Astrobiologia PDF

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Organizao

Douglas Galante
Evandro P. Silva
Fabio Rodrigues
Jorge E. Horvath
Marcio G. B. Avellar

tikinet
Produo editorial: Tikinet Edio Ltda
Edio de texto: Hamilton Fernandes
Preparao de texto: Amanda Coca
Reviso: Glaiane Quinteiro e Marilia Koeppl
Projeto grfico: Maurcio Marcelo
Diagramao: Maurcio Marcelo e Rodrigo Martins
Capa: Vitor Teixeira

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)


(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Astrobiologia [livro eletrnico] : uma cincia emergente / Ncleo de


Pesquisa em Astrobiologia. -- So Paulo : Tikinet Edio : IAG/USP,
2016. 10 Mb ; ePUB e PDF

Vrios autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-66241-03-7

1. Astroqumica 2. Exobiologia 3. Vida - Origem 4. Vida em outros


planetas I. Ncleo de Pesquisa em Astrobiologia Universidade de So
Paulo.

16-00269 CDD-576.839

ndices para catlogo sistemtico:


1. Universo : Existncia de vida :
Astrobiologia 576.839
SUMRIO
5 PREFCIO

9 APRESENTAO
Alvorecer no terceiro planeta

15 INTRODUO

21 AGRADECIMENTOS

23 CAPTULO 1
ASTROBIOLOGIA
Estudando a vida no Universo

43 CAPTULO 2
A ORIGEM DOS ELEMENTOS

61 CAPTULO 3
ASTROQUMICA
A formao, a destruio e a busca de molculas
prebiticas no espao

75 CAPTULO 4
PLANETAS HABITVEIS
Onde esto os lugares no Universo adequados ao
nosso ou outros tipos de vida?

95 CAPTULO 5
QUMICA PREBITICA
A qumica da origem da vida

115 CAPTULO 6
ORIGEM DA VIDA
Estudando a vida no Universo
137 CAPTULO 7
A EVOLUO DA VIDA EM UM PLANETA EM
CONSTANTE MUDANA

155 CAPTULO 8
VIDA AO EXTREMO
A magnfica versatilidade da vida microbiana em
ambientes extremos da Terra

173 CAPTULO 9
METABOLISMOS POUCO CONVENCIONAIS

197 CAPTULO 10
QUANDO OS ANIMAIS HERDARAM O
PLANETA

217 CAPTULO 11
BUSCA DE VIDA FORA DA TERRA
Estudando o Sistema Solar

235 CAPTULO 12
LUAS GELADAS DO SISTEMA SOLAR

277 CAPTULO 13
BUSCA DE VIDA ALM DO SISTEMA SOLAR

293 CAPTULO 14
O SETI E O TAMANHO DO PALHEIRO...
Otimismo e pessimismo na busca de nosso alter
ego extraterrestre

315 CAPTULO 15
FUTURO DA VIDA NA TERRA E NO UNIVERSO

341 CAPTULO 16
EXPLORAO INTERESTELAR
Motivaes, sistemas estelares, tecnologias e
financiamento

361 GLOSSRIO
PREFCIO

Desde o alvorecer da civilizao, temos contemplado a beleza


e as maravilhas do mundo natural que nos rodeia e nos pergunta-
do sobre sua origem. Vasculhamos o passado e ficamos intrigados
pelo futuro, e, por isso, somos nicos. Nossos ancestrais admi-
raram a vastido do espao e certamente pensaram que deveria
haver outros alm de ns.
Estamos agora em um momento nico da histria humana,
quando podemos fazer essas mesmas antigas perguntas usando
uma abordagem cientfica, e estudar rigorosamente as trs gran-
des questes da astrobiologia: De onde viemos?, Para onde
vamos? e Estamos sozinhos?. Essas questes fundamentais cor-
respondem s que a humanidade vem se fazendo h milnios, e,
provavelmente, fazem parte do que nos torna humanos. Assim,
no h como evitar sermos atrados por esse campo de pesqui-
sa. A astrobiologia , na realidade, uma metadisciplina usando
toda cincia til, onde ela puder ser encontrada. De um ponto de

5
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

vista prtico, essa empreitada requer a interao de cientistas que,


de outra forma, provavelmente no se encontrariam, necessitando
de muito menos trabalho para o desenvolvimento de trabalhos de
pesquisa colaborativos e altamente complexos.
Ao contrario de muitas outras disciplinas cientficas, a astro-
biologia tem implicaes em como enxergamos a ns mesmos,
como interagimos com a Terra e com o Universo. De onde vie-
mos toca a questo do porqu que tanto tem intrigado no
apenas cientistas, mas tambm filsofos e telogos. Para onde
vamos contribui para esse entendimento, mas tambm requer o
envolvimento econmico e poltico, que esto atualmente no auge
das discusses sobre mudanas climticas. E Estamos sozinhos
algum dia ir nos forar a encarar o fato de que ns, como cria-
turas vivas, no somos nicos, ou, ao contrrio, que estamos na
verdade sozinhos no Universo, como resultado de uma histria
qumica to improvvel que resultou em um nmero amostral de
apenas um, a vida na Terra. Qualquer desses resultados ir forar
novas consideraes tica, como nossa relao com os outros,
ou sobre nossa solido e a responsabilidade de sermos a nica
forma de vida no Cosmos.
Ento, o que astrobiologia? Vamos comear com o De onde
viemos. Um bilogo vai abordar essa questo olhando para a
evoluo da vida na Terra, usando ferramentas tradicionais como
anatomia comparativa e paleontologia, assim como ferramentas
mais novas, como as tcnicas da biologia molecular. Mas isso no
ir responder o porqu dessa histria ter acontecido dessa forma,
sem um conhecimento mais completo do ambiente interagindo
com a vida. Qual era a temperatura nos diferentes momentos? Ser
que a Terra estava passando por um evento de glaciao global ou
sendo bombardeada por meteoritos ou mesmo um nico, enor-
me e bem localizado asteroide, como o que atingiu a pennsula de
Yucatn 65 milhes de anos atrs. Esse evento jamais seria predito
somente pela gentica de populaes, mas acabou tendo uma das
mais profundas influncias em nossa evoluo, j que, sem ele,

6
PREFCIO

talvez ainda estivssemos em um mundo dominado pelos dinos-


sauros, com os mamferos se esgueirando escondidos.
Mas no suficiente retrocedermos com o registro fssil ou
molecular apenas at o luca, o ltimo Ancestral Comum (da sigla
em ingls). preciso ir at a origem da vida em si. Como a vida
surgiu? Como era o ambiente que propiciou esse acontecimento?
Como acabamos tendo um planeta habitvel? Ao final, como foi
a origem e evoluo de nosso Sistema Solar, galxia, elementos
biognicos, de agora at o Big Bang?
A questo Para onde vamos costuma ser ignorada em muitos
programas de astrobiologia, mas, na verdade, a que tem maior
importncia imediata para todos ns. Enquanto o passado foi do-
minado por processos fsicos e qumicos, alm de interaes entre
organismos, o futuro tem um novo grande jogador: ns. Apesar
de (ainda) no termos a capacidade de impedir que nossa galxia
colida com outra, reiniciar a evoluo do Sol ou parar a Lua em
seu lento movimento de afastamento, todos esses fenmenos iro
influenciar o futuro da vida na Terra. Ns j provamos que somos
capazes de visitar outros corpos do Sistema Solar, com astronau-
tas ou substitutos robticos. Estamos alterando nossa composio
atmosfrica, e, em consequncia, nosso clima. Temos o poder de
extinguir espcies, inclusive a nossa prpria. Mas tambm temos
o poder para usar essas ferramentas cientficas e tecnolgicas para
o bem comum, para estender nossa expectativa de vida e proteger
nossos rios e florestas. Qual ser nossa escolha?
E ainda h a questo na qual a fico cientfica vira realida-
de: Estamos sozinhos? Enquanto muitas pessoas esto ansiosas
por encontrar sinais de vida inteligente extraterrestre, essa criatura
pode no compartilhar de nossa curiosidade ou valores. Mas e
se houvesse uma civilizao aliengena benevolente que pudesse
se comunicar conosco, talvez com mtuo entendimento? O mais
provvel, em um futuro prximo, a descoberta de uma forma
de vida microscpica, menos evoluda que a terrestre. Note que
eu no usei o termo simples para esse tipo de vida, pois no h

7
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

nada de simples na vida, seja ela qual for. O que nos trs de vol-
ta pergunta: o que vida?
Nesse contexto, onde entra o Brasil? Por quase uma dcada,
tenho conhecimento do interesse em criar um programa de pes-
quisa em astrobiologia no pas, aps uma reunio para a qual fui
convidada, organizada pelo Grupo de Pesquisa em Astrobiologia
do CNPq, durante a Assembleia Geral da IAU (Unio Astronmica
Internacional) no Rio de Janeiro, em 2009. Aps esse evento, to-
mei conhecimento e participei de vrios workshops sobre o tema
no Brasil, culminando com a filiao do pas como parceiro inter-
nacional do NASA Astrobiology Institute (NAI), em 2011. Cada vez
que vou ao Brasil, fico impressionada com o entusiasmo da comu-
nidade, tanto de cientistas como estudantes, sendo os ltimos uma
grande promessa para o futuro da astrobiologia no pas. Novas
instalaes de pesquisa esto sendo construdas, para complemen-
tar os laboratrios que o Brasil j possua. No meu prprio labora-
trio, nos Estados Unidos, fui privilegiada por ter um maravilhoso
ps-doutorando brasileiro, Dr. Ivan Paulino-Lima, que meu lem-
brete dirio do programa bem-sucedido em desenvolvimento no
pas. Eu me sinto honrada de ser parte desse processo, e espero
que essa colaborao e relacionamento duradouros continuem a
florescer.
Novos conhecimentos, a reorganizao dos conhecimentos
atuais e novas misses espaciais so claramente necessrios para
o avano da astrobiologia. Para ajudar o leitor a colaborar nessa
busca, o que se segue uma coletnea de tpicos que o permiti-
ro degustar da riqueza dessa rea de pesquisa. E, como em uma
refeio fabulosa, deve deix-lo com vontade de mais. Bem-vindo
astrobiologia!

Traduo de Douglas Galante

Lynn J. Rothschild, Ph.D.


Cientista Snior, Nasa Ames Research Center

8
APRESENTAO
Alvorecer no terceiro planeta

J houve um tempo em que o Universo foi pequeno. De bolso,


quase. Menos de 2 mil anos atrs, o clebre astrnomo Ptolomeu
de Alexandria teve a ousadia de estimar o tamanho do Cosmo e
calculou que os objetos mais distantes as estrelas de fundo que
vemos no cu todas as noites estavam a cerca de 130 milhes
de quilmetros de ns. Pode parecer grande pelas nossas medidas
cotidianas, mas na verdade era uma viso extremamente modesta
do Universo. Hoje, sabemos que, numa esfera desse tamanho, no
conseguiramos acomodar nem mesmo a rbita da Terra em torno
do Sol, com raio de aproximadamente 150 milhes de quilmetros
(medida que os astrnomos definiram como a unidade astronmi-
ca, UA).
Conforme abandonamos o que diziam nossas intuies e nos-
sos preconceitos acerca de como achamos que o Universo deveria

9
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

ser, descobrimos que a escala csmica era muito maior. E pode


colocar maior nisso. O tamanho do Universo observvel, hoje sa-
bemos, cerca de 3 milhes de bilhes de vezes maior do que
estimara Ptolomeu 3 1015 unidades astronmicas, nmero to
grande que obriga os astrnomos abandonarem a rgua das UAs
e partirem para outras maiores, como os anos-luz ou os parsecs.
(A mais popular delas, o ano-luz, equivale distncia que a luz
percorre no vcuo em um ano de viagem, cerca de 9,5 trilhes de
km, ou 63.241 unidades astronmicas. A fronteira do Universo
observvel, estimam os cosmlogos, est a cerca de 46,5 bilhes
de anos-luz de ns.)
Nesse espao inimaginavelmente vasto, a Terra e tudo que
existe nela no passam de menos que um gro de areia. Com efei-
to, h mais estrelas no Universo que gros de areia em todas as
praias do nosso planeta. E, no entanto, ainda que no passe de
um farelinho em meio vastido do Universo, nosso mundo tem
uma peculiaridade que faz dele um lugar especial. Trata-se de um
mundo com vida. At o momento, o nico que conhecemos que
reconhecidamente serviu de palco para esse fenmeno incrvel.
Incrvel porque as reaes qumicas envolvidas no metabo-
lismo dos organismos vivos as complexas trocas e permutaes
de molculas que esto acontecendo exatamente neste momento
em todas as clulas do seu corpo, inclusive nos neurnios do seu
crebro que de algum modo esto transformando a informao
visual presente nas pginas deste livro numa mensagem inteligvel
para voc so muito mais intrincadas do que tudo mais que j vi-
mos por a. As reaes termonucleares que permitem que estrelas
como o Sol brilhem e emitam copiosas quantidades de radiao
ou a fora gravitacional brutal que esmaga a matria at produzir
os misteriosos buracos negros so coisas complicadas, devemos
admitir. To complicadas que, mesmo depois de muitas dcadas
de estudo intenso, ainda h perguntas no respondidas a respeito
delas. Contudo, elas comeam a parecer muito mais amigveis
investigao quando deparamos com as reaes moleculares
envolvidas no metabolismo dos organismos vivos. um nvel de

10
APRESENTAO

complexidade to alto que, at hoje, no sabemos como ele apa-


receu pela primeira vez.
De algum modo, aproximadamente 4 bilhes de anos atrs,
aqui na Terra, apareceu um grupo de molculas complexas com a
capacidade emergente de se replicar fabricar cpias de si mesma
segundo instrues codificadas em sua prpria estrutura mole-
cular. No sabemos que molcula foi essa, nem como ela se for-
mou, mas os pesquisadores tm trabalhado duro para compreen-
der como isso pode ter acontecido: possivelmente o maior desafio
intelectual j empreendido pela cincia.
A despeito das incertezas sobre sua origem, o que sabemos
com certeza que, por alguma rota qumica ainda no exatamen-
te determinada, isso realmente aconteceu. E resultou no incio do
processo de evoluo darwiniana por meio da seleo natural.
A replicao imperfeita dessas molculas primordiais produziu
variedades de si mesmas, com pequenas diferenas nas instru-
es codificadas em sua estrutura. Algumas delas, mais eficientes
no processo de replicao, logo dominaram o ambiente; outras,
menos competentes, ficaram para trs e no deixaram descen-
dentes. E assim a evoluo teve incio, num processo que levou,
at agora, cerca de 4 bilhes de anos (uma escala de tempo to
inimaginvel quanto a de espao a que nos referimos h pouco),
produzindo formas de vida as mais variadas e complexas. At
que, nos ltimos milhes de anos, uma coisa ainda mais estranha
aconteceu. Uma espcie ligeiramente diferente de primata come-
ou a desenvolver um apreo cada vez maior pela atividade inte-
lectual possivelmente pelo incremento das relaes sociais e a
necessidade de fabricar ferramentas para sobreviver. Seu crebro
foi aumentando com o passar das geraes, moldado pela sele-
o natural, e esses primeiros humanos comearam a se intrigar
com as misteriosas luzes que viam no cu noite, assim como
o brilho radioso do Sol durante o dia. O que significava tudo
aquilo? A Terra, que j era um lugar especial por ter sido abrigo
das intrincadas reaes qumicas que originaram a vida, agora
chegava a uma fase ainda mais intrigante de sua existncia: pela

11
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

primeira vez surgia um tipo particular de vida capaz de refletir


sobre a natureza do Universo e buscar compreender o contexto
de sua prpria existncia.
Ao longo dos ltimos sculos (uma ninharia, se levarmos
em conta os 4 bilhes de anos de evoluo que nos precede-
ram), essa espcie fez grandes avanos nesse esforo. Somos ns.
Comeamos a ter uma apreciao da escala e da organizao do
Universo, descobrimos que as mesmas leis da fsica regem fen-
menos em toda parte e que a qumica bsica que permeia o Sol e
sua famlia de planetas, incluindo a o nosso, no diferente da
que encontramos em outras partes do Cosmo. Sabemos que h
outros sis extremamente similares ao nosso por a, e Terras igual-
mente parecidas. No sabemos ainda com que frequncia exa-
ta esses astros surgem e evoluem como os membros do Sistema
Solar, em meio a todas as permutaes possveis na formao e
evoluo de sistemas planetrios, mas inevitvel a convico
estatstica de que o Sol e a Terra no so, ao menos por fora da
fsica e da qumica envolvidas em seu surgimento, singulares.
Resta ento a derradeira pergunta: sendo a fsica e a qumica
comuns em todo o Universo, ser tambm a biologia? Pode o sur-
gimento da vida na Terra ter sido fruto de um improvvel acidente
ou a atividade biolgica, com toda sua rica complexidade, se ma-
nifestar sempre que as condies so favorveis? Quais exatamen-
te so essas condies? Com que frequncia elas so atendidas?
Que diferentes mundos podem abrig-las e qual a extenso de
seu alcance pelo Universo afora? Essas so algumas das perguntas
a que se prope a responder a novssima cincia da astrobiologia,
que nas ltimas dcadas deixou de ser mero exerccio de espe-
culao para se firmar como uma das reas mais promissoras da
investigao cientfica no sculo XXI.
Podemos argumentar que, quando o filsofo italiano Giordano
Bruno props, em 1584, que as estrelas do firmamento eram ou-
tros sis, apenas distantes demais para que os percebamos pelo
que eram, e que em torno desses sis tambm havia planetas
como o nosso, e que em alguns desses mundos havia seres vivos

12
APRESENTAO

como os terrestres, ele estava formulando uma hiptese astrobio-


lgica ainda que sem qualquer base experimental para corro-
bor-las. Acabou que, mais de quatro sculos depois, dessas trs
proposies, as duas primeiras j se mostraram comprovadamente
corretas. A terceira a que realmente diz respeito astrobiologia
ainda carece de confirmao. Mas o empolgante que agora,
finalmente, temos os instrumentos de pesquisa necessrios para
tentar testar (e quem sabe confirmar) hipteses como essa.
Para mim, como jornalista de cincia, foi especialmente em-
polgante ver o florescer da astrobiologia como cincia de van-
guarda. No s ela preenche algumas das expectativas mais ele-
mentares da curiosidade humana a famosa busca pelo de onde
viemos e para onde vamos como sua sedimentao permite
substituir a mitologia fantasiosa construda ao longo do ltimo
sculo sobre vida extraterrestre. Saem de cenas as piraes dos
discos voadores, e entram em seu lugar experimentos cientficos
slidos. Abandonamos assim o irrealismo esperanoso de que o
conhecimento simplesmente v descer do cu sobre nossas ca-
beas e passamos a praticar o que nossa espcie faz de melhor:
construir o conhecimento a partir da base, aplicando com rigor o
mtodo cientfico e mantendo a mente aberta para o que quer que
o Universo esteja disposto a nos oferecer.
Ainda h muitas coisas que no sabemos sobre a vida e seu
potencial para alm do planeta Terra. Mas a maior surpresa que
este livro pode trazer para voc, caro leitor, a descoberta de
quanto ns j sabemos. No pouca coisa. Nas prximas pginas,
voc ter um panorama slido acerca das principais questes que
cercam a astrobiologia hoje, desde o surgimento dos elementos
qumicos (preceito fundamental para que pudssemos ter nosso
metabolismo baseado em molculas complexas de carbono dilu-
das em gua) at o futuro da vida, na Terra e fora dela, passando
pelos desafios para a compreenso da qumica prbitica e pelos
grandes saltos evolutivos que levaram emergncia de vida com-
plexa e inteligente em nosso pequeno gro de areia, em meio
imensido do Universo.

13
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Os captulos desta obra foram escritos por alguns dos maiores


especialistas brasileiros em astrobiologia e refletem o trabalho do
Ncleo de Pesquisa em Astrobiologia (nap/Astrobio), o que confe-
re exatido e confiabilidade a seu contedo. Prepare-se portanto
para um mergulho na fascinante cincia que reflete essa busca an-
cestral da humanidade pela compreenso de qual de fato o seu
lugar no Cosmo. Tenho certeza de que, ao terminar a leitura, voc
sair com a convico de que somos todos privilegiados por es-
tarmos vivos justamente nessa poca de nossa histria. A contnua
aventura do conhecimento, carregada de gerao a gerao desde
que os primeiros humanos passaram a caminhar sobre a Terra, est
chegando sua fase mais entusiasmante e apenas comeando.

Salvador Nogueira
Jornalista de cincia, escreve atualmente para a coluna Mensageiro
Sideral da Folha de S.Paulo e autor de nove livros, entre os quais,
Extraterrestres, Rumo ao Infinito e Conexo Wright-Santos-Dumont.

14
INTRODUO

Este livro resultado do trabalho colaborativo de vrios auto-


res, especialistas em suas reas, mas que aceitaram o desafio de
escrever dentro de um contexto mais amplo. Foi organizado de
maneira temporalmente linear, comeando com uma apresenta-
o sobre o tema e logo entrando na histria do Universo. Nesse
caminho, passamos pela formao dos tomos, o incio das intera-
es moleculares e complexificao qumica, ainda no ambiente
espacial. Com a evoluo do Universo, a gravidade continuou seu
caminho, moldando a matria em nuvens que se condensaram,
formando estrelas e, hoje sabemos, quase sempre acompanhadas
de planetas. Partimos ento para explorar a diversidade desses
mundos e o que os torna habitveis.
A qumica da origem da vida revisada em dois captulos,
junto com os esforos mais recentes de tentar recriar as condies
das primeiras centenas de milhes de anos do planeta em labo-
ratrio. Uma vez que a vida surgiu, ela evolui e se espalhou por

15
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

praticamente todos os ambientes do planeta, utilizando as mais


diferentes estratgias adaptativas. Hoje podemos recontar essa his-
tria com provas factuais do processo evolutivo pelo estudo dos
fsseis, e todo esse conhecimento sobre a vida na Terra pode ento
ser usado para procurar vida fora dela, seja no Sistema Solar ou
alm dele, nos exoplanetas.
Por fim, discutimos os esforos e avanos em busca de vida
inteligente extraterrestre, bem como sobre o futuro da prpria vida
na Terra. Talvez sejamos demasiadamente otimistas, mas acredita-
mos que ainda h grandes horizontes para serem explorados pela
humanidade, seja em nosso planeta ou muito alm do Sistema
Solar. A aventura humana est apenas comeando, e temos, em
nossas mos e em nossos crebros, todas as ferramentas para irmos
muito longe!
A astrobiologia uma rea de pesquisa recente no Brasil e no
mundo. Ainda sem um programa de ps-graduao especfico no
pas, os estudantes que decidem seguir por essa rea tm se forma-
do em diversos cursos, como fsica, qumica, biologia, astronomia,
geologia etc., procurando por orientadores de iniciao cientfica,
mestrado e doutorado que os acolham com um projeto sobre al-
gum problema de interesse da astrobiologia. No entanto, h uma
grande falta de informao, sobretudo em portugus, tanto para
alunos quanto professores, sobre o que de fato astrobiologia, e
como se fazer uma pesquisa na rea. De um lado, os alunos que-
rem um trabalho de pesquisa astrobiolgica, e os professores,
que normalmente tiveram uma formao mais especializada, difi-
cilmente entendem o que isso quer dizer e propem projetos mais
tradicionais e especializados. O resultado costuma ser frustrao
mtua, e desistncia do aluno e do orientador em seguir pela rea.
Muita dessa desinformao decorrente da novidade do
tema, da falta de cursos sobre o assunto e da falta de material
atualizado em portugus, o que permitiria um alcance maior dos
contedos que vm sendo desenvolvidos pela comunidade nos
ltimos anos. Este livro resultado direto da demanda que ns,
pesquisadores associados ao Ncleo de Pesquisa em Astrobiologia

16
INTRODUO

da Universidade de So Paulo, percebemos desde a criao do


ncleo, em 2011. Esperamos que ele, apesar de no ser completo,
dada a vastido do tema, contribua para catalisar mais iniciativas
de produo sobre o assunto em portugus, e que possa ser usado
para nortear e incentivar novos alunos brasileiros a se aventurarem
na rea, de forma crtica e rigorosa.
A astrobiologia no , em sua formulao atual, uma nova
disciplina cientfica, nem mesmo detentora de respostas que ne-
nhuma outra cincia pde obter at agora. No h magia ou mila-
gre, apenas trabalho duro e criatividade. A astrobiologia pode ser
vista como uma rea de pesquisa multi, inter e at transdisciplinar,
que procura maneiras novas para entender o fenmeno da vida no
Universo, sua origem, evoluo, distribuio e futuro. Funciona,
acima de tudo, como uma perspectiva para melhorar a comuni-
cao e o intercmbio de ideias entre pesquisadores de diferentes
reas com um interesse comum, a origem e evoluo da vida no
universo.
Vrios de ns, jovens pesquisadores na rea, tivemos a opor-
tunidade de ser expostos a essa viso durante a ps-graduao,
participando de escolas internacionais de astrobiologia (seja aqui
feito um agradecimento especial aos organizadores da Escola de
Inverno de Astrobiologia do Hava, Escola de Vero de Astrobiologia
dos Pases Nrdicos e da Escola de Vero de Astrobiologia de
Santander, na Espanha), nas quais ficou claro que, uma vez ven-
cidas as barreiras de comunicao, ter contato com colegas de
diferentes reas permite novas perspectivas e solues para anti-
gos problemas cristalizados coloque um fsico terico para fazer
experimentos de microbiologia em uma geleira na Islndia e tudo
pode acontecer!
Esse intercmbio de ideias o que a astrobiologia tem de me-
lhor e o que, em nossa viso, realmente vale a pena ser mantido
e melhorado. No Brasil, em 2011, organizamos com grande su-
cesso a So Paulo Advanced School in Astrobiology (Spasa, 2011),
financiada pela Fapesp, para atrair novos talentos para a rea.

17
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Esperamos fazer mais eventos como esse e ficamos felizes de ver


outras iniciativas j surgindo pelo pas.
Mas no podemos esquecer a astrobiologia ainda uma rea
em consolidao e, por isso mesmo, muito dinmica. Sua conti-
nuidade depende do interesse crescente da comunidade no tema,
para garantir seu financiamento, criao de cursos, formao de
pessoas e mesmo, quem sabe, abertura de vagas para pesquisado-
res/professores especficas para o assunto. Pode ser que ela venha
a ser substituda por outro termo no futuro, como habitabilidade,
ou caia em desuso, sendo mantido o termo mais comum cin-
cias planetrias. Isso algo para o futuro, mas de menor impor-
tncia, pois o que realmente vale a pena desbravar as fronteiras
do conhecimento e compreendermos nosso lugar no Universo.
At o momento, no h um projeto de pesquisa em astrobio-
logia, mas projetos em reas especficas e mais clssicas (fsica,
qumica, biologia, astronomia e geologia), com uma viso inter-
disciplinar e conectada a um problema mais geral sobre a vida
no Universo. Alm do projeto em si, importante que se invista
na formao slida em uma rea de maior interesse (que possivel-
mente ser aquela em que a carreira dos pesquisadores ter conti-
nuidade), tambm procurando exp-los a outras reas de pesquisa,
de maneira que tenham facilidade de dilogo em qualquer tema
e uma boa rede de contatos, para sempre saber onde ou quem
procurar, para achar a informao que precisam. Na cincia,
importante fazer escolhas por paixo, mas tambm levando em
conta as aptides pessoais necessrias nas diferentes reas e, de
forma muito pragmtica, o mercado futuro de profisses. Levando
em conta esses fatores, as chances de desenvolver uma carreira
bem-sucedida e que satisfaa seus anseios sero muito maiores!
Astrobiologia: uma cincia emergente faz parte da misso
de disseminao do conhecimento proposta pelo nap/Astrobio,
apoiada e financiada pelas Pr-reitorias de Cultura e Extenso
Universitria da usp, alm de parte do compromisso com ensino
e educao como parceiro internacional do Nasa Astrobiology
Institute (nai) e a European Astrobiology Network Association

18
INTRODUO

(eana). A produo deste livro foi um prazer para seus organizado-


res, que tiveram a oportunidade de aprender um pouco mais sobre
outros temas e interagir com pessoas muito diferentes, dedicadas
e com histrias para serem contadas. Ao final, esperamos que um
pouco dessa rica experincia humana que vivenciamos possa ser
passada para os leitores, e que este seja apenas o incio de suas
prprias buscas. Sejam os novos exploradores do Universo e no
se esqueam o conhecimento s faz sentido se puder ser com-
partilhado e vivenciado em toda sua riqueza humana!

Os Organizadores

19
AGRADECIMENTOS

Agradecemos o apoio de vrios alunos e colegas, muitas ve-


zes trabalhando de forma annima, mas, sem os quais, este livro
seria impossvel. Aos queridos alunos da primeira turma do curso
de ps-graduao em astrobiologia da usp (btc 5831), em cujas
discusses muitos textos deste livro nasceram, e ao ps-graduan-
do Andr Arashiro Pulschen, que desenhou e aprimorou a capa.
Agradecemos tambm a todos os integrantes do nap/Astrobio, al-
guns dos quais no participaram diretamente do livro, mas contri-
buram para sua viabilidade; aos organizadores das escolas inter-
nacionais de astrobiologia, que contriburam para a formao de
vrios organizadores e autores desta edio, em especial Karen
Meech, Wolf Geppert, Bruce Runnegar e Vicky Meadows. Tambm
agradecemos ao incessante apoio e incentivo do diretor do Nasa
Astrobiology Institute, Carl Pilcher, bem como de Gerda Horneck,
ex-diretora da eana. Agradecimentos especiais a Lynn Rothschild,
pelo apoio constante, desde a formao da primeira gerao de
astrobilogos brasileiros, e pelos momentos fantasticamente hu-
manos que dividimos em diversas oportunidades.

21
ASTROBIOLOGIA
Estudando a vida no Universo

Captulo 1
Fabio Rodrigues, Douglas Galante e Marcio G. B. Avellar

A astrobiologia, na viso atual, definida como um campo


de pesquisa dedicado a entender a origem, a evoluo, a distri-
buio e o futuro da vida, na Terra ou fora dela (Blumberg, 2003).
Dessa forma, algumas das principais perguntas que os astrobilo-
gos tentam responder vm sendo feitas pela humanidade h mil-
nios: como a vida se originou e evoluiu na Terra?, existe vida
em outros planetas? e como a vida se adaptou a um planeta em
constante mudana e como ela o far no futuro? (Des Marais;
Walter, 1999). A astrobiologia prope uma abordagem multi e in-
terdisciplinar, baseada nas tcnicas e no rigor da cincia moderna
para essas questes, as quais so apenas o incio para a melhor
compreenso do fenmeno da vida no Universo.
Um fato marcante para o reconhecimento dessa rea de pes-
quisa se deu em 1998, quando a Nasa, agncia espacial norte-
-americana, reestruturou e ampliou o escopo de seu antigo pro-
grama de exobiologia, dedicado a procurar vida fora da Terra,
renomeando-o como programa de astrobiologia, criando assim o
Instituto de astrobiologia da Nasa (nai), um dos pioneiros no tema

23
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

(Blumberg, 2003). Essa mudana ocorreu aps a Nasa perceber


que, paralelamente busca de vida fora da Terra, era necessrio
entender melhor a vida em nosso prprio planeta, a nica que co-
nhecemos e que deveria ser utilizada como modelo para entender
uma possvel vida extraterrestre. Por exemplo, quando se pensa na
possibilidade de vida em outro planeta, uma das perguntas que
surgem sobre sua origem. necessrio, ainda, conhecermos bem
o cenrio e as condies para o surgimento da vida na Terra, antes
de podermos extrapolar o mesmo evento para outros planetas.
Analogamente, tratando da deteco de vida extraterrestre,
novamente o exemplo da Terra nos direciona aos tipos de orga-
nismos que so mais propcios a existirem em outros ambientes
e a como detect-los, seja com sondas no prprio local, seja da
Terra, por meio de telescpios. Sabe-se que, na Terra, os primeiros
organismos que surgiram foram os unicelulares, que permanece-
ram dominantes por bilhes de anos at o surgimento dos multi-
celulares, sendo que, at hoje, organismos unicelulares perfazem
a maior parte da massa viva da Terra. Dessa forma, um dos prin-
cipais objetos de estudo da astrobiologia so micro-organismos,
como as bactrias (Des Marais, 2008).
No atual estgio de entendimento cientfico da biologia,
muito difcil desenvolver estudos sobre uma forma de vida muito
diferente da que conhecemos na Terra, no na aparncia em si,
mas em seu funcionamento molecular. Dessa maneira, a astrobio-
logia se baseia fortemente na compreenso da vida na Terra como
modelo para a vida extraterrestre.
Segundo a prpria Nasa, o termo astrobiologia no foi criado
em 1998 (Blumberg, 2003), mas j vinha sendo usado em diferen-
tes contextos, desde a dcada de 1940, sendo seu primeiro uso na
lngua portuguesa registrado em 1958, quando o bilogo paulista
Flvio Augusto Pereira escreveu um livro intitulado Introduo
astrobiologia. Antes do termo astrobiologia se consolidar, com a
fundao do instituto da Nasa, diversos grupos e associaes j
vinham utilizando os termos exobiologia, bioastronomia e
cosmobiologia que, apesar de estarem, hoje, caindo em desuso,

24
Estudando a vida no Universo

ainda so encontrados com significados muito similares ao da atual


astrobiologia (Rodrigues, 2012). O termo astrobotnica tambm
foi usado ao longo da histria, uma vez que se acreditava, no incio
do sculo xx, que as plantas seriam as formas de vida mais resis-
tentes e os candidatos mais provveis a habitarem outros planetas.

Da corrida espacial astrobiologia moderna


O avano da tecnologia, ao longo da histria da humanidade,
permitiu estudos mais detalhados sobre o nosso planeta, aumen-
tando nosso conhecimento sobre os processos naturais em diver-
sas reas da cincia, incluindo a astrobiologia.
Se, na Grcia Antiga, as discusses sobre possibilidade de
vida fora da Terra foram pautadas em pressuposies filosficas,
uma vez que pouco se conhecia sobre outros corpos celestes, a
inveno dos telescpios permitiu os primeiros estudos cientficos
e sistemticos sobre esses corpos. Ainda que muito rudimentares,
se comparados ao que temos hoje, esses estudos foram essenciais
para incentivar novas geraes de cientistas e inventores a avana-
rem no tema (Dick, 1980).
Ao comparar as observaes do planeta Marte ao longo do
tempo (Figura 1.1), inegvel como o avano tecnolgico possibi-
litou diferentes descobertas e a expanso de nosso conhecimento.
Sendo assim, a astrobiologia moderna foi um avano a partir
da exobiologia, que deve ser entendida no contexto da histria
da humanidade no sculo xx. A segunda metade desse sculo foi
marcada pela Guerra Fria, disputa por hegemonia e poder entre
as duas potncias econmicas do ps-Segunda Guerra Mundial:
Estados Unidos e Unio Sovitica. Essa disputa se manifestou, en-
tre outros aspectos, na dominao tecnolgica, e talvez seu maior
exemplo seja a corrida espacial.
A Unio Sovitica saiu vitoriosa ao mandar o primeiro satli-
te para o espao (Sputnik I, em 1957) e o primeiro mamfero ao
espao (a cadela Laika, no Sputnik II), evento que foi seguido pe-
los norte-americanos com o envio dos macacos Able e Baker (no
foguete Jupiter am-18, em 1959). A Unio Sovitica foi tambm

25
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Christiaan Huygens, 1659 Giovanni Schiaparelli, 1888

Vista telescpica, anos 1960 Telescpio Hubble, 1997

Mars Global Surveyor, 2002


Figura 1.1. Diferentes observaes/representaes de Marte ao longo do
tempo. Fonte: Flammarion, C. La Plante Mars (Bibioteca Nacional, Paris);
Nasa/jpl/Malin Space Science Systems

26
Estudando a vida no Universo

pioneira em mandar uma sonda que atingiu a Lua, chocando-se


propositalmente com ela (sonda Luna 2, em 1960) e em mandar
o homem para o espao (Yuri Gagarin, na Vostok I, em 1961).
Os Estados Unidos finalmente conseguiram uma vitria com a
chegada do homem na Lua, em 1969, com Neil Armstrong, Buzz
Aldrin e Michael Collins, feito que impressionou o mundo (Phillips,
2009).
Durante esse processo da corrida espacial, surgiu a preo-
cupao com os danos causados pelo ambiente espacial aos
astronautas e cosmonautas, dando origem medicina espacial.
Posteriormente, a Nasa concluiu que seria de extremo interesse
realizar investigaes sobre o efeito do ambiente espacial em
organismos vivos, incluindo a busca por vida extraterrestre.
Na verdade, o interesse pela resposta de organismos vivos em
condies espaciais e pela possibilidade de vida fora da Terra
foi impulsionado pelo medo da contaminao cruzada: havia
a preocupao que, caso existisse vida fora da Terra, esta pu-
desse ser trazida para a Terra, trazendo doenas catastrficas,
ao mesmo tempo que se procurava evitar a contaminao de
outros planetas e corpos celestes com organismos da Terra. Do
princpio da corrida espacial at hoje, a proteo planetria
uma das grandes preocupaes dos programas de explorao
espacial (Dick, 2009).
Como consequncia desses interesses e preocupaes, surgiu
o programa da Nasa de exobiologia, assim batizada para ser di-
ferenciada da biologia convencional. Entretanto, essa nova rea,
instituda nos anos 1960, no foi um consenso na comunidade
cientfica norte-americana. Ramos mais tradicionais, como a bio-
logia evolutiva, tiveram o financiamento abalado com o surgimen-
to da biologia molecular (aps a descrio da estrutura do dna por
Watson e Crick, em 1953) e sentiram-se novamente ameaados
por essa nova competidora no financiamento governamental.
A exobiologia conseguiu se consolidar pelo interesse do go-
verno nessas pesquisas e pelo apoio de nomes fortes na cincia
dos Estados Unidos, como o de Joshua Lederberg, prmio Nobel

27
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

de Medicina em 1958 por seus trabalhos em gentica e criador do


termo exobiologia para descrever a busca cientfica de vida fora
da Terra.
Desde o comeo da corrida espacial, os cientistas e, em par-
ticular, a Nasa, fizeram uso do grande apelo desse tema para jus-
tificar populao os gastos bilionrios das misses espaciais. O
reconhecido trabalho de divulgao cientfica que a Nasa criou ser-
viu, e serve at hoje, para manter ativo esse interesse, fomentando
a curiosidade popular. preciso considerar, tambm, os impactos
sociais e culturais da busca de vida extraterrestre. Esse tema, de-
batido por sculos tanto nas culturas ocidentais como orientais,
rendeu livros cientficos e de fico, motivou a criao de novos e
sofisticados instrumentos de pesquisa, influenciou religies e cor-
rentes filosficas (Crowe, 1997; Dick, 2000). Atualmente est mais
presente que nunca nas artes, filmes, livros etc. A vida extraterres-
tre se tornou um fenmeno cultural em nossa sociedade, atraindo
enorme interesse da populao mundial.
No entanto, a exobiologia, apesar de atraente, levantou mui-
tas crticas. Em especial, foi descrita como uma cincia sem um
objeto de estudo, uma vez que se propunha a estudar vida fora da
Terra, que ainda no sabemos se existe. Alm disso, depois de cer-
ca de 50 anos de existncia, a exobiologia no havia encontrado
nenhuma evidncia de vida extraterrestre.
Com o avano das pesquisas espaciais e as sucessivas dificul-
dades nas misses de busca de vida fora da Terra, a Nasa optou por
mudar o enfoque de exo para astrobiologia, criando assim uma
cincia com objeto de estudo mais palpvel: a vida na Terra e no
Universo. Percebe-se ento que a astrobiologia foi criada como con-
sequncia direta do avano tecnolgico e da conquista do espao,
mas tambm resultado das condies polticas, sociais e financei-
ras, como todas as reas da atividade humana. Atualmente, ela est
se estabelecendo como uma rea de pesquisa slida, principalmen-
te pela ampliao de seu escopo e por sua prpria evoluo, ao se
tornar uma ferramenta de integrao muito eficiente. Certamente,
uma das principais caractersticas positivas da astrobiologia sua

28
Estudando a vida no Universo

capacidade de integrar pesquisadores de diferentes reas para tra-


balharem com um enfoque inter e multidisciplinar em problemas
cientficos extremamente complexos, mas essenciais para compre-
endermos o fenmeno da vida no Universo (Des Marais; Walter,
1999).

Por que estudar astrobiologia?


A maioria das perguntas propostas pela astrobiologia no
nova e acompanha a humanidade h milhares de anos.
Especulaes sobre a possibilidade de vida fora da Terra e de como
seriam esses habitantes so frequentes na cincia e na filosofia
desde a Grcia Antiga. Um dos grandes debates naquela poca era
sobre a pluralidade dos mundos, ou seja, se a Terra seria nica ou
se existiriam outros planetas como o nosso, com capacidade para
abrigar vida. Os pluralistas, como Demcrito, Leucipo e Zeno,
defendiam que deveria haver vrios planetas, alguns distintos e
outros com caractersticas semelhantes s da Terra. Por outro lado,
os singularistas, como Aristteles e Plato, acreditavam que a Terra
era nica e que apenas aqui poderia haver vida. Essa discusso se
prolongou por toda a histria, movimentando diversos cientistas,
filsofos, telogos e escritores importantes (Dick, 1982).
Quanto origem da vida, muito antes das modernas teorias
envolvendo a qumica e a biologia, observa-se que praticamente
todas as civilizaes humanas possuem mitos de cosmogonia para
tentar explicar a origem do Universo e dos seres vivos. Um exem-
plo o mito do ovo csmico, possivelmente citado pela primeira
vez no Brahmanda Purana, um dos dezoito textos religiosos hindus,
as Marapuranas. Brahmanda quer dizer literalmente o ovo de
Brahma, e uma referncia ao Universo criado, incluindo a vida.
Tanto a busca por uma explicao para a origem da vida na
Terra quanto a especulao sobre vida extraterrestre esto, inti-
mamente ligadas busca de nosso lugar e objetivo no Universo.
Dessa forma, os temas tratados pela astrobiologia so de grande
impacto no imaginrio popular, encontrando-se profundamente
enraizados na cultura e sociedade.

29
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Desde sua formalizao e popularizao pela Nasa, a astrobio-


logia no se props a ser uma nova cincia com objetos de estudos
prprios e diferentes das reas de conhecimento tradicionais, mas,
sim, um novo enfoque para antigas perguntas, que dificilmente
seriam respondidas utilizando-se as disciplinas tradicionais de for-
ma isolada. A astrobiologia nasceu com a proposta de criar um
ambiente inter e multidisciplinar para discusso sobre a vida, en-
focando no apenas a Terra como sistema fechado, mas suas inte-
raes com o meio astrofsico, incluindo todos os fenmenos de
nossa vizinhana csmica no passado, presente ou futuro. Nosso
planeta foi formado como subproduto das reaes nucleares em
estrelas e supernovas antigas, sua qumica foi forjada nas nuvens
moleculares do espao e, at hoje, a Terra recebe energia do Sol,
partculas dos raios csmicos, impactos e matria trazida dos con-
fins de nosso Sistema Solar pelos cometas e asteroides.
A expanso da exobiologia para a atual astrobiologia se deu
exatamente quando a comunidade cientfica percebeu que a bus-
ca de vida fora da Terra deveria ser orientada pelo melhor conheci-
mento da vida no prprio planeta. Por exemplo, para entendermos
se a vida pode se originar em outro planeta, temos que estudar
amplamente o caso terrestre, considerando o meio astronmico,
a geologia do planeta, os eventos atmosfricos e as reaes qu-
micas que poderiam ocorrer. Da mesma forma, para sabermos o
que procurar em outro planeta, tomamos como base a vida como
a conhecemos na Terra e tentamos extrapolar nosso conhecimento
biolgico para as condies ambientais extraterrestres.

Abordagem e temas tratados pela astrobiologia


De forma geral, a astrobiologia se prope a observar a vida
de um ponto de vista bastante amplo, considerando as diversas
interaes com o corpo celeste que a abriga e com seu ambiente
astrofsico. Essas interaes so intrinsecamente dinmicas, mu-
dam com o tempo, e assim a vida segue a evoluo do planeta e
do Universo, mas, ao mesmo tempo, tambm altera seu ambiente,
em um ciclo extremamente complexo.

30
Estudando a vida no Universo

A compreenso da vida no Universo sua origem, evoluo


e eventual trmino um tema que requer, necessariamente, a
contribuio de pesquisadores de diferentes reas, como astrno-
mos, cientistas planetrios, qumicos, gelogos, bilogos, e mui-
tos outros, incluindo pesquisadores das engenharias e at mesmo
das cincias humanas. S seremos capazes de encontrar vida em
outros planetas, seja do Sistema Solar ou fora dele, se formos ca-
pazes de integrar nossos conhecimentos, de maneira a decifrar os
sinais sutis e complexos da vida. Apesar de o paradigma cientfi-
co/acadmico contemporneo criar pesquisadores e alunos cada
vez mais especializados em seus respectivos temas de estudo, se
quisermos realmente compreender a vida nesse grande contexto,
necessrio criarmos estratgias para aumentar a comunicao e
colaborao entre as reas. E nesse ponto que a astrobiologia se
mostra como uma poderosa ferramenta, criando a linguagem e a
oportunidade de transpor barreiras acadmicas criadas artificial-
mente pela sociedade.
A seguir so apresentados alguns dos temas centrais da astro-
biologia, os quais sero tratados em maior detalhe nos prximos
captulos deste livro (Mix et al., 2006). No entanto, temos que ter
em mente que a astrobiologia ainda uma rea muito recente e
em construo, sendo que novos temas podem ser incorporados a
essa lista, que no tem pretenso de ser completa.

Cosmologia e astrofsica
O Universo tem uma idade aproximada de 13,7 bilhes de
anos e, desde o evento do Big Bang (Figura 1.2), vem evoluindo,
mudando com o tempo. A gravidade moldou suas grandes estru-
turas, desde a geometria do Universo at a forma das galxias e
estrelas. A mesma gravidade serve como fonte de energia para os
processos de fuso nuclear estelar que produziram praticamente
todos os elementos qumicos que conhecemos em nossa tabela
peridica. Dessa maneira, o entendimento dos mecanismos fsicos
do Universo essencial para entendermos a origem e a modifica-
o da matria-prima para os planetas e para a vida.

31
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Astroqumica
Os ncleos produzidos no Big Bang e nas estrelas se distribuiriam
pelo Universo com o tempo, aumentando a complexidade qumica
existente. Conforme a temperatura mdia do Universo foi diminuindo
esses ncleos capturaram eltrons, formando os tomos, os quais co-
mearam a interagir por foras eletrostticas, ou seja, cargas positivas
e negativas se atraindo e repelindo, formando assim as ligaes qu-
micas e as molculas. Como a densidade mdia do Universo muito
baixa, ordens de grandeza mais baixas que s que estamos acostu-
mados na Terra, essas reaes acontecem lentamente, demorando
at centenas de milhares de anos. Hoje somos capazes de detectar
centenas de diferentes molculas no espao, inclusive orgnicas, es-
palhadas por todo meio interestelar, especialmente concentradas em
regies de maior densidade, como as nuvens moleculares ou discos
protoestelares. Essas molculas forneceram a matria-prima para que
a qumica prebitica ocorresse em nosso planeta e a vida surgisse.

Figura 1.2. A histria de nosso Universo, do Big Bang at o surgimento da vida.


Fonte: Latin Stock

Formao planetria
Essa uma rea da astronomia em grande expanso, pois at
pouco tempo atrs conhecamos muito pouco sobre o processo de
formao planetria. Ser que toda estrela possui planetas?
Nas ltimas duas dcadas, o nmero de exoplanetas descober-
tos tem aumentado rapidamente graas aos avanos tecnolgicos;

32
Estudando a vida no Universo

agora j podemos comparar os resultados de nossos modelos te-


ricos e computacionais com casos reais para sabermos se planetas
parecidos com a Terra so comuns no Universo. Atualmente, os
dados parecem indicar que praticamente toda estrela formada
junto com um sistema planetrio, o que aumenta muito a chance
de existirem corpos celestes com condies de habitabilidade.

Qumica prebitica e origem da vida


Aps a formao dos elementos qumicos e de algumas mo-
lculas no meio interestelar, o passo seguinte foi a formao das
molculas-base para a vida: as protenas, lipdeos, cidos nuclei-
cos entre outros. Entretanto, esse processo de formao de mo-
lculas complexas, com funes biolgicas como armazenamen-
to de informao qumica e de energia, estrutura etc., no est
completamente compreendido. E como essas molculas se or-
ganizaram em sistemas qumicos autossuficientes, capazes de se
multiplicarem e evolurem (o que j podemos chamar de vida,
segundo algumas definies), um dos temas mais desafiadores
na pesquisa sobre a origem da vida. Acredita-se que minerais pre-
sentes na superfcie da Terra catalisaram essas reaes e que exis-
tem diversos ambientes no planeta onde a vida poderia ter surgido.
Certamente esse processo teve diversas etapas que ainda no fo-
ram bem elucidadas pela cincia.

Evoluo
Todas as formas de vida que conhecemos no planeta tm
uma propriedade em comum: so capazes de se reproduzir (ao
menos como populao), gerando descendentes com caracters-
ticas ligeiramente diferentes das da gerao parental (devido, por
exemplo, s mutaes espontneas ou induzidas), o que leva a
um sucesso reprodutivo diferencial, ou seja, alguns indivduos
dessa gerao conseguiro deixar mais descendentes que outros,
fixando, assim, as caractersticas na populao. Essa a base para
o processo de evoluo darwiniana descendncia com modifi-
cao , que levou a vida do primeiro ser vivo biodiversidade

33
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

que vemos atualmente. Hoje discutimos a universalidade desse


processo: toda forma de vida deve passar por um processo de evo-
luo darwiniana? Mesmo em outros planetas, talvez com condi-
es muito diferentes e at com sistemas vivos muito diferentes
do que conhecemos?

Fsseis: a histria da vida em nosso planeta


Entender a vida passada na Terra fundamental para compre-
endermos quais foram os primeiros seres vivos que habitaram o
planeta, que nos do pistas sobre a origem da vida e sobre como
a evoluo na Terra de fato ocorreu (Figura 1.3). Descobrir sinais
de vida passada igualmente importante para a busca de sinais de
vida fora da Terra, principalmente se for uma vida extinta nossas
sondas em Marte, como a Curiosity, tm uma chance muito maior
de encontrar os sinais de uma vida antiga no planeta, quando es-
teve em condies mais amenas do que as atuais.

Figura 1.3. Alguns dos fsseis mais antigos da Terra, encontrados na regio
de Pilbara, no oeste da Austrlia, de bactrias que viviam em uma poca na
qual no existia oxignio na atmosfera (cerca de 3,4 bilhes de anos atrs).
Talvez, se encontrarmos sinais de vida em Marte, eles sejam parecidos com
esses microfsseis. Fonte: D. Wacey/uwa

34
Estudando a vida no Universo

Vida em ambientes extremos da Terra


O Universo um lugar de extremos muito frio ou muito quente,
ausncia de gua, forte incidncia de radiao, condies qumicas
adversas, como pH alto ou baixo ou mesmo a presena de elemen-
tos txicos (Figura 1.4). Para compreender os tipos de organismo

Frio Seco

cido Alcalino

Radiao Alta Presso


Figura 1.4. Alguns dos ambientes extremos de nosso planeta hoje
praticamente toda a superfcie (at alguns quilmetros de profundidade) da
Terra habitada por micro-organismos, alguns fazendo uso de estratgias
de sobrevivncia muito peculiares. Fonte: Shutterstock / Getty Images /
Wikimedia Commons

35
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

capazes de sobreviver e mesmo crescer sob essas condies (e


quais seus mecanismos biolgicos adaptados para isso), os astro-
bilogos estudam na Terra ambientes anlogos aos extraterrestres,
usando-os como modelo, por meio da microbiologia ambiental e de
experimentos em laboratrio, levando os micro-organismos terres-
tres a condies simuladas, por exemplo, da superfcie marciana.
O mesmo vlido para compreendermos as condies de vida da
Terra primitiva, muito diferentes de nosso planeta atualmente.

Busca de vida fora da Terra: no Sistema Solar e alm


Uma das grandes curiosidades da humanidade diz respeito
possibilidade de vida fora da Terra, e a astrobiologia utiliza fer-
ramentas e mtodos da cincia moderna para tentar no apenas
detectar a presena de vida extraterrestre, mas tambm para en-
tender seu funcionamento, sua origem e evoluo. Ser que toda
forma de vida deve ser parecida com a de nosso planeta? Para
isso, tenta-se entender como os planetas funcionam, procurando
bons candidatos para abrigar vida, planetas com condies de
habitabilidade. Da mesma maneira, o estudo da vida em ambien-
tes extremos da Terra e o estudo da paleobiologia a vida na Terra
primitiva fornece informaes sobre qual a melhor forma de
procurar sinais da presena de organismos vivos. E programas de
busca de vida esto em andamento, seja em nosso Sistema Solar
ou em exoplanetas.

Vida extraterrestre inteligente?


Se a existncia de vida extraterrestre, de forma geral, j um
tema bastante intrigante humanidade, a possibilidade de vida
inteligente e com tecnologia para se comunicar tem ainda maior
impacto. Apesar de a astrobiologia usar micro-organismos como
seus principais modelos, diversos grupos procuram sinais de co-
municao vindos do espao, como, por exemplo, o projeto SETI
(Busca por Inteligncia Extraterrestre, na traduo para o portu-
gus), que esquadrinha o Universo procurando sinais transmitidos
por outras civilizaes em rdio ou pulsos laser. Diferentemente

36
Estudando a vida no Universo

da ufologia, esses grupos fazem uso do mtodo e rigor cientficos


na tentativa de responder a essa intrigante pergunta. Apesar de
ser menos provvel a existncia de vida inteligente, tecnolgica
e comunicante do que a de micro-organismos, essas civilizaes
poderiam mandar sinais mais claros de sua existncia e, portanto,
seriam mais facilmente encontradas. Essa discusso normalmente
vem acompanhada de implicaes sociais, polticas e religiosas
(Dick, 2007).

O futuro da vida
Atualmente, discute-se muito sobre mudana climtica, aque-
cimento global e como a humanidade est alterando o planeta e
quais as implicaes em longo prazo (Figura 1.5). Em uma pers-
pectiva mais ampla, a astrobiologia se prope a entender como
a vida se adapta s alteraes do planeta com o tempo, seja em
consequncia das alteraes produzidas pela prpria vida, pelos
fenmenos planetrios (tectonismo, vulcanismo etc.), pela evolu-
o da estrela hospedeira ou por outros fenmenos astrofsicos.
Entender quais so esses possveis fenmenos, quais suas interco-
nexes, quais as consequncias para o planeta e para a vida de
extremo interesse da cincia, mas tambm tem aplicaes prti-
cas, pois pode permitir maior controle do impacto humano sobre
a Terra, minimizando os efeitos deletrios.

O futuro da astrobiologia uma nova cincia?


Ainda uma discusso se a astrobiologia evoluir para se
tornar uma cincia como definida do ponto de vista epistemo-
lgico. No entanto, inegvel que, apesar dos poucos anos de
existncia, a astrobiologia se mostrou capaz de produzir resulta-
dos cientficos importantes. Diversas pesquisas, claramente feitas
com motivao e enfoque astrobiolgicos, so reconhecidas pela
comunidade acadmica, por exemplo, pelas publicaes em re-
vistas cientficas de grande impacto, como Nature e Science.
Cada vez mais pesquisadores tm se definido como astrobilo-
gos, e ser apenas uma questo de tempo para sabermos se a

37
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

rea ir se consolidar como cincia ou no. De uma forma ou


de outra, resultados de importncia cientfica esto sendo produ-
zidos nesse processo, o que j pode definir essa atividade como
vlida. Alm disso, seu grande apelo popular tem o potencial
para engajar o pblico na cincia, encorajando muitos jovens a
seguirem a carreira acadmica, o que, por si s, j uma contri-
buio significativa.

Astrobiologia no Brasil
Surgindo em seu formato atual na Nasa, em 1998, a astro-
biologia comeou a dar sinais no Brasil no incio dos anos 2000
(Rodrigues, 2012). Mas, muito antes disso, pesquisadores brasilei-
ros j estavam envolvidos com alguns dos temas que foram poste-
riormente compilados na astrobiologia.
Desde os anos 1980, pesquisas em qumica prebitica e ori-
gem da vida, por exemplo, vm sendo conduzidas, tendo como
pioneiro Ricardo C. Ferreira, que foi professor do Departamento de
Qumica da Universidade Federal de Pernambuco.
A busca de vida fora da Terra foi estudada, do ponto de vista
histrico, por Eduardo Dorneles Barcelos, em seu mestrado e dou-
torado na Universidade de So Paulo, sob orientao do professor
Shozo Motoyama, no final da dcada de 1980 e incio da de 1990
(Barcelos, 2001).
Antes disso, em 1958, o bilogo Flvio Pereira, formado em
Histria Natural pela Universidade de So Paulo e professor do
ensino mdio, havia escrito seu livro intitulado Introduo as-
trobiologia, em que compilava grande parte do que se acreditava
na poca sobre a existncia de vida fora da Terra (Pereira, 1958).
Escrito antes das misses de explorao espacial, quando no ha-
via uma separao clara entre astrobiologia e ufologia, o livro traz
conceitos at hoje discutidos pela astrobiologia, porm misturados
a temas hoje considerados menos cientficos, como a descrio de
habitantes de outros planetas. Pereira tornou-se, posteriormente,
pioneiro da ufologia no pas, distanciando-se do enfoque da astro-
biologia moderna.

38
Estudando a vida no Universo

Figura 1.5. Um planeta em constante evoluo a Terra vem passando por


mudanas de temperatura, composio qumica da atmosfera e dos oceanos,
radiao solar. Como essas alteraes mudam a vida do planeta e como a
vida responde e interfere na evoluo do prprio planeta? Como isso definir
o futuro da vida? Projeto e superviso: Augusto Damineli / Ilustrao: Paulo
Roberto F. Santiago

Ecosfera ou Zona Habitvel

Figura 1.6. Representao grfica da ecosfera, termo equivalente ao que hoje


chamamos de zona de habitabilidade estelar, apresentado por Flvio Pereira
em seu livro Introduo astrobiologia. Fonte: The Journal of Astronautics,
Summer, 1956

A astrobiologia comeou a se institucionalizar no Brasil a


partir de 2006, com a organizao do I Workshop Brasileiro de
Astrobiologia, que reuniu pesquisadores de diferentes reas de
atuao e permitiu a criao dos primeiros grupos de pesquisa
interdisciplinares na rea. Se antes as pesquisas em astrobiologia

39
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

eram feitas isoladamente, aps esse encontro, iniciou-se uma cola-


borao mais efetiva e uma formalizao de um grupo de pesqui-
sadores trabalhando na rea em conjunto (Rodrigues et al., 2012).
Diversos projetos de pesquisa foram criados aps essa data,
e, em 2009 e 2010, os primeiros doutorados tendo astrobiologia
como tema central foram defendidos por Douglas Galante (2009),
em astronomia (usp), e Ivan Paulino-Lima (2010), em biologia (ufrj).
Em 2010 foi iniciada a instalao do Laboratrio de Astrobiologia,
ou simplesmente AstroLab, na Universidade de So Paulo, em um
esforo conjunto de pesquisadores de vrios institutos e universida-
des para estudar a biodiversidade de nosso planeta e compreender
suas conexes com os sistemas planetrios, astronmicos e avanar
no entendimento do fenmeno da vida no Universo. Um dos prin-
cipais equipamentos desenvolvidos pelos pesquisadores brasileiros
uma cmara capaz de simular ambientes espaciais e planet-
rios, permitindo diversos estudos dentro da rea de astrobiologia e
cincias planetrias. O laboratrio teve financiamento de diferentes
fontes, tais como Programa Antrtico Brasileiro (Proantar cnpq), a
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (fapesp) e
o Instituto Nacional de Estudos do Espao (INEspao) (Rodrigues et
al., 2012).
Em 2011, esse laboratrio ganhou um grande impulso com a
criao do Ncleo de Pesquisa em Astrobiologia (nap-Astrobio),
financiado principalmente pela Universidade de So Paulo e da
fapesp, permitindo, por exemplo, que fosse realizada a primeira
Escola Internacional de astrobiologia no pas (Spasa, 2011), com
participantes de todo o mundo, alm de possibilitar que o grupo
de pesquisa pudesse se associar como parceiro internacional do
Instituto de Astrobiologia da Nasa (nai), alm da Rede Europeia
de Associaes de Astrobiologia (eana). Esses esforos esto per-
mitindo que o Brasil se torne um importante e atuante membro
da comunidade cientfica internacional em Astrobiologia, com o
intercmbio de alunos, pesquisadores e conhecimento, garantin-
do, com o tempo, a fixao da astrobiologia como uma rea de
pesquisa cientfica reconhecida e capaz de produzir resultados de

40
Estudando a vida no Universo

interesse acadmico e social. A soma desses esforos coloca os


pesquisadores brasileiros, cada vez mais, em condies de contri-
buir firmemente para responder algumas das questes mais bsi-
cas da humanidade sobre a vida e o nosso lugar no Universo.

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ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

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42
A ORIGEM DOS
ELEMENTOS
Captulo 2
Roberto D. Dias da Costa e Jorge Ernesto Horvath

Formao do Universo e nucleossntese primordial

Origem do Universo
A curiosidade fundamental de saber de onde viemos intriga
a humanidade desde a aurora da civilizao. Todos os povos da
antiguidade tinham seus mitos cosmognicos que descreviam a
criao do mundo, mas foi apenas com a evoluo das ideias da
fsica no incio do sculo xx, em particular com a elaborao da
teoria da relatividade geral por Albert Einstein (com ilustres pre-
decessores como Newton), que foi possvel formular uma teoria
que descrevesse a origem e a evoluo do Universo tal como as
compreendemos hoje.
Ao longo do ltimo sculo, a base terica da relatividade,
combinada com a fsica nuclear e a fsica de partculas elemen-
tares, permitiu a interpretao correta de resultados experimentais
de distintas origens, tais como a datao de rochas e de meteoritos,

43
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

a composio qumica do Sol e das estrelas e a expanso do


Universo. Juntos, esses resultados permitiram determinar a idade
da Terra, do Sol e, finalmente, do prprio Universo. Hoje se sabe
que, em certo momento, todo o contedo do Universo estava em
um estado muito denso e quente que se expandiu subitamente.
este processo de expanso rpida que se denomina Big Bang e
marca o surgimento do Universo como o conhecemos e ocorreu
h cerca de 13,7 bilhes de anos. Desde ento, o Universo con-
tinua a se expandir e a esfriar, j de forma bastante anloga a um
balo com gs, onde as leis de conservao foram a queda da
temperatura conforme aumenta o volume do recipiente.
Existem evidncias observacionais muito fortes que confir-
mam essa teoria, as mais importantes so a expanso propriamen-
te dita, a chamada radiao csmica de fundo, e as abundncias
de hlio, ltio e deutrio (estas ltimas bem mais sensveis ex-
panso) medidas em estrelas de distintas idades. A expanso do
Universo uma das possveis solues matemticas da teoria da
relatividade e foi comprovada nos anos 1920 atravs de observa-
es astronmicas, atribudas inicialmente a Hubble e Humason,
e depois confirmadas e refinadas por muitos grupos independen-
tes. Na verdade, os modelos mais favorecidos so os chamados
modelos de Friedmann, dado que admitem a expanso, embora o
prprio Einstein os rejeitasse veementemente antes dos trabalhos
de Hubble. Atualmente existem medidas muito precisas da taxa
de expanso do Universo, e os resultados so fundamentais para
testes e validao das teorias cosmolgicas modernas. Entre es-
sas relquias cosmolgicas, o tnue brilho do cu detectado na
regio das micro-ondas, a chamada radiao csmica de fundo,
representa o que sobrou na forma de energia nos estgios ini-
ciais do Universo, quando os tomos estveis se formaram a par-
tir do esfriamento da radiao de alta energia que originalmente
preenchia todo o volume do Universo, no processo de converso
de energia em matria descrito pela conhecida expresso da rela-
tividade E=mc2. Sua deteco, em 1964, proporcionou uma das
mais slidas evidncias da validade da teoria do Big Bang, j que

44
A origem dos elementos

na cosmologia do Big Bang existe fatalmente um instante no qual


a radiao escapa livremente. Esse momento acontece quando a
radiao desacopla da matria, ou seja, a taxa de interao dos
ftons com ela se torna pequena, e as distncias mdias entre uma
interao e outra se tornam muito grandes. O momento do desa-
coplamento coincide com o da recombinao de ons e eltrons
e com a formao dos tomos neutros, que possvel com a di-
minuio da temperatura mdia para cerca de 3.000 K. A menor
densidade eletrnica diminui as taxas de espalhamento Compton
de ftons sobre eltrons, permitindo que a luz agora possa viajar
distncias comparveis com o raio do Universo, o qual se torna,
efetivamente, transparente radiao eletromagntica.
J a determinao das abundncias de hlio, deutrio e ltio
servem como termmetro de uma poca anterior, a chamada era da
nucleossntese primordial, quando a temperatura em queda permi-
tiu a montagem dos ncleos a partir dos prtons e nutrons livres.
Em particular, nas estrelas mais antigas, a determinao do hlio
fornece uma indicao clara de que parte dele no foi fabricada
pelos processos de nucleossntese estelar, mas durante a nucleossn-
tese primordial, nas fases iniciais de existncia do Universo.

Formao dos prtons, nutrons e partculas elementares


As fases mais primordiais do prprio Big Bang so ainda mo-
tivo de muita discusso. Acredita-se que quando o Universo tinha
meros 10-37 segundos* de existncia houve uma fase de rapids-
sima expanso do seu volume, com consequente diminuio na
densidade e na temperatura, um processo denominado inflao
csmica. Ao final desse perodo, a densidade de energia havia
baixado o suficiente para que as partculas elementares fossem
injetadas a partir do decaimento do vcuo (que originalmente

* Notao exponencial: 10-1 significa 0,1; 10-2 significa 0,01; 10-3 significa
0,001 e assim sucessivamente. Portanto, 10-37 significa 0,000...0001 com 36
zeros depois da vrgula, antes do algarismo 1. De forma anloga, 101 = 10;
102 = 100; 103 = 1000; 106 = 1.000.000 e assim por diante.

45
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

detinha essencialmente toda a energia do Universo): eltrons,


mons, tons, neutrinos, quarks e suas respectivas antipartculas.
Esse processo concluiu-se cerca de 10-11 segundos aps o incio
do Big Bang. Antes desse momento, o Universo se encontrava em
um domnio totalmente desconhecido, em que at a gravitao
(geralmente ignorada nos processos de alta energia nos laborat-
rios) deve ter tido uma influncia comparvel s outras interaes
elementares. Nesse regime, a procura por teorias qunticas da gra-
vitao domina a atividade dos fsicos tericos. Felizmente, a in-
fluncia dessas incertezas no problema da origem dos elementos
ocorrida quando o Universo era muitssimo mais frio e velho no
grande, e poderemos ignor-la em nossa discusso.
Com a progressiva expanso e o contnuo esfriamento, o am-
biente do Universo primitivo tornou-se propcio ao surgimento das
partculas constituintes dos ncleos ordinrios pela combinao
de distintos tipos de quark. Assim, quando o Universo tinha 10-6
segundos de idade (e uma temperatura de 1013 K) formaram-se os
prtons e nutrons, tijolos que constituem todos os tomos. Esse
instante na histria do Universo o primeiro no qual as componen-
tes so ordinrias, isto , eltrons, neutrinos, mons, prtons e
nutrons so sujeitos hierarquia de foras que conhecemos bem
por serem estudadas nos laboratrios h pelo menos um sculo.

Nucleossntese primordial: do hidrognio ao berlio


J demonstramos que, medida que a evoluo do Universo
primitivo prosseguia, expandia-se o volume e caa a temperatura.
Cerca de 3 minutos aps o instante inicial, a temperatura havia
cado para cerca de um bilho de graus, baixa o suficiente para
que nutrons e prtons pudessem se combinar, iniciando, assim, a
chamada nucleossntese primordial. O primeiro ncleo mais pesa-
do a ser sintetizado foi o deutrio, um istopo de hidrognio cujo
ncleo tem um prton e um nutron, sendo, porm, muito pouco
estvel. Deve-se notar, todavia, que a maioria dos prtons ficou
livre, sem se combinar com nutrons, e mais tarde dariam origem
aos tomos de hidrognio. A razo para isso bastante simples:

46
A origem dos elementos

pode-se calcular a densidade de ambos os ncleons usando as


mesmas equaes da qumica de laboratrio. Assim, chega-se
de imediato ao resultado da existncia de 1 nutron por cada 7
prtons no momento da nucleossntese. Rapidamente, um nu-
tron e um prton se combinaram e praticamente a totalidade deles
depois se combinou para formar hlio. Enquanto isso, 6 de cada
7 prtons ficaram sem emparelhamento (dois prtons no podem
se ligar; se pudessem, as estrelas no existiriam, j que a fuso de
prtons acabaria com elas em tempos curtssimos). Assim, 75% da
nucleossntese primordial deve ter formado hidrognio, e 25% h-
lio (com fraes pequenas de outros elementos). Essa predio das
fraes relativas baseada em princpios fundamentais importante
para justificar a confiana na cosmologia do Big Bang.
A sequncia de reaes de fuso nuclear continuou aconte-
cendo medida que o Universo se expandia e esfriava, surgindo,
em seguida, os ncleos de hlio: a partir do deutrio combinado
com um prton, formaram-se os ncleos de 3He, compostos de
dois prtons e um nutron, e dois ncleos de 3He formaram 4He
(composto de dois prtons de dois nutrons), liberando, nesse
processo, dois prtons. A partir dos ncleos de deutrio e de h-
lio, em princpio poderiam se formar elementos mais massivos,
porm uma caracterstica intrnseca dos ncleos atmicos atra-
palhou essa sequncia: no existem ncleos estveis compostos
por 5 ou 8 ncleons (ou seja, prtons e nutrons). Em funo
disso, os elementos estveis a serem criados em seguida foram
o berlio e o ltio. O 7Be uma combinao de 3He com 4He,
e, finalmente, o 7Li uma combinao do 7Be com um eltron.
Temos aqui uma predio espetacular do Big Bang: as reaes
de fuso pararam pelo efeito da expanso, j que os ncleos re-
cm-criados no puderam encontrar parceiros para continuar e
produzir ferro (o ncleo mais ligado). Assim, a fuso de elementos
mais pesados foi impedida (chegando apenas at o ltio) por duas
razes combinadas: a inexistncia dos ncleos estveis entre 5 e
8 ncleons e a expanso que diluiu a densidade e impediu que
a fuso continuasse. Uma rede de clculos detalhados confirma

47
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

o que acabamos de expor com grande preciso. J haviam se


passado cerca de 20 minutos desde o Big Bang.
A evoluo do Universo prosseguiu da em diante com a for-
mao das grandes estruturas: com o prosseguimento da expanso,
a matria primordial, que nos instantes iniciais era estritamente
homognea, passou a acomodar-se onde pequenas irregularidades
na densidade comearam a crescer, aumentando assim seu pr-
prio potencial gravitacional. Mais matria se aglomerando impli-
cou ainda mais matria caindo at se formarem grandes estruturas
que deram origem aos aglomerados de galxias e s galxias indi-
vidualmente. dentro desse contexto que o Universo acende os
primeiros fornos nucleares que permitem continuar a nucleossn-
tese at completar a tabela peridica: as estrelas.

Evoluo estelar e formao dos elementos leves

Evoluo das estrelas de massa pequena e intermediria


O critrio de classificao das massas estelares relativo ao
Sol e as massas so expressas em relao massa dele, que de
2 1030 kg. Define-se como estrela de baixa massa aquela cuja
massa est entre 0,08 e 0,8 vezes a massa do Sol, e como de massa
intermediria aquelas que esto na faixa de 0,8 a 8 massas solares.
Objetos com massas menores que 0,08 vezes a do Sol no so
capazes de fazer fuso nuclear do hidrognio e no contribuem,
portanto, para a sntese dos elementos qumicos. J as estrelas com
mais de 8 vezes a massa do Sol, as chamadas estrelas massivas,
tm ciclo evolutivo distinto das demais, que termina com a explo-
so de uma supernova, como ser visto mais adiante.
Dentro do contexto de explicar a origem dos elementos qu-
micos, pouco precisa ser dito em relao s estrelas de baixa
massa. Devido lentido de seu ciclo evolutivo, aquelas for-
madas logo que as prprias galxias se formaram ainda esto
na sequncia principal, fase na qual produzem energia pela
fuso termonuclear de hidrognio, que se transforma em hlio
em um processo que libera grandes quantidades de energia.

48
A origem dos elementos

Essas estrelas esto produzindo hlio, porm esse produto ainda


est no seu ncleo; portanto, no contribui para a evoluo qu-
mica do meio interestelar e, consequentemente, das geraes
sucessivas de estrelas.
O mecanismo mais comum de produo de energia na se-
quncia principal o chamado ciclo prton-prton, descrito
pela seguinte cadeia de reaes nucleares (Figura 2.1):
p + p 2H + e+e
p + 2H 3He + g
3
He + 3He 4He + p + p
Figura 2.1. Ciclo prton-prton. As duas primeiras reaes ocorrem duas vezes.
Tem-se, portanto, como entrada, 6 prtons; e, como sada, um ncleo de hlio,
dois prtons, um psitron, um neutrino e energia

Alm do ciclo prton-prton, as estrelas tambm podem pro-


duzir energia pelo ciclo cno, no qual tomos de carbono, nitro-
gnio e oxignio j existentes no ncleo estelar atuam de forma
anloga a catalisadores em reaes qumicas, sua composio no
se altera ao longo da cadeia de reaes. A figura abaixo mostra a
cadeia de reaes do ciclo cno. Deve-se notar que o ciclo conso-
me prtons e produz tomos de hlio, os demais elementos per-
manecem inalterados (Figura 2.2).

12
C + p 13N + g
13
N 13C + e+ + e
13
C + p 14N + g
14
N + p 15O + g
15
O 15N + e+ + e
15
N + p 12C + 4He

Figura 2.2. Ciclo cno. A sequncia de reaes usa ncleos de carbono


preexistentes, produz temporariamente nitrognio e oxignio, porm ao final
restitui-se o carbono inicial e os produtos so ncleos de hlio, psitrons,
neutrinos e energia

49
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

A evoluo prossegue e, se a estrela tiver massa suficiente,


ocorrer a ignio do hlio no ncleo estelar, que sofrer fuso nu-
clear transformando-se em carbono atravs do chamado processo
triplo-alfa, descrito pela reao:

3 4He 12C + e+ + e- + g

Neste ponto que podemos perceber como notvel a se-


quncia de eventos da nucleossntese para a vida, especialmente
a humana. J apontamos que a expanso do Universo impediu
que um elemento como o carbono fosse sintetizado, porm a vida
tal como a conhecemos seria impossvel sem carbono. Assim,
e dado que as estrelas so as nicas responsveis pela gran-
de quantidade de carbono existente no Universo, poderamos
pensar que a reao triplo-alfa ilustrada antes relativamente
simples e comum. Mas no o caso: escrever 34He uma
forma muito simplificada de dizer que essa reao de trs cor-
pos precisa de uma fuso inicial de dois hlios e tempo para um
terceiro hlio se juntar a eles. Porm, o estado formado 8Be
instvel, embora sua vida seja longa o suficiente para permitir a
existncia de 1 ncleo de berlio por bilho de ncleos de 4He.
Mas ainda a reao com outro 4He para formar 12C proibida
pelas leis da mecnica quntica. Assim, o astrnomo ingls Fred
Hoyle insistiu na existncia de um estado excitado (de maior
energia) do carbono, a partir do qual o carbono ordinrio seria
produzido por decaimento do primeiro. importante destacar a
audcia dessa proposta, baseada na abundncia do carbono no
Universo que, para Hoyle, era prova incontestvel do canal de
produo que ele imaginava. Esse estado foi medido pouco tem-
po depois, exatamente onde devia estar, e constatou-se que
seu decaimento gama produz essencialmente todo o carbono do
Universo. Abria-se o caminho para a compreenso dos ciclos
nucleares superiores que do origem boa parte da tabela peri-
dica e, posteriormente, anlise das exploses estelares decor-
rentes dessa evoluo final.

