Scientific American Brasil - Edição 175 - (Agosto 2017)

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G E Agosto 2017 | www.sciam.com.br
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ANO 15 | no 175
R$ 19,90 | 4,90

S
MAI

A CIRURGIA QUE
CURA DIABETES
Procedimento pode
amenizar e at extinguir
doena crnica

O SUMIO
DOS VIKINGS
Estudos explicam
por que eles
abandonaram
a Groenlndia
AS TEIAS DA MEMRIA

BURACOS
NEGROS
EXPLICAM
MATRIA
ESCURA?
Gigantes csmicos
podem ser resposta
para o enigma

AS TEIAS DA
MEMRIA
EDIO N 175 - AGOSTO|2017

00175

9 771676 979006
ISSN 1676-9791

Revoluo na tecnologia revela o modo como nosso crebro


conecta lembranas e modula nossa experincia do mundo
AG O S TO 2 0 17

ANO 15

GENTIC A
22 Destravando o
mistrio da ELA
Mutaes recm-detectadas trazem
pistas de como a doena destri os
neurnios motores e rouba a mobi-
lidade dos doentes. Achados
podem levar a terapias medicinais
contra um mal que h muito resis-
te a tratamentos. Leonard Petru-
celli e Aaron D. Gitler

76
A R Q U E O LO G I A
28 O sumio dos vikings
da Groenlndia
Por centenas de anos a ilha foi um
posto avanado gelado, mas por
fim as colnias entraram em
colapso. Novas descobertas
elucidam esse declnio enigmtico.
A N T R T I C A
Zach Zorich R E P O R TAG E M E S PE C I A L C I DA D E S S U S T E N TV E I S
88 Desafio na neve
CINCIA MARINHA 60 Como as cidades Pesquisas brasileiras no
36 Sem rumo no mar poderiam nos salvar continente gelado permitem
A acidificao dos oceanos pode reas urbanas podem melhorar o plane- conhecer a histria do
alterar o comportamento de orga- ta, assim como a vida das pessoas, se as planeta e at acompanhar as
nismos subaquticos de maneiras projetarmos para serem mais eficientes variaes climticas em
desastrosas. Danielle L. Dixson no uso de energia, gua, alimentos e nosso pas. Mas, apesar dos
A P R E N D I Z AG E M D E M Q U I N A minerais. William McDonough bons resultados at aqui, o
40 Por uma IA mais humana 64 Explorando o lixo futuro incerto devido
A inteligncia artificial vem pas- Transformar resduos caros em recur- carncia de verbas.
sando por uma renovao desde sos valiosos pode tornar cidades alta- Martha San Juan Frana
que comeou a incorporar nosso mente eficientes. MichaelE. Webber
conhecimento sobre como as crian-
70 Trnsito inteligente
as aprendem. Alison Gopnik
Uma teia mvel de veculos dotados
NEUROCINCIA de sensores e cruzamentos
46 A rede intrincada inteligentes transformar o modo
da memria
CAPA: GETTY IMAGES ( cabea e padro de web); NESTA PGINA: GETTY IMAGES ( danarinos)

como nos deslocamos pela cidade.


Uma revoluo tcnica fornece Carlo Ratti e Assaf Biderman
dicas sobre como o crebro conecta
memrias, um processo B I O LO G I A
fundamental para compreender e 76 A evoluo da dana
organizar o mundo ao nosso redor. Os humanos danam s por lazer ou
AlcinoJ. Silva a dana ajudou nossos ancestrais a
C O S M O LO G I A sobreviverem h milhares de anos?
54 Buracos negros Thea Singer
do incio dos tempos MEDICINA
C A PA
Uma populao invisvel de bura- 82 Operao: diabetes Novas tecnologias esto comeando a
cos negros que nasceu menos de Cirurgia que encurta os intestinos eli- mostrar como as lembranas so associadas,
um segundo depois do Big Bang mina a doena; e novas evidncias uma propriedade essencial para que se possa
pode resolver o mistrio da matria integrar imagens, sons e sensaes.
mostram que os intestinos e no s Problemas na juno destes elementos
escura. Juan Garca-Bellido e a insulina podem ser responsveis costumam acontecer devido a doenas
Sbastien Clesse pela enfermidade. Francesco Rubino psiqutricas e ao envelhecimento.

www.sciam.com.br 3
5 Carta do editor
FRUM

7 C,T&I investimento, no despesa


Nossa produo cientfica se multiplicou
por sete em vinte anos, mas ainda
carecemos de uma poltica de Estado
Helena B. Nader

C I N C I A E M PAU TA

8 No podemos evitar
futuros surtos de doenas
Contudo, os Estados Unidos podem minimizar o
8 perigo com um grande fundo de emergncia de sade

9 Memria

10 Avanos
- Atlntida amaznica
- Ursos danantes
- Nascidos para ser bons pais
- O material dos sonhos
- Plantas podem ouvir?
- Segredos e mentiras
- Florestas minguantes
- Foguetes quentes
- O ajudante rob da vov
12
- Territrio desconhecido

DE SAFIOS DO COSMOS E CU DO M S

18 Entre mininetunos e superterras


Mundos aliengenas ajudam a entender
formao de planetas no Sistema Solar
Salvador Nogueira

96 Livros
CINCIA EM GR FICO

98 O pico de bebs
Nascimentos culminam em dias teis
durante os turnos de trabalho diurno.
16 Mark Fischetti e Zan Armstrong

4 Scientific American Brasil, Agosto 2017


CARTA DO EDITOR
Pablo Nogueira editor da Scientific American Brasil.

Segredos do intestino e da memria


A crescente incidncia de diabetes melito um dos gran- permitiu reduzir bastante o uso de medicao.No se sabe com
des problemas de sade pblica de nosso planeta. Segundo preciso como isso ocorre. O que est claro que a reduo do
dados da Organizao Mundial da Sade, a doena afetava 108 trato gastrointestinal que gera as mudanas fisiolgicas. A boa
milhes de pessoas em 1980. Em 2014 o total estimado j ultra- notcia que o uso dessas cirurgias como tratamento para o dia-
passava os 422 milhes e, segundo algumas previses, podem betes j deixou de ser experimental, na medida em que reco-
ser 592 mihes de casos em 2035. Embora considerada doena mendado por mais de 40 sociedades mdicas de todo o mundo.
tpica de sociedades afluentes, os dados mostram que seu cresci- O destaque de capa desta edio o artigo A rede intrin-
mento tem includo tambm naes com renda per capita baixa cada da memria, que trata da formao de lembranas asso-
ou mdia As estimativas sugerem que, em 2035, 80% dos casos ciadas no crebro. Esta associao entre lembranas algo
estaro no mundo em desenvolvimento. absolutamente corriqueiro em nosso funcionamento mental.
O impacto do diabetes no organismo pode ser severo. Pacien- Reconhecemos o rosto de algum a quem no vemos h anos, e
tes podem experimentar problemas urinrios, dificuldades para em sequncia a mente recupera tambm o contexto onde aque-
enxergar, fadiga, dores de cabea, confuso. Casos mais extre- le rosto nos surgiu originalmente. Mas explicar como esta vin-
mos podem levar amputao de membros inferiores, ceguei- culao feita em termos de fisiologia cerebral um desafio
ra e morte. O mal uma doena crnica, progressiva e sem cura. cientfico robusto. Os resultados esto mostrando que mem-
Mas um efeito colateral gerado por um procedimento cirr- rias criadas em intervalos de tempo prximo so armazenadas
gico destinado originalmente a tratar de outro probema de sa- em populaes sobrepostas de neurnios.
de pode representar uma esperana de, pelo menos, ampliar as O terceiro destaque para esta edio fica por conta do artigo
possibilidades de tratamento. Este o tema do artigo Opera- Desafio no gelo, em que a jornalista Martha San Juan traz um
o diabetes que voc pode ler nesta edio. No texto, o cirur- panorama dos resultados que foram obtidos pela pesquisa cien-
gio Francesco Rubino conta como seu interesse pelas cirurgias tfica brasileira na Antrtica dos anos 1990 para c. O fato que
baritricas, destinadas a promover reduo de peso, termina- o crescimento no volume e na qualidade do trabalho feito pelos
ram por lev-lo a investigar o possvel uso dessas tcnicas como cientistas brasileiros na regio no os poupou da escassez de
ferramenta para diminuir os ndices de glicose no sangue. Aps recursos que afeta todo o setor de C,T&I em nosso pas. Esta cri-
duas dcadas de pesquisas, j h estudos mostrando que aproxi- se, e as mudanas necessrias para super-la, so alis tema de
madamente 50% dos pacientes que passaram por essas cirurgias um artigo exclusivo de Helena Nader, que encerra seu manda-
experimentaram uma remisso da doena aps o procedimento, to frente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia.
e permaneceram assim por anos. Os demais apresentaram uma Esta edio traz ainda artigos tratando de buracos negros,
importante reduo em suas taxas de glicose sangunea que lhes cidades sustentveis e as razes por que danamos. Boa leitura!

ALGUNS COLABORADORES

Leonard Petrucelli professor e Alison Gopnik professora de da Antena Espacial para Michael E. Webber vice-diretor publicados, entre outros, por
presidente do departamento de psicologia e professora associada Interferometria Laser (Lisa), do do Instituto de Energia, codiretor The Washington Post, MIT
neurocincia da Clnica Mayo em de filosofia da Universidade da Levantamento de Energia Escura e da instituio Clean Energy Technology Review e Psychology
Jacksonville, Flrida. Califrnia em Berkeley. Suas da Agncia Espacial Europeia. Incubator e professor de recursos Today. Ela tambm autora de
pesquisas focam como as crianas energticos na Universidade do Stress Less (Hudson Street Press,
Aaron D. Gitler professor pequenas aprendem sobre o Sbastien Clesse um cosmlogo Texas em Austin. Seu livro mais 2010).
associado de gentica na mundo que as cerca. belga e pesquisador de ps- recente Thirst for power: energy,
Faculdade de Medicina da doutorado da Universidade water, and human survival (Yale Clnico e cientista, Francesco
Universidade Stanford. Alcino J. Silva Professor Tcnica da Rennia do Norte- University Press, 2016). Rubino chefe do departamento
Honorrio e diretor do Centro Vestflia, em Aachen, Alemanha. de cirurgia baritrica e metablica
Zach Zorich um jornalista Integrativo de Aprendizagem e Seu trabalho abrange inflao Carlo Ratti arquiteto e engenheiro, do Kings College, de Londres, e
frilancer do Colorado. Seu mais Memria da Universidade da csmica, gravidade modificada e diretor do Senseable City Lab, no cirurgio do Hospital Kings
recente artigo para Scientific Califrnia em Los Angeles. Seu buracos negros primordiais. Clesse Instituto de Tecnologia de College. Ele membro
American descreveu como a laboratrio (www.silvalab.org) participa da misso Euclides e Massachusetts, e fundador do estdio remunerado dos conselhos
construo das pirmides de Giz estuda mecanismos de memria, colabora com o Arranjo de um de design Carlo Ratti Associati. consultivos cientficos da GI
revolucionaram a organizao assim como as causas e os Quilmetro Quadrado. Dynamics e da Fractyl,
social do Egito. tratamentos relativos a distrbios Assaf Biderman inventor, diretor companhias que desenvolvem
da memria. William McDonough um associado do Senseable City Lab, e tratamentos intestinais para
Danielle L. Dixson professora arquiteto inovador que capitaneou fundador da Superpedestrian, uma diabetes, e consultor das
assistente de polticas e cincias Juan Garca-Bellido fsico terico e o design para um desenvolvimento empresa voltada ao fabricantes de dispositivos
marinhas da Universidade de professor no Instituto de Fsica sustentvel. Ele fundador da desenvolvimento de veculos mdicos Ethicon e Medtronic.
Delaware. Ela estuda como as Terica de Madri. Sua pesquisa gira empresa William McDonough + robticos para ocupao por uma
mudanas climticas e a em torno do Universo primordial, Partners e da McDonough ou duas pessoas. David Pogue colunista-ncora da
degradao de hbitats afetam o energia escura, buracos negros e Innovation, alm de cofundador do Yahoo Tech e apresentador das
comportamento de organismos gravidade quntica. Garca-Bellido Instituto de Inovao de Produtos Thea Singer uma jornalista de minissries NOVA, na rede pblica
marinhos. membro das misses Euclides e Bero a Bero. cincia de Boston com artigos de tev PBS.

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SUPERVISORA Cludia Santos Por razes de espao ou clareza, elas podero ser publicadas de
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ANO 15 AGOSTO DE 2017 CONTAS A PAGAR Siumara Celeste CENTRAL DE ATENDIMENTO AO LEITOR
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Helena B. Nader, biomdica, professora
FRUM
FR O N T E IR A S DA C I N C I A
titular da Unifesp e presidente da Sociedade C OM E N TA DA S P O R E S PE C I A LI S TA S
Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC).

C,T&I mas no conseguimos retirar C,T&I da PEC do teto dos gastos.


Aprovada em dezembro de 2016, ela limitar o aumento dos gas-

investimento,
tos pblicos inflao nos prximos 20 anos. Com um agravan-
te: o ano de referncia dessa PEC 2016, quando o oramento
do MCTIC foi de R$ 7,1 bilhes o que corresponde ao oramen-

no despesa
to de 2007 em valores corrigidos.
Isso significa que vamos retroceder em uma dcada em
termos oramentrios para financiar um sistema que cres-
Nossa produo cientfica se multiplicou ceu expressivamente nos ltimos 10 anos, como mostram os
nmeros de publicaes, de alunos de doutorado, de progra-
por sete em vinte anos, mas ainda mas de ps-graduaco e de grupos de pesquisa em ativida-
carecemos de uma poltica de Estado de no pas.
Em 2006 publicamos 33.498 artigos em peridicos cientfi-
Helena B. Nader cos indexados; em 2015, foram 61.122. Esse crescimento fez com
que o Brasil subisse duas posies no ranking mundial de pro-
O financiamento da cincia, tecnologia e inovao no Brasil duo cientfica, alcanando o 13 lugar. Em 2006, nossos cur-
repleto de altos e baixos. No adquire estabilidade, o que seria sos de doutorado tinham 46.572 alunos, sendo que naquele ano
bom, nem um crescimento constante, o que seria timo, por se titularam 9.366 deles. Em 2015, os nmeros dobraram: havia
uma razo que j foi de h muito identificada: C,T&I, em nosso 102.365 alunos inscritos, e 18.625 que obtiveram o grau de dou-
pas, ainda no ganhou o status de poltica de Estado. Como se tor, respectivamente.
limitam condio de poltica de governo, esto sempre sujei- Os programas de ps-graduao passaram de 2.266 para
tas maneira peculiar com que cada governante estabelece suas 3.828. Os grupos de pesquisa, em 2006, eram 21.024 e abriga-
prioridades, e s intempries das crises econmicas. Que no vam 90.320 pesquisadores. Em 2016, esses nmeros aumenta-
tm sido raras. ram para 37.460 e 199.566, respectivamente.
Assim, temos por exemplo que, desde o incio deste sculo, Entre 1996 e 2015, nossa produo cientfica se multipli-
o Fundo Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico cou por sete, enquanto a produo cientfica mundial cresceu
(FNDCT) no sofreu contingenciamento por parte do governo 2,8 vezes. Dentre os pases do Brics, nesse perodo perdemos
federal em apenas um ano: 2010. somente para a China, cujo crescimento da produo cientfi-
Entre 2005 e 2016, os contingenciamentos do FNDCT soma- ca foi de 14,5 vezes.
ram perto de R$ 20 bilhes. Nesse mesmo perodo, valor equi- Na comparao com os demais membros do bloco, o Brasil
valente deixou de ser executado nos oramentos anuais do hoje ficou acima: a produo cientfica da ndia cresceu 5,9 vezes; a
Ministrio da Cincia, Tecnologia, Inovaes e Comunicaes da frica do Sul, 4,0; e da Rssia, 1,8. Quase empatamos com a
(MCTIC). Esse total soma R$ 40 bilhes que deixaram de ser Coreia do Sul, que multiplicou por 7,2 sua produo de cincia
investidos em C,T&I naquele perodo de 12 anos. no mesmo perodo. Para comparar com outras economias emer-
Para fazer uma comparao, o maior oramento do Minist- gentes: o Mxico cresceu 4 vezes e a Austrlia, 3,5.
rio ocorreu no ano de 2013, totalizando R$ 9,2 bilhes. Ou seja, Um aspecto a ser notado que nossa produo cientfica
os R$ 40 bilhes contingenciados entre 2005 e 2016 correspon- diversificada, sendo que em algumas reas ocupamos posi-
dem a quatro anos e meio do maior oramento do MCTIC, e isso o de destaque em termos mundiais. Vemos isso em reas tais
sem aplicar a correo da inflao. como a agronomia, a veterinria, a zoologia, a parasitologia e o
Para o ano de 2017 houve um prenncio catastrfico. Ele no campo de medicina tropical.
se confirmou porque elevamos a presso sobre o governo fede- Dizer que nossa cincia produz somente papers algo que
ral. Com isso, o MCTIC conseguiu verbas, inclusive obtidas atra- no se sustenta. Temos os exemplos exitosos, em termos globais,
vs da repatriao, para a quitao de dvidas acumuladas de do pr-sal, da agropecuria e da aeronutica para mostrar que
anos anteriores do CNPq e da Finep (formalmente chamadas de sabemos tambm transformar conhecimento cientfico e tecno-
restos a pagar) e para o pagamento dos projetos aprovados no lgico em riqueza econmica.
Edital Universal, alm de ter revertido o contingenciamento dos O que nos falta, portanto, uma poltica de Estado para
recursos para o novo anel de luz sncrotron. C,T&I. Precisamos obter o reconhecimento, pela sociedade e
Essas vitrias, mesmo que custosas, amenizam apenas pelo governo, de que os gastos em C,T&I no podem ser enten-
situaes pontuais. Estruturalmente, o financiamento a C,T&I didos como pagamentos de despesas do dia a dia, mas sim como
um problema que se agrava para alm dos contingenciamentos investimentos no futuro do pas. Coreia do Sul, Finlndia e Chi-
e inconstncias dos oramentos. na, por exemplo, fizeram essa opo e passaram a se destacar
A SBPC argumentou exaustivamente junto ao poder execu- nos ltimos anos em razo de sua economia inovadora, pujan-
tivo e ao poder legislativo, se articulou com as demais entida- te e competitiva, altamente baseada no conhecimento cientfi-
des do Sistema Nacional de C,T&I, falamos com a imprensa, co e tecnolgico.

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CINCIA EM PAUTA
O PINI O E A N LI S E S D O C O N S E L H O
D E E D ITO R E S DA S C IENTIFIC A MERIC AN

No podemos
evitar futuros
surtos de doenas
Contudo, os Estados Unidos podem
minimizar o perigo com um grande
fundo de emergncia de sade
Pelos editores

Emergncias de sade pblica so inevitveis num mundo to


interligado quanto o nosso. Nos ltimos cinco anos, vimos surtos
inesperados de doenas devastadoras Ebola, chikungunya,
febre amarela e Zika cada uma das quais se espalhou muito
alm do seu alcance geogrfico histrico. Ningum sabe qual ser
a prxima emergncia, quem ser afetado ou quando acontecer,
mas sabemos que inevitvel. No entanto, os EUA esto despre- Thomas Frieden, ex-diretor do CDC, estima que 90% das mor-
parados para enfrentar essa ameaa, pois no fazem uma reserva tes por Ebola que aconteceram no oeste da frica em 2014 e 2015
de dinheiro para combater um surto antes que ele se espalhe. poderiam ter sido prevenidas se a agncia tivesse sido capaz de
Os EUA possuam um grande fundo nacional de emergncia de liderar uma grande ao imediatamente. Ele estima que, em julho
sade pblica, criado nos anos 1980 pelo Congresso, porm, desde de 2014, 300 camas adicionais para tratar pacientes de Ebola
ento, seu saldo diminuiu para US$ 57 mil o bastante para com- teriam bastado para impedir a doena de se espalhar. Entretanto,
prar alguns milhares de kits de primeiros socorros, mas no mui- em julho tambm estava se aproximando o final do ano fiscal para
to mais. O que precisamos est entre vrias centenas de milhes e o governo dos EUA, e no havia flexibilidade o bastante no ora-
US$ 1 bilho em novos fundos sempre e imediatamente dispon- mento do CDC para financiar a resposta necessria. Em novem-
veis, alm de serem reabastecidos assim que se esgotarem. bro, aps o Congresso disponibilizar mais dinheiro, foram necess-
J existe um mecanismo para lidar com desastres naturais rias mais de trs mil camas para tratar todos que haviam adoecido.
como terremotos e enchentes. A Agncia Federal de Gerenciamen- Quando o Zika chegou ao sul dos EUA e a Porto Rico em 2016,
to de Emergncias dos EUA est pr-autorizada a desembolsar cen- funcionrios de sade precisaram voltar ao Congresso e pedir fun-
tenas de milhes de dlares para pagar a remoo de escombros, dos para a nova emergncia. Meses se passaram sem ao, enquan-
por exemplo, quando oramentos estaduais ou locais ficam sobre- to alguns legisladores discutiam sobre o papel que o planejamen-
carregados com uma emergncia climtica. to familiar desempenharia nesse assunto, entre outras coisas. As
A criao de um fundo de dia chuvoso similar e a autoriza- autoridades locais de sade teriam suspendido temporariamen-
o aos Centros de Controle e Preveno de Doenas (CDC, na sigla te outros programas importantes para lidar com a nova ameaa.
em ingls) para us-lo antecipadamente poderia poupar vidas e Legisladores tanto do partido Democrata quanto do Republi-
dinheiro, em casa e no exterior. Houve alguns passos nessa direo. cano j reconheceram o problema e tentam fazer algo. O senador
A proposta de oramento do presidente Donald Trump para 2018 republicano Bill Cassidy apresentou o Ato de Resposta e Respon-
inclui esse fundo. Mas no d nmeros em dlares, e o projeto de sabilizao de Emergncia na Sade Pblica ano passado, e nova-
lei de sade aprovado pela Cmara dos Deputados em maio reduz mente em janeiro de 2017, para criar um fundo nacional de emer-
pelo menos US$ 1 bilho do financiamento anual de sade pblica. gncia de sade mais robusto, que pudesse fixar o financiamento
A ideia no deslocar esforos para combater doenas infeccio- atual aos valores j gastos anteriormente em emergncias de sa-
sas, mas fortalec-los para atender a uma necessidade temporria, de pblica. Em 2016, Rosa DeLauro, democrata de Connecticut,
porm esmagadora. Durante um surto, o CDC pode chamar mdi- defendeu uma nica dotao de US$ 5 bilhes para emergncias de
cos e enfermeiros para trabalhar sem remunerao, mas os custos sade e planeja fazer o mesmo este ano. Porm, criar leis (ou fazer
de transporte, suplementos mdicos e equipamento de proteo uma promessa vaga no oramento anual) no ajuda se o Congresso
precisam ser cobertos. O aumento de pacientes geralmente eleva a no conseguir aprovao. Os legisladores precisam avanar, apro-
necessidade de testes laboratoriais ou vigilncia de insetos e outros vando uma ou ambas as propostas para que o presidente assine, a
vetores de doenas requisitos extras que podem ser atendidos fim de assegurar que o dinheiro estar l quando a prxima emer-
por contratos de curto prazo com empresas comerciais. gncia de sade pblica atacar.

8 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Ilustrao de Cat ONell


50, 100 & 150 ANOS DE MEMRIA
IN OVA E S E D E S C O B E R TA S N A R R A DA S P E L A S C IE N TIFI C A M E R I C A N
Compilado por Daniel c. Schlenoff

AGOS TO

1967Agricultura
eficiente 1917Protegendo
flores silvestres
O fato de a produo de alimen- Nos ltimos 15 anos, alguns
para realizar palestras ilustra-
das em escolas e faculdades.
Britton tambm ajudou a criar o Jardim
tos e fibras s ocupar 5% da fora amantes da natureza tm reali- Botnico de Nova York em 1891.
de trabalho dos EUA deve-se prin- zado, neste pas, uma sria cam-
cipalmente mecanizao da agri- panha em prol da preserva- Carros eltricos para
cultura. Outros desenvolvimen- o de nossas flores do campo transportar cargas
tos tecnolgicos fertilizantes nativas e outras plantas silves- A pronta manipulao e o rpi-
1967
qumicos, pesticidas, cruzamen- tres. De acordo com uma reviso do descarregamento de vages
to de plantas e assim por dian- desses esforos, publicada pela de carga hoje um fator extre-
te fazem contribuies essen- Sra. Elizabeth Britton no Ame- mamente importante na mobili-
ciais, mas a mecanizao ainda rican Museum Journal, algu- zao da guerra industrial, parti-
o fator mais extraordinrio. A mas das plantas que se encon- cularmente no manejo de min-
colheita e a limpeza de uma cul- tram na mais urgente necessi- rio de ferro nas docas. Um novo
tura geralmente respondem por, dade de proteo agora esto tipo de veculo empurrador de
pelo menos, metade do custo total quase extintas em muitas partes vages, projetado com o propsi-
de produo. Esta tambm , de do pas, onde no passado eram to de acelerar o descarregamen-
1917
longe, a parte mais difcil do pro- comuns. O movimento de preser- to de cargas e os prprios carros,
cesso agrcola a ser mecanizado. vao comeou em 1901 com um alm de eliminar a necessida-
Ainda assim, a mecanizao de fundo de US$ 3.000,00 destina- de de uma pequena locomoti-
colheitas tem feito tanto progres- do a esforos de pesquisa e pre- va com motor de comutao
so que, apesar do custo das mqui- servao de nossas plantas nati- mostrado na ilustrao. O ve-
nas e outros recursos tcnicos, o vas. A Sociedade de Preservao culo empurrador impulsiona-
custo de alimentos para fam- de Flores Silvestres da Amri- do por um nico cabo, que se
lias, em termos de sua porcenta- ca agora tem comits em vrias estende entre os trilhos ao lon-
gem (18%) em relao s suas ren- cidades. A verba subvenciona o go de toda a extenso da doca.
1867
das, o mais baixo do mundo. preparo de ensaios, folhetos, car- O cabo est firmemente anco-
Dados de 2015 do Departamento tazes e apresentaes de slides rado a alicerces de concreto em
de Agricultura dos EUA mostram em lanternas mgicas [precur- ambas as extremidades por meio
que a proporo do custo de ali- soras do projetor de imagens], de um dispositivo de tenso da
mentos por famlia ainda o mais mola, o que o mantm retesado.
baixo do mundo.

O leito marinho
se expande?
A hiptese de que o leito dos
1867Ensinando
odontologia
Quarenta anos atrs, cirurgi-
oceanos tem se expandido pro- es e mdicos geralmente desem-
cura explicar certos traos de penhavam a funo de extrato-
bacias ocenicas e dos continen- res de dentes sempre que alguma
tes ao supor que o material que ocasio o exigia. Em 1820, havia
ascende do interior da Terra for- apenas 30 dentistas praticantes
ma dorsais meso-ocenicas e nos EUA. Em 1850, este nme-
ento, medida que novo mate- ro havia saltado para 2.923, e atu-
rial sobe, se move para fora, dis- almente existem cerca de cinco
tanciando-se das cordilheiras. A mil. Uma faculdade para a educa-
SCIENTIFIC AMERICAN, VOL. CXVI, N 23; 9 DE JUNHO DE 1917

hiptese foi reforada recente- o dos que desejam entrar nesta


mente pela descoberta de que profisso foi estabelecida ao lon-
faixas de magnetismo alterna- go de um ano nesta cidade [ago-
damente normal e invertido cor- ra a Faculdade de Odontologia
rem em linha paralela s cordi- da Universidade de Nova York
lheiras meso-ocenicas, aparen- (N.Y.U. College of Dentistry)], e
temente indicando a existncia a faculdade do Harvard College,
de fluxos ascendentes de rocha em seus ltimos incios do ano
fundida durante diferentes po- Manipulao de carga industrial, 1917: letivo acadmico, oferecem um
cas de polaridade magntica. usando carros eltricos para maior eficincia departamento de odontologia.

www.sciam.com.br 9
AVANOS

O rio Javari, no Peru e no Brasil, um dos afluentes do


rio Amazonas. Milhes de anos atrs, a bacia Amaznica
provavelmente foi inundada por gua marinha.

10 Scientific American Brasil, Agosto 2017


C O N Q U I S TA S E M C I N C I A , T E C N O LO G I A E M E D I C IN A N O D E IX E D E L E R

Identificando a zona quente onrica


do crebro
Plantas tm um senso de audio?
Avio desaparecido coloca leito marinho
em foco
Robs aprendem habilidades sociais
para ajudar a cuidar de idosos

GEOLOGIA

Atlntida
amaznica
Sedimentos sugerem que a vasta
bacia fluvial teve um passado
mido e salgado

H dcadas cientistas lutam com um dos


maiores mistrios biogeogrficos do plane-
ta: como a histria geolgica da bacia do rio
Amazonas moldou seu magnfico ecossiste-
ma. Agora, uma nova pesquisa descreve evi-
dncias sedimentares do leste da Colm-
bia e do noroeste do Brasil que sugerem que
a enorme bacia fluvial esteve coberta por
guas ocenicas pelo menos duas vezes no
passado. A Amaznia famosa por seu rio,
que comeou a fluir h cerca de nove milhes
de anos. Ideias sobre a estrutura da paisa-
gem pr-fluvial incluem uma floresta tropi-
cal inundada, um imenso lago de gua doce,
e uma rede de rios em forma de leque que
se estendia por todo o continente. Enten-
der a paisagem antiga fundamental para
descobrir o que gerou a assombrosa biodi-
versidade da floresta tropical amaznica.
Uma teoria postula que guas marinhas
inundaram a Amaznia ocidental na po-
ca do Mioceno, entre 23 e cinco milhes
de anos atrs, possivelmente criando um
ambiente em que incontveis novas espcies
puderam evoluir. Cientistas concordam que
partes da Amaznia estiveram submersas
no passado, mas no h consenso quanto ao
mecanismo ou extenso da inundao.
Estudo publicado no incio do ano em
Science Advances indica que a Amaznia foi
inundada em dois intervalos de tempo dis-
tintos, no Mioceno inferior e no mdio (h 18
e 14 milhes de anos, respectivamente). Os

www.sciam.com.br 11
AVANOS
autores, Carlos Jaramillo, do Instituto Smith- grande quanto os EUA continentais, mas h
sonian de Pesquisas Tropicais, e Jaime Esco- quase 14 milhes de anos era um oceano.
bar, da Universidade do Norte, na Colmbia, As novas descobertas coincidem com
e colegas sustentam que o Mar do Caribe uma pesquisa anterior, de Carina Hoorn, da
invadiu a costa sul-americana via Venezue- Universidade de Amsterd, e da Universida-
la e Colmbia, cobrindo largas faixas da Ama- de Regional Amaznica Ikiam. Recentemen-
znia com uma lngua de gua salgada te, ela determinou a idade do rio, mas no
que avanou continente adentro. medida participou do estudo publicado em Science
que avanou, a gua perdeu profundidade e Advances. Juntas, as evidncias de incurses COM PORTAMEN TO AN IMAL
se tornou um ecossistema marinho/salobro, marinhas na Amaznia so esmagadoras e
depois uma zona transicional mida, que por
fim deu lugar terra seca. Camadas distin-
abrem o caminho para mais pesquisas sobre
como o ambiente marinho pde ter influen-
Ursos
tas nos ncleos sedimentares mostram que,
na Colmbia, os perodos de inundao dura-
ciado a evoluo da biodiversidade da regio,
diz Hoorn. Outros so mais cautelosos. Este
danantes
ram, cada um, 900 mil e 3,7 milhes de anos, artigo fornece evidncias importantes, mas Movimentos rotatrios deixam
enquanto na Amaznia ocidental se prolon- no conclusivas, diz Christopher Dick, da mensagens cheirosas nas
garam por 200 mil e 400 mil anos cada um. Universidade do Michigan, que estuda diver-
patas dos animais
Os pesquisadores tambm descrevem sificao botnica em vrias partes da Ama-
como ncleos sedimentares produziram evi- znia. Mas a maioria dos outros cenrios
H dcadas bilogos especializados em
dncias fsseis que sustentam a ocorrn- ainda possvel, mesmo com esses dados.
ursos sabem que esses animais se movem
cia dessas inundaes. Os macrofsseis mais Jaramillo e seus coautores no chegam
de um jeito engraado, que recebeu ape-
interessantes encontrados no ncleo sedi- a afirmar que as incurses de guas salinas
lidos como andar de caubi, ou apenas
mentar, de vrios centmetros de largura, na sozinhas so a causa da biodiversidade ama-
dana de urso. Muitos pesquisadores
regio colombiana de Saltarin, so um den- znica, mas acham que vrios dos gneros de
supunham o motivo disso, mas um estudo
te de tubaro, possivelmente de um tuba- plantas existentes na floresta atual poderiam
recente finalmente ofereceu pistas slidas.
ro-galha-preta ou de um tubaro-martelo e traar suas linhagens a espcies que viviam
Enquanto andam, os ursos pisam e
de uma lacraia-do-mar, um organismo mari- em florestas permanentemente inundadas.
giram seus ps vigorosamente no cho.
nho que se enterra no fundo de mares tropi- Dick discorda. De uma perspectiva botnica
s vezes, at pisam nas pegadas deixadas
cais. Encontrar um dente de tubaro em um terrestre, diz, seria difcil provar que qualquer
por outros ursdeos, depois de darem uma
ncleo to estreito significa que tem de haver diversidade de espcies existentes pudesse
boa farejada nelas. Alguns cientistas tm
muitos outros mais, e aponta para a extenso ser atribuda s inundaes.
se referido a esses rastros coletivos como
da penetrao das guas salgadas, diz Jara-
Tudo indica que o trabalho de detetive rodovias de ursos, porque elas se torna-
millo. A floresta Amaznica um sistema
sobre este poderoso rio e a floresta que ele ram bem transitadas ao longo do tempo.
muito dinmico e no to antigo quanto se
nutre ainda se prolongar consideravelmente Todo mundo suspeitava de que havia
pensava antes. Hoje, ela cobre uma rea to

CARLOS JARAMILLO ET AL., EM SCIENCE ADVANCES, VOL. 3, N 5, ARTIGO N E1601693; 3 DE MAIO DE 2017; ART WOLFE Getty Images (ursos)
no futuro. AngelaPosada-Swafford alguma coisa [nas pegadas], diz Agnies-

PGINAS ANTERIORES: INGO ARNDT Getty Images; T; ESTA PGINA: FONTE: MIOCENE FLOODING EVENTS OF WESTERN AMAZONIA,
zka Sergiel, biloga no Instituto de Con-
servao da Natureza da Academia Polo-
Primeiro evento de inundao, h cerca de 17,8 milhes de anos Segundo evento de inundao, h cerca de 13,7 milhes de anos
nesa de Cincias e coautora do estudo,
Mar do Caribe publicado em Scientific Reports. Mas nin-
gum realmente investigou. Ela e seus
colegas se perguntaram se os ursos depo-
sitam seu cheiro por meio de glndulas
Terras secas
nas solas como um meio de comunica-
Oceano Zona transicional
o. A equipe de Sergiel examinou um par
Pacco Ecossistema
de ursos-pardos e verificou que as patas
marinho/salobro
dos animais contm glndulas sudorpa-
AMRICA ras, sugerindo que suas pegadas deixam
DO SUL certo cheiro. Os pesquisadores tambm
Limite sul da
rea de estudo identificaram 26 compostos volteis dife-
400 quilmetros rentes seis deles exclusivos de machos
Pesquisadores reconstruram as histricas inundaes marinhas da floresta tropical Amaznica no suor das patas, indicando que ursos
usando ncleos de sedimentos coletados no leste da Colmbia e noroeste do Brasil. Esses mapas podem usar aromas para determinar o
mostram a extenso mxima das guas durante dois perodos de tempo distintos. A regio foi sexo de viajantes ursinos anteriores.
inundada h entre 18,1 milhes e 17,2 milhes de anos, e h entre 16,1 milhes e 12,4 milhes de Sergiel diz que as pegadas de ursos
anos, respectivamente. Em ambos os mapas, a reconstruo abaixo do limite sul da rea de estu- so como caixas de correio, embora as
do baseada em ncleos sedimentares coletados durante um estudo anterior, em 2010, mas no mensagens enviadas continuem sendo
cobre todo o perodo de tempo includo nos ncleos reunidos acima da linha pontilhada. um mistrio. Jason G. Goldman

12 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Mapa de Mapping Specialists


G E N TI C A

Nascidos para
vo (Peromyscus manicula- deles, injetaram vasopressi-
tus) tm vrios parceiros. Eles na no crebro de camundon-

ser bons pais


tambm cuidam de modo dife- gos pais e mes das duas esp-
rente dos filhotes. Os oldfield cies silvestres; no outro, manipu-
constroem ninhos mais elabo- Ninhos que nutrem: laram geneticamente neurnios
Um nico gene pode estar rados do que seus equivalen- a espcie Peromyscus de vasopressina no crebro de
associado construo de ninhos tes promscuos, e passam mais polionotus subgriseus camundongos domsticos (Mus
melhores por camundongos tempo limpando suas crias e se tem pais dedicados. musculus) para excit-los. Os
aconchegando com elas, assim dois conjuntos de camundon-
Alguns camundongos silvestres so pais como resgatando os desgarrados. No estudo, gos construram ninhos de menor qualidade,
diligentes, que criam elaborados ninhos os comportamentos parentais no depende- sugerindo que a vasopressina e o gene res-
de grama para manter os filhotes segu- ram dos cuidados que os camundongos rece- ponsvel por produzi-la tm papel decisivo
ros e aquecidos. Outros, menos dedi- beram como bebs; mesmo quando filhotes na construo de ninhos.
cados, constroem moradias mais faju- de uma espcie foram nutridos e acalentados Os dados surpreenderam Oliver Bosch,
tas. Pesquisadores recentemente identifi- por pais da outra, eles cresceram e imitaram da Universidade de Regensburg, no envolvi-
caram um gene que regula a construo os hbitos de criao de seus pais biolgicos. do no novo estudo. Em suas prprias pesqui-
de ninhos um entre poucos genes que Buscando uma base gentica para tais sas com ratos e ratos-do-mato, a vasopres-
se sabe afetar o comportamento paren- comportamentos, Bendesky e seus colegas sina estimulou condutas maternas. poss-
tal em mamferos, inclusive humanos cruzaram os dois tipos de camundongos duas vel que o hormnio exera funes diferentes
Num estudo publicado na Nature, vezes para produzir quase 800 descendentes. antes e depois do nascimento de filhotes,
Andrs Bendesky, da Universidade Harvard, Na segunda gerao da prole, um gene liga- dependendo de se os pais esto se preparan-
e seus colegas trabalharam com dois tipos do construo de ninhos se destacou ele do para a chegada dos bebs ou cuidando
de camundongos geneticamente similares, regula o hormnio vasopressina, que, como deles. Talvez o hormnio seja suprimido de
mas diferentes no comportamento sexual: o a ocitocina, tem um forte efeito sobre condu- incio, e depois aparece e promove uma atitu-
camundongo oldfield (Peromyscus polio- tas sociais e vnculos emocionais em mamfe- de maternal, diz ele. No fim, no deveria ser
notus subgriseus) forma casais monogmi- ros e aves. A equipe fez um acompanhamen- um choque quando os relacionamentos entre
cos, enquanto os chamados ratos-do-cer- to do estudo com dois experimentos: num roedores desandam. Andrea Marks

N EU RO CI N CI A

O material
ondas cerebrais de sujeitos adormecidos com
eletroencefalogramas de alta densidade. Eles

dos sonhos
acordavam as pessoas regularmente para
perguntar se tinham sonhado e, em caso afir-
mativo, sobre o que eram seus sonhos. Um
Zona quente no crebro que dos experimentos obteve cerca de 200 rela-
sonha janela para a conscincia tos de 32 sujeitos, e um segundo produziu
quase outros 800 de um grupo menor espe-
Dormir, talvez sonharShakespea- cialmente treinado. de sonhos, inclusive locais, rostos, e fala. Essas
re pode no ter falado exatamente sobre A equipe identificou uma zona quen- mesmas reas so ativadas na experincia
CORTESIA DE ANDRS BENDESKY E HOPI HOEKSTRA (camundongos); GETTY IMAGES (mulher adormecida)

nossas viagens noturnas, mas isso no tor- te em uma regio cortical posterior, per- de viglia. Na realidade, no tentamos pre-
na o fenmeno onrico em nada menos mis- to da parte de trs da cabea, onde ondas dizer o contedo [dos sonhos] neste estudo,
terioso. Pesquisas recentes esto expandin- cerebrais de baixa frequncia (ligadas diz Baird, mas acrescenta que esta seria uma
do nossa compreenso e produzindo insights inconscincia) diminuram e a atividade das empolgante direo potencial.
sobre o prprio estado consciente em si. ondas de alta frequncia aumentava quan- Esta abordagem representa um para-
O sono oferece cincia um jeito de estu- do as pessoas diziam que estavam sonhan- digma legal e inovador, diz Christof Koch,
dar a concincia nas suas vrias formas, de do independentemente de estarem no do Instituto Allen para Cincia Cerebral, no
sonhos vvidos inconscincia total, diz o sono REM. (Apesar da crena comum, envolvido no trabalho. Descobrir que a ati-
neurocientista Benjamin Baird. Quando os sonhos podem ocorrer tanto no sono REM, vidade associada ao ato de sonhar est mais
sujeitos de estudos cochilam, pesquisadores como no NREM, o sono de movimento no centrada na parte de trs do crebro foi sur-
conseguem isolar a experincia da conscin- rpido dos olhos.) Os achados foram des- preendente, diz, porque se acredita que o
cia da influncia confundente dos sentidos. critos em Nature Neuroscience. estado de conscincia surge em regies fron-
Numa tentativa de espiar dentro do cre- Num terceiro experimento, os cientis- toparietais. Uma limitao do estudo o
bro ao sonhar, Baird e o especialista em cons- tas predisseram com 87% de preciso se os tempo entre o despertar e o momento em
cincia Giulio Tononi, ambos na Universida- participantes estavam sonhando. Alm dis- que se comea a narrar um sonho. No fim, diz
de de Wisconsin-Madison, e seus colegas so, a atividade de ondas cerebrais em certas Koch, queremos ficar cada vez mais perto da
usaram eletrodos de escalpo para registrar as regies foi associada a contedos especficos prpria experincia em si. Tanya Lewis

www.sciam.com.br 13
AVANOS
CHINA RSSIA
N A S N OT C I AS Algumas pragas de lagartas tornaram-se resistentes a Um estudo de ossos de animais coletados

Notas
culturas geneticamente modificadas criadas justamente do stio de Berelyokh, na Repblica da Iac-
para serem txicas para elas. Mas pesquisadores tia (ou Sakha, em russo), na Sibria, indica

rpidas desenvolveram um hbrido de algodo geneticamente


modificado e no modificado que mantm uma espcie
de lagartas suscetvel s protenas letais da planta.
que mamutes podem ter sofrido de doenas
humanas, inclusive de osteoporose, um
possvel fator em sua extino. Uma insufi-
cincia de minerais em sua dieta pode ter
tornado os animais suscetveis.

