Beiradão Das Visagens Completo
Beiradão Das Visagens Completo
Beiradão Das Visagens Completo
VISAGENS
RELIGIOSIDADE, FOLCLORE, CRENAS E SUPERSTIES DAS
POPULAES DOS VALES DO MADEIRA, MAMOR E GUAPOR.
PLANO DE TRABALHO:
AGRADECIMENTOS
Fotografia: Paulo
Aos meus pais Jose Apolnio Teixeira e
Mirian Domingues Teixeira, por seu constante
apoio e incentivo.
PREFCIO:
NDICE:
INTRODUO:
Desde o sculo XIX o caboclo da Amaznia vem cada
vez mais se aproximando da vida regional e nacional.
hoje cidado de um Estado Nacional e seu modo de vida
nada mais do que uma variedade regional de uma cultura
nacional.
(Charles Wagley)
As culturas populares produziram, ao longo dos sculos uma enorme
variedade de contos, crendices, supersties e fatos que povoaram o
imaginrio social de todas as geraes e que nos oferecem importantes dados
para a pesquisa social, cultural e mental dessas mesmas sociedades. O estudo
do imaginrio e do mental das sociedades nos permite conhecer o esprito, os
trabalhos, a organizao, as tendncias e tudo de quanto habitual na
existncia humana. Conforme ressalta Cmara Cascudo, ao lado das guas
solitrias e poderosas da memria e do imaginrio popular, o pensamento
intelectual letrado e cientfico encontra campo frtil para o estudo do homem e
de suas crenas e tradies1.
Como objeto de estudo de muitas obras de grande importncia no
contexto da histria das mentalidades e do cotidiano, alm de diversificados
estudos antropolgicos e etnogrficos, o campo das crenas, mitos,
supersties e do sobrenatural mereceu pouca ateno no contexto das
pesquisas etno-histricas da Amaznia, e com certeza, no chegou a ser
abordado nos estudos referentes especificamente a Rondnia. Na maior parte
dos casos, os estudos desenvolvidos concentram-se nos contos tradicionais do
folclore amaznico, muitas vezes sem que se observem nem mesmo as suas
especificidades e variaes locais. Obras de importncia regional podem ser
encontradas. Autores como Eduardo Galvo, Paes Loureiro, Cmara Cascudo,
Ligia Averbuck, Nunes Pereira e Walcyr Monteiro2 abordaram temas
vinculados ao misticismo amaznico, enfatizando regies como o Amazonas e
o Par. Regies como Os Vales do Madeira, Mamor e Guapor ainda
esperam por pesquisadores que possam analisar suas especificidades.
Trabalhos pioneiros como os de Ary Tupinamb Pena Pinheiro, Ydda
Borzacov, Raimundo Neves de Almeida e Abnael Machado de Lima 3 podem
nos oferecer importantes pistas para a pesquisa acadmica e um precioso
acervo de relatos.
A sobrevivncia das crenas, das supersties e do sobrenatural est
condicionada a imaginao dos vivos. Diferentemente, segundo suas culturas
e tradies, suas pocas e habitats, as sociedades humanas do vida a diversos
aspectos mticos de seus imaginrios individuais e coletivos, criando
1
Luis da Cmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil (folclore). Rio de Janeiro. Ediouro. 1997.
2
Eduardo Galvo. Entre santos e visagens. Brasiliana. So Paulo, Editora Nacional, 1976.
Joo de Jesus Paes Loureiro. Cultura amaznica, uma potica do imaginrio. Belm, CEJUP, 1997.
Ligia M. Averbuck. Cobra Norato e a revoluo caraba. Rio de Janeiro, Braslia. INL, Jos Olympio, 1985.
Manoel Nunes Pereira. Moronguet. Um decameron indgena. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1967.
Walcyr Monteiro. Visagens e assombraes de Belm. Belm, CEJUP, 1993.
3
Abnael Machado de Lima pequeno ensaio sobre as lendas e o folclore de Rondnia. Porto Velho, S/E, S/D,
Ary Tupinamb Pena Pinheiro. Viver amaznico. Porto Velho, SECET, 1986.
Raimundo Neves de Almeida. Na beira do barranco. Porto Velho, Editora Gnese, 1987.
Ydda P. Borzacov. Compndios de histria e da cultura de Rondnia. (3v). Porto Velho, FUNCER, 1996.
realidades onricas que se impem como verdades. Na Amaznia primitiva,
distante das cidades e do progresso capitalista terceiro-mundista, povoada por
animais e dominada pelos rios e pela floresta a imaginao tecida pela
tradio indgena acrescida e misturada com as tradies catlicas de
caboclos, brancos e escravos. Surge ento uma floresta imaginria, mtica e
composta por smbolos que regulam e que regem a vida e a morte. Sendo uma
das ltimas reservas de um mundo primitivo e selvtico, a Amaznia
conserva-se ainda como uma das ltimas ptrias do mito, conforme ressaltou o
escritor Mrcio Souza4. O fascnio que a regio exerce motivado por todo o
conjunto de suas reservas naturais, pelo conjunto das sociedades nativas que
nela vivem e pelo conjunto de fantasias e realidades fantsticas que ela
estimula naqueles que entram em contato consigo.
Imersas em um mundo dominado pelos rios imensos e pelas florestas
impenetrveis, onde animais carnvoros e peonhentos e plantas consideradas
visagentas, as populaes amaznicas determinaram suas percepes da
realidade a partir de todo um conjunto de mitos e de crenas. Como nos
lembra Ligia Averbuck, Na fantstica regio amaznica, a conscincia da
realidade se faz por caminhos transversos.5 Neste contexto de um mundo
mtico, as percepes da vida e da morte so construdas a partir de um
conjunto de crenas e supersties que procuram harmonizar a convivncia do
homem com o mundo que o cerca. Estes processos adquirem formas diversas
e so amplamente atestados nas narrativas, nos tabus e preceitos, nos medos e
nos rituais das populaes regionais.
As aparies de visagens, de assombraes e de encantados dominam a
relao dessas populaes com um espao mtico representado pela floresta e
pelos rios e todo o conjunto de seres que neles vivem. Como ressalta Jacques
Le Goff6, espaos naturais determinantes de um meio ambiente, como o rio e a
floresta o so na Amaznia, constituem-se em espaos de indispensvel busca
de recursos para a sobrevivncia e ainda no espao sagrado de encontro com
suas crenas mais profundas e seus medos mais angustiantes. Esses espaos
tornam-se ao mesmo tempo repulsivos, pois escondem grandes perigos reais e
imaginrios, e desejveis, uma vez que provm o sustento, a riqueza e o
prazer. Seu uso regido por cdigos de postura e necessidade, sendo que
queles que inadvertidamente violam suas regras so reservados castigos e
tormentos terrveis, geralmente de ordem sobrenatural. As concepes
existentes entre as sociedades locais a respeito dos espaos naturais
representados pelos rios e florestas alm do mundo supra-real e fantstico de
4
Citado por Ligia Averbuck, op. cit. P. 112.
5
Ligia Averbuck. Op. cit. P. 112.
6
Jacques Le Goff. O maravilhoso e o cotidiano no ocidente medieval. Lisboa, Presena, 1983.
seus mitos, contos, supersties e crenas deles derivados, so importantes
componentes para o entendimento das relaes socioeconmicas, ambientais e
ecolgicas do homem amaznico com o meio natural. Outrossim, na medida
em que as estruturas se transformam e os espaos rurais cedem vez aos
espaos urbanos, todo o squito de crenas, mitos e supersties sofrem um
vasto e diversificado processo de extino, reordenao e percepo, em
funo dos novos olhares das populaes que reorganizam os seus prprios
universos. A perda dos valores e dos elementos determinantes da cultura
ribeirinha provoca a progressiva desagregao e o esfacelamento da
identidade coletiva dos grupos nela integrados.
Conforme ressalta Napoleo Figueiredo7, a cultura popular no se
constitui em uma forma de saber estanque e compartimentada, sendo antes um
conjunto de representaes simblicas, que em sociedades estratificadas no
tm acesso pleno cultura erudita. Essas formas de saber e de perceber o
mundo e o universo imediato, exprimem modos de vida e formas de
interpretao da realidade, do espao geogrfico e o ordenamento dos valores
culturais que regem a vida em sociedade. Neste contexto dinmico e mutvel,
os elementos do passado s sobrevivem na medida em que podem expressar
realidades presentes e enquanto se mantm integrados aos sistemas.
Na concepo junguiana a alma tem um significado simblico, tendo
um aspecto objetivo ou coletivo que se expressa na capacidade de conceber ou
de imaginar, definindo comportamentos e posturas que nos levam a agir de
acordo com modelos fundamentalmente conhecidos como arqutipos. O
arqutipo definido a partir da religio, filosofia, etnologia, artes e mitologia.
Esse conjunto formador do arqutipo define tambm o termo alma, na medida
em que o entendemos como Hillmam 8, que entende alma como a possibilidade
imaginativa em nossa natureza, capaz de reconhecer todas as realidades como
primariamente simblicas ou metafricas.
Sendo assim, podemos falar de uma alma amaznica, pois a
percepo das realidades pelos homens das florestas fortemente determinada
pelos smbolos e pelas metforas que explicam o mundo natural e impem
algum tipo de ordem ao caos. Estes processos potencializam e redimensionam
os papis das imagens e dos seus smbolos e significados na construo do
imaginrio dessas populaes. Assim o mundo real, da floresta e dos rios, das
plantas e dos animais ganha vida e personalidade prprias, impondo imagens
fantsticas somente perceptveis queles que interagem dentro de um mesmo
padro de comunidade e de vida. Esse conjunto de imagens, smbolos e
metforas percebidos pelos membros de uma mesma comunidade ou grupo
7
Napoleo Figueiredo. Prlogo do livro de Walcyr Monteiro. Visagens e assombraes de Belm. P. 8.
8
James Hillmam. Citado por Roberts Avns. Imaginao e realidade. Petrpolis, Vozes, 1993. P. 43.
social tem, dentre outros, o propsito de orientar suas relaes com a natureza
e com os demais membros da sociedade, definindo posies, hierarquias,
comportamentos e atitudes. Ao estudioso, o conjunto das crenas, mitos e
outros elementos do imaginrio popular iro proporcionar informaes de
carter histrico, etnogrfico, sociolgico, religioso, jurdico e cultural.
Nas sociedades tradicionais dos beirades da Amaznia, como em
diversas outras sociedades rurais ou pr-capitalistas, as formas de interao do
individuo com o mundo sobrenatural so continuas e expressam seus sensos
de juzo e valores, na medida em que se encontra sob a proteo ou sob os
malefcios do alm. As importncias da retido morais e da integridade so
ressaltadas e percebidas enfaticamente nos discursos de danao ou redeno
dos agentes envolvidos nos acontecimentos que so transmitidos oralmente
entre os membros das comunidades de gerao em gerao. Elementos que
definem uma personalidade digna, como a bondade, o companheirismo e a
retido so exaltados no contexto das narrativas. A religiosidade e a f piedosa
e despretensiosa tambm se constituem em pontos positivos nas relaes dos
homens com o sobrenatural. Mas a sagacidade e a esperteza que possibilitam a
presena de esprito capaz de fazer a grande diferena nos momentos extremos
tambm so afirmadas no contexto das crendices, dos contos e das
supersties.
Neste trabalho procuraremos abordar as relaes do homem amaznico,
notadamente daqueles dos Vales do Madeira, Mamor e Guapor com o
universo mtico que os cerca. Crenas, religiosidade, medo, supersties,
visagens e assombraes compem o universo desse estudo.
Os Vales do Madeira, Mamor e Guapor tm a sua ocupao datada de
perodos anteriores aos descobrimentos. Materiais descobertos em stios
arqueolgicos locais, como cermica e outros artefatos foram datados em
milnios. As populaes indgenas regionais desenvolveram estruturas sociais
e culturais que permitiram a sua harmonizao com os espaos naturais de
onde obtinham seu sustento. Com o advento da colonizao ibrica na regio,
a partir do sculo XVII e, sobretudo durante o sculo XVIII, essas populaes
foram exterminadas ou reduzidas s misses e ainda escravido. Novos
valores culturais e uma nova percepo do mundo natural lhes foram
impostas. No entanto, mesmo dominadas, as populaes amerndias detinham
um elemento chave, indispensvel aos invasores, o conhecimento da regio e
do manejo adequado de seus recursos. Aliado a isto a sua superioridade
numrica e a consequente miscigenao tnica imposta pelas necessidades dos
grupos dominantes, fez com que uma parcela considervel de seus mitos,
crenas e supersties fossem assimiladas pelos grupos opressores,
produzindo um padro cultural diferenciado e tpico, que teria importantes
reflexos na percepo do universo pelas populaes residentes.
As formas de abordagem do mundo sobrenatural e o arcabouo das
crenas, dos medos e das supersties definiram-se e alteraram-se durante os
sculos, ao sabor da introduo de novos agentes, novas situaes, novas
necessidades. O dinamismo deste processo continua ininterruptamente e
produz importantes objetos de estudo e de pesquisa que nos permitem ter uma
viso mais aprofundada das mentalidades e do imaginrio das populaes
locais. Dessa forma procuramos desenvolver nossos estudos a partir da
seguinte proposta:
No primeiro captulo abordaremos os aspectos bsicos dos processos de
povoamento e de colonizao da regio, destacando as formas da religiosidade
popular e os elementos que a integram, bem como os diversos legados etno-
culturais de indgenas, portugueses, africanos e caboclos que iro formar as
bases do imaginrio regional. A herana indgena foi substancialmente
absorvida pelos colonizadores e exploradores que se estabeleceram na regio a
partir do sculo XVIII e, sobretudo no sculo XIX. Elemento diferenciador
das demais regies da Amaznia, a presena negra no Vale do Guapor ir
produzir um padro cultural especifico, integrando outros elementos ao
universo mtico local. A explorao da borracha e a construo da Estrada de
Ferro Madeira Mamor, E.F.M.M., iro acrescentar outros elementos a este
processo. As imensides despovoadas e a ausncia substancial de religiosos
permitiro a produo de padres religiosos sincrticos e de um misticismo
vastamente influenciado por valores e crenas no cristos que definiro a
religiosidade popular regional
No captulo dois trabalharemos com os mitos e o folclore locais,
herana tipicamente indgena, caracterizado por um processo parcial de
cristianizao e pela fuso ocasional com elementos da cultura africana e de
outros povos que se estabeleceram na regio a partir da construo da
E.F.M.M. As pesquisas realizadas junto aos habitantes mais idosos de diversas
comunidades, bem como em trabalhos de autores locais anteriormente
mencionados, nos permitiro observar os elementos constitutivos dos mitos e
dos contos folclricos locais.
No terceiro captulo, abordaremos as questes referentes s visagens e
aos encantados que povoam os universos caboclos, notadamente a floresta e os
rios. Procuraremos compreender de que forma estas aparies e esses
encantados governam a vida dos homens das florestas e definem suas relaes
com a natureza, possibilitando o uso adequado e o manejo responsvel dos
recursos naturais, que permitem uma compreenso ecolgica da construo do
universo supranatural do caboclo local.
O captulo quatro uma extenso do anterior e nos permitir entender
as formas utilizadas pelas populaes locais para legitimar suas prticas e suas
relaes com o mundo natural amaznico.
Por fim, no captulo cinco, procuraremos entender as relaes das
populaes locais, tanto no espao urbano quanto no rural com a morte e o
morto. As aparies de almas e fantasmas representam um importante
elemento da cultura mstica local e tem permeado os mais diversos credos
religiosos, oferecendo um rico material para o entendimento do significado de
eternidade, perda e aproximao de mundos distintos e separados pelos
abismos da morte. O medo coletivo das aparies dos mortos ainda persiste
nas comunidades locais e ocupam ocasionalmente espaos em veculos de
comunicao de massas.
Tentar compreender os ricos aspectos do imaginrio regional em seus
aspectos ligados ao sobrenatural e seus efeitos no cotidiano das populaes
locais o objetivo central de nosso trabalho. A utilizao da escassa
bibliografia especifica sobre o assunto foi compensada pela profuso das
narrativas obtidas e pela parcial coleta de informaes em jornais locais. Esses
fatores determinaram as formas de abordagem das analises e reflexes
realizadas ao longo do trabalho, sempre amparadas nas narrativas, onde
buscamos na riqueza dos detalhes as marcas dosa momentos histricos e os
traos das culturas que os produziram, o que nos possibilitaria, conforme
ressalta Jean Claude Schimitt, fazer ouvir e fazer ver as palavras e os sonhos
do passado.9
9
Jean Claude Schmitt. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. So Paulo, Cia das Letras, 1999. P. 25.
CAPTULO 1:
14
Cf. Marco Antnio Domingues Teixeira e Dante Ribeiro da Fonseca. Histria Regional (Rondnia). Porto
Velho, ABG, 1998. Pp. 23 e seguintes.
15
Alfred Mtraux. A religio dos Tupinambs. Brasiliana. So Paulo, Cia Editora Nacional, 1979.
crena em inmeros espritos elementais que povoam as florestas, as plantas,
as guas, o ar e se apoderam dos corpos de animais e de seres humanos, os
indgenas viviam cercados por seres sobrenaturais, muitos com tendncias
malvolas e outros mais impessoais. As funes dessas entidades foram
sincretizadas pelos colonizadores e alguns deles como o Jurupari e o Anhang
terminaram por personificar o diabo cristo.
A concepo de Deus para as populaes indgenas da Amaznia
complexa e, geralmente, erroneamente compreendida. A tradio popular fala
de Tup o deus supremo, senhor dos raios e dos troves. Para os tupis, Tup
uma espcie de demnio, que no raro, provoca morte e destruio. A
semelhana com o Zeus grego pode ter infludo na confuso implantada pelos
missionrios entre os sculos XVI e XVII, que o elevaram condio de
divindade mxima do panteo amerndio, recusando-se a percepo de seus
feitos malficos. A concepo de um ser supremo, criador de todas as coisas e
ordenador do universo, pouco percebida nas diversas culturas indgenas do
Brasil. A figura que se percebe nos mitos criacionistas a dos dois irmos,
percebidos em grande parte das culturas como os gmeos, Temendonare e
Aricoute, irmos e rivais, que do forma e feio ao universo, iniciando o
povoamento da Terra. Embora gmeos, os irmos so filhos de pais diferentes,
os heris civilizadores, espcies de seres primevos.
Jurupari encabea as legies de espritos hostis ao homem e todos os
demais maus espritos lhe so subordinados. Aspectos de seu mito confundem-
se com o mito de Lcifer, conforme evidencia Mtraux16. O padre Claude
dAbbeville considera que Jurupari constitui-se em uma referncia a muitos
espritos capazes de infligir sofrimento e medo entre os humanos. Uma
designao to genrica para uma categoria de espritos quanto o termo
demnio o no cristianismo. O termo Ieorupary, entre as culturas tupi designa
ainda uma categoria de espritos malficos extremamente temidos pelos
indgenas. Yvres duvreux17 considera que o Geourupary ainda o esprito
que se apodera das almas dos mortos que no praticaram o bem. As descries
apresentadas por Mtraux nos remetem, no entanto sempre a um olhar cristo
a cerca de um mito pago. A fora da comparao entre o Jurupari indgena e
o Diabo cristo surge de forma extremamente clara e didtica. A prpria
designao do esprito pelo termo Jurupari percebida a partir da lngua geral,
o nheengatu, difundida pelos padres jesutas da colnia.
Entre as naes indgenas amaznicas, o Yourupari percebido como
um esprito dos bosques e das matas, nunca associado aos mortos. Em alguns
Eduardo Viveiros de Castro. Arawet, os deuses canibais. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor/ANPOCS,
1986.
16
Op. cit. P. 46.
17
Citado por Mtraux. P.46.
casos o Yourupari tem afinidades com algumas aves consideradas de mau
agouro, que so capazes de se acasalar com ele e de chocar ovos que
produzam novos espritos malficos.
Jurupari pode ser compreendido luz dos cronistas catlicos da colnia
tanto como o diabo quanto como pesadelo. Cmara Cascudo em seu
trabalho18, alerta para o fato que anteriormente ao contato com os catlicos
ibricos, a entidade personificada por Jurupari era costumeiramente adorada
como deus, sendo que o termo Tup que passaria a predominar para a
designao de Deus, corresponde a um perodo em que a lngua geral e o
processo de cristianizao das naes indgenas j se encontram em
andamento. A Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
(doravante RIHGB), em seu volume LXXXI, traz o relato do Dirio do Jesuta
Padre Samuel Fritz, missionrio entre os Omgua, onde so descritos os
rituais de uma cerimnia datada de 1689, realizada na aldeia dos Jurimagua,
onde os homens so vergastados violentamente pelo prprio Jurupari a fim de
terem sua virilidade e combatividade confirmadas.19 Em 1934, o coronel Lima
Figueiredo publicou uma reportagem na Revista da Semana, ressaltando um
ritual entre os indgenas de Uaups e de Iana, onde a prtica do flagelo era
realizada mesmo entre as mulheres e destinava-se a dar aos praticantes a fora,
o poder e a virtude de Jurupari, o deus da floresta20.
O Anhang um ser prximo ao Jurupari, sob o qual, os missionrios
catlicos logo fizeram prevalecer semelhanas com o diabo cristo, embora
seu arqutipo tambm tenha possibilitado a sua associao ao conjunto das
almas penadas e dos fantasmas que atormentam os vivos. Esse esprito
maligno espantado com o fogo e as trevas so o seu domnio. Mtraux
contesta a associao entre o Anhang e as almas errantes. Prope que o
vinculo entre as duas formas de seres espectrais resulta de erros de
interpretao dos missionrios e ainda devido proximidade dos termos
Anhaga e Ag, que designa a alma. O Anhang um esprito noturno, que
assume formas diversas, s vezes antropomrficas, mas hediondas; s vezes
zoomrficas, prevalecendo o formato de um pssaro ou o de um veado com
olhos de brasas. Suas aparies sbitas so assinaladas por gritos ou assobios
que fazem gelar o sangue, causando pnico e confuso mesmo entre os
guerreiros mais viris.
Um outro esprito tpico das florestas tupis o Kurupira, uma espcie
de gnomo da mata, protetor dos animais e geralmente mal disposto em relao
aos homens. Seu aspecto sofre alteraes de acordo com a regio e a cultura
18
Luis da Cmara Cascudo. Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte, Itatiaia, 1983. P. 57.
19
Citado por Cmara Cascudo, p. 59.
20
Idem, p. 60.
local. No entanto sua forma mais tradicional a de um gnomo com os ps
virados para trs, que anda nu pelas matas tendo por montaria um enorme
caititu ou queixada. O padre Daniel Joo 21, missionrio na Amaznia o
considera como sendo um fantasma de aspecto humano e com a cabea
pelada, responsvel por todos os sons assombrados da floresta. O Kurupira
aparecia aos andarilhos que perambulavam pelas matas, em busca de caa ou
de frutos e razes e solicitava presentes e servios, protegendo aos que o
atendiam e espancando ou mesmo matando queles que o ignoravam. Sua
popularidade nos meios rurais mais ermos perdurou at o sculo XX.
A crena nas almas como espritos de mortos que possuem o poder de
retornar ao mundo dos vivos e quebrar a harmonia, instalando o caos e o medo
um outro fator percebido na religiosidade indgena. Semelhantes aos
fantasmas do imaginrio cristo, os espritos dos mortos eram percebidos nas
proximidades das sepulturas e dos locais de sepultamento. Suas atividades
eram, muitas vezes malvolas e propiciavam catstrofes, derrotas nas guerras,
doenas, secas e inundaes. A ao desses espritos poderia ocorrer a
qualquer hora do dia e em qualquer espao, mas a noite o seu domnio e
somente o fogo pode mant-los distncia.
Conforme ressalta Melatti22, todas as culturas indgenas crem que cada
individuo seja dotado de um esprito, que continua a existir aps a morte do
corpo fsico. No entanto essas crenas diferem de uma nao para outra e em
seu conjunto, diferem da concepo crist de alma. No universo mtico dos
grupos indgenas da Amaznia e do Brasil, no somente os humanos so
dotados de alma, mas tambm o so os animais e as plantas para muitas
sociedades, a alma humana no imortal. Ela pode morrer, transformando-se
em animal, posteriormente em plantas, tocos, cupinzeiros e por fim quando
estes so destrudos pelo fogo a alma se esgota.
As almas tm ainda o poder de se encarnarem nos corpos de animais e
nas plantas, sofrendo os rigores da fome, do frio, do calor e do desejo. Entre
os Mundurucu, a alma pode assumir a forma de uma ave de mau agouro
identificada como o matim tapierera (Cuculus cayanus), que durante as noites
assusta os humanos com gritos e assobios horripilantes. A crena em animais
que personificam ou encarnam almas de mortos comum a diversas naes da
Amaznia. A imagem fantstica da matim tapierera ainda hoje d origem a
uma das crendices rurais mais difundidas dos barrancos amaznicos, a Matinta
Pereira.
As oferendas de sacrifcios, alimentos, bebidas e presentes so gestos
agradveis s almas. No entanto elas no se nutrem da parte fsica das
21
Joo Daniel. O tesouro descoberto do rio Amazonas. Rio de Janeiro, biblioteca Nacional, 1976. 2 v..
22
Julio Cezar Melatti. Op. Cit. P. 142.
oferendas, mas do seu kar, uma espcie de fluido espiritual. Apaziguar os
espritos dos mortos foi sempre uma importante preocupao das populaes
indgenas da Amaznia. Claude dAbbeville observou que os tupinamb
erigiam postes de madeira muito altos nas proximidades de seus terreiros e
ocas. No alto desses postes (mastros) era transpassado um madeiro em sentido
horizontal, onde eram pendurados pequenos escudos feitos de palha de
palmeira tranada sobre os quais se pintavam em vermelho e preto a figura de
um homem nu, que tinha por finalidade afastar os maus ares23.
ainda o Padre dAbbeville que relata que uma das maiores vitrias no
processo de catequese e converso dos indgenas amaznicos foi o poder que
os missionrios detinham de expulsar os maus espritos e impedir o seu
retorno, bastando para isso erguer uma cruz benzida pelo padre no ptio
central da aldeia.
