A Correspondência Entre São Jerônimo e Santo Agostinho

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas


Departamento de Letras Clssicas e Vernculas
Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas

A correspondncia entre So Jernimo e Santo Agostinho:


Traduo e estudo
(Edio bilngue)

Verso corrigida

Autor: Felipe de Medeiros Guarnieri


Orientador: Prof. Dr. Sidney Calheiros de Lima

Dissertao de mestrado apresentada ao Departamento


de Letras Clssicas e Vernculas da Universidade de So
Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Letras
Clssicas.

SO PAULO
2016
Para
D. Paulo Evaristo Arns
eruditissimus
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeo sobretudo a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP),

que financiou essa pesquisa, e que foi muito paciente nas prorrogaes solicitadas para terminarmos a dissertao. Sem

o auxlio financeiro da agncia, providenciado atravs de uma bolsa de mestrado, esse projeto no teria dado frutos;

Agradeo tambm toda equipe do Programa de Ps-Graduao (PPG) do Departamento de Letras Clssicas e

Vernculas (DLCV), que me acolheu durante todo o perodo da pesquisa;

O meu orientador, o professor Dr. Sidney Calheiros de Lima, do DLCV da USP, exemplum maius, sempre

respeitoso ao meu papel como pesquisador, dando-me total liberdade para trilhar meus caminhos intelectuais prprios,

agradeo tanto pelos conselhos e pela pacincia nas tantas revises e correes desta dissertao, quanto pelas

discusses acerca do trabalho;

Os professores Drs. Elaine Cristina Sartorelli, Marcos Martinho dos Santos, ambos do DLCV da USP, e o Prof.

Dr. Luciano Csar Garcia Pinto, do DL da Unifesp, agradeo por terem gentilmente aceito participar das bancas de

qualificao e defesa, trazendo contribuies inestimveis sobre o texto. Sem as crticas, os apontamentos e os

comentrios oferecidos por eles, esta dissertao no teria atingido os mesmos resultados;

Ao professor Dr. Alexandre Hasegawa, humanissimus magister, do DLCV da USP, agradeo tanto a

possibilidade de participar nos grupos de estudo das Odes de Horcio, que contriburam para que eu aperfeioasse

minha leitura do idioma latino, quanto a prontido em acompanhar a minha pesquisa;

Os professores Drs. Joo Angelo Oliva Neto, Paulo Martins, Martin Dinter, Adriano Scatolin, todos do DLCV

da USP, e o professor Lorenzo Mam, do DF da USP, que ministraram os cursos que realizei durante o PPG, agradeo

pelas aulas, atravs das quais pude tomar passos mais seguros no estudo do texto que aqui se apresenta;

O padre Guabiraba, de Araatuba, agradeo por ter se prontificado omnium officiorum caritate a ler e a julgar

minha traduo;

Agradeo de corao aberto a minha famlia: minha me Malu, meus tios Sylvia e Srgio, minha prima

Fernanda: foram eles que me deram as oportunidades e o apoio para persistir nesse trabalho at o fim;

Grace Jamelli, mulher admirvel e adorada, por me ensinar a ser livre, por ter aparecido na minha vida como

um coup de foudre, assim se tornando a melhor e mais importante parte da mesma: qui amant ipsi sibi somnia fingunt;

Os meus amigos, scelerum capita, agradeo pelo companheirismo nos momentos de euforia e de desespero:

Arthur Hussne, Brbara Costa, Bruno Federowski, Caio Grossi, Carlos Liguori, Ceclia Urgatemenda, Daniel Akrabian,

Fernando Schirr, Filipe Chamy, Guilherme Bakunin, Gustavo Borghi, Joo Lyra, Kenji Matsuzaka, Leandro Barbas,

Newton Thisted, Paulo Scheuer, Tadeu Andrade, Vtor Margato;

Enfim, a todos que estiveram ao meu lado, empresto as breves palavras de Jernimo de Estrido: incolumes

vos, et memores mei, Domini nostri Iesu Christi tueatur clementia, fratres vere sancti.
RESUMO

Esta dissertao compreende a traduo, descrio, anlise e anotao crtica das cartas que

compem a correspondncia, produzida de ca. 394/395 a 419, entre Aurlio Agostinho (Tagaste,

atual Souk Ahras, 354 - Hipona, atual Annaba, 430/431), presbtero e posteriormente bispo em

Hipona, e Eusbio Jernimo (Estrido, atual Liubliana, 331 - Belm, 419/420), monge ento

residente em Belm. Esta dissertao tambm compreende um estudo introdutrio dessa

correspondncia, dividido em duas partes: uma interpretao de elementos nas cartas luz do

gnero epistolar helenstico, sua teoria e prtica, conforme estas foram descritas tanto por outros

escritores gregos e latinos, antigos e cristos, quanto por crticos modernos; em seguida, uma

contextualizao histrica do texto, por sua vez fundamentada nos estudos da correspondncia e na

historiografia moderna, com enfoque na biografia de nossos autores, os quais viveram em uma

poca marcada por questes caras ao desenvolvimento da patrstica latina como a discusso acerca

da interpretao e traduo das Sagradas Escrituras, o combate s heresias, e, mais importante, o

papel poltico e social da Igreja Catlica na busca por uma doutrina crist unvoca e ortodoxa

durante a Antiguidade Tardia.

Palavras-chave: Epistolografia Antiga; Retrica; Antiguidade Tardia; Patrstica; Jernimo de

Estrido; Agostinho de Hipona.


ABSTRACT

This dissertation comprehends the translation, analysis, and critical annotation of the letters

that compose the correspondence of Aurelius Augustine (Thagast, modern day Souk Ahras, 354 -

Hippo Regius, modern day Annaba, 430/431), presbyter and then bishop of Hippo, with Eusebius

Jerome (Stridon, modern day Ljubliana, 331 - Bethlehem, 419/420), a monk then living in

Bethlehem, and which were changed between the years of ca. 394/395 and 419. This dissertation

also comprehends an introductory study, in two parts, of the correspondence: first, an interpretation

of elements from it in light of the Hellenistic epistolary genre, according to its theory and practice,

as described both by Greek and Roman, ancient and christian writers, and by contemporary

scholars; afterwards, a historical analysis of the text, supported by studies of the correspondence

and modern historiographic scholarship, with emphasis on biographies of our authors, who lived in

an age marked by important causes to the development of Latin Patristics, such as the correct

interpretation and translation of the Holy Scripture, the battle against heresies, and most importantly

the political and social role played by the Church, in the search for a unified, catholic and orthodox

christian doctrine during Late Antiquity.

Key-words: Ancient Epistolography; Rhetoric; Late Antiquity; Patristics; Jerome of Stridon;

Augustine of Hippo.
NDICE

Nota liminar. Critrios, Mtodos e Sumrio .................................................................................... 5

Abreviaes ..................................................................................................................................... 14

INTRODUO

I. Jernimo e Agostinho, escritores de cartas

I. A. Aspectos preliminares

I. A. 1. O officium epistulare ............................................................................................. 21

I. A. 2. O estudo antigo de epistolografia .......................................................................... 22

I. A. 3. O estudo moderno de epistolografia ...................................................................... 23

I. B. Estrutura

I. B. 1. Definindo a carta .................................................................................................... 26

I. B. 2. Mtodo e materialidade .......................................................................................... 27

I. B. 3. Partes ...................................................................................................................... 28

I. B. 4. Tpicos ................................................................................................................... 32

I. B. 5. Tamanho ................................................................................................................. 33

I. B. 6. Assuntos ................................................................................................................. 34

I. B. 7. Alguns elementos estruturais das cartas crists ...................................................... 35

I. C. Estilo

I. C. 1. O sermo ................................................................................................................... 37

I. C. 2. Princpios da elocutio epistularis ............................................................................ 38

I. C. 3. O genus medium dicendi .......................................................................................... 40

I. C. 4. Cartas de amizade e cartas de ofcio ........................................................................ 41

I. C. 5. A elocutio epistularis na correspondncia entre Jernimo e Agostinho .................. 43

I. C. 6. Alguns elementos estilsticos das cartas crists ........................................................ 48

I. D. Funes

I. D. 1. As situaes da epistolografia .................................................................................. 49

I. D. 2. Epistolografia e retrica ........................................................................................... 50

I. D. 3. Algumas funes das cartas crists .......................................................................... 52

)1
I. E. Contextos

I. E. 1. A religio amicitiae ..................................................................................................... 55

I. E. 2. A caritas crist ........................................................................................................... 57

I. E. 3. Caritas maior ............................................................................................................. 60

I. E. 4. O problema do cristo ....................................................................................... 63

I. E. 5. O sermo humilis cristo ............................................................................................. 65

I. E. 6. Uma disputatio na correspondncia entre Jernimo e Agostinho ............................. 67

I. F. Concluso .............................................................................................................................. 68