ESTADOS UNIDOS NDIA


Pesquisadores modelaram nveis Anlises de excrementos, san-
de rudos em quase 500 locais gue e tecidos mostram que
silvestres e parques e constataram duas populaes de tigres de
que mais da metade deles eram Bengala ameaados de extin-
duas vezes mais barulhentos do o nos sops da Cordilheira
que os ambientes seriam sem sons do Himalaia no esto se
gerados por humanos. Essa reproduzindo o suficiente para
cacofonia poderia inibir as manter uma diversidade
caadas, o acasalamento e outros gentica. Pesquisadores dizem
comportamentos de FRICA DO SUL que transferir de lugar aldeias
sobrevivncia dos animais. Restos de armas recm-descobertos sugerem que e parar com a minerao
humanos j usavam uma delicada e habilidosa poderia encorajar mais a mis-
tcnica de afiao de pedras,chamada lascamento, cigenao entre esses grupos.
por presso para moldar fina e primorosamente
pontas para lanas e outras ferramentas de caa h
77 mil anos. Andrea Marks

B I O LOGI A
o ao brao do tubo com o res e tremamente sens eis de

Plantas fluido, independentemente


de ele ser facilmente aces-
ibraes, diz a autora princi-
pal do estudo, Heidi M. Appel,

podem ouvir? s el ou estar escondido


dentro da tubulao. Elas
da Uni ersidade de Toledo,
em Ohio. Outra indicao em
A flora tal ez seja capaz de simplesmente sabiam que do fenmeno da polinizao
a gua esta a ali, mesmo que por zumbido, no qual se mostrou
detectar os sons de gua
a nica coisa a ser detectada fos- que abelhas que zumbem em certa
corrente e do mascar de insetos se o som de seu flu o dentro do tubo, frequncia estimulam a liberao de plen.
diz Gagliano. Mas, quando as mudas podiam Michael Schner, bilogo na Uni ersi-
Alegaes pseudocientficas de que m- escolher entre o tubo com gua e um pouco dade de Greifs ald no en ol ido na pes-
sica ajuda plantas a crescer tm sido fei- de solo mido, suas razes fa oreceram este quisa, acredita que plantas podem ter
tas h dcadas, apesar de e idncias que ltimo. Ela teoriza que essas plantas usam rgos capazes de sentir rudos. Vibra-
so incertas no melhor dos casos. Mas no- ondas sonoras para detectar gua a distn- es sonoras poderiam ser gatilhos de uma
as pesquisas sugerem que algumas es- cia, mas seguem gradientes de umidade para resposta da planta ia mecanoceptores
pcies podem ser capazes de perce- atingirem o al o quando este est mais perto. que poderiam ser estruturas muito finas e
ber sons como o gorgolejar de gua atra- A pesquisa, relatada no incio deste ano peludas; qualquer coisa que pudesse fun-
s de um cano, ou o zumbido de insetos. em Oecologia, no a primeira a sugerir que cionar como uma membrana, diz ele.
Em um recente estudo, Monica Gaglia- a flora capaz de detectar e interpretar sons. O estudo suscita perguntas sobre se a po-
no, biloga da Uni ersidade da Austrlia Oci- Um estudo de 2014 mostrou que a Arabidop- luio acstica afeta plantas tanto como ani-
dental, e colegas colocaram mudas de er i- sis pode distinguir entre sons de mastigao mais, diz Gagliano: Rudos poderiam blo-
lhas em asos que tinham a forma de um Y de lagartas e ibraes do ento a plan- quear canais de informao entre plantas, por
de ponta-cabea. Um brao de cada pote ta produziu mais to inas qumicas depois de e emplo, quando elas precisam se a isar mu-
foi colocado ou em uma bandeja com gua escutar uma gra ao de insetos se alimen- tuamente para a presena de insetos. Ento,
ou em um tubo de plstico enrolado atra- tando. Tendemos a subestimar plantas por- da pr ima ez que oc ligar um aspirador
s do qual flua gua; o outro brao conti- que suas respostas geralmente so menos de folhas, ou um aparador de cercas- i as em
nha solo seco. As razes cresceram em dire- is eis para ns. Mas folhas so detecto- seu jardim, pense nos lrios. Marta Zaraska

14 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Ilustrao de Thomas Fuchs


PS I COLO GI A

Segredos os entrevistados disseram esconder infor-


maes em 13 categorias, em mdia (sen-

e mentiras do que cerca de cinco tinham um segredo


que escondiam de todos). Os segredos mais SUSTE NTABILIDADE

Florestas
comuns foram pensamentos extrarrelacio-
Ruminar informaes privadas nais (pensar num relacionamento com outra
di mais do que ocult-las
minguantes
pessoa quando j se est em um), anseios
romnticos (enquanto solteiros) e comporta-
No segredo que todos ns temos segre- mento sexual (consumo de pornografia, fan-
dos. Ocult-los pode ser emocionalmen- tasias e congneres). O grfico abaixo apre- O planeta est perdendo reas de
te desgastante, mas no pela razo que a senta uma anlise detalhada dos segredos terras prstinas que so fundamentais
maioria dos pesquisadores presumia h mui- mais comuns. para ecossistemas saudveis
to tempo. Um novo estudo redefine o pr- As pessoas disseram que, quando no
prio conceito de sigilo e oferece uma explica- interagiam com ningum, pensavam sobre Ns, humanos, deixamos nossa marca pelo
o diferente para sua conhecida associao seus segredos com uma frequncia cerca de planeta; nenhum ecossistema continua intoca-
com depresso, ansiedade e m sade. Os duas vezes maior em comparao com seus do. Mas algumas paisagens foram menos afe-
pesquisadores sugerem que manter segre- esforos para ocult-los ativamente em con- tadas. E a capacidade da Terra para proporcio-
do principalmente a inteno de escon- versas. Quanto mais frequentemente suas nar hbitats para plantas e animais, seques-
der informaes, independentemente de mentes vagavam para um segredo, mais elas trar carbono atmosfrico e regular o fluxo de
qualquer ocultao ativa ao redor de outras relataram que isso prejudicava seu bem-es- gua doce depende da extenso das regies
pessoas. E isso machuca ao nos fazer sen- tar, e menos saudveis afirmaram estar. Sur- menos afetadas. As reas onde a influncia
tir falsos, mesmo quando estamos a ss. preendentemente, o ocultamento ativo no humana ainda no aparece nos satlites so os
Michael Slepian, psiclogo na Colum- afetou em nada o bem-estar, em compa- alvos mais importantes para esforos de con-
bia Business School, e colegas recentemen- rao como suposies anteriores. Quatro servao. Usando imageamento por satlite,
te relataram seus achados num artigo on-line estudos adicionais on-line com casais produ- um grupo de pesquisadores mapeou o decl-
no Journal of Personality and Social Psycholo- ziram resultados semelhantes. Se voc pre- nio global, entre os anos 2000 e 2013, de tais
gy. Em seis estudos, eles indagaram a 1.200 cisa manter um segredo, Slepian suge- paisagens florestais intactas (IFLs, na sigla em
americanos pela internet, e a outras 312 pes- re no ficar remoendo o assunto, e passar ingls), definidas como ecossistemas floresta-
soas que faziam piqueniques no Central Park, a praticar a tcnica de meditao cha- dos ou naturalmente desprovidos de rvores,
em Nova York, sobre 38 categorias de com- mada ateno plena, ou discutir a ques- de 500 km2 ou mais. Cerca de metade da rea
portamento ou identidade que muitas vezes to proibida em fruns annimos on-line. das IFLs do mundo esto nos trpicos, e um
so mantidos em sigilo. Em cinco estudos, Matthew Hutson tero nas florestas de Amrica do Norte e Eur-
sia. Explorao madeireira, agricultura, mine-
As 10 principais categorias de coisas que mantemos em segredo
rao e incndios contriburam para sua redu-
Em segredo Em segredo de Em segredo no passado, Nunca mantido o, conforme relatado em janeiro no peridico
de todos algumas pessoas porm no mais em segredo Science Advances. O lado positivo? Paisagens
Pensamentos de enganar o parceiro que se encontram sob proteo formal, como
parques nacionais, mostraram-se mais propen-

PETER POTAPOV, EM SCIENCE ADVANCES, VOL. 3, N 1, ARTIGO N E1600821; 4 DE JANEIRO DE 2017; GETTY IMAGES (rvores)
FONTE: THE LAST FRONTIERS OF WILDERNESS: TRACKING LOSS OF INTACT FOREST LANDSCAPES FROM 2000 TO 2013,
Comportamento sexual sas a permanecer intactas. Jason G. Goldman
Ter mentido para algum
Desejos romnticos sobre algum EM NMEROS

12,8 milhes
enquanto solteiro
Violao da conana de algum
PERSONALITY AND SOCIAL PSYCHOLOGY. PUBLICADO ON-LINE EM 8 DE MAIO DE 2017
FONTE: THE EXPERIENCE OF SECRECY, MICHAEL L. SLEPIAN ET AL., EM JOURNAL OF

de quilmetros quadrados Extenso global de IFLs no ano 2000,


Furto, roubo uma rea total equivalente a um tero da superfcie da Lua.

Quase
Indelidade no sexual (como ertar)

1 milho
Ambio ou meta

Detalhes sobre a famlia


de quilmetros quadrados rea aproximada de IFLs perdida entre
Detalhes nanceiros os anos 2000 e 2013, mais ou menos igual extenso do Egito.

0 100 200
Nmero de participantes no estudo
300 400 500 600
65
Nmero de pases que abrigavam pelo menos uma IFL em 2000.
Ao longo de trs estudos (um subconjunto de 10), pesquisadores entrevistaram 600 parti-
cipantes sobre comportamentos secretos comuns que haviam experimentado e at que
ponto eles tinham mantido cada um escondido. O grfico mostra dados para os 10 com-
19
mero de a ses ue caro com letamente des ro idos de
IFLs daqui a 60 anos se as perdas continuarem taxa atual.
portamentos mais frequentemente mantidos em total segredo.

Grfico de Amanda Montaez www.sciam.com.br 15


AVANOS
ROBT IC A

GETTY IMAGES (nibus espacial); AJAYAN RESEARCH GROUP Rice University (fibras)
O ajudante
rob da vov
Mquinas que entendem
indicaes sociais humanas so
promissoras para auxiliar idosos

Robs j desempenham muitas tare-


fas tradicionalmente humanas, de aspirar
o p a realizar cirurgias e, em breve, pode-
riam ajudar a cuidar de doentes e idosos.
Mas at que consigam discernir e imitar
de forma convincente emoes humanas,
Fibras felpudas, encrespadas: nanotubos de seu valor como cuidadores ficar limitado.
carbeto de silcio (insero) poderiam tornar Em um esforo para criar mquinas mais
os motores de foguetes mais resistentes ao calor. gentis, pesquisadores esto desenvolven-
do ajudantes robticos que sabem reco-
C I N C I A D OS M ATE R IAIS nhecer e reagir melhor a sinais sociais.

Foguetes quentes
No final de 2016, a IBM e a Universida-
de Rice revelaram o rob multitarefa para
auxiliar idosos MERA (sigla de Multi-Pur-
Fibras parecidas com velcro poderiam ajudar a projetar pose Eldercare Robot Assistant), uma ver-
motores mais quentes para naves espaciais com destino a Marte so personalizada do rob Pepper desen-
volvido pela Soft-Bank Robotics, no Japo.
O interior dos motores de foguetes atuais cies parecem uma verso microscpica do Vel- O Pepper, um androide cor de marfim,
pode chegar a causticantes 1.6000 C calor cro. As fibras, descritas em Applied Materials & com altura aproximada de uma criana
suficiente para derreter ao. E os motores Interfaces, seriam menos propensas a escapar de sete anos, capaz de detectar e res-
do futuro precisaro ser ainda mais abrasa- do meio cermico circundante porque seus ponder a emoes humanas atravs de
dores. Motores mais quentes so mais efi- elementos crespos agarram umas s outras. dicas vocais e expresses faciais. Ele j foi
cientes em termos de queima de combus- Para produzir os fios, os pesquisadores pri- empregado como assistente gentil em
tvel, produzem mais empuxo e podem meiro criaram nanotubos de carbono encara- lojas e lares japoneses. J o MERA, pro-
transportar cargas maiores, todos fato- colados que se projetam da superfcie de SiC jetado especificamente como um com-
res fundamentais para naves espaciais des- como cachos de cabelo. Depois mergulharam panheiro domstico para os idosos, grava
tinadas a Marte e aeronaves avanadas. as fibras num p ultrafino de silcio e as aque- e analisa vdeos do rosto de uma pessoa
Buscando materiais capazes de tole- ceram, convertendo os nanotubos de carbono e calcula sinais vitais, como frequncias
rar mais calor, engenheiros tentam conce- em fibras de SiC. A equipe testou a fora das de batimentos cardacos e respirao. A
ber compsitos resistentes, duros e leves, fei- fibras encrespadas ao inseri-las num polmero tecnologia de fala do MERA, originalmen-
tos de fibras de carbeto de silcio (SiC) com transparente, elstico e flexvel, e descobriram te desenvolvida para o Watson, da IBM, lhe
uma pequena frao da largura de um fio de que esses compsitos eram quatro vezes mais permite conversar e responder a perguntas
cabelo humano, incorporadas em um mate- fortes do que os feitos com fios lisos. Engenhei- sobre sade. Ele tem tudo acondicionado
rial cermico. O carbeto de silcio pode resistir ra da Nasa e coautora do estudo, Janet Hurst em um adorvel ser individual, diz Susann
a 2.0000C a temperatura dos motores mais diz que agora quer testar as novas fibras num Keohane, fundadora do Laboratrio de Pes-
quentes almejados. Os compsitos de hoje meio cermico. Os cientistas tambm querem quisa Aging-in-Place, da IBM.
so feitos ao se sobrepor camadas de peque- produzir fibras com um revestimento encres- A roboticista Maja Matari e seus cole-
nos tapetes tecidos de fibras de SiC, preen- pado de nanotubos de nitreto de boro, porque gas na Universidade do Sul da Califrnia
chendo o espao entre eles com uma cer- ele resistente e protege as fibras da exposi- adotam uma abordagem diferente, mas
mica porosa. Mas esses compsitos podem o prejudicial a oxignio. Fibras de SiC so complementar, para criar mquinas sociais.
rachar sob as altas presses que ocorrem em resistentes na dimenso do comprimento, mas Eles projetam robs que exploram dinmi-
motores porque as fibras deslizam umas con- sob altas presses podem se romper na largu- cas sociais humanas para ajudar idosos a
tra as outras e saem da cermica. ra. Mas as novas fibras devem resistir, porque ajudarem a si mesmos. O que descobrimos
Num possvel grande avano, cientis- seus pelinhos ajudam a dissipar a tenso dis- que pessoas realmente precisam de aju-
tas da Universidade Rice e do Centro de Pes- tribuindo-a, diz Steven Suib, da Universidade da com motivao para executar tarefas
quisa Glenn, da Nasa, desenvolveram fibras de Connecticut, que no esteve envolvido na necessrias, diz ela. Ento criamos o campo
de carbeto de silcio felpudas, cujas superf- pesquisa. Prachi Patel da robtica socialmente assistiva: mquinas

16 Scientific American Brasil, Agosto 2017


CORTESIA DE COMUNIDADE DA AUSTRLIA E GEOSCIENCE AUSTRLIA, 2017
O primeiro estudo cientfico a resultar do esforo de busca revela um detalhado terreno submarino,
marcado por ngremes declives e profundas depresses. Mostrada aqui, a Escarpa Diamantina.

CIN CIAS DA TE RR A
CORTESIA DE SOFTBANK ROBOTICS

Territrio tista marinho na Geoscience Australia, agn-


cia do go erno federal australiano que realiza

desconhecido pesquisas em cincias da Terra.


A Geoscience Austrlia di ulgou o primei-
A busca pelo a io ro lote de dados em julho; outros mais de em
O rob Pepper sabe reconhecer e sair em meados de 2018. Uma ez que os
desaparecido do oo MH370
responder a emoes humanas. Uma verso mapas tenham se tornado pblicos, ajudaro
adaptada destina-se a ajudar idosos.
mapeou uma rea em grande pesquisadores a lidar com enigmas ainda no
parte ine plorada do leito resol idos em uma regio com uma comple-
que au iliam pessoas atra s de interao marinho do Oceano ndico a histria tectnica. Um mistrio, diz o coau-
social e no fsica. Para pessoas da terceira tor do estudo, Millard Coffin, da Uni ersida-
idade, tal assistncia em de rios jeitos Quando um voo da Malaysia Airlines de da Tasmnia, uma enigmtica te tura
de orient-los em fisioterapia a ajud-las a desapareceu em maro de 2014, relatos ini- no leito marinho, chamada e panso do fun-
socializar com amigos e familiares. ciais caracterizaram a massi a rea de bus- do ocenico , pequenas cristas alongadas
Matari e sua equipe recentemente tes- ca submarina como sendo em grande par- que geralmente correm em linha paralela a
taram o Spritebot, um rob-coruja erde, de te plana. Mas agora, o primeiro estudo cien- um rift, uma grande fenda, no leito ocenico,
30,5 centmetros de altura, que ajuda idosos tfico a emergir da caada re elou uma onde duas placas tectnicas esto se afastan-
a jogar jogos com seus filhos ou netos. Os regio pouco e plorada, de grande com- do uma da outra, permitindo a ascenso de
pesquisadores constataram que as pessoas ple idade topogrfica, no sudeste do Oce- magma. Este fenmeno pode ter resultado de
con ersa am mais umas com as outras e se ano ndico. Esta rea inclui o ponto em que repetidos pulsos de ulcanismo ao longo de
en ol iam em jogos por mais tempo quan- o subcontinente indiano e os continentes dorsais meso-ocenicas, que pesquisas ante-
do o Spritebot participa a, e agia como australiano e antrtico se separaram duran- riores associaram a ciclos de eras glaciais e
moderador, em suas interaes. te a di iso do supercontinente Gond a- aquecimento climtico. Pesquisas sobre estas
Em um pr imo estudo, Matari e seus na. Com uma resoluo 500 ezes maior e outras caractersticas podero elucidar por
colegas juntaro idosos com companheiros do que a de medies de satlites anterio- que a e panso do fundo ocenico foi mais
robs que os encorajem a desen ol er hbi- res, no os mapas redefiniram pi els antes complicada no Oceano ndico do que no
tos saud eis, como andar mais. Ela espera embaados produzindo aspectos topogr- Atlntico, diz Coffin. A resoluo melhorada
que monitorar a interao de pessoas com ficos ntidos estranhos cumes e marcas tambm ajudar cientistas a entender melhor
robs companheiros informe sua equipe de depresses, assim como um asto plat muitos outros processos ocenicos profundos,
tanto sobre a formao de hbitos como a que termina em uma ngreme escarpa, cor- e plica Picard, inclusi e deslizamentos de ter-
dinmica do nculo humano-rob. tada por grandes deslizamentos de terra. ras e marcas de depresses, afundamentos
A necessidade de robs socialmente Os no os dados geofsicos, adquiridos parecidos com crateras possi elmente cau-
assisti os pode resultar de uma escassez por meio do uso de sonares de bordo, de sados pelo azamento de um fluido ou gs
de companheiros humanos para os ido- ltima gerao, e publicados on-line no in- desconhecido.
sos, mas Matari salienta que robs tam- cio deste ano em Eos, abrangem 2.500 qui- A tragdia da Mala sia Airlines foi uma
bm poderiam oferecer alguns benef- lmetros de leito marinho. Este conjun- das mais cruis e mais tristes e dolorosas na
cios adicionais em comparao com seus to de dados claramente sem precedentes histria da a iao, com a perda de 239 pes-
equi alentes de carne e osso. Mquinas em termos da magnitude da rea in esti- soas e uma longa operao de busca interna-
so infinitamente pacientes, e plica ela. gada e porque ele re ela uma parte do leito cional que no conseguiu identificar pistas ou
Elas tm [menos] preconceitos para in- ocenico profundo que ha ia permanecido apontar causas. Mas, como diz Coffin, muito
cio de con ersa, e no tm e pectati as. em grande parte ine plorada, diz o autor conhecimento indito sobre o leito marinho
Catherine Caruso principal do estudo, Kim Picard, geocien- profundo est resultando dela. Terri Cook

www.sciam.com.br 17
DESAFIOS DO COSMOS Salvador Nogueira jornalista de cincia especializado em
astronomia e astronutica. autor de oito livros, dentre eles Rumo ao
infinito: Passado e futuro da aventura humana na conquista do espao
e Extraterrestres: Onde eles esto e como a cincia tenta encontr-los.

Entre mininetunos e superterras


Mundos aliengenas ajudam a entender formao de planetas no Sistema Solar
Salvador Nogueira

Em 1995, um grupo do Observatrio de Genebra descobriu O mais importante que esses nmeros so suficiente-
o primeiro planeta a orbitar uma estrela de tipo solar. Mas o mente robustos para permitir estudos estatsticos sobre como
objeto chamado de 51 Pegasi b foi apenas o primeiro de um a natureza fabrica planetas. O Kepler mostrou que planetas
vagalho de exoplanetas identificados nas ltimas duas dca- rochosos como a Terra so comuns e muitos esto na zona
das. Telescpios espaciais foram construdos para encontr- habitvel regio ao redor da estrela em que o nvel de radia-
-los, e o mais prolfico deles, o Kepler, da Nasa, gerou um cat- o favorece a presena de gua lquida na superfcie. Essa
logo impressionante, cuja ltima verso foi recentemente uma parte importante do percurso que precisamos percorrer
divulgada pela agncia espacial americana. para responder pergunta: Estamos ss no Universo?.
Apontado entre 2009 e 2013 para uma pequena regio do Ainda mais importante, o Kepler permitiu que come-
cu entre as constelaes de Cisne e Lira, o Kepler concen- ssemos a distinguir rotas evolucionrias para os planetas,
trou-se em monitorar as estrelas de apenas 0,25% da abba- preenchendo o vo de conhecimento que separa os mundos
da celeste. No total, cerca de 180 mil delas estavam no cam- rochosos, como a Terra, dos menores gigantes gasosos, como
po de viso. O objetivo era detectar nelas pequenas variaes Netuno. No h exemplar intermedirio entre eles no Sistema
de brilho que indicassem a passagem de planetas sua fren- Solar, o que sempre pareceu estranho. Baseando-se nas esta-
te, algo como minieclipses. O fenmeno, porm, s observ- tsticas do Kepler, um grupo liderado por Benjamin Fulton e
vel nos sistemas cujo plano das rbitas planetrias se alinha seus colegas do Caltech, estudou os planetas que preenchem
perfeitamente com nosso ponto de vista aqui na Terra, para esse vazio. E, aparentemente, h duas populaes distintas de
permitir o trnsito frente da estrela. Planos orbitais so dis- planetas menores que Netuno.
tribudos aleatoriamente, e os cientistas do Kepler s espera- A primeira se restringe a um dimetro at 1,75 vez o ter-
vam que 5% de todos os planetas estivessem na orientao cer- restre, e compe uma categoria que podemos chamar de
ta para serem detectados. superterras. Tm composio e densidade similares ao nos-
Essa peneira torna ainda mais impressionantes os resulta- so, predominantemente rochosos, apesar do tamanho maior.
dos: nada menos que 4.034 candidatos a planetas foram acha- Conforme o dimetro passa dessa faixa, h um decrsci-
dos, dos quais 2.335 foram confirmados. Cumpriu-se assim a mo acentuado da populao de planetas, que passam a subir
espetacular predio do filsofo Giordano Bruno, que no fim novamente quando se ultrapassa o limite de 2 dimetros ter-
do sculo 16 afirmou que todas as estrelas deviam ter sis e restres. A temos uma nova classe de planetas, menos densos e
abrigar planetas ao seu redor. mais parecidos com mininetunos.
Fulton e colegas propem uma explicao evolutiva. Plane-
tas nascem de discos de gs e poeira ao redor de estrelas-mes.
Linha de montagem de planetas No princpio, so formados por ncleos rochosos e agregam
uma certa quantidade de gs hidrognio ao seu redor. Se a
Agrupe Coloque gs Calor
quantidade agregada consegue atingir pelo menos 1% de sua
Mininetunos
massa, o planeta tende a preservar esse invlucro primordial
e se torna, em termos de tamanho, no mnimo um mininetu-
no. Se a quantidade de gs fica aqum disso, a tendncia que
NASA/AMES RESEARCH CENTER/JPL-CALTECH/R. HURT

o vento estelar desmanche a atmosfera primordial e o mundo


acabe no mximo como uma superterra. uma boa hipte-
se para explicar as estatsticas, mas a parte mais interessante
ainda est por vir: nos prximos anos, comearemos a carac-
Superterras
terizar a composio desses mundos, e a veremos quanta
Ncleos planetas planetas totalmente
rochosos jovens formados variedade pode haver em superterras e mininetunos. No
A linha de montagem dos exoplanetas que so absurdo imaginar que a natureza, mais uma vez, se mostre
menores do que Netuno produz duas categorias mais criativa de que ns na arte da conceber planetas.

18 Scientific American Brasil, Agosto 2017


ASTROFOTOGR AFIA
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[email protected] CU DO MS
As fotos precisam ser em alta resoluo, com no mnimo 300 dpi, para serem publicadas. AG O S TO

Um eclipse
solar para o
Norte do Brasil
Lua cruza o disco do Sol no dia 21,
mas fenmeno s ser total
para uma faixa que cruza os
Estados Unidos de costa a costa.

Em fevereiro, tivemos um eclipse solar que foi visvel de for-


ma parcial nas regies Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil.
Em agosto, o Nordeste e o Norte vo forra, com um eclipse
solar para chamar de seu.
No dia 21 de agosto, a Lua transitar frente do disco
solar, no que promete ser um evento de grande frissom nos
Estados Unidos. Isso porque a estreita faixa de onde o eclipse
ser visvel cruza aquele pas de costa a costa.
A Amrica Central e a poro mais ao norte da Amrica
do Sul tambm podero observar o fenmeno. Para os esta-
dos brasileiros (limitados praticamente s s regies Norte e
Nordeste), o evento ocorre entre as 16h e as 18h (pelo horrio
de Braslia). Em Belm do Par, por exemplo, o mximo ocor-
re s 17h11, quando quase 50% do disco solar estar encober-
to pela Lua.
Mesmo no regime parcial, o eclipse merece observao
Carlos Fairbairn revela a beleza do complexo de nebulosas de Rho
mas exige cuidados especiais para a observao. No se pode
Ophiuchi. Perto do centro v-se a estrela Antares (amarelada). Na
olhar diretamente para o Sol, nem a olho nu e muito menos parte inferior, a Via Lctea. A imagem um mosaico de trs quadros,
com instrumentos pticos, a no ser que eles tenham filtros cada um composto por 22 fotos feitas em Padre Bernardo (GO) com
apropriados para observao solar. cmera fotogrfica, lente de 135 mm e exposio de 120 segundos
A soluo mais simples, segura e barata para acompanhar
o eclipse usar um vidro de mscara de solda (nmero 14, que
suficientemente escuro para proteger a vista). E importan- de meteoros Perseidas, que atinge seu auge no dia 13. Como
te lembrar que muitas solues populares para observao de o nome sugere, seu radiante (o ponto de onde parecem
eclipses so na verdade bem perigosas. Nada de culos escu- emanar os meteoros) fica na constelao boreal de Perseu.
ros, reflexos na gua ou o uso de chapas de raio X. Nada dis- Embora seja uma chuva bastante tradicional, gerada pelos
so filtra a radiao perigosa que os olhos no podem ver, mas detritos do cometa 109/P Swift-Tuttle que se encontram
ainda assim causa danos a eles. com a atmosfera da Terra quando ela cruza, anualmente,
Costumeiramente, eclipses solares so precedidos em duas a rbita dele, a observao prejudicada no hemisfrio Sul
semanas por eclipses lunares. Neste agosto, no ser exceo porque Perseu nunca se eleva muito acima do horizonte por
um eclipse parcial lunar acontece no dia 7 de agosto. Con- aqui. Mesmo assim, vale a pena procurar os Perseidas no
tudo, ele s ser observvel do outro lado do Atlntico. No dia 13, uma hora antes do nascer do Sol, quando o radiante
Brasil, apenas a fase penumbral, praticamente imperceptvel, despontar no horizonte norte.
chega a roar a costa ocenica.
Fora o bingo dos eclipses, temos neste ms a clssica chuva Bons cus a todos! (S.N.)

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VISIBILIDADE DOS PLANETAS N

MERCRIO
Inicialmente em Leo e depois em Sextante e
novamente Leo. Visvel ao anoitecer na direo
do pr-do-sol. Estacionrio em 12. Em conjuno
inferior com o Sol em 26.
VNUS
Visvel ao amanhecer, na direo do nascer do sol,
em Gmeos. Prximo da Lua em 19.
MARTE
Primeiro em Cncer e depois em Leo. Muito
prximo ao Sol para ser observado. Comea a ser
visvel ao amanhecer no final do ms.
JPITER
Visvel ao anoitecer, no oeste, na direo da
constelao de Virgem. Prximo da Lua em 22.
SATURNO
Em Ofico, visvel durante a primeira metade da
noite. Prximo da Lua em 3 e 30, estacionrio em 25.
URANO
Visvel a leste durante a madrugada, em Peixes.
Estacionrio em 3. Prximo da Lua em 13.
NETUNO
Em Aqurio, visvel durante toda a noite.
Prximo da Lua em 9. L

DESTAQUES DO MS
- Mximo da chuva de meteoros Perseidas
- Mercrio em conjuno inferior com o Sol.
Planeta entre o Sol e a Terra

20 Scientific American Brasil, Agosto 2017


CARTA CELESTE PARA O MS DIA HORA EVENTO
Mapa mostra cu visvel s 22h00 de 1 de
agosto, s 21h00 de 15 de agosto e s 20h00 2 15h27 Lua no apogeu, mxima distncia da Terra (404.943
de 30 de agosto a partir da latitude de km). Dimetro angular aparente 29,7'.
2327 Sul (Trpico de Capricrnio)..
3 03h44 Urano estacionrio.

3 05h27 Lua a 3,9N de Saturno.

7 15h11 Lua cheia.

7 15h21 Eclipse parcial da lua. No visvel no Brasil.

9 18h08 Lua passa a 0,7S de Netuno.

12 03h19 Mercrio estacionrio.

13 Mximo da chuva de meteoros Perseidas (Cometa


109/P Swift-Tuttle).

13 01h00 Lua passa a 4,2S de Urano.

14 22h16 Lua em quarto minguante.

15 08h07 Lua passa pelo aglomerado estelar aberto de


Pleiades (M45), em Touro.

16 02h12 Lua passa a 0,7N de Aldebar (alfa de Touro).

18 Mximo da fraca chuva de meteoros Kappa-


Cigndeos.

18 03h31 Melhor ocasio para visualizar o brilho da Terra


refletido na face escura da lua minguante falcada
O (luz cinrea). O horrio refere-se ao nascer da Lua
em So Paulo.

18 10h57 Lua no perigeu, mnima distncia da Terra


(366.093 km). Dimetro angular aparente 33,0.

19 00h40 Lua passa a 2,1S de Vnus.

21 15H27 Eclipse total do Sol. Visvel na Amrica do Norte.

21 15h31 Lua nova.

22 08h20 Lua passa a 4,8N de Jpiter.

24 Fim da atividade da chuva de meteoros Perseidas


(incio em 17/07).

25 10h30 Saturno estacionrio.

25 11h57 Lua passa a 7,5N de Spica (alfa de Virgem).

25 17h53 Melhor ocasio para visualizar o brilho da Terra


refletido na face escura da lua crescente falcada (luz
cinrea). O horrio refere-se ao pr do sol neste
dia, em So Paulo.
PASSAGEM DO SOL
PELAS CONSTELAES * 26 17h36 Mercrio em conjuno inferior com o Sol. Planeta
entre a Terra e o Sol.
- Cncer de 21/07/2017 a 10/08/2017
- Leo de 10/08/2017 a 16/09/2017 29 05h14 Quarto crescente.

(*) O limite das constelaes foi estabelecido pela Unio Astronmica 30 08h38 Lua no apogeu, mxima distncia da Terra
Internacional em 1930, o que permite estabelecer, com grande preciso, (404.224 km). Dimetro angular aparente 29,3'.
o instante de entrada e sada do Sol por cada uma das 13 constelaes 30 09h53 Lua passa a 4,1S de Saturno.
que so atravessadas pela trajetria anual aparente do Sol, a eclptica.

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DESTRAVA
GENTICA

MISTE O

ELA
D
A

Mutaes recm-descobertas trazem pistas de como a doena


destri os neurnios motores e rouba a mobilidade dos
doentes. Achados podem levar a terapias medicinais contra
um mal que h muito resiste a tratamentos
Leonard Petrucelli e Aaron D. Gitler

Ilustrao de Jeremy Wilson

22 Scientific American Brasil, Agosto 2017


NDO
RIO
A EM SNTESE

A esclerose lateral amiotrfica (ELA), uma desordem neurodegenerati-


va comumente conhecida como doena de Lou Gehrig, ataca as clulas
nervosas que vo do crebro e da medula espinhal aos msculos em
todo o corpo.
Tecnologias sofisticadas de sequenciamento de genes tm levado a uma
enxurrada de descobertas, revelando os fundamentos genticos da ELA.
Pesquisas contnuas indicam que mudanas em qualquer um de vrios
genes diferentes aumentam a susceptibilidade de que um indivduo te-
nha a doena.
O silenciamento de genes usando uma molcula sinttica chamada oli-
gonucletido antissentido emergiu como um tratamento potencial para
alguns tipos de ELA . Os pesquisadores tambm esto buscando formas
de medir a doena medida que ela avana, a fim de ajudar sua deteco
precoce e o desenvolvimento de drogas teraputicas

www.sciam.com.br 23
A
Leonard Petrucelli professor e presidente
do departamento de neurocincia da Clnica
Mayo em Jacksonville, Flrida.

Aaron D. Gitler professor associado de gentica


na Faculdade de Medicina da Universidade Stanford.

ESCLEROSE LATERAL AMIOTRFICA (ELA) ATINGE SEM AVISO PRVIO. A CONDIO,


que retira das clulas nervosas sua capacidade de interagir com os mscu-
los do corpo, comea sem dor, com sintomas iniciais sutis, tais como
tropeos, gestos desastrados e fala arrastada que so muitas vezes
ignorados. A prpria doena atraiu pouca ateno pblica at que o lendrio jogador de basebol do
Yankees de Nova York, Lou Gehrig, comeou a deixar as bolas carem e a colapsar no campo sem
motivo aparente. Conhecido como Cavalo de Ferro, por participar de 2.130 jogos consecutivos em
14 anos, Gehrig foi diagnosticado com ELA em junho de 1939 e fez uma despedida pungente no
Estdio Yankee no ms seguinte. A perda de controle muscular de Gehrig progrediu to rpido que,
em dezembro, ele estava muito fraco para participar de sua indicao ao Hall da Fama do Beisebol.
A crescente paralisia acabou por deix-lo preso cama. Ele morreu em junho de 1941, aos 37 anos.

Hoje mais de 6 mil pessoas so diagnosticadas por ano nos EUA vivem ainda mais. Essa minoria inclui o fsico Stephen Hawking,
com ELA, agora conhecida como a doena de Lou Gehrig nos EUA, que vive famosamente com ELA h mais de cinco dcadas. Pes-
e como uma doena neuromotora na Europa. A ELA geralmente quisas atuais sugerem que fatores relacionados ao meio ambiente
aflige pessoas entre 50 e 60 anos, mas pode comear muito mais desempenham s um pequeno papel no desencadeamento da ELA,
cedo ou mesmo quando a pessoa estiver com seus 80 anos. No in- provavelmente ao aumentar a vulnerabilidade de indivduos gene-
cio, clulas nervosas no crebro e na medula espinhal, chamadas de ticamente suscetveis. O mais intrigante que a desordem ocorre
neurnios motores, comeam a morrer. Uma vez que essas clulas principalmente de forma aleatria. Menos de 10% dos casos sur-
enviam sinais do crebro atravs da medula espinhal para os ms- gem por caractersticas genticas passadas entre geraes. Os casos
culos, sua morte provoca perda de mobilidade, destreza, fala e at restantes so classificados como no herdados, ou espordicos.
mesmo deglutio. Na maioria dos casos, as funes superiores do Na ltima dcada, sofisticadas tecnologias de sequenciamento
crebro permanecem intactas: as pessoas atingidas pela ELA so levaram a um crescimento exponencial na compreenso da biolo-
obrigadas a assistir ao falecimento de seu prprio corpo medida gia do problema. Pesquisas indicam que muitos genes diferentes,
que a doena avana de forma implacvel. Logo se tornam presas sozinhos ou em conjunto, podem aumentar a susceptibilidade de
a uma cadeira de rodas e, no final, ficam acamadas. Sem capacida- uma pessoa. Mutaes especficas foram conectadas a quase 70%
de de se comunicar, comer ou respirar por conta prpria, a maio- dos casos familiares de ELA e cerca de 10% dos espordicos. Por
ria morre por insuficincia respiratria dentro de trs a cinco anos. sua vez, esta riqueza de novos dados genticos abre vias promis-
A nica droga contra a ELA aprovada pela agncia americana que soras para o desenvolvimento de uma terapia melhor. O silencia-
controla alimentos e medicamentos, a Food and Drug Administra- mento de genes emergiu como um tratamento em potencial para
tion (FDA), o bloqueador de glutamato riluzol, que prolonga a algumas formas de ELA, e duas drogas que visam diferentes genes
sobrevivncia por uma mdia de trs meses. No h cura. defeituosos devem passar por testes clnicos este ano. Enquan-
O pioneiro neurologista francs Jean-Martin Charcot, que iden- to isso, pesquisadores identificam biomarcadores reveladores,
tificou a doena em 1869, encapsulou uma descrio a respeito dela incluindo substncias mensurveis em fluidos corporais ou ati-
em seu nome: amiotrfico significa sem alimentao muscular; vao eltrica no crebro, que poderiam levar a diagnsticos pre-
lateral refere-se a uma rea da medula espinhal onde ficam parte coces e a avaliar melhor o progresso da doena. Os biomarcado-
das clulas do neurnio motor moribundo; e esclerose o endu- res tambm podem ser teis para desenvolver outros tratamentos.
recimento ou a cicatrizao que ocorre medida que o processo de
degenerao neural se desenrola. Apesar da caracterizao direta PISTAS GENTICAS INICIAIS
de Charcot, a complexidade da ELA ainda confunde pesquisadores. Embora pessoas com ELA familiar, a maioria das quais tem 50%
Embora seja sempre fatal, por razes desconhecidas em torno de de chances de pass-la prxima gerao, sejam s uma pequena
10% dos pacientes sobrevivem por mais de 10 anos, e alguns sobre- parte dos doentes, elas desempenharam um papel extraordinrio

24 Scientific American Brasil, Agosto 2017


N O V O S T R ATA M E N T O S C O N T R A A E L A Molculas ASO
introduzidas atravs

Gene nocivo desmascarado de injees espinhais

Estudos recentes revelaram que letras repetidas demais em uma sequncia de DNA ao longo do
cromossomo 9 so responsveis pela maioria dos casos hereditrios e de alguns casos espordicos
de ELA. Enquanto os pesquisadores desvendam o mistrio de como essas mutaes causam Impedindo
doenas, desenvolvedores de medicamentos esto testando uma molcula sinttica, que a mutao
chamada oligonucletido antissentido, ou ASO, para silenci-las.
cause problemas
Uma molcula ASO projetada para entrar em
Trs resultados problemticos uma clula e procurar pelo RNA transcrito do gene
As mutaes ocorrem em C9ORF72, a 72 fase de leitura aberta, ou regio de codificao C9ORF72 mutante, marcando esse RNA para que seja des-
de protena, do cromossomo. O RNA mensageiro defeituoso transcrito desse DNA pode trudo por uma das enzimas da prpria clula. Ensaios iminentes
prejudicar os neurnios motores de trs maneiras, indo e vindo dos ribossomos de uma vo testar essa abordagem ao infundir a molcula sinttica no sis-
clula, onde traduzido em protenas. tema nervoso de pacientes com ELA que tm a mutao C9ORF72,
via uma injeo intratecal, uma espcie de espinha dorsal reversa.
Mutao (nmero maior de que
o comum de repeties) Molcula ASO

Gene C9ORF72

DNA RNA

RNA
Ribossoma
Enzima

Protena
Protenas inteis

Variaes de RNA mal dobrados

CENRIO 1: o excesso de repetio faz com que menos CENRIO 2: RNA contendo repeties extras transcrito a CENRIO 3: Ao invs de codificar o resultado tpico da pro-
RNA seja transcrito, levando a uma produo de muito partir do duplo sentido do gene e das fitas de DNA antisen- tena, as repeties extras no RNA so traduzidas em um
pouco da protena codificada pelo C9ORF72 e a uma tido, produzindo molculas RNA mal dobrado, que podem sortimento de protenas inteis e txicas que em potencial
perda de sua funo normal, ainda desconhecida. capturar uma variedade de RNAs e protenas. danificam o crebro e os neurnios da coluna espinhal.

para desvendar as bases genticas da doena. O primeiro vnculo tenas individuais se dobrem de maneira incorreta e depois se aglo-
gentico surgiu em 1993, a partir de estudos que identificaram uma merem. As clulas marcam essas protenas deformadas com ubi-
mutao num gene chamado SOD1 em quase 20% de casos familia- quitina, um marcador molecular que indica que elas precisam ser
res . O SOD1 codifica a enzima antioxidante superxido dismutase, removidas. Quando este sistema de eliminao celular fica sobre-
que converte a molcula altamente reativa superxido (um radical carregado, o lixo se acumula. Em pessoas com certos tipos de ELA
livre de oxignio) em formas menos prejudiciais. familiar, os neurnios motores ficam repletos com aglomerados de
Os pesquisadores de incio teorizaram que a mutao no SOD1 protenas SOD1 anormais marcadas com ubiquitina.
poderia enfraquecer as capacidades antioxidantes da enzima e Um grande avano na pesquisa ocorreu em 2006, quando os
permitir que radicais livres de oxignio danificassem os neurnios cientistas analisaram casos de ELA sem mutaes SOD1. Em qua-
motores. Um quarto de sculo depois, descobrimos, com quase se todos, descobriram que outra protena, de nome TDP-43, tam-
certeza, que no o caso. Ao contrrio, parece que essa mutao bm se aglomera nos neurnios motores. A TDP-43 pertence a uma
desencadeia o que os cientistas chamam de ganho txico de funo, classe de protenas que regulam a ao dos RNAs mensageiros
na qual a enzima faz algo alm do que normalmente deveria fazer. cpias mveis de DNA que servem de modelos para a produo das
Em particular, a nova funo leva a mudanas no formato de protenas codificadas pelas letras de DNA de um gene. A TDP-
certas protenas nos neurnios. A maioria das autpsias de pes- 43 liga-se a um RNA mensageiro, orienta seu processamento no
soas com ELA revela um padro tpico de patologia do crebro: ncleo, transporta-o para onde ele precisa ir na clula e faz outras
aglomerados de protenas acumulados nos neurnios motores. funes importantes para traduzir o RNA em uma protena. De
Para que esses neurnios funcionem de forma perfeita, os blocos alguma forma, na ELA , a TDP-43 puxada para fora do ncleo e se
de construo das protenas nas clulas devem ser reciclados de acumula no citoplasma circundante. Ela pode at agir como uma
maneira eficiente; com ELA, o sistema de reciclagem no funciona. espcie de escoadouro para puxar cpias adicionais dela mesma
Todas as protenas, incluindo as enzimas, precisam adotar medi- para o citoplasma. Os cientistas ainda precisam determinar se a
das precisas de dimenses tridimensionais quando so sintetizadas TDP-43 exibe uma perda de funo (porque retirada do ncleo)
nas clulas, para que funcionem de maneira correta. Os pesquisa- ou um ganho txico de funo (porque se acumula no citoplas-
dores descobriram que as mutaes parecem fazer com que as pro- ma), ou ambos.

