Ciganos Nacionais PDF
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Ciganos nacionais*
National Gypsies
FLORENCIA FERRARI
Universidade de So Paulo, Brasil
E-mail: [email protected]
RESUMO
Este artigo um ensaio sobre o lugar do cigano em obras literrias produzidas pelo Oci-
dente. Se o imaginrio ocidental v no cigano um estrangeiro, um ser ambguo, do qual
sente temor ou fascnio conforme a situao, aqui se arrisca um deslocamento do recorte,
chamando a ateno para a apropriao da figura do cigano na construo da identidade
de duas naes: o Brasil e a Espanha. Servindo-se dessa figura de forma muito diversa,
autores dos dois pases transformaram o contedo da representao do cigano em um
valor nacional prprio, comprovando, por outro lado, a ambigidade e plasticidade da
imagem do cigano.
Palavras-chave: Cigano, literatura, representao, Espanha, Brasil.
ABSTRACT
This article is an essay about the place of Gypsy people in literary pieces produced by the
Western Civilization. If the Westerns imaginary sees the Gypsies as foreigners as much as
an ambiguous beings, whom, depending on the situation, they fear or are fascinated with,
here we take the chance to displace this interpretation, underlining the assimilation of the
gipsy figure in the identity building process of two nations: Brazil and Spain. Using this
image in assorted ways, authors from both countries restore the gypsys representation
content into a national value itself, proving, on the other hand, the ambiguity and plastic-
ity comprised in the gypsys image.
Keywords: Gypsy, literature, representation, Spain, Brazil.
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RESUMEN
Este artculo es un ensayo sobre el lugar del gitano en obras literarias producidas por
occidente. Si el imaginario occidental ve en el gitano un extranjero, un ser ambiguo, del
cual uno siente temor o fascinacin segn la situacin, aqu se arriesga una interpretacin
desde otro punto de vista, llamando la atencin para la apropiacin de la figura del gitano
en la construccin de la identidad de dos naciones: Brasil y Espaa. Sirvindose de esa
figura de forma muy diversa, autores de los dos pases han logrado transformar el conteni-
do de la representacin del gitano en un valor nacional propio.
Palabras claves: Gitano, literatura, representacin, Brasil, Espaa.
Recibido: 26-04-2006. Aceptado: 16-05-2006.
1
Ver Ferrari (2002).
2
O Ocidente deve ser tomado aqui no como rea geogrfica ou como aglomerado de
naes, mas como um conjunto de idias, um discurso. A extenso refere-se, portanto, no a
um lugar mas ao leque de representaes.
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A. A MALANDRAGEM CIGANA
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Sobre os ciganos residentes no Rio de Janeiro, no incio do sculo XIX, cogita-se que
quatrocentos ciganos formavam uma comunidade na periferia sul da cidade e outro grupo
vivia dentro da cidade em torno da Rua dos Ciganos, Campo de Sant-Anna e o mercado de
escravos da cidade (Donovan, 1992: 43 apud Teixeira, 1999).
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adorado objeto, porm a fidelidade, a unidade no gozo, que era o que sua alma
aspirava, isso no o pudera conseguir: a cigana tinha pouco mais ou menos sido
feita no mesmo molde da saloia4. Seguindo o romance, mais adiante (captulo
6), um trecho apresenta a chegada da praga dos ciganos.
Com os emigrados de Portugal veio tambm para o Brasil a praga dos ciga-
nos. Gente ociosa e de poucos escrpulos, ganharam eles aqui reputao bem
merecida dos mais refinados velhacos: ningum que tivesse juzo se metia com
eles em negcios, porque tinha certeza de levar carolo. A poesia de seus costumes
e de suas crenas, de que muito se fala, deixaram-na da outra banda do oceano;
para c s trouxeram maus hbitos, esperteza e velhacaria []. Viviam em qua-
se completa ociosidade; no tinham noite sem festa. Moravam ordinariamente
um pouco arredados das ruas populares, e viviam em plena liberdade. As mu-
lheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres: usavam muito de ren-
das e fitas; davam preferncia a tudo quanto era encarnado, e nenhuma delas
dispensava pelo menos um cordo de ouro ao pescoo; os homens no tinham
outra distino mais do que alguns traos fisionmicos particulares que os
faziam conhecidos.Os dois meninos com quem o pequeno fugitivo [Leonar-
do] travara amizade, pertenciam a uma famlia dessa gente que morava no
Largo do Rossio, lugar que tinha por isso at algum tempo o nome de Campo
dos Ciganos.
