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G I LTON M E N DE S D O S S A N TO S
Universidade Federal do Amazonas, Manaus/AM, Brasil
plo uso a ele, desde o tratamento para Ah, meu neto, vou mostrar para
gripe, dor de cabea e insnia at como aquele grando como que a gente
calmante, antes do banho para rela- faz. Cuida, meus netos! Vamcuidar
xar ou ainda em uma roda de amigos. logo ligeiro, enquanto eu estou com
Entre os Apurin, o rap usado in- vontade! Estava moquinhando, a
ele partiu o moqum.
distintamente, tendo sido outrora um
produto exclusivo do xamanismo, tal Meus netos, cad a cobra?
como entre os Paumari, para quem o Ta, est deitada a.
rap ainda um ingrediente prprio Ento, vamos cuidar enquanto
dos xams. cedo!. Ele tomou rap dele, botou
pelo nariz, e botou na boca, rap4.
Os Suruwah tambm fazem uso do
kumadi no seu dia-a-dia, ele anima as Arirambazinha furou cobra grande:
pessoas a manterem-se ativas e bem tuqui! huuumm.. qui, qui, qui...,
fez.
dispostas, anulando a indolncia e a
passividade (zama kahyzynaxu), d vigor Ele furou segunda veize. Furou,
e resistncia aos homens nas caadas rachou a barriga da cobra. Aonde
arirambazinha furou, chega saindo
e pescarias, na abertura de roas, no
sangue, j (Schiel 2004:238).
transporte de mandioca e outros pro-
dutos agrcolas, nos momentos de ati- Os Suruwah contam uma histria a
vidade fsica intensa, inclusive em situ- respeito de um povo chamado Ama-
aes de mal-estar e dor. Ao entardecer xi. Na narrativa, as entidades antro-
sempre se formam rodas de rap, nas pofgicas (jakimedi) rondam a maloca
quais os Suruwah conversam sobre as dos Amaxi todas as noites capturando
atividades do dia, assuntos importantes pessoas e levando-as para serem devo-
ou contam velhas histrias (Aparicio radas. Um a um, os Amaxi vo desa-
2014). parecendo devido aos sequestros, at
que resta apenas o paj. Aps um lon-
A anlise dos documentos histricos e
go pranto causado pela solido, o paj
relatos etnogrficos, no entanto, per-
mite-nos identificar uma propriedade amaxi cheira muito rap e se apropria
fundamental, o seu uso para a realiza- da fora de todos os venenos: a fora
o de atividades extraordinrias, o seu do kaiximeni, a fora do xihixihi, a fora
emprego na atividade xamnica. Schiel do timb e a fora do tingu. Assim,
(2004) registra, entre os Apurin, o chega o dia em que o paj tambm
mito do heri Tsura que, aps ter sido levado pelos Jakimedi. Depois de com-
engolido pela cobra grande, salvo -lo, comearam a se sentir mal por cau-
pelo vov arirambinha, que apesar sa dos venenos, suas barrigas explo-
do tamanho e fora desprivilegiada, dem e assim morrem todos os Jakimedi
toma rap e fura a barriga da serpente (Aparicio 1998).
por duas vezes. De acordo com Aparicio (2014:121),
(...) Possa ser que o senhor vai entre os Suruwah, o kumadi o me-
poder tirar o Tsura da barriga da canismo de transmisso de poderes,
cobra... conferindo ao xam o domnio sobre a
doena, o feitio e a morte: o tabaco os tocorime, mas tambm pode ser usa-
assoprado com recorrncia e de modo do como proteo6 (Amorin 2014).
intenso pelos xams aos iniciantes o Como nos diz tambm Miguel Apari-
principal procedimento de transmisso cio (2014:120) sobre os Suruwah: o
do poder iniwa tabaco (kumadi) a planta dos xams,
O ponto alto da iniciao xamnica en- o veculo que promove a comunicao
entre os humanos jadawa e que permi-
tre os Apurin o encontro do jovem
te o acesso s perspectivas dos jada-
com a ona grande na floresta. O aspi-
wasu, dos espritos, o trnsito a outras
rante deve controlar o medo e permitir
paisagens do cosmos.