II. Jernimo e Agostinho, correspondentes

II. A. Antes da correspondncia

II. A. 1. Apresentao ........................................................................................................... 107

II. A. 2. Agostinho antes da correspondncia ....................................................................... 108

II. A. 3. Jernimo antes da correspondncia ......................................................................... 117

II. B. Primeiro perodo da correspondncia, ca. 394/395-405

II. B. 1. Alpio, o alter ego .................................................................................................... 123

II. B. 2. O incidente em Antiquia ........................................................................................ 125

II. B. 3. O problema da mentira contra os maniqueus .......................................................... 129

II. B. 4. O problema da Lei contra os donatistas .................................................................. 130

II. B. 5. A controvrsia origenista ......................................................................................... 135

II. B. 6. Uma espada lambuzada de mel ........................................................................... 138

II. B. 7. Os ferres da indignao ..................................................................................... 139

II. B. 8. A questo da auctoritas e o exemplum dos apstolos ............................................. 141

II. B. 9. Veritas e auctoritas na traduo das Escrituras ...................................................... 148

II. B. 10. Uma interrupo abrupta ...................................................................................... 152

II. C. nterim, 405-412/415

II. C. 1. A condenao dos donatistas .................................................................................. 153

II. C. 2. A investida dos brbaros ......................................................................................... 155

II. D. Segundo perodo da correspondncia, 412/415-419

II. D. 1. A origem da alma do homem e a concluso do apstolo Tiago ............................. 156

II. D. 2. A polmica pelagiana ............................................................................................. 159

II. D. 3. Agostinho e Jernimo contra Pelgio .................................................................... 164

II. D. 4. Uma interrupo premeditada ............................................................................... 168

II. E. Problemas de correio ........................................................................................................ 169

)2
II. F. Concluso .......................................................................................................................... 172

EPISTVLAE MVTVAE / CARTAS

PRIMEIRO PERODO [394/395-405]

I. Aug. Ep. 28 .................................................................................................... 209 [394/395]

II. - III. Cartas perdidas Aug. subscripta salutatio e Hier. Ep. B ............................... 223 [ca. 397]

IV. Aug. Ep. 40 .................................................................................................... 224 [ca. 397]

V. Aug. Ep. 67 .................................................................................................... 238 [402]

VI. Hier. Ep. 102 .................................................................................................. 242 [402]

VII. Hier. Ep. 103 .................................................................................................. 250 [402-404]

VIII. Aug. Ep. 71 .................................................................................................... 254 [402]

IX. Carta perdida Aug. Ep. C ............................................................................... 264 [402-403]

X. Hier. Ep. 105 .................................................................................................. 265 [403]

XI. Aug. Ep. 73 .................................................................................................... 275 [403/404]

XII. Aug. Ep. 74 <a Presdio> .............................................................................. 294 [403/404]

XIII. Hier. Ep. 112 .................................................................................................. 398 [404]

XIV. Hier. Ep. 115 .................................................................................................. 344 [404]

XV. Aug. Ep. 82 .................................................................................................... 348 [405]

SEGUNDO PERODO [412/415-419]

XVI. Hier. Ep. 126 <a Marcelino e Anapsquias> ................................................... 399 [412]

XVII. Aug. Ep. 166 sobre a origem da alma do homem........................................... 409 [415]

XVIII. Aug. Ep. 167 sobre a concluso do apstolo Tiago ....................................... 452 [415]

XIX. Hier. Ep. 134 ................................................................................................... 480 [416]

XX. Aug. Ep. 180 <a Oceano> .............................................................................. 485 [416]

XXI - XXIV. Cartas perdidas Hier. Ep. D, Aug. Ep. E, Hier. Ep. F e Hier. Ep. G ............... 494 [416]

XXV. Aug. Ep. 19* ................................................................................................... 495 [416]

XXVI. Hier. Ep. 141 ................................................................................................... 503 [418]

XXVII. Hier. Ep. 142 ................................................................................................... 507 [418]

XXVIII. - XXIX. Cartas perdidas Hier. scripta e Aug. Ep. I ...................................................... 510 [418]

XXX. Hier. Ep. 143 .................................................................................................... 512 [419]

XXXI. Aug. Ep. 202A <a Optato> .............................................................................. 517 [419]

* Aug. Retract. 2,45 ........................................................................................... 540 [427-431]

)3
Concordata Epistularum ..................................................................................................................... 547

Bibliografia ......................................................................................................................................... 549

Posfcio. Conflitos de geraes .......................................................................................................... 571

)4
NOTA LIMINAR
Critrios, Mtodos e Sumrio

Esse trabalho fruto de uma pesquisa de mestrado que durou em torno de trs anos, com
financiamento da FAPESP, e cujo objetivo foi traduzir, do latim para o portugus, as cartas trocadas
entre Jernimo de Estrido (331 - 419/420) e Agostinho de Hipona (354 - 430), escritas entre os
anos de 394/395 a 405 e de 412/415 a 419. Nossa verso bilngue e indita em nosso idioma, se
baseia nos oito volumes da Correspondance de So Jernimo editados e traduzidos para o francs
pelo professor e padre Jrme Labourt (1874 - 1957), publicados entre os anos de 1949 e 1963 na
coleo Bud, pela editora parisiense Les Belles Lettres; as nica excees so as cartas Aug. Ep.
180 e Aug. Ep. 19*. Esta ltima descoberta apenas em 1975 por Johannes Divjak, entre outras 28
cartas inditas, cujos textos foram publicados pela primeira vez no volume 88 do corpus scriptorum
ecclesiasticorum latinorum (CSEL) seis anos depois.
O texto de Labourt foi, por sua vez, baseado na ltima edio crtica da epistolografia de
Jernimo, a de Isidore Hilberg, publicada nos anos de 1910, 1912 e 1918 nos volumes 54, 55 e 56
do CSEL (trade completada por um ndice em 1998, preparado por Margit Kamptner). Ainda que
tomemos como referncia edies da epistolografia jeronimiana, preciso citar aquelas das cartas
de Agostinho: a princpio, o trabalho de Alois Goldbacher, o responsvel pela edio crtica da
epistolografia agostiniana nos volumes 34,1, 34,2, 44, 67 e 68 do CSEL, publicados nos anos de
1895, 1904, 1911 e 1923 respectivamente; e a reviso que dela faz atualmente Klaus Detlef Daur,
em publicao na srie latina do corpus christianorum, series latina (CCL). At ento, trs volumes
de Daur foram publicados nos anos de 2004, 2005 e 2009, que perfazem as cartas de nmero 1-139
do bispo de Hipona. Importante tambm salientar que as cartas trocadas entre os escritores foram
reunidas em uma edio impressa em 1931 por Joachim Schmid no volume 22 do Florilegium
Patristicum.
Outrossim, tivemos em mos sempre duas edies modernas da correspondncia para nos
orientar durante o trabalho: a do professor Alfons Frst, da Westflische-Wilhelms Universitt
Mnster, intitulada Epistulae mutuae/Briefwechsel, com traduo para o alemo, publicada em 2002
em dois tomos como volume 41 das Fontes Christiani, pela editora alem Brepols, e cujo texto por
sua vez baseado nos volumes de Alois Goldbacher; e a edio da professora Carole Fry, da
Universit de Genve, intitulada Lettres croises entre Jrme et Augustin, com traduo para o
francs, publicada em 2010 pela Les Belles Lettres em conjunto com as ditions J.-P. Migne, e cujo
)5
texto igualmente baseado nos volumes de Labourt ( no texto publicado na edio dela, porm,
que baseamos nossa traduo das cartas Aug. Ep. 180 e Ep. 19* e de Retract. 2,45 de Agostinho no
apndice). Alm disso, recorremos, sempre que necessrio, aos textos dos volumes XXII
(epistolografia jeronimiana, total de 154 cartas) e XXXIII (epistolografia agostiniana, total de 268
cartas) da Patrologia Latina publicados por Jacques-Paul Migne em 1864, que, no caso das cartas de
Jernimo, baseado no texto de Domenico Vallarsi, preparado entre 1766 e 1772; e, no das cartas
de Agostinho, baseado no texto dos monges beneditinos de Saint Maur, preparado em 1768.
A correspondncia mtua de Agostinho e Jernimo perfaz supostamente trinta e uma cartas;
usamos este advrbio pois, neste caso, no podemos saber ao certo quantas cartas de fato compem
esse corpus; o texto que temos nos chegou incompleto. Nove dessas cartas so de Agostinho para
Jernimo (Aug. Ep. 28; 40; 67; 71; 73; 82; 166; 167; 19*), nove de Jernimo para Agostinho (Hier.
Ep. 102; 103; 105; 112; 115; 134; 141; 142; 143), nove esto perdidas (Aug. subscripta salutatio;
Ep. C; E; I e Hier. Ep. B; D; F; G; scripta), e quatro so para outros correspondentes (Aug. Ep. 74
ad Praesidium; Hier. Ep. 126 ad Marcelinum; Aug. Ep. 180 ad Oceanum; Aug. Ep. 202A ad
Optatum). Os autores teriam trocado, portanto, vinte e sete cartas entre si (treze de Agostinho,
contra catorze de Jernimo), das quais uma tera parte foi perdida.
O conjunto das cartas que traduzimos pode ser disposto em dois perodos distintos, os quais
se confundem com contextos e discusses bem demarcados: quinze cartas, doze suprstites e trs
perdidas, escritas entre ca. 394/395 a 405 (Aug. Ep. 28; 40; 67; 71; 73; 74; 82 e Hier. Ep. 102; 103;
105; 112; 115, mais cartas perdidas Aug. subscripta salutatio, Hier. Ep. B e Aug. Ep. C), e tambm
compostas nos contextos da polmica donatista (no caso de Agostinho) e origenista (no caso de
Jernimo); e dezesseis cartas, dez suprstites e seis perdidas, escritas entre 412 e 419 (Aug. Ep.
166; 167; 180; 19*; 202A e Hier. Ep. 126; 134; 141; 142; 143, mais perdidas Hier. Ep. D; F; G;
scripta e Aug. Ep. E; I), todas as quais se do no contexto da polmica pelagiana.
Por fim, as mensagens suprstites trocadas entre os autores esto em sua maioria encerradas
nos volumes III, V, VII e VIII da Correspondance de Labourt, com duas excees, conforme
mencionamos acima: a carta Aug. Ep. 180 ad Oceanum e a carta Aug. Ep. 19* ad Hieronymum,
ambas as quais no encontram textos correlatos sequer na epistolografia jeronimiana, mas que
aparecem em todas as edies mais recentes da correspondncia (embora a carta Aug. Ep. 202A no
esteja presente nestas edies, optamos por traduzi-la, uma vez que ela se encontra na edio de
Labourt, e visto que tambm h texto correlato para ela na epistolografia jeronimiana, a saber, Hier.
Ep. 144). H outras cartas nas quais Agostinho menciona suas cartas com Jernimo, quais Aug. Ep.
169 a Evdio e Aug. Ep. 190 a Optato, mas nenhuma delas encontra texto correlato no ordo
)6
epistularum jerominiano. No encontramos em nenhuma das edies modernas uma resposta para
esta situao, nem o motivo de Aug. Ep. 202A no estar mais includa nas edies recentes da
correspondncia entre os autores, ou sequer a razo desta ser a nica dentre essas trs cartas Aug.
Ep. 169; 180; 190 que segue entre as cartas de Jernimo.