[] como de costume, havia festa de ciganos (e este costume ainda hoje se
conserva); faziam, dissemos, festa todos os dias, porm motivavam-na sempre.
Hoje era um batizado, amanh um casamento, agora anos deste, logo anos
daquele, festa deste, festa daquele santo. Na noite de que tratamos havia um
oratrio armado, e festejava-se um santo de devoo; no lhe sabemos o nome
(Antnio de Almeida, [1855] 1998: 29-30, grifos meus)5.
E ainda, a cigana que enamorara Leonardo pai volta cena, quando este
descobre que quem o substitura fora o reverendo mestre-de-cerimnia da S:
4
Refere-se portuguesa Maria, que o enganara com outro homem. Saloio contm essa
dupla acepo, segundo dicionrio Houaiss (2001): 1. que dos arredores de Lisboa; 5. diz-se
de ou indivduo que revela falta de civilidade, de traquejo social ou de bom gosto; 6. indivduo
que procede com manha ou velhacaria.
5
O primeiro personagem cigano dessa histria , na verdade, uma mulher por quem se
apaixona Leonardo. S h uma referncia: ela troca Leonardo por outro homem.
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Mas voc est cometendo um pecado mortal est deitando sua alma a
perder
Homem, sabe que mais? Voc para pregador no serve, no tem jeito
eu, como estou, estou muito bem; no me dei bem com os meirinhos, eu nasci
pra coisa melhor []
O Leonardo compreendeu que falando-lhe do inferno e em castigos da
outra vida nada arranjava, e decidiu dar-lhe o castigo mesmo nesta vida (idem).
6
O Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio, instituio criada no final do sculo XV em-
preendeu uma radical perseguio a hereges e a mulheres consideradas bruxas. As ciganas fo-
ram alvo particularmente privilegiado, reforando a associao estreita destas com a feitiaria e
um acesso privilegiado ao alm.
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A bibliografia sobre o malandro extensa. Entre os principais autores que tratam dela,
alm de Antonio Candido e Lilia Schwarcz, destaca-se Roberto DaMatta, com o livro Carna-
vais, malandros e heris [1978].
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presentaes como alteridade, mas por vezes para afirm-la no interior de uma
identidade, conforme se v no caso brasileiro, em determinado contexto.
A analogia com a mulata e o malandro, nos anos 1930 e 1940, sugere ainda
uma reflexo que no se poder desenvolver aqui, mas fundamental t-la pre-
sente. Aproximar essas figuras como elementos nacionais no as torna menos
suscetveis de preconceitos e medidas sociais efetivas em seu cotidiano. No
preciso alongar demonstraes para dizer que o preconceito racial opera habitu-
almente em relao ao negro e ao mulato, e algo similar, com as devidas propor-
es, ocorre em relao ao cigano. H uma srie de estudos sobre as discrimina-
es sofridas pelos ciganos no s no Brasil, e as difceis condies de vida que
enfrentam, muitas vezes, por no se alinharem oficialidade da moradia, da
escolarizao, da lngua, etc.8 Mas, esta uma questo posta em outro plano, e
no solapa o que se pde apurar no nvel do imaginrio. Ao contrrio, creio que
o mapeamento do imaginrio uma maneira poderosa de mostrar como foi se
criando, e a fora que resultou ter, um determinado conjunto de idias sobre os
ciganos, por meio das quais o Ocidente continua operando at os dias atuais no
cotidiano com eles. Sem o intuito nico de denunciar as medidas de represso
aos ciganos, este texto parece-me imerso nessa questo poltica, e ajuda a com-
preender o mal-estar que esses grupos nmades causam aos ocidentais.