O culto aos mortos sofreu alteraes com a chegada dos europeus. Em
muitos lugares eram fincados mastros de madeira onde se depositavam
oferendas e em algumas aldeias, choupanas sagradas possuam cabaas
pintadas com olhos, boca, nariz, orelhas como dos vivos. Acreditava-se que os
mortos possuam essas representaes e ditavam orculos. Os pajs que
ofereciam fumo aos espritos das cabaas e aspiravam a sua fumaa, podiam
receber momentaneamente esses espritos e realizar rituais, proferir orculos e
realizar curas. Mtraux considera que dessas cabaas s verdadeiras esttuas
no faltava mais do que um passo.24
Resta abordar as questes referentes aos pajs, seus instrumentos
sagrados e as prticas de pajelana e de xamanismo. A prtica de rituais de
cura, predies, viagens astrais, incorporaes, conjurao de espritos e
herbalismo esteve sempre a cargo dos pajs, tambm chamados de curandeiros
ou, de forma mais preconceituosa de feiticeiros. O domnio de prticas
ritualsticas e de poderes mgicos parece ser comum a um determinado grupo
dentro das comunidades indgenas, que fazem uso de forma mais ou menos
bem sucedida de seus poderes. O reconhecimento de um individuo como paj
poderoso vinculou-se mais a sua capacidade de exercer controle sobre as
foras naturais, de promover a cura de doenas de profetizar acontecimentos e
de conjurar entidades e subordina-las. Yves dvreux 25 afirma que alguns
indivduos dentro das aldeias realizavam trabalhos de cura usando
instrumentos sagrados como os maracs, cabaas esculpidas ou pintadas em
forma de cabeas humanas, alm de penas, da fumaa e das ervas e vrios
tipos de p. Esses indivduos dominavam as formas de transe e acreditava-se
23
Claude dAbbeville.Histrias da misso dos padres capuchinhos do Maranho e terras circunvizinhas. Belo
Horizonte/ So Paulo, Itatiaia/ EDUSP, 1975.
24
Alfred Mtraux. Op. cit. P.58.
25
Yves dEuvreux. Viagem ao norte do Brasil realizada nos anos de 1513 e 1614. S/e, s/d.
que pudessem receber e incorporar espritos ancestrais, seres encantados das
matas e dos rios, animais e mortos. Podiam ainda, caso fossem realmente
poderosos transmutarem-se em animais, ressuscitar mortos fazer nascer
plantas e produzir alimentos de forma miraculosa. Um dentre o grupo
desenvolvia talentos superiores e passava a ser considerado o paj oussou.
Este importante curandeiro costuma realizar cerimnias de lustrao e ouvia
as mulheres e moas em confisses. 26 Pode ser tido tambm como xam, uma
vez que goza do poder de realizar viagens extracorpreas e de receber
entidades em seu prprio corpo, alm de poder percorrer e a terra dos mortos e
de dialogar com eles. Esses indivduos realizam os rituais denominados
xamanismo, que abrangem aspectos anteriormente descritos e que possuem
um carter social e altrusta.27 Seu prestigio era amplo e seu tratamento
reclamava reverncia e respeito. Seu poder o levava ao isolamento e seus
transes o colocavam em contato constante com o alm. Seu poder e autoridade
eram incontestveis e lhes garantiam privilgios muito acima mesmo dos mais
honrados indivduos da comunidade.
Jean de Lry considera que ao realizar seus trabalhos de forma altrusta
junto comunidade a que pertence, o xam ou paj busca repassar a crena de
que parte de seus poderes so transmitidos aos indivduos da comunidade,
atravs da fumaa, das infuses e do p soprado sobre seus assistentes. 28 As
oferendas que recebe so repartidas, uma parte deixada para as entidades,
outra se destina ao seu consumo domstico e uma terceira repartida com a
comunidade como formas de retorno do prestigio de que esta goza junto ao
xam.
CAPTULO 2
38
Ernst Cassirer. Linguagem e mito. So Paulo, perspectiva, 1972
39
Georges Gusdorf. Mito y metafsica. Buenos Aires, Nova, 1960, p. 14.
40
Mircia Eliade. Mito e realidade. So Paulo, Perspectiva, 1972, p. 11.
desvenda toda sua sacralidade. Os mitos em todas as culturas revelam que
em funo das diversas intervenes das entidades sobrenaturais que o ser
humano o que hoje: mortal, sexuado e cultural.
O mito diferencia-se do conto, mesmo do conto fabuloso. Em primeiro
lugar ele ocorre em um tempo remoto, numa fase anterior sociedade que o
concebe. Seus protagonistas so entidades primevas, ancestrais. As narrativas
ressaltam a cosmogonia e os acontecimentos primordiais que definiram as
situaes do homem, da natureza e de todos os componentes do cosmo. O
importante para as sociedades que estabelecem seus mitos a capacidade de
repetir os eventos descritos a partir de rituais especficos, possveis atravs do
conhecimento. Conhecer o mito aprender os segredos das origens das
coisas41. Enquanto o mito fala de acontecimentos ancestrais que moldaram a
terra e a humanidade, principalmente naquilo que concerne sociedade que
nele cr, o conto narra acontecimentos que podem ter promovido mudanas no
mundo e nos fatos, mas no alteraram a condio humana como tal.
A mitologia indgena amaznica narra a criao do mundo a partir de
dois irmos que criaram a humanidade e lhes ensinaram a fala. Os mitos
locais so todos de origem indgena e dividem-se em dois grupos, mitos
aquticos e mitos terrestres das florestas. Dentre os mitos aquticos destaca-se
a boina ou cobra grande. O conto possui variaes locais e sua narrativa
indgena, conforme ressalta Cmara Cascudo42, fala da Mboi-una e da Mboi-
assu. A serpente simultaneamente vinculada a um sentido do mal e do bem.
No conto cristianizado, Maria Caninana representa a fora destrutiva, a
maldade por excelncia, a perdio. temida por todos e capaz de provocar
banzeiros e desmoronamentos dos barrancos. Seu irmo Honorato bom e
corrige os males provocados por Maria Caninana, terminado por mata-la, uma
vez que no possvel impedi-la de praticar o mal. Eles so filhos de uma
tapuia com um boto. O rapaz um tpico jovem amaznida, apaixonado por
mulheres e por festas. Conta-se que em uma noite danou em dois bailes
distantes, um em Abaet e meia hora depois em Baio, distante mais de
cinqenta lguas.
No mito tupi, a serpente representa um dos elementos criadores. O
General Couto de Magalhes conta que: No principio dos tempos ainda no
havia noite e todos os seres vivos falavam. A filha da Cobra Grande,
concebida como um principio masculino, casou-se com um jovem mas
recusava a deitar-se com ele alegando que ainda no era noite; ao que o
rapaz retrucava, dizendo que no existia noite. A moa disse-lhe ento que
41
Idem p. 18.
42
Luis da Cmara Cascudo. Geografia dos mitos brasileiros. P.
seu pai, a Cobra Grande, que morava no fundo do grande rio, tinha noite. O
jovem mandou seus serviais buscarem a noite junto Cobra Grande, no rio.
A serpente lhes deu um caroo de tucum hermeticamente fechado com breu
e com resina der ltex, mas que produzia estranhos rudos. Ordenou que no
abrissem o caroo, pois isso provocaria o caos. Ao longo do caminho, de
volta pelo rio, os serviais intrigaram-se com os rudos, que eram, na verdade
o coaxar dos sapos, dos grilos e das outras criaturas da noite. J muito longe,
eles romperam o breu que prendia a noite dentro do tucum e houve uma
grande desordem. A filha da Cora Grande percebendo a noite liberta,
resolveu separa-la do dia e criar o Cujubim para anunciar com seu canto a
chegada da aurora, criou ainda o nhambu para que cantasse ao longo da
noite. Nesse tempo, todas as criaturas que estavam na floresta foram
transformadas em animais e perderam o dom da fala. As que estavam no rio
transformaram-se em peixes, patos e outros bichos das guas. Os trs
serviais que libertaram a noite foram transformados em macacos.43
A serpente a representa as foras da natureza em ao, a sexualidade
feminina. Conforme ressalta Ligia Averbuck, Este mito, da classe dos
etiolgicos, explica a origem dos animais e do dia e da noite, relacionando-se
ainda aos mitos da gua, de que a cobra um dos smbolos mais antigos. 44 A
serpente amaznica um smbolo de fertilidade, de criao e de morte e
destruio. um smbolo da fertilidade feminina por ser um mito noturno
(lunar) e aqutico. tambm um smbolo da virilidade masculina. Seu
formato lembra o pnis e em muitas culturas locais as mulheres estreis so
fustigadas com uma cobra grande morta a fim de que possam engravidar.
Por outro lado, ela tambm um smbolo de destruio de medo e de morte.
Em Calama, distrito de Porto Velho no baixo Madeira, durante as enchentes de
1997 os desmoronamentos dos barrancos do Madeira foram atribudos aos
movimentos de uma Cobra Grande que habita a regio. No ano de 1975, uma
equipe de militares do comando de fronteira Acre Rondnia deslocou-se para
Santo Antnio a fim de encontrar uma Boiuna que estava atacando e virando
embarcaes de pescadores, chegando mesmo a ataca-los. Narrativas de
Cobras espetaculares devorando gente nos beirades percorrem todos os Vales
do Madeira, Mamor e Guapor. Aos que navegam em seus barcos noite,
elas podem surgir na forma de um navio fantasma, mudando de tipo conforme
a poca da narrativa. No perodo colonial dizia-se que ela aparecia como uma
grande igarit iluminada por duas candeias. No fim do sculo XIX, quando os
barcos a vapor da Amazon Steam Navigation, percorriam os rios da
Amaznia, a Cobra Grande surgia por entre a nvoa noturna dos rios como um
43
Couto de Magalhes. O selvagem. Belo Horizonte/ So Paulo, Itatiaia/ EDUSP, 1975. P. 113.
44
Ligia Averbuck. P. 120
barco a vapor com dois enormes faris que sinalizavam para os viajantes
solitrios, que ao se aproximarem da embarcao percebem que ela est
carregada de esqueletos. Raul Bopp assim descreve este encontro: l longe
h um enorme tremedal e num escuro de meter medo, num estiro mal
assombrado vai passando um barco carregado de esqueletos a Cobra
Grande.45
Os antigos mitos indgenas e caboclos veem aos poucos perdendo sua
fora, estando restritos somente s regies mais remotas e ermas. A seguir
apresentamos alguns dos mitos que integram o folclore local. Em primeiro
lugar, narraremos os mitos aquticos e em seguida os mitos terrestres.
47
Couto Magalhes. Citado por Cmara Cascudo. P. 130..
48
Ermano Stradelli. Vocabulrios da lngua geral portugus-nheegatu e nheegatu-portugus. RIHGB tomo
104, vol 158, 2 semestre de 1928. Rio de janeiro, Imprensa Nacional. Citado por Cmara Cascudo. P. 135.
os barrancos s margens dos rios e as engravida, pulando depois na
gua e desaparecendo. Anda sempre com um chapu para esconder o
furo que tem na cabea. No entanto seu cheiro de peixe pode denuncia-
lo.
um conquistador e seu estereotipo o do macho latino, galante,
sedutor, conquistador e irresponsvel. Jos Carvalho relata um conto de
boto em que um pescador arpoou um desses seres. Ao chegar no
barranco foi cercado por soldados e teve seus olhos vendados. Quando
se lhe retiraram a venda, estava no fundo do rio, no reino dos botos.
Encontrou a uma mulher que conhecera e que desaparecera nas guas.
Ela estava encantada. Foi ela quem lhe informou que ele deveria tratar
do boto que havia arpoado e que no deveria comer nada no local em
que estava, pois neste caso, como ela ficaria ali para sempre. O
pescador realizou sua tarefa e foi reconduzido ao mundo dos humanos. 49
Cmara Cascudo considera que o mito do boto no amaznico, mas
formou-se a partir de variaes de contos europeus e africanos. O relato
de Jos de Carvalho traz claras semelhanas com o mito de Prosrpina
no Hades. O boto como um exuberante e ardoroso amante corresponde
a um fato tpico da cultura dos seringais, onde a presena feminina era
rara e os jovens caboclos e seringueiros solteiros vagueavam pelas
festas sedentos de aventuras sexuais, incorrendo na ira dos familiares e
pretendentes das raras moas disponveis, tendo no rio o caminho mais
seguro para escapar. Muitas vezes desaparecendo alvejados e afogados
em meio s guas onde nadavam os verdadeiros botos. Os botos so
temidos e odiados pelos caboclos que os matam por serem seus
concorrentes entre as mulheres. Portar um olho de boto far com que as
mulheres se apaixonem pelo seu portador. Dos rgos genitais dos
botos, se fazem preparados e poes para atrair a pessoa desejada. Entre
os caboclos do Madeira registra-se a prtica de zoofilia com botos
fmeas pescados em redes. Os animais so violentamente deflorados at
a morte.
4) O Ipupiara: um monstro de origem indgena, informe e de grande
maldade. Atacava canoas e devorava seus ocupantes. Fazia desaparecer
os banhistas e provocava rebordosas nos rios. No Vale do Guapor
subsistem contos que falam sobre entidades que podem ter evoludo a
partir do Ipupiara. Em primeiro lugar est o Arraio, que chupa e devora
as canoas em redemoinhos no meio dos rios. Os que so pegos por ele
no sobrevivem e muitos desaparecem para sempre, devorados pelo
monstro nas profundezas das locas. O bruto outro monstro percebido
49
Jos de Carvalho. O matuto cearense e o caboclo do Par. Belm, s/e, 1930. P. 22.
no baixo Guapor. Apresenta-se como um Ja gigantesco, que tem o
tamanho maior do que um batelo. Surge nas horas grandes e ataca as
embarcaes dos que esto no rio. A Piraba um peixe dos rios
amaznicos, famoso por sua ferocidade. No alto e mdio Guapor
tambm um monstro que ataca banhistas e nadadores que se aventuram
nas partes mais profundas do rio. Apresenta-se em duas cores distintas,
preta e amarelada.
Os mitos terrestres:
Mircia Eliade nos ensina que toda hierofania transforma o lugar que
lhe serviu de palco em um espao sagrado. 68 Os dois espaos primordiais
de toda a hierofania amaznica so a floresta e o rio. Ambos constituem-se
em espaos mticos, sagrados sob muitos aspectos. Neles reside todo o
squito de entidades que povoam o imaginrio regional. Ambos, floresta e
rio, reais ou mticos desempenham papeis vitais e diversificados na
religiosidade, no conjunto de crenas e na sobrevivncia das populaes
locais. Ambos so os locais de encontro dos homens com o mundo dos
encantados e dos espritos, ambos so os locais de onde se retira o sustento
e onde se reproduz a vida. Em ambos os humanos podem encontrar a
felicidade e o infortnio. A reverncia das populaes tradicionais quer
pela floresta, quer pelo rio revelam o seu elevado grau de harmonizao
com a natureza. A histria da floresta e do rio na Amaznia feita de
realidades espirituais e materiais que se entrelaam e se complementam.
Rio e florestas representam a perpetuao de um tempo imaginrio, ideal.
So, ao mesmo tempo reais e imaginrios, smbolos e metforas,
construindo um estado de onirismo csmico, onde as populaes
ribeirinhas encontram o sentido de suas existncias nas alegorias das
explicaes mticas. Observa-se, entretanto, que a desestruturao do
mundo selvagem e rural tpico, remodelado, agora, pelos interesses do
grande empreendimento capitalista, que promovem o aparecimento de um
novo espao rural, demarcado pelas grandes lavouras e pelas reas de
pastagem, onde a floreta sucumbe e o rio se transforma atravs dos
processos de assoreamento, onde as cidades se desenvolvem e deixam de
67
Neville Craig.Estrada de Ferro Madeira Mamor, histria trgica de uma expedio. So Paulo, Nacional,
1947. Pp. 267 e 352.
68
Mircia Eliade. Tratado de Histria das Religies. So Paulo, Martins Fontes, 1993. P. 295.
ser apenas apndices da zona rural e ganham vida e dinamismos prprios,
constituem-se num dos mais graves prenncios de modificao desse
ethos cultural.69
As narrativas dos viajantes e dos cronistas contrastam com a viso
amerndia. A floresta passou a ser considerada como um espao malfico,
local de provaes e tentaes, moradia de demnios que necessitavam ser
expulsos da Terra. Para os cristos renascentistas e navegadores, s havia
duas paisagens possveis dentro do universo cristo. O jardim, aqui
entendido como espao cultivado e de natureza modelada pela ao
humana; e a cidade, o espao cristo por excelncia. Durante as dcadas do
sculo XVI, a floresta foi superficialmente conhecida. Na realidade, apenas
vislumbrada, por grupos de viajantes que percorreram o grande rio.
Ocasionalmente ocorreram tentativas frustradas de se colonizar as vrzeas
mais prximas do baixo Amazonas, mas tudo foi malogrado. A primeira
tentativa bem sucedida de estabelecimento colonial na Amaznia s veio a
acontecer em 1616 com a fundao de Belm. Durante o sculo XVII, a
ocupao das florestas foi tmida e limitou-se s margens dos maiores rios,
de uma forma muito precria. Os relatos de viajantes e missionrios
exaltam as adversidades tanto materiais quanto morais e espirituais de se
empreender a colonizao. Pouco se soube sobre a floresta. Informaes de
carter mais cientifico foram produzidas pela primeira vez em 1743, com a
expedio de Charles Marie de La Condamine. No final do sculo XVIII,
Alexandre Rodrigues Ferreira realizou uma grande expedio de estudos
pelos rios da regio. No entanto, j em 1825, Incio Acioli Cerqueira da
Silva reclamava da falta de estudos sobre a floresta e o meio natural
amaznicos. Ao longo do sculo XIX, com a criao das sociedades de
explorao e de conhecimento geogrfico e etnogrfico da Europa e ainda,
com o desenvolvimento das agressivas polticas expansionistas e
imperialistas do Neo Colonialismo, a Amaznia passou a ser estudada por
cientistas, botnicos, etngrafos e zologos. A borracha atraiu as atenes
do Imprio e das potencias estrangeiras. A livre navegao pelos rios deu
aos mesmos um importante sentido utilitrio, que perdurou pelo sculo
XX.
A presena dos caboclos tapuios, de origem indgena, provenientes dos
aldeamentos e misses e a chegada dos novos trabalhadores,
majoritariamente nordestinos, produziu nas ltimas dcadas do sculo XIX,
o tipo humano caracterstico da floresta. Esse novo caboclo assimilou
muito da cultura tradicional tapuia, essencial para a sua sobrevivncia neste
novo meio natural. Harmonizou-se com a paisagem e, no dizer de Arnold
69
Joo de Jesus Paes Loureiro cultura amaznica, uma potica do imaginrio. Belm, CEJUP, 1995. P. 106.
Toynbe, tornou-se parte dela. As culturas da floresta e do rio foram
mantidas em grande parte. Mas, convm ressaltar, conforme nos lembra
Paes Loureiro que a tradio ocidental crist est impregnada por valores
de repulsa a floresta e de temor aos meios selvticos, essas concepes que
foram transportadas para a colnia pelos portugueses alterou a forma de se
perceber a floresta e o rio no mundo natural amaznico, em maior ou em
menor escala, de acordo com a poca. A percepo familiar e amorosa
desses espaos, referncia de reas sagradas e de espaos profanos, de
culto, temores, vida e morte, foram alteradas para a percepo apenas de
um meio hostil, que necessitava ser submetido e transformado, cedendo
lugar ao desenvolvimento. O triunfo absoluto desses ideais seria obtido ao
longo do sculo XX, sobretudo nas dcadas posteriores a 1940. At a
vitria das tcnicas modernas que permitiram a definitiva ocupao dos
espaos ao longo do Madeira e do Mamor, os espaos da floresta e dos
rios eram associados s piores situaes e a um verdadeiro inferno para os
colonizadores, que fracassavam onde os nativos haviam se adaptado e
obtido xito. Ambos, floresta e rio estavam ligados morte, ao medo, s
doenas e ao sobrenatural. Para a sociedade ocidental, afeita aos espaos
urbanos ou aos espaos rurais domesticados e cultivados, as enormes
extenses selvticas das florestas e o insondvel universo de rios e lagos da
regio, sempre pareceram muito ermos, doentios e insalubres. Estas ideias
podem ser percebidas nos escritos dos cronistas, viajantes, militares e
autoridades que percorreram a regio desde os tempos coloniais. Assim,
Rolim de Moura70, o primeiro capito general a governar o Mato Grosso,
chamou o Vale do Madeira de inferno da Amrica; Francis Castelnau
71
denominou o Vale do Guapor de regio pestfera, Francisco Mello
Palheta72 considerou a viso das cachoeiras do Madeira como uma viso
do Inferno.
As novas necessidades de abastecimento, de novas fontes produtoras de
riqueza e de bens comercializveis, pela nova ordem que se implantava,
levou a buscas que provocaram o acesso a regies cada vez mais remotas
e distantes, desencadeando novos processos de ocupao e de
povoamento, trazendo para os limites da selva e do rio a interferncia de
um modo de vida alheio regio, mas vinculado aos princpios ento em
voga, de desenvolvimento e de civilizao. Neste contexto podemos
incluir ainda em fins do sculo XIX e princpios do sculo XX, as
tentativas de construo da E. F. M. M. Mais de vinte mil trabalhadores,
70
Dom Antonio Rolim de Moura. Correspondncias. Cuiab. UFMT, 1988.
71
Francis Castelnau. Expedio s regies centrais da Amrica do Sul. So Paulo, Nacional, 1947.
72
In: Capistrano de Abreu. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Braslia, EDUNB, 1982.
alheios realidade amaznica aportaram em Santo Antnio e Porto Velho
para redefinir os espaos s margens do Madeira e do Mamor, instaurando
uma sociedade alheia ao meio local. A floresta e o rio resistiram, milhares
de trabalhadores morreram e empreendimentos fracassaram. Por fim, em
1912, a empreitada capitalista teve xito. A colonizao ocidental, depois
de trs sculos de violncia contra o meio natural, conseguia se estabelecer
em uma das regies tropicais mais inspitas do mundo. A porta de entrada
para o universo amaznico dos Vales do Madeira e do Mamor foi a
estrada de ferro. Em funo dela, duas cidades se estabeleceram,
Porto Velho e Guajar-Mirim. Mesmo a remota Santo Antnio, descrita por
cronistas, cientistas e exploradores como o pior lugar da face da terra viveu
dias de gloria. A tecnologia e a empreitada capitalista haviam vencido a
selva. As ondas de ocupao do sculo XX promoveram a maior
devastao de toda a histria.
A Floresta e o rio ainda hoje so o espao de encontro dos ltimos
caboclos, tapuios e indgenas com seus valores e crenas, com a sua
dignidade e a sua ancestralidade, com seus temores mais ntimos e
profundos. So locais de sacralidade e de culto, locais de pesadelos e de
terror. Entre as rvores e cips, ou em meio s guas brancas ou negras, o
homem ainda pode retornar s suas origens ancestrais. Nestes meios, a
natureza se impe imaginao e nesta fuso criam-se as imagens de
sonhos reais de um tempo no cronolgico, existente somente no interior
de nossas almas. A compreenso de todos esses valores passou, por longo
tempo, desapercebida pelos invasores de todos os perodos. Mesmo o lado
utilitrio dessa cultura, to caro aos ocidentais, somente em tempo bem
prximo foi percebido, e s agora se percebem alguns esforos para se
preservar e entender os valores e a riqueza que eles representam para as
culturas locais e para a prpria cultura ocidental, que tem muito a se
beneficiar deles em sua prpria trajetria.
Ainda nesses espaos que o homem ribeirinho e os diversos povos que
ainda vivem na floresta e dela retiram seu alimento, realizam seus
trabalhos, amam, vivem e morrem. Aos olhos do indgena esses espaos
so o lar e o templo. A mentalidade indgena harmoniza o homem ao meio,
ensinando-o a usar parcimoniosa e racionalmente seus recursos a fim de
que se perpetuem e nunca faltem. Rio e floresta esto vivos e possuem
almas prprias. Devem ser respeitados e reverenciados. So o lar de
espritos ancestrais e de entidades que tanto protegem, quanto castigam.
Para esses povos, a sabedoria humana consiste em reconhecer a
necessidade de integrao dos homens ao todo natural, sem que se rompa a
harmonia divina.
A mentalidade do colonizador recente foi a do utilitarismo e da
predao. O aproveitamento dos recursos, inclusive os humanos que as
florestas locais ofereciam, deveria ser realizado at o limite mximo e
possvel e depois de se exaurir toda as possibilidades de lucro, a regio
poderia ser abandonada a sua prpria sorte, ento definitivamente
vinculada ao subdesenvolvimento e periferia de um sistema que produziu
a misria regional. Foi assim na sia, foi assim na frica, foi assim na
Amrica Latina.
A viso de uma regio ednica, narrada em algumas das primeiras
crnicas quinhentistas sobre o Novo Mundo, foi desfeita ainda na primeira
metade do sculo XVI. Uma nova viso, agora sempre infernal mais
prxima concepo da natureza cada do mundo ps adamita, dominou as
mentalidades. Aos poucos, o espao foi sendo redesenhado. Cidades
pontilharam as margens dos rios e estradas foram sendo abertas com
enormes sacrifcios. Importava vencer a selva e estabelecer uma nova
fronteira produtiva e desenvolvimentista. A floresta e os rios da Amaznia
cabocla com todo o seu sentido simblico e mtico desapareceram em
ritmo impressionante nos ltimos cinquenta anos do sculo XX. Pouco
restou. A nova mentalidade, que se desenvolve a partir de posturas
ecolgicas e ambientais, ainda no dominante e nem aceita pela maioria,
que s consegue perceber o progresso com a transformao do meio
natural. Mesmo essa mentalidade mais preservacionista apresenta uma
floresta necessria, til ao sistema, mantida atravs de um manejo
aceitvel, mas sempre vinculada e subordinada aos interesses maiores da
economia capitalista. Nestes novos espaos, os mitos, os encantados e os
espritos das guas e das matas vm sendo pouco a pouco expulsos ou
extintos. Alguns desapareceram e podem contar nas longas listas de
extino que a cultura ocidental materialista e capitalista desencadeou.
