torvelinho sem peso,
e navegava como de velas pandas, e esteiras rebrilhantes sussurravam de todas as
coisas como ao longo do casco de um navio.
Agora eram o hbito e o vu, o cilcio que trazia cinta, e o rosrio, que,
devagarinho, levantavam voo e entravam na sarabanda macia. A brutalidade
sufocante e dilacerante penetrava-a j, enquanto o desfalecimento lhe triturava as
vsceras e os ossos. Tudo nela se abria e despedaava, eram milhares de agulhas
que a picavam, facas que a rasgavam, colunas que a enchiam, cataratas que a
afogavam, chamas que ardiam sobre guas luminosas, cantantes, e pousavam
como fogos-ftuos pelo corpo dela.
Crispando-se numa ltima recusa, mas ao mesmo tempo cedendo para que
aquilo acabasse, inundou-se de uma ardncia cristalina, que se esvaa do seu
mago, l onde a Presena, enchendo-a, martelava os limites dissolvidos da
carne. A luz atingiu um brilho insuportvel, a msica atroava tudo, sentiu-se
viscosamente banhada de clamores e apelos que lhe mordiam... E, na treva e no
silncio sbitos, sentiu, nas costas, na nuca e nas pernas, a dureza violenta e fria
das lajes em que, do ar, cara.
154
Abriu os olhos na escurido. O corpo dorido e descomposto, o frio e a
lamparina que ardia bruxuleante, recordaram-lhe que entrara na cela; mas, com
veemncia, horror, revoltada humildade, no recordou mais nada. Deixou-se car
estendida, saboreando uma incomodidade que era exaurido repouso. E comeou a
ouvir o murmrio das rezas, a voz da madre abadessa, sussurros que se destacavam
e reconhecia.
Leves pancadas soaram na porta, o fecho estalou, e a madre e mais duas
entraram recortadas no claro difuso que vinha do corredor, onde as rezas
continuavam. Viu-lhes os hbitos junto do rosto, e as pregas subiam a sumir-se
no escuro. Tinham vindo, como sempre, escutar, ciumentas dos favores que
a cumulavam, apiedadas do sofrimento que lhe cabia em sorte, atradas e
atemorizadas, rezando para a ajudarem e tambm para participarem daquele claro
sonoro que extravasava pelas frinchas da porta. Quando assim se curvavam para
ela, e a levantavam, e carinhosamente a deitavam no catre, e cavam de joelhos,
enchendo a cela e o corredor, rezando com ela, no imaginariam a vergonha
imensa que a turturava, ora diversa, ou igual que sentira quando o emir, no meio
da tenda, mandara que a despissem e os soldados, uns aps outros, a possussem
em pblico. Ela recusara fazer parte, como primeira esposa, do harm, e ele, que
a estimava e preferia, e a comprara aos piratas e a trouxera com requintes de
delicadeza, mandara que os eunucos a estendessem no div e a segurassem.
Deitada no catre, de olhos fechados, apagou da memria todas as recordaes.
Sentia-se descer lentamente, num poo sombrio e hmido, sem fundo. Nem a
presena delas, nem as vozes delas, nada podiam contra a solido e o silncio.
Era este o momento que, anal, mais temia. Era nestes momentos que, bem
sabia, ela consentia na visita prxima, cedia antecipadamente ao apelo e luz,
quando viessem. No dia seguinte, pela madrugada, aps um sono ptreo, tudo
teria passado. As outras irms cruzariam por ela, saudando-a com deferncia,
trocando ou tentando trocar um olhar comovido, um sorriso amvel. A abadessa
cham-la-ia para conversar de coisas correntes, de notcias dos exrcitos e dos
parentes, dos combates em Jerusalm, e do Santo Seplcro. E subitamente, na
cela, no claustro, no jardim, na adega, quando estivesse s, amanh mesmo, daqui
a um ms, de dia ou de noite, tudo se repetia e recomeava. certo que, por
mais que zesse, ocasies havia em que se afastavam dela as outras, a deixavam
s, como se a propiciarem a repetio de acontecimentos que eram honra do
convento. E grandes senhores ou pobres mendigos vinham para tentar v-la,
atravs das grades do coro, ou pediam para que ela os tocasse. A abadessa arrast-
la-ia, de olhos fechados, pegar-lhe-ia na mo, que enaria pelas grades, e ela
sentiria que lhe choravam nela e lha babavam de beijos. A prpria abadessa,
trazendo-a em silncio de volta ao claustro, lhe limparia a mo.
155
Recolheu sobre o seio a mo que pendia para fora do catre, e agora lhe
beijavam. Suspirou. Dentro dos olhos fechados, viu o crucixo que havia na igreja
da sua terra natal, l longe, h tanto tempo, nos conns da Europa. Foi uma
surpresa esquisita que a percorreu trmula da cabea aos ps. Nunca mais o revira,
nem o recordara sem o rever, nem sequer no esprito lhe passara a lembrana, no
reconhecida, de lembrar-se dele. A imagem sorria para ela, e ento ela, menina
olhando em volta para vericar se estava s, erguera a mo para o cendal que o
cingia, e tentara levant-lo para espreitar. Porque ele no podia deixar de ser como
os outros homens. Mas o cendal, que parecia de to na e leve seda, era esculpido
na madeira, e ela baixara tristemente a mo, sentindo que a curiosidade lhe fora
castigada.
Abriu os olhos, e viu que estava s. Uma paz, uma tranquilidade, uma
saciedade que no estava nela, mas no ar que a rodeava, deslaavam-lhe as
derradeiras crispaes do corpo contuso. Ainda, mas muito distantes, sentia dores
dispersas, ou localizadas onde a violncia fora maior. Mas o bem-estar era enorme
e contraiu-lhe os lbios num sorriso. O grande segredo, agora sabia o grande
segredo. E adormeceu.
O claro recomeou a encher a cela, mas no aumentou mais, nem ressoava.
Antes cou em torno dela, como um dossel, uma atenta e vigilante ternura, que,
debruada sobre ela, a contemplasse, to dorida e esmagada, respirar tranquila.

(De Novas Andanas do Demnio, 1966)

156
CARLOS DE OLIVEIRA

(1921-1981)

Alm de uma obra de poeta com denitiva presena neste sculo de grandes
poetas portugueses, Carlos de Oliveira foi construindo ao longo da vida, em
incessante decantao e apuramento de estilo, uma constelao de romances
reveladores da sua grande qualidade de artista literrio. Na concepo rigorista
da expresso e no esforo de artce da escrita que lhe desse o mais justo
contorno no se dissociaram nunca o poeta e o prosador novelstico. So idnticas
e constantes na obra do Autor, em ambas as direces, a sobriedade linear, o
domnio e concentrao semntica da palavra como signicado, a coerncia
na composio em que se reectem os comportamentos e linguagem das
personagens, a maior vibrao contida na simplicidade tenazmente conseguida.
A exigncia do construtor de co ancou-se em estruturas rigorosas e
demorada lavra nos romances Casa na Duna (1943), Alcateia (1944), Pequenos
Burgueses (1948), Uma Abelha na Chuva (1953) e Finisterra (1978). Foi talvez
essa mesma exigncia que desviou Carlos de Oliveira do conto (pela sua sumria
imediatidade), de que aoram apenas alguns exemplos ou meras aproximaes
em passos dos romances e nos textos multmodos de O Aprendiz de Feiticeiro
(1971). De qualquer modo, caram a sugeridas virtualidades que o escritor
parece no ter querido explorar. Mestre no desenho de guras tpicas, de
baixas ambies ou de pequenos-burgueses laminados pelo progresso, como
o deniu Joo Gaspar Simes, no poderia car Carlos de Oliveira ausente
nesta antologia, que pretende ser mais que o testemunho circunscrito de um
gnero literrio e apontar as direces fundamentais da prosa novelstica em
Portugal nas ltimas dcadas. Ora, no enquadramento longo do Neo-Realismo,
que vem at plena actualidade, foi este escritor um dos seus expoentes mais
representativos e a sua obra uma lio de ofcio literrio sempre insacivel de
procuradas perfeies. Como escreveu Mrio Dionsio, a obra de Carlos de
Oliveira uma das realidades mais perdurveis da literatura portuguesa dos
nossos dias obra de um grande escritor que nunca se fechou naquilo que
criou.
157
OS CORVOS

O corvo est poisado no umbral da velha casa, precisamente como no poema


de Edgar Allan. Mas falta-lhe a grandeza do outro, os versos espectrais, o vento
na paisagem onde cintilam ao mesmo tempo neve e noite.
Esqueceu-se disso, o entalhador. Esculpiu toscamente no pedao de carvalho
uma espcie de peru bbado a recolher as asas sobre a quilha do peito e o
gesto parece o prprio movimento da cupidez. Onde havia destino irreparvel
cou devassido, desbragamento arredondado no papo cheio, nas pernas cambas.
Deserto e frio, foram-se. Pacincia. Contudo, um mensageiro do desconhecido
no pode ser assim. Que diabo tem semelhante falta de dignidade a ver com o
mistrio verdadeiro dum corvo que chega pela noite, poisa no nosso umbral e
diz as suas duas palavras mortais? Esta consso escrita cabe exactamente no
espao vazio que ca entre a ave de Poe e a ave do sr. Lucas entrada da casa de
penhores.
Se fosse vivo e vagueasse por aqui, nas ruelas quase chinesas da cidade
baixa (muita gente, carroas, quitandas, o recheio das lojas a transbordar sobre a
calada), o poeta era por certo cliente habitual do Lucas. Estou a v-lo transpor o
pequeno rebate da porta, a alma escura como um enorme corvo, para empenhar a
ltima recordao de Annabel Lee.
No interior da loja, h um balco coberto da tralha mais desencontrada,
jarras, loias, relgios, livros, roupas. Os objectos ganham na penumbra usurria
novas signicaes, uidicam-se, tornam-se sentimentos, resduos de vida. A
luz velada da lmpada cai sobre velhos cetins, derrama-se na cor quente das
colchas que vieram talvez de longe, duma noite de npcias, na lombada escura de
158
encadernaes que podiam ter sido de Edgar Allan ou doutro poeta como ele,
nos relgios de cuco que deram horas mais felizes, no brilho dos talheres
(recordao ntima, quase a apagar-se, de casas desfeitas), no globo terrestre dum
gegrafo morto ou dum sonhador de viagens (com fome), nos mveis antigos,
canaps, cadeiras de espaldar, mesinhas de p de galo, armrios torneados (para
a gula dos coleccionadores), nos brinquedos da infncia, em coisas gastas, pouco
reconhecveis.
Ao meio disto, a gura do Lucas. Corpo mido, seco; rosto oleoso, do tom
vagamente amarelado que tm os crios a arder nas igrejas; o nariz (para ser exacto
na descrio) no recurvo como o bico do corvo tutelar, curto e direito; os
olhos claros, esverdeados, vagueiam com uma volpia fria de gatos nesta feira
da ladra. Veste um casaco de algodoaa e usa. uma gorra felpuda com duas
badanas a cair sobre as orelhas, onde as frieiras crescem numa orao teimosa de
cogumelos. Coa-as devagar. O erguer do brao, duro como o duma asa perra ou
duma cartilagem, esse, faz pensar (agora, sim) no corvo da entrada.
C fora, rente s paredes j carregadas de crepsculo, um vulto gil aproxima-se
da loja. Eu. No hesito ao entrar, no baixo timidamente o rosto. A senhora de
idade, no seu casaco velho, o chapu de palha escura fora de moda, esfrega as
mos uma na outra, envergonhada, como se a culpa fosse dela; depois, procura na
carteira o cofre minsculo de sndalo, estende-o ao penhorista (incrustaes de
madre-prola: cegonhas, uncos, nuvens) e murmura:
uma relquia de famlia, no se desfaa dele, hei-de voltar um dia destes.
Uma relquia, um dia destes... Francamente. O que que o Lucas tem com
isso? Encolhe os ombros, claro:
No posso abrir excepes. Trs meses de juros em atrazo e vai para leilo.
H regras, normas, a cumprir. Se quer o cofre outra vez aparea a tempo.
A tempo? Fito-a de olhos quase fechados. Oio-a pensar. E o dinheiro do
resgate? Como, quando, donde me pode ele vir? O Antnio? Com seis lhos e o
pr de sargento? No. A Tereza? Coitada, tambm no. Tenho l coragem de lhe
pedir mais. Os primos? De facto podiam, mas os primos...
Enm, portas fechadas, muros. E a ignorncia universal do abre-te ssamo.
Que palavras, meu Deus, que palavras se devem dizer? Os tesoiros espera e ns
sem sabermos a senha. Recolhe as notas, a cautela, murmura outra vez:
Sim, hei-de voltar... a tempo.
E sai. Nisto, o Lucas v-me. Rodeia o balco, vem atender-me com o sorriso
vicioso, vido. Estamos ss na penumbra da loja, como eu calculara. Dois corvos
frente a frente. O corvo de Poe morde-me o corao, porque do meu sangue que
ele se alimenta para gritar: nunca mais, nunca mais. A voz ao fundo do tnel, o eco
na gruta vazia. O outro corvo, o da porta de entrada, que ignora a sua solido, que
159
far a alheia, voou a custo do umbral, poisou na alma do Lucas. E olha-me de l.
Arbitra o aviltamento quotidiano. Calculou h pouco o cofre de sndalo, indicou
os juros, os prazos, negociou. Agora, avalia-me com ateno. Que vir este tipo
empenhar?
Mas, entretanto, o meu silncio surpreende-o. Porque eu no digo nada, surjo
e isso basta. O sorriso do Lucas seca lentamente, evapora-se-lhe do rosto, ruga
a ruga, e ele ca plido. Comea a compreender, comea a recuar. Embate no
armrio lacado, no relgio de caixa alta, nas cadeiras, nas mesas. Uma lentido
trmula de passos que o balco detm. H em mim qualquer coisa de areo de
irremedivel. Nem eu sei quem me guia. Sei apenas que chego, mais tarde ou mais
cedo.

(De O Aprendiz de Feiticeiro, 1971)

160
MRIO BRAGA

(1921-)

genuinamente de contista, em aturado aperfeioamento da sua especca


tcnica de gnero, a obra novelstica de Mrio Braga, iniciada pouco depois do
alvorecer do Neo-Realismo como larga corrente literria em Portugal. Com os
contos de Nevoeiro (1944) e Serranos (1948) fez o Autor a sondagem ambiental
dos meios rurais, captando no desenho de personagens e na descrio dos seus
comportamentos de resistncia dureza da vida a verdade social de largas
camadas do povo portugus. A partir de Quatro Reis (1957), prosseguindo
em Histrias da Vila (1958), O Livro das Sombras (1960) e Corpo Ausente
(1961), transitou para atmosferas de maior versatilidade e socialmente mais
diversicadas de gente citadina, debatendo-se simultaneamente ou paralelamente
com problemas em que as situaes de classe se interpenetram com inquietaes
psicolgicas. Nesse percurso, como armou Mrio Sacramento, pode dizer-se
que os problemas formais do conto neo-realista foram resolvidos por Mrio
Braga. E a soluo gerou-se numa experincia reiterada de processos que
melhor retratassem as alienaes duma sociedade estraticada, os contrastes de
condies ante as exigncias do quotidiano ou, por vezes, de grandes crises
familiares ou pessoais. A justeza e capacidade de observao que a crtica
assinalou na obra novelstica deste escritor chegando-se a apontar-lhe um
fundo tchekoviano combinam-se com uma atitude de solidariedade implcita
que lhe refora o calor humano, lhe abranda a dureza caricatural do inevitvel
picaresco e deixa aberta a expectativa da esperana. Sob esse prisma, e para alm
das suas diversidades de signicao e de inteno, vieram integrar-se ainda
outras obras do Autor como as novelas de Viagem Incompleta (1963), o romance
alegrico e satrico O Reino Circular (1970) e os contos de Os Olhos e as Vozes
(1971). A crnica mais ou menos romanceada e o teatro tambm preenchem
lugar aprecivel na obra de Mrio Braga, cuja actividade intensa como tradutor
lhe congurou, ainda, uma assdua presena na vida literria portuguesa.
161
BALADA

O lugar de Sequeiros planta-se no alto da Serra de Queir, arriba de Zebrais.


terra de pastores, encravada entre penedos. Os homens vivem ali, esquecidos
dos outros homens, a cuidar dos rebanhos e a ver crescer os pastos. O gado
a vida da gente de Sequeiros; a l, o seu trigo e o seu po. S nos escassos
meses de veraneio a terra ca nua e pode gerar. No inverno, vestida de branco, ela
adormece. Pastores e rebanhos pernoitam no quente dos currais, e o dia da serra,
na pista do verde. O inverno traz a fome a homens e animais. Semanas e semanas
o gado no coberto, por culpa dos neves, sem poder emigrar para o vale. Depois,
morre a erva, j pouca, queimada pelo gelo, seca o leite das fmeas, e cresce a
fome dos pastores.
Manel Librio era homem rico, senhor de terras e de muitas cabeas. Melo
Bicho era pastor velho e pobre, a quem j ningum conava gado. Manel Librio
vivia em casa de bom aconchego, rodeado de famlia. Melo Bicho dormia
quase na rua e tinha apenas um lho amalucado. Manel Librio e o seu rebanho
passavam vida farta. Melo Bicho, o lho, e as suas sete ovelhas curtiam fome
como danados. E ambos eram criaturas de Deus, naturais de Sequeiros.
Nesse ano, o inverno chegou cedo. Duas semanas de nevo cobriram a serra de
branco e queimaram o pastio. Foi ento que comeou a tragdia do pastor velho e
cansado, pai de um lho doido e dono de sete ovelhas famintas.
Dias e noites a o baliram os animais com fome. Dias e noites, sem dormir,
escutou Melo Bicho o triste balir das ovelhas. E sofria no seu amor por elas:
Cala-te, Marrafa, cala-te, Nina... Mas o cu no parava de abrir-se em neve, e a
162
neve em frio, e o frio a picar a carne velha de Melo Bicho. Choramingava o lho
maluco, baliam os animais famintos na verde saudade do pasto. E mais sofria o
pastor velho com a fome das sete ovelhas.
A casa grande de Manel Librio quase se encostava toca negra de Melo
Bicho. Saa-se a porta, dobrava-se a esquina, e cava-se de caras para o aprisco.
Um aprisco como um palcio, amplo e coberto, onde as ovelhas felizes do vizinho
rico baliam alegres da fartura, que Manel Librio tinha pasto seu e muitos braos
para lho juntarem em casa.
Denhavam as ovelhas do pastor pobre: engordavam a recato as do pastor rico.
E mais sofria Melo Bicho: Cala-te, Negra, cala-te, Nina... A neve no parava
no correr das semanas. Gemia o lho doido de Melo Bicho. Gemia, gemia. E
secava-se o leite das fmeas, morrendo os anhos.
E uma ideia brotou no crebro velho do pastor esfaimado. Todas as ovelhas
eram iguais, feitas por Deus; ento, porque baliam as suas de fome e as do vizinho
de fartura? E no achava resposta boa para mistrio tamanho. No pensava em si,
na sua fome; se os homens eram tambm iguais, por os ter feito a todos o mesmo
Deus, no sabia ele, nem tal coisa o preocupava. Mas as ovelhas, sim, nasciam
iguais da igualdade de Deus. E, sendo deste modo, qual o remdio? Pedir pasto
ao Librio? No! Ele era homem rico, nada daria. Mas os animais, sim, decerto
no o negariam fome dos irmos. Pedir a Librio? Isso nunca. E tal ideia no lhe
saa da cabea. Ele, Melo Bicho, pastor desde menino, sabia falar com o gado.
Entendia-o e fazia-se entender: por isso iria at ao curral do vizinho e contaria s
ovelhas gordas a fome das sete ovelhas magras. No lhe negariam o pasto.
A ideia cresceu no volver dos dias. Por m, no cabia j na cabea velha de
Melo Bicho. At que, a meio de uma noite escura, acordou o lho, enrolou-se na
manta, pegou no cajado, que as pernas faltavam-lhe, olhou os animais estendidos
no cho, e saiu para as trevas forradas de branco. Cala-te, Boa, cala-te, Negra...
Nada bulia c fora, quando Melo Bicho comeou a andar com o lho maluco
atrs. Caminhava lentamente, enterrando os ps na neve fofa, e o rapaz, que
acordara estremunhado, ia a imprecar contra a friagem. O pastor velho pensava
sempre: Todos os animais so lhos de Deus, uns com fome, outros com fartura,
coisa mal feita!
Dobraram a casa grande de Librio, e a cerca do aprisco barrou-lhes o
caminho. Mexiam l dentro as ovelhas, tiniam de manso os chocalhos. A noite
porm, estava muda. Mal transpuseram a porteira e penetraram no coberto, viram
luzir, no escuro, os olhos dos animais. Melo Bicho riscou um fsforo, e a luz,
muito amarela, derramou-se, a tremer, pela l farta do gado. Falava em voz baixa,
meigamente: Lindas, lindas... Depois, num sussurro, explicou-lhes ao que
163
vinha. Baliram as ovelhas ricas e Melo Bicho entendeu a resposta. Dobrando-se,
os ossos velhos a estalar, encheu de feno, at boca, o saco esapado. E o lho
maluco imitou-o.
Deixaram por m o curral, cada um com sua carga. frente, o velho apoiava-se
no cajado; o lho, atrs, arrastava os ps descalos, rezando maldies e gemidos.
Quando Melo Bicho j ia longe do cercado, uma voz na rasgou a noite muda:
Agarra qu ladro! Agarra qu ladro!
Rachando o silncio de meio a meio, o berro sobressaltou o pastor que,
ajoujado com o peso do fardo, quis alargar o passo. Mas, alguns metros adiante,
a armadilha da neve, ainda a cair em ocos, entravou-lhe as pernas frouxas, como
se algum, oculto debaixo da terra, lhas estivesse a puxar. Por mais esforos que
zesse, retesando as coxas magras, no conseguiu libertar-se. E, de sbito, uma
angstia dolorosa f-lo ajoelhar lentamente no frio e branco colcho. Ainda tentou
arrastar-se, abraado ao saco de feno, a vida das suas ovelhas: Cala-te, Marrafa,
cala-te, Negra... Porm, sob a manta espessa da neve, adormeceu para sempre,
j quase porta de casa.
E o lho doido do pastor, girando como um pio em volta do corpo do pai,
continuava a gritar:
Agarra qu ladro!