Ilustrao de Jen Christiansen www.sciam.com.br 25


A identificao do TDP-43 como a pro- na qual a sequncia de repetio expandi-
tena aglutinante-chave na maioria dos da seja traduzida em pequenas protenas
casos de ELA ajudou os geneticistas a se nocivas, que so elas mesmas propensas a
concentrar no gene especfico que a codi- se aglomerarem nos neurnios de pessoas
fica, TARDBP, e eles encontraram muta- com mutaes C9ORF72.
es raras entre algumas famlias que tm At agora, as evidncias sugerem que
um tipo hereditrio da doena. O principal as mutaes C9ORF72 causam a ELA atra-
divisor de guas foi a descoberta conceitu- vs de um ganho txico de funo, embo-
al de que alteraes em uma protena de ra as contribuies de aglomerados de RNA
ligao de RNA podem causar ELA. Poste- e aglomerados de protena ainda no este-
riormente, os pesquisadores identificaram jam claras. Em ltima anlise, a distino
vrios genes adicionais causadores de ELA pode no ser relevante, porque esto sen-
que do origem s protenas envolvidas do desenvolvidas estratgias teraputicas
na regulao do RNA e preveem que pode que poderiam desligar a produo tanto de
haver muitos mais. O final dos anos 2000 RNAs quanto de protenas do gene mutan-
viu uma exploso nas descobertas genti- te, em uma tacada s.
cas acerca da ELA, com um ou dois novos
genes da ELA emergindo a cada ano. Mas REPETIR A POLTICA PARA O
a descoberta mais emocionante ainda esta- SALVAMENTO?
va por vir. O silenciamento de genes com o uso de
OS VDEOS DO DESAFIO do Balde de Gelo uma molcula sinttica chamada oligonu-
REPETIES DE DNA DESCONTROLADAS de ELA, feitos por milhes de pessoas, cletido antissentido (ASO) um avano
As descobertas surgiram em estudos incluindo o corredor de Frmula 1 Daniel teraputico emocionante para as doenas
com vrias famlias que tm um tipo here- Ricciardo, ajudaram a aumentar a conscienti- neurodegenerativas. Uma molcula ASO
ditrio de ELA. Em 2011, duas equipes rela- zao e a arrecadar dinheiro para pesquisas. projetada para localizar e se ligar mol-
taram, de forma independente, ter encon- cula do RNA mensageiro produzida a par-
trado um tipo peculiar de mutao em um tir de um gene especfico, que por sua vez
gene com um nome igualmente peculiar, C9ORF72, que represen- induz uma enzima a entrar em ao e atacar o hbrido RNA-ASO.
ta a 72 fase de leitura aberta ou a parte de um gene que codifica As ASOs podem levar destruio seletiva de quase qualquer RNA
uma protena no cromossomo 9. Em pessoas saudveis, esse gene produzido a partir de um gene mutante. No caso da C9ORF72, estu-
inclui uma sequncia curta de DNA GGGGCC que repetida dos feitos com roedores indicam que as molculas antissentido pro-
de duas a 23 vezes. Em pessoas com a mutao C9ORF72, esse seg- jetadas para destruir aglomerados de RNA em neurnios moto-
mento repetido centenas ou s vezes milhares de vezes. res tambm podem destruir aglomerados de protenas repetidas
Pesquisas posteriores revelaram que as repeties excessivas anormais e evitar que novos aglomerados de protenas se formem.
poderiam explicar de 40% a 50% dos casos familiares e de 5% a 10% Estima-se que este ano ainda sejam feitos ensaios clnicos com
dos casos espordicos. Curiosamente, as descobertas sobre muta- humanos usando medicamentos antissentido concebidos para
es providenciaram uma conexo gentica entre a ELA e uma for- atingir o gene mutante C9ORF72. Enquanto isso, os pesquisadores
ma de demncia chamada degenerao frontotemporal (DFT). O tambm projetaram um agente antissentido para a forma familiar
DFT marcado por mudanas na personalidade e na tomada de de ELA causada pelo SOD1, e resultados de um ensaio clnico ini-
decises. As mutaes C9ORF72 podem causar ELA ou DFT, ou cial indicam que seguro injet-lo no espao cheio de lquido da
uma combinao das duas, chamada ELA -DFT. E aglomerados de coluna vertebral, um local escolhido para permitir que a droga via-
TDP-43 se desenvolvem nos neurnios de pessoas com mutaes je atravs do lquido cefalorraquidiano que flui ao redor do cre-
C9ORF72, mostrando ainda outra conexo entre os dois distrbios. bro e encontre o caminho para os neurnios motores.
A associao implica que a ELA e a DFT podem ser parte de um O sucesso de um ASO desenvolvido para outra doena neuro-
espectro de condies relacionadas, embora no esteja claro como degenerativa, chamada atrofia muscular espinhal, d aos pesqui-
mutaes no mesmo gene levariam a sintomas to divergentes. sadores motivo para ficarem cautelosamente otimistas. Essa doen-
Os cientistas investigam trs mecanismos celulares que talvez a gentica do neurnio motor em bebs semelhante ELA. Pou-
expliquem como as mutaes nesse gene causam ELA. O segmento cas crianas que sofrem desse mal passam dos trs anos. Em dois
de DNA repetitivo poderia interferir na forma como o cdigo gen- ensaios clnicos recentes para testar uma droga antissentido pro-
tico normalmente copiado para o RNA mensageiro e depois tra- jetada para corrigir um defeito gentico que leva a um RNA mensa-
duzido na protena C9ORF72, reduzindo o total de protena sinte- geiro anormal, crianas com atrofia muscular espinhal mostraram
tizada. A reduo poderia diminuir os efeitos da protena, embora uma melhora to contundente em suas habilidades motoras que o
sua funo exata ainda seja ignorada. Alternativamente, poderia FDA agiu com rapidez em relao a esses testes e deu sua aprova-
haver um ganho txico da funo: talvez a sequncia repetida faa o formal para a droga no final de dezembro de 2016.
MARK THOMPSON Getty Images

com que o prprio RNA forme aglomerados que se acumulam nos


ncleos de neurnios e ajam como um escoadouro, apanhando SOLUO DE ELA ESPORDICA
as protenas de ligao do RNA e impedindo que desempenhem Estudos de formas raras de ELA, com um claro padro de
suas funes habituais. Ou poderia haver um ganho txico de fun- herana familiar, abriram o caminho para uma melhor compre-
o por causa de uma estranha reviravolta da biologia molecular, enso da biologia subjacente doena. O maior desafio identi-

26 Scientific American Brasil, Agosto 2017


ficar mutaes nos genomas dos indivduos com ELA espordica porais facilmente acessveis, como o sangue ou o lquido da colu-
que os tornam suscetveis doena. Esto em andamento esfor- na vertebral. Em maro, um de ns (Petrucelli) relatou ter detec-
os para coletar amostras de DNA de pessoas com ELA e explo- tado essas protenas no fluido do sistema cefalorraquidiano de
rar seus genomas. Para agilizar essa tarefa, os geneticistas desen- pessoas com ELA e ELA-DTF, e em portadores assintomticos
volveram um microchip que permite que realizem os assim cha- do gene mutante. Essas medidas poderiam potencialmente aju-
mados estudos de associao do genoma inteiro (GWASs) para dar no diagnstico precoce. Outras pesquisas se concentram no
comparar prontamente os genomas das pessoas com ELA com os desenvolvimento de tcnicas de imagem, para ajudar a detectar
de pessoas saudveis. O chip concentra-se nas regies do geno- os aglomerados de protena TDP-43 que se acumulam no cre-
ma conhecidas por conter variantes chamadas polimorfismos bro antes que esses agregados comecem a matar neurnios moto-
de nucleotdeos nicos lugares onde uma letra do DNA pode res. Todos esses biomarcadores tambm poderiam servir como
variar de uma pessoa para outra. Os GWAS so correlacionados referncias teis para julgar o sucesso de possveis terapias em
e, portanto, no podem revelar se algo est causando a ELA, mas ensaios clnicos.
podem identificar discrepncias suspeitas que justifiquem uma Os avanos rpidos na gentica e na genmica, assim como no
anlise mais aprofundada. Vrios esforos internacionais recen- desenvolvimento de biomarcadores novos e melhores, vo condu-
tes para realizar GWASs em mais de 10 mil doentes e em mais zir a uma era de medicina de preciso para a ELA. No futuro prxi-
de 20 mil pessoas saudveis revelaram vrias diferenas genmi- mo, os pacientes sero agrupados pelo tipo de ELA que tm e rece-
cas que esto agora sob investigao. Novas tecnologias simpli- bero ento um tratamento ou uma preveno adaptados a eles.
ficaram o processo de coleta de dados genticos, possibilitando
que se faa o sequenciamento de genoma inteiro de um indivduo O PODER DAS REDES SOCIAIS
num dia por menos de US$ 1.000. preciso ainda menos tempo Boa parte do progresso na pesquisa sobre ELA na ltima dca-
e dinheiro quando se sequencia apenas o exomo, a parte do geno- da se deve disposio de indivduos afetados pela doena, que
ma que codifica protenas. ofereceram seu tempo e seu DNA para estudos de genmica em
Quando os pesquisadores reunirem um amplo catlogo de larga escala. Pessoas com ELA e suas famlias tambm ajudaram
variantes genticas, eles tentaro decifrar as formas complexas a sensibilizar o pblico e a angariar fundos para apoiar pesqui-
pelas quais elas aumentam o risco da doena. Essa tentativa inclui- sas e servios para doentes atravs das mdias sociais. O Desa-
r o estudo de como vrios genes interagem e a investigao para fio ELA do balde de gelo assolou a internet em 2014. Pete Frates,
saber se vrios genes mutantes podem estar envolvidos em algu- um ex-capito do time de beisebol da Faculdade de Boston diag-
mas formas de ELA, alm de considerar fatores ambientais. Alguns nosticado com ELA dois anos antes, aos 27 anos de idade, aju-
estudos novos sugerem que a ELA pode at resultar, em parte, do dou a fazer as coisas acontecerem quando publicou um vdeo no
despertar de um retrovrus dormente, uma sequncia de DNA viral Facebook desafiando seus amigos a despejar baldes de gua gela-
que h muito tempo se inseriu no genoma e normalmente teria da sobre suas cabeas para arrecadar dinheiro para a Associao
ficado ali quietinha. Pode ser que um retrovrus em algumas pes- ELA. A campanha logo virou viral quando uma srie de celebri-
soas com ELA salte de neurnio a neurnio no crebro, potencial- dades, incluindo Mark Zuckerberg, Bill Gates, Oprah Winfrey e
mente causando danos e dando incio doena em seu rastro. LeBron James, aceitou o desafio. Por oito semanas, usurios do
Facebook postaram mais de 17 milhes de vdeos de si mesmos
NOVAS PISTAS PROMISSORAS se encharcando pela causa. Os apoiadores levantaram mais de
Pesquisas sugerem que as clulas gliais, que so at mais abun- US$ 115 milhes, dos quais foram destinados 67% para pesqui-
dantes no crebro e no sistema nervoso central do que os neur- sas, 20% para pacientes e servios comunitrios, e 9% para a edu-
nios, tambm podem ter um papel importante. As clulas gliais cao pblica e profissional.
desempenham vrias funes: algumas fornecem suporte fsico A ELA uma doena cruel. Antes do inspirador discurso de des-
para os neurnios; outras regulam o ambiente interno do crebro, pedida de Gehrig no Estdio Yankee onde se referiu a si mes-
em especial o fluido que circunda os neurnios e suas sinapses. mo como o homem mais sortudo da Terra e as notcias de seu
Estudos em camundongos com a mutao do gene SOD1 produ- diagnstico se espalharem, a maioria das pessoas que contraam a
ziram uma surpresa. O desligamento da sntese do gene mutante doena sofria em silncio. Mas agora a conscincia pblica conti-
nas clulas gliais prolongou a vida, apesar da presena contnua da nua a crescer, em parte por causa de pessoas como Frates. A cam-
protena SOD1 txica nos neurnios motores dos animais. Aparen- panha de mdia social que ele ajudou a estimular revitalizou a Asso-
temente a ELA pode se originar nos neurnios motores, mas essa ciao ELA, que triplicou seu oramento anual para pesquisa. Os
comunicao com clulas gliais ajuda o avano da doena. As clu- cientistas esto otimistas de que o crescimento explosivo de nos-
las gliais tambm contribuiriam ao produzir um fator txico, embo- sa compreenso sobre a biologia da ELA continuar, e que desco-
ra os cientistas no estejam completamente seguros sobre o que brir cada vez mais genes nocivos levar a terapias melhores, com o
esse fator ou como funciona. Quando o fator (ou fatores) for iden- intuito de manter esse assassino furtivo sob controle.
tificado, formas de bloquear sua produo ou dificultar sua capa-
cidade de transmitir o seu mau sinal aos neurnios motores pode-
riam ser criadas para retardar ou interromper a ELA. PA R A C O N H E C E R M A I S

Em meio busca para desvendar as causas da ELA, os pesqui- Decoding ALS: from genes to mechanism. J. Paul Taylor, Robert H. Brown, Jr., e
sadores tambm tm se esforado para identificar biomarcado- Don W. Cleveland em Nature, vol. 539, pgs. 197206; 10 de Novembro de 2016.
res que possam ajudar a avaliar o avano da doena. Por exemplo, State of play in amyotrophic lateral sclerosis genetics. Alan E. Renton, Adriano Chi e
Bryan J. Traynor em Nature Neuroscience, vol. 17, no 1, pgs. 1723; Janeiro de 2014.
esforos contnuos visam detectar as protenas repetidas anor-
mais produzidas da expanso de DNA C9ORF72 em fluidos cor-

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ARQUEOLOGIA

O SUMIO DOS

VIKINGS
DA G R OE N L N DI A
Por centenas de anos a ilha foi um posto avanado
gelado, mas por fim as colnias entraram em colapso.
Novas descobertas elucidam esse declnio enigmtico
Zach Zorich
Ilustrao de Tyler Jacobson

28 Scientific American Brasil, Agosto 2017


www.sciam.com.br 29
O
Zach Zorich um jornalista frilancer do Colorado.
Seu mais recente artigo para Scientific American
descreveu como a construo das pirmides de
Giz revolucionoua organizao social do Egito.

ANO ERA 1000 D. C. UMA TRIPULAO DE VIKINGS VIAJAVA


ao norte da costa ocidental da Groenlndia em um barco aber-
to de seis remos, rumo ao fim do mundo como o conheciam.
Com pouca proteo contra vento, chuva e glidos jatos de
gua salgada, deve ter sido uma viagem miservel. Afogamento
e hipotermia eram uma ameaa constante. Mesmo assim, ao
trmino da viagem de 15 dias, descrita em um texto histrico,
os vikings chegaram s praias do que hoje a Baa de Disko, onde as morsas se arrastavam para
fora das guas para acasalar e descansar. Os animais eram alvos fceis e suas presas de marfim
custavam uma fortuna na Europa. A jornada extenuante valeu muito a pena.
Por centenas de anos, os vikings, tambm conhecidos como os to em alguns assassinatos, de acordo com as sagas. Sem ter apren-
nrdicos, dominaram esse posto avanado no rtico. Eles esta- dido a lio, Erik foi exilado novamente alguns anos mais tarde,
beleceram duas prsperas colnias que, em seu apogeu, reuni- quando matou vrias pessoas durante disputas com dois diferen-
ram milhares de membros. Mas, entre o incio e meados dos anos tes vizinhos. Mas, dessa vez, no havia outras terras conhecidas
1400, as colnias desapareceram. para onde ele pudesse ir. Assim, Erik navegou para Oeste pouco
Segundo as explicaes clssicas para o declnio, os colonos se sabendo sobre o que havia frente e descobriu as terras incultas
apegaram obstinadamente ao modo de vida europeu, cultivando que viriam a ser conhecidas como Groenlndia. Quando seu ex-
pastagens para vacas e ovelhas, embora isso no fosse adequado lio terminou, em 985, Erik retornou Islndia, onde ele e um gru-
para o terreno rochoso e o clima frio da Groenlndia. Mas o acmu- po de colonos colocaram seus pertences em 25 barcos e partiram
lo de evidncias arqueolgicas indica que as razes para o colapso para o novo territrio. Apenas 14 navios sobreviveram viagem.
das colnias vikings na Groenlndia foram bem mais complexas. Exatamente por que outros vikings foram se instalar na Groen-
Em primeiro lugar, os vikings se afastaram da tradio europeia lndia no est claro. Historiadores e cientistas sociais pensavam
para se adaptarem aos desafios nicos da Groenlndia, assumindo que fosse um ltimo recurso: toda a terra arvel boa da Islndia
a caa s morsas, por exemplo. Essas adaptaes permitiram que e das Ilhas Faro j era usada e os vikings estavam desesperados
os assentamentos resistissem s mudanas de clima que tornavam para encontrar espaos abertos para criar gado. Alternativamen-
seu ambiente j hostil ainda mais difcil de ser habitado. Por fim, no te, os colonos podem ter cado em um ardil comercial. Erik, o Rui-
entanto, mesmo essas novas prticas no conseguiam proteger os vo, teria chamado o local rochoso coberto de gelo de Terra Verde
vikings da Groenlndia de modificaes polticas e culturais em lar- (traduo para o portugus do nome Greenland, do qual Groen-
ga escala que os marginalizaram e que podem ter se transformado lndia a forma adaptada) para atrair mais colonizadores.
em uma ameaa maior que as mudanas climticas. Seja por puro desespero ou por vises do paraso, o fato
Os vikings talvez nunca tivessem se instalado na Groenlndia que os vikings comearam a se agrupar na Groenlndia vindos
se no fosse por uma srie de assassinatos cometidos pelo cele- da Islndia e da Europa em uma onda inicial de migrao que
bremente temvel Erik, o Ruivo, cujos abusos esto relatados nas ocorreu por volta do ano 1000. Eles se instalaram na maioria das
Sagas Islandesas. Erik e seu pai eram pequenos agricultores da melhores terras e portos. Os que chegaram posteriormente tive-
Noruega at serem exilados para a Islndia por seu envolvimen- ram de construir suas fazendas em reas mais marginais. Uma

EM SNTESE

Depois de prosperarem por sculos, as colnias vikings resultado de uma obstinada recusa em adaptarem seus dis mudaram seus hbitos. As ltimas evidncias suge-
na Groenlndia foram misteriosamente abandonadas. costumes europeus s condies dessa terra no rtico. rem que uma interao de foras culturais e polticas no
Por muito tempo, estudiosos viram esse declnio como Mas descobertas mostram que os vikings da Gronlan- exterior levou ao seu desaparecimento.

30 Scientific American Brasil, Agosto 2017


1 2

3 4
CORTESIA DE LENNART LARSEN Museu Nacional da Dinamarca CC-BY-SA (1, 2, 4); THE TRUSTEES OF THE BRITISH MUSEUM (3)

ARTEFATOS re elam facetas da ida dos ikings na Groenlndia. Um anel e um bculo do tmulo de um bispo (1) atestam a influncia da
Igreja Catlica nas colnias. Os ikings da Groenlndia manti eram laos culturais com a Europa, compartilhando de suas modas (2) e
costumes. Mas eles tambm descobriram um nicho econmico ao adotarem novas prticas, como caa s morsas, exportando as presas
de marfim para a Europa, onde eram usadas para ornamentos, incluindo, tal ez, as famosas peas de adrez de Le is (3). Os ikings tam-
bm encontraram grupos de inutes residentes, que parecem ter esculpido imagens dos recm-chegados em madeira (4).

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sociedade comeou a ganhar forma quando esses agricultores focas em larga escala logo depois de sua chegada. Os vikings pro-
levaram suas famlias para tomar posse de qualquer pedao de vavelmente caaram focas em mar aberto dos fiordes usando bar-
terra desocupada onde pudessem plantar grama para alimentar cos e redes para reunir os animais em grupos onde eram alveja-
suas ovelhas e vacas. As fazendas ficaram concentradas em duas dos pelas lanas. Eles tambm comearam a caar renas e mor-
reas no litoral ocidental da ilha: o chamado Assentamento Oci- sas. Explorar esses animais exigia caadas comunitrias por uma
dental, que ficava cerca de 800 km ao sul dos campos de caa de substancial fora de trabalho, com estreita coordenao entre o
morsas na Baa de Disko, e o Assentamento Oriental, que ficava chefe e os demais caadores. Os vikings estavam em posio favo-
mais 500 km ao sul do Assentamento Ocidental. rvel para adotar essa nova prtica, tendo trabalhado em arran-
Runas descobertas em Vatnahverfi, perto do ponto mais ao jos semelhantes nas fazendas. A organizao das fazendas forne-
sul da Groenlndia, ajudaram os arquelogos a comporem um cia a estrutura para a administrao eficaz do trabalho de caa
quadro de como eram esses assentamentos. Vatnahverfi parece e dos recursos alimentares. A caa comunitria, assim como a
ter sido uma das mais ricas reas rurais no Assentamento Orien- mudana nas prticas pecurias, tornou-se uma adaptao nica
tal. O terreno ali se estende como dedos para o oceano. Alm des- ao ambiente da Groenlndia.
sas praias estreitas e pedregosas, a grama recobre a terra, forne- Os vikings no criaram essas estratgias do nada. Suas ino-
cendo bom pasto para as ovelhas hoje, como fazia no tempo dos vaes parecem ter surgido da experincia que levaram com eles
vikings. Das antigas construes s restaram pilhas de pedras da Islndia e da Escandinvia. Ecologistas chamam esse corpo de
cobertas de musgo. Sua disposio mostra que as fazendas eram expertise de conhecimento ecolgico tradicional, a srie de com-
erguidas como outras na Escandinvia e na Islndia, com a edifi- portamentos e tecnologias que os povos aprimoraram por gera-
cao principal no centro do melhor pasto cercada por pastagens es por meio do contato com o ambiente. A caa de focas era pra-
menos desejveis e construes menores onde as pessoas podiam ticada no Mar Bltico e na Islndia, mas aquelas focas pertenciam
viver quando levavam o rebanho para pastar em diferentes luga- a uma espcie diferente das que eram caadas na Groenlndia. Os
res da fazenda. Uma equipe de escavao chefiada por Konrad vikings podem tambm ter ganhado experincia com a caa de
Smiarowski, doutorando do Hunter College, identificou 47 herda- morsas na Islndia. Nos dois casos, os colonos tiveram de adaptar
des organizadas em torno de oito fazendas em Vatnahverfi. suas tcnicas s circunstncias extraordinrias da Groenlndia.
As fazendas vikings cobriam reas to extensas que precisa- Enquanto os trabalhadores tentavam descobrir como encher
vam da construo de estruturas menores para servir de abrigos suas barrigas, a elite dos proprietrios de terras buscava meios
temporrios para o rebanho e espao para ordenhar vacas, tos- de ampliar sua influncia. Uma forma de fazer isso era construin-
quiar ovelhas e processar leite e carne. A equipe de Smiarowski do igrejas e consagrando campos para cemitrios. Os fazendei-
descobriu 86 desses abrigos nessa regio nos ltimos 12 anos. ros estavam dispersos pelo local, ento locais centrais de encontro
Essas descobertas e as de outras equipes sugerem que a comu- eram cruciais para a vida social dos assentamentos. De alguma
nidade agrria de Vatnahverfi abrigava entre 255 e 533 pessoas. forma, eles tinham de ser uma comunidade, comenta Smia-
As fazendas determinaram a hierarquia que deu as bases para rowski. As igrejas se tornaram uma maneira de reunir as pessoas
a sociedade da Groenlndia, explica Thomas McGovern, arque- para casamentos, funerais e servios regulares.
logo tambm do Hunter College que tem trabalhado em stios l As igrejas tambm tinham uma outra funo. Em 1123, a Igreja
e em outros locais no Atlntico Norte desde os anos 1970. A eli- Catlica nomeou um padre chamado Arnald como bispo da Gro-
te viking dona da terra dependia da permanncia das pessoas ali, enlndia. Ela estava comeando a olhar a Groenlndia como um
acrescenta Jette Arneborg, do Museu Nacional da Dinamarca, em recurso econmico.
Copenhague. Os proprietrios de terra, desta forma, abrigavam as Enquanto o comrcio entre a Europa e a Groenlndia aumen-
famlias dos agricultores e concediam acesso aos pastos em troca tava, os colonos independentes comearam a buscar formas de
de parte dos lucros dos produtos pecurios. As colnias prospera- melhorar essa relao. Eles solicitaram ao rei da Noruega Haakon
ram sob esse sistema, crescendo para cerca de 3 mil residentes em IV que tornasse a Groenlndia parte de seu reino. Os groenlande-

Q
seu pico por volta de 1200 a 1250, conta Arneborg. ses pagariam impostos Noruega e o rei garantiria que um navio
chamado Greenland Carrier viajaria todos os anos Groenln-
UANDO AS CONDIES CLIMTICAS PIORARAM, COMO dia para comprar e vender bens. Essas misses comerciais manti-
aconteceu logo depois da chegada dos colo- veram a Groenlndia como parte da cultura e da economia euro-
nos, os vikings da Groenlndia enfrentaram os peias. Como resultado, os vikings tinham as mesmas roupas e o
desafios de frente. Fornecer feno suficiente para mesmo tipo de pentes de duplo lado que os europeus usavam,
porcos e gado bovino durante o inverno estava Arneborg diz.
ficando difcil na Groenlndia, ento os fazendeiros mudaram a Navios mercantes como o Greenland Carrier talvez tambm
criao principalmente para ovelhas. Em locais onde a pastagem tenham transportado bens e pessoas para a Igreja Catlica. Em
era especialmente difcil, eles criavam cabras, animais que podem 1341, o bispo de Bergen, na Noruega, enviou um padre Groen-
comer quase tudo. O leite das ovelhas e das cabras substituiu o lei- lndia para fazer uma lista de igrejas locais e suas propriedades. O
te de vaca como alimento primordial em sua dieta. Eles criavam Vaticano admirava ornamentos em marfim e o bispo pode ter sido
somente uns poucos porcos e vacas, apenas para festejos e consu- encarregado de manter as linhas de abastecimento abertas entre
mo pelos ricos. a Groenlndia e o Vaticano, explica Mikkel Srensen, especialista
Como as fazendas no eram produtivas o suficiente para sus- em histria e arqueologia inute da Groenlndia na Universidade
tentar todos os colonos, as pessoas tiveram de encontrar fon- de Copenhague. Arneborg, de seu lado, acredita que a Igreja esta-
tes totalmente novas de alimentos. Os depsitos de lixo deixa- va mais interessada no dinheiro do comrcio de marfim do que no
dos pelos groenlandeses mostraram que eles comearam a caar prprio marfim. De todo jeito, os reis noruegueses controlavam o

32 Scientific American Brasil, Agosto 2017


D E S C O B E R TA S

Laos que unem


Vikings comearam a se agrupar na Groenlndia a partir da Islndia e outras partes da Europa por volta do ano 1000 d.C., estabelecendo duas
colnias, o Assentamento Oriental e o Assentamento Ocidental. Mas eles mantiveram relaes polticas e culturais com a Europa. Eles formaram
fazendas em locais como Vatnahverfi no estilo das fazendas vikings encontradas na Escandinvia e na Islndia, cultivavam pasto para suas vacas e
ovelhas. Mas eles tinham de encontrar novas fontes de alimentos e renda. Eles comearam a caar focas e renas. E levaram pequenos barcos pela
costa Oeste acima at a Baa de Disko para caar morsas por suas presas de marfim. Os vikings exportavam marfim e peles para a Europa por um
navio enviado de Bergen, na Noruega. Esse acerto funcionou bem at que os bens de luxo caram em desuso nos mercados europeus.

G ROENL NDIA
REA
DE CAA
DE MORSAS
Baa de Disko

ISL NDIA
Assentamento Ocidental Assentamento Oriental ILHAS Bergen, Noruega
FARO

Vatnahver

Rotas de exportaes da Groenlndia

que era praticamente a nica fonte de oferta de marfim na Euro- difceis e sabiam que os temporais ocorrem e, algumas vezes, as
pa naquele tempo. A relao parece ter sido muito lucrativa para pessoas se afogam, opina.
todos por mais de um sculo. Restos de marfim das morsas foram Contrariando as anlises de que eles ficaram presos em suas
encontrados em stios de oficinas medievais da Escandinvia at a prticas, os vikings parecem ter lidado com esses desafios de for-
Irlanda e Alemanha, mostrando que a demanda por esse material ma eficaz. Ossos achados em montes de lixo de fazendas medie-
se entendia pela Europa. vais em toda a Groenlndia indicam que eles mudaram para se
Mudanas drsticas estavam a caminho, no entanto. Anlises concentrar ainda mais estreitamente na criao de ovelhas e
de sedimentos do fundo do mar no Noroeste da Islndia mostram cabras, que so resistentes o suficiente para sobreviverem com
que, por volta de 1250, o clima comeou a entrar em uma fase cha- quantidades menores de pasto. Mesmo assim, pequenos proprie-
FONTES: ROWAN JACKSON E ANDREW DUGMORE Universidade de Edimburgo (rotas comerciais)

mada de Pequena Era do Gelo. As temperaturas caram e o siste- trios de terra lutavam para alimentar seus rebanhos. Eles tinham
ma climtico se tornou errtico. Os temporais ficaram mais fre- de se tornar arrendatrios de grandes fazendeiros ou vender suas
quentes e severos. A longa viagem ocenica entre a Islndia e a terras e descobrir um novo meio de sobrevivncia. Ento, eles se
Groenlndia se tornaria mais traioeira e teria desencorajado os tornaram arrendatrios. E isso funcionou por algum tempo.
caadores de fortuna que no queriam colocar seus navios em ris- Mas o mundo tambm mudava de formas que no envolviam
co, resume McGovern. o clima. Pode ter sido a complexa interao dessas mudanas que
Embora as colnias vikings da Groenlndia tenham dura- condenou as colnias vikings da Groenlndia.
do mais 200 anos, muitos acadmicos veem o incio da Pequena Talvez mais importante, eventos mundiais comearam a cor-
Era do Gelo como o comeo de seu fim. Relutantes ou incapazes roer seu comrcio de marfim das morsas. Guerras entre cristos
de mudar com os tempos, os assentamentos comearam a ruir, e muulmanos no Oriente Mdio tinham ajudado a Groenlndia
supem esses especialistas. a tornar-se um grande participante do comrcio de marfim. As
Mas McGovern no est convencido de que o mau tempo guerras levaram ao aumento da pirataria no Mar Mediterrneo,
tenha sido suficiente para acabar com as colnias. Nos anos 1250 que obstruram o transporte de marfim de elefantes da frica e
os groenlandeses estavam l havia muitos anos e nem sempre foi sia para a Europa. Quando o marfim de elefantes ficou mais raro
quente e aconchegante, portanto eles haviam passado por tempos e valioso na Europa, a viagem de 2.800 km para a Groenlndia em

Mapa de Michael Newhouse www.sciam.com.br 33


RUNAS DE PEDRA da igreja Hvalsey que, se estima, foi construda no sculo 14 em terras vikings no Assentamento Oriental.

busca do marfim das morsas transformou-se em uma opo mais populao da Europa morreu por causa da peste. A Noruega foi
lucrativa do que as rotas mais curtas, mas mais perigosas para a particularmente atingida, perdendo cerca de 60% de sua popu-
frica e sia. Quando as guerras no Oriente Mdio se atenuaram lao. O pas no enviou seus navios depois de 1369, o que impe-
e o comrcio com frica e sia foi reaberto, a Europa pode ter des- diu que os vikings vendessem suas peles e marfins de morsa, cuja
viado sua ateno da Groenlndia, diz Sren Sindbk, professor demanda j estava em declnio.
de arqueologia medieval da Universidade Aarhus, na Dinamarca. O vikings da Groenlndia tambm enfrentaram novas ameaas
Ao mesmo tempo, mudanas nas modas podem ter reduzido domsticas: invasores do Norte. Quando Erik, o Ruivo, estabeleceu
a demanda por marfim e outros artigos de luxo. O marfim passou sua fazenda, parecia que nenhum outro povo havia vivido na Gro-
de material raro e requisitado para joias e outras decoraes a des- enlndia. possvel que um grupo conhecido como paleoesquim,
prezado pelas elites a partir dos anos 1200. Essa tendncia parece ou povo de Dorset, tambm tenha habitado ali, mas teriam ficado
coincidir com uma mudana no tipo de comrcio que interessa- bem ao Norte da Baa de Disko, longe das vistas em territrio des-
va aos mercados europeus, diz McGovern. O comrcio mudou de conhecido, no que diz respeito aos vikings. Mais tarde, nos anos
bens muito prestigiados como ouro, peles e marfim para produtos 1300, um grupo inute que acadmicos denominam thule comeou
em massa de baixo valor como fardos de peixe seco e rolos de teci- a descer pelo litoral em barcos cobertos de pele chamados umiaks
do de l que a Islndia produzia. O marfim de morsa s tem valor em direo aos campos de caa de morsas dos vikings.
se as pessoas assim o disserem, afirma ele. Em contraste, peixes e Os thules se especializaram em caa s baleias, e seus umiaks
ls so alimentos e roupas para abastecer exrcitos. organizaram a sociedade thule da mesma forma que as fazendas
Essa transio marcou uma mudana fundamental no fun- organizaram os vikings. Cada umiak podia acomodar cerca de 15
cionamento da economia europeia. Os groenlandeses ficaram pessoas, e o dono do barco assumia o papel de lder, explica Sren-
presos na velha economia, observa McGovern. Os islandeses sen. Eles provavelmente estavam em misses baleeiras quando
estavam bem mais posicionados para aproveitar a expanso do encontraram os vikings caando na Baa de Disko. Um documen-
CINDY HOPKINS Alamy

comrcio de bens de massa e foi isso o que eles fizeram. to do sculo 14 intitulado Descries da Groenlndia indica que o
O surto da Peste Negra na Europa pressionou ainda mais a encontro no foi pacfico: os vikings receberam os thules com sua
economia da Groenlndia. Entre 1346 e 1353, quase um tero da tpica diplomacia, ou seja, os atacaram.

34 Scientific American Brasil, Agosto 2017


ter as caadas e fazer o que tinha funcionado to bem quando as
colnias foram instaladas, e continuaram fazendo isso at o fim.
Ricos donos de terras continuaram renovando suas igre-
jas praticamente at que as colnias foram abandonadas, o que
pode ter sido parte do problema. Se algum investe em constru-
es, em uma igreja, isto o fixa a um local, diz Marten Scheffer,
especialista em matemtica aplicada da Universidade Wagenin-
gen, na Holanda. Scheffer dedicou parte de sua carreira a modelos
matemticos das causas de colapsos das sociedades. Quando uma
sociedade se aproxima de um ponto de ruptura, ela se recupe-
ra mais lentamente das adversidades, mesmo das pequenas. No
importa o que confira resistncia sociedade alimentos, rique-
za, tecnologia , isso se torna escasso, dificultando a adaptao.
Mas outra coisa que desacelera a recuperao o que Scheffer
chama de efeito dos custos irrecuperveis construes e equi-
pamentos que permitem que a sociedade obtenha o que neces-
sita do ambiente. No caso dos vikings, isso no s significaria os
barcos e equipamentos de caa de focas e morsas, mas tambm
incluiria as partes de sua cultura que os ligavam Europa, como
novas igrejas. Os esforos gastos na construo e equipamentos
levam em conta a probabilidade de as pessoas as deixarem para
trs mesmo quando economicamente faria sentido faz-lo. Eles
tendem a ficar muito tempo no mesmo lugar e, no fim, eles par-
tem, diz Scheffer. Isso leva muito tempo e, ento, eles partem em
massa. Ele acredita que isso pode ter acontecido com os vikings.
As colnias teriam outras opes que poderiam ter permiti-
do sua permanncia? Alguns especialistas sugerem que os vikings
poderiam ter adotado um tipo de vida mais semelhante ao inu-
te. Afinal, os inutes conseguem viver na Groenlndia at hoje.
Mas esse argumento ignora a razo pela qual os vikings foram
para l. Se eles quiseram fazer fortuna vendendo presas de mor-
sas aos europeus, a viso inute de se tornar capito de seu pr-
prio umiak talvez no tivesse o mesmo apelo para eles. Eles esta-
vam na periferia de todo o sistema europeu, portanto era muito
importante estar conectado ao comrcio, diz Srensen. Eles que-
Apesar de toda a sua agressividade, os vikings podem ter ter- riam ser verdadeiros europeus ali. Trata-se muito de uma questo
minado a batalha do lado derrotado. Por volta de 1350, eles deixa- de identidade.
ram o Assentamento Ocidental, que ficava mais perto da rea de Em meados dos anos 1400, as opes podem ter se esgota-
caa da Baa de Disko do que o Assentamento Oriental. Por que do. Mesmos os donos das maiores fazendas e as melhores igrejas
eles abandonaram ali 80 fazendas e o acesso mais fcil s morsas teriam de se perguntar: se eles tinham de enfrentar a morte por
continua aberto para debate. Mas, segundo McGovern, todas as fome ou combate, por que no empacotar seus pertences, pegar
referncias que as sagas fazem aos inutes na Groenlndia envol- um barco e navegar para a Europa? A resposta pode ser que suas
vem combate. Uma razo provvel para os vikings terem deso- perspectivas ali poderiam ser ainda piores: eles estariam retor-
cupado a rea, ento, que eles no conseguiam se defender dos nando para uma Europa que era parte de um novo sistema eco-
thules invasores. nmico sem espao para caadores de focas e morsas. Os vikings

A
podem ter conquistado a Groenlndia, mas, no fim, foras do
PIORA NO CLIMA, A MUDANA NA POLTICA E NA MODA, A mundo alm de seus litorais gelados podem t-los dominado.
disseminao da peste e a chegada dos invaso-
res formaram um conjunto de problemas que os
vikings nunca tinham visto. Eles estavam em uma PA R A C O N H E C E R M A I S

situao que ia alm de seu tradicional conheci- Was It for walrus? Viking age settlement and medieval walrus ivory trade
mento ecolgico. Como resultado, os groenlandeses enfrentaram in Iceland and Greenland. Karin M. Frei et al. em World Archaeology, vol. 47, no. 3,
decises difceis sobre o que fazer para manter sua sociedade fun- pgs. 439466; 2015.
Vatnahverfi: a green and pleasant land? Palaeoecological reconstructions of
cionando. Eles dobrariam as apostas em suas estratgias testa-
environmental and land-use change. Paul M. Ledger et al. em Journal of the North
das e aprovadas, como caa comunitria, que permitiram que Atlantic, vol. especial 6, pgs. 2946; 2014.
seus ancestrais sobrevivessem ao clima rtico? Ou desenvolve- Critical transitions in nature and society. Marten Scheffer. Princeton University
riam novas adaptaes aos novos desafios que se apresentavam? Press, 2009.
Segundo Arneborg e McGovern, as evidncias arqueolgicas suge- The world of the Vikings. Richard Hall. Thames & Hudson, 2007.
rem que os groenlandeses reorientaram seus esforos para man-

www.sciam.com.br 35
SEM
CINCIA
MARINHA

RUMO
NO
MAR
A acidificao dos oceanos pode alterar
o comportamento de organismos
subaquticos de maneiras desastrosas
Danielle L. Dixson

36 Scientific American Brasil, Agosto 2017


O
S PEIXES-PALHAO VIVEM TODA SUA VIDA ADULTA ANINHADOS NOS BRAOS PROTETORES
de uma nica anmona-do-mar num recife de coral. Entre o nascimento e a
vida adulta, no entanto, os peixes precisam completar uma jornada perigo-
sa. Depois da incubao, uma larva uma verso minscula parcialmente
formada de um peixe adulto nada para fora do recife em direo ao mar
aberto para terminar seu desenvolvimento, teoricamente longe de preda-
dores. Depois de um perodo de crescimento de 11 a 14 dias, o jovem peixe
est pronto para nadar de volta para os recifes e escolher a anmona que ser seu lar.

Mas, medida que ele se aproxima precisa atravessar uma pa- locais como os recifes de coral, onde os predadores e presas povoam
rede de bocas todos os tipos de animais, como bodies e peixes- densamente um hbitat limitado e complexo, a seleo natural fa-
-leo, se escondem entre os recifes prontos para atacar os mins- vorece fortemente espcies que se esquivam dos predadores. Qual-
culos peixes. Para navegar em segurana e com sucesso impor- quer ruptura dessa habilidade poderia ter consequncias catastr-
tante identificar os odores dos predadores e evitar ser apanhado. ficas para todo o ecossistema.
O sentido do olfato pura qumica em ao: detectar, proces- Se a gua cada vez mais cida realmente interfere no sentido
sar e responder s molculas na gua. Mesmo uma pequena mu- do olfato de peixes-palhao, ela pode tambm interferir em outros
dana na qumica ocenica poderia desestabilizar esse delicado sentidos e comportamentos. E embora nossos estudos se restrinjam
mecanismo de sobrevivncia. Os cientistas comearam a se preo- a uma espcie de peixe-palhao, o odor crtico para um nmero
cupar com o que poder acontecer quando a gua se tornar mais enorme de organismos marinhos. No mnimo, confuso e desorien-
cida, uma tendncia mundial medida que os oceanos absorvem tao poderiam significar mais um estressor sobre os peixes j de-
cada vez mais CO2 da atmosfera. Em 2010 meus colegas e eu co- safiados pelo aumento da temperatura da gua, pesca predatria e
locamos 300 larvas recm-geradas de peixe-palhao num tanque mudana de suprimento de alimentos. Alm disso, se os habitantes
com gua do mar em nosso laboratrio e as monitoramos por 11 de muitos oceanos comearem a se comportar de forma estranha,
dias. Quando injetamos o odor de um peixe amigvel, elas no re- cadeias alimentares inteiras, padres de migrao e ecossistemas
agiram. Mas, quando injetamos o cheiro de um predador (baca- podero colapsar. Embora a cincia ainda seja nova, os resultados
lhau das pedras), elas se afastaram. parecem estar se alinhando: a acidificao ocenica est confundin-
Posteriormente repetimos o experimento com 300 novas lar- do a mente dos peixes.
vas dos mesmos pais, mas dessa vez com gua mais cida que
foi ajustado para o nvel esperado em certas partes dos oceanos O DESAFIO CIDO
do planeta por volta de 2100 se as tendncias atuais se mantive- Desde a Revoluo Industrial a concentrao de CO2 da atmos-
rem. Os jovens peixes se desenvolveram normalmente, e nenhum fera aumentou de 280 partes por milho (ppm) para somente um
evitou o odor do predador. Na verdade, eles preferiram nadar na pouco mais de 400 ppm atualmente. Esse nmero seria muito
direo do odor perigoso, em vez de na gua natural. Quando maior sem os oceanos, que absorvem de 30% a 40% do CO2 envia-
introduzimos simultaneamente odores de predadores e de no do para a atmosfera. Mais CO2 dissolvido na gua do mar produz
predadores os peixes pareciam indecisos, e passaram o mesmo reaes qumicas que aumentam a acidez medida como pH bai-
tempo nadando em direo a um cheiro e ao outro. Eles podiam xo. As guas superficiais esto aproximadamente 30% mais cidas
sentir os sinais qumicos, mas no conseguiam identificar o signi- hoje que no final dos anos 1800, e se as tendncias das emisses de
ficado desses sinais. A inverso de comportamento foi surpreen- carbono atuais se mantiverem at o fim do sculo, elas podero es-
dente e preocupante. Acreditvamos que a acidificao poderia tar aproximadamente 150% mais cidas nessa poca.
afetar ligeiramente a sinalizao qumica, mas nunca o suficien- CO2 adicional na coluna de gua quebra a calcita e a aragoni-
te para induzir um peixe a nadar em direo morte iminente. ta dois minerais que so blocos de construo essenciais para as
Todos os animais cumprem trs tarefas bsicas na vida: procu- conchas e esqueletos externos de certos animais marinhos. Maris-
rar comida, se reproduzir e evitar virar alimento no processo. Em cos, ourios e plncton criados por outros pesquisadores em tan-

EM SNTESE

guas ocenicas cada vez mais cidas criadas pelas res e caranguejos criados ou expostos a gua alta- adaptar a um aumento gradativo de acidez, ou se
mudanas climticas podem estar destruindo com- mente cida podem no conseguir sentir o odor de eles so capazes de transmitir traos adaptados para
portamentos importantes que seres marinhos preci- predadores ou encontrar alimento ou podem vagar seus descendentes. Testes em recifes vulcnicos que
sam manter para sua sobrevivncia. atipicamente em locais perigosos. so naturalmente mais cidos podem fornecer algu-
Experimentos mostram que peixes-sargento, tuba- No est claro se os habitantes marinhos podem se mas respostas.

