ALBERTI, SONIA. Clínica e Pesquisa - Sonia Alberti
ALBERTI, SONIA. Clínica e Pesquisa - Sonia Alberti
ALBERTI, SONIA. Clínica e Pesquisa - Sonia Alberti
com/lacanempdf
Sonia Alberti
Luciano Elia
[ organizadores J
Clnica e Pesquisa
em Psicanlise
MESTRADO EM PESQUISA E
CL'.\JICA EM PSICA'.\JALISE
154p.; 16x 23 cm
ISBN: 85-87184-13-9
CDD 150.195
CDU 159.964.2
Apoio
C A P E S
1 Composto pelos seguintes professores: Mrcia Mello (ento coordenadora do Curso de Espe-
cializao), GilsaTarr de Oliveira, Francisco Ramos de Faria, Malvine Zalcberg, SoniaAlberti
e. logo cm seguida, Luciano Elia. Num primeiro momento, foi solicitada, e imediatamente
1tcndida, a colaborao da professora Circe Vital Brazil, de grande valia para ns.
no obstante muitas vezes se assemelhavam ao sistema de ensino acadmico, com
toda burocracia a envolvida. Foi cm 1968 que ele, com o auxlio de alguns amigos
- por exemplo, Claude Lvi-Strauss e Michcl Foucault-, fundou na Universidade
de Vincennes, nos arredores de Paris, o primeiro Departamento de Psicanlise do
mundo. Como muitos sabem, a Universidade de Vinccnncs era aberta a essas ino-
vaes e foi um dos pilares do movimento estudantil de 1968 na Frana. Por essas
mesmas razes, foi fechada alguns anos depois, tendo sido o Departamento de
Psicanlise criado por Lacan transferido para a Universidade de Paris VIII, cm
Saint Denis, onde existe at hoje. Como se pode ler nos documentos de divulga-
o dessa universidade, o Departamento de Psicanlise "tem uma misso de ensino
superior e de pesquisa", e visa transmitir tanto os saberes que emanam da experi-
ncia psicanaltica quanto os que lhe so conexos, j que "o saber freudiano no
redutvel a um corpo de doutrina fechado e definitivamente constitudo".
De qualquer maneira, mais de trinta anos aps a criao do primeiro Depar-
tamento de Psicanlise cm uma universidade, ainda hoje h questes acerca da
validade de sua insero no meio acadmico. interessante notar, por exemplo,
que a fala de abertura de Elisabcth Roudinesco durante um dos ltimos grandes
eventos psicanalticos do sculo XX, os Estados Gerais da Psicanlise, ocorrido
cm julho de 2000 cm Paris, atribuiu ao Brasil a vanguarda do ensino da psicanlise
nas universidades, particularmente nos Institutos de Psicologia. Digo interessante
porque historicamente esse ensino se deu na Frana, e cm alguns cursos esparsos
cm outros pases da Europa e nos Estados Unidos.
Certamente a histria da prpria universidade no Brasil tem alguma relao
com esse fato ressaltado por Elisabeth Roudincsco e j observado por Marco An-
tonio Coutinho Jorge cm seu artigo "Por que a psicanlise do Brasil?":
Neste ponto, coloco para o dehate a c1ucsto que me ocorreu, exemplar, talvez,
mas certamente fecunda e que diz respeito ao modo pelo qual o discurso univer-
sitrio, veiculador dos saberes adquiridos, penetrou e~ nosso pas. Tomo para
tal um trac,:o histrico surprcendcntt: e fundamental para anlise: existindo na
Europa desde o sculo XI, a UniYcrsidacle - instituio gue faz vigorar esta for-
ma de liame social gue Lacan matemizou enguanto o Discurso Universitrio -
s passa a adguirir existncia, aqui, no sculo XIX. Enumero alguns dados hist-
ricos bastante re,cladorcs. Se por um lado Portugal no permitiu que se crias-
sem centros de ensino superior cm sua colnia, muito embora tivesse sua Uni-
versidade de Lisboa desde 12 90, a qual foi transferida para Coimbra cm 15 37,
por outro, at o final do sculo XVI, a Amrica Espanhola contava com seis
Universidades e, por ocasio da Independncia, cerca de 19, tendo essas institui-
es graduado aproximadamente 150 mil estudantes. Em contraste, o Brasil no
At que ponto, pois, essa origem da universidade no Brasil marca uma inde-
pendncia - nesse caso, dos anos de submisso a Portugal, a serem levados cm
conta como determinantes para o acolhimento de novas idias, talvez mais do que
cm outros lugares do mundo - e pode explicar por que o Brasil hoje um dos
pases cm que mais psicanlise h nas universidades? Historicamente, de todo
modo, o interesse dos psicanalistas pelo ensino da psicanlise na universidade no
prmm de Lacan. A histria desse ensino acompanha a prpria histria da psica-
nlise. Freud sempre se preocupou com a insero da psicanlise na srie dos
saberes e das cincias. Ele prprio procurou ingressar na universidade, o que, cm
decorrcncia fundamentalmente de sua origem judiai, no foi fcil cm uma Viena
j bastante anti-semita desde fins do sculo XIX. Mas no somente por causa dessa
origem. Freud tinha conscit-ncia de c1ue a dificuldade de insers:o na universidade
tambm tinha relao com a dicotomia existente entre a prpria tica da psican-
lise e a norma universitria. Eis como ele se refere a esse problema cm sua pri-
meira conferncia na Universidade de Viena, cm 1915:
[ ... J do jeito como andam as coisas, aquele que quisesse construir hoje um rela-
cionamento duradouro com a psicanlise perderia qualquer possibilidade de um
eventual sucesso na uniYersidadc, da mesma forma como seria mal visto e
hostilizado por outros colegas mdicos que no entenderiam seus anseios e li-
Hariam contra ck todos os piores e mais mahados espritos.~
~ C. JORGE, M. A. C. :icxucdscursocm Frcudclacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, J988, p. 146.
1 Por exemplo, o sonho de Freud com o amigo R. Cf. f-REUD, S. "DieTraumdcutung" (1900).
Em: Studicnau.<gabc, rnl. II. Frankfurt a.M.: S. Fischer, 1974, cap. 4.
FREUD, S. "Die Fehlleistungen - 1. Vorlesung". Em: Studicnausgabc, mi. 1. Op. cit., p. 42.
9
Em 1926, cm seu texto sobre a anlise leiga5 , Freud observa que no advogava por
uma psicanlise que se inscrevesse, com o tempo, como mera opo teraputica nos
manuais de psiquiatria. "Ela merece destino melhor e o ter, espero". O destino me-
lhor associado "psicologia profunda" (Tiefenpsychologie), o saber do inconsciente, por
meio do que ela poderia se tornar indispensvel para todas as cincias que lidam com
a histc)ria da formao da cultura e de suas grandes instituies, tais c01:10 a arte, a
religio e a ordem social. "O uso da anlise para a terapia das neuroses somente um
de seus empregos; talvez o futuro venha mostrar que ele no o principal"6
Assim, se Jacques Lacan prope o ensino da psicanlise na universidade por-
que ele se inscreve na mesma direo que Sigmund Freud apontou cm seu texto de
1926: o real da clnica psicanaltica que permitiu a ele a construo da psicanlise
pode ser encontrado em outros campos da cultura. Encontramos o ser falante para
alm da clnica psicanaltica, nos campos que lhe so conexos e que mais circulam e
interagem no meio acadmico. Ora, essa constatao no deixa de justificar a possi-
bilidade de transmisso da psicanlise nesse meio. A psicanlise, como um saber,
deve poder conviver, questionar. e ser questionada por outras disciplinas, isto ,
enriquecer e ser enriquecida por elas, j que a universidade o lugar desse universo
de disciplinas. Freud no deixou de fris-lo nas ltimas pginas de seu texto sobre a
anlise leiga e sobretudo no apndice desse texto, redigido cm 1927, em razo das
reaes que haviam surgido aps sua publicao no ano anterior.
Duas observaes desse apndice so to importantes para a referncia de
nosso Mestrado, que as retomo aqui na ntegra. Em primeiro lugar, Freud observa
que o plano para um curriculum de disciplinas para o analista ainda estava para ser
feito, e que deveria ter estofo tanto no campo das cincias do esprito, as psicol-
gicas, as da histria da cultura e da sociologia, quanto nas cincias anatmicas,
biolgicas e da histria do desenvolvimento. Ele tambm nota que seria cmodo
contra-argumentar que no havia faculdades que dessem tal gama de conhecimento,
que isso seria da ordem do ideal e que, portanto, era impossvel. Mas sugere que os
institutos de formao analtica comeavam a realizar tal plano que "pode ser reali-
zado e deve ser rcalizado" 7 . Certamente possvel pensar na Universidade como
; FREUD, S. "Die Frage der Laienanalyse". Em: Studicnausgabc, vol. Ergnzungshand. Op. cit.
"Ibid., cap. VII, p. 338-ss. Em algum lugar, Lacan chega a prever que a nica sada para a
psicanlise nos prximos sculos justamente a possibilidade de se desenvolverem esses
outros ..:mpregos aos quais Freud fez aluso nessa passagem.
7 FREUD, S. "Nachwort zur 'Fragc dn Lai<.:nanalys..:' " ( 1927). Em: Studicnausgabc, ,oi.
Ergi1zu11gsband. Op. cit., p. 343.
8 LACAN, J. "Fonction et champ de la parole et du langage" (1953). Em: crits. Paris: Seuil,
1966, p. 288.
9 LACAN, J. "Situation de la psychanalysc cn 1956". Em: crits. Op. cit., p. 472.
' FREUD, S. "Nachwort zur 'Fragc der Laicnanalysc' ". Op. cit., p. 343.
" Ihid., p. 344.
" Ibid., p. 345.
:\presentao :1
e sobre a psicanlise na universidade se apresenta e, do outro, o fato de que a
"anlise no tem nenhum outro material que no os processos psquicos do ho-
mem, sb podendo ser estudada no homem" 13 , o que implica a absoluta determina-
o do que mais genuinamente constitui a psicanlise: sua prtica e sua indepen-
dncia absoluta do discurso universitrio, que, no entanto, pode dessa decorrer.
Uma coisa o ensino da psicanlise; outra, sua transmisso, mesmo se ambos
so interscccionais, como o so, por exemplo, no mais genuno campo clnico: se
toda anlise didtica, como diz Lacan, porque a experincia psicanaltica, na
transferncia, ensina algo ao sujeito com o objeto que o causa, e cuja verificao se
d a partir da transmisso incrente ao ato psicanaltico. Um nico lugar para isso: o
di, e a transferncia analtica. Para que haja transmisso, necessria a transfern-
eia que Lacan identifica cm duas verses: a transferncia por amor ao saber e a
transferncia ao analista no lugar do objeto a, o que no quer dizer que o analista no
possa ocupar o lugar de sujeito suposto saber para que se instale, em anlise, uma
transferncia na primeira verso.
Para ensinar psicanlise, no h qualquer exigncia de que o ensinante seja um
psicanalista. Mas o que transmitido? Certamente, o desejo de saber que no se
reduz experincia analtica e cujo lugar no a universidade. A questo que se
impe sobre o fato de o psicanalista ensinar psicanlise na universidade e sobre
os efeitos desse ensino, questo essa que sb pode ser respondida com a prtica
desse ensino e de sua anlise clnica. aqui que devemos convocar os analistas a
responderem a partir de sua prbpria experincia.