50
A origem dos elementos

Cadeias de reaes nucleares e nucleossntese estelar: do


carbono ao ferro
O ciclo evolutivo de uma estrela prossegue em funo de sua
massa. Caso a estrela esteja isolada e sua massa no passar de 8
massas solares, o processo de nucleossntese se encerra no car-
bono. Porm, se essas estrelas pertencerem a sistemas binrios,
possvel que troquem massa e, nos estgios finais desses sistemas,
com a temperatura no ncleo estelar podendo subir at um bilho
de kelvins, uma cadeia de reaes de nucleossntese pode ocor-
rer. Essas reaes baseiam-se na chamada captura alfa, ou seja,
na captura de um ncleo de hlio (ou partcula alfa, como era
chamado antigamente) por outro ncleo, ou ento pela captura de
nutrons isolados, produzindo, assim, um elemento qumico de
massa atmica maior a partir de dois menores.
Esses processos se encerram ao serem sintetizados os elemen-
tos do grupo do ferro: 44Sc, 48Ti, 52Cr, 56Fe e outros que tm estrutura
nuclear fortemente ligada, de modo a impedir a fabricao de n-
cleos mais pesados por fuso nuclear, pois deixa de ser exotrmica
para ncleos mais pesados que estes.

Os mecanismos de enriquecimento do meio interestelar


importante notar que os processos de nucleossntese estelar
no ocorrem em todo o corpo de uma estrela, mas apenas no seu
ncleo, que uma frao muito pequena do volume total. No caso
do Sol, por exemplo, o dimetro total de 1,4 milhes de km,
porm o ncleo solar, onde est agora ocorrendo a fuso nuclear
de hidrognio responsvel por toda a produo de energia, tem o
dimetro da Terra, cerca de 12 mil km. Isso anlogo para todas
as estrelas: as espcies qumicas produzidas por nucleossntese
ficam presas no ncleo estelar at a concluso do ciclo evolutivo.
Ao final do ciclo, distintos mecanismos podem levar ejeo do
material recentemente produzido para o meio interestelar, onde
enriquecer elementos qumicos das futuras geraes de estrelas.
Quando uma estrela chega ao final do seu ciclo, contrai seu
ncleo e expande seu volume at o ponto em que a superfcie

51
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

estelar se afasta com tal velocidade do centro que a estrela per-


de todo o seu envoltrio externo, ejetando uma casca, restando
apenas o antigo ncleo estelar, que agora se constitui em uma
categoria muito particular de estrela, a an branca. O antigo en-
voltrio estelar se expande indefinidamente a acaba se diluindo no
meio interestelar em uma escala de tempo relativamente pequena,
entre 30 e 50 mil anos. Por razes histricas, esses envoltrios so
chamados nebulosas planetrias objetos ricos em elementos
qumicos produzidos por suas estrelas progenitoras.
O material produzido em um ncleo estelar ejetado na for-
ma de exploses, que podem ser oriundas de dois tipos bsicos de
eventos: as novas e as supernovas. As novas so exploses super-
ficiais em estrelas pertencentes a sistemas binrios, seguramente
decorrentes do acmulo de hidrognio fornecido pela compa-
nheira binria que fusiona subitamente quando as condies so
atingidas na base da camada acertada. Este pode ser um fenme-
no recorrente: um mesmo sistema binrio pode sofrer exploses
peridicas e cada uma delas joga para o meio interestelar mate-
rial quimicamente enriquecido na exploso e tambm nas estrelas
progenitoras. J uma supernova (seja do tipo II ou outros) um fe-
nmeno completamente distinto, resultante do colapso do ncleo
de uma estrela massiva (com mais de oito massas solares), com
a consequente ejeo explosiva de seu envoltrio externo, e que
jamais acontece de novo porque a estrela se desmancha no ato;
ou tambm resultado de uma exploso termonuclear de uma an
branca (Tipo Ia). Novas e supernovas so fenmenos de natureza
distinta, porm em ambos o material ejetado em alta velocidade
e se dispersa no meio interestelar, vindo tambm a enriquec-lo.

Nucleossntese interestelar: um caso muito particular


Apenas traos dos elementos qumicos ltio, berlio e boro
foram produzidos no Big Bang. Alm disso, esses elementos no
so produzidos nas estrelas, ao contrrio, so destrudos nos inte-
riores estelares pelos mesmos processos que levam sntese dos
demais elementos. A principal fonte para eles um mecanismo

52
A origem dos elementos

denominado espalao, que ocorre no meio interestelar. Esse


processo consiste na coliso de raios csmicos contra os ncleos
atmicos do material existente no meio interestelar. Raios csmi-
cos, apesar do termo, no so radiaes eletromagnticas, mas,
sim, partculas que viajam em alta velocidade no disco galctico.
Eles se compem de prtons, eltrons, ncleos de hlio e outros
mais pesados que so acelerados pela exploso de supernovas ou
por outros eventos de alta energia. Essas colises tm energia sufi-
ciente para arrancar prtons e nutrons do ncleo-alvo, produzin-
do, assim, distintos elementos. Esse tipo de processo no ocorre
somente no meio interestelar, mas tambm na atmosfera da Terra e
nos primeiros metros de profundidade da crosta terrestre.
A espalao o processo responsvel pela produo de prati-
camente todo o ltio, berlio e boro existentes, j que apenas uma
frao do 7Li e do 7B foi produzida no Big Bang. O mecanismo de
produo desses tomos a fragmentao, pelos prtons de alta
energia, de ncleos de carbono, nitrognio e oxignio existentes
no meio interestelar, que constituem boa parte dos raios csmicos.

Supernovas e formao dos elementos pesados

Evoluo das estrelas massivas


Estrelas massivas, entendidas como aquelas cuja massa, no
momento de sua formao, no mnimo 8 vezes a do Sol, tm
trajetrias evolutivas distintas daquelas de pequena massa, con-
cluindo seu ciclo de existncia com a exploso de uma supernova.
Um evento que, mesmo sendo catastrfico, proporciona o surgi-
mento de todos os elementos massivos da tabela peridica, com
massas atmicas maiores que a do ferro. Essa fronteira de 8 massas
solares, na verdade, aproximada, o limite depende no apenas
da massa, mas da composio qumica da estrela.
O primeiro ponto a destacar que estrelas massivas tm ciclos
evolutivos muito rpidos. Enquanto o Sol existir como uma estre-
la da sequncia principal por cerca de 10 bilhes de anos, uma
estrela que tenha 25 massas solares ter um ciclo evolutivo de

53
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

aproximadamente 7 milhes de anos. Isso acontece porque,


medida que aumenta a massa de uma estrela, sua luminosidade
aumenta muito mais, portanto, o combustvel nuclear se esgota
bem mais rpido. Poderamos dizer que existe um metabolismo
estelar: a taxa de consumo (fuso) do combustvel estelar aumen-
ta muito com a massa da estrela e assim este se esgota antes, en-
curtando a vida estelar.

Tipos de supernova
Depois de passar milhes de anos fusionando hidrognio, as
estrelas ficam sem condies de continuar esse processo, em par-
ticular nas estrelas massivas. O chamado ciclo triplo-alfa do hlio
comea antes do hidrognio se exaurir totalmente. Existe, assim,
uma modificao da estrutura estelar que leva queima de hlio
em carbono no centro, enquanto a fuso do hidrognio continua
em uma camada concntrica. Outros ciclos nucleares disparam
sucessivamente de forma anloga at a estrela finalizar com um
caroo suportado pela presso quntica dos eltrons (de longe,
maior que a presso do gs qual estamos acostumados) que no
dependem da temperatura mas da compresso.
Estudos detalhados mostram que as estrelas com 8 a 10 vezes
a massa do Sol nunca chegam a ter temperaturas que permitam
os ciclos mais avanados, e culminam com um caroo composto
de oxignio-nenio-magnsio que suporta exatamente uma massa
de 1,37 vezes a massa do Sol. Ao ultrapassar esse limite, a pres-
so no suficiente, e o caroo implode, ricocheteia e expulsa as
camadas externas (mais de 6 massas solares) em um evento de-
nominado supernova por captura eletrnica. Para um observador
externo, esse evento ser quase indistinguvel do tipo comum de
supernova (tipo II), no qual o caroo conseguiu avanar na evolu-
o e acontece em estrelas de 10 at 25 ou mais massas solares.
Nesse ltimo caso, quando o ncleo de uma estrela massiva,
composto de ferro e elementos adjacentes, ultrapassar o chamado
Limite de Chandrasekhar, equivalente a 1,44 massas solares, tam-
bm a gravitao vence o limite de resistncia da prpria estrutura

54
A origem dos elementos

interna dos ncleos atmicos, e o ncleo colapsa quase em queda


livre. Toda a regio nuclear, que tinha dimenses da ordem do
dimetro da Terra, colapsa para uma estrutura com 10 a 15 km de
dimetro em poucos segundos, dissolvendo os prprios ncleos e
formando, assim, uma estrela de nutrons. Esse processo desen-
cadeia a exploso de uma supernova tipo II tradicional, isto ,
com caroo de ferro e no de O-Ne-Mg. Como consequncia do
colapso, a temperatura do ncleo chega a 100 bilhes de kelvins,
e produzida uma onda de choque que ejeta todo o volume da
estrela alm da beira do ncleo em grande velocidade. Existe um
enorme grau de sofisticao nas simulaes numricas que cal-
culam como acontece essa sequncia de eventos, e atualmente
as instabilidades hidrodinmicas so finamente estudadas para re-
velar seu papel na exploso. Porm, em todos os casos, a onda
de choque que varre as camadas alm do ncleo considerada
responsvel pela supernova. Essa potente onda de choque combi-
nada com a grande quantidade de nutrons liberada por ocasio
do colapso desencadeia a nucleossntese explosiva, o processo de
formao dos elementos pesados que ocorre apenas por alguns
minutos, durante as exploses de supernova.
Existe tambm outro caminho evolutivo totalmente diferen-
te que pode levar uma estrela a explodir como supernova: o dos
sistemas binrios compostos por estrelas relativamente massivas
muito prximas uma da outra, uma delas sendo uma an branca,
suportada pela mesma presso quntica dos eltrons (quase como
se fosse o caroo anterior, sem envelope). medida que uma de-
las evolui, pode haver troca de massa entre elas at que a an
branca ultrapasse o limite de Chandrasekhar, e como a an branca
contm uma quantidade substancial de carbono, este pode ser fu-
sionado em elementos prximos ao ferro. A liberao repentina de
energia da fuso, que acontece em menos de um segundo, leva
ocorrncia de uma supernova Tipo Ia, de origem termonuclear, e
no como produto de um colapso. Nesses eventos tambm ocor-
re nucleossntese, porm os elementos formados no so os mes-
mos de uma supernova tipo II, j que esto restritos aos nmeros

55
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

atmicos 60 ou menores, como consequncia da fsica dos pro-


cessos termonucleares.

Nucleossntese dos elementos pesados: do ferro ao urnio


A partir da formao dos ncleos de ferro, o processo de nu-
cleossntese tem uma caracterstica distinta do que ocorria com os
ncleos leves: como a fuso nuclear deixa de ser exotrmica de-
pois dessas massas atmicas, a sntese dos elementos mais pesados
deve ocorrer pela captura de nutrons e no mais por fuso. Esses
processos so divididos em dois grupos principais: os processos s
e os processos r, nos quais o ndice s significa a captura lenta de
nutrons (slow) e o r significa a captura rpida.
O processo s ocorre em ambientes em que existam nu-
trons livres, porm com densidade relativamente baixa, tipi-
camente nos ncleos de estrelas massivas. Nessas condies,
um ncleo-semente pode capturar um nutron e a seguir emitir
um eltron, o que se chama decaimento beta nuclear, antes de
capturar mais um nutron. Esse mecanismo permite a forma-
o de uma sequncia de elementos qumicos que vai do 57Fe
at o 209Bi. A cadeia de reaes abaixo ilustra uma fase desse
processo:

56
Fe + n 57Fe
57
Fe + n 58Fe
58
Fe + n 59Fe 59Co + e-
59
Co + n 60Co 60Ni + e-

Esse tipo de processo pode prosseguir at a sntese do 209Bi.


Todas as reaes seguintes resultam em istopos instveis que de-
caem novamente no bismuto. Assim, os elementos radioativos de
grande massa, tais como trio ou urnio no podem, pela natu-
reza do processo s, ser produzidos por esse caminho. A nucleos-
sntese dos elementos naturais mais massivos requer uma fonte
muito mais abundante de nutrons, de modo que sucessivos de-
les sejam capturados pelo ncleo-semente antes que ocorra um

56
A origem dos elementos

decaimento beta nuclear, ou seja, a emisso de um eltron pelo


ncleo atmico. Esse ambiente precisa de uma altssima densida-
de de nutrons e ocorre durante a exploso de uma supernova,
consistindo no processo de captura rpida de nutrons, ou pro-
cesso r. Assim, podemos dizer que o processo r resume-se em
engasgar os ncleos para faz-los capturar sequencialmente um
grande nmero de nutrons. Um esquema do funcionamento de
ambos os processos s e r mostrado na Figura 2.3.

Figura 2.3. Os caminhos dos processo s e r na tabela peridica. Enquanto a


captura lenta de nutrons provoca a formao de ncleos progressivamente
mais pesados ao longo de condies prximas estabilidade, o processo
r resulta em nucldeos longe da estabilidade (povoando a parte inferior).
Essa diferena poderia ser descrita dizendo que o processo s o herdeiro
natural ou continuador da obra da nucleossntese estelar ordinria. Fonte:
Wikimedia Commons

57
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Durante os 15 primeiros minutos que se seguem ao colapso


do ncleo de uma estrela massiva e resultante exploso de uma
supernova, a densidade de nutrons livres to grande que permi-
te a formao de configuraes nucleares estveis mais pesadas.
assim que se formam os elementos naturais mais pesados, bem
como outros de massa atmica menor, porm cujas configura-
es nucleares requerem um grande fluxo de nutrons para serem
formadas. Por sua origem, esses processos so chamados de nu-
cleossntese explosiva e podem ocorrer no apenas nas superno-
vas, mas tambm nas novas, que, como dito antes, so exploses
restritas superfcie de estrelas em sistemas binrios.
As abundncias qumicas no Universo resultam do conjunto
de todos os processos de nucleossntese: a primordial, a estelar, a
explosiva e a interestelar. Assim sendo, o meio interestelar se nu-
tre de todos eles. Quando combinados, esses processos resultam
em uma distribuio de abundncia de elementos que pode ser
verificada de distintas maneiras: nos meteoritos aqui na Terra, nas
estrelas como o Sol, nos aglomerados estelares, nas nebulosas ou
mesmo em galxias inteiras. Distintos ambientes e histrias vo
resultar em abundncias relativas diferentes: a Terra, por exem-
plo, tem uma abundncia de xidos e silicatos muito maior que
Jpiter ou Saturno, cuja composio muito semelhante do
Sol e onde o hidrognio e o hlio predominam. Acredita-se que
o processo de formao do Sistema Solar tenha produzido essa
diferena, espalhando elementos leves para formar os planetas
gigantes, enquanto os gros de poeira mais pesados foram res-
ponsveis pela composio dos chamados planetas telricos,
rochosos e sem grande quantidade de hidrognio e hlio. Esse
um exemplo de como importante compreender qual sistema
deve ser examinado: as abundncias encontradas refletem no
s a composio existente, mas tambm peculiaridades dos pro-
cessos de formao, que so, em grande medida, independentes
da nucleossntese. Isso quer dizer, no contexto da astrobiologia,
que se deve levar em conta uma srie de fatores importantes para
saber onde existiriam condies para que a vida surgisse e se

58
A origem dos elementos

sustentasse a partir das abundncias existentes de elementos pas-


sveis de serem metabolizados e outros requerimentos biolgicos.
Estamos seguros de compreender como so sintetizados os ele-
mentos alfa, fundamentais para a vida (fundamentalmente carbo-
no, mas tambm oxignio, magnsio e at ferro, nitrognio, entre
outros), enquanto os elementos mais pesados ainda apresentam
desafios importantes. Podemos dizer, no entanto, que estamos
nos primrdios do estudo da conexo entre a evoluo qumica
do universo e o desenvolvimento da vida. importante observar
que a biologia aproveita elementos bastante raros na natureza
(por exemplo, o fsforo) e no segue o padro de abundncias
csmico. Mesmo assim, as estrelas so o elemento fundamental
sem o qual no haveria em absoluto seres vivos tais como os que
conhecemos (Figura 2.4).

Figura 2.4. A tabela peridica do astrnomo. Contrariamente representao


convencional, o espao de cada elemento mostrado proporcionalmente
abundncia csmica medida. Note-se que todos os elementos alfa etc. no
chegam, somados, a 1% do total. E outros to raros que nem aparecem na
figura so utilizados muito intensivamente pelos sistemas biolgicos. Fonte:
IAG

59
ASTROQUMICA
A formao, a destruio e a busca de molculas prebiticas no espao

Captulo 3
Heloisa M. Boechat-Roberty

A astroqumica uma cincia experimental, terica e observa-


cional que objetiva investigar a formao, a destruio e a busca
de molculas em diversos ambientes astronmicos, sendo funda-
mental para a compreenso dos processos que levam origem,
evoluo e distribuio da vida na Galxia. Uma das questes
mais instigantes a conexo entre a qumica interestelar e circuns-
telar, desde a formao de molculas simples a partir de tomos
at a complexidade extrema das molculas biolgicas.

A qumica nas fases da vida de estrelas


O espao entre as estrelas preenchido com grandes nuvens,
chamadas de nuvens moleculares, constitudas de gs atmico,
gs molecular (H2, CO, NH3 etc.), poeira interestelar e gelos. No
meio interestelar, o tomo de hidrognio (H) o mais abundante.
Por exemplo, para cada tomo de carbono (C), temos aproximada-
mente 10 mil tomos de H. Os gros de poeira csmica podem ser
compostos de silcio (silicatos) ou de carbono como o diamante,
o grafite, o carbono amorfo e os hidrocarbonetos policclicos aro-
mticos (hpas ou pahs, na sigla em ingls).

61
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Essas nuvens moleculares gigantes fragmentam-se em nuvens


de diversos tamanhos, que entram em colapso gravitacional dan-
do origem a estrelas de baixas, mdias e altas massas. Na Figura
3.1, apresentamos uma imagem, obtida pelo telescpio espacial
Hubble, de uma regio de formao estelar, IC 2944, situada na
constelao de Centauro, contendo nuvens escuras de vrios tama-
nhos e formas que bloqueiam a luz das estrelas. A gravidade com-
prime violentamente a matria, aumentando consideravelmente a
densidade (partculas por unidade de volume), e a temperatura,
levando fuso de ncleos de H e formao de elementos qu-
micos mais pesados. Cada estrela pode ser considerada como uma
fbrica de elementos qumicos que, no final de sua vida, expele-
-os, enriquecendo o meio interestelar com tomos mais pesados
que iro reagir e formar molculas mais complexas.

Figura 3.1. Glbulos de Bok e nuvens escuras de diferentes tamanhos,


compostas de gs e gros de poeira que esto ou iro entrar no processo
de colapso gravitacional, dando origem a estrelas de diferentes massas.
Observa-se que as duas nuvens sobrepostas bloqueiam a luz. Fonte: Nasa e
The Hubble Heritage Team (stsci/aura)

62
Astroqumica

Discos protoplanetrios
Uma importante fase da vida de uma estrela, como o Sol,
quando a estrela recm-nascida continua a sugar a matria circun-
dante, levando formao de um disco espesso de gs e gros.
Esses discos so regies de formao planetria, chamados de dis-
cos protoplanetrios. Os ambientes que circundam as estrelas re-
cm-nascidas e as estrelas evoludas so considerados verdadeiros
laboratrios qumicos, onde ocorrem reaes qumicas formando
compostos orgnicos e inorgnicos.
Na Figura 3.2 mostramos o esboo de um disco protoplane-
trio dividido em regies de acordo com a densidade e tempe-
ratura. R a distncia radial da estrela central, e Z a altura em
relao ao plano do disco, dada em unidades astronmica (ua).
A regio no plano do disco mais densa e mais fria, onde a ra-
diao da estrela central e a radiao interestelar no conseguem
penetrar. medida que Z aumenta, a temperatura aumenta e a
densidade de matria diminui. As partes do disco mais expostas
ao campo de radiao tornam-se extremamente quentes e total-
mente ionizadas, dando origem s regies ionizadas chamadas
de regies hii (hi e hii referem-se ao tomo de hidrognio neutro e
ionizado, respectivamente). Aps essa frente ionizada, a tempe-
ratura mais baixa, e a matria est mais protegida da radiao,
pois est mais distante da estrela central. No entanto, como os f-
tons de uv e raios X conseguem penetrar mais profundamente sem
serem absorvidos, as molculas podem ser dissociadas e temos as
chamadas regies de fotodissociao (pdrs, na sigla em ingls).
A interao da radiao eletromagntica, na faixa do ultravioleta
(uv) e raios X, emitida pela estrela recm-formada, com o gs e poeira
circundante, induz a ionizao (eltrons so arrancados dos tomos
e das molculas) e a dissociao (quebra das molculas). Os radicais
e ons gerados por esses processos reagem quimicamente formando
novas e mais complexas molculas. Espcies neutras e ionizadas tm
sido detectadas em vrios discos protoplanetrios como CO, CO2,
CN, HCN, HNC, H2CO, C2H, C2H2, CS, OH, HCO+, H13CO+, DCO+,
N2H+ e vapor de gua (Andrade, Rocco e Boechat-Roberty, 2010).

63
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

UV
Z (AU)
ada
o ioniz
X Regi o
dissocia
UV, raios Regio
de Foto
a
Regio aq ue cid
Plano do disco

Regi
o ioniz
R (AU)
Estrela ada

Figura 3.2. Esquema de um disco protoplanetrio em corte transversal,


exibindo a regio de ionizao exposta diretamente radiao da estrela
central e a regio de fotodissociao, onde as molculas esto mais
protegidas, mas sofrem a dissociao pelos ftons de uv e raios X. Fonte: IAG

Nebulosas planetrias
No final da vida de uma estrela semelhante ao Sol, as camadas
externas so ejetadas para o meio interestelar, tornando-se ento
uma nebulosa protoplanetria ou pr-planetria, que depois evo-
luir para nebulosa planetria. Nesses ambientes circunstelares
ocorrem diversas reaes qumicas entre espcies na fase gasosa e
entre espcies congeladas na superfcie de gros.

Figura 3.3. Nebulosa pr-planetria CRL 618 deteco da molcula


benzeno. Fonte: esa & A.G.G.M. Tielens (sron/Kapteyn Astronomical Institute)

64
Astroqumica

CRL 618 um exemplo de uma nebulosa pr-planetria mostrada na


imagem obtida pelo telescpio espacial Hubble (Figura 3.3). Nesse obje-
to foi confirmada a presena de diversos hidrocarbonetos, C4H2, C6H2, e
a importante molcula orgnica, benzeno C6H6, que a unidade bsica
dos hidrocarbonetos policclicos aromticos (pahs) (Cernicharo, 2001).
Os pahs so compostos orgnicos contendo dois ou mais anis
aromticos (como o benzeno), unidos por um par de tomos de
carbono compartilhado entre os anis (Figura 3.4). Esses compos-
tos so formados nas atmosferas de estrelas evoludas pela polime-
rizao de hidrocarbonetos, como o acetileno (C2H2).

Figura 3.4. Alguns exemplos de hidrocarbonetos policclicos aromticos (pahs)

Formao e destruio de molculas


A abundncia de uma dada espcie molecular depende das
taxas de formao, de destruio (dissociao) e tambm da de
dessoro do manto de gelo.
A formao de molculas orgnicas ocorre tanto na fase ga-
sosa quanto na fase slida (no gelo). Em baixas temperaturas, mo-
lculas como gua (H2O), amnia (NH3), monxido de carbono
(CO) e metano (CH4) so congeladas na superfcie de gros de
poeira formando um manto de gelo.

65
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

A interao da radiao uv, raios X e de partculas carregadas


como eltrons e prtons com as molculas favorece as reaes
qumicas. Por exemplo, os fragmentos gerados pela fotodissocia-
o da amnia (NH3 + h NH2 + H) e da fotodissociao do
metano (CH4 + h CH3 + H) podem reagir formando o compos-
to orgnico, a metilamina (CH3NH2). Assim, diversas espcies so
formadas por causa das muitas possveis combinaes.
A interao de ftons com a superfcie de gros de poeira,
alm de induzir a ionizao e a dissociao das molculas conge-
ladas, tambm leva ao processo de fotodessoro de espcies neu-
tras ou ionizadas da superfcie. Esse processo faz que as molculas
retornem fase gasosa, aumentado a abundncia.
Na Tabela 3.1, mostramos as possveis reaes que ocorrem
no meio interestelar e em ambientes circunstelares. Cada reao
qumica tem uma probabilidade de acontecer dada pela taxa de
formao da espcie qumica. A taxa de formao de uma mo-
lcula C por causa da reao de espcies neutras A + B muita
mais baixa que a taxa de formao por uma espcie neutra e uma
ionizada (A+ B), isto , a reao on-molcula.

Tabela 3.1. Reaes qumicas e as taxas de formao em ordem de grandeza


Reaes Qumicas Taxas de Formao (cm3 s-1)
on- molcula A+ + B C + D+ ~10-9

Recombinao AB+ + e- A + B ~10-6


Dissociativa
Neutro-neutro A + B C+ ~10-12-10-10

Transferncia de Carga A+ + B A + B+ ~10-9

Associao Radiativa A + B AB + h ~10-16-10-9

A superfcie irregular de gros de poeira atua como catalisador


para reaes de hidrogenao (A + H), protonao (A + H+) e oxigena-
o (A + O) entre espcies neutras, diminuindo a energia de ativao
e aumentando a velocidade da reao (Tabela 3.2).

66
Astroqumica

Tabela 3.2. Hidrogenao, protonao e oxigenao de tomos mais


abundantes

Hidrogenao Protonao Oxigenao

H H2 H3+ CO
O H2O H3O+ CO2
C CH4 HCO+ O2
N NH3 NH4+ O3
S H2S N2H+ H2O2

A formao do formaldedo (H2CO) e do metanol (CH3OH), o


mais simples dos lcoois, se d pela reao de hidrogenao da
molcula monxido de carbono (CO), que a segunda molcula
mais abundante no meio interestelar depois do H2.

1. Reao neutro-neutro

CO + H HCO + H H2CO CH3CO CH3OH

A partir do formaldedo e do metanol, outras molculas pode-


ro ser formadas.

2. Fotoionizao (um fton h arranca um eltron da molcula)

CH3OH + h CH3OH+ + e- (fotoeltron)

3. Fotodissociao ou fotodestruio

CH3OH+ CH3O+ + O

4. Reao on-molcula

CH3O+ + H2CO H2COOCH3+ + h

67
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

5. Recombinao dissociativa

Um eltron recombina com o on molecular e dissocia geran-


do o formiato de metila:

H2COOCH3+ + e- HCOOCH3 + H

Molculas precursoras de aminocidos


O formiato de metila (HCOOCH3) um ismero do cido ac-
tico (CH3COOH). Os ismeros so molculas que tm os mesmos
tomos, porm em posies diferentes. Um dado importante ob-
tido pelas observaes astronmicas que o formiato de metila
muito mais abundante no meio interestelar que o cido actico.
O cido actico, o mais simples dos cidos carboxlicos,
uma molcula precursora do aminocido glicina, sendo que a
deteco deste ltimo (NH2CH2COOH) nas regies de formao
estelar SgrB2, Orion KL e W51 ainda no foi confirmada. No en-
tanto, nesses mesmos ambientes foram detectadas as molculas
precursoras desse aminocido, como a amnia, o cido frmico
(HCOOH), o cido actico, a acetonitrila (CH3CN), a metilami-
na, indicando que esse e outros aminocidos podem ser forma-
dos. Estudos sobre a destruio dos ismeros por raios X (Pilling;
Santos; Boechat-Roberty, 2006; Fantuzzi et al., 2011) mostram que
tanto o cido actico como o formiato de metila so eficientemen-
te destrudos pela radiao eletromagntica, e a alta abundncia
relativa deve-se eficincia na formao dos compostos.

Astroqumica experimental
Estuda-se experimentalmente os mecanismos e condies de inte-
rao de ftons (ultravioleta, uv e raios X), eltrons e partculas carre-
gadas com molculas, na fase gasosa e fase condensada, presentes em
ambientes circunstelares e interestelares, para se entender os processos
que ocorrem nesses ambientes. Muitos experimentos de interao de
ftons com molculas tm sido realizados no Laboratrio Nacional de
Luz Sncrotron (lnls), usando feixe de ftons provenientes das linhas

68
Astroqumica

toroidal grating monochromator (tgm) e spherical grating monochroma-


tor (sgm) empregando a tcnica da espectrometria de massas de tempo
de voo para identificar os ons gerados pela interao (Figura 3.5).

Figura 3.5. Laboratrio Nacional de Luz Sncrotron (lnls). As linhas de luz so


tangentes ao anel de armazenamento dos eltrons relativsticos, que perdem
energia emitindo radiao eletromagntica. Fonte: Divulgao lnls/cnpem

Molculas na fase gasosa


So determinados experimentalmente os valores absolutos da
probabilidade de uma dada molcula sofrer a ionizao ou a dis-
sociao por uv e raios X, isto , as sees de choque de fotoioni-
zao (ion (E)) e fotodissociao (diss (E)) em cm2. Conhecendo
o fluxo de ftons em funo da energia (E) (ftons cm-2 s-1), f(E), em
um dado ambiente astronmico, podemos determinar a taxa de
destruio kdiss (nmero de molculas dissociadas por segundo) de
uma dada molcula:

69
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

O tempo de vida de uma molcula pode ser calculado por

Esses parmetros foram determinados para vrias molculas,


como o cido actico em regies de formao estelar (Pilling et
al., 2006), o benzeno (C6H6) na nebulosa pr-planetria CRL 618
(Boechat-Roberty, 2009) e o formiato de metila no disco protopla-
netrio da estrela tw Hydra (Fantuzzi et al., 2011).

Molculas na fase condensada


Pela simulao da interao de agentes ionizantes com mo-
lculas orgnicas congeladas na superfcie de gros de poeira so
determinados valores absolutos de rendimentos de dessoro Y
por ftons (ons/fton) de gelo de metanol (Andrade et al., 2010) e
de gelo de pirimidina (Mendoza et al., 2014). Estudos da dessor-
o estimulada por eltrons Y (ons/impacto) mostram resultados
importantes de gelo de metanol e etanol (Almeida et al., 2012;
Bergantini et al., 2013; Ribeiro, 2014, 2015).
A tw Hydra uma jovem estrela T Tauri (a uma distncia de
56 pc da Terra) que possui um disco espesso de gs e poeira e,
por causa do processo de acreo e de intensos campos mag-
nticos, uma considervel fonte emissora de raios X. O cido
ciandrico (HCN) e o acetileno (C2H2), presentes nesse ambiente,
podem reagir e formar molculas prebiticas como a pirimidina
(C4H4N2), atravs das reaes de polimerizao (Mendoza et al.,
2014). Pirimidina uma precursora das bases nitrogenadas como
uracil, timina e citosina, fundamentais na formao dos cidos nu-
cleicos (dna e rna), e consiste de um anel benznico (C6H6) com
dois tomos de nitrognio substituindo dois grupos C-H (Figura
3.6). Acredita-se que muitas das molculas precursoras das macro-
molculas biolgicas estavam presentes nos ambientes quando os
planetas foram formados.

70
Astroqumica

Figura 3.6. Benzeno e pirimidina, respectivamente.

Astroqumica observacional
A busca de molculas no espao feita por observaes
astronmicas em vrios comprimentos de onda. Muitas das
molculas foram descobertas atravs das observaes em r-
dio e no infravermelho utilizando-se radiotelescpios como o
Institut de Radioastronomie Millimtrique (Iram), de 30 metros,
localizado na Espanha e telescpios espaciais, como o Infrared
Space Observatory (iso), o Spitzer e o mais recente observatrio
espacial Herschel. Recentemente entrou em operao o interfe-
rmetro Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (Alma),
que consiste em um conjunto de muitas antenas de radiote-
lescpios instalados no deserto do Atacama no Chile, a 5 mil
metros de altitude. A partir das observaes, determinam-se pa-
rmetros fsicos e fsico-qumicos importantes sobre as regies
de interesse, como a temperatura e a densidade numrica dos
gases, entre outros.
Uma grande quantidade de dados dos telescpios espaciais
j de domnio pblico e em breve novos dados tambm esta-
ro disponveis. A comunidade astronmica tem incentivado o
uso desses dados, e necessrio um esforo conjunto para seu
tratamento, pois a deteco das assinaturas moleculares no
simples. Para utilizar esses dados preciso adquirir conheci-
mento e experincia em obter espectros desses bancos de dados
e em manusear softwares de reduo de dados, com o objetivo
de identificar novas molculas e ons moleculares em objetos
de interesse.

71
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Figura 3.7. Radiotelescpio Iram 30m, Pico Veleta, Espanha. Fonte: JuanJan/
Creative Commons

Recentemente, Mendoza et al. (2014), usando dados do te-


lescpio Iram 30m, dentro do programa Astrochemical Surveys at
Iram (ASAI), identificaram e determinaram a abundncia da mol-
cula formamida (NH2CHO) na protoestrela L1157-mm, que est a
uma distncia da Terra de cerca de 800 anos-luz. A formamida
um composto importante na sntese de aminocidos e protenas,
essenciais para os organismos vivos.

Astroqumica terica
Modelos tericos so desenvolvidos na tentativa de se descre-
ver diferentes cenrios fsico-qumicos por exemplo, a formao
e evoluo de molculas em funo do tempo em diversos ambien-
tes interestelares e circunstelares, levando-se em conta, por exem-
plo, as condies fsico-qumicas de cada ambiente, a abundncia
inicial dos elementos qumicos e as principais reaes qumicas.
A estrutura e a estabilidade de ons moleculares tm sido inves-
tigadas empregando mtodos da qumica quntica para conhecer
as espcies moleculares mais estveis e suas contribuies para a
qumica em ambientes astrofsicos (Fantuzzi et al., 2012).

72
Astroqumica

Pelos modelos cinticos de reaes qumicas de formao de


molculas em atmosferas de exoplanetas estima-se sua produo
para alguns casos concretos como o do planeta HD209458b.

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ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

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Ribeiro, F. A. et al. Non-thermal ion desorption from an acetonitrile
(CH3CN) astrophysical ice analogue studied by electron stimu-
lated ion desorption. Physical Chemistry Chemical Physics, v.
17, n. 41, p. 27473-27480, 2015.

74
PLANETAS HABITVEIS
Onde esto os lugares no Universo adequados
ao nosso ou outros tipos de vida?

Captulo 4
Gustavo Porto de Mello

Habitabilidade
A Terra obviamente um planeta habitvel, mas como esta-
belecer que um planeta potencialmente capaz de manter formas
de vida durante bilhes de anos? Quais so os critrios usados
para reconhecer essa habitabilidade? A existncia e manuteno
da vida, tal como a conhecemos na Terra, baseada em um con-
junto de propriedades razoavelmente bem estabelecido, embora
permaneam dvidas sobre diversos detalhes. Entre as proprieda-
des mais essenciais est uma estrela de longa vida, como o Sol,
capaz de proporcionar energia luminosa de modo estvel durante
vrios bilhes de anos (Figura 4.1). Esse longo tempo necessrio
em funo do que aprendemos com o exemplo da Terra: a evolu-
o da vida em nosso planeta exigiu uma longa trajetria desde
os mais simples micro-organismos at o surgimento de vida com-
plexa, ou pelo menos de seu aparecimento no registro fssil, e por
fim de inteligncia. Parece razovel supor que tal evoluo exigir

75
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

tambm em outros planetas um tempo bastante longo, de pelo


menos alguns bilhes de anos.

Zona habitvel
2
Massa da estrela em relao ao Sol

Marte
Terra
Vnus
0,1

0 0,1 1 10 40

Raio da rbita em relao Terra

Figura 4.1. Ilustrao da zona habitvel e da massa estelar em relao ao Sol.


Fonte: Adaptado de Wikimedia Commons

As condies de habitabilidade em um sistema planetrio


esto diretamente ligadas massa da estrela, que fixa no ape-
nas sua luminosidade, mas tambm seu tempo de vida, deter-
minando, desse modo, o prazo no qual a estrela ser capaz
de manter um planeta habitvel. Do ponto de vista planetrio,
outra propriedade essencial a existncia de um planeta dito
rochoso, tal como a Terra, que seja capaz de manter gua
lquida na superfcie durante os bilhes de anos supostamente
necessrios para a evoluo de vida multicelular. Esse planeta
deve ainda possuir um campo magntico expressivo, capaz de
proteger sua superfcie e sua biosfera do ataque de partculas
energticas provenientes dos ventos estelares e dos raios cs-
micos. Deve tambm ser capaz de manter atividade geolgica
durante bilhes de anos, como veremos adiante. A exigncia de
tais atributos basicamente chauvinista, ou seja, est anco-
rada em nosso conhecimento imediato de como a vida surgiu

76
PLANETAS HABITVEIS

e evoluiu no planeta Terra: essa a nica frmula conhecida


pela cincia que com certeza produziu resultados. Podemos
imaginar formas de vida baseadas em outros lquidos que no a
gua? Podemos conceber uma bioqumica diferente da terrestre,
capaz de funcionar em substratos como o metano e o nitrog-
nio lquido? Ou haveria a possibilidade de manuteno de vida
baseada em gua lquida, porm em planetas, ou mesmo sat-
lites, completamente diferentes da Terra? Todas essas perguntas
so fundamentais para avaliarmos as possibilidades de vida no
Universo como um todo. As respostas, embora firmemente res-
paldadas por nosso conhecimento atual, permanecem ainda no
terreno da especulao.

A formao de um planeta habitvel


Que tipo de estrela capaz de manter um planeta habitvel
atendendo a todas essas caractersticas? Com que frequncia espe-
raramos encontrar tais planetas em nossa galxia e no Universo?
Para responder a essa pergunta, devemos comear com a forma-
o desses planetas, um evento que, hoje sabemos, acompanha de
modo natural a gnese das prprias estrelas. Tudo se inicia quando
um pequeno fragmento de uma das grandes nuvens de gs e poeira
que existe no disco da galxia colapsa lentamente sob a ao de
sua prpria gravidade, formando o que chamamos de nebulosa
protoestelar. O colapso transforma energia gravitacional em ener-
gia trmica e produz, no centro da nebulosa, uma regio quente e
densa, que vir a ser a futura estrela. A nebulosa protoestelar agora
se torna tambm uma nebulosa protoplanetria: enquanto a estrela
prossegue em seu processo de formao (que no caso de uma estre-
la como o Sol dura 10 milhes de anos) a parte perifrica da nebu-
losa, menos densa e mais fria, inicia um processo chamado de co-
agulao de planetesimais. Gros de poeira, pequenos fragmentos
de gelo e molculas de gs colidem e se aglutinam; paulatinamente,
partculas de fraes de milmetro de dimetro crescem, colidem
mais e crescem ainda mais, e vo adquirindo dimenses de metros,
depois quilmetros e por fim milhares de quilmetros. Ao chegarem

77
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

a essas dimenses, tornam-se planetesimais, to massivos que co-


meam a se atrair mutuamente.
Nessa etapa, no centro da nebulosa, a estrela est quase toda de-
senvolvida e pronta para nascer; reaes nucleares se iniciaram em
seu centro, transformando hidrognio em hlio e inaugurando a vida
da estrela na chamada sequncia principal, na qual ela permane-
cer brilhando de modo estvel durante quase toda sua existncia.
A radiao da estrela varre a nebulosa planetria, dissipando o gs
e evaporando o gelo e as partculas slidas. Enquanto a matria-pri-
ma da formao planetria ejetada da nebulosa, os planetesimais
interagem, colidem entre si, mesclam-se e crescem. Se crescem mui-
to rapidamente, podem tornar-se to massivos que so capazes de
aglutinar o material mais leve, principalmente o gs hidrognio, e
nesse caso incham de modo galopante e se transformam em gigantes
gasosos, como Jpiter e Saturno. Caso no consigam acumular mui-
to gs, tornam-se gigantes de gelo como Urano e Netuno; se nunca
atingirem o tamanho necessrio para acumular gs, sero planetas
rochosos como Terra, Vnus e Marte. A formao de planetas uma
corrida contra o tempo: ao mesmo tempo em que a gravidade da
nebulosa puxa o material slido em direo a sua parte central, a
radiao da estrela nascente evapora e expulsa esse material.
Ao final do processo, temos um grupo de planetas formados
e uma quantidade de resduos slidos sob a forma de pequenos
corpos, asteroides e cometas: todo o gs, o gelo e a poeira foram
expulsos do sistema (Figura 4.2).

De onde veio a gua do planeta Terra?


Os planetas pequenos e rochosos nascem normalmente com
pouca gua. A razo disso que eles se formam na parte interna
e quente da nebulosa protoplanetria, em que a alta temperatu-
ra concentra material slido, como rochas e metais, evaporando
o material voltil, como a gua, a amnia e o metano. Aps o
perodo de formao dos planetas segue um perodo de estabi-
lizao, no qual os diversos corpos residuais, cometas e asteroi-
des aos poucos interagem gravitacionalmente com os planetas

78
PLANETAS HABITVEIS

recm-formados e so por eles atrados. Esse perodo durou cente-


nas de milhes de anos em nosso Sistema Solar e foi chamado de
o Grande Bombardeio. Impactos titnicos na superfcie da Terra
ocorriam cotidianamente. Acredita-se que a vida s se tornou pos-
svel depois que a pior fase desse bombardeio terminou, cerca de
3,8 bilhes de anos atrs. A evidncia geolgica mostra que os
fsseis mais antigos podem datar exatamente desse perodo. Qual
foi a importncia do Grande Bombardeio? Parte do material que
foi agregado pela Terra durante essa fase vinha das partes externas
do Sistema Solar, onde as baixas temperaturas permitiam a mais
fcil condensao de volteis como a gua. Desse modo, os ocea-
nos da Terra foram formados por material extraterrestre, oriundo
das regies da nuvem protoplanetria muito mais distantes do Sol
que a Terra. Simulaes de computador mostram que a presena
dos planetas gigantes nas partes externas do Sistema Solar, como
Jpiter e Saturno, foi essencial para que esse material voltil pudes-
se finalmente ser trazido para a Terra. Alguns cientistas sugeriram
que uma arquitetura planetria diferente em nosso Sistema Solar,
sem a gravidade dos planetas gigantes perturbando os pequenos
corpos ricos em gua das regies distantes, teria produzido um
planeta Terra com pouca ou nenhuma gua e talvez sem vida.

Figura 4.2. As fases do processo de formao planetria. Fonte: Adaptado de


Harvard Smithsonian Center for Astrophysics (CfA)

79
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

O efeito estufa: vilo ou heri?


Todas as formas de vida, sem exceo, vivem exclusivamente
imersas em gua lquida durante pelo menos uma etapa de seu de-
senvolvimento. Algumas espcies permanecem nela durante toda
a vida; os seres humanos passam nove meses no oceano do te-
ro antes de estarem aptos vida na superfcie seca da Terra, e todas
as espcies dependem crucialmente de gua lquida para o seu
metabolismo. A importncia da gua lquida to grande que ela
governa nossa definio de habitabilidade planetria. Definimos
como a zona habitvel de um sistema planetrio aquela regio ao
redor de uma estrela em que sua energia luminosa permite tempe-
raturas suficientes para que a gua se mantenha no estado lquido,
ou seja, entre 0 e 100 C, para condies normais de presso.
Entretanto, a luminosidade de uma estrela e sua distncia de
um planeta no so os nicos fatores que influenciam sua habi-
tabilidade. A temperatura na superfcie de um planeta, que de-
termina a possibilidade da existncia de gua lquida, depende,
obviamente, da energia recebida da estrela, mas tambm de uma
propriedade fundamental de sua atmosfera, que a capacidade
de receber a energia luminosa estelar, transform-la em calor e
reter esse calor na superfcie. Essa capacidade recebe o nome de
efeito estufa, e ele est em total evidncia na mdia e nos assun-
tos atuais da humanidade. A preocupao que o aumento da
intensidade do efeito estufa provocado pela ao humana poder
levar a extremas mudanas climticas, ao aquecimento do planeta
e elevao do nvel dos oceanos, trazendo inmeros problemas
para nossa civilizao. O efeito estufa, porm, to acusado em
nossos tempos como um grande vilo da habitabilidade terrestre,
a grande chave para a manuteno da vida em nosso planeta
durante bilhes de anos. Sem sua presena, a Terra no teria a
mesma capacidade de manter gua lquida em sua superfcie e
seria habitvel por muito menos tempo ou mesmo seria hoje um
planeta inabitvel, sem gua lquida e sem vida. O que estamos
fazendo atualmente, com a queima de combustveis fsseis e pro-
cessos industriais, meramente mudar seu ponto de equilbrio.

80
PLANETAS HABITVEIS

Esse ponto de equilbrio j foi mudado no passado, sem qualquer


influncia do ser humano, e continuar a ser mudado no futuro.
A prpria luminosidade solar est aumentando muito lentamente,
no processo normal de evoluo do Sol, e de se esperar que no
futuro distante a temperatura da superfcie terrestre suba a ponto
de impedir a existncia de gua no estado lquido. Os oceanos
terrestres se evaporaro e nosso planeta se tornar inabitvel.

CO2 H2O CH4 Vulces


liberam CO2

Atmosfera
Atmosfera

Eroso transporta
Depsitos carbonceos carbonatos para o mar
no leito do oceano Compostos
carbonceos
liberam CO2

Oceano
Oceano

Placa
Placa ocenica
ocenica

Magma
Magma Subduco
Subduco

Placa
Placa continental
continental

Figura 4.3. Ilustrao do processo do efeito estufa natural terrestre. Ilustrao:


Maurcio Marcelo / Tikinet

A atuao do efeito estufa, assim chamado porque capaz


de acumular energia luminosa sob a forma de calor e aumentar a
temperatura da superfcie planetria (um processo idntico ao que
permite o crescimento de plantas tropicais em estufas com pare-
des de vidro em pases frios), depende de diversos fatores. Todos
esto ligados s propriedades planetrias, e a principal delas a
composio da atmosfera. Diversas molculas que compem a at-
mosfera dos planetas do Sistema Solar possuem a propriedade de
deixar passar livremente a radiao luminosa, mas impedir a sada

81
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

da radiao infravermelha, ou radiao do calor. Os principais ga-


ses que contribuem para o efeito estufa so o dixido de carbono
(ou gs carbnico), o vapor de gua e o metano. Molcula por
molcula, o metano o mais eficiente dos trs, mas possui con-
centrao na atmosfera extremamente baixa, por ser facilmente
destrudo pelo oxignio. Depois vem o dixido de carbono, que
tem concentrao baixa e pouco varivel. Por ltimo, temos o va-
por dgua, que d conta da maior parte do efeito estufa, mas cuja
concentrao altamente varivel na atmosfera (Figura 4.3). Essa
a razo pela qual a Terra possui um ciclo hidrolgico, com inces-
sante evaporao da gua dos lagos, rios e oceanos e sua posterior
condensao e precipitao, alm do acmulo de gua congelada
em regies frias.

Um termostato climtico
A presena desses gases por si s, porm, no capaz de
manter o efeito estufa operacional por longas escalas de tempo.
So necessrios mecanismos que regulem a presena desses gases
na atmosfera, impedindo que seu excesso aquea demasiadamen-
te o planeta, e que sua escassez torne a temperatura baixa demais.
Esses mecanismos so essencialmente geolgicos: a atividade vul-
cnica, que abastece a atmosfera continuamente com esses gases;
a tectnica de placas, que faz com que material rochoso da su-
perfcie terrestre seja reciclado no magma abaixo da crosta, e que
material jovem e incandescente desse magma seja trazido para a
superfcie; e a eroso ou intemperismo, que faz que os minerais
da superfcie reajam constantemente com os gases atmosfricos,
ajudando a controlar sua concentrao.
A conexo entre o vulcanismo, a tectnica de placas e a ero-
so determina um ciclo chamado de carbonato-silicato, do qual
alguns detalhes permanecem ignorados, mas cujo funcionamento
essencial bem compreendido. A presena de gases do efeito
estufa na atmosfera aquece o planeta, provocando a evaporao
da gua e sua precipitao sobre os continentes. A gua dissolve o
solo e as rochas com o auxlio do gs carbnico, transformando-os

82
PLANETAS HABITVEIS

em uma classe de minerais chamada de carbonatos. Esses mine-


rais so carregados sob a forma de sedimentos para o mar, acumu-
lando-se no fundo dos oceanos. O processo de tectnica de pla-
cas eventualmente faz que esses sedimentos sejam transportados
para o magma, sendo volatilizados e devolvendo o gs carbnico,
que finalmente retorna atmosfera nas erupes vulcnicas, fe-
chando o ciclo.
O que acontece quando o gs carbnico se acumula na at-
mosfera em perodos de intensa atividade vulcnica? Sua maior
concentrao aquece o planeta e acelera o processo de evapora-
o e precipitao da gua, aumentando tambm a taxa de eroso,
que ajuda a remover gs carbnico da atmosfera, recuperando o
equilbrio. Da mesma forma, perodos de baixa atividade vulcni-
ca tendem a provocar a diminuio da concentrao de gs carb-
nico na atmosfera, e desse modo a eroso desacelera, permitindo
que o gs carbnico novamente se acumule na atmosfera. O re-
torno eventual da atividade vulcnica, inevitvel em um planeta
geologicamente ativo como a Terra, garante que o abastecimento
dos gases do efeito estufa seja sempre renovado.
A principal incerteza de nosso conhecimento desses pro-
cessos vem do papel ambguo desempenhado pela presena de
nuvens. O vapor de gua, como vimos, um importante gs do
efeito estufa e sua concentrao na atmosfera aquece o planeta.
Por outro lado, esse aquecimento promove a formao de nuvens
de vapor dgua, e essas ajudam a refrescar a superfcie planetria
pelo seu efeito de reflexo, ou seja, elas devolvem energia solar
para o espao antes que ela possa ser absorvida pela Terra. Os
modelos tericos atuais postulam que a presena de nuvens de
vapor de gua ir determinar o limite mximo de energia lumi-
nosa que um planeta poder receber. Se a temperatura aumenta
at o ponto no qual a atmosfera torna-se to saturada de gua
que o maior aquecimento no pode mais ser compensado pela
presena de nuvens, o planeta comea a perder seus oceanos e
inicia uma trajetria irreversvel rumo inabitabilidade. Esse limi-
te representa fisicamente uma distncia mnima, de acordo com a

83
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

luminosidade da estrela, na qual um planeta como a Terra j no


pode ser considerado habitvel, definindo, desse modo, o limite
interno da zona habitvel.
O caso oposto, que define o limite externo da zona habitvel,
determinado por temperaturas to baixas que o gs carbnico, um
gs bem mais voltil que a gua, finalmente comea a se conden-
sar na atmosfera do planeta, formando nuvens de pequenos cristais
de gs carbnico (tambm conhecido como gelo seco). Essas nu-
vens so extraordinariamente refletivas, devolvendo uma frao to
grande da energia luminosa para o espao que as temperaturas do
planeta baixam ainda mais, promovendo a formao de mais nu-
vens de gs carbnico, em um ciclo capaz de congelar totalmente
a superfcie planetria. O planeta seria coberto de nuvens eternas
altamente refletivas e acumularia enormes extenses de geleiras, as
quais so tambm muito eficientes em refletir energia de volta para
o espao. A temperatura superficial planetria cai a um ponto no
qual a gua lquida j no pode existir de modo estvel.
Em nosso Sistema Solar, essas distncias-limite variam desde
mais ou menos 70% da distncia da Terra ao Sol, em um ponto
prximo da rbita de Vnus, mas sem incluir esse planeta, e at
uma distncia cerca de 40% maior que a distncia da Terra ao
Sol, incluindo, nesse caso, a rbita de Marte. Quais so as princi-
pais incertezas desses modelos tericos? A maior delas a gran-
de dificuldade de calcular a formao das nuvens, tanto de vapor
de gua quanto de dixido de carbono. O papel dessas nuvens
ambguo, pela sua capacidade tanto de reter o calor na superfcie
do planeta, quando de evitar que a radiao luminosa atinja essa
superfcie com suas propriedades refletivas. Assim, pequenos deta-
lhes das propriedades dessas nuvens podem mudar os valores dos
limites internos e externos da zona habitvel.

Vnus e Marte: projetos fracassados


Um poderoso esclarecimento a respeito de como esses mo-
delos descrevem bem a realidade dado por nossos planetas vi-
zinhos, Vnus e Marte. Seria possvel aprender algo com eles? O

84
PLANETAS HABITVEIS

que suas condies nos informam sobre o passado e o presente


da Terra ou, o que ainda mais importante, sobre o seu futuro?
Vnus um planeta quase gmeo da Terra no que diz res-
peito massa e ao tamanho, mas as semelhanas param por a.
Eternamente coberto de nuvens, com uma presso atmosfrica 90
vezes superior terrestre e uma temperatura superficial de quase
500 C, Vnus um excelente exemplo de planeta onde o efei-
to estufa descontrolou-se completamente. Os modelos de habi-
tabilidade sugerem que Vnus jamais esteve no interior da zona
habitvel do Sistema Solar. Formado muito mais prximo do Sol,
Vnus, em princpio, deve ter recebido uma quantidade de gua
comparvel com a terrestre, mas no teve oportunidade de fazer
funcionar um efeito estufa equilibrado. Com a atmosfera saturada
de vapor de gua, as temperaturas na superfcie de nosso planeta
irmo desde o incio de sua vida eram elevadas demais para man-
ter a gua lquida na superfcie. Vnus aprisionou-se em um eter-
no efeito estufa galopante que acarretou a completa evaporao
de seus pressupostos oceanos, transformando o planeta no inferno
que hoje observamos. Vnus jamais teve uma chance.
Marte nos ensina uma lio completamente diferente. Muito
menor do que a Terra, com dez por cento da massa e metade do
tamanho, o planeta aparentemente sempre esteve dentro da zona
habitvel. As imagens de sondas espaciais desde os anos 1970
revelaram a presena de imensos sulcos na superfcie marciana,
com todo o aspecto de terem, no passado, abrigado grandes flu-
xos de gua lquida. Entretanto, Marte hoje em dia um deserto
completamente seco e muito frio, com uma temperatura mdia na
superfcie de 50 graus Celsius abaixo de zero. Se o planeta possui
grande quantidade de gua, onde ela foi parar? A melhor explica-
o envolve no um problema com a distncia de Marte ao Sol (o
planeta est e talvez sempre tenha estado dentro da zona habit-
vel), mas com o tamanho de Marte. Pequeno e de baixa gravidade,
o planeta no possui a mesma capacidade da Terra de manter uma
atmosfera espessa: sua atmosfera possui menos de 1% da presso
terrestre. Sem campo magntico, e de calor interno reduzido, o

85
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

planeta rapidamente perdeu sua atividade geolgica. O vulcanis-


mo em Marte parece ter sido intenso, porm muito breve. No h
evidncia de atividade vulcnica em Marte nos ltimos bilhes de
anos. Incapaz de manter a atividade tectnica de placas, incapaz
de manter seu vulcanismo, e sem possuir um campo magntico
protetor para sua atmosfera, ao longo das centenas de milhes de
anos depois de seu nascimento, Marte paulatinamente sofreu a
evaporao de sua atmosfera e de seus hipotticos oceanos. A ati-
vidade vulcnica cessou e no mais abasteceu a atmosfera com
gases do efeito estufa. A ausncia da tectnica de placas impediu
a reciclagem entre os minerais da crosta e o magma planetrio,
transformando Marte em um deserto seco, frio e (pelo menos em
sua superfcie) aparentemente sem vida. Enquanto a Terra flores-
cia e desenvolvia vida, Vnus agonizava sob um excesso de efeito
estufa, e Marte desidratava, padecendo da escassez desse mesmo
efeito estufa.

E o futuro?
Estudos recentes revelaram em nossa galxia muitas centenas
de planetas em estrelas vizinhas do Sol. Muito pouco se sabe so-
bre esses mundos: basicamente as distncias de suas estrelas e suas
massas e, em poucos casos, suas dimenses. A maioria desses exo-
planetas descobertos pertence categoria de gigantes gasosos como
Jpiter; alguns so aparentemente gigantes de gelo, como Urano.
Diversos deles, porm, parecem ter caractersticas de planetas ro-
chosos como a Terra. Vrios esto situados a distncias compatveis
com a presena de gua lquida em suas superfcies e poderiam ser
considerados habitveis dentro do nosso conhecimento. Algumas
estimativas otimistas sugerem que cerca de 30% das estrelas da nos-
sa galxia poderiam ter planetas habitveis. Mesmo que esse valor
seja muito otimista, o nmero de estrelas em nossa galxia to vas-
to que uma frao de 1% de estrelas com planetas habitveis ainda
acarretaria um bilho de planetas com possibilidade de abrigar vida
como ns a conhecemos! Claramente, o nmero de planetas poten-
cialmente habitveis apenas em nossa galxia desafia a imaginao.

86
PLANETAS HABITVEIS

Entre as grandes questes que se colocam esto: quantos deles per-


mitiram o desenvolvimento de vida? Quantos destes permitiram que
a vida evolusse at um estgio de alta complexidade? Quantos ain-
da desenvolveram vida inteligente, do mesmo modo que ns agora
o fazemos, procurando por companhia, especulando sobre as con-
dies fsicas de mundos que apenas recentemente, com o progres-
so da cincia e tecnologia, comeam a ser explorados?

Vida alternativa, zonas habitveis alternativas?


Acredita-se que um substrato slido absolutamente essen-
cial para o surgimento de qualquer tipo de vida. O funciona-
mento da vida governado por reaes qumicas moleculares
complexas, autoestruturadas e auto-organizadas. Essas reaes
no podem ocorrer em um meio slido: no haveria contato
entre as molculas, impedindo o metabolismo. Em um meio ga-
soso, esses processos tambm seriam impossveis: a velocidade
das reaes seria excessiva e incontrolvel, impedindo a auto-
-organizao. Um meio lquido permite, ao mesmo tempo, a
troca molecular eficiente e sua organizao. Mas seria a gua a
nica alternativa? Nosso tipo de vida baseado na excepcional
capacidade dos tomos de carbono de formar longas cadeias de
tomos, chamadas de polmeros, e de sua capacidade de pro-
mover reaes complexas e organizadas em um meio aquoso.
Haveria substitutos para a gua e o carbono? Talvez.
A gua uma molcula dita polar, ou seja, diferenas de
cargas eltricas produzem pequenas foras dentro da molcula
que se atraem entre si. Essa propriedade est na raiz da capa-
cidade da gua de se manter lquida em um grande intervalo
de temperaturas. Existem outras molculas polares e abundantes
no Universo, como a amnia e o metano, mas nenhuma delas
reproduz bem as propriedades da gua. O carbono, por sua vez,
no o nico tomo capaz de formar complexos polmeros, mas
de longe o que faz isso com maior eficincia. Uma possvel
alternativa ao carbono seria o silcio, que vizinho do carbono
na tabela peridica dos elementos. Mas o silcio forma ligaes

87
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

qumicas extremamente fracas entre seus tomos e jamais con-


seguiria funcionar na gua.
Cientistas propuseram, ento, um tipo alternativo de vida ba-
seado em molculas de silcio, chamadas de silanos, em um subs-
trato de nitrognio lquido. O nitrognio um lquido apolar, ou
seja, sem assimetrias de cargas eltricas, e assim no prejudicaria
as fracas ligaes entre as molculas de silcio. Seria um tipo de
vida com metabolismo incrivelmente lento se comparado com o
nosso: seu funcionamento se daria a 180 C abaixo de zero, tem-
peratura na qual o nitrognio permanece lquido.
Desse modo, se queremos procurar vida semelhante a nossa,
baseada em carbono/gua, temos que procurar locais que permi-
tam a existncia da gua lquida em nosso Sistema Solar. Essa tem
sido a estratgia da Nasa nas ltimas dcadas, e possveis candida-
tos seriam: o planeta Marte e o satlite Europa, uma lua de Jpiter
to grande que se orbitasse o Sol, e no Jpiter, seria facilmente
chamada de planeta. Vida baseada em silanos em nitrognio l-
quido: Tit, uma enorme lua de Saturno, no momento explorada
pela sonda Cassini, da Nasa/esa; e Trito, outra grande lua, mas do
planeta Netuno foi explorada pela sonda Voyager ii da Nasa em
1989, e no foi mais visitada por nenhuma sonda espacial desde
ento. Como poderia Europa possuir gua lquida se Jpiter est
fora da zona habitvel que estamos discutindo? Por uma razo
simples: toda a nossa discusso de zona habitvel se baseia na
existncia de gua lquida na superfcie de um planeta ou satlite.
No caso de Europa, no existe atmosfera, e a gua lquida no
poderia existir na superfcie. Porm, o satlite est completamente
coberto de gua congelada, e abaixo de todo esse gelo poderia
haver, de acordo com os dados da sonda Galileo, da Nasa, mais
gua lquida do que todos os oceanos do planeta Terra somados. O
gelo protegeria a gua da evaporao e a manteria lquida mesmo
com a pouca luz solar que chega na rbita de Jpiter, de modo se-
melhante ao que ocorre no oceano rtico, onde a gua permanece
lquida abaixo do gelo mesmo com o frio intenso da superfcie. A
energia para manter essa gua sob a forma lquida, nas distantes

88
PLANETAS HABITVEIS

e geladas partes do Sistema Solar, viria da interao gravitacional


entre Jpiter e Europa, produzindo enormes foras de mar e li-
berando calor no interior do satlite. Em 2011, a Nasa aprovou
planos para uma nova sonda, ainda em projeto, que visitar Jpiter
com nfase na explorao de Europa.

A zona habitvel galctica


Felipe Nbrega Pereira

possvel pensarmos no conceito de habitabilidade em uma


escala maior? Alm da regio de um planeta com condies ame-
nas, alm da regio circunstelar que permita a existncia de gua
em estado lquido, podemos definir a habitabilidade em escala
galctica? Essa pergunta tem sido abordada em conjunto com es-
tudos da formao e evoluo da Via Lctea e outras galxias. O
termo zona de habitabilidade galctica (zhg) foi cunhado por
Gonzlez et al. (2001), em um trabalho sobre as caractersticas
predominantes em certas regies da Via Lctea, junto com janelas
temporais em que seria possvel o surgimento de vida complexa.
A primeira varivel normalmente considerada para a delimita-
o da zhg o risco de ocorrncia de uma supernova com proxi-
midade suficiente de um planeta para desestruturar sua biosfera.
Esse tipo de exploso, que est entre os eventos de mais alta
energia do Universo, ocorre no fim do processo de evoluo de
estrelas massivas e mais frequente em certas regies de uma
galxia, o que pode ser constatado por observaes e por mode-
lagens numricas. Regies com altas taxas de formao estelar,
como o centro da galxia ou seus braos, tm frequncias maio-
res de supernovas. Acredita-se que a radiao emanada durante
esses eventos, na forma de raios X e raios gama, seja capaz de
afetar a qumica da atmosfera de um planeta, por exemplo, des-
truindo sua camada de oznio, deixando-o exposto a fluxos de

89
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

raios ultravioleta provenientes de sua estrela hospedeira (Thomas


et al., 2005; Galante; Horvath, 2007; Mellot et al., 2011). Se a
proximidade for muito grande, a prpria onda de choque da ex-
ploso pode varrer a superfcie do planeta. A combinao desses
eventos poderia resultar em um forte impacto na vida exposta,
seja em continentes ou nas camadas mais rasas (zona ftica) de
oceanos e outras massas de gua. Pelo menos na Terra, a base
da cadeia trfica global (organismos fotossintetizantes) seria al-
tamente afetada.
No entanto, estudos que procuram estimar a frequncia com
que eventos desse porte ocorrem na Via Lctea e quo letais se-
riam ainda possuem muitas incertezas (Mellot et al., 2011). A co-
mear pela radiao gerada por essas exploses, o feixe de raios
gama seria extremamente nocivo, porm de ocorrncia rara e
concentrado em uma rea pequena. Alm disso, no totalmen-
te claro at que ponto a depleo ou destruio da camada de
oznio resultaria em um dano irreversvel para a biota em escala
global. A vida marinha, por exemplo, estaria imune radiao
a partir de alguns metros de profundidade. Em teoria, cardumes
de atum nadariam inclumes nos oceanos terrestres, mesmo de-
pois desse evento amplamente destrutivo para a vida presente na
superfcie do planeta, mas talvez acabassem sendo afetados in-
diretamente pelos danos aos produtores primrios. No entanto,
sabemos que a vida na Terra passou por eventos de extino em
massa algumas vezes em sua histria, mas perseverou.
Outra varivel considerada importante na tentativa de deli-
mitar regies de uma galxia favorveis vida a metalicidade
da regio em que se desenvolve o planeta. Em astronomia, defi-
nimos, de forma simplificada, metalicidade como a proporo
de elementos mais pesados em relao ao hidrognio e hlio. A
metalicidade do Sol, por exemplo, de aproximadamente 1,8%
em massa. Para outras estrelas, a metalicidade frequentemente
expressa como [Fe/H], que representa ologaritmoda razo en-
tre a abundncia de ferro (comparado com a do hidrognio) da
estrela e a do Sol, que usado como valor de referncia. O ferro

90
PLANETAS HABITVEIS

no o elemento pesado mais abundante nessas estrelas, mas


um dos mais fceis de medir com dados espectrais e por isso uti-
lizado. A ideia de se usar a metalicidade que ela pode ser medi-
da de forma quantitativa e poderia estar associada ao processo de
formao planetria, especialmente de planetas rochosos, como
Terra e Marte. No entanto, essa correlao com a formao pla-
netria ainda incerta at o momento. Elementos mais pesados
que o hidrognio so, obviamente, necessrios para a formao
desses objetos, porm sua proporo e sua influncia em fatores
como formao da atmosfera, tectonismo de placas e evoluo
qumica de um planeta ainda so alvos de muitos estudos e espe-
culaes. No outro extremo, a alta metalicidade poderia inviabi-
lizar planetas como a Terra de forma indireta, pela formao mais
frequente de planetas do tipo Hot Jupiters. Esses gigantes gaso-
sos seriam formados na parte externa do disco protoplanetrio,
migrando para seu interior com a evoluo do sistema estelar e
desestabilizando as rbitas dos planetas rochosos que porventura
se formaram em regies de rbitas mais internas. A quantifica-
o dessas relaes deve se tornar mais comum com o aumento
da estatstica de planetas extra-solares catalogados pela misso
Kepler e subsequentes.
Apesar desse cenrio repleto de incertezas, alguns modelos
foram propostos para a delimitao de uma zona de habitabilida-
de galctica, traando regies do espao-tempo mais propcias,
tanto para o surgimento da vida simples quanto da vida complexa
(Figura 4.4) (Lineweaver; Fenner; Gibson, 2004).
H de se ressaltar que, apesar da indiscutvel importncia
da metalicidade, eventos de supernova e outras variveis, alguns
cientistas consideram os processos fsicos atrelados ao conceito
de zona de habitabilidade galctica difceis de identificar e ain-
da mais difceis de quantificar. Esses desafios no nos permitem,
ao menos at o momento, tirar concluses definitivas sobre a
extenso de uma zona de habitabilidade galctica da mesma
forma como traamos uma zona de habitabilidade ao redor de
uma nica estrela.

91
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Figura 4.4. zhg da Via Lctea baseada na taxa de formao de estrelas:


metalicidade (azul); tempo (4 1 bilhes de anos) para surgimento de vida
complexa (cinza) e ausncia de exploses de supernova esterilizantes. Interior
dos contornos em branco delimitam o espao-tempo com maior potencial de
abrigar vida complexa. Linha verde direita a distribuio estimada de
idade da vida no universo. Fonte: Adaptado de Lineweaver, Fenner e Gibson
(2004)

Referncias
Galante, D.; Ernesto, H. J. Biological effects of gamma-ray bursts:
distances for severe damage on the biota. International Journal
of Astrobiology, Cambridge, v. 6, p. 19, 2007.
Gonzalez, G.; Brownlee, D.; Ward, P. The galactic habitable zone:
galactic chemical evolution. Icarus, Amsterdam, v. 152, n. 1,
p. 185-200, 2001.
Lineweaver, C. H.; Fenner, Y.; Gibson, B. K. The galactic habitable
zone and the age distribution of complex life in the Milky Way.
Science, Washington, v. 303, n. 5654, p. 59-62, 2004.

92
PLANETAS HABITVEIS

Melott, A. L.; Thomas, B. C. Astrophysical ionizing radiation and


Earth: a brief review and census of intermittent intense sources.
Astrobiology, New Rochelle, v. 11, n. 4, p. 343-61, 2011.
Thomas, B. C. et al. Gamma-Ray bursts and the Earth: exploration
of atmospheric, biological, climatic and biogeochemical
effects. The Astrophysical Journal, v. 634, p. 509-33, 2005.

93
QUMICA PREBITICA
A qumica da origem da vida

Captulo 5
Dimas A. M. Zaia, Cssia T. B. V. Zaia e Cristine E. A. Carneiro

Introduo
At meados do sculo xix era amplamente aceito pela comu-
nidade cientfica a teoria da gerao espontnea, que foi propos-
ta por Aristteles (384-322 a.C.). Segundo o filsofo, alguns se-
res vivos apareciam de forma espontnea e eram formados por
poucos elementos bsicos, nessa viso, os seres vivos poderiam
ser gerados de duas formas diferentes: pelos pais e por gerao
espontnea. Descries sobre a gerao espontnea podem ser
encontradas em antigos textos na China, na ndia, na Babilnia e
no Egito, nos quais h descritivos de produo de diversos seres
vivos, normalmente feitos a partir de matria orgnica em esta-
do de putrefao. A teoria da gerao espontnea sofreu seu pri-
meiro duro golpe com os experimentos realizados por Francesco
Redi (1626-1697), mdico florentino, em meados do sculo xvii.
Redi realizou um experimento (mostrado na Figura 5.1) no qual
demonstrou que vermes no apareciam espontaneamente e que
eram larvas de moscas que colocavam seus ovos na carne em

95
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

putrefao. O experimento de Redi est descrito em seu livro de


1668 Experimentos sobre a gerao de insetos (Esperienze intorno
alla generazione deglinsetti). No entanto, os adeptos da gerao
espontnea no se deram por vencidos. O bilogo ingls John
Turberville Needham (1713-1781) realizou uma srie de experi-
mentos com diversos tipos de extratos aquecidos em frascos que
algumas vezes eram selados hermeticamente, mostrando que aps
alguns dias micro-organismos poderiam ser detectados. A refuta-
o final da teoria da gerao espontnea veio com os experi-
mentos do qumico Frances Louis Pasteur (1822-1895) e do fsico
irlands John Tyndall (1820-1893), sendo ento admitido que a
vida pudesse vir de outra vida. O naturalista ingls Charles Robert
Darwin (1809-1882) props que a vida poderia ter sido originada
em uma pequena lagoa de gua aquecida contendo os nutrien-
tes adequados. Entretanto, Darwin nunca desenvolveu essa ideia.
Aps os experimentos de Pasteur, por um perodo de quase 60
anos no foram levantadas mais questes sobre a origem da vida.

Figura 5.1. Experimento de Redi. Em (a) o frasco foi coberto com uma tela
impedindo que as moscas depositassem suas larvas, em (b) o frasco no foi
coberto com uma tela e, portanto as moscas podem depositar suas larvas.
Fonte: IAG

96
Qumica prebitica

Em 1924, o bioqumico russo Alexander Ivanovich Oparin


(1894-1980) e, independentemente, em 1929, o geneticista ingls
John Burdon Sanderson Haldane (1892-1964) propuseram um es-
quema para a origem da vida a partir da matria inanimada. Esse
esquema mostrado na Figura 5.2 que, em linhas gerais, sugere
que molculas simples, tais como CO2, CO, CH4, NH3, N2, H2S
etc., reagem entre si formando molculas complexas como ami-
nocidos, bases nucleicas, lipdios, acares etc. Por sua vez, es-
sas molculas reagem entre si formando polmeros, que poderiam
se combinar para formar o que Oparin chamou de estruturas
coacervadas essas estruturas lembram clulas, mas no so.

Sntese de biomolculas
Surgimento do planeta Terra (aminocidos, acares, lipdeos
4,5 bilhes de anos atrs etc.) a partir de molculas
simples (CH4, CO, CO2, H2, H2S,
HCN, NH3, H2O etc.)

Sntese de estruturas
cacervadas clulas (podem
ser constitudas de lipdeos, Sntese de biopolmeros a partir
peptdeos, protenas etc.) a partir de biomolculas (aminocidos,
de biopolmeros (aminocidos, acares, lipdeos etc.)
acares, lipdeos etc.)

Evoluo das reaes qumicas Surgimento do primeiro ser vivo


dentro das estruturas no planeta Terra 3,5 a 3,8
coacervadas bilhes de anos atrs

Incio da evoluo dos seres


vivos como proposto por Darwin

Figura 5.2. Esquema de Oparin-Haldane para o surgimento da vida

97
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Dentro das estruturas coacervadas, reaes ocorreriam e,


depois de algum tempo, atingiriam uma complexidade que te-
riam todas as caractersticas de um ser vivo. Esse esquema
atualmente conhecido como hiptese de Oparin-Haldane. im-
portante salientar que todos esses processos levariam milhes
de anos. A formao de biomolculas a partir de molculas
simples, nas condies existentes na Terra primitiva, s foi con-
firmada a partir do experimento de Stanley Lloyd Miller (1930-
2007) e Harold Clayton Urey (1893-1981), realizado em 1953.
A Figura 5.3 mostra o equipamento que foi montado por
Miller e Urey, em que foram adicionados gases (metano-CH4,
amnia-NH3 e hidrognio-H2), que supostamente representa-
riam os gases presentes na atmosfera da Terra prebitica e esta-
riam simulando sua atmosfera. A gua adicionada ao sistema foi
aquecida a 80 C, simulando o mar da Terra primitiva, tal aque-
cimento faria o sistema circular e as descargas eltricas produ-
zidas por eletrodos colocados no equipamento seriam a fonte
de energia e simulariam os raios; aps alguns dias, foi possvel
detectar os aminocidos -alanina, cido asprtico, -alanina
e -aminocido-n-butrico. Portanto, o experimento de Miller
e Urey confirmou a hiptese de Oparin-Haldane e iniciou um
novo ramo da cincia chamado de qumica prebitica.
Posteriormente, algumas crticas foram feitas em relao ao ex-
perimento de Miller, uma delas afirmava que a atmosfera terrestre
jamais foi to redutora (metano-CH4, amnia-NH3, hidrognio-H2)
como supuseram Miller e Urey, mas sim neutra ou oxidante (meta-
no-CH4, nitrognio-N2, monxido de carbono-CO, dixido de carbo-
no-CO2, hidrognio-H2), dependendo das quantidades CO e CO2. O
problema de se utilizar atmosferas neutras/oxidantes em experimen-
tos como o de Miller que a quantidade de aminocidos sintetizados
muito baixa. No entanto, quando foram utilizadas fontes de energia
mais intensas, mesmo utilizando atmosferas neutras/oxidantes, ami-
nocidos foram sintetizados em grandes quantidades e variedades.
Outra crtica feita ao experimento de Miller era que os aminocidos
produzidos ao atingirem o mar da Terra prebitica seriam diludos,

98
Qumica prebitica

impossibilitando a formao de peptdeos/protenas. Porm diversos


experimentos mostraram que minerais podem pr-concentrar os ami-
nocidos e inclusive catalisar a formao de peptdeos/protenas.
Desde ento, vrios experimentos mostraram que as questes
levantadas em relao ao experimento de Miller foram resolvidas.