8
Cf., entre outros, Corteso & Pinto, 1995.
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Em Carmen, h uma passagem em que a personagem diz [] Allons, il y a remde a
tout, quand on a pour bonne amie une flamande de Rome (Merime, [1845] 1960: 51), na
qual o autor acrescenta uma nota de rodap: Flamenca de Roma. Gria que designa as
bohmiennes, Roma no quer dizer a cidade eterna, mas a nao dos Romi ou das pessoas
casadas, nome dado aos bohmiens. Os primeiros ciganos vistos na Espanha vinham provavel-
mente dos Pases Baixos, de onde veio o nome de Flamands (id.:ibid., nota 35). Da a origem
do vocbulo flamenco.
10
O autor argumenta que as msicas ciganas em diferentes pases tm mais elementos em
comum do que aparentam e que os aspectos recorrentes so freqentemente associados m-
sica oriental.
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No se far justia importncia e complexidade da obra neste ensaio, pois ser necess-
rio reduzi-la a uns poucos aspectos diretamente relacionados a esta investigao. Para melhor
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ta uma srie de 18 romances12 que resulta num canto andaluz, no qual os ciga-
nos servem de estribilho (Lorca apud Gibson, 1998: 212). Por meio da alter-
nncia e da interao do cotidiano e de uma dimenso mtica, episdios como o
falecimento de uma criana, o choro das ciganas, a luta entre ciganos, a eminen-
te morte do cigano na casa do pai de sua amada, a possesso de uma cigana, a
conquista amorosa, o desencanto e a solido angustiada, o ritual na rua, o ann-
cio da concepo, a contraposio entre o cigano e a guarda civil, o orculo e as
supersties, etc., enfim, uma multiplicidade de elementos da cultura so teci-
dos, resultando numa viso bastante complexa do arcabouo cultural desses
ciganos. Mas no cabe aqui alongar uma anlise da obra; esta interessa na medi-
da em que evidencia o esforo de Lorca, no incio do sculo XX, de enaltecer
essa cultura para tom-la como referncia identidade cultural espanhola. Esta
operao no foi, entretanto, trivial. Em seus romances, Lorca se apia no ima-
ginrio ocidental para ento deixar passear sua poesia mtica, que entrelaa
mundos em um plano metafrico, sugerindo novas relaes entre o elemento
nacional e o cigano. Outras obras apontam para uma identidade entre a Espanha
e os ciganos, mas na obra de Lorca tal associao se d de maneira explcita e
eminentemente poltica. Por esse motivo, proponho determo-nos em alguns
trechos dos poemas de Lorca, buscando extrair deles o que o autor considera
relevante para pensar a identidade espanhola.
Os ciganos aparecem na poesia de Lorca como personagens de um mundo
mtico. incerto se as referncias do mundo sobrenatural (quando, por exem-
plo, lua e o vento so personificados) so parte da cosmologia dos ciganos ou
recursos poticos. Desta maneira, Lorca suspende o olhar sobre os ciganos para
um nvel extracotidiano, para um estado em que prevalece a imaginao. A
singularidade do texto encontra-se na apresentao de fatos cotidianos como a
briga e o amor imersos em elementos csmicos. Por outro lado, sobressai como
representao desses ciganos uma certa lei interna, que no diz respeito socie-
dade espanhola. A honra um valor primordial que aparece para avaliar e orga-
nizar as relaes amorosas e de poder entre ciganos. Em La casada infiel, um
cigano narra sua desiluso com a cigana que levara ao rio, pensando que era
moa solteira, mas ao saber que tinha marido, obrigado a mostrar sua honra
de cigano legtimo:
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Nesse poema a atmosfera onrica abriga uma srie de descries que caracte-
rizam os ciganos. Os trechos grifados so particularmente enfticos na constru-
o de uma identidade masculina. O hombre, o gitano legtimo, se afirma por
meio do vesturio e do acessrio: a gravata e o revlver. No episdio, o cigano
defende-se do perigo de amar uma cigana casada: homem que , no pode por
ela se apaixonar. Esta imagem ainda mais forte nos poemas Reyerta (dispu-
ta), Prendimiento de Antoito el Camborio en el camino de Sevilla e Muerte
de Antoito el Camborio, que descrevem brigas entre dois bandos de ciganos:
Mais uma vez as armas agora a navalha, a faca e o punhal marcam o univer-
so masculino dos ciganos, junto ao sangue inimigo, ao sangue contrrio.