(De Serranos, 1948)

164
AGUSTINA BESSA LUS

(1922-)

A obra de Agustina Bessa Lus constitui um caso de especial complexidade


e de multiplicidade de perspectivas na literatura portuguesa contempornea.
Nela conuem velhas tradies nacionais da novelstica sobre ambientes e
personagens provincianos em que podem encontrar-se ecos de Camilo Castelo
Branco; uma vontade de realismo que aspira a atingir as profundidades e se
deixa submergir pelo uxo narrativo do desencadear de exaltados sentimentos e
secretas relacionaes humanas; a atraco romntica pelos mistrios de almas
insatisfeitas que se agitam na busca da sua identidade. E ainda, como assinalou
lvaro Manuel Machado, a senda do ps-simbolismo do Ral Brando de
Hmus, um neo-barroquismo e a inuncia directa de Marcel Proust ao nvel da
estrutura espcio-temporal do romance. Com tudo isso, manifesta-se na Autora
uma liberdade de inveno sem margens que vai da efabulao linguagem e
impe ao leitor uma atitude interrogante para decifraes possveis. A atmosfera
dominante da novelstica de Agustina a da burguesia ou pequena aristocracia
do Norte do pas, em conitos que brotam do viver habitual mas logo se dilatam
singularidade dramtica e mesmo ao trgico ou ao mtico, exprimindo-se numa
pesada e quente vitalidade que a prpria Autora assinala num dos seus livros.
Iniciada com os romances Mundo Fechado (1948) e Super-Homens (1950),
alargada em diversicao de direces com Contos Impopulares (1953), a sua
obra conquistou denitiva projeco com o romance A Sibila (1954), a que
se sucederam, alm de outros, os romances Os Incurveis (1956), O Manto
(1961) O Sermo de Fogo (1963), As Frias (1977) e ciclos romanescos como
As Relaes Humanas (1964-1966). Em narrativas recentes fez a anlise de
situaes de crise provocadas pela Revoluo de Abril de 1974 em Portugal e
publicou biograas de ousada e livre interpretao de guras como a da poetisa
Florbela Espanca e do ministro setecentista Marqus de Pombal. Conjugando
regionalismo, inveno de linguagem e metafsica como apontou tambm
165
lvaro Manuel Machado a escritora consegue efeitos romanescos inesperados,
muitas vezes enigmticos mas sempre impressivos, que incitam a superar as
diculdades frequentes de leitura da sua criao ccionista ou biograsta.

166
FILOSOFIA VERDE

Numa dessas madrugadas em que o nevoeiro parece que d aos becos mais
sinistros como que uma comunicao de claridade, de luar, dois homens tentavam
abrigar-se do frio, no limiar um tanto avanado dum portal. Maltrapilhos, de
barba rala ambos, no falavam. Apenas abraavam a arcada do prprio peito,
agasalhando as mos, pecas e de falanges lvidas, nos sovacos e sob as cavas dos
casacos pinges, prenda decerto dalguma benecncia ou dalgum monturo. No
se poder denir a sua prosso, sem que um riso extasiado nos assome aos lbios
um riso de Falstaff que sonha, ou de Mestfeles que faz metafsica. Aqueles
dois homens, que se amparavam com o prprio bafo, pertenciam a um gnero
que, por ser ilegal, tem mais assegurada a sua continuidade. Eram simplesmente
caadores de mortes sbitas. Oh, todos ns sabemos o que so mortes sbitas!
Uma apoplexia para classes abastadas, quando o heri transita de um bairro ao
outro, dum extremo ao outro da tica, e reconhece anal que no lhe valera dar um
passo, pois a morte faz com que se toquem todos os extremos. O m, que nunca
nos parece prematuro, mas sim fatal, dos annimos, e este no tem designao
nem assopra os ventos da curiosidade.
Aqueles dois seres nocturnos viviam dessa empresa, mais macabra ainda por
ser ridcula, de sgar os falecidos na via pblica, os que a congesto vitimou
ou o corao deteve no caminho, os que o frio tolheu na posio de quem ainda
aspira do colo materno o afago, ou os que a fome prostrou, unhando a terra e
colando nela uma boca ainda esperanada, humilde. Quando o aspecto do morto
denunciava um burgus, ainda que de limitadas rendas, subtraam-no ao carro que
fazia o intercmbio entre esses paradeiros de acaso e a morgue, entregavam-no
167
a domiclio, e esperavam, como bons funcionrios, a gorjeta. Nas reas em
que actuavam, travavam relaes com o polcia de giro, bons homens sempre,
que usavam a violncia mais por serem timoratos do que arrojados. No raro,
merc duma piedade compadresca, os caadores de mortes sbitas, cavam-lhes
sob proteco. E dessa autoridade bonachona, que nem auscultava a razo para
esquecer a lei, provinham as informaes mais cobiadas.
Ento, senhor guarda, esta noite, nada?
No h nada...
Separavam-se. Um acoitando-se nas goelas dos portais, perto da carreta que
as sombras ocultavam; o outro prosseguindo na ronda, o capote salpicado de um
orvalho no, que era como limalha de prata que viesse oscilando no nevoeiro.
Essa era, ao parecer, uma das noites em que no havia nada. Os dois vigias
em vo velavam no seu lugar estratgico, saltitando a p-coxinho para no se
entorpecerem e proferindo pragas surdas e sem clera. Naquela ruela esbicada por
salincias de velhas varandas, experimentava-se a sensao de assistir ao estertorar
do silncio. Eram como clamores ltrados por um tempo innito, gemidos que as
prprias pedras emitiam, um impar de fadiga resignada, de dor que a sua prpria
conscincia de eternidade faz passiva, sem, porm, a amortecer. Um dos homens
tinha recuado mais para o vo do portal, buscando um nicho onde encolher-se e
possivelmente dormitar. O outro falou-lhe, movendo a custo os beios brancos.
No pares, h, se no queres vir nos jornais!
Deixa l... murmurou o que dobrara sobre si mesmo, o rosto mergulhado
no seio, entre as lapelas bambas do casaco. E no disse mais nada; cou-se quieto,
esforando-se por concentrar todo o calor, evitando os movimentos, que eram
como agulhadas penetrando-lhe a pele amolecida, gasta, como um pano que se
usou demasiado. No extremo da rua rolhada pela treva, ouviu-se, tnue e distinto,
o sinal do guarda.
Temos freguesia, vamos disse o que permanecia de p, pulando e
sacudindo-se como algum que sofre uma queimadura. Vamos repetiu. Sau
para o passeio; as alpercatas pegavam-se-lhe nas lajes hmidas, e ele tremia,
muito embebido no nevoeiro, onde se recortava como uma silhueta verde-cinza
ligeiramente prateada nas bordas.
H um tipo a perto esclareceu o guarda. Teso como um carapau, e eu s
queria saber como vocs se vo arranjar com ele. Parece que est morto desde o
princpio do mundo, e conservava-se assim bem at que ele acabasse.
Ele h sangues que coalham logo, h disse, conspcuo e condencial, o
caador de mortes sbitas, enquanto caminhava. Reparou que o companheiro no
o seguia, e rogou-lhe algumas pragas, a que a falta de solenidade e convico
devia esmorecer os efeitos.
168
C est o sujeito. Faz-me arranjo...
Abaixou-se at junto do corpo, e voltou-o. A lanterna iluminou uma face hirta,
com uma amolgadura de queda na tmpora; lquidos viscosos corriam-lhe das
narinas, e a boca, cerrada, tinha uma expresso mstica e quase sorridente. Parecia
pertencer a essa classe de escriturrios que tm a sua originalidade, como
uma marca de fogo, no macilento da tez, na expresso batida e no terrvel
do olhar abandonado, vil porque nada espera, sem que, porm, se tenha nele
extinguido a presso dos desejos. Sob a borda das mangas do rapado sobretudo,
tinha ainda vestidos os canhes de sarja preta, que os elsticos, gastos, faziam
soltos nos pulsos. Voltava talvez dum sero de contabilidade, de escrita, recurso
extraordinrio das suas necessidades, onde adeja sempre um terror de misria,
mais esgotante que o combate, em campo aberto, com a prpria misria. Tinha
no dedo mdio um calo que o apoio da caneta provocara, e que estava um
tanto penetrado de tinta violeta. Mas as unhas eram longas, esmeradas, polidas,
como as dum guitarrista; usava-as em bico, aduncas, muito limadas nos bordos,
apuradas com esse capricho ingnuo que , s vezes, um tique manaco, uma
espcie de conforto ocioso numa vida estrangulada de inquietaes, de perigos,
ou simplesmente de rasa mediocridade. Quantas coisas estranhas, complexas,
denunciavam aquelas unhas em garra, sopradas com um bafo, lustradas na manga
ou na anela da cala, tasquinhadas a lmina e a canivete, miradas a distncia com
anlise, com aprovao, com crtica! Que profundas maravilhas de aspiraes
audaciosas, ardentes, elas traziam superfcie do homem cujos passos, cujas
palavras, cujo ritmo de realidade no eram mais que trivialidade, chateza, um rojar
de coisas e pensamentos vos!
O guarda desviou-se um pouco; o estalido da lanterna ao apagar-se, teve a
ressonncia duma aldraba na, de cobre, que se deixa cair.
Chama l o outro, e aviem-se disse, desabrido. Entregou o carto do morto,
que retirara da carteira. Andam com sorte. s vezes no h jeitos de a gente os
identicar.
Mais uma vez, o caador de mortes sbitas olhou sua volta, procurando o
companheiro, sibilando palavres e ameaas, pulando como um orango que se
excita. Por m, retrocedeu para a viela onde zera atalaia, numa corrida chegou
ao portal, que franqueou para tropear no vulto que, enrodilhado, o queixo enado
entre os joelhos, parecia dormir. Abanou-o, pondo no gesto uma brutalidade, e,
sem contudo pensar inteiramente nele, chamou-o pelo nome, com uma entoao
irada e fraterna. Mas, por sua vez, o outro tinha morrido; no havia j um hlito
de vida, e energia, de calor, nessa carcaa que jazia enovelada como uma bola de
alinhavos, inconsciente, mole. Tinha as plpebras fechadas e dormia, sim, com
uma ruga de perplexidade na fronte e que, desfeita, lhe desenharia uma linha mais
169
clara, tanto tempo a trouxera, desde a infncia talvez a criara e se habituara a ela.
Dormia, no mais cego, agora que os seus olhos se vidravam, frios como bolas
de berlinde, e, como elas, irisados de cores que parecem nubladas, perdidas, sob
a superfcie do vidro opaco e que os muitos golpes riscaram. Os seus cabelos
so o nico agasalho da sua nuca, que, dobrada, parece oferecer-se a um cutelo
de magarefe; as suas mos esto entrelaadas, apertando o vazio; o seu corao
est agora tranquilo, e ele dorme. Como esses bolores que crescem nas valas,
nas podrides, e delas extraem a sua prpria forma, no inspira nojo, nem sequer
desgosto. Porm, se virmos sob essa matria, essa cor de fungo, uma pele humana,
o fssil dum sorriso, dum esgar, duma aspirao humana, ento o nosso peito
ceder com a intensidade do assombro do assombro, da incredulidade, da
surpresa, e nada mais. No h dor que dedicar, pena para sentir. Apenas espanto,
humilhao, desejo de reverter tambm a esse destino que nos faa irmos no
inferno e na lama, j que a luz escassa e o acaso um insulto que, poupando-nos,
nos envergonha.
O homem caador de mortes sbitas cismava, junto do companheiro. Conhecia-
lhe a amiga, um ente torcido como um tronco que no oriu. Dizer que ela lhe
tinha amor emprestar ao amor um novo sentido; uma vez que aquela dedicao
de besta enferma, aquelas traies de fmea que, na fossa da continuidade mais
estiolada e rida, procura ainda a esperana, a aventura, tudo isso um estado
de amor e de dio, a prpria raz da vida, unidade e dualidade fatais. Ela receb-
lo-ia com os clamores uivados que partem mais dos nervos que do corao, havia
de chor-lo depois, beijando-o com esses mimos que nos fazem voltar o rosto
angustiado, porque s nas criaturas jovens, nos que so belos e trazem em si o
sinete esplndido da vitalidade no brilho do olhar, no cndido fogo dos sentidos,
s nesses os admitimos.
H pensou o homem o outro morto... E eis que o dilema se lhe agurava
insolvel. Arrastando o amigo para o quartelho onde, como uma lava, escorria
a humidade, e onde o receberia a terrvel mulher, que o crivaria de culpas e
de injrias, perderia aqueloutro cadver cujo transporte lhe renderia o seu lucro
daquela noite e talvez de muitos dias mais. Duas vezes se moveu para deixar o
corpo no seu cncavo de portal, e outras tantas parou, hesitou e volveu. O morto
era apenas um fardo, mas to presente como se um sentido vivo o explicasse,
lhe insinuasse poderes e leis. H o outro... pensava ainda o homem. E
via um postigo envidraado que se abria, ouvia uma voz ensonada, trpega,
agastada pela campainha a desoras; depois, as exclamaes trmulas, as luzes
que se ascendem, os passos que se arrastam na passadeira, soluos que vibram,
sufocados, amordaados; por m, a mo que gratica e fecha lentamente a porta,
como quem se isola e divide dois mundos, dois pedaos de vida.
170
Com um gemido de renncia e de rancor contra si mesmo e o tirano que assim
o vencia, pegou no companheiro morto, colocou-o na carreta, e afastou-se com
ele. Tragou-os a ambos o boqueiro do beco que desabrochava em novos laos
de artrias sujas e solitrias. De longe, na fulgurao verde do nevoeiro, parecia
ele uma raiz que a terra expeliu, que se mantm superfcie, nodosa e aniquilada,
com pequenos tumultos de seiva criando inesperados milagres de vida. Como as
oliveiras da ilha de Maiorca, secas, centenrias, devoradas do tempo, mirradas e
esbracejantes como impotentes fantasmas que se contorcem numa dor esttica,
dor que a prpria conscincia de eternidade faz passiva, sem, porm, a minorar,
como essas rvores mortais, de cujos braos extintos brota, um dia, um pequeno
ramo estuante e verde, assim era ele. Como a losoa verde duma folha tenra,
encantadora e brilhante, assim era a generosidade do homem que se afastava com
a carreta, donde pendiam os membros inertes do morto. E toda a sua histria
estava talvez na losoa verde daquela noite.

(De Contos Impopulares, 1953)

171
URBANO TAVARES RODRIGUES

(1923-)

Um inuxo mais desvendado de cosmopolitismo, por inuncia da


novelstica europeia mais moderna e, designadamente, da novelstica francesa
de inspirao existencialista, veio inserir-se na co portuguesa com a obra
de Urbano Tavares Rodrigues no comeo da segunda metade deste sculo. Foi
nessa linha, enriquecida por uma densa cultura literria actualizada, que se
liaram os seus primeiros livros de novelas, gnero que tem prevalecido a par
do romance na criao literria do Autor, invulgarmente numerosa e exuberante.
A memria da infncia no Alentejo e, mais acentuadamente a partir de certa
fase, a adeso entusistica e combativa resistncia antifascista em Portugal,
trouxeram s opes temticas e escrita narrativa de Urbano novas sugestes,
embora sempre convergindo para uma ntida unidade de expresso com razes
temperamentais na personalidade do escritor. E esta revela-se igualmente na
torrencialidade da escrita, na insistente representao ertica e na vocao,
assinalada por Jacinto do Prado Coelho para um sentido colectivista da
solidariedade que alimenta os temas dominantes da sua obra vastssima:
o amor, o erotismo, a aventura, a coragem, o encarceramento, a morte e a
esperana. O mpeto da luta poltica e do protesto social que na obra, sobretudo
mais recente, se inscreve com grande fora, aproximou Urbano da gerao
neo-realista inicial at num andamento lrico e de certo modo pico que
caracteriza vrios dos seus livros mais signicativos, sem que por isso se
submergissem de todo as iniciais inspiraes existencialistas. Da sua criao
novelstica muito abundante, em que chegam a aorar os inconvenientes da
precipitada improvisao (mesmo pela patente riqueza de inveno efabuladora e
de linguagem que a motiva), apontam-se apenas alguns ttulos exemplicativos,
a documentarem pocas na obra do escritor: Porta dos Limites (1952), Uma
Pedrada no Charco (1958), Bastardos do Sol (1959), Terra Ocupada (1964),
172
Contos da Solido (1970), Estrada de Morrer (1972), Fuga Imvel (1982)
livros estes intercalados em cerca de trs dezenas de obras de co. Urbano
Tavares Rodrigues tambm autor de obra muito vasta e prestigiosa de crnicas,
relatos impressionistas de viagem, ensaio e crtica literria e teatral.

173
A MEIA HORA DE SOL

Eram casados, mas na verdade como se no o fossem, pois quatro anos


volvidos sobre o registo legal continuavam amantes quer na paixo com
que se entredevoravam quer na disponibilidade que entendiam dever preservar.
Escolhiam-se dia a dia um ao outro. No tinham horrio para o amor. E, como a
vida de Mateus estava sempre ameaada, muitos dos instantes em que se uniam
tinham para eles um gosto atormentado e exaltante de primeira vez e de nunca
mais. Mas eram alegres. Iam jantar fora com frequncia e at passavam ns
de semana muito ntimos, quase clandestinos, em pequenos hotis retirados, de
atmosfera civilizada e sorridente, governados por estrangeiros.
Na manh em que o vieram buscar dois homens porta e outros dois na rua
ele cerrou os dentes com fora, recusando-se emoo em altura tal, e s lhe
disse:
Espera por mim, Jlia!
Mas beijou-a, primeiro na boca e depois nas mos, com devoo, como a
desfazer-se em gua de alma, que nem ele jamais se apercebera de que lhe queria
tambm assim.
No isolamento da cela reinventava-a, rememorava dia a dia, minuto a minuto, os
quatro anos percorridos lado a lado; lamentava o tempo que no lhe dava por esta ou
por aquela razo; tinha-a, com toda a gama dos seus olhares, queixumes, suspiros,
gritos e xtases, em todos os alaridos raivosos da sua continncia forada. De noite,
ele que briosamente velava, em face dos estranhos e de si prprio, pela sequido dos
seus olhos e pela nudez dos seus lbios, acordava debulhado em lgrimas, assistindo
agonia de ausncia que ela, sozinha em casa, conheceria.
174
Depois foram as visitas de cada vez meia hora de sol, mesmo que o sol
exterior no luzisse no rmamento. Um vidro a separ-los, as palmas das mos
esposando-se, uma de cada lado dessa delgada, mas intransponvel, fronteira que
os dividia. E quase nada conseguiam dizer. Falavam sobretudo pelos olhos, pelo
tremer da boca, pelo pasmo atroz do nal, na ocasio de se separarem. A tarde que
se seguia era de todas a mais dolorosa, mas ainda quente do calor de vida que ela
trouxera. E sucedia-se o deserto de uma nova, longa, hrrida semana, contando os
dias que faltavam para a luz breve de outra visita. Durante meses, e na perspectiva
de anos iguais.
Mateus enchia trs vezes por semana, com uma exacerbada angstia (mas era
aquele o nico alimento do seu silncio) a curta folha de bloco regulamentar que
podia mandar-lhe por carta. E Jlia respondia, at lhe escrevia todos ou quase
todos os dias, mas no deixava no papel a mesma vibrao: constrangia-a, mais do
que a Mateus, que no tinha outra escapatria, a certeza de que as suas palavras
mais suas e mais dele (que logo descoravam e se derretiam na linfa do banal)
seriam lidas, porventura escarnecidas, por estranhos.
Aigido de pesadelos, de tremores, de paralisias nocturnas, sempre tenso e
remordido, na sua solido, por todas as ideias que acodem a um homem em
tais circunstncias, desde os rebates do herosmo e o orgulho do seu martrio
social aos extremos do desespero e autocomiserao, Mateus via reectida na
correspondncia dela (que ia acumulando na mesa de pedra onde comia e onde lhe
escrevia) uma frieza progressiva. Principiou ento, violentando-se, a alterar o tom
das mensagens que lhe parecia arremessar ao vazio: Vive a tua vida. absurdo,
de facto, armares em monja, nem isso estaria de acordo com a nossa viso do
mundo. No ques amarrada a um fantasma. E, sobretudo, quando tiveres, se
vieres a ter, como natural, outros interesses, peo-te que no me faas a esmola
de vir ver-me. Eu tenho, alm de ti, como sabes, uma razo de viver, em suma,
uma justicao da minha existncia. Repetiram-se, por mais de uma vez, estes
destemperos lgicos, que, por escrito, doam mais e no tinham a desculpa dos
gritos que ele sufocava, na sua cela. As visitas tornavam-se, por vezes, amargas,
extenuantes. Jlia adivinhava-lhe nas sombras e nos vincos do rosto a escureza da
suspeita e, ao mesmo tempo, uma adorao descabelada (porque tudo ele ia, com
efeito, obsessivamente concentrando nela), adorao, de resto, tambm odienta,
a raiar por essa mesma forma de amor possessivo e dependente que dantes ele
considerava com o seu sorriso mais racional uma forma de alienao. Tinha
Mateus, logo aps a doura melanclica e visivelmente construda com que lhe
surgia, brusquides, impacincias (que at a vexavam perante o agente) e j, de
quando em quando, cleras inoportunas que prenunciavam um convvio infernal.
Mas porque que no vais ao cinema? Estou farto de te dizer que vs (era
175
o bastante para elevar a voz). Ou ento (Jlia fazia estudos de mercado para
a agncia de publicidade onde trabalhava): Os teus colegas nunca te levam a
danar? Sabes bem que no me importo... E, perante o olhar de reprovao, entre
triste e indignado, com que, aps uma dessas penosas sadas, ela o tou, Mateus
cometeu a imprudncia (mas j a frase lhe queimava a lngua) de dizer:
melhor que nunca mais voltes. No, no venhas. S nos ferimos um ao
outro. Saio daqui, por dentro, a escorrer sangue. E tu vais-te embora ainda em pior
estado.
Mas, Mateus, meu querido...
E ele voltou-lhe as costas (s, alis, para que ela no o visse chorar). O guarda
veio, abriu a porta, do lado dela, com um pesado rudo de chaves ferrugentas.
Mateus soube, pelo som leve, mas lento, dos passos, que Jlia partira.
E nunca mais, em manhs de sol, a sombra dos vares da janela se tornou em
ores na parede caiada da cela, no dia que fora o da visita.