Eletrodos
H2O

H2
NH 3

CH 4

Condensador

Aminocidos em soluo

Figura 5.3. Equipamento utilizando por Miller para a sntese de aminocidos a


partir de gases que supostamente fariam parte da atmosfera da Terra prebitica.
Nesse experimento, foram utilizados os gases metano (CH4), amnia (NH3)
e hidrognio (H2) e, aps alguns dias, foram detectados os aminocidos
-alanina, cido asprtico, -alanina e -aminocido-n-butrico. Fonte: IAG

Qumica prebitica
A qumica prebitica estuda todas as reaes e processos que
poderiam ter contribudo para a origem da vida do planeta Terra,
sendo uma cincia interdisciplinar que utiliza informaes e co-
nhecimentos de diversas reas, tais como: astrofsica, geologia,
qumica, bioqumica, biologia, matemtica e fsica com o objetivo
de explicar o aparecimento da vida. Nos experimentos de qumica

99
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

prebitica, as substncias e condies de reao que possivelmen-


te existiram na Terra antes do surgimento da vida devem ser usa-
das. Quando a vida surgiu na Terra outro fator relevante e, apesar
de esse assunto ser ainda controverso, evidncias mostram que no
perodo entre 3,5 e 3,8 bilhes de anos atrs j existia alguma for-
ma de vida em nosso planeta. Portanto, as condies de reao e
substncias que j existiam na Terra h mais de 3,8 bilhes de anos
devem ser utilizadas nos experimentos de qumica prebitica.
No entanto, antes de discutir sobre os ambientes que fo-
ram responsveis pela sntese de molculas que originaram a
vida na Terra prebitica, relevante ressaltar que existiram duas
fontes dessas molculas. A Figura 5.4 mostra as duas fontes de
biomolculas da Terra prebitica: as endgenas, ou seja, as fon-
tes terrestres, e as exgenas, as fontes extraterrestres. As fontes
endgenas de biomolculas seriam a atmosfera, vulces, hidro-
termais, reaes em estado slido e em soluo aquosa ou mes-
mo combinaes dessas fontes. As fontes exgenas de biomol-
culas seriam os meteoros, cometas e poeira interestelar. Quanto
cada uma dessas fontes contribuiu para a totalidade das mol-
culas da Terra prebitica ainda objeto de muita discusso na
comunidade cientfica. Neste captulo, ser discutida somente a
contribuio das fontes endgenas (terrestres) para a sntese de
biomolculas e, consequentemente, sua possvel contribuio
para a origem da vida em nosso planeta.

Ambientes estudados em qumica prebitica


Os seguintes ambientes so estudados em qumica prebiti-
ca: reaes com misturas gasosas, reaes em estado slido, ci-
clos de hidratao e desidratao, reaes em soluo aquosa e
hidrotermais.

Reaes com misturas gasosas


Em experimentos de qumica prebitica envolvendo gases,
como a simulao da atmosfera da Terra, necessrio utilizar

100
Qumica prebitica

os gases que existiram na Terra antes da origem da vida, as-


sim como as possveis fontes de energia daquela poca. Nesse
ponto, uma questo precisa ser respondida: quais eram os ga-
ses existentes na Terra antes do incio da vida? Diferente da
atmosfera de hoje, a concentrao de oxignio (O2) da Terra
prebitica era muito baixa, e a exata composio qumica da
atmosfera da Terra prebitica assunto controverso no meio
cientfico, porm os seguintes gases muito provavelmente es-
tavam presentes na atmosfera: CO2, CO, CH4, N2, H2, H2O
(vapor) e H2S.
As fontes de energia disponveis para a sntese de molculas
nessa atmosfera eram as mais variadas: descargas eltricas, ra-
diao ultravioleta (uv), aquecimento, partculas de alta energia
etc. Devemos destacar aqui que a maior fonte de energia da Terra
prebitica para a sntese de biomolculas era proveniente do
Sol na forma de radiao uv. Diferente de hoje, o planeta Terra
naquela poca no estava protegido da radiao uv por uma
camada de oznio (O3), pois a concentrao de oxignio era
muito baixa. Assim, muito provavelmente a atmosfera presente
na poca contribuiu bastante para a sntese das biomolculas
necessrias para a origem da vida. A Tabela 5.1 mostra alguns
experimentos. Os 20 aminocidos mais comumente encontra-
dos em todos os seres vivos so chamados de aminocidos
proteicos alguns deles foram sintetizados nos experimentos
mostrados na Tabela 5.2: asparagina, cido asprtico, cistena,
cido glutmico, glicina, histidina, isoleucina, leucina, lisina,
prolina, treonina e valina. Alm dos aminocidos proteicos, di-
versos outros aminocidos chamados no proteicos, que so
comumente encontrados em meteoros, tambm foram sinteti-
zados. Alm disso, outras molculas que so importantes para
os seres vivos ou precursoras destas tambm foram sintetizadas,
tais como: bases nucleicas do dna/rna, ureia, cidos carboxli-
cos, imidazol, cido ciandrico, formaldedo e microestruturas
orgnicas.

101
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Tabela 5.1. Misturas de gases e fontes de energia utilizadas em experimentos


simulando atmosferas da Terra prebitica
ATMOSFERAS REDUTORAS

Mistura de gases Fonte de energia


CH4, NH3, H2O, H2 Descarga eltrica

CH4, C2H6, NH3, H2O Ondas de calor

CH4, C2H6, NH3, H2O, H2S uv (253.7, 184.9 nm)

CH4, NH3, H2O, CH3SH, C2H6, H2S, Hidrognio aquecido (uv-220-280


C2H5OH, C2H5NH2 nm)
CH4, N2, H2O, argilas Descarga eltrica
(montmorillonita, bentonita)
CH4, N2, H2O, H2, FeCl2, FeS, FeCO3, Descarga eltrica
diversos sais (NaCl, KCl, MgCl2,
CaCl2, NaHCO3)

ATMOSFERAS NEUTRAS/REDUTORAS

Mistura de gases Fonte de energia


CO2, N2, H2O Descarga eltrica

CO2, N2, H2O (mais oceano aquecido Descarga eltrica


com sais)
CO, N2, H2O Descarga eltrica

CO2/CO, N2, H2O Descarga eltrica

CO2/CO, N2, H2O Pulso de laser (infravermelho prximo)

CO/CO2, N2, H2O Prtons (2.0-4.0 MeV)

CO, N2, H2O Raio X

CO, N2, H2O Raio X (1-2 keV)

CO, N2, H2O Plasma (10.000 K)

Reaes em estado slido


No caso do estudo de reaes envolvendo substncias em es-
tado slido so mimetizados os seguintes ambientes: a) a erupo
de um vulco derrama lava que aquece o solo e a energia liberada
pode ser utilizada para reaes qumicas e b) impacto de cometas

102
Qumica prebitica

e meteoros libera calor que pode ser utilizado para reaes qu-
micas. A formao de polmeros um passo importante para o
aumento da complexidade das estruturas formadas. A Figura 5.4
mostra a formao de um dipeptdeo e, como resultado, h a li-
berao de uma molcula de gua. No entanto, para a formao
desses polmeros, a liberao de uma molcula de gua faz parte
do processo reacional e, em soluo aquosa, essa reao termo-
dinamicamente desfavorvel, o que significa que no ocorre. As
reaes em estado slido so ideais para a formao de peptdeos/
protenas, nas quais o aquecimento em estado slido sem presen-
a de gua facilita sua sada. Diversos estudos foram realizados
com o aquecimento de aminocidos mais minerais, sendo que
aquecendo misturas de diversos aminocidos na faixa de tempera-
tura entre 160 e 210 C foi possvel obter peptdeos de at 25 mil
Daltons, ou seja, seria o mesmo que 250 aminocidos (peso mole-
cular mdio de 100 Daltons) fossem ligados formando uma longa
cadeia. Pesquisadores demonstraram que possvel formar di ou
tri-peptdeos em temperaturas relativamente baixas (50 a 60 C),
quando aminocidos foram aquecidos com minerais. Em estudos
de reaes em estado slido tambm foram obtidas outras substn-
cias como: aminocidos, hidrocarbonetos e cidos carboxlicos.

H H O H O
H
+ +
H N C C O + H N C C O
H H
R R

ligao peptdica
H H O H O
+
H N C C N C C O + H2O
H H
R R

Figura 5.4. Formao da ligao peptdica

103
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Ciclos de hidratao e desidratao


Para as reaes envolvendo ciclos de hidratao e desidra-
tao, alguns ambientes que poderiam ser encontrados na Terra
prebitica podem ser mimetizados. Chuvas formariam pequenas
lagoas (hidratao), o calor do sol as secaria (desidratao) e,
algum tempo depois, novamente choveria formando outra vez
essas lagoas, resultando em um ciclo. As mars tambm pode-
riam proporcionar ciclos de hidratao e desidratao; na mar
alta, lagoas seriam formadas e, na mar baixa em conjunto com
o efeito do calor do sol, essas lagoas secariam. Portanto, ciclos de
hidratao e desidratao muito provavelmente foram comuns
na Terra prebitica. Devido diminuio e mesmo a total elimi-
nao da gua na fase de desidratao, esses ciclos so ideais
para a formao de peptdeos. Diversos estudos foram realizados
com diferentes temperaturas, diferentes metais, principalmente
o Cu2+, e minerais, assim como diferentes sais e concentraes
para simular a gua do mar. Esses estudos mostraram que pept-
deos so formados.

Reaes em soluo aquosa


Vamos considerar que as reaes em ambientes hidrotermais
so aquelas nas quais a temperatura maior que 80 C; as outras
(menor que 80 C) chamaremos simplesmente de reao em so-
luo aquosa. Muitos sistemas reacionais foram estudados em so-
luo aquosa utilizando diferentes substncias iniciais (cido cia-
ndrico-HCN, formaldedo-CHO, tiocianato de amnio-NH4SCN,
ureia-(NH2)2CO etc.), diferentes fontes de energia (calor, radiao,
descarga eltrica) e diferentes condies de reaes (minerais, pH,
concentrao de ons etc.). O sistema reacional envolvendo mol-
culas de cido ciandrico merece ateno devido grande varie-
dade de molculas que podem ser produzidas. O cido ciandrico
foi detectado em cometas, vulces, hidrotermais e formado em
diversas reaes envolvendo gases. Portanto, cido ciandrico era
uma substncia que poderia ser comumente encontrada na Terra
prebitica. Dois mecanismos podem ter sido importantes para

104
Qumica prebitica

a sntese de aminocidos: um baseado na reao de Strecker


(Figura 5.5) e o outro pelo mecanismo de Bucherer-Bergs. No
mecanismo de Strecker so necessrios amnia (NH3), cido cian-
drico (HCN) e aldedos-R-C(O)H ou cetonas-R-C(O)-R; no entanto,
a amnia da atmosfera da Terra prebitica pode ser decomposta
por radiao uv e isso poderia ter sido um fator limitante para a
sntese de aminocidos. Uma alternativa para esse problema seria
a sntese de aminocidos via mecanismo Bucherer-Bergs (Figura
5.6) utilizando ureia-(NH2)2CO, cido ciandrico e aldedos ou
cetonas. Em 1960, Joan Or descobriu que o refluxo de cianeto
de amnio (NH4CN) por alguns dias podia gerar at 0,50% de
adenina, que uma base nitrogenada do dna/rna. Diversos outros
compostos foram sintetizados utilizando cianeto de amnio em
diversas condies de reao, como purinas, pirimidinas e amino-
cidos (principalmente glicina).

NH2 NH2
O KCN H+
O
NH4CI R R
R H N OH
Figura 5.5. Reao de Strecker para a sntese de aminocidos

O O
H2N H2N
H
O N O
Ureia HO NH HCN NC NH HN -NH3
R1 R2 R1 R2 R1 NH
R1 R2
R2

O
H2N
H
N OH O HOOC HOOC NH2
O 2 NH H 2O
+NCO-
R1 NH R1 R2
R1 R2
R2

Figura 5.6. Sntese de aminocidos pelo mecanismo de Bucherer-Bergs

105
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Em 1979, foi feita a primeira descrio de hidrotermais, as


chamadas fumarolas negras. Essas fumarolas so causadas pelo
contato da gua fria do mar com lava vulcnica, ou pela penetra-
o da gua no solo submarino que entra em contato com a cma-
ra do magma, provocando a circulao da gua. A colorao des-
sas fumarolas resultado do contato do sulfeto (S2-) com metais, o
que forma compostos de colorao negra. As fumarolas negras so
ricas em metais de transio (Fe2+, Mn2+ etc.), o pH muito cido
(2,00-3,00), e as temperaturas podem atingir at 405 C, com altas
concentraes de CO2 (4-215 mmol/Kg), H2S (3-110 mmol/Kg), H2
(0,10-50 mmol/Kg) e CH4 (0,05-4,50 mmol/Kg).

Tabela 5.2. Sntese de aminocido em soluo aquosa usando aquecimento


como fonte de energia
Mistura inicial Temperatura Aminocidos
a
Asp, Ser, Leu, Ala, pirita- 200 C, 50 bar Gly, Ala
pirrotita-magnetita (PPM),
K-feldspato-muscovita-
quartzo (KMQ)
b
CO2(g), H2(g), KCN, NH4Cl, 150 C, 10 bar Gly, Asp, Ser, Glu, Ala, Ile, *Cys,
HCHO, HCl, NaHS, pirita- *Met
pirrotita-magnetita (PPM),
Ilita
c
CO2(g), N2(g), CH4(g) 260-325 C Gly, Ala, Sar
eritrose, formamidina,
d
80 C His
NH4Cl, KCN,
e,f
a-oxocidos, NH3 Gly, Ala, Phe, Glu, Sar
Formaldedo,
g,h,i
105 C Gly, Ser, Homo-Ser, Asp, Ala,
hidroxilamina, gua do b-Ala, Tau, Thr, Glu, a-ABA, Val,
mar modificada Nor-Val, Ile, Leu, Nor-Leu; Lys,
g-ABA, His Arg, Met
Acares, NH3, gua do
j
150 C Gly, Ala, Ser, Thr, Asp, Glu
mar modificada
k
Formaldedo, NH3 185 C Gly, Ala, Asp, Ser, Glu, Pro, Val,
Ile, Phe
ABA aminocido n-butrico; Ala alanina; Arg arginina; Asp cido aspartico; Cys cistena;
Glu cido glutmico; Gly glicina; His histidina; Ile isoleucina; Leu leucina; Lys lysina; Met
metionina; Nor-Leu norleucina; Nor-Val norvalina; Phe phenilalanina; Pro prolina; Sar sarcosina;
Ser serina; Tau taurina; Thr treonina; Val valina; *trao.

106
Qumica prebitica

Em 2000, foi descoberto outro tipo de hidrotermal chamada


de Lost City Hydrothermal Field Chamin de Carbonato, na
regio do oceano Atlntico prxima dorsal mesoatlntica. Nessa
hidrotermal, a gua do mar no entra em contato com lava vulc-
nica e fica a vrios quilmetros de distncia do eixo principal de
algum vulco. Essa hidrotermal formada devido penetrao de
gua fria do mar no solo submarino que aquecida devido pro-
fundidade ou mesmo algum tipo de reao exotrmica. A tempera-
tura nessa hidrotermal pode chegar a 200 C, o pH muito alcalino
(9,00-11,00) e altas concentraes de H2 e CH4 so encontradas.
Ambientes hidrotermais apresentam diversas vantagens para
o estudo da qumica prebitica: a) no fundo do mar, as molcu-
las ficavam protegidas da radiao ultravioleta do Sol que poderia
degrad-las; b) devido ao aquecimento e altas presses do fundo
do mar, a gua possua propriedades fsicas similares s de um
solvente orgnico; c) o gradiente de temperatura criava diferentes
ambientes para diferentes reaes; e, finalmente, d) a presena de
silicatos, sais da gua do mar e metais de transio poderiam ca-
talisar as reaes de formao de biomolculas e biopolmeros.
Uma reao importante observada em experimentos simulan-
do chamin de carbonato foi a reduo de dixido de carbono
(CO2) por hidrognio (H2) formando hidrocarbonetos. Um mineral
comum nesses ambientes a olivina, (Mg,Fe)2SiO4, responsvel
pela formao de hidrocarbonetos. Em experimentos simulando
hidrotermais, foi possvel sintetizar aminocidos, cidos nuclei-
cos, cidos carboxlicos, assim como diversas outras substn-
cias. Devido s altas temperaturas e dissoluo dos minerais
nesses ambientes liberando silicatos e metais de transio, estes
so propcios para a sntese de peptdeos. Estruturas coacerva-
das tambm foram sintetizadas em experimentos simulando esses
ambientes.

Minerais
At o momento foram descobertos mais de 4.440 diferentes
minerais, sendo que, todos os anos, 40 novos so encontrados.

107
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Contudo, em experimentos de qumica prebitica devem ser uti-


lizados apenas minerais que existiam na Terra antes da origem da
vida. Como a vida surgiu por volta de 3,5 a 3,8 bilhes de anos
atrs, somente minerais que existiram antes disso podem ser tes-
tados. No incio da formao do planeta Terra (> 4,56 bilhes de
anos) havia por volta de 60 minerais, sendo alguns deles: olivi-
nas (Mg,Fe)2SiO4), piroxnios, Fe-Ni-metal, FeS e incluses ricas
em Ca e Al (Tabela 5.3). Posteriormente, no perodo de > 4,56
a 4,55 bilhes de anos atrs devido a diversos processos envol-
vendo calor e gua, assim como acareao de meteoritos, esses
minerais se transformaram resultando em cerca de 250 minerais,
tendo como exemplos filossilicatos, hidrxidos, sulfatos, halita,
carbonatos, sulfetos com metais de transio e fosfatos (Tabela
5.3). Finalmente, devido a processos envolvendo fracionamen-
to, vulcanismo, liberao de gases e hidratao, h 4 bilhes de
anos passamos a ter entre 350 e 500 minerais, tais como: argilas,
minerais, feldspatoides e hidrxidos (Tabela 5.3). Portanto, so-
mente esses minerais so aqueles que devem ser utilizados em
experimentos de qumica prebitica.

Tabela 5.3. Minerais existentes na Terra antes da origem da vida


Perodo de
Processo de formao em Nmero de
Exemplo de mineral
formao bilhes de anos espcies
atrs
Condritos > 4,56 olivina piroxnios, Fe-Ni- 60
primrios metal, FeS, incluses ricas
em Ca e Al
Meteoros de Fe > 4,56-4,55 filossilicatos, hidrxidos, 250
e acondritos. sulfatos, halita,
Alteraes dos carbonatos, sulfetos com
minerais por metais de transio,
causa da gua e fosfatos etc.
do calor
Evoluo das 4,55-4,00 feldspatos, hidrxidos, 350-500
rochas gneas minerais de argila
Condritos > 4,56 olivina piroxnios, Fe-Ni- 60
primrios metal, FeS, incluses ricas
em Ca e Al

108
Qumica prebitica

Como os minerais sempre existiram na Terra, devem ter de-


sempenhado um importante papel na origem da vida no planeta.
Diversos trabalhos tm demonstrado que minerais poderiam cata-
lisar reaes qumicas e pr-concentrar molculas por adsoro,
protegendo-as da degradao pela radiao ultravioleta ou hidr-
lise. Outros papis tambm podem ser atribudos aos minerais, tais
como cdigo gentico primitivo, membranas para coacervados e
energia para metabolismo.

Adsoro/catlise/proteo
Uma das crticas feitas ao experimento de Miller foi que os ami-
nocidos, ao atingirem o mar, por causa do grande volume de gua,
seriam diludos, e, em consequncia, a formao de peptdeos e pro-
tenas no ocorreria. Em 1951, John D. Bernal (1901-1971) publicou o
livro The physical basis of life, baseado em uma palestra proferida por
ele em 1947. Nesse livro Bernal prope que minerais poderiam ter de-
sempenhado importantes papis na origem da vida, como de pr-con-
centradores de molculas orgnicas, de proteo contra a degradao
e inclusive de cdigo gentico. Diversos experimentos mostraram que
minerais podem adsorver biomolculas (aminocidos, bases nucleicas
do dna/rna etc.), portanto, pr-concentr-las e, uma vez adsorvidas na
superfcie do mineral, essas molculas ficariam protegidas da hidrlise
e radiao ultravioleta. A adsoro das molculas sobre minerais pode
ser fsica (fraca, DH na faixa de 20 kJ) ou qumica (forte, DH na faixa
de 200 kJ). No caso da adsoro fsica, a interao devida atrao
eletrosttica, interao dipolo-dipolo ou foras de van der Waals. No
caso da adsoro qumica, temos a formao de uma ligao qumica
entre a molcula adsorvida e o mineral. Existem diversos trabalhos
que mostram que minerais podem ter um efeito catalisador sobre uma
reao qumica, contudo, em muitos casos ocorre participao do mi-
neral na reao, ocasionando seu consumo.

Cdigo gentico primitivo


Em meados dos anos 1960, Alexander Graham Cairns-Smith
(1931-) props que antes do atual cdigo gentico, que muito

109
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

complexo, existiu um bem mais simples. Segundo Cairns-Smith,


esse cdigo gentico deveria ser constitudo de um material que
fosse facilmente encontrado na Terra antes da origem da vida, e
que de alguma forma pudesse armazenar e transmitir informao
e fosse simples. Minerais so ideais para tal fim, so abundantes
na natureza, sempre existiram no nosso planeta, podem crescer
e se dividir (quebrar), e so estruturas organizadas que podem
reter e transmitir informao. O grande problema da proposta
de Cairns-Smith que, at o momento, no existe nenhum fato
experimental corroborando sua hiptese.

Membranas para coacervados


Todos os seres vivos conhecidos possuem membranas.
Existem diversos minerais que possuem estruturas nas quais as
molculas podem ficar protegidas e sofrer reaes. Exemplos des-
ses minerais so as argilas 2:1 e as zelitas (Figura 5.7). Assim, al-
guns minerais poderiam ter sido membranas primitivas de clulas.

Figura 5.7. Estrutura de uma argila 2:1. Fonte: Adaptado de Nasa/JPL-Caltech/


MSSS

110
Qumica prebitica

Energia para metabolismo


Metabolismo a maneira pela qual os seres vivos obtm ener-
gia do meio ambiente para garantir sua sobrevivncia. Podemos
agrupar os seres vivos em dois tipos: autotrficos e heterotrficos.
Os organismos autotrficos sintetizam todos os seus compostos
orgnicos a partir de molculas de dixido de carbono (ou outra
unidade C1), as plantas so exemplos de tais organismos. Os orga-
nismos heterotrficos necessitam de molculas (protenas, lipdeos,
acares etc.) previamente prontas para serem utilizadas posterior-
mente para outras snteses; o homem um exemplo. Em 1988, o
qumico alemo Gnter Wchtershuser (1938-) props um meca-
nismo de metabolismo autotrfico baseado na formao da pirita-
-FeS2, tambm conhecida como ouro dos tolos, devido a sua co-
lorao amarela que parecida com a do ouro. A fonte de energia
para origem da vida quimiotrfica fornecida pela reao a seguir:

FeS + H2S = Fe S2 + 2H+ + 2e-

Os eltrons fornecidos pela formao da pirita poderiam ser


utilizados para a reduo de CO2. A formao do cido succ-
nico um exemplo de como a reao termodinamicamente
favorvel.

4CO2 + 7FeS + 7H2S = 7Fe S2 + (CH2COOH)2 + 4H2O DG = 420 kJ/mol

Portanto, reaes poderiam ocorrer na superfcie do mineral e


isso seria um exemplo de um metabolismo primitivo.

Quiralidade e os minerais
Muitas substncias apresentam uma propriedade chamada
quiralidade, palavra originada do grego quiros que signifi-
ca mo. Esse nome vem de uma caracterstica das mos, as-
sim como de muitos objetos tridimensionais que formam pares
assimtricos. Ou seja, uma mo a imagem especular de outra.
No caso das molculas orgnicas, h um centro quiral, que

111
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

quando um tomo de carbono tem ligado a ele 4 diferentes to-


mos. Todos os aminocidos proteicos, com exceo da glicina,
possuem um centro quiral. Dessa forma, em qualquer sntese
de aminocidos, o resultado a chamada mistura racmica,
ou seja, 50% de aminocidos denominados L-aminocidos (le-
vgiros) e 50% de aminocidos denominados D-aminocidos
(dextrgiros). Os D-aminocidos desviam a luz polarizada para
a direita e os L-aminocidos para a esquerda. Contudo, em
todos os seres vivos os aminocidos so do tipo L-aminocidos
e os acares do tipo D-acares. No conhecida a razo
dessas escolhas ou mesmo como isso ocorreu, porm alguns
experimentos demonstram que minerais poderiam ter tido um
importante papel na seleo de L-aminocidos. Experimentos
realizados com calcita (CaCO3) mostraram que possvel se-
parar o L-asprtico do D-asprtico pela adsoro preferencial
de um aminocido em relao ao outro, dependendo da face
do mineral.

Concluso
Depois de quase 60 anos do clssico experimento de Miller,
uma grande quantidade de evidncias experimentais foi acumu-
lada pela qumica prebitica, demonstrando que possvel a ori-
gem de vida a partir da matria inanimada dentro do esquema
proposto por Oparin-Haldane. Outro esquema possvel seria da
origem da vida por meio do metabolismo, como proposto por
Wchtershuser. Entretanto, reproduzir as condies exatas de
como isso ocorreu pode ser impossvel, pois h muitas incertezas
sobre as condies da Terra prebitica. Qual era a exata composi-
o dos gases da atmosfera, dos sais da gua do mar, dos precur-
sores para a sntese das biomolculas etc.? Qual foi o papel de-
sempenhado por fontes terrestres e extraterrestres de precursores e
molculas para a sntese prebitica? Todavia, o importante aqui
demonstrar que isso possvel e essa possibilidade abre perspec-
tivas para a imaginao e engenhosidade dos pesquisadores para

112
Qumica prebitica

propor inmeras rotas para a origem da vida, abrindo assim um


universo cheio de possibilidades de diferentes formas de vida.

Referncias
Bleeker, W. et al. Mineral evolution. American Mineralogist, v. 93,
p. 1693-1728, 2008.
Rampelotto, P. H. A qumica da vida como ns no conhecemos.
Qumica Nova, v. 35, p. 1619-1627, 2012.
Zaia, D. A. M.; Zaia, C. T. B. V. Os cristais e a origem da vida: a se-
leo quiral de aminocidos na Terra primitiva. Cincia Hoje,
v. 37, p. 38-43, 2005.
Zaia, D. A. M.; Zaia, C. T. B. V. Algumas controvrsias sobre a ori-
gem da vida. Qumica Nova, v. 31, p. 1599-1602, 2008.

113
ORIGEM DA VIDA
Captulo 6
Douglas Galante e Fabio Rodrigues

Nosso conhecimento moderno sobre a vida no planeta tem


como base, em grande parte, o trabalho de Charles Robert Darwin,
em especial A origem das espcies. Este livro a compilao de
um extenso trabalho de coleta de dados e reunio de evidncias
que comprovaram a ocorrncia do que hoje chamamos evoluo
darwiniana, na qual os organismos vivos so resultado de um lon-
go processo de modificao aleatria e herana.
Apesar de ser um dos mais importantes fatos cientficos da
histria, comprovado por inmeros dados experimentais, a evolu-
o darwiniana no trata, a princpio, do problema da origem da
vida em si, ao qual Darwin se refere brevemente: [] devo inferir
por analogia que, provavelmente, todos os seres orgnicos que j
viveram na Terra descendem de uma forma primordial, na qual a
vida uma vez se baseou* (Traduo nossa).

* [] I should infer from analogy that probably all organic beings which have
ever lived on this Earth have descended from some one primordial form, into
which life was first breathed.

115
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Darwin volta a essa questo em uma carta a seu amigo Joseph


Dalton Hooker, datada de 1 de fevereiro de 1871, no clebre
pargrafo:

[...] comumente dito que todas as condies para a primeira produ-


o de um ser vivo esto presentes agora, e podem ter sempre estado
presentes. Mas se (e, oh, um grande se) ns pudssemos conceber, em
uma pequena poa quente, com todo tipo de sais de amnia e sais
fosfricos com luz, calor, eletricidade etc. presentes , que um com-
posto proteico se formasse, pronto para sofrer mudanas ainda mais
complexas, no presente ele seria rapidamente devorado ou absorvido, o
que no teria sido o caso antes das criaturas vivas terem se formado**
(Traduo nossa).

Ou seja, Darwin concebia um cenrio qumico na Terra pri-


mitiva para a origem da vida, gradual e envolvendo o aumento
de complexidade, e sabia que esse poderia ser o ponto de partida
para a Evoluo, porm deixou claro que o processo de origem
ainda no era claro, mas que deve ter ocorrido ao menos uma vez
na Terra, ou fora dela. H discusses se a vida surgiu mais de uma
vez em nosso planeta, de maneira independente e com diferentes
caractersticas, mas, pelo que observamos hoje, mesmo que isso
tenha acontecido, apenas uma forma de vida sobreviveu, e, mes-
mo que eventos de origem estivessem acontecendo agora, esses
novos seres provavelmente seriam rapidamente devorados pelos
organismos existentes e j bem adaptados ao ambiente.
Na verdade, a busca pela origem da vida muito mais antiga
que Darwin, estando intimamente ligada compreenso de nosso

** [...] it is often said that all the conditions for the first production of a living be-
ing are now present, which could ever have been present. But if (and oh what
a big if) we could conceive in some warm little pond with all sort of ammonia
and phosphoric salts, light, heat, electricity present, that a protein compound
was chemically formed, ready to undergo still more complex changes, at the
present such matter would be instantly devoured, or absorbed, which would
not have been the case before living creatures were formed.

116
Origem da vida

lugar no mundo. Praticamente todas as civilizaes humanas pos-


suem mitos de cosmogonia, os quais tentam explicar a origem do
Universo e dos seres vivos.
No Ocidente, a mitologia grega repleta de histrias de cria-
o, baseadas em seu panteo de deuses. Essas histrias foram
compiladas por volta do ano 700 a.C. por Hesodo e descreviam
o nascimento dos deuses e, posteriormente, da humanidade, a
partir do caos primordial. Posteriormente, Aristteles (384-322
a.C.) foi um dos primeiros pensadores a formular uma teoria na-
tural sobre a origem da vida, na qual organismos vivos comple-
xos poderiam surgir a partir de matria inanimada pulges a
partir do orvalho de plantas, moscas de matria em estado de
putrefao, ratos de feno, crocodilos de toras podres etc. Essas
ideias, uma forma primitiva da teoria de abiognese, foram popu-
larizadas e cristalizadas no pensamento ocidental, permanecen-
do, com os mitos criacionistas religiosos, como o modelo padro
para a origem da vida.
No entanto, os avanos tcnicos no sculo xvii e o desenvol-
vimento da cincia experimental aumentaram o conhecimento
sobre os mecanismos de funcionamento da vida e iniciaram uma
srie de crticas ao senso comum e ao mito popular em torno da
abiognese. A descoberta do mundo microscpico, incluindo suas
formas de vida, impulsionou esse conhecimento e foi possvel gra-
as ao desenvolvimento do microscpio tico por Robert Hooke.
Seu trabalho resultou na publicao dos primeiros desenhos de
objetos de escala microscpica, em 1665, em especial, a primeira
identificao de que os organismos vivos so compostos de clu-
las, termo cunhado pelo prprio Hooke (Figura 6.1). Anton van
Leeuwenhoek continuou seu trabalho e fez os primeiros desenhos
de micro-organismos, mostrando que a vida estava presente mes-
mo nessas escalas. No entanto, a observao de micro-organismos
ainda deixava espao para a interpretao abiognica, uma vez
que no se compreendia corretamente a reproduo desses seres,
que pareciam surgir da matria inanimada, enquanto estavam rea-
lizando reproduo assexuada.

117
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Figura 6.1. Livro contendo as primeiras imagens microscpicas publicadas,


feitas com o microscpio desenvolvido por Hooke. direita est representado
seu desenho da cortia, com a primeira descrio das clulas biolgicas.
Fonte: http://catalogue.wellcomelibrary.org/

A primeira evidncia slida contra a gerao espontnea viria


alguns anos depois, em 1668, com os famosos experimentos feitos
por Francesco Redi, os quais demonstraram que as larvas que cres-
ciam na carne no surgiam espontaneamente, como se acreditava,
mas eram resultado de moscas terem depositado ovos no alimento
desprotegido. A concluso, tida como geral na poca, que toda a
vida precedia de vida, ou seja, a teoria da biognese.
Lazzaro Spallanzani, na Itlia, em 1768, mostrou que micro-
-organismos estavam presentes no ar e que podiam ser eliminados
com a fervura da gua, abrindo caminho para o trabalho de Louis
Pasteur. Na Frana do sculo xix, Pasteur conduziu uma srie de
experimentos que demonstraram que os micro-organismos respon-
sveis pela fermentao e degradao de alimentos, como leite e
cerveja, provinham de contaminao do ambiente. Uma vez que
essa contaminao era evitada, o alimento mantinha-se intacto,
e essa foi tida como uma das mais fortes demonstraes de que
o processo de gerao espontnea, ou abiognese, no ocorria.

118
Origem da vida

Juntamente com o alemo Robert Koch, Pasteur foi considerado


o pai da microbiologia, fornecendo os subsdios para diversos
processos de esterilizao e assepsia, o que impulsionou ramos
da preservao de alimentos e da medicina. Desse momento em
diante, a microbiologia desenvolveu-se rapidamente para desven-
dar a riqueza de uma biodiversidade antes desconhecida de nosso
planeta, baseando-se no princpio de que a vida precede de vida.
A teoria da origem abitica parecia descartada.
No entanto, uma vez que sabemos que nosso planeta no
eterno, tendo se formado h cerca de 4,6 bilhes de anos
(Patterson, 1956), no podemos estender o conceito da biog-
nese indefinidamente ao passado em algum momento, deve
ter ocorrido um evento singular, no qual o primeiro ser vivo se
formou, e do qual todos os outros seres seriam descendentes.
Uma alternativa a essa lgica a teoria da panspermia (Melosh,
1988), que coloca como possibilidade a vida em nosso planeta
ter tido origem extraterrestre, podendo assim ser mais antiga que
a prpria Terra, mas no eliminando a necessidade de ter surgido
em algum ponto do Universo, uma vez que tambm passou por
um processo evolutivo, no tendo sido sempre capaz de abrigar
seres vivos. Essa teoria foi adotada por diversos cientistas ao lon-
go da histria, incluindo Hermann von Helmoltz (pela sua teoria
de cosmozoa micrbios vindo do espao), Lord Kelvin, um
grande opositor da teoria evolucionista, e, mais recentemente,
Fred Hoyle e Chandra Wickramasinghe (1999). At o momento,
no h nenhum evidncia comprovada de que esse fenmeno de
fato ocorre, apesar de vrios experimentos mostrarem que micro-
-organismos seriam capazes de sobreviver a uma viagem espacial
(Abrevaya, 2011).
Com a limitao da teoria da biognese, requerendo ao menos
um ponto singular no tempo e espao (a prpria origem da vida),
seja na Terra ou fora dela, a teoria abitica voltou a ser considera-
da pela cincia moderna. A viso transformista, na qual a matria
no viva tem chances de se tornar viva, pode ser ligada a Erasmus
Darwin, Georges Louis Leclerc conde de Buffon e, especialmente,

119
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Jean-Baptiste de Lamarck, o qual, em 1809, j propunha um pro-


cesso de gerao espontnea fsico-qumico, usando os nutrientes
e fontes de energia disponveis na Terra primitiva (Lazcano, 2010).
Darwin se baseou nas ideias de seus predecessores, culminan-
do com o conceito de sopa primordial descrito em sua carta a
Hooker. No entanto, a ausncia de maiores tentativas de explicar
a origem da vida por Darwin espantou muitos de seus amigos e se-
guidores, como Haeckel, que apontou essa como uma das maiores
falhas em A origem das espcies (Haeckel, 1862). Apesar disso, o
conceito exposto por Darwin de uma origem qumica e gradual da
vida formou a base para os estudos posteriores.
O desenvolvimento paralelo da rea da qumica orgnica, no
incio do sculo xix, forneceu os subsdios para o estudo da qu-
mica prebitica. No entanto, Berlezius, um de seus fundadores,
afirmou em 1827 que no seria possvel combinar matria inor-
gnica de maneira a criar a matria viva. Apesar disso, um ano
aps essa afirmao, seu amigo e antigo aluno Friedrich Whler
mostrou que a ureia (componente da urina) poderia se formar
pelo simples aquecimento de cianeto de amnia, em um pro-
cesso totalmente abitico, sem a presena de um rim animal
(Leicester, 1974). Uma nova rea de pesquisa havia nascido. Em
1850, Adolph Strecker sintetizou alanina, um aminocido, a base
das protenas, e, posteriormente, Alexander M. Butlerov sinteti-
zou acares, a base dos carboidratos e principal fonte de ener-
gia dos seres vivos.
Molculas orgnicas ainda mais complexas foram sintetizadas
com o tempo. Em 1877, Mendeleyeev foi capaz de formar hidro-
carbonetos a partir de precursores simples, mostrando a origem de
lipdios. Ao final do sculo xix, muitos experimentos j mostravam
a possibilidade de sntese de cidos graxos e acares por meio
de descargas eltricas em misturas gasosas. No incio do sculo
xx, Walther Lb, Oskar Baudisch e outros descreveram a sntese
de aminocidos a partir de formamida e gua sob luz ultraviole-
ta e descargas eltricas (Bada; Lazcano, 2003). Esses experimen-
tos, no entanto, no eram realizados com o intuito de simular as

120
Origem da vida

condies descritas por Darwin, de Terra primitiva, mas eram um


esforo puro para a compreenso da qumica dessas reaes.
Em novembro de 1923, a teoria da sntese qumica da vida, em
um cenrio realista, revisitada pelo russo Aleksandr Ivanovich
Oparin, com a publicao do livro A origem da vida. Para o bilo-
go e qumico russo, a gerao espontnea combatida por Pasteur
e seus predecessores de fato no poderia acontecer nas condies
atuais no planeta, mas deve ter sido possvel ao menos uma vez no
passado, quando as caractersticas fsico-qumicas eram tais que
a sopa primordial proposta por Darwin poderia ter se formado.
A proposta era que seria necessrio uma atmosfera sem oxignio
na verdade, essa hiptese s includa na segunda edio de
seu livro (Oparin, 1938) combinada ao da luz solar, o que
provocaria reaes que no apenas gerariam molculas orgni-
cas, mas induziriam sua complexificao at que se formassem
coacervados, ou seja, aglomerados proteicos que seriam capazes
de se reproduzir de maneira primitiva por fisso, tendo assim um
metabolismo primitivo que garantiria sua continuidade e diversifi-
cao. Em 1929, antes da traduo do trabalho de Oparin para o
ingls, John Burdon Sanderson Haldane publicou uma teoria an-
loga, na qual os oceanos primitivos funcionaram como uma sopa
quente e diluda, onde a matria viva evoluiu a partir de molculas
autorreplicantes.
Alguns anos depois, em 1953, Stanley Miller, aluno de Harvey
Urey na Universidade de Chicago, realizou um experimento ba-
seado nas ideias de Oparin e Haldane, simulando uma atmosfera
redutora como se acreditava ser a da Terra primitiva, tendo como
fonte de energia descargas eltricas experimento que ficou co-
nhecido como o de Miller-Urey (Figura 6.2A). Depois de uma se-
mana em funcionamento, o grupo reportou a produo de ami-
nocidos de forma completamente abitica (Miller, 1953) (Figura
6.2B), e, em uma reanlise das amostras feitas em 2007, com
tcnicas modernas, aps a morte de Miller, mostrou-se que mais
de 20 tipos dessas molculas bsicas da vida haviam sido produ-
zidas (Johnson, 2008). Pela primeira vez, um experimento havia

121
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

sido desenhado explicitamente para tentar simular as condies


de Terra primitiva, e obtido, com sucesso, molculas tidas como
biolgicas. Foi um marco importante para a qumica prebitica, a
qual iniciou uma nova fase experimental.

5cm
A B
Figura 6.2. (A) Modelo do reator de descargas eltricas usado no experimento
de Miller-Urey e (B) resultados originais de cromatografia em papel separando
alguns dos aminocidos produzidos aps uma semana de simulao (Miller,
1953)

No entanto, o experimento de Miller usou uma atmosfera que


hoje sabemos no ser a melhor anloga atmosfera primitiva glo-
bal terrestre, que deve ter tido uma composio menos redutora
(Kasting, 1993). Em condies mais realistas, o experimento no
produz as molculas prebiticas. No entanto, vrios cenrios al-
ternativos foram propostos na Terra primitiva, quando a presena
de gases redutores poderiam promover as reaes qumicas neces-
srias para a produo dos aminocidos, como os gases expelidos
em erupes vulcnicas, as chamadas plumas vulcnicas (Parker
et al., 2011). Dessa maneira, possvel que, em alguns pontos
do planeta, verdadeiros reatores estivessem em funcionamento,
produzindo molculas que, mais tarde, se complexificariam at o
ponto de formar sistemas vivos.
Sabemos que a vida como a conhecemos composta de ma-
cromolculas, ou seja, grandes molculas formadas por subunida-
des menores. Alguns exemplos so os cidos nucleicos, formados
por nucleotdeos; as protenas, formadas por aminocidos e os car-
boidratos, formados por acares. A passagem de monmeros para

122
Origem da vida

polmeros essencial para a funo dessas diferentes macromo-


lculas, pois a sequncia dos monmeros define a conformao
tridimensional (que define a atividade cataltica das enzimas, por
exemplo) e a informao que ali est armazenada (no caso dos ci-
dos nucleicos). Sidney Fox mostrou que essa passagem possvel
em diferentes condies, realizando, nos anos 1950 e 1960, uma
srie de experimentos na qual revelou que aminocidos, quando
secos a partir de uma soluo ou aquecidos, poderiam se combi-
nar em estruturas maiores, s vezes lineares, s vezes globulares,
que ele chamou de proteinoides, os quais acreditava serem os
precursores das clulas atuais (Fox, 1960; Fox; Dose, 1979).
O cenrio cientfico at o momento caminhava para um con-
senso de que as molculas bsicas para a vida poderiam se formar
por reaes qumicas simples, em um cenrio anlogo ao existente
na Terra primitiva. Uma alternativa que essas mesmas molculas
poderiam se formar no ambiente espacial e serem trazidas para a
Terra por cometas e meteoros. Clculos mostram que a quantidade
de material orgnico produzido na Terra e trazido de fora dela po-
dem ter sido equivalentes (Chyba; Sagan, 1992), e, provavelmente,
ambos os processos aconteceram simultaneamente e de maneira
complementar. Essas molculas, em um ambiente propcio no pla-
neta, poderiam formar estruturas mais complexas, mas a partir de
que ponto podemos dizer que um sistema qumico se torna vivo?
Se queremos compreender o processo de origem da vida,
precisamos definir corretamente o problema. Queremos saber a
origem do Homo sapiens? A cincia j conseguiu desvendar a
rota de nossos ancestrais saindo da frica e colonizando o plane-
ta (Underhill, 2001). A origem dos animais? Os fsseis mostram
uma exploso de vida h cerca de 550 milhes de anos, conheci-
da como Exploso do Cambriano (Bowring et al., 1993). Quando
pensamos na origem da vida, estamos falando da origem de todo
sistema que pode ser dito como vivo, o que uma definio cir-
cular que deve ser mais esclarecida. Na verdade, h diferentes de-
finies de vida disponveis, feitas por cientistas e filsofos (Luisi,
1998; Gayon, 2010). No entanto, no h um consenso ou uma

123
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

definio perfeita, cada uma tem suas falhas ou limitaes, funcio-


nando bem em alguns casos e falhando em outros (Lazcano, 2010;
Tirard; Morange; Lazcano, 2010).
Historicamente, podemos referenciar uma das primeiras ten-
tativas modernas de definio de vida publicao do livro O
que vida? de Erwin Rudolf Josef Alexander Schrdinger, em
1944. O livro foi escrito aps uma srie de palestras pblicas de
Schrdinger em 1943 na Trinity College, Dublin, que tinham o
principal objetivo de relacionar o evento de origem da vida com
as condies fsicas e qumicas existentes naquele momento, pro-
pondo que a origem tenha sido uma decorrncia do estado do
planeta. O livro introduz ainda a ideia de um cristal aperidico
que continha a informao gentica armazenada pelas diferentes
configuraes de ligaes qumicas, o que estimulou a busca para
desvendar a estrutura qumica do dna (cido desoxirribonucleico,
macromolcula biolgica), sendo por isso considerado a base para
o desenvolvimento dos fundamentos moleculares da vida, ou,
simplesmente, biologia molecular.
Apesar de a existncia do dna ser conhecida desde o sculo
xix isolado inicialmente, associado a protenas e chamado de
nuclena por Friedrich Miescher em 1869 (Dahm, 2008) , seu
papel na reproduo e sua estrutura helicoidal ainda no estavam
definidos quando Schrdinger props essas ideias. Gregor Mendel
j havia estabelecido os princpios da hereditariedade gentica
em 1865 (Mendel, 1865), que foi demonstrada estar associada
aos cromossomos em 1915, no que ficou conhecido como a te-
oria dos cromossomos de Boveri-Sutton (Morgan, 1915; Sutton,
1903). A composio qumica dessas entidades foi sendo des-
vendada gradativamente ao longo dos anos, porm, sua estrutura
tridimensional, que era a chave para o processo de codificao
da informao gentica, ainda era desconhecida e dependeria
do avano das tcnicas de imageamento em nvel molecular. Em
1953, James Dewey Watson e Francis Crick publicam um artigo na
revista Nature com a proposta da estrutura tridimensional do dna
(Watson; Crick, 1953), construda baseada na imagem feita pela

124
Origem da vida

tcnica de difrao de raios X por Rosalind Franklin um ano antes


(Franklin; Gosling, 1953) (Figura 6.3).

Figura 6.3. (A) Imagem de difrao de raio X de um cristal de dna, conhecida


como Foto 51, feita por Rosalind Franklin em 1952, que baseou a
determinao da estrutura da molcula (B) por Watson e Crick (1953). Fonte:
Special Collections & Archives Research Center, Oregon State University
Libraries

A descrio da estrutura do dna permitiu que o mecanismo


de codificao gentico fosse compreendido, resultando em um
perodo de grande desenvolvimento na biologia molecular (que
perdura at hoje), o que proporcionou o estudo dos mecanis-
mos mais fundamentais de funcionamento dos organismos vivos.
Definir uma separao clara entre vida e no vida deixou de ser
uma prioridade, uma vez que muitos cientistas da poca acredi-
tavam que os fundamentos da vida pareciam repousar no dna, e
que seria possvel compreender a vida conhecendo os princpios
fsico-qumicos da natureza.
No entanto, a definio de vida continua voltando ao cen-
rio cientfico e provocando intensos debates em questes atu-
ais, como a origem das estruturas microscpicas no meteorito

125
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

marciano Allan Hills 84001 (McKay et al., 1996), a questo se vrus


so vivos ou no, e os recentes desenvolvimentos da biologia sin-
ttica, em especial a sntese completa de um genoma bacteriano
e sua incorporao na estrutura de uma microbactria (bactria do
gnero Mycoplasma, com cerca de 0.3 mm, menor que a maio-
ria das bactrias), em pesquisa desenvolvida no Instituto J. Craig
Venter (Gibson et al., 2010; Bedau et al., 2010), em um estudo em
andamento que almeja no apenas a compreenso das funes
mnimas necessrias vida, mas o desenvolvimento de tcnicas
que permitam o design de organismos vivos completos (micro-or-
ganismos) com as caractersticas que desejamos. Esses estudos, por
exemplo, podem possibilitar a criao de organismos sintticos
capazes de produzir medicamentos, insumos ou combater outros
micro-organismos patognicos, promovendo alguns dos maiores
avanos mdicos e tecnolgicos dos prximos anos ou dcadas.
Apesar dos esforos e avanos cientficos, ainda no somos
capazes de elaborar uma definio nica e completa de vida. Entre
o sculo xviii e a primeira metade do sculo xx, grande parte dos
naturalistas e bilogos mais influentes do mundo discutiram a ori-
gem e evoluo da vida sem uma definio precisa, baseando-se
em concepes de senso comum, incluindo descries fenomeno-
lgicas e conceitos intuitivos (Tirard, 2010). Talvez seja mesmo im-
possvel formular uma definio totalmente precisa de vida Kant
j afirmava que definies precisas so possveis na filosofia e ma-
temtica, mas conceitos empricos s podem ser explicitados atra-
vs de descries, as quais dependem do momento histrico (Fry,
2000). Nietzsche tambm compartilhava da opinio que h alguns
conceitos que podem ser definidos, enquanto outros apenas tm
uma histria (Lazcano, 2008). Ainda no sabemos ao certo em qual
categoria se enquadra a definio de vida, mas os esforos nessa
busca aumentam nosso conhecimento de mundo. Alm disso, a
definio de vida tem implicaes que vo alm da discusso cien-
tfica e filosfica, estendendo-se, por exemplo, na rea jurdica, so-
cial e poltica, com implicaes para qualificar aborto, eutansia,
organismos transgnicos e uso de clulas-tronco embrionrias.

126
Origem da vida

Uma das definies mais usadas, porm no necessariamente


a definitiva vida um sistema qumico autossustentado, capaz
de sofrer evoluo darwiniana usada como definio oficial de
vida da Nasa, porm, muitas vezes genrica demais. Podemos
simplificar a vida como a conhecemos no planeta em trs carac-
tersticas bsicas:

1. Compartimentalizao: todo organismo vivo possui uma ma-


neira de se separar do meio que o circunda. As clulas usam
membranas lipdicas; os vrus, capsdeos proteicos. Essa mem-
brana tem diversos papis, mas o mais bsico de todos o de
concentrar, em seu interior, as molculas necessrias para seu
funcionamento;
2. Informao: o organismo vivo deve possuir, em si, toda a in-
formao necessria para sua manuteno e continuidade,
portanto, para se perpetuar e reproduzir;
3. Metabolismo: o organismo vivo deve ser capaz de realizar as
reaes qumicas necessrias para garantir sua sobrevivncia
e reproduo. Essa caracterstica no est completamente pre-
sente nos vrus, que usam outros organismos como hospedei-
ros para realizar essas funes (motivo da controvrsia se vrus
esto ou no vivos), o que indica que vrus e clulas provavel-
mente coevoluiram durante a histria da Terra.

Essas caractersticas so todas encontradas nas clulas atuais,


porm h discusses sobre a ordem de seu aparecimento na his-
tria do planeta, sem um consenso. possvel mesmo que elas
tenham evoludo de maneira simultnea e paralela, at que tenha
ocorrido um momento de integrao. As primeiras tentativas de ex-
plicar o processo de compartimentalizao usaram a formao de
coacervados, aglomerados proteicos que podem ocorrer de manei-
ra simples a partir de uma mistura de aminocidos. Posteriormente,
os estudos nessa rea concentraram-se em outros tipos de mol-
culas, em especial as com caractersticas anfiflicas uma de suas
extremidades hidroflica (tendo forte interao com gua e outros

127
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

solventes polares) e a outra hidrofbica (apolar, repelindo gua).


Um exemplo desse tipo de molcula so os fosfolipdios, como
os que constituem as membranas da maioria das clulas. Quando
essas molculas so colocadas em gua, ou outro solvente polar,
sua parte hidrofbica procura evitar o contato com as molculas
de gua, e elas se auto-organizam, de maneira que as partes hidro-
flicas ficam expostas ao solvente e as partes hidrofbicas ficam
empacotadas formam-se assim micelas, bicamadas e vesculas
ou lipossomos (esferas ocas formadas pelo dobramento de bicama-
das). Essa caracterstica de auto-organizao e autocompartimen-
talizao dos fosfolipdios pode ter sido fundamental no processo
de formao das primeiras protoclulas do planeta. Na verdade,
esse processo to simples e robusto que j foi demonstrado que
molculas anfiflicas presentes no meteorito de Murchinson (for-
madas junto com o Sistema Solar, ou mesmo antes dele, na nu-
vem que lhe deu origem, h mais de 4,6 bilhes de anos), quando
extradas da rocha e colocadas em gua, prontamente formavam
vesculas (Deamer, 1985), como mostrado na Figura 6.4.

Figura 6.4. Formao de membranas, micelas e vesculas a partir de molculas


extradas do meteorito de Murchinson (Deamer, 1985)

128
Origem da vida

Nesse processo de autocompartimentalizao, molculas pre-


sentes na soluo so normalmente arrastadas para o interior da
micela ou vescula, que podero ento sofrer reaes diferentes
das que sofreriam fora, em um ambiente mais diludo. Essa pode
ter sido a maneira com que as primeiras molculas informacionais
se associaram s vesculas (Figura 6.5).

Figura 6.5. Modelo de protoclula capaz de compartimentalizar e reproduzir


material gentico, alm de si prpria, talvez um anlogo ao primeiro ser vivo
do planeta. Fonte: Adaptado de Mansy et al. (2008) | Ilustrao: Vitor Teixeira

Atualmente, as molculas usadas por todos os seres vivos co-


nhecidos, de vrus aos maiores mamferos, para armazenarem,
processarem e transmitirem informao gentica so os cidos nu-
cleicos, dna e rna. A existncia de um sistema nico, utilizando um
mesmo cdigo qumico, faz que a maioria dos cientistas acreditem
que todos os seres vivos atuais descendam de um ancestral comum,
o luca (Last Universal Common Ancestral) (Koonin, 2003). O luca
est, em termos genticos, na raiz da rvore filogentica mostra-
da na Figura 6.6 (construda comparando-se a sequncia de rna
ribossomal de diferentes espcies) e Figura 6.7. No entanto, im-
portante notar que a rvore mostrada na figura baseada em dados
genticos de organismos modernos; portanto, apenas nos mostra
uma indicao de parentesco entre eles, dizendo pouco sobre as
caractersticas reais do luca. De fato, suas caractersticas genticas
e fenotpicas (caractersticas fsicas decorrentes da expresso da
informao gentica) podem ter sido muito diferentes dos seres

129
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

atuais, sendo uma das reas extremamente ativas das pesquisas


sobre a origem da vida e a tentativa de desvend-la.
Mesmo que cheguemos a conhecer melhor o luca, isso no
quer dizer que tenhamos compreendido a origem da vida, pois
ele no , necessariamente, o primeiro ser vivo do planeta, apenas
aquele do qual divergiram as outras espcies. Pode ter ocorrido
um longo processo de evoluo anterior ao luca, desde nosso pri-
meiro ancestral.
A demonstrao de que molculas de rna poderiam ter ati-
vidade cataltica, ou seja, poderiam promover reaes qumicas
(Cech; Bass, 1986) e, em especial, poderiam catalisar reaes de
cpia de si mesma (autocatlise) (Johnston et al., 2001), fortale-
ceu a hiptese mais aceita atualmente na literatura para o cenrio
molecular de origem da vida, conhecida como o Mundo de rna
(Orgel, 2004). Nessa teoria de simplicidade elegante, o primeiro
sistema autorreplicante que ir iniciar um processo de evoluo
darwiniana foi uma molcula de rna, que pode ter se associado a
uma vescula preexistente e se diversificado em todas as formas de
vida como as conhecemos.
Atualmente talvez estejamos chegando prximos de com-
preender o momento de origem da vida em laboratrio, seja
partindo dos elementos mais simples e reconstruindo quimi-
camente um sistema at que ele tenha as propriedades da vida
(Szostak; Bartel; Luisi, 2001), abordagem conhecida como
bottom-up, seja partindo de uma clula completa e pequena,
eliminando os genes aparentemente desnecessrios at se en-
contrar o sistema mais simples possvel (Gibson et al., 2010),
conhecido como abordagem top-down. No entanto, devemos
ser cautelosos ao fazer afirmaes imperativas, pois diversas
outras vezes na histria da cincia acreditamos estar muito pr-
ximos da resposta definitiva para a origem da vida, para apenas
descobrirmos que a direo correta era outra. Esse tem sido
um processo cclico que tem nos ensinado muito sobre como a
vida de nosso planeta surgiu e evoluiu, estimulando-nos a pen-
sar na possibilidade de que tal evento poder ter acontecido em

130
Origem da vida

outros pontos do Universo, onde as condies fsico-qumicas


fossem favorveis.

Figura 6.6. rvore filogentica da biodiversidade terrestre, mostrando os trs


grandes reinos (Bacteria, Archae e Eukarya), todos ligados a uma raiz comum
(Pace, 1997) (Creative Commons)

Figura 6.7. Rascunho da primeira rvore evolutiva feita por Darwin em seu
caderno de anotaes, em 1837

131
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

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136
A EVOLUO DA VIDA
EM UM PLANETA EM
CONSTANTE MUDANA
Captulo 7
Daniel J. G. Lahr

A evoluo um fenmeno que ocorre em sistemas biolgicos


ao longo de grandes escalas de tempo. Desde seu surgimento, a vida
est em contnua evoluo. Os bilogos evolutivos definem evoluo
como um fenmeno de descendncia com modificao. Ou seja,
as modificaes que porventura surgem em um organismo (e exis-
tem diversas maneiras pelas quais essas modificaes podem surgir)
precisam ser herdadas pela prole desse organismo para terem algum
efeito evolutivo. Essas modificaes geralmente ocorrem ao nvel do
material gentico (dna, ou no caso de alguns vrus, rna), e podem ter
consequncias drsticas nas caractersticas morfolgicas, anatmicas
ou fisiolgicas. A prole e as geraes subsequentes de tais organismos
definem uma populao, que a unidade de estudo utilizada pelos
bilogos evolutivos. Essas modificaes, que geralmente aparecem
inicialmente em apenas um indivduo, podem se espalhar e se tornar

137
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

presentes em toda populao, porm, podem tambm ser completa-


mente eliminadas da populao. Quando uma caracterstica conse-
gue estar presente em todos os organismos de uma populao, diz-se
que ocorreu fixao (Quadro 7.1). Os motivos que levam, ou no,
fixao de uma caracterstica tambm so diversos, e alguns deles
sero explorados neste ensaio. Sistemas que se comportam dessa ma-
neira so chamados de sistemas biolgicos.
O nosso planeta no um sistema biolgico, apesar de tambm
sofrer mudanas, mas um sistema geolgico, onde modificaes
so inseridas, na maioria das vezes, pela atividade tectnica de pla-
cas que causa a deriva dos continentes e vulcanismo. Essa atividade
modifica profundamente a superfcie terrestre e tem forte influncia
sobre a vida que ocupa a biosfera. Eventos episdicos como terre-
motos, tsunamis e colises de corpos estelares tm um drstico efei-
to sobre as chances de sobrevivncia das espcies, inclusive sobre
os prprios eventos de especiao. Eventos mais prolongados como
a deriva dos continentes, as flutuaes de temperatura, e at mesmo
as condies atmosfricas tambm tm um grande impacto sobre o
sistema biolgico, porm esse impacto ocorre em escalas de tempo
muito maiores. Eventos episdicos e suas consequncias geralmen-
te recebem mais ateno, e por isso so mais conhecidos pela po-
pulao. Um bom exemplo ilustrativo a coliso do asteroide que
causou a extino de parte dos dinossauros ao final do Mesozoico.
Esse impacto, apenas um entre outros milhares que j ocorreram
no planeta, amplamente conhecido pela populao. Isso ocor-
re principalmente por causa do carisma que tm os dinossauros
no avianos e da grande cobertura dada para eventos catastrficos
pelos veculos miditicos. Por isso, temos a impresso de que, na
maior parte do tempo, a vida est muito mais sujeita atividade do
planeta do que o contrrio. No entanto, existem diversos exemplos
de que o resultado da evoluo do sistema biolgico modificou
profundamente o sistema geolgico do planeta que habitamos.
Eventos que ocorrem lentamente, durante milhes de anos, so os
principais eventos que moldaram a diversidade biolgica.

138
A EVOLUO DA VIDA Em um PLANETA EM CONSTANTE MUDANA

Quadro 7.1. Descendncia com modificao, deriva gentica e


vantagens adaptativas

Descendncia com modificao um dos conceitos centrais da teo-


ria evolutiva proposta por Darwin, e atualmente utilizado por muitos
cientistas como o critrio fundamental para a definio de vida
apesar de existirem muitas controvrsias sobre qualquer definio
sobre o assunto. O processo de modificao com descendncia
permite que adaptaes sejam transmitidas para futuras geraes,
garantindo, assim, que solues encontradas para certos problemas
no precisem ser inventadas novamente como j diz a sabedoria
popular, ningum quer reinventar a roda.

No entanto, a herana de caractersticas possui uma dinmica pr-


pria. Existem dois tipos de caractersticas biolgicas bsicas: genti-
cas e fenotpicas. Os cientistas denominam fenotpicas todas as ca-
ractersticas do corpo de um organismo, como a forma dos dedos,
a cor do cabelo, a altura e o peso. Adicionalmente, caractersticas
fisiolgicas, como a capacidade de realizar respirao aerbica e
produzir excretas nitrogenados na forma de ureia, tambm so con-
sideradas caracteres fenotpicos at mesmo a habilidade para resol-
ver problemas matemticos um carter fenotpico. As caractersti-
cas fenotpicas so determinadas a partir da expresso da informao
gentica contida nos genes presentes no genoma de um organismo.
Os organismos em geral possuem dois alelos para cada gene. Voc
pode pensar nos alelos como diferentes cores de um lpis, ou sabores
de um mesmo sorvete. Os diferentes alelos tm, fundamentalmente,
a mesma funo, porm de maneira diferente. Uma caracterstica
importante da herana gentica que esses dois alelos no so her-
dados juntos: cada um deles pode ou no estar presente nas geraes
descendentes. O processo que garante que os alelos homlogos no
sejam herdados em conjunto nos organismos eucariontes a meiose,
realizada pela quase totalidade dos seres nucleados. Quando um dos
alelos perdido, e o outro alelo ocupa 100% das posies possveis
dentro da populao, ento diz-se que um dos alelos foi fixado.

139
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Os processos que levam fixao ou perda de alelos so o prin-


cipal local de ao da evoluo e uma das mais intrigantes reas de
pesquisa biolgica. Se um alelo produz um efeito excepcionalmente
favorvel ao organismo, especialmente aumentando o nmero de
descendentes, esse alelo pode ser selecionado positivamente. Diz-
se, ento, que o alelo confere ao organismo uma vantagem adap-
tativa. Quando um alelo sofre seleo positiva, rapidamente ocupa
todas as posies possveis dentro da populao e elimina as ou-
tras variedades allicas. Quando de sua proposio, Charles Darwin
acreditava que esse era o principal mtodo pelo qual a evoluo
determinava a diversidade fenotpica dos organismos. No entanto,
a gentica e a biologia molecular modernas demonstraram que a
grande maioria dos genes est sujeita a um fenmeno muito mais
aleatrio: a deriva gentica.

A deriva gentica apenas a variao aleatria nas frequncias


de alelos. Ela repetidamente comparada com a caminhada do
bbado. Imagine uma pessoa embriagada descendo uma ladeira
bastante ngreme. Imagine que a nica direo que essa pessoa
pode ir para baixo, pois no tem coordenao suficiente para
subir a ladeira. A pessoa embriagada vai provavelmente zigueza-
guear bastante at chegar ao fim da ladeira e acabar tropeando
na sarjeta, caindo sobre a calada em um dos dois lados, onde pre-
sumivelmente vai dormir at que sua embriaguez passe. O tempo
e o espao percorrido at que esse indivduo atinja um dos lados
da rua depende de vrios fatores iniciais: a largura da rua, quo
prximo de um dos lados a pessoa comea e o comprimento da
rua. Assim tambm funciona a deriva gnica: uma variedade al-
lica se comporta como a pessoa embriagada: sua frequncia na
populao tende a ziguezaguear at o momento em que est pre-
sente em todos os organismos da populao (fixada), ou desapa-
rece completamente da populao (extinta). O resultado, apesar
de fundamentalmente aleatrio, depende da frequncia inicial do
gene (equivalente a quo prximo de um dos lados da rua o bba-
do est), o tamanho da populao (equivalente largura da rua)
e do nmero de geraes que se passa (equivalente ao compri-
mento da rua). No entanto, se o alelo confere ao organismo uma

140
A EVOLUO DA VIDA Em um PLANETA EM CONSTANTE MUDANA

caracterstica excepcionalmente boa, ou excepcionalmente ruim, o


alelo empurrado pela seleo natural e acaba fixado ou extinto
muito mais rapidamente como se algum empurrasse o indivduo
embriagado para um dos lados da rua.

A deriva gnica o processo que determina o destino da maioria


das mutaes no letais que surge nos genomas dos organismos. A
maior parte das mutaes no tem efeito benfico ou malfico so
simplesmente neutras. Sendo assim, elas apenas ziguezagueiam na
populao at serem eliminadas ou fixadas. Raramente surge uma
mutao que realmente confere populao uma vantagem adap-
tativa, e determinar quais modificaes so neutras ou adaptativas
um desafio que recebe bastante ateno dos pesquisadores.

Essa viso sobre a natureza e a dinmica de mutaes dentro de po-


pulaes foi proposta inicialmente na dcada de 1960, por Emile
Zuckerkandl, pesquisador austraco que trabalhou com o ganhador do
prmio Nobel Linus Pauling, em um artigo considerado o fundador da
rea de evoluo molecular (Zuckerkandl; Pauling, 1965). A hiptese
foi corroborada pelos estudos matemticos do pesquisador japons
Motoo Kimura (1968) alguns anos depois, iniciando um boom nos
estudos evolutivos moleculares. A ideia encontrou resistncia entre
grande parte dos bilogos, que poca costumavam atribuir a grande
variedade de formas encontradas na natureza ao poder otimizador
da seleo natural. Para muitos cientistas, era inconcebvel imaginar
que a maior parte da diversidade da vida era atribuda simplesmen-
te ao acaso. O golpe final ao pensamento puramente adaptacionista
veio apenas no final da dcada de 1970 com a publicao do que
viria a ser um dos mais influentes artigos na histria da biologia, escri-
to pelos pesquisadores Stephen J. Gould e Richard Lewontin (1979).

Neste captulo vamos explorar de maneira geral como a fotossn-


tese, um fenmeno derivado da evoluo, foi responsvel por determi-
nar a composio atmosfrica ao longo da histria do planeta, e como
a maior parte da diversidade biolgica atual deve sua existncia a essa
mudana do sistema geolgico causada pela atividade biolgica.

141
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Um panorama geral sobre a evoluo da vida no


planeta
A vida surgiu h pelo menos cerca de 3,5 bilhes de anos,
durante o on geolgico conhecido como Arqueano. Os mais an-
tigos fsseis amplamente reconhecidos como vestgios de algum
organismo vivo so os estromatlitos, que foram formados pelo
crescimento laminar de comunidades microbianas. Esses organis-
mos cresciam formando uma camada sobre o substrato, chamada
de biofilme, assim como muitas bactrias ainda o fazem.
O trtaro dental, por exemplo, resultado da mineralizao
que ocorre sobre o biofilme de bactrias que est continuamente
crescendo sobre os nossos dentes. No caso dos estromatlitos, o
biofilme contm diversas substncias secretadas pela comunidade
microbiana, alm dos prprios micrbios, e tambm acumula na-
turalmente finas partculas de sedimento, formando sobre si mes-
mo uma espcie de camada de lama. Em cima dessa camada,
outro biofilme eventualmente se desenvolve. A continuao desse
processo ao longo de muitos anos responsvel pela formao
tpica dos estromatlitos em faixas alternadamente claras e escuras
(Figura 7.1). Existem estromatlitos fsseis e estromatlitos moder-
nos. Os mais famosos estromatlitos modernos so encontrados
na Austrlia, em Shark Bay, mas existem estromatlitos em muitos
outros lugares do mundo, at mesmo no Brasil, na Lagoa Salgada,
localizada no litoral norte do estado do Rio de Janeiro.
Os estromatlitos fsseis podem ocorrer em diversas forma-
es geolgicas ao redor do mundo. Os mais antigos vm da for-
mao de Turbiana, na Austrlia. Acredita-se que os estromat-
litos fsseis eram formados por organismos j extintos, distintos
dos organismos que formam os estromatlitos modernos, que so
formados por cianobactrias, ou seja, organismos procariontes,
desprovidos de um ncleo celular. Acredita-se que os estromat-
litos fsseis mais antigos eram formados por organismos apenas
relacionados com as cianobactrias atuais, no necessariamente
ancestrais diretos destas.

142
A EVOLUO DA VIDA Em um PLANETA EM CONSTANTE MUDANA

Camada de acmulo
sedimentar
Camada de
microrganismos

Figura 7.1. A figura mostra um estromatlito com data do perodo


Proterozoico, que apresenta crescimento em domos. O esquema demonstra
como as camadas claras e escuras se sobrepem alternadamente. Fonte:
Daderot/Creative Commons

A atmosfera h 3,5 bilhes de anos era bem diferente da


atual. A maioria dos cientistas acredita que a atmosfera no
Arqueano era neutra ou levemente redutora, e a quantidade
de oxignio era extremamente baixa (em torno de 0,01% do
volume total da atmosfera). Ou seja, esses primeiros organis-
mos surgiram sob condies bastante diferentes das atuais. Foi
a atividade dos organismos fotossintticos que mudou drastica-
mente as caractersticas qumicas da atmosfera. A fotossntese
uma atividade biolgica que separa os tomos de hidrognio e
oxignio presentes na molcula de gua. Os tomos de hidro-
gnio so ento combinados com gs carbnico para produzir
hidrocarbonetos, e os tomos de oxignio so combinados e li-
berados na forma biatmica (O2). O principal objetivo da fotos-
sntese para esses organismos ancestrais era produzir hidrocar-
bonetos (especificamente, glicose) para seu prprio consumo.
O oxignio era apenas produzido como subproduto obrigatrio
dessa atividade essencial, e foi acumulando-se na atmosfera h
cerca de 850 milhes de anos at atingir os nveis atuais de
aproximadamente 20% do volume total da atmosfera. Note que
esse valor no totalmente estvel: foram registradas variaes
de at 30%, as quais podem estar relacionadas a eventos ecol-
gicos importantes.

143
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

A atividade fotossinttica dos primeiros organismos procarion-


tes foi responsvel por mudanas drsticas no sistema geolgico.
A atmosfera, uma vez redutora, tornou-se oxidante, o que causou
uma oxidao massiva dos minerais da crosta terrestre, produzindo
grande parte dos minerais que hoje conhecemos. Biologicamente,
antes dessa mudana, a principal estratgia metablica adotada
pelos organismos era provavelmente a respirao anaerbia. A
partir da elevao da quantidade de oxignio disponvel, outra
estratgia metablica ficou favorecida: a respirao aerbia, que
consome oxignio e libera mais energia que os processos anaer-
bios. Nesse caso, organismos que sofreram modificaes genticas
que permitiram a respirao aerbia se beneficiaram e deixaram
maior nmero de descendentes.
Essas mudanas permitiram, portanto, que novos tipos de orga-
nismo surgissem. Depois do surgimento dos estromatlitos h 3,5
bilhes de anos, ocorreu um aumento gradual no nvel de oxignio
que atingiu a concentrao atmosfrica de cerca de 2% h aproxi-
madamente 2 bilhes de anos. Subsequentemente, com cerca de
1,8 bilho de anos, foram encontrados os primeiros fsseis ampla-
mente reconhecidos como vestgios de organismos eucariontes,
principalmente a alga vermelha Bangiomorpha. Durante os anos
subsequentes, surgiram muitas outras linhagens de algas, e ocor-
reu diversificao de diversos outros organismos eucariontes no
fotossintetizantes. O aparecimento de muitas linhagens iniciais de
algas eucariticas, h cerca de 1 bilho de anos, foi seguido por
um rpido e expressivo aumento na concentrao de oxignio,
que em apenas 200 milhes de anos atingiu cerca de 20%. Esse
aumento na concentrao de oxignio permitiu ainda maior diver-
sificao dos organismos eucariontes, culminando eventualmente
no surgimento das formas multicelulares, como plantas e animais
ao final do perodo Ediacarano, h cerca de 530-520 milhes de
anos, em um momento conhecido como a Exploso do Cambriano
(Valentine et al., 1999) (Figura 7.2).

144
A EVOLUO DA VIDA Em um PLANETA EM CONSTANTE MUDANA

Concentrao de Oxignio (%)


30

Primeiros eucariontes 20
(Bangyomorpha)
Primeiros fsseis Plantas
de estromatlitos Cianobactrias 10
Animais

4 3 2 1 0
Tempo (em bilhes de anos atrs)

Figura 7.2. A concentrao de oxignio atravs das eras geolgicas, com


surgimento de vrios grupos de organismos baseado na evidncia fssil e
reconstrues moleculares. Fonte: IAG

A evoluo da fotossntese
A atual diversidade da vida est intrinsecamente ligada com-
posio da atmosfera. Nem a atmosfera, nem a biodiversidade
atual existiriam sem o surgimento de um fenmeno fundamental:
a fotossntese. A fotossntese em si um fantstico exemplo de
como a evoluo atua. No apareceu ao acaso, mas sim, da jun-
o de diversas partes que surgiram independentemente para re-
solver problemas semelhantes enfrentados por organismos distin-
tos (Douglas, 1998). A fotossntese uma extensa srie de reaes
realizadas por enzimas especializadas e que ocorrem em partes
especiais da clula.
O processo da fotossntese se inicia no centro de reao fo-
tossinttico, onde a luz solar capturada por pigmentos especia-
lizados, que podem ser pigmentos carotenoides ou a clorofila.
Os centros de reao geralmente se encontram no centro de uma
grande estrutura molecular chamada de complexo-antena. Esse
complexo responsvel por canalizar a energia da luz para o
centro de reao fotossinttico. Essa energia ento utilizada em
uma srie de reaes para quebrar a molcula da gua e transfor-
mar gs carbnico em compostos orgnicos. O centro de reao
fotossinttico um complexo de molculas extremamente refina-
do: em organismos eucariontes, esse complexo pode ter at 13
subunidades e mais de 190 cofatores (protenas associadas). Essa

145
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

complexidade e alta quantidade de protenas envolvidas surgiu


principalmente atravs de duplicaes gnicas e substituies
nucleotdicas subsequentes que levaram neofuncionalizao
(Hohmann-Marriott; Blankenship, 2011) (Quadro 7.2).
A habilidade fotossinttica surgiu, portanto, como resultado
de processos evolutivos fundamentais, que ocorrem comumen-
te em todas as linhagens de organismos: a duplicao gnica e
subsequente neofuncionalizao gentica, deriva gentica e se-
leo. Os primeiros organismos fotossintticos, no entanto, pro-
vavelmente utilizavam hidrognio ou sulfeto de hidrognio como
matria-prima em vez de gua. Os primeiros organismos a utilizar
gua para fotossntese devem ter surgido h cerca de 3 bilhes de
anos, e eram provavelmente muito semelhantes s cianobactrias
modernas. Alm das cianobactrias, existem ainda diversos tipos
de algas fotossintetizantes: vermelhas, marrons e verdes. Uma li-
nhagem de algas verdes se diversificou e adquiriu a capacidade
de sobreviver em ambientes terrestres, dando origem a todas as
plantas. No entanto, ser que essas linhagens de algas, que so or-
ganismos eucariticos, tiveram que reinventar toda a complicada
srie de reaes metablicas que provavelmente levou milhes de
anos para surgir? aqui que mais um evento evolutivo entra em
ao: a endossimbiose.
Trata-se de uma relao em que dois organismos se associam
de maneira muito ntima, de forma que um no consegue mais viver
sem o outro. As endossimbioses ancestrais foram essenciais para o
desenvolvimento da vida como a conhecemos atualmente. O pr-
prio surgimento dos organismos eucariticos provavelmente no
seria possvel sem a endossimbiose. Existem trs grandes tipos de
organismos celulares no planeta: os eucariontes, as bactrias e as
arqueias. O entendimento sobre essa diviso fundamental da vida
s ocorreu ao final da dcada de 1970, principalmente por causa
do trabalho de reconstruo histrica a partir de dados de sequn-
cias genticas feito pelo pesquisador Carl Woese (2000).
Os trs grandes grupos so chamados de domnios e repre-
sentam a mais fundamental diviso dos organismos vivos. Os

146
A EVOLUO DA VIDA Em um PLANETA EM CONSTANTE MUDANA

Quadro 7.2. Duplicao gnica

Esse fenmeno genmico foi inicialmente proposto por Susumu


Ohno na dcada de 1970 como uma das principais foras evolu-
tivas. Cientistas, desde ento, tm estudado profundamente os pa-
dres e mecanismos relacionados a esse fenmeno. Mecanicamente,
o processo de duplicao gnica pode acontecer de vrias maneiras,
todas relativamente simples e de comum ocorrncia nos diversos
organismos.