Em vez de proibi-la, critic-la ah nitio, propomos antes escutar os analistas
com essa experincia e, a partir disso, enriquecer o saber da prbpria psican-
lise com seus efeitos. Dessa forma, o prprio Mestrado cm Pesquisa e Clnica
cm Psicanlise um campo de pesquisa para verificar a relao da psicanlise
com a universidade, e s6 se tornar fecundo por meio do estudo da produo
dessa interseo.
Para o estudo dessa interseo importante observar que os psicanalistas pro-
fessores desse Mestrado tm vinculao institucional com associaes psicanalti-
cas de suas escolhas particulares, onde exercem atividades que tangem poltica
da psicanlise e de seu ensino e transmisso. Saber como distinguem ambas as
prticas institucionais e como as justificam so questes que permanecem abertas
para um exame mais aprofundado, cuja realizao cada vez mais urgente.
,i Idem.
13
Dessa forma, o Mestrado cm Pesquisa e Clnica cm Psicanlise visa, para alm da
formao de docentes de ensino superior, a criao de pesquisadores, incentivando
pensadores e acolhendo em seu corpo discente "profissionais que se interessem pela
psicanlise como mtodo e como processo, sejam eles pesquisadores ou tenham uma
prtica profissional que os confronte com questes de sade mental ou outras, como
toxicomanias, delinqncia, deficincias diversas e demais questes que demandam
ateno tcnica". Articulando teoria e prtica, "no acentuando o destaque a uma des-
sas dimenses em detrimento da outra", e sempre na perspectiva de pri\ilegiar "uma
direo tica voltada para o sujeito em sua dimenso inconsciente", visa-se uma "aber-
tura ao dilogo interdisciplinar, produzindo conexes com outros campos de saber".
O Mestrado no um curso de formao psicanaltica - "j que a Universida-
de no o lugar para tal formao" -, nem sustenta "quaisquer tendncias ou
sectarismos, identificveis no movimento psicanaltico (campo das instituies
psicanalticas e suas diferentes orientaes)" que poderiam "obturar o esprito do
debate cientfico", necessariamente caracterizado pela "abertura de um espao
acadmico voltado para o debate terico sobre a prtica clnica, que permita pens-
la criticamente".
Alm disso, o Mestrado, por um lado, se associa aos esforos de insero da
psicanlise no meio acadmico que vm sendo realizados no Rio de Janeiro e,
pelo outro, deles se diferencia cm razo da concentrao na associao do campo
clnico com a pesquisa, articulados teoria psicanaltica, baseando-se inclusive nas
contribuies de Jacques Lacan descoberta de Sigmund Freud. Essa diferencia-
o necessria em prol de uma especificidade.
Os textos
Por ter procurado refletir o trabalho que se realiza nesse Programa de Ps-Gra-
duao, este livro rene textos escritos por professores/pesquisadores psicanalis-
tas, professores-pesquisadores de reas conexas, alunos do prprio Programa e
conferencistas por ele convidados.
O primeiro texto funda sua direo: a relao da psicanlise com a cincia.
O inconsciente o campo de pesquisa que inclui o sujeito, normalmente foracludo
do discurso da cincia. Se isso verdade, ento, como diz Luciano Elia, o analista
no se define pelo sctting, mas pela tica, j que uma simples referncia ao sctting
seria equivalente quela a que esto submetidas as pesquisas experimentais na
tentativa de manterem um controle da varivel do campo. O campo da psicanlise
clnico e todas as elaboraes tericas que nele se articulam s tm validade para
Apresentao 17
Psicanlise: clnica & pesquisa
Luciano Elia
19
Podemos, assim, dizer que a resistncia ao reconhecimento dessa dimenso
uma forma de resistncia ao real da prtica ana}tica.
Trata-se, contudo, de um modo de rn11edfcr e de fazer pesquisa que deve ser
claramente diferenciado, cm sua especificidade, do modo cientico de conceber e
de fazer pesquisa. As razes dessa exigncia de diferenciao sustentam-se, cm
ltima instncia, nas relaes que a psicanlise mantm com a cincia clssica.
Assim, sem alongarmo-nos demasiadamente no exame dessa questo, j cm si
bastante ampla e complexa e qual temos dedicado a devida ateno cm outros
trabalhos 1 , limitemo-nos a obscnar que a relao da psicanlise com a cincia
pode ser formulada cm termos de dcrirao da primeira cm relao segunda,
como prope Lacan+. A psicanlise deriva da cincia, tendo, no corte que inaugu-
ra a cincia moderna no sculo XVI, com Galileu e Descartes, a sua condio de
possibilidade.
Mas se a psicanlise deriva da cincia, no se reduz a ela, operando, cm rela-
o ao passo inaugural da cincia, um corte, um rompimento discursivo, para cujo
entendimento a noo de sujeito a chave fundamental, porquanto cm rcla:o
posio dessa noo cm cada um desses dois campos discursi\os, o da cincia e o
da psicanlise, que melhor se esclarecem as relaes entre esses campos.
Foi o pensamento de Lacan que trouxe as condies epistemolgicas para este
esclarecimento. Freud aspirava a que a psicanlise viesse a ser reconhecida como
uma cincia. Neste sentido, ele nutria o Ideal de Cincia, como se exprime Jean-
Claude Milner', o que significa que ele no podia, do ponto cm que se situava
como fundador da psicanlise, tirar todas as conseqncias de seu passo. Lacan
coloca para a cincia a questo: "que cincia poderia incluir a psicanlise?", de-
monstrando, com isso, que a psicanlise que coloca para a cincia uma questo,
precisamente a de ter reintroduzido o sujeito na cena discursi\a cm que a cincia,
ao fundar-se, o situou e da qual, no mesmo golpe, o excluiu. Pode a cincia supor-
tar a incluso do sujeito, por ela mesma suposto, na cena discursiva que constitui
o seu campo operatrio? Ou tal incluso implica o corte discursivo que funda a
psicanlise? Lacan responde negativamente primeira questo e afirmativamente
1 Ver, por exemplo, ELIA, L. "Uma cicncia sem coi-ao", Rcri,'ta Agora: estudos cm teoria psic,rnalicicJ,
vol. II, n. 2. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria /Programa de Ps-Graduao em Teoria
Psicanaltica - UFRJ, 1999, p. 41-5 3 .
., Cf. LACAN, J. "La scicnce ct la \'rit". Em: crits. Paris: Seuil, 1966, p. 880.
; MILNER, J. -C. L'CEurrc c/Jirc. Paris: Seuil, 1995.
6 Ibid., p. 35.
' Referimo-nos chamada "teoria dos quatro discursos", empreendida por Lacan a partir de
O Scminrio, li,ro XVlf: o arcsso da psicanlise ( 1969- 70) (Rio d<.: Janeiro: Jorge Zahar Edito1, 1992),
no qual define o discurso como lao social articulando quatro lugares (agente ou scmhlantc;
outro ou trahalho; produo ou ;csto; e ,crdadc) e quatro letras que ocupam esses lugares,
cm determinada ordem (o par significante\,\, o sujeito$ e o ohjcto a). CL tambm o
texto de Sonia Alberti neste volume, cm especial a pgina 45.
11 Ver, a este respeito, artigo de nossa autoria intitulado"A transferncia na pesquisa em psicanlise:
lugar ou excesso?", Rc1jsta Psicologia, Refie.to e Crtica, vol. 12, n. 3, Porto Alegre, UFRGS, 1999.
12 KHUN, T. A estrutura das remlucscientficas. So Paulo: Perspectiva, 1971.
11 LACAN, J. Lc Sminairc, Lirrc XI: Lcs ()uatrc Conccpts Fondamcntaux de la Psychana{vsc ( 1963-4 ). Pari~:
Seuil, 1979, lio 1.
,. FREUD, S. "Linhas de progresso na terapia psicanaltica" (1919). Em: Obras completas, vol.
XVII. Op. cit., p. 209-1 O.
1' Ibid., p. 210.
17 Ver nota 10, na qual referimo-nos a essa teoria e indicamos sua referncia bibliogrfica.
18 ELIA, L. "Lacan, analyste au Brsil". Trabalho apresentado no Colloquc Lacan, Ana~rstc, organizado
pelo Mouvement du Cout Freudien (Paris) e realizado no Hospital de la Salptriere, Anfite-
atro Charcot, nos dias 27 e 2 8 de maro de 1999, em Paris.
Sonia Alberti
O mercado editorial hraslcro fez surgir cm 1997 pelo menos trs importantes
publicaes sohre o tema da clnica psicanaltica no hospital no Brasil. Dessas trs
publicaes, somente uma foi escrita por um autor -estrangeiro: a traduo de
textos de Cario \'igano, publicados cm Belo Horizontc 1 As outras duas so brasi-
leiras: Psicanalisc chospital', coletnea organizacL.1 por Marisa Decat de Moura, e \stas
confuses e Jtcndimenros imperfeitos 3 , puhlicao da tese de doutorado de Ana Cristina
Figueiredo, psicanalista e professora da UFRJ.
interessante notar que o resultado da Yasta pesquisa de Ana Cristina
Figueiredo detectou enorme influncia do ensino de Lacan junto aos analistas que
tentam hoje - mesmo c1ue de forma s \ezes confusa e normalmente imper!'eita
inserir a psicanlise no servio pblico de assistncia sade. Faz-se necessario, a
meu ,-cr, examinar essa obserYao mais de perto, a fim de ,erificannos a possvel
relao existente entre a psicanlise de Freud com Lacan, como designada, e o
trabalho no hospital. Certamente a leitura que Lacan permite do legado freudiano
insere algo norn na psicanlise e penso tratar-se justamente da grande referncia
e da alta conta da tica da psicanlise no ensino de Lacan. po,- ter descmohiclo
todo um seminario sobre o assunto+ que hoje podemos delimitar o campo tico ela
psicanlise que nos scne ele parmetro para as possveis aes no campo social. E
quando me refiro aqui a delimitao, isso implica, inclusi\e, a diferenciao da
tica <la psicanlise das outras ticas: a mdica, a religiosa, a humanitria.
1 \'J G A N, C. Sadc mental: psiquiatria e psicanlise. Belo Horizonte: Instituto de Sade Mental /
Associao Mineira de Psic1uiatria, 1997.
! .\,lOURA, 1\1. D. (org.) Psicanliscchospital. Rio de Janeiro: Rc\'intcr, 1996. O volume consta
como tendo sido editado cm 1996, mas s foi distribudo cm 1997.
'FIGUEIREDO, A. C. \:1stas mnlusiics 1.1tcmlimcntos impcrkitos. Rio de Janeiro: Rclume Dumar, 1997.
" L.AC :\'.'J, J. /.e ScminJirc, l.irrc 1'/1: L'hiq11c dcl.i Psychana{rsc ( 1959-60). Paris: Scuil, 1986.