(De Contos da Solido, 1970)

176
JOS CARDOSO PIRES

(1925-)

Numa obra pouco numerosa mas sempre amadurecidamente elaborada e,


em cada livro, a marcar densas expresses da condio humana no embate de
cada um com os outros e com a sua circunstancialidade no mundo, Jos Cardoso
Pires integrou as suas adeses s evolutivas experincias neo-realistas, a que se
tem mantido muito ligado, com um sentido peculiar da pessoa representada em
personagem. A concepo implcita de um instintivismo essencial no homem,
que chega a isent-lo, de algum modo, da responsabilidade consciente nos seus
comportamentos sociais, envolve a novelstica de Cardoso Pires numa atmosfera
muito singularizada e condiciona o sentido denunciatrio da injustia que lhe
quer imprimir. O contista ainda juvenil de Os Caminheiros e Outros Contos
(1949) e Histrias de Amor (1952) alargou a sua tcnica narrativa na construo
do romance, posta prova em O Anjo Ancorado (1958) e O Hspede de
Job (1964), at alcanar notvel altura de realizao efabulativa e de anlise
de caracteres em O Delm (1968) e Balada da Praia dos Ces (1982).
O adensamento de signicao individual e tipicada das personagens e a
crescente preciso estilstica que demarcam o percurso literrio de Cardoso
Pires evidenciam-se tambm nos contos retomados em Jogos de Azar (1963).
Observao realista e inveno imaginativa seguramente conjugadas associam-se
com meticulosa justeza na prtica do narrador. Ele mesmo observa nas palavras
nais do seu mais recente romance: Entre o facto e a co h distanciamentos
e aproximaes a cada passo, e tudo se pretende num paralelismo autnomo e
numa conuncia conituosa, numa verdade e numa dvida que no so pura
coincidncia. Foi esse processo de trnsito, muito consciente e voluntrio, do
observado para o ccionalizado que a ensasta brasileira Nelly Novaes Coelho
referenciou na obra de Cardoso Pires ao apontar a sua vigilncia constante
para transcender o signicado real e raso do real objectivo e dar-lhe uma
conotao simblica. Com a pea teatral O Render dos Heris (1960), o
177
ensaio crtico-social Cartilha do Marialva (1960), e a fbula satrico-poltica
Dinossauro Excelentssimo (1972) dilatou este escritor, para diversas direces,
a reconhecida importncia da sua presena na literatura portuguesa das ltimas
dcadas.

178
OS CAMINHEIROS

Antnio Grcio disse:


Vida dum capado. Amaldioada seja ela mais aquele que a inventou.
O companheiro ouviu, continuou em frente, sempre de cabea levantada na
mesma direco; de vez em quando estendia a bengala a tactear o asfalto.
O teu compadre garantiu-te que vinha? perguntou.
Que vinha, no. Ns que amos ter a casa dele. O que se combinou foi
isso.
Nesse caso...
Foi isso repetiu Antnio Grcio. Comprometeu-se a esperar por ns toda
a tarde.
Hoje?
Hoje, catano, hoje. Ainda no estou com to m memria que me esquea das
combinaes que fao. Se esse meu compadre se esteve borrifando e foi l para a
cidade ou para o raio que o parta, pior para ele. Que se trabalhe. O interesse dos
dois, no s meu.
Ouviram o klaxon dum automvel e desviaram-se para a berma da estrada.
Antnio Grcio segurou o brao do companheiro: alguns metros adiante, uma
cobra pardacenta lanava-se ao caminho, precipitadamente.
O que foi, Tino?
Uma cobra. O automvel apanhou-a.
Deram mais alguns passos, at que Antnio Grcio mandou parar o companheiro.
Aos ps dele, a cobra contorcia-se, dividida em dois pedaos. A parte da cauda, presa
ao alcatro pelo ponto em que partira, estava quase imvel, sem vida, enquanto o resto
do corpo se sacudia no meio duma mancha de sangue e de escamas.
179
uma rateira concluiu Grcio. Observava as manchas largas que ela tinha
no lombo, a cabea pontiaguda, essa muito branca, os olhos vivos e a lngua que
tremia, solta no ar. No h dvida. Pelos sinais, uma rateira legtima.
Posto isto, ele e o companheiro seguiram jornada. Grcio devia ir a lembrar-se
da cobra, das manchas e dos sinais que a distinguiam das outras, porque pelo
caminho voltou a falar dela. Disse ento.
Para mim, o que mais me espanta encontrar uma rateira por estes stios.
Mas no h dvida, era uma rateira e das boas. S tenho pena que no se possa
aproveitar a pele, Cigarra.
O outro ouviu e guardou silncio. Antnio Grcio continuou:
certo que agora a poca do cio e, portanto, elas no escolhem stio. Mas
para uma rateira andar por estas bandas porque a traz sgada. Talvez andasse
caa, quem sabe?
Viste-a bem? Tens a certeza que era uma rateira?
Certezssima. Trabalhei nos poos da Gafanha e conheci toda a qualidade
de cobras. Bichas-de-gua, rateiras, guardas-de-telhado, tudo. Lidei com elas,
Cigarra. A mim ningum me ensina a diferenar uma rateira.
Os dois caminheiros seguiam ao sol pelo meio da estrada. Palmilhavam um
troo desabrigado, plancie esquerda, plancie direita, e muito naturalmente,
falta de sombra, escolhiam o terreno mais certo, o de melhor piso.
Calor dos infernos protestava Antnio Grcio a todo o passo. E mais
adiante, referindo-se ainda s cobras: Neste tempo andam elas, pelos feijoais
procura de macho. As bichas-de-gua, bem entendido. Cigarra, se tu visses
uma cobra e um cobro na brincadeira, at te mijavas. Enrolam-se de tal forma
que chegam a car como duas estacas. De p, levantadas na ponta do rabo. E
assopram, fazem um assoprar medonho uma com a outra.
Cigarra tossiu seco. Tropeou com a bengala em qualquer coisa e desviou-se
calmamente, apoiado no brao do outro.
Que marco era, Tino?
O companheiro voltou-se para trs:
Marco nove. No tarda muito, entramos noutro quilmetro.
E o Retiro? tornou Cigarra. Ainda falta muito para o Retiro?
A uma hora. Mas antes disso apanhamos as rvores.
As rvores do Carrascal, j sei. Se no me engano, foi nesse stio que a
Guarda implicou com a gente da outra vez.
Pois respondeu o Grcio , pois.
Ia a passo mido, decerto para acompanhar o andamento do outro, e o modo
de se mover, os gestos, a voz at, davam-lhe um ar contrariado, impaciente.
180
Tino disse o Cigarra, travando-lhe um tudo-nada o brao. Essa conversa
do teu compadre o que era?
Havia muita coisa que Antnio Grcio compreendia pela maneira como o
amigo o agarrava. A curiosidade era uma delas. Pela fora dos dedos, pela demora
com que os pousava ou mantinha atentos sobre o brao dele, espera duma
oportunidade, duma explicao, podia adivinhar o cansao, a dvida, o desejo
ou a surpresa que iam no outro. No precisava de palavras: os dedos de Cigarra
contavam-lhe tudo.
Gaita desabafou ento. Est um calor de matar. E retirou brandamente a
mo do companheiro.
Cruzou-se com eles um camio enorme. Arrastava-se, a tremer e a chiar,
debaixo dum carregamento de toros. Antnio Grcio reparou no condutor em
mangas de camisa, no rodado lento a deslar e, por m, nos vincos que os pneus
deixaram no asfalto amolecido. Ps os olhos nesses sinais, seguiu-os, caminhando
sempre atrs deles:
Se a bicha no tivesse cado to estragada, trazamo-la agora com a gente.
Quanto dariam na farmcia por uma pea daquelas?
Depende murmurou Cigarra. Depende do unto e da peonha que se
aproveitarem.
A voz soou triste, distante. Uma vez que o homem avanava de rosto levantado
e impassvel, a voz era como um segredo que ele lanasse para a distncia e
fosse adiante, a abrir-lhe caminho, at ao ponto desconhecido para onde parecia
apontado.
Dum lado da estrada comeavam a surgir balseiros e, aqui e ali, o tronco
ressequido de uma oliveira desgarrada. Cigarra pressentiu talvez essa presena de
vida na plancie, porque se ps muito atento, mais rme ainda na sua orientao.
J se vem as rvores? perguntou na tal voz lanada para o innito. Piscava
os olhos, espera; e quem o observasse julgaria que a resposta no viria do
companheiro, mas de longe, desse ponto que o orientava.
rvores? repetiu o Grcio, distrado.
Sim, as rvores onde ca o Retiro. Tino, e se a gente bebesse um copo
quando l passasse?
Depois se v. Por enquanto o que interessa chegar cidade.
Mas para chegar cidade passamos pelo Retiro insistia Cigarra.
Antnio Grcio no respondeu. Em vez disso, atirou um pontap numa
lata e sentiu um ardor a queimar-lhe o p quando roou com ele pelo
asfalto.
181
Espera a disse de sbito.
O outro obedeceu. Ficou no meio da estrada, acomodando a viola que trazia
pendurada, s costas, como se fosse uma arma de caador. Tambm o Grcio
levava qualquer coisa bandoleira: a caixa das esmolas e era como se carregasse
uma sacola de pedinte ou ento uma rede de guardar caa.
Poa assoprou ele, atravessando a estrada e pondo-se a rodear uma piteira
como se procurasse qualquer coisa. Abriu a navalha, escolheu uma folha; num
golpe brusco, cortou-lhe um pedao e em seguida sentou-se no cho para se
descalar. A bota tinha um rasgo enorme na sola. Calculou a medida do buraco,
tapou-o com o pedao de piteira, muito aparado. Quando tornou a calar-se, bateu
com o p no cho vrias vezes para ajustar a bota.
Pronto, toca a andar.
Nos breves instantes em que estivera sentado, o piso quente da estrada colara-
lhe as calas s ndegas. Por isso sacudia o traseiro. Caminhava e puxava as
calas, e no cessava de se lamentar:
Vida dum capado. Filha da me de vida e mais de quem a inventou. Parou
um instante: Tem pacincia, vou tirar o casaco. Est um calor de assar rolas.
Os dois, estrada fora, um de viola, o outro de casaco no brao, faziam um
par solitrio atravessando a tarde. Vistos de longe, lembrariam dois amigos em
passeio, e nunca duas pessoas que vo vida, preocupadas com os seus assuntos.
Cigarra levava o sentido no Retiro, queixava-se:
Se no bebo qualquer coisa, no sei. Uma pinga de gua quanto mais no
seja. Tenho umas dores nas cruzes que nem posso.
O companheiro rematava-lhe com o calor:
o sol, Cigarra. Este maldito d cabo de qualquer homem.
Tinha realmente a camisa encharcada, com dois lagos de suor nos sovacos.
Alm das ndoas de vinho e dos remendos, que eram muitos e sobrepostos, a
camisa resumia-se a isso: suor.
Agora disse Cigarra j nem sede. Agora so as dores que no me
largam.
Passam, no te apoquentes. Quando chegarmos cidade, escolhemos uma
taberna e descansamos. O que a gente no pode perder tempo. Tenho medo de
me desencontrar dele.
Desencontrar de quem, Tino?
Do meu compadre. Se no estava em casa nem vem a caminho, porque
cou na cidade.
Junto dum pau de o trabalhava um piquete de cantoneiros. As picaretas
cravavam-se no asfalto com um som oco e a brita era lanada ao rs da estrada
como uma chuva de granizo.
182
Obras anunciou o Grcio. Imediatamente o outro pendurou a bengala no
brao e deixou-se guiar pelo companheiro.
Os trabalhadores abriram caminho para os deixar passar. Essa pausa foi o
bastante para que Cigarra levantasse a cabea e se pusesse todo tenso:
Escuta... Pareceu-me ouvir um moinho.
E era. O companheiro distinguia agora um moinho de tirar gua, rodando l ao
fundo, com as suas ps de metal a luzirem ao sol. O moinho: naquele lugar havia
uma encruzilhada e comeavam as mansas las de pltanos, com cintas brancas
pintadas no tronco.
Antnio Grcio puxou da ona:
Estamos quase. Vai uma cigarrada? E como o outro recusasse: Agora,
sim, j se pode fumar. No tarda vermo-nos livres do calor.
Com modos pachorrentos, desenrolou a folha de couve em que protegia a ona
para no deixar secar o tabaco, e comeou a fazer o cigarro. A seu lado, o amigo
voltou a falar:
O pior no o calor, o pior so estas dores que no me largam.
Passam. Deixa-te apanhar um bocado de sombra e vers.
Cigarra teve um sorriso desiludido:
Tudo isto a malvada da lcera a dar sinal. Conheo-a bem. Ainda ela no
comea a roer, j eu a sinto.
Nesse caso, talvez seja melhor pararmos no Retiro. Podemos mandar vir um
caldo, como da outra vez.
Um caldo?
E ento? Um caldo remdio santo. Pelo menos o que tem acontecido.
Palavra que, se no fosse a questo do meu compadre, nunca ns fazamos uma
viagem destas. Maldita a hora em que eu me ei naquele velhaco.
Dum modo geral, Antnio Grcio conversava com o companheiro sem o olhar.
Assim aconteceu agora. Disse o que tinha a dizer e depois assoprou duas ou trs
fumaas desesperadas. No tardou muito, j estava outra vez a falar, mas para
dentro, em silncio. Discutia possivelmente com ele mesmo e com o seu destino
traidor. Vida dum capado, repontava a meio dessa conversa que s ele sabia;
e continuava em frente, a cabea enterrada nos ombros, os olhos tos nas duas
sombras atarracadas que deslizavam no alcatro.
Essas sombras resumiam para ele a estrada, as sombras e a bengala do amigo
marcavam o andamento da viagem. Cigarra, por sua vez, ia retardando o passo.
Sabia que tinham chegado s primeiras rvores por causa da frescura que pousava
sobre ele e tambm pelo rudo dos ps ao pisarem uma ou outra folha seca.
Mas o calor ainda no desaparecera de todo. O ar continuava abafado, ar de
trovoada; as rvores para ali estavam paradas, na esperana de uma brisa que no
183
chegava. L quando calhava desprendia-se uma folha, uma s, e vinha lentamente,
lentamente, espalmar-se no cho.
Eh, p!
Algum acabava de saltar ao caminho de pescoo no ar.
Eh, Miguel gritou Antnio Grcio.
O homem veio para eles, de braos abertos. Era alto e seco e trazia um leno
atado ao pescoo. Ria:
Estav a ver que nunca mais apareciam. Foram l a casa?
Fomos, pois respondeu o Grcio. No era o que estava combinado?
Cigarra, este aqui o meu compadre Miguel.
Amigo e compadre cumprimentaram-se em silncio. Mas o compadre sorria e
mostrava-se satisfeito com o encontro.
Caramba, vocs demoraram-se como raio. Houve algum azar?
No. A gente foi l a casa e a comadre disse que tu tinhas sado de manh.
Desde que tinham trocado as primeiras palavras, Miguel no tirava os olhos de
cima do Cigarra. Tinha-o a dois passos dele, silencioso, espera.
Sente-se, amigo.
Viu-o pousar a viola no cho com cuidado, recuar e encostar-se a uma rvore.
Enquanto os dois companheiros se sentavam tambm sombra de um pltano, ele
continuava ainda de p, apoiado ao longo do tronco. Sorvia o ar e, por trs dos
culos negros de mica, parecia interrogar o ponto longnquo que toda a vida se
pusera no seu caminho.
Cansado, amigo?
Cigarra adivinhou que era com ele.
Dores suspirou, passando a mo pela barriga.
No estmago? tornou Miguel, interessado.
Sim, na lcera.
Antnio Grcio ouvia um, ouvia outro, e passava o cigarro na ponta da lngua
de canto para canto da boca.
Bem cortou de repente. J pensaste no caso?
Como quem no quer a coisa, o compadre apanhou uma folha; levou-a boca
e entretanto ps-se a medir o Cigarra de longe.
No sei disse por m. Duas notas muito. E mais alto para o Cigarra:
Voc j foi ao mdico?
Aqui Antnio Gracio respondeu pelo companheiro:
Mdico? Foi faca, que ainda muito mais seguro. Quando que tu foste
operado, Cigarra?
Dia trs de Setembro, faz para o ms que vem um ano que dei entrada no
hospital.
184
Vs? H um ano. O que ele tem agora fraqueza. E no admira, Miguel.
Forte sou eu, e vi-me brocha com a caminhada de hoje.
Diante do Grcio, o compadre mordiscava a folha. Mordiscava, pesava as
suas razes, olhava a criatura que estava na outra rvore. Mordiscava e no se
resolvia:
muito. Tino. Duas notas dinheiro. Depois h que ver que no tenho
prtica... Sim, no do p para a mo que um fulano se mete numa coisa nova.
Tudo tem os seus segredos, no assim?
O outro compadre sorria, divertido:
Segredos? Ele ensina-tos, descansa. Olha, neste comrcio s o que preciso
no haver desconanas. Trabalha tudo para a caixa das almas.
Que dinheiro tm vocs aqui?
Miguel tinha pegado na caixa e voltava-a e tornava a volt-la, intrigado.
No estava de maneira nenhuma a tomar-lhe o peso; agurava-se que pretendia
somente conhecer-lhe os mistrios, apalpando a fechadura, a fresta das moedas ou
a simples qualidade da tinta.
Quanto? repetiu.
O dinheiro da caixa parte. Foi ou no foi o que estava falado?
Bem, isso agora no interessa grande coisa.
No interessa? Antnio Grcio levantou-se de um salto. Tu assentas numa
combinao e agora dizes-me que no interessa?
Ps-se a dar voltas diante do compadre. Girava de um lado para o outro e s
perguntava se isso no interessava, se era possvel qualquer pessoa pr de parte a
sua palavra com tamanha facilidade.
Para mim o prometido devido protestava.
Ao passar perto de Cigarra, sentiu-se agarrado. Parou. O outro chegava o rosto
ao dele, desejava falar-lhe:
Vais dar o salto Tino?
Fazia-lhe a pergunta num tom sumido, quase de segredo. Mas, como era mais
alto e o rosto lhe cava por cima do companheiro, parecia dirigir-se a algum para
l dele, na direco das rvores da outra margem da estrada.
A srio, Tnio, vais-te embora?
O outro nem o ouviu. Sacudia a cabea, indignado.
Catano, mil vezes catano...
Calma interveio Miguel. Tinha-se chegado tambm ao Grcio e chamava-o
razo. Que diabo. No motivo para te pores nessa berraria.
No me interessa se motivo ou se deixa de ser, para mim o prometido
devido. E acrescentou: Catano.
185
Calma. O compadre arrastou-o para longe do Cigarra. Calmaria que
preciso.
Os dois, estrada abaixo, estrada acima, recomearam a conversa. Miguel punha
de parte a questo da caixa das esmolas, informava-se de vrias coisas: se, por
exemplo, o Cigarra sabia ler pelos buraquinhos.
Quais buraquinhos?
Os buraquinhos do papel explicou o compadre. Aqueles por onde eles
lem com os dedos.
J sei exclamou Antnio Grcio , mas neste caso no preciso. Basta
uma pessoa dizer-lhe duas vezes os versos duma moeda para ele nunca mais se
esquecer. no como uma lebre.
Tem bom ouvido, queres tu dizer.
Ouvido? Antnio Grcio sorriu. Ouvido tm eles todos. Mas este o que
tem de rarssimo o faro. Contaram-me que, quando viveu com uma amiga, soube
logo que ela o enganava s pelo cheiro dos lenis.
Chia. S pelo cheiro?
o que te digo. Um faro danado.
E com respeito a comida? Tem m boca? Come muito?
Um pisco respondeu Grcio. Chego a perguntar a mim mesmo como
que um corpo daquele tamanho se aguenta com to pouca coisa. Pois e para
andar?
Antes assim. Esta vida deve puxar pelas pernas que no brincadeira.
Se puxa. Ele dos que no se vergam, Miguel. Um batedor de raa, ca
sabendo. Aquilo apontar a bengala... e pernas, que no h nada no mundo que o
faa esmorecer.
Os dois compadres voltaram-se uma vez mais para o Cigarra. L estava no
mesmo stio, mas agora sentado debaixo do pltano e com a viola no regao.
E a roupa? perguntou ainda Miguel. Eu que pago a roupa dele?
No. Nem a roupa nem instrumentos, nada disso contigo. Tu s tens de
pagar a comida e receber metade dos ganhos.
Em todo o caso, Tino. Duas notas dinheiro. E para mais doente... No sei,
tenho de pensar.
Tens de pensar? Mas quem que disse que ele doente, Miguel?
Vinham naquele instante a aproximar-se de Cigarra. Antnio Grcio no
perdeu a ocasio e apontou-o ao compadre:
Vs? J est melhor. Ests melhor, Cigarra?
Assim, assim disse ele, e to baixo que mal se ouviu. Agora s tenho
sede.
186
Miguel no esperou por mais nada.
Pronto, vamos molhar a goela. Aqui perto h um stio catita para isso.
E Cigarra, levantou-se:
Bem sei, o Retiro.
No foi preciso ajud-lo, ele prprio ps a viola a tiracolo e apanhou a bengala.
A tarde comeava a refrescar, uma aragem muito branda demorava-se sobre a
ramaria. De sbito um bater crespo de asas desabou l do alto. Miguel e Grcio
nem levantaram a cabea, mas, atrs deles, Cigarra xou o pio da ave.
Era uma poupa, Tino?
No teve resposta. Os dois compadres discutiam em tom amigo e, se quisesse,
podia ouvi-los. Mas no queria. Em vez disso pensava na poupa.
um pssaro porco, a poupa. Caminhava, falando sozinho. Ao m e
ao cabo, no passava dum pssaro de bosta de boi. Mas nada garante que fosse
uma poupa. Pelo contrrio. O bater de asas era de narceja, e com essas tudo a
mais no. Mais esperteza, mais asseio... Ouviu a voz do companheiro. Pelo tom,
percebeu que se dirigia a ele:
Ainda temos algumas cordas de reserva, no temos?
Respondeu que sim: um bordo de d e outro de sol maior.
E folhetos das msicas? adiantou-se, muito pronto o compadre Miguel.
Folhetos - disse o Grcio temos meia dzia de cantos ao fado e as coplas
da revista Salada de Alface.
E o Miguel:
Compadre, como o Crime de Chelas que ainda no se zeram versos
iguais.
Crime de Chelas? Cigarra, tu j ouviste falar alguma vez no Crime de
Chelas?
- Ouvi. aquele do pai que matou o lho nascena.
Ah, bom. A Tragdia Desumana disse o Grcio. O ttulo da letra
Tragdia Desumana. No conheo eu outra coisa, compadre.
E comeou a cantarolar:
uma horrivel tragdia
que vos passo a contar
dum pai que sem escrplo alguuum...
Posso pagar por duas vezes? perguntou Miguel. Em duas metades?
Grcio continuava, embalado na cantiga:
...dum pai que sem escrplo algum
seu lhiinho foi matar...
187
muito antigo comentou ele no nal da cantiga. Hoje no se fazem
msicas como antigamente.
Cigarra apanhava muito pela rama o que se passava entre os dois compadres.
Sentia a tarde cair e a passarada baixando sobre a terra morna procura de
alimento. Pardais, poupos nojentas, melros velhos e sabedores.
E narcejas. A narceja amiga de gua. Engoliu em seco. No Retiro
prometeu a si mesmo em voz alta. Nem caldo nem coisa nenhuma. O que eu
preciso de um copo de vinho bem fresco.
Nesse instante chocou com algum. Fez alto. Eram os compadres, que tinham
parado no meio da estrada.
Em que camos? perguntava um ao outro.
No sei, um risco muito grande...
Cigarra andou por ali, volta tacteando com a bengala ao acaso. Encontrou
uma rvore, arrancada pela raz, estendida na berma da estrada. Sentou-se,
esperou. Pegados na conversa, os outros nem reparavam nele.
Seja o que a sorte quiser disse Miguel, por m. Tirou um mao de papis do
bolso interior do colete e passou duas notas de cem escudos. Quem no arriscou,
no perdeu nem ganhou.
Antnio Grcio dobrou o dinheiro:
Pois quem no ganhou fui eu. Sabes quanto o Vesgo deu por um que chamam
o Pratas? Trs notas e meia. E mais nem sequer sabe pegar no bandolim.
O tocar ou no tocar o menos. A questo para mim est no guia. E, como
te disse, l de guia que eu no percebo nada.
Aprendes, compadre. Se os ces aprendem, porque que que tu no hs-de
aprender?
justo concordou Miguel, com ar preocupado. Realmente, se formos a
ver bem as coisas, fazer de co de cego, pouco mais. Sim, como trabalho isso.
Ficou calado por momentos e depois resolveu-se: Seja. O que est feito, est
feito. Vamos ao copo para fechar?
No posso respondeu o Antnio Grcio. Fica para a prximo.
Pago eu, caramba. Nem ao menos um copo para fechar?
Mas o Grcio tinha pressa, agora mais do que nunca. Veio junto da Cigarra e
abraou-o:
Desculpa... A gente no ca com razes um do outro pois no?
Cigarra sorriu. Fez um arabesco com a bengala e a mo tremeu-lhe. Tinha a
voz do companheiro no ouvido: O meu companheiro um gajo unhaca, vers.
E tambm essa voz tremia.
188
Ento quis dizer fosse o que fosse, mas s conseguiu agarrar-se ao Grcio e
abra-lo com fora, com tanta fora que o peito lhe doeu como se lhe tivessem
tirado todo o ar.
Passado tempo, achava-se ainda sentado beira da estrada quando sentiu que
algum o puxava brandamente pelo brao:
Amigo, vamos ao Retiro?
Era ao anoitecer e no ouvia pssaros nem gente sua volta.
Sim murmurou ele. O Retiro.
E levantou-se.

