A Prece de Frantz Fanon, 2016 PDF
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Artigo
Joaze Bernardino-Costa*
Resumo: Baseado nas contribuies de Frantz Fanon, este artigo demonstra que o
colonialismo, mediante o racismo, produz uma diviso maniquesta do mundo entre
a zona do ser e a zona do no-ser. Argumenta que os sujeitos coloniais, em geral, e os
negros,em particular, habitam a zona do no-ser e, por isso, so invisibilizados pelo
olhar imperial. Diante disto, restar ao negro tornar visvel sua existncia por meio
da afirmao de sua identidade e de seu corpo. Conclumos que a afirmao do corpo
permite a elaborao do conhecimento a partir de uma localizao particular, assim
como permite reinventar um projeto poltico humanista.
Palavras-chave: Frantz Fanon. Colonialismo. Zona do no-ser. Corpo. (In)visibilidade.
Abstract: Based on Frantz Fanons contributions, this article shows that colonialism
through racism creates a polarized division of the world into a zone of being and a zone
of non-being. We argue that colonial subjects in general and black people in particular
live in a zone of non-being and, therefore, have been invisibilized by the imperial
eye. Considering that, black people should make their existence visible by affirming
their identity and body. We conclude that the black bodys affirmation allows one to
elaborate knowledge from a particular standpoint as well as reinvent a humanistic
political project.
Keywords: Frantz Fanon. Colonialism. Zone of non-being. Body. (In)visibility.
* Doutor em Sociologia (2007) pela Universidade de Braslia (UnB, Braslia, DF, Brasil),
professor do departamento de Sociologia da UnB. Tem diversos artigos publicados no Brasil e no
exterior sobre trabalho domstico e aes afirmativas. Recentemente publicou o livro
Saberes subalternos: os sindicatos das trabalhadoras domsticas no Brasil (EdUnB, 2015).
Atualmente desenvolve pesquisas sobre intelectuais negros do Brasil, Caribe e Estados Unidos
<[email protected]>. Este artigo foi produzido no mbito do projeto de ps-doutorado
(processo BEX-1688/14-6), financiado pela Capes, a quem o autor agradece.
Introduo
Durante sua curta vida Frantz Fanon (1925-1961) escreveu trs livros
Peau noir, masques blancs (1952), Lan cinq de la Rvolution Algrienne
(1959) e Les damns de la terre (1961). Em 1964, trs anos aps sua precoce
morte aos 36 anos, sua esposa organizou e editou o livro Pour la rvolution
africaine (1964), composto de artigos publicados nas revistas LEsprit,
Prsence Africaine e no jornal tunisiano El Moudjahid.
O compromisso poltico de Fanon com a luta pela descolonizao da
frica e, em especial, seu envolvimento com a luta pela liberao da Arglia
fizeram com que seu nome ficasse fortemente associado defesa de processos
revolucionrios dos pases do terceiro mundo. No s o compromisso de Fanon
com a luta pela liberao da Arglia, onde atuou entre 1953 e 1956 como
mdico-chefe do hospital psiquitrico de Blida-Joinville, mas seu ativismo
poltico em prol do pan-africanismo juntamente com outros lderes africanos,
fizeram com que o seu nome estivesse fortemente associado violncia (Macey,
2000).
Entretanto, ao invs de associ-lo violncia, procuraremos neste
artigo associ-lo a uma densa leitura crtica do colonialismo e seus efeitos,
bem como tentativa de reestruturao da sociedade, o que, por sua vez, est
ligado possibilidade de surgimento de um novo homem, novos processos
de elaborao de conhecimento e novos caminhos polticos. Inspirados pelas
interpretaes de Gordon (1995, 1999), Maldonado-Torres (2008) e Grosfoguel
(2012), procuramos interpretar Fanon como um autor chave de um projeto
decolonial, entendido como um projeto dedicado a superar as consequncias
da colonialidade.
Estruturada a partir da ideia de raa, a colonialidade do poder, conceito
elaborado por Quijano (2005), estabelece divises raciais na organizao do
trabalho e estado, nas relaes intersubjetivas e na produo do conhecimento.
Se, por um lado, a colonialidade do poder estruturou uma diviso em que os
sujeitos coloniais, salvo raras excees, tm posies especficas no mercado de
trabalho, nas estruturas de poder e, praticamente no participam da produo do
conhecimento; o projeto decolonial, por outro lado, busca superar esta estrutura
de poder por meio da decolonialidade do poder, do ser e do saber. esta
contribuio de Fanon a um projeto decolonial que exploraremos neste artigo.