Acredita-se que o meio mais comum de um gene ser duplicado


por um erro no momento da recombinao homloga, que ocorre
durante a meiose. Para que isso acontea, as sequncias nucleo-
tdicas que se localizam fora do gene, acima e abaixo da regio
onde est localizado, devem ser iguais. Isso acontece frequente-
mente, pois existem muitas regies no codificantes no genoma,
que tendem a ser formadas pela repetio de uma srie pequena
de nucleotdeos. Estando a regio genmica assim organizada, o
pareamento (que sempre ocorre durante a meiose) pode ocorrer
entre stios incorretos, resultando em uma cromtide com duas c-
pias e a outra sem nenhuma. Se o gene for essencial, a cromtide
desprovida de cpia no formar um gameta vivel, enquanto a
outra pode se reproduzir e deixar descendentes que possuem duas
cpias daquele gene em particular. Existem outras maneiras pelas
quais a duplicao gnica pode ocorrer: mediada por retrotranspo-
sio ou at mesmo como parte de uma duplicao de uma regio
maior do cromossomo.

As duas cpias geradas no evento de duplicao esto sujeitas a


aes independentes dos processos evolutivos. Essas cpias, chama-
das de parlogos, tero, portanto, destinos diferentes. Em geral, uma
das cpias fica livre de presses seletivas, pois a outra est exercendo
a funo essencial. Na maior parte das vezes, a cpia que no sofre
presso seletiva acaba sofrendo mutaes aleatrias que a destituem
completamente de qualquer funo. Esse processo, chamado de
pseudogenizao, acaba por degenerar a sequncia do gene por
completo, a tal ponto que no conseguimos mais reconhecer que

147
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

aquela regio em particular foi um gene. O gene duplicado ento


perdido.

No entanto, outra opo que as mutaes confiram ao gene no-


vas habilidades, em um processo chamado de neofuncionalizao.
Ohno defendia a tese de que esse o principal processo de inovao
gentica utilizado pelos organismos, e as pesquisas realizadas at
hoje corroboram sua viso. Um exemplo bastante comum so as he-
moglobinas humanas. Elas so formadas por quatro subunidades, de
dois tipos a e b. Cada hemoglobina possui duas subunidades a e duas
subunidades b. Os genes que codificam cada tipo de subunidade so
produtos de duplicao gnica, ou seja, um gene ancestral de hemo-
globina se duplicou e deu origem ao gene que codifica a subunidade
a e outro que codifica a subunidade b.

eucariontes provavelmente surgiram da unio entre arqueias e


bactrias. Especula-se que uma arqueia engoliu uma bactria
do grupo das alfa proteobactrias, e a primeira passou a ser res-
ponsvel pela gerao de energia na forma de atp para a arqueia
hospedeira, e lentamente tornou-se a mitocndria. Essa unio

148
A EVOLUO DA VIDA Em um PLANETA EM CONSTANTE MUDANA

de dois organismos fundamentalmente diferentes deu origem


aos eucariontes.
O processo de endossimbiose tambm gradual e possui uma
srie de caractersticas tpicas. Geralmente, o organismo endos-
simbitico se especializa em uma nica funo, sofrendo drs-
tica reduo genmica. As mitocndrias, por exemplo, possuem
um pequeno genoma que varia de 15 a 20 mil pares de bases,
e abriga geralmente de 20 a 30 genes, apenas o necessrio para
exercer sua especfica funo energtica. Seus outros milhares de
genes foram perdidos, pois realizavam funes redundantes com
as funes que o hospedeiro j realizava, ou podem at mesmo
ter sido transferidos para o genoma do hospedeiro. Os genomas
mitocondriais geralmente no possuem regies no codificantes e
so altamente eficientes.
A aquisio das mitocndrias no foi o nico evento en-
dossimbitico na histria dos eucariontes. Mais tarde, uma li-
nhagem de organismos eucariontes engoliu uma cianobactria,
dando origem assim ao cloroplasto, a organela onde ocorre a
fotossntese. Essa relao ntima j tinha sido proposta pelo bo-
tnico russo Mereschkowsky no incio do sculo passado, mas
foi amplamente desenvolvida e estudada pela cientista ameri-
cana Lynn Margulis nas dcadas de 1960 e 1970 curiosamen-
te, poca da publicao de seu primeiro artigo cientfico su-
gerindo a endossimbiose como evento evolutivo fundamental,
Margulis era casada com o astrnomo e divulgador cientfico
Carl Sagan, e o artigo foi publicado sob o nome Lynn Sagan, o
que talvez explique o motivo de tal artigo ser pouco conhecido
atualmente (Sagan, 1967).
As primeiras evidncias que determinavam essa relao
foram morfolgicas: a organizao em lamelas presente nas
cianobactrias semelhante organizao de membranas in-
ternas no cloroplasto. Alm disso, a maioria dos cloroplastos
possui duas membranas, assim como as mitocndrias. Isso por-
que, durante a endossimbiose, o primeiro passo a fagocitose
da cianobactria, momento em que o organismo hospedeiro

149
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

envolve o endossimbionte em uma membrana. A outra mem-


brana corresponde prpria membrana celular do endossim-
bionte. Alguns cloroplastos ainda, como os de diatomceas e
dinoflagelados, possuem mais de duas membranas. Isso evi-
dncia de que alm da endossimbiose ancestral que deu ori-
gem ao cloroplasto, em alguns organismos ocorreram ainda
outras, chamadas de endossimbioses secundrias e tercirias.
A endossimbiose , portanto, um evento comum na
histria evolutiva. Um exemplo interessante o da ameba
Paulinella chromatophora. Essa ameba de gua doce possui
duas grandes organelas verdes, chamados cromatforos, que
so derivados da endossimbiose de uma cianobactria, que
ocorreu h apenas 60 milhes de anos, mais ou menos na
mesma poca em que parte dos dinossauros foram extintos
(alguns dinossauros ainda esto vivos: a linhagem das aves)
ou seja, um tempo muito curto na escala evolutiva. Essas
amebas fagocitaram uma cianobactria da linhagem das
Prochlorococcus e o processo de reduo genmica ainda
est ocorrendo. A todo momento, cientistas descobrem mais
um gene do cromatforo que foi transferido para o genoma
nuclear de P. chromatophora. Muitas outras amebas permitem
que bactrias vivam livremente em seus citoplasmas, portan-
to, possvel que sejam descobertos ainda mais endossim-
biontes recentes (Figura 7.3).
Apesar de um evento comum, bastante provvel que a
maioria dos organismos eucariontes fotossintetizantes tenha se
originado de uma nica endossimbiose ancestral. Isso pode ter
acontecido tanto por esses organismos terem desenvolvido uma
adaptabilidade maior ao seu ambiente relacionada capacidade
de fotossintetizar, mas tambm pode ter sido um processo sim-
plesmente aleatrio, ligado deriva. Essa endossimbiose ances-
tral deu origem a todas as algas e plantas. Com isso, a atividade
fotossinttica aumentou drasticamente, permitindo o surgimento
de mais e mais organismos heterotrficos, ou seja, os que se ali-
mentam por predao.

150
A EVOLUO DA VIDA Em um PLANETA EM CONSTANTE MUDANA

Nucleoide Clula procaritica


(contendo DNA)
1 Um procarionte cresce e se desenvolve,
invaginando-se na membrana celular
para aumentar a rea de superfcie
Citoplasma razo do volume.

Invaginaes da
Membrana celular membrana clula

2 As invaginaes, por fim, emergem da


membrana celular, formando um
primeiro sistema endomembranar, que
circunda o nucleoide, criando uma
espcie de envoltrio nuclear. Este o
primeiro eucariota.
Ncleo
3 Uma proteobactria aerbia (uso
Sistema da endomembrana de oxignio) entra na eucariota,
Membrana nuclear tanto como alimento ou como
Retculo endoplasmtico parasita, e consegue evitar a
digesto. Torna-se ento um
endossimbionte, ou uma clula
que vive em outra clula.
Proteobactria

Primeiro eucariota
4 A habilidade do aerbio em usar oxignio para produzir
energia torna-se uma vantagem para o hospedeiro,
permitindo que este prospere em um ambiente cada vez
mais rico em oxignio, enquanto outros eucariotas so
extintos. A proteobactrias , por fim, assimilada e se
transforma em uma mitocndria.
Mitocndrias
Cianobactrias

Mitocndria

Antepassado dos animais, fungos


e outros hetertrofos

Cloroplastos
5 Alguns eucariotas continuam em busca de mais
endossimbiontes as cianobactrias, um grupo de
bactrias capazes de fazer fotossntese.
Transformam-se ento em cloroplastos.

Ancestral das plantas e algas

Figura 7.3. Detalhes do processo de endossimbiose. Fonte: Kelvin Song/


Creative Commons

151
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Logo, a grande diversificao das algas levou, subsequente-


mente, grande diversificao de outros protistas. Os cientistas
estimam que existam atualmente cerca de 70 a 90 grandes linha-
gens de eucariontes, trs delas sendo as plantas, fungos e animais.
Alguns exemplos das outras linhagens so as amebas, euglenas,
paramcios, dinoflagelados e muitos outros. Toda essa diversidade
aparentemente surgiu durante o aumento gradual de oxignio na
atmosfera, ou depois de se atingir o nvel de 20% oxignio em
volume. Derivados desses organismos, somente h cerca de 500
milhes de anos surgiram as conhecidas linhagens de animais, e
mais tarde ainda, as plantas (Knoll, 2014).
O processo evolutivo, que ocorre desde o surgimento da vida
na Terra, foi, portanto, o responsvel pela composio atual da
atmosfera terrestre, um grande exemplo de como o sistema biol-
gico pode afetar profundamente o sistema geolgico. Todas essas
modificaes ocorreram lentamente durante centenas de milhes
de anos. O sistema geolgico, por sua vez, restringe quais tipos
metablicos podem existir, determinando, assim, a adaptabilidade
das diversas linhagens de organismos. O sistema geolgico ainda
tem grande impacto sobre eventos de diversificao, como espe-
ciaes que ocorrem com o surgimento de barreiras geolgicas.
Assim, o desenvolvimento dos dois sistemas ao longo do tempo
intrinsecamente ligado: inovaes que ocorrem em sistemas ten-
dem a ter profundos impactos entre si.

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152
A EVOLUO DA VIDA Em um PLANETA EM CONSTANTE MUDANA

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153
VIDA AO EXTREMO
A magnfica versatilidade da vida microbiana
em ambientes extremos da Terra

Captulo 8
Rubens T. D. Duarte, Catherine G. Ribeiro e Vivian H. Pellizari

Introduo
Os 3,8 bilhes de anos nos quais a vida se desenvolveu em
nosso planeta forjaram um amplo espectro funcional da vida mi-
crobiana, permitindo-a ocupar nichos considerados inabitveis
para a vasta maioria de outros seres vivos. A afinidade pelo extre-
mo faz de alguns micro-organismos terrestres importantes alvos no
estudo da astrobiologia, pois refletem a plasticidade da vida nos
mais diversificados e inspitos ambientes.

Micro-organismos, os colonizadores do planeta


O escopo da astrobiologia figura-se mais vasto do que a pro-
cura por seres inteligentes e capazes de desenvolver ferramentas
avanadas. A busca por vida extraterrestre baseia-se principalmen-
te na prospeco de formas mais simples, que dominaram a his-
tria da evoluo da vida na Terra: os micro-organismos. A diver-
sidade metablica e a capacidade de propagao conferiram aos

155
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

seres microscpicos unicelulares uma longa existncia em nosso


planeta. A origem da vida na Terra teve incio pouco tempo depois
de sua formao, quando o planeta ainda era um corpo recm-so-
lidificado. Porm, quais so os fatores que permitem a existncia
de vida ou a habitabilidade de um planeta? A resposta para essa
pergunta ainda no conhecida, no entanto, o alvo prioritrio da
astrobiologia. Atravs do estudo dos ambientes extremos da Terra
podemos vislumbrar as fronteiras para a ocorrncia e propagao
da vida em ambientes extraterrestres e sondar a incrvel complexi-
dade e o poder de sua adaptao.

Extremfilos
Em 1964, o microbiologista norte-americano Thomas Brock
fez uma descoberta que mudou o conceito de vida: ele observou
micro-organismos sobrevivendo ao redor de giseres do Parque
Nacional do Yellowstone (eua) que lanavam gua a 82 C, uma
temperatura muito acima da tolerncia dos seres vivos. Mais tarde,
em 1967, Brock publicou os resultados de sua pesquisa descre-
vendo que o micro-organismo, identificado como uma arqueia e
batizada de Thermus aquaticus, no apenas tolerava altas tempera-
turas, mas tambm exigia essa temperatura para crescer. Passamos,
ento, a conhecer um novo grupo de seres vivos os extremfilos.
Muitos pesquisadores comearam a explorar diferentes ambientes
procura de vida, muitos dos quais considerados at ento inspi-
tos por serem ambientes extremos.
O conceito ecolgico de ambiente extremo est intrinseca-
mente atrelado ao conceito humano de habitabilidade. Uma am-
pla gama de ambientes com extremos de calor, frio, pH, salini-
dade, presso e radiao so dominados por micro-organismos,
cuja divergncia gentica manifestada em diferenciao metab-
lica possibilitou a ocupao de nichos considerados improvveis.
Esses ambientes podem ser caractersticos de exoplanetas com po-
tenciais chances de abrigar vida, mesmo que suas condies am-
bientais sejam diferentes das condies medianas do planeta Terra.
Atualmente, podem ser encontrados em cultura representantes de

156
VIDA AO EXTREMO

todas as classes de extremfilos, entre elas, organismos termofli-


cos, hipertermoflicos, psicroflicos, acidoflicos, alcaliflicos, ba-
roflicos e haloflicos.

Uma cano de gelo e fogo


As estratgias microbianas para suportar ambientes extrema-
mente quentes ou frios esto entre os principais assuntos estu-
dados pela astrobiologia. Existem na Terra inmeros ambientes
quentes que normalmente esto associados a atividades vulc-
nicas. Fontes termais, giseres, e mesmo o interior de vulces j
foram explorados e uma ampla diversidade de micro-organismos
foi encontrada sobrevivendo em altas temperaturas, denomina-
da termoflica. Muitas bactrias, arqueias e fungos adaptados ao
calor extremo conseguem sobreviver nesses ambientes a partir
de uma srie de adaptaes de suas protenas e estrutura celular,
moldadas durante milhes de anos pela evoluo. Estudos indi-
cam que o provvel ancestral de todos os seres vivos tenha sido
uma clula adaptada ao calor extremo, uma vez que 3,8 bilhes
de anos atrs a Terra tinha um cenrio quase inspito muito
calor, vulcanismo e diferente composio atmosfrica. Uma das
mais fortes evidncias para a origem da vida em altas temperatu-
ras a ocorrncia de micro-organismos adaptados ao calor nos
ramos mais profundos da atual rvore filogentica: muito prova-
velmente todos os seres vivos compartilham uma origem no calor.
A descoberta recente de uma ampla gama de organismos ha-
bitando a crosta ocenica surpreendeu ao revelar vida em abun-
dncia onde previamente no se acreditava haver grande diversi-
dade. Pesquisadores encontraram atividade biolgica em rochas
denominadas gabroicas (1.391 metros de profundidade) da crosta
ocenica do Atlntico, responsveis pela maior poro do leito
ocenico, nas quais podem ser observadas temperaturas prximas
ao ponto de fervura da gua (Mason et al., 2010). Genes relativos
a processos metablicos como fixao de nitrognio e carbono fo-
ram observados. Nesse estudo, a relao entre micro-organismos
habitando ecossistemas de alta temperatura e presso no interior

157
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

de rochas e o ciclo do metano ganhou destaque por causa da cor-


relao com a prospeco de vida em Marte. O planeta vermelho
tem metano concentrado em algumas regies equatoriais da at-
mosfera, sendo considerado de fonte geolgica, podendo compor-
tar micro-organismos consumidores desse elemento.
As condies extraterrestres caracterizadas pelo frio extre-
mo (calotas polares marcianas ou corpos cobertos por gelo,
como Europa, no sistema jupiteriano) tambm podem ser in-
vestigadas a partir de ecossistemas da Terra (Figura 8.1). Para
tanto, cientistas analisam ambientes como neve e gelo glacia-
res da Antrtica como anlogos desses possveis nichos extra-
terrestres. Uma grande variedade de micro-organismos j foi
encontrada nesses ambientes, muitos dos quais so capazes de
tolerar temperaturas prximas ao grau de congelamento, assim
como baixos nveis de oxignio, e de crescer na total ausn-
cia de substrato orgnico. Esses micro-organismos adaptados
ao frio, tambm chamados de psicroflicos, so alvos de mui-
tas pesquisas em astrobiologia. Pesquisadores do Oregon (eua)
conseguiram reproduzir em laboratrio um ambiente anlogo
gelada subsuperfcie marciana, onde micro-organismos fo-
ram capazes de sobreviver usando apenas a oxidao do ferro
presente na rocha gnea olivina (Popa et al., 2012). Tal com-
parao tem suporte no fato de que dados cientficos prove-
nientes de satlites e anlises diretas identificaram o mesmo
mineral em rochas de Marte.
Bactrias foram descobertas sobrevivendo em um dos ambien-
tes mais inspitos do planeta: cerca de 3.000 m de profundida-
de no interior do manto de gelo da Groenlndia e da Antrtica
(Miteva; Brenchley, 2005; Christner et al., 2006). As condies ex-
tremas dentro do gelo incluem temperaturas muito abaixo de 0 C,
ausncia de luz, baixa ou nenhuma concentrao de oxignio,
altas presses, e baixa disponibilidade de gua lquida uma vez
que quase toda a gua ali est na forma slida. A origem e as
estratgias de sobrevivncia desses micro-organismos no gelo ain-
da intrigam os cientistas.

158
VIDA AO EXTREMO

Figura 8.1. Calota de gelo do planeta Marte (Nasa). Fonte: Nasa/jpl-Caltech/


MSSS

Ambientes de frio extremo ainda possuem outra caracterstica


de grande importncia para a astrobiologia: temperaturas abaixo
de zero so capazes de preservar o material biolgico como pro-
tenas, carboidratos, lipdeos, pigmentos, dna e at mesmo clulas
vivas ou em estado de dormncia. Essas condies so tpicas de
ambientes polares, principalmente no interior de geleiras ou em
solos chamados permafrost, um tipo especfico de sedimento que
fica milhares ou at milhes de anos com a temperatura constan-
temente abaixo de zero. Pesquisadores j relataram uma grande
diversidade de micro-organismos dentro do permafrost. Algumas
dessas clulas foram capazes de crescer em culturas de labora-
trio, sendo as mais antigas encontradas em depsitos congela-
dos h 3 milhes de anos na Sibria e h 5 milhes de anos na
Antrtica (Rodrigues et al., 2006; Gilichinsky et al., 2008).
As biomolculas, em teoria, podem ser preservadas por um
perodo ainda maior. Em um estudo conduzido por pesquisadores

159
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

brasileiros da Universidade de So Paulo (usp) em colaborao


com cientistas da Academia de Cincias da Rssia, amostras de
permafrost da Sibria e da Antrtica foram avaliadas quanto taxa
de preservao do dna (Duarte, 2010). Nesse estudo, os pesqui-
sadores conseguiram detectar molculas de dna preservadas em
amostras congeladas de at 8,1 milhes de anos atrs. Esses li-
mites de longevidade so importantes ao considerar que outros
corpos do Sistema Solar tm solos como o permafrost, expandindo
as possibilidades de se encontrar vida em ambientes muito abaixo
de zero grau.

Baroflicos a vida nas profundezas dos oceanos


A biosfera de profundidade representada por organis-
mos que prosperam em altas presses (tambm conhecidos
por baroflicos), alm da ausncia de luz, falta de oxignio
e pouco suprimento de nutrientes. Embora esse ecossiste-
ma tenha sido estudado apenas recentemente, algumas des-
cobertas atestam sua importncia para os ciclos globais do
carbono. Estima-se que os micro-organismos presentes nes-
ses locais contabilizem 90 bilhes de toneladas de carbono,
cerca de 1/10 do carbono estocado por todas as florestas
tropicais do planeta.
No incio, mesmo incapazes de distinguir clulas vivas de
clulas mortas, os cientistas observaram que o sedimento ma-
rinho abrigava uma imensa quantidade de micro-organismos e
um clculo estimava que mais da metade da microbiota terres-
tre habita o fundo do mar (Kallmeyer et al., 2012). Bactrias,
arqueias e fungos dos mais variados grupos taxonmicos fo-
ram identificados, sendo grande parte adaptada a sobreviver em
temperaturas frias (em mdia, a temperatura da gua marinha
nessa profundidade de cerca de 2 C) e a presses 300 vezes
acima da presso atmosfrica no nvel do mar. Realizar meta-
bolismo nessas condies uma tarefa rdua, principalmente
por causa da pouca disponibilidade de nutrientes (carbono, ni-
trognio e fsforo).

160
VIDA AO EXTREMO

Entretanto, dados recentes indicam que grande parte do car-


bono no fundo do oceano circula por causa dos vrus. Um gru-
po de oceangrafos da Universidade Politcnica de Marche, na
Itlia, estudou 232 amostras de sedimento marinho e concluiu
que os vrus tm papel-chave na circulao de carbono do ocea-
no, liberando at 630 milhes de toneladas de carbono que so
sequestradas por micro-organismos medida que afundam at as
profundezas do mar (Danovaro et al., 2008). Os vrus promovem
uma espcie de mecanismo autossustentvel, que responsvel
tanto pela morte quanto pelo crescimento dos outros micro-orga-
nismos marinhos.
Mesmo depois dessas descobertas, o debate sobre a habita-
bilidade das profundezas ainda no foi totalmente solucionado.
Um estudo conduzido por pesquisadores no mbito do progra-
ma internacional de pesquisa marinha iodp (Integrated Ocean
Drilling Project) comeou a montar esse complexo quebra-ca-
bea. Eles estudaram amostras de sedimentos marinhos coleta-
das at 400 m no fundo do oceano, que datavam de 16 milhes
de anos atrs (Schippers et al., 2005). Os cientistas utilizaram
mtodos de biologia molecular baseados na deteco de mo-
lculas de rna de bactrias. Essa molcula participa da sntese
de protenas nas clulas e, como rapidamente degradada no
ambiente, sua presena pode indicar clulas metabolicamente
ativas. A equipe de pesquisadores detectou uma grande quan-
tidade de molculas de rna nesses sedimentos, e os resultados
indicam que entre 10 e 30% dos micro-organismos das profun-
dezas esto vivos.

Vida em baixas umidades e altas salinidades


Os solos dos locais mais ridos da Terra, como os Dry
Valleys na Antrtica e o deserto do Atacama, no Chile, so pal-
co de estudos sobre uma das questes primordiais da astrobio-
logia: a necessidade de gua para o desenvolvimento da vida
(Figura 8.2). Um dos pontos de maior interesse a anlise da
atividade metablica da biota presente nesses locais, ou seja,

161
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

como os organismos presentes esto ativamente interagindo


com seu ambiente e prosperando nas baixas umidades dessas
regies. Uma das chances para o desenvolvimento de ativida-
de microbiana seria o lapso de tempo quando a interface en-
tre solo rido e lama congelada derretem durante o vero, por
exemplo, nos Dry Valleys. Nessa poca, finas camadas de gua
lquida podem se formar entre os gros de areia. Tal efeito no
poderia ser observado nas atuais caractersticas ambientais de
Marte. Porm, o passado pode ter tido uma histria diferente.
Atualmente, o eixo de rotao marciano encontra-se bastante
prximo ao da Terra. Entretanto, h 5 milhes de anos, seu eixo
apresentava-se inclinado 45, de modo que as regies polares
recebiam luz solar constante durante boa parte do ano, sen-
do possvel uma pequena janela para a existncia de gua na
forma lquida, como acontece nos ambientes ridos do nosso
planeta.
O deserto do Atacama tambm apresenta outra caracterstica
propcia a certos organismos extremfilos: ambientes hipersali-
nos. Organismos haloflicos enfrentam desafios principalmen-
te relacionados desidratao e ao estresse osmtico. Com o
intuito de contrabalancear a fora osmtica promovida por um
ambiente hipersalino, a maior parte desses organismos desen-
volve estratgias de sntese de protetores osmticos. Estes so
compostos solveis orgnicos que contribuem para o potencial
de solubilidade, mas no rompem biomolculas como fazem os
sais inorgnicos. Cientistas observaram, no solo chileno, uma re-
lativa alta diversidade microbiana proliferando na ausncia de
luz do sol ou oxignio, a cerca de dois metros de profundidade
(Parro et al., 2011). Esses locais so formados por compostos hi-
groscpicos, ou seja, com tendncia a absorver a umidade do
ar, condensando a pouca umidade na superfcie dos cristais de
sal. Essa descoberta foi realizada utilizando-se a ferramenta Solid
(Detector de Sinais de Vida, em portugus), um instrumento do-
tado de biochip para a anlise de presena de acares, dna e
protenas, projetado para futuras misses a Marte.

162
VIDA AO EXTREMO

Figura 8.2. Dry Valleys, na Antrtica, um dos desertos mais secos da Terra.
Fonte: Nasa/gsfc/meti/ersdac/jaros e u.s./Japan aster Science Team

Resistncia radiao
Embora a maioria das espcies existentes na atualidade ne-
cessite de um escudo para a radiao solar de alta energia, alguns
micro-organismos so capazes de suportar e proliferar em altos
nveis de radiaes ultravioleta e ionizante. A bactria de solo
Bacillus subtilis detm o recorde de seis anos de sobrevivncia no
espao (Horneck; Bcker; Reitz, 1994; Wassmann et al., 2012).
Outra bactria, denominada Deinococcus radiodurans, consi-
derada um dos seres vivos mais resistentes radiao ionizante.
Essa bactria de pigmento laranja-avermelhado foi descoberta
por acaso em 1956, quando a indstria comeou a usar radiao
gama para esterilizar comida enlatada. Doses mil vezes maiores
que a dose capaz de matar seres humanos no causam efeito letal
nessa bactria.
A pesquisa envolvendo resistncia em nveis considerveis de ra-
diao tambm est correlacionada s questes sobre panspermia e
possibilidade de micro-organismos sobreviverem a longas viagens

163
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

de asteroides, servindo como colonizadores em diferentes sistemas


planetrios. Testar essa hiptese extremamente complicado, pois,
inicialmente, precisaramos encontrar vida em algum planeta e
posteriormente compar-la com a terrestre. No entanto, um estudo
conduzido por brasileiros da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(ufrj) em conjunto com pesquisadores argentinos da Universidade de
Buenos Aires (uba), revelou dados surpreendentes (Abrevaya et al.,
2011). A equipe de cientistas testou a possibilidade de sobrevivn-
cia de micro-organismos extremfilos a uma viagem interplanetria
simulada em laboratrio, principalmente quanto resistncia das c-
lulas em ultravcuo e ao espectro completo de radiao ultravioleta.
Entre os micro-organismos testados havia, evidentemente, a bact-
ria recordista de sobrevivncia D. radiodurans (Figura 8.3), alm de
duas espcies de arqueias haloflicas Natrialba magadii e Haloferax
volcanii. Essas haloarqueias, como tambm so conhecidas, so or-
ganismos modelos para habitabilidade em astrobiologia, no apenas

Figura 8.3. Fotografia em microscopia eletrnica da bactria radiotolerante


Deinococcus radiodurans. Fonte: Latin stock

164
VIDA AO EXTREMO

por serem capazes de sobreviver em ambientes com alta salinidade


(o solo de Marte, por exemplo), mas tambm por sua habilidade de
crescer em extremos de temperatura, pH e radiao. O experimento
mostrou que, enquanto as clulas de H. volcanii foram totalmente
destrudas, cerca de 0,1 a 1% das populaes de N. magadii e D.
radiodurans resistiram ao estresse causado por alto-vcuo (10-5 Pa) e
altas doses (1350 J.m-2) de radiao uv de alta energia, quase na faixa
do raio X.
Porm, no s bactrias podem sobreviver ao inspito ambiente
espacial: liquens tambm tm essa caracterstica. Em um experimen-
to realizado no laboratrio orbital Columbus, da Estao Espacial
Internacional (iss, na sigla em ingls), a espcie de lquen Xanthoria
elegans foi capaz de suportar radiao csmica, uv, o vcuo e tem-
peraturas variveis (Sancho et al., 2007; Onofri et al., 2012). Nesse
experimento, um total de 664 amostras biolgicas e bioqumicas foi
exposto s condies espaciais por cerca de 18 meses.

Acidoflicos e alcaliflicos
Micro-organismos vivos tambm proliferam em pH extremos
e muitas vezes requerem ambientes extremamente cidos ou alca-
linos para apresentarem atividade metablica. O pH tem uma gra-
dao logartmica de 0 a 14 e mede a concentrao de ons H+ em
soluo. A maior parte dos processos biolgicos no planeta Terra
tende a acontecer na poro mediana da escala. Os micro-orga-
nismos acidoflicos (adaptados ao cido, ou pH abaixo de 5,0) e
os alcaliflicos (adaptados alcalinidade, com pH acima de 9,0)
no tm muito em comum, a no ser o fato de serem extremfilos.
So organismos de grupos diferentes, que evoluram com adapta-
es distintas. Entre os amantes do cido, a arqueia Picrophilus
considerada a espcie mais acidoflica j encontrada, isolada de
solos vulcnicos do Japo, tendo um crescimento timo em pH
0,7 algo entre um cido de bateria veicular e o cido sulfrico
(Schleper et al., 1995). Embora solos cidos sejam abundantes em
nosso planeta, ambientes alcalinos so particularmente difceis de
serem encontrados e so representados principalmente por reas

165
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

geotermais, solos ricos em carbonato e alguns lagos alcalinos. A


bactria Bacillus alcalophilus, por exemplo, sobrevive em lagos al-
calinos de pH acima de 10 (Ntougias et al., 2006). Organismos
que vivem em extremos de pH so importantes modelos para es-
tudos de metabolismo microbiano, pois as estratgias para obter
energia so particularmente dependentes da diferena do pH den-
tro e fora da clula. Dessa forma, acidoflicos e alcaliflicos podem
dar pistas importantes para a astrobiologia, indicando possveis al-
ternativas para o metabolismo energtico em ambientes extremos
fora da Terra.

A caixa-preta biolgica
A prospeco pela existncia de vida fora da Terra pode en-
contrar barreiras dentro da pesquisa biolgica convencional. Uma
das questes que desafiam a microbiologia ambiental a chama-
da Caixa-Preta Biolgica (ou Biosfera Oculta), que representa o
desconhecimento da maior poro da microbiota que nos cerca.
Esse fenmeno decorre das limitaes de cultivo de micro-orga-
nismos in vitro: a cincia ainda no capaz de simular todas as
condies necessrias para o crescimento de muitas espcies de
micro-organismo. Estima-se que menos de 1% da biodiversidade
microbiana j tenha sido cultivada em laboratrio. Isso ainda
mais crtico ao se tratar de extremfilos, pois pouco conhecemos
sobre sua biologia. Em termos prticos, essa impossibilidade de
cultivo gera problemas na anlise do metabolismo e funo eco-
lgica dos micro-organismos, deixando vagas as inferncias sobre
o papel deles em seus respectivos ambientes. As tcnicas mole-
culares tm ajudado muito a preencher essas lacunas e detectam
e identificam sequncias de dna especficas de micro-organismos
em qualquer amostra ambiental, independentemente se estiverem
dentro de clulas vivas, mortas ou em estado de dormncia. Desde
que foram estabelecidas, em meados da dcada de 1980, muitos
grupos novos de micro-organismos foram descobertos atravs des-
ses mtodos. Com tcnicas cada vez mais sofisticadas, como o
sequenciamento de genoma de clulas nicas, utilizando-se dna

166
VIDA AO EXTREMO

extrado de clulas isoladas, assim como as anlises de proteoma e


transcriptoma, a biologia molecular uma das grandes potenciali-
zadoras da pesquisa astrobiolgica. Um exemplo dessa pesquisa
o estudo do genoma e transcriptoma da bactria Exiguobacterium
antarcticum B7. Essa bactria, que pode crescer em ampla faixa
de temperatura (20 a 41 C), foi isolada pelos pesquisadores do
Instituto Oceanogrfico (io-usp) na Antrtica, em um projeto com
pesquisadores da rede genmica da Universidade Federal do Par
(ufpa). Como resultado, eles descreveram quais genes da bactria
so expressos em temperatura de 0 C e quais so responsveis
pela resistncia da bactria ao frio.

Os segredos enterrados na Antrtica


O lago Vostok, na regio oeste da Antrtica, um dos ambien-
tes mais misteriosos j identificados. Trata-se de um lago subgla-
cial, isto , coberto por uma camada de gelo de aproximadamente
3,6 km de espessura. Apesar disso, a gua do lago permanece no
estado lquido. Os cientistas especulam que talvez haja uma fonte
de gua termal no leito do Vostok, similar aos giseres e fontes hi-
drotermais de oceano profundo. Calcula-se que o lago est isolado
da atmosfera desde a formao do manto de gelo antrtico, que
se iniciou h 30 milhes de anos. Desde que foi descoberto em
meados da dcada de 1960, os cientistas levantam questes sobre
a existncia de vida no lago Vostok e, em caso positivo, surge a
pergunta: que formas os seres de l tomaram aps milhes de anos
evoluindo independentemente da biosfera terrestre? A resposta po-
deria ser alcanada da forma mais simples indo at l e coletan-
do amostras do lago. Cientistas russos comearam as perfuraes
alguns anos aps sua descoberta, mas foi interrompida em janeiro
de 1998 por presso da comunidade cientfica, que exigia cuida-
dos adicionais nos mtodos de perfurao para evitar a contami-
nao do lago com micro-organismos externos. Mais de 10 anos
depois, com a questo ambiental resolvida, os russos continuaram
a perfurao e, em 5 de fevereiro de 2012, concluram um dos
feitos mais extraordinrios e complexos da cincia: alcanaram o

167
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

lago Vostok, 3.769 m abaixo do gelo antrtico. As amostras do lago


esto sob anlise, e o grande mistrio da vida em um dos ltimos
lugares inexplorados da Terra est sendo resolvido (Figura 8.4).
Bactrias e outros micro-organismos j foram detectados (e
cultivados) a partir de testemunhos de gelo coletados durante a
perfurao do lago (Shtarkman et al., 2013). Muitas delas mostra-
ram-se organismos psicroflicos, ou seja, extremfilos adaptados
a ambientes frios e capazes de sobreviver a temperaturas abaixo
de 0 C. Isso no significa, necessariamente, que h vida no inte-
rior do misterioso lago, mas j um grande achado a descoberta
de micro-organismos sobrevivendo sob 3,6 km de gelo antrtico.
Entretanto, outra descoberta chamou mais a ateno: na interface
entre o lago e o manto de gelo antrtico, h um tipo de gelo es-
pecfico chamado de gelo de acreo, ou seja, a gua do prprio
lago que congelou quando em contato com a geleira. Essa cama-
da de gelo contm, portanto, evidncias do que h no interior do
lago. Atravs de mtodos moleculares, uma equipe de cientistas
europeus encontrou preservada no gelo de acreo molculas de
dna similares ao da Hydrogenophilus thermoluteolus, uma bact-
ria termoflica que s encontrada nas ferventes fontes hidroter-
mais ocenicas (Lavire et al., 2006). Embora a bactria no tenha
sido isolada e cultivada, os cientistas consideram o achado como
uma forte evidncia de que haja um sistema geotermal no leito do
lago, que mantm sua gua em estado lquido.
Os segredos do lago Vostok so preciosos para a astrobiolo-
gia porque o lago subglacial considerado como um ambiente
anlogo ao da lua Europa, uma das quatro luas descobertas em
1610 por Galileu Galilei ao apontar o telescpio para o planeta
Jpiter. Europa uma lua formada por um ncleo rochoso, similar
ao da Terra, composto de silicato e ferro. Sua superfcie formada
por uma camada de 100 km de gelo e uma tnue atmosfera rica
em oxignio. Abaixo do gelo, os cientistas apontam a existncia
de um vasto oceano de gua lquida e salgada, de volume quase
duas vezes maior que os oceanos da Terra. Essa configurao
muito similar do lago Vostok um grande corpo de gua lquida

168
VIDA AO EXTREMO

isolado da atmosfera por uma espessa camada de gelo. Se a vida


for confirmada no Vostok, os cientistas podero utiliz-la como
modelo para uma possvel vida extraterrestre em Europa.

A partir de 1967, a estao Vostok perfurou


Idade do
cinco poos de diferentes profundidades
gelo, em
Dimetro
milhares
do poo
de ano

Broca
trmica

Broca
eletromecnica

O poo tem 3.769 m de profundidade.


o mais fundo j perfurado em gelo.

Figura 8.4. Perfil da perfurao do Lago Vostok, na Antrtica. Fonte: Sputnik/


Ria Novosti/Glow Images

Sondar os limites em que a vida prolifera na Terra pode forne-


cer informaes importantes sobre as probabilidades de encontr-
-la em ambientes extraterrenos. Sendo assim, estudar ambientes
extremos de nosso prprio planeta ajuda a entender a variabilida-
de metablica e o poder de adaptao de organismos a diferentes
gradaes ambientais, definindo fronteiras de habitabilidade para
as formas de vida que conhecemos.

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Wassmann, M. et al. Survival of spores of the uv-resistant Bacillus
subtilis strain MW01 after exposure to low-earth orbit and
simulated martian conditions: data from the space experiment
adapt on expose-e. Astrobiology, v. 12, n. 5, p. 498-507, 2012.

171
METABOLISMOS POUCO
CONVENCIONAIS
Captulo 9
Andr Arashiro Pulschen

Introduo
A definio exata de metabolismo no bvia. Podemos con-
siderar como metabolismo todas as transformaes e reaes qu-
micas que ocorrem dentro de um organismo vivo, normalmente
envolvendo enzimas, e que asseguram a manuteno e o cres-
cimento celular, atravs da sntese ou degradao de molculas.
Com uma definio to geral, fcil de se imaginar que a quanti-
dade de diferentes metabolismos existentes extremamente vasta.
Certas vias metablicas mais basais, como a degradao da gli-
cose, so relativamente conservadas e abundantes, porm certos
metabolismos podem ser considerados como exticos e pouco
convencionais, ocorrendo principalmente em procariotos.
Metabolismos no convencionais no so to raros assim em
nosso planeta. Isso porque a definio de convencional parte de
ns, humanos, apenas uma das milhares de espcies que existem

173
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

na Terra. Consideramos como convencionais nossos prprios me-


tabolismos e aqueles dos organismos prximos de nossa realida-
de, como outros animais e plantas. Porm, ao examinarmos com
cuidado certos animais, plantas e micro-organismos, veremos que
a quantidade de diferentes vias metablicas distintas das conside-
radas convencionais so muitas e bem diversificadas.
Este captulo ir se concentrar apenas em metabolismos no con-
vencionais energticos (ou seja, gerao de atp e de poder redutor).
Isso porque existe uma enorme gama de vias metablicas diferentes
e, para cada uma delas, metabolismos que podem ser considerados
pouco convencionais. Como exemplo podemos citar a sntese de al-
guns aminocidos exticos por arqueias ou ento a sntese de cristais
magnticos por bactrias magnetotticas. Seria pouco prtico abor-
dar todos esses metabolismos diferenciados em apenas um captulo.
Alm disso, a bioenergtica alternativa tem um apelo inte-
ressante para a astrobiologia: temos buscado por sinais de vida em
nosso Sistema Solar e em outros corpos celestes que sejam habit-
veis. Porm, mesmo que encontremos uma lua ou planeta onde as
temperaturas sejam relativamente parecidas com as nossas (Marte,
por exemplo), ou ento com grande abundncia de gua (Europa
e Ganimedes), seja em nosso Sistema Solar ou em outro, existe
uma condio que dificilmente ser reproduzida: nossa grande
quantidade de oxignio livre na atmosfera, criando um ambiente
planetrio majoritariamente oxidante.
No caso do nosso planeta, o oxignio uma assinatura mui-
to evidente da vida. Tamanha a importncia do oxignio, que
a maioria dos metabolismos existentes depende desse gs. Por
exemplo, considera-se hoje que praticamente no existem orga-
nismos multicelulares anaerbicos (isto , que no respiram oxi-
gnio). Logo, tudo aquilo que vivo e visto a olho nu (pssaros,
plantas, peixes, pessoas etc.) aerbio. Se quisermos ter chances
de encontrar vida semelhante nossa em outro corpo celeste, pre-
cisamos procurar por metabolismos energticos no convencio-
nais, diferente daquilo que estamos acostumados a observar nor-
malmente e diferente de como ns somos. Isto , devemos pensar

174
Metabolismos pouco convencionais

em formas de vida e ecossistemas que necessitam de oxignio e


no dispem de abundncia de matria orgnica, porm ainda
assim seja capaz de produzir atp de forma eficiente. Vidas e ecos-
sistemas que no dependam de carbono orgnico originado de
fotossntese oxignica, como a realizada pelas plantas, porm que
tenham alternativas viveis para obter poder qumico redutor o
suficiente para transformar carbono inorgnico em orgnico.
Para entendermos melhor esse ponto, podemos levantar a se-
guinte problemtica: supondo que os vastos oceanos submersos
da lua de Jpiter, Europa, tenham temperaturas e salinidade simila-
res aos nossos. Logo, comearamos a imaginar se existem peixes
por l. Bom, caso existam, esses peixes de Europa precisariam
ser capazes de respirar anaerobicamente, uma vez que pratica-
mente todo o gs oxignio que existe em nosso planeta fruto
da fotossntese, e pouco provvel que exista em concentraes
significativas em qualquer outro corpo de nosso Sistema Solar.
De fato, nosso planeta j passou por um perodo anxico, sem
a presena massiva do oxignio gasoso. Durante o perodo do sur-
gimento da vida at o aparecimento das cianobactrias e a oxida-
o da crosta, cerca de 2,1 bilhes de anos atrs, a vida na Terra
existiu em um ambiente sem oxignio, e os organismos produtores
primrios no eram fotossintetizantes oxignicos. Talvez um tipo
de vida similar ao que imaginamos que podemos encontrar em
outros planetas. Sendo assim, o entendimento dos metabolismos
no convencionais importante para a busca de vida extraterres-
tre, mas tambm essencial para o entendimento da vida passada
em nosso planeta, e mesmo a vida atual em ambientes extremos.
Sero apresentados a seguir exemplos de diferentes metabolismos
energticos existentes em nosso planeta, os quais no esto conecta-
dos ou no dependem do oxignio e nem da fotossntese oxignica,
alm de discutidas suas possveis implicaes para a astrobiologia.

Metabolismo energtico e produo de atp


Para se manter vivo, um organismo precisa, resumidamente,
realizar duas tarefas metablicas: produzir energia e assimilar

175
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

carbono. Nos sistemas vivos ocorrem diversas reaes metablicas


energeticamente no favorveis. A fim de tornar essas reaes ter-
modinamicamente possveis, as clulas usam reaes acopladas.
A mais comum delas o acoplamento das reaes com uma rea-
o de quebra do atp, produzindo adp + fsforo inorgnico (Pi). Tal
acoplamento de reaes extremamente eficiente e est presente
em praticamente todos os metabolismos conhecidos hoje em dia;
por isso o atp conhecido como a moeda de troca energtica para
a vida como a conhecemos. Para a produo das molculas de
atp, existem duas vias possveis: fosforilao a nvel de substrato e
a cadeia transportadora de eltrons.
O exemplo mais clssico de fosforilao em termos de subs-
trato a gliclise. A quebra da glicose em duas molculas de pi-
ruvato consome 2 molculas de atp, porm produz 4 molculas
de atp. Dessa forma, o saldo dessa reao so 2 atps. A conhecida
fermentao (que ocorre em nossos msculos quando nos exerci-
tamos em excesso ou na produo de bebidas alcolicas) consiste
apenas em uma etapa de reciclagem de nadh a nad+, necessria
para a continuidade da gliclise, uma vez que necessita transfor-
mar nad+ em nadh para ocorrer. Portanto, a fermentao em si no
produz atp. Ela apenas necessria para a continuidade do meta-
bolismo glicoltico.
J a cadeia transportadora de eltrons um mecanismo muito
mais complexo de produo de atp. Basicamente, inicia com uma
molcula que ser a doadora de eltrons. Esse eltron doado
constante e gradativamente transferido a diferentes protenas de
membrana (citocromos, protenas ferro-enxofre e quinonas). A
cada etapa de transferncia desse eltron, ons H+ so bombeados
para fora da membrana, criando assim um gradiente de prtons.
Ao fim da cadeia transportadora de eltrons est um aceptor de
eltrons, normalmente por uma redutase (oxignio redutase,
nitrato redutase etc.). No caso dos humanos, o aceptor final de el-
trons o oxignio, que reduzido em gua. A presena constante
do aceptor final de eltrons importante para permitir o constante
fluxo de eltrons na cadeia transportadora, similar a uma corrente

176
Metabolismos pouco convencionais

eltrica. Se no existirem aceptores finais de eltrons, a cadeia


transportadora para, e o bombeamento de prtons interrompido.
Os prtons que foram bombeados para fora da clula acabam
retornando para seu interior. Porm, no so capazes de atravessar
a membrana plasmtica. S conseguem fazer isso atravs de uma
protena especial similar a um canal, chamada de atp sintase. Essa
protena aproveita a fora gerada pelo gradiente de prtons e, com
a passagem dos ons H+ de volta para o citoplasma, a energia
utilizada para a sntese de atp, a partir de adp + Pi. Um esquema
ilustrativo de uma cadeia transportadora de eltrons est apresen-
tado na Figura 9.1.

H+
H+
H+ H+ H+
H+
H+

e- e-
Q
e-

NADH NAD+ O HO
2 2

ADP + Pi ATP
H+
Figura 9.1. Ilustrao da cadeia transportadora de eltrons. Fonte: Elaborado
pelo autor

Porm, para poder ocorrer a cadeia de transporte de eltrons


necessrio que a molcula doadora de eltrons tenha um potencial
de oxidao maior do que a molcula aceptora de eltrons. O fun-
cionamento similar a uma pilha: o fluxo de eltrons vai no sentido
do metal com menor potencial de reduo (isto , menor afinidade
de eltrons) para o metal de maior potencial de reduo (maior afi-
nidade por eltrons). No caso ilustrado na Figura 9.1, que a cadeia
transportadora que ocorre nas mitocndrias, o doador de eltrons
o nadh, obtido pela oxidao da matria orgnica. O aceptor final
de eltrons o oxignio. Se observarmos uma tabela que contm

177
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

os potenciais-padro de reduo de diferentes pares redox (Tabela


9.1), podemos ver que o potencial de reduo do par nad/nadh
muito menor do que o potencial de reduo do par O2/H2O. Dessa
forma, o sentido dos eltrons extremamente favorecido de nadh
para oxignio. importante ressaltar que quanto maior essa diferen-
a entre os potenciais de reduo, maior a quantidade de prtons
bombeados e, portanto, maior o rendimento de produo de atp.

Tabela 9.1. Diferentes potenciais de reduo de pares redox (pH 7)


Par redox E0 (mV)
H /H2
+
- 414
nad/nadh - 320
S0/HS- - 270
fad/fadh2 - 220
NO3 /NO2
- -
+ 433
Fe /Fe
+3 +2
+ 772
O2/H2O + 818
Fonte: Dados retirados do trabalho de Thauer, Jungermann e Decker (1977)

Alm da produo de atp, as clulas necessitam de carbono or-


gnico para a manuteno e crescimento celular. Muitos organismos
obtm esse carbono do consumo de matria orgnica (metabolismo
hetertrofo), porm os organismos produtores (metabolismos auto-
trficos) conseguem fixar o CO2 atmosfrico, convertendo carbono
da forma inorgnica para a forma orgnica. Para isso, necessitam de
poder redutor, isto , uma molcula capaz de reduzir o CO2 atmos-
frico e o incorporar em uma cadeia carbnica orgnica, sendo o
nadph a molcula mais comumente utilizada nesse processo.

Metabolismos energticos convencionais


Podemos considerar como convencional os metabolismos
energticos aos quais estamos acostumados, ou seja, a obteno
de energia e carbono atravs do consumo de matria orgnica (pre-
datismo, decomposio etc.) e da respirao aerbia, ou atravs da

178
Metabolismos pouco convencionais

fotossntese. Basicamente, consiste nos metabolismos que ocorrem


em uma clssica cadeia ou teia alimentar.
No caso do metabolismo de consumidores, a produo de atp
realizada atravs da cadeia tranportadora de eltrons, sendo o doador
de eltrons a coenzima nadh (originada da oxidao de compostos
orgnicos reduzidos) e o aceptor final de eltrons o oxignio. A ener-
gia tambm pode ser produzida em termos de substrato, atravs da
fermentao, porm a eficincia de produo de atp mais limitada
nesse caso. O carbono utilizado para o crescimento celular tambm
obtido pela matria orgnica. Esse o metabolismo existente nos
seres humanos e em todos os animais existentes, por exemplo.
J no caso da fotossntese como a conhecemos, tambm cha-
mada de fotossntese oxignica, o doador de eltrons a gua. A
gua sofre fotlise (quebra na presena de luz), liberando assim
oxignio, um prton e um eltron. Esse eltron ento trans-
portado atravs da cadeia transportadora de eltrons at uma
nadp+ redutase, que transforma o nadp+ em nadph (no deve ser
confundida nadh com nadph). Assim, o aceptor final de eltrons
nesse caso o nadph, e os prtons, bombeados para fora durante
o transporte de eltrons, so ento usados para a produo de
atp. A seguir, um esquema resumido da fotossntese oxignica
(Figura 9.2).

H+

ADP + Pi ATP
NADPH
Luz NADP+
Luz

Estroma

PSI e-
e-
PSII
e-

Lmen do
Tilacide H2O +
H+ H+
O2 + 2H H+
H+

Figura 9.2. Esquema ilustrativo da fotossntese oxignica. Fonte: Elaborado


pelo autor

179
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

A formao de nadph na fotossntese tem um propsito a cons-


tituio da molcula tambm chamada de formao de poder
redutor. Isso porque o nadph essencial para a fixao do CO2 at-
mosfrico (na maioria dos metabolismos de fixao de CO2). Logo,
a fotossntese oxignica tem como propsito produzir atp e gerar po-
der redutor, para permitir a converso de CO2 em carbono orgnico.
Podemos, portanto, resumir os metabolismos energticos con-
vencionais como sendo os trs apontados a seguir: 1) consumo
de matria orgnica e respirao aerbia, na qual compostos or-
gnicos permitem a obteno de carbono e produo de atp; 2)
fermentao, que permite a produo de atp a partir de compostos
orgnicos, mas de forma menos eficiente; 3) fotossntese, na qual
o atp produzido atravs da fotlise da gua, e CO2 atmosfrico
fixado, fazendo-se uso de poder redutor.
Sero abordados agora metabolismos energticos que fogem
desses trs metabolismos mais comuns. Tais metabolismos no
convencionais ocorrem principalmente em bactrias e arqueias,
e muitos deles remetem (e talvez se originaram) a perodos antigos
de nosso planeta, com qumica diferente da atual e, em especial,
em ambiente anxico.

Metabolismos energticos pouco convencionais

Respirao anaerbia
A respirao anaerbia consiste em uma cadeia transportado-
ra de eltrons em que o aceptor final no o oxignio, mas sim
outro composto capaz de receber esses eltrons, como o nitrato.
comum a confuso entre fermentao e respirao anaerbia.
A primeira produz atp apenas pela gliclise, no faz uso da ca-
deia transportadora de eltrons e pouco eficiente. J a respirao
anaerbia faz uso da cadeia transportadora, e a produo de atp
muito mais eficiente do que na fermentao.
A respirao anaerbia comum no ambiente microbiano e
vrios organismos, como os Escherichia coli e Bacillus subtilis so
capazes de realiz-la (Nakano; Zuber, 1998; Unden; Bongaerts,

180
Metabolismos pouco convencionais

1997). Apesar de esses organismos crescerem aerobicamente, em


condies anaerbicas so capazes de sintetizar as redutases ne-
cessrias para realizar a respirao anaerbia, sendo a mais comum
nesse caso atravs da utilizao de nitrato como o aceptor final
uma nitrato redutase transforma o nitrato (NO3) em nitrito (NO2).
Em teoria, qualquer composto pode ser respirado pelas c-
lulas. Bastam duas condies: o aceptor final de eltrons em ques-
to (composto a ser respirado) deve ter potencial de reduo maior
do que o composto doador de eltrons (E0 maior), e a clula deve
ser capaz de sintetizar uma redutase que pode transferir os eltrons
do doador de eltrons para esse aceptor final em questo. No caso
da respirao aerbia, uma oxignio redutase quem transfere o
eltron para o oxignio, reduzindo-o em gua.
De fato, so encontrados na natureza diversos elementos qu-
micos que agem como aceptores finais de eltron nas cadeias
respiratrias anaerbias. Por exemplo, existem organismos ca-
pazes de respirar sulfato (Muyzer; Stams, 2008), selnio (Zher;
Oremland, 1987), arsnico (Stolz; Oremland, 1999), ferro (Dubiel
et al., 2002) e at mesmo urnio (Koribanics et al., 2015). Porm,
todos esses organismos so unicelulares. Praticamente no existem
exemplos de organismos multicelulares que realizam respirao
anaerbia. Virtualmente todos os multicelulares que conhecemos
hoje so aerbios e, no melhor dos cenrios, capazes de viver em
baixas tenses de oxignio, ou ento por breves perodos da vida
em anoxia. Existem propostas de que a origem da multicelularida-
de na histria da vida est diretamente relacionada ao surgimento
do metabolismo aerbico, capaz de liberar mais energia que sua
contraparte anaerbica.
Existem alguns poucos exemplos de organismos que podem
ser considerados multicelulares e anaerbios. Como destaque,
podemos mencionar a bactria Candidatus Magnetoglobus multi-
cellularis (Abreu et al., 2007). O ciclo de vida desse organismo em
particular totalmente na forma multicelular, e a diviso celular
tambm ocorre de modo coordenado, sendo que todas as clulas
que compem o organismo se dividem ao mesmo tempo. Alm

181
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

disso, qualquer clula que seja removida do grupo acaba perden-


do a viabilidade, e, aparentemente, o nico modo de vida desse
organismo na forma multicelular. Por ser um organismo mag-
netottico, pode se orientar atravs de campos magnticos. Para
nadar em uma mesma direo, os movimentos flagelares de todos
os integrantes do organismo devem estar coordenados, o que
sugere tambm complexa coordenao e comunicao celular.
Porm, como j foi dito, o nmero de organismos que pode-
mos considerar como multicelulares e anaerbios muito peque-
no. Apesar de recentemente trs metazorios terem sido encontra-
dos em uma regio anxica do Mar Morto e ter sido sugerido que
so anaerbios (Danovaro et al., 2010), a falta de estudos posterio-
res e a dificuldade de obteno das amostras impede a confirma-
o do metabolismo anaerbio desses organismos.
Mas, ento, por que no existem organismos anaerbios mul-
ticelulares, uma vez que a respirao anaerbia tambm pode ser
eficiente na produo de atp? A resposta para essa questo est
na abundncia. O oxignio se tornou muito abundante em nosso
planeta quando a vida ainda era recente, por causa do surgimento
da fotossntese oxignica. Dessa forma, muito oxignio foi produ-
zido e acabou se acumulando na atmosfera aps o esgotamento
das fontes minerais reduzidas da crosta, o que foi extremamente
txico para organismos obrigatoriamente anaerbios. Essa abun-
dncia de oxignio acabou extinguindo boa parte dos micro-or-
ganismos existentes, e talvez at os primeiros possveis multice-
lulares anaerbios. Alm disso, o oxignio apresenta uma grande
vantagem em relao aos outros aceptores finais de eltrons: est
em toda a atmosfera e tambm dissolvido na gua dos oceanos, o
que o torna muito mais abundante e disponvel do que qualquer
um dos outros compostos listados anteriormente. Uma vez que a
vida evoluiu de forma a respirar oxignio, a variedade de habitats
possveis de serem utilizados se elevou, alm de se considerar que
o rendimento de produo de atp atravs da respirao aerbia
mais elevado que as alternativas anaerbias. Dessa forma, o sur-
gimento de organismos multicelulares aerbios foi favorecido, em

182
Metabolismos pouco convencionais

detrimento dos anaerbios, cujos habitats possveis acabaram por


se tornar restritos.

Quimiolitotrficos
Organismos quimiolitotrfricos so organismos capazes de
produzir atp ou com poder redutor, a partir de compostos qumicos
inorgnicos. No caso da produo de atp, no importa o aceptor
final de eltrons (oxignio, urnio ou qualquer outro), mas sim o
doador de eltrons, que nesse caso no um composto orgnico.
O padro bsico de produo de energia e poder redutor segue,
portanto, a mesma lgica de outras formas de vida, porm se ba-
seia agora em compostos inorgnicos (Peck, 1968).
Considerando-se a produo de atp, a cadeia transportadora
de eltrons dos organismos quimiolitotrficos conta com enzimas
capazes de remover eltrons de compostos orgnicos reduzidos.
De fato, uma vasta gama de compostos qumicos reduzidos po-
dem ser utilizados no metabolismo quimiolitotrfico, conforme
ilustrado na Tabela 9.2.

Tabela 9.2. Diferentes micro-organismos e reaes quimiolitotrficas


Bactria Reao

Nitrosomonas europea 2 NH4+ + 3 O2 2 NO2 + 2H2O


Nitrobacter winogradskyi 2 NO2 + O2 2 NO3
Cupriavidus necator 2 H2 + O2 2 H2O
Pseudomonas carboxydovorans 2 CO + O2 2 CO2
Acidithiobacillus thiooxidans 2 S + 3 O2 + 2 H2O 2 SO42 + 4 H+
Acidithiobacillus ferrooxidans 4 Fe2+ + O2 + 4 H+ 4 Fe3+ + 2 H2O
Leptothrix spp. 2 Mn2+ + O2 + H2O 2 MnO2 + 4
H+
Paracoccus denitrificans 5 H2 + 2 NO3 + 2 H+ 6 H2O + N2
Desulfovibrio desulfuricans 4 H2 + SO42 + 2 H+ H2S + 4 H2O
Methanobacterium termoautrotrophicum 4 H2 + HCO3 + H+ CH4 + 3 H20

183
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

O metabolismo de produo de atp o mesmo j explicado: o


eltron, fornecido pelo doador de eltrons, transportado atravs
da cadeia transportadora e, nesse processo, prtons so bombe-
ados para fora da clula e retornam ento pela atp sintetase, pro-
duzindo assim atp a partir de adp + fsforo inorgnico. O aceptor
final de eltrons pode ser tanto o oxignio, como qualquer um dos
outros possveis aceptores discutidos anteriormente.
Todavia, a produo de poder redutor atravs de metabolismo
quimiolitotrfico diferente. Para a gerao de nadph a partir de com-
postos inorgnicos necessrio que o eltron ande no sentido rever-
so da cadeia transportadora de eltrons. Isso porque grande parte dos
compostos qumicos reduzidos utilizados pelos quimiolitotrficos
para a gerao de atp tem maior afinidade por eltrons do que o par
nadp+/nadph. Portanto, a tendncia que o nadph perca eltron para
esses compostos, e no que o nadp+ receba eltrons. Basicamente,
como tentar forar que o ouro oxide e reduza um outro metal, como
a prata, por exemplo (o que no ocorre naturalmente).
Logo, a clula necessita empregar atp para forar o eltron a
ir no sentido contrrio ao esperado, sendo esse atp inicial gerado
na cadeia transportadora de eltrons. Por fim, uma nadp+ redutase
reduz o nadp+ a napdh, permitindo assim que o organismo use esse
composto para a fixao de CO2 atmosfrico, seja pelo ciclo de
Calvin, ou pelo ciclo do cido ctrico reverso. Um esquema sim-
plificado da produo de atp e poder redutor em um metabolismo
quimiolitotrfico est ilustrado na Figura 9.3.
Um fato importante a ser considerado que, quanto maior o po-
tencial de reduo do composto doador de eltron, maior a quan-
tidade de atp que dever ser empregada para forar esse eltron a
ser doado para o nadph. Por exemplo, a bactria Acidithiobacillus
ferrooxidans, alm de ser capaz de crescer a partir da oxidao de
enxofre elementar, consegue crescer atravs da oxidao de Fe+2,
fixando CO2 e produzindo atp. Devido a esse metabolismo, um
importante organismo modelo para quimiolitotrficos e tem sido
estudada e aplicada nas reas de biotecnologia e bioprospeco
(Nemati et al., 1998; Yang et al., 2009). Porm, um metabolismo

184
Metabolismos pouco convencionais

extremamente pouco eficiente, uma vez que produz muito pouco


atp (diferena muito pequena entre o potencial de reduo do
par redox Fe+2/Fe+3 e o aceptor final de eltrons, O2/H2O) e gasta
uma grande quantidade de atp para gerar poder redutor (grande
diferena entre o potencial de reduo do par redox Fe+2/Fe+3 e
o aceptor final nadp+/nadph). Logo, o aumento de biomassa desse
organismo crescendo em ferro muito menor do que se estivesse
crescendo em enxofre elementar, por exemplo.

Espao Extracelular Fluxo de eltrons

*Consumo de ATP
H+
Fluxo de eltrons no sentido reverso

0 -2
S ou S2O3
NADP+ S2O4
-2
(Ou NAD+) O HO
NADPH 2 2
Espao intracelular (Ou NADH)

ADP + Pi
ATP

H+

Figura 9.3. Esquema ilustrativo da produo de atp e tambm de poder redutor em


organismos quimiolitotrficos. Nesta ilustrao em especial esto apresentadas
diferentes espcies qumicas de enxofre. Fonte: Elaborado pelo autor

O metabolismo quimiolitotrfico corresponde, em nosso pla-


neta, a uma alternativa fixao de carbono inorgnico da fotos-
sntese. Isso quer dizer que ecossistemas inteiros podem ser ba-
seados em produtores que no dependem da luz do Sol. Isso
extremamente importante quando pensamos em ecossistemas em
cavernas ou ento no fundo de oceanos. De fato, diversas comu-
nidades j foram descritas em tais ambientes, todas dependentes
de quimiolitotrficos como produtores (Jannasch; Wirsen, 1981;
Northup; Lavoie, 2001).

Fotossntese anoxignica
A fotossntese anoxignica consiste em uma fotossntese na
qual no se tem a produo de oxignio como um dos produtos
finais, da o seu nome. O oxignio produzido pela fotossntese

185
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

oxignica proveniente da fotlise da gua (doador de eltrons);


portanto, o doador de eltrons tambm diferente no caso da fo-
tossntese anoxignica.
Na verdade, apesar de menos conhecida, acredita-se que a fo-
tossntese anoxignica foi a primeira a surgir nos organismos vivos.
Esse tipo de fotossntese depende apenas de um fotossistema, ao
passo que a fotossntese oxignica depende de dois fotossistemas,
tendo provavelmente sido originada a partir da primeira e aperfei-
oada para ser capaz de oxidar a gua (Cardona et al., 2015). O
surgimento da fotossntese (anoxignica) foi uma grande vantagem
evolutiva, uma vez que permite a produo de atp a partir da luz
e sem o gasto de compostos qumicos reduzidos ou material org-
nico, de modo que poderiam ser destinados exclusivamente para
a gerao de poder redutor ou diretamente para a biossntese de
molculas e crescimento celular.
A fotossntese anoxignica pode ser de dois tipos: cclica, na
qual ocorre apenas a produo de atp; e no cclica, na qual, alm
da produo de atp, temos a gerao de poder redutor, porm com
o uso de algum composto qumico reduzido, como o sulfito de
hidrognio.
Na fotossntese anoxignica cclica (Figura 9.4), podemos con-
siderar como doador de eltrons o prprio fotossistema I. O eltron
excitado pela ao da luz e, similarmente a outras cadeias trans-
portadoras de eltrons, transportado pelas quinonas e citocro-
mos, sendo gerado um gradiente de prtons nesse processo, que
utilizado para a produo de atp. Ao final do ciclo, o eltron
retorna ao fotossistema I (que pode ser considerado ento o aceptor
final de eltrons). Como saldo, tem-se a produo de atp, mas no
de poder redutor, uma vez que molculas como nadp+, utilizadas
para a fixao de CO2, no so aceptores finais de eltrons.
J na fotossntese anoxignica no cclica, um composto re-
duzido (H2 ou H2S, por exemplo) age como o doador de eltrons.
Nesse cenrio, o aceptor final de eltrons pode ser o nadp+, geran-
do assim poder redutor e possibilitando a fixao de CO2.

186
Metabolismos pouco convencionais

H+
Luz
H+ H+ H+

e-
e-

ADP + Pi ATP

H+

Figura 9.4. Esquema simplificado da fotossntese anoxignica cclica. Fonte:


Elaborado pelo autor

Como micro-organismos capazes de realizar fotossntese ano-


xignica, podemos listar as bactrias prpuras do enxofre e prpu-
ras no sulfurosas, bactrias verdes do enxofre, bactrias do gne-
ro Heliobacter e Chloroflexi (Bryant; Frigaard, 2006; Frigaard; Dahl,
2009). At mesmo cianobactrias, como algumas espcies do gne-
ro Oscillatoria, so capazes de realizar fotossntese anoxignica em
regies anaerbias. Como exemplo, a primeira descrio de fotos-
sntese anaerbia dependente de sulfito foi relatada em uma espcie
de Oscillatoria (Cohen; Padan; Shilo, 1975). Outro grande destaque
foi a descoberta de membros do mesmo gnero capazes de realizar
fotossntese anoxignica a partir de arsnio, As(III), encontradas no
lago Mono na Califrnia, Estados Unidos (Kulp et al., 2008), que
anxico e tambm rico em sulfito. Tais adaptaes tiveram muita im-
portncia evolutiva para o gnero, uma vez que altas concentraes
de sulfito de hidrognio inibem o funcionamento do fotossistema II
e inviabilizam a fotossntese oxignica (Jogensen; Cohen; Revsbech,
1986). A capacidade de realizar a fotossntese anoxignica aumen-
tou ento a gama de nichos em que esses organismos so capazes
de ocupar.
Por fim, similar ao ponto levantado anteriormente em rela-
o respirao aerbia, cabe aqui mais uma vez um importante

187
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

questionamento evolutivo: por que mais comum encontrarmos


a fotossntese oxignica, e por que no existem grandes plantas
que realizam fotossntese anoxignica?
A resposta a mesma para o questionamento da respirao ae-
rbia: abundncia. A fotossntese anoxignica incapaz de gerar
poder redutor, e para isso depende do uso de compostos qumicos
reduzidos e da cadeia transportadora de eltrons reversa (que con-
some atp). J a fotossntese oxignica capaz de gerar poder redu-
tor, uma vez que o aceptor final de eltrons consiste em uma napd+
redutase. Alm disso, para esse sistema no se poderia pensar em
um melhor doador de eltrons: a gua elemento extremamente
abundante na superfcie de nosso planeta, muito mais do que os
locais onde compostos qumicos reduzidos se encontram dispon-
veis. Alm disso, no existe vida (na forma ativa) em locais em que
no exista gua. Logo, para a vida ela est sempre presente.
Isso implica que, uma vez originada, organismos capazes
de realizar fotossntese oxignica (primeiras cianobactrias) ra-
pidamente se espalharam, por causa da grande vantagem adap-
tativa de seu metabolismo. Tamanha foi a vantagem evolutiva
proveniente da fotossntese oxignica que nosso planeta passou
por um grande evento de oxigenao da crosta terrestre e au-
mento dos nveis de oxignio da atmosfera. No entanto, o oxi-
gnio txico para a grande maioria dos organismos anaerbios
(e mesmo aerbios, em algum grau), o que reduziu ainda mais
a abundncia destes na superfcie terrestre, inclusive os orga-
nismos que realizavam fotossntese anoxignica, limitando-os a
ambientes restritos.

Metabolismo energtico dependente de radilise


At ento foram apresentados diferentes metabolismos
energticos, tanto para a obteno de atp como para a gerao
de poder redutor e para a fixao de CO2. Tais metabolismos
diferem consideravelmente daquilo que podemos considerar
convencional. Porm, apesar de distintos, todos os metabolis-
mos e organismos apresentados anteriormente esto inseridos

188
Metabolismos pouco convencionais

em ecossistemas que so dependentes, em ltima instncia, de


energia solar ou energia qumica (sendo produtores primrios
ou no).
Essa noo de que os ecossistemas seriam dependentes de
energia solar ou qumica s mudou entre 2006 e 2008, com o pri-
meiro relato de um ecossistema dependente da energia provenien-
te da radilise (Lin et al., 2006; Chivian et al., 2008). Curiosamente,
tambm foi o primeiro relato de um ecossistema dependente de um
organismo s, batizado de Candidatus Desulforudis audaxviator
(Chivian et al., 2008). O organismo foi encontrado em uma mina
de ouro localizada na frica do Sul, a 2,8 km de profundidade.
Pelo sequenciamento do genoma do organismo, pde-se ob-
servar que extremamente verstil em termos metablicos. Sendo
um ecossistema de um organismo s, era de se esperar que fosse
capaz de sintetizar todos os seus nutrientes necessrios (aminoci-
dos, acares etc.), desde que houvesse um suprimento exgeno
de energia e carbono, ambos biologicamente disponveis.
Porm, o que torna o organismo (e o ecossistema interessan-
te) so suas vias de obteno de energia e poder redutor para
a fixao de CO2. A via principal de obteno de atp atravs
da reduo de sulfato (descrita anteriormente), que age como
aceptor final de eltrons. O doador de eltrons utilizado o
hidrognio, que fixa o CO2. No entanto, o sulfato gerado no
ambiente por causa do decaimento radioativo do urnio, que
gera perxido de hidrognio (H2O2) e que, por sua vez, interage
com a pirita (FeS2), liberando assim ons SO42- que podem ser
utilizados na respirao celular anaerbica. O hidrognio (H2)
que o doador de eltrons para a produo de atp e tambm
para a gerao de poder redutor, gerado pela radilise da gua
promovida pelo decaimento do urnio. O esquema metablico
do organismo est apresentado na Figura 9.5.
A radilise tambm tem papel importante na disponibilizao
de nitrognio para o micro-organismo. ons H+ gerados pela radi-
lise do bicarbonato auxiliam a dissoluo da calcita, liberando

189
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

assim um on Ca2+, que retira um on de amnia da esmectita, dis-


ponibilizando assim nitrognio para o micro-organismo.
Por fim, a descoberta de tal organismo (e o ecossistema que
ele compe) tambm interessante pelo fato de estar situado
a 2,8 km de profundidade na crosta terrestre, pois demonstra
que a vida microbiana capaz de sobreviver e, principalmente,
consegue chegar a essas profundidades na crosta do planeta.
Um ecossistema como esse, completamente isolado e prote-
gido da superfcie, poderia sobreviver s maiores catstrofes
planetrias que podemos imaginar e ser um modelo de vida
em ambientes crticos do Universo, como o fundo ocenico em
Europa, lua de Jpiter.

H2S
FeS 2 H2O2
(Pirita) Produo
de ATP
H 2O2 SO4-2
+
H OH - SO4-2
OH -
H 2O
H 2O SO4-2
H2

H2
H 2O
UO2 OH - poder redutor
(Uraninita)
-

H
+ HCO3
-
HCO3
+
H
Fixao de
Dissoluo Carbono
da Calcita
CaCO3
(Calcita)
Figura 9.5. Resumo do metabolismo proposto por Chivian et al. para o
Candidatus Desulforudis audaxviator (baseado no trabalho de Chivian et al.,
2008).

Implicaes para a astrobiologia


Nossa considerao de metabolismo convencional est emba-
sada na realidade atual de nosso planeta: oxignio abundante, or-
ganismos multicelulares aerbios e predominncia de produtores

190
Metabolismos pouco convencionais

primrios que realizam fotossntese oxignica. Porm, ao conside-


rarmos o contexto csmico, a condio atual de nosso planeta no
nada convencional.
Quanto questo energtica, nosso planeta foi profunda-
mente transformado pelo aumento das taxas de oxignio e pelo
surgimento da fotossntese oxignica; hoje, tudo que podemos
enxergar a olho nu e vivo tem sua energtica relacionada ao
oxignio, e isso torna nosso planeta no convencional: no existe,
por exemplo, nenhuma evidncia de que exista oxignio gasoso
em concentraes significativas em outro corpo do nosso Sistema
Solar, e tambm no temos motivos para acreditar que esse tipo
de ambiente exista. Caso seja encontrado, com certeza ser uma
surpresa para a comunidade cientfica.
Sendo assim, como podemos pensar em vida em lugares
como Marte, ou ento na lua gelada de Jpiter, Europa? Em Marte,
a radiao na superfcie muito elevada e praticamente invivel
para a vida, limitando a fotossntese (Hassler et al., 2014). Em
Europa, a grossa camada de gelo na superfcie impediria a luz de
entrar e iluminar o oceano lquido, que se acredita existir abaixo
do gelo (Khurana et al., 1998). Tambm se sabe que a quantidade
de oxignio gasoso em Marte muito baixa e no existem indcios
de que ele exista em Europa. Ento, como a vida poderia existir
nesses corpos do nosso Sistema Solar, considerando que seriam
os mais promissores para abrigar a vida como a conhecemos?
Pensando na questo energtica, organismos que habitassem es-
ses ambientes deveriam ter metabolismo energtico no conven-
cional, como os descritos anteriormente. A gerao de atp, assim
como a produo de poder redutor, seria baseada em compostos
qumicos reduzidos, que doariam eltrons para um aceptor final
(que no o oxignio), gerando assim quantidades satisfatrias de
atp capazes de fixar carbono. Portanto, a vida provavelmente seria
baseada em algum tipo de metabolismo quimiolitotrfico e com
respirao anaerbia.
Mas, claro, para isso precisaramos de uma fonte de energia
qumica. Isso relativamente fcil de se imaginar em Europa ou

191
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

outras luas geladas em que tambm se acredita existirem oceanos


lquidos em contato com um leito rochoso, como Ganimedes por
exemplo (McCord et al., 2001). Nesses cenrios, podemos imagi-
nar compostos qumicos reduzidos originrios de fontes hidroter-
mais no assoalho ocenico, similar ao que ocorre aqui na Terra.
Em Marte, tal metabolismo dependeria de depsitos minerais pre-
existentes, que provavelmente no estariam sendo constantemente
renovados, como no caso dos vulces no fundo do mar (por causa
da inexistncia de tectonismo no planeta).
A descoberta de ecossistemas dependentes de radilise (Lin
et al., 2006; Chivian et al., 2008) expande ainda mais as pos-
sibilidades de habitabilidade em nosso Sistema Solar, uma vez
que essa fonte de energia poderia estar disponvel mesmo em
grandes profundidades, protegida da radiao incidente no pla-
neta e no dependeria de fontes de compostos qumicos redu-
zidos que fossem constantemente ciclados: bastariam estar pre-
sentes condies para o decaimento radioativo. Alm disso, o
exemplo encontrado aqui na Terra tambm demonstra que cer-
tos osis para a vida podem existir, pequenos e localizados.
No difcil de se pensar, ento, que virtualmente, em qualquer
planeta ou lua rochosa, pode existir no subterrneo pequenos
bolses com gua lquida (talvez aquecidos o suficiente por
causa da proximidade do manto, ou por foras de mar geradas
por um planeta gigante vizinho) e que permitam a vida, depen-
dente de radilise. Aparentemente, o mesmo organismo que foi
encontrado na mina de ouro na frica tambm foi encontra-
do no Vale da Morte, na Califrnia, a 900 m de profundidade,
apesar de o assunto ainda no ter sido retratado oficialmente
em uma publicao cientfica. Caso se confirme, tal fenmeno
poderia sugerir que um gargalo evolutivo tenha ocorrido e
restringido tais micro-organismos para maiores profundidades,
o que no deixa de ser interessante tambm quando conside-
ramos planetas que j tiveram condies mais amenas e hoje
possuem uma superfcie com condies hostis vida, como o
planeta Marte. O mesmo gargalo evolutivo pode ter ocorrido e

192
Metabolismos pouco convencionais

forado os micro-organismos da superfcie a habitarem regies


mais profundas, ao passo que aqueles que permaneceram na
superfcie foram extintos.
Porm, a astrobiologia no se resume busca de vida fora
da Terra. O estudo e entendimento dos metabolismos energticos
pouco convencionais de extrema importncia para o estudo da
habitabilidade de nosso planeta no passado e para a evoluo da
vida. Inicialmente, a vida existiu em um planeta anxico e muito
mais severo do que as condies atuais. Acredita-se que, em al-
gum momento da evoluo, os primeiros micro-organismos qui-
miolitotrficos aprenderam a fazer fotossntese anoxignica, o
que representou uma grande vantagem evolutiva, uma vez que os
doadores de eltrons poderiam ser destinados exclusivamente para
a gerao de poder redutor. Eventualmente, surgiu a fotossntese
oxignica, que, por causa de sua grande eficincia energtica e fle-
xibilidade (o doador de eltrons a gua, aumentando em muito os
nichos habitveis), permitiu o rpido desenvolvimento desses orga-
nismos e alterou completamente o rumo da vida e da geologia de
nosso planeta, que hoje evolui de forma sinrgica com a biosfera.

