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Sapientiam Autem Non Vincit Malitia

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INTRODUO VIDA INTELECTUAL


Curso ministrado por Olavo de Carvalho

Primeira Aula

1. A vida humana se manifesta em vrios nveis ou planos de expresso. Os essenciais so


os seguintes:
( a ) Vida natural
( b ) Vida civil
( c ) Vida poltica
( d ) Vida intelectual.

2. A vida natural, que o homem tem em comum com os animais, plantas e


microorganismos, consiste na aptido para a relao com o ambiente terrestre, mediante
alimentao, crescimento, reproduo, sensitividade, etc.
3. A vida civil consiste essencialmente em connubium et commercium, como a definiam
os juristas romanos.
O termo connubium, embora designe especificamente a parceria conjugal, usado para
significar todas as relaes dela derivadas ou a ela associadas, como todas as relaes de
parentesco, os crculos de amizade e de frequentao mtua, etc.
Commercium designa a atividade econmica em toda a sua extenso. Compreende
essencialmente as formas de produo (de transformao do dado natural) e de apropriao dos
bens, quer naturais, quer artificiais.
O termo sociedade civil designa o conjunto de laos e relaes estabelecidos entre os
homens em razo do connubium, do commercium, ou de ambos.
Uma parte desses laos, a mais constante e explicitamente admitida como vlida pelos
poderes que dirigem a sociedade, chama-se Direito Civil. o conjunto de regras explcitas (ou
explicitveis), quer escritas, quer consuetudinrias, que regulam o connubium e o commercium,
bem como suas mltiplas zonas mistas e intermedirias. O direito de herana, por exemplo,
regula uma zona mista de connubium e de commercium.
(H evidentemente outras regras que regulam a vida civil e que no fazem parte, explcita
ou implicitamente, do Direito Civil. Em princpio, qualquer regra de convivncia, que goze de
certa permanncia admitida, pode ser incorporada ao Direito Civil, sendo por isto variveis os
limites entre regras jurdicas e regras morais, usos e costumes, etc. Porm h sempre uma franja
de hbitos inconscientes e reflexos, os quais, sendo de grande eficcia social, no podem,
entretanto, ser incorporados ao Direito Civil antes de serem conscientizados. Os hbitos
inconscientes podem ser uma causa de ineficcia do Direito Civil).
4. A vida civil enlaa os homens em grupos cada vez maiores -- classes, grupos de
interesse, corporaes profissionais, etc --, determinados, quer por afinidades de inteno, quer
pela necessidade econmica, quer por proximidade regional, etc. A relao de cada um destes
grupos (ou dos indivduos que as representam) com o restante da comunidade, denomina-se vida
poltica.

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A vida poltica abrange, fundamentalmente, o governo e a justia. O governo compreende


a administrao e a defesa externa. A justia compreende a legislao e a aplicao das leis. Por
meio do governo e da justia, a vida poltica regula e molda as relaes nascidas da vida civil, de
modo a harmoniz-las ao interesse da comunidade como um todo (pelo menos tal como esta se
compreende a si mesma).
A administrao compreende (a) o estabelecimento das metas da vida comum; (b) a
designao das tarefas; (c) a garantia do seu cumprimento.
A aplicao das leis divide-se em: julgamento e coero (hoje correspondentes a tribunais
e polcia).
A defesa externa compreende todas as relaes com outras comunidades: ( a ) relaes
polticas; (b) relaes comerciais; (c) defesa militar.
Vrios desses setores tm de atuar em estreito inter-relacionamento, motivo pelo qual em
algumas comunidades aparecem fundidos ou confundidos, como por exemplo a legislao e o
estabelecimento das metas.
5. A vida intelectual consiste na ponderao (quer imaginativa, quer intelectual em sentido
estrito) dos fins ltimos da vida natural, da vida civil e da vida poltica, segundo o que se entende
como natureza de cada uma; e, portanto, consiste no julgamento da vida social (civil e poltica)
como um todo, no conhecimento e avaliao das relaes entre as trs instncias, luz do
autoconhecimento do homem como ser consciente e racional.
Razo a capacidade de coordenao hierrquica de todos os conhecimentos, em vista de
princpios ou de valores.
Inteligncia a capacidade de alcanar conhecimento verdadeiro.
Conhecimento a capacidade de indicar, para si mesmo ou para outrem, algum objeto da
experincia interna ou externa, por meio de sinais intencionais; bem como de assinalar relaes
efetivas e possveis entre esses objetos, e combinaes efetivas ou possveis dessas relaes.
Conhecimento verdadeiro aquele que no pode ser invalidado por nenhum outro
conhecimento.
O homem, to logo chega a compreender-se como ser racional e inteligente, isto , capaz
de conhecimento universal, ordenado e verdadeiro, admite que as metas da vida natural, civil e
poltica, de um lado, no bastam como finalidade da vida humana, e que, de outro lado, elas no
seriam possveis sem a vida intelectual.
As comunidades animais tm evidentemente vida natural e, nas espcies mais complexas,
pelo menos um rudimento de vida civil e poltica. Porm as regras que determinam a vida civil e
poltica entre os animais resultam apenas de determinaes genticas pr-estabelecidas, com um
repertrio quase invarivel de solues adaptativas para as variveis exigncias do meio natural.
Quando este repertrio se esgota em em face de novas exigncias do meio, a espcie se extingue.
Chamamos a esse repertrio regulao instintiva.
O homem, porm, no nasce com um repertrio pronto de solues para a vida civil e
poltica, e est, portanto, livre para regulament-las como bem lhe parea, tentando,
experimentando, errando, corrigindo-se, e acumulando indefinidamente conhecimentos
provenientes das experincias passadas, por sua vez integradas pela razo em snteses cada vez
mais abrangentes, depositadas na herana cultural.
A herana cultural (e seus acrscimos e reformulaes) constitui a fora regulativa que
determina as formas da vida civil, e poltica, exercendo, portanto, no caso do homem, funo
correspondente a aquela que a regulao instintiva desempenha nas comunidades animais. Ora, a