37
Alm disso, a preocupao de Lacan com o lao social e seus discunos no deixa
de fornecer um instrumento de grande valia para o trabalho nas in,tui..,(~ ..\lias,
penso que os chamados textos institucionais de Lacan - e que tratam da politica da
psicanlise-, como, por exemplo, "Psicanlise e seu ensino", "Proposio de 9 de
outubro" e"Situao da psicanlise e formao do psicanalista em 1956";. produzem
parmetros para o psicanalista dirigir sua prtica em laos institucionais to diferen-
tes como o caso das equipes multidisciplinares nos hospitais.
Com efeito, o legado de Lacan por meio do qual se pode Yerificar as diferentes
posies que um sujeito assume no lao social, necessariamente um ponto de
partida fundamental para todo aquele que deseja intenir na instituio como psica-
nalista. Trata-se aqui da chamada "teoria dos quatro discursos", descnvoh-ida entre
1969 e 1970 cm seu dcimo stimo seminrio, publicado na ntegra sob o ttulo de
O arcsso da psicanlisc6 . Lacan sugere a existncia de quatro discursos que regulam o lao
social: o do psicanalista, o do mestre, o da histrica e o da uniYersidade. Se o sujeito
do discurso (aquele que fala) proYoca o lao social, porque ocupa uma das posies
cm um desses quatro discursos. 7 A partir dessa formulao, o psicanalista passou a
ter a seu alcance um importante referencial com consistncia terica, c1uc lhe per-
mite, dentro de sua prpria teoria - a psicanlise -, examinar e dialctizar a sua
funo no campo social. A meu ver, e voltarei a isso a seguir, o referencial terico
absolutamente fundamental para a prtica clnica e hospitalar.
Lano mo da potente conccitualizao dos quatro discursos para Ycrificar a
especificidade do tema cm questo. O hospital, sendo originalmente terra de m-
dicos -- que hoje temem a possibilidade dele se tornar"tcrra de ningum" 8 , , na
Uma experincia
Com a publicao de alguns artigos e do livro Esse sr9cito adolescente, a slida funda-
mentao terica do trabalho no Ncleo de Estudos da Sade do .\dolcsccntc
(NESA) do Hospital Universitrio Pedro Ernesto (HUPE/UERJ) foi amplamente
reconhecida. Era como se os demais profissionais do hospital dissessem a partir de
ento: "eles sabem o que esto fazendo!". Esse fenmeno pode ser observado
sobretudo no mbito da equipe multidisciplinar do Ncleo, que como equipe
sempre funcionou de forma exemplar, o que foi fundamental para o trabalho cm
razo do grande nmero de mdicos, enfermeiros e tambm assistentes sociais,
fonoaudilogas e nutricionistas que integram a equipe e orientam seu trabalho
conforme a bagagem terico-prtica que trazem de sua prpria formao. Desse
fenmeno pudemos depreender uma lio: o trabalho do pesquisador s passa a
ser reconhecido como um trabalho consistente a partir do momento cm que ele
fundamenta o que faz. No caso em questo, tratava-se do trabalho com adolescen-
tes com base nas teorias de Freud e de Lacan, vale dizer, da psicanlise transposta
para o cotidiano da assistncia aos adolescentes em um hospital geral, realizado
por uma equipe de psicc'>logos e de uma psiquiatra que, a partir de um projeto
iniciado cm 1994, integram o Setor de Sade Mental do NESA/HUPE/UERJ.
"Cf. LACA'.\!, J. "Radiophonic". Em: Scilicct, 213. Paris: Scuil, 1970, p. 99.
1" Uma delas, Sdma Correia da SilYa, atualmente integrante da primeira turma do Mestrado
cm Pcsc1uisa e Clnica cm Psicanlise --- IP /UERJ.
11 ALBERT!, S. ct ai. "A demanda do sujeito no hospital", Cadernos de Psicolota. Rio de Janeiro:
Instituto de Psicologia- UERJ, Srie Clnica, n. 1, 199+, p. 25. Em 1994, com base na rdcitura
c1u(' Lac:111 fez da obra de Freud, puhlic\'amos cssc- texto para cstahelccer nossa pn'ocupa\:5.o
maior no mbito do trabalho do psicanalista no hospital: a questo da demanda. Referncia
para a tese de Ana Cristina Figueiredo, esse artigo , pois, um dos pioneiros no tratamento da
questo do psicanalista no hospital a partir das contribuies terico-clnicas de Jacques I.acan.
1. CA:'\GUILHEM, G. "O que f.. psicologia?" (1958), Rcri.,t,1 Tcmpo Brasileiro, n. 30/ l, julho/
dezembro de 1972.
,; ?v1aric Bonaparte, a primeira tradutora de Freud na Frana, havia traduzido: "O cu (mo)
dcYc desalojar o isso (a)''. Lacan mostrou como a obra de Freud ia cm direo absolutamente
oposta a essa traduo, retraduzindo a passagcm:"Ondc isso era dcYo (cu) advir". Cf. LACAN,J.
"La chosc frcudiennc" ( 1955). Em: crirs. Op. cit., p. 417-8.
'' L:\C:\:'\, J. Lc Sminairc, Lirrc VII: L'tbiquc de la P.~rciwia{rsc. Op. cit.
,; FIGUEIREDO.A. C. E1.<tascr,n/i1sricscatcndimcnro.<impcrfritos. Op. cit., p. 73.
1 Alm dos textos j c.-itados, acrescente-se o colquio ocorrido em 5 de dezembro de 1997: "Psica-
nlise com c.Tianas e adolescentes na instituio", no Centro de fatudo e Pesquisa cm Psicanlise
com Crianc,.aS (CEPPAC), no Rio de Janeiro, cm que essas questes tambm foram debatidas por
mim, Cristina Duba e Manica Rolo, a partir de nossas experincias clnicas na rede pblica.
17 Atualmente como preceptora da Residncia cm Psicologia Clnica Institucional no NESA/
HUPE/UERJ.
" Este debate foi posteriormente publicado. Cf. os textos de LAURENT, E., GURGEL, I.,
ALBERT!, S. e BATISTA, M. C. cm Correio, n. 15. Publicao da Escola Brasileira de Psica-
nlise, out/noY 1996.
19 LACAN, J. "Entreticns ayec des tudiants -Yale University, 24 de novembre 1975", Scilicct,
n. 6/7. Paris: Scuil, 1976.
OS DISCURSOS
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Discurso do Capitalista
$ S1
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OS LUGARES
22 Em OSeminrio, lirro 17, Lacan no se refere explicitamente a um quinto discurso. Ele o cons-
tri durante os dois anos seguintes: "De um discurso que no seria do semblante" ( 1970-1)
e" ... ou pior" ( 1971-2). Contemporneo a esse ltimo, h um conjunto de palestras realiza-
das no Hospital Saintc-Anne, conhecidas sob o ttulo de "O saber do psicanalista", cm que
ele mais uma vez toca na questo, e, finalmente, a "Conferncia de Milo", realizada em 12
de maio de 1972, ou seja, na mesma poca dessas duas ltimas referncias.
23 LACAN,]. T/rision. Paris: Seuil, 1974.
24 No Menon, por exemplo, possvel observar o quanto esse saber interessa ao mestre que,
questionando o escravo, o faz dizer o saber que detm sem o saber. Cf. PLATO. "Mcnon".
Em: Ocurrcs completes, vol. 1 Paris: Gallimard, 1950.
n Nos seminrios posteriores ao dcimo stimo, Lacan modifica o nome dos lugares, manten-
do somente um: o lugar da verdade. Os outros mudam: o agente passa a ser o semblante, o
outro, o gozo, e o lugar da produo o lugar do mais-de-gozar (cf. o materna do Discurso
do Capitalista, p. 45). Isso importante para avanarmos um pouco na articulao do que
ele prope para o Discurso do Capitalista.
26 CARNEIRO RIBEIRO, M. A. "Capitalismo e esquizofrenia". Em: ALBERT!, S. (org.) Autismo
e esquizofrenia na clnica da csquize. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999, p. 167.
n LACAN, J. "Milan, 12 de mai 1972". Em: Lacan cn !ta/ia. Milano: La Salamandra, 1972.
18 ALBERTI, S. "Apresentao". Em: ALBERT!, S. (org.). Autismo e esquizofrenia na clinica da csquize.
Op. cit., p. 7-13.
"LACAN,J. "Psychanalysc ct mdcinc" (1966). Em:"Pctis crits ct confrcnccs 1945-1981 ".
Indito, grifo nosso.
11 Simplificao <lo esquema para a pernTsu guisa de ilustrao do que aqui quero ressaltar.
Cf. L:\CA'.\', J. "Kant avec Sacie" ( 1963 ). Em: crit.,. Op. cit, p. 775.
,; cada Yez mais freqente, por excmpio, obscnarmos a prtica dos mais Yariados inYcsti-
mentos financeiros entre os mdicos ,tambm entre aqueles que se dizem psicanalistas .
na tcntatiYa de colmatar a impossYel ascenso.
Jean Szpirko
1 Do original: "trc malade, avoir une maladic", Sant Menta/e - Le manuel des quipes soig11antes en
p~rchiatrie, n. 38. Paris: Acte Prcsse, maio de 1999. Traduo de Luciano Elia.
2 N. do T. O verbo tre, cm francs, significa tanto ser quanto estar. Optamos por ser doente, em
funo do contedo da discusso do autor no texto acerca da dialtica do ser e do ter, preser-
vando, no limite, a admissibilidade do sentido de estar doente.
57
das posies tomadas pelo mdico cm face de sua queixa. Ora, a atitude cio mdico
depende das representaes que ele faz para si mesmo do paciente, da doena, e sobre-
tudo de seu prprio estatuto, de suas prprias funes, de suas competncias.
Tratar-se-, neste artigo, de buscar fundamento na anlise de alguns proble-
mas relacionais a fim de tornar perceptveis para os leitores alguns mecanismos
que intervm na relao mdico-paciente. Esses se depreendem de forma exem-
plar no momento da comunicao do diagnstico de uma doena crnica. A difi-
culdade no reside - como muitos supem - na maneira de formular essa comu-
nicao, mas na forma de permanecer atento s reaes a ela.
O modo de acolher as reaes do "paciente" determina um valor qualitativo
da relao, e o estudo dos diferentes modos de acolh-las nos permitir formular
alguns parmetros representveis em uma "clnica da relao". Tentaremos igual-
mente cernir a incidncia dessa relao na "obsenncia" ou na "no-observncia"
das prescries e das regras de higiene de Yida por parte de pacientes acometidos
de doenas crnicas.
1 N. do T. No original, esprit torclu, literalmente esprito torcido ou distorcido, que tradu:mos pela
expresso idiomtica corrente esprito de porco que guarda o valor de uso e o sentido da expres-
so francesa.
N. do T. No original: miscs cn actc, expresso que, como todas aquelas que so formadas pelo
particpio do verbo mettrc, de difcil traduo literal, tendo algumas passado ao uso corrente
cm portugus (misc cn sccnc, misc cn pl).
' N. do T. Trata-se, evidentemente, de uma prtica usual cm um contexto poltico e
sociocconmico particular, o francs, diferente do brasileiro.
que a doena histrica afeta o corpo do paciente atravs das palavras que tm
uma funo de representao simblica (de significante), e essas nada tm a ver
com as palavras que tm uma funo conccitual no campo do saber que o mdico
adquiriu ao longo de seus estudos.