que a ona o lamba. Ao final, esta se
transforma em gente e o convida para Entre os Paumari, o rap um produto
tomar rap e lhe ensinar os grandes utilizado tradicionalmente pelos xams
mistrios da pajelana (Schiel 2004). (arabani). Sua finalidade possibilitar a
tambm o que registra Amorim (2014) comunicao com os espritos (de ani-
entre os Kulina. mais, peixes, pssaros, plantas), convi-
dando-os a tomarem parte nas cerim-
O rap ainda o mediador da comu-
nias. Tm-se como exemplos disso a
nicao e da viagem do xam a outros festa da pupunha (kavirihava), a fes-
domnios do cosmos. esta proprieda- ta do peixe boi (bomahava) e a festa
de que faz do rap a droga do xam, da menina moa (amamaji) sada da
atravs da qual ele se comunica com menina, como eles costumam chamar
espritos durante as sees de cura. a recluso durante a puberdade. Nessas
Schultz & Chiara (1948 [1891]) relatam ocasies, o rap preparado e usado
que os Tukrina (Kulina) distinguem pelo prprio xam. Conforme Bonilla
duas espcies de doenas: as comuns (2007), algumas plantas possuem uma
e as de origem sobrenatural, estas lti- segunda forma/esprito, a forma ja-
mas s podem ser curadas pelo xam guar (jomahini) que, quando acionada,
dotado de poderes mgicos ou pelos participa dos rituais na aldeia, onde
tocorime, almas de pessoas e animais que podem se desfazer de sua aparncia e
aqueles incorporam. O elemento cen- serem vistas em sua condio humana
tral da cura desse tipo de doenas o pelos xams. Nesse contexto, as plantas
rap, sem o qual nem o mdico-feiti- utilizadas no rap possuem sua forma
ceiro nem o tocorime tm poder algum5. jaguar, conferindo ao xam paumari o
Informaes preciosas a respeito do ri- poder e a fora de lidar com as mais
tual do tocorime, realizado pelos Kulina, diferentes criaturas do cosmos.
podem ser lidas no trabalho de Amo- Aps ingerir uma substncia amarela
rim (2014). A, o rap tem importncia denominada katuhe e tomar uma dose
fundamental no ritual. A inalao do considervel de rap, o xam Deni
tabaco favorece a interao dos xams empreende uma viagem csmica em
com os espritos tocorime, e mais, que busca da causa da doena (Rodrigues
eles assumam sua perspectiva. O xam 2010). tambm o que faz o xam en-
utiliza o rap principalmente para atrair tre os Jarawara: para curar as doenas
temas que merecem uma abordagem neste sentido, age como um tradutor,
antropolgica transversal, ajuda-nos a sua misso encontrar uma corres-
compreender a pliade de grupos da pondncia entre os diversos pontos de
regio como um sistema em comuni- vista ou perspectivas, abarcando essa
cao e em continuum, apontando para confusa mirade e produzindo um sen-
uma etnologia do Purus para alm das tido (Carneiro da Cunha 1998).
diferenas histricas ou etnonmicas de Da mesma maneira, a prpria natureza
seus habitantes. e composio do rap encarnam essas
Certamente, ainda h muito a dizer caractersticas. Como um composto
sobre o lugar do rap no sistema de de plantas trabalhado pelo homem,
relaes no Mdio Purus indgena, in- na prpria fabricao j se estabelece
clusive com outras plantas e/ou subs- a mediao com o mundo das plan-
tncias utilizadas por eles, entretanto, tas, com seus espritos e seus poderes.
como estudo de carter preliminar, Essa comunicao transcende o ato,
este breve ensaio aponta caminhos na espraia-se e assume um carter univer-
investigao do tema na regio, assim sal, cosmolgico, conferindo ao rap o
como para certos aspectos a serem lugar de mediador entre as coisas, os
percebidos da interao desses grupos humanos, os animais, as plantas e seus
com as plantas, tema que reclama por duplos espirituais.
maior ateno pela antropologia. O rap o catalisador desta reao, o
Elencamos alguns exemplos presentes ingrediente principal da construo de
na literatura, seja na forma de narrati- uma rede de sociabilidade intermedia-
vas mticas ou na descrio de prticas da pela ao do xam. Sem dvida, isso
que colocam os indgenas em relao uma das coisas mais interessantes do
com os diversos seres que habitam rap, seu uso se reveste de uma aparn-
seus universos. Mesmo ainda sendo cia trivial, tal como se apresenta para a
necessrio aprofundarmos no estudo maioria dos grupos indgenas, seja em-
sobre o xamanismo na regio, a partir balando as rodas de conversa ao fim da
do que foi apresentado, no resta dvi- tarde, quando o tempo se desvanece e
da de que no Mdio Purus o xamanis- o passado mtico se revela dentro de
mo e o rap so indissociveis. Os dois cada um, seja conferindo fora e dis-
chegam mesmo a se confundir. Por posio para aguentar a labuta diria
meio do xamanismo, as conexes com ou ainda nos momentos de simples
o passado ancestral so feitas, atravs embriaguez, para alm da prtica xa-
dele possvel ocorrer o cruzamento mnica em si, o rap parece oferecer
entre as camadas csmicas, por onde um pouco da experincia xamnica a
se tem acesso s foras ancestrais e o cada pessoa que o experimenta.
controle sobre as mesmas e os peri-
gos do mundo. O rap permite, pois,
a troca de posies ao longo da rede NOTAS
csmica sobre a qual a sociabilidade 1
Tomando como referncia as reas cul-
constantemente construda. O xam, turais esboadas no Handbook, Galvo
Recebido em 06/08/2014
Aprovado em 11/01/2015