Nossa dissertao se estrutura em duas partes: um estudo introdutrio, que est dividido em
dois captulos, seguido da traduo anotada das cartas, esta acompanhada dos textos originais.
De incio, o estudo introdutrio da correspondncia foi feito em vista de situar o leitor e
apresentar-lhe alguns pressupostos e preliminares de leitura. Esta parte introdutria se concentrou
em analisar, de maneira geral, as cartas trocadas entre Jernimo e Agostinho na chave do gnero
epistolar helenstico e da historiografia.
No primeiro captulo, intitulado Jernimo e Agostinho, escritores de cartas, analisamos
alguns aspectos e vnculos que as cartas trocadas entre os autores guardam com a teoria e a prtica
da epistolografia na Antiguidade, apoiados em alguns autores que estudaram a correspondncia
entre Jernimo e Agostinho, assim como naqueles que refletiram sobre o gnero epistolar, neste
caso tanto as fontes antigas os tratadistas helensticos, os rtores, os prprios escritores de cartas
quanto os pesquisadores modernos; buscamos enfatizar os distintos elementos genricos
presentes nas cartas, os quais se devem uns tradio da epistolografia helenstica e outros
tradio da epistolografia crist, em especial aquela que est se desenvolvendo ento no contexto da
cristandade latina.
No segundo captulo, intitulado Jernimo e Agostinho, correspondentes, apresentamos um
histrico da correspondncia mtua entre os autores, enfatizando os temas l discutidos, os quais
explicamos e contextualizamos com o apoio de biografias dos autores; de historiadores que
estudaram o perodo em que esses viveram, a saber, a passagem do sculo IV ao V da era crist, a
qual se encerra no recorte temporal que se convenciona chamar na academia de Sptantike, Late
Antiquity ou Antiguidade Tardia*; e de outros estudiosos da correspondncia.
Depois do estudo introdutrio, apresentamos nossas tradues anotadas, parte principal de
nosso trabalho: as Epistulae Mutuae (Cartas), as quais so precedidas cada uma por uma
introduo individual e tambm por sua verso original em latim. So trinta e dois textos no total,
abarcando as vinte e duas epstolas suprstites e menes s nove perdidas, por vezes conjuntas.
Como apndice, apresentamos um excerto das Revises de Agostinho onde so mencionadas Aug.
)7
Ep. 166-167 a Jernimo. Aqui, a situao das notas merece breve comentrio: no apenas
referenciais, mas tambm elucidativas e, por vezes, discursivas; nelas, parte da anlise das cartas j
est contida. Recorremos a esta estratgia por concluir que seria adequado, ainda que se constitusse
em um risco, construir uma espcie de metatexto para trabalhar um gnero que essencialmente
metalingustico e autoreferencial.
Apresentamos, aps as tradues, uma Concordata Epistularum, na qual elaboramos um
censo com todas as edies da correspondncia que utilizamos, desde a Patrologia Latina.
Aps, seguem-se as referncias bibliogrficas utilizadas na pesquisa, tanto de autores
antigos quanto de modernos.
Por fim, anexamos um posfcio, intitulado Conflitos de geraes, escrito exclusivamente
para a verso corrigida da dissertao.

A fortuna crtica sobre a correspondncia entre Jernimo e Agostinho extensa, remontando