Outros ainda subsistem em regies distantes e isoladas, onde raras
populaes tradicionais ainda no tiveram seu modo de vida
substancialmente alterado. Outras ainda migraram e passaram a povoar as
periferias e zonas pobres das cidades que tiveram crescimento explosivo e
descontrolado ao longo dos ltimos trinta anos. A maioria deixou de ser
reverenciado e passou a integrar o imaginrio folclrico das lendas
pitorescas e exticas que servem para vender sonhos, suvenires e
artesanato feito em srie aos turistas.
Captulo 3:
73
Franoise Askevis-Leherpeux. A superstio. Serie Fundamentos. 58. So Paulo, tica, 1990. Pp. 26 e
seguintes.
3) Crenas de relao controlvel: o agente consegue realizar a ao e
conhece o resultado da reao. Exemplo: rolar sobre os excrementos de
cavalos em uma encruzilhada nas noites enluaradas de sexta feira
provoca a transformao em lobisomem.
4) Crenas de relao no controlvel: onde a ao e a reao no ficam
sob o controle do agente, estando sujeitas a fatos circunstanciais.
Exemplo: quebrar um espelho (ao). A reao indesejada seria a m
sorte. Essas crenas exigem uma nova forma de reao para estancar
seus efeitos, que se realizam nas formas de ritos de conjurao ex-
conjurao.
83
Gabriel Soares Souza. Tratado descritivo do Brasil. In: RIHGB. RIO DE Janeiro, vol XIV, 1851. p. 341.
84
Yves dEuvreux. Op. cit. P. 84. Andr Thevet. As singularidades da Frana Antrtica. Belo Horizonte, So
Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1986. Apresenta os seguintes lamentos indgenas por ocasio da morte de algum dos
homens da tribo, cantado pelas mulheres e respondido pelos membros da famlia: , morreu aquele a quem
tanto amei. / , morreu nosso pai e amigo! Era homem de bem, to valente na guerra! Ele que dizimou tantos
inimigos! Que era to forte e viril! Que cuidava to bem dos campos! Que apanhava tanta caa e tanto peixe
para o nosso sustento! / foi-se no o veremos mais.
85
Alfred Mtraux. Op. cit. P. 107.
86
Ferdinand Denis. Brasil. Belo Horizonte, So Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1980. P. 393.
87
Jean de Lry. Citado por Alfred Mtraux. Op.cit. P. 108.
Abre-se uma cova funda e circular dentro da oca e as bordas so revestidas
com madeira. Dentro da tumba posto fogo, comida, gua e tabaco. O
cho forrado com palhas e o morto deposto em sua rede. Por sobre o
morto preparado um tablado de madeira e, ento jogada terra para
cobrir a sepultura. Os vivos continuam a residir dentro da oca. 88 A partir da
cristianizao dos indgenas, entre os sculos XVI e XVII, esta prtica de
sepultamento dentro de casa foi alterada, passando a ser realizada fora da
oca, em rea aberta. No entanto, era sempre erguida uma pequena oca
sobre a sepultura. Mtraux89 lembra ainda que os presentes que o morto
havia oferecido em vida a outras pessoas, deveriam ser devolvidos a ele e
com ele sepultados, por ocasio de seu funeral. Da mesma forma, os
presentes que ele recebeu seriam devolvidos aos ofertantes aps a sua
morte. Comidas e bebidas eram ofertadas ao morto at que seus restos
estivessem decompostos e a alma estivesse completamente livre.
Depois do sepultamento, os vivos eram aconselhados pelos pajs a
tomar banhos rituais para se prevenir do contgio da morte. O luto
implicava em dias de recolhimento e de tabus alimentares e ainda, na
tintura do corpo com o jenipapo. As mulheres cortavam os cabelos ao
segundo dia do luto e este terminaria para elas, quando o cabelo novamente
crescido lhes cobrisse os olhos. Aps seis meses do passamento, era
realizada uma festa com uso de cauim ou outras bebidas fermentadas,
sendo o morto novamente lamentado. Esse festejo s desligava do luto
aquele que o organizasse. Todo aquele que pretendesse desligar-se do luto
deveria realizar mais outra festa sucessivamente.
A crena na vida eterna e na imortalidade da alma assumiu aspectos
variados. A alma concebida como Agnan, e pode voltar ao mundo dos
vivos, tanto para fazer o bem como para fazer o mal. Enquanto unida ao
corpo, por fora da vida, a alma chama-se An. Depois da morte, Agnan, e
as almas errantes chamam-se Angoury (anhanguera?!). Os indgenas
sempre tiveram o maior respeito e pavor pelas aparies de Agnans. Em
muitos casos a reencarnao aceita e o morto pode reencarnar em um
mamfero, depois em um rptil ou ave, inseto e por fim em um toco ou
pedra. Aps todas essas etapas a alma se extingue. Em outros casos, a alma
vai para regies paradisacas e vive em companhia de suas Agnans
ancestrais. O paraso, neste caso ficaria ao poente. Ao sepultarem seus
mortos e completarem os servios fnebres, os vivos pediam ao defunto
que lhes recomendassem aos seus parentes no alm. Recomendavam-lhe
que no deixasse extinguir-se o fogo sepulcral, para evitar os ataques dos
88
Gabriel Soares de Souza. Op. cit. P. 340.
89
Op. cit. P. 108.
anhangueras e ainda que ele no passasse pelas terras de seus inimigos para
que no fosse atacado pelos agnans rivais. As almas daqueles que
realizaram bem suas misses e que destruram e devoraram muitos
inimigos, alm de vencer os maus espritos aps o passamento vo ao
encontro de seus ancestrais.
Populaes indgenas de Rondnia concebem a morte e os rituais a ela
associados de diversas maneiras. Betty Mindlin, 90 que estudou a cultura
indgena rondoniense apresenta aspectos dessas crenas entre os Macurap,
Jabuti, Aru, Arikapu, Ajuru, Kano e Tupari. Os textos que seguem abaixo
foram produzidos a partir do estudo de seu trabalho, terra grvida, pginas
213 e seguintes.
Segundo a crena dos Macurap, os Dowari so os espritos dos mortos,
que vivem em uma maloca distante, qual s se chega atravs da morte.
Por ordem dos Dowari, que no queriam ser perturbados pelos vivos, a
morte se daria em meio a um processo de sofrimento e dificuldades. O
esprito recm desencarnado necessitaria de ritos e procedimentos que
garantissem a sua passagem para o mundo dos Dowari. A terra dos Dowari
separada da terra dos vivos por florestas por onde o esprito deve
caminhar, em meio a muitos perigos, por fim, existe um largo rio que deve
ser transposto por uma ponte de pau. Esta ponte no simplesmente um
pau, um arco-ris e uma serpente, um Botxat. Aps a travessia da ponte
Botxat, os perigos continuam, sob a forma de pssaros, insetos e outros
animais que querem devorar a alma. Se esta querida pelos Dowari e est
bem protegida pelos rituais dos pajs, ela ir superar as adversidades. Ao
termino da jornada pica, as almas bem sucedidas chegam ao mundo dos
Dowari, onde so recebidas por Monek ou Bed, que alguns chamam de
So Pedro.91 O morto retorna ento condio de recm nascido e
recebido e criado por algum parente falecido anteriormente.
Entre os Macurap, o paj deve orientar os vivos sobre a execuo dos
rituais de passagem para os mortos, afim de que estes possam encontrar o
descanso e a paz na maloca dos Dowari, aps sua jornada pelo mundo das
sombras do alm tumulo. Os rituais implicam em um grande consumo de
tabaco, durante todo o tempo necessrio para garantir o sucesso da
trajetria. Esse tempo varivel e pode durar dias ou meses. Os pajs
invocam os Dowari e entram em transe, ficando longos perodos sem
dormir e sem se banhar. Os mortos, Dowaris, so convocados e vem
danar, beber chicha e comer nos ptios de suas alceias. O ritual prossegue
com o embriagamento dos pajs e os vmitos compulsivos, que abrem a
90
Betty Mindlin e narradores indgenas, Terra grvida. So Paulo Rosa dos Tempos, 1999.
91
Cf, Betty Mindlin op. cit. p. 219.
mente para as vises e permitem as viagens pelo mundo dos Dowaris. Os
mortos so recebidos pelos pajs e seus corpos so pintados com jenipapo e
breu. Os Dowaris permanecem na terra dos vivos por longos perodos at
que so enviados de volta a sua maloca pelos pajs. Famlias com crianas
no podem participar do ritual e as mes so mandadas para o mato com
seus filhos at que todo o rito seja terminado. Os dias de consumo de rap
so marcados pelo silencio ritual e pela abstinncia de sexo por parte dos
pajs, que dormem separados de suas mulheres. Essa abstinncia chega a
durar mais de um ms a cada ocorrncia e as mulheres do paj tambm no
podem procurar outros homens. Os banhos de gua e de rio ficam
interditados aos pajs pelo tempo que durar as visitas dos Dowaris.
Entre os Ajuru, o morto deve seguir pelo caminho dos mortos, o Djap,
sempre sombrio e cheio de perigos, dominado pelo terrvel esprito
Waink, ligado ao mal e violncia os espritos comuns, dos mortos so os
ria. Estes vm ao paj em diversas circunstancias e o ajudam nas curas e
em seus trabalhos. Recebem alimentos e se divertem enquanto esto na
terra. A direo da caminhada de oeste/ leste, rumo ao nascente no
caminho sofrem ataques de tucandeiras antropfagas e de caranguejeiras os
espritos dos ancestrais auxiliam na trajetria. Aps vencer as aranhas e as
formigas, eles devem vencer o gavio Awatanem Ajuru, que lhes pede que
comam seus piolhos. O morto deve catar os piolhos e fingir que os come,
vomitando-os longe do gavio, que em caso contrario, os devora. Por fim,
o morto deve atravessar um largo rio passando sobre um tronco que uma
cobra. Quando chega a um metro da margem oposta, ele deve saltar. Se cair
nas guas ser devorado pela serpente. O final do trajeto representa a
chegada ao Guia, o reino dos mortos. O morto desmaia e passa a ser
cuidado por algum paj que j morreu. O Djap ou caminho do morto
divido em duas rotas; a primeira para os que morreram naturalmente,
Pawi-ap. A segunda rota dos que morreram assassinados, Wainko-ap. O
papel dos pajs mais uma vez reafirmado, como primordial para garantir
o sucesso na trajetria do alm-tmulo.92
Para os Aru, os espritos dos mortos vo para locais diferentes,
dependendo de que nao ele e de que forma morreu. Espritos de
pessoas mortas por assassinato ou pelas guerras no tm para onde ir.
Atormentam os vivos e so temidos pelos Aru. Os pajs conduzem os
mortos aos seus destinos e retornam em segurana. Sem o seu auxilio, a
morto se perderia e na chegaria a nenhum lugar diferentemente dos
anteriores, para os Aru, a estrada que conduz os mortos ao seu destino
clara, sem perigos e limpa. O esprito do morto, chamado Pangoitiri,
92
Op cit. P. 221 e seguintes.
recebido por Kambi que o encaminha para o Paricot (oeste/poente), ou
para Paricur ou Andarob (leste/nascente). Ao sul ficam os Bonek, as
onas. O mito de Kambi o mesmo entre os Aru e os Macurap.93
Os Jabuti assinalam tambm a presena da ponte/tronco/cobra, chamada
Neru, que uma imensa jibia. O caminho dos mortos chamado de
Hinowid e o mundo dos mortos chama-se Beron. Nele o sol menos
quente e brilha de forma diferente daquela onde esto os vivos. Ao longo
do caminho dos mortos h uma entidade, chamada Berapariti, que devora
as almas incautas.94
As alteraes nas prticas de percepo da morte e dos ritos de
sepultamento entre os indgenas processaram-se ao longo dos sculos de
ocupao e de colonizao.a fora e a dominao da ideologia crist,
determinaram novas prticas, ritos e conceitos. Entre os indgenas de
Rondnia, estudados por Mindlin, ressalta o mito do caminho do morto,
onde os pajs tm papel determinante nos processos de conduo das almas
at seu local de repouso e de felicidade definitivos, bem como no controle
dos espritos dos mortos pr ocasio dos rituais de passagem do morto para
o alm. A seguir procuraremos observar os ritos de morte, sepultamento e
luto no contexto da sociedade colonial e da sociedade brasileira do sculo
XIX, observando sua evoluo at o sculo XX. Para desenvolvermos este
estudo, utilizaremos os textos de Ferdinand Denis, Mello Moraes Filho,
Luis da Cmara Cascudo e Joo Jos Reis.95
99
Cf. Joo Jos Reis. Op. cit. P. 109.
100
Cf. Joo Jos Reis. Op. cit. P. 123
101
A superstio no Brasil, p. 18.
possudo era-lhe retirado. Mesmo os dentes de ouro eram-lhe arrancados.
Botes dourados dos fardes ram arrancados da roupa. A justificativa
moral era de que o morto deveria comparecer diante de seu Juiz, despojado
de toda sua vaidade, mas na prtica, estes costumes contribuam para inibir
os saque s e arrombamentos de sepulturas e promover a ampliao do
legado de herana. As casas eram decoradas com tecidos de cores escuras,
preto ou roxo de preferncia. Velas e crucifixos anunciavam a morte e o
luto. Ramos fnebres tecidos com folhagens diversas e flores decoravam as
paredes e o esquife onde o morto era depositado. As famlias mas ricas
anunciavam a morte de um parente atravs de cartas convite, escritas mo
ou, mais tarde impressas em grficas, onde segundo Joo Jos Reis,
utilizavam-se termos para o convite fnebre, como abrilhantar o velrio e
o cortejo102 o mesmo autor observa ainda que eram impressos sonetos ao
morto, distribudos por ocasio. Os velrios de veriam acontecer desde a
apresentao do morto aps sal preparao ritual, ainda no dia de seu
falecimento, atravessando a noite e prolongando-se at o outro dia, quando,
ento sairia o cortejo fnebre em direo ao local de sepultamento.
O morto era colocado com os ps em direo rua, e ao local de seu
tumulo, para onde deveria ser levado como se fosse andando. A posio de
entrada no mundo dos mortos inversa do nascimento, quando se entra
no mundo dos vivos. As roupas devem ser novas, preferencialmente. Caso
no se tenham roupas novas, estas devem ser limpas, bem passadas e
engomadas e sem remendos e rasgos. Os sapatos no podem estar
empoeirados, para que a alma ao ver a poeira, lembrana do mundo dos
vivos, no sinta vontade de voltar. As mos do morto devem ser amarradas
com um rosrio, evitando que ele se perca e seja puxado pelo demnio.
Nas mos ele deve segurar uma cruz, que o ajudar nas suas ultimas
batalhas pela salvao de sua alma. Os vivos devem fazer companhia ao
morto em sua ultima noite sobre a terra, quando os demnios estaro
disputando a sua alma. A funo dos vivos manter afastados os maus
espritos atravs de rezas e ladainhas, ou ainda cantos religiosos. Os
parentes deveriam suportar a noite com dignidade e tristeza contrita. O
pranto convulsivo tambm era desejado e mostrava ao defunto, que ainda
podia ouvir os vivos, o quanto ele era estimado. Para reforar a estima do
morto, os mais abastados contratavam carpideiras profissionais que
passavam a noite e o dia do velrio chorando, se lastimando e lamentando
o passamento do morto. Muitas pessoas deixavam recursos em testamento
para ser distribudo aos pobres que comparecessem ao velrio e ao cortejo.
Algumas chegavam mesmo a determinar quantias de parte de seus recursos
102
Op. cit. P. 129.
para a contratao de pobres que deveriam acompanhar seu cortejo. 103
Durante os velrios e ainda por ocasio dos sepultamentos podia-se mandar
recados pelo morto para outros mortos que o9 haviam precedido na
eternidade. Durante a noite e ao longo de todo o dia, deveriam ser servidas
comidas e bebidas aos presentes a fim de que se mantivessem firmes em
seus postos de viglia contra a prpria morte e seus perigos, instalados por
ocasio do passamento do morto. Muitas das carpideiras freqentavam
compulsivamente todos os velrios, mesmo sem terem sido contratadas,
aproveitando a oportunidade para se banquetearem. Os alimentos poderiam
ser desde bolos, biscoitos e Paes, at refeies mais completas com pratos
de carnes, massas e feijes. Servia-se ainda caf, chs, sucos e refresco,
aguardente e vinhos.
As rezas eram puxadas pelas mulheres ou, em raros casos por
benzedores locais. Os padres cumpririam somente os deveres de
sacramento, aguardando a posterior passagem do morto pela igreja para as
ltimas bnos, a encomendao da alma do finado ao Criador. Essa
encomendao poderia ser feita tambm em casa. Famlias mais abastadas
mandariam dizer missas de corpo presente. Paralelamente s rezas,
ocorriam as anedotas e atuavam os contadores de casos que animavam os
velrios e a famlia enlutada. As anedotas deveriam quebrar a tenso da
morte instalada no ambiente dos vivos.
Maria de Lourdes Bandeira ressalta que os velrios instalam
simbolicamente a tenso entre a vida e a morte. O morto orientado em
seu trajeto do mundo dos vivos para o dos mortos. Velas, oraes e pranto
conduzem a alma do morto para o seu destino, desligando-a do mundo dos
vivos. Esse um momento delicado, perigoso tanto para o morto, que j
no pertence mais ao reino dos vivos, mas que ainda no chegou ao reino
dos mortos; quanto para os vivos que podem ser contaminados pela
presena da morte. Nestes momentos de sofrimento extremo, os limites
entre a vida e a morte esto rompidos e a possibilidade de contgio
considerada real. Para trazer os vivos para o seu mundo, usam-se as
bebidas e comidas. Contam-se casos e anedotas. Provoca-se o riso em meio
ao pranto. Para dar ao morto passagem para o Reino dos Mortos, usam-se
as rezas, os cnticos os smbolos da religio e a encomenda da alma.104
Por fim, procede-se ao cortejo e sepultamento. No Brasil, at etapa
avanada do sculo XX, os cortejos eram conduzidos a p. O morto era
103
Joo Jos Reis cita o caso do comerciante portugus, Jos Antonio da Silva, que viveu em Salvador e que
morreu em 1817 e deixou ordens expressas em seu testamento para que fossem contratados quinhentos pobres
para acompanhar seu velrio, cortejo e sepultamento, pagando-se a cada um a soma de cento e setenta ris
pelo servio. Cf. p. 153.
104
Op.cit. P. 195.
retirado de casa a partir de seus ps, o que significava sua caminhada para
o mundo dos mortos. As pessoas que levariam o caixo deveriam ser
prximas da famlia e do morto e essa seria a sua ltima homenagem. Na
partida do caixo o pranto convulsivo dominava a famlia e as carpideiras,
criando um momento de fortssima tenso emocional. O acompanhamento
do cortejo fnebre era feito por todos, deixando-se ausente familiares
femininos mais prximos. O passo de caminhada era lento, permitindo ao
morto as ltimas despedidas e que se acostumasse com a prpria partida.
Velas e tochas eram carregadas pelos participantes e era comum que o
tamanho do cortejo fosse aumentado com a adeso de transeuntes.
Cnticos, rezas e muito choro marcavam o trajeto. Por fim chegava-se
igreja, onde ocorreria o sepultamento.
O ato de enterrar os mortos, era significativo. Esperava-se que
estivessem prximos de Deus, por isso preferiam-se os sepultamentos nas
igrejas, cujos assoalhos e lajes que formavam o piso eram constantemente
revolvidas para dar lugar a novos ocupantes. Dessa forma o morto estaria
perto de Deus e, agora sob nova condio, ficaria tambm perto dos vivos
por ocasio das celebraes religiosas. O cho de rodas as igrejas coloniais
era um grande cemitrio, onde os vivos passeavam sobre os mortos. Para
aqueles que no podiam arcar com os custos de uma vaga dentro do recinto
das igrejas, havia a possibilidade da esmola e ainda eram construdos
cemitrios paralelos ao edifcio religioso, aos conventos e aos hospitais,
todos controlados pelo clero. As paredes adjacentes ao templo, os claustros
e corredores de acesso, tambm serviam como espao de sepultamento.
Aos que se haviam recusado aos ltimos sacramentos, aos hereges, judeus,
blasfemos e outros pecadores contumazes, eram reservados outros locais de
sepultamento, cemitrios no catlicos, terrenos ermos encruzilhadas para
suicidas e renegados da f que tinham sua alma era considerada perdida. A
cal era o elemento mais utilizado para cobrir os enterrados e apressava a
decomposio dos cadveres.
A partir da terceira e da quarta dcada do sculo XIX, as maiores
cidades Imprio, passaram a utilizar-se de carros fnebres para os cortejos
dos homens mais ricos e importantes. Esses carros e carruagens eram
ricamente ornados com talha dourada e tecidos adamascados. Aos
convidados mais ilustres do cortejo, eram oferecidas carruagens que os
levava em trote lento. Os demais seguiam a p, levando velas e archotes,
alem de flores e coroas para o sepultamento. Muitos, entretanto resistiram a
essa inovao por considerarem-na indigna. Assim, Jacinta Tereza de So
Jos, manifestou claramente que gostaria de ser sepultada com o Hbito da
Ordem Terceira do Carmo e que seu cortejo deveria seguir p, pois no
quero ser carregada por burros.105
Os pomposos rituais fnebres dos perodos colonial e imperial tinham a
funo de consolar os vivos e de exaltar os mortos. Eram uma atrao e
seus procedimentos distraiam a dor dos participantes enquanto convidavam
os assistentes a participar dessa mesma dor, agindo como uma forma de
interao social. Preferiam-se os sepultamentos noturnos, o que deveria
promover uma maior interao entre o morto e seu novo mundo de
sombras e de silencio. Os cortejos eram longos e marcados pela
superstio. Quem carregava o esquife na sada de casa, deveria adentrar
carregando o mesmo no local de enterro, caso no o fizesse teria morte
prxima. Se o fretro parava em frente a alguma casa, aquilo era tido como
um mau sinal e as pessoas da famlia corriam risco de morte prxima. Para
dissipar este risco, assim que o cortejo passasse, jogava-se gua em sua
direo, esconjurando o morto e reiterando a frmula com as palavras
deus te leve.106 Os enterros de crianas eram alegres e animados, as
bandas e musicas tocavam ritmos mais descontrados, incluindo valsas e
polcas, alm de marchas, e no se chorava, pois a criana, com certeza
havia se transformado em anjo. Os cortejos infantis eram assemelhados a
procisses triunfais. As crianas eram conduzidas em cadeiras de arruar
cobertas de flores, e no se chorava por elas. 107
Aps o sepultamento seguia-se o luto familiar. Durante os primeiros
sete dias a casa permaneceria fechada e seus moradores evitariam sair,
conversar alto e receber visitas ou trabalhar. A comida seria enviada at a
casa pela caridade e amizade dos vizinhos e parentes mais distantes. O luto
impunha a continuidade de oraes e de velas em frente s imagens
domsticas. Os oratrios permaneceriam abertos e as rezas seriam repetidas
durante o dia e a noite. A famlia enlutada deveria usar roupas negras e
estaria interditada a varias prticas durante o luto fechado, que deveria
durar um ano e, em menor escala durante o luto aberto, que durava seis
meses. Os perodos de luto eram variveis de acordo com o grau de
parentesco. Thomas Ewbank informa que um ano o perodo de luto para
pais e mes, filhos e cnjuges. O perodo de luto era de quatro meses para
irmos e de dois meses para tios e para primos. 108 O mesmo autor estimou,
em 1845, que os custos com os rituais funerrios seriam estimados entre 50
a 1500 dlares.109 Os custos poderiam ser ainda substancialmente maiores.
105
Joo Jos Reis, p. 157.
106
Idem p. 139.
107
Joo Jos Reis. P. 140. e ainda Luis da Cmara Cascudo. P. 26.
108
Thomas Ewbank. Vida no Brasil. Belo Horizonte, So Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1976. P. 59.
109
P. 60.
As missas de corpo presente e em memria da alma do morto oravam, em
mdia, em dois dlares, segundo Ewbank. Em seu testamento, a rica novia
Antnia Joaquina de Bonfim deixou recursos para que fossem celebradas
mil missas, todas de corpo presente em sua memria, todas muito solenes,
com muitos padres, frades, pobres a quem destinara esmolas, Irmos das
Confrarias do Carmo e de outras, alm de frades, escravos e libertos, todos
adequadamente vestidos em sinal de luto.110 As visitas de condolncias
deveriam ser feitas aps o stimo dia e em traje de luto. O nome do morto
deveria ser evitado, pois o seu pronunciamento o atrairia de volta terra
dos vivos. A ele seriam aplicados os termos o falecido, o morto, o
defunto.111
As missas pela alma eram outra grande preocupao, alguns fieis
deixavam explicito em seus testamentos o numero de missas que
desejavam e a quais santos elas deveriam ser consagradas. O comerciante
Antnio Vaz de Carvalho solicitou em testamento que fossem celebradas
doze mil missas em sufrgio de sua alma 112. As missas eram encomendadas
ainda pelos parentes dos mortos e pelo prprio Estado em certas ocasies.
As missas poderiam ser mais ou menos luxuosas dependendo dos recursos
do falecido. As mais imponentes incluam dezenas de padres e de
assistentes, a participao das irmandades de ordens terceiras, decorao,
muitas velas, incenso, msica de cmara, cantores e instrumentos,
orquestras, roupas sagradas especiais, distribuio de esmolas aos pobres e
outros aparatos.