Desenvolveremos algumas questes inicialmente trazidas no livro Pele
negra, mscaras brancas e retomadas posteriormente em outros livros de
Fanon. Este livro deveria ter sido sua tese de doutorado em psiquiatria pela
Universidade de Lyon, todavia foi recusada pela comisso julgadora, sob o
506 Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 504-521, jul.-set. 2016
argumento de que a tese deveria ter uma abordagem mais positivista. Em seu
lugar foi apresentada a tese Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans
lhrdo-dgnration-spino-crebelleuse: un cas de maladie de Friedreich
avec dlire de possession (Gordon, 2008, p. 13).
Embora Fanon tenha estado presente no norte da frica durante a segunda
guerra mundial, quando lutou contra as foras nazistas como soldado francs,
neste livro esto presentes principalmente suas observaes sobre o racismo
na Martinica e na Frana. Observaes sobre o colonialismo em solo africano
aparecero somente nas suas obras posteriores. Fanon, que at ento tinha se
pensado e se visto como francs, vivenciou o racismo anti-negro no somente
no exrcito, mas nas ruas das cidades francesas quando, aps a vitria sobre
a Alemanha nazista, os soldados franceses negros1 foram preteridos frente
aos prisioneiros de guerra italianos pelas mulheres europeias (Bulhan, 1985).
Estas observaes pessoais foram fundamentais para sua reflexo sobre o
colonialismo e seus efeitos, bem como para repensar sua prpria identidade.
Basicamente o argumento central desenvolvido nesta obra a
epidermizao do racismo: ao se deparar com o racismo, o negro introjeta
um complexo de inferioridade e inicia um processo de auto-iluso, buscando
falar, pensar e agir como branco, at o dia em que se depara novamente com
o olhar fixador do branco. Neste momento, as mscaras brancas caem: onde
quer que v, o preto permanece um preto.2 Como psiquiatra, Fanon pretende
liberar o homem negro do seu complexo de inferioridade e traz-lo de volta
humanidade: o que ns queremos ajudar o negro a se libertar do seu arsenal
de complexos germinados no seio da situao colonial (Fanon, 2008, p. 44).
A epidermizao do racismo, ideia-chave apresentada no captulo
a experincia vivida do negro, remete discusso sobre a percepo
fenomenolgica do corpo negro pelo outro imperial e racista. Mame,
olhe o preto, estou com medo! (Fanon, 2008, p. 105), a frase que ecoa no
mencionado captulo. Todavia, este mesmo corpo, objetificado e visto, o corpo
que v, age e reflete conscientemente sobre o mundo. Diferentemente da noo
dominante no pensamento ocidental que supe a separao entre corpo e alma
(Quijano, 2005), o corpo permite uma perspectiva situada no mundo. O corpo
visto pelo outro, v o outro e permite-nos imaginar como o outro nos v. Esta
petit-ngre ser o fim, ser uma maneira de dizer ao primeiro para ficar no
seu lugar, ou seja, sua tentativa de habitar a zona do ser foi frustrada, cabe a
ele voltar zona do no-ser. No mbito da apreenso da linguagem enquanto
uma instituio social permeada de valores, Fanon observar um processo de
escravizao cultural do antilhano ao assimilar a cultura francesa. Vejamos
alguns exemplos: nas escolas, os jovens negros no paravam de repetir nossos
pais, os gauleses; as crianas, quando liam histrias sobre os selvagens nas
obras dos brancos, logo pensavam no preto que vivia na frica; quando
compunham redaes sobre as frias escolares, adolescentes de dez a catorze
anos escreviam: gosto das frias, pois poderei correr nos campos, respirar ar
puro e voltar com as faces rosadas (Fanon, 2008, p. 141). Da mesma maneira
que aqueles que obtinham uma resposta em petit-ngre, aqueles que falavam
dos pais gauleses, aqueles que consideravam que o preto era somente aquele
que vivia na frica ou aqueles que se imaginavam com faces rosadas, todos
eram devolvidos a zona do no-ser no encontro com o branco.
Fanon, como homem antilhano, tambm sofreu esta imposio cultural,
at ser devolvido zona do no-ser aps sua participao na segunda guerra
mundial e quando foi estudar psiquiatria na Frana. Diz ele:
A ontologia, quando se admitir de uma vez por toda que ela deixa
de lado a existncia, no nos permite compreender o negro. Pois o
negro no tem mais de ser negro, mas s-lo diante do branco [].
Aos olhos do branco o negro no tem resistncia ontolgica (Fanon,
2008, p. 104).