ainda Antiguidade, e uma leitura compreensiva dela tarefa inexequvel. Com efeito, poder-se-ia
redigir uma tese sobre o assunto. Sobre as cartas trocadas entre nossos autores escreveu j Paulo
Orsio, logo aps a morte do bispo de Hipona, e h um rol considervel de leitores famosos dessa
correspondncia, entre os quais Toms de Aquino, Petrarca, Martinho Lutero e Erasmo de Roterd.
Esta fortuna, entretanto, foi, at tempos recentes, domnio de telogos, que se concentraram em
leituras conteudsticas das cartas e pouco disseram sobre seus aspectos formais e estruturais. Disso
no escaparam os patronos modernos dos estudos sobre nossa correspondncia, a saber, M.
Molkenbuhr (1796), S. C. W. Bindesbll (1825), J. A. Mhler (1839), e F. Overbeck (1877). Ralph
Hennings (1994), cuja impositiva discusso, Der Briefwechsel zwischen Augustinus und
Hieronymus und ihr Streit um den Kanon des Alten Testaments und die Auslegung von Gal. 2, 11-14
(Londres: Brill, 1994), que inteiramente dedicada s discusses de um nico perodo da
correspondncia, representa o znite desta tradio.
Os pesquisadores que procuraram analisar as cartas dos autores luz do gnero epistolar so
mais recentes: foi Donatien De Bruyne, em seu artigo pioneiro La correspondance change entre
Augustin et Jrme, publicado em 1932 na revista Zeitschrift fr neutestamentlich Wissenschaft,
quem praticamente inaugurou essa vertente. A mesma leitura foi posteriormente empreendida, com
grande nfase e riqueza de detalhes, por Alfons Frst (1999) em sua tese de livre docncia
(Habilitationsschrift), intitulada Augustins Briefwechsel mit Hieronymus (Mnster: JAC, 1999), de
)8
longe a obra mais completa j escrita sobre nosso objeto de estudo: ela nos serviu de fundamento
para boa parte de nossas concluses (curiosamente, Frst no d grande ateno a essa vertente em
sua traduo de 2002, voltando a demorar-se em intrincadas querelas teolgicas). Aps Frst,
Carole Fry tambm se aprofundou nos aspectos epistologrficos da correspondncia em sua edio
das Lettres croises (2010), e somos imensamente gratos, em especial s notas da professora, por
chamar nossa ateno para os aspectos lingusticos do texto com que trabalhamos. Mais
recentemente, Jennifer Ebbeler em artigos de 2007 e 2009, e em sua magnfica obra Disciplining
Christians (Oxford: Oxford University Press, 2012) envereda pelo mesmo caminho, sendo de
longe a mais importante pesquisadora contempornea da correspondncia de Agostinho no que diz
respeito s funes e aos contextos das cartas deste autor, em especial ao problema da amicissima
reprehensio que discutimos ao longo da introduo.
Dado este cenrio, tivemos de recorrer a outros pesquisadores para nosso estudo de gnero,
entre os quais citamos: Stanley K. Stowers, autor de Letter writing in Greco-Roman Antiquity
(Philadelphia: The Westminster Press, 1986) e Patricia A. Rosenmeyer, que escreveu Ancienty
Epistolary Fictions (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), ambos os quais nos fizeram
enxergar os liames da construo e funo social das cartas na Antiguidade; Abraham J. Malherbe
em Ancient Epistolary Theorists (Atlanta: Society of Biblical Literature, 1988), por oferecer uma
antologia inestimvel dos tratadistas helensticos que discutiram a epistolografia; e, finalmente,
Michael Trapp em Greek and Latin letters (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), por
elucidar os diversos aspectos formais e tpicos das cartas, trazendo bibliografia adicional. A prpria
Ebbeler est ancorada nesses autores.
O estudo histrico, por sua vez, coloca um problema: a fortuna crtica, inclusas as obras de
Frst (1999; 2002) e Fry (2010), colocou um grande peso neste aspecto no que concerne s cartas
finais trocadas entre os autores, as quais esto intimamente ligadas polmica pelagiana. No
houve, infelizmente, o mesmo cuidado no tocante s cartas iniciais; em relao ao seu contexto,
apenas Cole-Turner (1980), at onde pudemos conferir, procurou relacion-las s polmicas
donatista e maniqueia. Ainda que seja uma ponto de acordo que os contextos em que as cartas
foram escritas sejam de grande importncia para as discusses (e mesmo para questes relativas ao
gnero) que nelas se encerram, carecemos de uma obra totalmente dedicada ao tema.
Isso no quer dizer que nossa correspondncia no tenha recebido ateno dos historiadores:
pelo contrrio, ela sempre foi amplamente discutida em estudos sobre Antiguidade Tardia e
cristianismo antigo. Dito isso, recorremos, nessa parte do estudo, a esse tipo de pesquisa
historiogrfica. Nessa empresa, seguimos John Norman Davidson Kelly (1909 - 1997), cuja
)9
biografia de Jernimo, Jerome: His life, writings, and controversies (Londres: Duckworth, 1975),
parece nos trazer o monge de Belm de volta vida, com todas as suas ansiedades, angstias e
imperfeies; e Peter Brown, pioneiro nos estudos sobre Antiguidade Tardia, cuja obra The world of
Late Antiquity (Nova Iorque: W. W. Norton & Co., 1971;1989) persiste firme em sua interpretao,
e cuja biografia de Agostinho, Augustine of Hippo (Berkeley: Un. of California Press, 2013) nada
deve vita Augustini de Paulo Orsio em nvel de detalhes e talento narrativo. Utilizamos tambm
as obras de Henry Chadwick, The Early Christian Church (Londres: Penguin, 1967) e J. N. D.
Kelly em Early Christian Doctrines (Londres: continuum, 1977), para aspectos gerais do perodo,
alm de, em menor grau, livros de H.-I. Marrou (1938; 1955), Averil Cameron (1993a; 1993b), e
Stefan Rebenich (2012). Ademais, acadmicos contemporneos como John James ODonnell
(1991) e Mark Vessey (2012) tm tambm buscado contextualizar a discusso de Jernimo com
Agostinho em temticas mais amplas concernentes s obras e vida dos autores.
Os textos com os quais trabalhamos foram anteriormente analisados, no Brasil, pelo bispo
Dom Paulo Evaristo Arns em obra a que devemos imensa estima e louvor, A tcnica do livro
segundo So Jernimo, tese de doutorado defendida pelo autor na Sorbonne no ano de 1953, e
enfim publicada em nosso pas, em traduo para o portugus de Cleone Augusto Rodrigues, em
2007 pela editora Cosac Naify. O brilhante estudo de Arns abrange toda a obra de Jernimo,
tratando do suporte material em que seus livros foram escritos at a difuso e o arquivamento dos
documentos, no deixando de discutir as cartas que o autor trocou com Agostinho. Vale dizer
tambm que um dos temas especficos do primeiro perodo da correspondncia, a saber, a discusso
sobre a traduo das Escrituras para o latim, foi amplamente discutido pelo professor Luciano Csar
Garcia Pinto em sua tese de doutorado, A escritura no o nada: Comentrios bblicos de
Jernimo e Agostinho ao Gnesis e o efeito-texto, defendida na Unicamp em 2013.
Explicitados alguns dos autores que nos conduziram em nossa pesquisa, devemos deixar
claro que nosso objetivo foi elaborar um estudo introdutrio da correspondncia travada entre
Jernimo e Agostinho. Vale ressaltar que a extenso dos textos traduzidos, coadunada com o prazo
exguo de um mestrado, no nos deixou produzir uma anlise exaustiva, a qual demandaria um
trabalho parte. Que o leitor judicioso tenha a benevolncia de nos perdoar se todos os problemas
tratados no foram completamente resolvidos: afinal, os prprios autores que estudamos raramente
chegam a algum acordo em suas cartas.

)10
Naturalmente, o leitor ter questionado qual a justificativa desse trabalho. Respondemos
com as palavras que Plnio, o Jovem, dirigiu a seu amigo Fusco Salinator:

utile in primis, et multi praecepiunt, vel ex Graeco in Latinum vel ex Latino vertere in Graecum. quo genere
exercitationis proprietas splendorque verborum, copia figurarum, vis explicandi, praeterea imitatione optimorum
similia inveniendi facultas paratur; simul quae legentem fefellissent, transferentem fugere non possunt.
intellegentia ex hoc et iudicium adquiritur.

Em primeiro lugar til, e conselho de muitos, verter do grego para o latim, ou do latim para o grego. Com esse
tipo de exerccio, prepara-se a preciso e riqueza das palavras, a abundncia de expresses, o vigor da exposio, e,
alm disso, por meio da imitao dos melhores modelos, uma aptido para encontrar analogias; ao mesmo tempo,
no pode escapar a um tradutor algo que tenha talvez passado despercebido de um leitor. Atravs desse dever,
adquire-se tanto experincia como senso crtico.
(cf. Plin. Ep. 7,9,1-2)

Acreditamos que nossa verso ser til sobretudo a outros estudiosos de epistolografia
antiga e de literatura crist. O carter indito de nossa traduo por si j nos parece justificativa
suficientemente boa.
Quanto ao mtodo de traduo que utilizamos, poderamos, para express-lo, recorrer ao
prprio Jernimo de Estrido. Em uma carta endereada a seu amigo Pamquio, o Estridonense
expe o que, para ele, seria o optimum genus interpretandi, o melhor gnero de traduo ou
interpretao, pois o trabalho tradutrio parece nunca prescinder do interpretativo para o autor.
Jernimo adota uma metodologia de rica fortuna: apoiado nos maiores da tradio latina, sobretudo
em Ccero (cf. Cic. Opt. gen. orat. 13-14; Fin. 3,15), ele considera:

ego enim non solum fateor, sed libera voce profiteor me in interpretatione Graecorum absque Scripturis Sanctis,
ubi et verborum ordo mysterium est, non verbum e verbo sed sensum exprimere de sensu. habeoque huius rei
magistrum Tullium, qui Protagoram Platonis et Oeconomicum Xenofontis et Aeschini et Demosthenis duas contra
se orationes pulcherrimas transtulit. [...] Terentius Menandrum, Plautus et Caecilius veteres comicos interpretati
sunt: numquid haerent in verbis, ac non decorem magis et elegantiam in translatione conservant? quam vos
veritatem interpretationis, hanc eruditi nuncupant.