Com efeito, cada ciYilizao, cada disciplina, constri uma representao cspccfl-
ca do corpo. Ora, a not,el eficcia das construes da medicina ocidental no elimina
certas concepes populares, poticas ou religiosas que utilizam os mesmos termos
para exprimir coisas diferentes. s vezes as denominaes dos rgos, cm medicina,
cruzam metforas: ter corao, direi lo de sangue, ler estmago'', por exemplo.Trata-se de regis-
tros diferentes, que se superpem, se nodulam, sem que se possa abolir os efeitos de
seu poder eYocador. No possvel ignorar ou excluir outras concepes como as que
so propostas no campo mdico, uma vez que so justamente essas concepes outras
que sustentam para cada ser humano seus ,-alares de referncia, suas concepes sobre
o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o belo e o feio, assim como o
orientam na busca de um sentido a <lar s questes sem resposta. Essa diversidade
irreduthd nutre, entre outras coisas, o debate entre os mdicos sobre questes ticas,
a dor, o aborto, a procriao medicamente assistida, o diagnstico pr-natal etc.
A relao mdico-paciente
A relao mdico-paciente uma relao de poder, como j dissemos. O exerccio
desse poder necessrio nas prticas de cuidados.
Ora, o homem-medicina, o homem de poder, cm todas as civilizaes, um feiticeiro.
ele que suposto deter as chaYes do saber relativo ao sentido a dar aos sintomas
e ao sofrimento, bem como forma de cur-los e de exorciz-los. Essa concepo
> FAVRET-SAADA, Jeannc. Lcs mots, lcs sorts, la mort. Paris: Gallimard, 1977.
9 ;'\!. do T. ;-,Jo original: "sont de mau,aise composition".
10 SZPIRKO, Jean. " la croisc dcs champs". Em: L'ana(rsc. /'analystc. Paris: Solin, 1991.
11 Cf. CLAVREUL, Jean. L'nrdrc mdic,1/. Paris: Scuil, 1978. Abordar a questo do doente consis-
tiria cm saber manifestar uma inteno dirigida a singularidades. Ora, fcil constatar que
o promotor da ao coletiva, como as associaes cientficas ou laboratrios farmacuticos,
,isam, paradoxalmente, construir tipologias que nos reconduzam ao ponto de partida.
11 FREUD, S. Rsultats, idcs, problcmcs. Paris: PUF, 1985, p. 2S; e L.i ric scxuellc. Paris: PUF, 1969,
cap. IX, p. 123.
11 BENVNISTE, milc. PmblcmcsdclinguistiqucgnrJlc, 1. Paris: Gallimard, 1964, cap. XVI, p. 193-5.
A. Situao
um doente procura um mdico;
o mdico diagnostica uma doena crnica;
aps vrias discusses com outros mdicos, verificaes, hesitaes etc., ele
a comunica ao doente;
o doente recebe a notcia de sua doena.
14 Essas atitudes devem ser distintas daquelas que Elizabeth Kblcr-Ross prope para o ann-
cio da morte.
Concluses
Seria ilusrio crer que a no-obervncia poderia ser combatida com a ajuda de
uma campanha de comunicao que tomaria, de um modo clifcrcntc, argumentos
muitas \'Czcs reiterados. Isso seria fazer pouco da dimenso inconsciente cm rela-
o qual todo mundo se caracteriza por"nada querer saher sobre isso" 16, mesmo
no momento do surgimento imprevisto de seus efeitos.
O que parece fayorccer a obserYncia se passa na relao mdico-paciente.
!\essa relao, no se trata de uma doutrinao do outro atravs de argumentos,
amca<;:as ou procedimentos ele influncia, mas ele uma forma de implic-lo comi-
dando-o a falar de modo diYerso daquele que consiste cm recitar esteretipos ou
frmulas codificadas por antecipao. O mdico situa-se ento como testemunha
atenta de uma narrativa que por vezes se afasta do tema inicial a fim de suscitar
uma tomada de conscincia, permanecendo atento cm relao aos termos singu-
lares do paciente, que no pode dizer com preciso (mas quem o poderia?) as
dificuldades que ele experimenta para:
integrar sua doena a sua vida pessoal, profissional;
tirar conseqncias disso;
fazer projetos.
1' l\'. do T. Em francs, os verbos ser e ter tm a funo de auxiliares do verbo principal na
formao de inmeros tempos compostos.
Este artigo uma rcleitura da tragdia dipo rei, de Sfocles, suscitada a partir do
estudo de alguns textos escritos por especialistas cm cuLtura helnica. Quisemos
confrontar duas possibilidades de leitura do texto grego, a do helenista e a do
psicanalista, de modo a evidenciar o quanto elas podem se enriquecer mutuamen-
te: se o historiador fornece elementos fundamentais que iluminam o contexto
cultural no qual a tragdia se inscreve, o psicanalista aponta a ocorrncia da ao
inconsciente do significante nesses mesmos elementos postos cm cena.
Tendo como objeto de debate um artigo do psicanalista Didier Anzicu 1, publi-
cado cm 1966 na rcYista Lcs Tcmps Modcrncs, o historiador Jean-Pierre Vcrnant cscre-
\'CU cm 1967 um artigo intitulado '"dipo' sem complexo"~, no qual critica a
4 Ibid., p. 85-ss.
'Ibid., p. 80.
6 Ibid., p. 82.
7 Idem.
':\"ossa rcfcrt:ncia, daqui por diante, so os wrsos traduzidos do grego por Mrio da Gama
Kury. Cf. SFOCLES. A trilogia tcbana - Edipo rei. Edipo cm Colono, Antigana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1990.
VERNA:'-JT, J.-P. '"dipo' sem complexo". Op. cit., p. 97.
' LACAN, J. O seminrio, /irra 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982, p. 190.
1; A categoria do "mau-olhado" utilizada aqui no sentido de que "o olhar se presta especial-
mente condenao superegica". Cf. DIDIER-WEILL,A. Os trs tempos da lei. Rio de Janeiro:
jorge Zahar Editor, 1997, p. 70.
16 VERNA'.'JT, J.-P. '"dipo' sem complexo". Op. cit., p. 82.
1Idcm.
11 Esse artigo, escrito paralelamente ao liHo Fundam,-r.ro., da p.<icanlise de Freud a Lacan, rol. /: as bases
conceituais (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000), dele retira algumas elaboraes centrais, so-
bretudo aquelas sobre a significao antittica das palavras ... primitivas ou no.
11 Mario da Gama Kury sublinha que "catstrofe" o ponto da tragedia em que ocorre a rcvira-
rnlta, para pior, na sorte do protagonista. Cf. SFOCLES. A trilogia tebana. Op. cit., p.98.
16 Dito no qual se percebe uma inYcrso cuja significao a de censurar a verdade: Edipo cem
trao; de Laia!
17 Conforme nos explica Mario da Gama Kury, trata-se da observao da direo do YO dos
pssaros, indicadora de bons ou maus pressgios. Cf. A trilogia tcbana. Op. cit., p. 98.
1 Cf. AZEVEDO, A. V. de. "Entre Tche e Autmaton: o prprio nome de dipo", Percurso:
Rcrist.idepsican/isc, XII, 23, 1999, p. 53-62.
29 LACAN, J. "Confrences et entreticns dans des universits norcl-amricaincs", Scilicct, 6/7,
Paris: Scuil, 1976, p. 36.
ic'VERN ANT, J. -P., "Ambigidade e reviravolta. Sobre a estrutura enigmtica de' dipo Rei"'.
Op. cit., p. 116.
31 Ibid., p. 117.
J! Consultar a esse respeito nossos desenvolvimentos cm JORGE, M .A. C. Fundamentos da psican-
lisr de Freud a Lacan -- rol.!: as bases conceituais. Op. cit.
85
primai, ou pecado original" 3 , reconhecendo algo extremamente importante e que
no pode ser desprezado.
Em "Totem e tabu", ele abordara a questo atraYs de um mito, cm que o
advento da cultura fruto de uma violncia primordial. Nosso pecado original
um crime, o parricdio - "ato memorvel que foi o comeo de tantas coisas: da
organizao social, das restries morais e da religio,,.-, no qual a culpa encon-
tra sua origem no retorno do amor sob a forma de remorso. Assim, o amor est na
origem da conscincia moral, acompanhado da fatal inetabilidadc do sentimen-
to de culpa. Para Freud, isso se deve ambivalncia emocional cm relao ao pai,
cm que coexistem duas correntes: a corrente agressiva, que se manifesta atravs
do parricdio, e a corrente afetuosa, que surge com o remorso. Amor e dio con-
jugados na fundao do lao social ou, como indicaria mais tarde, a sociedade
perpassada pelo conflito pulsional cm que se defrontam pulses de vida e pulses
de morte.
No campo da clnica comum, ao identificar a fora do sentimento de culpa nas
contradies e inibies da neurose obsessiva, na autodeprcciao melanclica, na
resistncia teraputica negativa, no recurso conduta criminosa pela necessidade de
punio, ele reafirma que tudo tem sua origem na relao ambivalcntc com o pai.
No complexo de dipo, condensam-se os dois grandes crimes humanos - o parricdio
e o incesto - fonte desse "obscuro sentimento de culpa" da humanidade, cm que a
ontogncsc repete a filognese. Para Freud, portanto, h uma herana da culpa.
Ao nos debruarmos sobre esses e outros textos freudianos que abordam o
tema, chama a ateno o fato de ele diversas vezes qualificar o sentimento de
culpa como "obscuro", adjetivo que acompanha seu carter primrio e que, poste-
riormente, seria definido como "inconsciente". Se o sentimento de culpa encon-
tra sua forma mais elevada a partir da delimitao da noo de supcrcu como
instncia crtica, na tenso entre cu e supcreu, Freud deixa claro que ele anteri-
or ao supercu, anterior conscincia moral. Parece haver a algo de primitivo e
inconquistvel, enigmtico, que surpreende Freud na clnica e o leva a buscar na
forma mtica, seja em "Totem e tabu", seja no "dipo", um modo de explic-lo.
O mito vem cm lugar daquilo que no pode ser dito.
3 FREUD, S. "Reflexes para os tempos de guerra e morte" (1915). Em: Obras completas, vol.
XIV. Op. cit., p. 168.
4 FREUD, S. "Totem e tabu" (1913). Em: Obras completas, vol. XIII. Op. cit., p. 168.
9 importante lembrar que da primeira segunda teoria da angstia Freud alterou a relao
entre angstia e recalque: se antes concebia a angstia como conseqncia do recalque, cm
1926, inverte esta relao, considerando-a anterior ao recalque. Cf. FREUD, S. "Inibies,
sintomas e ansiedade" (1926). Em: Ohras completas, vol. XX. Op. cit.
' FREUD, S. "Projeto para uma psicologia cientfica". Em: Obras completas, vai. I. Op. cit., p. 422.
12 A idia de "Outro enigmtico" associada a das Ding provm das formulaes que Lacan apre-
senta cm OSeminrio, lil'ro 7: atica da psicanlise (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988): "Falei-
lhes hoje do Outro como Ding" (p. 73). Para o desenvolvimento dessa idia ver RINALDI, D.