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196
QUANDO OS ANIMAIS
HERDARAM O PLANETA
Captulo 10
Mrian Liza Alves Forancelli Pacheco, Bruno Becker Kerber
e Francisco Rony Gomes Barroso

Em 1909, o paleontlogo norte-americano Charles Doolittle


Walcott descobriu um extraordinrio registro fssil preservado
no Folhelho de Burgess (Colmbia Britnica, Canad), constitu-
do de espetaculares preservaes de enigmticos animais, como
Anomalocaris e Opabinia (Figura 10.1), nunca antes documentados.

Figura 10.1. Anomalocaris e Opabinia (seres dos mares cambrianos).Fonte:


Shutterstock

197
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

O aparecimento repentino de vrios fsseis de organismos


complexos em rochas to antigas (hoje datadas entre 542 e 488
milhes de anos) tambm havia sido notado por Charles Darwin,
e, de fato, o assombrava. Essa constatao iria balanar os alicer-
ces da Teoria da Evoluo, to meticulosamente construda, cau-
sando receio de transformar, de modo irreversvel, as crenas da
humanidade. Darwin devotou muito tempo de vida coleta de da-
dos, analisando e contemplando as caractersticas e as interaes
entre os mais diversos seres, nas mais remotas partes do mundo,
para reunir fortes subsdios para uma teoria que ele mesmo s teria
trazido ao conhecimento do pblico trinta anos aps ter escrito A
origem das espcies. Assim, uma vez que a evoluo de Darwin
explicava a transformao das espcies apenas de forma suave,
contnua e gradual, ao longo do tempo geolgico, o misterioso
e sbito aparecimento desses complexos organismos no registro
fssil, rico em formas e interaes ecolgicas (por exemplo, com
predadores e parasitas), tornou-se um dilema que tirou o sono de
Darwin, suscitando as mais polmicas discusses sobre a histria e
a evoluo da vida no planeta. como se essa grande variedade de
formas de vida tivesse surgido do nada. Darwin no tinha como se
basear em sua ideia contnua de evoluo para explicar esse fato.
Em uma simples analogia temporal entre as 24 horas de um
dia terrestre e o tempo geolgico, desde a origem do planeta, no
Pr-Cambriano (h mais ou menos 4,5 bilhes de anos) at o apa-
recimento abundante das primeiras formas de vida visvel e com-
plexa no registro fssil (h cerca de 580 milhes de anos), teriam
se passado aproximadamente 20 horas e mais alguns minutos at
o repentino aparecimento de complexos invertebrados. Foi justa-
mente pelo surgimento inesperado e pela inaugurao de formas
de vida complexa, que corresponderiam a apenas 20% do registro
fssil, que esse captulo da histria da vida na Terra foi denomina-
do pelos paleontlogos como Exploso Cambriana (h aproxi-
madamente 540 milhes de anos).
Em 1972, Niles Eldredge e Stephen Jay Gould entenderam o re-
gistro fssil de outro modo que no o sempre gradual e propuseram

198
Quando os animais herdaram o planeta

que a evoluo pode ocorrer de maneira rpida e localizada. Essa


explicao tornou-se uma nova teoria evolutiva, conhecida como
Equilbrio Pontuado, que finalmente justificou a exploso de vida
nos mares do Cambriano e foi muito bem relatada em um dos
grandes best-sellers da Paleontologia, Vida maravilhosa, escrito
pelo prprio Gould.
Por outro lado, a Exploso Cambriana at hoje intriga paleon-
tlogos e bilogos evolutivos, uma vez que esses cientistas ainda
tentam entender se isso realmente aconteceu e, no caso de ter ocor-
rido, quais foram as causas que levaram proliferao em massa
de organismos complexos em um perodo relativamente curto de
tempo, e o que esse evento acarretaria na origem e evoluo dos
animais. Contudo, responder a essas perguntas uma tarefa rdua,
uma vez que os fsseis dos mais antigos animais da Terra apresen-
tam um registro incompleto, raro e demasiadamente destrudo por
causa de processos naturais que neles atuam desde sua morte, h
mais de 500 milhes de anos. esse ponto de vista do registro fs-
sil que os cientistas da vertente mais conservadora do pensamento
evolutivo tm, como Richard Dawkins, que considera essa teoria,
em suas prprias palavras, uma loucura! (em seu livro A grande
histria da evoluo: na trilha dos nossos ancestrais), uma vez que
j h relatos sobre a origem dos animais pelo menos 40 milhes de
anos antes do registro repentino do Cambriano.
Infelizmente, Darwin morreu sem resolver seu dilema. Mas
ns vamos tentar entender esse intrigante evento, mergulhando
na histria da Terra, rumo ao misterioso alvorecer das primei-
ras formas de vida animal, em suas origens mais remotas, bem
como de outros estranhos seres que, ao contrrio dos animais, no
sobreviveram complexidade das relaes ecolgicas que se esta-
beleceram h centenas de milhes de anos.

A evoluo dos organismos no tempo geolgico


O Pr-Cambriano um longo intervalo informal do tempo geo-
lgico, que compreende todo o espao temporal entre a origem da
Terra e o incio do on seguinte, o Fanerozoico (que significa vida

199
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

visvel), iniciado pela era Paleozoica, perodo Cambriano (entre 542


e 488 milhes de anos), em que a vida animal se estabeleceu de
modo abundante e diverso. O Pr-Cambriano compreendeu a fase
mais longa da histria evolutiva da vida na Terra, que teve incio h
aproximadamente 4,56 bilhes de anos. Durante a maior parte do
tempo geolgico, a vida foi representada por micro-organismos (prin-
cipalmente cianobactrias) que evoluram de forma espantosamente
lenta e permaneceram em um estgio que os bilogos hoje definem
como estase evolutiva.
Por outro lado, no final do Pr-Cambriano, na era Neoproterozoica
(datada entre 1 bilho e 542 milhes de anos), dramticas mudan-
as biolgicas e ambientais e importantes inovaes evolutivas ocor-
reram. Repetidas glaciaes (eventos climticos extremos de baixa
temperatura e congelamento, tambm conhecidos como eras do
gelo) de extraordinria magnitude e grandes eventos de liberao de
nutrientes nos oceanos foram relatados para esse intervalo de tempo.
provvel que nesse contexto de presses ambientais e de oferta de
nutrientes tenham surgido e se diversificado vrios seres unicelulares
de maior complexidade que, eventualmente, evoluram multicelu-
laridade, tornando-se mais abundantes ao final daquela era.
Apenas no final do ltimo perodo da era Neoproterozoica,
denominado Ediacarano (entre 630 e 542 milhes de anos), sur-
giu, no registro fssil, um conjunto de organismos macroscpicos
complexos que compuseram a denominada biota de Ediacara, as-
sim denominada por ter sido originalmente encontrada nas colinas
de Ediacara, Austrlia. Nessa estranha biota, em seus primeiros
momentos evolutivos, muitos organismos no tinham partes resis-
tentes (duras), como conchas ou esqueletos, sendo compostos por
corpos moles chamados de vendobiontes, de afinidades biolgicas
muito discutveis. Esses organismos so to enigmticos que j fo-
ram atribudos a precursores animais, algas, comunidades de bac-
trias e, recentemente, a um extinto grupo de protistas gigantes.
Tambm so denominados organismos acolchoados e fractais,
por serem ocos e terem a forma de colches de ar ou lembrarem
pneus (por exemplo, Charnia, Figura 10.2).

200
Quando os animais herdaram o planeta

Figura 10.2. O vendobionte Charnia. Fonte: Wikimedia Commons

Na biota de Ediacara, poucos foram os registros de animais


ou de outros organismos que deixaram representantes atuais. A
preservao desses seres se deu por impresses nas rochas, o que
tornou o estudo de suas caractersticas bastante difcil. Por conta
disso, mesmo nos tempos atuais, os paleontlogos no conseguem
determinar com preciso as afinidades evolutivas de muitos desses
organismos, muito menos suas relaes com as complexas formas
de vida animal relatadas no registro Cambriano.
Os organismos da biota de Ediacara apresentam registro em
pelo menos quarenta localidades no mundo, sendo quatro as
mais famosas e temporalmente distintas: Lantian (China), Avalon
(Inglaterra), White Sea (Rssia) e Nama (Nambia).
Lantian (China), datada em cerca de 580 milhes de anos,
trata-se do mais antigo registro de formas de vida macroscpica
complexa, caracterizado, em sua maior parte, pela presena de
animais de corpo mole e algas.
Os registros de Newfoundland, Canad, e fsseis correlatos na
Inglaterra, so compostos por organismos extintos de guas pro-
fundas de Avalon (datados entre 579 e 559 milhes de anos), em
maior parte representados por vendobiontes rangeomorfos.
Fsseis evidenciados em White Sea, Rssia, e na localidade
correlata de Flinders Ranges, ao sul da Austrlia, compem a as-
sembleia fssil de White Sea (entre 560 e 550 milhes de anos).
Esses organismos de White Sea so encontrados preservados em
rochas caractersticas de ambientes marinhos rasos. Em especial,

201
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

foi encontrada, na Rssia, a associao considerada de maior varie-


dade taxonmica com provveis moluscos, com indcios de maior
desenvolvimento motor e nervoso (por exemplo, Kimberella).
Os fsseis Ediacaranos da assembleia Nama, mais conhecidos
em rochas da Nambia (550 a 541 milhes de anos), constituem
o ltimo momento ecolgico da biota de Ediacara, incluindo tan-
to vendobiontes quanto animais portadores de carapaas, como
Cloudina (tambm encontrado no Brasil) e Namacalathus preser-
vados de modo tridimensional.
Poucos organismos Cambrianos foram interpretados como com-
ponentes da biota de Ediacara ou como seus descendentes. Os mem-
bros mais emblemticos dessa biota, como rangeomorfos (com for-
ma de samambaia) e ernietomorfos (com forma de colcho de ar),
por exemplo, possuem raros registros em contextos Cambrianos. J foi
aventado que o desaparecimento desses organismos acolchoados no
registro no ocorreu ao final do Ediacarano, mas que constituiu o encer-
ramento das condies timas de preservao para esses organismos.
Essa biota teria, portanto, adentrado ao Cambriano, sem ter encontrado
condies favorveis a sua preservao, talvez em funo das ativida-
des de outros organismos que viriam a habitar e perturbar os sedimen-
tos, os bioturbadores. Por outro lado, a escassez de fsseis da biota de
Ediacara em excepcionalmente bem preservadas biotas Cambrianas,
como o prprio Folhelho de Burgess, marca um cenrio mais provvel
de extino ou, ao menos, restrio ecolgica. Assumindo-se o ltimo
pressuposto, a despeito da trajetria evolutiva desses organismos, hou-
ve extino de muitos seres no limite Ediacarano/Cambriano. Mesmo
assim, so nas biotas que atestam o ltimo momento evolutivo da biota
de Ediacara, como Nama, que esto as questes mais importantes e
ainda no completamente respondidas da exploso de diversidade de
formas de vida animal no Cambriano.

O alvorecer dos animais na Terra


Sem dvida, um dos mais profundos eventos na evoluo da
vida na Terra foi a emergncia das formas de vida animal. Como
defendido por Dawkins, os animais apareceram muito antes da

202
Quando os animais herdaram o planeta

quase instantnea exploso da vida no Cambriano, provavelmente


antes dos registros mais antigos da biota de Ediacara, e mesmo an-
tes das mais extremas mudanas climticas ou atmosfricas no Pr-
Cambriano. Essas suposies so confirmadas pelos relgios mole-
culares, biomarcadores de possveis esponjas (datados entre 550 e
760 Ma), fsseis de possveis seres relacionados s medusas e, at
mesmo, provveis embries de animais! Estes foram encontrados
na China, excepcionalmente bem preservados, recuando a origem
dos modos sexuados de reproduo para 580 milhes de anos.
Sim, muito provvel que os animais existissem sombra de
outras formas de vida, como os vendobiontes e, por motivos rela-
cionados a grandes mudanas globais ou a relaes ecolgicas de
predao no praticadas pelos vendobiontes, os animais os ultra-
passaram em abundncia e complexidade ecolgica, em um even-
to muito parecido ao que retirou os mamferos da sombra dos di-
nossauros no final do Cretceo. Que os animais se originaram bem
antes de seu registro fssil, os paleontlogos j o sabem, mas o que
torna a exploso de vida no Cambriano um verdadeiro enigma
so as causas que retiraram os animais da sombra de outros seres
e favoreceram o estabelecimento dos ecossistemas dominados por
eles, refletindo um salto evolutivo que mais lembra uma exploso.
Mesmo com evidncias de vida animal antes de 600 Ma,
nesse intervalo de tempo os oceanos eram pobres em oxignio e,
portanto, inadequados para a diversificao animal. Mas, mesmo
em um contexto generalizado de falta de oxignio nos oceanos,
possvel que a versatilidade metablica dos primeiros estgios
de evoluo animal possa ter sido um fator-chave na emergncia
e no estabelecimento do grupo, enquanto o posterior evento de
oxigenao viabilizou complexidade, mobilidade e aumento do
tamanho desses seres.
O rompimento do primeiro grande continente, Rodnia e sua m-
xima disperso (entre 750 e 700 milhes de anos), resultou na forma-
o de diferentes ambientes (rasos, costeiros e ricos em nutrientes) que
podem estar diretamente relacionados diversificao biolgica.

203
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Por outro lado, as glaciaes desse tempo tambm podem


ter constitudo uma presso que viabilizou a evoluo das formas
mais diversificadas de vida animal. mais provvel que, no inter-
valo glacial entre cerca de 720 e 635 milhes de anos, as primeiras
linhagens de animais divergiram de seus ancestrais unicelulares,
provavelmente em ntima proximidade com ambientes marinhos
congelados, pobres em oxignio e ricos em ferro.
Enquanto no Ediacarano as comunidades biolgicas passaram a
ser dominadas por macrorganismos (vendobiontes e xenofiforos),
provavelmente devido ausncia de macro predao, os animais sur-
giram e permaneceram sombra desses organismos at que uma re-
voluo ecolgica causou inovaes nas populaes, que podem ter
levado extino dos vendobiontes e ao estabelecimento dos ecos-
sistemas dominados por animais no limite Ediacarano/Cambriano.
muito provvel que episdios biolgicos entre os animais,
como o surgimento de partes duras (esqueletos e conchas), tenha
sido impulsionado por eventos de predao, como forma de prote-
o em um contexto de grandes mudanas nas condies ambien-
tais, por exemplo a ruptura dos supercontinentes, a elevao do
nvel dos oceanos, as flutuaes nos teores de oxignio da atmos-
fera, as mudanas na qumica dos oceanos e os grandes eventos
de glaciao.
O limite Ediacarano/Cambriano foi marcado por pronunciada
falta de oxignio em mares profundos. Em seguida, o registro fssil
do Cambriano apresenta maior diversidade de marcas verticais de
atividades de animais, que denominamos de infauna, e, quando
preservadas no registro, os paleontlogos definem como icnofsseis.
Esses icnofsseis mostram que os organismos comearam a utilizar
os sedimentos para proteo e/ou atividades de alimentao e refle-
tem um perodo de reestruturao ecolgica que se estabeleceu no
Cambriano, conhecido como Revoluo Agronmica. Antes des-
sa revoluo ecolgica, os estranhos seres que dominavam a biota
de Ediacara viviam fixos ao substrato, alimentando-se por filtrao,
enquanto os poucos seres providos de motilidade, como o animal
Kimberella, apenas pastavam sobre esteiras microbianas.

204
Quando os animais herdaram o planeta

Considerando que a produo de partes duras e as atividades


na infauna sejam estratgias tambm atribudas presso de pre-
dao, e uma vez que animais com partes duras e a infauna sur-
giram quase ao mesmo tempo no registro, h um forte argumento
de que a predao tambm tenha se revelado um fator ativo na
reestruturao dos ecossistemas, favorecendo seu domnio pelos
animais.
Assim, a complexidade da ecologia no aumentou significa-
tivamente apenas devido ao aparecimento das primeiras formas
de vida animal, mas tambm por causa das intrnsecas mudanas
que eles causaram no ambiente e coevoluo predador/presa,
refletida na aquisio independente de esqueletos nos animais e
explorao de novos habitats, culminando na exploso cambriana
(Figura 10.3).
Diante do estabelecimento de ecossistemas ecologicamente
mais favorveis aos animais, no contexto das mudanas provoca-
das pela Revoluo Agronmica, muito provvel que os ven-
dobiontes e os demais seres estranhos do Ediacarano tenham sido
extintos a priori por condies ambientais desfavorveis e tambm
por predao e/ou competio.

REVOLUO AGRONMICA
Atividade de
Kimberella sobre
Substrato esteiras microbianas
Firme
Substrato
Macio

Atividades de
bilaterais no
Substrato Ediacarano substrato Substrato Cambriano

Figura 10.3. Revoluo Agronmica. Notar as diferenas entre os substratos


Ediacarano e Cambriano. Fonte: Adaptado de http://www.burgess-shale.rom.
on.ca / Ilustrao: Maurcio Marcelo / Tikinet

205
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Momentos antes da exploso Cambriana no Brasil

Bacia de Itaja
Um dos mais importantes registros paleontolgicos brasilei-
ros, no contexto da evoluo das primeiras formas de vida ma-
croscpicas e complexas, a Bacia de Itaja, em Santa Catarina.
Datada de cerca de 595-558 Ma, as rochas dessa unidade ge-
olgica contm fsseis e traos fsseis (icnofsseis) que podem
pertencer s primeiras comunidades bentnicas do perodo
Ediacarano (Figura 10.4). Os icnofsseis dessa unidade podem
estar entre os primeiros registros de atividade de animais bilat-
rios, trazendo novas implicaes na origem desses organismos e
suas influncias nas transformaes do substrato, que culminaram
na Revoluo Agronmica da transio Ediacarano/Cambriano.
Alm disso, a Bacia de Itaja pode representar um dos poucos ca-
sos conhecidos no Brasil onde se encontra a presena da biota de
corpo mole tpica do Ediacarano, comumente conhecida pelos
vendobiontes.
Alm desses fsseis, algumas estruturas enigmticas j atribu-
das a impresses de esponjas, interpretadas como semelhantes ao
gnero Cambriano Choia (Figura 10.4 A), se confirmadas, podem
representar um dos poucos registros desse grupo j no Ediacarano.
Recentemente, pesquisadores tm apontado o papel de es-
ponjas na modificao do ambiente e criao de condies be-
nficas para outros organismos em ecossistemas marinhos. Essa
ideia est dentro do conceito da Engenharia de Ecossistemas, que
quando um grupo de organismos, por meio de suas atividades,
transformam habitats, podendo ter importantes impactos na biota
e, indiretamente, no prprio ambiente. No caso das esponjas, es-
tas podem ter influenciado nos padres de ventilao e remoo
de matria orgnica nas guas ocenicas do Ediacarano. Sendo
assim, estudos paleontolgicos na Bacia de Itaja podem trazer im-
plicaes importantes no estabelecimento dos primeiros organis-
mos bentnicos e na possibilidade da presena de esponjas como
engenheiros de ecossistemas.

206
Quando os animais herdaram o planeta

Figura 10.4. Fsseis evidenciados na Bacia de Itaja. (A) Choia?; (B)


Cyclomedusa?; (C) Helminthoidichnites; (D) Aspidella?. Fonte: Adaptado de
Rosa, A. L. Z. (2005)

Bacia Jaibaras
Talvez a mais recente descoberta de organismos de corpo
mole atribudos biota de Ediacara brasileira encontre-se nos mu-
nicpios de Pacuj e Santana do Acara (noroeste do Cear). Essa
rea caracterizada por unidades litolgicas muito antigas que
abrangem do Pr-Cambriano ao incio do Paleozoico.
Ao que tudo indica, esses fsseis foram preservados na Bacia
de Jaibaras, em uma rea com cerca de 100 km de afloramentos
descontnuos, formando uma abundante comunidade bentnica
que viveu provavelmente h cerca de 550 Ma. Toda essa comu-
nidade est preservada sob condies ambientais semelhantes de
alta energia, possivelmente um esturio, que um brao do mar
formado pela desembocadura de um rio. O alto fluxo de detritos
carregados por esse rio em direo ao mar pode ter ocasionado a
mortandade em massa desses organismos por meio de um rpido
soterramento, uma vez que os espcimes so encontrados ainda
em posio de vida.
Contudo, esses fsseis esto preservados em moldes forma-
dos por gros muito grossos de areia e cascalho (Figura 10.5),

207
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

o que torna complicada a descrio e a interpretao sobre v-


rios aspectos dessa extinta biota. H uma grande discusso na
literatura sobre fsseis de organismos bentnicos Ediacaranos
semelhantes aos encontrados em Jaibaras, especialmente as for-
mas discoides, sendo sugeridas diferentes origens biognicas e
mesmo abiognicas.

Figura 10.5. Fsseis de Pacuj: (A) C. arboreus (escala 3 cm); (B) C. concentricus
(escala 4 cm); (C) C. davidi (escala 1 cm); (D) C. delicata (escala 7 cm); (E) E.
flindersi (escala 5 cm); (F) K. quadrata (escala 2 cm); (G) M. asteroides (escala
15 cm); (H) P. reticulata (escala 5 cm); (I) P. minchami (escala 1 cm). (J) P.
abyssalis (escala 3 cm); (K) S. wadea (escala 2 cm); (L) T. disciformis (escala
3 cm). Abaixo, temos a representao esquemtica dos mesmos fsseis na
respectiva ordem. Fonte: Adaptado de Barroso et al. (2013, 2014)

Essas polmicas existem desde a descoberta do primeiro


fssil discoide Ediacarano Aspidella terranovica at sua acei-
tao como estrutura biognica, que durou cerca de 150 anos,
em virtude de sua morfologia relativamente simples e de pre-
servao no muito fiel. Atualmente, aceita-se que Aspidella
apenas a parte basal, que ficava enterrada no substrato, servindo

208
Quando os animais herdaram o planeta

para fixao daquelas frondes tpicas da biota de Ediacara


(vendobiontes?).
No apenas na biota de Ediacara, mas na famosa fauna de
Burgess, no Cambriano, a descrio de fsseis morfologicamente
simples atribudos s medusas foi revisada quando descobriram
um espcime completo de Anomalocaris, e reconheceram que o
aparelho bucal havia sido descrito como medusa por ter sido pre-
servado separadamente.
Desse modo, estudos sobre o processo de fossilizao desses
organismos, o que denominamos de Tafonomia, podero solu-
cionar algumas questes a respeito dessa biota fssil, como as re-
laes ecolgicas, a disposio ambiental desses organismos e at
mesmo questes sistemticas.
Descrever os fsseis de corpo mole da biota de Ediacara nun-
ca foi tarefa fcil para os paleontlogos. De modo geral, as inter-
pretaes mudaram muito ao longo do tempo e vrios organismos
que inicialmente foram descritos como cnidrios passaram a ser
considerados componentes de outras classes, reinos e/ou subfilos
(por exemplo, Charnia e Hiemalora). Esses avanos na interpreta-
o foram conquistados a partir dos relatos de novas ocorrncias
da biota de Ediacara no planeta, o que aumentou significativamen-
te o nmero de amostras para estudos comparativos e descritivos,
resultando em dados sobre evoluo, ecologia e ambientes des-
ses organismos. Sendo assim, a biota da bacia de Jaibaras poder
compor a sntese de conhecimento mundial a respeito da evolu-
o dos animais no planeta.

Grupo Corumb
Sob um calor escaldante de 41 graus, em minas de cal-
crio localizadas em Corumb e Ladrio, cidades que encan-
tam por sua exuberncia, cientistas brasileiros e alemes des-
creveram, na dcada de 1980, um dos animais que viveu, em
nossa analogia entre o dia terrestre e o tempo geolgico, al-
guns segundos antes da exploso Cambriana. Corumbella
werneri, datada em cerca de 543 milhes de anos, foi um dos

209
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

animais que comps o ltimo momento evolutivo da biota de


Ediacara, assim como os fsseis de Nama, no limite Ediacarano/
Cambriano, quando os animais estavam saindo da sombra de
outros seres e florescendo em suas mais diversas formas e inte-
raes ecolgicas.
Em muitos aspectos, como a excelente preservao de partes
de alguns fsseis e os processos geolgicos que levaram formao
desse excepcional registro de vida, o Grupo Corumb (Formao
Tamengo) unidade geolgica onde Corumbella werneri encon-
trada pode ser comparado a Burgess Shale. Por outro lado, uma
vez que os fsseis do limite Ediacarano/Cambriano compem um
registro raro e muito fragmentado, a anlise e reconstituio, tanto
dos organismos como dos seus modos de vida, no so tarefas
fceis para os paleontlogos. Assim, h mais de 30 anos, os cien-
tistas de outras partes do mundo vm desenvolvendo e aplicando
tcnicas avanadas e no destrutivas ao estudo dos fsseis mais
antigos. Nesse cenrio destacam-se, inclusive, os pesquisadores
que tentam entender tanto a origem e a evoluo da vida na Terra
(os paleobilogos e bilogos evolutivos), como tambm o estabe-
lecimento da vida nos mais remotos ambientes, at mesmo fora
do planeta (os astrobilogos). Desse modo, a paleontologia e a
astrobiologia comearam a estreitar suas relaes, tanto na investi-
gao da origem e evoluo da vida na Terra quanto na busca pela
vida no Cosmos.
Paleontlogos e demais cientistas brasileiros e de diversas par-
tes do mundo tm impulsionado o uso de tcnicas analticas de
alta resoluo para comparaes entre o contexto paleontolgico
dos fsseis de Corumbella brasileiros e os de unidades geolgicas
similares no Ir, na Nambia, na Inglaterra e no Canad. Com es-
sas tcnicas ser possvel, por exemplo, reconstituir importantes
aspectos tanto sobre a composio qumica, quanto a respeito dos
nveis de oxigenao da gua e eventos de vulcanismo do ambien-
te onde esses animais se estabeleceram e evoluram.
A composio qumica da carapaa de Corumbella
e de outros fsseis a ela contemporneos, como Cloudina

210
Quando os animais herdaram o planeta

(preservados como conchas cnicas carbonticas na


Formao Tamengo e em vrias outras partes do mundo),
tm se tornado tema central nas discusses sobre os proces-
sos biolgicos e/ou ambientais que levaram sntese de es-
queletos mais resistentes entre os animais no remoto limite
Ediacarano/Cambriano. Talvez, inclusive por conta do au-
mento na abundncia dos animais capazes de produzir es-
queletos mais resistentes (at mesmo mineralizados), essas
formas de vida tenham tido uma preservao mais favorecida
no registro, nesse limite de tempo, dando a impresso de se
tratar de uma exploso de vida. Para a investigao da com-
posio qumica das carapaas de Corumbella, por exemplo,
so usadas as mais avanadas tcnicas em conjunto com o
Laboratrio Nacional de Luz Sncrotron, no Brasil (cnpem/lnls,
Campinas), com o Instituto de Qumica e com o Laboratrio
de Astrobiologia da usp.
Alm disso, pesquisadores da UFSCar, Unesp e usp, com o
apoio da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo
(Fapesp), em conjunto com a Universidade Tcnica de Munique,
tm aplicado as mais complexas e avanadas tcnicas de microto-
mografia de raios X para a reconstituio tridimensional das partes
internas da fascinante Corumbella, nas instalaes do European
Synchrotron Radiation Facility (esrf, Grenoble, Frana) e do
Deutsches Elektronen Synchrotron (desy, Hamburgo, Alemanha). A
reconstituio de estruturas anatmicas desse animal pode forne-
cer importantes dados a respeito da ecologia desses organismos,
como modos de alimentao e mesmo reproduo, o que, de certa
forma, permite que vejamos esse animal to antigo voltando vida
na tela do computador.
At o momento, podemos seguramente afirmar que Corumbella
foi um animal pertencente ao grupo dos cnidrios, que viviam fi-
xos ao substrato. Em nossa recente reconstituio de Corumbella,
descobrimos mais uma caracterstica que os aproxima ainda mais
dos animais do final do Ediacarano: eles so portadores de uma
carapaa relativamente espessa e resistente, alm de abertura oral,

211
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

inovaes que o tornavam um dos mais fantsticos predadores dos


mares Ediacaranos (Figura 10.6).

A B
Regio oral

Borda Lateral

Linha Mediana

Anel

C D E
Septo Anel

Borda Lateral

Linha Mediana

F G H

Insero da
Regio aboral regio aboral
unisseriada

Figura 10.6. Reconstituio de estruturas morfolgicas em Corumbella


werneri. Fonte: Pacheco et al., Journal of Taphonomy (2011)

Alm da relevncia cientfica de Corumbella para a paleon-


tologia mundial, a ocorrncia desse enigmtico fssil Ediacarano,
na regio de Corumb, apresenta implicaes para o desenvolvi-
mento de estratgias de geoturismo no Brasil. A presena de to

212
Quando os animais herdaram o planeta

importante e remoto fssil, em um cenrio de choque de extremos


temporais, revelado pela presena do recente domnio biogeogr-
fico do Pantanal (formado ainda na nossa atual Era Cenozoica)
e das mais pregressas formaes geolgicas Pr-Cambrianas, em
Mato Grosso do Sul, podem viabilizar que o ento Geoparque
Bodoquena/Pantanal venha a se tornar o segundo das Amricas
(atrs apenas de outro geoparque brasileiro, o Geoparque do
Araripe, no Cear) e o 58 na Cadeia Mundial de Geoparques
aprovada pela Unesco.
O uso das tcnicas avanadas tm aprimorado os estudos
sobre morfologia, paleoecologia e evoluo dos fsseis ediaca-
ranos no Brasil, trazendo nova luz, no apenas sobre os lti-
mos segundos antes da exploso Cambriana no mundo, como
tambm estruturando subsdios para a investigao sobre as
condies timas para o estabelecimento da vida multicelular
tanto na Terra quanto em outros contextos csmicos. Alm dis-
so, com as recentes misses exploratrias de Marte e de outros
planetas do Sistema Solar, poderemos utilizar as mesmas tcni-
cas que desenvolvemos para estudar os fsseis de nosso planeta
para revelar a presena de vida passada nesses ambientes. Mas
se temos dificuldade para interpretar os sinais de vida antiga
na prpria Terra, como seremos capazes de fazer o mesmo em
outro planeta, com maiores restries tcnicas e de maneira ro-
btica? Esse um problema que paleobilogos e astrobilogos
devem tentar resolver juntos, o que poder responder se j hou-
ve vida fora da Terra.

Agradecimentos
Fapesp e ao cnpq, pelo apoio financeiro para o desenvol-
vimento deste trabalho. Aos profs. drs. Juliana Leme e Thomas
Fairchild (Instituto de Geocincias, usp), por terem viabilizado
e incentivado o estudo paleontolgico dos animais fsseis de
Corumb e Ladrio. Ao prof. dr. Paulo Paim (Unisinos) e Ana
Zucatti (Petrobrs), pelo auxlio nas questes geolgicas e paleon-
tolgicas na Bacia do Itaja. s profas. dras. Maria Somlia Viana

213
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

(Universidade Estadual Vale do Acara) e Snia Agostinho (ufpe),


por viabilizarem os estudos dos fsseis da Bacia de Jaibaras. Ao
dr. Douglas Galante (Laboratrio de Astrobiologia, usp) pela revi-
so e pelo enriquecimento do texto.

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Quando os animais herdaram o planeta

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216
BUSCA DE VIDA FORA DA
TERRA
Estudando o Sistema Solar

Captulo 11
Fabio Rodrigues e Evandro Pereira da Silva

Breve histrico: estamos ss no Universo?


O questionamento sobre a existncia de vida fora da Terra
um tema comum na histria da humanidade, permeando tan-
to as culturas ocidentais quanto as orientais h muitos sculos.
Na Grcia Antiga, por exemplo, diversos pensadores discutiram o
tema, aplicando diferentes correntes filosficas.
Os primeiros registros de discusses filosficas sobre esse as-
sunto tratam da pluralidade dos mundos, que ops os chamados
pluralistas aos singularistas. Os pluralistas acreditavam que a Terra
no era um planeta especial e que poderia haver outras Terras,
algumas das quais possveis de abrigar vida. Alguns pensadores
que representam essa viso foram os atomistas, como Epicuro,
Demcrito (considerado o pai da teoria atmica) e seus segui-
dores. Para os atomistas, o Universo possua infinitos tomos,
capazes de formar infinitos planetas, alguns com vida e outros

217
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

no. Outro exemplo foi Zeno, que acreditava na pluralidade dos


mundos no apenas no espao infinito do Universo, mas tambm
no tempo. Em contraposio aos pluralistas, os singularistas acre-
ditavam que a Terra era nica e que apenas aqui poderia haver
vida. Alguns de seus representantes foram Plato e Aristteles com
fundamentaes distintas (Dick, 1982).
Essa discusso perdurou por sculos at o tempo moderno,
movimentando proeminentes cientistas, filsofos, escritores e
telogos. De fato, pelas implicaes religiosas do tema, diversos
telogos e pensadores de diferentes religies trataram do assun-
to. Alguns, como Santo Alberto Magno e So Toms de Aquino,
colocaram-se contra a pluralidade dos mundos e a existncia
de vida extraterrestre, enquanto outros, como Nicolau de Cusa,
discutiram a existncia de vida no Sol e na Lua. Muitos des-
ses pensadores se dedicaram tambm a conciliar os princpios
centrais do Cristianismo com a existncia de vida extraterrestre.
At os dias atuais, diversas religies, seitas e escolas filosficas
abordam o tema em suas doutrinas (Crowe, 1997).
Com o passar do tempo e com as diversas discusses acerca
do assunto, observou-se o enraizamento desse tema em toda a
populao e, mais do que apenas uma indagao cientfica, esse
tema tornou-se um fenmeno cultural e social.
H quem afirme, por exemplo, que a busca por evidncias
cientficas de vida fora da Terra, mais especificamente na Lua, foi
um dos fatores que mais motivou William Herschel (1738-1822),
pai da astronomia moderna, a desenvolver, entre os sculos xviii e
xix, seus modernos telescpios. Com suas observaes, Herschel
definiu o conceito de galxia, que abrigava estrelas e planetas, ob-
servou que havia outras alm da Via Lctea e fez o primeiro dese-
nho desta, mostrando que o Sol no estava em seu centro (Crowe,
1997) (Figura 11.1).
A busca de vida fora da Terra mobilizou outros grandes astr-
nomos de diferentes pocas, como o holands Christiaan Huygens
(1629-1695) que observou os anis de Saturno e sua lua Tit;
Percival Lowell (1855-1916), clebre por seus estudos do Planeta X,

218
Estudando o Sistema Solar

Figura 11.1. Mapa da Via Lctea desenhado por Herschel e esquema do


telescpio construdo por ele. Fonte: Wikimedia Commons

posteriormente rebatizado de Pluto; e Giovanni Schiaparelli (1835-


1910), o primeiro a fazer um mapa completo da superfcie de Marte,
em que observou uma estrutura na forma de canais, interpretado por
muitos como canais de irrigao artificiais que levavam gua dos po-
los ao equador e, portanto, seriam um indicativo de vida inteligente
nesse planeta (Figura 11.2).

Figura 11.2. Desenhos do caderno de Schiaparelli sobre suas observaes


na superfcie de Marte que levaram interpretao de que seriam canais de
irrigao. Fonte: Wikimedia Commons

219
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Essa controvrsia, iniciada em 1877, foi alvo de constantes es-


tudos de astrnomos como Lowell e durou at 1915, quando o tam-
bm astrnomo italiano Vicenzo Cerulli (1859-1927) concluiu que
se tratavam de formaes geolgicas naturais. A comunidade cien-
tfica pareceu convencida da explicao, mas na cultura popular,
Marte tomou lugar da Lua como principal alvo de especulao para
a existncia de vida. As especulaes no giraram em torno apenas
de vida microbiana, mas de vida inteligente e civilizao.
Percebe-se que as primeiras conjecturas sobre outros mundos e
seus habitantes eram puramente filosficas, tendo sido enriquecidas
por dados de observaes astronmicas, conforme a tecnologia avan-
ava e os novos instrumentos permitiam melhores condies. Pela
maior facilidade de observao e pela proximidade com a Terra, du-
rante todos esses sculos, os corpos do Sistema Solar foram os alvos
mais frequentes de especulaes e estudos. Apenas recentemente,
com o avano da tecnologia espacial e com a nova gerao de teles-
cpios, comea a ser possvel o estudo de planetas mais distantes, os
chamados exoplanetas, que sero tratados como um tema parte.
A partir do sculo xx, os avanos da astronomia permitiram
melhor conhecimento de outros corpos do Sistema Solar, enquan-
to a crescente microbiologia ajudava a demarcar os limites da vida
em nosso planeta e ajudava a estabelecer quais planetas do nosso
Sistema Solar teriam condies de comportar a vida.

Curiosidade
Em 17 de dezembro de 1900, foi anunciado pela Academia
Francesa de Cincias (Acadmie des Sciences) o Prmio Guzman, fi-
nanciado por Anne Emilie Clara Gouget Guzman. Esse prmio, no valor
de 100 mil francos, seria dado primeira pessoa, de qualquer nacio-
nalidade, que conseguisse estabelecer comunicao com habitantes de
outros planetas.
O prmio, entretanto, previa uma exceo: foi excluda da
premiao a comunicao com Marte, considerada poca um
feito muito fcil para merecer o prmio, uma vez que acreditavam
ser bvia a existncia de vida nesse planeta.

220
Estudando o Sistema Solar

Mais de 100 anos depois, ainda no encontramos nenhum


sinal de vida, presente ou passada, em Marte.

A corrida espacial e a busca de vida fora da terra


Se at o incio do sculo xx a busca por sinais de vida fora
da Terra foi muito indireta, com o desenrolar daquele sculo, as
perspectivas mudaram. Uma das grandes marcas do sculo xx
foi o grande avano tecnolgico em pouco tempo, sobretudo na
segunda metade, aps a Segunda Guerra Mundial.
Naquele momento, o mundo encontrava-se bipolarizado e
Estados Unidos e Unio Sovitica brigavam para se consolidar
como potncia hegemnica. Entre os vrios pontos que entraram
nessa disputa, destaca-se a conquista do espao. As duas potn-
cias iniciam, na dcada de 1950, o que ficou conhecido como
corrida espacial.
Os primeiros passos para essa conquista j vinham sendo
dados h alguns anos, com a tecnologia de propulso movida a
combustvel lquido para o lanamento dos foguetes, desenvolvi-
da desde o final do sculo xix pelo russo Konstantin Tsiolkovsky,
seguido, no incio do sculo xx, pelo americano Robert Hutchings
Goddard. Nos anos 1950, nomes importantes como o do alemo
naturalizado americano Wernher von Braun trabalharam para tor-
nar vivel essa conquista.
A corrida espacial levou os primeiros satlites ao espao (ini-
ciado pelo Sputnik I, da urss, em 1957, seguido pelo norte-ame-
ricano Explorer I, em 1958), as sondas e o homem Lua. Alm
disso, resultou na presena da tecnologia humana em outros pla-
netas e luas do Sistema Solar, com misses no tripuladas a Marte,
Vnus, Mercrio, Jpiter, Saturno e sua lua Tit, asteroides e come-
tas, entre outros.
A Nasa foi criada em 1958, logo aps o lanamento da
Sputnik I, a vitria dos soviticos em chegar ao espao, com o
objetivo de coordenar os esforos e prover a condio necessria
para que as pesquisas sobre voos dentro e fora da atmosfera da
Terra fossem realizadas.

221
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Nos anos seguintes, a possibilidade de o homem chegar ao


espao fez a agncia iniciar os estudos de medicina espacial,
visando entender o efeito do ambiente extraterrestre na sade
humana. Era o incio de estudos de biologia dentro das cincias
espaciais.
Outra preocupao real que surgiu com a conquista do es-
pao foi a proteo planetria, cujo maior defensor foi o bilogo
norte-americano Joshua Lederberg, prmio Nobel de Medicina e
Fisiologia, em 1957, pelos estudos de gentica. Sem saber se ha-
veria vida fora da Terra, Lederberg alertava para o risco de uma
catstrofe global caso algum organismo patognico fosse trazido
Terra. Da mesma forma, havia a preocupao de no contami-
nar outros corpos celestes com organismos provenientes da Terra,
invalidando assim futuras misses de busca de vida extraterrestre.
Criou-se, em 1959, um comit de cincias biolgicas dentro
da Nasa que concluiu que essa agncia deveria se envolver com
investigaes sobre o efeito de ambientes espaciais em organis-
mos vivos, incluindo a busca por vida extraterrestre, ao invs de
se dedicar apenas medicina espacial. Surge, nesse contexto, a
exobiologia (Blumberg, 2003).
Em 1969, uma controvrsia envolvendo a misso Apollo 12 fo-
mentou mais discusso a respeito do problema de proteo plane-
tria e contaminao cruzada. Encontrou-se na cmera da Survivor
3, que integrava essa misso, aps sua volta da Lua, esporos da bac-
tria Streptococcus mitis, que supostamente permaneceu no equi-
pamento por falha no processo de esterilizao e teria sobrevivido
viagem e poderiam comprovar que a vida poderia de fato viajar
de um planeta a outro, no processo conhecido como Panspermia.
Alm de demonstrar que a preocupao com a proteo planetria
era vlida, esse fato abriu a possibilidade que a vida na Terra tivesse
se espalhado pelo Sistema Solar, possibilitando a vida extraterrestre.
A ideia mais aceita atualmente de que aquelas bactrias no via-
jaram at a Lua, mas que foram fruto de contaminao na volta para
a Terra, porm, de qualquer forma, serviu de alerta comunidade
cientfica para o problema da contaminao cruzada.

222
Estudando o Sistema Solar

Desde ento, muitos experimentos testando a sobrevivncia


de micro-organismos em condies que simulavam o espao ou
outros planetas foram realizados, indicando que estes seriam ca-
pazes de sobreviver em alguns desses ambientes, nunca tendo se
provado que a panspermia de fato ocorreu.
Mais recentemente, em 1996, a discusso sobre panspermia
e vida fora da Terra voltou a ter destaque mundial com os estu-
dos do meteorito Allan Hills (ALH84001), encontrado na Antrtica
em 1984. Trata-se de um meteorito rochoso de origem marciana
(Figura 11.3), em que pesquisadores observaram uma estrutura tu-
bular com dimenses menores que um fio de cabelo, cuja morfo-
logia se assemelhava muito a fsseis de colnias de cianobactrias
encontradas na Terra. Muitos concluram, ento, terem achado
prova de vida passada em Marte que teria viajado para a Terra
(McKay et al., 1996). O tema ainda controverso, mas a ideia
mais aceita pela comunidade de que se trata de uma formao
puramente geolgica que apenas se parece com esses fsseis. Essa
opinio, entretanto, no unnime e ainda gera debates na comu-
nidade cientfica mundial.

Figura 11.3. Imagem de microscopia eletrnica do meteorito Allan Hills e


a formao geolgica que remetia a fsseis de cianobactrias. Fonte: Nasa

223
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Metodologia cientfica na busca de vida fora da


Terra
Desde o surgimento da exobiologia como uma rea da cin-
cia, ela tem se distanciado da ufologia, diferindo fortemente tanto
no enfoque quanto na metodologia. Misses de explorao es-
pacial tm alto custo e devem ter objetivos bastante claros para
que possam ser realizadas. Dessa forma, as pesquisas dedicadas
busca de vida extraterrestre tm que responder a trs perguntas
fundamentais: Onde procurar? O que procurar? Como procurar?
No planeta Terra, possvel observar formas muito distintas
de vida, seja no tamanho, na aparncia e nas estratgias de sobre-
vivncia, o que garante uma diversidade de espcies muito gran-
de. Essa vida, entretanto, muito semelhante quando analisada
em escala molecular. Todos os organismos vivos conhecidos usam
como elementos bsicos carbono, utilizam gua como solvente,
possuem uma membrana hidrofbica que a separa do meio exte-
rior, tm um material gentico semelhante, entre outros. Ou seja,
a vida como a conhecemos, apesar de bastante variada, funda-
mentada em alguns princpios bsicos que se repetem.
Apesar de haver cientistas que estudam formas alternativas
de vida, como aquelas baseadas em outros elementos qumicos
(como silcio ao invs do carbono) ou em outros solventes (sol-
ventes orgnicos, como formamida, ao invs de gua) (Benner;
Ricardo; Carrigan, 2004), no se sabe ainda se essas formas de
vida poderiam existir e se conseguiramos reconhec-las como vi-
vas, uma vez que seriam bastante diferentes da nossa.
Dessa forma, os programas de busca de vida fora da Terra se
baseiam, pragmaticamente, na vida como conhecida no planeta,
j que sabemos que ela funciona dessa forma e tambm como
detect-la. Pelos conhecimentos cientficos atuais, sabemos que os
micro-organismos unicelulares foram os primeiros habitantes do
planeta, permanecendo sozinhos por mais de 1 bilho de anos, e
at hoje representam a maior quantidade, em termos de biomassa
e nmero, de organismos da Terra, estando presentes em pratica-
mente todos os ambientes, de quilmetros para o interior da Terra

224
Estudando o Sistema Solar

a dezenas de quilmetros acima, na atmosfera. Dessa forma, acre-


dita-se que so organismos unicelulares os mais provveis a serem
encontrados fora da Terra (Des Marais et al., 2008).
Como os ambientes extraterrestres no so to amenos para a
vida como os terrestres, so de particular interesse os organismos
que vivem em ambientes extremos da Terra, os chamados organis-
mos extremfilos. Assim, os estudos de busca de vida fora da Terra
usam como modelo principal os micro-organismos unicelulares
extremfilos (Rothschild; Mancinelli, 2001).
Dessa forma, o conhecimento das caractersticas da vida na
Terra e dos mecanismos de sobrevivncia fundamental para en-
tender como a vida poderia sobreviver fora do nosso planeta.
Ainda no h tecnologia para misses de retorno de amostra
para a Terra vindo de outros planetas ou de suas luas, de forma
que no se pode tentar cultivar possveis micro-organismos em
laboratrio, como se faz com amostras terrestres. Por isso, a busca
por sinais indiretos que indiquem vida, conhecidos como bio-
assinaturas, ou tambm biomarcadores (Summons et al., 2008).
Bioassinatura um sinal, o mais inequvoco possvel, de atividade
biolgica e, em geral, consiste em molculas que so produtos
do metabolismo de organismos vivos. Podem ser gases liberados,
tais como dixido de carbono, metano ou oxignio, ou molculas
mais complexas, como lipdios de membrana, pigmentos fotopro-
tetores ou o prprio material gentico (Parnell et al., 2007).
Para que seja caracterizada como bioassinatura, importan-
te que essa molcula sobreviva s condies do ambiente e que
seja indicativo claro de atividade biolgica, ou seja, no pode ser
sintetizado de forma abitica. No caso de molculas complexas,
mais fcil supor que estas no sero produzidas em quantidade
significativa por rotas qumicas abiticas, mas para o caso de gases
emitidos na atmosfera, esse problema mais complexo.
Fontes biolgicas e no biolgicas, como ciclos geolgicos ou
a qumica da atmosfera, podem produzir os mesmos gases, sendo
necessrio conhecer todos os ciclos que envolvem esse corpo ce-
leste e, se no encontrar nenhuma fonte abitica desse gs, tentar

225
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

atribu-lo a origem biolgica. Por exemplo, no incio dos anos


2000, a deteco de metano em Marte levou alguns cientistas a
concluir que o gs poderia sido sintetizado por micro-organismos
metanognicos (que geram metano), mas, na sequncia, foram pu-
blicadas propostas para a origem abitica desse composto, como
da reao entre gua e monxido de carbono na atmosfera, ou
de gua e minerais no subsolo, pelo processo de serpentinizao,
diminuindo a expectativa sobre vida naquele planeta.
Apesar de micro-organismos serem os alvos mais importantes
para se procurar vida fora da Terra, h grupos que trabalham com a
possibilidade de organismos multicelulares resistirem a ambientes
extraterrestres e at mesmo com probabilidade da existncia de
vida inteligente.
Alm da vida presente, deve-se considerar a possibilidade de
existncia de vida passada nesses ambientes, ou seja, uma vida
que j existiu, mas que, por razes ambientais, foi extinta. Assim,
alm da busca por seres ainda vivos, interessante procurar sinais
de vida passada (Westfall, 1999).
Uma vez sabendo os tipos de organismos que podem ser mais
aptos a viverem fora da Terra, torna-se possvel inferir quais corpos
celestes possuem condies para abrig-los. Esse tipo de estudo s
se tornou possvel com as novas tecnologias espaciais, telescpios
e misses de explorao.
No Sistema Solar, o alvo mais tradicional da busca por vida
extraterrestre Marte, no s pela proximidade com a Terra e
pela facilidade na observao e no envio de sondas, mas tam-
bm porque se acredita que tenha tido um ambiente bastante
propcio para a vida no passado, e que esta possa ter persistido
em alguns ambientes protegidos do planeta (como o subsolo),
ou que seus resqucios, molculas ou fsseis tenham perdurado
at os dias atuais.
Atualmente, sabe-se que Marte possui atmosfera muito rarefei-
ta (cerca de 1% da presso da atmosfera terrestre), resultando em
um intenso fluxo de radiao solar na superfcie, que formada
por compostos oxidantes. Dessa forma, a superfcie marciana

226
Estudando o Sistema Solar

considerada um local extremamente agressivo para a vida e para


molculas orgnicas em geral.
Alguns centmetros abaixo da superfcie, entretanto, a radiao
mais danosa vida j no chega, tornando o ambiente mais ame-
no. No subsolo de Marte, j foi constatada a presena de gua no
estado slido e de depsitos salinos que, por serem higroscpicos,
podem reter em sua superfcie a pequena quantidade de gua
disponvel na atmosfera, formando um ambiente mais propcio
vida como a conhecemos. A vida em Marte poderia, ento, estar
concentrada em nichos agrupados no subsolo e depsitos salinos,
protegida da radiao e da superfcie oxidante.
Alm de Marte, outro planeta que se especula ter condies
de abrigar vida Vnus, mais prximo do Sol que a Terra e Marte.
O astrnomo Carl Sagan foi um dos primeiros cientistas a propor a
possibilidade de vida nesse planeta aps o incio da corrida espa-
cial (Morowitz; Sagan, 1967). Por causa da sua proximidade com
o Sol e do efeito estufa, j que possui grande quantidade de nuvens
na atmosfera, Vnus possui uma superfcie muito quente (acima
de 400 oC), o que inviabilizaria a vida como a conhecemos. Sagan
props, como alternativa, que a vida poderia estar em suas nuvens,
onde a temperatura mais baixa e a umidade maior.
Por fim, outros ambientes em que se acredita existirem condi-
es amenas para a vida so as luas de Jpiter e de Saturno, sobre-
tudo Europa (Jpiter), Tit (Saturno) e Enclado (Saturno). Essas luas
sero discutidas com mais detalhe no captulo 12.
De forma geral, as luas desses dois gigantes gasosos no so
to geladas como se poderia imaginar, considerando-se apenas a
distncia at o Sol e o fluxo de radiao incidente. Elas possuem
temperaturas mais amenas e so aquecidas pelo efeito gravitacio-
nal dos planetas gigantes que orbitam. A variao gravitacional
cria um efeito de mar que acaba por aquecer essas luas, pela de-
formao mecnica delas (que aquece, como uma barra de metal
quando amassada e torcida) (Lammer et al., 2009).
Apesar de ser uma lua gelada, ou seja, ter sua superfcie cober-
ta totalmente por uma camada de gelo, Europa tida atualmente

227
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

como um dos ambientes extraterrestres mais propcios a abrigar


vida. Isso pelo fato de ter um oceano de gua lquida abaixo dessa
camada de gelo, com temperaturas amenas e possuir muita ma-
tria orgnica.
Tit outra lua bastante interessante pelas marcas de rios que
foram observadas em sua superfcie, mostrando que possui ativi-
dades hidrolgicas. Um fato interessante que o solvente presente
nessa lua no gua, mas, sim, hidrocarbonetos, como metano e
etano. Trata-se, como Europa, de uma lua com grande quantidade
de matria orgnica, mas a presena de solventes orgnicos faz os
cientistas especularem se a vida como existe na Terra poderia so-
breviver a essas condies ou se seria necessrio um tipo de vida
distinto. De qualquer maneira, Tit provavelmente um enorme
laboratrio para qumica orgnica, gerando, talvez, molculas im-
portantes para a qumica prebitica at hoje, usando como fonte
de energia para essas reaes o impacto de micrometeoros, aste-
roides e raios csmicos (Sagan et al., 1992).
Por fim, Enclado tambm possui oceano sob a camada super-
ficial de gelo, tendo sido observados giseres de gua gelada em
um de seus polos, apresentando ainda atividade geolgica movida
pelas foras gravitacionais. Acredita-se atualmente que a atividade
geolgica fundamental para a presena de vida, ao menos a ba-
seada no exemplo de nosso planeta (Matson et al., 2007).
A forma de estudo desses corpos do Sistema Solar pode ser
por estudos remotos, como telescpios, ou por estudos locais, por
misses que os orbitam ou pousam neles, como as sondas e rovers
enviados. Por causa da importncia e do impacto destes ltimos
na cincia e no imaginrio popular, eles sero discutidos em mais
detalhes adiante.

Misses de busca de vida fora da Terra


Apesar de muito se propagandear sobre sondas enviadas a ou-
tros corpos celestes para a busca de vida extraterrestre, no cos-
tume da Nasa e nem de nenhuma outra agncia espacial o envio
de misses especificamente para esse fim. Cada sonda enviada

228
Estudando o Sistema Solar

com uma srie de equipamentos que visam conhecer a geologia,


condies atmosfricas e climticas do ambiente e, em muitos ca-
sos, a presena de matria orgnica ou de indcios de vida. Os
projetos de busca de vida dessas misses acabam sendo bastante
difundidos por causa do grande apelo desse tema junto ao pblico
e necessidade de amplo apoio popular a essas iniciativas, pelos
seus altos custos.
Diversas misses foram enviadas a diferentes corpos do
Sistema Solar, no somente por norte-americanos, mas tambm
por soviticos e com participao de outros pases, algumas dessas
misses apenas orbitando os corpos do Sistema, outras pousando.
Diversas fracassaram nesse perodo, mas as que tiveram xito con-
triburam para o avano do conhecimento do Sistema Solar.
O primeiro destaque para experimentos de busca de vida fora
da Terra so as misses Viking 1 e 2 (1975-1982) que pousaram em
Marte com os seguintes objetivos: estudar a biologia, a qumica, a
fsica e outras propriedades da atmosfera e da superfcie marciana,
visando entender o planeta e seu potencial para a vida (Klein, 1978)
(Figura 11.4) . Para no invalidar uma eventual descoberta de vida
extraterrestre com suspeitas de contaminao cruzada, houve uma
grande preocupao com a esterilizao dos equipamentos.

Figura 11.4. Imagem da Viking 2 na superfcie de Marte. Fonte: Nasa/jpl

229
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Como no se sabia que tipo de organismo poderia estar pre-


sente naquele planeta, trs experimentos foram enviados, basean-
do-se em pressuposies diferentes.
Um dos experimentos partia do pressuposto de que os mi-
cro-organismos ali presentes seriam diferentes dos encontrados
na Terra e que a melhor maneira de incentivar seu metabolismo
seria mantendo-os nas mesmas condies do ambiente. Dessa
forma, uma mistura de monxido e dixido de carbono mar-
cados com um istopo de carbono foi misturada ao solo, na
esperana de que algum organismo incorporasse esses tomos
em molculas orgnicas complexas, que poderiam ser medidas,
provando-se o metabolismo. Nenhum sinal que pudesse ser atri-
budo vida foi detectado.
Dois experimentos partiam de outro pressuposto: uma pos-
svel forma de vida encontrada em Marte seria semelhante da
Terra, utilizando as mesmas fontes de energia e tendo o mesmo
metabolismo, produzindo gs carbnico ou metano, que pode-
ria ser detectado. Para tanto, jogou-se no solo gua pura ou com
matria orgnica e tentou-se detectar sinais de metabolismo pela
liberao de gs carbnico.
De fato, constatou-se um resultado positivo, que trouxe a es-
perana aos pesquisadores de terem encontrado sinal de vida na-
quele planeta. Aps outros estudos, percebeu-se que a superfcie
marciana tinha uma composio mineral diferente do que se es-
perava e que era mais oxidante, causando a degradao daquela
matria orgnica usada como nutriente. Concluiu-se que os re-
sultados observados tinham natureza puramente qumica e no
biolgica, sendo um falso positivo.
Nenhum desses experimentos produziu sinal que os cientistas
pudessem caracterizar como vida, mas essas misses no foram
consideradas como fracasso. As informaes que elas obtiveram so-
bre o planeta foram bastante importantes para o seu melhor enten-
dimento e a tecnologia desenvolvida serviu para futuras misses.
Aps as misses Viking, a Mars Pathfinder (1997) teve grande
destaque pelo seu carter inovador, com pouso por paraquedas

230
Estudando o Sistema Solar

e airbags em vez de retrofoguetes, como a Viking, e por carre-


gar o Sojourner, primeiro rover bem-sucedido a chegar e andar
pela superfcie marciana transmitindo dados pela internet. Possua
cmeras, sensor a laser para evitar rochas e crateras e equipamentos
para estudo da superfcie marciana.
Novas misses com sondas como os rovers gmeos Spirit e
Opportunity (lanados em 2003) e como a estacionria Phoenix
(lanada em 2007) foram lanadas para avanar o conhecimento
sobre o planeta, a composio mineral, a histria da gua lquida e
a possibilidade de vida microbiana. Os rovers pousaram na regio
equatorial de Marte e eram equipados com diversos espectrme-
tros, tais como de emisso trmica, Mssbauer e raios X (Arvidson
et al., 2006; Squyres et al., 2006), enquanto a Phoenix pousou no
polo e continha equipamentos de eletroqumica, condutividade,
analisador de gases, entre outros (Smith et al., 2008). Esta ltima
perdeu comunicao com a Terra, sendo que seus objetivos foram
parcialmente cumpridos.
Misses para outros corpos celestes foram realizadas, entre as
quais destaca-se a Cassini, que estudou Saturno, e em particular
a sonda Huygens, assim batizada em homenagem ao astrnomo
holands. Essa sonda estudou os ciclos meteorolgicos, pousou
e fotografou a superfcie de Tit, mostrando a existncia de ciclos
hidrolgicos e lagos de hidrocarbonetos.
Em 2012, pousou em Marte a mais moderna das sondas, co-
nhecida como msl (Mars Science Laboratory), tambm chamada de
Curiosity. Essa misso, montada sobre um gigantesco rover (para
os padres de explorao espacial do tamanho de um carro pe-
queno), est equipada com modernos instrumentos de espectros-
copia, de imagens, entre outros, novamente concentrando-se no
passado geolgico e hidrolgico do planeta. Ela est explorando
a cratera Gale nos ltimos anos e apresentou diversos resultados,
como a evidncia de que no passado de Marte havia gua lquida
em sua superfcie (Grant, 2014) e ainda hoje esto presentes em
solo marciano os elementos qumicos essnciais para a vida como
a conhecemos (carbono, hidrognio, oxignio, nitrognio, fsforo

231
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

e enxofre) (Grotzinger, 2014). Pensando no futuro, a Curiosity re-


presenta o primeiro passo para uma misso que ir trazer para a
Terra amostras de Marte para estudo.
A Agncia Espacial Europeia (esa) planeja uma misso a Marte,
conhecida como ExoMars, com lanamento para 2018, cujo gran-
de atrativo ser o estudo da regio abaixo da superfcie (at 2
metros), possibilitando sair da regio oxidante e com grande inci-
dncia de radiao e focando o subsolo, onde sabemos ter gua
(slida e at mesmo lquida, em alguns locais), que pode abrigar
vida (Parnell et al., 2007).
Est planejado tambm, para meados de 2020, uma misso
no tripulada conhecida como Europa Jupiter System Mission
Laplace (ejsm/Laplace), a ser executada em conjunto pela Nasa e
esa (Agncia Espacial Europeia) que ter como objetivo o estudo
de Jpiter, especialmente sua magnetosfera e suas luas, com n-
fase em Europa, onde deve realizar estudos in situ, e Ganimedes,
abrangendo tambm Io, Calisto e outras (Blanc et al., 2009).
Essa misso ter como um de seus objetivos estudar as condi-
es de habitabilidade dessas luas, caracterizando seus oceanos
subsuperficiais, as crostas de gelo, composio e qumica desses
ambientes, procurando possveis locais de interesse para futuros
estudos in situ.

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E7, p. 16437-16451, 1999.

234
LUAS GELADAS DO
SISTEMA SOLAR
Captulo 12
Douglas Borges de Figueiredo

Introduo
Luas geladas constituem uma classe de satlites naturais que
orbitam os gigantes gasosos do nosso Sistema Solar e cuja superf-
cie composta principalmente por gelo. Embora diversos satlites
sejam classificados como luas geladas, estas apresentam carac-
tersticas muito distintas, especialmente quanto capacidade de
promover o surgimento e a manuteno da vida.
Irwin e Schulze-Makuch (2001) consideraram que existem trs
requisitos mnimos para o surgimento e a manuteno da vida:
1) presena de um meio lquido; 2) uma fonte de energia; 3) com-
ponentes e condies que possibilitem reaes qumicas capazes
de formar molculas complexas. Nessas condies, assume-se que
a vida seria capaz de surgir e de se adaptar a mudanas do ambien-
te. Assim, a possibilidade de haver vida em um corpo celeste seria
to grande quanto sua capacidade de suprir essas necessidades.

235
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Observando a Tabela 12.1, nota-se a incluso de algumas das luas


geladas de Jpiter, Saturno e Netuno em diferentes classificaes da esca-
la, o que refora as distines entre esses satlites. Europa e Ganimedes,
ambas luas jovianas, possuem evidncias da existncia de oceanos de
gua lquida no seu interior, de ncleo rochoso, energia geotrmica, gera-
da pelo decaimento radiolgico de material do ncleo e pela dissipao
de mar causada pela interao com Jpiter, e evidncias de qumica
complexa, o que as coloca no ranking ii dessa lista e as torna alvos prim-
rios na busca de vida fora da Terra no Sistema Solar.

Tabela 12.1. Escala de Plausabilidade de Vida (pv) de Irwin e Schulze-Makuch


Classificao Definio Exemplos

I Presena confirmada de gua lquida, energia Terra


disponvel prontamente acessvel e presena de
compostos orgnicos
II Evidncias, no passado ou no presente, de gua Marte,
lquida, disponibilidade de energia e presena Europa,
inferida de compostos orgnicos Ganimedes
III Condies fsicas extremas, mas com evidncia Tit, Trito,
de fontes de energia e qumica complexa possi- Enclado
velmente adequada para formas de vida desco-
nhecidas na Terra
IV Inferncias aceitveis sobre condies adequa- Mercrio,
das, no passado, para o surgimento da vida, Vnus, Io
antes do desenvolvimento de condies to ad-
versas a ponto de que sua existncia hoje seria
improvvel, mas possvel em ambientes isolados
V Condies to desfavorveis para a vida, a partir Sol, Lua,
de qualquer definio razovel, que sua origem planetas
e permanncia no podem ser consideradas gigantes
uma probabilidade realista gasosos
Fonte: Adaptado de Irwin e Schulze-Makuch (2001)

Outras luas de Jpiter, Calisto e Io, por outro lado, encontram-


-se nos rankings iii e iv, respectivamente. Calisto, a lua mais dis-
tante de Jpiter pode possuir um oceano lquido em seu interior,
mas parece ser menos diferenciada e sua superfcie antiga um
indcio de pouca atividade geolgica e de menor disponibilida-
de de energia. Io possui energia abundante, mas pouca gua e

236
Luas geladas do Sistema Solar

carbono disponveis, tornando a existncia de vida como a conhe-


cemos na Terra pouco provvel. As classificaes e caractersticas
gerais dos diversos satlites dos gigantes gasosos do nosso Sistema
Solar podem ser vistos na Tabela 12.2. A seguir, sero discutidas
com maior profundidade as caractersticas de seis luas geladas,
Io, Trito, Ganimedes, Europa, Tit e Enclado, dando nfase aos
aspectos mais importantes para a habitabilidade desses satlites.

Io

Caractersticas gerais
Orbitando a uma distncia de 421.700 km do centro de Jpiter,
Io a lua mais prxima do gigante gasoso. Possui formato elipsoide,
com seu eixo mais longo direcionado para Jpiter. Seu dimetro
de 3.642 km e sua massa de aproximadamente 8.932 1022kg,
sendo a segunda menor lua dos satlites galileanos, frente apenas
de Europa, e o mais denso dos satlites de Jpiter (d=3,527 g/
cm3) (Schubert et al., 2004). Medidas obtidas pelas sondas Galileo
e Voyager sugerem que o interior de Io diferenciado entre um n-
cleo de ferro e de pirita (FeS2), que corresponde a cerca de 20% de
sua massa, manto e crosta ricos em silicatos (Anderson et al., 2001).
A ausncia de um campo magntico intrnseco indica que o ncleo
de Io slido (Figura 12.1).
Com mais de 400 vulces ativos, Io o objeto com maior ativi-
dade geolgica no Sistema Solar. Devido ao vulcanismo, a superf-
cie de Io praticamente desprovida de crateras de impactos, j que
constantemente coberta do material expelido pelas erupes. Tal
material, rico em compostos de enxofre, como dixido de enxo-
fre (SO2), e silicatos confere uma colorao amarelada ao satlite
(Figura 12.1). A temperatura mdia na superfcie de Io de 143 K,
mas pode chegar at 1.900 K prximo a locais de atividade vulc-
nica, temperatura alta o bastante para manter a lava lquida. Alguns
veios vulcnicos ejetam SO2 gasoso na atmosfera, que condensa e
se deposita na superfcie como neve (Schulze-Makuch, 2010), alm
de poder ser ejetado e atingir as luas vizinhas, como Europa.

237
238
Tabela 12.2. Classificao dos satlites de Jpiter, Saturno, Urano e Netuno na escala de Plausabilidade de Vida de Irwin e Schulze-
Makuch (2001)
Corpo pv gua Qumica Energia Plausabilidade de Vida

Luas de Jpiter
Io iv Atividade vulcnica cria Colorao da superfcie Geotrmica Baixa gradientes trmicos
uma atmosfera fina qumica complexa (fora de mar, decaimento bruscos e ciclo geotrmico,
radioativo); qumica; mag- porm com temperaturas e
ntica radiao muito adversas
Europa ii Superfcie de gelo de gua; Colorao da superfcie Geotrmica (fora de mar, Favorvel muitas fontes
Ganimedes ii campo magntico e reno- qumica complexa e reci- decaimento radioativo); ra- de energia; provvel pre-
vao da superfcie gua clagem qumica diao jupiteriana sena de gua no subsolo;
lquida ciclo geoqumico
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Calisto iii Baixa densidade princi- Geotrmica (fora de mar Moderada possvel pre-
palmente gelo de gua limitada, decaimento ra- sena de gua lquida no
dioativo); radiao jupite- subsolo, mas pouco fluxo
riana de energia
Luas de Saturno
Ttis iv Densidade muito baixa e Magntica; forte radiao Baixa pouca evidncia de
Dione iv albedo alto; principalmente saturniana gua lquida
Reia iv gelo de gua
continua...
Tabela 12.2. Continuao

Corpo pv gua Qumica Energia Plausabilidade de Vida

Enclado iii Superfcie renovada com Geotrmica (fora de Moderada possvel pre-
frequncia; evidncia de mar); magntica; de con- sena de gua no subso-
giseres de gelo veco lo com diversas fontes de
energia
Iapetus iv Baixa densidade e albedo Borda escura divisria Qumica Baixa no h evidncias
moderado principal- qumica de hidrocarbone- de gua lquida at o mo-
mente gelo tos mento
Tit iii Densidade 1,8 lqui- Atmosfera densa, colorida Qumica; geotrmica (de- Moderada qumica org-
dos orgnicos e/ou gelo de qumica complexa caimento radioativo) nica complexa e atmosfera
gua, com ncleo slido com capacidade de redu-
o qumica
Luas de Urano
Titnia iii Evidncia de fluxo de lqui- Geotrmica Moderada possibilidade
dos nos cnions de lquidos no subsolo e
lquidos recentes na super-
fcie
Ariel iv Densidades e albedo altos Geotrmica? Baixa luas pequenas, e
Miranda iv 1,5-1,7 rocha/gelo h pouca evidncia de gra-
Umbriel iv dientes de energia
Oberon iv
continua...

239
Luas geladas do Sistema Solar
240
Tabela 12.2. Continuao
Corpo pv gua Qumica Energia Plausabilidade de Vida

Luas de Netuno
Trito iii Densidade ncleo ro- Colorao da superfcie Qumica; rbita elptica Moderada qumica com-
choso com gua/superfcie qumica complexa, carac- fora da mar e temperatu- plexa e diversas fontes de
de gelo tersticas incomuns da su- ras sazonais energia, com a possvel
perfcie energia interna presena de lquidos no
subsolo
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Cometas e v Mistura rocha/gelo gua congelada em abun- Qumica Remota extremamente


asteroides dncia; possvel alterao frios; no h atmosfera e
hidrotrmica em corpos nenhuma fonte interna de
parentais energia constante
Fonte: Adaptado de Irwin e Schulze-Makuch (2001)
Luas geladas do Sistema Solar

Io possui uma atmosfera fina, composta principalmente por SO2


e, em menor quantidade, por monxido de enxofre (SO), cloreto de
sdio (NaCl) e por oxignio e enxofre atmicos. A atmosfera de Io
constantemente removida pela magnetosfera de Jpiter e reposta por
plumas vulcnicas e por sublimao do SO2 congelado na superfcie.
Por causa da ressonncia orbital com Europa e Ganimedes,
Io possui uma rbita excntrica em relao a Jpiter, ou seja, sua
rbita no totalmente circular. Essa excentricidade causa a dissi-
pao de energia no interior do satlite, e o atrito entre as camadas
internas resulta no aquecimento da lua (aquecimento de mar).
A quantidade de energia proveniente do aquecimento de mar
at 200 vezes maior do que a energia produzida pelo decaimento
radiolgico do ncleo de Io, sendo o bastante para derreter uma
parcela do manto e criar um oceano de lava abaixo da superfcie
(Science Daily, 2011).

Figura 12.1. Viso global de Io. Fonte: Nasa/jpl/University of Arizona

241
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Habitabilidade
Io possui classificao iv na Escala de Plausabilidade de Vida
(Irwin; Schulze-Makuch, 2001). Esto nessa categoria corpos ce-
lestes que, no passado, podem ter tido condies razoveis para o
surgimento da vida, mas que desenvolveram condies to abrasi-
vas que tornaram a existncia de vida hoje em dia pouco provvel,
mas concebvel em ambientes isolados.
A baixa probabilidade de vida em Io se deve principalmente
pouca quantidade de gua detectada na atmosfera e na su-
perfcie, no deteco de compostos orgnicos na superfcie
e interao com partculas de plasma extremamente energ-
ticas provenientes de Jpiter. Embora a temperatura mdia na
superfcie seja muito fria, existem locais quentes (500 a 600 K).
A temperatura mdia na depresso vulcnica Loki Patera, por
exemplo, de 273 K. Modelos da formao de Io sugerem que
ela se formou em uma regio do Sistema Solar rica em gua e
que sua temperatura mdia era de aproximadamente 250 K, sen-
do plausvel a formao de vida. medida que a temperatura
na superfcie foi diminuindo e a gua foi sendo perdida, a vida
poderia ter se refugiado em ambientes mais amenos no subsolo,
onde ainda poderia haver gua e dixido de carbono (Schulze-
Makuch, 2010).
Abaixo da superfcie, tubos de lava resultantes do vulcanismo
acentuado de Io poderiam representar ambientes habitveis, pois
seriam capazes de prover proteo contra radiao, reter umi-
dade, prover nutrientes e apresentar temperatura mais amena do
que a da superfcie. Na Terra, micro-organismos so comumente
encontrados em tubos de lava, independente do ambiente exter-
no (Figura 12.2).
H poucas evidncias sobre compostos de carbono na su-
perfcie ou no interior de Io, o que obrigaria eventuais micro-
-organismos a basearem sua estrutura e metabolismo em outras
molculas. No caso de Io, o enxofre pode ter um papel impor-
tante como bloco construtor da vida. Diversos compostos de
enxofre foram encontrados em Io e, embora no tenham sido

242
Luas geladas do Sistema Solar

Radiao de Jpiter

Ionosfera
Lago de
lava
Depsito de neve Ejeo de SO2
de SO2 (gasosos) e S2 (gasosos)
Fluxo de lava
sobre campos
de neve
Tubos de lava

Cmara
Magmtica

Figura 12.2. Representao esquemtica mostrando tubos de lava como


possveis habitats para a vida em Io. Ilustrao: Maurcio Marcelo / Tikinet |
Adaptado de Schulze-Makuch (2010)

encontradas molculas de complexidade comparvel a com-


postos biolgicos, como aminocidos e protenas, elas pode-
riam existir, visto que o enxofre ocorre em vrios estados de
oxidao e capaz de formar diversas estruturas polimricas e
cclicas com carbono, nitrognio, oxignio e fsforo. Alm de
servir como bloco construtor da vida, o enxofre poderia ser-
vir como solvente para as reaes qumicas necessrias vida
nessa lua. Um solvente lquido apropriado deve propiciar um
ambiente capaz de manter a estabilidade das ligaes qumi-
cas para preservar a estrutura das macromolculas, ao mesmo
tempo que promove a dissoluo de outras ligaes para novas
reaes. Deve ser capaz de solubilizar solutos diversos, mas
tambm permitir que macromolculas permaneam insolveis,
promovendo estabilidade estereoqumica, superfcies e interfa-
ces para reaes. Alm disso, deve ter densidade adequada para
manter concentraes crticas de reagentes e evitar sua disper-
so e tambm servir como tampo contra variaes ambientais.