(De Os Caminheiros, 1949)

189
AUGUSTO ABELAIRA

(1926-)

tambm na sequncia pluralizada do neo-Realismo, integrando no seu


propsito bsico de combate poltico-social uma viso do homem ondoyant
et divers e envolvendo-a em ironia intelectual e em subtilizada crtica das
fraquezas inelutveis, que a obra ccionista de Augusto Abelaira tem assumido
caracterizao mais original e valia perene. A nura na anlise minuciosa e
penetrante dos caracteres, testemunhados em assduo discurso dialogal e em
comportamento, encontrou neste escritor uma delicadeza e pureza de estilo
que se ajusta harmoniosamente aos seus temas. E estes, com frequncia, so
centrados na pequena burguesia intelectualizada, jogada versatilmente entre as
ideias e as realidades no amor, nas aspiraes ticas e na resistncia poltica
opresso fascista. A temtica das frustraes e das suas causas numa sociedade
alienatria a que mais avulta na obra de Abelaira, sempre representada numa
linguagem de aliciante elegncia formal. Depois duma primeira experincia,
logo resultadamente feliz, com os romances A Cidade das Flores (1959) e Os
Desertores (1960), prosseguiu num reiterado continuum narrativo que o autor
traz dentro de si (palavras suas) a obra do romancista, publicando As Boas
Intenes (1963), Enseada Amena (1966), Bolor (1968), Sem Tecto Entre Runas
(1978) e O Triunfo da Morte (1981). Ao realismo um tanto sentimentalizado
dos primeiros livros, porm, veio acrescentar-se nos mais recentes e, sobretudo,
no ltimo referido, uma espcie de jogo irnico ou mesmo malicioso com
o fantstico. Embora o ldico tivesse sido sempre uma das maneiras
caractersticas de Augusto Abelaira no tratamento das personagens e das suas
aproximaes ou distanciamentos vivenciais, parece assumir agora uma funo
mais dinmica no processo narrativo talvez porque, precisamente, mais
propcio manipulao insistente da ironia. O livro de contos Quatro Paredes
Nuas (1972) ilustra em aspectos essenciais a tcnica, a inspirao ntima
e o estilo do romancista, evidenciando com particular impressividade a sua
190
utilizao habilmente sinuosa do monlogo e do dilogo e estes como forma
de comunicao de sentimentos individuais e de conitos que so por eles
gerados. Assim o conrma o Autor, igualmente, no seu teatro, com trs peas
publicadas.

191
ODE (QUASE) MARTIMA

...telefono, escrevo uma carta, uma dessas cartas que nunca escrevi (que nunca
escreverei), humilho-me, se necessrio for. Ou nem telefono, nem escrevo, nem...
E co espera, e o que acontecer acontecer e o que no acontecer no acontecer
para qu meter-me nisso (embora isso seja a minha vida)? Melhor, muito
melhor: durante dois ou trs dias ponho de parte o homem que deu o nome na
recepo do hotel (se quisesse dava um nome falso, no me pediram o carto
de identidade), ponho tambm de parte o homem que h-de ir-se embora no
momento imediato a ter pago a conta (pagarei a conta, aijo-me s de imaginar
que podem supor que no tenciono pagar a conta). E ento: em que vai pensar
quem abdica do seu prprio passado (como se fosse possvel!), quem abdica do
seu prprio futuro?
Talvez nos peixes que no v, que sei mergulhados ali em frente no oceano. Ou
na chuva que molha os teus cabelos, escorre pelo teu rosto, pela tua gabardine
o defeito das gabardines de plstico: em vez de agarrarem a chuva, repelem-na,
deixam-na deslizar velozmente para dentro dos sapatos! Mas, mesmo assim, ainda
bem que trouxeste a gabardine, quem teria dito que havia de chover (Natal na
praa, Pscoa ao borralho)?
Ainda bem que trouxeste a gabardine, mas no fales muito nela, pois pertence
ainda ao teu passado (pertencer ao teu futuro), no fales do oceano (tambm
pertence ao teu passado, tambm pertence ao teu futuro, embora seja prefervel
dizeres mar , oceano uma palavra para as grandes ocasies, no para o dia-a-
dia), fala de... Ah, fala, diz coisas, se te atreves, cujo sujeito no sejas tu, coisas em
192
que ques de fora e que possam ser ditas como se no existisses e as no dissesses,
coisas que no precisam de ser ditas nem sonhadas para existirem: chuva, noite,
mar. Mas quem v chover, quem v a noite e o mar? Sujeito: tu. Erro evidente,
sujeito: eu.
Eu com um passado e um futuro (muito mais um passado e um futuro do que
um presente), eu (ou tu, se preferes tratar-me por tu para te desdobrares, para
teres a iluso do dilogo, a iluso de que no estou s). Eis-te pois a falar comigo
prprio (com o meu passado, com o teu futuro, no com este supercial presente
de trs dias), comigo prprio, Joaquim Alberto, a falar em voz alta, aqui de noite e
na praia, de noite e frente ao mar, a chuva nos cabelos (uma constipao amanh).
E espera. Sim, espera de qu, nessa noite de Natal?
De um milagre, escndalo!
Um longo arrepio atravessando o corpo que teu (que s tu, que sou eu, no
m de contas). Porque se acaso hoje no tem sido noite de Natal, estarias aqui
espera de qualquer coisa (embora descrente, embora ateu), espera dum milagre,
escndalo? Um arrepio, um desses arrepios que vm certamente da memria das
clulas herdadas de teus avs.
Ou nada disso. Ests aqui (estou aqui) por ser noite de Natal, certo. Mas no
por ser noite de Natal, e sim porque hoje feriado. Estarias aqui tambm espera
do mesmo milagre, embora sem te lembrares de lhe chamar milagre, se hoje se
festejasse a descoberta do Brasil ou a proclamao da Repblica?
E nessa noite de Natal (dez de Junho, cinco de Outubro?) suspendes
subitamente a tua vida, sentes-te tentado a dividi-la em duas partes, o passado e
o futuro, procuras descobrir o que vais fazer desse teu (desse meu) futuro, pensas
numa transformao radical... mas se, por acaso, Joaquim Alberto, aparecesse
agora aqui a teu lado aquela inglesa do hotel, se comeasse a falar-te, se me levasse
consigo, no adiarias imediatamente para amanh o instante da transformao
imediata? Neste momento no trocarias todo o teu futuro regenerado por uma
noite (ou duas ou trs) nos braos dessa inglesa (ou doutra) por culpa de quem,
ao jantar, mudaste discretamente a posio da tua cadeira e comeste um tudo-
nada inclinado para a esquerda de modo a mais completamente lhe apreciares
as pernas, melhor surpreenderes o que as saias esconderiam se te mantivesses
direito? E a muito leve mas contnua dor de estmago (responsvel, quem sabe?,
pelo teu flego metafsico, pela tua insatisfao, pelo teu desejo de te regenerares)
no ser o resultado inevitvel da maneira como jantaste?
Paro um instante, imagino-me de sbito numa gruta de eremita ou na Tebaida,
em cima duma coluna, grito: Vade retro, Satana! O pecado, o grande, o verdadeiro
pecado, no est na carne, nas fraquezas da carne, mas nas dvidas que exprimes
acerca de mim prprio, na minha tendncia para no te levar a srio.
193
Vade retro, Satana! Esfrego as mos, vejo-te no deserto (e como se estivesses
realmente fora de mim, ocupasses um espao diferente, como se no fosse eu),
penso: porque estarias no deserto, l nesses primeiros sculos do cristianismo, que
fora te teria empurrado para l, que fantasmas povoariam a tua noite de Natal?
Mulheres, no. Perturbado por veres os cristos acusarem-se uns aos outros
fugindo para no seres perseguido, tu que no poderias ser perseguidor...? Que
no poderias ser perseguidor porque no tinhas foras para s-lo ou porque no
o desejavas? Ou seria a tua tolerncia, o teu desejo de liberdade, um sintoma
somente da tua fraqueza? s um perseguidor que de ti prprio te escondes, todos
ns seremos perseguidores no mais profundo das nossas almas?
Sim, como seria bom passar agora as mos pelo corpo da inglesa (dessa ou
doutra), sentir nos dedos a doce penugem das pernas dela, eternizar tais momentos
no h depois, no h antes, s h agora. Ou estar junto de ti, Filomena, ou
telefonar-te.
L ao longe, vencendo o nevoeiro, a noite espessa, a chuva, atravessando o mar
um risco contnuo (descontnuo) de luz. Um barco, embora eu no veja o barco.
Um velho cargueiro ingls, clssico sua maneira? No sei quem, encostado
amurada, ver luzes, mas no as que eu vejo, as luzes do hotel, invisvel tambm; e
um ponto vermelho, certamente a ponta dum cigarro h-de concluir , mas sem
adivinhar de que lado est o cigarro e, portanto, de que lado estar o homem que
sou eu.
No te preocupes digo-lhe ento , sabe simplesmente que tambm penso
em ti, mas sem sequer ter como ponto de referncia a ponta dum cigarro.
Aproveitar esta noite, pr as ideias em ordem! Comear pelo princpio, l
nesse instante em que certo animal pela primeira vez ops o polegar aos outros
dedos da mo (mas no do p)? Ou no momento, bem mais prximo, em que a
tua mulher, h quase um ms, se foi embora, dizendo numa carta que no podia
continuar a viver contigo?
Ou talvez devas comear pelo m. Por exemplo: sem que eu suspeite,
subitamente rompe-se uma artria no teu crebro... Apura os ouvidos, ouve,
ouve com ateno, ela comea j a... Dentro de segundos, Joaquim Alberto,
responde-me: ests preparado para morrer, tu que te hospedaste num hotel, que
vives dezasseis ou dezassete sculos depois de poderes ter ido para o deserto?
Estarei preparado para morrer?
Ah, as grandes, as grandes frases, as grandes perguntas, mas como bom diz-
las, ouvires-te repetir o que tantas vezes foi repetido muitos sculos atrs! Estarei
preparado para morrer? No fundo, isto: zeste tudo quanto deverias ter feito,
agora que j nada poders fazer? Neste instante em que, de sbito, num relmpago
(a artria a romper-se), toda a minha vida passa diante dos teus olhos antes de
194
mergulharmos ambos no silncio denitivo, z tudo quanto me sentia obrigado a
fazer? Posso, nesta noite de Natal (neste dez de Junho, neste cinco de Outubro),
encarar repousadamente o silncio porque estou sem esse pecado mortal? Alguma
vez arrisquei a minha vida como tantos homens arriscaram a deles, os Guevara,
os Camillo Torres ou, mais nobres ainda, esses cujo nome ningum sabe e que
j sabiam que nunca seria sabido os annimos absolutos, embora no haja
annimos absolutos? Eu, que em certos momentos me trato por tu tu, que em
outros momentos te tratas por eu, neste dilogo intil j algumas vezes me
surpreendi te surpreendeste a dizer ns? Ns - no um eu, no um tu. Ns,
anonimamente...,
Tu (ou eu), que contestas o mundo, falando cobardemente com o oceano (nem
sequer com o mar).
Um homem de setenta e dois anos, aparentemente sessenta. E bem vestido,
embora com modstia, muito bem penteado, falando vagarosamente como se
estivesse a dar uma explicao a um estrangeiro ou como se o estrangeiro fosse
ele e sentisse diculdade em achar as palavras exactas. Era isso numa papelaria,
enquanto eu aguardava a minha vez e ele falava com um amigo. Logo a seguir o
amigo foi-se embora, o homem continuou a conversa, primeiro dirigia-se a toda
a gente, depois comeou a falar apenas comigo. Tinha estado muito doente, tanto
que uma vizinha dissera para a mulher: O Senhor Marques no se safa. Repetiu
isto umas trs ou quatro vezes durante a conversa. Estive to mal que at uma
vizinha disse... Estive morte acrescentou. Mas sou to saudvel que resisti.
Para a semana devo ser operado a um pulmo. A minha mulher no quer, tem
medo. Sabe? Casei tarde, no tive lhos. D-me uma saudade dela... Eu tanto se
me dava como no de morrer. J vivi o suciente, trabalho de manh noite e,
para lhe ser franco, esta que a verdade, tenho de trabalhar at o meu ltimo
momento de vida. Uma reforma de quinhentos escudos, imagine! Uma vez, uma
s vez, fomos Holanda ao desao do Benca. Estas coisas no se podem repetir,
claro. E depois tivemos de apertar os cordes bolsa. Para lhe ser franco
repetia muitas vezes , s preciso de continuar a viver por causa da minha mulher,
coitadinha. Abriu a carteira e mostrou a fotograa: uma mulher gorda, com
culos, uma permanente feita num cabeleireiro barato.
Como? Estou aqui a resumir para mim prprio uma cena a que assisti, que no
precisa portanto de ser evocada com todos estes pormenores, que no precisa de
palavras, de palavras distribudas por um discurso coerente, para que eu a recorde!
Porque descrevo o que no preciso de descrever?
No ento para mim que estou a falar. Falo com algum.
Se acreditasse em Deus, a segunda pessoa escondida no tom da minha voz
talvez fosse Deus. Se acreditasse na Morte (na entidade Morte, a tal que tem uma
195
grande foice e que j foi muitas vezes retratada h seis sculos), seria com ela que
estaria a falar: Tu, Morte! Ou com a noite, ou com o mar, ou com a chuva.
Mas no, tenho a lucidez bastante para no cair em semelhantes armadilhas. Falo
pois para o silncio. Para? No, falo pois em silncio, quebro com a minha voz o
silncio (no ouo nem o vento, nem a chuva, nem o mar). Se escrevesse, ainda
era possvel admitir um leitor subentendido nas minhas palavras. Mas no escrevo
e falo em voz alta precisamente por estar sozinho. Ou desejoso de que me ouam
alguns ouvidos encobertos pela noite? E assim:
Sofro, a primeira vez na minha vida que me atrevo a dizer a algum que
sofro, pois sempre achei ridculo, sempre achei uma fraqueza, sempre achei que
o homem deve esconder dos outros (e de si prprio!) os prprios sofrimentos,
sempre vivi como se falasse em voz alta, mas para que os outros (e eu!) tivessem
de mim uma certa e determinada imagem.
Uma certa e determinada imagem. Qual? Que tenho eu procurado que pensem
de mim os outros, independentemente do que sou (ou imagino ser)? E quais outros,
visto que nem todos os outros me interessam? Precisamente: que interlocutores
tenho eu escondido, em silncio, para a minha vida, de quem so as sombras que
dialogam comigo quando me encontro s?
Olho em volta (digo que olho em volta), no esteja algum (ou uma sombra
e as sombras podem ter ouvidos) a observar-me porque sempre procurei que
os outros vissem em mim um homem seguro, um pouco cptico, certo, mas seguro,
com meia dzia de convices inabalveis, pelo menos acerca de meia dzia
de pontos fundamentais. Quem so os homens que no devem ouvir o que neste
momento digo? E os outros, esses a quem contaste a histria do marido que tinha
saudades da mulher? Tu, que contaste essa histria como se a escrevesses, que
falas como se escrevesses, que escreves em voz alta, que como se j assistisses
leitura dessas palavras que anal nem sequer foram escritas... Quem as l, quem
imagino eu que l estas palavras, a quem as escrevi, eu que no as escrevi nem
escrevo...?
Espera, Morte, espera um momento, no me deixes morrer antes de
descobrires esses ouvintes (ouvintes que s o foram porque ausentes), quem so, a
quem que neste momento dirijo este discurso, eu, que no estou a falar contigo,
Morte, que no acredito na tua foice, nos teus ouvidos, que no acredito sequer na
ruptura imediata duma artria, eu, sabedor de que no existes, pelo menos como
ser a quem se possa dirigir a palavra, que njo falar contigo porque sei que no
podes ouvir-me, porque sei que tu no s tu nem ningum.
E ter ento a humildade de dizer Filomena:
Vem... Volta... Filomena que saiu de casa h quase um ms, que nem
sequer saiu de casa por amor de outro homem, que saiu de casa somente por sair
196
de casa, que saiu de casa (disse) porque eu no a amava com loucura, no sabia
falar com ela. Que caria fora uns tempos at saber se deveria ou no voltar.
Pouco importa, pouco importa. Aqui a queixar-me de nunca ter tido
ouvintes reais, de s os admitir quando falo. comigo prprio mas alguma
vez fui ouvinte, fui interlocutor, de ti, por exemplo, Filomena, alguma
vez permiti que me dissessem Sofro! ou sempre, quando algum ia
para te dizer Sofro!, sempre lhe trocaste as voltas, sempre te encheste
de pnico, sempre lhe impediste a consso, tiveste medo do sofrimento
alheio...?
Espera ento, morte imaginria, artria imaginariamente a romper-se, mas
ainda intacta, espera mais alguns instantes, deixa-me saber tambm: quem so os
outros, todos os outros que um dia se dirigiram a mim, a quem eu impedi de se
dirigirem a mim, que s puderam falar-me imaginariamente, porque eu era mais
humano nos sonhos deles do que na minha prpria pessoa? Esses que precisam
dos meus ouvidos, que precisam da minha voz, e a quem eu tenho negado ouvidos
e voz, esses que no so o velho de setenta e dois anos de idade que anal ouviste
(s porque ele te impediu de no o ouvires), esses que esto mais prximos de ti.
Joaquim Alberto, sofro!
E responder...
Mas que respondeste ao velho de setenta e dois anos, esse velho que ao falar
contigo no era contigo que falava, pois no sabia quem eu era?
Tu, para quem tu e eu so uma e a mesma coisa, so eu, tu que no sabes
acalmar o sofrimento alheio, ser ns, tu que falas como se escrevesses, que nunca
disseste em voz alta:
Chora, faz-te bem chorar, meu amor.