Ilustrao de Pascal Campion www.sciam.com.br 37


ques com gua com nveis mais altos de CO2 tiveram um desenvol- Danielle L. Dixson professora assistente de polticas e
vimento incompleto ou as conchas e esqueletos deformados. No cincias marinhas da Universidade de Delaware. Ela estuda
entanto, os cientistas acreditam que peixes e outros organismos como as mudanas climticas e a degradao de hbitats
afetam o comportamento de organismos marinhos.
desprovidos de concha podero escapar das garras da acidificao
ocenica, em parte porque pesquisas anteriores realizadas na d-
cada de 1980 mostraram que certos animais tinham uma capaci-
dade extraordinria de regular sua qumica interna aumentando
ou diminuindo as quantidades de bicarbonato e cloro de seus cor- ocenica em 2050 e o grupo 3 em gua que simulava as condies
pos. Esses estudos, no entanto, s analisaram a fisiologia se o dos oceanos em 2100. Entrementes, crivamos um suco de lula
animal sobreviveria gua acidificada. Manter as funes normais concentrado obtido encharcando as lulas em gua do mar e depois
como encontrar alimento e evitar perigos um desafio diferente. espremendo a gua com um tecido fino. (Tubares adoram lulas.)
Nosso grupo de pesquisa foi um dos primeiros a atacar a prxima Depois de cinco dias deixamos cada tubaro nadar num tan-
questo lgica: a acidificao pode mudar o comportamento dos que em forma de calha com dez metros de comprimento por dois
seres marinhos? de largura. A acidez era semelhante da piscina na qual eles ti-
nham sido mantidos. O tanque tinha dois bocais num dos lados
ODORES E SONS CONFUSOS e cada um soltava uma coluna moderada de gua da frente para
Os experimentos que realizamos com os peixes-palhao mos- trs. Uma coluna flua ao longo do lado esquerdo do tanque e a ou-
tram fortes indcios de que a acidificao de fato alterou o com- tra do lado direito. Depois que os tubares comearam a nadar, in-
portamento dos animais. Outros testes desde ento tm se mostra- troduzimos um pouco do suco de lula por um dos bocais. Depois,
do igualmente preocupantes. Como muitos predadores dos recifes invertemos os fluxos, caso os tubares tivessem uma preferncia
normalmente se alimentam durante o dia, jovens peixes-palhao natural de nadar ao longo de um dos lados.
que voltam para o coral em busca de sua anmona tendem a se Cmeras sobre os tanques e um software de monitoramento re-
aproximar noite, quando os predadores esto dormindo, prefe- gistraram o que aconteceu depois. Os tubares do grupo 1 gua
rivelmente sob um luar suave. Mas no fcil para um peixe com do mar normal passaram mais de 60% do tempo nadando na
menos de um centmetro navegar no escuro, no mar aberto de as- correnteza com cheiro de suas lulas da hora do almoo. Os tuba-
pecto praticamente uniforme, por isso eles usam sons produzidos res do grupo 2 tiveram o mesmo comportamento. Mas os tuba-
pelos corais e seus habitantes para gui-los. Um ano depois de um res do grupo 3 evitaram claramente o odor da presa, passando
experimento com odores, analisamos se a gua em processo de aci- menos de 15% do tempo na gua tratada com cheiro de lula. Obser-
dificao poderia interferir tambm na audio. vamos outras diferenas. Os tubares do grupo 1 insistentemen-
Testamos peixes-palhao jovens colocando-os dentro de uma te colidiam e mordiam um tijolo colocado na frente do bocal por
caixa num tanque cheio de gua do mar. Depois, introduzimos du- onde saa a gua de lula. Eles o atingiram duas vezes mais que os
rante o dia, por um lado da caixa, rudos dos corais (que eles natu- tubares do grupo 2 e trs vezes mais que os tubares do grupo 3.
ralmente deveriam evitar). Os peixes passaram quase trs quartos surpreendente ver um predador perder o interesse e at evi-
do tempo prximos do lado oposto da caixa, longe da fonte de ru- tar o odor do que seu alimento. Peixes de recifes testados em
dos. Mas quando testamos novos peixes que tinham passado suas outros experimentos parecem mostrar um comportamento simi-
curtas vidas em gua 60% mais cida nvel esperado em ocea- larmente estranho. Dada a importncia dos tubares como preda-
nos rasos por volta de 2030 eles no estavam assim to caute- dores do topo de ecossistemas e sua conhecida vulnerabilidade a
losos. Mais da metade, na verdade, foi atrada pelo som diurno. mudanas ambientais, a acidificao ocenica pode ser uma gran-
Repetimos o experimento mais duas vezes, com gua 100% de ameaa para esses animais e os ecossistemas em que habitam.
mais cida e 150% mais cida nveis que se espera sejam atingi-
dos por volta de 2050 e 2100 respectivamente. Nos dois casos, os NO BOM SER OUSADO
peixes-palhao passaram mais de 60% do tempo prximos do al- sempre delicado afirmar que comportamentos observados
to-falante que reproduzia rudos diurnos do coral. Tambm reali- no laboratrio tambm devem ser observados na Natureza. Por
zamos outros testes para garantir que nenhum deles tivesse de- isso, fomos at uma lagoa salgada perto de uma das ilhas ao nor-
ficincia auditiva. Em condies de alta acidez, os peixes-palha- te da Grande Barreira de Corais para examinar outro trao: ousa-
o no conseguiram identificar o significado dos sinais auditivos. dia. Estudamos como jovens peixes-sargento capturados na natu-
Habitantes de oceanos com olfato deturpado talvez no pos- reza reagiriam aos odores de predadores depois de exp-los a gua
sam se esquivar apropriadamente dos predadores. Mas o efeito cida durante quatro dias. No tanque em forma de calha, cerca de
oposto tambm poderia ocorrer: eles poderiam no ser capazes metade dos peixes mantidos em gua com a acidez esperada para
de encontrar alimentos eficientemente. 2050 foram atrados pelo fluxo de gua do predador e metade no,
Tubares so conhecidos por seu olfato privilegiado, que usam mas 100% dos que foram mantidos em gua com acidez prevista
para navegar, localizar parceiros e perseguir presas. Considerando para 2100 foram atrados pelo odor do predador.
a confuso sensorial que observamos nos peixes-palhao, nos per- Tatuamos os peixes-sargento para que pudssemos identific-
guntamos como os tubares reagiriam em guas acidificadas. Co- -los e depois os soltamos num pequeno recife que construmos na
letamos 24 galudos malhados lisos na costa perto de Woods Hole, lagoa. Os peixes que foram mantidos na gua mais cida apresen-
Massachusetts. Dividimos em trs grupos e cada um foi mantido taram comportamento de risco: em vez de permanecerem perto
em pequenas piscinas. Os tubares do grupo 1 simplesmente nada- de um coral protetor nadaram para muito mais longe e com mui-
ram pela gua retirada do oceano prximo de Woods Hole. Coloca- to mais frequncia que os peixes que foram mantidos na gua do
mos os tubares do grupo 2 em gua tratada para simular a acidez mar normal. Depois que um pesquisador mergulhador assustou-

38 Scientific American Brasil, Agosto 2017


-os obrigando-os a voltar para o coral, os peixes que foram manti- se recuperar. Prever como um organismo pode se adaptar difcil,
dos nos nveis mais altos de CO2 voltaram mais rpido que os ou- e prever at que ponto os ecossistemas complexos podem se adap-
tros. E com certeza, os mais ousados expostos gua do mar com tar praticamente impossvel.
acidez prevista para 2100 apresentaram uma probabilidade nove Os experimentos, na verdade, indicam algumas tendncias co-
vezes maior de serem atacados por um predador. Os peixes expos- muns. O olfato foi alterado em tubares adultos, e tambm em jo-
tos gua do mar com acidez esperada para 2050 no foram to vens peixes-palhao, por exemplo. Tambm parece haver um pon-
ousados, mas ainda nadaram a esmo e mostraram uma probabili- to crtico para os peixes de recifes de coral: cerca de metade mos-
dade cinco vezes maior de morrer. trou mudana de comportamento quando a acidez chegou aos
Os cientistas costumam usar peixes de recifes de corais em ex- nveis esperados para 2050, mas praticamente todos exibiram es-
perimentos porque seu comportamento mais consistente e fcil ses comportamentos em nveis previstos para 2100.
de observar. Mas experimentos com outros seres marinhos tam- No entanto, devemos indagar se a taxa de acidificao nos
bm mostraram comportamentos perturbadores. Pesquisadores experimentos um fator complicador. A maioria dos estudos
do Instituto de Pesquisas do Aqurio da Baa de Monterey, Cali- envolveu habituar os peixes ou cri-los em condies elevadas
frnia, criaram caranguejos eremitas em guas altamente cidas. de CO2 durante alguns dias ou meses um perodo extrema-
Os caranguejos no mostraram o aumento significativo de ousadia mente curto. Os animais no tiveram uma oportunidade realis-
observado nos peixes-sargento, mas demoraram muito mais tem- ta de se aclimar ou se adaptar. Precisamos investigar os peixes
po que o normal para reaparecer em suas cascas quando foram em seu hbitat, medida que os oceanos tornam-se gradativa-
atacados por um predador simulado (um polvo de brinquedo). mente mais cidos.
Investigadores no Chile trabalharam com o abalone chileno, um Para entender melhor, os cientistas se voltaram para os recifes
molusco que se prende s rochas em costas com arrebentao de prximos de infiltraes de gs vulcnico, onde o CO2 vaza do solo
ondas. Normalmente quando fortes ondas desalojam os abalones dos recifes em locais bem determinados, acidificando naturalmen-
de suas posies, eles se prendem de novo para no navegarem te a gua adjacente a nveis, que segundo as previses, seriam si-
deriva e serem facilmente apanhados por predadores. Quando au- milares aos de 2100. Quando visitamos recifes vulcnicos em Pa-
mentamos os nveis de CO2 em cerca de 50%, alguns abalones de- pua Nova Guin, descobrimos que peixes-sargento jovens num lo-
moraram menos tempo que o normal para se proteger. Alguns que cal de infiltrao de gs eram atrados pelo odor do predador, no
foram mantidos em gua mais cida se perderam pelo caminho en- distinguiam entre os odores de predadores e de no predadores, e
quanto tentavam evitar predadores de caranguejos que espreita- apresentavam comportamento arriscado as mesmas peculiari-
vam pelos arredores, e alguns, na verdade, se voltaram na direo dades apresentadas pelos peixes de laboratrio. Em recifes sem in-
das pinas dos caranguejos, em vez de se afastar delas. filtrao, as mesmas espcies de peixe-sargento detectavam preda-
Claramente, a acidificao dos oceanos est interferindo na dores, se esquivavam deles e se arriscavam menos.
mente dos animais. Mas como? Alguns pesquisadores se pergun- Tambm no sabemos se os comportamentos podem ser trans-
tam se as pistas em si cheiros e sons so alteradas pela varia- mitidos para as futuras geraes. As pesquisas esto apenas co-
o de pH. Mas experimentos mostram que os peixes podem iden- meando. No entanto, um estudo revelou que a prole de peixes
tificar pistas qumicas em guas com alta concentrao de CO2. de recifes de coral criada em condies de altas concentraes de
Outros especulam que o comportamento alterado pode ser uma CO2, no mostrou nenhuma facilidade para se adaptar a nveis
resposta ao estresse em peixes que esto tentando regular a mu- mais altos.
dana de acidez em seu corpo, mas isso requer mais investigao. A acidificao ocenica apenas um dos estressores. Pesca ex-
Levados pela intuio, Phillip L. Munday, da Universidade Ja- cessiva, aumento da temperatura da gua, maior poluio, e elimi-
mes Cook, na Austrlia, e eu decidimos colaborar com Gran E. Nil- nao de predadores do topo da cadeia alimentar como os tuba-
sson, da Universidade de Oslo. Nilsson suspeitava que a acidifica- res e destruio de hbitats, tudo isso prejudica o oceano. At que
o interferia com o neurotransmissor GABAA, que modula sinais questes locais, como remoo de barbatanas de tubares, sejam
do crebro e do sistema nervoso de muitos animais, incluindo os banidas pelas autoridades, danos mais amplos como aumen-
seres humanos. Entre outras tarefas o GABAA inibe sinais ao con- to da temperatura e acidificao podem ser a gota dgua para
duzir cloro e bicarbonato atravs das membranas de clulas ner- muitas espcies. Enquanto examinamos como os estressores afe-
vosas. Quando os peixes so expostos a elevados nveis de CO2, eles tam fisicamente os habitantes marinhos, tambm podemos inves-
excretam o cloro do corpo para acumular mais bicarbonato uma tigar como esses fatores podem afetar as capacidades cognitivas
tentativa de minimizar a mudana de pH dentro do corpo. Essa al- que so igualmente importantes para a sobrevivncia.
terao qumica, no entanto, excita os receptores do GABAA, dani-
ficando os sinais. Quando peixes expostos a altas concentraes de
CO2 so posteriormente colocados em gua com gabazina com- PA R A C O N H E C E R M A I S

posto qumico que reduz a excitao o comportamento normal Odor tracking in sharks is reduced under future ocean acidification conditions.
recuperado depois de apenas 30 minutos. No entanto, a sensibi- Danielle L. Dixson et al. em Global Change Biology, vol. 21, No. 4, pgs. 14541462;
abril de 2015.
lidade do GABAA pode diferir entre as espcies, por isso, no est
Behavioural impairment in reef fishes caused by ocean acidification at CO2
claro se essa a causa primria das mudanas de comportamento. seeps. Philip L. Munday et al. em Nature Climate Change, vol. 4, pgs. 487492; jun-
ho de 2014.
OS PEIXES CONSEGUEM SE ADAPTAR?
D E N OSSOS A RQU I VOS
A principal pergunta que me fazem quando falo sobre a acidi-
ficao dos oceanos : quais so as chances de que a vida marinha Perigos da acidificao do oceano. Scott C. Doney; ed. 47; abril de 2006.
possa se adaptar? A natureza tem uma capacidade espantosa de

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POR UMA IA
A P R E N D I Z AG E M
DE MQUINA

MAIS HUMANA

40 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Ilustrao de Simon Prades


A inteligncia artificial vem passando por uma
renovao desde que comeou a incorporar nosso
conhecimento sobre como as crianas aprendem
Alison Gopnik

www.sciam.com.br 41
Alison Gopnik professora de psicologia e professora
associada de filosofia da Universidade da Califrnia
em Berkeley. Suas pesquisas focam como as crianas
pequenas aprendem sobre o mundo que as cerca.

S E VOC PASSA MUITO TEMPO COM CRIANAS TENTADO A SE PERGUNTAR


como esses jovens seres humanos aprendem tanto e to depressa. Per-
correndo um longo caminho de volta at Plato, os filsofos tambm
tm se feito a mesma pergunta, mas sem achar respostas satisfat-
rias. Meu neto de cinco anos, Augie, sabe muito sobre plantas, ani-
mais e relgios, sem falar em dinossauros e naves espaciais. Ele
tambm consegue entender o que as outras pessoas querem, como
elas pensam e como se sentem. E ele utiliza esse conhecimento para classificar o que v e
ouve, e fazer novas previses. Recentemente, ele afirmou, por exemplo, que as espcies recen-
temente descobertas de titanossauro em exibio no Museu Americano de Histria Natural
da Cidade de Nova York so herbvoras, logo, isso significa que ele no assim to assustador.
Porm, tudo o que chega at Augie do ambiente que o rodeia significado desses avanos. Elas foram adotadas, literalmente,
um feixe de ftons que impressionam sua retina e perturbaes do para pressagiar imortalidade ou o fim do mundo, e muito se escre-
ar que repercutem em seus tmpanos. De algum modo o computa- veu sobre as duas possibilidades. Acredito que os desenvolvimen-
dor neural atrs de seus olhos azuis consegue, a partir da informa- tos em IA levaram a esses sentimentos fortes por causa do medo
o limitada de seus rgos sensoriais, fazer inferncias sobre tita- entranhado que sentimos dos quase humanos. A ideia de que as
nossauros comedores de plantas. Uma questo que permanece se pessoas possam criar uma ponte para encurtar a distncia entre
os computadores eletrnicos tambm podem fazer isso. o humano e o artificial sempre foi perturbadora, desde o Golem
Nos ltimos 15 anos, aproximadamente, cientistas da computa- medieval, passando pelo monstro de Frankenstein, at Ava, a sedu-
o e psiclogos vm tentando achar a resposta. As crianas absor- tora robtica fatal do filme Ex-Mquina: instinto artificial.
vem uma grande quantidade de conhecimento com pouco input Mas os computadores realmente aprendem to bem quan-
dos professores ou pais. Apesar dos enormes avanos da intelign- to os seres humanos? Quanto da inflamada retrica revela uma
cia artificial (IA), at os computadores mais poderosos ainda no mudana revolucionria, e quanto apenas espalhafato miditi-
conseguem aprender to bem como um garoto de cinco anos. co? Pode ser difcil acompanhar os detalhes de como os computa-
Entender como o crebro de uma criana realmente funciona dores aprendem a identificar, por exemplo, um gato, uma palavra
e depois criar uma verso digital que funcione eficientemente pronunciada, ou um ideograma japons. Mas, numa anlise mais
ser um grande desafio para os cientistas da computao nas profunda, as ideias bsicas por trs da aprendizagem de mquina
prximas dcadas. Mas, enquanto isso, eles esto comeando a no so to enigmticas quanto podem parecer a princpio.
desenvolver uma inteligncia artificial que incorpore parte do que Uma abordagem tenta resolver o problema comeando com
sabemos sobre como os seres humanos aprendem. um feixe de ftons e vibraes do ar que Augie e todos ns rece-
bemos e que atingem o computador como pixels de uma imagem
ESTE LADO PARA CIMA digital e padres sonoros de uma gravao de udio. Depois ela
Depois da primeira manifestao de entusiasmo nas dcadas procura extrair uma srie de padres dos dados digitais capa-
de 1950 e 1960, a busca pela IA esfriou durante dcadas. Nos lti- zes de detectar e identificar objetos inteiros do mundo que nos
mos cinco anos, no entanto, houve avanos surpreendentes, prin- rodeia. Essa chamada abordagem de baixo para cima se baseia
cipalmente no campo da aprendizagem de mquina, e a IA tor- nas ideias de filsofos como David Hume e John Stuart Mill e psi-
nou-se um dos desenvolvimentos mais proeminentes da tecno- clogos como Ivan Pavlov e B.F. Skinner, entre outros.
logia. Surgiram muitas previses utpicas ou apolticas sobre o Nos anos 1980, cientistas descobriram uma forma engenhosa

EM SNTESE

Como crianas pequenas sabem o que sabem? Especialistas em inteligncia artificial esto estu- Duas estratgias rivais de aprendizagem de mqui-
Essa questo preocupou filsofos e psiclogos por dando os poderes do raciocnio mental de crianas na as duas competindo na tentativa de imitar o
muito tempo e agora preocupa os cientistas da em idade pr-escolar para desenvolver formas de en- que as crianas fazem naturalmente comearam a
computao. sinar mquinas sobre o mundo. transformar a IA como uma disciplina.

42 Scientific American Brasil, Agosto 2017


E S T R AT G I A S O P O S TA S

Dois caminhos para o ressurgimento da IA


Problemas que crianas na faixa dos cinco anos resolvem rapidamente podem confundir at os computadores mais poderosos. A IA
realizou um movimento corajoso nos ltimos anos ao ensinar computadores a aprender sobre o mundo de forma similar como as crian-
as aprendem. A mquina reconhece a letra A ou a partir de informao sensorial bruta abordagem de baixo para cima , ou a par-
tir de pressupostos baseados em conhecimento preexistente abordagem de cima para baixo.

De cima para baixo (aprendizagem profunda) De cima para baixo (mtodos bayesianos)
Exemplos da letra A ensinam um computador Sada: pixel por pixel, Quando se usa mtodos bayesianos, um nico exemplo O sistema acionado
a distinguir padres de pixels iluminados e essa letra se parece com da letra A suficiente para recon ecer exemplos simi- com um exemplo de um novo
escuros para vrias verses da letra. Depois, o conjunto de dados lares. A mquina constri um modelo de letra a par- conceito, suficiente para sustentar
quando a mquina recebe uma nova entrada, brutos de treinamento: tir de sua prpria biblioteca interna de partes, uma srie de tarefas de sada
ela avalia se os pixels coincidem com a portanto, ela um A montando uma figura formada por um ngulo
configurao do conjunto de treinamento, agudo unido por um travesso, um A que pode
confirmando que a letra , de fato, um A. A ento ser usado para identificar vers es ligeira-
aprendizagem profunda uma mente diferentes da letra ou modific la de v rias
verso mais complexa formas.
dessa abordagem. Entrada Entrada

O sistema treinado com


dados brutos (isto , pixels)

a da classificao Sada: Sada: Sada:


de exemplos gerao de anlise das gerao de
de entrada novos exemplos partes do objeto novos conceitos

e irresistvel de aplicar mtodos de baixo para cima para permitir para ajud-lo a aprender coisas novas. Plato e os filsofos racio-
que os computadores caassem padres significativos nos dados. nalistas, como Descartes, acreditavam na aprendizagem de cima
Sistemas chamados conexionistas ou redes neurais se inspi- para baixo, que desempenhou um papel importante no incio da
ram na forma como os neurnios convertem padres de luz em IA. Na dcada de 2000 esses mtodos tambm foram recriados na
sua retina em representaes do mundo que os rodeia. Uma rede forma de modelagem probabilstica ou bayesiana.
RUSLAN SALAKHUTDINOV E JOSHUA B. TENENBAUM, EM SCIENCE, VOL. 350; 11 DE DEZEMBRO DE 2015 (exemplo bayesiano)
FONTE: HUMAN-LEVEL CONCEPT LEARNING THROUGH PROBABILISTIC PROGRAM INDUCTION, POR BRENDEN M. LAKE,

neural faz algo similar. Ela utiliza elementos de processamento Como os cientistas, sistemas de cima para baixo tambm come-
interconectados, semelhantes a clulas biolgicas, para transfor- am formulando hipteses abstratas e amplas sobre o mundo e
mar pixels de uma camada da rede em representaes cada vez ento pressupem como deveriam ser os dados se essas hipteses
mais abstratas um nariz ou um rosto inteiro medida que estiverem certas. Tambm como os cientistas, os sistemas ento
os dados so processados em camadas sucessivamente mais altas. revisam suas hipteses, conforme o resultado de suas previses.
As ideias sobre redes neurais passaram por uma recente revi-
talizao por causa de novas tcnicas chamadas aprendizagem NIGRIA, VIAGRA E SPAM
profunda tecnologia que agora est sendo comercializada pela Mtodos de baixo para cima so, talvez, os mais rapidamente
Google, Facebook e outras gigantes da TI. O poder sempre cres- entendidos, por isso, vamos consider-los primeiro. Imagine que
cente dos computadores o crescimento exponencial da capaci- voc tenta fazer seu computador separar mensagens importantes
dade computacional previsto pela conhecida lei de Moore tam- misturadas a todos os e-mails de spam que chegam sua caixa.
bm contribui para o novo sucesso desses sistemas. E isso ocorre preciso observar que o spam geralmente tem certas caracters-
tambm com o desenvolvimento de conjuntos de dados extrema- ticas: longa lista de destinatrios, endereo de remetente geral-
mente grandes. Com melhor capacidade de processamento e mais mente na Nigria ou na Bulgria, referncias a prmios de US$
dados para digerir, os sistemas conexionistas podem aprender 1 milho, ou talvez uma propaganda do Viagra. Mas as mensa-
com muito mais eficincia que se imaginava. gens legtimas podem parecer iguais. Voc no quer perder o aviso
Ao longo de anos, a comunidade de IA oscilou entre favorecer de que ganhou uma promoo ou recebeu um prmio acadmico.
esses tipos de solues de baixo para cima para a aprendizagem de Se voc comparar exemplos suficientes de spam com outros
mquina e abordagens alternativas de cima para baixo. As abor- tipos de e-mails, notar que s o spam tende a ter elementos que
dagens de cima para baixo alavancam o que um sistema j sabe se combinam de certas formas bvias por exemplo, Nigria, jun-

Ilustrao de Jen Christiansen www.sciam.com.br 43


to com um pretenso prmio de US$ 1 milho, sinaliza problemas. Depois de um treinamento intenso, o computador pode ser capaz
Na verdade, existem alguns outros padres de nvel mais alto, mui- de identificar a imagem de um gato que nunca tenha visto antes.
to sutis, que diferenciam as mensagens de spam das legtimas Mas ele faz isso de formas completamente diferentes das generali-
erros de ortografia e endereos de IP que no so nem um pouco zaes feitas por seres humanos. Como o software do computador
bvios, por exemplo. Se voc pudesse detect-los poderia filtr-los pensa de forma diferente, podem ocorrer erros. Algumas ima-
do spam com grande preciso sem recear no receber um aviso gens de gatos podero no estar rotuladas como gatos, ou ele pode
de que seu pedido de Viagra j foi expedido. incorretamente afirmar que uma imagem um gato, embora seja
A aprendizagem de mquina de baixo para cima pode revelar apenas um borro aleatrio que no enganaria um humano.
pistas relevantes para resolver esse tipo de tarefa. Para isso, a rede
neural precisa ser submetida ao seu prprio processo de aprendi- SEMPRE PARA BAIXO
zagem. Ela analisa milhes de exemplos de gigantescas bases de Outra abordagem da aprendizagem de mquina que transfor-
dados, cada um rotulado como spam ou como e-mail autntico. O mou a IA nos ltimos anos funciona no sentido oposto, de cima
programa ento extrai um conjunto de elementos identificadores para baixo. Ela pressupe que possvel extrair conhecimento
que separam o spam do resto. abstrato de dados concretos, porque ns j sabemos muito, mas
De forma similar, a rede neural precisa inspecionar imagens da principalmente porque o crebro j est capacitado a entender
internet rotuladas como gato, casa e assim por diante. Ao extrair conceitos abstratos bsicos. Da mesma forma que os cientistas,
os elementos comuns de cada conjunto o padro que separa utilizamos esses conceitos para formular hipteses sobre o mun-
todos os gatos de todos os cachorros a rede neural pode identi- do e tentar prever como deveriam ser os dados (eventos), se essas
ficar novas imagens de gato, ainda que nunca as tenha visto antes. hipteses estiverem corretas o inverso de tentar extrair padres
Ainda est no incio um mtodo de baixo para cima chamado dos dados brutos, como no caso da IA de baixo para cima.
aprendizagem no supervisionada, capaz de detectar padres em Essa ideia pode ser mais bem ilustrada se, voltando praga dos
dados sem nenhum rtulo. O mtodo procura grupos de elemen- spams, considerarmos um caso real em que me envolvi. Recebi um
tos que possam identificar um objeto nariz e olhos, por exem- e-mail de um editor de uma revista com um nome estranho, se refe-
plo, quase sempre andam juntos quando se compe um rosto e rindo especificamente a um de meus artigos e propondo que eu
so diferentes das rvores e montanhas do fundo. A identificao escrevesse um artigo para a revista. Nada de Nigria, nada de Via-
de um objeto nessas redes avanadas de aprendizagem profunda gra, e nada de milhes de dlares o e-mail no continha nenhum
feita por meio de diviso de trabalho: as tarefas de reconheci- dos indcios comuns de mensagens de spam. Mas, valendo-me do
mento so repartidas entre as diferentes camadas da rede. meu conhecimento prvio e pensando no processo que produz
Um artigo publicado na Nature, em 2015, mostrou exatamente spam de forma abstrata, pude concluir que o e-mail era suspeito.
o estado da arte na poca, dos mtodos de baixo para cima. Pesqui- Para comear, eu sabia que os remetentes de spam tentam
sadores da DeepMind, uma empresa per-
tencente Google, utilizaram uma combi-
nao de duas diferentes tcnicas de bai- APLICAR IA PARA APRENDER COM
xo para cima aprendizagem profunda
e aprendizado por reforo para fazer
GRANDES CONJUNTOS DE DADOS PERMITE
um computador comandar os videogames
Atari 2600. Inicialmente, o computador
OBTER SOLUES PARA PROBLEMAS QUE
no sabe nada sobre o funcionamento de AT ENTO PARECIAM ASSUSTADORES.
videogames. Ento ele faz suposies ale-
atrias sobre os melhores movimentos e ao mesmo tempo recebe obter dinheiro das pessoas apelando para a ganncia humana e
constante feedback de seu desempenho. A aprendizagem profunda quando se trata de publicar seus trabalhos, os acadmicos podem
ajudou o sistema a identificar os elementos na tela e o aprendiza- ser to gananciosos quanto as pessoas comuns so por ganhar um
do por reforo recompensou-o pela alta pontuao. O computador prmio de US$ 1 milho ou conseguir melhor desempenho sexual.
atingiu um alto nvel de proficincia em vrios jogos. Em alguns Eu tambm sabia que as revistas legtimas com livre acesso esta-
casos, ele teve um desempenho melhor que experientes jogadores vam comeando a reduzir seus custos cobrando dos autores em
humanos. No entanto, ele tambm fracassou completamente em vez de dos assinantes. Alm disso, meu trabalho no tinha nada
outros jogos to simples como esses para os seres humanos. a ver com o ttulo da revista. Juntando as peas, eu formulei uma
A capacidade de aplicar IA para aprender a partir de grandes hiptese plausvel de que o e-mail estava tentando enganar os aca-
conjuntos de dados milhes de imagens do Instagram, mensa- dmicos, induzindo-os a pagar para publicar seus artigos numa
gens de e-mails ou gravaes de voz permite solucionar proble- revista falsa. Cheguei a essa concluso partindo de um nico exem-
mas que at ento pareciam assustadores, como o reconhecimen- plo, e poderia testar ainda mais minha hiptese, checando a boa-
to de imagens e da linguagem. Mesmo assim, vale a pena lembrar f do editor, apenas digitando vrias perguntas num navegador.
que meu neto no tem a menor dificuldade em reconhecer um Um cientista da computao poderia chamar meu processo
animal mesmo com dados e treinamento muito mais limitados. de raciocnio de modelo generativo, que capaz de representar
Problemas fceis para uma criana de cinco anos ainda so muito conceitos abstratos, como ganncia e falsidade. O mesmo mode-
complexos para os computadores e mais difceis que jogar xadrez. lo tambm pode descrever o processo usado para elaborar uma
Computadores que aprendem a reconhecer uma cara peluda hiptese o raciocnio que me levou concluso de que a men-
com bigodes geralmente precisam de milhes de exemplos para sagem poderia ser um e-mail fraudulento. O modelo me permi-
categorizar objetos que ns classificamos com poucos exemplos. te explicar como esse tipo de spam funciona, mas tambm per-

44 Scientific American Brasil, Agosto 2017


mite que eu imagine outros tipos de spam, ou at um diferente de traos necessrios para desenh-la e produzir um conjunto similar
qualquer outro que eu j tenha visto ou ouvido falar antes. Quan- de traos por si mesmo. Ele faz isso da mesma forma como eu infe-
do recebo o e-mail da revista, o modelo me permite trabalhar ao ri a srie de passos que me conduziram ao e-mail de spam duvi-
contrrio rastrear passo a passo por que ele deve ser um spam. doso. Em vez de avaliar a chance de o e-mail ter sido gerado por
Modelos generativos foram essenciais na primeira onda da IA marketing fraudulento, o modelo de Tenenbaum prev a chance
nos anos 1950 e 1960. Mas eles tambm tm suas limitaes. Pri- de uma sequncia especfica de traos produzir a letra desejada.
meira, padres de evidncia, em princpio, podem ser explicados Esse programa de cima para baixo funcionava muito melhor que a
por vrias hipteses diferentes. No meu caso, o e-mail realmente aprendizagem profunda aplicada exatamente aos mesmos dados,
poderia ser legtimo, mas mesmo assim parecia improvvel. Por e ele reproduzia fielmente o desempenho dos seres humanos.
isso, os modelos generativos precisam incorporar noes de pro-
babilidades um dos desenvolvimentos recentes mais importan- UM CASAMENTO PERFEITO
tes para esses mtodos. Segunda, geralmente a origem dos concei- Essas duas abordagens dominantes da aprendizagem de
tos bsicos que formam os modelos generativos no clara. Pen- mquina de baixo para cima e de cima para baixo tm pontos
sadores como Descartes e Chomsky sugeriram que nascemos com fortes e fracos complementares. No mtodo de baixo para cima,
eles incorporados em ns, mas realmente chegamos a este mundo para comear, o computador no precisa entender nada sobre
sabendo como a ganncia e a falsidade levam a golpes? gatos, mas ele precisa de uma grande quantidade de informao.
Os modelos bayesianos um excelente exemplo de um mtodo O sistema bayesiano pode aprender com poucos exemplos e
recente tipo de cima para baixo tentam tratar as duas questes. generalizar de forma mais ampla. Essa abordagem de cima para
Denominados em homenagem ao estatstico do sculo 18 Thomas baixo, porm, requer muito trabalho prvio para articular o con-
Bayes, combinam modelos generativos e a teoria das probabilida- junto certo de hipteses. E projetistas dos dois tipos de sistemas
des usando uma tcnica chamada inferncia bayesiana. Um mode- podem cair em armadilhas similares. Ambas as abordagens fun-
lo generativo probabilstico pode prever qual a probabilidade de cionam apenas em problemas relativamente limitados e bem defi-
voc perceber um padro especfico de dados, se uma determinada nidos, como reconhecer letras escritas ou gatos ou jogar Atari.
hiptese for verdadeira. Se o e-mail um golpe, ele provavelmente Crianas no esto submetidas s mesmas restries. Psic-
apela para a ganncia do leitor. Mas, obviamente, uma mensagem logos desenvolvimentistas descobriram que crianas pequenas
poderia apelar para a ganncia sem ser spam. O modelo bayesiano combinam, de alguma forma, as melhores partes de cada aborda-
combina seu conhecimento prvio sobre potenciais hipteses com gem e vo muito alm. Augie aprende a partir de apenas um ou
os dados que observa para poder calcular, de forma bastante preci- dois exemplos, como um sistema de cima para baixo. Mas ele tam-
sa, a probabilidade de um e-mail ser legtimo ou spam. bm extrai novos conceitos dos prprios dados, como um sistema
Esse mtodo de cima para baixo se encaixa melhor no que sabe- de baixo para cima. Augie, na verdade, faz muito mais. Ele reco-
mos sobre a aprendizagem das crianas, que sua contraparte de nhece imediatamente gatos e distingue letras, mas tambm pro-
baixo para cima. por isso que nos ltimos 15 anos meus colegas cessa novas e criativas inferncias surpreendentes que vo muito
e eu usamos modelos bayesianos em nosso trabalho sobre desen- alm de sua experincia ou conhecimento. Outro dia, explicou que
volvimento infantil. Nosso laboratrio e outros usaram essas tcni- se um adulto quisesse ser criana de novo ele deveria tentar no
cas para entender como as crianas aprendem relaes de causa e comer nenhuma verdura saudvel, porque elas fazem as crianas
efeito, prever como e quando os jovens desenvolvero novas cren- crescerem e se tornarem adultas. No temos praticamente nenhu-
as sobre o mundo e quando eles mudaro as crenas j formadas. ma ideia de como esse tipo de raciocnio criativo elaborado.
Mtodos bayesianos tambm so uma excelente forma de Poderamos lembrar ainda dos misteriosos poderes da mente
ensinar mquinas a aprender como pessoas. Em 2015, Joshua B. humana quando ouvimos afirmaes de que IA uma ameaa. A
Tenenbaum, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, com IA e a aprendizagem de mquina parecem assustadoras. E de algu-
quem eu s vezes colaboro, Branden M. Lake, da Universidade mas formas so. Os militares pesquisam formas de usar esses sis-
de Nova York, e seus colegas publicaram um estudo na Scien- temas para controlar armas. A estupidez natural pode causar mui-
ce. Eles projetaram um sistema de IA capaz de reconhecer letras to mais estragos que a IA, e ns, humanos, precisaremos ser mui-
manuscritas no familiares, uma atividade que simples para as to mais inteligentes que fomos, no passado, para aproveitar bem
pessoas, mas extremamente complexa para os computadores. as novas tecnologias. A lei de Moore um elemento influente: mes-
Pense na sua capacidade de reconhecimento. Mesmo que nun- mo que os avanos computacionais resultem do aumento quanti-
ca tivesse visto uma letra ou ideograma num pergaminho japons, tativo de dados e do poder dos computadores, e no de revolues
voc saberia dizer se ela igual ou diferente de outra em outro per- conceituais de nossa compreenso da mente, eles ainda podero
gaminho. Provavelmente, voc consegue desenh-la ou at dese- ter consequncias prticas importantes. Com isso em mente, no
nhar um ideograma falso, e tambm percebe que a letra bem deveramos pensar que um novo Golem tecnolgico esteja prestes
diferente de uma letra do alfabeto coreano ou russo. Foi isso que a ser solto no mundo.
a equipe de Tenenbaum conseguiu que seu software fizesse. Com
um mtodo de baixo para cima, o programa poderia ser alimen- PA R A C O N H E C E R M A I S
tado com milhares de exemplos e usaria os padres encontrados
The gardener and the carpenter: What the new science of child development
para identificar novas letras. Em vez disso, o programa bayesiano tells us about the relationship between parents and children. Alison Gopnik.
mostrou mquina um modelo geral de como desenhar uma letra. Farrar, Straus e Giroux, 2016.
Por exemplo, um trao pode ir para a direita ou para a esquerda. E Human-Level Concept Learning through Probabilistic Program Induction.
depois que o software termina uma letra, ele vai para a seguinte. Brenden Lake et al. em Science, vol. 350, pgs. 13321338; 11 de dezembro de 2015.
Ao ver uma dada letra, o programa podia inferir a sequncia de

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A REDE
NEUROCINCIA

INTRINCADA
DA MEMORIA Uma revoluo tcnica fornece dicas sobre
como o crebro conecta memrias, um
processo fundamental para compreender
e organizar o mundo ao nosso redor
Alcino J. Silva

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Alcino J. Silva Professor Honorrio e diretor do Centro Integrativo de
Aprendizagem e Memria da Universidade da Califrnia em Los Angeles.
Seu laboratrio (www.silvalab.org) estuda mecanismos de memria,
assim como as causas e os tratamentos relativos a distrbios da memria.

As
memrias
dependem de nossa capacidade de recordar detalhes sobre
o mundo o rosto de uma criana, um ganso, um lago. Para
transform-los em experincias reais, no entanto, o crebro
deve, de alguma forma, fundir esses elementos individuais
em um todo integrado a expresso no rosto da criana Os mecanismos fundamentais que o
crebro usa para criar essas memrias
quando ela v um bando de gansos de repente seguir voo a conectadas comeam a se revelar aps
partir de um bloco de juncos no lago. duas dcadas de pesquisa em nossos
Um senso de memria coeso tambm depende de outros laboratrios e em outros. Compreender
os processos fsicos envolvidos no entre-
fatores. Nossa sobrevivncia ao longo dos milnios tem laamento de memrias individuais far
dependido da lembrana no s da informao correta mais do que s fornecer insights sobre
digamos, um leo ou uma cobra , mas tambm de seu funcionamento cerebral. Pode um dia
ajudar a prevenir distrbios que prejudi-
contexto. Encontramos o animal durante um confronto cam nossa capacidade de unir memrias.
inesperado em um trecho isolado de savana africana ou como
parte de uma visita sem pressa ao zoolgico de San Diego? UM ACIDENTE FELIZ
Quando comeamos nossos estudos
acerca da conexo da memria, no final
A fim de evitar outros tipos de predadores em nossas vidas di- dos anos 1990, faltavam-nos as ferramentas e o conhecimento
rias, precisamos igualmente ser capazes de vincular memrias ao bsico necessrios para enfrentar este assunto. Um primeiro pas-
longo do tempo: julgar se vale a pena ir atrs de um investimento so-chave para determinar como as memrias so entrelaadas
aparentemente atraente depende da fonte que fez a recomenda- foi a nossa descoberta de um conceito chamado de alocao de
o a probidade, para exemplo, de quem a sugeriu. Uma falha memria, a percepo de que o crebro usa regras especficas para
em conectar os dois pode ter consequncias desastrosas. atribuir pedaos de informaes aprendidas para grupos discre-
O campo da neurocincia est comeando a lidar com a for- tos de neurnios em regies envolvidas na formao da memria.
ma como o crebro liga as memrias na vasta extenso do espa- O acaso teve um papel fundamental nessa descoberta. Come-
o e do tempo. At agora, a grande maioria dos estudos se con- ou com uma conversa que tive com Mike Davis, amigo e colega
PGINAS ANTERIORES: ANDREAS KUEHN Getty Images (cabea); GETTY IMAGES (padro da teia)

centrou no modo como adquirimos, armazenamos, recordamos agora na Universidade Emory, numa visita Universidade Yale
e alteramos memrias individuais. No entanto, a maioria das em 1998. Davis compartilhou as descobertas de estudos nos quais
memrias no so entidades nicas, isoladas. Ao invs dis- ele manipulou um gene conhecido como CREB para melhorar a
so, uma lembrana puxa a prxima, estabelecendo sequncias memria emocional em ratos a associao, por exemplo, entre
intrincadas de memrias que nos ajudam a prever e a compre- uma msica e um choque eltrico. Antes, meu laboratrio e outros
ender melhor o mundo nossa volta. haviam mostrado que o CREB era necessrio para a estabilizao

EM SNTESE

A pesquisa acerca da memria sofreu uma revoluo: Novas tecnologias mostraram que as memrias no A capacidade do crebro de controlar quais neur-
novas tecnologias fazem imagens da atividade de neur- so designadas aleatoriamente para neurnios em re- nios codificam quais memrias fundamental para o
nios individuais e at ativam e desligam as clulas em gies cerebrais envolvidas no processamento e no ar- fortalecimento das memrias e de sua conexo, re-
momentos precisos, permitindo que cientistas do cre- mazenamento de informaes. Em vez disso, meca- cursos que so interrompidos em muitos transtornos
bro realizem experincias que at h pouco anos acredi- nismos especficos determinam quais clulas vo neuropsiquitricos e durante o declnio cognitivo rela-
tava-se que fossem possveis apenas na fico cientfica. armazenar uma determinada memria. cionado idade.

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das memrias. O gene CREB faz isso ao codificar uma protena Como exemplo, Yu Zhou, ento no meu laboratrio, modifi-
que regula a expresso de outros genes necessrios para a mem- cou geneticamente um pequeno conjunto de neurnios de amg-
ria. Durante o aprendizado, algumas sinapses so construdas dala de camundongos para que tivessem nveis maiores de CREB
para que eles possam ser fortalecidos. A protena CREB ativada e expressassem outra protena projetada pelo laboratrio de Ed
atua como uma espcie de arquiteto molecular do processo. Sem Callaway, do Instituto Salk para Estudos Biolgicos. Estas manipu-
sua ajuda, a maioria das experincias seria logo esquecida. laes nos permitiram silenciar os neurnios quando quisssemos.
O que me surpreendeu foi que o grupo de Davis era capaz de Quando desligamos os neurnios com alto nvel de CREB, deixan-
melhorar a memria mesmo que os nveis de CREB aumentassem do aqueles com nveis mais baixos ainda ativas, a memria emo-
em apenas um pequeno subconjunto da populao total de neur- cional foi suprimida, um resultado convincente que fornece provas
nios da amgdala, uma regio do crebro crtica para a memria de que neurnios com nveis mais elevados de CREB esto envol-
emocional. A questo que ficou meses vidos no armazenamento de memria.
comigo aps a visita a Yale, foi: como Sabamos que nveis mais altos
a memria termina em apenas umas de CREB poderiam determinar quais
poucas clulas, quando poderia apro- clulas armazenavam uma determina-
veitar os nveis mais elevados de CREB? da memria, mas no sabamos como
Era possvel que a CREB ativada no s isso acontecia. Robert Malenka, da Uni-
orquestrasse a estabilizao da mem- versidade Stanford, e seus colegas des-
ria, mas tambm ajudasse para garantir cobriram que o abuso de drogas ativa-
que as clulas com CREB ativada tives- va o CREB em certos neurnios, o que
sem mais probabilidade de estar envol- fazia com que esses neurnios ficassem
vidas na formao da memria? mais excitveis (mais facilmente ativa-
Em nossas prprias investigaes dos). Esse aumento em excitabilidade
sobre a CREB, focamos sua funo em poderia ser a razo pela qual os neur-
regies cerebrais especficas, que saba- nios com nveis mais elevados de CREB
mos relacionarem-se com a memria: eram escolhidos para o armazenamen-
a amgdala, essencial para a lembran- to de memria? Para abordar a questo,
a de memrias com contedo emocio- MICROSCPIO montado na cabea de um Zhou modificou neurnios da amg-
nal, e o hipocampo, que, entre outras camundongo vivo permite que os pesquisa- dala para que produzisse mais CREB.
coisas, armazena um mapa internaliza- dores inspecionem a atividade de clulas cere- Usando minsculos microeletrodos,
do dos arredores da pessoa. brais onde as memrias so armazenadas. ela mediu a facilidade com que esses
A cincia trata tanto de como encon- neurnios eram ativados, uma medida
trar questes quanto de como respon- de excitabilidade. Os resultados confir-
d-las. O que a conversa com Davis me ajudou a perceber que os maram que os neurnios modificados eram mais facilmente liga-
neurocientistas sabiam muito pouco sobre as regras, caso houves- dos em comparao queles inalterados. A excitabilidade elevada
se alguma, de como certa memria alocada nos neurnios em (uma prontido maior para receber e transmitir impulsos eltricos
cada uma das regies que processam e armazenam recordaes. que carregam informao entre neurnios) sugeriu que as clulas
Nosso primeiro grande achado ocorreu aps recrutarmos poderiam estar mais bem preparadas para iniciar o conjunto de
Sheena Josselyn, que estudara a CREB no laboratrio de Davis. processos necessrios para estabelecer uma memria.
Em experimentos com animais feitos em meu laboratrio, e Para testar a ideia, Zhou tambm analisou as conexes sinpti-
depois com colegas em seu prprio laboratrio na Universidade de cas envolvendo os neurnios com mais CREB. Um corpo conside-
Toronto, Josselyn usou um vrus para introduzir cpias extras da rvel de evidncias demonstrou que aumentos na fora das cone-
CORTESIA DE DENISE J. CAI Centro Integrativo de Aprendizagem e Memria, Universidade da Califrnia, Los Angeles