243
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Em Io, sulfeto de hidrognio (H2S), dixido de enxofre (SO2)


e cido sulfrico (H2SO4) seriam candidatos para substituir a
gua como solventes apropriados para a vida (Schulze-Makuch,
2010).
Sulfeto de hidrognio parece ser razoavelmente abundante no
subsolo de Io. O gs tem baixo calor de fuso (2,4 kJ/mol) e baixo ca-
lor de vaporizao (18,7 kJ/mol) e pouco eficiente para moderar a
temperatura. Alm disso, tem baixa constante dieltrica (5,9) e baixo
momento dipolar (0,98), sendo ineficiente como solvente inico. Por
outro lado, capaz de dissolver diversas substncias, incluindo com-
postos orgnicos. De maneira anloga gua que se dissocia em H+ e
OH, pode se dissociar em H+ e HS, este podendo substituir o grupo
hidroxila em compostos orgnicos. Seus pontos de fuso e ebulio
so, respectivamente, 187 e 213 K (1 bar). Assim, ele poderia perma-
necer lquido quando aquecido pela lava e qualquer forma de vida
que estivesse adormecida nas proximidades poderia se tornar ativa.
O dixido de enxofre possui momento dipolar maior do que o
H2S (1,6), permanece lquido em um intervalo maior de temperatura
(198 a 163 K, 1 bar) e abundante em Io. Por outro lado, a ligao
dupla presente na molcula de SO2 poderia dificultar reaes bioqu-
micas, j que um rearranjo molecular seria necessrio. Ademais, o
SO2 no um solvente baseado em prton. Uma vez que macromo-
lculas biolgicas como cidos nucleicos so formadas via ligao de
hidrognio, solventes que no sejam baseados em prtons precisam
superar grandes barreiras energticas para reagir com essas molculas.
Por fim, o cido sulfrico tem momento dipolar maior do que
o da gua (2,7), alta constante dieltrica (101), alta viscosidade
(0,26 P) e permanece lquido em uma grande faixa de temperatura
(283 at 610 K). Contudo, a ausncia de gua em Io torna pouco
provvel a presena de grande quantidade de H2SO4, e qualquer
forma de vida capaz de sobreviver em um ambiente de cido sul-
frico teria uma bioqumica substancialmente diferente daquela
encontrada na Terra (Schulze-Makuch, 2010).
Apesar da falta de compostos de carbono e de solventes apro-
priados, a atividade geotrmica abundante e compostos reduzidos

244
Luas geladas do Sistema Solar

de enxofre poderiam suprir micro-organismos com energia abun-


dante (Irwin; Schulze-Makuch, 2001).
Mesmo que Io tenha possudo potencial para gerar e sustentar
vida no passado e que atualmente existam energia em abundncia
e ambientes no subsolo menos abrasivos do que a superfcie, a falta
de gua e molculas orgnicas torna a possibilidade de vida nessa
lua muito baixa. Levando em considerao que o prprio Sistema
Joviano tem alvos muito mais promissores para a busca de vida fora
da Terra, uma misso para Io seria pouco justificada. Ainda assim,
futuras misses para Europa ou Ganimedes poderiam dedicar al-
gum tempo para estudar Io, visto que seu vulcanismo, densidade e
composio o tornam singular em nosso Sistema Solar.

Trito

Caractersticas gerais
Trito a maior das luas de Netuno, com dimetro de aproxi-
madamente 2.700 km e massa de 2,14 1022 Kg, correspondendo
a 99,5% de toda a massa que orbita Netuno. Modelos da estrutu-
ra interna do satlite indicam que possui um ncleo de silicatos
com aproximadamente 950 km de raio (Gaeman; Hier-Majumder;
Roberts, 2012). A superfcie de Trito jovem e apresenta poucas
crateras de impacto, o que se deve atividade geolgica recente.
Imagens da Voyager indicaram trs tipos de terreno distintos na su-
perfcie: plancies vulcnicas, calotas polares e terreno cantaloupe
(McKinnon; Kirk, 2007) (Figura 12.3).
Observaes da superfcie e anlise espectral da Voyager indi-
caram que a superfcie de Trito composta predominantemente
por N2, H2O e CO2 congelados, alm de CO e CH4 em menores
quantidades. Modelos da composio qumica da nbula pr-solar
onde o satlite se originou sugerem a presena de at 15% de NH3
no interior de Trito (Gaeman; Hier-Majumder; Roberts, 2012). A
temperatura mdia na superfcie 35,6 K. Sua atmosfera rarefeita
e composta principalmente por N2 e traos de CO2 e CH4 prximos
superfcie.

245
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Figura 12.3. Terrenos distintos da superfcie de Trito: (A) plancie vulcnica


e (B) terreno Cantaloupe. Fonte: Nasa/jpl/Universities Space Research
Association/Lunar & Planetary Institute

Formao e rbita
Trito a nica das grandes luas do Sistema Solar a apresen-
tar uma rbita retrgrada, ou seja, que segue na direo oposta
rbita do seu planeta. Outros objetos com rbitas retrgradas
so algumas das luas exteriores de Jpiter e Saturno, mas so luas
muito distantes dos seus planetas e com tamanho muito inferior ao
de Trito. Essa lua apresenta rotao sincrnica com Netuno e sua
rbita quase totalmente circular.
Por causa de sua rbita peculiar, levantou-se a hiptese de
que Trito teria se formado no Cinturo de Kuiper (McKinnon;
Kirk, 2007), tendo sido capturado posteriormente por Netuno
(Agnor; Hamilton, 2006). Uma hiptese para a captura sugere
que Trito e um segundo corpo de tamanho similar formaram
um sistema binrio com o Sol (Agnor; Hamilton, 2006), e
medida que esse sistema se aproximou de Netuno, Trito foi
capturado pela gravidade do planeta. Outra hiptese sugere
que a lua foi capturada durante uma ou vrias passagens pr-
ximas a Netuno, que dissiparam a energia orbital por arrasto
hidrodinmico (McKinnon; Leith, 1995). Uma vez capturada,
a cada passagem da lua, a gravidade de Netuno levantava ma-
rs na superfcie do satlite, dissipando energia em seu inte-
rior, o que levou a rbita heliocntrica e altamente elptica de
Trito a circularizar-se at a rbita atual, com excentricidade
prxima a zero.

246
Luas geladas do Sistema Solar

Existem dois modelos sobre o tempo de circularizao da r-


bita de Trito. Segundo Ross e Schubert (1990), ocorreu lentamen-
te ao longo de aproximadamente 800 Ma aps sua captura. uk e
Gladman (2005), por outro lado, sugerem que a captura de Trito
perturbou os satlites preexistentes de Netuno, levando a colises
e formao de um disco de detritos. A interao de Trito com
esse disco alterou rapidamente sua rbita, que teria se tornado
circular rapidamente (6.100 anos). A circularizao da rbita de
Trito teria dissipado uma grande quantidade de calor dentro do
satlite, derretendo a camada de gelo e formando um oceano glo-
bal, o que poderia ter criado condies para que a vida surgisse
em Trito no passado.

Habitabilidade
A existncia de vida, como a conhecemos na Terra, em
Trito depende da existncia de gua lquida sob a superfcie.
Um oceano abaixo da crosta de gelo de Trito poderia ser man-
tido pela energia liberada em seu interior atravs da dissipao
de mar e do decaimento radiolgico do seu ncleo. Com base
na densidade de Trito e na abundncia de elementos radiog-
nicos em seu ncleo, Brown et al. (1991) estimaram que um
fluxo entre aproximadamente 0,75 e 1,5 1011 W de calor
gerado pelo decaimento radioativo no ncleo de Trito. J a
dissipao de mar depende diretamente de dois fatores, a ex-
centricidade da rbita de Trito e da espessura da camada de
gelo na superfcie.
De acordo com Roberts e Nimmo (2008), a dissipao de mar
proporcional ao quadrado da excentricidade orbital. Dessa for-
ma, aps a captura e circularizao da rbita de Trito, a dissipa-
o de mar teria diminudo significativamente. Ao mesmo tempo,
crostas de gelo mais finas so mais facilmente deformadas pela
mar, aumentando a dissipao. medida que a crosta aumenta,
torna-se mais difcil de deformar, diminuindo a dissipao e libe-
rao de energia no interior de Trito, levando ao congelamento
de um volume maior de gua. Contudo, o congelamento total do

247
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

oceano levaria ao contato direto da crosta de gelo com o manto e


o atrito gerado por este contato causaria um aumento substancial
da dissipao de mar (Gaeman; Hier-Majumder; Roberts, 2012).
Observa-se que o calor radiolgico quatro ordens de gran-
deza maior do que o maior calor de dissipao considerado.
Ainda assim, no seria capaz de prevenir a cristalizao completa
do oceano de Trito. Apesar de modesta, a dissipao de mar
essencial para a manuteno de um oceano lquido em Trito e
sua habitabilidade.
Embora haja poucas informaes sobre o interior de Trito, o
modelo de Gaeman, Hier-Majumder e Roberts (2012) indica que,
com excentricidades orbitais a partir de 4 10-5, essa lua seria ca-
paz de manter um oceano lquido e, embora a composio deste
seja pouco conhecida, a presena de amnia no oceano e a de-
teco de carbono na superfcie poderiam indicar a possibilidade
de reaes qumicas complexas. Ademais, o contato desse oceano
com o manto criaria um cenrio mais prximo quele onde se
supe que a vida surgiu na Terra. Finalmente, sua rbita e origens
singulares tornam Trito um objeto de estudo digno de nota.

Ganimedes

Caractersticas gerais
Ganimedes a maior lua de Jpiter e do Sistema Solar. Com
dimetro de 5.268 km maior do que o planeta Mercrio, embo-
ra sua massa, 1,48 1023, seja cerca da metade da massa deste
planeta. Sua densidade de 1,936 g/cm3, o que sugere que seja
formada por partes iguais de material rochoso e de gua.
A superfcie de Ganimedes formada por um oceano de
gua congelada intermeado de rochas hidratadas. Dados de es-
pectroscopia prxima ao infravermelho e de espectroscopia uv
da sonda Galileo detectaram a presena de dixido de carbo-
no, dixido de enxofre, cianognio, hidrxido de enxofre, com-
postos orgnicos diversos, sulfato de magnsio e sulfato de s-
dio, estes dois possivelmente originrios de um oceano lquido

248
Luas geladas do Sistema Solar

abaixo da superfcie. Sua atmosfera rarefeita (presso de 2,5


Pa na superfcie) e composta predominantemente por O2 com
traos de O3 e hidrognio atmico, todos formados abioticamen-
te pela quebra de molculas de gua por radiao na superfcie
(Showman; Malhotra, 1999).
Imagens da superfcie de Ganimedes revelaram a presena de
dois tipos de terreno distintos: um tipo escuro, antigo e marcado
por crateras abundantes, e um claro, mais novo e caracterizado
por espinhaos e sulcos (Figura 12.4).
O terreno escuro rico em argilas e material orgnico, e a
anlise das crateras indica que esse tipo de terreno possui apro-
ximadamente 4,0 Ga. Ganimedes deve ter sofrido um perodo de
impactos intenso entre 4,0 e 3,5 Ga, bem como a Terra e a Lua.
Assim como em Europa, os impactos devem ter penetrado signifi-
cativamente na superfcie de gelo, ejetando grande quantidade de
material do subsolo para a superfcie. Supondo que Ganimedes
pudesse ter abrigado vida no passado e que esta tivesse surgido
aproximadamente na mesma poca em que surgiu na Terra, as cra-
teras da regio escura do satlite seriam bons alvos de estudo para
a astrobiologia (Lipps et al., 2004).

Figura 12.4. Terrenos distintos de Ganimedes. Terreno escuro (esquerda)


marcado por crateras de impactos ocorridos entre 4,0 e 3,5 Ga, e terreno
claro (direita) renovado por tectonismo. Fonte: Nasa/jpl/dlr

Formao, diferenciao e a magnetosfera de Ganimedes

249
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Ganimedes parece ser um satlite completamente diferen-


ciado, o que se deve sua formao. O modelo mais aceito
para sua formao diz que o satlite teria se formado atravs
da agregao de material planetesimal presente na esfera de
Hill de Jpiter (Canup; Ward, 2002). Por ter se formado em
uma regio mais prxima a Jpiter, onde o disco de material
era mais denso, Ganimedes deve ter se formado rapidamente
( 10 mil anos) (Mosqueira; Estrada, 2003). Isso evitou o esca-
pe do calor de agregao que, com o calor de mar, levaram
ao derretimento do gelo e separao do material rochoso,
que foi para o centro formando o ncleo. (McKinnon, 2006;
Showman; Malhotra, 1999). Aps a formao o calor acumula-
do no ncleo foi gradativamente sendo liberado para o manto
de gelo e para a superfcie por conveco. O decaimento ra-
diolgico dentro do ncleo teria continuado a aquec-lo, le-
vando diferenciao do interior do satlite em um ncleo de
ferro, sulfeto de ferro e um manto de silicatos (Hauck; Aurnou;
Dombard, 2006). As passagens da Galileo por Ganimedes reve-
laram que o satlite possui um momento magntico intrnseco
forte o bastante para gerar uma magnetosfera prpria dentro da
magnetosfera de Jpiter, sendo a nica lua do nosso Sistema
Solar com essa caracterstica. Dada a diferenciao e presena
de um ncleo metlico lquido, acredita-se que a magnetos-
fera de Ganimedes seja gerada pelo movimento de material
condutor em seu interior (Hauck; Aurnou; Dombard, 2006), de
forma semelhante ao que ocorre na Terra. A principal esp-
cie inica na magnetosfera de Ganimedes O+, o que con-
diz com a composio da atmosfera do satlite. A interao
da magnetosfera de Ganimedes com o plasma proveniente de
Jpiter , de certa forma, semelhante interao da magne-
tosfera terrestre com os ventos solares (Volwerk et al., 1999).
Nas regies polares em latitudes superiores a 30, as linhas
do campo magntico se abrem, conectando Ganimedes com
a ionosfera de Jpiter. Nessa regio o fluxo de eltrons e ons
leva ao surgimento de auroras, e ons pesados constantemente

250
Luas geladas do Sistema Solar

precipitam na superfcie, escurecendo o gelo na regio dos po-


los (Paranicas; Paterson, 1999).

Habitabilidade
Acredita-se que Ganimedes, assim como Europa, possua um
oceano lquido sob a superfcie. E, embora esses dois satlites te-
nham gua lquida, fontes de energia disponveis e indcios de
qumica complexa, Europa sempre foi considerado um candidato
melhor para abrigar vida do que Ganimedes.
A estrutura interna de Europa consistente com um oceano
lquido em contato direto com o manto rochoso, uma condio
que se acredita ter sido necessria para o surgimento da vida na
Terra. A presso hidrosttica no fundo do oceano de Europa de
aproximadamente 200 MPa, parecida com a presso nas regies
mais profundas do oceano terrestre. Por outro lado, o tamanho
maior de Ganimedes e a maior abundncia de gua resultam em
presses de at 1,2 GPa nas regies mais profundas. Essa condi-
o favorece a formao de uma camada de gelo tipo vi, um tipo
muito rgido e mais denso do que o oceano lquido. Esse material
se depositaria sobre o manto (Figura 12.5), isolando o oceano e
dificultando as primeiras reaes qumicas que dariam origem aos
primeiros seres vivos.
Contudo, analisando a oscilao da aurora de Ganimedes, me-
dida atravs de imagens obtidas pelo telescpio espacial Hubble,
Saur et al. (2015) observaram que a oscilao da aurora era menor
do que o esperado dada a influncia da magnetosfera de Jpiter
(Figura 12.6). Baseado nisso, foi criado um modelo onde um ocea-
no salgado eletricamente condutor abaixo da superfcie compensa-
ria a influncia da magnetosfera jupiteriana.
De acordo com esse modelo, medida que o gelo fosse se
formando, o sal precipitaria e iria para o fundo, tornando a gua
mais densa e fazendo o gelo subir. Dessa forma, o oceano se-
ria mais denso do que o gelo tipo vi, descendo para o fundo at
encontrar o manto. Acima desse oceano salino haveria camadas
intercaladas de gua e gelo de densidades distintas. A temperatura

251
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

no fundo do oceano, por causa da presso elevada e a transmisso


de calor do manto, seria mais alta do que nas camadas superiores,
criando condies mais favorveis ao surgimento e manuteno
da vida no interior de Ganimedes.

Gelo hexagonal (1h)


Congelamento polar

Ganimedes
Oceano de gua salgada
Gelo tetragonal
(VI) camadas representadas na escala
Manto rochoso

Ncleo de ferro e
sulfeto de ferro (lquido)
Ncleo de ferro (slido)

Terreno claro
Cratera
Terreno escuro
Sulcos

Figura 12.5. Modelo estrutural de Ganimedes. Neste modelo, o oceano


lquido estaria aprisionado entre uma camada de gelo tipo vi, muito denso,
e uma camada de gelo tipo i, menos denso. Fonte: Kelvin Song/Wikimedia
Commons

Mesmo antes da hiptese de um oceano em contato com o


manto, Ganimedes j se encontrava na classificao ii da Escala de
Plausabilidade de Vida, embora sempre atrs de Europa. Trata-se
de um satlite com fontes de energia, indcios de qumica com-
plexa e gua lquida, e caso seja confirmado o contato entre o
oceano e o manto, Ganimedes se consolidar como um dos am-
bientes mais propcios vida em nosso Sistema Solar, comparvel
Europa. Alm do interesse astrobiolgico, a magnetosfera nica
de Ganimedes, seu tamanho e interao com Jpiter e os outros
corpos do Sistema Joviano o tornam um objeto de estudo impor-
tante em nosso Sistema Solar, justificando o investimento em mis-
ses como a Juice.

252
Luas geladas do Sistema Solar

oscilao da magnosfera
oscilao da dentro de 5,2 h
magnosfera
dentro de 5,2 h sem
oceano oceano

OCFB

Jpiter

Figura 12.6. Representao esquemtica de linhas de campo magntico e


da posio da aurora quando Ganimedes est acima (linha pontilhada) ou
abaixo (linha slida) do plano de corrente. Open-closed field line boundary
(ocfb) a regio onde a aurora se forma. Em azul observa-se a oscilao
da aurora na ausncia de um oceano condutor e, em vermelho, como a
oscilao considerando um oceano condutor. Fonte: Adaptado de Saur et al.
(2015)

Europa

Caractersticas gerais
Embora seja a sexta maior lua do Sistema Solar, Europa a
menor das quatro luas geladas de Jpiter, com dimetro de apro-
ximadamente 3.100 km. Sua grande densidade, 2,99 g/cm3, aliada
a medidas gravitacionais, consistente com um ncleo metlico
slido formado por ferro e nquel e envolto por uma crosta de sili-
catos, ambos abaixo de uma camada de gua e gelo. A atmosfera
de Europa pouco densa e formada principalmente por oxignio.
Sobre a crosta de silicatos, estima-se que Europa tenha uma
camada de gua com 80-170 km de extenso, dividida entre uma
crosta congelada na superfcie e um oceano lquido abaixo desta.
O gelo na superfcie de Europa tem albedo elevado (0,64) e reflete

253
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

grande parte da luz incidente sobre a superfcie de volta para o


espao. Geologicamente, a superfcie plana, recente e com pou-
cas crateras antigas, o que indica que renovada constantemente.
Com base na incidncia de bombardeamento a que Europa est
submetida, estima-se que sua superfcie tenha entre 10 e 100 mi-
lhes de anos. Os processos responsveis pela renovao da su-
perfcie de Europa seriam: erupes locais de gua aquecida e sob
presso, aprisionada abaixo da superfcie; elevao e submerso
repetida de slidos congelados e lquidos em regies extensas da
superfcie; ruptura de camadas superficiais de gelo por causa da
disrupo de mar; translao e extenso de blocos da superfcie e
subsequente preenchimento dessas regies por material vindo do
subsolo; disrupo completa da superfcie e formao de terreno
catico (Kargel et al., 2000).
Outra caracterstica marcante observada em Europa a exis-
tncia de uma srie de linhas escuras que cruzam sua superfcie
(Figura 12.7).
A hiptese mais aceita para a formao dessas linhas diz que
devem ter sido formadas por uma srie de erupes de gelo aque-
cido que ocorreram medida que a crosta de Europa se abria para
expor camadas interiores mais quentes (Figueredo; Greeley, 2004),
de forma semelhante ao que ocorre nas fendas ocenicas na Terra.
Dois mecanismos seriam responsveis pela formao dessas fendas
em Europa. O primeiro seria a influncia gravitacional de Jpiter
sobre o satlite. Uma vez que a lua sempre mantm aproximada-
mente a mesma orientao com relao ao gigante gasoso, a ao
das foras de mar criaria essas fendas formando padres distintos.
Contudo, observou-se que somente as fendas mais novas seguiam
o padro previsto. As fendas mais antigas, ento, poderiam estar
ligadas ao fato de a superfcie de Europa estar se movendo mais
rapidamente do que o interior da lua, o que seria possvel caso
houvesse um oceano lquido separando a superfcie do manto ro-
choso (Hurford; Sarid; Greenberg, 2007). Imagens provenientes
das sondas Voyager e Galileo revelaram evidncias de subduco
ocorrendo entre fragmentos da crosta congelada de Europa. Esse

254
Luas geladas do Sistema Solar

processo j conhecido na Terra e ocorre em regies de conver-


gncia entre placas tectnicas, quando uma placa se desloca para
baixo de outra. So regies com elevada incidncia de terremotos,
vulcanismo e formao de montanhas. A existncia dessas placas
tornaria Europa o nico corpo celeste conhecido a possuir placas
tectnicas alm da Terra (Figura 12.8) (jpl/Nasa, 2014).

Figura 12.7. Superfcie de Europa. A colorao foi adicionada sobre a foto


original para destacar as linhas que cobrem a superfcie da lua. reas em
azul ou branco contm gelo relativamente puro, enquanto regies marrons
contm gelo com maior concentrao de outros elementos. Fonte: Nasa/jpl-
Caltech/seti Institute

Quanto sua atmosfera, observaes realizadas pelo Hubble


revelaram que Europa possui uma atmosfera fina, composta princi-
palmente por oxignio molecular (O2) em sua camada interior e, em
menor concentrao, por hidrognio molecular (H2) em sua camada
superior. Esse O2 no indicador de atividade biolgica em Europa
j que formado pela radilise da gua na superfcie da lua. A ra-
diao ultravioleta do Sol e partculas carregadas da magnetosfera

255
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

de Jpiter (ons e eltrons) colidem com o gelo na superfcie de


Europa e quebram as molculas de gua em oxignio e hidrognio
atmicos. O oxignio, mais pesado, torna-se o principal componen-
te da atmosfera da lua enquanto a maior parte do hidrognio, por
ser muito leve, escapa para o espao. Observaes de Europa tam-
bm indicaram a presena de pequenas concentraes de espcies
de sdio (Na) e potssio (K) na atmosfera, provavelmente formadas
a partir de depsitos de sais na superfcie (Smyth; Marconi, 2007).

estruturas truncadas
mais antigas
faixa de subsuno

por

mai o de
s c
pro aquec obertu criolava
cess i r
o d do e e a de ge
e co m lo
nve
c
o
oc
ea
no placa de gelo aquecido mais
lq denso que profundo em
uid
o processo de subduo

subsuno da placa
na camada interior

Figura 12.8. Representao do processo de subduco entre placas tectnicas


em Europa. Fonte: Nasa/Noah Kroese, I.NK

Habitabilidade
A existncia de um oceano global abaixo da crosta de gelo de
Europa consistente com as estruturas geolgicas observadas na
superfcie da lua. Modelos termodinmicos predizem um oceano
abaixo dessa crosta que teria entre alguns quilmetros at dezenas
de quilmetros de espessura, dependendo da taxa de aquecimen-
to de mar entre o gelo e o manto rochoso. O oceano global de
Europa pode ter persistido desde a formao da lua. Trata-se do
elemento mais importante para a habitabilidade do satlite e seu

256
Luas geladas do Sistema Solar

estudo de grande interesse para determinar se a vida foi capaz de


surgir e se manter em Europa.
Assumindo que Europa tenha uma origem condrtica e levan-
do em conta a entrega de material do meio estelar, a lua teria uma
ampla gama de compostos essenciais para a vida semelhante
da Terra. Atividade hidrotermal, se presente em Europa, transpor-
taria esses elementos do manto de silicato para o oceano. Ainda
assim, a disponibilidade desses elementos em quantidades biolo-
gicamente relevantes depende de fatores ainda pouco compreen-
didos, como a relao gua-rocha durante as reaes do material
condrtico, a concentrao salina do oceano e condies de pH,
que influenciam a solubilidade desses elementos.
Os atuais modelos de Europa sugerem que a temperatura,
presso, pH e salinidade dos oceanos esto dentro dos limites
capazes de suportar vida conhecida. A capacidade da vida ter-
restre de suportar uma faixa to grande de condies deve-se
sua compartimentao (membrana celular) e capacidade de usar
energia para reparar e manter as condies intracelulares diferen-
tes do ambiente sua volta. Assim, um fluxo de energia limitado
tornaria a faixa de ambientes capazes de suportar a vida mais
estreita. Embora fontes de energia j tenham sido identificadas em
Europa, ainda existem muitas incertezas sobre como essa energia
estaria disponvel para eventuais formas de vida. Anlises espec-
troscpicas da superfcie de Europa revelaram a presena de di-
versas espcies oxidantes (O2, H2O2, CO2, SO2, SO4) geradas pela
radilise do gelo. Dado o contato direto entre a superfcie e o
oceano abaixo e as trocas de material entre eles, por tectonismo,
plumas etc., seria possvel que parte dessas espcies chegasse aos
oceanos, o que seria um fator importante para a qumica oceni-
ca e sua habitabilidade. Segundo a estimativa de Hand, Carlson
e Chyba (2007), em um perodo de at 500 milhes de anos, in-
tervalo de tempo escolhido, pois alm desse perodo Europa seria
mais ativa, e o fluxo de calor e material seriam muito mais inten-
sos do que o observado atualmente, o oceano teria recebido entre
3 108 e 1 109 mols de O2 por ano, taxa comparvel ao fluxo

257
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

de 7 109 mols de O2 por ano gerados pela fotlise da atmosfera


superior da Terra.
A interao da gua lquida com a rocha ultramfica, que
se acredita ocorrer no leito ocenico de Europa, produziria es-
pcies redutivas, incluindo hidrognio e formas reduzidas de
carbono (metano), enxofre (sulfito de hidrognio) e nitrognio
(amnia). Na Terra, formas de vida so capazes de catalisar uma
srie de reaes biolgicas empregando compostos que esta-
riam presentes em Europa, gerando energia qumica capaz de
sustentar seu crescimento. Contudo, o potencial biolgico de
Europa depende no s da existncia desses compostos, mas da
taxa com a qual essa energia pode ser acessada. Nesse quesito,
diversas questes ainda devem ser respondidas (Pappalardo et
al., 2013):

1. A entrega de espcies reduzidas depende da extenso e da


natureza da reao entre a gua e a rocha no leito ocenico.
A salinidade do oceano de Europa, inferida por Hand, Carlson
e Chyba (2007), sugere a ocorrncia de extensivas reaes da
gua com silicatos, mas aspectos importantes de tais reaes,
como a temperatura e presso do leito ocenico, ainda preci-
sam ser determinados, de modo que a concentrao e dispo-
nibilidade de espcies reduzidas ainda so incertas;

2. Apesar da estimativa de Hand, Carlson e Chyba (2007) sobre


taxa de entrega, mencionada anteriormente, de espcies oxi-
dadas da superfcie para o oceano, ainda necessrio estabe-
lecer com preciso a relao entre o tempo de renovao da
superfcie de Europa e a espessura da camada de gelo com a
taxa de entrega de espcies da superfcie para o oceano;

3. Alm das restries impostas aos sistemas biolgicos pelo


fluxo de energia total, a forma como essa energia entregue
tambm importante. Por exemplo, a entrega de fluidos redu-
tores direcionada para uma regio oxidada do oceano, como

258
Luas geladas do Sistema Solar

ocorre em fontes hidrotermais no oceano terrestre, teria um


potencial biolgico muito diferente daquele de uma entrega
difusa de espcies oxidantes por exemplo, pelo derretimento
do gelo da superfcie, em um oceano redutor.

As informaes atuais sobre Europa indicam que essa lua no s


pode ser habitvel atualmente, como provavelmente foi assim durante
a maior parte da histria do nosso Sistema Solar. Futuras observaes,
particularmente aquelas realizadas atravs de pousos na sua superf-
cie, permitiro anlises no apenas qualitativas, mas tambm quanti-
tativas sobre o potencial habitvel de Europa, especialmente quanto
s fontes de energia disponveis e evoluo qumica do oceano.

Tit

Caractersticas gerais
Tit a maior lua de Saturno e a segunda maior lua do Sistema
Solar, atrs apenas de Ganimedes. Com dimetro de aproximada-
mente 5.150 km, tem 1,5 vezes o tamanho da Lua terrestre e 80%
mais massiva. Trata-se do nico satlite do Sistema Solar que tem at-
mosfera densa e evidncia clara de corpos lquidos estveis em sua
superfcie. Com densidade de 1,88 g/cm3, acredita-se que Tit seja
composta metade por gua e metade por material rochoso.
Modelos tericos da formao e evoluo de Tit predizem que
uma camada de gua lquida poderia existir abaixo do gelo na su-
perfcie, desde que houvesse uma quantidade suficiente de amnia
misturada gua, reduzindo sua temperatura de congelamento. A
existncia de amnia em Tit suportada pelo modelo de agrega-
o, pela abundncia de amnia em cometas e pela sua presena
em outros satlites de Saturno. Assim, Tit seria dividida, da super-
fcie para o centro, em uma camada de gelo tipo i, uma camada
lquida de gua-amnia, uma camada de gelo sob alta presso (tipo
v e vi) e um ncleo rochoso (Figura 12.9) (Tobie et al., 2005).
Tit a nica conhecida a possuir uma atmosfera densa e
rica em nitrognio no Sistema Solar alm da terrestre. A Voyager

259
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

mostrou que a atmosfera de Tit mais densa do que a da Terra


(presso de 1,45 atm na superfcie) e aproximadamente 1,19 vezes
mais pesada. Dada sua opacidade, a atmosfera de Tit bloqueia a
maior parte da luz visvel do sol e de outras fontes, dificultando a
observao da superfcie da lua. Por isso, as primeiras observaes
diretas da superfcie de Tit s foram obtidas em 2004 pela sonda
Cassini-Huygens.

Atmosfera e superfcie ricas


em compostos orgnicos
Cobertura de gelo desconectada

Oceano global subsuperficial


Gelo de alta presso

Ncleo de silicato aquoso

Figura 12.9. Modelo da possvel estrutura interna de Tit. Para verificar a


densidade estimada da lua, o ncleo de silicatos deve possuir 3.800 km de
dimetro, e a massa de gua deve ser de aproximadamente 4,82 1.022 km.
Fonte: Nasa/ A. Tavani

A atmosfera de Tit composta por 98,4% de nitrognio. O res-


tante (1,6%) principalmente metano (1,4%), hidrognio (0,1-0,2%),
traos de hidrocarbonetos como etano, acetileno, diacetileno, metila-
cetileno e propano, e outros gases como cianeto de hidrognio, dixi-
do de carbono e cianoacetileno (Niemann et al., 2005). Teoriza-se que
os hidrocarbonetos so formados na atmosfera superior de Tit atravs

260
Luas geladas do Sistema Solar

da quebra do metano pela radiao ultravioleta solar. A permanncia


de metano na atmosfera, apesar da quebra pela luz solar, sugere que
exista um reservatrio desse hidrocarboneto dentro de Tit, que repo-
ria o metano perdido na superfcie e na atmosfera. Esse metano seria
liberado do interior atravs de erupes de criovulces. Com base em
observaes da Cassini e de observatrios na Terra, que identificaram
nuvens brilhantes sobre Tit, Hueso e Snchez-Lavega (2006) propu-
seram que a lua tem um ciclo do metano anlogo ao ciclo da gua na
Terra (Figura 12.10). Os fortes ventos que assolam a superfcie de Tit
formariam nuvens densas de metano, que posteriormente voltariam
para a superfcie na forma de chuva. O acmulo de metano lquido
na superfcie daria origem a lagos desse hidrocarboneto.

Terra Tit
km km
160 K

Nitrognio
50 280 K 500 Metano
Argnio

Nitrognio
40 400
Oxignio
Argnio

30 240 K 300

Smog fotoqumico
Oznio
20 200 160 K
210 K Chuva de partculas

10 100 120 K
72 K
290 K gua 94 K Metano

Figura 12.10. Paralelo entre o ciclo da gua na Terra e do metano em Tit.


Ambas as atmosferas so ricas em nitrognio. Parte do metano presente na
camada superior da atmosfera de Tit reage com luz ultravioleta, gerando uma
camada de smog alaranjado, enquanto nas camadas inferiores precipita sobre
a superfcie. Fonte: IAG

261
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

A superfcie de Tit bastante complexa, tendo entre 100 mi-


lhes e 1 bilho de anos. As imagens da Cassini revelaram regies
suaves e acidentadas que poderiam ter origem criovulcnica. Foram
encontradas poucas crateras de impacto na superfcie, e a maioria
das crateras encontradas demonstrava sinais de eroso e modifica-
o (Wood et al., 2010). Tambm foram identificadas extensas regies
de terreno claro e de terreno escuro. Originalmente imaginou-se que
as regies escuras, localizadas no equador de Tit, fossem lagos de
hidrocarbonetos, mas observaes recentes revelaram extensas pla-
ncies cobertas por dunas com at 100 m de altura e quilmetros
de extenso. Na Terra, dunas desse tipo sempre esto alinhadas com
a direo mdia dos ventos. No caso de Tit, contudo, observou-se
que as dunas apontam para o leste, enquanto simulaes climticas
indicaram que os ventos na superfcie de Tit soprariam para o oeste.
Simulaes mais recentes sugerem que essas dunas seriam ento for-
madas por fortes tempestades que ocorrem aproximadamente a cada
15 anos, quando Tit encontra-se no seu equincio.
A areia de Tit seria formada quando o metano lquido, ao cho-
ver sobre a superfcie, erodisse o leito rochoso. Alternativamente, a
areia poderia ser formada pela agregao de compostos orgnicos
formados por reaes fotoqumicas na atmosfera. Constatou-se que as
dunas contm menos gua congelada do que o restante de Tit e sua
colorao marrom-escura seria relacionada ao fato de serem forma-
das pelos mesmos hidrocarbonetos da camada de smog* da atmos-
fera superior. Caso o interior das dunas seja formado pelos mesmos
materiais que sua superfcie, a quantidade de material orgnico seria
muito grande para ter sido gerada apenas pela eroso da superfcie.
Talvez a caracterstica mais interessante da superfcie de Tit seja
a presena de lagos formados por hidrocarbonetos lquidos nicos
em nosso Sistema Solar. A possibilidade da existncia desses lagos foi
primeiro sugerida pelos dados obtidos das sondas Voyager I e II, que

* Smog designa, em termos genricos, um nevoeiro contaminado por polu-


entes ou material orgnico, especialmente particulado, que pode interagir
com a radiao solar e formar subprodutos.

262
Luas geladas do Sistema Solar

mostraram que Tit tinha uma atmosfera espessa com temperatura e


composio apropriadas para suportar esses lagos. Contudo, evidn-
cias diretas sugerindo a existncia desses hidrocarbonetos lquidos na
superfcie em bolses isolados ou cobrindo grandes extenses s
foram obtidas em 1995 com dados do Hubble e de telescpios na Terra
(Desmott; Sagan, 1995). Em 2004 a Cassini confirmou a segunda hip-
tese. O primeiro grande lago identificado foi batizado de Ontario Lacus,
localizado no polo sul da lua, que se estende por cerca de 15.000 km2 e
composto por metano e etano. Um novo voo da Cassini, em fevereiro
de 2007, observou diversos lagos grandes na regio polar norte, incluin-
do o Ligeia Mare, com 126.000 km2 de rea e o Kraken Mare, trs vezes
maior (Figura 12.11). Medidas feitas em 2009 e 2010 revelaram que o
Ontario Lacus bastante raso (profundidade mdia entre 0,4 e 3,2 m),
j o Ligeia Mare tem profundidades de at 170 m.

Figura 12.11. (A) Ligeia Mare; (B) Kraken Mare; (C) Ontario Lake. As imagens
do Ligeia Mare e do Kraken Mare so representaes coloridas com base nas
imagens da Cassini. Fonte: Nasa/jpl-Caltech/ASI/Cornell - Nasa/jpl-Caltech/
ASI/Cornell - Nasa/jpl-Caltech/Agenzia Spaziale Italiana/usgs

Estima-se que os lagos de Tit contenham centenas de vezes mais


hidrocarbonetos lquidos e gs natural do que todas as reservas da Terra.
Embora cada lago tenha uma composio distinta, estima-se que o
composto mais comum seja etano (75%), seguido de metano (10%),
propano (7%) e quantidades menores de butano, argnio e nitrognio.

263
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Habitabilidade
As informaes obtidas at agora sobre o oceano de gua no in-
terior de Tit no sugerem que ele seja um bom candidato a conter
vida. A camada de gelo sobre a lua parece ser bastante rgida, o que
dificultaria as trocas de material entre a superfcie e o oceano, e a
camada de gelo tipo v e vi sobre a crosta isola o oceano do ncleo
rochoso, sendo que se acredita que essa interface seja importante
para o surgimento da vida. Ainda assim, o oceano aquoso no o
nico ambiente de Tit onde poderamos procurar formas de vida.
Caso a vida tenha surgido em Tit, o ambiente da lua pro-
vavelmente levaria os organismos a desenvolverem um maquin-
rio metablico muito diferente de qualquer um existente na Terra.
Enquanto todas as formas de vida terrestre usam gua como sol-
vente, concebvel que a vida em Tit poderia utilizar hidrocarbo-
netos lquidos, como metano e etano. A reatividade de compostos
orgnicos no menor em solventes orgnicos do que em gua.
De fato, muitas enzimas terrestres catalisam reaes em stios ati-
vos no aquosos. Alm disso, hidrocarbonetos com grupos pola-
res, como acetonitrila e hexano, so capazes de formar solues
de duas fases, o que torna concebvel que uma separao lquido/
lquido entre hidrocarbonetos seja capaz de criar a compartimen-
talizao necessria para a organizao de um micro-organismo.
Gotculas de gua, liquefeita atravs do impacto de asteroides, por
exemplo, em um meio de hidrocarbonetos poderiam formar estru-
turas compartimentalizadas anlogas a membranas, permitindo
vida conseguir o isolamento necessrio do meio para se submeter
evoluo darwiniana.
Por causa de sua reatividade, a gua destri espcies orgni-
cas hidroliticamente instveis. Assim, uma forma de vida em um
oceano de hidrocarbonetos estaria menos sujeita hidrlise de
suas biomolculas. Para obter energia, essa forma de vida poderia
utilizar o H2 no lugar do O2, reagindo-o com acetileno no lugar de
glicose e produzindo metano no lugar de CO2. Comparativamente,
alguns organismos metanognicos terrestres obtm energia reagin-
do H2 com CO2, gerando metano e gua (McKay; Smith, 2005).

264
Luas geladas do Sistema Solar

Dessa forma, o ambiente de Tit, embora muito diferente do ter-


restre, possuiria os requisitos para a vida. Essa lua no tem um equi-
lbrio termodinmico e possui molculas contendo carbono e hete-
rotomos em abundncia, meio lquido, e sua temperatura permitiria
uma ampla gama de ligaes covalentes e no covalentes. Acredita-se
que ainda oferea outros elementos favorveis s reaes necessrias
para a vida, como metais e superfcies de contato. Se acreditarmos
que a vida uma propriedade inerente da reatividade qumica, ento
haveria grande possibilidade de a vida ter se formado em Tit.

Enclado

Caractersticas gerais
Enclado a sexta maior lua de Saturno. Com 500 km de dime-
tro aproximadamente 10 vezes menor do que Tit. Tendo massa de
aproximadamente 1,08 1020 kg e densidade de 1,61g/cm (Porco
et al., 2006), estima-se que Enclado seja formada por gua, silicatos
e ferro, sendo diferenciada com um ncleo rochoso, envolto por um
oceano lquido e uma crosta de gelo em sua superfcie (Figura 12.12).

Oceano global
em ENCLADO, Crosta de gelo
lua de Saturno

Oceano global

Ncleo rochoso

Regio polar sul


com jatos ativos
*Espessura das camadas est fora de escala

Figura 12.12. Representao esquemtica do interior de Enclado com um


oceano lquido global entre o ncleo rochoso e a crosta congelada. Fonte: Nasa/
jpl-Caltech

Pouco se sabia sobre Enclado at o comeo da dcada de


1980, quando as espaonaves Voyager i e ii fizeram os primeiros

265
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

voos prximos a essa lua. Imagens obtidas da Voyager ii revela-


ram diversos tipos de terrenos distintos na superfcie de Enclado,
incluindo regies ricas em crateras, fissuras, escarpas, regies de
terreno plano e recente (algumas centenas de milhes de anos), e
regies marcadas por linhas e espinhaos, estes ltimos frequente-
mente encontrados na borda dos terrenos recentes.
Novas imagens, obtidas pela Cassini em 2005, revelaram mais de-
talhes sobre a superfcie de Enclado. Observou-se que as plancies
suaves tm poucas crateras e numerosas pequenas escarpas. J no ter-
reno mais antigo, rico em crateras, foram encontradas diversas fraturas,
indicando que a superfcie foi submetida a deformaes extensivas des-
de que as crateras foram formadas. Diversas regies de terreno novo,
quase livres de crateras e marcadas pela presena de grandes blocos de
gelo foram observadas em regies ainda no mapeadas no polo sul da
lua (Figura 12.13). A Cassini tambm confirmou a emisso de plumas
de vapor de gua e gelo no polo sul de Enclado (Porco et al., 2006).
O primeiro voo da Cassini sobre Enclado, em 2005, mostrou
uma atmosfera tnue ao redor de Enclado e confirmou que a su-
perfcie da lua era formada principalmente por gua, compostos
orgnicos simples e CO2. O gelo na superfcie de Enclado pos-
sui albedo de 1,4, fazendo da lua um dos objetos mais reflexivos
do Sistema Solar. Por refletir a maior parte da luz, a superfcie de
Enclado mais fria do que a dos demais satlites de Saturno,
atingindo 198C.

As plumas de Enclado e a formao do anel E de Saturno


O anel E, situado entre as rbitas de Mimas e Tit o segundo
anel mais externo de Saturno. Trata-se de um anel extremamente
largo e difuso, consistindo de partculas microscpicas (0,3 a 3
m) de gelo, silicatos, dixido de carbono e amnia (Figura 12.14).
Em um voo por Enclado realizado em 2005, a Cassini atra-
vessou uma nuvem de gs, detectando um aumento significativo
de partculas 10 minutos antes e 10 minutos depois de sua passa-
gem. Ao mesmo tempo, o espectrmetro de ons e massa da sonda
detectou a presena de gua, dixido de carbono, nitrognio e

266
Luas geladas do Sistema Solar

metano (Waite et al., 2006). Tambm foi observado que o menor


dimetro e a maior concentrao de material particulado no anel
E encontra-se na regio ao redor de Enclado, e que o anel vai se
tornando mais grosso e menos denso medida que se afasta da lua
(Hedman et al., 2012). Com base na concentrao e composio
do material particulado concluiu-se que Enclado a fonte do ma-
terial que forma o anel E, expelido da lua por plumas criovulcni-
cas, observadas no hemisfrio sul da lua. Observaes adicionais
realizadas por um novo voo da Cassini em 2008 revelaram traos
de outros compostos qumicos nas plumas de Enclado, como me-
tano, propano, acetileno e formaldedo. A composio das plumas
de Enclado similar s da maioria dos cometas (Nasa, 2015).

Polo Norte Polo Sul


de Enclado de Enclado

Figura 12.13. Hemisfrios norte (esquerda) e sul (direita) de Enclado. O terreno


norte marcado por crateras, sendo o mais antigo da lua. Embora as crateras se
estendam at o sul, l elas se tornam menos pronunciadas, sendo substitudas por
terreno mais novo marcado por fissuras. Fonte: Nasa/jpl/Space Science Institute

Os dados de espectrometria de massa e imagem da Cassini su-


gerem que as plumas que emanam do hemisfrio sul de Enclado
se originam de cmaras pressurizadas abaixo da superfcie, si-
milares aos giseres observados na Terra (Porco et al., 2006). A
intensidade das erupes varia significativamente de acordo com
a posio de Enclado em sua rbita, sendo mais intensas quan-
do a lua est mais distante de Saturno e menos intensa quando

267
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

est mais prxima. Isso consistente com modelos geofsicos


que predizem que as fissuras do hemisfrio sul estariam sob com-
presso quando a lua estivesse mais prxima de Saturno, perma-
necendo fechadas, e sob tenso quando estivesse mais distante,
abrindo-se.

Janus
Diviso Epimeteu Insero da
de Cassini Cassini na rbita
Diviso de de Saturno
Encke (Pan) Cruzamento do
plano do anel

anel anel C
D anel B
Mimas Enclado
anel A
(limite exterior: Atlas)
anel G
anel F
(Prometeu, Pandora) anel E
(para Tit)

Figura 12.14. Representao conceitual dos anis de Saturno. Enclado, localizado


no anel E, seria a principal fonte de material para sua formao. Fonte: Nasa/jpl,
2005

Habitabilidade
Com uma superfcie desprovida de gua lquida, a existncia de
vida em Enclado estaria condicionada presena de gua lquida
em seu interior. Desde 2005 h evidncias de gua lquida no in-
terior da lua, obtida atravs da anlise das plumas. Originalmente,
imaginou-se que a gua lquida no interior de Enclado estaria
concentrada em um oceano abaixo do hemisfrio sul, um modelo
distinto do imaginado para Europa e Ganimedes, cujos oceanos se
estenderiam por todo o globo. A concluso de que Enclado possui
um oceano global veio da observao das oscilaes presentes no
movimento orbital da lua em volta de Saturno, que s poderiam ser

268
Luas geladas do Sistema Solar

explicadas se a camada de gelo da superfcie estivesse separada do


ncleo rochoso por uma camada de lquido (Saturn/Nasa, 2015).
Diferente de outras luas geladas de interesse para a astrobiolo-
gia, as amostras do oceano de Enclado so facilmente acessveis
atravs das plumas. Coletar material proveniente do oceano direta-
mente da atmosfera, dispensando misses de pouso e perfurao
do gelo da superfcie, como se planeja fazer em Europa no futuro,
torna a pesquisa de vida em Enclado mais atrativa e economica-
mente vivel com a tecnologia espacial atual (McKay et al., 2014).
A salinidade do oceano de Enclado, determinada atravs da
anlise das plumas, seria comparvel dos oceanos terrestres, um
indcio de que estaria em contato direto com a rocha (Postberg et al.,
2011). Havendo atividade geotrmica, gerada pela energia do aque-
cimento de mar causado pela interao gravitacional com Saturno,
seria concebvel encontrar espcies redutoras em seu oceano, neces-
srias para a ocorrncia de processos biolgicos. H2 e CO2, espcies
encontradas em fluxos geotrmicos terrestres, foram encontrados nas
plumas de Enclado. Outros compostos encontrados com potencial
biolgico foram CH4 e HCN, molculas orgnicas que podem reagir
para originar cadeias orgnicas maiores, necessrias para a sntese
de biomolculas (Waite et al., 2009). O nitrognio, importante para a
formao de aminocidos e outras biomolculas, tambm foi detec-
tado. Contudo, alguns tomos importantes, como potssio e enxofre,
ainda no foram encontrados, embora sua presena no oceano de
Enclado ainda no possa ser completamente descartada.
Uma questo importante e ainda no respondida sobre a astrobio-
logia de Enclado h quanto tempo as condies atuais de habilida-
de persistem na lua. Shapiro e Schulze-Makuch (2009) classificaram
Enclado abaixo de Europa e Marte em sua escala de probabilidade
de vida, em parte por considerarem que a origem da vida seria im-
provvel nesta lua por causa de um perodo habitvel curto. Ou seja,
no teria havido tempo hbil para a vida se formar l como ocorreu
na Terra. Por estar muito distante do nosso planeta, a chance de formas
de vida terrestres terem chegado at l (panspermia) muito remo-
ta (Worth; Sigurdsson; House, 2013), o que significaria que qualquer

269
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

forma de vida encontrada l teria de ter se originado na prpria lua.


Embora os primeiros indcios de formas de vida na Terra indiquem que
tenha surgido por volta de 3,5 bilhes de anos atrs, a inexistncia de
fsseis anteriores a este perodo poderia ser resultado apenas do fato
de no haver mais terreno sedimentar to antigo preservado. Assim, a
hiptese de que a vida possa surgir em um perodo menor de tempo
no poderia ser completamente descartada (McKay et al., 2014)

Explorao do Sistema Joviano Jupiter Icy Moons


Explorer (Juice)
Em 2012 a Agncia Espacial Europeia aprovou a misso Jupiter
Icy Moons Explorer (Juice) como a primeira misso dentro do seu
programa de explorao espacial Cosmic View Program, a ser rea-
lizado entre 2015 e 2025.
O foco da Juice ser caracterizar as condies que podem ter
levado ao surgimento de ambientes habitveis nos satlites gelados
jovianos. Embora Europa e Calisto estejam inclusas no cronograma
da misso, dar nfase ao estudo de Ganimedes, escolhida como
modelo para o estudo da natureza e da habitabilidade de mundos
gelados e por sua magnetosfera nica e interao com os demais
corpos do Sistema Joviano. A Juice dever determinar as caractersti-
cas dos oceanos lquidos abaixo das superfcies das luas geladas, es-
tudar a evoluo qumica desses satlites e suas fontes de energia,
alm de investigar processos diversos dentro do Sistema Joviano que
possam influenciar a habitabilidade das luas geladas (esa/sre, 2014).
De acordo com o cronograma oficial da misso, a Juice deve
ser lanada em setembro de 2022 com a espaonave Ariane 5.
Empregar uma estratgia de assistncia gravitacional Terra-Vnus--
Terra-Terra para chegar a Jpiter em 2030. Se o lanamento no puder
ser realizado em 2022, haver outras duas oportunidades em 2023 e
2024. Uma vez na rbita de Jpiter, a Juice far uma srie de voos por
Calisto e Europa durante dois anos, at se transferir para Ganimedes,
onde a espaonave permanecer por um ano at cair na superfcie. A
Tabela 12.3 a seguir descreve com detalhes o cronograma da misso
e seus objetivos de estudo em cada etapa. importante ressaltar que

270
Luas geladas do Sistema Solar

Tabela 12.3. Cronograma, instrumentos e objetivos da misso Juice


Explorao da zona habitvel: Ganimedes, Europa e Calisto

Ganimedes como objeto Caracterizar a extenso do oceano e sua relao


planetrio e habitat com a regio interior mais profunda
possvel Caracterizar a cobertura de gelo
Determinar a composio global, distribuio e
evoluo dos materiais da superfcie
Entender a formao das estruturas da superfcie e
buscar atividades recentes ou remotas
Caracterizar o ambiente local e sua interao com
a magnetosfera joviana
Zonas de atividade
Determinar a composio de outros materiais alm
recentes de Europa
do gelo, especialmente em relao habitabilidade

Buscar gua lquida abaixo dos principais locais de


atividade
Estudar os processos ativos recentes
Calisto como um Caracterizar as camadas exteriores, incluindo o
remanescente do antigo oceano
Sistema Joviano Determinar a composio de outros materiais alm
do gelo
Estudar atividades do passado da lua

Explorar o Sistema Joviano como um modelo de gigantes gasosos

A atmosfera joviana Caracterizar a dinmica e a circulao atmosfrica


Caracterizar a composio e a qumica atmosfrica
Caracterizar a estrutura atmosfrica vertical
A magnetosfera joviana Caracterizar a magnetosfera como um rotor mag-
ntico veloz
Caracterizar a magnetosfera como um acelerador
gigante
Compreender as luas como fontes e depsitos de
plasma magnetosfrico
Os satlites jovianos e os Estudar a atividade de Io e a composio da su-
sistemas de anis perfcie
Estudar as principais caractersticas dos anis e sa-
tlites menores
Fonte: Adaptado de esa/sre, 2014

271
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

embora no haja planos de realizar voos por Io, essa lua tambm ser
estudada durante a passagem por Jpiter (esa/sre, 2014).

Concluso
Embora possuam uma classificao comum, os satlites de-
nominados luas geladas tm caractersticas distintas e devem ser
estudados sempre levando isso em considerao. Entre eles en-
contra-se Io, um dos corpos com menos gua em nosso Sistema
Solar e intenso vulcanismo, onde a vida como a conhecemos na
Terra seria extremamente difcil, e tambm Ganimedes e Europa,
dois dos ambientes com maior possibilidade de conter vida fora da
Terra e cujo estudo ajudaria a compreender melhor como a vida
surgiu em nosso prprio planeta. Dessa forma, ao planejar mis-
ses para estudar alguma das luas geladas, imprescindvel definir
quais sero os objetos de estudo e, no caso da busca por vida, qual
tipo de vida est sendo procurado.

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276
BUSCA DE VIDA ALM
DO SISTEMA SOLAR
Captulo 13
Douglas Galante, Rosimar Alves do Rosrio
e Marcio G. B. de Avellar

A busca por vida extraterrestre pode se estender muito alm de


nosso Sistema Solar. Apenas na Via Lctea, h centenas de bilhes
de estrelas, cada uma podendo ter um sistema planetrio prprio.
Assim sendo, a probabilidade de que alguns desses inumerveis
mundos tenham condies que os faam habitveis (ao menos,
pelo que se conhece com base na vida na Terra) pode ser muito
grande. A partir dessa perspectiva, muitos astrnomos se voltaram
para um dos maiores desafios cientficos da atualidade: detectar
planetas orbitando outras estrelas, distantes muitos anos-luz da
Terra, os chamados exoplanetas, para entender suas condies
ambientais e procurar por sinais de vida.
H sculos, a astronomia tem estudado a distribuio de es-
trelas em nosso Universo, pois elas so relativamente simples de
detectar, uma vez que produzem luz prpria devido s reaes
nucleares que ocorrem em seu interior. Dessa maneira, podem ser

277
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

observadas a olho nu nos comprimentos de onda visveis aos hu-


manos e por telescpios em uma ampla faixa espectral, do rdio
aos raios X. Planetas, ao contrrio, no tm massa (e, portanto,
fora gravitacional) suficiente para dar incio s reaes nucleares
como as estrelas. Assim, so muito mais difceis de observar, uma
vez que apenas refletem uma frao da luz de suas estrelas-me.
Pelo mesmo motivo, at poucos anos atrs no conhecamos mui-
tos planetas fora do Sistema Solar e nem sequer sabamos ao certo
se planetas eram objetos comuns no Universo, ou um fenmeno
raro de nossa vizinhana.
Essa viso est mudando nas ltimas dcadas com a desco-
berta de quase mil exoplanetas, um nmero que deve continuar
crescendo graas aos rpidos avanos na tecnologia de deteco.
A deteco dos planetas apenas o primeiro passo de um lon-
go caminho at a descoberta de vida. Ela deve ser seguida pelo es-
tudo das caractersticas do planeta, comeando pelas mais simples
de serem medidas, como tamanho, massa e distncia da estrela,
para depois seguirmos para as mais complexas, como temperatu-
ra, presena de oceanos e atmosfera, composio qumica e, pos-
sivelmente, a alterao do planeta pela presena de vida, de uma
maneira que possamos medir.
No estgio atual da tecnologia de deteco, somos capazes
de medir as caractersticas mais simples dos planetas, e apenas
recentemente comeamos a desvendar sua composio qumica
e verificar a presena de atmosferas, mas ainda um longo trabalho
necessrio para podermos dizer com segurana se existe ou no
alguma forma de vida fora do Sistema Solar.

Primeiro passo: deteco


Como planetas no produzem luz, apenas refletindo a prove-
niente de suas estrelas hospedeiras, sua deteco muito difcil.
Por exemplo, nos comprimentos de onda da luz visvel (ou seja, da
cor vermelha at o violeta), a luz que chega at ns de uma estrela
tpica cerca de 1 bilho de vezes mais intensa que a refletida por
um planeta em sua rbita. Como, do ponto de vista astronmico,

278
Busca de vida alm do Sistema Solar

o planeta est muito perto da estrela, sua luz acaba sendo ofus-
cada. como tentarmos enxergar um pequeno mosquito voando
ao redor de uma potente lmpada; aos nossos olhos ele se torna
praticamente invisvel. Apenas recentemente esse problema come-
ou a ser resolvido, usando tcnicas alternativas e indiretas para
a deteco do planeta. A possibilidade de imagens diretas de ou-
tros mundos, alm do Sistema Solar, ainda demorar mais tempo,
necessitando mais desenvolvimento tecnolgico, em especial de
telescpios espaciais mais potentes.

Velocidade radial
o mtodo que tem descoberto mais exoplanetas at o
momento e se baseia em uma medida indireta dos efeitos do pla-
neta sobre a estrela. Em vez de tentarmos enxergar diretamente o
planeta, podemos perceber sua presena pela forma como sua gra-
vidade e movimento alteram a velocidade da estrela (ou estrelas,
se for um sistema mltiplo).
Essa tcnica chamada de mtodo da velocidade radial,
pois o que medimos so variaes na velocidade com que a estre-
la se move em relao ao observador na Terra. As estrelas, como o
prprio Sol, no esto paradas no centro de seus sistemas planet-
rios (como seria em um modelo absolutamente heliocntrico); na
verdade, todos os corpos de um sistema planetrio orbitam o cen-
tro de massa daquele conjunto de corpos, e esse ponto no espao
muitas vezes no coincide com a posio geomtrica da estrela.
Portanto, estrelas tambm descrevem rbitas elpticas em seus sis-
temas (com um raio orbital normalmente muito pequeno, claro),
ou seja, observando-as da Terra, elas se moveriam muito pouco, de
um lado para o outro e de frente para trs (Figura 13.1).
Usando mtodos espectroscpicos de grande preciso, pode-
-se medir a velocidade com que a estrela se aproxima e se afasta
de ns nesse movimento elptico causado pela presena dos pla-
netas. Essa medida possvel devido ao efeito Doppler, no qual
a radiao tem seus comprimentos de onda comprimidos quan-
do a fonte (estrela) se aproxima do observador (ns), e estendido

279
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

quando ela se afasta, de maneira muito parecida com um radar de


velocidade usado no controle de trfego.
Esses efeitos so chamados de desvio para o vermelho (ou
redshift, quando a luz deslocada para comprimentos de onda
maior mais prximos do vermelho) e desvio para o azul (ou
blueshift, quando a luz deslocada para comprimentos de onda
menor mais prximos do azul). Medindo a intensidade da com-
presso do comprimento de onda da luz (ou o aumento de sua fre-
quncia, o que equivalente), possvel saber a velocidade com
que a fonte dessa luz se aproxima e se afasta de ns.

Variao de frequncia
Doppler devido
oscilao estelar

Figura 13.1. Deteco da oscilao da estrela causada pela presena de um


ou mais planetas por efeito Doppler. Fonte: IAG

Os instrumentos de maior preciso do mundo, como o espec-


trmetro Harps (High Accuracy Radial Velocity Planet Searcher)
so capazes de medir a velocidade de oscilao de uma estrela
a anos-luz de distncia com preciso de cerca de 1m/s, a mesma
velocidade de uma pessoa caminhando, o que impressionante.
Esse efeito sutil, mas pode ser observado no espectro de
emisso atmico das estrelas, que gerado pela presena de dife-
rentes elementos qumicos misturados em seu gs. Conforme esses
tomos so aquecidos, eles emitem radiao com comprimentos

280
Busca de vida alm do Sistema Solar

de onda muito especficos, que so conhecidos por experimentos


em laboratrio. O deslocamento sutil dessas linhas com o tempo
proporcional velocidade das estrelas, e esta, por sua vez, de-
pende das caractersticas do(s) planeta(s) (massa, velocidade e raio
orbital etc). Dessa maneira, exoplanetas podem ser detectados e
algumas de suas caractersticas desvendadas.

Trnsitos
A segunda forma mais eficiente de deteco, at o momen-
to, por meio de trnsitos planetrios, tambm chamados de
eclipses ou ocultamentos. Observando um sistema planetrio
distante, s vezes as rbitas estaro perpendiculares a nossa ob-
servao, ou seja, os planetas se movimentariam em torno da
estrela, mas nunca frente dela, e s vezes as rbitas podem
estar no mesmo plano de observao nosso, ou seja, em algum
momento elas cruzariam a reta entre a estrela e o observador,
criando um efeito de eclipse.
Essa distribuio das rbitas dos sistemas de exoplanetas deve
ser completamente aleatria, portanto de se esperar que encon-
tremos todos os casos possveis pelo Universo, de planetas com-
pletamente alinhados at completamente perpendiculares a ns. A
tcnica de trnsito s possvel nos casos em que o planeta cruza
frente da estrela, mesmo que um pouco fora de alinhamento, o
que cria um limite para o nmero de observaes por essa tcni-
ca, que pode ser uma das mais importantes para o futuro, para a
caracterizao das atmosferas dos exoplanetas.
Ao cruzar a frente da estrela, o planeta causa uma diminui-
o de seu brilho (Figura 13.2). Considerando que os planetas
so muito pequenos em comparao com o tamanho da estrela, e
porque esto longe, a quantidade de luz da estrela que bloque-
ada muito pequena, no geral inferior a 1% do total emitido. Ao
contrrio do que acontece em um evento de eclipse total solar,
quando a Lua bloqueia completamente o disco do Sol, o even-
to de trnsito similar ao que ocorreu quando Mercrio passou
na frente de nossa estrela em novembro de 2006 praticamente

281
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

imperceptvel a olho nu. Ou seja, para detectar a diminuio do


brilho de estrelas causada por trnsito de exoplanetas neces-
srio que a estrela seja observada por longos perodos (para que
sejam confirmados vrios eventos de trnsito) com um telescpio
otimizado para realizar medidas fotomtricas (quantidade de luz
emitida pela estrela) de alta preciso.
Brilho

Tempo
Figura 13.2. Deteco de exoplaneta pela diminuio da luminosidade da
estrela durante o momento de trnsito. Fonte: IAG

As medidas de trnsito fornecem informaes sobre a r-


bita e o tamanho do planeta. Alm disso, durante o evento de
trnsito, pode ser possvel observar tambm a atmosfera do pla-
neta, caso ele tenha uma, o que ser discutido com mais deta-
lhe adiante.

Astrometria
A Astrometria uma das mais antigas reas da astronomia,
que se preocupa em medir a posio dos corpos celestes, para
diferentes objetivos. No passado, foi usada para compreender que
a Terra no estava no centro do Universo e dar provas teoria

282
Busca de vida alm do Sistema Solar

heliocntrica de Coprnico. Atualmente, por exemplo, permitiu


inferir que h um buraco negro no centro de nossa galxia pela
determinao do movimento das estrelas ao seu redor.
Como j foi comentado na seo sobre a tcnica de velocida-
de radial, a presena de planetas ao redor de uma estrela faz que
ela tenha um movimento prprio ao redor do centro de massa do
sistema. Quanto maior o planeta e mais prximo da estrela ele
estiver, mais pronunciado ser esse movimento (Figura 13.3).
Para se ter uma ideia da dificuldade de realizar essa medida,
no Sistema Solar, por exemplo, o Sol gira em torno de um centro
de massa em uma rbita com um raio aproximado de 700 mil
quilmetros, um efeito causado principalmente pela presena do
maior planeta do Sistema Solar, Jpiter. Pode parecer muito, mas
no em escalas astronmicas.
O prprio dimetro do Sol o dobro disso, cerca de 1,4 mi-
lho de quilmetros. Dessa maneira, o Sol apenas oscila em
torno do centro de massa, e essa oscilao que queremos de-
tectar. Se pensarmos que nosso intuito observar uma oscilao
da mesma amplitude que a do Sol a distncia da estrela mais
prxima (cerca de 4,5 anos-luz), teramos de usar um telescpio
com uma resoluo angular (o menor ngulo que o telescpio
consegue separar) de alguns milsimos de segundo de arco. Isso
seria o equivalente a conseguir enxergar uma moeda a uma dis-
tncia de mais de mil quilmetros! E se pensarmos que as estre-
las esto mais longe que 4,5 anos-luz, o problema s aumenta.
Tcnicas astromtricas desenvolvidas nos ltimos anos, como
as que equipam o telescpio espacial Gaia, da Agncia Espacial
Europeia (esa), so capazes de medir esses minsculos movimen-
tos oscilatrios das estrelas mais prximas, ajudando a dizer se
elas esto acompanhadas de planetas. O Gaia tem resoluo de
cerca de 20 milionsimos de segundo de arco, cerca de 100 vezes
melhor que o necessrio para detectar a movimentao do Sol,
permitindo verificar centenas ou milhares de estrelas com poss-
veis exoplanetas.

283
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Figura 13.3. Deteco de exoplanetas pelo movimento prprio da estrela


devido ao movimento e gravidade do planeta. Fonte: IAG

Microlentes
A tcnica de microlente gravitacional permite a deteco de
pequenos exoplanetas a grandes distncias, tipicamente at cerca
de 20 mil anos-luz, ou seja, metade do tamanho de nossa galxia,
enquanto a maioria das outras tcnicas, como velocidade radial,
trnsitos ou astrometria, mais sensvel nas vizinhanas solares, a
algumas dezenas ou centenas de anos-luz.
No evento de microlente, necessrio que duas estrelas es-
tejam alinhadas com a Terra, de maneira que o campo gravita-
cional da estrela intermediria atue causando uma deformao
no espao-tempo, que explicada completamente pela teoria da
Relatividade Geral (Figura 13.4). Essa deformao faz os raios de
luz da primeira estrela (fonte) se curvarem, criando um efeito de
lente convergente para o observador na Terra, ou seja, criando uma
lupa gravitacional que amplia e estende a imagem da estrela ao
fundo. Em geral, o evento de microlente gera uma imagem em for-
ma de anel, conhecida como anel de Einstein. Se o alinhamento
perfeito e a geometria dos objetos tambm, o anel perfeita-
mente circular. Qualquer desvio dessa perfeio gera defeitos no
anel, que podem ser usados para estudar os detalhes do sistema,

284
Busca de vida alm do Sistema Solar

como o tamanho da estrela fonte, ou a presena de planetas na


estrela intermediria.

Exoplaneta
Fonte

Lentes

Terra
Figura 13.4. Deteco de exoplanetas durante o evento relativstico de
microlente gravitacional. Fonte: IAG

O fenmeno de magnificao durante o evento de mi-


crolente pode ser to intenso que a chance de observar um
planeta do tamanho de Jpiter, por exemplo, chega a quase
100%, mesmo usando um telescpio pequeno e em ambiente
urbano, com poluio luminosa. O problema do evento de
microlente que acontece de maneira aleatria, imprevisvel
e, na maioria das vezes, apenas uma vez para cada estrela,
j que depende de um alinhamento adequado que tem uma
probabilidade muito baixa de acontecer. Por isso, muitas das
buscas por exoplanetas usando essa tcnica se concentram
em regies do cu densamente povoadas por estrelas, como
regies centrais da galxia, onde a chance do alinhamento
fortuito acontecer aumenta. Dessa maneira, essa tcnica pode
ser usada como aviso da existncia de planetas em torno de
determinada estrela, mas as deteces devem ser confirmadas
posteriormente por outras tcnicas reprodutveis, como velo-
cidade radial ou trnsitos.

285
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Deteco direta
Apesar de muitos acharem que os cientistas esto observando
diretamente e tirando imagens de outros planetas, essa a tcnica
ainda menos usada e mais difcil para detectar exoplanetas. So
poucos os casos em que ela foi bem-sucedida e, mesmo assim,
foi usada aps os planetas terem sido descobertos pelas tcnicas
descritas anteriormente.
Alm dos planetas serem pequenos comparados s estrelas
que orbitam, sua luminosidade muito inferior, pois causada
pela reflexo da luz estelar. Na regio do visvel, onde a maioria
das observaes feita, essa diferena de cerca de 1 para 1 bi-
lho, ou seja, a estrela basicamente ofusca a luz do planeta.
No infravermelho o problema um pouco menor, sendo o ofus-
camento de cerca de 1 para 1 milho, e nessa faixa espectral que a
maioria das observaes diretas feita (Figura 13.5). Mesmo assim,
necessrio abafar a luz da estrela de alguma maneira, o que pode ser
feito de maneira fsica, com uma mscara que cobre a estrela (cha-
mada corongrafo estelar) ou combinando a luz captada por dois
ou mais telescpios diferentes, por cancelamento interferomtrico.

Figura 13.5. Exoplaneta 2M1207b, o primeiro observado diretamente por


imageamento no infravermelho em 2004, no telescpio vlt eso / Chile, em
2004. Fonte: European Southern Observatory (eso)

286
Busca de vida alm do Sistema Solar

Alguns planetas e sistemas mltiplos puderam ser observados


dessa maneira, mas ainda estamos apenas no incio do desenvol-
vimento da tcnica, que depende de telescpios mais potentes,
especialmente operando no infravermelho. A prxima gerao
de telescpios gigantes j em construo, como o Thirty Meter
Telescope tmt no Hava, e o Extremely Large Telescope (elt) do
Observatrio Europeu Austral (eso) no Chile, com espelhos prim-
rios de cerca de 30 e 40 m de dimetro, respectivamente, iro
propiciar uma sensibilidade muito maior que os atuais telescpios,
de espelhos de 8 a 11 m, sendo inaugurados por volta de 2020.
Vale lembrar que o Brasil participa do consrcio do eso, sendo,
portanto, um dos futuros usurios do elt.
No espao, teremos o James Webb Space Telescope, que deve
substituir o Hubble em 2018, tambm otimizado para o infra-
vermelho, com um espelho de 6,5 m (comparados aos 2,4 m do
Hubble). O futuro guarda projetos ainda mais ambiciosos, com
telescpios terrestres chegando na casa dos 100 m de dimetro
e redes de telescpios espaciais ligados por interferometria, que
sero no apenas capazes de captar imagens de planetas do tama-
nho da Terra, mas tambm podero coletar dados dos espectros
das atmosferas desses mundos, o que ser a chave para enten-
dermos a qumica de suas atmosferas e, possivelmente, detectar a
presena de vida. Essa tecnologia para o estudo espectroscpico
de exoatmosferas j comea a dar seus primeiros resultados, com
a deteco de molculas simples (H2O, CO2 etc.) em exoplanetas
gigantes gasosos, mas no futuro ser possvel fazer o mesmo com
planetas rochosos, mais provveis de abrigar vida.

Segundo passo: caracterizao e deteco de


atividade biolgica
A distncia do planeta em relao a sua estrela hospedeira
fundamental para decidir se um planeta pode ou no ser habitvel.
Se o planeta estiver muito distante, ir receber pouca radiao,
tornando-se gelado. Se estiver muito prximo da estrela, pode ser
muito quente e sujeito a atividades estelares intensas e deletrias,

287
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

como os eventos de exploses estelares. Entre esses limites est o


que chamamos de Zona Habitvel (zh), definida com base na vida
conforme a conhecemos, ou seja, na vida que necessita de gua
lquida disponvel. Dessa maneira, a zona habitvel determinada
ao calcularmos os limites mximo e mnimo do raio orbital para
que o planeta tenha a temperatura correta que permita a presena
de gua lquida em sua superfcie.
Essa definio bastante simplista, pois sabemos que se o pla-
neta possuir uma atmosfera densa, pode ter temperaturas mais al-
tas do que o esperado, por efeito estufa, ou ainda, se estiver longe
do Sol, mas sujeito a foras gravitacionais intensas, como o caso
das luas Europa (de Jpiter) e Enclado (de Saturno), pode sofrer
um aquecimento interno pelas foras de mar gravitacionais, que
deformam o planeta ou Lua, e manter oceanos de gua lquida.
Apesar dessas outras possibilidades, a zh ainda uma forma de
delimitar nossas buscas de vida aos planetas mais promissores en-
contrados, uma vez que o nmero desses corpos celestes s tende
a aumentar com o tempo, e ser muito difcil fazer um estudo
aprofundado de todos eles.
Outro importante parmetro para caracterizar planetas seme-
lhantes Terra a densidade. A densidade terrestre de 5,5 g/cm3
e a de Vnus 5,2 g/cm3. Em geral, planetas com densidade alta,
semelhantes da Terra e Vnus, so rochosos e, por isso, poten-
cialmente habitveis (novamente, para a vida conforme a conhe-
cemos). Para comparao, a densidade do gigante gasoso Netuno
de 1,6 g/cm3. Com as tcnicas que descrevemos possvel deter-
minar a massa e o raio do planeta (portanto, a densidade), alm de
algumas caractersticas da atmosfera superior. Isso no suficien-
te, no entanto, para determinar se o planeta rochoso ou gasoso,
pois uma atmosfera estendida pode bloquear parte da luz estelar
e aumentar artificialmente o raio do planeta, e o estudo espectros-
cpico se torna fundamental.
Com mtodos espectroscpicos, medindo a absoro da luz
da estrela pela atmosfera do planeta, em seus diferentes compri-
mentos de onda, possvel dizer qual a sua composio qumica.

288
Busca de vida alm do Sistema Solar

Isso acontece porque diferentes molculas, como oxignio, oz-


nio, gua, nitrognio, dixido de carbono, entre outras, absorvem
a luz de maneira distinta, produzindo caractersticas nicas no
espectro de absoro dessas atmosferas, que podem ser usadas
como assinaturas qumicas.
Se formos capazes de detectar esses gases em outros planetas,
usando o que sabemos sobre a vida da Terra, e pudermos identifi-
car quais deles so exclusivamente produzidos por atividade bio-
lgica, ento poderemos usar essas observaes para dizer, com
certo grau de certeza, que pode haver vida naquele planeta.
A Terra, por exemplo, possui caractersticas espectrais muito
fortes de molculas como O2, O3, CH4 e N2O. Outros dois gases
importantes para o desenvolvimento da vida so vapor de gua e
CO2, que funcionam como gases estufa. Vrios desses gases so
produzidos por processos biolgicos, como o O2, que advm da
fotossntese: antes do estabelecimento desse processo biolgico,
a atmosfera da Terra era basicamente anxica. Essas molculas,
portanto, podem ser chamadas de bioassinaturas para o caso da
Terra e sua presena na atmosfera dinmica, variando com o
tempo oxignio e oznio se tornaram abundantes aps cerca
de 2 bilhes de anos da formao da Terra, afetando de maneira
drstica o espectro; quando a Terra tinha cerca de 2,7 bilhes de
anos, plantas cobriram a superfcie, gerando o chamado limite do
vermelho, pela forte absoro da clorofila nessa parte do espec-
tro. Na Figura 13.6, mostramos o espectro simulado da Terra em
diferentes pocas geolgicas e podemos esperar variedades desse
tipo para futuras observaes de exoplanetas.
importante notar que mesmo que detectemos essas possveis
bioassinaturas, elas, por si s, no so necessariamente indicativas
de atividade biolgica, pois podem decorrer de processos abiti-
cos (sem a participao de organismos vivos), como eventos vul-
cnicos, tectnicos, geolgicos etc. Dessa maneira, no se pode
dizer de maneira absoluta que a deteco de uma determinada
molcula na atmosfera de um planeta seja um indicativo bvio de
vida extraterrestre.

289
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Figura 13.6. Espectros simulados em computador para a Terra, em


diferentes idades, mostrando que o espectro da luz refletida por um
planeta varia com o tempo, refletindo a evoluo biolgica e geolgica.
Fonte: Adaptado de Kaltenegger, Traub e Jucks (2007)

290
Busca de vida alm do Sistema Solar

Em 2009, essa controvrsia ocorreu para Marte, com uma de-


teco de produo de metano (um gs produzido principalmente
por organismos vivos, no caso terrestre), em seu vero equatorial.
Uma das possibilidades levantadas que, com o aumento da tem-
peratura de sua superfcie nessa estao do ano (podendo chegar
prximo aos 20 oC), o gelo no subsolo poderia descongelar, aumen-
tando a atividade de hipotticos micro-organismos metanognicos,
que liberariam esse gs na atmosfera. No entanto, rapidamente hi-
pteses abiticas alternativas, principalmente por reaes da gua
com alguns minerais, no processo chamado serpentinizao, fo-
ram mostradas como mais provveis para explicar o metano.
O que aprendemos que temos de ser muito cuidadosos em
ligar deteces de molculas com a atividade de vida, por mais
bvio que ela nos possa parecer, pois as condies de outros pla-
netas podem ser muito diferentes das existentes na Terra.
Dessa maneira, apesar de os mtodos espectroscpicos serem
a maneira mais provvel (e talvez a nica) de encontrarmos vida
em exoplanetas, a interpretao desses dados deve ser muito cuida-
dosa, exigindo que conheamos muito mais sobre como a qumica
atmosfrica pode ser alterada por diferentes processos planetrios,
como sua interao com processos geolgicos, vulcnicos, tectni-
cos, fotoqumicos, hidrolgicos e, eventualmente, biolgicos.
Avanos nesse tipo de estudo, impulsionados pelo trabalho
multi e interdisciplinar da astrobiologia em nosso prprio planeta,
podem trazer benefcios para o conhecimento do intrincado siste-
ma planetrio existente na Terra praticamente todos os eventos,
todas as reaes qumicas, dependem dos diferentes componentes
de nosso planeta, de maneira integrada e dinmica, incluindo a
prpria atividade humana e suas consequncias, como o aqueci-
mento global e as alteraes qumicas atmosfricas (como a des-
truio da camada de oznio).