As transformaes higienistas e sanitaristas que redefiniram os cdigos
urbanos das cidades europias do sculo XIX, comearam a ser percebidos
no Brasil a partir da Independncia. No tocante s questes de velrios e de
sepultamentos, observamos projetos ainda bastante tmidos na primeira
metade do sculo XIX; e outros mais ousados a partir do ltimo quartel do
mesmo sculo, principalmente aps a proclamao da Repblica em 1889.
ao longo do perodo colonial, e mesmo em uma etapa avanada do sculo
XIX, o habito de se enterrar os mortos em igrejas, capelas e mosteiros ou
conventos, foi predominante. No faltavam queixas e crticas, sobretudo
dos viajantes estrangeiros a esse hbito. Consta nos relatos que o mau odor
exalado das sepulturas nas igrejas s vezes as deixava absolutamente sem
condies de serem freqentadas. Ainda no sculo XVIII, o aumento da
demanda de novas sepulturas j havia esgotado a capacidade de grande
110
Cf. Joo Jos Reis. P. 157.
111
Cf. Luis da Cmara Cascudo. Superstio no Brasil. P. 17.
112
CF. Joo Jos Reis. P. 210.
parte das igrejas e em muitos casos, j se projetavam os carneiros (Lugar
onde se guarda a carne. Do latim, carnarium).
Parte considervel das sepulturas passaram para o subsolo das igrejas e
os sepultamentos eram realizados em cavidades longitudinais que
formavam as paredes de base do edifcio. Os carneiros reduziram o numero
de mortos na parte principal dos edifcios religiosos, mas afastaram os
mortos dos seus santos de devoo e tambm do Santssimo, localizado no
altar mor da igreja. Outro costume que foi se desenvolvendo com a
carncia constante de espao nas igrejas foi o de se instalar os cemitrios
extraparedes, externo ao edifcio religioso, mas contguo a este. Os mortos
agora j no estavam mais dentro dos templos, mas em sepulturas cavadas
na terra. Este processo estimulou o uso de caixes, no apenas para o
transporte do morto at o local de sepultamento, como fora comum at
ento; mas para resguardar o morto do contato imediato com a terra por
ocasio de seu enterro. Tais hbitos de sepultamento revelam o porque de
no percebermos entre os monumentos religiosos da Colnia a presena de
monumentos fnebres, como os espetaculares mausolus da Europa.
O desenvolvimento da cultura iluminista e as novas posturas cientificas
sobre as doenas, os miasmas e suas causas e propagao, transformou a
mentalidade mdica do sculo XIX no Brasil. Este passou a se considerar
um heri civilizador e a conceber o bem estar publico a partir de um estado
policial e higienista. Ainda na ltima dcada do sculo XVIII, se pode
observar crticas dos mdicos brasileiros, de formao francesa ou
portuguesa aos enterros em igrejas e o perigo que os miasmas que
levantavam eflvios no local representavam para a sade pblica. O
primeiro trabalho de tese sobre os males do sepultamento em igrejas foi
escrito pelo mdico Manoel Mauricio Rebouas em 1832.113 Ao longo do
sculo XIX a medicina no poupou crticas ao modelo tradicional de
sepultamento em igrejas.
Os relatrios mdicos da primeira metade do sculo XIX consideravam
as Irmandades e, depois os padres como os principais obstculos para as
reformas das prticas de sepultamento. As crticas no poupavam ainda os
cemitrios de igrejas localizados dentro do espao urbano e os costumes de
se utilizar redes e caixes de aluguel para o transporte do morto nos
cortejos. Alvo de crticas era ainda, o costume de se expor as urnas
funerrias que continham ossadas para a visitao dos familiares por
ocasio das celebraes pelos mortos ou em dias especiais de festas que
remetessem lembranas do morto. , data de 1825. A proposta de Sua
Majestade era de que fosse iniciado um O primeiro decreto a tratar sobre o
113
Citado por Joo Jos Reis. P. 255.
problema dos sepultamentos em igrejas procedimento que possibilitasse o
abandono das prticas barrocas de sepultamentos em igrejas.
A lei de 1828, que regulamentava e estruturava as cmaras municipais
do pas, estabelecia princpios e normas de saneamento. Aconselhava-se a
criao de cemitrios municipais, situados em terrenos localizados fora da
rea urbana. Os cdigos municipais comearam a determinar proibies
aos sepultamentos nas igrejas a partir da dcada de 1830, atraindo para si a
fria popular, a indignao dos clrigos e o agravo das Irmandades.
Popularmente, o enterro em cemitrios, ao invs de ocorrer nas igrejas
parecia inaceitvel. A morte comeava a ser dessacralizada e legislada,
tornando-se um negcio que comeava a escapulir das mos de seus
monopolizadores tradicionais, o clero e as irmandades. Os mdicos
desejavam uma morte a moda europia, limpa, discreta, escondida e sem os
alardes barrocos do tempo colonial. As autoridades do recm fundado
Estado do Brasil pretendiam evitar as epidemias e deixar a precria sade
pblica nacional em situao menos desconfortvel. Por outro lado, como
herdeiras de uma cultura iluminista, tanto as elites intelectuais, quanto uma
considervel parcela das elites polticas, consideravam que o
direcionamento das polticas europias em geral e das polticas francesas
em particular deveriam servir como timos referenciais para o
direcionamento de polticas para o Imprio do Brasil.
Os primeiros cemitrios construdos no Brasil eram reservados a
hereges, escravos pagos, judeus e protestantes. Na maior parte dos
grandes centros colonial, existia estes campos de repouso eterno. A igreja
possua, durante o sculo XIX, cemitrios contguos ao edifcio religioso.
Mas eles eram preteridos em funo das preferncias pelos sepultamentos
em interiores. Na segunda metade do sculo XIX, esse quadro comea a
sofrer grandes alteraes e os cemitrios pblicos ou ainda os cemitrios
catlicos de reas exteriores s igrejas se desenvolvem em todo o pas. A
tendncia a de seguir os modelos dos cemitrios ingleses e franceses. O
espao projetado para sepultamentos em solo, tendo covas individuais,
caixes que baixavam sepultura com o morto e ainda alamedas, jardim e
monumentos. Iniciavam-se as construes das cidades dos mortos. A
beleza deveria ser calma e convidativa, inspirando a reflexo e a memria.
Um lugar para uma suava saudade melanclica. A paisagem, bem
arborizada e fresca. As sepulturas poderiam apresentar desde a
grandiosidade dos magnficos mausolus de mrmore e granito, at a
simplicidade das lpides e cruzeiros que identificassem seus ocupantes
com uma breve nota. Os sepultamentos em cemitrios construdos a partir
do modelo europeu anglo-frances, s veio a se consolidar a partir da
segunda metade do sculo XIX, quando as idias higienistas j eram mais
bem aceitas pela populao e com a definio de espaos para as entidades
que haviam administrado os ritos de sepultamento atravs dos sculos no
Brasil. A constituio de 1891, que separou o Estado da Igreja, desligou-a
tambm das obrigaes fnebres de zelar pelo sepultamento dos mortos.
Os cemitrios passaram, ao longo do sculo XX para as administraes
municipais e ainda para entidades privadas.
116
Neville Craig. Estrada de Ferro Madeira Mamor. Histria trgica de uma expedio. So Paulo,
COMPANHIA Editora Nacional, 1947.
117
Op.cit. p. 244.
centmetros, ao centro dos quais havia pequenas cruzes de papel de cor.
No geral a arrumao estava bem feita e geometricamente regular, mas o
efeito era chocante, conquanto estranhamente pattico. Do lado oposto
estavam os msicos, com tambor, flauta, pisto e violino. No soalho,
sentadas turca estavam mais de vinte ndias vestidas de branco. Com a
cabea baixa elas choravam e lamentavam, balanando o corpo para
frente e para traz de acordo com a cadncia da musica. Quando a noite
envolveu o ambiente, a luz tremuladas velas, o cheiro de incenso, a msica
brbara e o choro selvagem das carpideiras, tudo contribua para encher
de vagos temores o estrangeiro desacostumado a essas cenas. De vez em
quando um grito mais agudo, vindo do interior da casa, denunciava a
presena da me, lamentando, como s as mes o fazem, a perda do filho.
Horas a fio, pela noite a fora, a cena continuou sem interrupo. Quando
os msicos se cansavam ou as carpideiras desmaiavam, outros os
substituam e as lamentaes, os gritos e a msica desafinada prosseguiam
at dia claro. Ento os pais desolados se despediram do filhinho morto e
fecharam o caixo. Quatro ndios vestidos de branco levaram-no de casa,
precedidos pelos msicos e seguidos em fila dupla por toda a populao
de La Concepcin. Os funerais logo terminaram.118
Os registros desse funeral revelam muito do que devem ter sido os
funerais nos seringais do Madeira durante a segunda metade do sculo
XIX. Em primeiro lugar, reparemos que se tratava de algum da elite
regional. Um dos filhos de um dos homens mais ricos da regio. A
rusticidade dos objetos como o caixo, a mesa de velrio e a ausncia de
moblia revelam a simplicidade da vida local. Em seguida importante se
observar, que mesmo sendo o defunto, um representante da elite, no havia
padres no seu velrio e em seu sepultamento, evidenciando que as
tradies do catolicismo popular eram mantidas, sobretudo pelas mulheres
locais. A cor branca usada pelas carpideiras e pelos ndios locais,
provavelmente, representa o luto e percebida pelo narrador como uma cor
cerimonial. O caixo de fabricao local, mas mesmo assim um luxo
extra na regio, onde a maioria era sepultada em suas redes de dormir. O
uso de incenso revela o elevado status do morto, uma vez que um artigo
de luxo na regio. A estranha decorao artesanal do caixo denota
reminiscncias do artesanato indgena dos perodos das misses. A
ausncia de flores parcialmente substituda pelos papis coloridos que
enfeitam o caixo. As ventarolas de papel colorido mostram que a criana
levou alguma lembrana da terra dos vivos e dos pais consigo. ainda um
smbolo de seu status. A me no permanece junto ao pequeno corpo, a dor
118
Idem. Pp. 379-380.
inconsolvel exprimida visualmente pelas carpideiras que choram at
desmaiar. Por fim, a msica meio selvagem, que deveria misturar hinrios
catlicos com cantigas indgenas de morte, assim como os instrumentos
tambm se confundiam, alguns amerndios, outros europeus. O breve
sepultamento, sem maiores pompas do que a longa procisso em fila dupla
revela que o cemitrio prximo sede do Seringal de La Concepcin,
onde a famlia vivia.
Os velrios e os sepultamentos comuns no eram to elaborados como o
do jovem filho do Coronel de Barranco. As rezas eram entoadas pelas
velhas e as mulheres em geral. Quando se tinha famlia, o pranto era
marcado nos momentos de clmax do velrio e do sepultamento, o uso de
velas, ao menos uma, era indispensvel e a encomendao do morto aos
santos era feita sem a presena da Igreja. Os mortos comuns eram
sepultados em redes e em covas marcadas com cruzes de madeira. Na
maior parte das vezes os ritos fnebres terminavam por ocasio do
sepultamento. Em casos mais especficos, celebravam-se rezas e novenas
pelo morto, com a ajuda das rezadeiras locais.
No sculo XX, com a construo da e.f.m.m. pela empreiteira May,
Jakyl and Randlph, a servio da Holding de Farqhuar, a situao dos Vale
do Madeira e Mamor, a partir de 1907, passou por enormes
transformaes. Calcula-se em aproximadamente 22000 o numero total de
trabalhadores deslocados para a regio das obras, de diversas partes do
mundo, entre 1907 e 1912. As doenas e os diversos incidentes
promoveram mais uma vez uma elevadssima mortandade entre os
trabalhadores. A insalubridade local era to desgastante que em visita a
Santo Antnio, em 1910, o Sanitarista Oswaldo Cruz, registrou que o
ndice de mortalidade infantil era de 100% na cidade. Simplesmente
nenhuma criana sobrevivia aos primeiros anos em Santo Antnio. 119 A
construo da Ferrovia Madeira-Mamor provocou uma enorme incidncia
de protesto de autoridades de diversos paises, quanto ao uso da mo de
obra de seus cidados em regies de to extremas adversidades, sem a
menor infra-estrutura capaz de assegurar atendimento digno em casos de
doena e acidentes. Por conta dessas presses externas e internas, pois os
trabalhadores se sublevavam, fugiam e produziam pouco; a Cia Madeira
and Mamor Railway CO, construiu o lendrio Hospital da Candelria. Os
registros do Hospital do conta de um nmero de aproximadamente 1500
bitos dentre os trabalhadores entre os anos de 1907 e 1912. esse numero
119
Cf, Marco Antnio Domingues Teixeira. Mortos, dormentes e febris. Um estudo sobre o medo, a
morbidade e a morte nos Vales do Guapor e Madeira entre os sculos XVIII e XX.. In: Porto velho conta a
sua histria. Porto velho, SEMCE, 1998. PP. 140 e seguintes.
contestado pelo historiador e jornalista Manoel Rodrigues Ferreira, que
afirma que o total de mortos deve ter ficado na casa dos 6500
trabalhadores. Por sua vez o escritor Eduardo Prado120, calcula em 43000 o
numero total de mortos por ocasio da construo da E.F.M.M. Para se
chegar perto de uma cifra to elevada como essa preciso que se calcule o
total das perdas indgenas, cuja maior parte foi dizimada pelos capatazes da
Ferrovia ou morreu vitimada pelas diversas instncias dos contatos com os
brancos, e ainda o conjunto dos que trabalhavam nos seringais e outros
setores da economia local. Ainda assim o perodo deveria ser ampliado
para o inicio das primeiras tentativas de construo da Ferrovia em 1873 e
prolongado at a sada dos americanos em 1930. De qualquer forma, se a
cifra de Prado parece muito elevada, as demais parecem muito tmidas.
A morte dos trabalhadores que construram a estrada de ferro, em
circunstancias de doenas, ataques de ndios e acidentes, um dos maiores
mitos da Ferrovia Madeira Mamor. Dentre as lendas surge uma que diz
que cada dormente uma vida. Claramente um exagero. Mas na Reta do
Abun, distante da salubridade higienista do Hospital da Candelria,
morria-se como em nenhum outro trecho da ferrovia e de acordo com
depoimentos da poca, morria-se mais na Reta do Abun, do que em
qualquer outro local de construo de grande porte no mundo tropical. As
mortes eram tantas que, de acordo com as narrativas e com alguns
autores121, a necessidade de se prosseguir os trabalhos e de se sepultar os
mortos tinham que ser harmonizadas. Assim, na medida em que se
escavava a terra para se assentar os dormentes, depositava-se o corpo do
morto, embrulhado em sua rede de dormir, sob os trilhos da Ferrovia.
Nenhum ritual, nenhuma reza, nenhuma placa ou lgrima. Os trilhos
seriam a nica referencia a dezenas, talvez centenas de trabalhadores
mortos e sepultados anonimamente ao longo do eixo ferrovirio.
A construo do Hospital da Candelria foi acompanhada pela
construo de um cemitrio, conhecido como Cemitrio da Candelria. Ele
serviu basicamente aos ferrovirios e aos trabalhadores da empreiteira
entre 1908 e 1919, ano que comeou a funcionar o Cemitrio dos Inocentes
em Porto Velho. A melhor descrio do Cemitrio da Candelria dada por
Manoel Rodrigues Ferreira em sua obra nas selvas amaznicas. 122 Por
ocasio da visita do autor, o cemitrio j estava desativado h mais de 45
anos e a mata havia crescido por entre as sepulturas. As sepulturas j
estavam cobertas pelo limo, pelos cips e lianas tpicos da regio. As
120
Eduardo Prado. Eu vi o Amazonas. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1952.
121
Vide Marcio Souza Mad Maria. So Paulo, Marco Zero, 1980.
122
Manoel Rodrigues Ferreira em sua obra nas selvas amaznicas. So Paulo, Bblos, 1961. Pp. 142 e
seguintes.
arvores cresciam e impediam a luz. O Cemitrio da Candelria apresentava
o aspecto de um tpico cemitrio de uma estao de trabalhos de uma
grande companhia. Estava dividido em blocos de sepulturas de catlicos e
de protestantes, alm de acolher ainda pessoas de credos no cristos e
mesmo pessoas sem credo algum. As sepulturas catlicas apresentavam
cruzes de ferro ou de alvenaria e muitas devem ter sido marcadas somente
por cruzes de madeira, como mostra a foto tirada por Dana Merril, entre
1910 e 1912. Ferreira ainda encontrou em algumas sepulturas, coroas de
fores de biscuit ou de massa de gesso, intactas mas cobertas pelo limo.
Dentre os restos de caixes pode achar almofadas de arame bordadas com
contas de vidro refinadas, onde devem ter sido reclinadas as cabeas dos
mortos. Mrmore foi o material preferido para as placas de identificao
dos mortos. Metais cromados e alvenaria foram utilizados para a
confeco das sepulturas e das cruzes que se enfileiraram no Candelria.
Os registros das placas sepulcrais mostram uma populao de mortos
incrivelmente jovens, quase todos entre os 20 e 30 anos de idade.
Predominam de forma absoluta as sepulturas masculinas, quase no se
vem sepulturas femininas. O fim das atividades do Cemitrio da
Candelria, segundo Ferreira ocorreu entre 1919 e 1920, quando passou a
funcionar OS Inocentes, na periferia da ento pequena cidade de Porto
Velho. Mas antes dele, j funcionava o velho Cemitrio de Santo Antnio,
ativo desde o sculo XIX. triste perceber a dupla morte do Cemitrio da
Candelria. Desativado pela primeira vez com o declnio da prpria
ferrovia e de seu Hospital homnimo, o Candelria morreu uma segunda
vez, quando um ex-ferrovirio recentemente, destruiu suas lpides e tentou
transforma-lo em uma rea de loteamento. Ainda hoje no se sabe o que foi
feito com os restos mortais de seus ocupantes. O Candelria mais uma
vez outra triste referncia ao descaso do Poder, dessa vez para com a
memria de cada um de seus ocupantes e da cidade que cresceu a partir da
Ferrovia.
Santo Antnio hoje o Cemitrio Municipal de Porto Velho.
Abrangendo uma enorme rea de terras entre os pntanos da extinta cidade
de Santo Antnio do Madeira e as terras firmes da rodovia Br 364, sentido
Porto Velho-Rio Branco, Santo Antnio, foi por muito tempo o cemitrio
dos que no estavam vinculados Ferrovia. Visitado por Ferreira na
mesma poca em que esteve no Candelria, Santo Antnio apresentava-se
como um vasto campo, gramado e limpo. As sepulturas estavam entre
arbustos e fruteiras, e seus ocupantes eram ento os moradores de Santo
Antonio, at recentemente um municpio distinto de Porto Velho. O auge
de suas atividades coincidiu com os trabalhos de construo da Ferrovia.
Santo Antnio prestou-se ainda como divisor os variados status sociais da
comunidade local. Ali eram sepultados os que no participavam do mundo
desenvolvido e assptico da E.F.M.M. Seus ocupantes viveram na periferia
do sistema, quer como seringueiros, mascates, prostitutas, quer como os
muitos demitidos pela Ferrovia aps longos perodos de doena. Na
realidade possvel vislumbrar dois cemitrios em Santo Antnio. Um
mais antigo, com sepulturas que datam do sculo XIX e encontravam-se
beira do rio. A foram sepultados os mortos da Public Works e da P& T
Collins, alem dos mortos das Expedies Morsing e Pinkas. Este cemitrio
desapareceu, destrudo por proprietrios das terras que se desfizeram das
capelas e das sepulturas para lotear o terreno. O outro cemitrio mais
recente e data do sculo XX, este se transformou em um enorme cemitrio
municipal, que, entre as dcadas de 1970 e 2000 foi o nico local de
sepultamento da cidade. marcado pela presena de antigas sepulturas de
alvenaria com grades de ferro e pequenas esculturas de bronze, gesso ou
cimento. As sepulturas modernas so de pouca expresso artstica,
revelando preocupaes morais desvinculadas da esttica tradicional dos
grandes jazigos e mausolus. Muitas so grotescamente revestidas de
mrmore e apresentam apenas cruzes e vasos alm de placas com
fotografias e datas de nascimento e morte. importante frisar o
elevadssimo numero de sepulturas de estrangeiros, localizadas tanto em
Santo Antnio, como no Candelria. Algumas revelam a dor da perda,
como a d a jovem Rachel Essaba, nascida em 08 de dezembro de 1910 e
falecida em 31 de janeiro de 1911. Seu epitfio diz: Aqui duerme su sueo
eterno la innocente Rachel Essaba, em outra se l: Thereza Rosa de
Souza Aranda. Com as lgrimas nos olhos, e, a dor nalma, a ti filha
estremecida dedico-te este ltimo presente como prova eterna das
saudades que me deixas. A morte roubou-me os teus affectos justamente
quando apenas contavas cinco anos de idade. O correr do tempo jamais se
esquecer da minha idolatria pela minha querida Therezinha.123
O ltimo dos antigos cemitrios de Porto Velho o Cemitrio dos
Inocentes. Que esteve em atividade desde a 1919 at a dcada de 1970,
quando foi desativado por no suportar mais a quantidade de corpos a
serem sepultados. Os Inocentes situa-se em pleno corao da cidade de
Porto Velho seu porto est localizado na Avenida Almirante Barroso,
defronte ao inicio da Rua General Osrio. O cemitrio est situado a duas
quadras da mais importante avenida da cidade, a avenida Sete de Setembro.
Seus muros brancos abrigam uma rea de pouco mais de um hectare. Em
frente ao cemitrio, a Avenida Almirante Barroso se alarga e possibilita a
123
Cf. Manoel Rodrigues Ferreira. Op. cit. P. 148.
formao de um estacionamento de tamanho razovel, parcialmente
arborizado.
O cemitrio permaneceu em atividade por aproximadamente 55 anos.
Possui uma capela funerria, alamedas cimentadas, enormes mangueiras e
um variado conjunto de jazigos, mausolus e sepulturas comuns. Seus
tmulos so em geral simples e discretos. Alguns em forma de capela,
muitos com imagens de santos feitas em gesso e, apenas um grandioso
conjunto escultural e arquitetnico em bronze e granito negro, pertencente
a uma das famlias tradicionais da cidade. Na capela existiu outrora uma
bela imagem do Senhor flagelado, feita em madeira, em tamanho natural.
Os Inocentes foi um cemitrio que a principio, destinava-se ao
sepultamento daqueles que no pertenciam aos quadros da Ferrovia. Em
1919, o Mocambo, bairro onde est localizado o cemitrio era remoto,
perigoso e local de boemia e de diverso. Era famoso ainda pela existncia
de um terreiro de macumba localizado prximo ao igarap e ao cemitrio,
o Santa Brbara, que ainda existe embora em outra rea da cidade. O bairro
cresceu e se desenvolveu atrs do cemitrio e serviu como local de moradia
para as populaes de substratos sociais mais baixos. Ao longo dos ltimos
anos, o cemitrio tornou-se alvo de caloroso debate, por estar em pleno
corao da cidade e por ser ainda o principal escudo do bairro do
Mocambo, que no perodo atual tornou-se conhecido pelo comrcio de
drogas e pela prostituio. No faltaram idias de remoo do cemitrio.
Felizmente, algo da memria histrica da cidade ainda parece sobreviver
de forma inalterada e intacta. Embora no tenha sido tombado como
monumento histrico local, Os Inocentes ainda guarda preciosos registros
das origens da cidade.
Para finalizarmos este estudo sobre a morte nas regies do Madeira,
Mamor e Guapor, passaremos a uma reflexo sobre as prticas de
cuidados com o morto e de velrio e sepultamento em Porto Velho, entre os
anos 1950 e 1975. Em primeiro lugar, interessante ressaltar que at 1974,
a cidade esteve bastante distante das transformaes dos demais centros do
pas. O processo de interligao de Porto Velho com as regies centro-sul
do pas foi extremamente precrio at 1960. As nicas formas de contato
eram o telgrafo, o radio e mais tarde o telefone. Os transportes estavam
limitados aos barcos que estabeleciam a ligao com Manaus e Belm e a
ferrovia que ligava Porto Velho a Guajar Mirim, da podia-se seguir pela
Bolvia. O avio era a alternativa para as viagens ao centro-sul do pas, mas
as rotas dos vos eram precrias e muito espaadas.
A situao apresentou sinais evidentes de melhora e de uma maior
integrao quando foi aberta a rodovia Br 029, futura Br 364. obra do
Governo Juscelino Kubtscheck, inaugurada em 1960. nesta poca
governava o ento Territrio Federal de Rondnia o governador Pulo
Nunes Leal. Embora reduzida a precariedade das ligaes entre a cidade de
Porto Velho e o restante do pas, as distancias eram enormes e os vazios
demogrficos dificultavam a travessia da estrada. Durante a estao das
chuvas as dificuldades aumentavam enormemente, e no auge das chuvas a
estrada era interditada, permanecendo assim durante meses. Em 1974, as
distncias foram substancialmente reduzidas com a inaugurao do
primeiro canal de televiso, que ia ao ar com reprises de programas
nacionais e com uma acanhada programao local. A televiso foi um dos
principais fatores de aproximao cultural das populaes locais com
outras do centro-sul do pas. No bojo das transformaes ocorreram o
abandono de antigas prticas culturais e a adoo de outras tantas.
Dentre as prticas que sofreram enormes transformaes podemos
observar os rituais de velrio e de sepultamento, que passaram a se
assemelhar cada vez mais queles praticados pela populao do Sudeste
brasileiro. uma das maiores curiosidades locais no tocante aos rituais
fnebres eram os avisos de falecimento. Uma espcie de convite televisivo
para a participao de velrios e de sepultamentos que invadia as casas em
qualquer horrio, interrompendo a programao normal. Na voz dos
locutores locais, era lido em tom grave, o seguinte texto: Note de
falecimento. A famlia daquele que em vida se chamou (nome do morto),
tem o triste dever de informar o seu falecimento, ocorrido s (tantas) horas,
no (nome do local onde se deu o passamento). O corpo estar sendo velado
(nome do local do velrio) sito Rua (nome) nmero (tal), no bairro (nome
do bairro), donde sair o fretro com destino ao cemitrio de Santo
Antnio, s (horas). A famlia enlutada desde j agradece a todos que
participarem deste ato de f e piedade crist. Informou a funerria (nome).