(De Quatro Paredes Nuas, 1972)

197
DAVID MOURO-FERREIRA

(1927-)

J com ampla obra de poeta publicada, de que se reconheceu desde os


primeiros passos o mrito renovador, a destacar-se entre as de outros escritores
ligados revista Tvola Redonda (1950-1954) de que foi um dos directores,
David Mouro-Ferreira compareceu na vida literria com o livro de novelas
Gaivotas em Terra (1959). O ccionista armou-se prontamente nessa obra
inicial no gnero com uma prtica de escrita bem estruturada, na liberdade de
um classicismo que est apto e predisposto a aceitar da maior modernidade tudo
o que para ele conui (Jacinto do Prado Coelho). Ao livro de estreia novelstica
sucederam-se com intervalos largos, em que se disseminou a continuidade da
realizao do escritor na poesia, no ensaio e na crtica, o volume de contos
Os Amantes (1968), O Vivo (1962) e a reedio aumentada Os Amantes e
Outros Contos (1974). Nessa sequncia, espaada e escassa mas signicativa
duma vocao a realizar-se, caram demonstradas a virtual riqueza de aptides
do narrador na inventiva do episdico transferido para larga denio do
dramtico ou do pitoresco na vida quotidiana, na translao do real para o
onrico ou o fantstico e na fuso extremamente hbil de sentimento e humor
e a plasticidade da sua linguagem, amoldada s formas mais complexas
da narrativa. Uma arte muito caracterstica de David Mouro-Ferreira como
contista , tambm, a da prontido e conciso com que sabe criar uma atmosfera,
embeber nela as personagens e os acontecimentos, infundi-la na receptividade
do leitor. O descritivo resulta assim com plena naturalidade na atmosfera
criada e constitui com o delinear das guras e com os passos que estas vo
percorrendo uma integral unidade de leitura. Nem por isso, no entanto, o
processo novelstico do Autor se repete ou se imita, como tem sido acentuado
pela crtica, testemunhando que os seus recursos de narrador imaginativo
esto largamente abertos diversidade e que a sua obra de ccionista poder
prosseguir em continuada inovao. Nos ltimos anos tem David Mouro-
Ferreira dilatado com maior amplitude e projeco uma obra considervel de
ensasta literrio.
198
NEM TUDO HISTRIA

Noites e noites a o, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um


grande automvel preto um carro americano de antes da guerra, talvez um De
Soto dos anos trinta parava de repente ao p de mim. O motorista, fardado de
negro, mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu no chegava sequer a ver-lhe
o rosto. Mais me intrigava alis o prprio carro, que parecia ter estado debaixo
de gua ou ter sido fabricado no fundo do mar , embora no apresentasse,
na carroaria, nenhum vestgio de humidade. Mas o capot faiscava, na sombra,
como o dorso de um cetceo; o anco fusiforme dos faris denunciava no sei que
secreto comrcio com os peixes; e a porta de trs, que vinha agora de entreabrir-se
sem que ningum lhe houvesse tocado , evocava irresistivelmente, pelo crebro
palpitar em que cara, o inquietante mistrio de uma guelra.
Dentro, na outra extremidade do banco, reclinava-se um vulto de mulher
cingido num vestido de lam. Era um vestido de noite, de modelo j antiquado,
que por inteiro lhe ocultava as pernas e os ps: a partir da cintura, todo fosforescia,
como a cauda de uma sereia.
Havia, no porte dessa mulher, qualquer coisa de hiertico, e ao mesmo tempo
qualquer coisa de irnico, como se quisesse mostrar por uma espcie de jogo
que no chegava a tomar a srio o reverso daquilo que era, o reverso daquilo
que sentia. Dir-se-ia que se prestara a servir de modelo, diante de um pintor
acadmico, para um retrato muito convencional, apenas com o m de troar
intimamente do pintor e do retrato, de si prpria e da pose que adoptara. Entre os
dedos da mo esquerda que vinha, enluvada de preto, descansar-lhe no regao
apertava as varetas cerradas de um leque de marm. A mo direita, igualmente
199
mergulhada numa luva preta de canho alto, rmava-se no assento do banco. E
era to-s com um gesto negligente desta mo, to-s com a rotao lentssima do
pulso, que me saudava e convidava a entrar, que me apontava o lugar a seu lado.
Ento, mal eu me sentava, sem um rudo o carro punha-se em marcha.
E sempre assim, noites e noites a o. S depois se interpolavam, de noite para
noite, pequenas variantes no percurso.
Por vezes, rolvamos longamente atravs de ruas desertas ou que pareciam
desertas por causa do nevoeiro , e eu percebia que j estvamos fora da cidade,
medida que rareavam as casas, que aumentavam de nmero as silhuetas das
rvores, que o nevoeiro se espraiava em remoinhos mais amplos. A estrada, sem
uma curva, subia sempre, de tal modo que o corpo se me incrustava, mais e mais,
no assento do carro, a ponto de estabelecer-se, entre as minhas costas e as costas
do banco, aquele pacto de secrees comuns que deve rmar-se, com certeza,
entre o molusco e o interior da concha a que se prende.
Com a minha companheira passar-se-ia tambm o mesmo; ou mais ainda:
desde a penumbra da sua nuca aos artelhos invisveis, no se lhe vislumbrava,
em todo o corpo, seno a tenussima cadncia vibratria do prprio carro em
que seguamos. Continuava com a mo direita apoiada no rebordo do banco; e
mantinha-se, entre ns dois, uma distncia de cerca de dois palmos. Depois de
eu me ter sentado, nem por um instante olhramos um para o outro. Eu sabia,
alis, que o seu rosto se esfumava numa quase completa obscuridade, que nem me
seria possvel distinguir-lhe as feies, que descobriria quando muito, acima do
pescoo, o halo nevoento de um sorriso.
Os pneus do automvel principiavam a rodar em falso. Atingramos a orla
de um extenso areal; ou, mais propriamente, a saibrosa fronteira do planalto de
uma duna. A parte dianteira do carro afocinhara na areia; logo a seguir, porm,
cindia-se do resto do veculo como se houvera sido previamente serrada , e
lentamente comeava a descer, diante de ns, em sentido oblquo, transformada na
cabina de um funicular. Assim acabava por sumir-se, inteiramente devorado pelo
prprio tnel que fora abrindo.
O dorso negro do motorista era a derradeira mancha a desaparecer. E cvamos
ambos tu e eu miseravelmente aliviados com esse desaparecimento.
Traioeiramente, a coberto da nvoa, o mar tinha chegado at junto de ns.
Estremecias, num sbito arrepio. Eu colocava ento a mo esquerda sobre os
dedos enluvados da tua mo direita. Em cima, no antebrao, quase ao redor do
cotovelo, o tecido da luva comeava a estalar. E dissipava-se pouco a pouco
o nevoeiro: amos vendo, alinhadas em la, a nosso lado, outras metades de
automvel como aquela em que nos encontrvamos. Em tudo o mais, o cenrio
habitual de uma praia do mar do Norte.
200
Diante, erguia-se tambm, de sobre o mar, a neblina que o limitava. As ondas,
cor de chumbo, passavam a nascer cada vez mais longe. Mas era sempre em
hemiciclo que o lquido anteatro ganhava profundidade. No tardava, porm, a
desenhar-se no horizonte uma sbita margem: era a continuao do mesmo areal,
a repetio das mesmas capotas alinhadas, o mesmo cenrio de uma praia do mar
do Norte. E a luva, que no cessara de estalar numa crepitao de folhas secas,
mostrava agora o incio de um rasgo ao longo do antebrao.
J se entreabriam, mais para alm, outras ondas cor de chumbo; j um segundo
anteatro ia surgindo; j despontava, por sua vez, uma terceira lngua de areia. E
progredia, ao longo do antebrao, a caminho do pulso, o rasgo vertical no tecido
da luva.
Outro lago, mais outro, ainda outro: sempre em forma de anteatro. Vinte,
quarenta, cem, trezentos lagos. Em frente, esquerda, direita em todas as
direces. E por entre esses lagos, alongando-se at ao innito, um labirinto de
lnguas de areia. O rasgo, entretanto, bifurcava-se em delta por cima dos cinco
dedos.
Mas era anal a minha mo, coberta de sangue, que saa do interior dessa luva
rasgada.
Noites e noites a o. Noites e noites.
Ancorvamos, depois, num grande caf deserto. Ocupvamos, ao fundo, uma
banqueta forrada de couro muito parecida com o banco do automvel e
permanecamos ambos na mesma posio. O caf, enorme e de uma ingnua
fealdade repousante, era tambm uma construo dos comeos dos anos trinta,
com chapas niqueladas, por cima das banquetas, a circundarem as paredes de
vidro de gigantescos aqurios. Talvez estes aqurios no fossem muito profundos;
no entanto, como por dentro se mostravam iluminados e revestidos de espelho,
innitamente se reectiam uns aos outros e criavam, assim, a perturbante iluso
de um caf submerso.
Pouco a pouco, principavam a entrar pessoas. Em primeiro lugar, vinham os
msicos cinco ao todo , envergando umas pobres casacas muito coadas e
dirigindo-se, em passo fnebre, para um estrado que cava nossa esquerda e
onde campeavam quatro cadeiras, um piano, um contrabaixo, dois violinos, um
violoncelo. Vinham depois, em pequenos grupos, homens apressados, todos de
chapu, que abancavam em redor das mesas e comeavam a discutir poltica.
Junto da porta giratria, sempre de costas para ns, o motorista fazia as vezes de
porteiro.
Quanto mais se adensava o rumor das conversas e tanto que a msica nem
se ouvia , entravam de produzir-se, dentro dos aqurios, breves e repetidas
exploses. Foi assim que assistimos, de uma das vezes, morte violenta de um
201
longo peixe prateado. Vimo-lo, primeiro, erguer-se na vertical e de alto a baixo
depois rasgar-se todo, como um vestido de noite golpeado navalha.
A seguir tornou-se tudo muito confuso. De um automvel sem capota, que
parou porta do caf, saram trs homens de pistola em punho. Entraram de
roldo pela porta giratria e dispararam, s cegas, para dentro da sala. Mas s o
porteiro foi atingido, ao tentar desarm-los; e parece que seria ele, anal, o alvo
da investida. Assim que o viram por terra, pegaram-lhe pelas pernas e por debaixo
dos braos, arrastaram-no logo dali para fora. J o carro se punha em marcha. Os
trs homens, ao entrarem, vinham vestidos paisana; e saam fardados.
O pianista saltou ento para cima do piano e rompeu, em voz monocrdica,
num discurso incoerente que talvez fosse um requiem.
Chegava, por m, a hora do cinema. Ns estvamos instalados na ltima
la do balco, em dois assentos geminados como a banqueta de um automvel.
Devamos ter chegado muito cedo: alm de ns, no balco, no havia mais
ningum. Mas subia, da plateia, o rumor de conversas que deixramos no caf.
De repente, as luzes apagavam-se; todas, e ao mesmo tempo, como talvez ainda
acontea em cinemas de provncia. Estabelecia-se ento um profundo silncio. E
comeava a correr, no cran, um frentico lme de actualidades sem legendas,
sem msica, sem comentrios, sem qualquer espcie de fundo sonoro.
Agitava-se, nas ruas, uma compacta multido de manifestantes. Seguia-se um
recontro sangrento com foras policiais. E correrias. E atropelos. E um autocarro
em chamas na Praa da Concrdia. Outras labaredas devoravam, por sua vez, uma
pesada construo neoclssica. Ardiam livros e papis numa grande biblioteca,
nos corredores interminveis de livrarias e de arquivos. Um dirigvel incendiava-se
nos ares. Dois bailarinos pretos ou com as caras pintadas de preto sapateavam
no cimo de um arranha-cus. A animada perseguio, em automvel, a um
grupo de gangsters. A apoteose de uma revista de music-hall. E sucedia-se um
implacvel desle militar, por entre continncias ridculas e bandeiras com a cruz
sustica. Mais incndios, mais violncias.
Finalmente sobrevoava-se um arquiplago... No! No era um arquiplago: era
antes um conjunto de inmeros lagos fechados, um labirinto de inmeros lagos
sem a menor possibilidade de comunicao.
E de sbito o claustro de um templo: e tu, de p, encostada a uma coluna. A
sombra do capitel afogava-te o rosto por inteiro. Dos teus ombros saam medusas e
estrelas-do-mar esculpidas em granito; grossas cordagens enlaadas, como cilcios,
moldavam-te o anco; e ventres salientes de hipocampos sadicamente cavavam-te
a cintura. Um homem de smoking ajoelhava-se diante de ti, descalava-te a luva
com lentido exasperante, demoradamente beijava-te a mo.
202
Daria tudo, nesse momento, para ser eu o homem de smoking, mas reconhecera
nele, desde o princpio, o vulto do motorista. E ei-lo que de repente se voltava,
enchendo agora, em grande plano, toda a superfcie do cran: tinha anal o rosto
do meu pai.

D-me a tua mo. Fujamos daqui. L fora no deve tardar o nascimento do Sol.
Abrir-se- para ns dois um pequeno bar onde no entro h muitos anos, e num
relance vericarei que nada se modicou: a mesma leve poeira de condncias,
como que esquecida em cima de mveis; o mesmo recanto sem ningum, junto
da janela de onde se v o mar; o mesmo tecto e as mesmas paredes escuras, de
madeira encerada. Tudo ntimo, aconchegado, como se estivssemos na cabina de
um navio.
Sentar-me-ei na poltrona que ca no vo da janela; olharei o mar, espera que
o dia nasa; e tu a meu lado, recuada na sombra, continuars aguardando que seja
eu o primeiro a dizer alguma coisa.
preciso inventar? Ou contar a verdade? S o que invento me comove; s a
verdade te emociona. Teremos ento de deitar sorte: ainda no sei qual de ns
merece agora reaprender a chorar.

No havia dvida nem engano possvel: eram os olhos cinzentos, o maxilar


quadrado, a pele tisnada, as grossas sobrancelhas do meu pai. Apenas me
espantava que a sua expresso em vez de traduzir o xtase que eu teria, com
certeza, se estivesse no seu lugar se mostrasse to dura, to inexvel, to
cerrada. Era exactamente a mesma expresso que surpreendi nos outros os da
Gestapo naquela tarde, durante a Resistncia, em que o vieram buscar; e em que
o feriram a tiro, quando ele tentava resistir-lhes.
Eu assisti cena. Nessa tarde, pela primeira vez, o meu pai levara-me com
ele ao caf. Era, se no me engano, um pequeno caf em Saint-Germain , um
pequeno caf que me pareceu enorme. E tnhamos acabado de chegar a casa.
Embora eu contasse apenas dez anos, j pela segunda arremetida a Histria
intervinha na minha existncia. A primeira de que naturalmente me no recordo
tinha sido em 1934, durante os motins do 6 de Fevereiro.
No admira que eu seja to preciso, to rigoroso: foi o dia em que nasci. E mais
depressa do que se esperava: a minha me apanhada no remoinho de toda aquela
confuso, cau e desmaiou em plena rua. Acabou por me dar luz a caminho do
hospital. Mas veio a morrer nessa mesma noite.
Muito mais tarde, agora mesmo, noites e noites a o... Nem tudo Histria na
vida de uma pessoa. E todavia, bem o sei, tambm a Histria pesa muito.
203
Vs? A tens um caso, um enredo, uma histria com letra pequena. No me
perguntes se verdadeira ou se foi inventada. Estars com lgrimas nos olhos?
Estarei com lgrimas nos olhos? Felizmente que da, do lugar onde te encontras
se por acaso a te encontras, se alguma vez a estiveste , no conseguirs ver o
meu rosto, nem permitirs que eu veja o teu.
Anal ainda no nasceu o Sol. Mas o mar j comea a soltar-se dos braos da
noite. To fria, to fria que deve estar a gua!

(De Os Amantes e Outros Contos, 1974)

204
HERBERTO HLDER

(1930-)

Inuenciado fundamentalmente pelo Surrealismo, numa feio muito pessoal


em que se conjugam formas expressionistas tambm amoldadas sua maneira,
Herberto Hlder tem obra vria e extensa de poeta. Nela vieram inserir-se,
com agressiva veia de inovao, os livros de contos (ou textos que podero,
com liberdade qualicativa, classicar-se como tais) intitulados Os Passos em
Volta (1963) e Apresentao do Rosto (1968). A frmula que o prprio Autor
aplicou denio do estilo poder aplicar-se em acepo idntica s suas
prosas narrativas: ...aquela maneira subtil de transferir a confuso e violncia
de vida para o plano mental de uma unidade de signicao. Os referidos
textos em prosa constituem, de facto, sondagens intelectualizadas de estados
de conscincia, geralmente sem estrutura efabulativa organizada e condensando
em cenrios invertebrados o que a realidade sugere metaforicamente. O real
congura-se como pretexto de divagao visionria. Com tal processo, mais
acentuado no segundo do que no primeiro daqueles livros, consegue o Autor
efeitos impressivos em sucessivas ou dispersadas unidades de signicao,
como que decompondo o mundo num corpo sem formas. A absurdidade do
mundo circular, como escreveu Alexandre Pinheiro Torres, d-a Herberto
Hlder com profunda originalidade. E Jos Rodrigues Miguis, em comentrio
publicado logo a seguir edio de Os Passos em Volta, armou que este escritor
o nico caso de surrealismo que entre ns se aproxima da perfeio, embora
se revele nele candura e inocncia. Mas, de qualquer modo, que a realidade
est ali presente nas suas relaes aparentemente ilgicas. Para esta complexa
manipulao do real e do imaginado concebeu e praticou Herberto Hlder uma
escrita sincopada, em sobressaltos frsicos que se sucedem com desconexes
no imediato mas que acabam por adquirir um ritmo e suscitar a pretendida
205
unidade. A escrita do Autor, embora extremamente pessoal, parece ter
inuenciado (ou pelo menos precedido como precursora) a que se tem espraiado
em numerosos escritores das geraes mais recentes, em busca de inovaes de
linguagem mas geralmente sem propenses surrealistas ou surrealizantes.