Referncia
Kaltenegger, L.; Traub, W. A.; Jucks, K. W. Spectral evolution of an Earth-
like planet. The Astrophysical Journal, 658, p. 598-616, 2007.

291
O SETI E O TAMANHO
DO PALHEIRO...
Otimismo e pessimismo na busca de nosso alter ego extraterrestre

Captulo 14
Jorge A. Quillfeldt

Dedico ao amigo Eduardo D. Barcelos


a vida se esvai, as ideias revivem sem parar

A questo da existncia ou no da vida extraterrestre tomou


novo flego nas duas ltimas dcadas. A prpria Nasa reformulou
seu programa geral de metas cientficas, estruturando-o em trs ei-
xos astrobiolgicos o chamado Nasa Astrobiology Roadmap. So
trs perguntas bsicas: Como a vida surgiu e evoluiu? Existe vida
em outra parte do Universo? Qual o futuro da vida na Terra e alm?
A astrobiologia, que tambm atende pelos nomes de Exobiologia,
Xenobiologia, Cosmobiologia ou Bioastronomia, um campo
multidisciplinar com diferentes reas de investigao que visam
comprovar aquilo que chamamos de hiptese exobiolgica (ou
astrobiolgica) a hiptese de que existiria vida extraterrestre e/ou
de origem independente daquela que conhecemos.

293
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

A segunda parte da definio menos conhecida, mas no


menos importante. A rigor, a vida pode ter surgido mais de uma
vez em nosso planeta e, se existissem remanescentes dessa outra
linhagem, isso j responderia a pergunta sobre se h outras for-
mas de vida no Universo. Toda a vida terrestre conhecida, quan-
do estudada em nvel molecular, caracteriza-se por uma notvel
unidade e homogeneidade estrutural somente explicvel pelo fato
de todos descendermos de ancestrais comuns no passado remoto.
Essa hipottica linhagem independente coexistiria mesclada com
nossa biota padro, talvez at mesmo compartilhando os mes-
mos nichos ecolgicos, apenas no tendo sido ainda detectada.
Apesar de j conhecermos e termos identificado quase duas mi-
lhes de espcies vivas na Terra (todas com seu nome cientfico),
apenas algumas dezenas so conhecidas em nvel celular e mole-
cular, os chamados organismos-modelo: hipoteticamente, alguns
dos demais organismos conhecidos poderiam ter, de fato, origem
distinta, constituindo o que se convencionou chamar de Biosfera
Sombra. A relevncia cientfica de um achado desses no seria
menor, apesar de seu carter evidentemente menos glamouroso.
A astrobiologia vive momentos gloriosos hoje em dia, no s
com o avano da biologia de micro-organismos no qual o estudo
de extremfilos desponta como o campo mais promissor, pois o
tipo de vida que mais se espera encontrar alhures mas tambm
com o explosivo aumento do nmero de exoplanetas com dimen-
ses e caractersticas similares s terrestres, detectados atravs de
telescpios espaciais. As expectativas se ampliaram com as duas
misses mais recentes ao planeta vermelho, uma norte-americana
o laboratrio mvel Curiosity (Mars Science Lab), o maior e mais
completo laboratrio cientfico j levado para fora da Terra, que
pousou em 2012 e uma indiana o mdulo orbital Mangalyaan,
que chegou em 2014 para monitorar a superfcie e estudar a at-
mosfera. Em setembro de 2015, a Nasa anunciou a comprova-
o, pela sonda orbital mro, de gua lquida corrente (salgada)
na superfcie do planeta, mais uma notcia alvissareira na busca
de vida atual ou pregressa em Marte. Parece inacreditvel, mas

294
o SETI e o tamanho do palheiro...

temos, neste momento, nada menos que sete sondas operando em


Marte simultaneamente cinco em rbita e duas na superfcie (a
sonda Opportunity de 2004 ainda est operacional) e espera-se
muitos achados importantes, especialmente sobre a habitabilidade
de nosso planeta-irmo. Marte , sem dvida, o maior laboratrio
exobiolgico de que dispomos no Sistema Solar.
Tantas novidades pululando tendem a ofuscar o fato de que essa
rea da cincia iniciou sua jornada cientfica h mais de cinquenta
anos, em uma poca em que tanto a biologia (dna) quanto a astro-
nutica (Sputnik) ainda engatinhavam. A suposio de que poderia
haver vida extraterrestre j tinha uma longa histria, mas se resumia
a uma coleo de palpites bastante pobres do ponto de vista cientfi-
co. Faltava uma formulao que fosse testvel experimentalmente e,
portanto, refutvel, como qualquer boa hiptese cientfica.
Foi apenas em setembro de 1959 que apareceu a primeira
formulao realmente cientfica da hiptese exobiolgica, em
um artigo publicado por Cocconi e Morrison na prestigiosa revista
Nature. O argumento concatenava algumas suposies prelimina-
res: Se a vida possvel e surgiu em outros planetas, por que no
haveria tambm vida inteligente? E, se h vida inteligente, por que
no poderia ter se desenvolvido at o nvel de civilizao tecno-
lgica, possuindo conhecimentos similares aos que ns j tnha-
mos? Se isso for verdade, poderamos contat-la imediatamente
empregando sinais de rdio, uma vez que a radioastronomia j
estava bem desenvolvida naquele momento. Como nenhum acha-
do acidental tinha surgido at ento, o radiotelescpio despontava
como a melhor ferramenta para se testar a hiptese exobiolgica.
Surgia, assim, o SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence), sigla
em ingls para Busca por Inteligncias Extraterrestres (biet).
O SETI um ramo da astrobiologia dedicado busca de mun-
dos habitados mediante a deteco de aes tecnolgicas delibera-
damente executadas por organismos extraterrestres que supostamen-
te l habitem. Essa definio, elaborada por Jill Tarter, diretora do
Center for SETI Research e pioneira na rea, amplifica e esclarece o
enunciado tradicional, mais obscuro, que fala apenas em detectar

295
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

inteligncias extraterrestres. Como rea de investigao, emergiu so-


bretudo entre astrnomos e fsicos, cativando pouqussimos pesqui-
sadores da rea biolgica, at porque o conhecimento da poca era
limitado e predominava a ideia de que a vida era de natureza muito
frgil e fruto de uma sucesso pouco provvel de acidentes: com a
descoberta dos micro-organismos extremfilos nos anos 1970, o ce-
nrio mudou a vida no era algo assim to delicado e raro, pelo me-
nos no nvel unicelular. A astrobiologia tomou novo flego, e o rumo
que hoje a caracteriza, talvez por agora dispor de objeto de estudo
mais palpvel e menos especulativo, afastou-se do enfoque SETI da
hiptese exobiolgica, inclusive rejeitando-o com certa veemncia.
O programa do SETI consistia, portanto, em procurar evidn-
cias de domnio de determinadas tecnologias empregadas in-
tencionalmente, cuja expresso (sinais, artefatos etc.) fosse cla-
ramente distinguvel de eventos naturais conhecidos. A rigor, tais
evidncias poderiam assumir trs formas: visita direta; descoberta
de artefato tecnolgico presente em algum lugar no Sistema Solar
ou; recepo de sinais de rdio contendo mensagens codificadas.
As duas primeiras alternativas implicam emprego de viagens inte-
restelares, o que, de acordo com o conhecimento cientfico atual,
no parece valer muito a pena, especialmente no caso de voos
tripulados seriam viagens longas demais para serem justificadas
sociedade que as promovesse, mas talvez fossem plausveis com
o emprego, por exemplo, de sondas automticas, especialmen-
te as do tipo autorreplicante. So possibilidades fascinantes que,
entretanto, flertam com a fico cientfica ou se confundem com
engodos pseudocientficos como a ufologia. A realidade, porm,
que, at o momento, no surgiu nenhuma comprovao material
de qualquer uma dessas trs possibilidades. Mesmo a radioescuta
sistemtica definitivamente a menos sensacional das trs alter-
nativas no nos trouxe qualquer prova em mais de cinquenta e
cinco anos de esforo.
Qual a razo desse fracasso? Para entendermos isso e saber
se se trata realmente de um fracasso necessrio termos uma
boa noo das reais dificuldades envolvidas na empreitada.

296
o SETI e o tamanho do palheiro...

Combinando o jogo com os extraterrestres...


O artigo pioneiro da Nature (Cocconi; Morrison, 1959) pro-
punha introduzir uma radioescuta com os radiotelescpios j dis-
ponveis como os mostrados na Figura 14.1 para a deteco
de possveis emisses artificiais, talvez informativas, oriundas de
hipotticas civilizaes extraterrestres, e dedicou-se principalmen-
te a discutir a primeira grande dificuldade tcnica: em que frequ-
ncia devemos escutar?

Figura 14.1. Radiotelescpios usados para detectar emisses de hipotticas


civilizaes extraterrestres. Fonte:Graeme L. White& Glen Cozens (James
Cook University)

O espectro do rdio/micro-ondas consiste das mesmas ondas


eletromagnticas que constituem a luz visvel, o ultravioleta, o in-
fravermelho e os raios X, diferindo apenas na janela de frequncias/
comprimentos de onda, que, no caso, situa-se entre os 3 kHz e os
300 GHz (correspondentes a comprimentos de onda que vo desde
o milmetro at o quilmetro). Afora o problema do quanto passa ou
no atravs da atmosfera (Figura 14.2), a captao das ondas de rdio
tem outra limitao tcnica fundamental: a tecnologia que dispomos

297
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

permite captao de sinais de rdio apenas em frequncias especfi-


cas, uma de cada vez, portanto a escolha prvia da frequncia cer-
ta algo decisivo. O desenvolvimento do receptor multicanal, que
detecta simultaneamente muitas diferentes frequncias, minimizou
essa dificuldade, mas, mesmo assim, o espectro do rdio extraordi-
nariamente amplo, sendo difcil cobrir tantas frequncias. O SETI, em
mais de 100 projetos de escuta durante dcadas, nunca conseguiu
cobrir todo o espectro das ondas de rdio. A dificuldade anloga
de se adivinhar o nmero do celular de algum ao acaso em uma
cidade como So Paulo: a nica forma de acertar em situaes como
essa seria combinar previamente com os adversrios, parodiando
a genial tirada de Garrincha na Copa de 1958. Como isso no pode
ser feito, a alternativa adotada foi a de escolher frequncias iguais
s de certas emisses naturais onipresentes e torcer para que os ets
tenham a mesma ideia.
E foi exatamente isso que sugeriram Cocconi e Morrison na-
quele trabalho: a frequncia mais lgica para essa prospeco se-
ria ao redor dos 1420 MHz, que corresponde linha de emisso
de 21 cm do hidrognio neutro, a emisso de rdio mais comum
no Universo, j que o tomo mais abundante que existe. A su-
posio (ou esperana) que tal fato cientfico seria do conheci-
mento de qualquer civilizao tecnolgica que estivesse dando
seus primeiros passos na radioastronomia. Ainda seria um chute,
claro, mas pelo menos seria um chute informado, e j seria um
comeo. , de fato, a opo mais explorada at hoje nos diversos
projetos do SETI j realizados, inclusive o extenso SETI@home (ver
mais adiante).
Outra opo muito explorada a frequncia apelidada de bu-
raco dgua (Figura 14.2) a janela entre a emisso do hidrognio
(H) e a da hidroxila (OH), centrada nos 1.720 MHz: essa metfora
alude aos escassos bebedouros que existem na savana africana, na
qual diferentes espcies, at mesmo predador e presa, se encon-
tram para beber em regime de trgua. Sinais nesta janela sugeririam
que compartilhamos certos conhecimentos fundamentais, como a
noo de que a gua uma molcula-chave para a vida.

298
o SETI e o tamanho do palheiro...

Comprimento de onda (centmetros)

Janela Observacional das Micro-ondas


Temperatura de Rudo (graus Kevin)

100
H 2O
O2 O2

Absoro
Atmosfrica
O Buraco
de e

dgua
Emis ns inter
l~
etro
so

H OH
100 H 2O
Sinc setelare
roto
e
n
s

Limite
Quntico
Radiao csmica
de fundo de 3 K
1
0.1 1 10 100

Figura 14.2. A frequncia buraco dgua. Fonte: Adaptado de Sky &


Telescope. Usado com permisso.

O referido artigo encerrava com um comentrio realista, mas


bastante provocador: a probabilidade de sucesso difcil de ser
estimada: mas se nunca buscarmos, as chances de sucesso sero
nulas. Em abril de 1960, Frank Drake iniciava (independente-
mente) o Projeto Ozma, o primeiro teste de radioescuta de duas
estrelas ento tidas como promissoras Epsilon Eridani e Tau Ceti
no Observatrio Nacional de Radioastronomia em Green Bank,
Virgnia (eua).

Escolhendo o mensageiro
Alguns podem se perguntar, e com razo, por que escutar
em frequncias do rdio j que existem tantos tipos de ondas ele-
tromagnticas? As razes por trs dessa opo so essencialmente
de natureza prtica. Emisses intencionais de sinais, para serem
teis, precisam ter certas caractersticas bsicas: devem ser fceis e
baratas de produzir (exigir pouca energia); ter a maior velocidade
possvel; no ser muito absorvidas no caminho e poder dirigir-se

299
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

diretamente para onde foram apontadas. Os dois fenmenos fsi-


cos capazes de portar informaes nessas condies seriam on-
das eletromagnticas e feixes de partculas subatmicas, mas essa
ltima opo inadequada, pois partculas tm massa, e o custo
energtico de aceler-las seria imenso, alm de serem facilmente
absorvveis no caminho (ou defletidas por campos magnticos es-
telares, no caso de partculas carregadas). J ftons, que so quan-
ta de radiao eletromagntica, so ideais por no possurem mas-
sa, por se propagarem velocidade da luz a mxima velocidade
no Universo conhecido e serem produzidas com baixo custo
energtico: todas as vantagens acima reunidas!
O prximo passo a se levar em conta seria a atmosfera, prin-
cipal obstculo interposto entre a fonte e ns: nossa capa gasosa
transparente apenas para a luz visvel e boa parte das micro-ondas/
rdio e radar, absorvendo quase todo o resto e deixando passar
apenas uma pequena frao dos comprimentos de infravermelho
e ultravioleta (raios X e gama so inteiramente retidos na alta at-
mosfera, para nossa sorte!). Mais uma vez desponta o rdio como
janela de frequncias de livre trnsito, entre os diferentes com-
primentos de onda possveis do espectro eletromagntico.
Emissores de ondas eletromagnticas podem ser de dois tipos
omnidirecionais ou dirigidos. Os primeiros propagam-se em todas
as direes produzindo uma esfera que se expande, mas, por causa
disso, a potncia do sinal chega cada vez menor aos alvos, conforme
a distncia percorrida P cai com o inverso do quadrado da distn-
cia. Emissores dirigidos, por outro lado, conseguem apontar um feixe
relativamente colimado em uma direo especfica por exemplo,
s vizinhanas de uma estrela que tenha planetas potencialmente
habitados, concentrando toda energia apenas naquela seo angular
do cu.
Uma forma melhor ainda de garantir a direcionalidade do sinal
e, ao mesmo tempo, evitar grandes perdas por absoro pela ma-
tria interestelar seria empregar feixes colimados de luz coerente,
escolhendo radiao eletromagntica com comprimentos de onda
dentro da janela para a qual nossa atmosfera transparente. Ou

300
o SETI e o tamanho do palheiro...

seja, empregar sinais codificados de laser seria algo prximo do


ideal. Essa sugesto, alis, foi feita em 1961 por um dos inventores
da tecnologia, Charles Townes. O uso do laser traz mais uma van-
tagem para determinar a origem do sinal: podemos produzir e de-
tectar pulsos muito rpidos, da ordem de nanossegundos, e como
no se conhece nenhum processo natural capaz de produzi-los,
saberemos que seriam artificiais. Por essa razo, a Oseti (Optical
SETI) uma das vertentes atualmente mais desenvolvidas do SETI,
e explora ainda outra vantagem tcnica do laser luminoso, que o
fato de detectores nessa faixa do espectro capturarem e analisarem
simultaneamente muitos comprimentos de onda diferentes. Na
recepo de rdio, como vimos, temos a limitao de sintonizar
uma frequncia/comprimento de onda o canal ou estao
de rdio por vez, o que torna o processo mais caro, complexo e
demorado, se o que queremos varrer um espectro que, como se
no bastasse, muito mais amplo que o da luz visvel.
Com tantas dificuldades, sobrevm um certo pessimismo, e
natural que nos perguntemos de onde os primeiros promotores do
SETI tiravam tanta motivao?

Fermi, Drake e Brin: quo otimistas podemos ser?


Mesmo antes do SETI ter surgido como cincia, j havia crti-
cas ao suposto exagero de se supor a existncia de civilizaes tec-
nolgicas extraterrestres. Em 1950, o notvel fsico Enrico Fermi,
em um almoo com colegas em Los Alamos, discutia um cartum
publicado na New Yorker que brincava com a possibilidade de
ets serem os responsveis pelo recente sumio de latas de lixo na
cidade. A conversa girava em torno de extraterrestres e da possibi-
lidade de naves viajando mais rpido que a luz, quando Fermi, do
nada, explodiu com uma pergunta: Se o Universo est fervilhando
de aliengenas, ento onde est todo mundo? A consternao
foi geral e, de certo modo, a pergunta repercute at hoje. De fato,
se existisse vida inteligente e tecnolgica em outros planetas, e se
fosse mais antiga que ns, no existiriam sinais muito evidentes
de sua existncia? Sejam eles sinais de rdio, visitas de artefatos

301
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

automticos ou tripulados, ou mesmo evidncias astronmicas de


astroengenharia em escalas inconcebveis para ns: apontaramos
o telescpio para uma determinada regio e avistaramos o equiva-
lente csmico de letreiros luminosos ou construes gigantescas?
Nada disso foi visto at hoje, no custa lembrar. A pergunta era
pertinente, e caia como um balde de gua fria nos mais otimis-
tas, e ficou conhecida como o clebre Paradoxo de Fermi.
Mas os otimistas nunca se deram por derrotados e tenta-
ram, mesmo sem provas, estimar o nmero possvel de civiliza-
es existentes neste momento... Porm, diante das vertiginosas
distncias que separam as estrelas e o limite fsico representado
pela velocidade da luz, a expresso neste momento no sig-
nifica muita coisa, pois, uma vez que no podemos nos comu-
nicar instantaneamente, qualquer sinal que recebermos ser ne-
cessariamente oriundo do passado e pode inclusive ser bastante
remoto. Voltaremos a esse ponto na prxima seo, mas antes
examinemos a Equao de Drake (ou Equao de Green Bank),
conhecido paradigma do SETI que pretende estimar o nmero
de civilizaes presentes em um dado momento na galxia e
que seriam, de algum modo, detectveis. Essa equao estima a
probabilidade de vida inteligente civilizada/tecnolgica partindo
do nmero de estrelas com planetas em que a vida teria surgido
e fracionando-o sucessivamente, segundo chutes inteligentes
para cada fator considerado, at chegar a um determinado valor.
A expresso tem o seguinte aspecto:

N = R* . fp . ne . f . fi . fc . L

Cujas variveis so:


N = nmero de civilizaes em nossa galxia com a qual a comu-
nicao seria possvel hoje;

R* = taxa mdia de formao de estrelas por ano em nossa galxia;

fp = frao dessas estrelas que possuem planetas;

302
o SETI e o tamanho do palheiro...

ne = nmero mdio desses planetas que so do tipo terrestre e se


localizam na zona de habitabilidade (com temperaturas que per-
mitem gua no estado lquido);

f = frao do nmero acima na qual efetivamente surgiu vida em


algum momento;

fi = frao do nmero acima na qual efetivamente emergiu vida


inteligente;

fc = frao do nmero acima na qual efetivamente se desenvolveu


tecnologia capaz de emitir sinais detectveis do espao;

L = perodo durante o qual essa civilizao permanece emitindo


sinais detectveis no espao, no importando a causa.

importante dizer que, apesar de seu aspecto imponente, essa


expresso matemtica no uma equao matemtica propria-
mente dita, nem tem o poder preditivo de um verdadeiro modelo
terico. Frank Drake a criou apenas como um tipo elegante de
agenda para as discusses que ocorreriam no primeiro encontro
do SETI realizado em 1961, em Green Bank, reunindo um peque-
no, porm seleto grupo de colegas que se autointitulava A ordem
do golfinho. No tinha a pretenso que seus crticos (e alguns
divulgadores menos informados) pretenderam conferir-lhe.
Na poca, apenas um dos fatores da Equao de Drake po-
dia ser empiricamente estimado, R*. Hoje sabemos alguma coisa
sobre exoplanetas e podemos fazer estimativas de fP e ne, mas os
quatro ltimos fatores da equao continuam sendo um completo
mistrio, com exceo talvez do L (veja prxima seo). Como
calcular f quando conhecemos apenas um planeta com vida, o
nosso? Da ao surgimento de inteligncia e disso emergncia de
civilizaes tecnolgicas vo outros saltos enormes. Desse modo,
as lacunas conceituais acabam preenchidas por meras conjeturas
individuais, subjetivas, que dizem mais sobre nossas motivaes

303
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

pessoais otimistas ou pessimistas do que da realidade. Por isso


o resultado do clculo varia de zero (ou menos) at 6 ordens de
grandeza! Otimistas, como Carl Sagan, chegaram a calcular em
1 milho o nmero de civilizaes na galxia (nmero que depois
ele reduziu), enquanto pessimistas, como von Hoerner e Frank
Tipler, obtiveram nmeros bem menores, inclusive negativos (que
apontavam a raridade de nossa condio).
Claro que, quanto maior esse nmero, menor a distncia m-
dia entre as estrelas envolvidas, e, assim, mais provvel o contato.
Era esta a funo desse dispositivo formal: ser uma estratgia de
persuaso para a poca o que permitiu justificar publicamente os
(poucos) investimentos angariados nas primeiras dcadas do SETI
at sua interrupo, com os cortes de verbas do governo estaduni-
dense no comeo dos anos 1990. O prprio Frank Drake explicava
que a equao no resolvia o Paradoxo de Fermi, mas ao menos
servia para organizar nossa ignorncia.
Mas, se a Equao de Drake elenca os fatores tidos como es-
senciais em 1961, ela est longe de listar todos. Para entender as
dificuldades do SETI preciso mencionar a existncia de uma se-
gunda equao, complementar de Drake, proposta por David
Brin em 1982. Brin incorpora dois fatores originalmente ignora-
doss: migrao (ou colonizao) interestelar e deciso da suposta
civilizao de se expor ou no a um contato. A formulao original
de Drake supunha que cada civilizao tcnica estaria confinada
ao seu planeta original e, sem excees, aberta para contato, duas
simplificaes que afetam enormemente os clculos. Na viso de
Brin, mesmo que poucas civilizaes tivessem surgido, elas pode-
riam ter se espalhado pela galxia, presencialmente ou atravs de
sondas-rob, de modo que o fator colonizao aumentaria enor-
memente a probabilidade de contato. Por outro lado, qualquer ci-
vilizao poderia decidir no se expor deliberadamente por razes
de segurana, de forma que, mesmo podendo enviar sinais, no o
faz, diminuindo a probabilidade de contato. Com a formulao de
Brin, as estimativas passam a ser mais elaboradas (e o otimismo
realimentado), mas muitas das crticas anteriores persistem.

304
o SETI e o tamanho do palheiro...

Um balde de gua fria no oceano csmico?


Nesse emaranhado de dificuldades tcnicas e limites fsicos
no faltam razes para justificar o insucesso do SETI nesses anos
todos, mas tambm no nos esqueamos das possveis causas
externas para tal dificuldade, ou seja, no seria tanto uma falha
nossa: talvez no tenhamos conseguido captar nenhum sinal inte-
ligente at agora porque no h nenhum para receber, pelo menos
no agora. Essa possibilidade desalentadora no pode ser descar-
tada. Outro problema, agravado pelas distncias interestelares, se-
ria que os sinais, mesmo existindo, no so recebidos por causa do
horrio da tentativa de escuta. Isto , ocorre um desencontro.
Todos conhecem e se comovem com os dramas literrios em que
os amantes falham em se encontrar como combinado, como no
Romeu e Julieta de Shakespeare, ou no filme Tarde demais para
esquecer, clssico de 1957 com Debora Kerr e Cary Grant, cir-
cunstncia sempre possvel.
Aqui cabe mencionar o brilhante livro de Stephen Webb
Where is everybody?, cujo ttulo completo , na verdade, Se o
universo est fervilhando de aliens... onde est todo mundo?
Cinquenta solues para o Paradoxo de Fermi e o problema da
vida extraterrestre. Webb divide as solues em trs grandes
classes: Eles esto aqui (descrevendo 8 cenrios afins); Eles
existem, mas ainda no nos comunicamos (com 28 cenrios
plausveis); e Eles no existem. Embora esta ltima possibi-
lidade sempre exista, as solues menos fantasiosas remetem
sempre aos problemas bsicos advindos das grandes distn-
cias e do tempo necessrio para as ondas eletromagnticas
percorr-las.
De fato, de todos os itens possveis elencados acima, dois de-
veriam ser sempre levados em conta simultaneamente ao discu-
tirmos as chances de um encontro extraterrestre bem-sucedido:
as distncias envolvidas logo, o tempo necessrio para percor-
r-las e o tempo de durao dessas civilizaes. As distncias
entre as estrelas so estonteantes, obstculos difceis de serem
ultrapassados, ainda mais levando-se em conta que a velocidade

305
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

mxima permitida pela fsica atual a velocidade da luz, apro-


ximadamente 300.000 Km/s, que no podemos atingir mediante
acelerao mecnica.
As estrelas em nossa galxia distam entre dezenas e milhares
de anos-luz entre si, que tambm o tempo, em anos, que sinais
eletromagnticos enviados entre elas precisariam para atingir seus
destinos. Mas a outra limitante no menos importante: se civili-
zaes tm sempre uma durao L finita e, sobretudo, relativamen-
te curta, como tem sido muitas vezes o caso na histria da huma-
nidade neste sofrido planeta, e estando separadas por distncias de
dimenses no mnimo comparveis, podemos compreender como
fcil ocorrerem desencontros no vasto cosmo.
A Figura 14.3 ilustra esse conceito de contactabilidade
(em tempo real), uma vez que observar o cu noturno signi-
fica sempre olhar para o passado: podemos at imaginar ser-
mos coetneos a outros povos igualmente equipados (como
so as civilizaes B e C em 3A, e as A e C em 3B), mas exa-
tamente por esse motivo, elas nunca conseguiro saber uma
da outra: so exemplos de simultaneidade temporal no veri-
ficvel. A Figura 14.3A mostra a Terra como ouvinte privile-
giada, estando exatamente na janela de recepo de sinais
das civilizaes B e D, situadas a diferentes distncias, mas
evidente que seria um privilgio basicamente unidirecional:
somente ns nos beneficiaramos desse contato. Por causa das
posies temporais versus distncias, B teria mais tempo dis-
ponvel que D, mas ambas teriam de apostar igualmente em
nossa (suposta) existncia, pois no teriam possibilidade de
confirm-la.
A realizao dos contatos representados nessas ilustraes
hipotticas tem pelo menos quatro suposies implcitas: (a) que
B e D desejam intencionalmente contatar-nos; (b) que invistam
recursos nessa transmisso durante todo seu L sem saber se existe
algum aqui para receber algo; (c) que ns investimos na radio-
escuta (mesmo com o risco de no haver coisa alguma, ou, se
houver, de no podermos dialogar com o emissor); e (d) que a

306
o SETI e o tamanho do palheiro...

mensagem contenha informao positiva (de acordo com a e b,


essa mensagem poderia ser um mero desabafo, mas nada impede
que tenha contedo de risco para ns). Resta um ltimo problema:
e se todo mundo s est escutando e no transmitindo? Seria o
caso de contar com vazamentos de transmisses para outro fim.
o nosso caso, pois sobretudo escutamos, e fizemos poucas trans-
misses (muito curtas, alis): atualmente se discute inclusive se
seguro propagandear nossa existncia em um cosmo desconhe-
cido e potencialmente cheio de riscos. Alguns desses pontos so
magistralmente ilustrados e discutidos no filme Contato, baseado
no romance homnimo de Carl Sagan, que infelizmente no viveu
para assistir verso final.
As dificuldades no param por a: na Figura 14.3B, vemos que
uma pequena modificao na distribuio espacial (as posies
temporais de A e B so trocadas por A e B) diminui muito mais as
chances de contato, enquanto na Figura 14.3C uma pequena defa-
sagem de alguns anos faz que as cinco civilizaes quase coetneas
simplesmente fiquem impossibilitadas de entrarem em contato (e de
confirmar sua existncia atravs de sinais eletromagnticos). Nesse
cenrio, parece razovel supor que civilizaes capacitadas desis-
tam de enviar (e talvez monitorar) sinais eletromagnticos, evitando
os custos de uma aposta por demais incerta.
Porm, como no temos nenhuma ideia de qual seja o N, nem
como so os L, nem como se distribuem tais hipotticas almas
gmeas pela galxia, investir na escuta ainda faz sentido, pois d
vazo ao argumento final de Cocconi e Morrison (1959).
A Figura 14.3D mostra que a melhor forma de aumentar
a chance de contato, e mesmo permitir alguma troca de in-
formaes, ocorreria se uma das civilizaes (B, no caso)
tivesse um L muito maior, o que provavelmente resolveria o
problema do custo energtico ao mesmo tempo que poderia
injetar pacincia maior no processo. Mesmo assim, o di-
logo bidirecional seria bastante impraticvel, posto que len-
tssimo: imaginem um dilogo em que sculos separassem
as perguntas das respostas... Tais civilizaes hipotticas de

307
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Figura 14.3. As dificuldades na coincidncia temporal para garantir o contato por rdio entre
otimista de N ~ 200 civilizaes tecnolgicas distribudas homogeneamente na galxia
tecnolgicas como sendo a mdia das civilizaes terrestres (~400 anos, o fator L
a civilizao receptora, sem possibilidade de dilogo. Dilogos seriam lentssimos e
pudesse ocorrer localmente. Quanto menor o N, mais improvveis os contatos. Pequenas
Fonte: Elaborado pelo autor

308
o SETI e o tamanho do palheiro...

duas ou mais civilizaes tambm dificilmente coetneas considerando-se uma estimativa


(distncia mdia D ~500 AL) e mais otimista ainda por supor a durao dessas civilizaes
da equao de Drake). Os contatos geralmente seriam unidirecionais, beneficiando apenas
possveis apenas aumentando-se o L ou diminuindo-se o D (ao aumentar N), embora
variaes na posio temporal fazem contatos garantidos deixar de ocorrerem.

309
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

longo L, porm, so ainda mais especulativas que civiliza-


es anlogas s terrestres. Nesse caso, o grande L da civili-
zao B permitiria que ela conhecesse todas as civilizaes
vizinhas prximas e at pudesse dialogar um pouco com
uma delas.
Em resumo, entre os fatores determinantes da probabi-
lidade de contato chamemos esse fator de contactabi-
lidade a relao entre L (em anos) e a distncia D (em
anos-luz) decisiva. Sendo = L/D, o ideal que >>> 1,
isto , quanto maior o L e/ou menor o D, maior a chance
de contato. Tudo isso consequncia direta das distncias e
tempos muito grandes, pois alm dos abismos espaciais que
nos separam, possveis civilizaes, com suas curtas dura-
es de poucos sculos, podem ocorrer aleatoriamente em
qualquer momento ao longo de um vastssimo perodo de
bilhes de anos, fazendo que as condies para um conta-
to efetivo sejam verdadeiras impossibilidades. Assim, mes-
mo partindo-se das estimativas mais otimistas obtidas pelas
equaes de Drake e Brin, e mesmo supondo que sejam mui-
tas as civilizaes ativas neste momento, isso pode no ser
suficiente para garantir que ocorra um contato. O Universo
um lugar muito grande.

Uma agulha no palheiro de nove dimenses!


Jill Tarter, do importante SETI Institute, instituio que car-
rega essa bandeira, listou mais de uma centena de projetos de
escuta estabelecidos desde 1960, sendo que os principais foram
(ou so): Beta (em Harvard, interrompido pela destruio da
antena por uma tempestade), Meta ii (na Argentina, cobrindo o
hemisfrio Sul), Phoenix (itinerante, continuao de projeto da
Nasa abortado em 1993 por falta de financiamento), Serendip
(em Arecibo, Porto Rico, Figura 14.4 com a vantagem de
registrar continuamente pegando carona em equipamentos
utilizados para outros experimentos, uma tcnica chamada
comensal) e seu projeto associado de anlise de dados por

310
o SETI e o tamanho do palheiro...

computao distribuda, SETI@home (Figura 14.5), sem falar na


importante contribuio amadora (Argus, SETI League etc). Na
rea da Oseti (Optical SETI, com observao de laser) temos
os projetos das Universidades de Harvard e Princeton, alm do
Serendip. Alguns desses projetos priorizam a rea de cobertu-
ra do cu, outros, o tempo de observao de candidatos pro-
missores; enfim, as estratgias variam, mas uma coisa certa:
apesar de essas buscas estarem sendo feitas esporadicamente
h mais de 50 anos, isso no significa nem de longe que
conseguimos cobrir todas as possibilidades existentes. Ou seja,
ainda no cobrimos nem todos os pontos do cu, nem todas
as frequncias possveis, e certamente nada disso foi feito, na
prtica, por tempo suficiente. Na verdade, seria um milagre
achar algo nessa busca que se aproxima da proverbial procura
da agulha no palheiro.
Mas a metfora do palheiro uma pilha tridimensional
onde o desafio consiste em localizar algo muito pequeno e
discreto no termina a. Esse palheiro incomum tem as di-
menses de nossa galxia (esqueam o resto do Universo, por
enquanto), e como se no bastasse, h ainda mais parmetros
para se considerar: a Figura 14.5 mostra o espao de buscas
dos principais projetos SETI at o ano 2000, mostrando trs ei-
xos principais, as frequncias exploradas, o volume do cu e a
sensibilidade do registro. Essas trs dimenses so, na verdade,
cinco, pois o volume escrutinado se desdobra nas trs dimen-
ses espaciais, X, Y e Z.
A Figura 14.5 deixa claro que cobrimos uma frao nfima de
todo esse volume possvel. E ainda preciso computar pelo me-
nos outras quatro dimenses para apreciarmos plenamente o tama-
nho do desafio: o deslocamento de frequncia (relacionado ao des-
vio Doppler-Fizeau resultante do movimento orbital do planeta de
origem dos sinais), o ciclo ligado-desligado (qualquer equipamento
opera assim, na prtica), e os dois sentidos ortogonais de pola-
rizao circular da radiao detectada (que d mais dois eixos
que devem ser examinados separadamente para no se perder

311
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Figura 14.4. Radiotelescpio de Arecibo (Porto Rico) o maior radiotelescpio


fixo do mundo onde foi instalado o programa Serendip, desenvolvido pela
Universidade da Califrnia, Berkeley. Fonte: Arecibo Observatory/NSF

nada de relevante). Somando tudo, so nove variveis/dimen-


ses, o que exigiria um grfico eneadimensional para ser re-
presentado matematicamente. Visualmente, seria uma figura to
abstrata, quanto pouco til, mas daria uma ideia qualitativa da
complexidade das dificuldades enfrentadas pelo SETI. Segundo
o radioastrnomo argentino Guillermo Lemarchand (2010), se
considerarmos todas as buscas j realizadas at hoje, s cobri-
mos 10-14 de tudo que h para se examinar, ou seja, um cent-
simo trilionsimo de todas as frequncias, direes celestes e
demais parmetros desse descomunal palheiro csmico. Enfim,
ainda temos muito o que fazer, e estamos realmente longe de
quaisquer concluses, inclusive as negativas.
Mas, afinal, existem as tais civilizaes extraterrestres? A res-
posta mais honesta seria no sabemos, j que as dificuldades de
se achar uma agulha em um palheiro de nove dimenses so, pelo
menos, perfeitamente compreensveis.

312
o SETI e o tamanho do palheiro...

Figura 14.5. Volume coberto at o momento pelos principais projetos SETI


de escuta de rdio, mostrando que cada estudo limitado em ao menos um
desses trs eixos. O eixo da sensibilidade tem unidades escaladas para o
volume relativo de espao (nmero de estrelas) examinadas em determinada
direo para uma transmisso aliengena de determinada potncia. Dois
projetos mais recentes, o Telescpio Allen (ainda em desenvolvimento) e
o hipottico (e quase ideal) Sistema de Busca Omnidirecional (oss) que
monitoraria, o tempo todo, cada ponto do cu, em cada canal possvel
entre os extremos da janela de micro-ondas (de 1 a 11 GHz) dariam maior
cobertura que todos os projetos anteriores, mas apenas em dois desses eixos,
sendo que o grosso do volume continuaria inexplorado (e isso que acima
esto representadas apenas cinco das nove dimenses a frao do cu
compacta as trs dimenses espaciais). O projeto Argus no deixa de ser um
prottipo de um oss. Fonte: Adaptado de Sky & Telescope 2005. Usado com
permisso.

313
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Referncias
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http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/onde_estao_to-
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Quillfeldt, J. A. Astrobiologia: gua e vida no Sistema Solar e alm.
Caderno Brasileiro de Ensino de Fsica, v. 27, p. 685-697, 2011.
Sagan, C. Contato. So Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
Webb, S. If the Universe is teeming with aliens... Where is everybody?
Fifty solutions to the Fermi paradox and the problem of extrater-
restrial life. Nova York: Copernicus, 2002.

314
FUTURO DA VIDA NA
TERRA E NO UNIVERSO
Captulo 15
Douglas Galante, Gabriel Guarany de Araujo,
Marcio G. B. de Avellar, Rosimar Alves do Rosrio,
Fabio Rodrigues e Jorge E. Horvath

A evoluo da vida na Terra est, desde seu incio, intrinse-


camente ligada a eventos evolutivos astronmicos e planetrios
em nosso ambiente astrofsico, a comear pela regio galctica
privilegiada na qual se encontra o Sistema Solar. Os elemen-
tos qumicos em que a vida se baseia, e mesmo a abundncia de
cada um deles, resultado de seus processos csmicos de sntese,
do Big Bang s estrelas, supernovas e raios csmicos; a formao
dos aglomerados de galxias, das prprias galxias e, por fim, dos
sistemas planetrios no mais que um resultado da evoluo na-
tural da distribuio de massa no Universo; a disponibilidade de
molculas orgnicas na Terra primitiva resultado dos processos
qumicos que ocorrem no meio interestelar, no disco protoplane-
trio e na superfcie do prprio planeta, nos processos de qumica
prebitica. A origem da vida parece ser o simples resultado da
combinao de todos os processos anteriores e da existncia de

315
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

condies adequadas em nosso planeta, refletindo, assim, em l-


tima instncia, apenas as leis matemticas, fsicas e qumicas de
nosso Universo (Pross, 2012).
Daquele momento inicial em diante, no qual o primeiro ser
vivo emergiu do no vivo, toda a evoluo da vida no planeta
seguiu o processo de evoluo darwiniana, respondendo, a cada
instante, a processos interno-biolgicos e externo-ambientais, fa-
zendo que a biodiversidade florescesse e se estendesse por prati-
camente todos os ambientes do planeta, do fundo dos oceanos ao
alto das montanhas e atmosfera havendo um conjunto mnimo
de condies, haver vida.
Ao longo de seus quase 3,3 bilhes de anos documentados (de
forma consensual) na Terra pelos cientistas, a vida passou por pro-
cessos de extino e especiao, s vezes com influncia bvia de
eventos externos (Knoll, 2015). O fato que a vida tem respondido
s mudanas no ambiente do planeta, e muitas vezes so respostas
s mudanas em nossa vizinhana astrofsica. E esse processo de
resposta biolgica continuar no futuro, conforme a evoluo do
Sol, de nossa atmosfera e do planeta como um todo, mesmo que
novas extines e especiaes aconteam, at que, em um futuro
distante, atinjamos a total inviabilidade da vida na Terra, ao menos
como a conhecemos.
Na Figura 15.1, apresentamos alguns dos eventos naturais que
alteraro drasticamente as condies de nosso planeta e, prova-
velmente, influenciaro o curso da evoluo biolgica. No entan-
to, o processo de evoluo no determinstico; portanto, no
podemos dizer como a vida ir responder a essas mudanas com
certeza, e nem devemos ter essa pretenso. Muitas vezes, ao longo
desses bilhes de anos, a vida apresentou solues para situaes
aparentemente sem sada, e talvez isso volte a acontecer no futuro.
Apesar de muitas espcies terem se extinguido, cada extino
abriu nichos para novas espcies se estabelecerem desenvolvendo
novas solues evolutivas. Portanto, devemos enxergar esses pro-
cessos como positivos e mesmo necessrios para a manuteno, a
longo prazo, da vida no planeta.

316
Futuro da vida na Terra e no Universo

~3 bilhes de ~6 bilhes de anos: Sol


~200 mil anos: entra na fase de gigante
reverso do anos: campo
magntico desa- vermelha; a Terra ser
campo magntico engolida pelo Sol
parece pelo
~100 milhes de ~1,1 bilho de decaimento do
~100 mil anos; efeito
anos: a deriva geodnamo
anos: estufa mido;
supervul- continental causa
o alargamento luminosidade
canismo solar aumenta ~3,5 bilhes de
do oceano Atlntico;
pode em 10% anos: efeito
escala de tempo
extinguir estufa descon-
de grandes ~250 milhes de
a vida na trolado; lumino-
glaciaes anos: possvel ~5 bilhes de
Terra sidade solar
novo supercon- aumenta 40% anos: tectnica
tinente com de placas e
grandes contras- depois vulca-
tes climticos, nismo param
possveis novas devido ao
extines resfriamento do
manto e enrije-
Temperatura cimento das
Luminosidade do manto zonas de sub-
solar duco

~20 mil anos:


erupes solares ~750 milhes de anos Escala de tempo
causam danos ao ~100 milhes de uma escala de tempo dos principais eventos
estilo de vida anos: impacto de mdia para cada um dos
humano; poten- asteroides com eventos a seguir: SGRs, astronmicos e geolgicos
cial para muta- potencial de SNs e GRBs com potencial
es nas espcies extino em de extino em massa
massa

Figura 15.1. Escalas de tempo aproximadas para os eventos descritos no


texto. Fonte: Adaptado de Pross (2012)

Para facilitar a discusso das escalas de tempo e da periodici-


dade dos eventos, separaremos, por ora, eventos em escala plane-
tria de eventos em escala astronmica.

Eventos em escala planetria

O impacto dos supervulces


Supervulcanismo uma subclasse do vulcanismo, no entanto,
de propores muito maiores.
O cenrio tpico por trs desse tipo de vulcanismo o de uma
caldeira imensa, chegando a 50 quilmetros de dimetro ou mais,
sob a superfcie, cheia de rocha derretida a altas presses. O exem-
plo atual mais espantoso de um supervulco se encontra sob o
parque de Yellowstone, nos eua, com um potencial para, no futuro,
cobrir de lava boa parte do sudoeste norte-americano. Outros su-
pervulces so conhecidos na Califrnia, Nova Zelndia, Europa e
Indonsia. Neste ltimo pas, o supervulco Toba explodiu violen-
tamente h 74 mil anos, com impactos globais mensurveis, como

317
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

a diminuio da temperatura e extines significativas da fauna e


flora, incluindo, possivelmente, a quase extino dos humanos.
A escala de tempo, ou periodicidade, de erupo de alguns
supervulces tem sido de cerca de 500 mil anos, mas levando-se
em conta que h diversos espalhados pelo globo, o intervalo entre
grandes erupes bem menor, cerca de 100 mil anos. A erupo
de um supervulco pode lanar lava e detritos a uma altitude de 50
quilmetros de altura na atmosfera, fazendo que a vida sofra um
grande impacto, em especial a macrofauna e flora, em um raio de
milhares de quilmetros, cobrindo imensas reas com lava.
A quantidade de poeira no cu poderia levar a um inverno
vulcnico diminuio da luz solar por um longo perodo de tem-
po, provocando quedas na temperatura da Terra. Alm disso, com a
diminuio da radiao solar, a fotossntese pode ficar seriamente
comprometida, com consequncias para a cadeia alimentar depen-
dente dos organismos fotossintetizantes (como ocorre em grande
parte dos ecossistemas terrestres). Isso j foi observado em alguns
eventos por meio de uma incurso negativa no dC13, provavelmente
associada diminuio da produtividade biolgica primria.
Registros de um evento desse tipo foram encontrados na regio r-
tica do planeta, na Sibria, e foi proposto como uma das possveis cau-
sas para o maior evento de extino em massa do planeta, a extino
do Permiano, h 250 milhes de anos (impactos de asteroides tambm
so considerados uma hiptese alternativa ou complementar). Nesse
evento, cerca de 95% de todas as formas de vida marinha e 70% da
vida dos continentes anteriormente encontrada no registro fssil desa-
pareceu. Por exemplo, os trilobitas se extinguiram nesse evento, aps
quase 270 milhes de anos dominando os oceanos terrestres.
Essa grande extino abriu caminho para a era dos dinossau-
ros, com um subsequente aumento da biodiversidade no planeta.

O destino do campo magntico


Um dos primeiros processos geolgicos em escala global que
deve ocorrer a reverso do campo magntico da Terra. Embora a
reverso seja errtica, sem perodo definido, dados das reverses

318
Futuro da vida na Terra e no Universo

documentadas pelo estudo do paleomagnetismo (a ltima foi h


780 mil anos) sugerem um espaamento temporal mdio de 200
mil anos para esse fenmeno. O processo parece ser gradual, com
uma diminuio da fora do campo com o tempo, at um mnimo,
voltando a aumentar em seguida, com sentido oposto.
O campo magntico uma das protees que temos contra a
radiao na forma de partculas carregadas vinda do espao (vento
solar e raios csmicos) e, ficando mais fraco, o planeta ficar vul-
nervel aos seus efeitos.
Apesar disso possvel que o campo residual j seja o suficiente
para evitar grandes danos, sejam eles biolgicos ou atmosfricos. Os
impactos biolgicos desse tipo de evento ainda so controversos, mas
podemos imaginar que algumas espcies que usam o campo magnti-
co como referencial geogrfico sejam prejudicadas, e talvez alguns or-
ganismos expostos na superfcie possam acumular doses de radiao
mais elevadas, durante o perodo de diminuio/inverso do campo.

dC13: Os tomos de carbono disponveis na natureza existem em di-


ferentes istopos, ou seja, o mesmo elemento qumico com diferente
nmero de nutrons. Em especial, existem 16 diferentes istopos de
carbono, de massa 8 a 23, mas apenas C12 e C13 so estveis. Os pro-
cessos biolgicos que usam carbono ocorrem com maior eficincia
para o istopo estvel mais leve, C12, portanto, a matria orgnica
(de origem biolgica) costuma apresentar um ligeiro enriquecimen-
to natural nesse istopo em relao matria inorgnica a cada
1.000 tomos de carbono, ela tem 25 a mais de C12, um nmero
que pode ser medido em laboratrio. Quando dizemos que ocorreu
uma incurso negativa no dC13 estamos dizendo que a proporo
de tomos C13 para C12 foi inferior ao de um determinado padro,
o que, em geral, indica que menos C12 estava sendo sequestrado da
atmosfera pelos produtores primrios (organismos fotossintetizantes).
O caso contrrio, em geral, est associado ao aumento da atividade
de fotossintetizantes por exemplo, no caso de aumento ligeiro da
temperatura de algumas regies.

319
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

O fato que a Terra j passou por reverses magnticas e a vida


continuou, mas interessante se perguntar quais os impactos biolgi-
cos desses eventos, mesmo sendo improvvel uma extino em massa.
Muito mais adiante no futuro, em algum momento ainda im-
preciso, a Terra perder seu campo magntico de maneira definiti-
va, o que ser muito mais grave.
Sem sua magnetosfera, a atmosfera terrestre receber o impac-
to direto das partculas do vento solar e dos raios csmicos (Figura
15.2), sendo lentamente degradada e perdida para o espao, em
um processo similar ao que aconteceu em Marte. Isso ocorrer
por uma srie de fatores interligados, comeando no ncleo slido
do planeta. Ao contrrio do que muitas vezes nos foi ensinado,
o campo geomagntico no gerado por depsitos de material
magntico no planeta (um grande im subterrneo), mas sim por
um processo de dnamo eletromagntico, onde cargas eltricas em
movimento geram o campo magntico, como em um eletrom.

e
oqu
d e ch
arco envoltrio magntico

magnetopausa

cspide
lmina neutra

cintures de Van Allen

lbulos

Figura 15.2. A magnetosfera terrestre forma um escudo protetor ao redor


do planeta, evitando que partculas de alta energia do vento solar e raios
csmicos atinjam a superfcie e destruam a atmosfera. Fonte: Adaptado de
Dennis Gallagher / Wikimedia Commons

320
Futuro da vida na Terra e no Universo

A fonte desse campo a interface entre o ncleo slido e o


ncleo lquido da Terra, uma regio onde o material que compe o
planeta est altamente aquecido, parcialmente ionizado e se mo-
vimentando rapidamente, como resultado da rotao do planeta,
da hidrodinmica do material e de processos caticos locais. O
movimento varivel com o tempo, o que resulta em um campo
no esttico (que podemos acompanhar nos mapas geogrficos,
nos quais as linhas de declinao magntica tm de ser atualizadas
de tempos em tempos os polos magnticos mudam de posio).
medida que a Terra perde calor e seu interior se resfria, o
ncleo interno slido aumenta de tamanho, sendo acrescido pela
solidificao do ncleo externo lquido. Embora conheamos a
termodinmica, no sabemos ao certo as temperaturas no inte-
rior da Terra nem os mecanismos dominantes na transferncia de
calor (por exemplo, conveco ou conduo). Acredita-se que,
atualmente, a conveco domine a transferncia de calor no en-
torno do ncleo, mas conforme o manto se resfria, a conveco
pode cessar, e a conduo passaria a ser o mecanismo dominante.
Isso poderia desligar o geodnamo e, consequentemente, o campo
magntico terrestre. Enquanto isso, no manto (viscoso na escala
de tempo geolgica), a conveco (e, portanto, a tectnica) pode-
ria continuar sendo efetiva por ainda cerca de 3 bilhes de anos.

Deriva continental e tectnica de placas: mudando a face


da Terra
Em uma escala de tempo de centenas de milhes de anos, os
continentes passam por grandes mudanas em sua organizao,
ora juntos, formando supercontinentes como os antigos Rodnia,
Gondwana e Pangeia, ora separados, como atualmente.
Esse movimento, chamado deriva continental, causado pelo
fato de a crosta terrestre, slida, ser feita de placas separadas que
boiam sobre o manto que tem movimentos gerados principalmen-
te por conveco do material.
Por uma combinao dos efeitos do movimento de conveco
do manto, rotao da Terra, peso da prpria crosta, suco nas

321
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

zonas de subduco e outros, as placas so arrastadas ao longo do


tempo, de uma maneira difcil, seno impossvel, de predizer, mo-
dificando a organizao dos continentes e trazendo consequn-
cias globais para o clima e para a vida.
A variao na distribuio dos continentes altera, por exem-
plo, as correntes marinhas, que sabemos terem grande influncia
no clima. O aumento de massas de terra na regio dos continentes
tambm diminui o albedo do planeta (que a refletividade da super-
fcie quanto mais escuro, menor o albedo, e mais radiao solar a
superfcie absorve), podendo assim aumentar a temperatura global.
O caso contrrio tambm vlido se os continentes se con-
centrarem na regio polar, que recebe normalmente menos luz, as
temperaturas do planeta tendem a diminuir.
Assim, o clima global altamente dependente do movimento
dos continentes, bem como o clima local, pois um superconti-
nente tem, em geral, um grande deserto em seu interior, por cau-
sa da distncia das massas de gua, enquanto vrios continentes
menores so mais midos. Dessa maneira, os habitats disponveis
no planeta foram diferentes em momentos diferentes da histria
geolgica.
Alm disso, durante o processo de tectonismo, o fundo
ocenico reciclado constantemente em uma escala de tem-
po de cerca de 100 milhes de anos. Novo material expeli-
do nas cristas meso-ocenicas (como a que existe no oceano
Atlntico), empurrando o fundo ocenico em um ritmo de al-
guns centmetros por ano para as laterais da crista, literalmente
abrindo o oceano.
Ao ser formado, esse fundo ocenico possui cerca de dez qui-
lmetros de espessura e, conforme segue se resfriando, aumenta de
espessura chegando at centenas de quilmetros, quando afunda
em direo ao manto nas zonas de subduco, gerando as regies
mais profundas que conhecemos, como a Fossa das Marianas. Esse
processo de reciclagem extremamente importante, pois funda-
mental no ciclo do carbonato-silicato, o qual responsvel, em
parte, pela estabilizao da temperatura do planeta.

322
Futuro da vida na Terra e no Universo

Organismos vivos, ao sequestrarem o carbono da atmosfera


(na forma de CO2, para a fotossntese), em especial organismos
marinhos, acabam diminuindo a quantidade desse gs na atmosfe-
ra. Como o CO2 um dos causadores do efeito estufa que mantm
a temperatura da Terra (nem todo efeito estufa ruim, se no fosse
por esse efeito, nosso planeta seria cerca de 20 oC mais frio), a
diminuio sem controle do gs na atmosfera poderia levar rapi-
damente a uma glaciao global. No entanto, conforme os orga-
nismos morrem e caem no fundo ocenico, esse carbono levado
para o manto, reciclado pelas altas temperaturas e expelido pelos
vulces, retornando assim para a atmosfera. Dessa maneira, a con-
centrao do gs na atmosfera permanece constante com o tempo.
A deriva continental parece ter tambm papel importantssimo
na evoluo da vida do planeta, e talvez seja mesmo necessria
para seu surgimento, evoluo e manuteno no planeta. Conforme
a configurao geogrfica da Terra varia com o tempo, populaes
de organismos so expostas a diferentes condies e presses se-
letivas; algumas vezes so divididas e isoladas por longos pero-
dos e depois novamente reunidas. Esses processos so importantes
para que ocorram os eventos de especiao e extino, e talvez,
sem eles, no houvesse a biodiversidade que hoje encontramos
em nosso planeta.
Apesar de o fenmeno de deriva ser gradual e constante, gran-
des mudanas acontecem quando ocorrem separaes ou encon-
tros de placas e continentes, sendo razoavelmente regulares, na
escala de centenas de milhes de anos. A prpria separao da
Pangeia ocorreu, aproximadamente, na mesma poca da extino
do Permiano, sendo que alguns cientistas propem que haja uma
correlao entre os dois eventos, talvez pela diminuio da pro-
dutividade primria (atividade de organismos fotossintetizantes) e
pela mudana da configurao das reas costeiras nesse perodo.
Por esse motivo, apesar de a tectnica de placas poder causar
grandes extines, ela parece ser um item importante para garantir
a habitabilidade de um planeta. No entanto, mesmo na Terra ela
no ser eterna com o resfriamento do interior do planeta, talvez

323
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

pelos prximos 5 bilhes de anos a mobilidade das placas ir di-


minuir at que esse movimento cesse por completo e, com ele, a
reciclagem do fundo ocenico, do carbono atmosfrico e a cria-
o de novas grandes barreiras geogrficas. Essa nova realidade
certamente ir criar grandes desafios para a vida e eventualmente
uma nova grande extino.

O aquecimento global
Apesar de nosso Sol estar em um perodo de estabilidade em
sua evoluo, conhecido como sequncia principal, ele continua
mudando, e grandes alteraes climticas so esperadas nesse
processo.
Nossa atmosfera possui muitos tipos de gases do efeito estufa,
sendo os principais o vapor de gua, o dixido de carbono (CO2)
e o metano (CH4). O princpio do efeito estufa aqui na Terra que
o equilbrio entre a radiao absorvida (no visvel) e emitida (no
infravermelho) pelo planeta de volta ao espao quebrado. Isso
acontece porque esses gases absorvem a radiao infravermelha da
superfcie terrestre, e a reemitem, fazendo a temperatura aumentar,
mas o fluxo emitido para o espao diminui ou fica constante.
Uma teoria razoavelmente bem estabelecida a teoria do
efeito estufa descontrolado. Conforme a superfcie esquenta, a at-
mosfera se torna mais densa com vapor de gua, o que limita a
quantidade de radiao trmica que pode ser emitida para o es-
pao. Assim, a temperatura superficial aumenta muito. Em termos
prticos, para que esse efeito seja acionado, o fluxo de radiao
emitido em infravermelho deve ser maior que certo limite, chama-
do troposfrico, calculado, em um modelo simples, em cerca de
290 W/m2 (atualmente a Terra emite cerca de 240 W/m2).
Ponto interessante que a adio de CO2 no leva direta-
mente ao aumento desse fluxo, a despeito dos intensos debates
sobre a ao humana no aumento da concentrao desse gs. O
mais importante para o efeito estufa parece ser o vapor de gua:
conforme a superfcie esquenta, mais vapor de gua libera-
do dos oceanos para a atmosfera, e mais absoro da radiao

324
Futuro da vida na Terra e no Universo

infravermelha por esse gs acontece, aumentando ainda mais a


temperatura.
Em um modelo simples, mantendo as condies da Terra
atual, o efeito descontrolado comearia quando a temperatura da
superfcie atingisse cerca de 325 K ou 52 oC (lembrando que a
temperatura mdia da Terra atual 15 oC).
Dependendo apenas da evoluo do Sol, especula-se que esse
ponto est h cerca de 3,5 bilhes de anos no futuro, quando o
Sol tiver aumentado sua luminosidade cerca de 50%. Uma das
consequncias desse tipo de efeito estufa a evaporao total dos
oceanos, mas no imediatamente: o aumento de vapor de gua na
atmosfera causar, em um primeiro momento, o aumento do pon-
to de ebulio da gua. Teremos gua lquida at que a temperatu-
ra atinja o valor crtico de 647 K ou 374 oC. A maior parte da vida
da superfcie pode estar perdida nesse momento, e se alguma vida
marinha conseguir se adaptar a essas temperaturas, no ser por
muito tempo. A partir desse ponto, a temperatura far que os ocea-
nos se evaporem, e a Terra provavelmente ficar totalmente estril.
O vapor de gua na atmosfera, por efeito da radiao, sofrer foto-
dissociao, e a gua ser perdida para o espao. Esse aquecimen-
to global desenfreado cessar quando a temperatura atingir 1.400
K ou 1.127 oC, uma nova janela de equilbrio radiativo. Mas, nesse
ponto, nosso mundo estar novamente sendo coberto por oceanos
de magma.
Se tudo isso parece um futuro apocalipse inexorvel, preciso
ficarmos atentos para um estado climtico intermedirio chamado
efeito estufa mido, que pode acontecer bem antes (isso muda-
ria um pouco o efeito descontrolado, principalmente no quesito
incio a uma dada temperatura), com escala de tempo estimada
em 1,1 bilhes de anos, quando o Sol tiver aumentado 10% sua
luminosidade.
No efeito estufa mido, o vapor de gua o maior constituinte
da troposfera, e a estratosfera torna-se mais mida. A tropopau-
sa, camada entre a troposfera e a estratosfera, move-se para cima,
elevando-se conforme a temperatura aumenta. Esse tipo de efeito

325
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

estufa, entretanto, estvel, embora suas consequncias sejam


drsticas para a vida.
Trs consequncias iniciais foraro a vida a se adaptar: en-
fraquecimento do gradiente de temperatura latitudinal (degelo) e
consequente mudana da circulao atmosfrica; mudana na
qumica da estratosfera; destruio da camada de oznio, entre
outras coisas, por radicais livres advindos da quebra das molculas
de gua.
Caso consigamos evitar, usando a geoengenharia, por exem-
plo, esse destino de efeito estufa intermedirio, lembremos que o
efeito estufa descontrolado pode ser inevitvel e outros eventos
em escala planetria acontecero com potencial para extinguir a
vida na Terra.

Eras glaciais: na solido do gelo


Eras glaciais so eventos nos quais a Terra tem uma brutal que-
da de temperatura, recobrindo uma grande parte da superfcie do
planeta com gelo e neve (teoria da Terra bola de neve). No ltimo
bilho de anos, a Terra passou por seis perodos documentados
como esse, com uma frequncia temporal estimada em cerca de
150 milhes de anos. So perodos de frio intenso com pouca va-
riao climtica que podem durar milhes de anos.
Tambm esto relacionadas com os maiores eventos de
extino em massa na histria da Terra, extinguindo muitas fa-
mlias e gneros de organismos, em uma espcie de reao em
cadeia: quando o gelo recobriu os oceanos at muito perto da
Linha do Equador, os organismos fotossintetizantes marinhos
foram muito prejudicados, j que a luz solar fora bloqueada.
Como a fotossntese a base de grande parte das cadeias ali-
mentares terrestres, um bloqueio da luz solar diminui muito a
quantidade de energia disponvel para a vida. Essa diminuio
brutal na produtividade orgnica vista no registro geolgico
como uma incurso negativa no dC 13 (ver Quadro), e pode
estar relacionada com o desaparecimento de espcies que ne-
cessitam de grande aporte de energia. Alm disso, os eventos

326
Futuro da vida na Terra e no Universo

de glaciao podem estar relacionados a grandes variaes


nos nveis ocenicos e nas correntes marinhas, eventos que
podem modificar profundamente o clima, a qumica e a biolo-
gia do planeta, em uma escala de tempo muito rpida. As cau-
sas das eras glaciais no esto totalmente estabelecidas, mas
diversos fatores contribuem para seu incio: alm de ciclos
solares, contribuem tambm mudanas no eixo e rbita da
Terra, conhecidas como ciclos de Milankovitch, movimenta-
o de placas tectnicas, expulso de particulados pelos gran-
des vulces ou impactos de meteoros que bloqueiem a luz
solar, alm de mudanas na composio da atmosfera. Mesmo
eventos de aquecimento global podem gerar glaciaes, pois
com o aquecimento h um aumento nas precipitaes tanto
de chuva quanto de neve e nas reas cobertas por neve, o
que aumenta o albedo do planeta, a reflexo da luz solar e
diminui a quantidade de calor preso na superfcie. Como se
pode ver, h muitos parmetros envolvidos na gerao de um
evento de glaciao, o que os tornam muito difceis de prever.
A ltima dessas grandes eras glaciais ocorreu h cerca de
60 milhes de anos, pouco depois da extino dos dinossauros.
Alm dessas grandes eras glaciais, ocorreram na Terra pequenos
perodos glaciais, nos quais a temperatura caiu e uma camada
de gelo e neve cobriu parte da superfcie da Terra. Esses perodos
tm escala de tempo de 50 a 100 mil anos e podem durar poucos
milhares de anos. O ltimo desses perodos ocorreu h 20 mil
anos, tendo durado aproximadamente 8 mil anos. Esses eventos
menores normalmente no foram associados a grandes eventos
de extino, mas podem causar grande estresse biolgico nos
organismos, principalmente nos que vivem na superfcie.

Eventos de escala astronmica

Exploses estelares
Talvez to importante quanto o impacto de meteoros so os efeitos
de eventos astrofsicos de alta energia, muito menos conhecidos: as

327
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

exploses de supernova, os surtos de raios gama e os soft gamma


repeaters, alm das erupes solares. Esses quatro tipos de surtos ex-
plosivos de radiao vindos do espao podem causar srios danos
vida na Terra e at mesmo podem ter tido papel importante em
eventos de extino em massa, uma vez que podem ter um efeito
ionizante na atmosfera, alterando profundamente sua qumica.
Em termos gerais, essa radiao quebraria a ligao N2, que
compe cerca de 80% da atmosfera. Nesse processo, muitos ti-
pos de xidos de nitrognio, NO e NO2, por exemplo, seriam
formados, os quais ativariam uma reao cataltica que transfor-
maria o oznio (O3), principal absorvedor de radiao ultravio-
leta (uv), em oxignio comum (O2). Torna-se evidente porque a
depleo do oznio catastrfica: grande parte da vida conforme
a conhecemos evoluiu nos ltimos 540 milhes de anos (aps o
evento do rpido aumento de diversidade biolgica, conhecido
como Exploso do Cambriano), na atual era geolgica chamada
Fanerozoico. Essa evoluo ocorreu em um tempo em que a at-
mosfera j estava protegida contra os efeitos da radiao. A vida
atual adaptada a essas condies, tendo a radiao uv perigosos
efeitos sobre importantes molculas biolgicas, como o dna e as
protenas em geral.
Para termos uma ideia mais clara da energia liberada nesses
surtos de radiao, vamos colocar a energia mdia desses eventos
em termos da energia liberada na exploso da bomba atmica de
Hiroshima (1020 erg). As erupes solares liberam cerca de 1033 erg
de energia ou, aproximadamente, 10 bilhes (1010) de bombas de
Hiroshima. O prximo na escala a exploso de supernova, que
libera cerca de 1051 erg. Isso equivale a 10 bilhes vezes 10 bi-
lhes vezes 10 bilhes (ou 1030) da energia daquela bomba. Ainda
mais energticos, os surtos de raios gama liberam 1051 erg ou 1028
Hiroshimas, e so os eventos mais energticos do Universo desde
o Big Bang.
Entretanto, sem alarde. Em primeiro lugar, a quantidade de
energia que chega Terra depende da distncia. Em segundo, es-
ses eventos so raros mesmo em escala geolgica.

328
Futuro da vida na Terra e no Universo

Comeando pelas erupes solares, esses surtos so formados


principalmente por prtons (os ncleos dos tomos de hidrognio
do qual o Sol feito) acelerados a grandes energias pelo campo
magntico estelar. Essas partculas so defletidas pelo campo mag-
ntico terrestre, causando o efeito visvel das auroras nos polos,
pela interao com a atmosfera.
O fato de termos um campo geomagntico e uma atmosfera
acaba por proteger a vida na superfcie do impacto da radiao. A
vida nos oceanos e sob o solo tambm recebe proteo pela blin-
dagem conferida por esses materiais, para a maioria dos tipos de
partculas que atinge o planeta.
Apesar de, biologicamente, essas ejees de prtons no se-
rem diretamente preocupantes para a sobrevivncia da vida no
planeta, pela proteo atual natural, elas podem afetar a sociedade
tecnolgica atual e futura.
Em rbita e alm da magnetosfera, nossos satlites e astronau-
tas esto sujeitos a seus efeitos deletrios (esse um dos grandes
empecilhos para uma viagem tripulada para Marte, por exemplo).
Na prpria Terra, nossas linhas de transmisso de energia e de in-
formao podem atuar como grandes antenas, absorvendo a ener-
gia das exploses solares e causando apages em grande escala,
como j aconteceu no Canad em 1989, quando toda a provncia
de Quebec ficou sem energia por causa de uma tempestade solar.
Acreditamos que efeitos biolgicos causados por exploses
solares de grande magnitude possam ser ou tenham sido impor-
tantes em situaes como a que se encontrava a Terra primitiva
(quando a atmosfera era mais tnue, tendo densidade aproxima-
damente 10 vezes menor que a atual), nas situaes de reverso
do campo magntico e no futuro, quando o campo geomagntico
terrestre entrar em declnio.
J os soft gamma repeaters so eventos associados ao campo
magntico ultraforte de algumas estrelas de nutrons, que se torce
com a rotao estelar, acumulando energia que liberada ocasio-
nalmente em grandes exploses. A energia emitida equivale ao
total irradiado pelo Sol em um milho de anos, apenas em raios

329
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

gama, radiao mais energtica que os raios X. Um dos principais


efeitos desses surtos secundrio, na verdade. o efeito conheci-
do como flash de ultravioleta, resultado do reprocessamento dos
ftons de alta energia na atmosfera superior, que atinge todo um
hemisfrio do planeta com um intenso e rpido fluxo de luz uv.
Alm de ser diretamente deletria para a vida, a radiao causa
alteraes qumicas na atmosfera, como a depleo da camada de
oznio, o que faz aumentar, por consequncia, tambm o fluxo
de radiao solar chegando superfcie. Estudos sugerem que um
surto desses a 10 pc de distncia (aproximadamente 32 anos-luz)
poderia causar uma mortalidade de 90% mesmo no organismo
mais resistente radiao conhecido, a bactria Deinococcus ra-
diodurans. Entretanto, os efeitos sobre toda a biota ainda precisam
ser mais estudados, pois as relaes ecolgicas podem tornar a
vida mais resistente que espcies isoladas. Alm disso, a estatstica
no favorece a ocorrncia desses surtos nas proximidades da Terra:
a distncias menores que 20 pc, a ocorrncia estimada , grosso
modo, uma a cada 5 bilhes de anos (maior que a idade da Terra);
e a 50 pc, a taxa de ocorrncia estimada fica em torno de uma a
cada 2 bilhes de anos.
Supernovas so conhecidas exploses estelares que marcam
o fim da vida de uma estrela massiva, com ocorrncia de uma ou
duas por sculo em nossa galxia. Esses eventos produzem uma
grande emisso de radiao X, aceleram partculas carregadas a al-
tas energias e, estando suficientemente prximos, produzem uma
onda de choque que poderia varrer a superfcie de um planeta.
Talvez o efeito mais danoso, se considerarmos as escalas astron-
micas no Universo, seja o das partculas aceleradas pela exploso:
esses raios csmicos podem quebrar molculas de nossa atmosfera
e criar outras, alterando sua qumica. Do ponto de vista biolgico,
provavelmente o maior dano causado seja a destruio do oznio,
que pode perdurar por anos depois da supernova. Os efeitos dos
raios X so mais difceis de prever, pois os espectros das superno-
vas so muito variados e mais estudos ainda so necessrios para
entender o impacto biolgico dessas exploses astrofsicas. Com

330
Futuro da vida na Terra e no Universo

uma taxa de ocorrncia prxima a nosso planeta de uma ou duas


a cada bilho de anos, elas talvez sejam os eventos astrofsicos de
alta energia com maior impacto para a vida no planeta. No entan-
to, interessante pensar que esses eventos, ao mesmo tempo que
podem causar um grande dano, tambm distribuem os elementos
qumicos produzidos no interior das estrelas pelo Universo, per-
mitindo a formao de planetas e o aumento da complexidade
qumica em suas superfcies, possibilitando assim a origem e evo-
luo de vida como a conhecemos.
Por fim, talvez os mais perigosos sejam os surtos de raios
gama, pois so as maiores exploses do Universo desde o Big
Bang, emitindo uma quantidade imensa de energia na forma de
radiao gama, concentrada em um cone, como um farol varren-
do o Universo. Um planeta que estivesse exatamente nesse cone
sofreria vrios efeitos, dependendo da distncia at a fonte da
exploso, que poderiam ser mais intensos que todos os apresen-
tados at agora. A radiao gama direta seria, em grande parte,
absorvida pela atmosfera, mas poderia varr-la para o espao ou,
no mnimo, alterar profundamente sua qumica, destruindo oz-
nio e gerando xidos de nitrognio que, a longo prazo, poderiam
causar o resfriamento de todo o planeta. Parte dessa radiao
seria transformada em luz ultravioleta, em uma quantidade mui-
to maior que a produzida pelo Sol, o que poderia causar danos
profundos aos organismos expostos vivendo na superfcie, no ar
e nos primeiros metros sob as guas, afetando profundamente os
organismos fotossintetizantes, a base da cadeia alimentar do pla-
neta. Apesar de os surtos de raios gama serem pouco frequentes
no Universo, eles podem causar danos planetrios a distncias
realmente astronmicas: mesmo do outro lado da galxia eles
poderiam ser perigosos se o farol de raios gamas estiver apon-
tado exatamente em sua direo. Vale salientar que esse tipo de
alinhamento pode j ter ocorrido para a Terra, com taxa estimada
de uma vez a cada bilho de anos, mas ainda estamos apren-
dendo a buscar as provas de que passamos por isso no registro
geolgico e biolgico.

331
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Impacto de meteoros
Eventos astronmicos como a queda de asteroides represen-
tam ameaa mais imediata. J aconteceu antes, ao menos uma
vez, na grande extino dos dinossauros, no perodo Jurssico,
cerca de 65 milhes de anos atrs (apesar de existirem hipteses
alternativas). Na ocasio, acredita-se, um asteroide de aproxima-
damente 10 quilmetros de dimetro caiu onde hoje o golfo do
Mxico. O impacto foi to grande que lanou toneladas de poeira
na atmosfera, bloqueando a passagem da luz solar e impedin-
do a fotossntese, o que resfriou a temperatura na superfcie. Esse
evento, e outros similares antes dele, contriburam no processo
evolutivo, mudando as relaes ecolgicas que prevaleciam at
ento, extinguindo predadores e abrindo espao para o aumento
de populaes que antes eram muito mais limitadas, como a dos
mamferos. O impacto de asteroides acontecer novamente e os
potenciais danos vida so, de certa forma, imprevisveis. A curto
prazo, essa a ameaa de extino em massa mais provvel, ao
lado de supervulcanismo, deriva continental e eras glaciais. Esses
fenmenos talvez tenham contribudo para vrios dos eventos de
extino da histria do planeta e continuaro atuando no futu-
ro. Em relao a impactos, a escala de tempo para eventos de
extino em massa, como o dos dinossauros, de cerca de 100
milhes de anos. Entretanto, a Terra constantemente bombar-
deada por meteoritos. A queda de objetos pequenos ainda assim
pode causar danos e prejuzos enormes sociedade humana: a
atmosfera terrestre nos protege de impactos com o poder destruti-
vo de uma bomba atmica uma vez por ano, em mdia, mas um
meteoro relativamente pequeno, com cerca de 1 km de dimetro,
atingindo uma rea povoada, como So Paulo, poderia causar mi-
lhes de mortes.

O futuro da vida e as grandes extines


A vida um fenmeno que ainda no compreendemos comple-
tamente: no sabemos como ela surgiu no planeta e estamos ainda
aprendendo o que ela precisa para existir e como evolui com o

332
Futuro da vida na Terra e no Universo

tempo. H um longo caminho pela frente, mas sabemos algo to


importante quanto impactante: um fenmeno muito persistente,
tendo resistido a vrios eventos catastrficos na Terra. Esterilizar
todo o planeta talvez seja praticamente impossvel, mesmo para os
eventos de altssima energia, geolgicos e astronmicos, pois h vida
em quase todos os lugares que podemos imaginar da Terra. Talvez
apenas se toda nossa crosta novamente derreter, seja por um gigan-
tesco impacto, como o que formou a Lua, seja pelo aquecimento do
Sol no futuro, a vida no planeta seria realmente exterminada.
Ou seja, a vida em nosso planeta deve continuar existindo
ainda por muito tempo, mas claro, sempre mudando evoluindo.
Espcies se extinguiro e outras surgiro em seu lugar, em um ci-
clo constante e necessrio para a manuteno da biodiversidade.
Estudando nosso registro fssil, como mostrado na Figura 15.3,
vemos que esse processo de surgimento e desaparecimento de es-
pcies inerente vida, e talvez mesmo necessrio para sua con-
tinuidade. Na figura, podemos ver que, depois de cada uma das
grandes extines, o nmero de espcies ou grupos retornou ao
seu nmero inicial ou ainda, em alguns casos, aumentou.
A geologia divide a histria da Terra em grandes intervalos
de tempo. O maior e mais antigo o Pr-Cambriano, que inclui
eventos como a formao do planeta e o surgimento da vida. Na
sequncia, vem o Fanerozoico, caracterizado pela abundncia de
registros fsseis de vida animal e compreende at a atualidade.
Nos 540 milhes de anos que abrange, os animais se diversifi-
caram de organismos estruturalmente simples para vrias formas
mais intrincadas. A crescente biodiversidade indicada pelo au-
mento no nmero de fsseis diferentes dos estratos geolgicos mais
antigos at os mais novos. Uma anlise cuidadosa revela que, em
certos pontos do tempo, a variedade biolgica caiu bruscamente,
com vrias formas de vida desaparecendo de maneira simultnea.
Essa a marca de um evento macio que devastou boa parte da
biosfera global uma extino em massa.
Os principais eventos desse tipo foram identificados como
as cinco grandes extines que marcaram o Fanerozoico.