Avisos semelhantes eram publicados para as missas e cultos de stimo dia e
de ms de falecimento. Seus textos diziam: missa de (stimo dia ou de
trinta dias). Os familiares (designava-se todos os graus de parentesco que
haviam convidado para a cerimnia), daquele que em vida se chamou
(nome), ainda consternados com o seu falecimento, agradecem a todos os
que participaram de seu velrio e sepultamento e os convidam a todos,
parentes e amigos para a missa de (tantos dias) que faro celebrar em
memria de sua alma no dia (tal ) s (horas) na igreja (nome) sito Rua
(endereo). Desde j agradecem a todos os que participarem deste ato de f
e piedade crist. Informou a funerria (nome).
Outra curiosidade local, percebida durante os velrios era a ltima foto.
Um fotgrafo profissional era chamado para fotografar o morto em seu
caixo. Em muitos casos, com a famlia reunida em volta do morto. Em
outros ainda mais incrveis, o caixo e o morto so colocados na vertical,
(em p) para que os familiares o ladeiem e assim seja retratada toda a
famlia unida pela ltima vez. As fotos de mortos s entraram em desuso
com a crescente migrao ocorrida, sobretudo, entre os anos 1980 e 1990,
quando os recm chegados no poupavam crticas ao costume, considerado
brbaro e impiedoso. A distribuio de santinhos do morto nas missas de
stimo dia foi tambm um costume pouco observado na regio.
Nos seringais amaznicos, vigorou outro costume de estranhas
caractersticas, que consistia no compromisso assumido pela viva do
morto que estava sendo velado, de se casar com um outro seringueiro,
presente ali mesmo, no velrio. Este costume registrado por Arajo
Lima124 a escassez de mulheres, segundo os relatos da poca, provocava
enormes tenses psquicas e sociais entre a populao masculina. A venda
de mulheres que haviam esgotado seu tempo nos cabars da regio era um
artifcio, mas que no chegava a satisfazer a procura dos seringueiros. Por
outro lado, a disponibilidade de uma viva, mesmo por ocasio do velrio
do marido, era um fato capaz de causar srios problemas de tenso nos
seringais. Para minimizar o efeito da disponibilidade momentnea da
mulher, o coronel ou seu administrador, mandava recolher a recm viva,
enquanto o corpo do marido morto era preparado para o velrio,
geralmente muito simples e de ritos sumrios. Nesse nterim, o coronel
resolvia com qual novo seringueiro a viva deveria se casar e a apresentava
ao noivo. As narrativas falam que por ocasio de morte dos seringueiros
casados, inmeros pretendentes afluam ao velrio, na esperana de
conseguir a mo da viva em casamento. Somente depois do anncio
oficial do noivado, ainda durante o velrio, que a viva voltaria ao lado
do corpo do marido morto para prante-lo e vela-lo, at o momento de seu
sepultamento.
Por fim, passaremos ao estudo do comportamento da populao local
diante da morte e do contato com o morto. Estudaremos o processo de
preparao do corpo e sua apresentao para o velrio e o sepultamento no
cemitrio de Santo Antnio.
Os habitantes de Porto Velho guardaram um conjunto de tradies
amaznicas e nordestinas que se manteve praticamente inalterado entre os
anos de 1943, poca da criao do Territrio federal do Guapor, at o
inicio da dcada de 1970, quando as relaes de trocas e de comunicaes
com o Sudeste passaram a ser componentes determinantes da dinmica
cultural. Dentre as tradies mais slidas estavam os ritos de preparo do
124
Arajo Lima. Amaznia, a terra e o homem. So Paulo, companhia Editora Nacional, 1937. Pp. 329-335.
morto, velrio e sepultamento valem o conjunto das normas que j
abordamos anteriormente. Ao pressentir a morte, o moribundo reunia sua
famlia e estando em condies de exercer suas vontades, deixava
instrues sobre os procedimentos a serem adotados por ocasio de seu
falecimento. A seguir solicitava a vinda de um padre, caso fosse catlico ou
praticante de ritos afro-amerndios. Confessava-se e recebia os ltimos
sacramentos. Esses servios eram oferecidos tambm aos doentes do
Hospital So Jos, enquanto pertencente Misso Salesiana e mesmo depois,
quando passou ao controle do governo territorial. Durante os anos 1970,
at o incio dos anos 1980 esse servio ainda era realizado cotidianamente
pelos padres catlicos da regio. So insistentemente citados os padres
Mario Castaga e Paulo Quaring, um antigo missionrio europeu, que
havia trabalhado durante anos na frica, e que morreu assassinado no
interior da Catedral do Sagrado Corao de Jesus, no incio dos anos 1980.
A lavagem do morto, e a vestimenta do cadver segundo sua condio
social e financeira; bem como a apresentao do morto aos amigos e
familiares para o velrio que ocorria na sala principal da casa era realizada
pelas mulheres da famlia auxiliadas por parentas vizinhas e amigas
prximas. A roupa de sepultamento era confeccionada de acordo com a
antiga tradio rural e colonial. Mulheres casadas usavam mortalhas roxas,
moas e meninas usavam mortalha branca, mulheres virgens usavam roupa
de noiva. Meninos at a adolescncia usavam mortalha azul. Homens
adultos no eram sepultados com mortalhas. Usavam suas melhores
roupas, limpas, passadas e engomadas. Os orifcios do morto eram
fechados com algodo. E em suas mos depositava-se um crucifixo ou uma
vela e ainda um rosrio.
Na sala preparada para o velrio, toda a moblia era afastada ou retirada.
Cadeiras eram postas ao redor do caixo, para que os familiares pudessem
permanecer ao lado do morto. O pranto ritual era contido e suave, intimo
na maior parte do tempo, tornado-se exacerbado em determinados
momentos, como nas vezes em que chegavam parentes e amigos, ou
quando o corpo saia de casa rumo ao cemitrio ou ainda quando se
puxavam as oraes ou nas raras ocasies em que um padre surgisse no
local. Em Porto Velho, mesmo existindo um nmero de padres regular, a
zona rural era precariamente assistida por sacerdotes. Devido a relativa
escassez e ainda a tradio da ausncia clerical do perodo da borracha, a
presena dos mesmos nos velrios catlicos sempre foi pouco percebida.
Na falta de padre, as rezadeiras e as beatas de igreja, notadamente das
irmandades do Sagrado Corao de Jesus e do Imaculado Corao de
Maria que sempre se encarregavam das preces, cnticos e ladainhas.
Eram elas ainda que amparavam as mulheres da famlia e aos mais jovens.
Seu aspecto, sempre mais grave e devoto do que o dos homens, era
ressaltado pela severidade de seus uniformes brancos, fitas e escapulrios
vermelhos ou azuis ao pescoo e vus de renda ou crepe, nas cores pretas
ou brancas.
Os homens realizavam outras tarefas, em grande parte dos casos,
animando o velrio, no apenas com casos e anedotas, mas ainda com
carteado e domin. Um costume entre a juventude era se aproveitar dos
velrios para encontrar namorados e namoradas. Como as flores eram raras
e as floriculturas difceis e sempre desabastecidas e muito caras, usavam-se
flores locais para enfeitar o morto e o caixo. Flores comuns locais, velas e
flores artificiais de papel crepom, seda e plstico ou ainda biscuit eram
utilizadas para ass coroas e buqus deixados sobre a sepultura. Os velrios
sempre foram relativamente breves, devendo-se esta prtica de economia
de tempo s condies adversas do clima que aceleram a decomposio do
cadver. O trajeto do corpo ao cemitrio poderia ser feito p, caso o
sepultamento fosse nos Inocentes. Seria invariavelmente de automvel,
caso o enterro fosse em Santo Antnio. Ainda uma prtica comum que
polticos cedam nibus e caminhes para o transporte das pessoas do local
do velrio at o cemitrio. O cortejo dirigido aos Inocentes era realizado
com cnticos e rezas, como nas procisses catlicas. Em alguns casos,
passava-se na igreja, principalmente na Catedral, onde o corpo era
abenoado, ou em casos mais raros ainda, era celebrada uma missa de
corpo presente. O cortejo para Santo Antnio ainda feito de forma
deliberadamente lenta, pois se acredita que um cortejo apressado pressagia
mais mortes na famlia. Os sepultamentos, no so demorados e os
discursos ao lado da sepultura breves e concisos. Aps a sada dos
familiares e dos amigos, os coveiros do incio ao enterro do cadver.
As crianas eram sepultadas como anjinhos, usavam caixes brancos ou
rosa claro. As crianas at doze anos, eram chamadas de anjos papudos, e
recebiam enterro semelhante.para se evitar que uma criana morresse pag,
nos casos extremos, e no havendo padre, qualquer um poderia batiza-la,
derramando-lhe gua sobre a fronte e batizando-a em nome do Pai, do
Filho e do Esprito Santo.
Nas regies rurais, os costumes sofriam poucas alteraes, mais em
funo das dificuldades extremas do que de alteraes culturais. Em muitas
regies, o morto era depositado em uma rede. Armava-se uma mesa ou
cavalete na sala e cobria-se a mesma com um lenol branco. Eram acesas
quatro velas, e na falta destas, ao menos uma vela na cabeceira do morto
deveria ser posta, para que ele obtivesse a luz necessria. O corpo dos
mortos de reas mais isoladas era sepultado no prprio quintal da casa, em
um pedao de terreno mais afastado da moradia, mas no dentro da mata.
Na dcada de 1940 foi inaugurado um cemitrio prximo a Jacy-Paran.
Existem registros de cortejos que andavam at quatro horas a p, ou de
barco para que se chegasse at a ferrovia e de l at o povoado, ia-se de
cegonha. Ao chegar na localidade, adquiria-se um caixo que era feito na
hora e o morto era conduzido ao cemitrio. Os pertences do morto eram
colocados em caixas de papelo e comumente eram queimados, uma vez
que se considerava que usa-los traria azar aos vivos. Em algumas
colocaes de seringal, era costume ainda mudar-se da barraca aps o
stimo dia de falecimento de algum da casa. Isto se dava em funo de
que a presena do morto e da prpria morte poderia trazer diversos
problemas de contgio espiritual aos vivos, inclusive as temidas visitas do
alm.
morte, seguia-se um perodo de luto ostensivo e outro de luto de
ntimo. O tempo de luto era fixado pelo grau de parentesco e proximidade
com o morto. As mulheres usavam roupas pretas e os homens usavam uma
tarja preta na roupa diria. Algum permaneceria com a famlia durante os
sete primeiros dias, enquanto a casa permanecia fechada e a famlia
aguardava a amenizao do luto, aps a missa de stimo dia. A partir da
dcada de 1970, com as transformaes mais aceleradas, a sociedade
comeou a reduzir o luto.Hoje j no se observam mais as prticas do luto
ostensivo. As famlias ainda so visitadas com freqncia durante estes
dias e os amigos ainda costumam enviar comidas aos enlutados, sobretudo
nos trs primeiros dias do sepultamento. Ao se completarem os sete dias de
morte, a missa de stimo dia um preceito obrigatrio. Quanto Missa de
trinta dias, que ainda celebrada e pedida pela famlia do morto, para que
se possa cumprir o calendrio de sete dias, trinta dias e ano, j se possvel
observar o esquecimento relativo da prtica, sobretudo do
acompanhamento dos amigos, devido a inmeros fatores, como a
velocidade do cotidiano dos vivos, a ausncia de servios espirituais de
amparo e prpria indiferena clerical no tocante celebrao, que raras
vezes registra qualquer gesto maior do que o mero ato de ler o nome do
morto por ocasio das intenes durante o Ofertrio. As mudanas
ritualsticas da Igreja, a sua progressiva incurso pelo mundo material e os
conflitos entre a piedade popular tradicional e a f erudita dos padres tem
sido causa constante de abandono das tradies populares catlicas, ao
mesmo tempo em que franqueiam revoadas de fiis insatisfeitos ou sem
elos com a Igreja para outros credos mais populares e de forte apelo
emocional, notadamente as Igrejas Evanglicas, Pentecostalistas e Neo-
Pentecostalistas, que na Amaznia tm tido um crescimento
surpreendentemente maior que em outras regies. A parte final deste
capitulo pretende abordar as questes referentes ao culto aos mortos ou
culto das almas, de tradio antiga em todo o Brasil e fortemente presente
nos Vales do Madeira, Mamor e Guapor.
Capitulo 5:
127
Maurice Blanchot. Citado por Edgar Morin. Op.cit. P. 281.
128
Citado por Mary Del Priore. In: Gilberto Freire. Assombraes do Recife Velho. Rio de Janeiro, Topbooks.
2000. p. 11.
prevalecimento do racionalismo, ainda permanece como o meio que, por
excelncia, capaz de harmonizar o racional com o irracional e o mtico.
Ainda hoje, metade da populao brasileira acredita em inferno e em seres
demonacos. Segundo pesquisa publicada pela Revista Veja, edio de17 de
dezembro de 2001, Os brasileiros esto divididos no que diz respeito ao
diabo. Apenas metade da populao acredita na existncia do demnio e,
aqui, os pobres, especialmente os evanglicos, esto mais convencidos de que
existe mesmo o Satans. A explicao est no fato de que no culto evanglico
o demnio tratado como uma realidade concreta, que precisa ser exorcizado
pelo pastor.129
O fenmeno das crenas, explica Priore130, pertence a um olhar de longa
durao por parte da analisa histrica. Ao longo dos tempos, elas se
transformam e se multiplicam, metamorfoseando-se sempre, e sempre se
adequando aos novos universos culturais; mas nunca desaparecendo. As
crenas determinam um sistema de interpretao social a cerca do
sobrenatural, que estabelece um conceito de absoluta verdade ao longo da
Histria. Assim, os ingleses da Idade Moderna consideraram seus espectros
verdadeiros. Na ustria do sculo XVIII, a ctica imperatriz Maria Tereza
ordenou a formao de uma equipe para averiguar uma praga de vampiros que
estava assolando a Hungria e a Silsia, levando os camponeses a exumar
corpos de mortos que no entravam em processo de decomposio e estaque-
los. Segundo o abade Dom Augustin Calmet, a crena era to arraigada, que a
Imperatriz teve que decretar leis proibindo padres e camponeses de realizar a
exumao de cadveres para mutil-los e estaque-los. 131 As crenas em
fantasmas e assombraes pontilharam todas as culturas pr-industriais. Os
relatos so percebidos desde o extremo oriente, at os confins da Amaznia.
De um plo ao outro, as diversas culturas narram as aparies e as relaes
dos vivos com o universo dos espectros e das assombraes. Mesmo
modernamente, embora tratadas com desprezo pelo ceticismo cientifico, e
qualificadas apenas como crendices e supersties simplistas, a crena em
espectros e assombraes ainda registrada com uma inquietante freqncia e
pontualidade no Ocidente. As buscas por certezas relativas ao maravilhoso e
ao fantstico, percebidos pelas lentes do sobrenatural, ainda no foram
esgotadas ou interrompidas. Mesmo profundamente materializadas, as culturas
ocidentais ainda so marcadas por crenas no sobrenatural, que vez por outra,
ocupam manchetes e trazem tona uma discusso que a intelectualidade
preferiria no considerar.
129
Revista Veja, 17 de dezembro de 2001. reportagem: um povo que acredita.
130
Idem p. 12.
131
Dom Augustin Calmet. The phantom world. (2 vols) London, Richard Bentley. 1850
Em tempos recentes, a Histria, apoiada pelos estudos de antroplogos
e de etnlogos, tem se debruado sobre a questo das crenas mticas e
sobrenaturais; e de seus significados e implicaes na construo cultural e
etno-social dos povos. Estudos como os de Jean Delumeau, Lucien Febvre,
Jean Claude Schimitt, Claude Kappler, H. R. E. Davidson e W. M. S. Russel,
Philipe ries, Jacques Le Goff, W. A. Christian e outros 132, tm se debruado
sobre o papel das crendices e do universo mtico e sobrenatural nos contextos
sociais do ocidente. No Brasil, os temas relacionados s crendices e ao
imaginrio coletivo, referentes a fantasmas e aparies ainda no apresentam
publicaes de ampla circulao. Trabalhos como os de Gilberto Freyre e
Walcyr Monteiro 133 tm sido pouco discutidos. As referncias bibliogrficas
ao tema ainda so bastante escassas na literatura etno-histrica nacional e
regional.
Ao longo deste captulo, procuraremos discutir as questes referentes ao
medo, que em seus diversos aspectos sempre alimentou as narrativas e as
histrias de fantasma e de assombraes. Discutiremos ainda, a crena em
fantasmas, assombraes e visagens bem como, a percepo dessas crenas
atravs do estudo da etno-histria, nas culturas do meio amaznico.
140
Idem. Pp. 216 e 256.
141
Idem. P. 258. So Paulo, Nacional, 1941 So Paulo, Nacional, 1941
142
Idem. .P. 235.
143
Idem. P. 346.
escura que qualquer dos nossos ndios domesticados ficou-nos ainda muito
tempo.144
O temor de ataques de ndios antropfagos, habitantes da floresta era
uma realidade. Os reatos falam sempre do desespero dos trabalhadores e dos
contnuos ataques dos Caripuna e de outros povos. A vinte e trs de agosto
um dos ndios empregados como carregadores, fora morto em So Carlos
pelos selvagens, quando lenhava o mato. (...) A sete de setembro recebemos,
por intermdio de um ndio canoeiro, uma carta que nos dirigiu o engenheiro
chefe em La Concepcin, datada de dois dias antes, contendo a surpreendente
revelao de que John King, o cozinheiro da turma de Bruce, tinha sido
assassinado pelos selvagens (Parintintins).145
A situao de tenso atinge um limite de intensidade que transforma os
horrores da selva em pesadelos infernais e os medos migram para o campo
fantasioso das crendices e do misticismo Pouco tempo depois Manning
apresentou sinais evidentes de alienao mental. Num ponto porem sua
doena era sui generis. Durante o dia ele passava muito bem, mas, logo que
a noite caia, seu estado agravava (...) certa vez, passou a mo numa
espingarda e fez meno de dispara-la a esmo pelo acampamento, repetindo
sempre os demnios me esto perseguindo. J os expulsei uma vez, mas eles
vm de novo, em bando, me lamber.146
Os animais sempre foram temidos de forma quase mtica por colonos,
ribeirinhos e exploradores. Para a maior parte das populaes locais, muitos
dos animais das florestas e dos rios, representavam um duplo perigo. Podiam
atacar e matar, como tambm podiam trazer feitios, m sorte e a panema. As
onas so descritas como uma ameaa permanente ao longo dos relatos de
Craig. So associadas aos tigres asiticos, mesmo chamadas de tigres da
Amrica. Sua fora e beleza j lhes havia rendido a adorao de diversos
povos que as consideravam divindades sanguinrias. Na ndia inglesa do
sculo XIX, o tigre tornou-se uma lenda, transformado em um pervertido e
insacivel devorador de homens. A idia desse horror perseguiu os viajantes
que se aventuraram pelas selvas do Madeira. No h registros de onas
antropfagas na Amaznia. Sabe-se de casos acidentais em que o encontro do
felino com humanos resultou em ataque e morte para aqueles que invadiram
seus domnios. Mas esses so casos isolados. Nas narrativas de Craig,
podemos ler: Pouco tempo depois, encontramos dois desses felinos (onas)
ao atravessar um taquaral por onde passava nossa picada. No estavam a
mais de seis metros quando os avistamos e ficamos petrificados de terror. (...)
144
Idem. Pp. 313/314.
145
Idem. Pp. 322 e 334.
146
Idem. P. 352.
s cinco horas o grupo de mateiros chegou a um tronco de rvore que servia
de ponte sobre um riacho, todos ns percebemos a fisionomia assustada de
Bly. Tinham sido seguidos durante quase todo o trajeto por quatro onas
pintadas, que os rodeavam constantemente.147 As serpentes tambm
deixavam em pnico os exploradores. O medo ancestral, estimulado pelas
alegorias do cristianismo, que associa a serpente ao Diabo e ao pecado; causa
de perdio da vida e da alma. O horror que as serpentes amaznicas produzia
era intenso. De repente alguns que vinham para o crrego tomaram-se de
pnico e desataram a correr, tropeando e escorregando pela encosta
ngreme. Logo descobrimos a causa da correria: uma cobra de cerca de 2,5 m
de comprimento que logo desapareceu na beira dgua. 148 O ataque de uma
sucuri, a mais temida das serpentes amaznicas, deificada pelos ndios e
demonizada pelos caboclos, foi registrado por Craig no texto a seguir: J
pela tarde descobrimos uma enorme sucuri, enrolada no galho e uma rvore,
junto ao riacho. O rptil ps-se imediatamente em posio de ataque. A turma
dispunha de uma espingarda e de vrios revolveres, e, portanto, abriu fogo
imediatamente contra o monstro. O primeiro tiro atingiu-lhe o pescoo, na
parte posterior da cabea, e vrias balas de revolver lhe penetraram o corpo.
O imenso ofdeo, porm, continuou avanando em nossa direo, ao mesmo
tempo em que retrocedamos. No tardou, porm, que uma bala, atingindo-lhe
o pescoo, o fizesse parar. Foi terrvel a sua agonia. Um grande ramo de
rvore solto perto da cobra, foi espedaado pelos seus poderosos anis.
Vrios tiros se sucederam at que ficou razoavelmente quieta. Os operrios
atacaram-na, ento com suas ferramentas, ate que deixou completamente de
se mover. Foi a maior cobra que j vi, pois media 7 m e meio de comprimento
e tinha um dimetro mximo de 0,25 m..149
Caadas de extermnio foram sistematicamente realizadas como formas
de limpeza da regio, considerada inspita e hostil ao desenvolvimento, que
era concebido, somente a partir da insero da mesma, economia capitalista,
mesmo que de forma perifrica e dependente. As caadas de extermnio no
ficaram restritas aos animais, mas foram direcionadas aos indgenas locais.
Basta lembrar que os Caripuna eram contados em nmero de dez mil em 1907,
quando foi dado inicio s obras da E.F.M.M., este nmero caiu para menos de
duas dezenas quando os trabalhos foram concludos em 1912. 150 Nos seringais
do Madeira e Mamor foi comum a prtica da limpeza tnica, com o total
extermnio de indgenas que no haviam sido domesticados.
147
Idem. Pp. 309/310.
148
Idem. P. 265.
149
Idem. P. 217.
150
Citado por Beto Bertagna em seu Vdeo Documentrio: A ferrovia do diabo. Porto Velho, 1996.
Assim, at as vitrias da tecnologia, em 1907/1912, as selvas do
Madeira permaneceram como um verdadeiro antro de perdio, horror e morte
para seus exploradores. A floresta foi associada pelos relatos individuais e
pelas correspondncias oficiais aos piores pesadelos e imagens de aflio.
Havia ocasies em que rudos estranhos, na floresta, nos faziam saltar das
redes noite, ou, durante o sono agitado que dormamos, imaginar que
ouvamos a msica brbara dos selvagens tiradas dos instrumentos feitos com
os nossos ossos.151 O terror e o desespero desencadeavam delrios e pnico
entre os membros dos acampamentos da P&T Collins em 1878. Muitos se
desinteressaram pelo trabalho. Certa ocasio dois companheiros se
apresentaram inteiramente idiotas, acreditando que uma poro de gente os
expulsava de suas cadeiras preguiosas. Nenhum de ns podia descansar
noite, pesadelos horrveis nos impediam de conciliar o sono. 152 Desde os
tempos do Governador colonial, Dom Antnio Rolim de Moura, no sculo
XVIII, at a construo da Ferrovia, j no sculo XX, a selva estava ligada
morte, a aflio, e aos desesperos incontrolveis e impossveis de serem
vencidos. J os exploradores quinhentistas haviam considerado a selva
amaznica como um local de monstros, de demncia e onde os demnios
ainda vivem e perseguem as almas, prontos para roubar-lhes da Graa Divina.
Ela sempre foi a ptria de seres exticos e monstruosos, como as imensas
cobras aboiadas descritas por Palheta em seu dirio de viagem ao Madeira
em 1722. Neste lugar deu parte o Principal Joseph Aranha ao Cabo haver
visto uma mui grande aboiada, que afirmam todos os que a viram teria de
comprimento pouco menos de 40 passos e de grossura julgaram ter15 a 17
ps; grandes monstruosidades de animais semelhantes tem este rio, porque
com essa so duas que se tem visto nesta viagem, e muitas outras imundcies
se pode ver nele.153 Os limites e caminhos da floresta eram os rios,
considerados pelos viajantes e ribeirinhos, como regies inslitas de medo e
de terror. Os rios reviviam nos navegadores dos sculos XVIII e XIX, o medo
dos antigos navegadores medievais e renascentistas com relao ao mar. Esse
medo se fazia sentir novamente, diante das imensides da gua doce dos rios
amaznicos, deixando os viajantes impotentes e perplexos.
A imaginao coletiva de ndios, ribeirinhos e exploradores torturados
pelas adversidades, inventava para alm das profundezas fluviais e lacustres
da Amaznia, mundos de terror e infernos onde as almas que se perdiam nas
guas seriam para sempre, escravizadas por hostes de espritos e de seres de
inspirao pag e diablica. Tambm nos rios, os temores reais eram
151
Neville Craig. P. 339.
152
Idem. P. 267.
153
Dirio da Bandeira de Francisco Mello Palheta ao Madeira. In: Capistrano de Abreu. Caminhos antigos e o
povoamento do Brasil. Braslia, EDUNB1982. P. 308.
verdadeiros e os riscos de uma longa viagem, quase sempre implicavam em
mortes, naufrgios e outros acidentes. Deve-se lembrar, que at o advento da
navegao fluvial a vapor, na Amaznia s se viajava em embarcaes de
remo e vela, predominando os bateles e os igarits.