Eu, por minha vez, no apenas confesso, mas declaro em alto e bom som que, ao traduzir os gregos exceto nas
Santas Escrituras, onde a ordem das palavras tambm mistrio , eu no o fao exprimindo palavra por palavra,
mas o sentido a partir do sentido. Nessa empresa tenho por mestre Tlio, que traduziu o Protgoras de Plato e o
Econmico de Xenofonte, e dois belssimos discursos de squines e Demstenes, um contra o outro. [...] Terncio
traduziu Menandro; Plauto e Ceclio, os velhos comedigrafos: ser que eles se agarram s palavras, ou no seria,
antes, a adequao e a elegncia delas aquilo que eles conservam na traduo? O que vs chamais de verdade da
traduo, os homens letrados chamam de m imitao.
(cf. Hier. Ep. 57,5)

)11
Do mesmo modo que o monge de Belm, procuramos non verbum e verbo sed sensum
exprimere de sensu, no exprimir palavra por palavra, mas o sentido a partir do sentido,
adaptando o texto latino para o portugus, atentando para a exatido das palavras, deixando as
possveis ambiguidades e imperfeies do original, mas cientes das limitaes e especificidades da
nossa lngua. Jernimo e Agostinho foram grandes escritores de sua poca e estilistas
inequiparveis do latim tardio; foi preciso dar conta, no texto, tanto do aspecto artstico quanto do
acadmico. No entanto, uma traduo interpretativa, acompanhada de aparato crtico, teve
humildemente de prevalecer. Decidimos, no caso, preservar o tu e suas conjugaes presentes no
original, sempre para diferenci-lo do ele, vs, e dos apelativos.
Tendo optado por uma verso sinttica e morfologicamente a mais prxima possvel do
original, isto , que estivesse ancorada na lngua de sada, foi preciso, no entanto, empreender
algumas modificaes para tornar o texto coerente, fluido, compreensvel e legvel em bom
portugus. Procuramos adaptar alguns provrbios de acordo com ditados populares de nossa lngua.
No que diz respeito ao registro vocabular, adaptamos tambm algumas passagens para deix-las
mais altivas, como quando Jernimo ou Agostinho citam autores clssicos (cujo latim, aos olhos
deles, tambm era vetusto, como o portugus de Cames para ns aqui as tradues de
Odorico Mendes vieram bem a calhar), ou para deix-las mais popularescas, caso de quando os
autores incorporam anedotas e servem-se, por vezes, at do baixo calo.
Traduzimos essa coletnea tendo em mente tanto o leitor erudito, estudioso de Patrstica ou
de epistolografia antiga, quanto o leigo, que porventura a ler primeiramente por gosto; quele, sua
curiositas pode ser alimentada atravs do estudo e das notas, nas quais citamos e traduzimos a
maioria das fontes mencionadas, alm de trazer informaes complementares que porventura
fugiram do escopo do trabalho. O carter algo variado do estudo se justifica pela gama vastssima
de assuntos abordados pelos autores em suas cartas mtuas, nas quais o leitor encontrar discusses
de linguagem, teologia, filosofia, filologia, morfologia, sintaxe, estilstica, crtica textual, edtica,
codicologia, paleografia, metodologia de traduo, observaes sobre a vida monstica, sobre o
cenrio poltico e cultural da poca, sobre o prprio gnero epistolar... Ainda que nossa anlise
tenha se centrado em um estudo da correspondncia a partir de sua relao com o gnero epistolar e
com questes de histria, foi necessrio dar ateno para essas tantas outras temticas, de maneira a
elucidar essa imensa gama de assuntos discutidos pelos autores. Sendo assim, nosso objetivo, ao
redigir o estudo das cartas e as notas, foi sempre elucidar a coletnea que o centro de nossa
pesquisa; procuramos nunca ultrapassar essa fronteira.

)12
Por fim, mais um adendo sobre o texto traduzido. O leitor perceber o excesso de travesses
e parnteses, o portugus por vezes truncado, no s em cartas de Jernimo, mas sobretudo nas de
Agostinho. Adotamos esse tipo de pontuao e estilo para recriar os efeitos da sintaxe por vezes
tortuosa dos autores, que no latim se d pela abundncia de subordinaes, pela localizao
incomum das palavras, por pronomes mal referenciados (os quais suplementamos, nalgumas vezes,
com chevrons), por construes estranhas de perodos, por interjeies e comentrios parenttica
que no raro invadem a narrao. No h como saber se tais problemas se devem distrao dos
copistas desse corpus epistularum a tradio manuscrita da correspondncia no homognea,
chegou-nos incompleta e ainda contm diversas cartas adicionadas em momentos diferentes ou
a uma oralidade sempre espreita em cartas que foram ditadas. Seja como for, trata-se de uma
estratgia que privilegia a aproximao do texto epistolar com o sermo, uma modalidade de uso da
palavra que pretende imitar uma conversa familiar (que, no caso dos nossos autores, est longe de
ser simples, porm). Nosso modus operandi inspirado, assim, nos prprios autores antigos que
escreveram sobre a epistolografia, os quais diversas vezes definiram-na como uma das partes de
uma conversao com uma pessoa ausente.

____________________
* O conceito de Antiguidade Tardia como hoje o compreendemos foi construdo a partir de Peter Brown em The world
of Late Antiquity (1971;1989), mas o termo foi cunhado, ainda no sculo XIX, por Jacob Burckhardt como sptantike
Zeit em sua obra Die Zeit Konstantins des Groen (1853), sendo retomado por Alois Riegl nos dois volumes de Die
sptrmische Kunstindustrie (1901-1902). Entendemos por Antiguidade Tardia o conjunto de processos histricos ao
redor da bacia mediterrnea, no territrio que vai do Imprio Romano at o Persa, definidos dentro de um perodo de
transio, do sculo III ao VIII d. C., entre o mundo antigo e o medieval. A Antiguidade Tardia caracteriza-se pela lenta
dissoluo do mundo mediterrneo que oferecia razes polticas e ideolgicas ao mundo antigo; trata-se, assim, de um
termo aparentado de Late Empire ou Imprio Tardio, noo estabelecida por Gibbon (1776-1789) e estudada por
Jones (1962). Entra em cena um conjunto de mutaes, redefinio de fronteiras e de valores, mudanas que consistem
na abertura de uma nova sociedade e de novas identidades, cujo registro era ainda desconhecido, e em cuja dinmica o
cristianismo se desenvolve e se solidifica. Uma sntese histrica do conceito e do perodo em discusso est em Clark
(2011).

Excursos sobre a constituio da tradio manuscrita da correspondncia esto em Hennings (1994) p. 63-106,
335-383. Frst (1999) p. 235-247 faz uma sntese da histria da recepo da correspondncia; id. (2002) p. 87-93
resume a histria impressa. Lietzmann (1958) e Divjak (1983) so boas fontes para a formao estrutural da
correspondncia de Agostinho; Conring (2001) para a de Jernimo.

)13
ABREVIAES

As abreviaes de autores antigos seguem o padro universal presente nos dicionrios e sero
explicitadas apenas na Bibliografia.
As abreviaes de peridicos seguem o padro da Anne Philologique. Discriminamo-las:

AASF Annales Academiae Scientiarum Fenniciae. Helsinki.


ACR Australasian Catholic Record. Sydney.
AEcR American Ecclesiastical Review. Washington, DC.
AJP American Journal of Philology. Baltimore.
ASEs Annali di Storia dellEsegesi. Bologna.
AuA Antike und Abendland Zeitschrift. Berlin.
AugSt Augustinian Studies. Villanova.
BeO Biblia e Oriente. Milano.
BJRL Bulletin of the John Rylands Library. Manchester.
BLE Bulletin de Littrature Ecclsiastique. Toulouse.
BN Biblische Notizen. Bamberg.
BNJ Byzantinisch-Neugriechische Jahrbcher. Berlin.
CBQ Catholic Biblical Quarterly. Washington, DC.
CCL Corpus Christianorum. Series Latina. Turnholt.
CM Classica et Medievalia. Kopenhagen.
CrSt Cristianesimo nella Storia. Bologna.
CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum. Vindobonae.
CUAPS Catholic University of American Patristic Studies. Washington, DC.
DCG Didactica Classica Gandensia. Bruxelles.
EH Entretiens Hardt. Vanduvres.
FaCh Fathers of the Church. Washington, DC.
FC Fontes Christiani. Freiburg.
GCS Die griechischen christlichen Schriftsteller der ersten drei Jahrhunderte. Berlin.
HStCP Harvard Studies in Classical Philology. Harvard.
HThR Harvard Theological Review. Harvard.
JAC Jahrbuch fr Antike und Christentum. Mnster.
JECS Journal for Early Christian Studies. Baltimore.
JRS Journal of Roman Studies. Cambridge.
JTS Journal of Theological Studies. Cambridge.
KEK Kritisch-exegetischer Kommentar ber das Neue Testament. Gttingen.
LC Letras Clssicas. So Paulo.
LCL Loeb Classical Library. London.
LEC Library of Early Christianity. Philadelphia.
MAug Miscellanea Agostiniana. Roma.
MMGH.AA Monumenta Germaniae Historica: Auctores Antiquissimi. Hannover
MS Modern Schoolman. Saint Louis.
NA Nuntius Aulae. Wynewood.
NTS New Testament Studies. London.
PF Papyrologica Florentina. Florentiae.
PG Patrologiae cursus completus. Series Graeca, ed. J.-P. Minge. Parisiis.
PL Patrologiae cursus completus. Series Latina, ed. J.-P. Minge. Parisiis.
)14
QJS Quarterly Journal of Speech. London.
RAM Revue dAsctique et de Mystique. Toulouse.
RBen Revue Bndictine de critique, dhistoire et de littrature religieuses. Maredsous.
RCF Revue du Clerg Franais. Paris.
REAug Revue des tudes Augustiniennes. Paris.
RechAug Recherches Augustiniennes. Paris.
REL Revue des tudes Latins. Paris.
RFNS Rivista di Filosofia Neo-Scolastica. Milano.
RHE Revue dHistoire Ecclsiastique. Louvain.
RM Rheinisches Museum fr Philologie. Kln.
RSPT Revue des Sciences Philosophiques et Thologiques. Paris.
RSR Recherches de Sciences Religieuses. Paris.
RUO Revue de lUniversit dOttawa. Ottawa.
SBEC Studies in the Bible and Early Christianity. Lewiston.
SBL Sources for Biblical Study. Atlanta.
SBLSP Society of Biblical Literature Seminar Papers. Atlanta.
ScC Scuola Cattolica. Milano.
SCh. Sources chrtiennes. Paris.
SE Sacris Erudiri. Oudenburg.
SJOT Scandinavian Journal of the Old Testament. Helsinki.
STA Studia et Testimonia Antiqua. Bavariae.
STAC Studien und Texte zu Antike und Christentum. Tbingen.
StPatr Studia Patristica. Berolini.
TBAW Tbinger Beitrge zur Altertumswissenchaft. Tbingen.
Teubner Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. Stutgardiae et Lipsiae.
ThQ Theologische Quartalschrift. Tbingen.
TU Texte und Untersuchungen zur Geschichte der altchristlichen Literatur. Berlin.
VetChr Vetera Christianorum. Bari.
VigChr Vigiliae Christianae. Amsterdam.
ZKG Zeitschrift fr Kirschengeschichte. Stuttgart.
ZKTh Zeitschrift fr Katolische Theologie. Wien.
ZNW Zeitschrift fr die neutestamentliche Wissenschaft. Berlin.
ZPE Zeitschrift fr Papyrologie und Epigraphik. Bonn.