206
O QUARTO

Ele pareceu no entender a minha aluso. Voltou para mim o rosto irnico e
perguntou: A que se referia?
morte respondi eu.
Sim, eu tambm falava da morte. Mas surpreendeu-me que voc estivesse a
pensar no mesmo.
Pensamos todos no mesmo, a partir de certa altura.
Talvez murmurou, e a sua voz tinha uma ponta de orgulho. Mas nem
todos da mesma maneira. Sabe que sou forte? por isso que penso nela. Detesto
a fraqueza que se remedeia na imaginao do m. No creio em nada. No desejo
crer seja no que for.
Pensa que vai morrer quando quiser?
Ele olhou-me em cheio e sorriu. Tinha a cabea viva e nobre de um homem
antigo. Parecia saber muito, e realmente em nada devia acreditar. Notava-se-lho
no olhar, que era culto e virilmente triste.
isso. Eu preparo a minha morte. Um verdadeiro homem tem direitos e
deveres em relao sua morte. Sabe que estou a construir uma casa?
Sim, j mo disse.
Conhece o stio? E as palavras aludiam a todo um mundo de signicaes.
No entanto, a voz era imperturbvel. Este homem morreria dentro da sua morte.
Conheo. Fica na outra costa da Ilha. Atrs, h a montanha sem rvores.
Pedras e urzes. Pavoroso. Em frente, o mar. O mar l bravio.
gua cinzenta e branca. Por detrs, a grande montanha onde s andam
cabras. Mas na plancie, ao lado direito, existem muitas rvores onde o vento
207
do mar vem bater. De noite, aquilo vibra e uiva. E, no outro lado, estende-se a
terra arenosa. Quando h tempestade, de uma beleza diablica. Bom para nos
sentirmos ss e saber se ainda h em ns o orgulho do medo.
Compreendo que construa a a sua casa.
Construo a casa muito devagar. a minha ltima tarefa. Obrigo os operrios
a trabalhar lentamente. Esto espantados. O capataz supe que sou louco. Nunca
custou to cara uma casa de um s piso. Quando car pronta, j nada mais terei
a fazer. Seria horrvel procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato. Isto de
sangue. Meu av correu mundo e veio morrer na cama onde nascera. Meu pai
foi voluntrio para a guerra, depois de me ter gerado, e l morreu. Tudo homens
que zeram uma tarefa e nela puseram a signicao da vida. E deramse por
cumpridos, regressando ou morrendo. No sabedoria? No quero ser ftil. o
nico pecado do esprito. Ponho toda a minha fora religiosa na razo da vida, que
dada pela oportunidade e qualidade da morte.
Riu.
Sabe que sou um homem religioso?
No entanto...
Claro, no acredito em nada do que diz respeito a isso... a essas coisas... da
imortalidade da alma... da existncia de Deus... no bem e no mal... na caridade
e piedade... Detesto essas crenas e virtudes da baixa religiosidade. O meu
pensamento religioso de outra ordem...
Talvez creia disse eu na necessidade de manter incorruptvel o sentimento
da vida. Talvez tambm o dever da morte...
Quer exprimi-lo assim? Vejo as suas mos fazerem um gesto subtil e
inacabado de irnica concepo. Talvez seja quase isso... Aos vinte e cinco anos
fui viajar. Percorri a Europa, a Amrica do Sul, frica. Estive na Austrlia, no
Japo. Vivi alguns anos em vrias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena.
No h raas nem pases. O homem estpido. E precisa de ser amado e amar.
um ser repugnante. Hoje sei am-lo, assim repugnante. Aos quarenta anos deixei
de viajar. Fiquei em Paris. Aos quarenta e cinco xei-me em Lisboa. Cinco anos
mais tarde, vim para a Ilha. E os crculos foram-se apertando cada vez mais. Hoje
no saio deste caf e do hotel, quando no estou a seguir o andamento das obras.
Daqui a algum tempo, mudo-me para a casa. Depois... Compreende o que digo,
quando falo do meu esprito religioso?
Sim, parece-me que sim...
A casa tem trs quartos, alm de cozinha, casa de banho e despensas. Um
o quarto de dormir; o outro, a sala de jantar; e o terceiro... No adivinha?... No,
no pode adivinhar...
208
Noutras circunstncias eu diria que era, por exemplo, a biblioteca...
Noutras circunstncias. Agora no leio. Vou morrer. Oua: a casa toda
assoalhada. As casas so naturalmente assoalhadas, no assim?
Claro.
Sim, mas esse quarto no assoalhado.
Mais um espanto para o capataz disse eu, sorrindo.
E para si tambm.
Tambm para mim. Porque no assoalha esse quarto?
Durante um ano ou dois vou viver naquela montanha, na mata, na terra
arenosa em frente do mar. Vou entrar e sair da casa e passear por esses lugares
todos. Em seguida sentirei que no devo sair mais, e carei em casa, andando de
um quarto para outro.
No quarto sem soalho, tambm?
No respondeu.
Lembra-se de eu lhe ter falado no vento martimo a bater nos pinheiros? E na
alta montanha intransitvel, por detrs da casa?
Lembro-me. Eu conheo tambm o stio, como lhe disse.
O barulho do mar e do vento. A ideia da montanha impraticvel. A terra
arenosa por ali adiante. E a solido. E, sobretudo, saber que j no pode haver
qualquer espcie de medo. Ento fecharei todas as portas da casa, a porta para fora
e as portas dos quartos entre si. Ficarei no quarto sem soalho e deitar-me-ei no
cho. Hei-de ouvir o mar e o vento, e hei-de saber que a montanha est atrs de
mim, poderosa e s. Poderei ouvir tambm o sussurro da terra hmida debaixo do
meu corpo. Encostarei a cara a essa terra profundssima. At que morrerei.

(De Os Passos em Volta, 1963)

209
MARIA ONDINA BRAGA

(1932-)

Duas direces temticas prevalecem na novelstica de Maria Ondina Braga,


primacialmente contista; o retorno reconstituinte infncia e juventude,
procuradas como compensao para os desencantos da vida experimentada; e a
xao de momentos e personagens em mundos exticos (sobretudo do Extremo
Oriente) onde a escritora viveu e se lhe gravaram para alm do efmero da sua
circunstncia. Nessas direces se liam os contos de A China Fica ao Lado
(1968), a autobiograa romanceada Esttua de Sal (1969), os contos de Amor e
Morte (1970), as novelas de Os Rostos de Jano (1973), os contos e crnicas de
A Revolta das Palavras (1975) e o romance A Personagem (1978). As narrativas
de Amor e Morte, em vrios casos profundamente refundidas e acrescentadas
com novas composies, foram reeditadas em 1982 sob o ttulo O Homem da
Ilha, testemunhando um minucioso apuro formal. O que mais reala na obra de
contista da Autora no tanto a capacidade efabulativa, que em muitos casos se
adivinha moldada sobre um real experimentado ou interpostamente conhecido,
mas a arte delicada da composio narrativa, a substancializar literariamente
vida interior intensa na prtica social das personagens. E tambm, com essa
arte seguramente praticada, a harmonia de ritmo no contar, sempre com
nitidez e conciso, sem divagaes supruas, despojado na adjectivao e de
elegncia rara no andamento da escrita. So, sobretudo, as guras femininas, que
conhecem a vida para alm do quotidiano imediato, que a consciencializam
com lucidez muitas vezes pungente, mas que deixam fugir a vida no o do
tempo por irresoluo, escrpulo, timidez, indiferena e abandono ao fatum,
as que mais impressionam na criao ccionista de Maria Ondina Braga. Poucas
escritoras portuguesas (alm de Irene Lisboa e Maria Judite de Carvalho)
tm dado testemunho to penetrante e impressivo da solido feminina
uma solido que vem de dentro e se alimenta de interioridade, sem repulsas
210
violentas pelo mundo dos homens como a autora de O Homem da Ilha. A
poetizao intrnseca da linguagem, sem rebusca nem manipulaes de estilo
deliberadamente potico, constitui tambm motivo de aliciamento de leitura
na obra em continuado enriquecimento textual e contextual de Maria Ondina
Braga.

211
A LIO DE INGLS

Quando nesse m de tarde o telefone tocou, uma corrente de ar escancarou


a janela, levantou a cortina e atirou com a porta. Era j escuro e chovia
torrencialmente. Por um instante hesitei entre atender o telefone a acudir sala. As
ores do centro da mesa tinham-se espalhado pelo pano de veludo, a poltrona do
canto comeava a ser colhida pela gua, e quanto cortina essa ia cando numa
sopa.
Naturalmente que corri a fechar a janela. O telefone, contudo, insistia e a luz
elctrica apagou-se.
Foi s apalpadelas, aps ter vencido o vento, cerrando a vidraa, que cheguei
ao telefone. A voz que vinha pelo o, densa e arrogante, era de mulher.
A senhora d lies de ingls.
Eu prpria.
Quero lies.
Estremeci. Ningum costumava falar assim. E que voz to dura!
Batida pela ventania, a persiana, que no tivera tempo de trancar, ressoava
com os troves, e na negrido luzia um cigarro. Desnorteada, perguntando a mim
mesma onde o teria posto, pedia a Deus que no fosse em cima do chemin da mesa
pertencera av, o pano, e era todo em paves bordados por ela a canutilho.
A voz do telefone repetiu:
Quero lies. A comear esta noite.
Com um tempo destes?
A senhora ensina na rua?
212
Uma vertigem. Onde que eu me sentara? Os ps balouavam-me, suspensos. E
foi ento que um relmpago fez da sala dia e me vi empoleirada na escrivaninha.
Est l?
Desculpe, mas acho melhor combinarmos amanh. O temporal...
Que temporal?
A no h?
A aonde?
No sei donde a senhora fala. Francamente... na minha rua horrvel. Olhe,
outra vez a janela aberta. Deixe-me ir segurar a persiana.
Ela soltou uma gargalhada do fundo do peito que lembrava tosse. E ao largar o
auscultador para valer janela, ouvia-a dizer: Fala do Monte dos Vendavais?
Parei um segundo, intrigada. O momento, porm, no se prestava a objeces.
E enquanto as minhas mos puxavam, aferrolhavam, atarrachavam, esforadas,
ia comparando o zoar do vento com o riso da mulher do telefone. Monte dos
Vendavais? Ocorriam-me ideias extravagantes: quem sabe se no estaria a falar
com o fantasma de Emily Bront? Desatei a rir. O riso enfraquecia-me. A persiana
fugiu-me. Era uma bandeira pela noite, a despedaar-se contra o peitoril de
mrmore. Os relmpagos sucediam-se. E, de braos cados, cabelos molhados
atirados para trs, eu a rir como doida.
Quando por m me enterrei na poltrona, cansada, o trovo ribombava e j no
se via o olho de lume. Graas a Deus pelo pano de veludo! A minha me dizia
graas a Deus por tudo que de bom acontecia e mais ainda pelo que de mal
no chegava a acontecer. Linguagem da infncia, graas a Deus, reconfortante
no inferno de um temporal daqueles, os estores partidos, a casa a inundar-se, e
uma estranha... to estranha... J no me ria. Se a deixasse car indenidamente
espera, se desligasse... Agarrei no aparelho.
Ento, no foi levada pelo vento? outra vez a risada cavernosa. Demorou
tanto! A que horas posso ir lio?
A senhora quem ?
Uma aluna... parecia ansiosa. Uma aluna que precisa comear esta noite
sem falta.
Eu no sabia que responder. Alunos particulares interessavam-me sempre.
O colgio pagava mal. To extraordinrio, no entanto, tudo aquilo. Venci a
indeciso:
s nove horas serve-lhe?
Com certeza. As nove horas estou a. At j
A trovoada abrandara e ouvi dar horas no relgio do vizinho. Era uma velha
pndula, ao outro lado da parede, que regulava melhor do que o meu relgio.
Contei alto: Oito horas? Precisava de falar s, de perguntar sem ouvir mais
213
ningum. Mas, ao ir cozinha por uma vela, a voz e o riso da mulher seguiram-me.
Quem? E porqu tanta pressa? Devia ter recusado. Em noite assim invernosa, uma
desconhecida, esquisita para mais... E no z depois outra coisa seno andar da
sala para a cozinha de castial na mo. O jantar passou-me. Sentava-me mesa
de trabalho, abria um livro, lia duas linhas, dactilografava meia dzia de palavras,
recomeava o passeio. Pelas nove horas menos um quarto apeteceu-me fazer ch.
A luz elctrica no voltara, o coto de vela ia-se derretendo, e a casa cada vez mais
das sombras. Tolhia-me quando me virava, quando estendia um brao, quando
entrevia um espelho.

Comeara a tomar o ch, trs pancadas na porta. E se casse ali muito


quietinha at ela se cansar e se ir embora? Mas j os passos me levavam para o
corredor. Descerrei o trinco e abri. Muito direita, de gabardina de capuz e botas, a
minha nova aluna tava-me, sorridente:
Good evening, teacher!
Good evening respondi, afastando-me para que ela entrasse.
Vou estragar-lhe os encerados...
Peguei-lhe no guarda-chuva, encaminhei-a para o bengaleiro.
Baixando o capuz que lhe anunciou a cabeleira pintalgada, ela principiou a
despir a gabardina.
Importa-se que tire as botas?
Espantava-me de mim mesma, to calma, a assistir aos movimentos da mulher,
a alumi-la, a pegar-lhe na carteira ou no livro. Quase no lhe vira seno o sorriso
da entrada e uns vagos olhos sem cor (ou seria da vela?) e pus-me a observ-la:
pernas altas, corpo esbelto, mos compridas que estiravam pela parede guras
aladas.
A certa altura, erguendo o busto, ela disse com um sorriso:
Meu Deus, que silncio!
verdade. Vamos j falar ingls.
Chamo-me Nomia agarrava as botas pelo cano. Onde ponho?
Oh, vou buscar-lhe uns chinelinhos. No pode car descala.
No co apontava para os ps.
Baixando o castial, vi que calava uma reviradas pantufas de anela beje.
As botas arrumavam-se melhor na casa de banho. Ela entregou-me tambm o
impermevel para no pingar na passadeira. E ao tornar ao corredor, j excitada de
simpatia por essa forasteira das trevas e da tormenta, escapou-se-me um grito. Ao
claro dos relmpagos, Nomia surgia enorme e trgica: cabeleira de ao, olhos
de vidro, girndola de brilhantes ao colo.
214
Assustou-se?
No. No. O corao batia-me na garganta. Acho que temos de abreviar
a lio hoje. No me preveni de velas e esta vai quase no m.
Oh, no se aija. Trouxe uma lmpada de bolso. Nestes stios a electricidade
quando falta horas...
Na sala, enquanto eu vislumbrava a lio luz da pilha, ela, desapertando o
broche de pedras, tirou o leno do pescoo e disse.
Est calor. Trovoadas de Maro. Que o inverno propriamente j passou e,
amaciando a voz: verdade que a primavera em Inglaterra bonita? E Hyde-
Park? Como Hyde-Park?
Hyde-Park? Namorados pela relva...
Nomia olhava-me muito atenta. Azuis, verdes, os seus olhos? A testa lisa. O
nariz no.
Quem me dera l ir. No sei porqu mas sempre sonhei com Hyde-Park
apresentava-me um livro de capa amarela Foi por onde aprendi no colgio.
Ento sabe falar ingls.
Esqueci quase tudo.
Comeamos pelo alfabeto. Ela pronunciou as letras correctamente e, ao chegar
ao r, comentou que a madre desenhava essa letra no quadro dentro de uma redoma:
muito melindroso o r em ingls...
Lemos a primeira lio. Iniciamos uma conversa simples. Eu, como de
costume, gozando o acto de ensinar, e j sem qualquer receio ou susto, como se
no existisse nenhuma relao entre aquela mulher e a misteriosa do telefone. E
Nomia descontrada, de perna traada, a fumar.
Para o m da lio a minha aluna teve de servir-se da lmpada de bolso para
ler, e, quando, passada a hora, a luz da vela amorteceu de todo, encarou-me:
No me pergunta porque teimei em vir hoje, apesar do temporal?
Parece que na sua rua no havia...
Ela riu o riso cavo.
Importava-me eu l da chuva ou do vento! Queria era vir e aprender o mais
depressa possvel!
Ah, sim? Porqu?
Ainda bem que me pergunta. Gostava de lhe contar. Recebi carta dele...
a voz perdera toda a secura, como se agora lhe sasse do peito molhada de
lgrimas.
Amigo?
Mais do que isso num gesto rpido assoprou vela No precisamos de
luz. ingls. Vive em Londres.
215
E na escurido picada apenas pelo lume dos cigarros e assombrada por uma
ou outra fasca, j longnquo o ralhar do trovo, os nossos joelhos a tocarem-se
casualmente, foi-me conando a sua vida.
Casada havia vinte anos, o marido, rico, abandonava-a, fazia-lhe desfeitas,
divertia-se com outras.
E eu el. Quinze anos de delidade! E gira, sabe? Os homens gostavam dos
meus olhos transparentes, das minhas pernas. Santo Deus, porque lhe estou a
contar isto? Vai achar-me ridcula...
No. Nunca. Mas tambm me admiro. Uma desconhecida como eu nesta
terra...
Bem, eu acho que j a conheo um pouco... Tenho-a lido. Alm disso, uma
certa distncia ajuda. Num comboio, por exemplo, acontecem-nos condncias:
contamos s vezes ao annimo companheiro de viagem o que toda a vida
escondemos da vizinha do lado ou de amigos de infncia.
E porque se criava ali, com aquelas palavras, uma certa intimidade, ofereci-lhe
ch: Faa-me companhia... Depois, na cozinha, ela a focar o cho de mosaico
vermelho, e eu a comparar-lhe mentalmente os ps na anela parda com duas
cobaias. Uma escrava, eu sabia? Uma escrava do Ral foi o que sempre fora. E
o descarado a passar-lhe porta com as amantes, a car noites fora. Verdade que
imaginara traies, planeara at a fuga com um irmo dele, seu apaixonado. Mas,
na hora, arrependia-se. No fazia nada. Perdoava-lhe. Tinha vivido a perdoar-lhe.
Amava-o mesmo assim?
Tardou em responder:
Descono que sim.
H trs semanas aparecera o ingls. Viera para negcios e o marido de
Nomia levara-o a casa. Os ingleses apreciavam o ambiente de famlia. De bom
tom apresent-los mulher, oferecer-lhes um jantar no prprio lar. O ingls,
novo, elegante, um gentleman, e muito amvel com a Nomia, falando francs
(lngua uente para ela) a m de facilitar a conversa. Estavam sobremesa,
chamaram Ral ao telefone: qualquer coisa que ele classicou de urgente, pediu
mil desculpas, tinha de ir. E logo o estrangeiro a levantar-se, a despedir-se. E o
dono da casa a insistir para que casse, tomasse caf, um licor. A mulher a olh-lo
ao mesmo tempo com raiva e alvio: algum irt com certeza... Mas que bom v-lo
pelas costas. To atencioso, to gentil, o ingls, ao lado daquele grosseiro.
Sentou-se na pedra da chamin.
J viveu em Inglaterra, portanto deve ter amado algum ingls.
Olhe, se amei, no me lembro.
Ela bateu, irritada, com o p no cho.
216
Fala como quem estivesse a escrever. sempre assim? Porque no responde
directo? Li no sei aonde que os escritores e os camponeses se exprimem da
mesma maneira, por rodeios.
Sorri.
Pois faa de conta que est a tratar com uma camponesa...
Nomia desatou a falar baixinho, ao jeito de quem monologasse.
Verdade que no vim aqui para a interrogar mas para desabafar consigo...
Verdade que, antes, tudo me parecia mais importante do que neste momento...
Acho que nem vale a pena continuar...
E da a bocado: Vou para Inglaterra, sabe?
O aroma amargo das folhas escaldadas do ch.
Vou-me divorciar. O Ral no quer. Habituou-se minha sujeio. Convm-
lhe as aparncias, a fachada social de uma mulher legtima, de um lar. Mas o Peter
ama-me. E, quanto a mim, creio que a paixo da minha vida.
Vamos tomar o ch na sala e dirigi-me para o corredor, com Nomia
frente, de lmpada em punho.
No diz nada?
Que hei-de dizer? Se j no gosta do seu marido, penso que melhor
deix-lo. E se ama o ingls...
Estvamos junto do sof, e, ao endireitar-me, depois de pousar a bandeja na
mesinha, um foco de luz cegou-me. De p, muito hirta, Nomia assestava-me nos
olhos a pilha elctrica.
Ajude-me! Vim aqui para isso! A sua fala, entre obstinada e exausta.
Eu estudava-lhe as feies na penumbra, o arco do nariz, a nascena do
cabelo. E, como uma espontnea camaradagem me invadisse, peguei-lhe na mo.
mulher. Somos ambas mulheres. Aqui diferentes e aliadas na escurido. Uma
frgil, uma baldada aliana, todavia. Que, se ela me vem consultar em busca de
um norte... que da minha bssola? que do meu roteiro?
Tornei reserva inicial. Quem me diz a mim que esta Nomia no alguma
louca?
Olhe, problemas desses cada qual os resolve consigo. Sente-se explique-me
a sua conversa do Monte dos Vendavais ao telefone.
Encolheu os ombros, desconsolada:
Ando a l-lo. Foi o Peter quem mo ofereceu, traduzido em francs. Tinha-o
diante de mim quando lhe telefonei. E voc a falar de vento, de chuva... Uma
gracinha que eu quis fazer...
Pois impressionou-me, sabe? Os seus modos, o desencontro das nossas
palavras, a gua a invadir-me a sala, o trovo, o estampido das portas e ainda a
aluso ao livro do outro mundo... Acar?
217
No. S limo. E recostou-se, de olhos semicerrados.
Eu peguei na lmpada. Precisava de luz para o ritual do ch. Pus uma roda de
limo na chvena dela, leite na minha. Apaguei-a, depois. Para beber vamos.
Bem, voc no quer dizer nada tacteava a xcara mas que sabendo: um
belo homem. Ah, um deus!
No ser a beleza que voc ama?
A chvena tilintou no pires.
Acertou. a beleza dele que eu amo, tal como amei a de Ral aproximava-se
mais Ah, o Ral, que gura! Recostou-se outra vez. Imaginava-lhe uma
expresso dramtica Agora est horrvel. Foi-se desfeando medida que me
enganava. Cada ruga do seu rosto um dos golpes com que me retalhou. Como
gozo em v-lo envelhecer! a minha vingana procurou a lmpada, abriu a
malinha, puxou do espelho e mirou-se Ah, eu ainda agrado! Ele, com mais dez
anos do que eu, aparenta mais vinte. As amantes, claro, querem-no pelo dinheiro.
Durante algum tempo tommos o ch, caladas. Eu cismava na perfdia da
beleza. Uma vontade de lhe dizer que tambm fora atraioada, no como ela, no
apenas por um homem, mas por todo um destino, pela prpria vida. E que traio!
A mim nem sequer me restavam represlias. Sacerdotiza da beleza, eu morrera ao
beij-la.
Ela cortou-me os pensamentos.
Ter pena de mim? No me admira. Mas olhe que vim mais por isto do que
pela lio. Uma necessidade de me abrir com algum. E escolhi-a a si.
C dentro crescia-me o desejo de lhe contar a minha experincia. Entendia-a
melhor do que ningum. Por ter amado a beleza que nunca chegara a amar
deveras. E tambm ideara desforras. E tambm me mantivera el. Fiel a qu? Fiel
a quem? Sentia a mo quente de Nomia. Nomia estava viva, bem viva. E disse
alto:
Mulher forte!
Ela quase saltou.
Que quer dizer? Acha que devo ir para a frente? apertava-me muito
os dedos. Sou forte, no sou? E aps uma pausa, como que procurando
orientar-se Mas o amor? Que o amor?
Momento solene aquele: que o amor? A sua mo nervosa na minha.
Se eu lhe contasse... Ora, se lhe contasse, que adiantava? Retirando a mo,
Nomia falou, calma:
O amor, anal, talvez no seja seno... um mpeto da nossa f. E a semente
dessa f guardei-a eu, apesar do deserto em que tenho vegetado. Sabe, costumo
comparar-me s plantas vivazes, arreigadas terra...
218
E, inesperadamente, a luz do tecto iluminou a cena.
Sacudindo os reexos metlicos do cabelo. Nomia consultou o relgio de
pulso.
As minhas botas? Tenho de me ir embora. Onde esto as minhas botas?
apressava-se para o corredor. Tenho de me ir embora!
E despedimo-nos como se ela no me tivesse conado os seus segredos no
escuro. Era uma aluna igual a qualquer outra, s com a diferena de que no
tornaria.