CREB em neurnios especficos na amgdala do camundongo. Ela xes sinpticas so crticos para a formao da memria. Depois de
demonstrou que esses neurnios eram quase quatro vezes mais treinar os camundongos em uma tarefa que posteriormente evoca-
propensos a armazenar uma memria amedrontadora do que seus va memrias emocionais, ela testou a fora das conexes sinpti-
vizinhos. Em 2007, aps quase uma dcada, meu laboratrio, junto cas dos neurnios da amgdala com nveis mais elevados de CREB,
com o de Josselyn, por fim publicou evidncias de que memrias a fim de ver se eles tinham conexes mais fortes em comparao
emocionais no so aleatoriamente designadas a neurnios den- com clulas que no foram alteradas para produzir mais CREB.
tro da amgdala. Ao invs disso, as clulas aproveitadas para arma- Para isso, estimulou as sinapses dessas clulas com uma pequena
zenar essas memrias so aquelas que possuem mais da protena corrente eltrica e registrou suas reaes com pequenos eletrodos
CREB. To importante quanto isso, outros experimentos mostra- embutidos nas clulas. Como esperado, os neurnios da amgdala
ram que a CREB tem uma funo semelhante em outras regies do com mais CREB fizeram sinapses mais fortes do que outras clu-
crebro, incluindo o hipocampo e o crtex, a camada mais externa. las, um resultado consistente com a ideia de que eles eram mais
propensos a ter armazenado a memria emocional.
MUDANDO ENTRE MEMRIAS LIGADAS E DESLIGADAS Em um trabalho ainda mais recente, o laboratrio de Josselyn
Para confirmar o papel da CREB na alocao de memria, demonstrou que uma memria de uma experincia amedronta-
buscamos mtodos novos que haviam transformado o estudo da dora poderia ser armazenada em um conjunto predeterminado
memria nos ltimos anos. Essas tcnicas de laboratrio possibili- de neurnios da amgdala, ao alter-los, por engenharia genti-
taram tanto ativar quanto desligar os neurnios de fato, provo- ca, com um tipo especfico de canal de ons, que aumenta a exci-
cando ou silenciando uma memria. tabilidade desses neurnios. Os canais de ons formam poros na

www.sciam.com.br 49
superfcie das clulas, e os especficos escolhidos por Josselyn per- intervalo de cinco horas, na esperana de que as memrias rela-
mitiram que essas clulas fossem mais facilmente ativadas. De tivas s duas cmaras estariam conectadas. Mais tarde, ela lhes
maneira similar, o laboratrio de Albert Lee, no Campus de Pes- deu um choque leve na pata na segunda cmara. Como espera-
quisa Janelia, relatou que aumentar artificialmente a excitabili- do, quando depois ela colocou os camundongos na cmara onde
dade dos neurnios do hipocampo, enquanto os animais corriam receberam o choque, eles ficaram paralisados, presumivelmente
ao redor de uma trilha, os tornava mais propensos a reagir a um por lembrarem que receberam um choque l. Camundongos ficam
determinado local na pista, resultado consistente com nossas des- paralisados como uma reao natural ao medo, porque a maioria
cobertas de que a excitabilidade tem um papel fundamental na dos predadores observa melhor as presas quando elas se movem.
determinao de quais clulas esto envolvidas no armazenamen- O resultado principal surgiu quando Cai e Shobe colocaram
to de uma memria especfica. os camundongos na cmara neutra. Nosso raciocnio era de que,
Por fim, nosso grupo e o de Josselyn, aproveitaram uma tec- se as memrias de ambas as cmaras estavam ligadas, os animais
nologia inovadora chamada optogentica, que usa luz para ativar no espao neutro seriam lembrados de terem recebido choques
e inibir neurnios. Usamos a tcnica para ativar neurnios espe- na outra cmara e, assim, ficariam paralisados em antecipao
cficos que apresentavam nveis mais elevados de CREB. Thomas e foi isso que descobrimos. Ns tambm deduzramos que seria
Rogerson e Balaji Jayaprakash, ambos ento em meu laboratrio, menos provvel que as duas memrias fossem vinculadas caso
comearam por projetar neurnios da amgdala a fim de produzi- estivessem separadas por um intervalo de sete dias. E, de fato, a
rem mais CREB e channelrhodopsin 2 (ChR2), um canal inico ati- reexposio dos animais cmara neutra depois de um perodo
vado por azul luz. Em seguida, mostramos que pode-
ramos desencadear artificialmente a lembrana de
uma memria relativa a medo em camundongos
quando usamos a luz para ativar neurnios da amg-
A previso fundamental de
dala com mais CREB, mas no aqueles com nveis
menores da protena, confirmando que a memria
nossa hiptese era que
havia sido armazenada nesses neurnios. memrias distintas, criadas
CONECTANDO
Em 2009 fui convidado a escrever um artigo
em intervalos prximos, so
sobre nossa pesquisa e aproveitei para apresen-
tar nossas idias de como as memrias so conec-
armazenadas na mesma rea
tadas ao longo do tempo. A capacidade da CREB de do crebro, em populaes
sobrepostas de neurnios.
regular quais clulas formam uma certa memria
em outras palavras, alocao de memria me
levou hiptese de que o processo poderia ser fun-
damental para a capacidade de conectar memrias
separadas, o que em meu laboratrio chamado
hiptese de alocar-para-conectar. Como a alocao de memria de tempo mais longo no os fez recordar da cmara de choque, e
ocorre num subconjunto de neurnios que tm mais CREB, que eles no se paralisaram. Em geral, com intervalos de tempo muito
so mais facilmente ativados, o processo prioriza esses neur- maiores do que um dia, as memrias permanecem desvinculadas.
nios para armazenar prontamente outra memria. Quando duas Esses achados comportamentais foram empolgantes, mas
memrias compartilham muitos dos mesmos neurnios, elas eles no testaram uma previso fundamental da hiptese de que
esto formalmente ligadas. memrias distintas, formadas em intervalos de pouco tempo, so
Assim, a ativao desses neurnios na recordao de uma das armazenadas na mesma rea do crebro, em populaes sobre-
duas memrias leva recordao da outra. O ponto fundamental postas de neurnios. Essa sobreposio fsica liga as duas mem-
dessa ideia foi a hiptese de que duas memrias mais prximas no rias, de modo que a lembrana de uma traz a outra para a mente.
tempo, ambas formadas na durao de um dia, tm mais chance
de serem vinculadas do que as separadas por perodos mais longos. VISUALIZANDO MEMRIAS
Com intervalos muito maiores do que um dia, a segunda mem- Para testar realmente a hiptese de alocar-para-conectar, seria
ria no mais se beneficia da excitabilidade desencadeada pela pri- necessrio nada menos do que conseguir ver as memrias no cre-
meira e, portanto, armazenada em uma populao diferente de bro enquanto elas estavam sendo criadas. Tcnicas para visualizar
neurnios. A limitao temporal faz sentido, porque eventos ocor- neurnios em camundongos vivos j esto em uso, mas todas exi-
ridos no perodo de um dia tm muito mais chances de ser mutua- gem que a cabea dos camundongos seja fixada em microscpios
mente relevantes do que eventos separados por uma semana. grandes, uma configurao no propcia para os testes comporta-
Escrever o artigo e descrever essas ideias me atraiu ainda mais mentais necessrios para examinar a hiptese.
para o desafio de test-las. A hiptese de alocar-para-conectar era Acho surpreendente, porm, quantas vezes na minha car-
objetiva, mas no estava claro como confirmar sua legitimidade. reira a tcnica correta surgiu quando mais precisvamos delas.
Os testes tiveram de esperar pelo tempo certo para serem feitos. Participei de um seminrio na Universidade da Califrnia dado
A situao mudou quando Denise Cai e Justin Shobe juntaram- por Mark Schnitzer, de Stanford, que descreveu um microscpio
-se ao projeto. Cai sugeriu uma ideia inteligente. Junto com Shobe, minsculo que seu laboratrio acabara de inventar, que conse-
ela exps camundongos a duas cmaras no mesmo dia, com um guia visualizar a atividade de neurnios em camundongos que

50 Scientific American Brasil, Agosto 2017


se moviam livremente. Esse microscpio com dois ou trs gra-
mas pode ser montado como um chapu na cabea de um animal.
O instrumento era exatamente o que nosso grupo precisava para
rastrear os neurnios ativados por uma determinada memria.
Construtores de memrias
Ele nos permitia determinar se esses mesmos neurnios se tor- As principais regies cerebrais desempenham um papel na
navam ativos algumas horas depois na presena de outra mem- formao de memrias. A amgdala essencial para
ria, uma previso fundamental da hiptese alocar-para-conectar. memrias com contedo emocional, e o hipocampo est
Estvamos to entusiasmados com a promessa dessa maravi- envolvido na criao de memrias relacionadas a
lhosa inveno que decidimos criar a nossa prpria verso desse experincias. Meu laboratrio realizou um experimento com
microscpio. Nos unimos aos laboratrios de Peyman Golshani e camundongos, que mostrou que clulas nas quais minha
Baljit Khakh, ambos na UCLA, e juntos contratamos um estudante equipe aumentou os nveis de uma protena chamada CREB
de ps-doutorado, Daniel Aharoni, que passou a projetar o que vie- ficaram mais propensas a codificar uma memria. A.J.S.
mos a chamar de miniscpio UCLA. Como os microscpios Schnit-
zer, nossos miniscpios so equipados com uma lente que poderia
ser incorporada perto das clulas do crebro que queramos ana- Crebro
lisar. O dispositivo encaixado sobre uma placa de base presa ao humano
crnio do animal, estabilizando-o durante tarefas de treinamen-
to e testes de memria. Assim como tomamos emprestadas tcni-
cas de outros pesquisadores, tambm ficamos felizes em compar-
tilhar. Somos partidrios vidos do movimento de cdigo aberto
na cincia e tornamos disponveis nossos projetos e software para
o miniscpio UCLA para centenas de grupos em todo o mundo.
Para visualizar a atividade dos neurnios com o miniscpio,
Cai e seu colega Tristan Shuman tiraram partido de uma tcni-
ca de imagem que modifica geneticamente um animal, para que
Amgdala
os neurnios fiquem fluorescentes quando os nveis de clcio nas
Hipocampo
clulas se elevam ela conhecida como um indicador de clcio
codificado geneticamente. Decidimos focar a regio CA1 do hipo-
campo, por seu papel no aprendizado e na recordao de lugares
tais como as cmaras usadas em nossos experimentos comporta-
1 Em um experimento com
camundongos, um vrus foi
mentais. Colocamos camundongos com os chapus de miniscpio
responsvel para colocar,
nas duas cmaras. Queramos saber se o intervalo entre as exposi-
dentro da clula, cpias
es s diferentes cmaras alteraria os neurnios ativados. extras do gene que codifica
Os resultados foram melhores do que espervamos! Essencial- a protena CREB.
Gene CREB
mente, nossas experincias comportamentais e nosso minisc-
pio mostraram que, quando os camundongos ligavam as mem- Vrus
rias das duas cmaras, muitos dos neurnios CA1 que se tornaram
ativos quando os animais visitaram a primeira cmara tambm
foram ligados quando exploraram a segunda cmara. Se o inter-
valo entre as visitas fosse de cerca de cinco horas, os camundon-
gos formavam duas memrias em um aglomerado semelhante de
neurnios. Quando o lapso de tempo aumentava para sete dias,
esse padro de ativao sobreposto no aparecia. Ficamos encan-
2 CREB
adicionada
tados com a descoberta porque confirmava uma premissa bsica DNA
estimulou a criao
da hiptese de alocar-para-conectar: memrias se acoplam quan- de canais de ons
do armazenadas em populaes sobrepostas de neurnios. Se mais que so
tarde reativarmos um conjunto de neurnios formados por uma transportados para
memria, ela estimula a outra e facilita sua lembrana. Protena a superfcie da
Neurnio
codificada clula, tornando-a
pela CREB Canal mais excitvel.
MARCANDO MEMRIAS
regula de on
Para validar mais os resultados do miniscpio, Cai usou outro Neurnios
outros genes
mtodo criado por Mark Mayford, agora na Universidade da Cali- Sinapse circunvizinhos
frnia. A experincia envolveu a tcnica de Mayford, chamada
sistema TetTag (de etiqueta tetraciclina, ou tetracycline tag, em
3 CREB
aumentado
ingls). Quando uma memria formada na visita a uma cmara, permite que um
as marcas TetTag ativam neurnios em camundongos transgni- neurnio seja ativado
cos com um marcador fluorescente, que fica intacto por semanas. com maior prontido,
Com estudos ps-morte dos animais possvel ento comparar facilitando a formao
os neurnios recentemente ativados, marcados por genes que so de uma nova memria.

Ilustraes de Tami Tolpa www.sciam.com.br 51


Recordando coisas passadas (conectadas)
O momento proustiano quando uma recordao leva prxima conta agora com uma base solida nas cincias relativas ao crebro.
Experincias mostraram que um camundongo exposto a duas cmaras digamos B e C conecta as duas em sua memria, caso seja
exposto aos dois gabinetes em um intervalo de cinco horas. Mas um camundongo no se lembra das gaiolas A e C juntas se o perodo de
tempo for separado por sete dias. A evocao vinculada das gaiolas B e C ocorre porque muitos dos mesmos neurnios utilizados para
armazenar as memrias das duas gaiolas so ativados ao mesmo tempo, ao contrrio daqueles usados para as gaiolas A e C.

Gaiola A Gaiola B Gaiola C


7 dias 5 horas

Os neurnios se
acendem quando os
camundongos
exploram o interior
de cada uma das
trs gaiolas.

Neurnios que foram ativados


em ambas as gaiolas B e C
Um nmero menor dos
mesmos neurnios se Neurnios que foram ativados
acende em ambas as em ambas as gaiolas A e C
gaiolas depois de um
intervalo de sete dias
(gaiolas A e C) do que
quando se trata de uma
lacuna de cinco horas
(gaiolas B e C).

IN TIME, BY DENISE J. CAI ET AL., EM NATURE, VOL. 534; 2 DE JUNHO DE 2016 ( imagens de neurnios)
expressos imediatamente aps a formao da memria, com aque- memrias. Os pesquisadores de Toronto argumentaram que, se as
DE A SHARED NEURAL ENSEMBLE LINKS DISTINCT CONTEXTUAL MEMORIES ENCODED CLOSE

les marcados pela etiqueta duradoura. Esse passo identifica no populaes de neurnios que codificam duas memrias se sobre-
apenas os neurnios ativados por um evento caso no qual um punham, aumentos nos nveis de CREB gerados pela primeira
neurnio possui uma nica etiqueta fluorescente , mas tambm memria tambm fortaleceriam uma segunda memria. Mas, ao
aqueles ativados por duas ocorrncias: o brilho das duas etiquetas. invs de expor os camundongos a diferentes lugares, como em nos-
Repetindo a mesma configurao experimental, Cai e equi- so trabalho, Josselyn treinou-os para reconhecer duas melodias. O
pe mostraram que por um intervalo mais curto, de cinco horas, a treinamento para a primeira melodia reforava a memria de uma
sobreposio entre os neurnios que codificam cada uma das duas segunda melodia se as duas sesses de treinamento ocorriam de
memrias com etiquetas duplas foi maior do que se esperaria por 1,5 a 6 horas depois, mas no aps 18 a 24 horas.
acaso. No intervalo de sete dias, a sobreposio entre duas expe- Recentemente, Kaoru Inokuchi e seus colegas da Universi-
rincias no ficou acima do nvel de acaso de modo significativo. dade de Toyama deram um passo adiante. Usaram optogenti-
Outros experimentos da equipe de Josselyn em Toronto for- ca para inativar o grupo de clulas compartilhadas por duas lem-
neceram ainda mais evidncias da validade de nossa hiptese de branas emocionais diferentes, deixando enquanto isso outras
associao de memria. O grupo dela no s fez uma verso dis- clulas inalteradas, incluindo aquelas que eram nicas para cada
tinta da experincia de marcao neuronal, como tambm achou uma das duas recordaes. A pesquisa mostrou que inativar
evidncias comportamentais independentes de ligao entre as clulas compartilhadas interrompeu a ligao entre as duas

52 Scientific American Brasil, Agosto 2017


memrias sem afetar a recordao de cada memria individual. CA1 enquanto os animais exploravam ambas as cmaras, forjando
Este experimento forneceu provas diretas de que os neurnios um vnculo entre as lembranas dos dois gabinetes.
compartilhados por duas memrias so a chave para a cone- No incio, a ideia da experincia soou absurda. Poderia ter fra-
xo entre memrias. Tambm ampliou o nmero de laborat- cassado por vrias razes. De um lado, memrias de lugares envol-
rios que forneceram evidncias independentes para a hiptese vem milhes de neurnios espalhados por mltiplas regies inter-
de alocar-para-conectar. conectadas, no s a regio CA1. O envelhecimento poderia ter
afetado os processos de conexo da memria em muitas, ou todas
MELHORANDO A MEMRIA NO ENVELHECIMENTO essas reas. Assim, mesmo que tivssemos sucesso em aumentar
Em seguida, decidimos estudar a conexo de memria em a excitabilidade num subconjunto de neurnios CA1, essas clulas
camundongos mais velhos. Comparados com os jovens, camun- poderiam at nem ser as corretas. E talvez no tivssemos aciona-
dongos mais velhos tm nveis mais baixos de CREB no cre- do os nveis certos de excitabilidade.
bro, inclusive nos neurnios na rea CA1 do hipocampo e, por Mas o experimento funcionou. A chave para esse tipo de tes-
isso, menor excitabilidade. Sabendo disso, previmos que os ido- te equilibrar o investimento em tempo e dinheiro com as recom-
sos deveriam ter dificuldades para conectar recordaes. Ento, pensas potenciais. Mas, nesse caso, posso dizer que a sorte estava
Cai e colegas comearam a repetir experimentos que j havamos conosco. Ao restaurar o aumento em excitabilidade de um subcon-
junto especfico de neurnios CA1 de camundongos
de meia-idade, conseguimos alocar as duas mem-

Entender como as memrias rias para muitos dos mesmos neurnios CA1 e,
assim, restaurar a conexo da memria em camun-

se entrelaam pode ajudar a dongos de meia-idade.


Estudos de outros grupos, em roedores e

desenvolver tratamentos para pessoas, tambm elucidaram como uma memria


pode se entrelaar a outra. Howard Eichenbaum,

problemas comuns em muitos da Universidade de Boston, mostrou que os ratos


podem encontrar conexes entre memrias que

distrbios psiquitricos. compartilhem contedo. Alison Preston, da Uni-


versidade do Texas, e colegas mostraram que, quan-
do as memrias compartilham contedo, pessoas
podem conect-las mais facilmente. Lembrar uma
completado mas em animais mais velhos. Os resultados surpre- provavelmente trar a outra de volta.
enderam. Cientistas experientes sabem que hipteses so apenas O arsenal crescente de ferramentas para medir a atividade neu-
ferramentas. No se espera que sejam necessariamente corretas. ral comea a desvendar os mecanismos que nossos crebros usam
Falhas inevitveis pelo caminho ajudam a remodelar ideias. Mas para organizar informaes. Nossa equipe est tentando ago-
desta vez nossos palpites se mostraram acertados. ra ampliar este trabalho. Junto com Panayiota Poirazi, da Funda-
Ainda me lembro quando Cai irrompeu em meu escritrio. o para Pesquisa e Tecnologia Hellas, na Grcia, estamos cons-
Ela contou que os camundongos de meia-idade, embora lem- truindo modelos de computador a fim de simular como e quando
brassem de cada cmara individual, tinham problemas em as memrias se conectam. Tambm tentamos descobrir os meca-
conectar as memrias, mesmo quando haviam sido expostos a nismos que controlam os intervalos de tempo necessrios para a
elas num intervalo de cinco horas, perodo que no representa- conexo entre as memrias em diferentes estruturas do crebro.
va dificuldade para camundongos mais jovens. As imagens fei- At agora, vrios experimentos de larga escala realizados por
tas por miniscpio dos animais mais velhos, comparadas s de divresos laboratrios apoiam fortemente a hiptese de alocar-
camundongos jovens adultos, revelavam falta de sobreposio -para-conectar. Esperamos que a compreenso acerca de como
entre memrias armazenadas. as memrias se tornam enredadas possa nos ajudar a desenvol-
Ficamos animados, mas tambm cticos, e repetimos os expe- ver tratamentos para problemas de memria, que so comuns em
rimentos. Os resultados foram ainda mais convincentes. Os neur- uma ampla faixa de condies psiquitricas, desde o declnio cog-
nios em camundongos de meia-idade com nveis menores de CREB nitivo relacionado idade at a esquizofrenia, depresso e trans-
no vinculavam memrias com a facilidade dos animais jovens. torno bipolar. Alm das implicaes clnicas, os estudos que des-
Os resultados nos encorajaram a ampliar a investigao. Ser crevemos refletem uma nova era emocionante relativa pesquisa
que poderamos aumentar artificialmente a excitabilidade de um da memria, na qual as experincias que fazemos no ficam mais
subconjunto de neurnios CA1 apenas quando os camundongos limitadas s tcnicas que temos nossa disposio, mas somente
mais velhos estavam explorando as duas cmaras, garantindo que ao alcance da nossa imaginao.
alguns dos neurnios CA1 ativados numa cmara tambm fos-
sem ligados quando os animais se moviam para a segunda? Para
fazer isso, aproveitamos uma tcnica inovadora que modifica, por PA R A C O N H E C E R M A I S
engenharia gentica, receptores na superfcie de uma clula, o que Competition between engrams influences fear memory formation and recall.
permite controlar a funo da clula. A tcnica carrega o acrni- Asim J. Rashid et al. em Science, vol. 353, pgs. 383387; 22 de julho de 2016.
mo tecnolgico memorvel DREADD, sigla de designer receptors A shared neural ensemble links distinct contextual memories encoded close in
exclusively activated by designer drugs. A ativao dos receptores Time. Denise J. Cai et al. em Nature, vol. 534, pgs. 115118; 2 de junho de 2016.
DREADD nos permitiu ligar o mesmo subconjunto de neurnios

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BURA
negros do

54 Scientific American Brasil, Agosto 2017


COS
incio dos tempos
COSMOLOGIA
H mais de um bilho
Uma populao invisvel de de anos, dois buracos negros
no Universo distante espiralaram
buracos negros que nasceu em torno um do outro numa dana
menos de um segundo depois mortal at se fundirem. Essa coli-
do Big Bang pode resolver o so em espiral foi to violenta que
abalou o tecido do espao-tempo,
mistrio da matria escura enviando perturbaes ondas
Juan Garca-Bellido e Sbastien Clesse gravitacionais que repercutiram
Ilustrao de Kenn Brown, Mondolithic Studios
por todo o Cosmos velocidade da
luz. Em setembro de 2015, depois
de viajar por mais de um bilho de
anos-luz, essas ondulaes atingi-
ram nosso planeta e foram registra-
das como um trinado pelos sen-
sores do Observatrio Avanado de
Ondas Gravitacionais por
Interferometria Laser (Ligo, na
sigla em ingls).

Foi a primeira deteco direta de ondas gra-


vitacionais e a observao confirmou sua exis-
tncia cem anos depois da previso de Albert
Einstein. No entanto, o trinado revelou que
cada um dos buracos negros progenitores da
fuso era 30 vezes mais pesado que o Sol. Isto ,
EM SNTESE
suas massas eram duas a trs vezes maiores que
A natureza da matria escura a eles tambm no foram observados. os buracos negros comuns produzidos a partir
matria invisvel que mantm as gal- Podero surgir mais evidncias de bura- de exploses de supernovas de estrelas massi-
xias unidas por meio de sua gravidade cos negros primordiais em novos dados vas. Esses buracos negros eram to pesados
um grande enigma csmico. de detectores de ondas gravitacionais e que foi praticamente impossvel explicar sua
Buracos negros primordiais que outros instrumentos. Se confirmados, formao a partir de estrelas. Alm disso, mes-
podem ter se formado logo depois do Big esses objetos podero resolver os mist- mo que dois desses buracos negros tenham se
Bang so um candidato alternativo para a rios da matria escura e vrios outros
formado independentemente a partir da mor-
matria escura. No entanto, at agora, enigmas csmicos.
te de estrelas muito massivas, eles ainda teriam

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de se encontrar e se fundir um evento com muito poucas chan- Juan Garca-Bellido fsico terico e professor no Instituto
ces de ocorrer na atual idade do Universo. Assim, razovel sus- de Fsica Terica de Madri. Sua pesquisa gira em torno do Uni-
peitar que esses buracos negros massivos tenham se formado via verso primordial, energia escura, buracos negros e gravidade
um caminho mais extico, que pode no envolver absolutamen- quntica. Garca-Bellido membro das misses Euclides e da
te estrelas. Alm da deteco de ondas gravitacionais, o Ligo pode Antena Espacial para Interferometria Laser (Lisa), do Levanta-
mento de Energia Escura e da Agncia Espacial Europeia.
ter revelado um fenmeno ainda mais surpreendente: buracos
negros que antecedem a prpria formao das estrelas.
Sbastien Clesse um cosmlogo belga e pesquisador de
Apesar de buracos negros primordiais (BNPs) como esses nun-
ps-doutorado da Universidade Tcnica da Rennia do
ca terem sido observados antes, alguns modelos tericos sugerem Norte-Vestflia, em Aachen, Alemanha. Seu trabalho abran-
que poderiam ter se formado num nmero astronmico a partir ge inflao csmica, gravidade modificada e buracos negros
do plasma denso que preenchia o Cosmos menos de um segundo primordiais. Clesse participa da misso Euclides e colabora
depois do Big Bang. Essa populao invisvel poderia ento resol- com o Arranjo de um Quilmetro Quadrado.
ver vrios dos mais notveis mistrios da cosmologia moderna. Em
particular, os BNPs poderiam constituir parte, se no toda a mat-
ria escura do Universo os 85% de matria invisvel no Univer-
so que agem como uma cola gravitacional que mantm juntas as
galxias e os aglomerados galcticos. Estudos futuros com o Ligo da Via Lctea, no acharam evidncias de que Machos formassem
e outras misses em breve testaro essas ideias, proporcionando a totalidade de nosso halo galctico. Esses resultados foram con-
uma potencial nova revoluo na nossa compreenso do Cosmos. clusivos para descartar os Machos de at dez massas solares como
os elementos bsicos da matria escura. Enquanto seguiam as pes-
A QUEDA DOS MACHOS, A ASCENSO DAS WIMPS quisas, os tericos propuseram uma alternativa: partculas massi-
Inicialmente, os buracos negros pareciam ser os candidatos vas que interagem fracamente (WIMPs, na sigla em ingls).
ideais para a matria escura porque no emitem luz. Na verda- As Wimps so previstas em certas extenses do Modelo Padro
de, junto com outros objetos escuros como planetas e ans mar- da fsica de partculas, mas permanecem, pelo menos, to vagas
rons eles constituem uma soluo proposta h muitos anos para o quanto os Machos. At agora, no foram encontradas evidncias
problema da matria escura: MACHO (acrnimo, em ingls, para de sua existncia apesar de dcadas de pesquisas com acelerado-
objetos halo massivos compactos). Encontrados tanto em halos res de partculas, detectores subterrneos e telescpios espaciais.
esfricos que circundam as galxias quanto prximos aos centros medida que resultados negativos se acumulam, alguns pesqui-
luminosos delas, os Machos criariam a fora gravitacional respon- sadores comearam a reconsiderar a hiptese dos Machos, focan-
svel pelos movimentos anmalos de estrelas e gs que os astr- do principalmente os BNPs. Mas que processo semearia tais estra-
nomos observam nas bordas mais distantes das galxias. Falando nhos objetos por todo o Universo observvel, e como podem no
simplesmente, as galxias parecem girar rpido demais para man- ter sido observados por tanto tempo?
terem-se unidas pela massa visvel de estrelas que vemos. A mat-
ria escura fornece a fora adicional necessria para evitar que as BURACOS NEGROS DO BIG BANG
galxias em rotao lancem suas estrelas pelo espao afora. Bernard Carr e Stephan Hawking propuseram a ideia dos BNPs
Se os Machos formarem a maior parte da matria escura do nos anos 1970, embora considerassem apenas buracos negros
Universo, tambm devem ser responsveis por outros efeitos. O com massas inferiores de uma montanha. Esses buracos negros
que quer que seja a matria escura, ela molda as maiores estrutu- minsculos j devem ter evaporado e desaparecido ao longo dos
ras do Universo, determinando a origem e o crescimento das gal- quase 14 bilhes de anos de vida de nosso Universo, via um proces-
xias, bem como dos aglomerados e superaglomerados de galxias. so quantomecnico descoberto por Hawking e chamado radiao
Esses objetos se fundem a partir do colapso gravitacional de gran- Hawking. Por isso, os BNPs teriam tido uma contribuio despre-
des massas de gs concentradas dentro de halos de matria escu- zvel no total atual de matria escura do Universo.
ra. Cosmlogos mapearam, com preciso, a distribuio espacial A possibilidade de BNPs massivos formarem a maior parte ou
dessas massas gasosas por meio de amplas e detalhadas anlises at toda a matria escura se assenta na ideia conhecida como infla-
de galxias e as associaram a minsculas variaes de temperatu- o csmica, criada por Alan Guth nos anos 1980. A inflao uma
ra presentes na radiao csmica de fundo em micro-ondas (CMB, fase hipottica da espantosa expanso logo aps o Big Bang. Em
na sigla em ingls) o brilho residual do Big Bang. A massa difu- 10-35 segundo, dois pontos separados por uma distncia menor que
sa de matria escura em grandes galxias e aglomerados tambm o raio atmico teriam se afastado a quatro anos-luz, uma distn-
curva o espao e distorce a luz de objetos distantes ao fundo, fen- cia comparvel das estrelas mais perto de ns. Alm disso, flutua-
meno conhecido como lente gravitacional. es qunticas minsculas foram amplificadas at escalas macros-
A hiptese dos Machos, porm, caiu em desgraa h dez anos cpicas pela rpida expanso, semeando o Cosmos em crescimen-
quando no foram vistos em observaes experimentais indiretas to com regies mais densas e menos densas de matria e energia
destinadas a provar sua existncia. Mais especificamente, os astr- onde se originaram depois todas as estruturas csmicas. Por mais
nomos os procuraram usando microlentes gravitacionais, um tipo estranho que parea, a teoria da inflao fortemente sustentada
de lente gravitacional onde um buraco negro, uma an marrom ou pela observao dessas flutuaes de densidade na CMB.
at um planeta passam diante de uma estrela ao fundo e amplifi- Em 1996, um de ns (Garca-Bellido), junto com Andrei Lin-
cam temporariamente sua luz. Pesquisas com microlentes gravita- de, da Universidade Stanford, e David Wands, da Universidade de
cionais realizadas por anos com milhes de estrelas na Grande e Portsmouth, descobriu por que a inflao formava picos agudos no
na Pequena Nuvem de Magalhes, as principais galxias satlites espectro de flutuaes de densidade no Universo primordial (veja

56 Scientific American Brasil, Agosto 2017


Buracos negros gerados pelo Big Bang
Os primeiros buracos negros do Universo nasceram nos um segundo depois do Big Bang, formando os chamados bura-
momentos iniciais do tempo csmico, quando tudo era uma tur- cos negros primordiais (BNPs), que posteriormente teriam
bulenta neblina espessa de partculas fundamentais. Na dcada modelado a evoluo da estrutura do Universo em expanso.
de 1970 os tericos perceberam que regies mais densas dessa Sem emitir luz, os BNPs seriam um candidato natural para a
neblina podem ter colapsado sob sua prpria gravidade apenas matria escura, embora difceis de detectar.

Os buracos negros primordiais se formam em aglomerados Ampla faixa no tamanho das utuaes

Grande
nao uma acelerao proposta para a expanso do niverso menos de resulta numa ampla faixa de massas de BNPs
Pico alto

Amplitude da utuao
um segundo depois do Big Bang poderia formar BNPs ampli cando as
utuaes u nticas at escalas imensas uando a inao terminou, essas signi ca
utuaes teriam criado perturbao de densidade ue depois formaram os mais BNPs
BNPs Flutuaes maiores e mais poderosas teriam criado os buracos negros
primordiais mais massivos e numerosos modelo inacion rio dos autores
admite um pico extenso de utuaes ampli cadas e uma faixa mais larga de
perturbaes de densidade como os formadores de buracos negros primor- Modelo de inao padro
diais aglomerados, sendo ue a massa de cada buraco negro variava de um

Pequena
cent simo a de mil ve es a massa do ol Meio milho de anos depois do Big Modelo do autor
Bang, um aglomerado poderia se estender por centenas de anos-lu e con-
ter milhes de PB s medida ue os PB s dentro desses aglomerados se Pequenas escalas Grandes escalas
fundiam, se dispersavam e eram alimentados por g s e poeira comuns, eles Tamanho da utuao
teriam controlado o crescimento de gal xias e aglomerados gal cticos
Flutuaes de densidade Tempo

Perodo
da inao
Primeiras estrelas
(10-35
segundos) (cerca de 100 milhes de
anos depois do Big Bang)
Big Bang Flutuaes de grande
Buracos negros densidade colapsam mais
s
va

primordiais tarde e formam buracos


t re

negros mais massivos


as
ed

Expanso acelera
ad

(cerca de 8 bilhes de anos)


Id

Radiao csmica de
fundo em micro-ondas
(cerca de 380 mil anos No primeiro
depois do Big Bang) bilho de anos

Sementes da estrutura csmica


Os BNPs maiores teriam sido as semen-
tes de buracos negros supermassivos e
galxias que se formaram um bilho de
anos depois do Big Bang. Atualmente, os
aglomerados de BNPs estariam escondi-
dos na forma de matria escura invisvel Atualmente
no interior e em torno das galxias. (13,7 bilhes
Sementes de buracos BNPs remanescentes de anos)
negros supermassivos orbitam galxias massivas

quadro acima). Isto , ns mostramos como as flutuaes qunti- so atual. Esse modelo gera uma populao de buracos negros todos
cas amplificadas pela inflao produziriam naturalmente regies de mesma massa, determinada pela quantidade de energia da
particularmente densas que poderiam colapsar para formar uma regio onde ocorre o colapso. Depois outros grupos comearam a
populao de buracos negros, menos de um segundo aps a infla- explorar essas ideias baseados em diferentes modelos de inflao.
o. Esses buracos negros deveriam se comportar como matria Em 2015, dois de ns (Clesse e Garca-Bellido) propusemos um
escura e serem predominantes no contedo de matria do Univer- cenrio similar ao de 1996, mas nesse caso as flutuaes primor-

Ilustrao de Jen Christiansen e George Retseck (painis de flutuao de densidade) www.sciam.com.br 57


diais exibiam um pico extenso de den-
sidade de energia e dimenses espa- A matria escura formada
ciais, o que originaria BNPs com grande
variedade de massas. Um efeito desse
por buracos negros primordiais?
cenrio o fato de que grandes flutu- Essas observaes faro a diferena:
aes de densidade colapsam quando
espacialmente muito perto umas das 1. Deteco de mais ondas gravitacionais
outras, gerando aglomerados de bura- Detectores de ondas gravitacionais como o Ligo (EUA) devero detectar mais fuses de
cos negros de massas variadas, de cen- buracos negros. A deteco de um nmero inesperadamente grande de fuses de buracos
tsimos a dez mil vezes a massa do Sol. negros massivos poder ser uma pista para uma origem primordial, mas sozinha no basta
Ao longo de meio milho de anos do para provar que buracos negros primordiais (BNPs) so feitos de matria escura. Essa evi-
Big Bang, os aglomerados crescendo e dncia ter de ser corroborada por outras observaes. Em ltima instncia, detectar um
evoluindo poderiam conter milhes de buraco negro com massa menor do que o limite de Chandrasekhar (1,45 massas solares),
BNPs num volume com apenas cente- abaixo do qual as estrelas no produzem buraco negro, seria um sinal indiscutvel de uma
nas de anos-luz de extenso. origem primordial. Felizmente, o Ligo dever em breve atingir a sensibilidade para detectar
Esses aglomerados de BNPs pode- um buraco negro desse tipo, se seu companheiro for mais massivo (maior que dez massas
riam ser densos o bastante para explicar solares). Por fim, em escalas cosmolgicas, um grande nmero de buracos negros binrios
as misteriosas fuses de buracos negros poderia produzir um background difuso de ondas gravitacionais, que seriam detectadas por
observados pelo Ligo, que no se espe- futuras misses como a Antena Espacial de Interferometria Laser (Lisa) baseada no espao, e
rava ocorrerem regularmente. Quando, por sistemas que medem seus efeitos no perodo de pulsares baseados no solo.
eventualmente, as trajetrias de dois
BNPs no interior de um aglomerado 2. Descoberta de galxias ans ultrafracas
se cruzam, os dois objetos ficam presos Em 2015, usando dados da colaborao Levantamento da Energia Escura, astrnomos des-
gravitacionalmente um ao outro. Eles cobriram dezenas de galxias ans ultrafracas no halo galctico, o que sugere que centenas
espiralam um em torno do outro por dessas galxias ans formadas principalmente por matria escura poderiam orbitar a Via
milhes de anos, irradiando ondas gra- Lctea. Se a matria escura constituda por BNPs, a maior parte dela deve estar contida
vitacionais at se fundirem. Em janeiro nessas galxias ans, e muitas podero ser detectadas por futuras misses baseadas no
de 2015 previmos que o Ligo detectaria espao como a misso Euclides, da Agncia Espacial Europeia (ESA) e o Telescpio Infraver-
ondas gravitacionais dessas fuses mas- melho de Campo Amplo, da Nasa.
sivas de fato, o Ligo detectou ondas 3. Medidas de variaes na posio das estrelas
idnticas a essas no mesmo ano. Nossas A misso Gaia da ESA, em andamento, est medindo as posies e velocidades de cerca
estimativas para a taxa de eventos de de um bilho de estrelas da Via Lctea com preciso jamais obtida. Essas medidas pode-
fuso em aglomerados de BNPs esto ro revelar a presena de inmeros buracos negros massivos isolados via minsculas
de acordo com os limites estabelecidos variaes que esses objetos produzem nos movimentos de estrelas vizinhas.
pelo Ligo. Se o Ligo e outros similares
detectarem vrias fuses no futuro, tal- 4. Mapas do hidrognio neutro csmico
vez seja possvel determinar as faixas Antes e durante a formao das primeiras estrelas, o Cosmo era formado principalmente
de massa e rotao de todos os buracos por hidrognio neutro, que emite radiao na faixa de comprimento de onda de radio em
negros progenitores. Essa anlise esta- 21 centmetros. Em 2020, o Arranjo de um Quilmetro Quadrado (SKA, na sigla em ingls)
tstica da fuso de buracos negros teria comear a mapear o cu com sinais em 21 centmetros. A acreo de matria por BNPs
uma contribuio decisiva para testar cria intensa radiao na faixa de raios x, ionizando o hidrognio neutro circundante e
sua origem provavelmente primordial. imprimindo uma assinatura nesse mapa do cu em 21 centmetros. O SKA poder detec-
Um aspecto importante desse cen- tar a presena de BNPs massivos, se forem os responsveis pela matria escura.
rio que ele escapa das restries sobre 5. Investigao de distores da radiao csmica de fundo em micro-ondas
os Machos determinadas antes pelos Raios x emitidos por BNPs ao devorar gs e poeira do Cosmo primitivo tambm poderiam
experimentos com microlentes gravita- produzir distores no espectro na radiao csmica de fundo. A importncia desses efeitos
cionais, restries que descartam bura- ainda controversa, em especial em modelos onde os BNPs reunem-se em densos aglome-
cos negros de at cerca de dez massas rados. Mas a ideia da misso Explorador da Inflao Primordial, da Nasa, medir com preci-
solares como os principais constituin- so essas distores que poderiam restringir muito os modelos da matria escura de BNPs.
tes da matria escura. Se os BNPs exis-
tem e numa ampla variedade de mas-
sas, s uma pequena frao poderia ser
detectada por experimentos com microlentes, e a maioria seguiria luz amplificada de estrelas na galxia de Andrmeda, vizinha da
invisvel. Alm disso, se os BNPs se agruparem em aglomerados, Via Lctea, ou at de quasares em galxias muito distantes. Assim,
nessa distribuio haveria uma chance menor do que uma parte seria possvel explorar um volume muito maior de halos galcti-
em mil de um aglomerado se localizar ao longo da linha de visa- cos, na busca por sinais de Machos, ou seja, por BNPs. Observa-
da das estrelas em galxias prximas do satlite monitoradas por es recentes sugerem que, enquanto Machos com at dez massas
eventos de microlente. Para evitar esse efeito, deveramos exami- solares no poderiam formar a totalidade do halo de uma galxia
nar eventos de microlente em outros pontos do cu, procurando mdia, Machos entre um dcimo e algumas massas solares pode-

58 Scientific American Brasil, Agosto 2017


riam facilmente responder por cerca de 20% da massa no halo de massas solares. Gerados a menos de um segundo depois do Big
uma galxia tpica. Esse valor coerente com o cenrio de BNPs de Bang, esses objetos monstruosos teriam agido ento como semen-
massas maiores. De forma mais simples, no podemos descartar a tes gigantes na formao das primeiras galxias e quasares, que
possibilidade de que a matria escura seja formada principalmen- rapidamente desenvolveriam BNSs em seus centros. Essas semen-
te por BNPs. De fato, esse cenrio poderia desvendar outros mis- tes tambm poderiam ser responsveis pela existncia de buracos
trios csmicos ligados matria escura e formao de galxias. negros intermedirios com massa de mil a um milho de massas
solares, vistos em torno de BNSs e no centro de aglomerados glo-
VRIOS PROBLEMAS, UMA SOLUO bulares de estrelas. Em resumo, os BNPs podem ser o elo perdi-
Aglomerados de BNPs poderiam explicar o chamado proble- do entre buracos negros de massa estelar convencional e BNSs. A
ma dos satlites ausentes a aparente falta de galxias-satli- condio observacional para esse cenrio est se construindo rapi-
tes ans que deveriam se formar em torno de galxias massivas damente: a deteco recente de fontes de raios x inesperadamen-
como a Via Lctea. Simulaes recentes que modelam a distribui- te abundantes no Universo primordial mais facilmente explica-
o csmica de matria escura reproduzem fielmente a estrutu- da pelo grande nmero de BNPs que produziam raios x enquan-
ra de larga escala observada do Universo, na qual halos de mat- to devoravam gs, menos de um bilho de anos aps o Big Bang.
ria escura atraem aglomerados de galxias formando filamentos
gigantescos e lminas que envolvem grandes vazios com baixa ENXERGANDO NO ESCURO
densidade. Em escalas menores, porm, as simulaes predizem a Mesmo que BNPs massivos possam resolver o mistrio da mat-
existncia de inmeros sub-halos de matria escura orbitando em ria escura e outros problemas pendentes, o jogo ainda no acabou.
torno de galxias massivas. Cada sub-halo deve abrigar uma gal- Outros modelos e explicaes ainda podero surgir, e as obser-
xia an, e centenas devem circundar a Via Lctea. Mas os astr- vaes futuras devero facilitar nossa escolha entre as alternati-
nomos encontraram muito menos galxias ans do que se previa. vas. De fato, nos prximos anos vrias observaes podero tes-
H vrias explicaes possveis para o problema da falta de tar o cenrio dos BNPs (veja quadro ao lado). Elas podero incluir
satlites, principalmente a ideia de que as simulaes falham a deteco de galxias ans ultrafracas, o efeito de BNPs massivos
quando se inclui o efeito de toda a matria comum (hidrognio na posio de estrelas na Via Lctea, o mapeamento de hidrognio
e hlio nas estrelas) na formao e comportamento das galxias neutro nos perodos iniciais de formao de estrelas e o estudo de
ans previstas. Nosso cenrio sugere que se os BNPs aglomerados distores na radiao csmica de fundo em micro-ondas.
formam a maior parte da matria escura do Cosmo, eles deveriam Alm desses experimentos, tambm dispomos agora de fer-
ser predominantes nos sub-halos ao redor da Via Lctea, absor- ramentas completamente novas para desvendar os mistrios do
vendo uma frao da matria comum e reduzindo a taxa de forma- Universo, como o Ligo e outros detectores de ondas gravitacio-
o de estrelas nos sub-halos. Alm disso, mesmo que os sub-halos nais. Se o Ligo de fato detectou objetos em fuso numa populao
sejam formadores ativos de estrelas, essas estrelas poderiam facil- invisvel de BNPs massivos, pode-se esperar muitos mais detec-
mente ser ejetadas nos encontros prximos com BNPs massivos. es no futuro. Em junho de 2016, cientistas do Ligo noticiaram
Os dois efeitos reduziriam o brilho das galxias satlites, tornando uma segunda deteco de ondas gravitacionais emitidas na fuso
quase impossvel detect-las sem cmeras de campo amplo de alta de dois buracos negros, de 14 e oito massas solares, e uma prov-
sensibilidade. Felizmente essas cmeras j existem e os astrno- vel evidncia de outra fuso de buracos negros de 23 e 13 mas-
mos j as usaram para descobrir dezenas de galxias ans ultrafra- sas solares. Enquanto concluamos este artigo, eles alegaram ter
cas em torno da Via Lctea. Esses objetos parecem abrigar at cen- detectado mais seis eventos de fuso. As deteces sugerem que
tenas de vezes mais matria escura que estrelas luminosas, e nosso buracos negros binrios so muito mais frequentes que se espera-
modelo prediz que outros milhares devem orbitar nossa Galxia. va e que sua distribuio de massa muito mais ampla, o que est
As simulaes tambm preveem uma populao de galxias em acordo com nosso cenrio de BNPs massivos.
com tamanho intermedirio entre as ans e as massivas. Acredita- Todos esses novos experimentos e observaes podem confir-
-se que tais objetos so grandes demais para falhar por serem gran- mar a existncia de buracos negros primordiais e sua possvel liga-
des o bastante para formar estrelas imediatamente e serem vistos o com a matria que est faltando no Universo. Em breve pode-
com facilidade. Porm, ainda no foram observados nas buscas fei- remos no estar mais no escuro sobre a matria escura.
tas nas vizinhanas da Via Lctea. A soluo desse problema gran-
de demais para falhar similar do problema dos satlites ausen-
tes: BNPs massivos no ncleo de galxias de dimenses interme- PA R A C O N H E C E R M A I S
dirias poderiam ejetar estrelas e gs formador de estrelas desses
The clustering of massive primordial black holes as dark matter: measuring
objetos, tornando-os invisveis na maioria das observaes. BNPs their mass distribution with advanced LIGO. Sbastien Clesse e Juan Garca-
tambm poderiam resolver a questo da origem de buracos negros Bellido em Physics of the Dark Universe, vol. 15, pgs. 142147; maro de 2017.
supermassivos (BNSs). Tais monstros pesam de milhes a bilhes LIGO gravitational wave detection, primordial black holes, and the Near-IR
de massas solares e so vistos nos centro de quasares e galxias cosmic infrared background anisotropies. A. Kashlinsky em Astrophysical
Journal Letters, vol. 823, no 2, artigo no L25; 1 de junho de 2016.
massivas bem no comeo do Universo. Mas se esses BNSs se forma-
Massive primordial black holes from hybrid inflation as dark matter and the
ram a partir do colapso gravitacional das primeiras estrelas, eles seeds of galaxies. Sbastien Clesse e Juan Garca-Bellido em Physical Review D,
no teriam adquirido essas massas imensas num perodo relativa- vol. 92, no 2, artigo no 023524; 15 de julho de 2015.
mente curto menos de um bilho de anos aps o Big Bang.
DE NOS SOS ARQUIVOS
Em nosso cenrio, embora a maioria dos BNPs tenha apenas
dezenas de massas solares, uma frao muito pequena seria mui- Mistrios ocultos do Cosmos. Bogdan A. Dobrescu e Don Lincoln; ed. 159, agosto de 2015.
to mais pesada, variando de centenas a dezenas de milhares de

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C I DA D E S S U S T E N TV E I S

COMO AS
CIDADES
REPORTAGEM ESPECIAL

PODERIAM NOS SALVAR


reas urbanas podem melhorar o planeta, assim como
a vida das pessoas, se as projetarmos para serem mais
eficientes no uso de energia, gua, alimentos e minerais
William McDonough

EM SNTESE

Para serem sustentveis, as cidades deveriam ser Instalaes recm-projetadas esto desbra- Cidades positivas permitem que as pessoas
projetadas de acordo com os princpios circulares da vando e explorando esses princpios, inclusive o vivam e trabalhem nos mesmos bairros, criando
natureza, incluindo fazer uso mximo da radiao so- Parque 20|20, na Holanda, e a Base de Sustenta- grande eficincia e promovendo vidas seguras,
lar e tratar o lixo, os resduos, como um recurso. bilidade da Nasa, na Califrnia. dignas e criativas.