Atentamos tambm para alguns textos de referncia utilizados ao longo da dissertao:

ACF Bblia Sagrada baseada no Texto Recebido, Almeida Corrigida e Fiel.


AugA Augustine through the Ages. An Encylopedia. Grand Rapids (cf. Fitzgerald).
Blaise Dictionnaire latin-franais des auteurs chrtiens. Turnhout (cf. Blaise).
LSJ A Greek-English Lexicon. Oxford (cf. Liddell-Scott).
LS A Latin dictionary based on Andrews edition of Freunds Latin dictionary. Oxford (cf. Lewis & Short).
LThK Lexikon fr Theologie und Kirche, 11 vols. Freiburg, Basel, Wien (cf. Kasper).
NDPAC Nuovo Dizionario Patristico e di Antichit Cristiane, 3 vols. Genova-Milano (cf. Di Berardino).
NTG Novum Testamentum Graece Nestle-Aland XXVIII editionem (NA28 - 2012). Stuttgart.
Otto Die Sprichwrter und sprichwrtlichen Redensarten der Rmer (Teubner). Lipsiae (cf. Otto).
PCBE Prosopographie Chrtienne du Bas-Empire, 2 vols. Paris (cf. Mandouze; Pietri).
PLRE The Prosopography of the Later Roman Empire, 4 vols. Cambridge (cf. Jones).
Schrevelius Lexicon manuale Graeco-Latinum et Latino-Graecum. Parisiis (cf. Schrevelius).

)15
Septuaginta Septuaginta Rahlfs-Hanhart editionem alteram (RH2 - 1979). Stuttgart.
Vulgata Biblia Sacra iuxta vulgatam versionem Weber-Gryson V editionem (WG5 - 2007). Stuttgart.

Seguem tambm as abreviaes dos textos bblicos, cannicos e deuterocannicos:

Abd Obadias Jos Josu


Act Atos dos Apstolos Jud Carta de Judas
Agg Ageu Lam Lamentaes
Am Ams Lc Evangelho de Lucas
Ap Revelao (Apocalipse) Lev Levtico
Bar Baruque 1-2 Macabeus
1-2 Chr Livros das Crnicas Mal Malaquias
Col Carta de Paulo aos Colossenses Mc Evangelho de Marcos
1-2 Cor Cartas de Paulo aos Corntios Mich Miqueias
Ct Cntico dos Cnticos Mt Evangelho de Mateus
Dan Daniel Nah Naum
Dt Deuteronmio Neh Neemias
Eccl Eclesiastes Num Nmeros
Eph Carta de Paulo aos Efsios Os Oseias
Esd Esdras Phil Carta de Paulo aos Filipenses
Est Ester Phm Carta de Paulo a Filemo
Ex xodo Pr Provrbios
Ez Ezequiel Ps Salmos
Gal Carta de Paulo aos Glatas 1-2 Ptr Cartas de Pedro
Gen Gnesis 3-4 Livros dos Reis
Hab Habacuque Rom Carta de Paulo aos Romanos
Hbr Carta de Paulo aos Hebreus Ru Ruth
Is Isaas 1-2 Sam Samuel
Jac Carta de Tiago Sap Livro da Sabedoria
Jdc Juzes Sir Sirach
Jdt Judite Soph Sofonias
Jer Jeremias 1-2 Th Carta de Paulo aos Tessalonicenses
Jo Evangelho de Joo 1-2 Tim Carta de Paulo a Timteo
1-3 Cartas de Joo Tit Carta de Paulo a Tito
Job J Tob Tobias
Joel Joel Zach Zacarias
Jon Jonas

Todos os trechos da Bblia citados em portugus so da ACF. Textos e termos em latim, grego e
hebraico foram traduzidos por ns, salvo quando especificamos o tradutor; termos em grego citados no texto
original latino foram mantidos sem transliterao, e a eles apusemos notas explicativas. Textos e termos em
lnguas modernas permanecem no original, sem traduo.
As fontes para o corpus textual que traduzimos esto todas elencadas nas referncias bibliogrficas.

)16
)17
)18
, ,
.
2 Cor 10:11

)19
INTRODUO

)20
I. Jernimo e Agostinho, escritores de cartas

I. A. Aspectos preliminares
I. A. 1. O officium epistulare
Quando Agostinho e Jernimo passaram a se corresponder em idos de 394/395, a prtica de
escrever cartas precedia de longa tradio no mundo helenstico1. No por menos que os textos
trocados entre eles se distinguem por acrscimos, modificaes e supresses de princpios do
gnero epistolar, esses que em grande parte se devem ao fato de esses autores serem cristos2. Neste
captulo, estudaremos os vnculos que essa correspondncia guarda com a epistolografia antiga.
evidente que uma carta no se encerra em suas caractersticas genricas, e procuraremos
demonstrar a particularidade da correspondncia trocada entre os dois autores ao longo de nossa
dissertao. No entanto, o gnero epistolar antigo apresenta um carter bem marcado, que
permaneceu em larga parte constante ao longo da Antiguidade, e que precisa ser decodificado. Isso
nos importante por duas razes: primeiro, as cartas apresentam diversos elementos estruturais,
estilsticos, funcionais e contextuais que so convencionais ao gnero e que tm efeito retrico
importante na construo deste; segundo, e mais interessante, ver-se- que a relao conturbada que
Agostinho travar com Jernimo se deve, nossa concluso, a estratgias discursivas que esto
alm da epistolografia, e a deslizes na observao de algo que os antigos chamavam de officium
epistulare, dever epistolar3.
Pertence ao officium epistulare tanto a srie de elementos estruturais, quanto os princpios e
preceitos pertencentes epistolografia antiga, de modo que todas as cartas, independente de terem
sido escritas por escritores cultos ou incultos, apresentam convenes epistolares profundamente
elaboradas pela tradio, nas palavras da historiadora Patricia Rosenmeyer4 . O gnero epistolar
ento se configura, como qualquer outro gnero discursivo, em uma tenso entre o narrador
implcito e o sujeito histrico5. Sendo assim, devemos salientar que os elementos convencionais
existentes em uma carta, tais como o tratamento da distncia, que motiva a correspondncia; a
necessidade de se corresponder com frequncia e de usar o tom apropriado; e mesmo sua
estruturao em trs partes, devem-se antes de tudo ao costume e tradio. Como afirma tambm
Jennifer Ebbeler, trata-se de um conjunto articulado de leis que governam a prtica de escrever
cartas6 e que deve ser observado de acordo com os objetivos de determinado autor.