333
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Biodiversidade durante o Fanerozoico 5

Todos os gneros
Gneros bem definidos 4
Tendncia a longo prazo

Milhares de gneros
5 grandesextines em massa
3
Outras extines em massa

0
Cm O S D C P T J K Pg N

542 500 450 400 350 300 250 200 150 100 50 0
Milhes de anos no passado

Figura 15.3. Nmero de espcies em relao s eras geolgicas e suas


subdivises. Fonte: Wikimedia Commons

Cronologicamente, esto espalhadas entre suas subdivises, de-


nominadas perodos. Os dois primeiros perodos so respecti-
vamente o Cambriano e o Ordoviciano, quando a vida animal
primitiva ainda estava restrita a ambientes marinhos. Estavam
presentes j os moluscos, equinodermas (como as estrelas-do-
-mar) e os artrpodes (como os trilobitas). O final do Ordoviciano
definido com a primeira grande extino, decorrente de uma
glaciao, formando grandes geleiras, o que causou a queda no
nvel do mar. Como justamente na plataforma continental, na
gua mais rasa, em que a maioria da fauna deste perodo existia,
os efeitos sobre a vida foram severos. Gatilhos propostos para
isso incluem a desregulao do ciclo do carbono pelas primeiras
brifitas (plantas avasculares) e a incidncia de um surto de raios
gama no planeta, mas os motivos reais ainda so controversos e
debatidos na literatura.
Os perodos seguintes foram o Siluriano e o Devoniano. A co-
lonizao dos continentes se iniciou pelos artrpodes, enquanto

334
Futuro da vida na Terra e no Universo

os vertebrados marinhos se destacaram com uma grande varieda-


de de peixes. Ao final do Devoniano, outra extino aconteceu por
motivos semelhantes ltima mudanas climticas e queda no
nvel do mar. Causas, ainda debatidas, para o fato envolvem a di-
versificao das plantas vasculares terrestres que desbalancearam
o teor de CO2 na atmosfera ou o impacto de um asteroide.
No Carbonfero, grandes florestas cobriram a terra firme, sob
as quais os anfbios so o grupo pioneiro de vertebrados a deixar o
ambiente aqutico. Seguindo para o Permiano, um evento impor-
tante ocorreu a formao do supercontinente Pangeia, composto
por quase todas as massas continentais atuais. A maior extino de
todas aconteceu no final desse perodo, h 250 milhes de anos.
Aproximadamente 95% das espcies marinhas e 75% das terres-
tres, como estimado pelo desaparecimento de mltiplas formas
de vida do registro fssil, incluindo os ltimos trilobitas. Muitas
causas possveis para isso foram propostas, e o que parece mais
provvel que muitas delas tenham ocorrido em conjunto para
explicar a dimenso do evento. Os principais fatores teriam sido
um excesso de gs carbnico na atmosfera, somado acidificao
e anoxia nos oceanos. Os motivos mencionados para o fenmeno:
um dilvio de basalto (vulcanismo intenso) que ocorria na Sibria,
impactos de cometas ou asteroides, eventos astrofsicos de alta
energia e at a proliferao descontrolada de um grupo de micro-
-organismos que produzem gs metano.
No Trissico, durante a lenta recuperao da ltima devastao,
surgiram os primeiros dinossauros, que viriam a dominar o planeta
pelas dezenas de milhes de anos seguintes. A Pangeia comea a se
desintegrar, em um demorado processo que levaria formao dos
continentes atuais. Outra grande extino ocorreu no final do pe-
rodo, causada por mudanas climticas semelhantes s que ocor-
reram no final do Permiano, mas com efeitos menores. O provvel
causador foi um evento de dilvio de basalto que ocorreu bem no
centro do supercontinente que se desfazia; os sinais desse vulca-
nismo esto nos remanescentes da chamada Provncia Magmtica
Centro-Atlntica, hoje espalhada pelas Amricas e pela frica.

335
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

O Jurssico se inicia, surgem os primeiros mamferos sob a


supremacia dos grandes rpteis. Isso segue at o Cretceo, que se
encerra com a extino mais famosa de todas, 65 milhes de anos
atrs. Notoriamente, o reino dos dinossauros chega ao fim, ainda
que sua dizimao no tenha sido completa, e seus herdeiros di-
retos, as aves, existam at a atualidade. A principal causa prova-
velmente foi o impacto de um asteroide onde hoje a pennsula
de Yucatn, no Mxico, local em que foi encontrada a cratera de
Chicxulub, submarina, com mais de 180 km de dimetro. A coli-
so teria liberado uma grande quantidade de material particulado
na atmosfera, causando mudanas climticas e afetando os pro-
dutores primrios dependentes da luz solar. Os organismos maio-
res ento pereceram com o colapso da cadeia alimentar. Outro
fator que estava presente, menos conhecido, foi mais um evento
de vulcanismo intenso, agora na regio do Deco, na ndia, que
tambm teria afetado o clima global. Aps esta ltima (mas no
final) devastao, os nichos ecolgicos antes ocupados pelos di-
nossauros foram disponibilizados para os mamferos, que se di-
versificaram pelo planeta nas eras seguintes. A biosfera moderna
consequncia direta de todos esses eventos, mas esta no uma
histria acabada, apenas os participantes foram renovados entre
eles, os humanos.

A evoluo do Sol: o apocalipse definitivo


O fim inexorvel da vida na Terra provavelmente vir conco-
mitantemente aos estgios finais da evoluo do Sol. Pelos prxi-
mos 5 bilhes de anos, nossa estrela consumir o hidrognio em
seu ncleo, formando hlio e liberando energia. Simulaes com-
putacionais sugerem que pelos prximos 2 bilhes de anos, o Sol,
medida que consumir o hidrognio de seu ncleo, aumentar
sua luminosidade e temperatura sem, no entanto, aumentar muito
seu tamanho.
Entretanto, assim que as reaes nucleares no ncleo do Sol
tiverem consumido cerca de 10% da massa do hidrognio presen-
te, nossa estrela entrar em uma nova fase de evoluo, saindo

336
Futuro da vida na Terra e no Universo

do que chamamos de sequncia principal, na qual esteve pelos


ltimos 5 bilhes de anos, aproximadamente. Comear ento a
fase de gigante vermelha, quando o Sol aumentar de tamanho,
ultrapassando a rbita da Terra, engolindo-a. Mesmo antes disso, o
fluxo radiativo que incidir sobre a superfcie ser to intenso que
ela mais se parecer com uma bola incandescente, muito similar
ao que foi no incio de sua histria. Esse o ponto final da vida
em nosso planeta. Mas quem sabe se a vida no florescer onde
hoje nos parece impossvel, como nas luas geladas dos planetas
gigantes? Ou mesmo na superfcie fria de Marte, que se tornar
mais quente e talvez com uma maior atividade de gua lquida?
Qual o futuro final da vida? Pelo que conhecemos sobre o pro-
cesso de evoluo biolgica, impossvel prever. A nica certeza
que temos que a vida se modifica com o tempo e com o ambien-
te, e acaba por modific-lo tambm. Enquanto houver condies
mnimas em nosso planeta e no Universo, a vida e sua evoluo
devem continuar, talvez apenas terminando quando todas as fon-
tes de energia disponveis se esgotarem, como as estrelas, os radio-
nucldeos e as fontes gravitacionais.

Efeito da ao humana
Atualmente, fala-se muito dos efeitos ecolgicos, com a
interferncia ou no do homem, para o futuro da vida na Terra.
Debate-se muito, ainda sem grande consenso, os efeitos do ser
humano no aquecimento global e em outras alteraes globais.
No entanto, a Terra j passou por perodos mais quentes e mais
frios, e a vida continuou. importante termos em mente que
o Homo sapiens apenas mais uma espcie no planeta, parte
de uma rede ecolgica complexa, imprevisvel e, ao que pa-
rece, bastante robusta. Mas somos capazes de induzir grandes
alteraes no planeta e tambm na biosfera. Nossa influncia
em alguns ecossistemas, desde a destruio de habitats natu-
rais para propsitos especificamente humanos at mudanas
climticas locais (talvez at mesmo globais) causadas pelo nos-
so progresso tecnolgico podem causar uma diminuio na

337
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

biodiversidade e a extino de muitas espcies, culminando


no que hoje comea ser aceito como uma nova extino, a do
perodo do Holoceno. O impacto final das atividades humanas
incerto, mas no somos a primeira espcie a criar mudanas
globais: por exemplo, o surgimento dos organismos fotossinte-
tizantes no planeta, cerca de 2 bilhes de anos atrs, oxigenou
a atmosfera, causando uma extino em massa que varreu os
organismos anaerbios da superfcie do planeta. possvel que
estejamos criando um novo cataclismo global pelo aumento
da temperatura, e nosso maior interesse como espcie evitar
esse tipo de evento, por representar um potencial desafio para
nossa sobrevivncia. No entanto, mesmo que cause nossa ex-
tino, um evento de aumento de temperatura ou mesmo de
congelamento global provavelmente no causaria a extino
de todas as formas de vida no planeta.
O fato que ainda precisamos aprender muito sobre o
funcionamento da evoluo e as intrincadas relaes ecol-
gicas entre os seres vivos se quisermos ter alguma chance de
prever a resposta da vida a mudanas em nosso planeta, sejam
elas causadas pelo homem, geolgicas ou astronmicas. Essa
uma linha de pesquisa que est apenas em seu incio, mas
um fato que a vida como conhecemos est intrinsecamente
conectada a seu ambiente, respondendo a mudanas e cau-
sando mudanas. Conhecermos nosso lugar nessa rede com-
plexa certamente nos ajudar a compreender os impactos da
atividade humana e a delinear nossas aes e o uso de nossa
tecnologia para garantir nossa permanncia e a de nosso am-
biente planetrio.
Para onde a evoluo levar a vida? muito difcil, seno
impossvel responder. A nica certeza que temos que a vida
muito resistente: enquanto nosso planeta tiver condies mnimas,
a vida deve continuar e talvez se estenda at o final dos tempos,
quando o Universo esgotar todas as suas fontes de energia e todas
as estrelas se apagarem.

338
Futuro da vida na Terra e no Universo

Sugesto de leitura
Fortey, R. Vida: uma biografia no autorizada. Rio de Janeiro:
Record, 2000.

Agradecimentos
Os autores agradecem Fernando Paolo, da ucsd, e o professor
Rodrigo Santucci, da unb, pelas informaes e complementos.

Referncias
Pross, A. What is Life? How chemistry becomes biology. Oxford
University Press, 2012.
Knoll, A. H. Life on a young planet: the first three billion years of
evolution on Earth. Princeton University Press, 2015.

339
EXPLORAO
INTERESTELAR
Motivaes, sistemas estelares, tecnologias e financiamento

Captulo 16
Amanda Gonalves Bendia

I am tormented with an everlasting itch for things remote. I love to sail


forbidden seas.
Herman Melville, Moby Dick

Introduo
A viagem para outras estrelas fascina a humanidade desde
o incio das primeiras civilizaes e a sua idealizao est pro-
gredindo cada vez mais conforme o desenvolvimento cientfico
e tecnolgico. A fico cientfica, representada na literatura e no
cinema, desempenha um papel importante ao conjecturar como
seriam os primeiros avanos da explorao interestelar. Inmeros
vislumbres da fico cientfica j inspiraram avanos cientficos
reais. Em 2001: uma odisseia no espao, publicado em 1968,
Arthur C. Clarke descreveu em detalhes uma estao espacial
orbitando a Terra. A primeira estao espacial de baixa rbita

341
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

(Salyut 1) s seria lanada seis anos depois (1971) pela Unio


Sovitica. As dcadas de 1960 e 1970 contaram com um grande
entusiasmo pelos programas espaciais, especialmente por causa
das influncias da Guerra Fria.
Aps o otimismo desse perodo, o financiamento para os pro-
gramas espaciais tornou-se incerto e a explorao tripulada do es-
pao atualmente limitada Estao Espacial Internacional (iss,
um esforo internacional gerenciado primariamente pela Nasa
eua). Muitos opinam que qualquer custo dedicado explorao
espacial deveria ser revertido para outras reas de pesquisa cien-
tfica, que tenham uma aplicao direta nos problemas de nosso
planeta. Por outro lado, muitos acreditam que a explorao inte-
restelar ser essencial para a sobrevivncia a longo prazo da esp-
cie humana.
Os problemas que envolvem a explorao interestelar so
essencialmente as longas distncias, a tecnologia necessria e o
financiamento. Alm disso, durante a viagem interestelar, alguns
problemas podem se manifestar para a tripulao, como proble-
mas fisiolgicos pela ausncia de gravidade, problemas psicolgi-
cos ou mdicos em geral, alta incidncia de radiao e reciclagem
de recursos. H tambm a questo: estamos preparados para nos
desgarrarmos completamente de nosso planeta, e talvez nunca
mais voltarmos? Passarmos a vida inteira confinados em habitats
tecnolgicos? Para a soluo desses problemas essencial o avan-
o cientfico multidisciplinar em gentica, imunologia, indstria
farmacutica, robtica e sistemas inteligentes. Para a colonizao
de planetas em outros sistemas estelares ser essencial a escolha
de pessoas que desempenhem funes teis, como engenheiros,
gelogos, bioqumicos, agrnomos, mdicos, administradores, lo-
gsticos etc. Mas ser fundamental incluir pessoas com profunda
habilidade social e, talvez, at mesmo artstica, de maneira a ga-
rantir uma convivncia pacfica e conciliadora.
No trivial garantir uma convivncia pacfica em um es-
pao confinado por tanto tempo. Estudos em ecologia da con-
servao indicam que um nmero mnimo de 50 colonizadores

342
Explorao Interestelar

seria fundamental para evitar as taxas de endogamia e manter a


variabilidade gentica, mas isso em uma discusso unicamente
biolgica. As grandes distncias interestelares tornam as viagens
tripuladas consideravelmente longas, cerca de milhares de anos.
Algumas opes so cogitadas para a soluo desse problema,
como naves que mantenham geraes de humanos ao longo dos
milhares de anos, ou ainda, a animao suspensa (hibernao),
congelamento de embries e upload da mente, por mais ficcio-
nal que possa parecer (atualmente). Contudo, novas tecnologias
de sistemas de propulso e acelerao constante podem tornar as
viagens interestelares substancialmente mais rpidas, em torno de
dezenas de anos.
Estimativas baseadas nos avanos cientficos e tecnolgicos
atuais indicam que a explorao de sistemas estelares mais pr-
ximos ser possvel dentro de 50 a 100 anos. O desenvolvimento
de novos telescpios, que permitam estudar especialmente a com-
posio de exoplanetas prximos, ir nortear os principais alvos
para as primeiras viagens espaciais. provvel que sejam enviadas
inicialmente espaonaves no tripuladas para os sistemas estelares
prximos. Aps o aperfeioamento dos sistemas de propulso para
a aquisio de velocidades consideravelmente altas, talvez as via-
gens tripuladas se tornem possveis. A seguir, sero discutidas al-
gumas das principais motivaes para a explorao interestelar, os
sistemas estelares prximos mais interessantes para a explorao
e colonizao humana, as tecnologias de sistemas de propulso
mais eficientes e viveis e, por fim, o financiamento necessrio
para a realizao de viagens tripuladas e no tripuladas rumo s
estrelas mais prximas.

Motivaes para a explorao interestelar


Alguns dos motivos que podem impulsionar a explorao
de outros sistemas estelares so a sobrevivncia da espcie, o
acesso a recursos naturais de interesse econmico, a propaga-
o da vida no Universo e a prpria curiosidade exploratria da
natureza humana.

343
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Muitos argumentam que a sobrevivncia da espcie humana


no o fator principal que justificaria a explorao intereste-
lar, por causa das escalas temporais envolvidas. Contudo, alguns
dos efeitos causados pelo crescimento populacional podem mo-
tivar nossa sada do planeta, como o esgotamento dos recursos
naturais e os desastres antropognicos. Para refletir sobre esse
cenrio, basta examinar a histria da nossa espcie. Um exem-
plo interessante a colonizao da Polinsia no oceano Pacfico
entre 3000 a.C. e 800 d.C. A populao austronsia, provavel-
mente da ilha de Taiwan ou da regio sul das Filipinas, migrou e
espalhou-se em direo Polinsia, Micronsia e Melansia. Os
povos austronsios fizeram longas viagens planejadas de canoas,
carregando consigo diversos produtos e animais. provvel que
os motivos de suas migraes tenham sido devido ao crescimen-
to populacional e esgotamento de recursos naturais (Bignami;
Sommariva, 2013).
Atualmente, h cerca de 7 bilhes de habitantes huma-
nos no planeta, e estima-se um total de 9 bilhes para 2050.
Podemos transpor o exemplo da migrao da populao
Austronsia para uma escala planetria de crescimento popu-
lacional e esgotamento de recursos e, desse modo, a necessi-
dade de colonizar outros planetas pode acabar se tornando de
extrema importncia. Existem duas correntes de pensamento a
respeito do esgotamento dos recursos naturais pelo crescimen-
to populacional: o neomalthusianismo afirma que a populao
ir realmente ultrapassar os recursos naturais disponveis, de
modo que a civilizao como a conhecemos ir entrar em co-
lapso dentro de algumas dezenas de anos. Por outro lado, a
revoluo agronmica, que ocasionou um aumento de apro-
ximadamente 250% na produo de alimentos fez que muitos
confiassem que os avanos cientficos e tecnolgicos na agri-
cultura iro solucionar o problema de esgotamento de recursos
(Sommariva, 2014).
Alm do esgotamento de recursos, outros problemas,
como desastres antropognicos e naturais, tornam-se evidentes

344
Explorao Interestelar

quando consideramos a nossa permanncia no planeta a longo


(ou mesmo a mdio) prazo. O uso exacerbado de combust-
veis fsseis uma das principais preocupaes por causa da
emisso de gases do efeito estufa, que podero provocar srias
mudanas climticas no futuro prximo. A coliso de meteori-
tos, asteroides ou cometas tambm uma grande preocupao
para a sobrevivncia da nossa espcie na Terra. Essas colises
ocorreram periodicamente na histria da Terra, e algumas de-
las talvez tenham contribudo para a extino de mais de 90%
da vida no planeta. No Cretceo-Palegeno (K-Pg), um asteroi-
de de 10 km causou um impacto de 1 milho de megatons, ex-
tinguindo todos os dinossauros no avianos. Um impacto dessa
magnitude tem uma frequncia de recorrncia de aproximada-
mente 35 milhes de anos (Tabela 16.1). Se um asteroide de 1
km causasse um impacto de 10 mil megatons, muito prov-
vel que todas as civilizaes da Terra entrassem em colapso.
Estimativas sugerem que um asteroide dessa proporo pode
colidir com a Terra em 2880 d.C. Outro problema natural,
alm do longussimo prazo, a evoluo natural do Sol, que,
com o tempo, ir se tornar uma gigante vermelha. Estimativas
sugerem que em 1 bilho de anos ocorrer um aquecimento
de 10% da Terra, que ser totalmente consumida pelo Sol nos
prximos 5 bilhes de anos (Bignami; Sommariva, 2013). O
filsofo e matemtico Bertrand Russel apresentava uma viso
pessimista a respeito do nosso futuro na Terra:

Nenhum fogo, herosmo ou intensidade de pensamento ou sentimento


pode preservar a vida alm do tmulo. Todo o trabalho ao longo das
eras, toda a devoo, inspirao e o brilho do gnio humano esto des-
tinados a se extinguir na imensa morte do Sistema Solar. E o templo das
conquistas do homem ser inevitavelmente enterrado sob os escombros
de um Universo em runas.

Por outro lado, uma viso mais otimista do fsico Stephen


Hawking diz:

345
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

No acho que vamos sobreviver outros mil anos sem fugir do nosso
frgil planeta. Mais cedo ou mais tarde, desastres como a coliso de um
asteroide ou uma guerra nuclear podem nos dizimar. Mas uma vez que
comecemos a nos espalhar pelo espao e a estabelecer colnias inde-
pendentes, nosso futuro deve estar garantido.

Tabela 16.1. Frequncia em anos de colises em termos de megatons


Impacto em termos de megatons Frequncia em anos

10 1.088
50 4.600
100 8.600
500 36.800
1.000 68.700
10.000 545.000
1.000.000 35.000.000
Fonte: Adaptado de Bignami e Sommariva (2013)

Alm das questes de sobrevivncia da nossa espcie, outros


motivos podem impulsionar a colonizao de planetas em outros
sistemas estelares, como interesses econmicos e comerciais na
explorao de recursos. Mas, acima de tudo, talvez um dos prin-
cipais alicerces da explorao interestelar ainda seja a prpria
natureza humana: curiosa, exploratria, habilidosa e adaptvel.
Caractersticas tais que fizeram que a humanidade dominasse a
tecnologia, a cincia e o planeta. De forma anloga, a explorao
dos primeiros navegadores europeus em direo s Amricas no
sculo XV foi sustentada pela curiosidade inquietante de percorrer
guas desconhecidas. Ou os primeiros exploradores do Polo Sul,
que, apesar de todas as condies hostis, se nutriam da curiosi-
dade em atingir locais que nenhum ser humano jamais alcanou.
Contudo, para que a explorao interestelar se torne plaus-
vel, essencial que encontremos planetas habitveis capazes de
suportar vida, sobretudo vida humana.

346
Explorao Interestelar

Sistemas estelares e planetas habitveis


Milhares de planetas considerados habitveis j foram detecta-
dos nos ltimos anos e muitos outros viro. Contudo, na busca de
alvos para a explorao interestelar preciso considerar algumas
caractersticas importantes. O planeta precisa estar em um sistema
estelar a, no mximo, 25 anos-luz de distncia (devido a nossas
atuais limitaes tecnolgicas). Precisa ser rochoso e de tamanho
semelhante a Terra (ou ento pode ser um gigante gasoso que pos-
sua luas habitveis). Deve ter gua lquida e, portanto, estar na
zona de habitabilidade de sua estrela. importante que tenha um
campo magntico que o proteja da radiao csmica, e que prefe-
rencialmente tenha oxignio em sua atmosfera. conveniente que
tenha uma lua que seja capaz de estabilizar sua obliquidade. Alm
disso, necessrio que a sua estrela seja semelhante ao Sol em
relao ao seu espectro, massa, raio e luminosidade. Ou, ainda,
muitos astrnomos tm indicado estrelas do tipo ans de classe M
como alvos interessantes, por serem mais numerosas e estveis.
Na Tabela 16.2 esto representados alguns dos principais sis-
temas estelares alvos para a explorao interestelar.
Alfa Centauri o sistema mais prximo, a 4,3 anos-luz da
Terra. Possui entre 4,5 e 7 bilhes de anos de idade e um siste-
ma estelar mltiplo que provavelmente possui elementos qumi-
cos pesados, como o nosso Sistema Solar. At o momento, foram
detectados dois exoplanetas, Alfa Centauri Bb e Alfa Centauri Bc,
em 2012 e 2015, respectivamente. Contudo, ambos os exopla-
netas no se encontram na zona habitvel da estrela (Dumusque
et al., 2012).
A estrela de Barnard est a 6 anos-luz da Terra; uma an ver-
melha de baixa massa, que possui cerca de 7 a 12 bilhes de anos,
sendo uma das mais antigas da Via Lctea. Em 1973 foi detecta-
do um planeta com massa semelhante a Jpiter, contudo, anlises
posteriores feitas pelo telescpio espacial Hubble no o detecta-
ram. Muitos astrnomos indicam que provvel que esse sistema
tenha planetas rochosos do tamanho da Terra, mas que ainda no
foram confirmados (Lissauer, 2002).

347
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Tabela 16.2. Lista de alvos interessantes para a explorao interestelar


Distncia em
Sistema Estelar Detalhes
anos-luz da Terra
Alfa Centauri 4,3 Sistema mais prximo. Triplo (G0,
K5, M5). Componente quase idnti-
co ao Sol. Alta probabilidade de pla-
netas que poderiam abrigar a vida
Estrela de Barnard 6 Sistema mais prximo conhecido a
ter um ou talvez dois planetas. An
vermelha (M5) pequena de baixa lu-
minosidade
Lalande 21185 8,2 An vermelha (M2) com um planeta
conhecido
Espesilon Eridani 10,8 Sistema com apenas uma estrela; um
pouco menor e mais fria que o Sol
(K2); pode ter um sistema planetrio
parecido com o Sistema Solar
Procyon 11,3 Estrela de grande massa (luz branca);
perde apenas para a Altair em lumi-
nosidade (20 anos-luz). O sistema
contm uma an branca
Tau Ceti 11,8 Sistema apenas com uma estrela,
com luminosidade e tamanho simi-
lares aos do Sol (G4). Alta probabi-
lidade de possuir um sistema plane-
trio parecido com o Sistema Solar
Gliese 876 15 An vermelha com um sistema pla-
netrio composto de quatro planetas

Lalande 21185 uma an vermelha a 8,31 anos-luz. Mltiplos


planetas foram detectados por astrometria em 1996; entretanto,
pesquisas subsequentes no os detectaram. Os limites de detec-
o dos mtodos atuais nesse sistema so de planetas de massa
um pouco menor que Jpiter, e provvel que, por esse motivo,
os planetas rochosos desse sistema ainda no foram observados
(Schneider et al., 2011).
Epsilon Eridani est a 10,5 anos-luz da Terra, possui menos
que 1 bilho de anos, tem alta atividade magntica (30 vezes maior
que a do Sol) e menor e menos massiva que o Sol. Poucos ele-
mentos mais pesados que o hlio foram detectados nessa estrela.

348
Explorao Interestelar

A deteco de planetas nesse sistema notadamente difcil, visto


que a estrela emite sinais que mimetizam a presena de planetas.
Um nico planeta (Epsilon Eridane b) foi detectado nesse sistema
em 2000, em uma posio semelhante de Jpiter no Sistema
Solar; porm, pouco se sabe a respeito de seu tamanho e compo-
sio (Metcalfe et al., 2013).
Gliese 876 uma an vermelha a 15 anos-luz da Terra.
Mltiplos planetas foram detectados nesse sistema: Gliese 876
d, Gliese 876 c, Gliese 876 b e Gliese 876 e. Os trs ltimos
so planetas gasosos do tamanho de Jpiter (Gliese 876 c, b,
e), e Gliese 876 d uma Superterra. At o momento, poucas
informaes foram obtidas sobre esses exoplanetas (Shankland
et al., 2006).
Tau Ceti, Gliese 581 e Gliese 667C so atualmente os sis-
temas candidatos mais interessantes para as viagens intereste-
lares. Tauti Ceti muito similar ao Sol espectroscopicamente.
Est a 12 anos-luz de distncia da Terra, possui 78% da massa
do Sol e significativamente estvel. Foram detectados cinco
planetas nesse sistema: Tau Ceti b, Tau Ceti c, Tau Ceti d, Tau
Ceti e, e Tau Ceti f, provavelmente todos rochosos. Os planetas
exibem perodos orbitais de 14 a 640 dias e possuem de 2 a 6
vezes a massa da Terra. O menor, Tau Ceti e, est localizado
na zona habitvel da estrela, a 0,552 UA (zona habitvel de
0,55 a 1,16 UA), e o candidato mais interessante desse siste-
ma como alvo para a explorao e possvel colonizao huma-
na (Tuomi et al., 2013). Gliese 581 uma an vermelha, com
3 vezes a massa do Sol e est a 20 anos-luz da Terra. Foram
confirmados quatro planetas Gliese 581 b, Gliese 581 c, Gliese
581 e, Gliese 581 d, e mais dois foram propostos (Gliese 581 f e
Gliese 581 g). Gliese 581 c est na zona habitvel, contudo pa-
rece ter um efeito estufa que o torna muito quente. Gliese 581
g e Gliese 581 d tambm esto na zona habitvel, e Gliese 581
g um dos principais candidatos habitabilidade entre pla-
netas de todos os sistemas estelares estudados at o momento
(Figuras 16.1 e 16.2).

349
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

ESI
Exoplanetas potencialmente habitveis 1,00 0,66

Comparados com a Terra e Marte, e ranqueados em ordem de similaridade com a Terra

Terra Marte

#1 #2 #3 #4 #5 #6 #7 #8 #9
ndice de Similaridade
com a Terra (ESI)
0,92 0,85 0,81 0,79 0,77 0,77 0,72 0,72 0,71

Gliese 581 g* Gliese 667C c Kepler -22b HD 40307 g* HD 85512 b Tau Ceti e* Gliese 163 c Gliese 581 d Tau Ceti f*

Data da descoberta
set. 2010 nov. 2011 dez. 2011 nov. 2012 set. 2011 dez. 2012 set. 2012 abr. 2007 dez. 2012

*possveis candidatos

Figura 16.1. Ranking de exoplanetas habitveis detectados at 2012. Fonte:


PHL, UPR Arecibo (phl.upr.edu), 2012

1
Massa da estrela (em massas solares)

Sol

Gliese 581

Zona habitvel
Possvel extenso da zona habitvel
relacionada a diversas variveis

0,1
0,1 1,0 10
Distncia da estrela (AU)

Figura 16.2. Zona de Habitabilidade do sistema planetrio de Gliese 581.


Fonte: Adaptado de European Southern Observatory ESO (eso.org)

Em 2008 foi enviado um sinal de rdio visando comuni-


cao com possveis seres inteligentes desse sistema, que chega-
r em 2029 (Gregory, 2012). Gliese 667C est a 22 anos-luz da
Terra e um sistema de trs estrelas (A, B e C). Foram detectados
dois planetas ao redor da estrela C de Gliese 667 (Gliese 667C

350
Explorao Interestelar

b e Gliese 667C c), e mais cinco planetas que ainda no foram


confirmados. Gliese 667C c recebe 90% da luminosidade que a
Terra recebe e, por absorver energia eletromagntica, estimativas
indicam que so alcanadas temperaturas prximas a confortveis
4 C. Gliese 667C c est classificado como o segundo planeta
mais semelhante Terra descoberto at o momento (Figura 16.1)
(Robertson; Mahadevan, 2014).
Avanos na busca de exoplanetas e de estudos quanto sua
composio sero essenciais para que a explorao interestelar tor-
ne-se factvel. Novos telescpios esto sendo desenvolvidos para
essa finalidade, como o Next-Generation Transit Survey (ngts) e o
Very Large Telescope, e provvel que nos prximos anos muitas in-
formaes sobre a composio desses exoplanetas sejam reveladas.

Tecnologia de propulso
Uma vez que as distncias interestelares so substancialmente
elevadas, uma velocidade significativa necessria para que a es-
paonave alcance seu destino em um tempo razovel. Adquirir tal
velocidade no lanamento e desacelerar no momento da chegada
ao planeta-alvo um desafio para os engenheiros das espaona-
ves. O problema de escapar da gravidade da Terra pode ser solu-
cionado quando se considera a construo de um porto espacial
na rbita da Terra ou nos pontos de Lagrange, entre a Terra e a
Lua. Dessa forma necessrio o desenvolvimento de sistemas de
propulso capazes de acelerar a espaonave a fraes significati-
vas da velocidade da luz. Se uma espaonave fosse capaz de viajar
a uma velocidade mdia equivalente a 10% da velocidade da luz,
seria possvel alcanar Alfa Centauri em quarenta anos (Bignami;
Sommariva, 2013). Diversos sistemas de propulso seriam capa-
zes disso, mas ainda nenhum deles economicamente vivel. Na
Tabela 16.3 esto representados os impulsos especficos em se-
gundos para alguns sistemas de propulso. A seguir sero descritos
os principais sistemas de propulso de acordo com as tecnologias
atuais: reatores nucleares (fisso e fuso nuclear), veleiros solares
movidos por lasers e sistemas de antimatria.

351
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Tabela 16.3. Impulsos especficos em segundos de acordo com cada tipo de


engenharia espacial
Tipo de propulso de espaonaves Impulso especfico

Combustvel slido 250


Combustvel lquido 450
ons 3.000
Fisso nuclear 800 1.000
VASIMR (plasma) 1.000 30.000
Fuso nuclear 2.500 200.000
Pulso nuclear 10.000 1 milho
Aniquilao matria-antimatria 1 milho 10 milhes
Fonte: Adaptado de Bignami e Sommariva (2013)

Dois tipos de reatores nucleares podem ser considerados para


os sistemas de propulso de espaonaves: sistemas de fisso nu-
clear e sistemas de fuso nuclear. A fisso nuclear opera como
uma srie de exploses de bombas nucleares, absorvendo parte
do momento dos detritos resultantes. Pode atingir acelerao de
1 g por 10 dias at seu combustvel esgotar, atingindo velocida-
des de aproximadamente 10.000 km/s, ou 3,3% da velocidade da
luz. Esse tipo de propulso seria mais adequado para a explora-
o do Sistema Solar do que para as exploraes interestelares.
Contudo, alguns melhoramentos, como a transferncia direta de
energia para o gs propulsivo, podem futuramente tornar viveis
as misses interestelares com esse tipo de propulsor (Bignami;
Sommariva, 2013). Na dcada de 1960, o projeto Orion idealizou
uma espaonave movida por sistemas de fisso nuclear; contudo,
o projeto nunca foi executado devido dificuldade de se iniciar
reaes nucleares controladas (Dyson, 1968).
A fuso nuclear consiste na fuso de plasma (especialmen-
te de hidrognio) em altas temperaturas, confinado em garrafas
magnticas. Outros elementos poderiam servir tambm como
combustvel, como o deutrio, o trtio e o hlio. A fuso nucle-
ar energeticamente mais favorvel que a fisso e possui maior

352
Explorao Interestelar

impulso especfico, apresentando maior eficincia de acelerao


a longo prazo. Com esse tipo de propulso, seria possvel atingir
10% da velocidade da luz, tornando viveis viagens para estrelas
mais prximas. A principal desvantagem da fuso nuclear como
sistema propulsor a grande massa necessria para o reator de
fuso (Bignami; Sommariva, 2013). Alm disso, esse sistema
envolve tecnologias massivas que podem ainda demorar dca-
das para se desenvolverem. O Projeto Daedalus, realizado pela
British Interplanerary Society na dcada de 1970, idealizou uma
espaonave interestelar tripulada com sistema de propulso por
fuso nuclear, que deveria chegar estrela de Barnard dentro
de 50 anos (Crawford, 1990). No entanto, da mesma forma que
na fisso nuclear, a tecnologia necessria para sustentar a fuso
controlada de maneira a impulsionar uma nave ainda est em
desenvolvimento.
Veleiros solares movidos por lasers poderiam alcanar ve-
locidades ainda maiores. Nesse sistema de propulso, a presso
de radiao dos ftons emitidos por lasers empurraria uma vela
gigante de quilmetros de extenso, acelerando a espaonave a
velocidades que poderiam chegar a 50% da velocidade da luz. As
velas so feitas de grandes espelhos membranosos de pouca massa
que ganham momento linear ao refletirem ftons. Os lasers devem
se posicionar em rbitas prximas do Sistema Solar e podem obter
energia da radiao solar para seu funcionamento. Em 2004, um
foguete japons lanou com sucesso dois pequenos prottipos de
veleiros solares no espao. Em 2006, um veleiro solar de 15 m
foi lanado em rbita pelo foguete japons M-V, embora a vela
no tenha sido aberta completamente. O principal problema desse
sistema de propulso seria a montagem e o material das imensas
velas solares, visto que o sistema de propulso por lasers propria-
mente dito j uma tecnologia acessvel atualmente (Bignami;
Sommariva, 2013; Johnson et al., 2011) (Figura 16.3).
O sistema de propulso por antimatria consiste na aniquila-
o de partculas subatmicas com suas correspondentes de an-
timatria. Esse tipo de reao apresenta a maior taxa de energia

353
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

por unidade de massa em relao a qualquer outra reao co-


nhecida pela fsica. A antimatria deve ser estocada em com-
partimentos com campos eltricos e magnticos (Figura 16.4).
Dois tipos de propulso de antimatria podem ser explorados:
sistemas de propulso gerados somente pela energia aniquilada,
e sistemas que usam antiprtons para iniciar processos de fu-
so em um plasma comprimido ou condensado (Keane; Zhang,
2011). A propulso por antimatria pode atingir at 60% da ve-
locidade da luz. O principal problema a estocagem e produo
de grandes quantidades de antimatria. Contudo, se o proble-
ma um dia for solucionado, esse ser, sem dvida, o sistema
mais vivel para a realizao das viagens interestelares (Bignami;
Sommariva, 2013).

Figura 16.3. Concepo artstica de um veleiro solar. Fonte: Nasa/msfc

Na Tabela 16.4 esto listadas diferentes formas de transporte


e o tempo aproximado para a chegada at Alfa Centauri, a 4,28
anos-luz da Terra. Observa-se que, com os sistemas de propulso
de velas solares ou antimatria, o tempo de chegada de menos
de 10 anos. No entanto, pouco se sabe quais seriam os efeitos
fisiolgicos em humanos ao se atingir fraes significativas da ve-
locidade da luz e, especialmente, como lidar com as aceleraes
e desaceleraes necessrias.

354
Congurao do projeto conceitual para uma nave interestelar (parte central em feixe)
Radiao
Radiador do sistema Carga Radiador do gama
de converso de potncia til refrigerador
Escudo trmico Escudo 19,9 m
Escudo trmico
magntico
Escudo
contra
impacto
de poeira
impulso
Tanque Tanque Escudo de radiao Escudo do
anti SH2 de LH2 do sistema e carga radiador Ponto de
Sistema de potncia Sistema de Refrigerador
espaonave aniquilao

Frente Carga Combustvel Propulso


83,7 km 515 km

Figura 16.4. Esquema de um sistema de propulso por antimatria. Fonte: Adaptado de Frisbee (2003)

355
Explorao Interestelar
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Tabela 16.4. Tempo aproximado em anos at a chegada ao sistema de Alfa


Centauri, de acordo com diferentes formas de transporte e sistemas de propulso
Forma de transporte Velocidade Tempo

A p 0,0013 1.000.000.000
Carro 0,026 50.000.000
Boeing 747 0,26 5.000.000
Voyager 1 17 76.000
Fisso Nuclear 10.000 120
Fuso Nuclear 30.000 40
Velas Solares 150.000 9
Antimatria 160.000 8
Luz 300.000 4,28
Fonte: Adaptado de Bignami e Sommariva (2013)

Financiamento
Diversas crticas da populao em geral so atribudas aos in-
vestimentos governamentais com os programas espaciais. O argu-
mento fundamenta-se no fato de que os problemas terrestres j so
grandes demais para termos tambm que nos preocupar com gastos
em cincia do espao. Os problemas terrestres argumentados, so-
bretudo a pobreza e escassez de alimentos, poderiam ser significati-
vamente solucionados caso houvesse melhor distribuio de renda
e interesse dos governantes. Alm disso, o investimento na indstria
militar espantosamente maior em comparao a investimentos
em qualquer outro setor, inclusive nos programas espaciais (Tabela
16.5). Para que nossa civilizao tenha grandes avanos cientficos
e tecnolgicos, necessrio que estejamos prontos para uma cul-
tura de cooperao e no violncia, reduzindo gradualmente os
gastos militares e dedicando os recursos a outros setores, inclusive
para a explorao espacial. A reduo dos gastos militares poderia
no causar grandes efeitos negativos nas atividades econmicas,
uma vez que grande parte das indstrias envolvidas na produo
de tecnologia militar, como as indstrias aeroespaciais, certamente

356
Explorao Interestelar

participariam dos novos programas espaciais. Dessa forma, prova-


velmente somente com essa postura de cooperao e no violncia
sero viveis os avanos para a explorao interestelar.

Tabela 16.5. Comparao entre o investimento de programas militares e


espaciais
2011 30 anos (extrapolao %

Gastos militares mundiais 1.617,7 48.531 100


Gastos militares dos eua 739,3 22.179 45,7
Gastos militares no restante do 878,4 26.352 54,3
mundo
Gastos totais com pesquisas 24,9 748.0 100
espaciais
Nasa1 16,0 480.0 64,2
esa 5,6 168.0 22,5
Estao Espacial Internacional 3,3 100.0 13,4
Gastos espaciais em relao (%)
aos gastos militares
Nasa1 1,0 1.3
esa 0,3 0.3

Estao espacial internacional (eii) 0,2 0.2


Fonte: Bignami e Sommariva (2013)
1
Excluindo-se gastos com a Estao Espacial Internacional. Fonte dos dados dos gastos militares: IISS;
oramentos espaciais: Nasa e esa

Bignami e Sommariva (2013) propem trs possveis estgios


para um programa espacial interestelar e os custos para cada um,
tornando-os factveis quando se considera os interesses econmicos
em seu investimento. O primeiro consistiria no design da tecnolo-
gia de propulso adequada para viagens tripuladas inicialmente no
Sistema Solar e sondas automatizadas para misses interestelares. O
segundo contaria com a construo de uma infraestrutura (espao-
-porto) que transportasse para o espao as naves espaciais projeta-
das, e com o design de uma espaonave capaz de atingir uma frao
significativa da velocidade da luz. No terceiro, por fim, ocorreria a
explorao tripulada e colonizao dos sistemas estelares prximos.

357
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

A seguir sero apresentados os custos estimados para cada etapa


descrita acima, de acordo com Bignami e Sommariva (2013).
O primeiro estgio no deve exceder alguns poucos bilhes
em um perodo de 10 anos. Atualmente, para a tecnologia de an-
timatria, 1g de antiprton custaria cerca de 63 trilhes de dlares.
Contudo, importante considerar que, conforme os avanos tecno-
lgicos, este preo tende a decair ao longo do tempo. Alm disso,
upgrades na tecnologia de antimatria podem diminuir a quantidade
de antiprtons necessria para o sistema de propulso. estimado
que seja necessrio de 1 a 100g de antiprtons para sondas no
tripuladas em misses interestelares ou para espaonaves tripuladas
no Sistema Solar. O custo para a produo dessa quantidade de anti-
prtons seria em torno de 60 milhes de dlares. Para a produo de
antimatria, seria interessante a construo de instalaes que po-
dem servir tambm para outras aplicaes alm da espacial. O custo
para a construo delas seria em torno de 20 a 30 bilhes de dlares.
O segundo estgio seria o mais caro de todos a etapa para a
construo de um porto espacial orbitando a Terra, com a finalidade
de montagem e lanamento das sondas interestelares e naves espa-
ciais tripuladas para o Sistema Solar. Alm disso, o porto espacial
auxiliaria o desenvolvimento de sistemas de propulso para viagens
interestelares tripuladas no futuro, previstas para o terceiro estgio
do programa espacial interestelar. O custo para a montagem do por-
to espacial, baseado nos custos de montagem da Estao Espacial
Internacional (iss), seria entre 200 e 300 bilhes de dlares em 30
anos. Cerca de 10 bilhes de dlares seriam gastos por cada sonda
no tripulada enviada, considerando a tecnologia de antimatria.
Para uma misso tripulada no Sistema Solar para Marte, por exem-
plo , os custos estariam entre 20 e 50 bilhes de dlares. O total de
investimento para esse segundo estgio seria entre 300 e 500 bilhes
de dlares em 30 anos. Esses valores, apesar de parecerem muito
altos, poderiam estar disponveis se houvesse uma reduo de 1,5%
dos gastos militares durante o mesmo perodo de tempo (30 anos).
No terceiro estgio, os custos para uma nave tripulada baseada
em antimatria para a explorao de estrelas prximas seria entre 30

358
Explorao Interestelar

e 40 bilhes de dlares, considerando a construo do porto espa-


cial no segundo estgio. Esse valor razovel ainda poderia diminuir
de acordo com os avanos tecnolgicos de produo de antimatria.

Concluses
A viagem interestelar apresenta uma srie de dificuldades: a
descoberta e o estudo de exoplanetas habitveis para a nossa pos-
svel colonizao, o desenvolvimento de tecnologias de propulso
capazes de atingir fraes significativas da velocidade da luz e o
interesse do governo em financiar os programas espaciais intereste-
lares. Essas viagens parecem inviveis ao se imaginar que mal con-
seguimos explorar o nosso prprio Sistema Solar. Contudo, o desen-
volvimento cientfico e tecnolgico avana em fase exponencial, e
com um pouco de interesse do governo em investir nos programas
espaciais provvel que consigamos explorar estrelas prximas nos
prximos 50 ou 100 anos. Se quisermos considerar a sobrevivncia
da humanidade a longo prazo, necessrio que o pensamento de
cooperao supere os conflitos locais, e que as foras e investimen-
tos se renam para garantir nosso futuro nas estrelas.

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ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

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riodic variations in the Ceti velocities. Astronomy & Astrophysics,
v. 551, p. A79, 2013.

360
GLOSSRIO

Abiognese Hiptese cientfica que se refere origem da vida


a partir da matria inanimada, pelo aumento da
complexidade qumica do meio, auto-organiza-
o e surgimento de uma entidade autopoitica.

Absoro qumica Processo em que um material retido no in-


terior de outro material.

cido nucleico Um polmero de nucleotdeos. Nos organis-


mos vivos, formam as molculas que contm
a informao gentica (dna e rna).

Acidoflico Organismo que cresce melhor em valores de


(Acidfilo) pH abaixo de 5,0.

ADP Adenosina difosfato.

361
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Adsoro Processo em que um material retido na su-


perfcie de um slido.

Aerbio Quando o processo de produo de energia


metablica de um organismo depende de
molculas de oxignio.

Alcaliflico Organismo que cresce melhor em valores de


(Alcalfico) pH acima de 8,0.

Alelo Variante de um determinado gene.

Ambientes Ambientes da Terra cujos parmetros fsico-


extremos -qumicos (temperatura, pH, salinidade, radia-
o, ausncia de gua lquida, entre outros)
so extremamente baixos ou elevados, dificul-
tando a sobrevivncia dos organismos vivos.

Ameba tecada Organismo de morfologia ameboide (ou seja,


se movimenta utilizando pseudpodes) que
constri uma carapaa, tambm chamada de
teca, onde vive.

Aminocido Molcula que possui um grupo carboxlico


(COOH) e um grupo amina (NH2). O aminocido
mais simples, a glicina, j foi detectado no meio
interestelar e em meteoritos, tendo sido sintetiza-
do em processo astroqumicos. Eles so os mon-
meros que formam os peptdeos e protenas.

An marrom Corpo celeste constitudo majoritariamente de


hidrognio e hlio, similar a uma estrela, mas
que no possui massa suficiente para iniciar a
fuso do hidrognio. Dependendo da massa,
no entanto, pode fundir deutrio e ltio.

362
Glossrio

Anaerbio Quando no h participao de oxignio no


processo de produo de energia metablica
de um organismo. Como alternativa respi-
rao aerbica, pode ser utilizada a respira-
o anaerbica ou fermentao, porm com
uma eficincia energtica inferior ao proces-
so aerbico.

nion on com carga negativa.

Arqueano Intervalo de tempo geolgico entre 2,5 e 4


bilhes de anos atrs. poca das primeiras
evidncias de fsseis no planeta Terra, sendo
seguido pelo Proterozoico.

Arqueia Um dos 3 domnios da vida, na classificao


(ou Archaea) atual. Micro-organismos similares a bactrias
em termos de morfologia celular, porm clas-
sificados em um Domnio distinto por possuir
diferenas em seu genoma, metabolismo e
histrico evolutivo.

rvore filogentica Representao grfica da histria evoluti-


va (natural) dos organismos vivos. Pode ser
construda usando como base variaes en-
tre genes ou traos fenotpicos qumicos e
morfolgicos, que so indicativos de proxi-
midade ou distncia evolutiva.

Asteroide Pequeno corpo rochoso que orbita o Sol, ten-


do um raio tpico inferior a centenas de qui-
lmetros. Podem ser resqucios do processo
de formao do Sistema Solar ou resultado
de choques com planetas. Normalmente
no apresentam geometria esfrica por no

363
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

possurem massa suficiente para a diferencia-


o de sua estrutura por fora gravitacional.

Atmosfera Atmosfera sem, ou com poucos, compostos


redutora oxidantes (O2, CO2, NOx etc.), podendo ser
rica, por exemplo, em H2.

tomo Unidade bsica da matria que ainda conser-


va suas principais caractersticas. Constitudo
de um ncleo positivo com prtons e nu-
trons, envolto por uma nuvem de eltrons de
carga negativa.

ATP Adenosina trifosfato. Molcula utilizada para


armazenamento temporrio de energia qu-
mica na forma da ligao fosfato-fostato. Essa
ligao pode ser formada ou quebrada con-
forme a necessidade metablica celular.

Autocataltico Material ou molcula capaz de acelerar rea-


es para sua prpria sntese.

Autopoiese Propriedade de um sistema de se auto-orga-


nizar (emergncia) e de se automanter com o
tempo (com gasto de energia).

Bactrias Um dos trs domnios da vida, na classificao


atual. Micro-organismos procariotos, mas dis-
tintos na gentica e bioqumica das arqueias.

Baroflico Organismo adaptado ao crescimento sob


presso acima de 300 atm. Tipicamente
encontrados no fundo dos oceanos ou na
litosfera.

364
Glossrio

Big Bang Evento que teria ocorrido cerca de 13,82 bi-


lhes de anos atrs, quando, espao, tempo
e matria teriam se formado em um incio
extremamente quente e denso, tendo se ex-
pandido e esfriado, dando origem a todos
as estruturas do Universo atual. Esse modelo
cientfico, associado a um processo de rpi-
do crescimento, conhecido como inflao,
base de grande parte das teorias cosmol-
gicas modernas, sendo apoiado por diversos
fatos observacionais.

Bioassinatura Alterao (marca/assinatura) deixada em um


ambiente por um organismo vivo. Essas as-
sinaturas podem ser classificadas de acordo
com sua natureza: moleculares (podendo ser
diretas, como biomolculas, ou indiretas,
pela alterao qumica do ambiente, como
oxignio na atmosfera ou os minerais oxida-
dos da crosta), morfolgicas (como fsseis) e
tecnolgicas (como sinais de rdio, laser ou
mesmo estruturas artificiais).

Biochip Tecnologia utilizada para realizar experimentos


(reaes bioqumicas) em estruturas miniaturi-
zadas. Pode ser considerado um laboratrio em
escala microscpica, trabalhando com volumes
de soluo tipicamente de microlitros.

Biosfera Conjunto de ecossistemas da Terra, onde h


seres vivos. Com a descoberta dos organis-
mos extremfilos, o conceito de biosfera tem
se estendido desde o fundo dos oceanos e
mesmo quilmetros abaixo da superfcie, nas
rochas, at o alto da atmosfera.

365
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Buraco negro Regio no espao-tempo com campo gravi-


tacional to intenso que nem mesmo a luz
consegue escapar. Tipicamente so formados
em processos estelares, no trmino da evolu-
o de estrelas massivas, ou por acrscimo
de massas em estrelas menores.

Catalisador Material que diminui a energia de ativao


de uma reao, aumentando sua velocidade,
mas sem ser consumido durante o processo.

Ction on com carga positiva.

Cianobactria Bactria que obtm energia celular atravs


da fotossntese.

Clorofila Grupo de pigmentos fotossintticos presentes


nos cloroplastos de algas e plantas. Possui
um grupo porfirnico substitudo por um cen-
tro de Mg como grupo cromofrico central.

Cloroplasto Organela de origem provavelmente endos-


simbitica presente em clulas de algas e
plantas, responsvel pela fotossntese.

Cdigo gentico Cdigo que relaciona a sequncia de bases


do dna com as sequncias de aminocidos
nas protenas. A traduo da linguagem ge-
ntica para a proteica acontece no proces-
so de sntese no ribossomo, com auxlio de
molculas de rna mensageiro, transportador
e ribossmico.

Cometa Corpos menores que orbitam o Sol, apre-


sentando uma cauda visvel ao se aproximar

366
Glossrio

deste, pela evaporao e ionizao de seu


material. Provavelmente se formaram pela
condensao da nebulosa primitiva do
Sistema Solar, 4.6 bilhes de anos atrs, pre-
servando sua constituio de gases volteis
e gros em um ncleo criognico. Tm im-
portncia para os estudos da origem e evolu-
o qumica do Sistema Solar, especialmente
para a explicao do aporte de elementos vo-
lteis para a Terra, inclusive a gua.

Cromossomo Trecho do genoma que contm diversos ge-


nes, composto por uma nica molcula de
dna. Um organismo pode ter um ou mais
cromossomos.

Cultura Em microbiologia, uma cultura um conjun-


to de micro-organismos crescidos em condi-
es controladas em laboratrio. Estima-se
que apenas uma pequena parte (cerca de
1%) de todos os micro-organismos presentes
na natureza possa ser mantida de maneira es-
tvel em cultivos de laboratrio.

Curiosity Nome do rover norte-americano (Nasa) que


pousou em Marte em 2012 (cratera Gale), ainda
operacional. Tambm conhecido como Mars
Science Laboratory, tendo o objetivo de estudar
o passado geolgico e hidrolgico do planeta,
para melhor compreender sua habitabilidade.

Darwinismo Teoria evolutiva dos organismos vivos com


(evoluo darwiniana) base em variao fenotpica entre indivduos
(decorrente de variabilidade gentica, mu-
taes etc.) e herana dessas caractersticas.

367
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Adicionalmente, diversos processos podem li-


mitar essa variabilidade fenotpica pelo sucesso
reprodutivo de algum variante (seleo natural,
deriva gnica, efeito fundador etc.). Importante
lembrar que a evoluo biolgica no dire-
cional, previsvel ou geradora de complexidade
(necessariamente). A teoria da evoluo uma
das teorias mais bem-sucedidas da cincia mo-
derna, fortemente embasada em fatos, experi-
mentos em laboratrio e modelos tericos.

Deriva gnica Mudana na frequncia de alelos em uma


populao devido amostragem aleat-
ria de organismos presentes em geraes
subsequentes.

Difuso Redistribuio de tomos, molculas ou


partculas em um sistema, tendendo, pelos
princpios termodinmicos, de partir de con-
centraes desiguais para um sistema homo-
gneo e isotrpico. Movimento de partculas
de regies mais concentradas para menos
concentradas.

Dinossauros Tecnicamente, o termo dinossauro neces-


no avianos sariamente inclui as aves modernas, e o ter-
mo no aviano procura evitar essa deriva-
o mais moderna. No entanto, h diversas
espcies fsseis intermedirias descritas que
j apresentam fentipos avianos.

DNA (ADN) cido desoxirribonucleico. composto


de uma dupla hlice formada por dois po-
lmeros de nucleotdeos, mantida unida e
estvel por ligaes de hidrognio. So as

368
Glossrio

macromolculas/biopolmeros que armaze-


nam a informao gentica em grande parte
dos organismos vivos.

Domnio O nvel mais elevado utilizado na classifi-


cao cientfica dos seres vivos. O esquema
de classificao mais usado constitudo de
trs domnios: Archaea (Arqueia), Bacteria
(Bactria) e Eukarya (Eucarioto).

Dormncia Estado celular caracterizado por diminuio


das taxas de reaes metablicas, e, tipica-
mente, com ausncia de reproduo.

Ediacarano ltimo perodo do Proterozoico, conhecido


pela exploso de diversidade animal.

Eltron Partcula subatmica elementar, segundo o


modelo padro, com carga negativa (lpton).
Nos tomos, neutraliza a carga positiva dos
prtons, tornando-os eletricamente neutros.

Entropia Funo de estado termodinmica que mede


o nmero de microestados possveis em um
sistema termodinmico. Pode ser relaciona-
do com o grau de desordem do sistema,
e, para um sistema isolado, a segunda lei da
termodinmica afirma que a entropia do sis-
tema sempre ir aumentar. O mesmo no
vlido para um sistema em interao, onde
pode haver diminuies locais de entropia
(como o caso de sistemas biolgicos que se
auto-organizam ao custo da desorganizao
de seu ambiente).

369
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Enzima Biomolcula, geralmente de natureza pro-


teica, que apresenta capacidade de catalisar
reaes qumicas.

Era geolgica Divises de tempo geolgico, marcadas


por variaes significativas nas condies e
eventos do planeta.

ESA Agncia Espacial Europeia (European Space


Agency em ingls)

Espcie Classificao biolgica que delimita um gru-


po de organismos semelhantes. Atualmente,
so usados critrios ecolgicos, morfolgi-
cos, bioqumicos e genticos para definir
uma nova espcie.

Espectroscopia Termo utilizado por toda tcnica cientfica


de anlise com a qual so coletados dados de
alguma partcula (incluindo ftons, os quanta
da luz, ou radiao eletromagntica) de acor-
do com a sua energia.

Estrela Corpo celeste com massa suficiente para ini-


ciar reaes de fuso nuclear de hidrognio
em seu interior, desencadeadas por sua pr-
pria gravidade.

Estromatlito Estrutura estratificada (em camadas) formada


pela precipitao de minerais por micro-orga-
nismos, geralmente biofilmes de cianobactrias.

Eucariontes Organismos cuja organizao celular inclui


uma membrana nuclear, separando o mate-
rial gentico principal do citoplasma.

370
Glossrio

Eucariotos Domnio da vida caracterizado principal-


(Eukarya) -mente por clulas contendo organelas mem-
branosas e um ncleo abrigando o material
gentico.

Evoluo Descendncia com modificao. Processo


que explica a diversificao da vida ter-
restre, baseado em fatos observacionais e
experimentais.

Exoplaneta Planeta no pertencente ao nosso Sistema


Solar, orbitando outra estrela ou mesmo va-
gando livre pelo espao interestelar.

Explorao espacial Ato de explorar o espao, seja usando sondas


robticas ou naves tripuladas.

Extremfilo Organismo que possui adaptaes celulares,


metablicas e ecolgicas para sobreviver em
ambientes extremos. Podem ser extremo-
-tolerantes (apenas toleram essas condies
extremas, porm no so suas condies ti-
mas de crescimento) e extremfilos estritos
(cujo crescimento, reproduo etc. ocorrem
apenas em condies extremas).

Fagocitose Captura e englobamento de uma partcula,


possivelmente uma clula, por outra, em um
processo ativo e com gasto de energia.

Fanerozoico Intervalo do tempo geolgico que abrange


desde 542 milhes de anos atrs at os dias
atuais. Caracterizado, entre outras coisas,
pelo surgimento de uma abundante evidn-
cia fssil de animais com partes rgidas.

371
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Fentipo Caractersticas fsicas e fisiolgicas observ-


veis em um organismo.

Fixao Processo biolgico de obteno dos elemen-


(do nitrognio tos nitrognio ou carbono a partir de fontes
ou carbono) inorgnicas, como da atmosfera (a partir de
N2 e CO2).

Luminescncia Processo em que uma espcie qumica ab-


sorve energia eletromagntica (por excitao
eletrnica) e a reemite em um comprimento
de onda diferente.

Fonte hidrotermal Emergncia de guas subterrneas aquecidas


por atividade geotrmica ou vulcanismo, po-
dendo ocorrer na superfcie da Terra ou no
fundo dos oceanos.

Fssil Marca ou padro morfolgico ou molecular


deixado por seres vivos preservados em es-
truturas geolgicas.

Fton Partcula fundamental carregadora da fora


eletromagntica.

Fotossntese Processo realizado por seres vivos em que


energia luminosa convertida em energia
qumica, disponibilizada para funes celu-
lares, como a fixao do carbono.

Fumarola negra Tipo de fonte hidrotermal caracterizada pela


formao de minerais escuros (principalmen-
te devido alta concentrao de S e Fe) pre-
cipitados em forma de chamin.

372
Glossrio

Gabroica (rocha) Rocha gnea intrusiva (de origem vulcnica),


de colorao escura e com granulao mdia
a grossa, formada a partir do resfriamento de
magmas de composio basltica.

Galxia Conjunto de vrios sistemas estelares liga-


dos gravitacionalmente, como a Via Lctea.
Muitas galxias tm, em seu centro gravita-
cional, um buraco negro supermassivo.

Gelo glacial Gelo formado a partir da precipitao e com-


(glaciar) pactao da neve nas regies polares e alpi-
nas da Terra. Sua colorao varia de bran-
co a azul profundo, dependendo da presso
a que foi sujeito, podendo ser altamente
transparente.

Gene Sequncia do material gentico que codifica


uma molcula de RNA funcional ou que
expressa em uma protena.

Genoma O conjunto total do material gentico de um


organismo, incluindo todos os genes e todas
as regies no codificantes.

Gentipo Parte do genoma que determina uma carac-


terstica de um organismo.

Grandes extines Eventos identificados no registro fssil em


que houve grande perda da biodiversidade
no planeta em um intervalo relativamente
curto de tempo.

Habitabilidade Potencial de uma regio ou corpo celeste


de abrigar vida. Obviamente depende da

373
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

definio de vida usada, mas a mais comum


se baseia na presena de gua em estado l-
quido na superfcie.

Hadeano Primeiro intervalo do tempo geolgico. Tem in-


cio com a formao da Terra (h cerca de 4,6 bi-
lhes de anos atrs). Foi seguido pelo arqueano.

Haloarqueias Micro-organismos do domnio Archaea que


so adaptados ao crescimento em altas con-
centraes de sais, ou seja, haloflicos.

Haloflico (halfilo) Organismo que cresce melhor em altas con-


centraes de sais.

Hidroflico Material com afinidade por gua e solues


aquosas (normalmente por ser polar).

Hidrofbico Material que repele gua (normalmente por


ser apolar).

Hidrlise Quebra de ligaes qumicas envolvendo


molculas de gua.

Higroscpico Molcula ou composto que possui proprie-


dade de absorver molculas de gua.

Hipersalinos Ambientes cuja concentrao de sais (espe-


cialmente NaCl) superior da gua do mar.

Hipertermoflico Organismo que necessita de temperaturas


(hipertermfilo) acima de 85 C para o crescimento.

Homologia A existncia de ancestralidade em comum


entre estruturas ou genes.

374
Glossrio

Infravermelho Regio do espectro eletromagntico com


comprimentos de onda maiores que o da luz
visvel (tipicamente acima de 1000 nm).

on Espcie qumica carregada eletricamente, re-


sultante de um tomo ou molcula que per-
deu ou ganhou eltrons.

Ismeros Molculas com a mesma composio qumi-


ca, mas com estruturas distintas.

Ligao peptdica Ligao qumica entre dois aminocidos, em


que um grupo amina de um aminocido se
une ao grupo carboxila de outro aminocido,
liberando uma molcula de gua (H2O).

Lquens Associao simbitica entre algas (incluindo


bactrias do grupo cianobactria) e fungos.

Lua Satlite natural que orbita um planeta.

LUCA ltimo ancestral comum universal (Last


Universal Common Ancestor em ingls).
Organismo do qual todas as formas de vida
atuais seriam descendentes, segundo certa
filogenia.

Meiose Diviso celular eucaritica especializada que


resulta em diminuio do nmero de cromos-
somos pela metade. Normalmente envolvida
no processo de formao de gametas.

Metabolismo Conjunto de reaes qumicas que mantm o


funcionamento da clula.

375
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Meteorito Fragmento de rocha espacial (gerada pela


fragmentao de algum corpo maior, ou de
origem do Sistema Solar primitivo), aps pas-
sagem pela atmosfera e queda na superfcie
da Terra.

Micro-organismo Ser vivo composto por uma nica clula,


geralmente pequeno demais para ser obser-
vado a olho nu (abaixo de 50 mm). Inclui
tambm os vrus, na maioria dos esquemas
classificatrios.

Mitocndria Organela que realiza as reaes de res-


pirao celular em organismos eucariti-
cos, produzindo atp para o metabolismo.
Possivelmente de origem endossimbitica,
como os cloroplastos.

Multicelular Organismo vivo formado por mais do que


uma clula.

Mutao Modificao na sequncia nucleotdica do


genoma de um organismo. Pode ser tempor-
ria ou reversvel, podendo levar a mudanas
de fentipo (incluindo diversas disfunes
celulares e doenas, mas tambm variabili-
dade positiva, promovendo maior sucesso re-
produtivo em alguns casos), dependendo de
sua localizao.

NAD+ Nicotinamida adenina dinucleotdeo.

NADH Forma reduzida do nad+.

NADP+ Nicotinamida adenina dinucleotdeo fosfato.

376
Glossrio

NADPH Forma reduzida do nadp+.

Nanobactria Material orgnico encontrado em amostras


ambientais interpretado como possveis formas
de vida com tamanho muito inferior ao dos
micro-organismos conhecidos (abaixo de 100
nm).

Nasa Agncia espacial norte-americana (National


Aeronautics and Space Administration em
ingls).

Nutron Partcula subatmica sem carga, presente no


ncleo de um tomo. Interage com os prtons
por fora nuclear forte, mantendo a estabili-
dade de ncleos de alto nmero atmico (Z).

Ncleo Regio central de um tomo, onde esto lo-


calizados os prtons e os nutrons.

Nucleotdeo Unidade mnima (monmero) dos cidos nu-


cleicos (rna e dna).

rbita Trajetria percorrida por um corpo atravs


do espao, levando em conta as interaes
gravitacionais e outras foras possivelmente
presentes. Podem ser fechadas, como as r-
bitas circulares ou elpticas de planetas, ou
abertas, como as hiperblicas, de alguns co-
metas ou sondas de pesquisa lanadas para o
espao profundo.

Organela Estrutura subcelular que executa alguma fun-


o especfica do metabolismo.

377
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Oxidao Processo qumico no qual ocorre a alterao


do estado de oxidao em um tomo ou mo-
lcula, para valores positivos.

Paleobiologia Estudo da histria passada da vida utilizan-


do o registro fssil como principal objeto de
pesquisa.

Panspermia Teoria que prope que a vida pode ser trans-


ferida por processos naturais ou artificiais
atravs do espao, efetivamente permitindo
que se espalhe e colonize novos planetas ou
sistemas estelares.

Peptdeo Polmero de aminocidos, formado atravs


de ligaes peptdicas entre eles.

Permafrost Solo de regies alpinas e polares cuja tem-


peratura permanentemente abaixo de
0 C, mantendo a matriz de gua do solo
congelada entre milhares e milhes de anos.
Representam importante repositrio de bio-
diversidade antiga preservada.

pH Escala numrica da concentrao de c-


tions de hidrognio em uma soluo aquosa.
Usada para indicar acidez ou alcalinidade.

Planeta-ano Corpo celeste que no atinge o requisito de


ocupar uma rbita exclusiva ao redor de sua
estrela para ser considerado um planeta, coe-
xistindo com corpos menores, como asteroides.

Planeta Corpo celeste que ocupa uma rbita exclu-


siva ao redor de uma estrela, com massa

378
Glossrio

suficiente para adquirir formato aproxima-


damente esfrico (devido aos efeitos gravita-
cionais), mas no a ponto de iniciar reaes
de fuso nuclear.

Polimerizao Reao em que vrios compostos iguais (mo-


nmeros) ou similares se unem sequencial-
mente para formar molculas maiores.

Pr-cambriano O maior intervalo do tempo geolgico que


(incluindo o Hadeano) se estende desde a
formao do planeta, h cerca de 4,6 bilhes
de anos, at cerca de 540 milhes de anos
atrs, quando se inicia o Fanerozoico.

Procarioto Organismo unicelular caracterizado princi-


palmente pela ausncia de um ncleo defi-
nido e organelas membranosas, como bact-
rias e arqueias.

Protena Polmero de aminocidos. Presentes nos orga-


nismos vivos desempenhando diversos papis
como: estruturais, mecnicos e catalticos.

Proteoma Conjunto total de protenas expressadas por


uma clula.

Proterozoico Intervalo do tempo geolgico que ocorreu en-


tre 2,5 bilhes e 542 milhes de anos atrs.
Caracterizado por diversas formas de vida primiti-
vas e pela oxigenao da atmosfera pelos organis-
mos fotossintetizantes. Seguido pelo Fanerozoico.

Prton Partcula subatmica com carga positiva,


presente no ncleo de um tomo.

379
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Protoplaneta Objeto formado por flutuaes de densida-


de em meio ao denso disco de gs e poei-
ra que circunda estrelas recm-formadas.
Agregando massa suficiente, podem evoluir
para formar planetas.

Psicroflico Organismo que necessita ou capaz de


(psicrfilo) crescer em temperaturas baixas (tipicamente
abaixo de 15 C).

Qumica prebitica Estudo das reaes qumicas na Terra primiti-


va que poderiam ter dado origem aos primei-
ros seres vivos.

Quiralidade (quiral) Propriedade de molculas de composio


elementar idntica, mas com estruturas que
so imagens espelhadas umas das outras (is-
meros ticos). Biomleculas geralmente se
apresentam apenas em uma dessas formas
(praticamente todos os acares utilizados
pela vida na Terra so do tipo D e todos os
aminocidos so do tipo L).

Racmico Caracterstica de uma mistura qumica em


propores iguais de um composto com seu
ismero quiral.

Radiao Forma de propagao de energia na forma de


eletromagntica ondas eletromagnticas (campos eltricos e
magnticos ortogonais defasados), ou de sua
verso quantizada, os ftons. A distribuio
de energia dos ftons (o comprimento de
onda da luz em questo) constitui o espectro
eletromagntico.

380
Glossrio

Radiao ionizante Radiao eletromagntica com energia sufi-


ciente para retirar ao menos um eltron de
um estado ligado de um tomo ou material
para o contnuo (efeito fotoeltrico), tornan-
do-o carregado eletricamente (ionizado).

Radiao Radiao eletromagntica com comprimento


ultravioleta de onda entre 100 e 400 nanmetros, mais
curta que o espectro de luz visvel e mais lon-
go que os raios X.

Radiotelescpio Antena direcional utilizada para observar ob-


jetos remotos nos comprimentos de onda das
frequncias de rdio.

Radiotolerante Organismo que resistente ou tolerante a do-


ses de radiao ionizante de at 60 Gy/hora.
Gy unidade de dose de radiao, equiva-
lente a deposio de 1 J em 1 kg de material.

Reduo Processo qumico em que ocorre a diminuio do


estado de oxidao de um tomo ou molcula.

Refrao Mudana de trajetria de um feixe luminoso


cruzando meios em que sua velocidade de
propagao distinta.

Ressonncia Delocalizao dos eltrons de uma molcula


em mais de uma nica ligao qumica.

Ribossomo Complexo macromolecular que realiza a


sntese de protenas utilizando a informao
trazida pelo rna transportador e catalisando
a formao de ligaes ppticas entre os ami-
nocidos trazidos pelo rna transportador.

381
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

Ribozima Molcula de rna com capacidade de atuar


como catalisadora (similar s enzimas).

RNA (ARN) cido ribonucleico. Possui diversas funes


biolgicas, como a de carregar a informao
do dna para a sntese de protenas nas clu-
las, faz parte da estrutura dos ribossomos,
responsvel pelo transporte de aminocidos
durante a sntese proteica e tambm regula a
expresso gnica. Como molcula polivalen-
te, pode mesmo ter sido a primeira molcula
com funes autorreplicantes a surgir no pla-
neta, como proposto pela Teoria do Mundo
de rna.

Rover Sonda robtica mvel utilizada na explora-


o da superfcie de corpos celestes rochosos
(planetas, luas etc.).

Satlite Um corpo celeste ligado gravitacionalmente


e orbitando um corpo celeste maior. Pode ser
natural, como a Lua, ou artificial, como os
satlites e sondas espaciais produzidos pelo
homem.

Seleo natural Sobrevivncia e reproduo diferencial de in-


divduos devido a diferenas fenotpicas que
modificam sua interao com o ambiente ou
outros organismos. Essa sobrevivncia neces-
sariamente faz que o indivduo consiga dei-
xar nmero maior de descendentes compara-
do aos outros indivduos de sua populao.

SETI Programa denominado Procura de


Inteligncia Extraterrestre (Search for

382
Glossrio

Extraterrestrial Intelligence em ingls).


Conforme o nome diz, procura pelo cosmos
sinais de rdio ou luz que possam ser emiti-
dos por uma civilizao inteligente tecnolo-
gicamente desenvolvida e comunicante.

Sistema planetrio Sistema de objetos celestes no estrelares


que orbitam uma estrela. O Sistema Solar
um exemplo, mas diversos outros sistemas
esto sendo descobertos atualmente.

Sistema Solar Sistema planetrio com o Sol como estrela


central.

Substituio Mutao que passa a estar presente na totali-


dade dos indivduos de uma populao.

Supernova Exploso de uma estrela por efeito termonu-


clear ou dinmico, no caso de estrelas massi-
vas no final de sua vida. Tipicamente liberam
grandes quantidades de energia cintica, tr-
mica e radiativa (> 1044erg/s), permitindo a
sntese e disperso de elementos qumicos de
nmero atmico alto (Z > 26).

Tectonismo Movimentos na crosta terrestre com origem


no interior do planeta.

Telescpio Instrumento cientfico utilizado para obser-


var objetos remotos pela anlise da radiao
que chega at eles. Trabalham principal-
mente com a deteco de radiao eletro-
magntica (em uma ampla faixa espectral,
do rdio at os raios gama), mas podem
ser usados tambm detectores diretos ou

383
ASTROBIOLOGIA Uma Cincia Emergente

indiretos de partculas (como os netrinos ou


outros raios csmicos) e at mesmo de ondas
gravitacionais.

Termoflico Organismo que necessita (no caso de termo-


(termfilo) flico estrito) de temperaturas entre 45 e 85C
para o crescimento.

Traduo (biologia) Processo biolgico da sntese de protenas a


partir do rna. Relaciona cada sequncia de
trs nucleotdeos do rna em um aminocido
da protena sendo sintetizada, usando um c-
digo comum a todos os organismos vivos.

Transcriptoma Conjunto de todo rna produzido por um ou


mais organismos sob uma determinada con-
dio de crescimento.

Ultravcuo Condio de baixa presso, tipicamente


abaixo de 1 107 Pa.

Unicelular Organismo vivo formado por uma nica


clula.

Vantagem Caracterstica fenotpica que permite sobre-


adaptativa vivncia e reproduo diferencial de um
organismo.

Vrus Sistema biolgico composto primariamen-


te por um conjunto informacional de dna
ou rna e diferentes tipos de encapsulamen-
to, que s capaz de se replicar utilizando
a maquinaria metablica de uma clula que
venha a infectar.

384
Glossrio

Zona habitvel Em sua definio mais usada, criada por


Kasting (1993), a zona habitvel (estelar) a
regio ao redor de uma estrela onde pos-
svel a presena estvel de gua lquida na
superfcie de um planeta.

385
A Astrobiologia uma rea recente de pesquisa cientfica, que procura
entender o fenmeno da vida em nosso Universo, no se restringindo
apenas vida na Terra, ou mesmo vida como a conhecemos. Ela abor-
da algumas das questes mais complexas sobre os sistemas biolgicos,
como sua origem, evoluo, distribuio e futuro, na Terra e, possivel-
mente, em outros planetas e luas. Por ser multi e interdisciplinar , aci-
ma de tudo, uma ferramenta para facilitar a comunicao e interao
entre especialistas de diferentes reas, e tambm com a populao em
geral, j que trata de temas que despertam o interesse geral.

Pela primeira vez, temos as ferramentas tecnolgicas e o rigor cientfico


disposio para lidar com alguns dos problemas mais complexos e
antigos da humanidade: De onde viemos? Para onde vamos? Estamos
sozinhos no Universo? A Astrobiologia procura responder essas per-
guntas baseando-se na histria da vida na Terra e suas relaes com
o planeta, extrapolando esse conhecimento para o desenvolvimento
de metodologias para o estudo de outros mundos, seja com robs,
misses tripuladas ou tcnicas astronmicas. Os cientistas dessa rea
esto desbravando novas fronteiras do conhecimento humano, mas
esse apenas o incio desse esforo interdisciplinar e internacional,
que j est se estabelecendo tambm no Brasil.

Nesta primeira edio de Astrobiologia uma cincia emergente, reu-


nimos textos de pesquisadores de diversas reas cientficas, que abor-
daram desde a origem da vida, passando pelas luas de nosso Sistema
Solar com possveis condies de abrigar vida, at as viagens intereste-
lares e os exoplanetas que foram descobertos nos ltimos anos.

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