60 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Ilustraes de Harry Campbell


www.sciam.com.br 61
C
IDADES ABRIGAM MAIS DA METADE DA POPULAO DO circular, usinas de tratamento de esgoto
mundo, e exercem um estresse cada vez maior tornam-se verdadeiras fbricas de fertili-
zantes. O carbono, fosfato e nitrognio que
sobre a Terra. Elas produzem at 70% das emis-
fluem dessas instalaes so considerados
ses globais de dixido de carbono (CO2), gas- potenciais recursos para o solo, e no um
tam vastas quantidades de gua, degradam sua risco para os rios. Cidades circulares reti-
qualidade, e produzem montanhas de lixo e ram fosfato de guas residuais e o transfor-
mam em fertilizantes para parques e hortas
outros resduos. Para onde vo as cidades, vai o
urbanas e fazendas e florestas vizinhos. O
planeta. E elas esto crescendo rpido. Em 2030, segundo as processo elimina a necessidade de comprar
mais recentes estimativas da ONU, cinco bilhes de pessoas mais fosfato de fontes distantes e traz-lo,
moraro nelas, e quase a metade transitar por lares, escolas, e evita o consumo de energia e as emisses
locais de trabalho e parques que ainda nem existem. de carbono envolvidos na minerao e no
transporte. A empresa Ostara Nutrient
Os desafios para tornar as solar; e celebrar a diversidade. Recovery Technologies, sediada em Vancou-
cidades to sustentveis quanto No h resduo na natureza ver, no Canad, uma de vrias pioneiras
possvel so enormes. Mas tam- porque cada ser contribui para na coleta de fosfato estruvita do lodo de
bm so inspiradores porque ci- a sade do todo. Flores de uma esgotos para a produo de fertilizantes.
dades podem desempenhar um rvore frutfera caem no cho e A eliminao do conceito de resduo
grande papel na criao de solu- se tornam alimento para outros se estende a todos os sistemas, razo pela
es para um mundo mais sau- William McDonough seres. Bactrias e fungos se ali- qual cidades circulares enviam materiais
dvel. Como esto mostrando as um arquiteto inovador mentam dos resduos orgnicos para um prximo uso, em vez de cravar
C I DA D E S S U S T E N TV E I S

redes de prefeitos, municpios que capitaneou o design de ambos, tanto da rvore como o fim da vida til. Novas tecnologias, por
tambm so atores poderosos, para um desenvolvi- dos animais que comem seus exemplo, permitem que placas de circuitos
mento sustentvel. Ele
que combinam seus pontos for- frutos, depositando no solo de celulares sejam lucrativamente proces-
fundador da empresa
tes, criam agendas ambientais e William McDonough + nutrientes que a rvore absorve sadas em uma instalao limpa, onde todos
exercem uma liderana global. Partners e da McDo- e converte em crescimento. os chamados minerais de terras-raras e
Desde megacidades a cidade- nough Innovation, alm Nutrientes fluem sem parar em metais preciosos so recuperados para
zinhas, prefeitos, vereadores, de cofundador do Insti- ciclos regenerativos do tipo ber- reutilizao em novos eletrnicos.
investidores, economistas e tuto de Inovao de Pro- o a bero . Resduo equivale a Um segundo princpio-chave que
dutos Bero a Bero.
planejadores esto respondendo alimento. tudo energizado pelo Sol e, s vezes,
REPORTAGEM ESPECIAL

demanda de reprojetar desde como na cidade islandesa de Reykjavk,


a base os elementos bsicos de cidades NOSSAS CIDADES hoje so projetadas por energia geotrmica. rvores e plantas
que esto crescendo rapidamente. O modo para um fluxo linear. Nutrientes biolgicos produzem comida a partir da luz solar.
como idealizam a nova paisagem urbana (como comida e madeira) e tcnicos (como Prdios podem aproveitar a incidncia
e projetam seu crescimento influenciar o metais e plsticos) entram de um lado, so solar ao converterem calor diretamente
futuro de toda a vida na Terra. usados e descartados. Depois que os res- em energia e coletarem passivamente a
Muitas cidades esto dando passos duos so triados para seleo de materiais radiao solar para produzir calor e obter
importantes para reduzir a poluio do ar reciclveis valiosos, como metais, papel e iluminao natural. Ventos fluxos trmi-
e da gua. Esto sendo menos ruins. Mas certos plsticos, eles fluem para fora pelo cos alimentados por luz solar tambm
s eficincia no basta para criar um futuro outro lado, levados a aterros sanitrios ou podem ser aproveitados. Juntas, as ener-
positivo. Se cidades tambm puderem ser incineradores. O processo pegue, faa, gias solar, elica e geotrmica podem gerar
eficazes e fazer o bem mais, por exemplo, descarte. Mas, assim como reprojetamos suficiente energia rentvel em termos de
convertendo resduos em nutrientes para certos produtos para serem desmontados, custo-benefcio para atender s necessida-
a produo de alimentos, elas podero nos reciclados ou reutilizados, podemos pro- des de cidades e regies, e at de naes.
impelir rumo ao futuro que desejamos. jetar cidades para funcionar num modo Cidades como So Francisco esto fazendo
Uma viso clara para repensar a cidade circular parecido: pegue, faa, recupere, avanos significativos para cumprir seus
e sua relao com seu entorno rural pode refaa, restaure. compromissos de usarem 100% de energia
ser encontrada na replicao do modo de Na cidade circular, resduos tornam-se renovvel nos prximos 15 anos.
operar do mundo natural. Em essncia, recursos. Considere o esgoto. Na cidade O terceiro princpio-chave, a diversida-
sistemas naturais operam base de energia linear, as estaes de tratamento processam de, encontrado em todos os ecossistemas
solar, que interage com a geoqumica da detritos de alimentos e dejetos humanos saudveis. Cada ser tem uma resposta
Terra para sustentar sistemas biolgicos incluindo os valiosos minerais que eles nica ao seu entorno, que funciona em
produtivos e regenerativos. Sistemas contm, como o fosfato e descarregam os harmonia com outros para sustentar o
humanos que atuem com as mesmas leis efluentes em rios, como poluio. Posterior- sistema. Cada ser se encaixa em seu lugar, e
podem chegar perto da eficcia de sistemas mente, agricultores compram mais fosfato, em cada sistema os mais aptos prosperam.
vivos. Essas leis podem ser condensadas em vindo do Marrocos ou de outras terras Planejadores urbanos que visam o
trs princpios-chave: equiparar resduos distantes, para cultivar alimentos em solos que mais adequado prestam cuidadosa
com alimentos; maximizar o uso da energia que perderam esses minerais. Na cidade ateno ecologia local. Avaliam geologia,

62 Scientific American Brasil, Agosto 2017


B I G D ATA

55%
capta, limpa e libera lentamente gua para
Populao mundial que vive em cidades: o adjacente rio Rouge de modo que susten-
ta a sade da bacia hidrogrfica. Pssaros

5 bilhes
borrelhos-de-dupla-coleira nativos volta-
ram para nidificar uma semana depois que
a obra foi concluda.
Outro modelo a Base de Sustenta-
de pessoas vivero em cidades at 2030 bilidade, o novo centro para cincia e
computao da Nasa em seu Centro de
Pesquisa Ames na Califrnia. A instalao
Cidades dos EUA Habitantes que tem o potencial de suprir todas as suas
comprometidas com utilizam nibus em necessidades de aquecimento, refrigerao
energia 100% renovvel: Curitiba, Brasil: e energia (tendo at um excedente de ener-

27 85%
gia) com fontes solares e geotrmicas, e
uma clula de combustvel com avanados
controles de gerenciamento de energia. A
gua residual tratada no local.
O premiado empreendimento Parque
hidrologia, vegetao e clima. Incorporam loco recuperam nutrientes de guas resi- 20|20 em Hoofddorp, na Holanda, outro
a histria natural e cultural. Ao combina- duais e limpam o que sobra para utilizao modelo. um conjunto de edifcios e
rem essas pistas, eles descobrem padres em cozinhas e banheiros locais. Ar fresco, espaos abertos que est sendo concludo,
para o desenvolvimento do espao. Assim, plantas florescentes e luz diurna esto por numa rea de 11,3 hectares. As pessoas po-
criam possibilidades para um crescimento toda parte. Prdios e comunidades agem dem acessar o parque por via area, trem,
positivo que sustente a vida. como sistemas de suporte vida. nibus e bicicleta. Zonas verdes, praas,
No fim, o que queremos uma cidade Partindo desta viso, podemos imaginar jardins pblicos e passarelas ao longo de
planejada que permita viver e trabalhar no comida e materiais produzidos na rea canais proporcionam uma conexo com a
mesmo bairro. Se os moradores puderem rural vizinha, criados com ferramentas comunidade ao redor. Tamanho, estrutura
desmanchar seus celulares em uma fbrica e tecnologias feitas na cidade. Esta de- e orientao de cada edifcio so otimi-
limpa, que se encaixa no ecossistema da ci- volve resduos como matria-prima que zados para captar energia e luz solar. Os
dade, no h por qu isolar esta fbrica em reabastece o sistema. Tudo se move em edifcios espalhados pelo parque integram
zonas especiais nos subrbios. Uma cidade ciclos regenerativos, da cidade ao campo, sistemas de gerenciamento de energia,
positiva elimina a necessidade de zonea- do campo cidade, em redes naturais e gua e lixo, funcionando como um nico
mento por preocupaes com atividades culturais que circulam nutrio biolgica grande organismo.
inseguras ou insalubres. Fbricas podem e tcnica o hardware e o software do
ficar em bairros residenciais limpos, geran- sculo 21. O metabolismo de uma cidade PODEMOS EXPANDIR esses sucessos
do empregos aos quais as pessoas podem viva, positiva, permite que assentamentos para cidades inteiras? A inspirao vem
chegar a p ou pedalando. Isso reduz humanos e o mundo natural prosperem de alguns lugares interessantes. Um
FONTES: THE WORLDS CITIES IN 2016: LIVRETO DE DADOS. NAES UNIDAS ( populao urbana agora e em 2030); SIERRA CLUB (cidades

bastante a necessidade de meios de trans- juntos. Se quisermos tornar as cidades Curitiba, no Brasil. Curitiba comeou a se
ECONMICA E SOCIAL DAS NAES UNIDAS PARA A SIA E O PACFICO. ONU, 2012 (taxa de utilizao de nibus em Curitiba, Brasil)
dos EUA comprometidas com energia renovvel ); LOW CARBON GREEN GROWTH ROADMAP FOR ASIA AND THE PACIFIC. COMISSO

portes locais e de viagens de lugares mais verdadeiramente sustentveis e benficas transformar sob a direo do arquiteto e
distantes ao local do trabalho, grandes des- para todos, precisamos entender isso como urbanista Jaime Lerner, prefeito trs vezes
perdcios de recursos e tempo. E se comida uma verdade literal, estratgica, presente entre os anos 1970 e 1990. No primeiro
fresca e saudvel for cultivada em telhados em todos os nossos projetos. mandato, Lerner percebeu que a cidade
de prdios por toda a cidade, como ocorre tentador formular princpios para um pobre, com centenas de milhares de habi-
na nova fbrica da Method Products, em futuro utpico. Mas cidades reais poderiam tantes, precisava de um transporte pblico
Chicago, os resduos orgnicos locais no p-los em prtica hoje? Algumas novas melhor. Como um metr ou um sistema
s podem ser um recurso para os sistemas instalaes industriais esto demonstrando ferrovirio pesado custariam muito caro,
de cultivo, mas as pessoas que trabalham como. ele pediu Volvo que construsse 270
nessas hortas de telhado tambm podem A reforma e expanso do Centro Ford nibus articulados suecos, fabricados na
viver nos arredores. Rouge em Dearborn transformou o imenso prpria cidade, o que deu empregos aos
Imagine tudo o que fazemos como complexo de produo de veculos num habitantes. A cidade contratou moradores
gestos que sustentam a vida, inspiram modelo de sustentabilidade industrial. O para construir plataformas de nibus nas
prazer e encontram harmonia com a na- plano mestre incorporou um telhado verde principais vias, de onde as pessoas podiam
tureza. Prdios funcionam como rvores; de mais de quatro hectares o corao de viajar para qualquer lugar por uma tarifa
sequestram carbono, produzem oxignio, um sistema de jardins midos, pavimen- nica. Em vez de cobrar a passagem na
destilam gua, oferecem hbitat a milhares tao porosa, sebes e biovaletas. O projeto hora de embarcar, um processo lento, Ler-
de espcies, e convertem a incidncia solar transformou um megacanteiro industrial ner fez os usurios pagarem ao entrar nas
em energia trmica e eltrica, e vendem a de 100 anos, abandonado, ambientalmente plataformas, de modo que quando o nibus
energia excedente a vizinhos. Prdios com contaminado e subutilizado, num verde- chegasse poderiam embarcar rpido, tor-
reas pantanosas e jardins botnicos in jante ecossistema de guas pluviais que nando o sistema eficiente.

www.sciam.com.br 63
EXPLORANDO
Devido ao rpido crescimento popu-
lacional, o lixo se amontoava em ruelas e
becos, e os caminhes no podiam colet-
-lo. Lerner criou um programa para instruir
crianas a separar o lixo e depois mandou-

O LIXO
-as para casa para ensinarem suas famlias.
Em pagamento pelo lixo separado, as pes-
soas recebiam passes de nibus ou alimen-
tos frescos. De repente, todo mundo usava
o transporte em massa. Hoje, 85% dos curi-
tibanos usam nibus e 90% participam do
programa de reciclagem. A cidade recicla
70% de seus refugos, uma das maiores por-
centagens do mundo.
Esta viso inovadora continuou. Em vez
de construir uma grande biblioteca no cen-
tro da cidade, Curitiba construiu uma rede
de 50 pequenos Faris do Saber nos bair-
Transformar resduos caros
ros, para toda criana estar perto de uma em recursos valiosos pode tornar
biblioteca andando. Construtores locais eri-
giram os edifcios em cores vivas. As biblio- cidades altamente eficientes
tecas trabalham com as escolas munici-
C I DA D E S S U S T E N TV E I S

pais e oferecem milhares de livros, alm de Michael E. Webber


internet gratuita, para cidados de trs a
80 anos. Essas e outras iniciativas deram
cidade um arranjo live-work.

E
Imagine se Manhattan tivesse esse tipo
de viso com comida crescendo nos telha- M 20 DE DEZEMBRO DE 2015, UMA MONTANHA DE REFUGOS URBANOS DESMO-
dos de escolas e hospitais, provendo no s ronou em Shenzhen, na China, matando pelo menos 69 pessoas e des-
comida mas tambm empregos. Crianas truindo dezenas de edifcios. O desastre trouxe vida as torres de res-
poderiam separar e classificar o lixo, tirar os duos mostradas no filme infantil WALL-E, de 2008, que retratou a
REPORTAGEM ESPECIAL

plsticos, lev-lo a centros de reciclagem e horrvel, mas real ideia de que nosso lixo poderia se acumular sem
serem pagas em brinquedos. Fbricas lim- controle, expulsando-nos de nosso hbitat. Uma forma eficaz de trans-
pas transformariam os plsticos em mon- formar uma cidade existente numa urbe sustentvel, que preserve a
meros reutilizveis. Tudo abastecido por Terra em vez de arruin-la, reduzir todos os fluxos de resduos e depois usar o
energia solar, e materiais fluem em ciclos que resta como recurso. O lixo de um processo vira matria-prima para outro.
contnuos de nutrio biolgica e tcnica. Muitas pessoas migram para centros urbanos em todo o mundo, o que coloca
O que buscamos para todos o que eu cidades em uma posio privilegiada para resolver problemas globais de recursos.
chamaria de vida boa uma vida segura, Prefeitos assumem mais responsabilidade para conceber e projetar solues por-
digna e criativa. Em cidades positivas isso que so obrigados a isso, em especial em pases onde o entusiasmo nacional para
pode acontecer. Se forem projetadas e admi- lidar com questes ambientais arrefeceu. Os acordos climticos internacionais
nistradas com base neste princpio, tudo elaborados em Paris, em dezembro de 2015, tambm reconheceram um papel
melhora. Devemos insistir no direito de central para cidades. Mais de
humanidade e natureza coexistirem, unir a mil prefeitos afluram capi-
cidade e suas vizinhanas. Cidades so pro- Michael E. Webber vice-diretor tal francesa para comparti-
jetadas, mas tambm so organismos. Como do Instituto de Energia, codiretor da lhar suas promessas para redu-
Claude Lvi-Strauss destacou, cidades so instituio Clean Energy Incubator e zir emisses. Mudar os cdigos
professor de recursos energticos na
algo vivo e algo sonhado. Como criadores Universidade do Texas em Austin.
de construo e investir em efi-
de lugares vivos, no podemos deixar de nos Seu livro mais recente Thirst cincia energtica so s duas
projetar na paisagem. Mas, medida que for power: energy, water, and human iniciativas que muitos lderes
sonhamos com nossas cidades ideais, pode- survival (Yale University Press, 2016). municipais afirmaram poder
mos comear a ver mais claramente o verda- realizar muito mais rpido do
deiro carter do lugar que habitamos, o seu que governos nacionais.
esprito. Ento, ao moldarmos a natureza de Faz sentido cidades assumirem responsabilidade e adotarem medidas enrgi-
nossas cidades, estaremos criando lugares cas. Algumas, como Nova York, a Cidade do Mxico e Pequim, abrigam mais pes-
que celebram tanto a criatividade humana soas do que naes inteiras. E paisagens urbanas so lugares onde os desafios de
como um relacionamento rico e harmonio- administrarmos nossas vidas convergem de forma explosiva e concentrada. Cida-
so com a terra viva. Estaremos criando uma des podem assumir a liderana porque so capazes de ampliar e expandir rapida-
nova geografia de esperana. mente solues e porque so laboratrios vivos para melhorar a qualidade de vida

64 Scientific American Brasil, Agosto 2017


www.sciam.com.br 65
MQUINAS descavam os escombros em
Shenzhen, na China, depois que uma montanha de
lixo desmoronou, soterrando dezenas de edifcios.
C I DA D E S S U S T E N TV E I S

sem esgotar os recursos da Terra, poluindo 1.900 quilmetros de esgotos numa cida- MENOS MAIS
seu ar e sua gua, e prejudicando a sade de abarrotada de trs milhes de pessoas, Um lugar bvio para iniciar a reduo
humana no processo. encerrando o problema da clera. A obra do desperdcio so tubulaes de gua que
Cidades esto repletas de energia des- tambm criou os aterros fluviais que ainda vazam. Entre 10% e 40% da gua de uma
perdiada, dixido de carbono (CO2) des- existem como um componente fundamen- cidade normalmente se perdem em tubula-
perdiado, comida desperdiada, gua des- tal do ambiente urbano londrino, ao lon- es. E como o municpio limpou essa gua
perdiada, espao desperdiado e tempo go dos quais muitas pessoas passeiam. Mas e acionou bombas para bombe-la, vaza-
desperdiado. Reduzir cada fluxo de des- hoje, s eliminar os resduos com descar- mentos desperdiam energia, tambm.
perdcio e gerenci-lo como um recurso, gas de gua no basta. Depois de reduzir- O consumo de energia em si incrivel-
REPORTAGEM ESPECIAL

em vez de um custo, pode resolver mlti- mos o descarte, deveramos fechar o ciclo e mente ineficiente e desperdiador. Mais
plos problemas, criando um futuro mais usar o restante de novo. Primeiro, limite o da metade da energia consumida por uma
sustentvel para bilhes de pessoas. lixo; depois ponha-o para trabalhar. cidade liberada como calor residual de
Esse novo raciocnio comea por rede- chamins, canos de escapamentos e as par-
POLUIO COMO SOLUO finir nosso conceito de poluio. Raj Bhat- tes de trs de aquecedores, aparelhos de
Lies sobre desperdcio, lixo e resduos tarai, um engenheiro do servio municipal ar-condicionado e eletrodomsticos. Tor-
existem de sobra na histria. John Snow, de abastecimento de gua e coleta de esgo- nar todo esse equipamento mais eficiente
um mdico de Londres, deduziu que ter- to em Austin, Texas, me ensinou uma nova reduz a quantidade de energia que precisa-
rveis surtos de clera atingiram a cidade definio para poluio: recursos fora de mos produzir, distribuir e limpar.
em 1848 e 1854 porque os poos pblicos lugar. Substncias so nocivas se estiverem O lixo outro fluxo residual a ser con-
de gua estavam contaminados por esgo- no lugar errado: em nossos corpos, no ar, solidado. Os EUA geram mais de 1,8 kg de
to. Construir redes de esgotos foi uma solu- na gua. Mas no lugar certo so teis. Em resduos slidos por pessoa todos os dias.
o bvia, mas lderes polticos rejeitaram vez de mandar resduos slidos para um Apesar dos esforos para incentivar a com-
as concluses de Snow porque suas ideias aterro sanitrio e pagarmos a conta, por postagem, reciclagem ou a incinerao
no se encaixavam nas ideologias prevale- exemplo, pode-se inciner-los para gerar de parte dele, um pouco mais da metade
centes e porque as medidas foram conside- energia eltrica. E o esgoto de uma comu- ainda descartada em aterros sanitrios.
radas caras demais. Uma rejeio similar nidade de um milho de pessoas pode ser Reduzir o acondicionamento de produ-
ataca cientistas climticos atuais, que nos minerado para extrair milhes de dlares tos uma forma de diminuir esse volume,
dizem que nossos desperdcios e resduos em ouro e outros metais preciosos por ano gerando, ao mesmo tempo, outros benef-
esto nos matando, embora de um jeito para uso na produo industrial local. cios. Grandes varejistas, como o Walmart,
muito mais lento e menos direto, e que cor- Essa ideia se encaixa no conceito mais constataram que reduzir volume e tama-
rigir o problema exigir investimentos sig- amplo da chamada economia circular nho de embalagens resulta em menos
nificativos em novas infraestruturas. Snow em que as diferentes aes e processos da caminhes para o transporte e mais espao
foi depois justificado, e celebrado como sociedade se alimentam mutuamente uns nas prateleiras para expor as mercadorias.
um heri (talvez o mesmo destino aguar- aos outros de maneira sustentvel e ben- O desperdcio de comida , por si s,
de nossos cientistas de hoje), depois que fica. Simplificando, desperdcio, lixo, ou outra questo dolorosa. Apesar da fome em
GETTY IMAGES

novos lderes criaram ambiciosos proje- refugo o que temos quando nossa imagi- muitos lugares pelo mundo, os americanos
tos de obras pblicas para instalar mais de nao se esgota. descartam de 25% a 50% de seus alimentos

66 Scientific American Brasil, Agosto 2017


comestveis. Alimentos requerem vastas metano do material orgnico descartado, turas baixas so difceis de converter em
quantidades de energia, terras e gua para enquanto gera slidos conhecidos como eletricidade. A Nasa desenvolveu gerado-
serem cultivados, produzidos, armazena- corretivos que podem tornar o solo mais res termoeltricos para fazer isso em suas
dos, preparados, cozidos e descartados, frtil. Essas medidas solucionam diver- naves espaciais, mas a tecnologia cara e
portanto comida desperdiada deixa uma sos problemas de uma vez economizam ineficiente. Mesmo assim, materiais avan-
pegada grande. Iniciativas surgidas nos dinheiro de energia que, de outra forma, ados, que podem converter calor em ele-
EUA, tais como a campanha Eu Valorizo teria sido comprada, reduzem a necessida- tricidade com mais eficincia, esto che-
Comida, e no Reino Unido so um comeo de de aterramentos caros e evitam o desne- gando. Um ponto de partida a gua
rumo soluo deste problema vital. cessrio uso e dano de terras enquanto residual quente que escorre pelos ralos
melhoram a agricultura. quando lavamos roupas, pratos ou cor-
FAZER OS RESDUOS TRABALHAR Austin faz algo parecido com o lodo de pos. Sandvika, um subrbio de Oslo, tem
Uma vez que cidades reduzirem seus suas guas residuais, fazendo-o passar por massivos permutadores de calor ao longo
fluxos residuais, elas deveriam usar o des- digestores anaerbicos para produzir bio- das tubulaes de esgoto municipais que
carte de um processo urbano como recur- gs que vende ou usa no local para gerar extraem calor para aquecer dezenas de edi-
so para outro. Esse tipo de arranjo raro, calor. Os slidos restantes so convertidos fcios prximos ou descongelar caladas,
mas projetos atraentes esto aumentan- ruas e vias. Ao ligar bombas de calor no
do. Modernos sistemas de resduo-con- vero, o subrbio pode usar parte do calor
vertido-em-energia, como um que existe para arrefecer os mesmos edifcios. Van-
em Zurique, na Sua, queimam lixo de for- couver gostou tanto da ideia que copiou,
ma limpa, e alguns, incluindo um em Palm usando guas residuais para aquecer cen-
Beach, na Flrida, recuperam mais de 95% tenas de edifcios e a Vila Olmpica.
dos metais contidos nas cinzas arenosas Uma empresa que est expandindo ain-
deixadas pela combusto. Vilarejos rurais, da mais essa ideia a Symbiosis, de Kalun-
como Jhnde, na Alemanha, criam sufi- dborg, na Dinamarca, uma das pionei-
ciente biogs de gado e esterco de porco ras em simbiose industrial e exemplo do
para aquecer ou suprir de energia eltrica raciocnio circular, de circuito fechado.
uma grande parte de suas casas. Meu gru- Seu parque industrial hospeda sete empre-
po de pesquisa na Universidade do Texas sas, alm de instalaes municipais cen-
em Austin demonstrou que uma fbrica tradas em instalaes eltricas, hdricas,
de cimento em New Braunfels, tambm no de esgoto ou guas residuais, e de resdu-
Texas, pode queimar pellets de combustvel os slidos , que esto interligadas de tal
feitos de plsticos irreciclveis em vez de maneira que o lixo de uma um input
carvo, evitando emisses de CO2 e impac- para outra. Tubulaes, fios e dutos movem
tos decorrentes da minerao de carvo. vapor, gs, eletricidade, gua e resdu-
Mesmo o lixo colocado em aterros sani- os de um lado para outro, a fim de melho-
trios pode ter valor. Cidades podem cole- VANCOUVER queima metano coletado rar a eficincia geral e reduzir os refugos,
tar o metano que emana medida que em aterros sanitrios para produzir calor inclusive as emisses de CO2. A gua resi-
os resduos se decompem, o que uma que aquece estufas de tomates dual da refinaria de petrleo, por exem-
melhoria bvia comparado combusto gerenciadas pela Village Farms. plo, flui para a usina eltrica, onde usada
do gs, ou a simplesmente deixar o metano para limpar e estabilizar cinzas volantes da
subir para a atmosfera, onde retm mui- combusto de carvo. A refinaria tambm
to mais calor do que a quantidade equiva- em um popular corretivo de solo, conheci- manda vapor residual para a indstria far-
lente de CO2. Geradores de energia podem da como Dillo Dirt. A cidade ganha dinhei- macutica Novo Nordisk, que pe o calor
converter o gs coletado em eletricida- ro ao vender o produto, compensando par- para trabalhar para cultivar cerca de meta-
de. Os aterros de Vancouver, no Canad, te do custo do tratamento da gua residual de do suprimento mundial de insulina com
extraem o metano e o queimam para aque- (esgoto). Embora a compostagem seja uma bactrias e leveduras [ver box na prxi-
cer estufas prximas que cultivam tomates. tendncia crescente e popular entre os ma pgina]. O complexo inteiro parece um
Mesmo assim, os lixes ainda seguem moradores e uma que vale a pena prati- organismo industrial vivo. E tem demons-
vazando. Isso inspirou Vancouver, que car , se for malfeita ela na realidade pode trado crescimento econmico com emis-
prometeu tornar-se a cidade mais verde do levar a mais emisses de metano. Para Aus- ses baixas, estveis, ou reduzidas.
mundo, a fornecer a seus habitantes tam- tin, mais sensato que os cidados joguem
bores de lixo separados para lixo comum e restos de comida no ralo da pia da cozinha DECISES IMPULSIONADAS POR DADOS
matria orgnica (restos de comida, aparas e acionem o triturador para que as mqui- O modelo da Symbiosis pode ser repli-
de jardins e quintais, e podas de rvores). nas colheitadeiras em escala industrial na cado em escala maior? Sim, mas s se tor-
CORTESIA DE VILLAGE FARMS

Autoridades esperam que os cidados os usina de tratamento de esgoto realizem o narmos as cidades inteligentes. Um parque
usem corretamente e destacam inspetores trabalho de compostagem, mas com uma industrial flexvel porque s tem alguns
municipais para verificar se os caminhes eficincia maior. ocupantes e tomadores de decises, mas
de lixo esto jogando refugos que foram Calor residual outra grande oportu- numa cidade muitas pessoas e organiza-
separados corretamente. A cidade produz nidade. Colh-lo difcil porque tempera- es tomam decises independentes sobre

www.sciam.com.br 67
Lago Tiss
Estudo de caso:
gua gua de resfriamento usada gua no potvel
gua de superfcie
Kalundborg
industrial gua deionizada Kara/Noveren gua No parque industrial Symbiosis, em
industrial gua de superfcie
gua marinha Kalundborg, na Dinamarca, empresas
tratada
Gyproc Instalao de coordenam o fluxo de energia, gua e
Energia
saneamento e materiais entre si. Resduos ou subpro-
DONG
abastecimento dutos de uma operao so vendidos
municipal como matrias-primas para outras,
Resduos
Gipsita criando receitas e reduzindo o volume
de descarte ou os custos de materiais,
Cinzas alm de diminurem impactos
volantes Aquecimento
distrital ambientais. Cerca de 30 subs-
Resduos tncias, de gua e calor
de etanol Areia residuais a etanol, so inter-
gua da superfcie Sedimento/borra cambiadas e usadas para
Reservatrio criar enzimas, insulina,
Enxofre de gua Vapor
biogs, placas de ges-
Statiol so acartonado e
gua de
C I DA D E S S U S T E N TV E I S

drenagem outros produtos.


Lodo/pasta uida Novo Nordisk
Bioetanol Novo e Novozymes
Vapor Nordisk
Vapor
gua residual/ gua de superfcie gua
esgoto residual/esgoto
Condensado quente
Inbicon gua de superfcie
gua residual/
esgoto
gua residual tratada
Resduos de etanol
Acares Usina municipal
Lignina de algas
Aquecimento distrital
Fertilizante
REPORTAGEM ESPECIAL

Energia para rede Biomassa Novozymes gua de superfcie tratada Energia


gua residual/esgoto e gua no potvel gua
biogs da Novozymes gua residual/esgoto Materiais

energia, gua e lixo todos os dias. Integr- O epteto inteligente em si uma monitorar de perto o consumo de ener-
-los requer uma mudana cultural rumo imputao de que a maioria das cidades gia eltrica, gs natural e gua por hora do
cooperao, movida por avanos nas tec- burra. Essa acusao pega porque cida- dia, assim como o uso de aparelhos doms-
nologias inteligentes. Cidades inteligen- des repletas de lixo e desperdcio parecem ticos e industriais so um lugar bvio para
tes dependero de sensores onipresentes e operar cegamente. A Fundao Nacional comear. Sensores de trfego em tempo
computao barata, baseados em aprendi- de Cincias dos EUA acaba de lanar uma real, monitores da qualidade do ar e detec-
zado de mquina e inteligncia artificial. A iniciativa de pesquisa chamada Comunida- tores de vazamentos tambm esto mo.
combinao pode identificar ineficincias des Inteligentes & Conectadas para ajudar O consrcio Pecan Street, em Austin, est
e aprimorar operaes, reduzindo resduos cidades a usar melhor dados disponveis. colhendo dados de centenas de lares para
e custos enquanto opera automaticamente Esse nome, por sinal, indica que intelign- descobrir como um acesso a tais fluxos
FONTE: CENTRO SYMBIOSIS DA DINAMARCA www.symbiosecenter.dk

todo tipo de equipamento. cia no suficiente interconexes entre de dados poderia ajudar os consumido-
Felizmente, tornar as cidades inteligen- sistemas e pessoas importam, tambm. res a mudar seu comportamento de modo
tes um objetivo sedutor para urbanistas Cidades inteligentes dependem mui- a reduzir o consumo, enquanto, ao mesmo
que desejam acomodar mais pessoas sem to do Big Data, o vasto conjunto de dados tempo, economizam custos. Cidades como
diminuir a qualidade de vida. Na ndia, por coletados de redes de sensores e algorit- Phoenix, no Arizona, e bases militares,
exemplo, onde os problemas populacionais mos avanados amplamente difundidos como Fort Carson, no Colorado, promete-
e de sade pblica so graves, o primeiro- para obter rapidamente insights, tirar con- ram tornar-se consumidoras autossuficien-
-ministro Narendra Modi anunciou sua cluses e tomar decises sobre esses dados. tes de energia e gua, e produtoras zero-l-
inteno de converter 100 municpios de Redes conectadas ento comunicam essas quidos de resduos. Alcanar essas metas
pequeno e mdio porte em cidades inteli- anlises a equipamentos distribudos por ambiciosas exigir grande quantidade de
gentes como uma possvel soluo. toda a cidade. Medidores inteligentes para dados interconectados.

68 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Ilustrao de Harry Campbell


Transportes melhores podem dar aos que precisa reconstruir seus sistemas de
cidados o primeiro vislumbre dos benef- abastecimento de gua, guas residuais e
cios de uma cidade inteligente ao reduzi- esgotos devido a ms decises tomadas h
rem tempo desperdiado. Reduzir a pega- um sculo. A cidade tem investido em sua
da dos transportes significa limpar os rea comercial no centro e est em ascen-
combustveis, tornar os veculos mais efi- so. Pittsburgh, na Pensilvnia, est ala-
cientes, reduzir distncias e durao das vancando seus recursos um ncleo urba-
corridas, aumentar a ocupao dos vecu- no vibrante, orgulho da cidade, a liderana
los e reduzir o nmero de viagens. Se as progressista do prefeito William Peduto,
pessoas viverem perto de seus trabalhos, a fora da Universidade Carnegie Mellon,
elas podem caminhar, pedalar, ou usar o e outros focos incubadores de inovao
transporte coletivo. Estudos mostram que para passar a ser conhecida por sua for-
construir ciclovias protegidas leva a um a intelectual, no mais por suas chami-
acentuado aumento de usurios e, como TUBULAES em Kalundborg, Dinamarca, ns. Alis, a Uber lanou ali seu servio de
suas bicicletas precisam de to pouco espa- transportam vapor residual da usina eltrica carros autnomos. Columbus, que a capi-
o em comparao com carros, elas podem da companhia petrolfera estatal DONG tal de Ohio e sede de uma grande universi-
reduzir os congestionamentos. Energy para outras empresas, que o utilizam dade, outro lugar para procurar por ini-
Uma cidade sem motoristas tam- no processo de fabricao. ciativas de vanguarda. O Departamento de
bm liberar espao e tempo desperdia- Transportes dos EUA recentemente conce-
dos associados a estacionar veculos. Com deu cidade US$ 40 milhes para reinven-
carros compartilhados ou autnomos em tar sua abordagem de mobilidade.
constante movimento, em vez de veculos xos e identificar a localizao do proble-
particulares parados em casa e no traba- ma e a quantidade de gua desperdiada. COMO IR DAQUI PARA L
lho, o nmero de vagas de estacionamento Pesquisadores em Birmingham, na Ingla- Transformar cidades esbanjadoras em
pode ser restringido, abrindo espaos des- terra, criaram um sistema com diminutos lugares que reduzem o desperdcio e reu-
perdiados e atenuando ainda mais os con- sensores de presso que usam uma peque- tilizam o que resta no ser fcil. Investi-
gestionamentos. Pesquisadores no Centro na quantidade de energia para verificar mentos integrados em P&D do governo
para Pesquisa de Transportes na Universi- com frequncia e detectar perdas em redes federal tm de ser combinados com polti-
dade do Texas usaram modelos sofisticados de distribuio de gua, um grande avan- cas prticas de todos os nveis de governo.
Infelizmente, o financiamento de P&D est
em declnio recente, e nos EUA, pode cair

Em vez de enviarmos resduos para um ainda mais sob a administrao Trump.


Investimentos tambm devem ser

aterro sanitrio, eles podem ser incinerados socialmente inteligentes. Estudos mos-
tram que a P&D para cidades inteligen-

para gerar energia eltrica para a cidade. tes tem se concentrado mais em tecnologia
do que naquilo de que os cidados preci-
sam. Feitos do jeito errado, os benefcios de
uma cidade inteligente podem favorecer
para determinar que veculos autnomos o em relao antiga tcnica de espe- os que j tm conectividade com a inter-
compartilhados diminuiriam o nmero rar algum ligar e reclamar de que h gua net e acesso a tecnologias avanadas, o que
de carros necessrios em uma cidade em jorrando na rua. E algum dia poderemos s ampliaria a lacuna tecnolgica, alm de
uma ordem de magnitude e reduziriam as mandar robs inteligentes pelas tubula- outras divises socioeconmicas.
emisses, apesar de causarem um ligeiro es para consertar os problemas. Senso- Municpios tambm precisam ajudar
aumento na quilometragem total percorri- res de alto desempenho tambm permi- seus habitantes a se tornarem cidados
da, porque os veculos permaneceriam em tiro encontrar e prever vazamentos de mais inteligentes, porque cada indivduo
movimento. Em vez de dirigir, as pessoas gs natural antes que ocorram acidentes. toma decises de recursos toda vez que
que tm de ir e voltar do trabalho podem Tais perdas no so s ruins para o meio compra um produto ou aciona um inter-
descansar, ler e-mails, dar telefonemas ambiente e um desperdcio de recursos, ruptor. Acesso a educao e a dados ser
ou realizar outros negcios. Esse trabalho mas tambm perigosos, como vemos pelas primordial. Conectar os cidados tambm
pode criar valor econmico e encurtar as exploses que fazem manchetes em reas requer colaborao e interaes de boa
horas passadas no escritrio, permitindo com infraestruturas envelhecendo. vizinhana: parques, praas, espaos com-
CORTESIA DE SYMBIOSIS DE KALUNDBORG

chegar em casa mais cedo para jantar. difcil saber onde cidades inteligentes partilhados, escolas e centros religiosos e
Tornar nossa infraestrutura mais inte- podem surgir. Imagino que uma provvel comunitrios, todos eles antigos pilares
ligente a chave para resolver problemas candidata ser uma cidade do Centro-Oes- centrais de arranjos seculares para cidades
bsicos, como canos que vazam. Identifi- te, com um milho de pessoas ou mais, que prsperas. Quanto mais modernas e inte-
car vazamentos deveria ser fcil se hidr- precisa se reinventar porque sua economia ligentes nossas cidades se tornarem, mais
metros fossem distribudos pelo sistema foi destruda dcadas atrs. Indianpolis, poderemos precisar desses elementos do
de abastecimento para monitorar os flu- em Indiana, vem mente, em parte por- antigo mundo para nos manter unidos.

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70 Scientific American Brasil, Agosto 2017
Assaf Biderman inventor, diretor associado do Carlo Ratti arquiteto e engenheiro, diretor
Senseable City Lab e fundador da Superpedestrian, do Senseable City Lab no Instituto de
uma empresa voltada ao desenvolvimento de veculos Tecnologia de Massachusetts e fundador do
robticos para ocupao por uma ou duas pessoas. estdio de design Carlo Ratti Associati.

TRNSITO
INTELIGENTE
REPORTAGEM ESPECIAL
Uma teia mvel de veculos dotados de sensores e cruzamentos
inteligentes transformar o modo como nos deslocamos pela cidade

C I DA D E S S U S T E N TV E I S
Carlo Ratti e Assaf Biderman

C
ARROS E CIDADES TM UMA RELAo complicada. Hoje, atormentados por engarrafa-
mentos sempre maiores e ar cada vez mais poludo, tendemos a pensar nos dois
como sendo cada vez mais incompatveis. Mas no sculo 20 o carro deixou uma
das marcas mais duradouras no planejamento urbano. Como diz o arquiteto Le
Corbusier em seu livro seminal A cidade de amanh e seu planejamento, o carro
a motor... derrubou por completo nossas antigas ideias de planejamento urbano.
Quase 100 anos depois estamos num ponto de virada seme- sensores que coletam dados internos e externos para ajud-
lhante. Primeiro, espera-se que a demanda por transporte urba- -lo a funcionar de maneira segura e eficiente. Empresas, tais
no mais que dobre at 2050, o que significa que teremos de como a Waymo (derivada, agora independente, da Google),
mais que dobrar a capacidade de ruas e avenidas s para man- Cruise (adquirida pela General Motors), Otto (adquirida pela
ter os congestionamentos nos nveis de agora. Segundo, graas Uber), Zoox e nuTonomy, por exemplo, esto experimentando
rpida convergncia das tecnologias da informao e comu- com sensores adicionais que conseguem enxergar uma rua
nicao, robtica e inteligncia artificial, nossos sistemas de de um jeito muito parecido com a maneira como nossos olhos
mobilidade carros, nibus e outros esto passando por o fazem. Uma vez que voc insere essas informaes em um
grandes transformaes. E, mais uma vez, esto prestes a remo- sistema de inteligncia artificial a bordo, voc tem um veculo
delar radicalmente a paisagem urbana. plenamente autnomo, capaz de navegar por movimentadas
Veculos que se dirigem sozinhos (ou autnomos) esto grades de trnsito sem qualquer interferncia humana.
liderando a mudana. Nas ltimas dcadas, carros passaram Carros autnomos vo liberar grande parte do tempo que
dos tipos de sistemas mecnicos que Henry Ford talvez tives- passamos diariamente ao volante, e tornaro nossas ruas e
se reconhecido, para verdadeiros computadores sobre rodas. outras vias mais seguras. Eles sero elementos profundamen-
Agora, o veculo mdio est equipado com um conjunto de te transformadores no modo como nossas cidades funcionam

www.sciam.com.br 71
medida que cada automvel se aproxima do
cruzamento, ele emite um sinal de solicitao de
acesso via Wi-Fi para o gerenciador da interseco. O
sinal, com registro de data e hora, inclui detalhes da

rota. Aqui, o carro vermelho 1 entra primeiro na zona

do sinal, sendo seguido pelo veculo laranja 2 , depois

dos carros 3 e do verde 4 .
Limite para solicitao
3 de acesso ao cruzamento

Cruzamento

Rotas
prede nidas
xas

4
REVISITING STREET INTERSECTIONS USING SLOT-BASED SYSTEMS, BY REMI TACHET
FONTES: SENSEABLE CITY LAB, INSTITUTO DE TECNOLOGIA DE MASSACHUSETTS;

ET AL., EM PLOS ONE, VOL. 11, N 3, ARTIGO N E0149607; 16 DE MARO DE 2016

Carro que se
aproxima da
zona do sinal

Distncia da traseira
Um segundo grupo, liderado pelo carro azul 5 ,
Distncia para parar se aproxima do cruzamento.

or se urana veculos pertencentes ao mesmo uxo


precisam manter uma dist ncia especi cada da traseira
um do outro eculos em uxos di erentes so separados
de acordo com a distncia de que precisariam para parar.

72 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Ilustrao de Jen Christiansen


Controle de trfego
Veculos autnomos permitiriam que urbanistas substitussem semforos por cruzamentos inteligentes em que cada veculo que se
aproxima de uma interseco recebe uma janela de tempo para atravessar. Pesquisas sugerem que esses cruzamentos poderiam per-
mitir a passagem do dobro de veculos por uma interseco num dado intervalo de tempo, em comparao com semforos.

Cruzamentos por janelas Primeiro grupo Segundo grupo As solicitaes


so mais e cientes uando dos veculos so
veculos so agrupados em remanejadas neste
lotes, permitindo ao Solicitao intervalo de tempo
gerenciador da interseco de tempo 1 2 3 4 5 6 7
automatizada reorganizar a
ordem dos carros dentro de
um grupo de veculos por Tempo
vez. Esse arranjo impede de acesso 1 2 3 4 5 6 7
ue uma la de carros em
uma via mais movimentada
domine o sistema custa Lapso de tempo do sinal Atraso experimentado pelo Atraso experimentado pelo
de veculos que transitam at a entrada do cruzamento veculo 1 em condies veculo 5 em condies
na outra direo.

REPORTAGEM ESPECIAL
em condies de uxo livre gerenciadas de cruzamento gerenciadas de cruzamento

Embora o carro laranja fosse o segundo a pedir acesso ao


cruzamento, e o dourado o terceiro, o controlador da
interseco determinou que o veculo dourado estava perto o
su ciente do vermel o para atravessar o cru amento na
sequncia. Consequentemente, o carro laranja foi instrudo a
diminuir a velocidade, e caiu para a terceira posio.