(De Amor e Morte, 1970)

219
LDIA JORGE

(1946-)

Na mais recente vaga de autores portugueses de co, em que repercutem


as mltiplas e divergentes tendncias actuais da literatura mundial, Ldia Jorge
foi acolhida com xito sbito e espectacular, no s pela crtica como pelo
pblico leitor, comprovado nas repetidas edies dos seus dois romances at
data publicados: O Dia dos Prodgios (1979) e O Cais das Merendas (1982).
Dotada de grande flego romanesco, ligado melhor tradio pica das
grandes panormicas sociais e dos trajectos particulares das personagens que
nelas se recortam como foi registado num roteiro literrio editado pelo
Instituto Portugus do Livro a Autora desdobra as suas narrativas em quadros
alegricos mas pertinentes da realidade portuguesa. Esse processo anuncia
uma vocao de contista. E, de facto, no conto que Ldia Jorge trabalha
mais deliberadamente quando se escreve esta notcia, como certica a narrativa
a seguir reproduzida. O imaginrio concebido entranha-se ao longo do seu
discurso num concreto vigiadamente delineado. O estilo da escritora o duma
clere uncia verbal que absorve em ritmos inesperados os cortes repetidos
da frase; o da rebusca que espontaneamente se comunica ao leitor da maior
intensidade da palavra; o da diluio das imagens em pormenores alusivos
e vocabularmente condensados; por vezes o da coloquialidade que das falas
das personagens se transfere para o descritivo dos meios em que se situam.
E se na narrao h percursos que parecem utuantes, no tardam eles a
desembocar em guras, em situaes, em maneiras ntidas de estar no mundo
espera da ponte de cada um com os outros. Numa esteira que vir talvez,
longinquamente, de James Joyce e de Sartre mas em que se inltraram mltiplas
experincias da novelstica mais moderna a quebra da ordem causal exterior,
as oscilaes do tempo como durao, o esgaramento da aco romanesca e
do enredo, tais como foram apontados pelo ensasta brasileiro Benedito Nunes
220
esta escritora apresenta desde os seus primeiros livros uma linha pessoal que
se indicia profundamente inovadora. A frescura de estilo que tem sido sugerida
como qualidade mais evidenciada dos seus textos manifestamente indicativa
de virtuais caminhos de originalidade e descoberta ccional.

221
OS DOIS VIAJANTES

Quando me deram o recado de que o Baio me desejava em pessoa para que


lhe ouvisse o ltimo suspiro, senti-me afogado de urgncia. Havia muitos anos
que no visitava Padrona, passando de largo, a caminho de outros stios. No
entanto, quando avistava de longe os telhados s curvas, cava seguro por saber
que existia, mansa e quieta, aquela raz sob o solo. Acontecia agora que o Baio
me chamava, caprichoso na morte, para lhe apertar a nica mo que tinha. No
admirava que me tivesse posto na garganta aquela pressa costumeira nestas coisas,
a urgncia feita da ideia de que dum momento para o outro poder ser tarde
demais e para sempre. preciso no entanto explicar que eu era engenheiro de
estradas e amava-me durante as semanas como pessoa quieta, reconhecidamente
por todos. Mas aos sbados costumava cair-me uma penumbra sobre a casa, coisa
indizvel a bulir comigo, e todos os mveis fechados pelas divises chamavam-me
pelo nome como para lugares longnquos. Expulsando-me. Enchia-me ento de
velocidade e percorria as vias de norte a sul com os olhos amplos de quem vence
as rectas. Por isso mesmo nem possua a casa onde morava, e a mulher com quem
partilhava a vida j era a quarta, tendo cado em contrato de ajuntamento essa
salvaguarda. Ouve. No havia nada a fazer e estava combinado. Eu gostava de
sair de manh para poder ver as plancies a deslizarem ao longo das estradas, os
outeiros a rodarem sobre si na corrida, as rvores a correrem minha passagem,
feitas coisas minsculas. A correrem. Gostava de passar diante dos restaurantes
que escancaravam as bocas das portas para as bermas e no parar nem para acenar
com a mo. Sim. Tinha cado combinado para que daquela vez no houvesse
surpresas. Eu era engenheiro de estradas e sabia-o.
222
As estradas riscavam os pases nas direces das cidades, ligando-as,
desembocando em largos onde infelizmente as viaturas tinham de parar pela fora
dos sinais semforos, e era bom regressar tendo essa certeza de que a Terra era
redonda, era pequena e era futura. Variadssimas vezes as mulheres com quem
vivera me haviam feito as contas. Se descansasses, se no corresses, se no
gastasses, no desluzisses, no trocasses. Ah, sim, eu poderia ter e haver, no
ser um pobre engenheiro de estradas, mas um senhor delas ou de coisas largas,
longas e poderosas como elas. No interessava. Correndo-as, tinha a certeza de
que para alm das bermas das estradas e dos restaurantes de janela escancarada,
j no havia escombros sumindo-se na poeira. Nem de casas nem de gentes. Mal
se traava esse risco azul e negro sobre os mapas, ligando as cidades, os desertos
tornavam-se apelos de futuro merc dos limites da imaginao. Por certo que
Padrona continuava a ter a praa, a farmcia, a igreja, os bancos, as rvores. Sob
as rvores e sobre os bancos, o Baio indicando as vias com a mo esquerda, e
por cima de tudo isso os pssaros reproduzindo-se nas primaveras e chilreando
durante o vero. Eu passava de largo, passava, corria as estradas sendo um
engenheiro delas, gozando-as, amando-as e tendo-as. s vezes chegava a casa
cansado da vista e doente do rim, o estmago vazio, trazendo na ponta dos dedos e
na planta dos ps a sensao de ter cavalgado vrios cavalos de metal sem chegar
estalagem prometida. Que existiria contudo, e teria de estar no m duma estrada
larga e luzidia. A quarta mulher que tinha, felizmente que era uma espera feita
gente. Mas mesmo assim, parecia dizer: Porque no vives descansado? Um copo
tamborilando nas mos e o pensamento nos beijos? Como toda a gente? Parecia
dizer junto das vidraas a ver crescer as folhas das avencas. Mas no valia a
pena. Desta vez acabava de chegar e j partia, que me chamava esse velho, coisa
caprichosa, quando at o julgava morto e nado.
No dia seguinte arranquei muito cedo, deixando a mulher em robe, entre
portas, com as chvenas na mo. Tinha pressa. Pus-me ento a conduzir por cima
das estradas com toda a velocidade dos dedos como uma mquina perfeita. Sentia
que a linfa do meu sangue corria no eixo das rodas e a gasolina do motor me batia
nas tmporas, vendo os outeiros a andar roda, a serem engolidos pela distncia,
as rvores a deslizarem, as plancies a moverem-se mais longe e mais perto, como
magma de palha e feno, aloirados de sol. Era assim. At porque naquele dia,
fria interior de procurar uma meta imaginada, se acrescentava a preocupao
por esse homem que tinha amado em criana e cujo nome lembrava um passo de
danarinos. Assim assim, com o corpo. E imaginava-o branco, deitado sombra
das canas e das paredes, um pcaro de gua fresca ao lado, as pessoas de Padrona
a entrarem e a sarem, falando baixo. Talvez me chamassem para assistir com
eles solenidade de ver morrer o Baio, talvez para que ajudasse a comprar a
223
mortalha, talvez tudo isso e nada disso. Agora eram as curvas largas e via-se
as vacas vermelhas, de focinho imvel, luzindo ao sol. Passava a correr junto
de pastos brancos e ocres. Por vezes esses pastos abriam-se em plantaes de
girassis amarelos, de cabea degolada para o lado, sem um nico bafo de vento.
A manh ia alta.
Passei casas, passei vilas, passei ruas, montes, vrzeas, o cho plano e aberto,
s rugas como se fosse envelhecer, aos socalcos como se fosse explodir. Passei,
passei, passei, at que por m comecei a pressentir a direco de Padrona.
Abrandei as alavancas, diminu os rudos, ia chegar. Era preciso sair da estrada
nacional e desviar esquerda, enar por um renque de pitsporos ramalhudos.
quela hora as pessoas de Padrona deveriam estar cabeceira do Baio, e as
crianas de chapu de palha, deveriam rir atrs dos pssaros. Entrando devagar, os
beios do carro comeavam a lamber as esquinas e os lancis, respirando o motor
o seu tum tum de potncia. aqui.
S que a rua estava deserta e apenas trs meninas seminuas e rasgadas
apareceram de bocas mudas a olharem o rudo, de p, perladas nos stios onde eu
ainda era capaz de saber as pedras de cor. O Baio? Fugiram as meninas para trs
das esquinas e ningum aparecia nas janelas. Podia ver-se. Tambm esquerda
uma casa de primeiro andar tinha uma tabuleta perto do telhado, grande e pintada
de preto e o F de for sale era um belo lavor de volutas e voltas, arabescos como
se se tratasse de anncio de casa de pasto. Est boa. Do outro lado da rua a padaria
tambm estava venda, mas o letreiro era feito a pincel, torto e espalhado pela
parede, em letra irregular e analfabeta. O bater da porta fez eco de encontro
aos telhados. Padrona. O largo de Padrona assim deserto, claro e branco quela
hora, parecia um espao aberto espera do chilrear dos pardais em revoada.
E ainda ningum nas janelas. S as sombras das meninas se moviam atrs das
esquinas, indicando os movimentos sustidos, desenhados pelo cho. Eh l. Disse
eu, o engenheiro de estradas novas. Ressurgiram ento as meninas seminuas
e destranadas. A mais pequena das trs, como se compreendesse a circum-
navegao do meu olhar desamparado, fez dois passos, levantou o brao, e
disse arrancando da coragem. alm. Subi a rua como quem se prepara para
alguma coisa de inicial. A ausncia de rumor que se seguia ao zumbido de tanta
velocidade, punha-me a sensao de ser um ser incompleto ou de transio para
outra espcie. Apetecia voltar, esquecer o Baio, montar o instrumento e p-lo a
roncar o meu suor pelas turbinas de escape, mandando para trs as distncias.
alm. Olhava os stios familiares e nada estava como previa. S dentro de casa,
tal como havia suposto, sombra das paredes e das canas, o Baio dormia sobre
a cama com um olho aberto e outro fechado, muito branco, envolto num lenol
224
antigo, de dois ramos, costura ao meio. Aproximei-me, e to baixo respirava que
o supus j completamente ido. Mas o Baio ainda ouvia e perguntou.
J chegaste?
Cheguei. Via-se pela porta que no havia vivalma por perto. S as trs meninas,
acuadas parede da frente, mostravam as pernas sob os panos. Reparei tambm
que, apesar da debilidade, o corpo do Baio, estendido e morno, ainda era enorme.
Alm disso, o seu olho aberto mantinha a lubricidade de quem vai aos ninhos para
denunciar os ovos. J chegaste?
Chamou-me ento para junto de si, ajeitou a boca ao pavilho da minha
orelha que estendi, amparando-a bem com a mo para que lhe ouvisse o segredo.
Julgando-me rico, ia formular um desejo prprio do momento, e que sempre tem
a ver com a nsia da perenidade. O nome numa pedra, numa lpide, numa rua. E
era um sopro cansado o que dizia. Ouvia-se agora nitidamente. Sabes que queria
algum que me contasse como foi e pensei em ti. Conta, conta como levantei
o comboio das cinco e meia. Pude ou no pude? Pudeste. Produzi ento um
silncio, ajeitei a boca o melhor que pude para no precisar de falar demasiado
alto, enchi-me de solenidade e disse o melhor que soube. Apurava-me.
Pudeste.
Pudeste com o comboio das cinco e meia.
Eu vi, Baio. Chegaste l abaixo, esperaste, levantaste-o no ar,
as carruagens ainda recuaram, deram um salto
como as lagartas quando se lhes toca a pele.
E tu disseste.
Cuidado, com jeitinho.
Os passageiros l dentro apanharam um susto, mas tu riste.
Puseste o comboio nos carris,
empurraste a composio com uma palmadinha nas janelas e
enviaste-o procura de estaes.
Ainda bem que eu tinha atravessado as campinas debaixo do sol. No queria
nem cigarros, nem dizer segredos, nem tampouco ganhar a segurana de que no
iria mal amortalhado a repousar na terra. Foi tal qual assim. Disse ele, com um
olho aberto e outro fechado. Ainda, ainda bem que me lembrava como o Baio
tinha levantado o comboio no ar para lho dizer na hora suprema da viagem. Agora
as trs meninas tinham-se sentado no cho que eu era capaz de reconstituir pedra
a pedra, e mostravam as barrigas nuas de sob os panos mal pregados. Sem chapus
e destranadas. Padrona inteira deveria estaria a dormir a sesta que nem se ouvia
uma colher bater num prato, nem uma batida de lavadeira sobre a pedra de lavar.
Nem um ladrilho de vo sequer. S o carro parado faiscava brilho. Ento, ao lado
225
da cama do Baio, estendido, envolto no lenol como um pretor romano, maneta e
desterrado, comecei a derreter os olhos em gua. Discretamente, passando com o
dedo pelos cantos, no fossem as trs meninas levantar-se do cho para chamarem
a vizinhana e dizerem. Est um tipo a choramingar l dentro. Viria o padre,
a padeira, as lojeiras, o homem dos registos, o sapateiro, as alfaiatas. Acudam.
Viriam ver o engenheiro de estradas a chorar pelo Baio. Dominei a alma. As trs
meninas tinham-se aproximado da porta e bloqueavam agora a luz da entrada. E
apetecia dizer sobretudo mais pequena pela afoiteza dos seus gestos. Enquanto
o Baio tinha a mo esquerda abandonada sobre o lenol, s vezes abria-a e
fechava-a. Meninas. A primeira vez que vi o Baio ainda eu, engenheiro de
estradas, era to pequeno que nem conhecia o cdigo das lutas. Vivamos aqui, em
Padrona, num grande bando e ramos felizes. Ento havia pardais que comiam os
trigos, faziam ninhos nos telhados das casas e isso acontecia de propsito para que
nos entretivssemos ouvindo os chilreios. O Baio era o nosso chefe por ser mais
velho, ser maior e ser mais louco. J os rapazes da sua idade procuravam ocupao
e amor, danando nos ptios com os olhos fechados como se fossem morrer, e
ainda o Baio se sentava porta da escola nossa espera para nos levar s rvores.
Meninas. Como disse, eu era to pequeno que ainda no conhecia o cdigo das
lutas e das pazes. E um dia em que eu, futuro engenheiro de estradas, saltava
sobre os ps uma alegria qualquer, ele avanou, j mancebo de corpo mas com
tino de menino, e disse-me. Queres alguma coisinha? Deveria eu ter dito. Sou
mais do que tu. Arrepia, arrepia. Atirando o cesto, a mala, fechando os punhos.
Mas como no sabia, ou talvez no ousasse, era pequeno e calei-me. E algum
disse. Borrou-se todo, o gajo. O Baio que rondava descalo, olhou para mim. Oh
moos. Quanto me a mim dariam para levantar este gajinho pelo cu das calas? S
com esta mo? Dez tostes? Cinco, dois? Ningum quis. Dez tostes era muito,
s se fosse com a boca. Ns todos damos dez tostes se fores capaz, oh Baio.
Tinham-me arreganhado os fundilhos das calas para que o Baio aplicasse ali
a sua dentadura, e me levantasse nos ares, por cima da cabea de toda a gente.
S que no ltimo momento o Baio ps-se a olhar de lado, minhas meninas,
e desistiu. Ah no, isso queriam vocs. No no. J muito crescidinho, ainda
arrancava os dentes todos e depois s podia comer as papas.
Tinha eu agora a mo na mo nica do Baio, e apertava-a ligeiramente por que
a sentia perder calor, ou era impresso e eu assim julgava. As meninas pasmadas
daquele silncio ensaiavam breves tosses, pequenos risos, escondendo-se umas
atrs das outras, e a mais pequena, mais sria e mais afoita, plantada frente,
olhava-me nos olhos. Minhas meninas, se soubessem. Lembrava-me da tremura
com que apanhara do cho o cesto e a mala de papelo, ali no meio do largo.
As mandbulas a baterem por um o desconhecido, minhas meninas. Depois
226
habituei-me a v-lo. O corpanzil enorme, o p descalo, o riso grande, o quico
banda. At que houve outro dia e foi assim. Quando samos pelo porto,
levantmos a vista e vimos que algum nos chamava junto do badalo do sino.
Onde as aves migradoras costumavam pousar, uma cegonha de vez em quando
chegava a juntar pastos para um ninho gigante. Eu sou capaz, eu sou, eu vou
saltar. E ns em baixo, fascinados pela altura. No s e no s. Experimenta l.
Experimenta s para ver. O Baio tinha o corpo elstico e media alturas, abria
os braos como se quisesse ensaiar um voo. Agora, agora. Vamos. Encolhia
as pernas, adejavam as mos. At que cedeu. S salto se um de vocs saltar
tambm.