Os rios e os lagos eram reas de pesca e de navegao, mas tambm
eram reas de grande perigo para os incautos. Afogamentos e ataques de
jacars, cobras e peixes so narrados em diversas crnicas de viajantes e
exploradores dos rios amaznicos. Relatos de naufrgios so comuns, como o
descrito por Palheta em seu dirio. Ficou o nosso cabo nesta alagao
destitudo de tudo, que com uma viagem e com dois naufrgios uma grande
perdio, e sem poder neste serto remediar-se do preciso; aqui ia-se
morrendo um soldado afogado se lhe no acudissem; vendo o principal
Joseph Aranha que a primeira (galeota) se afundava nem por isso deixou de
se submeter ao perigo, e querendo passar a sua (galeota), lhe disse o Cabo
repetidas vezes: quantos hoje ho de ficar rfos; e indo-se j puxando por
duas grossas cordas tornou a repetir o Cabo aos ndios que na galeota iam,
que tirassem as camisas para as no perderem ; no tinha bem acabado de
dizer, quando logo se foi a galeota a pique arrebentando suas cordas, e por
grande diligencia do Cabo, a tiramos do fundo do mar, que j estava cativa
das temerrias pedras e soberbas ondas que faz, levando outra vez ao alto a
correnteza que vai a riba.154
interessante ressaltar as comparaes que Palheta faz entre o imenso
rio Madeira e o mar, por ocasio do naufrgio de duas das galeotas da
expedio. Os temores do mar eram revividos agora nos rios da Amaznia. Os
cursos de gua doce apresentavam-se to misteriosos quanto o mar, ora eram
calmos e suaves, ora revoltos e furiosos, com ondas se encapelando. A
prudncia recomendava extrema cautela e acima de tudo, encomendar-se
proteo de um Santo. No caso de Palheta e sua explorao do Madeira, a
Nossa Senhora do Carmo que ele recorre por ocasio dos perigos da viagem.
Partiu a tropa da cidade de Belm, da praa do Gro Par, a 11 de
novembro (...) nos fomos despedir de Nossa Senhora do Monte do Carmo, a
quem ns encomendamos e tomamos por estrela e nossa advogada, para com
o seu patrocnio vencermos este impossvel e um descobrimento de todos to
desejado (...) Aqui obrou Nossa Senhora do Carmo um grande milagre, pois
um ndio nosso , por enfermo dos olhos estava em uma rede debaixo dos
paiis e escapou sem molstia quando a canoa se subverteu nas guas desse
horrvel rio, de sorte que o susto bastava para molestar.155
154
Francisco Mello Palheta. Citado por Capistrano de Abreu. P. 310.
155
Idem. Pp. 305/310.
Alm dos perigos de naufrgio e de afogamento, a simples viso das
enormes cachoeiras do Madeira, bastava para fazer tremer mesmo os mais
corajosos e ousados navegadores. O medo invadia a alma, quando era
necessrio vencer as quedas dgua sirgando as embarcaes atravs das
pedras do rio. Esta cachoeira dos Apumas to terrvel e to monstruosa e
horrvel que aos mesmos aturais de cachoeiras faz desanimar e mete horror,
porque de continuo est no mais violento curso de sua desatada
corrente....156
Os homens da Amaznia sempre estiveram prevenidos contra as
adversidades e os perigos dos rios. Deles se retirava o sustento, eles sempre
eram os caminhos, mas neles moravam perigos inimaginveis, como ressalta
Raul Bopp em Cobra Norato, um dos mais belos poemas sobre o universo
ribeirinho:
Noite pontual
paisagem encharcada.
O luar espesso amansa as guas.
rvores parecem pssaros inchados.
Aquilo a Cobra Grande
quando comea a lua cheia ela aprece compadre.157
Dentre os incontveis males trazidos pelas imensides lquidas dos rios
estava o medo do afogamento e a no recuperao do corpo para um
sepultamento digno. No universo cristo, o valor da sepultura fundamental.
Importa poder identificar e localizar o morto, confiando-o terra, para que ele
possa ressurgir por ocasio do Juzo Final. Mesmo no Apocalipse, h
referncias devoluo dos corpos dos que morreram nas guas e no tiveram
direito a uma sepultura. O mar restituiu os corpos que nele estavam.158 As
tormentas marinhas eram extremamente temidas pelos navegadores, mas as
descries das tempestades cadas sobre o Madeira, no deixam dvidas
quanto ao horror que causavam nos viajantes. Durante as chuvas de setembro
e de outubro, fortes ventos varrem o corredor do Madeira, eriando as guas e
provocando o emborcamento das embarcaes de pequeno e de mdio porte.
Manoel Rodrigues Ferreira descreve uma tempestade no rio Mamor, passada
em meados do sculo XX: nossa frente uma grande nuvem cmulus-
nimbus pressagia mal tempo. Realmente podemos adivinhar mau tempo,
medida em que a embarcao sobe o rio. E vemos a frente tempestuosa
aproximar-se cada vez mais. Quando um relmpago ilumina o horizonte,
vemos claramente a cortina de gua caindo do cu tempestuoso sobre o rio e
156
Idem. P. 307.
157
Raul Bopp, citado por Ligia Averbuck. P. 123.
158
Apocalipse de So Joo. Cap. 20 , v. 13.
a floresta. A ventania torna-se violenta (...) coriscos sucedem-se com
freqncia. Um raio cai em pleno rio a pouca distncia das embarcaes e
imediatamente ouvimos o trovo violento. Estamos navegando em pleno
centro da tempestade.159 As chuvas muito fortes e violentas eram tambm um
fator de medo e de tenso para os que estavam em terra firme, pois as rvores
caem, a visibilidade fica muito reduzida e as inundaes se tornam repentinas,
alm de precipitarem o aparecimento de animais como cobras e aracndeos. As
barrancas caem em profuso, tanto na vazante dos rios, de abril a setembro,
quanto durante as enchentes, de outubro a maro. Os ribeirinhos ainda hoje
acreditam que este processo motivado por movimentos de imensas cobras
grandes no fundo dos rios. Entre os indgenas, a tempestade a ao das almas
dos mortos que reclamavam oferendas de tabaco, rap e outros produtos.
Enquanto se estivesse navegando nas guas dos rios, em meio a uma
tempestade, as oferendas deveriam ser lanadas ao rio, pois nele residiam
muitos dos espritos dos mortos que desapareceram nas guas. Thevet, diz
que: Os selvagens mantm outra crena estranha, a saber, quando navegam
no rio ou no mar, procura de seus inimigos, acreditam, se surge alguma
tempestade, que a mesma tem relao com a alma dos parentes e dos amigos
mortos. Para apazigua-los, lanam oferendas nas guas.160
O rio est associado ao pecado e a perdio. Mulheres menstruadas ou
grvidas no devem se aproximar dele para que no sejam encantadas pelas
criaturas das guas e levadas para viver no fundo dos mesmos. Os seres dos
rios e dos lagos associam-se mais ao pecado, na medida em que seus
arqutipos os identificam como seres de grande libidinagem, sempre ansiosos
por sexo. As criaturas dos rios podiam ser ainda potencialmente reais e
perigosas, passando desapercebidas pelos viajantes at ser muito tarde para
que se evitasse um acidente. Muitas vezes o olhar penetrante dos ndios
percebia o que ns, norte americanos jamais veramos, jacars imveis
nas guas....161 Ataques de peixes como as piranhas, puraqus, arraias,
pirabas, jas, pirararas e candirus sempre foram temidos e encheram os rios
de mistrio. O peixe co no to perigoso para o homem quanto as
arraias e piranhas, peixes largos e curtos que j tm estraalhado
mergulhadores ousados. Suas duas carreiras de dentes agudos como agulhas
so ainda mais terrveis, porque essas criaturas andam quase sempre s
centenas e atiram-se sobre as vtimas com a rapidez do raio; to logo a gua
se tinja com o sangue proveniente da primeira mordedura, cada peixe
arrancando pedacinhos de carne. Sem dvida essas piranhas se constituem
159
Manoel Rodrigues Ferreira. Nas selvas amaznicas. Pp. 203/204.
160
Andr Thevet. Op. cit. P. 182.
161
Neville Craig. P. 202.
em empecilhos aos banhistas muito maior do que os jacars, cujas vtimas se
contam por numero muito menor do que geralmente se cr. Nunca nos
entregvamos natao nesse rio. Mais tarde, quando descobrimos que
enormes jacars saiam do rio noite para repousar num banco de areia,
mesmo defronte ao acampamento, e que havia arraias em quantidade na
beira dgua, os homens se recusaram terminantemente a entrar no rio.162
As trevas se constituem em um terceiro elemento que pode ser
observado na construo dos medos locais. O temor do escuro tambm um
temor ancestral. Para ns, primatas diurnos, a noite sempre trouxe o alerta e a
exacerbao dos sentidos. Todos os tipos de criaturas malignas saem do
escuro. A noite dominou o esprito humano, impondo seus medos at o
advento da iluminao a gs, a leo e a inveno e popularizao da
eletricidade. At as primeiras dcadas do sculo XX, a noite ainda era um
tempo de terrores, maus pressgios, assombramentos, violncias e atividades
diablicas nos Vales do Madeira, Mamor e Guapor. O processo de
civilizao da noite e sua transformao em artigo de consumo, foi lento em
todas as sociedades, e na regio dos Vales do Madeira, Mamor e Guapor,
este processo ainda, apenas parcial. As noites nos barrancos e nas encostas
dos rios e das florestas, continuam selvagem e povoadas por seres espectrais.
Como bem explica A. Alvarez163, a noite contem o que se quiser colocar
nela, e como no se pode ver, ou se pode ver muito pouco, ela d a sua
imaginao um espao ilimitado para trabalhar. A noite causa um pavor sem
nome, como escreveu Bion164, levando a um desespero infundado, ampliado
pela velocidade da imaginao sem controle. noite, o medo uma entidade
autnoma e livre, com enormes asas que ala longos vos na mente
apavorada. Durante a noite, nada definido e nada ntido. A noite o tempo
do mal e sua fora que pode habitar mesmo nos objetos mais comuns, vaga
livremente. A escurido traz um medo no especifico, generalizado e
indefinido; melanclico e histrico. Hanna Arendt, considera que o mal que
pode ser personificado, torna-se banal. O medo noturno no tem face, no tem
formas e nem contornos, portanto no se banaliza.165
Uma parcela considervel do medo em relao noite liga-se a nossa
falta de controle sobre os acontecimentos enquanto dormimos. O fato de
sermos sempre diurnos e muito mais vulnerveis noite, tambm contribui
para transformar o perodo sem luz, num horror inominvel. Desde as origens
dos ancestrais da espcie humana, somos animais diurnos. Durante a noite nos
tornamos mais frgeis e mais suscetveis a ao dos predadores. Temos uma
162
Idem. P. 321.
163
A. Alvarez. Noite. So Paulo, Companhia das Letras. 1995. p. 45.
164
W. R. Bion. Learning from experience. London, S/E. 1962. p. 99.
165
Hanna Arendt. Citada por: A. Alvarez. Op. cit. p. 46.
viso noturna medocre, um olfato ruim e estamos mal equipados para lutar
contra predadores. Alm disso, nos tornamos alvo de invases dos nossos
prprios medos e pesadelos, que assumem formas nitidamente monstruosas.
Bruce Chatwin166 considera que existe uma razo ancestral, concreta e
histrica para o temor humano em relao noite. Para ele, os ancestrais
paleolticos viveram sob o domnio de terror de um grande felino, predador
especializado em caar grandes antropides; o Dinofelis, uma espcie
intermediaria entre o tigre dente de sabre e o leo moderno. Um grande e
pesado felino, que caava de emboscada. Esse animal viveu na mesma regio
africana onde viveram os primitivos homindeos. Baseando-se nos escritos de
Robert Brain167168, Chatwin escreve: Quer aceitemos um grande felino,
vrios felinos ou horrores como a hiena caadora, o que Bob Brain
conseguiu, na minha opinio foi recuperar uma figura cuja presena vinha se
tornando cada vez mais obscura desde o fim da Idade Mdia: o Prncipe das
Trevas em toda a sua sinistra magnificncia.
O terror noturno foi reelaborado pelas diversas culturas humanas. O
grande predador desapareceu, mas deixou seus estigmas. O homem
transformou o pavor ancestral em relao ao Dinofelis, em um pavor abstrato
em relao ao Mal. O medo noturno ainda cria a sensao de se estar sendo
observado por olhos que no so vistos, mas que podem nos ver em todos os
nossos movimentos. Mais do que isso, o medo da noite impe a sensao de
sermos sinistramente controlados, cheirados e escutados. At mesmo nossos
pensamentos podem ser lidos, criando-se a idia de estarmos completamente a
merc de um a fora implacvel e destrutiva. Esse medo substancialmente
maior na infncia. Na medida em que o ser humano se torna adulto e adquire
maior confiana e conhecimento sobre si e sobre o meio em que vive, este
medo pode ser posto sob controle. No entanto, basta uma alterao maior na
existncia cotidiana para que ele aflore novamente, com toda sua intensidade e
fora fora do controle individual. Foi esse o medo vivido pelos trabalhadores
da E. F. M. M. nos pntanos de Santo Antnio em 1878. A noite parecia estar
sempre cheia de seres aterrorizantes, quer do mundo natural, quer do mundo
sobrenatural.Visagens, assombraes e animais do mato e dos rios tm a noite
como cmplice. As trevas estavam sempre cheias de alaridos e de outros
sons aterradores, escreveu Craig em seu dirio sobre os trabalhos de
construo da Ferrovia Madeira Mamor, em 1878.169 O temor das trevas tem
ainda um fundo bblico. Deus luz e o Diabo, trevas. O medo da noite entre
os ribeirinhos tem razes tanto nas culturas indgenas, quanto nos legados
166
Bruce Chatwin. Citado por A. Alvarez. Op. cit. p. 47.
167
Idem. P. 48.
168
Robert Brain. The hunters or the hunted? Citado por A Alvarez. Op. cit. p. 47.
169
Idem. P. 368
ibrico e africano. A noite est povoada de espritos malignos que
desorientam os andarilhos, assustam as mulheres e fazem tremer os caadores.
A noite marca o encontro dos humanos com um sqito de seres
sinistros. Animais ameaadores e entidades do mundo espectral rondam os
vivos, at o nascer do dia, quando a terra volta a pertencer aos vivos.
Humanamente, a noite pertence aos marginais, aos assassinos e aos ladres.
Da noite partem os horrores que determinam as crenas e as supersties dos
vivos. Atualmente, mesmo a justia considera a escurido como circunstncia
agravante dos crimes e assassinatos. Por outro lado, as crenas humanas
asseguram que as trevas so a moradia de seres assustadores, de ordem
sobrenatural. noite, as trevas enchiam-se de espritos, que redobravam de
audcia; mas, era suficiente ascender a fogueira ao p da rede para ficar a
salvo de seus males. Logo que a presena de um desses seres era pressentida,
todas as sadas da oca fechavam-se para impedir-lhe a entrada.170
Os temores noturnos prenunciam categorias de medos fantsticos,
sobrenaturais. Todo um exrcito de espectros rondava o mundo dos vivos,
sempre dispostos a importunar e a fazer o mal. Rios e florestas, cidades e
povoados, pastos e ravinas, igrejas e outros edifcios, poderiam esconder ainda
alguns dos mais temveis perigos, os fantasmas, as assombraes e as
visagens. O medo do sobrenatural ganha sua maior dimenso, na forma do
medo aos mortos que no obtiveram o direito ao repouso eterno.
De acordo com Jean Claude Schimitt 171 a existncia dos mortos aquela
que os vivos lhes atribuem. A crena na sobrevivncia de espritos e de
espectros capazes de recuperar o contato entre os vivos e mortos denuncia
uma tentativa de se proceder ao inverso as viagens para o Alm. Fantasmas
so verdadeiras imaginaes de substncias sem corpo, formadas a partir de
espritos de mortos, que se apresentam sensivelmente aos homens contra a
ordem da natureza causando-lhes pavor. Em muitas culturas, na grande
maioria em verdade, o passado no est realmente morto, diz Delumeau,
podendo ressurgir a qualquer momento, de forma ttrica, em meio ao
presente172. No imaginrio coletivo, a morte no nem um ato nico, nem
definitivo. Morte e vida interagem o tempo inteiro. Morremos a cada dia e
fazemos da morte uma nova espcie de vida; noturna, espectral e aterradora.
Para muitos povos, os mortos encontram-se, de certa forma, entre dois
170
Yves dEuvreux. Op. cit. P. 128.
171
Jean Claude Schmitt. P. 15.
172
Jean Delumeau. Op. cit. P. 84.
mundos, muitos transpem o limiar desses mundos e no mais retornam, ou
quando chegam a retornar, para cumprir misses nobres. So os Santos e os
antepassados protetores. No entanto, alguns mortos no transpuseram os
limiares da morte e encontram-se entre os dois mundos. Sua herana crmica
ou de culpas, os impede de atingir um estado de paz e beatitude. Tornam-se
raivosos e cruis. Em outros casos, tornam-se melanclicos e sofredores.
Esses so os fantasmas.
As manifestaes fantasmagricas ou espectrais no podem ser
compreendidas como as nicas formas de contato entre o mundo natural, da
vida e o mundo sobrenatural, do ps-vida. Na mitologia crist, os Anjos, os
Santos, a Virgem Maria e o prprio Jesus Cristo tm o poder de se manifestar
de forma perceptvel aos sentidos humanos. Os fantasmas, que tambm se
manifestam de forma perceptvel aos sentidos humanos, ainda possuem fortes
vnculos com a terra dos vivos e com os vivos, notadamente de sua
comunidade de origem, concentrando suas atenes em um leque de relaes
que ficaram pendentes por ocasio de sua passagem para o alm. Nas
sociedades de formao fortemente marcada pela religiosidade, pela
expectativa da morte e de uma continuidade da vida aps a morte, a crena no
retorno dos mortos, transformados em fantasmas bastante difundida e aceita
por todos. Esses mortos geralmente esto associados ao terror e
malevolncia e, geralmente aparecem para solicitar rezas em sufrgio de sua
alma, para exercer vingana e para instruir. Possuem locais preferidos e mais
adequados s suas aparies. Os cemitrios e as igrejas esto entre os locais
favoritos. Mas as casas tambm so adequadas aos fantasmas, que, geralmente
preferem as maiores e mais antigas. Na Amaznia, onde as construes so
mais escassas, os fantasmas se tornaram mais ambientalistas e passaram a
habitar espaos naturais das florestas, dos rios e dos lagos. Gostam ainda de
brejos, pntanos, pedreiras locas de pedras e grotas. A exercem suas
atividades sombrias e so responsveis por sustos e transtorno na vida dos
homens e dos animais. Os caboclos amaznicos reconhecem de imediato os
espaos assombrados da floresta ou das guas. Neles a gente no v nada de
bonito. tudo muito triste e assustador. Nem os passarinhos querem ficar ali.
A gente s v bicho de mau agouro e de visagem. Esses lugares so muito
ruins para os homens. Tudo ali d injusto.173
Lucien Febvre174 mostrou que os fantasmas eram tidos como realidades
alm dos questionamentos ao longo dos sculos XVI e XVII. Seu trabalho
sobre Rabelais apresenta um universo concebido de forma animista.
173
Depoimento do Sr. Antnio Nascimento, caseiro de um sitio na Estrada da Penal em Porto Velho, RO.
174
Lucien Febvre. Op. Cit. P. 408.
Ronsard175 considera que seres imortais vivem alm da compreenso humana e
podem ser bons, quando so executores da vontade divina; ou maus, quando
anunciam pestes, tragdias e habitam casas mal assombradas.
A separao entre os mortos e os vivos foi percebida de forma relativa e
imprecisa pela sociedade ocidental por um longo perodo. Os mortos sempre
transitaram pelo mundo dos vivos, s vezes pedindo preces, s vezes
exercendo vinganas, ou ainda cumprindo obrigaes incompletas durante a
vida, que os impedia de obter o repouso. A presena do morto entre os vivos
pode ser percebida por humanos e por animais. Os ces seriam especialmente
sensveis a tais manifestaes. Em entrevista sobre a vida das populaes
ribeirinhas, a artista plstica rondoniense, Rita Queiroz, narrou um fato
observado pelos beiradeiros do Vale do Guapor: Tem visagem l que ataca
os cachorros. A gente v os bichos se torcendo de dor no cho, escuta as
lambadas, como se algum estivesse batendo neles de correia, chega at a ver
os verges que ficam. Mas no v ningum, nem coisa nenhuma. A gente s v
o coitado apanhando e apanhando e ganindo de dor. 176 A percepo dos
fantasmas pelos animais referendada pelo telogo Nol Taillepied, que
afirma: s vezes um esprito se mostrar na casa e, percebendo-o, os ces se
lanaro s pernas de seu dono e da no querero sair, pois temem muito os
espritos.177 Por outro lado, os fantasmas tambm podem ter a forma de
animais, e, em muitos casos serem de animais. As narrativas de cavaleiros
fantasmas cavalgando suas montarias e de outros animais fabulosos ainda so
narradas por diversas sociedades. As discusses teleolgicas sobre a existncia
ou no de alma nos animais parecem no afetar de forma alguma aos espectros
zoolgicos do alm. ainda o telogo Taillepied quem afirma: Viram-se
pessoas a cavalo ou a p, como fogo, que eram bem conhecidas, e que
estavam mortas antes....178 Nas povoaes amaznicas os relatos de mulheres
que aparecem em forma de porcas e de cavalos fantasmas, ou ainda de
pssaros fantasmagricos so comuns ainda hoje. Histrias de fantasmas,
visagens e assombraes sempre existiram na cultura ribeirinha. Muitos desses
casos se transformaram em contos folclricos e ilustram o conjunto de
narrativas sobrenaturais dos beirades, acabando por solidificar a crena em
entidades aterradoras que vagueiam perdidas para sempre, tendo como ultima
finalidade provocar desespero nos vivos.
A maioria dos encontros fantasmagricos envolve situaes de crise e de
aflio. muito comum que o espectro se mostre imediatamente aps a morte
e nos dias que se seguem a ela, terminando por desaparecer quando cessam as
175
Ronsard. Hyme. Des daimons. Citado por Jean Delumeau. P. 84.
176
Relato de Rita Queiroz ao autor em 22/11/01.
177
Nol Taillepied. Traict de l apparition des spirits. Citado por Jean Delumeau. P. 86.
178
Idem. P. 86.
lembranas litrgicas e religiosas a seu respeito. Os que travam contato com o
fantasma so, na maioria dos casos, prximos ao morto. De todos os
espectros, os mais raros so as assombraes. Elas so residentes e no
vagueiam a esmo. Habitam um determinado local, que assombram e tornam
melanclico, com ares pouco vivificantes. Suas aparies no tm nada a ver
com as pessoas e sim com a construo. A percepo das aparies de uma
assombrao so descritas como frias, assustadoras e muito carregadas de
sofrimento. As assombraes vivem em edifcios que marcaram sua passagem
pela terra dos vivos, mesmo que apenas em situaes decisivas. Igrejas,
reparties pblicas, hospitais, escolas, cinemas, bares e edifcios arruinados
de Porto Velho e das cidades dos Vales do Madeira, Mamor e Guapor, so
sempre citados como reas de assombrao.
As dvidas sobre a autenticidade das aparies so percebidas desde os
tempos antigos. Muitas pessoas medrosas se persuadem de ver e de ouvir
coisas assustadoras das quais no h nada. (...) Do mesmo modo aqueles que
tm m vista e ouvido, imaginam muitas coisas que no so. 179 A luta da
doutrina oficial catlica no foi contra a crena nas aparies de mortos, que
atestada pelo prprio Jesus nos Evangelhos, mas contra uma credulidade
vulgar, que permeava com horrores sobrenaturais todo o cotidiano de muitas
localidades.180 Como ressalta Delumeau, sob a doutrina romana, o discurso
teolgico sobre a presena dos mortos no meio dos vivos, torna-se pleno e
fortalecido a partir dos exemplos das Escrituras e dos ensinamentos dos
antigos padres como Santo Agostinho, Santo Ambrsio e So Jernimo. 181 Os
fantasmas so, ento, compreendidos pela Igreja, como instrumentos da
didtica divina para a salvao dos vivos. Eles instruem, pedem preces,
convertem pelo exemplo de dor e de sofrimento que devem suportar at que
lhes seja facultada a libertao. A obra do monge beneditino Dom Augustin
Calmet, ressalta que muitas das aparies de fantasmas resultam do fato de
que durante um certo tempo aps a morte, os espritos dos falecidos ainda
levam uma existncia prxima ao mundo dos vivos, podendo voltar a lugares
que freqentavam, aparecer a pessoas s quais necessitem enderear
mensagens, ou ainda exercer algum malefcio, no caso de serem espritos
danados. O conhecimento teolgico e religioso de Calmet 182, era reconhecido
179
Idem. P. 87.
180
No Evangelho de So Lucas, no captulo 24, vers. 36 a 40 lemos Jesus apresentou-se no meio deles e
disse-lhes: a paz seja convosco. Perturbados e espantados pensavam estar vendo um fantasma. Mas Ele lhes
disse: porque estais perturbados, e porque estas dvidas nos vossos coraes? Vede minhas mos e meus ps.
Sou eu mesmo, apalpai e vede: um fantasma no tem carne e nem ossos como vedes que tenho.
181
Op. cit. P. 87.
182
Augustin Calmet. Dissertation sur les apparitions des anges, des demons e des spirits, et sur les revernants,
et vampires de Hungrie, de Bohme, de Moravie, et de Silsie. Paris, 1746. Reimpresso sob o titulo: The
phantom world. 2 vols, London, Richard Bentley, 1850.
em toda Europa por seu trabalho, publicado em 1746. seus estudos apontam
para a existncia de espectros e de vampiros, embora ele condene a histeria de
crendices vivida pela Europa centro-oriental em meados do sculo XVIII. Foi
um dos telogos mais lidos em seu tempo, embora tambm tenha sido um dos
mais criticados aps a sua morte.