)21
I. A. 2. O estudo antigo de epistolografia
A sobrevivncia e persistncia das regras do gnero epistolar desde a Grcia Antiga at a
Antiguidade Tardia se deve em grande parte prtica de escrever cartas, e no a uma teorizao do
gnero, que nada mais foi que a sistematizao gradual da prtica. A escola apresentou-se como o
meio ideal de preservao das convenes da epistolografia: nela, aprendia-se a escrever cartas por
uma questo sobretudo social, de poder se inserir e se mobilizar em uma sociedade profundamente
hierarquizada que era a do mundo helenstico7. Sendo assim, mais do que escrever uma carta, era
preciso saber escrev-la de maneira apropriada, convencionando o texto de acordo com a situao
em que o escritor de cartas se encontrava8.
Muito do que sabemos sobre epistolografia antiga vem de quatro conjuntos distintos de
fontes: primeiro, manuais de retrica nos quais a discusso sobre epistolografia era comumente
relegada a um excurso, indcio de que no pertencia propriamente a uma Ars rhetorica; nesta
categoria elencamos o , ou De elocutione de Pseudo-Demtrio de Faleros9 (sec. III a.
C. - I d. C.) e o captulo vigsimo stimo da Ars rhetorica de Caio Jlio Vtor10 (fl. sec. IV d. C.),
chamado De epistulis.
Em segundo lugar, temos manuais escolares dirigidos a estudantes do ensino mdio e
superior, junto ao grammaticus e ao rhetor, caso de , tipos de cartas, de
Pseudo-Demtrio (sec. II a. C. - III d. C.)11, no qual so elencados vinte e um tipos de cartas; e de
, formas epistolares, de Pseudo-Libnio12 (sec. IV - VI d. C.), manual
no qual este professor elenca quarenta e uma situaes epistolares. Vale dizer que ambos foram
encontrados entre os papiros de Oxyrhyncus no Egito, sinalizando que provavelmente foram de
fato utilizados na escola13 .
Em terceiro lugar, temos pequenos guias de epistolografia destinados aos estudantes
profissionais que pleiteavam um cargo de magistratus ab epistulis, isto , o funcionrio pblico
encarregado da correspondncia oficial, caso de uma carta do sofista grego Filstrato de Lemnos14
(ca. 190 - 230), endereada a seu discpulo Aspsio; e outra de Gregrio de Nazianzo15 (ca. 329 -
389/90), arcebispo de Constantinopla, a seu discpulo Nicbulo. Ambos os textos trazem discusses
sobre o gnero epistolar que so mais densas que as propostas dos manuais supracitados.
Em quarto lugar e isso nos interessa especialmente , encontramos diversas observaes
dos prprios escritores de cartas, os quais certamente estavam familiarizados com os preceitos do
gnero16 , buscando, por meios prticos, solues para problemas ocasionais17. Aqui, encontramos
Ccero, Sneca, entre outros.

)22
Assim, se Jernimo e Agostinho mostram familiaridade com as convenes do gnero,
porque certamente aprenderam os preceitos bsicos da arte de escrever cartas lendo manuais de
epistolografia e de retrica na escola, escrevendo cartas em sua vida pblica e, bem, lendo e
imitando as cartas de Ccero e Plnio, o Jovem18 . Essas fontes so seguras para fornecer o estofo
terico para a nossa discusso; dentre elas, devemos dar ateno especial para Pseudo-Demtrio de
Faleros, o primeiro testemunho sobre epistolografia, e para Caio Jlio Vtor, por ter sido
contemporneo aos interlocutores de nossa correspondncia e, como coloca a tradutora Carole Fry,
a voz da escola no sculo IV19.
Devemos salientar que as observaes dos testemunhos antigos, sobretudo os autores de
manuais, se concentram nos aspectos prticos da epistolografia: eles tm pouco ou nada a dizer seja
sobre a estrutura das cartas, rea que devemos explorar empiricamente, seja mesmo sobre quaisquer
regras sistemticas que regessem o gnero epistolar. Os autores antigos estavam mais preocupados
com a busca pelo estilo mais adequado epistolografia: buscavam esclarecer algo que poderamos
chamar de retrica epistolar. Como bem colocou Malherbe, a teoria da epistolografia no
apresenta um sistema de regras s quais os autores devessem obedecer, mas uma srie de preceitos a
partir dos quais eles poderiam criar algo prprio e autoral20 .

I. A. 3. O estudo moderno de epistolografia


At muito recentemente, os estudos de epistolografia antiga eram dominados por um
impulso de categorizao que remete obra do scholar mais influente na rea, o austraco Gustav
Adolf Deissmann. Este autor procurou demonstrar, no incio do sculo XX, que a epistolografia
antiga constitua um gnero discursivo prprio, distinto da retrica, e assim estabeleceu uma diviso
binria e antittica entre a Epistel, que seria uma carta somente no formato, e uma Brief, que seria
uma carta de fato21 . Para Deissmann, a Epistel caracteriza-se por ser artificiosa, erudita, duradoura,
de linguagem e estilo prximos do discurso de oratria; so cartas de inteno pblica e literrias,
podendo parecer ter a forma de uma carta, mas, no entender do autor, seriam obras fictcias mais
prximas da linguagem de um poema ou de uma pea de teatro, quais as missivas dos escritores
cultos gregos e latinos. Briefe, em contrapartida, so individuais, de foro privado, confidenciais e
efmeras, ocasionais, sem grande cuidado de estilo; registro real e puro da fala, elas formariam as
cartas propriamente ditas, mensagens sem valor artstico, situao que, na viso de Deissmann, seria
aquela das cartas de Paulo e dos demais apstolos, cuja linguagem o terico pretendeu mostrar ser
mais prxima da , a variante popular do grego, e do latim vulgar que abundam nos contratos,
testamentos, convites, notcias, recibos, listas de impostos e demais documentos do dia-a-dia,
)23
preservados em papiro. Deissmann props uma tipologia binria na qual se pode entrever influncia
de um romantismo hegeliano, a qual ope arte e natureza, artificialidade e vida, e que foi mais
nociva que benfica ao estudo da epistolografia. Deve-se a Deissmann, porm, o esforo
inestimvel e pioneiro de descolar o gnero epistolar da arte da oratria, buscando desvencilh-lo
das anlises retricas medievais e renascentistas e assim estabelecer as leis prprias das cartas,
segundo os testemunhos antigos que se concentraram na epistolografia.
Na dcada de 90, o historiador Martin Luther Stirewalt buscou substituir a diviso binria de
Deissmann por uma tipologia que partisse da situao, letter-setting, em que se escrevia uma carta,
as quais segundo o autor podem ser normativas, estendidas, ou fictcias22. O pesquisador props
um novo espectro, mas no conseguiu extirpar a tradio iniciada por Deissmann: os estudos em
epistolografia continuaram a operar segundo um impulso de categorizao, fomentando a noo
que algumas cartas so histricas, passveis de serem interpretadas como fontes, ao passo que
outras so fictcias, meros joguetes artificiais desconectados de seu contexto. Estudos mais
recentes, como os de Altman, Stowers e Rosenmeyer23, mostraram que a epistolografia antiga
muito mais rica e complexa, de modo que uma leitura bidimensional ou mesmo uma categorizao
dela no d conta de interpret-la.
O historiador da epistolografia crist Stanley K. Stowers mostrou que h diversas
ocorrncias, nas cartas do apstolo Paulo, em que se manipulam os mecanismos e as prerrogativas
do gnero epistolar a retrica da epistolografia, por se assim dizer , de modo que o produto
nunca totalmente puro ou autntico da maneira antittica como colocava Deissmann24 .
Stowers advogou que seria mais interessante adotar uma metodologia menos atomstica e mais
funcional, que levasse em conta tanto os contextos sociais e culturais da epistolografia, quanto o
papel desta na construo e mediao de relaes de amizade distncia e in absentia. Embora o
historiador se concentre nas cartas crists do Novo Testamento, o estudante de epistolografia antiga,
seja no perodo clssico ou no tardio, encontra em Stowers um precedente; em sua obra se
fundamentaram posteriormente especialistas no perodo cristo tardio, como Conybeare sobre as
cartas de Paulino de Nola, Cain sobre as primeiras cartas de Jernimo, e Ebbeler sobre as cartas de
Agostinho25. Nossa metodologia neste captulo, portanto, em grande parte devedora de Stowers,
que mostrou com segurana a natureza essencialmente literria (ou retrica) do texto epistolar.
Como coloca Ebbeler: da mesma maneira que um autor podia criar significados ao manipular a
retrica epistolar, ele tambm podia faz-lo ao manipular as convenes da troca epistolar26 no
menos pelo fato de os autores nunca poderem ter certeza, naquela poca, se suas cartas circulariam
publicamente ou no.
)24
Antes de iniciarmos nossa anlise, devemos dizer abertamente o que no pretendemos
realizar neste captulo introdutrio. No entraremos em uma discusso sobre a formao do gnero
epistolar27, nem sobre as diversas tradies da epistolografia28, tampouco problematizaremos o fato
de existir ou no uma teoria do gnero epistolar na Antiguidade29: todas estas questes fogem ao
escopo do trabalho. Para efeitos didticos, tivemos de considerar a epistolografia helenstica como
uma s, e trabalhamos principalmente com a escrita da cartas per se, isto , de missivas que de fato
foram escritas por pessoas reais e histricas para serem enviadas e lidas por pessoas reais e
histricas, que o caso da correspondncia entre Jernimo e Agostinho. esta corrente que
entendemos por epistolografia helenstica, distinguindo-a da crist, ainda que esta surja a partir
dessa e permanea sempre conectada s suas convenes. No h, entretanto, necessidade de
problematiz-las em relao a outras tradies que lhes so relacionadas mas que se desenvolveram
de modo paralelo, como a carta potica de Horcio e Ovdio e o romance epistolar grego; a nica
outra tradio que aparecer adiante a da epistolografia filosfica, pois trata-se de uma grande
influncia para os cristos, principalmente por intermdio da pregao paulina30. Ademais,
trabalharemos quase que somente com escritores antigos: foge de nossos objetivos o exame da ars
dictaminis medieval, que estabelece diretrizes e prerrogativas muito mais rigorosas e muito mais
prximas da oratria31 para a estrutura e o estilo das cartas do que aquelas que existiam na
Antiguidade. Buscar interpretar as cartas de Agostinho e Jernimo a partir da obra de autores
medievais e renascentistas seria, a nosso ver, anacrnico32 . Deles, emprestamos apenas a
nomenclatura utilizada para nomear as partes da carta e algumas consideraes esparsas quanto ao
estilo.
Consideramos tambm que possvel tirar os preceitos e princpios dos tratadistas e escritos
antigos de contexto, uma vez que aqueles constituem, no entender do professor Marcos Martinho
dos Santos, como vislumbres de uma teoria da epistolografia33, ainda que esta tenha sido fruto da
prtica e nunca tenha sido sistematizada ou anexada ao ensino da retrica, ao menos no durante a
Antiguidade34. A estrutura da carta outra, e a nomenclatura usada para defini-la tambm. No
entanto, entendemos que os princpios que governam o texto epistolar, no que diz respeito ao estilo,
so os mesmos que se aplicam construo de uma conversa, um discurso mais solto que aquele da
oratria, com a importante ressalva de que o dilogo epistolar uma ruptura de um dilogo
normal, por se assim dizer35. Mas tais princpios estilsticos no deixam de ser, funcionalmente,
os mesmos da retrica36; e, se o so, isso aponta para a proeminncia da arte do discurso no mundo
helenstico37. Isto no deixa de ser verdade para os autores cristos38 : no podemos perder de vista
que nossos autores eram, no caso de Agostinho, um ex-rtor, e, no de Jernimo, algum com slida
)25
formao na arte do discurso. Sendo assim, as cartas trocadas entre eles sobreviveram graas ao seu
valor literrio e por terem sido coligidas, editadas e copiadas: elas so performances textuais
sofisticadas cujos autores trabalharam o melhor de seu estilo, em vista tanto de seus
contemporneos quanto de seus psteros.