As meninas agora coavam os joelhos e riam umas para as outras contentes


de si, em cumplicidade. Tinham os olhos escuros as meninas, e os cabelos cados
em repas para a testa ainda os escurecia mais. Olhavam alternadamente ora para a
minha mo ora para a do Baio que de vez em quando se movia a acenar por cima
do lenol. Meninas. Rimos muito nessa tarde. Eu, que tinha bem viva a faanha
malograda de que fora instrumento directo o fundo das minhas calas, ria-me a
dobrar. s garganta, p. S garganta. A bom rir. Minhas meninas. Ele desceu,
saiu pela janela de vidro que ainda agora d para o adro, e rodemo-lo chamando-
lhe de tudo que fosse caguincha e balofo. Anal o tipo, com aquele corpalho, no
era capaz de nada. Era o heri dos zeros, o retrato dos que nada podem e dizem
tudo poder. Oh Baio. No entanto j era um homem e dobrava-nos em altura e
volume. S que se deixava coar e mexer por ns como co de guarda amansado,
complacente. Sentava-se no cho. Puxvamos-lhe uma orelha. Ele abria um olho.
Atirvamos-lhe uma pedrinha e ele abria os dois como se nos quisesse devorar
num trago. Depois ria at fazer estremecer as telhas. Minhas meninas, estas
mesmas telhas.
Uma pequena nesga de sombra cobria agora parte do tejadilho do carro
encostado junto do lancil. Avistava-se da porta pela rua que descia em escadas,
como um esboo de anteatro, a desaguar no largo. Em breve as pessoas de
Padrona deveriam comear a abrir as janelas, a chamar pelos lhos, pelas lhas,
talvez pelas meninas que ali se mantinham, no se sabia se espiando os gestos se
ouvindo os meus pensamentos. A respirao do Baio no era ruidosa, tambm
no era serena, mas era irregular e percebia-se que comeava a evaporar-se.
Ento a criana mais pequena, agora j perto da cadeira onde eu, engenheiro
de estradas, me mantinha, cortou o silncio que era solene e. simultaneamente
simples porque no poderia ser diferente. Ele levantou mesmo o comboio no ar?
A menina cou espera da resposta. Levantou sim, levantou. Disse eu, habituado
227
s construes concretas da vida. Levantou sim, minha menina. Mas as duas
maiores no contiveram o riso e desataram a correr espirrando cuspo para as
mos na pressa de o abafar. L fora desfaziam-se em gargalhadas e eu esperava
que uma janela se abrisse nos gonzos e uma mulher resmungasse pelo rudo que
produziam. Mas no. No meio da casa tinha cado a mais pequena, das trs a mais
rota e destranada. O Baio mexia a boca como se quisesse dizer palavras. Minha
menina, no te vs ainda, porque um dia o Baio apareceu diferente. Em vez de se
estender contra a relva dos muros, toda a tarde nos esperou encavalitado no porto
da escola como se quisesse entrar. Ora escuta. A gente olhava e ele l em baixo,
a acenar com os braos. Fechava um punho em jeito de muita fora. Esticava o
outro brao, apontava com o dedo para o lado do mar. O que quer o gajo? Parece
que est a ameaar os peixes. E ele naquilo at s cinco. E ns perguntmos-lhe.
Que trajeitos so esses? Diz. Baio. que eu posso com um comboio. Eu, eu
sou capaz, com o meu brao, s com um, de levantar o comboio no ar. Apertava
o punho e vamos-lhe os msculos tensos, j homem, as veias azuis dos braos
incharem como minhocas de sangue. O tipo naquilo. E um de ns, nem sei se
fui eu, disse-lhe. Embora, vamos a isso. A pele do punho dele esticada sobre os
carpos.
Via-se que a menina que tinha cado possua o tino das circunstncias
porque acompanhava o fenecer do Baio mergulhada em perfeita serenidade.
Ainda duvidei se deveria ou no falar-lhe dos meus pensamentos, mas receei
afugent-la com a cor das palavras. Menina. Lembro-me que naquela tarde
tnhamos comeado a correr atrs dele, em festa, os cestos vazios balouando nas
mos. A quem nos perguntava para onde amos, dizamos ir ver o Baio levantar
o comboio das cinco e meia. As pessoas s portas riam da nossa alegria. Cuidado,
meus meninos, vejam o comboio de longe, olhem que s vezes s apita quando
vem muito perto. E o Baio a andar de punho cerrado como se quisesse desferir
um grande soco no ar. Vejam. Eu posso, vo ver. Menina, foi assim. At que
chegmos muito suados junto da curva da linha. Pelo bater dos nossos coraes se
via que a nossa alegria era uma coisa sria. Agora era s esperar. Queramos ver
o comboio das cinco e meia. S que no haveria de levantar nada. O gajo era um
caguincha, e mal visse o comboio comear a descer, desmandado pelas agulhas
da estao, o gajo at daria guinchos de mifa para a gente rir. A mais grossa
das grossas seria da ralura do petrleo. E ele de punho no ar, minha menina,
fazendo gestos. Depois aconchegou-se com a sebe de calhaus como se quisesse
roubar alguma coisa e no desejasse ser visto. A gente a ver. Fechou um punho
e ps o brao sobre o carril. Soava o apito do chefe e adivinhvamos o acenar
da bandeirola, o desamarrar da engrenagem. J vamos a mquina a assomar por
228
cima das copas das rvores, linha abaixo a apitar, e dissmos. No s capaz. De
um salto subimos a um valado porque j se sentia tremer a terra onde pnhamos
os ps. E comeamos espera que o Baio se deszesse num pulo ou num voo,
se viesse juntar a ns. Dizendo. Malta. Para o gozarmos durante toda a vida. Mas
no. O Baio continuou de brao estendido. E a alguma coisa de extraordinrio e
inexplicvel aconteceu, porque quando a mquina j fazia trof trof perto de ns, o
Baio virou-se espargindo vermelho, como se todo o seu grande corpo fosse um
saco de sangue, e algum lhe tivesse cortado uma boca. To rpido. O comboio
era s um trof trof, trof trof, terras de Padrona abaixo. Minha menina. A princpio
camos estacados de incompreenso, e julgmos que os pardais tinham mudado
de cor por terem perdido o rumo. Ns prprios, espantados, perdamos os chapus.
Houve quem dissesse que o brao tinha perseguido o comboio, aperreado de muita
fora, e continuava a saltar murros e socos no cascalho da linha. Tambm disseram
mais. Que o tinham envolvido numa saca, num paninho, numa renda de altar.
Minha menina, foi assim, esse poder. O Baio respirava agora to subtilmente que
era preciso ir pr a orelha junto do peito. A menina imitava-me indo espiar-lhe os
olhos, prendendo os seus prprios cabelos desgrenhados atrs duma orelha, com
a mo, num gesto feminino. J no se ouve. Disse ela.
E quando j no se ouviu mesmo, e lhe passei os dois dedos no rosto como
se costuma fazer, achei melhor pedir quela solene companheira que sasse e
chamasse algum. Eu prprio me dirigi porta mas no sabia como dizer, eu, um
engenheiro de estradas. No podia dizer acudam, nem aqui-del-rei, nem gente,
nem famlia, nem ateno ateno. E s me vinham lngua palavras antigas.
Resolvi ento bater as palmas enquanto a mais pequena das meninas, de pernas
nuas, olhava para trs e se sumia numa corrida sem pressa, atrs das esquinas.
Esperei, sabendo que tinha um lho de Padrona insepulto ali dentro da sua prpria
casa. A sombra j quase cobria agora o carro por inteiro e a tarde caa como um
tecido de paz. Bati de novo as palmas para que algum ouvisse, e como no desse
por rumor algum, senti um injusto desamparo abater-se sobre a pessoa do Baio.
Ao menos o padre haveria de acordar da sua sesta de vero, e viria cantar o seu
sari oh oh junto daquela gura de pretor desterrado que estava l dentro. A igreja
era a dois passos e bastaria bater na porta da sacristia. Fui e bati. Uma, duas,
vrias vezes. At que resolvi dar uma volta a ver se descobria qualquer outra porta
aberta, e dei de rosto com um prospecto onde se podia ler for sale, precisamente
na vitrine onde antigamente se anunciavam os baptizados. Era uma letra sbia e
gtica, pendida para a frente, mas o que dizia era exactamente igual ao que se
lia no letreiro da padaria e na tabuleta bordada na casa do primeiro andar, onde
eu conhecera paixes de janela para janela. O carro cava do outro lado. Eu era
um engenheiro de estradas, estava a poucos quilmetros delas e nada me
229
metia medo. Ao menos as meninas haveriam de vir. Meninas. Chamei vrias vezes
e bati as palmas. Mas o largo assim aberto e branco, parecia um espao espera da
aterragem duma ave pernalta, gigante e singular. Estava venda a farmcia, estava
venda. a casa do sapateiro, a casinha das frutas. A escola tinha o seu anncio
quase invisvel, por dentro, junto dos vidros como envergonhado. Descobria-se
nele a letra redonda com aselhas s voltinhas, prprio de quem ensina as primeiras
slabas. Ainda pensei subir essas escadas que constituam um esboo de anteatro
e levavam s paredes onde dormia o Baio, apenas para fechar a porta, mas
tambm achei que no valia a pena. Se subisse agora com olhos de ver, haveria
de notar que nem ele nem a sua histria j pertenciam ali. Abri o carro para partir
e um grupo de mulheres que descia, vendo-me, acercou-se. Venha amanh, meu
senhor, que nos foram dizer que morreu um parente e estas coisas de negcio
precisam ser conversadas.
Anoiteceu no caminho. As estradas eram uma ta de luz iluminada,
resplandecente de sombras verdes que surgiam por um momento para logo serem
engolidas pelo escuro. Para trs, para trs. Os meus olhos postos metade dentro,
metade fora. Passei socalcos expostos como se fossem explodir. Passei terras s
rugas como se fossem envelhecer. Passei cho plano e aberto, passei vrzeas,
passei montes, passei ruas, vilas, casas, dispersas moradias de porta fechada.
Passei, passei. Havia longos camies enfeixados de palha como turbante de fara,
que roncavam lentos e deixavam passar. Fui passando. At que estava prestes a
chegar a casa e pensava poder dizer. Hoje, eu queria dinamitar as estradas. Mas
no sabia se deveria dizer. Num dia em que chegara a desoras tinha encontrado
a casa vazia e um bilhetinho sobre a cama como costuma acontecer nos lmes
americanos. Outra vez fora antes duma partida. Essa sau rua antes de eu prprio
descer, e fez paragem a um txi verde onde se enou para sempre. A terceira
tinha acontecido numa madrugada em que acabava de chegar com uma dor to
funda que no conseguia distinguir se era de rim provocada pelo estofo, se ao
contrrio. E lho disse. Vestiu dois casacos, um por cima do outro como se fosse
abalar para o frio, e no deixou bilhete nenhum que se lesse. Mas quarta mulher
eu podia dizer. Quero dinamitar as estradas. Porqu? Perguntou ela. Por causa
desta viagem. A minha quarta mulher ou tinha sido mal amada e falava com os
deuses, ou era apenas lcida. Despenteada quela hora da noite, lembrava-me os
olhos da terceira criana sobre o peito do Baio. Eu era um engenheiro de estradas
e apetecia-me descansar dos sonhos.

(Indito, 1982)

230
VERGLIO ALBERTO VIEIRA

(1950-)

As correntes mais jovens da novelstica portuguesa contempornea


caracterizam-se fundamentalmente pela pesquisa de novas linguagens. Disso se
d exemplo, colhido entre a proliferao dos novos autores, com o texto que
encerra esta antologia. Na sequncia duma obra j relativamente extensa de
poesia, publicou Verglio Alberto Vieira dois livros de co: Salrio de Guerra
(1979) e Cho de Vboras (1982). As temticas versadas repartem-se entre a
atmosfera pungente e cruel vivida por portugueses e angolanos durante a guerra
colonial (que se prolongou de 1961 a 1974) e ambientes rsticos nortenhos em
speras rudezas. As narrativas de Angola relembram a dor dos dias sangrentos,
dos massacres e torturas, da morte gratuita uma atmosfera de pesadelo que
o Autor cinge palavra numa expresso do imediato, com dureza e arremesso.
E dela ainda transportado um tom dominante de evocao-presena para os
breves ashes de espaos provinciais e rurais portugueses, com agrantes
laivos neo-realistas. Mas o mais importante na novelstica de Verglio Vieira
a linguagem criada em que se exprimem a observao e (ou) a imaginao
do contista quase cronista: uma linguagem cortante, sincopada, logo em si
mesma reectindo a viso e a situao dramtica que se infundem no episdio.
Assim construda pelo Autor uma coerncia de universo lingustico que j
foi assinalada por Manuel Ferreira a partir das falas originais de gentes que
povoam [...] reas em mutao social e lingustica e que se volve, ao cabo,
num cdigo renovado que exigente para o leitor. No que a linguagem seja
moldada, na escrita de Verglio Alberto Vieira, em oralidade mas extraindo de
facto o seu ritmo de fala espontnea e entrecortada de suspenses que a do
povo. H que entender e surpreender esse ritmo para que se possa reconhecer
nele um estilo. Neste aspecto reside, decerto, o maior interesse da experincia
literria que a criao deste autor representa, a apontar caminhos ou mudanas
de caminho que as novas geraes de escritores de co em Portugal viro a
percorrer.
231
O DIA PERFEITO

A fmbria de luz a atravessar-lhe a mo


aguentou no olhar essa fulgurao. Da estrada, sobre um rebordo esquecido de
colina, desceu. Quase caa.
Entre os arbustos de pequeno porte, uma aragem na. Soprava. O carro ao
cimo sobre o pendor da tarde.
Depois, j a perder de vista, o largo abrao: a foz.
Agradou-lhe sobremaneira a antiqussima doura do Minho. E tambm a
familiaridade de uma pedra.
Um silvo de comboio trouxe (-lhe) o exlio para perto. Mafra denovo como
um ranger de ferros que pordentro as vsceras descose, e no ouvido o eco (o eco
apenas) de um teclado cego, de vozes que noite as carruagens enchiam de fardas,
a solido.
Agora, no. Acomodou-se gravamente atrs dos culos escuros para assim
(pensou): melhor car a ler essa ternura de gua.
Demorou-se. O rosto dele
um rosto vago (talvez a narrativa comece aqui): onde toda a ausncia de
juventude moldara (a frio) a passagem do vento e do sal, dali partiu a voar. Para
encontrar (soube-o depois): o m.
De regresso ao carro, doeu-lhe ainda a ideia de habitar a pequena tenda
de campanha que, ao fundo, um brao de terra, escorado entre rochas, perdia
ante a laminao das guas. F-lo s por instantes. E por m arrependeu-se.
Retirou a pretenso, sem conseguir desculpar o despropsito em que se envolvera:
sofria quando assim. Porque da desero jamais se arrependera. Feriu de morte a
dimenso das coisas.
232
Ergueu-se. Para pensar.
E esse impulso valeu-lhe delogo a provao de um receio. Depois, no sem
esforo, ao corpo ajustou a imagem de M., lenta, como um vagar de terra. E
percebeu ento que, dentro de si, a vida agonizava.
o fulgor, em declnio, e o outono quase prximo prenunciaram (comeava a
doer-lhe a cicatriz da mo) um momento difcil: de hora inabitvel.
nada merece preparo! anuiu, a meia-voz, sem ao menos a morte tentar
esconder da efgie do vento .
A sul, entardecia.
Sentiu-se arrastado num tropel impossvel. Angustiava-o prever, assim, a
absoro intil de um brao alimentado a soro; a urgncia de assalto tomada
pela encenao de um apelo: cruel; e os mdicos (um ou mais, talvez dois): de
incio, sabiamente apostados: lamentmos ter de informar. E agora? Como juntar
a vida outravez em fragmentos de espelho? Quis favorecer o engano. Emoldurou
geometricamente a rvore mais prxima. Levou boca uma nervura de folha:
cido, o verde
tivesse dispensado a distraco difusa: um barco escalava a ria (e j o pequeno
renault, apressando a cidade), um barco cor de cinza friamente as guas verdazul
costurando, o restolho de asas sobre a mastreao, e nunca (anos depois) o seio de
M., intimamente rodo de cncer, evocaria (de memria) a noite em que (vigiava
agora distncia o assombro das aves) entre eles rompera imparvel o arco de
Albinoni.
Envelhecera da
de momento, sentia-se tomado de um enorme cansao. Procurava-se e, dentro
de si, apenas o vazio pela coragem deixado.

Quem no tempo viria fechar essa sentena de morte?, tremendamente a pp. 97


caligrafada, como a derrota de um suicdio mal perpetrado
...segundo previso do Instituto de Oncologia, restam-me apenas alguns
meses de vida. O dirio dela, um dia, ocasionalmente aberto. escassez: luz: o
mais fcil morrer.
O desabamento de um preparo. A decomposio lenta (tambm os sais de
chumbo, eu sei! envenenam os olhos). Os caracteres da escrita. E ela. A apagar-se
cadavez que as suas mos vinham tomar-se das dele. j a alegria a despedir-se dos
meses.
Uma nica certeza: a de que dicilmente encontraria o modo de repor no
presente esta imobilizao.
233
Restava-lhe prolongar o equvoco.
Intentar que esse punhado de terra a escoar-se entre os dedos quebrasse a
uidez com que os olhos de M., fugiam dos seus olhos. A pacicao com
que a hera se entrega aos contornos da sombra sempressa de deixar-se beber. A
crueldade (desordenada como um vento) com que esse prembulo de sol (ainda
ontem) janela do pequeno sto chamado, esvaziava de cor
o pequeno bronze sobre a mesa de trabalho serenamente passado pelas rdeas:
por que trocaram as mos/outravez os gestos por cavalos, o aqurio (criao de
infncia) estranhamente ovalado: a reposio do vidro (em chama) sobre o verde
enigmtico dos peixes; Le quattro stagioni, de Vivaldi, mortalmente desejado
nesse outono; e ainda a reproduo (ntima, por sinal) de um Yves Tanguy, h
cinquenta anos cansando a tela: Quatro horas de vero, A esperana; uma que
outravez a sereia de um navio, pela casa dentro (trgica): como um afogamento.
Mas j a proximidade a inquiet-lo
este encontro (o ltimo) comprometia-o. Grudava-o intencionalidade de
um homicdio. Porque a cidade, essa, abria-se agora decifrao de um cdigo
confuso. O trnsito (em ebulio) quebrava ento a rdea aos motores. Era dia
de sbado. E reparava, entretanto, quo desarvoradamente vinha desrespeitando
o intermitente dos semforos, j dentro de si o ndice de desequilbrio pendular,
encomendando-o fatalidade.
Curvou a caminho da Baixa.
Desaava-o a ameaa (branca) dos faris na estreiteza das faixas de rodagem.
Quis situar-se. lanar mo de um relgio. Refrear a vertigem. Tarde demais.
Deixou o carro. Precisava de andar a p. Procurou distncia a luz alta do
prdio. Pois que. Urgia avelar sentena um apelo de mscara.
Este internamento matava-o.
Ao defrontar-se com a fachada, apercebeu-se que vacilava. Sentiu porisso o o
laminado dessa hesitao. E adoraria voltar
subir a praguejar (chovia, esse dezembro) contra a loucura de o acompanhar
na desero e vir tomar de aluguer o desconforto de um sto em pas estranho;
trazia um aafatezinho de mas vermelhas; e logo a mais longa efuso de beijos
(fazia ela nesse dia vinte e seis, tinham, por essa altura, alguns companheiros de
exlio cado nas mos da Interpol; confessou quanto temia pela situao de ambos;
amaram-se perdidamente at exausto; demanh continuava a chover.
mas a noite. Decidiu converter em aceno a cedncia que pordentro o tomava.
No primeiro lano da escada, foi a vez da mo (nunca o bolso lhe parecera to
fundo) encontrar-se com a chave. Modesta chave: inamvel ao menor sopro
siderrgico; incapaz de reter o fogo, o mesmo ser dizer: de deixar de ser chave
(ou sonho) de um sto onde apenas cabiam
234
surpreendeu, com estranheza, o volume da chave, a agudizao dos contornos;
esfriava. Por altura do segundo piso, pressentia o pior: comeou o espao
envolvente a escassear-lhe. verdade que subia de costas para a vida. O desengano
(total) a var-lo, e a tortura insupervel da boca: como se as palavras (que lhe
dizer?) qual o silncio de uma folha de prata, provassem ali da rejeio do fogo.
E tudo isso carregava agora consigo.
Quis valer-se do corrimo para subir. Sempre o atemorizou a runa da casa. As
paredes severamente desguradas. E o cansao espectral das madeiras (outrora do
abatimento consentidas: em cada ciclo lunar, em cada extenso de luz, e de ento
rancorosamente cantadas pordentro, a solido dos bichos).
Ao patamar superior, os braos. A doer. Apeteceu-lhe descer ainda. Entregar os
passos a
quando a chave. Oleada de silncio. Imps-se. O primeiro volteio. E a breve
ocultao de sombra pelo soalho.
Nunca tanto a dor de uma ausncia. Que gesto podia agora municiar-lhe os
ombros de silncio? Primeiro a clandestinidade
a afronta de uma notvel famlia, desde sempre afecta ao regime. Depois, o
desnimo, a condenao em tribunal militar
J no aposento, regressava agora intimidade dos objectos. Das roupas
ntimas. Os gavetes entreabertos. Os quadros. A renncia a tudo quanto em
Portugal. A vida dela presa aos contrastes da cor. Os seus quadros: surpreendeu-o
j o desequilbrio das ltimas telas. A passividade e habituao de estar. As
avencas quase secas no apagamento nocturno. E a um canto, como um punhal:
a imoderao de um Dvorak (intencionalmente passado): em 45 rotaes. A
deagrao de um propsito. Ao que sabia.
O abandono.
Com outra mulher. Teria recusado vingar este consentimento. J o desuso das
coisas a apoderar-se de tudo. A fora de os olhar, comeavam a arder os espelhos.
Mas que fazer?, restava-lhe a repatriao
ou a morte. Pela condenao de um jogo em que prova de arco tenso
saia vencido, no resistiu ao emparedamento. sua volta, o ar. Ia tornando-se
irrespirvel.
Acudiu-lhe o coldre.
Estamos na segunda metade do sculo XX. As ervas morrem e ressuscitam,
mas aqui esto escritas como secas, em volta dessa mo que se ganhou a si mesma,
alando a sabedoria da imobilidade. A mo pensa (Herberto Helder, Photomaton
& Vox).
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A brevssima janela. Em vo.
Lafora, a noite. Alta. Sobre a ria. A ria agora intacta como um sonho. Um
sonho guardado (de memria). No rumo dos pores. O vento, em qualquer parte
cado, esquecido pelo tombadilho (distante) dos barcos.
Era sbado (quero insistir): e ao sbado no h homem que resista pelo corao
ideia de que s vezes tambm os trevos envenenam os olhos.

(De Cho de Vboras, 1982)

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NA CAPA UM LEO DA AUTORIA DE COLUMBANO RETRATO DE RAL BRANDO.
NO MUSEU NACIONAL DE ARTE CONTEMPORNEA. LISBOA. (1896).

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