Mame, olhe o preto, estou com medo! Medo! Medo! [...] Lancei
sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negrido, minhas
caractersticas tnicas e ento detonaram meu tmpano com a
antropofagia, com o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais,
os negreiros, e sobretudo com ya bon banania (Fanon, 2008,
p. 105-106).3
3
Ya bon banania refere-se a cartazes publicitrios de uma farinha de banana aucarada
comercializada na Frana. Neste rtulo aparecia um soldado de infantaria senegals com um
sorriso abobalhado e estereotipado.
J. Bernardino-Costa A prece de Frantz Fanon 513
Para Fanon, o erro de Sartre foi destruir o entusiasmo negro. Quando leu
estas passagens de Orfeu Negro, sentiu que sua ltima chance de retirar o negro
da zona do no-ser e da invisibilidade tinha sido roubada. Diz ele: Jean-Paul
Sartre, neste estudo, destruiu o entusiasmo negro. Contra o devir histrico,
deveramos opor a imprevisibilidade (Fanon, 2008, p. 122).
Ao afirmar que os negros tenham um papel transitrio no processo
histrico, Sartre negou a possibilidade dos negros de terem um papel ativo na
histria: Nada mais desagradvel do que esta frase: voc mudar, menino,
quando eu era jovem eu tambm... voc ver, tudo passa... (Fanon, 2008,
p. 122). Por isso, Fanon ope dialtica a noo de imprevisibilidade, que no
antecipar o fim da histria, mas, ao contrrio, ao supor o devir histrico aberto,
garante um papel ativo aos sujeitos coloniais no processo sem garantias de
reestruturao do mundo.
Mesmo sabendo que Fanon critica a Negritude em Os condenados da terra
no captulo intitulado Sobre a cultura nacional, previamente apresentado no
Segundo Congresso dos Escritores Negros e Artistas Negros, realizado em Roma,
em 1959 , sua posio ser fundamentada no fato da Negritude no ter levado
em considerao a diversidade das culturas negras. Em outras palavras, Fanon,
diferentemente de Sartre, entende que a subjetividade negra no se baseia numa
ideia de black soul ou em certas qualidades de pensamento e conduta dos negros.
Ao contrrio, a subjetividade negra vista como um construto histrico-social,
por isso, marcada por heterogeneidades. Os negros americanos, diz Fanon,
percebiam que seus problemas existenciais eram diferentes dos problemas
que se colocavam para os negros nigerianos: Os negros de Chicago s se
pareciam com os da Nigria e Tanganica (atual Tanznia) na exata medida em
que todos eles se definiam em relao aos brancos [...] os problemas objetivos
eram fundamentalmente heterogneos (Fanon, 1968, p. 179). Neste sentido,
Negritude no pode ser pensada como uma comunidade de origem, seno de
destino: O homem colonizado que escreve para seu povo deve, quando utiliza
o passado, faz-lo com o propsito de abrir o futuro, convidar ao, fundar
a esperana (Fanon, 1968, p. 193). Esta luta para abrir o futuro e fundar a
esperana ser uma luta de autoafirmao dos corpos negros, ser uma luta para
recuperar a visibilidade dos corpos negros. Ao tornar os corpos negros visveis,
j no operaremos a partir da fixao e estereotipia, mas a partir de um correto
516 Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 504-521, jul.-set. 2016
Um corpo que age entre outras coisas e outros corpos um corpo que tem
resistncia ontolgica, que est presente no mundo, que ocupa a zona do ser. Se
para o olhar imperial ser possvel objetificar o outro, pois este habita a zona
do no-ser, Fanon, quando estudante de medicina em Lyon, ter dificuldades
de efetuar esta separao:
Concluso
A prece de Fanon, Oh, meu corpo, faa sempre de mim um homem que
questiona!, o fio condutor de uma reflexo sobre o colonialismo e seus efeitos,
bem como a manifestao do desejo de elevar os sujeitos coloniais ao pleno
reconhecimento humano. Entretanto, o alcance deste reconhecimento no
uma outorga, seno uma conquista mediante uma luta. Se nos anos 1950 e 1960
essa luta significava um enfrentamento poltico e armado contra colonialismo
como no caso da luta pela descolonizao da Arglia, observada de perto
por Fanon , hoje esta luta passa pela afirmao da visibilidade do invisvel.
Em outras palavras, hoje esta luta significa substituir as mscaras brancas
520 Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 504-521, jul.-set. 2016
Referncias
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001.
BULHAN, Hussein Abdilahi. Frantz Fanon and the psychology of oppression. New
York/London: Plenum Press, 1985.
J. Bernardino-Costa A prece de Frantz Fanon 521
Autor correspondente:
Joaze Bernardino-Costa
SQS 306 Bloco G apartamento 404 Asa Sul
70353-070 Braslia, DF, Brasil