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vida intelectual a condio prvia da herana cultural. ela, portanto, e no propriamente o


sedimento da herana cultural, a fora regulativa da vida civil e poltica.
6. Um rudimento de vida intelectual indispensvel ao estabelecimento da vida civil e
poltica, mas, uma vez estabelecida a sociedade civil e poltica, a vida intelectual retroage sobre os
resultados alcanados, para julg-los em face do valor mesmo da inteligncia humana.
Por esse papel que ela desempenha antes e depois da constituio da sociedade, ela
autnoma em relao a esta. A vida intelectual tem na vida civil e poltica (a) um objeto de sua
criao; (b) condies de seu exerccio como atividade do homem civil e poltico; (c) matria de
sua ponderao.
No incomum que a criao se volte contra o criador, pretendendo a sociedade civil e
poltica ditar ou limitar as condies de exerccio da vida intelectual. Porm esta, como poder
regulativo autnomo, por natureza de mbito universal e no pode ser regulada por nenhuma
comunidade em particular. Quando a vida intelectual perde sua autonomia e passa a ser
determinada ou regulada pela vida civil e poltica, perde sua universalidade, sua veracidade e sua
eficcia, no podendo mais atuar como poder corretivo e regulador. Em resultado, a comunidade,
perdendo a viso de seus fins (determinados pela inteligncia humana), comea a se ater s metas
consuetudinrias, entra na repetio e perde a capacidade adaptativa s novas circunstncias,
naturais ou histricas. A vida intelectual a nica garantia da universalidade das metas e valores
comunitrios e, portanto, a nica garantia da sua subsistncia em face do universo histrico e
natural.
A comunidade que perde a vida intelectual como poder regulador, decaindo para uma
forma estritamente poltica de auto-regulao, volta suas costas para o universo e se toma como
padro universal, isto , desliga-se do cosmos e da humanidade. Logo decai para formas
puramente civis de regulao, instalando-se o conflito generalizado entre os grupos e, em ltima
instncia, procura apoiar-se na regulao natural, que lhe est vedada pela prpria natureza das
coisas.
O homem no tem, portanto, outra alternativa: ou a vida intelectual autnoma, ou a
queda progressiva para uma animalidade que, no podendo ser atingida de fato, permanece como
limite terico da sua decadncia.
7. A tipologia hindu das quatro castas prope que existam homens, geneticamente
selecionados, destinados a viver para cada uma dessas quatro expresses da vida humana, isto ,
homens que regulam seus atos pessoais, espontaneamente, pelas metas da vida natural, da vida
civil, da vida poltica e da vida intelectual. So, respectivamente, os shudra, os vishia, os kshatria
e os brhmana.
Quando as castas se misturam, forma-se um tipo composto, o shandala ou pria,
caracterizado pela presena, em sua alma, de foras e tendncias incompatveis entre si.
Segundo esta teoria, seramos hoje todos uma raa de prias, coexistindo em ns, em
diferentes dosagens, essas quatro tendncias. Pode haver, entretanto, homens nos quais uma
dessas tendncias seja suficientemente forte para subjugar as outras, devendo ento essa
tendncia ser reforada pela educao.
No precisamos admitir o fundamento gentico dessa teoria para aceitar a sua veracidade
psicolgica. Como expliquei a psicologia das castas num outro trabalho, no vou demorar-me
nisto agora.
8. As quatro expresses da vida (e as quatro tendncias das castas que lhes correspondem)
no devem ser imaginadas como faixas separadas, mas como crculos concntricos, de modo que
a vida civil abrange a vida natural, a vida poltica abrange as duas anteriores, etc.

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VIDA INTELECTUAL

VIDA POLTICA

VIDA CIVIL

ViIDA NATURAL
L

9. Deste modo, evidente que a participao do homem nessas quatro formas de vida
requer aptides e conhecimentos cada vez mais complexos e abrangentes. A inaptido para a vida
natural exclui logicamente o homem da vida civil (por exemplo, o louco ou o doente incapaz de
alimentar-se, tomar banho, etc). A inaptido para a vida civil exclui o homem da vida poltica: o
homem incapaz de zelar por seus prprios bens e interesses no ser admitido como
representante de grupos maiores. Assim tambm, a inaptido para a vida poltica exclui o homem
da vida intelectual: o homem incapaz de abarcar intelectualmente a comunidade em que vive,
com toda a complexidade de suas relaes internas, muito menos ser capaz de julgar essa
comunidade como um todo, em face do ambiente natural ou da humanidade.
O homem tem de ser habilitado, pois, primeiro para a vida natural, depois para a vida
civil, depois para a vida poltica e depois para a vida intelectual (a qual, no entanto, j estava em
germe na raiz do seu aprendizado, que sem ela no poderia vir a comear).
A educao , portanto, uma instncia da vida que atravessa todos os quatro nveis. o
eixo que liga o homem como ser natural ao homem como cidado, como membro da
comunidade poltica e como intelectual.
A educao abrange desde o ensino das habilidades necessrias vida natural (andar,
comer, lavar-se) at as snteses superiores da razo, passando pelos deveres da vida civil e poltica.
10. A passagem de cada fase da educao fase seguinte se d pelo domnio de certas
aptides especficas a cada uma delas. Na prxima aula, veremos quais.

27 de maio de 1991

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