C I DA D E S S U S T E N TV E I S
Carros que viram
direita podem
urar a la
2

1
3

4 4

6
2
7

www.sciam.com.br 73
mas de jeitos que ainda esto longe de mundo poderia ser atendida com ape- ficar viagens mais rpidas, menos engarra-
estarem decididos. De um lado, podemos nas 30% de seus veculos existentes. Alm famentos e impacto ambiental menor.
imaginar que mais pessoas comearo a do compartilhamento de veculos, a auto-
compartilhar esses veculos para que as nomia poderia abrir uma nova onda de SEM ESTACIONAR, SEM SEMFOROS
mquinas possam dar caronas para um viagens compartilhadas. Aplicativos como Carros autnomos no exigiro infra-
passageiro aps o outro, todo o dia. Nes- o Via, uberPOOL e o Lyft Line j permi- estrutura urbana adicional mas levaro a
se caso, nossas cidades podem funcionar tem que pessoas diferentes compartilhem outras mudanas significativas. Conside-
usando apenas uma pequena frao dos o mesmo trajeto, reduzindo custos opera- re a necessidade de estacionar. Nos EUA,
veculos hoje em servio. De outro, pode- cionais e tarifas individuais. A autonomia a infraestrutura de estacionamentos cobre
remos ter mais cenrios distpicos. Robin impulsionaria trajetos compartilhados cerca de 20.720 quilmetros quadrados,
Chase, cofundador e ex-CEO do servio ainda mais porque todas as corridas pode- rea quase to grande quanto a de Nova
de compartilhamento de veculos Zipcar, riam ser gerenciadas on-line. Em cidades, Jersey. Se mais veculos fossem compar-
escreveu sobre carros zumbis aqueles o potencial para compartilhar viagens tilhados, necessitaramos de bem menos
sem ningum dentro entupindo nos- significativo, com base em anlises realiza- lugares. Quais seriam as consequncias?
sas cidades, nossas ruas e avenidas. Sua das por nosso Senseable City Lab, no MIT. Com o tempo, vastas reas de valiosas
viso prev desemprego para motoristas Nova York, por exemplo, eminen- terras urbanas, hoje ocupadas por esta-
profissionais, perda de receita de nossa temente compartilhvel. O projeto Hub- cionamentos, poderiam ser reprojetadas
infraestrutura de transporte, e um pesa- Cab, do nosso laboratrio, reuniu dados e desenvolvidas para sustentar um novo
delo de poluio, congestionamentos e de 170 milhes de corridas de txi que espectro de funes sociais. O Park(ing)
agitao social. envolveram 13.500 txis da cidade mais Day, evento anual realizado pela primei-
Nirvana tecnolgico ou distopia urba- especificamente, as coordenadas de GPS ra vez em So Francisco, em 2005, oferece
na? Para abordar esta questo, precisa- para todos os seus pontos de embarque e ideias preliminares. Todos os anos, o even-
C I DA D E S S U S T E N TV E I S

mos investigar como veculos autnomos desembarque e os intervalos entre os dois. to desafia artistas, projetistas e cidados
poderiam alterar nossas paisagens urba- Em seguida, desenvolvemos um modelo a transformar vagas em espaos pblicos
nas e os modos como nos deslocamos
atravs delas.

ECONOMIA DE COMPARTILHAMENTO
Vastas reas urbanas poderiam
Em mdia, carros ficam ociosos 96%
do tempo. Isso os torna candidatos ideais
ser reprojetadas e desenvolvidas
para a economia compartilhada. O poten-
para sustentar funes sociais.
REPORTAGEM ESPECIAL

cial para reduzir congestionamentos


enorme. Alguns poucos sistemas de com-
partilhamento de veculos como o Zip- matemtico para determinar o potencial temporrios. No passado, participantes
car, americano, e o Car2Go, alemo j efeito do compartilhamento aplicado a estenderam placas de grama natural com
esto tendo um grande impacto no nme- esses trajetos. O projeto introduziu o con- terra nesses locais e dispuseram rvores e
ro total de carros em cidades. Estudiosos ceito de redes compartilhveis, possibili- bancos ao longo das caladas.
estimaram que cada veculo compartilha- tando otimizar as oportunidades de com- Em uma escala muito maior e de for-
do remove de nove a 13 carros particulares partilhar corridas. Nossos resultados reve- ma permanente, estacionamentos vazios
das ruas. Os benefcios crescero exponen- laram como o compartilhamento de txis poderiam ser convertidos para oferecer
cialmente, medida que veculos autno- poderia reduzir o nmero total de car- amenidades pblicas como playgrounds,
mos, hoje disponveis apenas experimen- ros em 40%, com atrasos mnimos para os cafs, pistas de corrida e ciclovias.
talmente, conquistarem uma fatia not- passageiros. Trabalhos mais aprofundados Outros componentes visuais comuns
vel do mercado, obscurecendo a distino mostraram que lugares como So Francis- das ruas de nossas cidades podem desapa-
entre transporte privado e pblico. Seu co, Viena e Cingapura poderiam benefi- recer. Pegue os semforos, uma tecnologia
carro poderia lhe dar uma carona at o ciar-se de medidas similares. de 150 anos, originalmente concebida para
trabalho de manh e depois, em vez de Combine o compartilhamento de car- ajudar carruagens a evitar colises. Ve-
ficar parado, transportar outro membro de ros e o de viagens, e uma cidade poderia culos autnomos com sensores, capazes
sua famlia ou outra pessoa em sua vizi- funcionar perfeitamente bem com apenas de se comunicar uns com os outros, pre-
nhana ou comunidade de mdia social. 20% dos veculos hoje em uso, com seus cisaro de menos ajuda nos cruzamentos.
Como resultado, um s veculo poderia moradores fazendo corridas por demanda. Como resultado, interseces baseadas
saltar de uma hora de uso para 24 horas claro que tais redues so tericas. Na em sequncias de janelas , inspiradas
de servio por dia. Um recente artigo de vida real dependeriam de quo dispostas nos sistemas de controle de trfego areo,
nossos colegas no Instituto de Tecnolo- as pessoas estariam a compartilhar corri- poderiam substituir os semforos. Ao se
gia de Massachusetts (MIT) relata que, em das, e adotar tecnologia autnoma. Mas aproximar de um cruzamento, um veculo
tais condies, a demanda de mobilida- qualquer decrscimo poderia reduzir os contataria automaticamente um sistema
de de uma cidade como Cingapura sede custos e a energia associados construo de gerenciamento de trfego para solicitar
de uma das primeiras frotas publicamen- e manuteno da infraestrutura de mobili- acesso. Ento lhe seria atribuda uma jane-
te acessveis de carros autodirigidos do dade. Menos carros tambm podem signi- la para passar pela interseco.

74 Scientific American Brasil, Agosto 2017


Cruzamentos baseados em janelas mento de viagens podem criar mudan- dindo desordenadamente comunidades
poderiam reduzir filas e tempo de espe- as muito favorveis no transporte urba- suburbanas insustentveis?
ra, conforme demonstrou nosso projeto no. Mas se a transio para a cidade sem Outras ameaas merecem ser mencio-
Light Traffic. Anlises mostram que siste- motoristas no for gerenciada com cuida- nadas. Multas, taxas de estacionamento,
mas que atribuem janelas em tempo real do, tambm pode levar a efeitos negativos. e impostos associados a carros, tais como
poderiam permitir que o dobro de vecu- A primeira preocupao a segurana. registros de carros e motoristas, so uma
los atravesse uma interseco na mesma Todos sabemos como quando um vrus substancial fonte de receita para todos
quantidade de tempo usada por semfo- invade um computador e o sistema falha, os tipos de jurisdies locais e nacionais.
ros. Este arranjo pode ter grande impac- trava. E se um vrus fizer isso num carro? O amplo uso de carros autnomos pode-
to na rede viria de qualquer cidade. Os O hacking malicioso difcil de combater ria eliminar esse fluxo crucial de dinheiro.
tempos de viagem e de espera cairiam; o com as ferramentas tradicionais, e parti- Podemos imaginar o que aconteceria com
consumo de combustvel seria reduzido; cularmente perigoso no caso de sistemas, a j desgastada infraestrutura americana
e menos trfego lento significaria menos tais como os de carros autnomos e que se esse cenrio se tornasse realidade. Tal-
poluio do ar. Como bnus, os cruzamen- combinam o digital e o fsico. vez cidades possam compensar ao reproje-
tos baseados em janelas so suficiente- Problemas adicionais podem surgir do tarem e readaptarem ptios de estaciona-
mente flexveis para acomodar pedestres e que se poderia chamar a vantagem com- mento sem uso e construrem novas infra-
bicicletas que compartilham a rua. petitiva injusta da autonomia. O custo estruturas que produzam receitas. Mas
Vale a pena notar que uma viso to de viajar um quilmetro pode cair tanto tambm devemos lembrar que milhes de
sedutora depende de mais do que apenas que as pessoas abandonariam os transpor- motoristas que hoje trabalham em logs-
veculos autnomos e sistemas inteligen- tes pblicos em favor de carros autno- tica ou transporte urbano podem ficar
tes de gerenciamento de trfego. Ela tam- mos. Isso, por sua vez, poderia levar a um desempregados em todo o mundo.
bm requer uma coordenao de mercado aumento no nmero de veculos numa Como escreveu Robin Chase: Sim-
muito melhor. As empresas de comparti- cidade, e com esse aumento, a engarrafa- plesmente eliminar os motoristas dos car-
lhamento de carros hoje tm platafor- mentos surreais. Alm disso, manter car- ros, e manter todo o resto relativo ao nos-
mas que no se comunicam entre si. Clien- ros em movimento todas as horas do dia e so sistema igual, ser um desastre. Como
tes no conseguem comparar opes da noite, em vez de estacionados 96% do resultado, imperativo que vejamos essas
facilmente, e motoristas no podem se tempo, poderia aumentar a poluio. novas tecnologias com um olhar crtico
beneficiar de uma demanda agregada. A Carros autnomos podem gerar outra e que as norteemos rumo aos objeti-
situao parecida com a que reinava na consequncia involuntria: agravar a vos sociais que desejamos. Boas polticas
indstria de viagens areas antes da inter- expanso urbana. Esta no seria a primei- poderiam ajudar a evitar os resultados
net. Agora, passageiros podem comparar ra vez que uma inovao tecnolgica em negativos que descrevemos. Como foi o
alternativas de voos atravs de vrios sis- mobilidade resultaria em tal efeito. Em caso no sculo 20, muita coisa depender
temas de distribuio global que seguem seu livro As quatro vias, de 1941, Le Cor- de um saudvel ciclo de tentativa e erro.
padres estabelecidos pela Open-Travel busier descreveu como isso se desenro- Ainda assim, se conseguirmos geren-
Alliance (OTA), uma associao comercial lou nas primeiras dcadas do sculo 20: ciar a transio de uma maneira cuida-
sem fins lucrativos, e assim se beneficiam A ferrovia converteu as cidades em verda- dosa e ponderada, carros autnomos,
de maior transparncia e concorrncia. deiros ms; elas se encheram e incharam que se dirigem sozinhos, poderiam nos
Em cidades, duas abordagens pode- sem controle, e o campo foi abandonado. ajudar a alcanar uma experincia urba-
riam criar uma arquitetura de mobilida- Foi um desastre. Felizmente, o automvel, na mais segura e agradvel. Ao fazerem
de semelhante. A primeira seria um esfor- atravs da organizao das ruas, restabele- isso, eles poderiam, em ltima instncia,
o de baixo para cima, em que pequenos cer esta harmonia quebrada e iniciar o melhorar justamente a misso original
participantes comeam a adotar padres. repovoamento da rea rural. No futuro, o de nossas cidades, que remonta ao sur-
Isto est comeando a acontecer com uma que acontecer se as pessoas, recm-capa- gimento dos primeiros assentamentos
colaborao entre a Lyft e a Didi Chu- citadas para ir e vir enquanto dormem ou humanos, h 10 mil anos reunindo-
xing, na China; Ola, na ndia; e GrabTa- trabalham, decidirem se mudar para fora -nos, independentemente do tipo de ve-
xi no Sudeste Asitico. O segundo esforo da cidade, consumindo terras e expan- culos em que nos locomovemos.
seria de cima para baixo, liderado por um
governo ou uma organizao global, tal
como o Consrcio World Wide Web (W3C,
PARA CONHECER MAIS
em ingls). Como os servios de transpor-
te j so intensamente regulamentados na The upcycle: beyond sustainabilitydesigning for abundance. William McDonough e Michael Braungart.
North Point Press, 2013.
maioria dos pases, isso no seria exagera-
Trash-to-Treasure: Turning Nonrecycled Waste into Low-Carbon Fuel. Alex C. Breckel, John R. Fyffe e
damente implausvel. Qualquer uma das Michael E. Webber em EARTH, vol. 57, n 8, pgs. 4247; agosto de 2012.
abordagens poderia criar uma platafor- Para mais detalhes sobre o Parque 20|20 acesse: www.park2020.com/en
ma incrivelmente poderosa e transparente Senseable City Lab, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts: http://senseable.mit.edu
para servios de transporte e logstica.
DE NOSSOS ARQUIVOS

POTENCIAIS ARMADILHAS Cidade eficiente. Mark Fischetti; edio n 113, outubro de 2011
Veculos autnomos e compartilha-

www.sciam.com.br 75
A E V O

BIOLOGIA

Os humanos danam s por lazer ou


a dana ajudou nossos ancestrais a
sobreviverem h milhares de anos?
Thea Singer

76 Scientific American Brasil, Agosto 2017


L U O

DA
D A

N
A
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O
Thea Singer uma jornalista de cincia de Boston com
artigos publicados, entre outros, por The Washington Post,
MIT Technology Review e Psychology Today. Ela tambm
autora de Stress Less (Hudson Street Press, 2010).

O TANGO ARGENTINO famoso por ser uma


dana difcil, mas eletrizante. Basta ver uma
apresentao dos danarinos profissionais
Mora Godoy e Jos Lugones
para entender por qu. Seja
danando peito com peito 1 2
ou em ngulos oblquos,
Mora e Jos chicoteiam
pelo piso, pernas zunindo
como lminas de um venti-
lador. Quando ela ergue
uma perna dobrada fren-
te, ele responde com um
passo rpido para trs. O
par desliza com facilidade
ao compasso de dois por quatro, combinando que contriburam significativamente para o sucesso da linhagem
humana. Talvez, ento, a dana seja um feliz acidente evolucio-
com perfeio cada respectivo giro de quadril nrio, um subproduto da seleo natural para aqueles outros tra-
e zapatazo, gancho de perna e cruzada de p. os que ajudaram nossos ancestrais a prosperarem. Percepes
da psicologia e da arqueologia apontam para outra possibilida-
de intrigante, no entanto: danar, em si, teria evoludo como um
Nem todos conseguem se mover com a graa dessa dupla de trao adaptativo, trao que pode ter fortalecido os laos sociais
especialistas, evidentemente. Mas todos ns sentimos vontade de humanos de forma a favorecer a sobrevivncia.
danar, o que tem atrado um nmero incontvel de participan-

PGS. ANTERIORES: JEREMY JACKSON Gallery Stock; NESTA PG.: ARIJIT SEN Getty Images (1); GETTY IMAGES (2)
tes em todas as culturas ao longo da histria humana. Mas a dan- SINTA O RITMO
a rara no reino animal. E, embora umas poucas outras espcies Decompondo seus elementos bsicos, danar o ato de sentir
possam acompanhar um ritmo com o corpo, nenhuma exibe nada e prever o andamento de um ritmo externo e acompanhar o som
parecido com a complexidade da dana humana. com movimentos rtmicos do corpo. Essas aes requerem uma
Por que danar um trao humano to comum e por que grande dose de coordenao entre diferentes partes do crebro.
somos to bons nisso? Nos ltimos anos, cientistas comearam Na ltima dcada, pesquisadores no Canad, EUA e Inglater-
a identificar caractersticas do crebro e do corpo que susten- ra comearam a identificar profundas redes de clulas nervosas
tam nossa excepcional habilidade. Algumas dessas caractersti- no crebro humano que agem coordenadamente para isolar o
cas esto ligadas linguagem e locomoo ereta, dois traos ritmo de sinais auditivos externos. Quando essas redes reconhe-

EM SNTESE

A dana desempenha um papel importante em to- neurolgico denominado entrainment, ou sincroniza- bilidade de sincronizao. Mas colibris, papagaios e
das as sociedades humanas conhecidas. Sua onipre- o, pelo qual os neurnios motores que controlam um leo-marinho da Califrnia tambm demons-
sena implica uma vantagem de sobrevivncia ou os msculos se alinham com os sinais auditivos de- traram esse talento.
meramente um subproduto acidental de crebros tectados pelos neurnios sensoriais. Novas investigaes em uma srie de disciplinas re-
grandes e postura ereta? At recentemente, os pesquisadores pressupu- velam que as origens da dana so complexas e po-
A habilidade de danar depende de um processo nham que apenas os seres humanos possuam a ha- dem nunca ser completamente entendidas.

78 Scientific American Brasil, Agosto 2017


cem o padro de base, elas preveem o andamento dos compassos dos na vocalizao deu a Patel uma ideia de como a sincronizao
seguintes, gerando um arranjo correspondente dentro do crebro. entre os nervos que processam o som e os que controlam mscu-
O prximo passo o que torna a dana possvel. As partes los pode ter evoludo. Seu trabalho sugere que as mesmas inova-
do crebro que controlam os msculos comeam a ser acionadas es neurais que permitiram aos humanos aprender e produzir a
em sincronia com as batidas previstas a partir das redes auditi- linguagem falada tambm nos predispuseram a ser danarinos.
vas. (Essas chamadas reas de planejamento motor do crebro, Na opinio de Patel, a capacidade de imitar sons abriu cami-
de fato, entram em ao mesmo quando estamos parados e sim- nho para a sincronizao previsvel, flexvel. Essa imitao
plesmente detectamos um ritmo.) Essa juno de processamen- demonstra o que pesquisadores chamam de aprendizado vocal,
to auditivo com movimento fsico rtmico est no centro de nossa no qual um animal ouve atentamente um som, forma um mode-
capacidade de tocar uma batida com nossos dedos ou valsar pelo lo mental dele, alinha o controle motor de sua garganta, lngua e
salo. Cientistas chamam a essa sincronizao de entrainment. boca com o do modelo e, ento, produz o som modelado. Quan-
Salvo em casos de doenas, ns humanos chegamos ao entrain- do o animal ouve o resultado, ele percebe e corrige discrepncias
ment naturalmente, e podemos manter o movimento rtmico por entre o som previsto e som real e tenta novamente. Patel sugere
uma ampla variedade de compassos por longos perodos. Nos- que a conjuno de processamento auditivo e motor exigida para
sas habilidades de sincronizao so incrivelmente flexveis, afir- imitar sons assentou as bases neurolgicas para o processo poste-
ma Aniruddh D. Patel, neurocientista da Universidade Tufts. Ns rior, mais complexo de sincronizao auditivo-motora preditiva.
podemos ficar sincronizados com um ritmo quer ele acelere ou Por que o aprendizado vocal evoluiu em certos animais? Alguns

3 4 5

RITMO MUNDIAL: Crianas exibem


desacelere em mais ou menos 30%. Essa dana clssica em Mumbai, ndia (1); cientistas especulam que isso pode ter per-
capacidade em geral surge entre trs e cin- danarinos de break demonstram mitido que pssaros canoros dominassem
co anos de idade. movimentos em Los Angeles (2); bai- complexas manifestaes acsticas para se
Por anos os cientistas acreditaram que larinos mostram flexibilidade e graa anunciar a um par. Os papagaios so equi-
apenas humanos tinham a habilidade de do bal moderno (3); Bal Bolshoi se pados com um crach acstico algo que
sincronizar seu comportamento fsico com alinha perfeitamente (4); desfile de os caracteriza como membros de um gru-
sons externos. Ento, em 2009, comea- rua e dana festiva em Cuba (5). po, conta Patel.
ram a surgir estudos mostrando que papa- Se a hiptese de Patel, de que a imitao
gaios, colibris e talvez pssaros canoros vocal precondio necessria para a sin-
possam em escala limitada acompanhar a msica com seus cronizao auditivo-motora, estiver correta, ento os nicos ani-
movimentos. Snowball, um cacatua macho famoso por balanar mais que seriam capazes de conseguir essa sincronia so aqueles
GETTY IMAGES (3); LINDA VARTOOGIAN Getty Images (4); CHRISTOPHER PILLITZ Getty Images (5)

a cabea para cima e para baixo ao som dos Backstreet Boys, esta- que j so capazes de imitar sons. At agora, os nicos animais
va entre os pssaros estudados. E, em 2013, pesquisadores rela- conhecidos que imitam sons so humanos, colibris, papagaios, ps-
taram que uma fmea de leo-marinho da Califrnia chamada saros canoros, baleias, alguns pinpedes (mamferos aquticos), ele-
Ronan podia mover a cabea seguindo uma srie de compassos. fantes e alguns morcegos. Nossos mais prximos parentes vivos,
Humanos porm so os nicos animais que podem produzir bonobos e chimpanzs, no so aprendizes vocais, e a maior par-
os movimentos intimamente coordenados exigidos para danar te das evidncias at agora sugerem que eles no praticam sincro-
em pares ou grupos. Pssaros capazes de sincronizao movem- nizao. Embora, em um estudo, um chimpanz fmea tenha apa-
-se de forma individual e intermitente ante a msica, diz Patel. rentemente conseguido sincronizar suas batidas com um com-
Mesmo quando diversos papagaios vivem juntos num abrigo, eles passo, ela no conseguiu manter o ritmo com outros compassos.
no coordenam seus movimentos ou danam uns com os outros,. Pesquisadores tambm descobriram um bonobo fmea que pare-
cia capaz de bater em um tambor no ritmo, mas eles alertam que
JOGO DE IMITAO ela poderia estar observando o examinador em busca de sinais e
Dana no o nico atributo humano que depende de entrain- no apenas respondendo ao que estava ouvindo.
ment. Falar e cantar tambm exigem a habilidade de sincronizar Essas observaes reforam a ideia de que a imitao vocal seja
sons com movimentos fsicos especificamente, de cordas vocais um precursor necessrio para a sincronizao. Mas elas no repre-
e msculos na garganta. Rastrear os caminhos neurais envolvi- sentam uma certeza. Demonstrar sincronizao em espcies no

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humanas no fcil. Pense nos complexos duetos entre algumas na. Mas isso difere de para qu os humanos evoluram. Ns evo-
espcies de pssaros. Eles se alternam no canto mantendo o anda- lumos para andar e correr, lanar, escavar, acrescenta Lieber-
mento com preciso prevendo quando o outro vai terminar man. A seleo natural para essas habilidades permitiu que nos-
ou s reagem ao silncio do parceiro? E como se pode testar isso? sos ancestrais em particular o Homo erectus aprimorassem
O maior problema para a hiptese de Patel, no entanto, Ronan, suas habilidades de caa e coleta.
o leo-marinho que balana a cabea. Lees-marinhos no so con- H todos os tipos de adaptaes fascinantes que, acredita-
siderados aprendizes vocais, embora sejam aparentados de morsas mos, evoluram para corrermos, diz Lieberman. Os dedos dos ps
e focas, que o so. Mas, em 2013, pesquisadores da Universidade da dos humanos so muito mais curtos, por exemplo, do que os de
Califrnia mostraram que Ronan podia mover a cabea acompa- nossos antepassados. Do ponto de vista biomecnico, isso des-
nhando compassos simples e, mais tarde, seguindo msicas mais necessrio para andar, mas torna o correr mais eficiente. Os trs
complexas. Testes posteriores mostraram que ele podia manter cor- canais semicirculares do ouvido interno cresceram ao longo de
retamente o ritmo mesmo quando este acelerava ou desacelerava. milnios, permitindo que mantenhamos nosso equilbrio quan-
H vrias maneiras para explicar a aparente habilidade de do movemos a cabea, assim podemos correr com mais velocida-
Ronan. Talvez se trate somente de um leo-marinho muito talen- de e agilidade. Essas adaptaes tambm so teis para a dana.
toso a exceo que prova a regra. Ou talvez os lees-marinhos Para Lieberman, a dana pode ser um resultado coinciden-
ainda possuam o maquinrio neural para a imitao vocal e ape- te da evoluo da corrida que se provou to til que conferiu sua
nas no o utilizem mais. prpria vantagem seletiva adicional. No precisa ser uma coisa

6 7 8

ALCANCE GLOBAL: Danarinos tri-


Tambm possvel, evidentemente, bais saltam em Uganda (6); adoles- tudo ou nada, diz ele. Pode ser parcial.
que o feito de Ronan prove que a hipte- centes fazem pose nos EUA (7); dan- Pode ser que a dana fosse selecionada a
se de imitao vocal est errada. Patel e a judaica de celebrao em Londres favor, ou pode ser que danar nunca tenha
outros sugeriram que uma forma de testar (8); danarino sufi gira em Istambul sido selecionada a favor, ou pode ser que
essa hiptese seria determinar se poss- (9); intrpretes de gueixas exibem alguns elementos da dana fossem sele-
vel ensinar sincronizao a cavalos que leques no Japo (10); companhia de cionados a favor. Ele faz uma pausa. Tes-
no so aprendizes vocais nem aparenta- dana segue o ritmo em Cuba (11). tar essas hipteses, rapaz, isso difcil.
dos deles. Cavalos no deveriam ser capa-
zes de acompanhar um ritmo especfico, ESFORO DE GRUPO
mas h amplas evidncias empricas de que eles conseguem, afir- A observao de danarinos atuais oferece algumas fascinan-
ma Mara Breen, que est testando a hiptese de Patel em cavalos. tes pistas sobre os tipos de vantagens que danar deve ter confe-
Se for constatado que h arrastamento entre esses animais, ento rido em nosso passado evolucionrio. Uma notvel caracterstica
GEORGE F. MOBLEY National Geographic (6); GETTY IMAGES (7); DAN KITWOOD Getty Images (8)

talvez o processo no seja to difcil, afinal, ou evoluiu em outras da dana humana que ns tendemos a execut-la juntos. Quando
espcies por razes diferentes das dos humanos. sentimos e prevemos os movimentos uns dos outros h um dar e
receber fsico e emocional entre indivduos, sejam parceiros de tan-
UM PAPEL NA CORRIDA? go ou multides da gerao Y no embalo de Bruno Mars. Essa capa-
Diferentemente da dana de outras criaturas, a dana huma- cidade de grupo representa o que pode ser chamado de arrasta-
na vai alm do balano da cabea para incluir movimentos coor- mento social, e confere com o que mile Durkheim, que ajudou a
denados do torso e dos membros. Como a evoluo de nossa inco- criar a sociologia, denominou efervescncia coletiva, ou o senti-
mum postura ereta teria afetado nossa capacidade de danar? do de ser parte de algo maior do que si mesmo. Esse tipo de coe-
Uma ideia que ganhou ateno nos ltimos anos que a dan- so social pode ter sido valioso para atividades de sustentao da
a teria surgido de nossa capacidade de correr ao contrrio de vida como obter comida ou evitar predadores.
apenas andar sobre duas pernas. Certamente tiramos vanta- O antroplogo Edward Hagen, da Universidade do Estado de
gem de sermos bpedes para danarmos, comenta o bilogo evo- Washington Vancouver, leva a ideia um passo adiante. Ele suge-
lucionista Daniel E. Lieberman, da Universidade Harvard, que, re que msica e dana podem ter evoludo como uma forma de os
em 2004, foi coautor de um estudo de referncia publicado em grupos avaliarem uns aos outros ao buscarem formar alianas que
Nature sobre o papel da corrida de resistncia na evoluo huma- iam alm dos elos do reino. A qualidade de um grupo danando

80 Scientific American Brasil, Agosto 2017


em conjunto, por exemplo, poderia dar uma indicao do desem- essas atividades aconteceram entre povos do paleoltico superior.
penho de seus membros como parte de uma coalizo maior. Entre eles est Isturitz, uma caverna nos Pireneus franceses, onde
Uma coeso social maior tambm transmite benefcios fisio- flautas de ossos de 35 mil a 20 mil anos atrs foram encontradas.
lgicos. Um estudo de 2010 realizado por cientistas da Universi- Fica claro por outras evidncias arqueolgicas que muitos gru-
dade Oxford mostra que a atividade fsica sincronizada orientada pos diferentes se reuniam nesses locais em certas poca do ano,
para um objetivo unificado nesse caso, remar no barco do clube diz o paleoantroplogo Iain Morley, autor do livro The prehistory of
da universidade eleva significativamente os limites de dor dos music: human evolution, archaeology, and the origins of musicali-
participantes na comparao com o treinamento solo. Os autores ty, de 2013. Quando vemos esse tipo de atividade de grupo grande
atriburam o aumento liberao de endorfinas, opioides natu- em sociedades de caadores-coletores hoje, msica e dana ocor-
rais em reas do crebro associados com o humor. Robin I. M. rem. Assim, acredita Morley, os ancestrais da humanidade prova-
Dunbar, antroplogo e psiclogo evolucionrio em Oxford, argu- velmente esto fazendo msica e danando h dezenas de milhares
menta que essas endorfinas fortalecem os laos sociais quando as de anos tempo suficiente para a evoluo influenciar o resultado.
pessoas se empenham em atividades musicais em grupo tambm. H algo inquestionvel sobre essas mais elusivas formas de
Pode-se imaginar duas sociedades, uma que no danava, arte. Danar est relacionado com comunicar-se, seja entre os
outra que danava. A que danava teria laos sociais muito mais prprios participantes ou entre os participantes e os observado-
fortes, diz o arquelogo Clive Gamble, professor da Universida- res. Danarinos esto, em essncia, partilhando um mundo a sua
de de Southampton, na Inglaterra. Em uma situao competitiva prpria inveno. Ao fazerem isso, eles tambm esto modifican-

9 10 11

entre as duas, a sociedade que danava teria uma vantagem evo- do seus crebros. Clnicos e pesquisadores tm reconhecido os
lucionria, acrescenta ele. benefcios da dana para pessoas com distrbios do movimento
Dada a falta de evidncia direta das origens da dana, cientis- como mal de Parkinson. De fato, muitas pessoas que sofrem com
tas em diversos campos se voltaram para o comportamento das os tremores, enrijecimento e dificuldades de iniciar movimentos
poucas sociedades de caadores-coletores que ainda existem em que caracterizam o Parkinson podem, ao ter aulas de dana, recu-
busca de pistas sobre nosso passado ancestral. Sua forma de vida perar parte de sua habilidade de sincronizao. Como um bene-
provavelmente o mais prximo que os antroplogos podem che- fcio adicional, as aulas ajudam a formar laos sociais que podem
gar de como eram as sociedades humanas antes da adoo disse- ter sido desfeitos pela doena.
minada da agricultura h 10 mil anos. As aulas de dana para pessoas com Parkinson no tm, eviden-
A antroploga evolucionista Camilla Power, da Universidade temente, o objetivo de descobrir a prxima Mora Godoy. Mas elas
do Leste de Londres, estuda o povo hadza, do norte da Tanznia, oferecem suas prprias transformaes. A mais antiga das ativi-
GURCAN OZTURK Getty Images (9); FRANK CARTER Getty Images (10); NIKA KRAMER Gallery Stock (11)

que tipicamente vive em acampamentos de 20 a 30 pessoas, dades humanas une corpo e mente de formas que estamos apenas
nos quais homens e mulheres so socialmente iguais. Por gera- comeando a compreender.
es, a dana ligou emocionalmente os hadza a outros grupos,
incluindo o povo bayaka, da frica Central, e o povo San, do deser-
to do Kalahari, em fices partilhadas. Participantes encenam PA R A C O N H E C E R M A I S
iniciaes, rituais de cura e relaes de gnero, entre outras coi- Rhythmic entrainment: why humans want to, fireflies cant help it, pet birds try,
sas, relata Camilla. Entre os hadza, rituais importantes de dana and sea lions have to be bribed. Margaret Wilson e Peter F. Cook em Psychonomic
incluem simulao de guerras dos sexos, em que mulheres insul- Bulletin & Review, vol. 23, n 6, pgs. 16471659; dezembro de 2016.
tam homens e esses retribuem na mesma moeda. essa dinmi- The origins of human and avian auditory-motor entrainment. Adena Schachner
em Nova Acta Leopoldina, vol. 111, n 380, pgs. 243253; 2013.
ca que fundamenta o igualitarismo, diz ela. Mulheres consolidam
Musical rhythm, linguistic rhythm, and human evolution. Aniruddh D. Patel
seu poder, mesmo desempenhando papis masculinos, incitando em Music Perception: An Interdisciplinary Journal, vol. 24, n 1, pgs. 99104;
os homens a caar em troca de carinhos mais tarde. September 2006.
H evidncias indiretas de que danas em grandes grupos tm
D E N OSSOS A RQU I VOS
ocorrido por milhares de anos. Os chamados locais de agregao
grandes reas bastante pisoteadas onde foram recuperados ins- A neurocincia da dana. Steven Brown e Lawrence M. Parsons; agosto de 2008.
trumentos musicais pr-histricos fornecem indcios de que

www.sciam.com.br 81
D

82 Scientific American Brasil, Agosto 2017


MEDICINA

OPERAO:
DIABETES
Cirurgia que encurta os intestinos elimina a doena; e
novas evidncias mostram que os intestinos e no s
a insulina podem ser responsveis pela enfermidade
Francesco Rubino

Ilustrao de Kotryna Zukauskaite www.sciam.com.br 83


Clnico e cientista, Francesco Rubino chefe do departamento de
cirurgia baritrica e metablica do Kings College, de Londres, e
cirurgio do Hospital Kings College. Ele membro remunerado dos
conselhos consultivos cientficos da GI Dynamics e da Fractyl,
companhias que desenvolvem tratamentos intestinais para diabetes, e

Q
consultor das fabricantes de dispositivos mdicos Ethicon e Medtronic.

UANDO COMECEI MINHA FORMAO COMO CIRURGIO, H CERCA DE, DUAS


dcadas, eu estava ansioso para tratar tumores, pedras na vescula, hr-
nias e todas as outras condies ao alcance de um bisturi. A cirurgia me
parecia uma soluo direta para alguns problemas graves.

O diabetes tipo 2 no era um deles. Operaes focam uma tambm dar pistas sobre a causa fugidia do diabetes.
dada parte do corpo, e os mdicos sabiam que o diabetes cau- Na poca, no fim dos anos 1990, tnhamos acabado de saber
sa danos a mltiplos rgos e envolve uma falha no uso eficiente que o mundo vivia uma epidemia da doena que segue at hoje. As
de um hormnio que regula a glicose no sangue, a insulina. Cla- mais recentes estimativas da Federao Internacional de Diabetes
ramente, no era algo a ser facilmente seccionado ou retirado. e da Organizao Mundial da Sade sugerem que pelo menos 415
Mas, em uma tarde do vero de 1999, minha viso sobre o milhes de pessoas no mundo tm o mal, e o nmero deve chegar
diabetes e a minha carreira se transformaram radicalmente. a 650 milhes at 2040 (90% tm diabetes tipo 2, as demais tm o
Eu tinha acabado de mudar da Itlia para Nova York para ini- tipo 1, quando o pncreas no produz insulina suficiente). Desco-
ciar o programa de uma bolsa sobre cirurgia minimamente inva- brir a causa e a cura pode salvar milhes de vidas.
siva na agora chamada Escola de Medicina Icahn no Monte Sinai. Aps uma noite insone, animado pelas possibilidades, levei a
Eu estava na biblioteca lendo sobre uma operao conhecida como ideia pela manh ao meu supervisor, Michel Gagner. Ele achou que
derivao biliopancretica quando vi algo estranho. A interveno eu estava a caminho de algo importante. Juntos, pedimos direo
destinada a pessoas severamente obesas. Ela as faz perder peso de nossa escola de medicina a realizao de um teste clnico em
ao encurtar a rota que o alimento segue pelos intestinos, evitan- humanos para ver se a cirurgia poderia ter efeitos melhores sobre
do sees que absorvem nutrientes. Muitos pacientes sofriam de o diabetes do que as terapias convencionais, mesmo em pessoas
diabetes tipo 2, que acompanha a obesidade. O que me surpreen- que no so severamente obesas. Nossa proposta foi rejeitada, no
deu, porm, foi que um ms aps a cirurgia essas pessoas apresen- s naquele momento como reiteradamente nos meses seguintes.
tavam nveis de acar no sangue totalmente normais. Elas sequer A rejeio foi desalentadora, mas talvez no surpreendente. O
haviam perdido muito peso, se alimentavam sem restries de diabetes vem sendo tratado h sculos com dietas, plulas e inje-
calorias ou acar e no tomavam nenhuma medicao para dia- es. Como a causa presumida alguma disfuno nas clulas pro-
betes. Mesmo assim, muitas seguiram sem diabetes por anos. dutoras de insulina no pncreas e na forma como o corpo lida com
Era impressionante. Como uma operao podia resolver pro- esse hormnio, operar pessoas e cortar parte do intestino como
blemas de acar no sangue em uma doena que, todos os livros- remdio deve ter soado como uma heresia e um risco insensato.
-texto diziam, crnica, progressiva e irreversvel? O diabetes pode Duas dcadas depois, a heresia comea a se tornar o senso
ser administrvel, mas no se espera que desaparea. Em busca comum. H agora dezenas de estudos com animais e pelo menos
de uma explicao, lembrei que o intestino delgado produz hor- 12 testes clnicos controlados, randomizados, envolvendo cen-
mnios que estimulam o pncreas a produzir insulina extra. A tenas de pessoas que exploraram a cirurgia desenvolvida ori-
mudana cirrgica na anatomia poderia afetar esses hormnios ginalmente para reduo de peso como tratamento para o dia-
de algum modo que restaurasse o metabolismo normal da glicose? betes tipo 2. Todos mostraram que reduzir a superfcie do trato
Ou o intestino abriga outros mecanismos da doena que a cirurgia gastrointestinal gera um efeito mais forte sobre o diabetes que
poderia corrigir? Se sim, a cirurgia poderia ser usada para tratar o qualquer outra terapia. E no s resultado da perda de peso. Em
diabetes, e saber como a interveno produzia esse efeito poderia muitos pacientes, os nveis de acar no sangue voltam aos nveis

EM SNTESE

Quarenta e cinco organizaes mdicas agora re- Diversos testes clnicos mostram que a cirurgia Resultados cirrgicos ligam o diabetes aos intesti-
comendam operaes originalmente destinadas controla o diabetes de forma melhor, mais rpida e nos. A operao pode funcionar porque altera hor-
reduo de peso como opes de tratamento pa- por perodos mais longos que medicamentos e mu- mnios, cidos biliares e bactrias dos intestinos ou
dro para diabetes tipo 2. danas na dieta. remove uma causa da doena.

84 Scientific American Brasil, Agosto 2017


Cortando o diabetes Circuitos neurais
Os intestinos tm ramos de nervos, como o
Cirurgia de reduo de peso, que muda a anatomia do nervo vago, que enviam sinais do e para o cre-

Glicose
bro. Esses circuitos neurais alertam o crebro
trato gastrointestinal, se mostrou um tratamento quando os intestinos detectam a passagem de
poderoso para o diabetes tipo 2 e agora recomendada nutrientes. O crebro ento sinaliza ao fgado
Tempo
por mais de 40 associaes mdicas. Pesquisadores para suprimir a produo de glicose. Essa res-
comearam a identificar os mecanismos pelos quais uma posta melhora aps operaes de by-pass
operao pode melhorar o controle da glicose no sangue. gastrointestinal.