Ainda, a entrada em cena da justia espanhola se segue de um distanciamento
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em relao justia dos ciganos. O juiz observa, de fora, o resultado de uma lei
que opera em paralelo, confirmada pela dimenso cotidiana do evento (aqu
pas lo de siempre). Em Prendimiento o autor mostra uma polcia arbitrria,
que prende o cigano Antnio Torres Heredia na metade do caminho. O
narrador, um cigano onipresente, acusa-o de no ter agido como um legtimo
Camborio, isto , de no ter matado o guarda civil que o prendeu, fazendo dele
uma fonte de sangue. A voz que lamenta a perda da tradio dos ciganos (Se
acabaron los gitanos / que iban por el monte solos! / Estn los viejos cuchillos /
tiritando bajo el polvo) refora que o lugar da identidade masculina a honra.
A existncia desta como definidora do indivduo e do grupo, entretanto, no
novidade para boa parte do Ocidente: a honra defendida no duelo entre cava-
lheiros, disseminada por exemplo na Europa napolenica13, no to distinta
das disputas travadas entre ciganos nos poemas de Lorca, sobretudo quando a
motivao uma mulher. Desse modo, creio que ao jogar luz a certos aspectos
da moral e da vida dos ciganos, Lorca termina por conformar um imaginrio
masculino viril e honrado que serve de paradigma ao espanhol. H uma definio
ntida das funes masculinas e as femininas, e uma moral rgida que as regula.
No Romancero, as ciganas aparecem freqentemente associadas seduo.
So, nesse sentido, verses da representao ocidental analisada anteriormente,
mas que admitem uma leitura diversa quando recortadas sob a perspectiva local
espanhola. Em La casada infiel, a cigana dissimula seu casamento e seduz o
cigano, deixando-se levar ao rio. Outras duas personagens, a Monja gitana e
Preciosa, so retratadas em fantasias sexuais:
Por los ojos de la monja / galopan dos caballistas. / Un rumor ltimo y sordo /
le despega la camisa, / y al mirar nubes y montes / en las yertas lejanas, /
se quiebra su corazn / de azcar y yerbaluisa.
Pero sigue con sus flores / mientras que de pie, en la brisa, /
la luz juega el ajedrez / alto de la celosa.
(La monja gitana)
Su luna de pergamino / Preciosa tocando viene []
En los picos de la sierra / los carabineros duermen /
Guardando las blancas torres / donde viven los ingleses [].
13
Retratados por Joseph Conrad (O duelo) e Stendhal (O vermelho e o negro) e tambm
ressignificados pelos western americanos, por exemplo.
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De uma maneira geral nesta obra, Lorca metaforiza a ciganidade pela cor verde. Um de
seus versos mais famosos verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas. de Romance
sonmbulo, exemplar. curioso, entretanto, que um viajante do sculo XIX, George Borrow,
tenha descrito a tez dos ciganos como un bello color olivceo ([1841] 1932: 52), ou seja,
verde oliva.
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Em Andando Sevilha, Joo Cabral j sugerira essa aproximao: E quando o toureiro
cigano? / Como que toureava Cagancho // Toureiro e cigano, tinha a arte / de qualquer
cigano no baile; [] (Melo Neto, [1987-9] 1995, 667).
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E, note-se, interpretados a partir de materiais diversos: a identidade espanhola via textos
literrios, a brasileira, usando a crtica literria, isto , utilizando uma mediao.
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