A tica da diferena: um debate entre psicanlise e antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
13 KAUFMANN, P. Dicionrio Enciclopdico de Psicanlise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1996, p. 42.
14 LACAN,]. "O Scminario, livro 1O: a angstia" ( 1962-3). Indito.
,; Ao se referir aangstia primordial que, para Freud, rompe todas as defesas, Rabinovich
indica: "Qual ento, para Lacan, a invaso de estmulos que descreve Freud, essa invaso
que supera a barreira protetora? O desejo do Outro o nome que o excesso econmico
recebe cm Lacan". Cf. RABINOVICH, D. La angustia ycldcscodcl Outro. BuenosAircs: Manantial,
1993, p. 103.
Freud e o desejo
Como se apresenta a noo de de~ejo no ensino de Freud? Em primeiro lugar, o
desejo definido como um impulso psquico que procura reinvestir o trao da
percepo (nica marca de uma experincia de satisfao) e evocar a prpria per-
cepo, a fim de restabelecer uma situao de satisfao. Nos seres humanos, a
apreenso possvel do objeto sempre se refere ao que diz respeito ao trao e a uma
fruio. Essa nos parece ser outra forma de dizer que o objeto do desejo sempre
um objeto perdido, pois do objeto h apenas sua representao.
Em segundo lugar, s o desejo pode pr o aparelho mental em ao; ele a
nica fora motivadora da formao dos sonhos e dos sintomas neurticos. O in-
consciente no conhece ohjetrns que no visem a satisfao de desejos e no possui
a seu comando seno o desejo. No inconsciente, portanto, trata-se de desejo.
93
H ainda uma terceira tese: o desejo indcstrutvel 1 , tese com a qual Freud
conclui sua obra inaugural sobre o desejo, "A interpretao dos sonhos". A expe-
rincia analtica se orienta para o acesso ao inconsciente por meio da associao
livre, sendo a funo do analista decifrar, atravs da interpretao, esse desejo.
Posteriormente, cm sua segunda tpica, Freud modificaria a tese de que basta
uma interpretao para que o sintoma desaparea, pois sempre h algo que resis-
te, tornando-se isso a parte mais importante de uma anlise.
' -REUD, S. "A interpretao dos sonhos". Em: Obras completas, YO!s. 4 e 5. Rio de Janeiro:
Imago, 1976.
'HEGEL, G., apud Lacan, J. O Seminrio, /irra!: os escritos tcnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, l 979, p. 2 05.
i FREUD, S. "Projeto para uma psicologia cientfica". Em: Obr.1smmplct.1s, vol. I. Op. cit., p. 422.
Passemos agora analise das implicaes clnicas que essas elaboraes im-
pem. De incio, destaquemos os desdobramentos da experincia clnica desen-
volvidos cm O Seminrio, lirro I. No interior da experincia analtica, trata-se inicial-
mente de desfazer as amarras da palavra:
A palavra essa dimenso por onde o desejo do sujeito autenticamente inte-
grado no plano simblico. somente quando ele se formula, se nomeia diante
do outro, que o desejo, seja ele qual for, reconhecido no sentido pleno do
termo. No se trata da satisfao do desejo, nem de no sei que primar_r /ore, mas,
exatamente, do reconhecimento do desejo. 7
7 lbid.' p. 21 2.
8 Ibid., p. 21 5.
Ibid, p. 230.
LACAN, J. "A direo do tratamento eos prinpios de seu poder". Em: Escritos. Op. cit., p. 629.
1
'1 Essas duas dimenses da psicanlise, que se encontram formuladas por Lacan cm sua "Pro-
posio sobre o psicanalista da escola", repetem a relao de juno que existe entre teoria
e a clnica, j que a autoria do analista no trabalho de elaborao dos significantes da psica-
nlise e sua autorizao se encontram cm um ponto de juno. Cf. LACAN, J. "Proposio
sobre o psicanalista da escola", OpoLacaniana, n. 16, So Paulo, 1998.
12 Ibid., p. 34.
Lenita Bentcs
1 MILLER, J.-A. "Struc'<lure". Em: .\/JtcmJ; li. Buenos .-\ires: .\fanantial, 1994, p. 87.
: SAl!SSURE, r. Curso de li11g1;ticJ gml. So Paulo: Cultrix, 1974.
; JAKOBSON, R., ,1puc/MII.I.ER, ].-.-\. "Struc'clurc". Op. cit.
' LVI-STRAUSS, C. Antropologia csrruwrl, 2 ,ois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 199 3. Lacan
tambem fez uso ela matemtica para pcn,;ar a estrutura. Em "O Semnrio, livro 14: a lgica da
fantasia", por exemplo, ele recomenda .i leitura do artigo de Marc B.irhut"Acerca do sentido da
101
Para Saussure, o signo lingstico uma entidade de duas faces: o conceito e a
imagem acstica, elementos intimamente ligados.
Conceito Significado
Significante
palavra estrutura cm matemtica", no qual esse autor prope como rcpn:scntantc do uso da
noo de estrutura cm matemtica o grupo de Klein, "clebre cm matemtica e prcscntl' cm
mltiplas atividades humanas", e que se aplica as permutaes de quatro elementos quais-
quer. A noo de estrutura definida do seguinte modo: "uma estrutura [... J um conjunto de
elementos eleitos ao azar, dentre os quais se definem uma ou ,rias[ ... ] operaes".
Linguagem e palavra
medida que avana cm seu ensino, Lacan refina os dcsemolvimcntos cstahclcci-
dos, num trabalho de construo bem ao estilo do discurso analtico. Entre os
remanejamentos ocorridos, pode-se notar um desajuste entre estrutura da lin-
guagem e estrutura da palavra. Como mostrou Miller: "se [Lacan] tomou de
Saussurc e de Jakobson a estrutura da linguagem, tomou de Hegel e Kojcn: a
estrutura da palavra, que funda a mediao, quer dizer, que no h simetria entre
o locutor e ouvinte; o ouvinte est cm uma posio de mestre porque decide o
sentido do que o locutor pode dizer".
O fato de decidir do sentido mantm uma relao, ainda que mediadora,
dissimtrica entre palavra e sujeito. a partir da noo de dissimctria que o Ou-
9 Precisamente, na linha intermediria, ou seja, na linha que Yai de$ Oaa d, enquanto desejante.
,o O sujeito inscrito na estrutura o que, no grafo do desejo, Lacan escreve com o materna
S(), ponto cm que"[ .. , l toda cadeia se honra ao fechar sua significao. Se preciso esperar
tal efeito da enunciao inconsciente, aqui cm S(I), e h que l-lo: significante de urna
falta no Outro, incrente sua funo mesma de ser o tesouro do significante. Isso, na medi-
da cm que o Outro solicitado (chc Yuoi) a responder pelo Yalor desse tesouro, isto , a
responder, certamente, de seu lugar na cadeia inferior, mas nos significantes da cadeia supe-
rior, ou seja, cm termos de pulso" (LACAN, J. "SubYcrso do sujeito e dialtica do desejo".
Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 832-3). Nesse sentido, entendo
que o S(p{) no quer dizer que ao conjunto falte um significante, mas sim que h um
significante que se inscreve como falta, isto , no quer dizer que h Um no sentido da
unidade, mas antes que h do Um. Esse materna representa a inconsistncia, o que mais
tarde Lacan nomearia de xtimo, de exterior ntimo, para expressar que o inconsciente no
se reduz ao simblico, mas dele se deduz; seu ncleo o real. H um ponto de no saber que
expressa a inconsistncia do Outro e leva Lacan a dizer que o Outro no existe.
1 MILNER, J.-C . .4 obra clara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 76.
107
sua vez, a antropologia estrutural encontrou fundamentos nas permuta<;es sime-
tricas e cm outras leis matemticas que lhe permitiram uma noYa forma de olhar
e abordar o seu campo de pesquisa.
No entanto, no existe nenhuma conexo necessria entre a noo de medida e
estrutura. As pesquisas estruturais apareceram nas cincias sociais como uma
conseqncia indireta de certos desenYohimentos das matemticas modernas,
que deram uma importncia crescente ao ponto de vista qualitativo separando-
se, assim, da perspectiva quantitativa das matemticas tradicionais. Em di\ersos
domnios (lgica matemtica, teoria dos conjuntos, teoria dos grupos e topologia),
notou-se que problemas que no comportaYam soluo mtrica podiam, apesar
disso, ser submetidos a tratamento rigoroso. 2
Ora, defender a idia de que o homem fala porque o smbolo o fez homem implica
uma nova idia de humano e de sua constituio, uma idia que rompe com a psicolo-
gia e tambm com todo saber que considera o homem como um elemento da nature-
za. O homem no nasce com todos os dados que lhe dizem respeito cm um "cdigo
gentico", espera apenas ck seu desenYolvimento ..\o contrrio, como Freud p<lc
mostrar, a condio do humano de absoluto desamparo. Todavia, se para o homem o
desamparo seu princpio e seu fim, no sentido de que esse o acompanha em toda a
sua vida, na imerso constante no mundo da linguagem que ele se faz.
A partir do reconhecimento de que as palaHas so o nico material do inconscien-
te, Lacan se interessou pela lingstica estrutural e dessa se aproximou, produzindo o
que Milner chamou de o primeiro classicismo lacaniano 3 . O inconsciente fala e fala cm
palavras articuladas, mostrando que possui uma estrutura precisa, que deve sua emer-
gncia a uma perda fundamental operada no por uma lei cientflca, universal e sem
sujeito, mas sim pela lei da castrao, cm que a universalidade se revela caso a caso. Tal
como um evento (que pode ocorrer ou no) operacionaliza, caso tenha ocorrido, a
entrada na ordem do significante. A lei da castrao, portanto, uma lei contingente.
O operador estrutural dessa lei, essencialmente simblica, o pai real, efeito
de linguagem, e no o pai biolgico. O pai real:
[ ... J coloca para alm da ausncia ou presena da me, como sentido, presern,:a
significante, o c1ue lhe permite ou no manifestar-se. cm relao a isso que, a partir
do momento cm que a ordem significante entra cm jogo, o sujeito tem de se situar!
Deleuze utiliz.a o tipo de relao determinado pela equao diferencial ydy + xdx O, na =
qual os elementos se conjugam reciprocamente, sem terem cm si Yalor determinado. Nessa
relao, os elementos no tm existncia, nem valor, nem significao, e surge a questo de
saber se esse tipo de relao torna poss,cl pensar uma estrutura que inclua o sujeito do
inconsciente. Cf. DELEUZE, G. "Em c1ue se pode reconhecer o estruturalismo". Em: CH TELET,
F. Histria da filosofia, o sculo XX. Lisboa: Dom Quixote, 1967, p. 279.
7 LACAN, J. O Seminrio, lirro 2: o eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1987, p. 321-2.
8 MILNER, J.-C. A obra clara. Op. cit., p. 90.
MILLER, J.-A. "A sutura: elementos da lgica do significante". Em: COELHO, E. P. (org.)
Estruturalismo: antologia de textos tericos. So Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 221.
A anlise testemunha que no ser falante no se d uma relao que de dois faa
um. Como Freud nos mostrou, Tnatos faz obstculo a Eros, promovendo
descontinuidades e cYidenciando o gozo nesses desencontros.