Os mortos chegavam mesmo a constituir sociedades semelhantes s dos
vivos, reunindo-se em ocasies como o Natal, a noite de So Joo e a noite de
Todos os Santos para celebrarem. No Brasil, a crena nas procisses do
mortos, que nas noites das segundas feiras, saem ritualisticamente dos
cemitrios em direo s igreja, onde rezam pedindo a absolvio e o perdo
de suas culpas, bem como o abrandamento de suas penas. Em Porto Velho, a
sra Maria do Carmo, que residiu rua General Osrio, relatava, sob fortes
arrepios, a viso que teve de uma procisso das almas, que saia do Cemitrio
dos Inocentes, meia noite de segunda feira, com destino, a Catedral do
Sagrado Corao de Jesus. Essa concepo da morte e dos mortos como vivos
de outra forma, tpica das sociedades antigas, onde os processos de morte se
confundem com uma forma de continuidade da vida. A morte percebida de
forma progressiva e no pontual por essas culturas. Aos mortos ainda dado
certo tempo de vida, enquanto se percebem como realmente mortos e deixam,
enfim, o convivo dos vivos. Formas de pensar como a exposta acima, podem
ser facilmente percebidas nos contextos da cultura religiosa popular das
sociedades do Brasil. Os mortos ainda tm direito vida, tomando
temporariamente, o corpo dos vivos, fumando, bebendo, danando e
aconselhando, como comum observar nos Terreiros de todo o pas.
Uma questo interessante a da composio de um espectro. Que
elementos so essenciais em um fantasma? A materializao e a visibilidade
so expressivas, mas no essenciais. Muitos dos relatos de fantasmas falam
mais de sons do que de imagens e vises. Os sons podem partir do prprio
fantasma, como lamentos, gemidos e falas; como tambm de objetos e de
acessrios que eles possam trazer consigo, como correntes, rosrios que
farfalham ao serem manuseados e sapatos que fazem barulho durante o andar
do fantasma. O som um elemento altamente revelador da presena e da
manifestao de fantasmas. Mudanas de atmosfera tambm so citadas e
percebidas pelos videntes. Odores so mais raros, mas existem casos em que a
presena do espectro se faz anunciar mediante um odor especifico. Nas
aparies malvolas, esse odor sempre nauseabundo, como no caso das
Boinas que se apresentam como barcos carregados de esqueletos com um
fortefedor de carne decomposta. J os odores de entidades benignas esto
associadas a flores e outros perfumes. Estes odores so comumente descritos
nos casos de aparies de Santos. Musica pode ainda ser um elemento
revelador da presena do fantasma. comum que ao morrer, os mortos
deixem manifestaes de musica divina ou infernal para os que estavam lhes
assistindo. Roupas especficas tambm fazem parte do conjunto visual do
fantasma, a maioria prefere se manifestar com a roupa com a qual foi
sepultada. Mas existem aqueles que usam roupas de que gostavam mais em
vida, inclusive com as cores de sua preferncia. Uma parcela especifica das
aparies relatam o avistamento de vultos que trajam mantos escuros e que
tornam muito difcil a sua identificao.
A aparncia dos fantasmas , geralmente, ligada ao seu aspecto fsico
imediatamente anterior morte. Sua forma , normalmente humana, o que
permite ao vidente identifica-lo. O fantasma pode apresentar ainda sinais das
causas de sua morte, como ferimentos sangrentos, aspectos doentios e cores
especificas como nos afogados e nos estrangulados. Pode apresentar marcas
de ferimentos de armas e de acidentes, incluindo leses que denunciam andar
coxo, cegueira e dificuldades de respirao. Entidades malficas, no entanto,
podem apresentar-se com aspecto animalesco ou monstruoso. Efeito este que
se destina a causar ainda mais pavor. Este o caso das mulheres que aparecem
sob a forma de porcas e dos homens condenados a aparecer sob a forma de
ces ou de cavalos. Entre os indgenas, alguns pssaros so associados a
apario dos mortos. Na Amaznia, o Cuculus caianus era uma ave associada
s aparies de parentes prximos. Mesmo na lenda dos sacis, os irmos
assassinados pelo tio ndio, tornam-se sacis e aparecem para a av como aves
que devero cumprir a triste sina de anunciar maus pressgios.
A noo de espiritual no fantasma incompleta e ambgua. Sua presena
s pode ser percebida mediante uma negao, mesmo que parcial da
imaterialidade. O corpo e os sentidos fazem parte do seu contedo e condio.
Nas vises produzidas pelas aparies, a materializao do espectro pode
produzir efeitos sobre o corpo do visionrio, podem apresentar graus variados
de materialidade, podem manter relaes com a matria do cadver e de outras
formas vivas. As vises de fantasmas podem agir sobre os corpos dos videntes
deixando-os prostrados, envelhecidos precocemente, enfermos, ou ainda com
marcas diversas, estigmas ou sinais. Alm dos corpos dos videntes, os
fantasmas podem produzir efeitos sobre objetos e outros elementos presentes
no local da apario. Os ces podem apresentar sintomas de sovas, as plantas
podem murchar, os mveis e quadros podem ser deslocados, pedras podem ser
atiradas e incndios podem ser desencadeados.
Mas quais so os tipos de mortos que podem se transformar potencialmente
em fantasmas? importante salientar que as manifestaes de fantasmas so
perfeitamente enquadradas no conjunto cultural da sociedade em que viveu o
morto e em que vivem os vivos. As aparies e manifestaes dos fantasmas
esto inseridas no contexto ordinrio dos hbitos, gestos e formas sob as quais
o morto havia vivido e se relacionado, fsica e culturalmente com sua
comunidade. O etnlogo polons Ludwig Stomma 183, afirma que os fantasmas,
entendidos como espritos que atormentam os vivos, procedem das seguintes
categorias de mortos:
1) Fetos mortos;
2) Fetos abortados;
3) Crianas no batizadas;
4) Mulheres mortas durante o parto;
5) Mulheres mortas aps o parto, antes da purificao;
6) Noivos mortos pouco antes do casamento;
7) Casados falecidos no dia do casamento;
8) Suicidas;
9) Enforcados;
10) Afogados;
11) Falecidos de morte violenta, no natural;
12) Outros (assassinos, hereges, bruxos, excomungados, pervertidos).
187
I Livro dos Reis, vs. 51 a 28.
188
Alfred Mtraux. Op. cit. P. 56.
189
Depoimento de Paulo Lima sobre os fantasmas do rio Madeira, feito em 21 de novembro de 2001.
cemitrio em que est sepultado. As casas mal assombradas povoam o
imaginrio popular e as narrativas de fantasma de todas as pocas e
culturas. Casas mal assombradas so percebidas em toda a Amaznia e,
com freqncia, nos Vales do Madeira, Mamor e Guapor. Alexandre
Braga narra a histria da casa de seus avs, localizada na rua Getlio
Vargas, no Bairro do Areal. De noite a gente via as luzes se acenderem
sozinhas e ia l e apagava tudo. Da a pouco a gente ouvia barulhos de
gente andando e sentia algum se sentando ao lado da gente, na cama. O
barulho era horrvel de madrugada e a casa minava uma coisa esquisita
pelas paredes. Ningum conseguiu ficar l muito tempo.190 Os locais
sempre parecem adquirir um ar sinistro e melanclico. A depoente
Maristela, afirma que morou em uma casa no bairro Embratel que em um
determinado dia A casa parecia que estava tendo um velrio. At o cheiro
era igual. Ficava tudo muito triste e a minha me ficava parecendo um
cadver, toda macilenta. Neste dia, uma mulher falou pra gente no fechar
a casa, porque o esprito de uma senhora que tinha morrido naquela data
na casa voltava para pedir um velrio. A gente ia dormir do lado de fora,
ou em alguma vizinha. Depois passava. Era s naquela data.191
As assombraes so seres de hbitos fixos, que parecem reconstituir
perpetuamente determinados acontecimentos tristonhos aos quais esto
ligadas e que permanecem como enigmas a serem decifrados. Em grande
parte, o que parece diferenciar as assombraes das casas mal assombradas
de outros tipos de fantasma o seu laconismo. Elas seguem seu trajeto
ritualstico, alheias aos que as percebem. O mal que causam deriva muito
mais de sua profunda dor e melancolia do que dos ataques clssicos de
fantasmas aos vivos. Aparies coletivas ignoram as normas de local e
lugar e podem aparecer em diversas circunstncias, embora locais como
matas, estradas e ruas possam ser preferidas.
Os relatos de aparies revelam que os espaos de ocorrncia de
fantasmas e de assombraes so variados e podem contemplar edifcios,
espaos abertos e cemitrios. Na maior parte dos casos esses espaos esto
vinculados ao morto e ao seu destino. Nem espao, nem tempo so
elementos neutros nas aparies. Seus significados revestem-se dos valores
sociais das sociedades onde o caso registrado, sancionado a viso coletiva
de sua insero no imaginrio social local. Os fenmenos de assombrao
so muito variados e nem todos tm as mesmas origens e explicaes,
conforme explica Camille Flammarion192, sendo produzidos por entidades
190
Entrevista com Alexandre Braga, professor residente em Porto Velho, datada de 12 de novembro de 2001.
191
Entrevista com Maristela Falco, funcionaria pblica estadual, residente em Porto Velho, datada de 23 de
novembro de 2001.
192
Camille Flammarion. As casas mal assombradas. Les mainsons hantes. Rio de Janeiro, FEB, 1983. P. 205.
de origens diversas, mas a maior parte dos fenmenos atribuda aos
mortos, fantasmas e assombraes. Outros podem ser creditados a
entidades consideradas elementais, que nunca tiveram vida humana, como
os sacis, os curupiras, os anhangueras. Os poltergeisters, ou fantasmas
barulhentos, so relacionados a ao de indivduos vivos e os fenmenos
so a eles vinculados; normalmente so adolescentes em processo de crise
que apresentamse como alvos de fenmenos de deslocamentos de
materiais, incndios espontneos, barulhos e outros fenmenos que
parecem possuir curta durao. Diferentemente, as assombraes clssicas,
tm um perodo de existncia prolongado e os fenmenos a elas associados
podem atravessar geraes. Os fenmenos de fantasmas e assombraes
apresentam ainda a questo central da falta de objetividade de suas
manifestaes. O conjunto de relatos estudado, bem como a leitura de
bibliografia especifica revela que os fenmenos so sempre banais e
mesquinhos, destinados a causar pavor e medo. As manifestaes mais
comuns produzem rudos, deslocamentos de moblia e de objetos,
desaparecimentos inexplicveis de pertences, sons pavorosos. As reaes
perceptveis no organismo humano, tambm podem ser descritas e
relacionadas. Suor frio, medo agudo, secura na boca, estupor, arrepios, frio
na espinha, contrao da musculatura.
A comunicao entre o fantasma e os vivos outra questo pertinente
ao estudo sobre a crena no retorno dos mortos ao mundo dos vivos. A
comunicao entre o espectro e os vivos pode se dar de diversas maneiras.
As palavras e frases so, geralmente concisas e diretas. As mensagens
trazem significados variados e quando so precisas, normalmente,
estabelecem ordens e pedidos de sufrgio, execuo de tarefas que no
foram terminadas em vida e que podem ser de grande importncia, avisos
sobre perigos e proximidades de outras mortes no grupo de convvio,
informaes sobre pertences (dinheiro, jias e outros valores) e sua
localizao escondida, bem como o destino que devem ter. por outro lado,
em muitas aparies no ocorrem conversas e a comunicao se torna
inteligvel. Sons de fala que no podem ser compreendidos, rudos de
lamento e de dor, sons metlicos e animalescos, caminhadas repetidas
como mesmo destino. Muitas vezes, as comunicaes com os vivos so
graduais, primeiro sonhos, depois vozes, depois aparies seguidas de falas
e de dilogos. Em grande parte, as comunicaes encerram uma elaborada
simbologia e a maior parte dos casos de comunicaes entre vivos e mortos
so onricas. A alma permanece, portanto com condies ambguas,
podendo realizar muitos dos atributos da matria como a fala, os
movimentos e a corporificao.
Os fantasmas podem ser figurados de diversas formas. Em primeiro
lugar, ele pode apresentar a forma e o volume de um corpo, o seu, de
quando estava vivo. Pode ainda se apresentar de forma difana e sutil,
quase transparente, pequena, como uma alma. Ainda dentro da variao da
forma difana, ele pode se apresentar como um vulto de cores variadas que
vo do preto ao branco e ser bastante transparente, este o tipo espectro.
Pode se mostrar tambm como um ser macabro e assustador, como os
afogados que apresentam os sinais do afogamento, ou os fantasmas com
formas de cadveres em decomposio que aparecem nas sepulturas. A
forma animalesca utilizada em muitas solues, podendo ser a de um
animal malfico (porco, ave de mau agouro, cavalo, co negro) como a de
um animal benvolo (pomba branca). Podem ter ainda a aparncia de
monstros como os fantasmas indgenas e outros que morreram sem a graa
divina e se tornam candidatos a demnios. Por fim, podem se apresentar
completamente invisveis e serem percebidos a partir dos sons,
deslocamento de objetos e odores. So os poltergeists.
As formas de fantasmas como espectros difanos mais comum. Sua
aparncia e roupas apresentam todos os contornos do antigo vivo. Os
fantasmas invisveis so os de maior incidncia nos relatos e predominam
absolutamente as histrias de sons fantasmagricos e de barulhos
inexplicveis. Por sua vez, os fantasmas de aparncia macabra e
assustadora, quase no so citados, exceto por um velho vigia do prdio
central da Universidade de Rondnia que afirma ter avistado um fantasma
em forma de esqueleto ao final de um dos corredores do prdio. Fantasmas
em forma de animais so pouco observados, seus relatos esto vinculados
s zonas rurais. Fantasmas de animais so observados em todas as regies,
desde as reas de floresta, at as regies urbanas. O tipo alma medieval,
como um pequeno e difano ser humano no registrado nos relatos locais.
Os fantasmas que apresentam corporificao perfeita e materializao
integral so raros, mas existem narrativas sobre eles.
A questo da morte, dos mortos, do afeto e dos medos que tudo isto traz
tona merecem estudos que possibilitem ao homem um conhecimento
mais realistas de suas relaes com a sociedade e com o universo mtico,
do qual no nos desligamos totalmente. Aos antigos era mais fcil entender
e suportar o peso das separaes e do entendimento da prpria finitude.
Eles estavam cientes de que um outro lado os esperava e permitiria que a
existncia fosse continuada. A crena nos fantasmas e nas visagens traz
tona o desejo concreto de continuar a existir. Para as culturas urbanas ps-
modernas, este um embarao desagradvel, pois a racionalidade rejeita
tais crenas como manifestaes infantis de credulidade simplria. Por
outro lado esta constatao amplia a angstia de uma eternidade de
dvidas, de incertezas e sem eternidade. Resta-nos por fim, passar s
narrativas dos casos de assombrao, fantasmas e visagens nos Vale s do
Guapor, Mamor e Madeira.
Captulo 6:
A floresta se avoluma.
Movem-se espantalhos monstros
Riscando sombras estranhas pelo cho
rvores encapuadas soltam fantasmas
Com visagens do l se vai.
O luar amacia o mato sonolento
L adiante, o silncio vai marchando com uma banda de
msica.
(Raul Bopp)
193
Vladimir Propp. As razes histricas do conto maravilhoso. So Paulo, Martins Fontes, 1997. p. 5.
194
Robert Darnton. O grande massacre de gatos e outros episdios da historia cultural francesa. So Paulo,
Graal, 1988.
existir e viver a partir das narrativas. O conto se constri a partir dos mitos,
dos ritos, da formao das instituies sociais que regem as sociedades, do
pensamento mtico.
Nas narrativas dos contos e dos casos de fantasmas, assombraes,
visagens, encantados e outros elementos do mundo sobrenatural dos Vales do
Madeira, Mamor e Guapor, percebemos a profuso de seres do imaginrio
amaznico e das crenas tradicionais da religiosidade popular. Os personagens
sero Diabos, Botos, Lobisomens, Matintas, Cobras Grandes, Fantasmas,
Assombraes e visagens da mata e dos rios. O universo caboclo se apresenta
formado pelas idias tradicionais do conjunto das crenas afro-amerindias e
catlicas, mesmo modernamente, quando parcelas considerveis das
populaes ribeirinhas se encontram sob a f evanglica ou pentecostalista,
esses personagens no desapareceram, e nem as narrativas a seu respeito.
Deixaram, no entanto, suas antigas vestes e foram progressivamente
demonizados. Mas, dentro de uma viso permanentemente dinmica, ele est
sempre receptivo a novos acrscimos.
Os contos procuram expressar sempre um fundo moral e uma lio de
vida, tendo objetivos didticos e expressando a confiabilidade dos valores que
regem a vida social e moral das comunidades ribeirinhas. Os contos revelam a
maneira de pensar e de encarar as relaes pouco esclarecidas dos homens
com os diversos elementos da vida e do mundo natural. Eles revelam mais do
que aquilo que as pessoas pensam, os contos revelam como elas pensam. Seu
estudo e compreenso nos permitem adentrar o campo da etno-histria e
perceber como as pessoas comuns enxergam o mundo. Vale lembrar a reflexo
de Darnton na Introduo de O Grande Massacre de Gatos: Operando ao
nvel corriqueiro, as pessoas comuns aprendem a se virar, e podem ser to
inteligentes sua maneira quanto os filsofos. Mas em vez de tirarem
concluses lgicas, pensam com coisas, ou com qualquer material que sua
cultura lhes ponha disposio, como histrias e cerimnias.195
Se quisermos entender as formas de pensar das pessoas comuns
necessrio comear a perceber a maneira como elas ordenam o seu universo.
Ao se explorar a riqueza dos contos, ou causos de visagens e de
assombramentos das populaes ribeirinhas dos Vales do Madeira, Mamor e
Guapor, adentramos num mundo no percebido preliminarmente pelos
estudos tradicionais. No entanto, este estudo nos permite compreender em
grande parte as formas e as maneiras como as pessoas constroem suas relaes
umas com as outras, de todas com a natureza e de cada uma com a vida e com
a morte, num ciclo perptuo. Ao pesquisador, cabe a descoberta da dimenso
195
Robert Darnton. O grande massacre de gatos e outros episdios da historia cultural francesa. Rio de
Janeiro, Graal, 1984. P. XIV.
social do pensamento e das lies didticas contidas nesses contos ou causos,
como os queiramos chamar. Deles se deve extrair a significao, passando do
texto ao contexto. Todas as sociedades, explica Darnton, operam dentro de
contextos de coaes culturais, cabendo ao pesquisador ser capaz de perceber
como as culturas formulam maneiras de pensar.196 A pesquisa dos contos
fantsticos das populaes locais dos Vales do Madeira, Mamor e Guapor,
pode levar a um melhor conhecimento das atividades, do cotidiano e das
formas de perceber e se relacionar com o universo dessas populaes.
Conforme ressalta Carlo Ginzburg, preciso atribuir mais justia ao
simbolismo da magia popular, pois ela nos diz algo sobre os critrios de
valores das sociedades que neles acreditam, bem como os limites que
pretendem manter e o controle dos instintos que desejam reprimir.197
A investigao dos contos fantsticos pode auxiliar nos estudos de
reconstruo dos processos histricos e culturais, sobretudo ao se tratar de
uma regio tradicionalmente pobre em preservao da documentao que
permita um trabalho mais desembaraado para a compreenso do ser humano
local. A ncleo mtico dos contos, ligam-se os temas folclricos tradicionais,
aqui trabalhados de forma individual e pessoal pelos narradores, que deles
participam e com os personagens interagem, criando uma outra dimenso
pessoal de realidade. Da fuso dos temas tradicionais do folclore, com as
criaes do imaginrio individual e coletivo e ainda dos mitos e crenas do
catolicismo popular, presentes na imaginao de toda a populao, nasce o
conto fantstico, ou causo, que se prope a fornecer elementos de conduta e
relaes entre os indivduos e o universo material e imaterial que os cerca.
Lembrando mais uma vez Ginzburg, preciso ter em mente que: A
experincia inacessvel que, durante milnios, a humanidade expressou por
meio de fbulas, ritos e xtases, permanece como um dos centros ocultos da
nossa cultura, do nosso modo de estar no mundo. A tentativa de conhecer o
passado tambm uma viagem ao mundo dos mortos.198
Os contos e os causos nos fornecem elementos para que possamos
realizar ao inverso as viagens dos colonizadores e dos exploradores que
percorreram estas terras e deixaram descendncia e registros de influncia na
cultura local. Assim, possvel rastrear os elementos heterogneos que
integram o imaginrio local, percebendo-se claramente as diversas matrizes
culturais que atuaram nos processos de formao das mentalidades ribeirinhas
regionais. Passado o perodo da borracha e mesmo a fase dourada da
colonizao recente nos Vales do Madeira, Mamor e Guapor, ainda
196
Idem. P. XVIII.
197
Carlo Ginzburg. Histria noturna. Decifrando o sab. So Paulo, Companhia das Letras. 1989. P. 15.
198
Idem. P. 37.
possvel perceber a fora de um imaginrio mgico e religioso, de forte apelo
popular, como parte integrante da cultura local, que se mantm, mesmo diante
dos avanos da cultura materialistas moderna. O contato com as realidades
caboclas expressas em seus contos e narrativas, altera o sentido do que pode
ser conhecido, nos levando sempre a lidar com os mistrios de suas
percepes de natureza, de vida e de morte , ou ainda de vida aps a morte.
Parafraseando Darnton, o pesquisador volta desse mundo, como um
missionrio que partiu para conquistar culturas estrangeiras e agora, retorna
convertido alteridade do outro.199
Os personagens dos contos e das narrativas so seres dos rios e das
florestas que constituem a Amaznia. No entanto, so ainda seres do universo
urbano em construo e sados da mentalidade crist ocidental. Alguns tm,
progressivamente desaparecido do contexto cultural, e para perceber a sua
existncia, preciso ouvir os habitantes das reas mais remotas. Este o caso
dos Mapinguaris e dos Anhangs. Outros migraram para os novos espaos
urbanos e levam uma existncia associada aos espaos perifricos das cidades
e aos entornos rurais, como o caso das Matintas e dos Lobisomens. Outro
por fim, so tipicamente urbanos como as assombraes e as casas mal
assombradas. Em certos casos, esses fenmenos so citados ainda nas reas
rurais.
Nas narrativas, os elementos naturais no so descritos com detalhes.
Por exemplo, a floresta descrita como densa, escura, misteriosa. O rio
descrito como caudaloso, largo, imenso. As casas so descritas como funestas,
sombrias e assustadoras. A representao do espao vincula-se a uma
percepo do estado emocional do narrador e do envolvido pelo caso. Nesse
processo, privilegia-se uma descrio mais cuidadosa dos efeitos dos
sentimentos e do estado do individuo. Por fim, o conto procura deixar clara a
lio que pretende transmitir e a moral que a histria apresenta, sendo um
mecanismo de educao popular, eficiente para a transmisso de valores.
199
Robert Darnton. O beijo de Lamourette. Mdia, cultura e revoluo. So Paulo, Companhia das Letras,
1990. P. 14.
Conto Um.
O velrio fantasma.
(pesquisado por Maristela Falco Borges)
Conto Cinco.
O lobisomem do bairro J. K.
(pesquisado por Maria Eliene Sombra)
Conto Seis.
Conto Oito.
Conto Nove.
Porto Velho era, na dcada de 1970, uma cidade pequena, com aspecto
de cidade do interior, rural e pacata. Nas ruas mais perifricas da poca, a
Avenida Calama e outras, os moradores ainda criavam porcos e mesmo, gado
bovino e eqino ainda podia ser encontrado em pequenos currais, herana de
dcadas passadas. As ruas eram sem pavimentao nenhuma e na maior parte
dos igaraps, havia um tronco ou tbuas colocadas precariamente, que serviam
como passagem. A luz ainda era pouca e a falta de energia eltrica era
constante.
As noites eram paradas, nada de televiso, nada de points modernos. As
pessoas se conheciam mais e o passatempo ainda era a roda de vizinhos que
colocava suas cadeiras na calada e conversava at l pelas 9 ou 10 horas da
noite e depois, se recolhia. Andar noite era perigosa, no por causa dos
marginais e das gangues que hoje aterrorizam a cidade. Mas por causa dos
terrores sobrenaturais, oriundos da mata e do rio, que poderiam vagar pelo
escuro, fazendo toda sorte de malefcios.
Um dos maiores temores desse perodo comentado por todos os que
andavam pelas reas mais escuras da cidade. Tratava-se da mulher que virava
porca. As informaes sobre essa estranha criatura variavam. Uns diziam que
ela era uma visagem de mulher morta que faleceu ao tentar fazer um aborto.
Outros dizem que ela estava bem viva, e muitos at sabiam quem era a tal
mulher. De qualquer forma, todos eram unnimes em confirmar que a sua sina
de porca era devido aos abortos que ela teria feito.
A porca costumava aterrorizar nas noites mais escuras, mas tinha
predileo pelas noites de segunda feira e as de quinta para sexta feira. Suas
aparies eram repentinas e quando um desavisado era surpreendido pela
enorme fera, tinha que correr muito e se refugiar dentro de um quintal cercado
ou no alto de alguma rvore.
A porca costumava aparecer sozinha ou ainda acompanhada por um
grupo de bacurinhos. Dizem que estes eram os abortos da mulher, que
morreram antes de nascer e que no receberam o batismo, ficando condenados
a nunca entrar no cu.