Antes da Microrganismos dos intestinos


cirurgia A comunidade microbiana dos intestinos
Uma interveno comum, chamada by-pass gstrico influencia a eficincia na captao de energia
Aps a
em Y de Roux, encurta o intestino grosso onde o de uma pessoa. Ao alterar as caractersticas do
cirurgia
alimento se mistura aos sucos digestivos. Isso no s contedo intestinal, as operaes mudam a
reduz as calorias absorvidas como limita a estimulao populao de micrbios. Essas modificaes
de clulas intestinais pela passagem de nutrientes. podem resultar em taxas metablicas mais
altas e melhor controle da glicose.
Caminho do alimento
Estmago cidos biliares
dividido cidos biliares do fgado e da vescula fluem
Fgado Antes da para a parte superior do intestino delgado. Eles
Novo segmento cirurgia tambm circulam no sangue como hormnios,
do intestino Aps a regulando o metabolismo das clulas. A cirur-
para transporte cirurgia gia aumenta os cidos biliares em circulao e
de alimento Glicose torna rgos mais sensveis insulina.
cidos
biliares
Hormnios dos intestinos
Vescula O intestino delgado contm clulas que liberam
Pncreas hormnios na corrente sangunea quando
Caminho da bile
nutrientes os estimulam. Esses hormnios
podem desencadear atividade no fgado, pn-
Duodeno cortado creas e outros rgos que afeta os nveis de a-
e rearranjado, car no sangue. Operaes de by-pass gstrico
formando dois encurtam alguns segmentos intestinais, mudan-
caminhos Sinal do assim a quantidade de hormnios liberados.
Intestino
distintos para grosso qumico
bile e alimento Transporte de glicose
Durante a digesto, a glicose retirada de part-
Intestino delgado culas de alimento nos intestinos passa pelo seu
revestimento para a corrente sangunea. O
Glicose
processo depende do transporte por molculas
Alimento digerido se mistura com bile que precisam de sdio para funcionar adequa-
a meio caminho do intestino delgado damente. Na cirurgia, uma fonte primria de
Sdio
sdio, a bile, desviada dali. Isso dificulta o
Molcula de transporte pelas molculas, baixando os picos
transporte Vaso de glicemia aps as refeies.
sanguneo

normais em semanas, muito antes de os nveis de gordura ou os REUNINDO EVIDNCIAS


quilos comearem a baixar. Em geral, cerca de 50% dos pacien- Nas semanas seguintes minha surpreendente descoberta
tes ficam livres do diabetes aps a cirurgia, e alguns permanecem na biblioteca, enquanto nossas propostas para testar a cirur-
assim por anos. Os demais mostram melhora significativa no con- gia em humanos com diabetes eram rejeitadas, eu me aprofun-
trole do acar no sangue e podem reduzir sua dependncia de dei na literatura mdica em busca de evidncias que pudessem
insulina ou outras medicaes. reforar minha posio. Descobri que mdicos vinham obser-
As evidncias so to fortes que, em 2016, 45 associaes mdi- vando efeitos positivos sobre o diabetes aps a cirurgia do tra-
cas endossaram a cirurgia gastrointestinal como opo de trata- to gastrointestinal por quase um sculo. Em 1925, um artigo em
mento padro para diabetes mesmo para pacientes moderada- Lancet descrevia o desaparecimento quase da noite para o dia
mente obesos. E o conhecimento sobre os mecanismos pelos quais do excesso de acar na urina, um sintoma do diabetes, aps
a cirurgia afeta o metabolismo da glicose inspira abordagens no uma operao gastrointestinal para tratar uma lcera gstrica.
cirrgicas que tm o intestino delgado como alvo. Depois que a cirurgia gastrointestinal se tornou um tratamen-

Ilustrao de Mesa Schumacher www.sciam.com.br 85


to para obesidade severa em meados dos anos 1950, observa- vescula ou histerectomia, que so, em geral, consideradas de bai-
es semelhantes se tornaram mais comuns. Durante as dca- xo risco. Diversas anlises econmicas sugerem que o custo da
das de 1980 e 1990, muitos relatos citaram os efeitos antidiab- cirurgia (cerca de US$ 20 mil a US$ 25 mil nos EUA) pode ser com-
ticos desse tipo de cirurgias, incluindo um estudo pioneiro do pensado em dois a trs anos pela reduo nos gastos com medica-
cirurgio Walter Pories, da Universidade da Carolina do Les- o e cuidados com o diabetes.
te, e seus colegas que envolveu mais de 120 pacientes e foi ine-
quivocamente intitulado Quem pensaria nisso? Uma operao O INTESTINO COMO UM PONTO DOCE
se prova a mais eficaz terapia para diabetes melito no adulto. Por que a cirurgia funciona to bem? Ningum tem certeza,
Apesar dessas observaes to convincentes, a cirurgia no mas o trato gastrointestinal aparece com um papel-chave tanto no
era considerada como uma terapia sria para o diabetes em si. metabolismo normal da glicose como nas disfunes associadas
Um grande obstculo era que, para muitos mdicos, parecia mais ao diabetes. H pelo menos cinco meios de os intestinos exerce-
provvel que a perda de peso no ps-operatrio, mais do que a rem influncia: por meio de hormnios, cidos biliares, molculas
operao, causava os efeitos positivos. Superar esse debate se tor- que retiram glicose dos intestinos, microrganismos que vivem nos
nou importante depois que Gagner e eu no pudemos iniciar os intestinos e circuitos neurais.
estudos clnicos. Voltei-me para os roedores para investigar se a O revestimento do trato gastrointestinal tem clulas especia-
alterao cirrgica no trato gastrointestinal poderia influenciar o lizadas que respondem aos nutrientes e outros estmulos liberan-
metabolismo da glicose, independentemente da mudana no peso. do hormnios, que estimulam ento a secreo de insulina do
Eu havia me mudado para o Instituto Europeu de Videocirurgia pncreas ou afetam as sensaes de fome ou saciedade. Mudan-
em Estrasburgo. Ali, meus colegas e eu pegamos camundongos as na anatomia do trato gastrointestinal via cirurgia limitam o
magros com diabetes tipo 2 e aplicamos um by-pass duodeno-je- tempo que o alimento leva para passar por essas clulas, reduzin-
junal, uma operao experimental para encurtar o trato intestinal, do o contato e a estimulao em alguns segmentos do trato. Isso
mantendo o tamanho do estmago (A ideia evitar impedimen- tambm significa que h mais alimento disponvel nos segmentos
seguintes. O resultado aumento nos nveis

Um total de 89% dos de alguns hormnios e reduo na secreo


de outros.

pacientes com diabetes Estudos refinados em humanos por


David Cummings, da Universidade de
Washington, mostraram que operaes de
submetidos cirurgia no by-pass gstrico inibiram os nveis de gre-
lina em circulao, um hormnio indutor

tomavam insulina cinco da fome que tambm parece regular como


determinadas clulas absorvem glicose.

anos aps a operao. Carel W. le Roux, agora no University Colle-


ge Dublin, e outros demonstraram que uma
operao de reduo dos intestinos chama-
tos mecnicos para a ingesto de alimentos.) Aps a cirurgia, nos- da by-pass gstrico em Y de Roux e procedimentos semelhantes
sos camundongos mostraram melhoras no metabolismo de glicose elevam os nveis de outros hormnios, chamados incretinas, que
com ou sem mudanas na ingesto de alimentos ou peso corporal. aumentam a produo de insulina.
Outros investigadores corroboraram essa descoberta apli- cidos biliares, outro tipo de molculas que regula como
cando by-pass duodeno-jejunal e outros procedimentos em dife- o corpo usa energia, tambm so afetados por cirurgias gas-
rentes modelos de animais. Ento, no incio deste sculo, eles trointestinais para perda de peso. Conhecidos por seu papel na
demonstraram isso em pessoas. Na ltima dcada, pelo menos digesto de alimentos, os cidos biliares tambm entram na
uma dzia de testes clnicos randomizados foram realizados e corrente sangunea e sinalizam as clulas receptoras em vrios
todos mostraram resultados semelhantes. Num dos estudos, Gel- rgos e tecidos. Esses sinais levam as clulas a aumentarem
trude Mingrone, da Universidade Catlica de Roma, junto comi- seu uso de lipdios e glicose. A cirurgia gstrica pode elevar os
go e outros colegas, demonstrou que, cinco anos aps a cirur- nveis de cidos biliares em circulao, o que ajuda clulas a
gia em 38 pacientes, mais de 80% estavam em remisso comple- retirarem glicose do sangue. Estudos tambm mostram que
ta da doena ou eram capazes de manter bom controle dos nveis os cidos biliares podem evitar que clulas do sistema imuno-
de acar no sangue com pequenas doses de medicaes ou s lgico chamadas macrfagos se acumulem no tecido adiposo.
com dieta e exerccios. Dados de outro teste com 96 pacientes Menos macrfagos reduzem a inflamao e a resistncia insu-
cirrgicos conduzido por Philip Schauer e seus colegas da Clni- lina, que so marcas da obesidade e do diabetes tipo 2.
ca Cleveland mostraram que, embora cerca de 45% precisassem A cirurgia tambm pode afetar outro mecanismo que contri-
de insulina antes da operao, um total de 89% no tomava mais bui para o diabetes: molculas de transporte de glicose. Na diges-
o medicamento cinco anos aps a cirurgia. A interveno tam- to, partculas de alimentos so quebradas nos intestinos e a gli-
bm pode reduzir complicaes da doena como ataque carda- cose extrada. A glicose passa pelo revestimento intestinal para
co, AVC e mortalidade relacionada ao diabetes mais que os trata- a corrente sangunea com a ajuda dessas molculas transporta-
mentos padro, segundo o amplo estudo Sujeitos Obesos Suecos. doras. As molculas precisam de elevadas concentraes de sdio
A segurana desses procedimentos boa na comparao com para funcionar adequadamente. Mas, em alguns tipos de cirurgia
outras operaes comumente realizadas, incluindo cirurgia de gstrica, os segmentos do intestino que transportam alimentos

86 Scientific American Brasil, Agosto 2017


so redirecionados para se desviarem de suas fontes primrias sinalizam uma origem gastrointestinal da doena. Mecanismos
de sdio os sucos pancretico e digestivo. Sem sdio, a ativida- intestinais disfuncionais suscitados por alimentos podem tambm
de das molculas transportadoras de glicose significativamente explicar como aumentos globais nos alimentos ricos em carboidra-
desacelerada, o que, por sua vez, melhora o controle da glicose no tos e gordura nos ltimos anos, e com o crescimento da oferta de
sangue ao reduzir picos de glicose aps uma refeio. comida em muitos pases, podem causar uma doena epidmica.
Microrganismos nos intestinos tambm podem desem-
penhar um papel. O trato gastrointestinal abriga trilhes de DISPOSITIVOS ANTIDIABTICOS
micrbios. Alguns ajudam o corpo a extrair energia do san- Embora possa ser um remdio poderoso, a cirurgia nunca ser
gue e produzem qumicas que reduzem inflamao e resistn- uma soluo de massa para um problema disseminado. Ela exi-
cia insulina. Como a cirurgia altera a acidez dos intestinos ge hospitais, pessoal altamente treinado e um grau de risco que
assim como a quantidade e a composio qumica de nutrien- acompanha o uso de um bisturi em qualquer paciente. Ns preci-
tes dentro dos intestinos, isso pode mudar a populao local samos de remdios menos invasivos. Pelo menos um j pode estar
de microrganismos. Lee Kaplan, da Faculdade de Medicina da disponvel: uma pequena manga que pode ser inserida nos intes-
Universidade Harvard, e seus colegas mostraram que isso afe- tinos pela garganta e estmago. A ideia cobrir o duodeno, a par-
ta o metabolismo. Eles comearam submetendo um grupo de te do trato gastrointestinal logo abaixo do estmago. ali que os
camundongos a operaes de by-pass gstrico. Semanas depois, sucos biliar e pancretico se misturam com alimento parcialmente
os pesquisadores transplantaram as populaes de bactrias digerido, alterando as caractersticas qumicas de tudo o que des-
dos intestinos desses camundongos para animais no operados cer para os intestinos. Portanto, esse ponto-chave pode influen-
cuja bactria nativa havia sido erradicada. Esse segundo gru- ciar o fluxo abaixo no trato gastrointestinal e a maior parte dos
po foi colocado em uma dieta rica em gorduras. Eles ganharam mecanismos de controle de glicose que eu descrevi.
pouco peso e melhoraram muito seu metabolismo quando com- Em uma srie de experimentos, eu e as pessoas que trabalham
parados com os roedores que receberam transplantes de bac- comigo vedamos o duodeno de camundongos diabticos inserin-
trias de camundongos que no foram submetidos cirurgia. do um tubo de silicone flexvel que deixa o fluxo de nutrientes pas-
Outro efeito ocorre nos circuitos neurais que influenciam o sar direto por esta seo. As partculas de alimentos no tocaram
metabolismo. Um circuito, por exemplo, passa entre os intestinos e as clulas de revestimento duodenal ou se misturaram com bile.
o crebro ao longo do nervo vago. Ele permite ao intestino delgado O controle de glicose no sangue melhorou acentuadamente. Mas
detectar diminutas quantidades de nutrientes ingeridos e informa ns ento fizemos buracos no tubo, permitindo que os nutrien-
ao crebro que, por sua vez, inibe a produo de glicose no fgado tes vazassem. Essa modificao sabotou os efeitos antidiabticos.
e, assim, reduz os nveis de glicose no sangue. Experimentos com Mangas de plstico flexvel que blindam o duodeno em huma-
roedores feitos por Tony Lam, da Universidade de Toronto, e cole- nos j existem. Foram criadas para simular os efeitos de um
gas mostraram que a cirurgia gastrointestinal de by-pass aumenta by-pass gstrico sem cirurgia, e aprovadas para uso clnico na
a atividade desses mecanismos de deteco de nutrientes. Europa e Amrica do Sul. Pacientes que se submeteram ao pro-
Por fim, possvel que a cirurgia possa remover algum meca- cedimento sentiram melhora acentuada nos sintomas diabti-
nismo ativo de bloqueio de insulina dentro dos intestinos que cos. H tambm uma abordagem nova, j em testes com huma-
poderia causar diabetes. A teoria para isso comea com os horm- nos, na qual os mdicos introduzem um dispositivo com um balo
nios estimuladores de insulina, de nome incretinas. Eles precisam na ponta pela garganta at o duodeno. O balo preenchido com
de um contrapeso. Sem controle, incretinas inundariam o corpo gua quente para queimar algumas clulas que costumam rea-
com insulina aps cada refeio. Todas as pessoas sofreriam com gir aos nutrientes. Testes iniciais tiveram resultados promissores
nveis baixos de acar no sangue (hipoglicemia) aps se alimenta- para diabetes tipo 2 e esto sendo feitas pesquisas para confirmar
rem, j que a onda de insulina eliminaria a glicose da corrente san- a durabilidade de longo prazo do efeito.
gunea. Como as pessoas no costumam entrar em coma por bai- Essa no a primeira vez na medicina que a cirurgia assentou
xa glicose aps comerem, algo deve bloquear a ao das incretinas. as bases para outros tipos de tratamentos. No a primeira vez
Mas, se os mecanismos de contraposio se tornassem muito exa- nem mesmo com o diabetes. Em 1889, Oskar Minkowski criou dia-
gerados, suprimiriam, de fato, a resposta do corpo insulina em betes em ces ao remover o pncreas, e seu trabalho forneceu pis-
outras palavras, poderiam causar diabetes tipo 2. Essas substn- tas fundamentais que levaram Frederick Banting e Charles Best a
cias, que eu chamo de anti-incretinas, no foram conclusivamen- descobrir a insulina em 1921. Quase um sculo depois, o sucesso de
te identificadas, mas comeam a surgir suspeitos. operaes aponta para o trato gastrointestinal como um alvo para
Hormnios intestinais como somatostatina-28 e galanina redu- outras abordagens inovadoras na terapia para o diabetes, aborda-
zem a secreo de insulina em roedores. E h mais. Em 2013, Min- gens que, espero, vo ajudar pacientes tanto ou ainda mais que
grone e colegas cultivaram uma faixa de protenas no identifica- injees de insulina.
das de um segmento do trato gastrointestinal em ratos diabticos.
Quando as protenas foram injetadas em camundongos no dia-
bticos, desencadearam resistncia severa insulina (as protenas PA R A C O N H E C E R M A I S
fizeram a mesma coisa quando injetadas em clulas normais de
Time to think differently about Diabetes. Francesco Rubino em Nature, vol. 533,
msculo humano que foram desenvolvidas em laboratrio). Acre- pgs. 459461; 26 de maio de 2016.
dito que a cirurgia de by-pass gstrico possa reduzir a quantidade Mechanisms underlying weight loss after bariatric surgery. Alexander D. Miras
ou a disponibilidade dessas anti-incretinas bloqueadoras de insu- e Carel W. le Roux em Nature Reviews of Gastroenterology and Hepatology, vol. 10,
lina e, assim, restabelecer o equilbrio metablico normal ao corpo. n 10, pgs. 575584; outubro de 2013.
Seja qual for o mecanismo exato, esta e outras constataes

www.sciam.com.br 87
88 Scientific American Brasil, Agosto 2017
DESAFIO NA
ANTRTICA

NEVE
Pesquisas brasileiras no continente gelado permitem
conhecer a histria do planeta e at acompanhar as variaes
climticas em nosso pas. Mas, apesar dos bons resultados
at aqui, o futuro incerto devido carncia de verbas
Martha San Juan Frana

Fotografia de Luiz Henrique Rosa www.sciam.com.br 89


Martha San Juan Frana jornalista e doutora em
Histria da Cincia. autora do livro Clulas-tronco: esses
milagres merecem f, e co autora do livro Formao &
Informao Cientfica: Jornalismo para Iniciados e Leigos.

E M 25 DE FEVEREIRO DE 2012, UM INCNDIO NA ILHA REI GEORGE DESTRUIU QUASE


inteiramente a estao brasileira na Antrtica, levou parte da histria de 33
anos do pas na regio e matou dois militares. A tragdia abalou o programa
de estudos, mas no paralisou as pesquisas no continente. O maior prejuzo
foi na anlise da continuidade do material e mais ainda no aspecto poltico e
psicolgico, resume o glaciologista Jefferson Simes, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vice-presidente do Scientific Com-
mittee on Antarctic Research (SCAR), organizao internacional que coordena a pesquisa
cientfica no continente. Depois de passar por uma fase de participao exploratria da cincia
e de reconhecimento do ambiente, a partir da dcada de 1990, o Brasil comeou a formar pes-
quisadores e a participar de projetos colaborativos na Antrtica, como parte do grupo de pases
signatrios do Tratado da Antrtica, que hoje conta com 48 integrantes. Nos ltimos anos, o
Brasil passou a dispor de uma massa crtica considervel formada por doutores e ps-doutores
que se estabeleceram em vrios grupos com altssima produtividade.

Os trabalhos em andamento incluem investigaes sobre a comearam as obras da nova estao, que est sendo construda
poluio atmosfrica causada pelas atividades humanas, o im- pela empresa chinesa Ceiec (Corporao Chinesa de Importaes
pacto dessa poluio sobre as espcies animais, a descoberta de e Exportaes Eletrnicas), vencedora da licitao internacional,
novos microrganismos no continente gelado e os efeitos das mu- ao custo de US$ 99,6 milhes, financiados pela Marinha do Brasil
danas climticas na Antrtica sobre o clima do sul do Brasil, en- e Ministrio da Defesa.
tre muitos outros tpicos. Um novo plano de orientao pesqui- Quando em funcionamento, a estao manter equipamen-
sa na regio recomenda que, nos prximos anos, amplie-se o foco tos de sondagem e rdio voltados para o estudo das perturba-
sobre temas que possam afetar diretamente o Brasil. Mas, embo- es da alta atmosfera e seu papel nas variaes climticas terres-
tres; medies da radiao ultravioleta solar,
tendo em vista o buraco na camada de oz-

Tnhamos uma estao de pas nio; e coleta de dados meteorolgicos para


o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

iniciante. A nova ser planejada (Inpe). A Marinha continuar sendo respon-


svel pela manuteno e operao da estao

para atender pesquisa


durante todo o ano, alm de coordenar to-
das as atividades logsticas necessrias para a
realizao das pesquisas no continente, a ma-
nuteno dos navios e o apoio prestado pela
ra a construo de uma nova estao j esteja em marcha, os estu- Fora Area Brasileira (FAB) para o transporte de pesquisadores,
dos esto sofrendo com uma expressiva escassez de financiamen- equipamentos e mantimentos.
to, que pode levar interrupo de muitos projetos. Tnhamos uma estao de pas iniciante no continente, que
O incndio no paralisou as atividades do Programa Antr- foi agregando cincia passo a passo. Foi tudo feito de maneira es-
tico Brasileiro (Proantar) de 2012 para c. A prioridade tem sido pordica e circunstancial; agora vamos para uma estao plane-
o desmonte da velha estao e as atividades embarcadas nos na- jada, atendendo pesquisa, diz o glaciologista Jefferson Simes.
vios da Marinha, o Almirante Maximiano e o Ary Rongel. E j Mas o programa antrtico muito mais do que a estao. Esta-

90 Scientific American Brasil, Agosto 2017


N O VA B A S E

Feita na China
Quando ficar pronta a expectativa que isso ocorra em maro de de convivncia, biblioteca e local para uso compartilhado de
2018 a nova estao Comandante Ferraz se elevar no mesmo computadores. Alm de uma rea dedicada operao e
local da antiga, na Pennsula Keller, ilha Rei George, arquiplago das manuteno da base.
Shetland do Sul. muito melhor do que a antiga, dizem os O MCTIC reps os equipamentos perdidos no incndio e fez dos
pesquisadores. Enquanto a pioneira Comandante Ferraz, de 1984, era laboratrios, voltados para pesquisas biolgicas, alm de geolgicas
um aglomerado de contineres interconectados, a nova base j foi e de contaminao ambiental, o carro-chefe da estao. Teremos
comparada jocosamente a um hotel de luxo, com o projeto um espao para processamento de amostras de microbiologia e de
arquitetnico baseado nas demandas tcnicas apresentadas pela biologia molecular para todas as reas, o que vai possibilitar a anlise
comunidade cientfica. mais rpida do material coletado, comemora a biloga Vivian
A estao de 4.500 metros quadrados contar com dois blocos. Pellizari, do Instituto Oceanogrfico da USP, coordenadora da Rede
O bloco superior abrigar camarotes para 64 pessoas at 50 MicroPolar, que estuda a diversidade microbiana e seus processos no
pesquisadores no vero antrtico e os militares da Marinha, que ambiente antrtico. A ideia que, alm de atender algumas reas
permanecem na Antrtica o ano todo. Nele tambm ficaro reas de especficas da cincia, os laboratrios possam servir a pesquisadores
servio como cozinha e refeitrio. Na parte de baixo, ficaro 14 que precisam processar amostras coletadas em outras regies
laboratrios (h outros trs mdulos externos para pesquisas), reas antrticas.
Localizao:

Ilha Rei George

3 Instalao da estrutura da
cobertura e do revestimento

O jogo de armar

1 Montagem das trelias


que formam a grelha de piso

4 Concluso com a instalao das


placas que envolvem o edifcio

2 Acabamento do piso e posicionamento


dos mdulos de madeira

mos ampliando cada vez mais nossa rea geogrfica de atuao. Universidade do Maine. Este o melhor arquivo da histria cli-
Hoje, a maior parte das pesquisas feita em outras plataformas, mtica e da qumica atmosfrica que existe no planeta.
principalmente no navio polar Almirante Maximiano e depois
em acampamentos ou no mdulo Criosfera 1, ressalta. no m- MUITO ALM DA ESTAO
dulo Criosfera 1, a mais de 2,5 mil quilmetros ao sul da Estao A Antrtica tem 12,6 milhes de quilmetros quadrados quase
Comandante Ferraz, que Simes desenvolve sua pesquisa com os totalmente recobertos de gelo. rodeada pelo Oceano Austral, as
chamados testemunhos de gelo e trabalha em colaborao com a guas geladas que se formam no encontro do Atlntico, do Pac-

Imagens Estudio1 www.sciam.com.br 91


fico e do ndico. Oceano e continente somam mais de 50 milhes
de quilmetros quadrados, o que representa 10% da superfcie
do planeta. A estao brasileira, localizada ao norte da Pennsu-
la Antrtica, est na ponta oeste desse bloco, onde a temperatura
gira em torno dos 20C no vero, bem mais quente que o interior
do continente. A regio considerada a mais sensvel s varia-
es climticas, devido a sua posio geogrfica, no limite da ex-
tenso do gelo marinho. No por coincidncia, a ilha possui nove
estaes permanentes, ou seja, quase um quarto de todas as ba-
ses antrticas.
Em 2014 foi lanado o plano de ao Cincia Antrtica para
o Brasil. Tendo como horizonte o perodo at 2022, o plano defi-
ne, do ponto de vista estratgico e da sustentabilidade, o que se
busca na pesquisa antrtica. O texto recomenda aes voltadas
para questes que poderiam afetar o Brasil, como a variabilidade
climtica, o papel da Antrtica nas correntes ocenicas que che-
gam costa da Amrica do Sul e as alteraes da biodiversidade
marinha. Simes, que foi o relator do documento, diz que o pla-
no parte do princpio de que as regies polares so to importan-
tes quanto os trpicos para a manuteno do sistema ambiental,
especialmente para o clima mundial, devido circulao geral da
atmosfera e dos oceanos. Ressalta que o monitoramento ambien-
tal da Antrtica de extrema importncia para a humanidade, e
frisa que os ecossistemas locais esto sofrendo intensamente com
o aquecimento da Terra.
O plano de ao Cincia Antrtica para o Brasil envolve pes-
quisas em vrios locais, no s na ilha Rei George. Para isso, em
2012, foi instalado no continente o mdulo Criosfera 1, posto lati-
no-americano mais prximo do Polo Sul geogrfico, onde so co-
letadas amostras de neve e gelo para avaliar impactos da ao
humana sobre a atmosfera. Os chamados testemunhos de gelo,
segundo Simes, registram no manto de gelo polar a evoluo do
impacto ambiental natural ou provocado pelo homem.

DE CARONA POR CAUSA DA CRISE


Simes conta que j tem pronta uma nova plataforma cient-
fica, o Criosfera 2, que seria alocada a cerca de 520 quilmetros
do mdulo Criosfera 1, ainda no instalada devido a restries
oramentrias no MCTIC, que esto afetando todas as pesquisas
na Antrtica. Em 2016, foram liberados apenas R$ 700 mil para
o programa antrtico, diz Simes. No suficiente para o vo-
lume de projetos que temos l. Estamos desde 2013 demandan- timentos para pesquisa freados. Mas o Proantar tem a seu favor
do R$ 20 milhes divididos em trs anos. Ou seja, h o risco de uma histria de sucesso que engloba 260 pesquisadores de 13
que, quando a nova estrutura estiver operacional, ela permane- universidades, e acaba congregando esforos de vrias fontes. A
a pouco ocupada, devido carncia de pesquisadores com finan- Cmara dos Deputados e o Senado criaram uma frente parlamen-
ciamento para ir a campo. tar de apoio ao programa que tem nos ajudado bastante. Graas
Professor do Instituto de Biofsica da UFRJ e coordenador do a ela, conseguimos recursos da ordem de R$ 15 milhes para trs
projeto Pinguins e Skuas, o biofsico Joo Paulo Machado Tor- anos e devemos abrir um novo edital , diz.
res estava na estao Comandante Ferraz quando ela pegou fogo. O programa conta ainda com dois Institutos Nacionais de
Apesar de perder parte do material que havia coletado, seu proje- Cincia e Tecnologia (INCT da Criosfera e INCT Antrtica de Pes-
to sobre os efeitos da poluio ambiental, principalmente metais quisas Ambientais), centros de pesquisa multicntricos, conduzi-
pesados e poluentes orgnicos persistentes, em aves e mamferos dos pelo ministrio em parceria com a Capes/MEC (Coordenao
aquticos, se manteve. Pegamos carona em expedies chilenas de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) e de fundaes
e argentinas, a cooperao na Antrtica muito importante, afir- estaduais de pesquisa, entre outras fontes. O ltimo edital, cujo
mou. E continuamos correndo atrs de verba no s dentro do resultado s foi divulgado em 2016, ainda no teve os recursos
programa mas em editais paralelos para driblar a crise financeira liberados. Esperamos uma sinalizao das fundaes estaduais
por que passa a cincia brasileira. para dar continuidade to logo seja possvel, afirma Polejack.
Andrei Polejack, do MCTIC, diz que o momento econmico O INCT da Criosfera rene os pesquisadores que investigam
atual do pas em 2016 e neste ano complicado, com os inves- o gelo marinho, geleiras, manto de gelo e permafrost. Pesquisas

92 Scientific American Brasil, Agosto 2017


VIDA NO EXTREMO: estudo
dos fungos extremfilos que
vivem na Antrtica levou
descoberta de novas espcies

CAVANDO NO GELO:
pesquisador prepara retirada
de amostra. Espessura do
manto pode chegar a 1.000 m

BANCO DE MEMRIAS: amostras


superficiais de gelo, coletadas no centro do
continente, permitem comparar as condices
atmosfricas atuais com as do passado

em testemunhos de gelo antrtico, por exemplo, permitiram re- nais de que a poluio por elementos altamente txicos pode via-
construir variaes no teor dos gases do efeito estufa e da tem- jar na atmosfera por milhares de quilmetros, afirma Franciele,
peratura atmosfrica ao longo de centenas de milhares de anos, cujo estudo foi publicado na revista Atmospheric Environment.
possibilitando melhor conhecimento de oscilaes ambientais Ela explica que pesquisadores do grupo esto envolvidos no Ice
de periodicidade curta (como o El Nio e La Nia), que podem Memory, projeto da Unesco para salvar o registro ambiental de
ser mais diretamente relacionadas a variaes na composio at- geleiras que esto derretendo e que sero estocadas na Antrtida
mosfrica da Amrica do Sul, em especial da regio amaznica. e preservadas para as geraes futuras.
Hoje se sabe, como resultado de pesquisas brasileiras, que mu- Uma das dificuldades para fazer modelos mais precisos das
danas climticas na Antrtica esto deixando o clima do Rio respostas das geleiras s mudanas que ocorrem no clima o fato
Grande do Sul mais varivel, com mais extremos de frio e calor, de que no existe ainda um conjunto de informaes estatistica-
diz Simes. Os dados obtidos podem ser colocados nos modelos mente significativas sobre o que ocorre na Antrtica. Jorge Ari-
do clima no Brasil e ajudar na agricultura e na preveno de de- gony Neto, do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal
sastres naturais. do Rio Grande (FURG) o coordenador do inventrio das gelei-
Foi ao examinar os testemunhos de gelo que a pesquisadora ras da Pennsula Antrtica, parte do Global Land Ice Measure-
Franciele Schwanck Carlos, do grupo de Simes, encontrou sinais ments from Space, projeto internacional de sensoriamento remo-
do surgimento, do auge e do ocaso da poluio por arsnio vin- to do gelo no continente. Na Pennsula Antrtica, cujas geleiras
da de minas do Chile; outros pesquisadores do grupo detectaram so menores e mais ngremes, observam-se os primeiros impac-
contaminao de urnio vinda das minas da Austrlia. So si- tos das mudanas climticas.

Fotografias de Centro Polar e Climtico da UFRGS e Luiz Henrique Rosa www.sciam.com.br 93


Arigony desenvolveu estaes autnomas de baixo custo que lha quase que exclusivamente a bordo do navio da Marinha Co-
medem o clima das geleiras e transmitem os dados por satlite. mandante Maximiano.
Uma estao meteorolgica profissional custa em torno de US$ Segundo Mata, no Oceano Austral, onde as guas mais frias
20 mil, ns desenvolvemos a nossa com US$ 1 mil, compara. Pelo e densas so formadas sob as plataformas de gelo e eventualmen-
seu trabalho, foi premiado este ano pelo Programa de Bolsas de te exportadas para outras regies do planeta, que se observam
grandes variaes das propriedades f-
sico-qumicas, como por exemplo, tem-

preciso realizar atividades peratura, salinidade e concentrao de


oxignio dissolvidos no mar, que indi-

cientficas substanciais se o Brasil retamente afetam o equilbrio climti-


co mundial. Nosso grupo busca contri-

quer ter voz no futuro da Antrtica


buir para o melhor entendimento dos
processos ocenicos e costeiros asso-
ciados diminuio e derretimento do
manto de gelo na Pennsula Antrtica,
Pesquisa Google para a Amrica Latina. O pesquisador j levan- diz Mata. Os dados que esto sendo obtidos desde 2009 sero pu-
tou a existncia de 1.500 geleiras na Pennsula. Podemos afirmar blicados em um nmero especial da revista Deep Sea Research 2,
que a maioria est perdendo rea na frente flutuante e sofrendo como parte das comemoraes dos 15 anos do GOAL, que ser di-
um retrocesso, afirma. Temos mais gelo chegando nos oceanos, vulgada na prxima reunio do SCAR, em 2018.
contribuindo para o aumento do nvel mdio dos mares. Se esto ocorrendo alteraes no oceano, vamos ver os efeitos
na estrutura da base antrfica, como os fitoplnctons, e como se
PROJETOS MULTIDISCIPLINARES transfere para os outros nveis do ecossistema marinho, comple-
Os projetos antrticos necessariamente tm de ser multidis- menta o bilogo Eduardo Resende Secchi, tambm da FURG e do
ciplinares at porque a logstica para se deslocar na regio de- GOAL. O grupo de Secchi estuda o krill, crustceos semelhantes
manda um custo muito alto. O Grupo de Oceanografia de Altas ao camaro que so considerados o centro da cadeia alimentar
Latitudes (GOAL), coordenado por Maurcio Mata, da FURG, da regio, uma vez que grande parte dos vertebrados marinhos
por exemplo, engloba fsicos, gelogos, oceangrafos, bilogos ou se alimentam dele diretamente ou se alimentam de seus pre-
e microbilogos com o objetivo de entender a relao entre o dadores. Uma diminuio na abundncia do krill est relaciona-
ambiente fsico/qumico marinho, os microrganismos mari- da com a reproduo e o desenvolvimento de filhotes de baleias,
nhos e os predadores do topo da cadeia trfica (baleias e pin- aves e pinguins, por exemplo. J associamos a reduo nas taxas
guins) no Oceano Austral. Pela natureza do seu trabalho de de nascimento de baleia-franca na costa de Santa Catarina com a
monitoramento de correntes costeiras e a influncia do derre- menor biomassa de krill em ano de El Nios fortes que tiveram
timento de icebergs e geleiras na gua do mar, o GOAL traba- influncia no degelo, conta o pesquisador.

DESBRAVADORES: expedio brasileira


cruzou 1,4 mil km de gelo e mapeou territrio
para a instalao de novo mdulo cientfico

94 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Fotografia: Centro Polar e Climtico da UFRGS
PRE SENA BRASILEIRA

Mais do
que uma
estao
A regio ao redor da Ilha Rei
George e o noroeste da
Pennsula Antrtica so as
reas mais estudadas pelos
brasileiros. Mas, medida
que a pesquisa se consolida,
o pas comea a explorar
tambm o interior do
continente, atravs de
expedies e da construo
de infraestrutura, como o
mdulo cientfico Criosfera 1,
que fica a apenas 670 km de
distncia do Polo Sul.

Os microrganismos antrticos, como as arqueias, os fungos e anticongelantes que ele produz e avaliar se essas propriedades
leveduras, tambm so objetos de pesquisa, por serem coloniza- podem ser usadas para diferentes fins, da indstria de alimentos
dores primrios, fornecedores de biomassa e energia nas teias ali- at a de aviao, afirma Rosa. Outro plano isolar o pigmento
mentares. A Rede MicroPolar, coordenada por Vivian Pellizari, da azul e verificar as possibilidades como corante natural e em ativi-
USP, conta com microbiologistas de diferentes instituies, com dades de fotoproteo.
foco em taxonomia, gentica e ecologia, alm da prospeco de O grupo de Rosa trabalha em colaborao com pesquisadores
compostos de origem microbiana que participam de projetos no de vrios pases em um projeto de monitoramento a longo prazo
apenas no INCT Criosfera como no INCT APA, voltado para o ar- de comunidades de musgos na rea de degelo Punta Hennequin,
quiplago das Shetland e regies adjacentes. Seu objetivo am- na Baa do Almirantado. Acredita-se que uma espcie de fungo,
pliar o conhecimento sobre a biodiversidade e os processos adap- antes aprisionado embaixo das geleiras, esteja causando uma do-
tativos desses organismos antrticos s condies extremas. ena nos musgos que pode se espalhar para outras localidades,
O grupo no estuda apenas microrganismos adaptados ao inclusive na Amrica do Sul.
frio, mas tambm presentes em vulces ativos, como na Ilha De- Os pases que mais investem na cincia do continente, inclu-
ception, nas Shetland. Os microrganismos so coletados no sedi- sive financeiramente, so os Estados Unidos, o Reino Unido, o Ja-
mento perto das geleiras, onde a temperatura negativa, e nas po e a Alemanha. Em segundo lugar viriam a China, a ndia, a
fumarolas (fissuras que emitem vapor de gua e gases), a 50 e Coreia do Sul, alm da Frana, da Noruega e da Rssia. O Brasil
100 graus C, para entender como esses organismos se adaptam estaria num terceiro grupo, com ambies de ascender ao segun-
no mesmo espao a temperaturas negativas e muito altas. Os se- do. Mas para isso no basta uma nova estao: preciso manter o
dimentos so congelados e levados para o laboratrio, onde va- volume de pesquisa. Esta uma opo que pode trazer inclusive
mos determinar a sequncia de DNAs envolvidos nesse mecanis- benefcios diplomticos, diz Simes: Precisamos realizar ativida-
mo de adaptao, diz a pesquisadora. des cientficas substanciais se quisermos conservar o status pol-
A Rede MicroPolar j deu frutos: da saiu a Rede MycoAntar, tico-diplomtico do Brasil como parte consultiva do Tratado An-
coordenada pelo bilogo Luiz Rosa, da Universidade Federal de trtico e ter direito a voz e voto nas reunies que tratam do futuro
Minas Gerais (UFMG), voltada para o estudo de fungos do con- e da conservao do continente gelado.
tinente. O grupo descreveu este ano uma nova espcie de fungo
da Antrtica, batizada de Antarctomyces pellizariae, em home-
nagem a Vivian, encontrada em amostras de neve coletadas em PA R A C O N H E C E R M A I S

ilhas prximas ao continente. O microrganismo surpreendeu por Antrtica, 2048 mudanas climticas e equilbrio global. Editora Marina Books. So
apresentar uma rara pigmentao azul, alm de resistncia a bai- Paulo, 2014
xas temperaturas. A nossa proposta entender as substncias

Mapa: Centro Polar e Climtico da UFRGS www.sciam.com.br 95


LIVROS
Da redao

De frente para os enigmas


A mecnica quntica foi formulada .Um bom exemplo seria a questo da
na primeira metade do sculo 20, mas, PES (percepo extrassensorial) coi-
paradoxalmente, ainda estamos longe sas como leitura mental e telecinesia.
de entender o que ela realmente signifi- H uma rea na mecnica quntica cha-
ca. Alguns filsofos sustentam que ela s mada emaranhamento, que se relaciona
faz sentido quando pensada em relao com a forma como as partculas distan-
conscincia humana, que outro profundo tes podem estar relacionadas de for-
mistrio. Esta controvrsia costuma con- ma muito profunda. Ns falamos sobre
fundir at quem entende muito do assun- isso e discutimos em detalhes a mecni-
to. Mas Fred Kuttner, do Departamento de ca quntica real desse emaranhamento e
Fsica da Universidade da Califrnia em as experincias. E, ento, dizemos bem,
Santa Cruz, e seu colega Bruce Rosenblum se existe PES e ainda no estamos con-
toparam o desafio de tentar explicar o O enigma quntico vencidos disso podemos procurar uma
debate para leigos e escreveram O enigma Bruce Rosenblum e Fred Kuttner explicao sobre isso no fenmeno de
quntico, recm-lanado no Brasil. Kutt- Zahar emaranhamento. Contudo, dizemos que
ner conversou com a Scientific American 334 pginas isso especulao. Ns damos a fsica
Brasil sobre a obra. R$ 64,90 do emaranhamento e, em seguida, espe-
culamos que ela talvez esteja conectada
Scientific American O Nobel de fsi- com a PES se a PES for real.
ca Richard Feynman uma vez disse que das coisas ditas pela mecnica quntica
ningum entende a mecnica quntica. soam msticas. Muitas pessoas dizem que SA Voc acredita que o problema da
Por que escrever um livro sobre isso para a mecnica quntica parece o budismo. conscincia e o problema da medio
um pblico geral? No tenho certeza do que isso significa. O quntica esto inter-relacionados?
Fred Kuttner Bem, existe um mist- budismo est correto, de alguma forma? FK No tenho certeza. Suspeito que
rio l, ento o que fizemos foi basicamen- No acho que seja possvel apoiar isso com haja alguma relao, mas talvez no
te descrever esse mistrio. Apresentamos a cincia. Apenas acho interessante que seja a questo de precisar entender um
as observaes experimentais que levaram haja tanta conexo entre o que o budismo para s depois entender o outro. Talvez
pessoas a criar a teoria e, ento, os tipos prega e como a mecnica quntica pare- seja algo como: Bem, agora eu compre-
de mistrios que surgiram com os expe- ce ser. Uma das coisas que compartilham endo isso, tambm compreendo aquilo
rimentos. Existe um enigma: nossa livre a efemeridade de tudo. H uma interao e vejo uma forma como as duas coisas
escolha parece influenciar o resultado de entre o observador e o observado. Creio esto conectadas. Porm, talvez tenha-
uma experincia, mesmo quando no fize- que coisas assim so similares, e so bas- mos de compreender ambas melhor
mos nada diretamente para influenciar tante bsicas para o pensamento budista. antes mesmo de fazer uma cone-
esse resultado. Porm, um assunto real- Porm, preciso lembrar que as ideias na xo. Tambm depende do que signifi-
mente complicado. Eu e meu coautor cos- mecnica quntica so expressas em mate- ca entender. H pessoas que acham
tumvamos ter conversas nas quais diz- mtica. Quando falamos sobre ela de certa que toda a mecnica quntica j foi
amos: tudo bem, ns entendamos isso forma nos envolvemos em uma interpreta- entendida, e outras discordam. H gen-
ontem, mas no entendemos hoje. Preci- o. algo bastante polmico. te achando que quando tivermos mape-
svamos retomar a discusso do dia ante- . ado todos os sinais eltricos do crebro
rior. No estamos acostumados a pensar SA No livro, como voc distingue o que compreenderemos a conscincia e
dessa maneira. pensamento cientfico do que no ? h gente achando que isso no explica a
FK Tentamos deixar isso claro em todos conscincia. Portanto, parte do proble-
SA Associar teoria quntica e conscincia os momentos. Tentamos dizer: Isso ma que, na minha opinio, talvez nem
a marca do misticismo quntico? aquilo sobre o que todos os fsicos con- ao menos saibamos quais perguntas
FK Bem, bastante estranho. Muitas cordam, j isso apenas especulao. fazer no momento. Marlia Fuller

96 Scientific American Brasil, Agosto 2017


LIVROS

Muitas ideias Um lance de dados


em pouco espao Conhecer as ideias que matemticos e filso-
fos desenvolveram para lidar com o flexvel univer-
As autoras Nichola Charlton e Mere- so das probabilidades e do acaso pode ajudar voc
dith McCardle se propem a apresen- a apostar em cassinos, investir na bolsa, deci-
tar, em apenas sete captulos, um relato frar cdigos secretos de pases inimigos, analisar
do desenvolvimento, ao longo da his- testes diagnsticos ou at decidir se vale a pena
tria, de nove reas de pesquisa: astro- acreditar em Deus. Estes so alguns dos tpi-
nomia, cosmologia, matemtica que cos que Robert Matthews apresenta neste As leis do
para muitos no uma cincia, mas uma acaso, encarnados em histrias pitorescas e perso-
linguagem fsica, qumica, biologia, nagens curiosos. Como o estudante de matemti-
medicina, geologia e meteorologia. ca Patrich Veitch que, aprovado no vestibular para
Uma iniciativa interessante a bus- a Universidade Cambridge quando tinha apenas
ca por mencionar, em todos os captulos, 15 anos de idade. Ele desenvolveu um interesse por As leis
o nome de uma mulher que tenha feito apostas em cavalos, comeou a oferecer um servio do acaso
importantes contribuies para o cam- de dicas para apostadores e no ltimo ano do curso Robert Matthews
po. Alguns so bem famosos, como o da j gerenciava milhares de libras em apostas. Largou Zahar
qumica franco-polonesa Marie Curie. a faculdade e se tornou milionrio. Mas no compre 304 pginas
Mas outros so menos conhecidos, como o livro na espera de ficar rico apostando: isso para R$ 54,90
a astrnoma britnica Susan Jocelyn poucos, diz Matthews. Pablo Nogueira
Bell, descobridora dos pulsares. A des-
coberta rendeu aos colegas dela um Pr-
mio Nobel. Mas Bell no pde receber
o Prmio Nobel porque na poca ainda Gnios, mas no infalveis
era uma estudante, fato esse que causou
indignao no meio cientfico, relem- O escocs Lord Kelvin foi um dos grandes
bram as autoras. Pablo Nogueira cientistas do sculo 19, e seu tmulo na abadia de
Westmnister tem como vizinho ningum menos
do que Isaac Newton. O alemo Albert Einstein
foi no apenas um dos homens mais famosos
do sculo 20, mas tambm um dos maiores fisi-
cos de todos os tempos. Nem toda essa combina-
o de inteligiencia e reconhecimento, porm,
impediu que os dois tambm tivessem sustenta-
do posies equivocadas em suas vitoriosas car-
reiras. disso que trata o livro do astrofsico
de formao e premiado escritor de divulgao
Mario Livio. Mais do que apenas apontar dedos
ou destruir dolos, Livio procura reconstituir
com algum detalhe problemas cientficos, teorias
e debates, levando o leitor a acompanh-lo numa Tolices
A histria da cincia bela e muito bem pesquisada excurso pelo cam- brilhantes
para quem tem pressa po da histria da cincia. Linus Pauling, Charles Mario Livio
Editora Valentina Darwin e Fred Hoyle completam a lista de cien- Record
200 pginas tistas famosos que tm suas histrias e seus 350 pginas
R$ 34,90 erros contadas no livro. Pablo Nogueira R$ 52,90

www.sciam.com.br 97
CINCIA
EM GRFICO 23h
Meia-noit
e 1h
9 por minuto
22h 2h

21h
6

3h
20h

4h
A mdia
7,3 bebs nascidos

19h
O pico
por minuto

5h
18h Bebs nascidos por minuto
Coma primeiro

6h
Mais nascimentos de
todos os tipos ocorrem
de bebs
17h

logo aps o almoo

7h
16h

Turno diurno

8am
Nascimentos culminam
5h

Nascimentos culminam por volta 1 9h


das 08h00min e depois aumentam
novamente entre meio-dia e 13 horas.
14h 10h em dias teis durante os
turnos de trabalho diurno
11h Meio-dia 1p
Hospitais normalmente tm mais
Pico
mdicos e enfermeiros disponveis
O pice matutino
durante a parte da manh e menos
impulsionado por H duas geraes, bebs nasciam de
mais tarde, ou no final do dia.
cesarianas planejadas maneira bastante espontnea, 24
horas por dia. Mas hoje, nos EUA,
cerca de metade de todos os partos
A mdia Segund
a so cesarianas pr-agendadas pela
447 bebs nascidos por hora 500 por hora
me, ou partos induzidos por mdi-
go cos preocupados com a sade da me
n
mi

Menor nmero de nascimentos ou do beb. Esses procedimentos


Do

Ter

Domingo noite, entre 250 mdicos distorceram os dias da se-


02h00min e 03h00min.
a

mana, e as horas do dia, durante os


quais esses pequenos pacotes de
Madrugadores Bebs nascidos por hora alegria chegam ao mundo.
Mais bebs do que em mdia Esses procedimentos dominam,
Sbado

nascem em dias teis da porque 95% dos nens nascem em


semana durante o horrio
um hospital, apesar da aparentemen-
Qua

diurno. Menos vm ao mundo


te crescente popularidade de nasci-
rta

em fins de semana ou noite,


principalmente porque h mentos em domiclio. Muito mais be-
menos funcionrios do hospital de bs agora chegam em dias teis do
planto; por isso, mulheres tendem ta que em fins de semana; a maioria en-
a no agendar seus partos para estes Sex Quin
ta tre 08h00min e 18h00min. No po-
perodos. Apesar do folclore, uma lua
cheia no tem nenhum efeito.
demos programar trabalho de par-
Especial do meio-dia to espontneo, obviamente, diz Neel
Em uma tpica tera-feira, Shah, mdico e professor na Escola de
A mdia nascem 770 bebs do Medicina de Harvard. Mas podemos
SOCIAL DOS EUA (dados semanais); CENTROS DE CONTROLE E PREVENO DE DOENAS (dados de minutos
77 mil bebs nascidos por semana meio-dia s 13 horas. FONTES: FIVETHIRTYEIGHT, A PARTIR DE DE DADOS FORNECIDOS PELA ADMINISTRAO DO SEGURO
agendar partos.
Janeiro Mark Fischetti e Zan Armstrong
No, obrigada
bro 90 mil
Mes no agendam cesarianas para datas zem
por volta do Dia de Ao de Graas De Fev
Cada grfico mostra dados
ere

60 mil
bro

mdios dos EUA medidos


iro

Boas Festas
em

Bebs parecem chegar ao longo de 2014


Nov

nove meses depois do Natal Mais que a mdia


Mar

e da vspera de Ano Novo


o

)
rela
ma 25%
Outubro

Filho de vero menos 25% mais


aa

Bebs nascidos por semana


s nascidos (linh

Mais pessoas praticam


sexo nos meses mais frios no
Abril

Hemisfrio Norte, gerando Menos que a mdia


ro

mais nascimentos nove meses


emb

Zero nascimento de bebs


beb

depois, de julho a outubro. O


(ponto central)
Set

inverso tambm parece ser


de

o
di
Ma

verdade. Mas no ocorre aumento Nmero m


io

e horas)

de nascimentos nove meses aps o


uma grande tempestade de neve. Ag
ost
Jun
ho
Julho
98 Scientific American Brasil, Agosto 2017 Grfico de Nadieh Bremer e Zan Armstrong
I Seminrio Internacional
Scientific American Brasil
Cincia e Sociedade
O PAPEL DA DIVULGAO CIENTFICA NA CONSTRUO
DE UMA SOCIEDADE DEMOCRTICA E INFORMADA

DIA 3 DE OUTUBRO DE 2017


SO PAULO - SDECTI

Em outubro a revista Scientific American


Brasil vai discutir o papel e o estado da arte da
divulgao cientfica no Brasil.

Sero quatro painis com alguns dos mais importantes pesquisadores e


jornalistas brasileiros e um grande convidado internacional:
Quem tem medo do pensamento cientfico
As fragilidades da divulgao cientfica
A cincia nos meios de comunicao
Exemplos inspiradores e novas experincias

PA LEST R ANTES J CO NFIR MADOS:

Walter Neves, Paulo Artaxo, Helena Nader, Jefferson Cardia Simes, lvaro Pereira Jr.,
Alexandra Osrio de Almeida e a presena especial de Michael Shermer, colunista da
Scientific American USA e editor da Skeptic Magazine.

Aguarde em breve a abertura de inscries.


PARA MAIS INFORMAES
[email protected]

REALIZAO APOIO INSTITUCIONAL PAT R O C N I O

SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO
ECONMICO, CINCIA, TECNOLOGIA E
INOVAO DO ESTADO DE SO PAULO
(SDECTI)

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