Ao encontrar na teoria dos conjuntos a possibilidade de falar do Um para
coisas sem qualquer relao entre si, Lacan vai alm de suas primeiras interroga-
es a respeito do significante. No se trata mais de perguntar"o que o significante"
ou "o que um significante", mas antes de interrogar"o que o significante Um?" 15
12 Ihid., p. 34.
13 Grupo de matemticos, cm sua maioria franceses, gue aderiu sem concesses a um trata-
mento axiomtico da matemtica, enfatizando a estrutura lgica do assunto.
14 BOURBAKI, N. "Thc architeturc of mathcmatics", Amcrican Mathcmatical Mont{r, 1950, p. 221.
,; LACAN, J. O Seminrio, lfrro 20. Op. cit., p. 65 e 91.
J(,Ibid., p. 66.
17 Ibid., p. 67.
18 Ibid., p. 139 e 174.
Andr Schaustz
1 BERCHERIE, P. Os fundamcnrn.< da cbuCJ: !:i.,roria r c.,trutura do saber psiquitrico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1989, p. 285.
i LACA:'-J, J. "De nossos antecedentes". Em: Esclitos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998.
Sua obra procura realizar uma distino, que at ento no havia sido bem consi-
derada, entre psicose, delrio e temas ideicos:
O delrio o conjunto dos temas idcieos e dos sentimentos adequados ou inade-
quados, mas conexos. [ ... J A psicose esse delrio mais o fundo material
(histolgico, fisiolgico), necessrio para produzi-lo e dcsenYoh-lo. [ ... J En-
to, os temas idcicos esto longe de ser a psicose, so produes secundrias, so
produtos intelectuais sobreacrescidos. 3
6 SGLAS, J. "Las alucinacioncs". Em: TE'.\"DL\RZ. S. (org.) Analisis de las alucinaciones. Buenos
Aires: Paidos, 1995.
7 Ibid., p. 214.
8 Ibid. , p. 2 15 .
9 LACAN,]. O Seminrio, lfrro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 33.
10 GIRARD, M. "Gaetan Gatian de Clrambault: morccaux choisis pour un parcours historiquc".
Op. cit., p. 29.
14 Ele afirma em O Seminrio, liiro 3: as psicoses que "o delrio no deduzido, que ele reproduz a sua
prpria fora constituinte, , ele tambm, um fenmeno elementar. Isso quer dizer que a noo
no deve ser tomada a de modo diferente da de estrutura, estrutura diferenciada, irredutvel a
outra coisa que no ela mesma". LACAN, J. Seminrio, Jilro 3: as psicoses. Op. cit., p. 28.
i; POULMAR'CH, Christian. "Gactan Gatian de Clrambault - Des dlires passionnels
l 'automatisme mental, une clinique possible des psychoses". Em: L'abord des psychoses apres Lacan.
Bordeaux: Point Hors Ligne, 1993, p. 53.
16 LACAN, J. "De nuestros antecedentes". Em: Escritos. Mxico: Siglo Veintuno Editores, 199 5,
p. 60.
17 Lacan, J. "De una cuestin preliminar a todo tratamiento posiblc de la psicosis". Em: Escritos.
Op. cit., p. 51.
Do obstculo ao desejo
O sintoma est presente desde o incio da obra de Freud. Em seus primeiros casos,
chama a ateno a profuso de sintomas descritos. Suas primeiras pacientes: Emmy
(1889), Lucy (1892), Katharina (1893) e Elizabcth (1892), alm dcAnna O., paci-
ente de Breuer, apresentam uma vasta lista: afasia, alucinao, amnsia, anestesia,
anorexia, atitudes passionais, convulses, desmaios, dor de cabea, estupor, espas-
mos, constrio da garganta, insnia, lgrimas, mutismo, paralisias, tiques, tussis ner-
vosa, perturbao da viso, vmitos etc. Nessa poca, o chamado perodo pr-psica-
naltico, o tratamento era norteado pelos sintomas, por seu aspecto imaginrio - se
assim podemos chamar a sua fenomenologia - por sua mise-en-scene.
Logo, porm, Freud percebeu que os sintomas tinham um sentido. Os sinto-
mas eram metforas, mal ou bem arranjadas, de algum desejo sexual inconsciente
e proibido. Ele tambm observou que o "tratamento sintomtico" produzia odes-
locamento de um sintoma para outro. Com isso, substituiu as tcnicas catrtica e
hipntica pela associao livre, uma abordagem mais simblica do sintoma, dando
incio psicanlise propriamente dita: nenhum sintoma surge de uma experincia
isolada do sujeito; s experincias atuais de um sujeito preciso que se encadeiem
lembranas do passado, de modo que uma cadeia dessas lembranas, ou cadeia
associativa, seja formada. Eis a face simblica de um sintoma: um significante se
liga a outro e a mais outro, produzindo sentido ou ausncia de sentido.
O real do sintoma, cm Freud, comea a se descortinar quando ele nota que o
sintoma no era somente sofrimento, mas"satisfao substitutiva de algum impul-
so sexual e medidas para impedir tal satisfao" 1 , e que, durante um percurso de
anlise, resistia cura. Freud fala de cinco tipos de resistncia: as resistncias do
1 FREUD, S. "Esboo de psicanlise" ( 1938). Em: Obras completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro:
Imago, 1980.
cu provenientes do recalque, da transferncia, do ganho secundrio da doena
(quando o eu assimila o sintoma), a que adYm do isso como ag_uela que necessita
de "elaborao" e a do supereu, que se origina da necessidade de punio (maso-
quismo). O que justifica a resistncia do sujeito neurtico cura a satisfao
obtida atravs do sintoma e que indica um real, ou seja, aquilo que o sintoma no
pode escrever.
Neste artigo, abordo o conceito de real a partir de um texto de Lacan chama-
do "A terceira", de 1974. Nesse texto, Lacan se refere ao simblico, ao imaginrio
e ao real, assim como sua articulao borromeana e ao sintoma. Ele define o real
de trs modos. Na primeira definio, diz que "o real o que volta sempre ao
mesmo lugar". Num segundo tempo, o real se define "a partir do impossvel de
uma modalidade lgica", ou seja, no existe o conjunto de "todos os elementos";
os conjuntos so determinados caso a caso, como o S:, que faz exceo cadeia
significante, no tendo efeito de sentido, nem de agrupamento. No terceiro mo-
mento, ele articula o real com o sintoma: "chamo sintoma ao que Yem do real"; "o
sentido no aquele com o qual se nutre para sua proliferao ou extino, o
sentido do sintoma o real, o real enquanto se pe em cruz para impedir que as
coisas andem, que andem no sentido de dar conta de si mesmas de maneira
satisfatria [ ... ]"2. Assim, o sintoma a prpria manifestao do real e, por isso,
pelo sintoma que o sujeito tambm pode advir.
Em Freud, isso que no anda ou que retorna ao mesmo lugar, o real, pode ser
pensado a partir do conceito de "ganho secundrio". O sintoma produz uma satis-
fao com o prprio conflito. Satisfao paradoxal, no entanto, por ser obtida
onde se tem sofrimento e renncia. Na "Conferncia XXIV" 3 , de 1917, chamada
"O estado neurtico comum", Freud diz que o cu, quando se refugia na doena,
obtm internamente um certo "ganho proveniente da doena" e que, alm desse
ganho interno, se faz acompanhar de uma vantagem "externa que assume um
valor real maior ou menor", para, em seguida, afirmar: "o eu preferiria libertar-se
do desprazer dos sintomas, sem desistir do ganho que lhe d a doena, e isto
justamente o que no pode obter". O que Freud diz nessa passagem? Ele mostra
que no possvel separar o desprazer proYenientc do sintoma de sua parcela de
prazer. O ganho sempre acompanhado do sintoma, ou seja, preciso o sintoma
para se obter ganhos. claro que, a partir de um certo ponto, os ganhos no mais
2 LACAN, J. "La tercera" (1974). Em: lntcrrcncioncs y textos. Buenos Aires: Manantial, 1990.
3 FREUD, S. "Conferncia XXIV". Em: Obras completas, vol. XVI. Op. cit.
4 FREUD, S. "Inibies, sintomas e ansiedade". Em: Obras completas, vai. XX. Op. cit.
5 LACAN, J. "La tcrcera". Op. cit.
A amarrao sintomtica
Nesta parte do trabalho, pretendo isolar alguns elementos cruciais emergncia da
teoria do n borromcano cm Lacan, conseqentemente, nova forma de pensar o
sintoma. Para tal, percorrerei a conferncia "Joyce le s)mptme 1"8 , proferida no 5"
Simpsio Internacional James Joyce, na Sorbonne, cm junho de 1975. Nessa confe-
rncia, pela primeira vez Lacan se refere nova grafia a ser utilizada por ele para o
sintoma: "sinthoma"q. Ele diz que, tendo consultado o dicionrio etimolgico Blocb ct
mn Wirtburg, descobriu que, cm francs, a grafia antiga de sintoma era "sinthomc".
Para Lacan, essa nova grafia corresponde tambm a uma nova forma de conceituar
o sintoma, o que se refere teoria dos ns, visto que a quarta rodela do n ser o
"sinthoma". Prosseguindo, ele diz que, com o ttulo "Joyce o sintoma", dava a Joyce
um nome prprio, uma nomeao e um destino. O que o destino? Lacan chama de
destino ao seu nico encontro com J. Joyce; a esse encontro ocorrido por acaso e a
qualquer outro encontro que ocorre na vida dos sujeitos, ele chama de destino. O
destino, contudo, s existe porque ns falamos, porque h nomeao dos objetos
comuns e de ns mesmos. "Ns acreditamos que dizemos o que queremos, mas o
que os outros quiseram, mais particularmente nossa famlia, que nos fala" 10 . Esse
"nos" fala para ser entendido como objeto direto. essa trama falada, nomeada
pelos Outros, que ele chama de destino, e foi isso que o lcYou at Joyce.
O liuo de Joyce de que Lacan faz uso nessa conferncia sobre o sintoma
Finncgam Hkc, livro singular na obra do autor, visto que nele usa a linguagem de
forma totalmente inovadora. No h traduo integral desse livro para o portugus.
Utilizarei a traduo de alguns trechos feita pelos irmos Augusto e Haroldo de
7 LIMA, Celso R. "Momento de concluir", lista ela Associao Mundial de Psicanlise - Vere-
das, Escola Brasileira de Psicanlise. Minas Gerais, 3 de fevereiro de 2000.
8 LACA:'\, J. "Joyce 1c symptme !". Em: Joyce arec Lacan, Paris: Navarin diteur, 1987.
9 Traduo liHc do termo de Lacan: "sinthomc", diferenciando-o de symptmc.
' LACAN, J. "Joyce 1c symptme !". Em: ]oyccarcclacan. Op. cit., p. 22.
11 CAMPOS, Augusto e Haroido. Panaroma de Fiimcgans l~kc. So Paulo: Editora Perspccti\'a, 1986.
Rcccntcmcntc, foi publicada a traduo de Donaldo Schuler dos quatro primeiros captulos
do livro 1 (So Paulo: Ateli Editorial, 2000).
12 Ibid., p. 21.
11 Ibid., p. 23.
14 "Abonncmcnt", cm franccs, quer di1:cr"assinatura", de uma rc\'ista por exemplo. Por isso, a
traduo de "dsabonn" por"cancclamento da assinatura".