Jorge Antnio era um rapaz tpico, jovem, j estava casado, pois deixara
sua namorada barriguda ainda no primeiro ms de namoro. Agora ela estava
quase nos dias de descansar, e o marido vivia uma situao de tenso, pois a
mulher, incomodada pela gravidez, o rejeitava na hora do amor. O rapaz no
se incomodava muito com isso, pois na sua cabea de homem, era s arranjar
uma desculpa e sair por a para encontrar alguma garota que estivesse disposta
a satisfaze-lo. E isso no era difcil. Ele era um moreno bonito e bem formado
de corpo. As meninas suspiravam por ele. Naquela noite, ele disse para a
mulher que tinha alguma coisa para resolver na rua. No demoraria, mas
deixaria a irm da garota com ela para qualquer emergncia. O rapaz saiu e foi
se divertir em um bordel do trevo do Roque. L ele arranjou duas garotas que
ficaram com ele at as duas horas da madrugada.
Depois, saciado e contente, ele voltou para casa. As ruas estavam
escuras e desertas. Enquanto ele caminhava despreocupado, nas imediaes da
rua Getlio Vargas com a Calama, quando comeou a ouvir rudos num
matagal prximo a um igarap. Achou que fosse algum cachorro e pegou um
pedao de pau, para qualquer emergncia. Qual no foi sua surpresa, quando
do mato saiu grunhindo uma enorme porca, espumando furiosa pela boca.
Atrs dela vinham sete leitezinhos, que corriam para a me como se
quisessem mamar. Ela no os esperava e atacava furiosa o rapaz infiel. Ele
ainda tentou espantar a porca, mas ela investiu bramindo os dentes enormes e
afiados.
O rapaz compreendeu ento o perigo que estava correndo, e percebeu
que estava correndo. Subiu em cima de uma rvore na maior pressa e a porca
ficou embaixo bufando e tentando escavar as razes, como se quisesse
derruba-lo de l. Apavorado, o rapaz comeou a rezar e lembrou-se de que
poderia ter ficado em casa ao lado da esposa que estava prestes a dar luz.
Arrependido ele pediu a Deus e a Nossa Senhora que o livrassem daquele
monstro, se ele conseguisse escapar daquela porca violenta, nunca mais iria
sair para farrear noite, deixando sua esposa em casa. Mal ele terminou de
rezar, e a porca com seus filhotes deixaram de atacar o p da rvore e sumiram
no matagal. O assustado rapaz ainda esperou que o dia clareasse para poder
descer. S ento voltou para casa e contou tudo para sua mulher, que terminou
perdoando-lhe a infidelidade.
A porca ainda foi vista por muitos rapazes nas noites da cidade. Uns a
viram saindo do cemitrio dos Inocentes, prximo ao Mocambo, outros a
viram na Baixada da Unio, onde havia muito mato e onde os bomios se
divertiam nos forrs.
Por fim, quando a cidade cresceu, a porca desapareceu e no se falou
mais dela. Talvez j tenha cumprido sua sina de visagem.
Conto Dez.
200
Barnabs funcionrio pblico
O medo de fantasmas, assombraes e outras coisas do alem to
concreto naquele Palcio, que at mesmo um dos governadores, se recusou a
governar dentro dele, mudando-se para um prdio mais novo e bem distante.
O governador Jernimo Santana s foi ao Palcio Presidente Vargas para
receber o cargo e passou a despachar em um prdio na Avenida Costa e Silva
com a Jorge Teixeira. Jernimo teria consultado um pai de santo que o
aconselhou a manter distncia do Palcio, pelos maus fludos ali existentes.
Ainda hoje, os soldados da Polcia Militar, que fazem a segurana do
prdio, dizem ouvir passos subindo as escadas, em plena madrugada. Nunca
encontram ningum. E por mais valentes que sejam, sentem sempre um
estranho frio na espinha quando a barulhada comea.. noite comum ver os
soldados no lado externo do prdio, pois nem todos tm o sangue frio para
conviver com as assombraes. Entre eles, na hora da troca de guarda,
brincam dizendo que o governador veio despachar essa noite, se referindo
aos barulhos que so ouvidos quase todas as noites enquanto o prdio est
vazio.
H pouco tempo atrs, um grave incidente veio a aumentar a fama de
mal assombrado do Palcio. Um crime terrvel, praticado por um PM, ps fim
vida de um adolescente nos pores do Presidente Vargas. Ningum quer se
aventurar a permanecer sozinho no interior do Palcio noite. O macabro
concerto de sons diversos pode ser ouvido a qualquer momento da noite, mas
durante a madrugada que esses sons ficam piores. Para os PMs, o poro
passou a ser um lugar maldito. Todos temem que a alma do garoto morto por
um PM, ainda possa voltar e executar terrveis vinganas contra todos os PMs
que tiram guarda no Palcio e que se aventurem nos pores onde ele morreu,
sem que ningum o acudisse.
No Governo Piana, a administrao estadual voltou a funcionar no
Palcio Presidente Vargas. Depois de uma reforma superficial, toda a
governadoria se instalou no Palcio. No entanto, os barulhos continuaram e os
fantasmas dos mortos no deixaram os funcionrios vivos em paz. As
assombraes continuaram deixando pessoas de cabelo em p. Mesmo as que
no viam, se impressionavam com os relatos daquelas que juravam ouvir os
famosos passos nas escadas, as portas se abrindo rangendo e depois se
fechando com estrondo. Os barulhos eram to alarmantes que deixavam
qualquer um de cabelo em p.
A Relaes Pblicas Nicas Bencio, que nessa poca estava lotada no
Departamento de Comunicao do Governo, conta que quase todas as manhs,
os colegas que tinham ficado at mais tarde, de planto, diziam ver a porta do
salo nobre (1 andar) abrir de par em par, sem que houvesse ningum perto
ou corrente de ar, j que a porta que d para a sacada do palcio sempre foi
mantida fechada.
EU TAMBM OUVI
Os relatos abaixo so do jornalista Jos Carlos, que trabalhou no Palcio
Presidente Vargas, na Assessoria de Imprensa.
Em 1988, o advogado Orestes Muniz era o vice-governador e tinha seu
gabinete no segundo andar do Palcio Presidente Vargas, que tambm era
usado por alguns setores administrativos da Casa Civil. Era comum que os
funcionrios ficassem at mais tarde, aguardando que o vice-governador
acabasse de despachar ou conceder audincias.
Nessa noite eu estava na minha sala, logo na entrada do gabinete, tendo
como parede uma divisria de eucatex que no chegava at o forro. Os demais
colegas estavam na sala do Departamento Administrativo. Lia um livro
quando ouvi a porta do gabinete se abrir. Perguntei em voz alta se a secretria,
cuja mesa ficava em frente, j estava indo embora. No houve resposta,
apenas o rudo da porta se fechando. Levantei-me e fui verificar. No hall no
havia ningum e ao retornar encontre a Clo vindo do interior do Gabinete,
para saber o que eu tinha dito. Eu perguntei se algum tinha entrado ou sado.
Ela negou. Um arrepio subiu pela minha coluna at o alto da cabea. Contei a
ela o que tinha acontecido, sua nica reao foi fazer o sinal da cruz. Servi de
chacota por alguns dias para os colegas, mas ningum quis mais ficar sozinho,
trabalhando noite.
As noites do Presidente Vargas ainda so marcadas pelos sons de passos
e de datilgrafos que exercitam seus trabalhos em mquinas que j no
existem mais. Muitos ouvem passos de mulheres que sobem as escadas com
saltos altos, fazendo o cho estalar. Quando procuram, nunca vm
ningum....vivo. algumas pessoas relatam terem visto vultos que desaparecem
rapidamente por portas que quando so examinadas, revelam estar trancadas.
Conto 12.
201
Passar o servio no jargo de caserna, a substituio de uma equipe de servio por outra.
Conto 13.
Esta uma das casas mais estranhas de Porto Velho, que por ser uma
cidade, relativamente nova, deveria ter poucas assombraes. Mas aquela casa
era diferente. Estava em um bairro novo, o bairro Embratel. Ningum soube
de nenhum antecedente que pudesse comprometer a moradia. Ali nunca havia
morrido ningum. Tambm no estava em terreno de cemitrio e os seus
moradores eram catlicos que no mexiam com coisas de macumba.
Mas que existia alguma coisa de anormal e muito anormal, ah, isso
todos sabiam que existia. A casa era mesmo mal assombrada. A construo era
simples, de um pavimento s.possua trs quartos dentro da casa e mais um
do lado de fora. Tinha trs banheiros, contando com o de empregada que era
na rea de servios. No quintal enorme, haviam jambeiros e mangueira. Um
poo de gua abastecia a casa.
Seus moradores comearam a perceber algumas anormalidades numa
noite de junho. Naqueles dias o tempo estava frio, e a temperatura muito
baixa. Ningum se animava a sair. Estavam todos na sala vendo televiso,
quando, de repente pareceu que o armrio de cozinha tinha sido jogado no
cho e as coisas dentro dele tinham se espatifado. Todo mundo se levantou de
um salto e correu para a cozinha. Com certeza um ladro ou um cachorro
tinham feito a confuso. Mas, ao chegarem na cozinha, tudo estava normal.
No havia nada fora de lugar. Por mais estranho que parecesse, eles voltaram
para a sala e para a televiso. Passados uns minutos, de novo o estrondo, dessa
vez muito mais forte. Olharam tudo, nada de novo. Trancaram a casa toda e se
recolheram para dormir intrigados com aquilo que acontecera. O pai de
famlia ainda olhou para o relgio e viu que eram quase meia noite. As luzes
da casa foram apagadas e todos adormeceram, at que em alguma hora da
madrugada, comearam a acordar com pesados passo que eram ouvidos no
corredor, como se algum caminhasse de um quarto para o outro e desses para
a sala.
O medo foi tomando conta e agora era um medo diferente, como se
houvesse alguma coisa de muito ruim ali no corredor. A me que era mais
catlica, resolveu pegar o seu tero que ficava na cabeceira da cama e
comeou a rezar para a Virgem Maria. De inicio, os passo ficaram mais altos e
pesados. Depois pararam. Incomodada, a famlia se juntou em um s quarto
naquela noite e rezaram muito.
Nos dias seguintes a situao foi se tornando cada vez mais
desagradvel. Os ces ficavam arrepiados, ganindo no quintal de madrugada.
Parecia que algum caminhava pelo terreno e surrava os ces que escapavam
ganindo. A bomba do poo comeava a funcionar. As torneiras se abriam e as
luzes piscavam. Em um determinado dia, logo depois do anoitecer, a famlia
estava toda na cozinha. Sem mais nem menos, a televiso da sala foi ligada no
ltimo volume e todos deram um pulo de medo. Algum que no viram, deu
uma risada e passou por entre a famlia, deixando a todos de cabelo em p.
As noites estavam ficando cada vez piores. Barulhos, risadas e agora,
aparies. Em certa noite, a senhora da casa acordou com algum ao seu lado
na beirada da cama. Sentiu o seu arfar e o colcho ceder quando aquilo
pareceu sentar-se na cama apavorada ascendeu as luzes e no viu ningum.
De outra feita, um dos filhos do casal, que na poca tinha 16 anos, viu
algum entrando no quarto que ficava do lado de fora da casa. Eram pouco
mais de 18 horas. O rapaz correu para ver quem era, mas ao chegar no
local,no havia ningum, o quarto estava vazio e em total desordem.
A situao estava insustentvel. Eles no podiam mudar-se dali. Haviam
comprado a casa dispondo de todas as suas economias. No dava para perder
tudo o que possuam. Marido e esposa conversaram e resolveram procurar
ajuda espiritual.
Depois de diversas tentativas frustradas de obter ajuda de padres e at
mesmo de pastores, o casal procurou um dos grupos de orao da Igreja
Catlica. O Grupo So Francisco, que se rene na capela do Santo, na Avenida
Pinheiro Machado, esquina com a Campos Sales.
Os membros do Grupo foram at a casa e constataram tudo o que havia
sido relato pelo casal. Fizeram preces e celebraram cultos, pedindo a proteo
de Deus, da Virgem e dos Santos, principalmente So Francisco. A casa foi
ficando mais tranqila e com o tempo, os fenmenos deixaram de acontecer. A
famlia Pode retomar sua vida e continuou morando no mesmo local at que o
pai de famlia recebeu uma boa proposta de trabalho no interior do estado e
mudou-se da cidade. A casa foi posta venda, mas nunca mais se soube de
novas histrias de assombrao naquele lugar.
Conto 15.
Os botos do Tringulo.
(pesquisado por Maria Regina Crema Velloso Vianna)
Conto 18.
O mdico do alm.
(pesquisado por Jos Carlos de S Junior)
Conto 20.
Assombraes universitrias.
(pesquisado por____________)
Conto 22.
Conto 23.
No ano de 1968, Rosana ainda contava com quatorze anos e seu pai
trabalhava como funcionrio do 5 BEC. Naquele ano, ele e toda a sua famlia
se mudaram para o recm criado Bairro da Liberdade. O local, que hoje uma
das regies mais centrais de Porto Velho, apresentava-se, na poca, como um
bairro perifrico e nas proximidades da mata. Perto de sua casa, havia um
igarap e do outro lado, uma capoeira, como uma pequena mata.
A casa era de madeira, reciclada com tabuas que haviam servido para a
construo dos antigos casares da ferrovia, ainda do tempo dos norte
americanos. Era pequena e agradvel. O quintal era muito grande, mas as
crianas insistiam em brincar perto do igarap, embora a me estivesse toda
hora tirando-as de l, pois temia que uma cobra grande as pegasse.
Havia muitas fruteiras e perto dali, um velho criava algumas vacas e um
cavalo, que pastavam soltos pelo loca. Na casa de Rosana havia dois cachorros
que o pai usava para guarda e para caada nos finais de semana.
Distante uns duzentos metros, moravam um velho vivo, com duas
irms velhas, tambm vivas. Os moradores locais passaram a tomar por
fazedores de feitios, pois criavam um bode preto que se parecia com uma
coisa do demo. Raramente eram vistos durante o dia. Usavam roupas escuras,
tpicas dos velhos da poca e no eram de muita conversa. Diziam que uma
das mulheres, que cozinhava em um fogo de lenha do lado de fora da casa;
nas noites de luar, rolava nas cinzas do fogo, pronunciando encantamentos e
se transformava em uma Matinta Pereira. Ento ela saia voando e descobria
os segredos das vidas das pessoas e assim, podia enfeitia-las.
Numa certa noite, seu pai teve que ficar at mais tarde no Batalho, e a
me pediu a ela que a acompanhasse at o lado de fora, pois queria ir ao
banheiro. Atrs do banheiro de madeira ficavam umas rvores de fruta e umas
bananeiras.
A me entrou no banheiro e a filha ficou do lado de fora esperando. Do
meio do arvoredo veio ento, um assobio estridente e assustador, que paralisou
a ambas de medo. Com certeza era a Matinta. As duas ficaram sem ao para
correr ou gritar. De novo veio outro assobio, agora bem mais perto. A me
lembrou-se ento de oferecer caf para a Matinta. Mesmo assim, me e a filha
apavoradas, correram para casa e, no dia seguinte, bem cedo, uma das velhas
da casa onde residiam os trs velhos apareceu com uma xcara perguntando se
no havia um pouco de caf para ela, que o de casa havia acabado.
Conto 24.
Na rua Rafael Vaz e Silva, no bairro da Liberdade, existiu uma casa que
ficou famosa pelos fantasmas e visagens que ali eram vistos. No inicio da
dcada de 1980, aquele bairro ainda era pouco povoado e as ruas eram mal
iluminadas e sem pavimentao. Em uma das poucas casas de alvenaria do
bairro viva uma famlia que nunca havia tido nenhum tipo de problemas com
coisas do sobrenatural. A casa em que moravam era deles mesmos, nada de
casa alugada. A prpria famlia havia construdo a residncia. Numa rea mais
ou menos perto, ficava o SEMA, um bar muito freqentado por aqueles que
estavam procura de diverso noturna.
Certa noite, Graa ficou vigiando seu namorado, convencida de que
depois que ele a deixava, ia se divertir com as mulheres do SEMA. Junto com
sua amiga Elza, foram as duas at o bar ver se Oswaldo estava l. E no que
o danado tinha mesmo ido para o SEMA e estava na maior farra com as
mulheres de vida fcil. Furiosa Graa no esperou nada e terminou o namoro
ali mesmo. No adiantou nada ele implorar seu perdo, ela no voltou atrs.
Passado algum tempo, Oswaldo foi trabalhar em uma minerao e
terminou contraindo uma malaria que se complicou com hepatite e ele no
agentando, morreu. Graa no quis saber nem de ir ao enterro do ex-
namorado. No entanto, alguns dias depois da morte do rapaz, fatos sem
explicao comearam a acontecer na casa de Graa, que morava com seus
pais e irmos.
Uma certa noite, ela estava no porto, sentada em uma cadeira,
conversando com Elza, quando as duas viram uma coisa estranha, parecida
com uma neblina, que tomava forma de um corpo sem mostrar as feies, um
vulto de forma humana. Elas se levantaram e assustadas ficaram olhando
aquele vulto percorrer as janelas da casa e se deter sob a janela do quarto de
Graa. Depois o vulto sumiu. Assustada Graa foi para dentro de casa e pediu
a Elza que dormisse com ela. Antes de dormir, ascendeu uma vela para o seu
anjo a guarda e pediu proteo. Naquela noite, ela acordou com um brao que
a segurava fortemente. No dava para ver o corpo, s o brao. Ela gritou e a
amiga ascendeu a luz. No viram mais nada.
Aquela noite foi um verdadeiro pesadelo, Graa apavorada chamou o
pai e a me. Ningum conseguiu dormir. Era s apagar as luzes para que os
barulhos e as visagens recomeassem eles tentaram ascender uma vela para
pedir proteo, mas a vela caia e se apagava, quantas vezes fosse acesa.
Conto 26.
Os fantasmas da SEDUC.
(pesquisado por ------------------------------------)
Conto 28.
Existe no Vale do Guapor, logo abaixo de Pedras Negras, uma casa dos
tempos da borracha, que embora ainda esteja de p, se encontra em estado
lastimvel de conservao. A casa est desocupada h muito tempo. A famlia
que nela morava, deixou o lugar por considerar que nos ltimos tempos de
residncia, as visagens do rio e das matas estavam aparecendo dentro da casa,
como se tambm quisessem um lugar para morar.
A casa era grande e com muitas dependncias. Toda em paxiuba e
madeira da boa. Ainda hoje, dizem os caboclos, que a sua estrutura no foi
comida pelos cupins. Nela aconteceram grandes festas, que movimentavam os
caboclos de todas as partes do rio. O danarau raiava o dia e os caboclos se
divertiam com as bebidas e as moas do lugar. Mas depois de muito tempo, a
casa caiu em desgraa. Conta-se que uma das moas que trabalhavam na tal
casa desapareceu na beira do rio. Uns disseram que foi coisa de Boto, outros j
falavam que foi a Cobra Grande. Outros, menos crdulos, acreditavam que ela
tivesse, simplesmente se afogado. Mas eles procuraram no rio durante dias e
no acharam nada de corpo. Chegaram a chamar uma rezadeira e um paj da
regio, que despacharam as velas dos afogados para ver se encontravam os
corpos e no resultou em nada. O corpo nunca apareceu.
A casa comeou, ento, a apresentar sinais de assombramento. As
pessoas comearam a ter visagens na beirada do rio e chegaram a ver, varias
vezes a Cobra Grande boiando no estiro do rio.em volta da casa, os animais
se assustavam com alguma coisa que ningum via, e um dia pareceu que
chovia pedras sobre o telhado e as paredes de madeira da casa. A vida no lugar
ficou insuportvel, e como a borracha j estava mesmo decadente, a famlia
resolveu ir-se embora daquele lugar para sempre.
O mato voltou a dominar o local e as fruteiras foram dominadas pela
mata, passando a servir para alimentar as cutias e as pacas que agora vinham
sem medo ao terreiro da casa. Mesmo o antigo terreiro, onde aconteciam os
bailes e as festanas, foi dominado pela capoeira. Os caramanches onde os
caboclos dormiam depois de danar muito j haviam desabado,h muito
tempo, comidos pelos cupins.
A casa se desgastou mas no caiu. Era de boa construo. Mas seu
aspecto agora era lgubre e sombrio. Sem festas e sem gente, ela era moradia
dos bichos do mato. Os caboclos quando passam por ali, ainda se benzem,
porque dizem que a moa desaparecida costuma ser avistada na margem, ao
lado de uma enorme cobra que a guarda. Quem tem essa visagem. Pode estar
certo de que alguma coisa de muito ruim lhe espera. melhor nem sair de
casa nesses dias, pra se evitar acabrunhamento. Aquela casa hoje tida como
morada das cobras grandes, no s por causa da visagem d moa com a cobra
que lhe guarda, mas tambm por causa de um casal de irmos que viraram
cobra e vivem no rio.
Por l ainda so vistos um par de gmeos que freqentavam as festas da
casa. Eram irmo e irm. Danavam a noite toda, em parar. Depois sumiam
nos matos do lugar e s voltavam para descansar no caramancho da casa e ir
embora pela manh. Dizem que esses dois irmos eram incestuosos e que se
amavam na floresta, como s os bichos o fazem. Dizem ainda que eles foram
castigados, por uma maldio da me que morreu de desgosto ao saber o que
eles faziam.
Conta-se que depois do luto, os irmos apareceram de novo na festa e
danaram como todas as vezes, depois dormiram nas redes do caramancho.
Pela manh logo cedo, um dos caboclos reparou o volume daquela rede e foi
espiar, curioso que era, o que que tinha dentro dela. Quando ele boliu na
rede e separou suas varandas, encontrou duas enormes cobras entrelaadas.
Ele se apavorou e chamou os companheiros, que entenderam que aquilo eram
os irmos. Ningum atacou as cobras, porque sabiam que eram encantadas por
causa de seus pecados e que estariam pagando o desgosto que deram a sua
me.
As cobras deslizaram para fora da rede e completamente em paz foram
para o rio. Vez por outra, elas ainda so avistadas juntas nas barrancas do rio
em frente daquela casa visagenta.
Conto 29.
O saci da BR 319.
(pesquisado por Enock Cabral de Lima)
Conto 31.
O sobrado do INSS.
(pesquisado por________________)
Conto 32.
Conto 33.
A campainha do deputado.
(pesquisado por Jos Carlos de S Jnior)
O trem fantasma.
(pesquisado por Maria Regina Crema Velloso Vianna)
202
Francisco Foot Hardman. Trem fantasma a modernidade na selva. So Paulo, Companhia das Letras, 1991,
p. 180.
Mesmo nos stios mais distantes,cortados pela ferrovia, por quase
setenta anos, as histrias de fantasma e os reatos de visagens ainda so
ouvidos. Na reta do Abun, diz-se que os mortos eram sepultados sob os
trilhos, e que sua agonia merecia pouca ateno dos encarregados dos
acampamentos, provavelmente j acostumados ao grande numero de bitos da
obra. Muitos morriam asfixiados em suas prprias redes, com a boca entupida
de panos e trapos, durante as madrugadas, para que os estertores de suas
mortes no perturbassem o sono dos vivos que ainda teriam muito a trabalhar
nos dias seguintes.
Esses jamais conseguiram o repouso. Sua morte desassistida no lhes
franqueou a entrada no repouso eterno, e tendo os trilhos como lpides
sepulcrais, eles ainda vagueiam pela ferrovia fazendo sinal e pedindo a um
trem que passa somente para os mortos, que pare e lhes conduza a algum local
que no conhecemos. Muitas vezes so vistos melanclicos, trazendo ainda os
traos da sua dor e abandono. Outras vezes surgem furiosos, revoltados com
sua morte precoce em um lugar to adverso. Por fim, aparecem ainda
galhofeiros, zombando de todo o seu infortnio e se satisfazendo em causar
arrepios nos vivos que se deparam com eles.
Nas reas dos pntanos de Santo Antnio, famosas pelo alto nmero de
vidas que cobraram para permitir o assentamento dos trilhos, dizem que os
ferrovirios mortos vagueiam em procisses espectrais, onde as turmas de
1873, 1878 e 1907 se misturam, cada qual presa ainda ao seu sofrimento e ao
seu passado.
Nos stios ribeirinhos, um antigo cemitrio, datado ainda do sculo XIX,
h muito perdido, talvez local de repouso dos mortos de 1873 e 1878, deixa
escapar antigas visagens plidas e melanclicas. Os proprietrios dos locais
reclamam que naquelas terras no hnada que prospere.
Alguns fantasmas para se libertarem dos seus tormentos tm aparecido
para pessoas das imediaes, em sonhos e indicado, locais onde teriam
enterrado ouro, moedas e jias, na v esperana de um enriquecimento que
lhes permitissem sair com vida daquele inferno ferrovirio. O ouro que alguns
poucos acumularam, parece ter sido a sua sentena de priso aps a morte.
Ainda precisam se desfazer desta ultima riqueza para obter o descanso eterno.
No antigo cemitrio da Candelria, os espectros passearam por entre as
rvores que dominaram o campo sepulcral at que seu espao fosse invadido
por um ex-ferrovirio que no respeitou o descanso dos seus predecessores e
tentou lotear a rea. As assombraes do Candelria, sem a referencia de suas
sepulturas, destrudas pelo ex- ferrovirio, hoje vagueiam pelos trilhos mal
cuidados.
No meio dos alagados, e nos locais de maior conflito dos trabalhadores
com a natureza e os ndios que habitavam a regio, vultos sombrios percorrem
a noite por entre lamentos e gestos de desespero. So os condenados da
Madeira-Mamor, que nunca obtiveram repouso, nem mesmo depois de
mortos.
Conto 35.
Conto 36.
Conto 37.
Conto 38.
Conto 39.
A policlnica da PM.
(pesquisado por_________________)
Conto 41.
Conto 42.
As luzes do Iata.
(narrado por Srgio William D. Teixeira)
Conto 43.
Conto 45.
Conto 46.
Conto 47.
205
Mary Del Priore. Prefcio de Assombraes do Recife velho. P. 18.
Apndices:
MAPAS, FOTOGRAFIAS, JORNAIS E OUTROS DOCUMENTOS.
Fontes de Pesquisa:
Centro de documentao de Rondnia.
Jornal Alto Madeira
Jornal O Estado.
Jornal Dirio da Amaznia.
Bibliografia.