15 "C' est sans doutc fascinant, quoiqu' la \crit, 1c sens, au sens que nous lui donnons
d'habitu<lc, y pen!". CL Jo_rcc arcc LJcJn. Op. cit., p. 15.
16 Ibid., p. 27.
17 ldcm.
Desse dia cm diante, passou a ir s sesses regularmente. :'.\Jo narra,a sua hist-
ria, mas antes constatava a ex-sistncia dos objetos e de si mesma. Ela o fazia atravs
da nomeao dos objetos, das pessoas de sua familia, dos dias de sua vida. Ela no
relataYa a sua histria atravs das lembranas, mas antes nomeava os objetos como se
estivesse nascendo naquele momento. Ela dizia: "existe um Jos da Siha, pode ser
meu pai; existe Maria da Silva; existe uma cidade; existe o Rio de Janeiro ...". Certo
dia, ocorreu um episdio interessante durante a exibio de um filme cm uma sala
de vdeo fora das alas em que as pacientes ficavam. Nessa sala haYia um mapa do
corpo humano, desses de escola primria e secundria. Ela no assistiu ao filme;
nomeou algumas partes do corpo at se deter no "crebro", nome-lo e nomcar"scu
pro bl ema""
: eu te nh o um mach ucad o aqrn,. nessa parte d o corpo, no ccrc
' b,,
ro .
Assim, possvel pensar no nome "Jacira" como seu enganchamento no sim-
blico, o sonho como uma tentativa de reconstruo do imaginrio, e a cx-sistncia
das coisas e dela mesma como o real. O nome prprio "Sofia da Silva" seria o
quarto elo, que manteria RSI anodados.
Na neurose sempre h sinthoma, visto que o Nome-do-Pai o quarto elo que
amarra RSI. Na psicose, a suplncia ao Nome-do-Pai o que far a amarrao do
n, sendo assim tambm sintomtica. No caso de Sofia, ela inicialmente recebeu
um nome no momento da internao, j que ela "no se lembrava" do seu. Poste-
riormente, ela "se lembraria" de seu nome prprio e passaria a nomear os objetos,
comeando pelas pessoas de sua famlia at chegar ao corpo. Dessa forma, ps um
limite cm todo sentido possvel (e sentido nenhum) em que estava mergulhada.
Com a nomeao do mundo, ela destacou os objetos e eles passaram a existir.
A partir dessa nomeao, houve um ciframcnto do seu gozo; assim, o sentido at
pode ser perdido, como mostra Lacan. O sintoma, portanto, no tem de se pr
"cm cruz" para que as coisas no andem, mas tem de ser o limite dessa "andana"
sem fim do sentido ou do no sentido absoluto.
Este trabalho visa discutir a relao do sujeito com o Outro luz da tenso entre
tica e poltica tal como presente cm i'j ?r:r::ipe, de ~faquia\el, cujo enredo parece
bastante esclarecedor para uma serie de questes atuais ligadas ao desejo, ao gozo
e a seus objetos, em particular se o lemos tomando como contraponto algumas
passagens da obra de Baltasar Gracin 1 , seu contemporneo. Se, por um lado,
ambos ditam preceitos para a obteno de aes eficazes, por outro, o texto de
Maquiavel fundamentalmente poltico e o de Gracin sobretudo estratgico.
Sabe-se que a poltica pode ser entendida como um sistema de regras, uma
posio ideolgica. No dicionrio francs Littr, por exemplo, o mundo poltico,
tanto quanto o fsico, se regula por peso, nmero e medida. No sentido figurado,
poltico quem hbil, sagaz, delicado, elegante, sutil. Por seu turno, estratgia a
arte de planejar que Baltasar Gracin nos ensina em Orculo manual e arte da prudncia. 2
J segundo o Littr, estratgia a arte de preparar um plano de campo, de
dirigir um exrcito sobre os pontos decisivos e de reconhecer os pontos nos quais
preciso, nas batalhas, empregar um nmero maior de soldados para assegurar o
3 Os termos "poltica, estratgia e ttica" sero tambm os trs eixos a partir dos quais Lacan
articula o tratamento analtico como uma ao que pretende alguma eficcia e que tem seu
prprio poder. A forma como os conceitua, contudo, bastante diferente. Voltaremos a esse
ponto na parte final do texto.
Nos ltimos quinhentos anos, a cultura trouxe luz muitos significantes no-
vos que podem ser relacionados s trs grandes revolues que os socilogos,
economistas e historiadores, entre eles, de maneira particular, Pctcr Drucker,
tm se dedicado a traduzir. A primeira revoluo, datada da ltima dcada do
sculo XV com a inveno de Gutemberg, foi a da imprensa. A segunda, ocorrida
no final do sculo XVIII, incio do sculo XIX, a industrial, e a terceira, iniciada
por volta de 1960, a chamada revoluo da informao.
Para nossa surpresa, a anlise histrica mostra que, apesar dos significantes no-
vos, no se pode deixar de examinar acuradamente que novidades essas revolues
trouxeram, uma vez que o novo, o inesperado, via de regra no surge onde era
aguardado. Os livros impressos eram os mesmos que os monges copiaram mo
durante sculos, exceo de OPrncipe, que foi o primeiro livro, aps mil anos, a no
conter nenhuma citao biblica e nenhuma referncia aos escritores da Antigidade.
4 LACAN, J. O Seminrio, lirro 7: atica da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
5 LACAN, J. "Kant com Sade". Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Lacan diz: "a relao do homem com o real dos bens se organiza em relao ao
poder que o do outro (o outro imaginrio) de priv-lo"7 . O bem e o mal esto na
prpria fundao do sujeito na linguagem, que, entre outras coisas, implica o dio
ao semelhante, quando esse tem o poder de negar aquilo que se quer para tentar
recuperar o gozo perdido. Examinemos, ento, a tenso entre sujeito do desejo e
gozo a partir de dois exemplos utilizados por Lacan em O Seminrio, livro 7, nos quais
no h conflito pela posse dos bens, porque a posse no se faz presente.
O primeiro diz respeito prtica do potlastch, que Marcel Mauss descreve como
sendo tpica das tribos do noroeste americano e tambm encontrada na Polinsia,
na Melansia e nas Ilhas Trobrian. O potlastch uma prtica de combate e rivalidade
cm que os bens so destrudos cm nome no s do prestgio e da honra, mas
tambm de uma generosidade que, juntamente com outras prestaes, compe
um sistema de relacionamento entre as comunidades. O bem est presente para
alm do bem material, sendo nomeado pelos significantes.
O segundo exemplo vem do amor corts, a ertica dos trovadores que remonta
ao sculo XII. Para alm do desprendimento quanto posse dos bens, o amor
corts revela uma estrutura de recusa 8 que chega at ns como um dos paradigmas
do impossfrel da relao sexual. A poltica do trovador recusa o ato sexual com a
dama que seu objeto de amor. Esse objeto preciso: deve ser uma mulher casada
de alta estirpe, ao passo que ele prprio deve permanecer celibatrio. Estabelece-
sc, portanto, um lao entre uma mulher poderosa e um homem vassalo. A nica
recompensa que o amante pode esperar a alegria, que, alis, dita no masculino:
lc joy, o alegria. Segundo Jacques Sdat, a ertica dos troYadores permite a distino
entre prazer e gozo, mas nos limites deste trabalho diremos apenas que se, por um
lado, a alegria est do lado do prazer e do desejo, o alegria revela talvez a postura
do sujeito num certo tipo de gozo. 9
rn HAUSER, Arnold. Histria social da literatura e da arte. So Paulo: Editora Mestre Jou, 1972.
O mal-estar hoje, todavia, parece no estar sendo causado pela subsuno das
pulses civilizao, assim como as novas patologias parecem negar o conceito de
sintoma. Hoje, o gozo "dever" na prpria civilizao: gozar e falar do gozo (o que
j cm si uma forma de gozar) para o mundo cm livros, jornais, na TV e, de prefe-
rncia, na internet. Enquanto o sintoma liga o sujeito cultura, as chamadas "novas
patologias" individualizam, levam o sujeito a crer que ele pode se desligar do Outro,
sendo o gozo o ''benefcio" do qual quer e no quer se livrar. O corpo, por exemplo,
submetido ao mandado de um sinistro supereu, que exige o prazer. Lanando-se
seja malhao compulsiva e aos esportes radicais - que talvez sejam os rituais
nascidos com a no\'a Revoluo - seja ao "caminho de Santiago" ou se entregando a
11 curioso o fato de que se trata de um escrito do final do sculo XIX no seio da literatura
simbolista, escola !iteraria que surgiu como reao asctica ao naturalismo de Zola e na qual
os personagens transitam num mundo de aparncias, mas so perpassados pelo mundo ori-
ginrio cm que, segundo Gillcs Dcleuze, s h dejetos, fragmentos e cm que a fissura faz
seu silencioso caminho em direo morte.
12 Vale lembrar que uma das maiores fortunas do comrcio eletrnico foi feita atra,s da
venda de assinantes, quer dizer, sujeitos assujeitados a um objeto, fiis a uma marca.
13 GRAC!l\', B. "Aforismo 200". Em: Orculo manual_r arte da prudcncia. Op. cit.
' Este trabalho foi originalmente apresentado numa conferncia, para grande pblico, no
Teatro Leblon, cm 9 de setembro de 1996. "Infncias" era uma dos temas dos Debates Ciris,
organizados pelo Jornal do Brasil e pelo Crculo Psicanaltico do Rio de Janeiro.
139
Mas o que seria o tratamento psicanaltico para a criana? Poder-se-ia dizer que
se trata de encontrar o infantil na criana. A criana, porm, j tem um pedao de sua
histria construda, ou seja, uma histria a ser reescrita. Trata-se, pois, de encontrar
o adulto na criana ou, de maneira mais rigorosa, de encantar o sujeito na criana. 2
Entre a criana e o adulto h o mesmo campo psicanaltico, vale dizer, num e
noutro h uma histria a ser reescrita. Isso implica duas condies:
1) que haja para a criana, para o sujeito portanto, alguma coisa a ser reescrita,
ou seja, j esquecida ou no inscrita para ele;
2) que exista um querer dizer, um querer reescrever a histria. Querer dizer
constitui o prprio nome do sujeito, que no nada alm disso, ao menos para o
sujeito dividido neurtico.
Encontrar o sujeito pode ser entendido como uma exigncia tica da psica-
nlise de crianas. E tambm de um determinado trabalho institucional com as
crianas. Para o neurtico, a exigncia tica se refere ao surgimento do sujeito
como responsabilidade: que ele responda a partir de seus significantes, de sua
histria e mesmo de suas fantasias. Dito de outro modo, trata-se de introduzi-lo
na responsabilidade de sua histria. 3
Infncias 141
Mas como, cm um trabalho institucional Yoltado para as crianas e joYcns,
possvel conciliar a viso universalizante e normatiYa de toda poltica educativa com
o respeito e a promoo que valoriza as diferenas, caracterizando cada uma das
pessoas atendidas como sujeitos desejantes e singulares? Ao falarmos de sujeito
desejante, deixamos de treinar corpos e julgar comportamentos. Assim, torna-se
necessrio no s o empenho na formao profissional, como tambm um constan-
te trabalho de reflexo, a fim de tentar deslocar a suposio de que as crianas so
como animais a serem adestrados, domesticados sob a exigncia de uma submisso
cega, julgados e punidos sem qualquer direito de defesa, e destitudos de sua condi-
o de seres falantes. Tambm aqui a psicanlise tem grande contribuio, pois per-
mite que a subjetividade da criana seja percebida, impedindo que ela seja reduzida
a seus problemas, dficits ou carncias, como o indica, por exemplo, a denominao
"criana carcnte"9 . Portanto, no trabalho com crianas, importante enfatizar o
desejo para que a inveno no deixe de se tornar possvel. DeYe-se remarcar que o
adulto no sabe a priori, e pode se surpreender pelo que a criana lhe ensina.
Infelizmente, a realidade da vida de nossas crianas est muito distante disso.
Somos cotidianamente informados pelos meios de comunicao da dura e sofrida
situao de grande parte de nossa populao infanta-juvenil: crianas nas ruas, rebe-
lies nos internatos, mortes acidentais ou no, prostituio infantil, trabalho preco-
ce, maus tratos domsticos, falta de escola, repetncia escolar, precariedade do aten-
dimento mdico etc. Mas gostaria de ressaltar algo que surpreendeu a todos ns: o
massacre das crianas que dormiam junto Candelria, em pleno centro da cidade
do Rio de Janeiro, e cujos responsveis ainda no foram punidos. Como cidad e
psicanalista, impossvel deixar de se perguntar como isto pde acontecer, e se esse
ato de violncia, praticado contra crianas e jovens, fora de qualquer limite, no tem
efeito sobre toda a sociedade e sobre nossos modos de fantasiar e de desejar. O que
ns, adultos, queremos? Como representamos a sociedade cm que Yivcmos e cm
que queremos viver? Temos que pensar no que oferecemos s nossas crianas, para
que suas infncias no sejam perdidas 1, mas antes possam ter sentido e fazer parte
de uma histria.
A psicanlise nos ensina a importncia de que uma comunidade assegure a
transmisso das proibies e da referncia Lei. Em outras palavras, de que no
9 ALTO, S. "A psicanlise pode ser de algum interesse no trabalho institucional com crianas
e adolescentes?". Op. cit.
10 ALTO , S. Infncias perdidas. Rio de Janeiro: Xenon, 1990.
Infncias 143
Ao e reflexo
no campo dos cuidados
1 RORTY, R., apud RIN ALDI, D. A tica da diferena: um debate entre psicanlise e antropologia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 140.
145
panha a deciso de aplicar a ECT. 2 Alguns fatos eram desfavorveis a sua aplicao.
A mdica residente preferia evit-la, a estagiria de psicologia estava empenhada
em estabelecer contato com a paciente e naquela manh pude obsenar uma boa
resposta afetiva dessa para com aquela. A possvel aplicao da ECT impedia que a
interna tomasse o caf - o jejum uma de suas exigncias - e que fosse ao passeio
programado. Observei que a equipe de enfermagem torcia para que ela transgre-
disse a norma, pois era uma das formas de eYitar a ECT. Tambm eles no esta,am
convencidos da urgncia de seu uso. Assim, partindo de sua resposta positin ao
contato no acompanhamento com os estagirios, pudemos modificar a prescrio
da ECT. Com esses argumentos, no foi difcil fazer com que o supervisor-chefe
de psiquiatria aceitasse a mudana, pois, alm de sua disponibilidade para o traba-
lho cm equipe, entendia a ECT como uma medida extrema, evitada sempre que
possvel pelo uso de outros recursos psicoterpicos ou medicamentosos.
Finalizando esse primeiro ato, C. foi ao passeio, o que produziu nela uma
grande modificao de seu estado anterior. Da para a frente, sua melhora foi
enorme, tendo alta da internao e continuando seu atendimento no ambulatrio
e no Espao de Atividades e Convivncia Nisc da Sih-eira.
Mas no tenhamos iluses quanto sua rpida mudana. Ela no foi to sim-
ples assim. Sua histria era longa e uma nova repetio logo se configuraria. Sua
passagem da internao para a vida externa no foi muito bem preparada. Ao
.
d e1xar d e ser t rata d a como "d ocnte " grave para ser trata d a como "norma l" ---- isto
. .
e,
como mdica (expectativa por parte da equipe de que assumisse uma atiYidade
assistencial) e "militante de esquerda" (dizia-se filiada a um partido de esquerda)-,
no suportou as exigncias de um suposto lugar identificatrio. Gradativamente,
sua excitao aumentou e ela passou a empreender diversas atiYidades ligadas
militncia poltica. Tentou, assim, responder ao que sentia como expectativa do
Outro at sucumbir.
' Como se sabe, a ECT desperta controvrsias em relao aos benefcios de sua aplicao.
Trata-se de um instrumento emprico que produz uma reao paroxstica (convulso, in-
conscincia total com posterior amnsia) e causa impacto a quem o assiste. O paciente a
recebe de forma passiva, sem saber o que ocorre. Em certas situaes consideradas muito
graves (depresso graYe com risco de suicdio, delrio de negao e estupor catatnico pro-
fundo), a ECT s vezes parece 'milagrosa' por produzir efeitos de desinibio-da
psicomotricidade e apagamento dos delrios de fundo. Mas no se sabe bem quais as conse-
qncias para o psiquismo desse apagamento. Nas psicoses dissociativas, por exemplo, ob-
serva-se comumente um aumento da desagregao do cu.
' Cf. tambm FERREIRA, A. P. O migrante na rede do Outro. Rio de Janeiro: Te Cor, 1999.
11 H estimativas que calculam o desaparecimento de aproximadamente setenta milhes de
habitantes dessa regio em pouco mais de um sculo aps o embarque europeu. Cf.
TODOROV, T. A conquista da ,4mrica: a questo do Outro. So Paulo: Martins Fontes, 1991.
"MANNONI, O. "A dcsidcntificao". Em: VV. AA. A idcnti/)cao. Rio de Janeiro: Relumc/
Dumar, 1994.
,; CHAVES, H. Foucaultcapsicanlise. Rio de Janeiro: Forense Uni\'ersitria, 1988.
Andr Schaustz
Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Pesquisa e Clnica em Psicanlise do IP/
UERJ. Psiquiatra do Hospital Psiquitrico de Jurujuba, Niteri. Psicanalista. Membro da
Escola Letra Freudiana.
Doris Rinaldi
Professora do Programa de Ps-Graduao cm Pesquisa e Clnica cm Psicanlise do IP/
UERJ. Professora Adjunta do IP /UERJ. Procientista. Doutora em Antropologia Social
pelo Museu Nacional/UFRJ. Bolsista de Produtividade CNPq. Psicanalista. Membro da
Interseco Psicanaltica do Brasil. Autora de A tica da diferena: um debate entre psicanlise e
antropologia (Rio de Janeiro: Eduerj / Jorge Zahar Editor, 1996) e de A terra do santo e o mundo
dos engenhos: estudo de uma comunidade rural nordestina (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980).
Jean Szpirko
Professor da colc Supricur Montsourir, Paris XII. Psicanalista. Membro da Socit de
Psychanal_ysc Freudicnne e da Escuda de Psicoanlisis Sigmund Freud de Rosario, Argen-
tina. Autor de La clinica psicoanalitica ... con d correr de la cicncia (Rosario: Homo Sapicns, 1995).
Lcnita Bentcs
Mestranda do Programa de Ps-Graduao cm Pesquisa e Clnica cm Psicanlise do IP/
UERJ. Bolsista da CAPES. Psicloga. Psicanalista. Organizadora do livro O brilho da
(in)felicidade (Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998).
Lia Amorim
Mestranda do Programa de P6s-Graduao em Pesquisa e Clnica em Psicanlise do IP/
UERJ. Bolsista da CAPES. Bacharel em Direito. Psicanalista. Membro da Escola Letra
Freudiana.
Luciano Elia
Coordenador-Adjunto do Programa de P6s-Graduao em Pesquisa e Clnica em
Psicanlise do IP/ UERJ. Coordenador do Curso de Especializao cm Psicanlise e Sade
Mental do mesmo Programa. Professor Adjunto do IP /UERJ. Procicntista. P6s-Doutor
em Psicanlise e Doutor em Psicologia Clnica pela PUC-Rio. Psicanalista. Membro do
Lao Analtico Escola de Psicanlise. Membro Correspondente do Mouvement du Cout
Frcudicn. Autor de Corpo e sexualidade em Freud e Lacan (Rio de Janeiro: UAP, 1995).
Nelma Cabral
Mestranda do Programa de P6s-Graduao cm Pesquisa e Clnica cm Psicanlise do IP/
UERJ. Bacharel em Matemtica. Psic6loga. Psicanalista.
Sonia Albcrti
Coordenadora do Programa de P6s-Graduao em Pesquisa e Clnica em Psicanlise do
IP /UERJ. Professora Adjunta do IP /UERJ. Procientista.Doutora em Psicologia- Paris X,
Nanterre. Psicanalista. Membro de Formaes Clnicas do Campo Lacaniano do Rio de
Janeiro e da Associao F6runs do Campo Lacaniano. Autora de Esse sujeito adolescente (Rio
de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999, 2 ed.) e organizadora de Autismo e esquizofrenia na clnica da
esquizc (Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999).
Snia Alto
Professora do Programa de P6s-Graduao em Pesquisa e Clnica em Psicanlise do IP!
UERJ. Professora Adjunta do IP/UERJ. Procientista. Coordenadora do Curso de
Especializao em Psicologia Jurdica (UERJ). P6s-Doutorado em Psicologia pela
Uni versit Paris VIII. Autora delnfncias perdidas (Rio de Janeiro: Xcnon, 1990) e organizadora
de Sujeito do direito, sujeito do desejo. (Rio de Janeiro: Revinter, 1999).
A importncia de sab'ser c@mo e
onde torna-se p>oss el W mitit a
experincia ps caqal:tica tem
acompanhacde a liiist6ria da inven@
freudiana. As [email protected] Glo que
tem sido rec;:$.lhido pe~ escuta d0s
psicanalistas ll. se resumm s
mudanas oc@rridas ROS sujeitos
que se submetem aLJ.lise.
O pr6pri0 freud demonstt0u
diversas vezes seu interesse em
inserir a pskanlise na s'Fie dos
saberes e das cincias. Ainda qm~
advertido aceFcai da dicotomia
eJcistente e:ntre a tica psicanalti11:a
e a norma w:live'Jrsiitria, ele
procurou levar seu ensino :para
alm de sua Frtica clmica e da
instimcion za~o da pskanlise.
As duas sFies de comerncias
introdutrias !i:J.Ye proferiu em 1~ 17
e 1932 em um. espao un.iversitri@
testemunham sua preocupao em
repassar c0m rigor os ep.sin.amen.t@s
decmren~s de sYa pesquisa. Elas
afinam conceitos desenvolvidos ao
long0 dos anos e compo'rtam
material que permane@e valioso
tamto para estudos tericos quanto
clnicos.
Algillflas d.tcadas depois, Jacques
Lacan estabeleceria as co:ndies da
articulao do discurso analtico
com os demais cdiscursos.
A definio das ;relaes eJcistentes
enti'e o discurso analtico, e
discurso do mestre, o discurso da
histrica e o discurso u:mv.ersitrjo
em vez de diluir a virulncia dos
conceitos psicanalticos, o;vienta