I. B. Estrutura
I. B. 1. Definindo a carta
A carta na Antiguidade consiste em um dos veculos mais significativos de comunicao; na
realidade, trata-se da nica tecnologia disponvel ento para se contactar uma pessoa distante. Ela
parece ter surgido junto com a escrita39. De incio, a necessidade que faz a carta nascer: ela
escrita quando no possvel suprir de outra maneira a distncia que separa os interlocutores: com
ela, o autor busca atravessar os mares nas quinas que entrecortam as ondas, enquanto, quais vagas
por vagas, os instantes da vida se esvaem40. A carta deve funcionar como uma ponte que liga os
interlocutores, fazendo com que eles se apresentem fisicamente um ao outro ou pode ser
criticada por ser incapaz de realizar esse efeito41. Nossos correspondentes no cansam de se lembrar
o quanto Hipona esto distantes um do outro42. A carta atua, assim, como um substituto, ainda que
dbil, para uma conversa presencial43 . O prprio Agostinho diz a Jernimo:

To especiais, porm, ao menos entre as cartas que puderam chegar at nossas mos, me parecem as tuas
palavras, que de todos meus desejos nada me seria mais aprazvel que no sair mais do teu lado, se eu
pudesse!44

Esta uma afirmao recorrente e quase incontestada na Antiguidade. H uma nica


exceo para esta regra, e ela se encontra nas cartas de Paulino de Nola (ca. 354 - 431), autor cristo
que vai considerar a troca epistologrfica superior conversa presencial com um amigo, como se o
contato pela letra fosse capaz de unir, s vezes um sacramento, dois cristos um com o outro e com
Deus, algo que a materialidade da presena fsica no poderia jamais fazer45 . A concepo de
Paulino, no entanto, radicalmente estranha at para sua poca. No caso de nossos correspondentes,
Agostinho envia cartas a Jernimo primeiramente por no poder conversar pessoalmente com ele46 .
Pseudo-Demtrio de Faleros e Pseudo-Libnio afirmam que a carta uma das partes de um
dilogo47. Esta noo tpica na Antiguidade e retomada por Agostinho e Jernimo: o dilogo
epistolar aquele travado por pessoas ausentes umas das outras48 ; por isso, diz Ambrsio de
Milo, que a carta foi inventada49. A definio tambm paradigmtica para o dilogo travado entre

)26
Agostinho e Jernimo: a relao dos autores nunca saiu do plano da epistolariedade, isto , os
autores nunca se conheceram pessoalmente. S conversaram a distncia.
Dito isso, o gnero epistolar se diferencia de outros gneros discursivos justamente por ser
um dilogo escrito, isto , uma espcie de conversa escrita, e no falada. Isso faz com que o
discurso de um autor seja bem diferente do que seria se falasse presencialmente50. Seu estilo deve
ser aquele de uma conversa, deve ter naturalidade, mas deve ser algo mais cuidado, justamente por
ser grafado e enviado como um presente51.

I. B. 2. Mtodo e materialidade da carta


muito difcil precisar no que consiste a epistolaridade de uma carta, isto , o uso de suas
propriedades formais para se criar uma mensagem52. A prpria denominao do objeto carta, em
latim e em grego, polissmica e aponta para vrias formas epistolares53. A carta podem ser tanto
epistula, , quanto litterae, , simples palavras; mas tambm pode ser tabula,
, ou liber ou libellus, ou , indicando o formato, o material, e por vezes o
assunto da carta; nalgumas vezes encontramos scripta, escritos, ou opera, obras, em momentos
nos quais os autores no distinguem suas cartas do resto de seus textos54 . No entanto, as
denominaes epistula e litterae so ubquas na Antiguidade, e nossos autores no so exceo a
esta regra55 . Eles tambm usam exemplaria56 , indicando que as cartas enviadas eram cpias de
documentos mantidos em seus arquivos pessoais57 .
Pode-se escrever, scribere, , ou ditar, dictare, , ou ainda coligir,
colligere, , as palavras em uma carta. Ainda que scribere seja o verbo mais abundante
nas cartas entre Jernimo e Agostinho, ou mesmo em qualquer carta antiga, seguro afirmarmos
que ele significa antes compor que propriamente escrever de punho prprio58. Ora, sabemos
disso pois os tratadistas antigos recomendavam que se assinasse uma carta, indcio de que ela no
era escrita de punho prprio. O verbo scribere no tem especificao: ele usado para indicar o fato
de uma carta ser um documento escrito, e no que seu prprio autor a escreveu59 . O ditado parece
ter sido o mtodo mais utilizado pelos autores antigos; certamente por Jernimo e Agostinho, em
suas cartas e noutras obras60 . No caso de Jernimo, provvel que sua preferncia pelo ditado se
devesse crescente cegueira no final da vida61; no caso de Agostinho, o mtodo se d em razo de
seus constantes compromissos eclesisticos, fator que no raro contribuiu no atraso de suas
respostas.
Na realidade, os escritores antigos parecem ter escrito poucas cartas autograficamente. Eles
as ditavam na presena de notarii, secretrios ou taqugrafos62 , que ento as anotavam em suas
)27
tabuinhas de cera para depois transpr o texto, sel-lo e envi-lo63 . Assim, dictare por vezes ope-se
voluntariamente a scribere, trazendo todos os improvisos e incmodos inerentes quele mtodo, os
quais, nas palavras de Jernimo, so semelhantes ansiedade do soldado que deve colocar-se em
estado de alerto para a investida inimiga64.
O ditado, alm disso, o mtodo mais adequado ao ministro eclesistico, pois foi o mesmo
utilizado pelo apstolo Paulo65 . Dictare tambm foi o mesmo mtodo utilizado pelo Esprito Santo
ao ditar as palavras divinas aos apstolos. Neste caso, segundo Dom Paulo Evaristo Arns, a
palavra dictare conserva o sentido intermedirio entre compor e ditar, e o que se escreve
inspirado pelo Esprito66 . Agostinho aqui indica que os temas que ele discute com Jernimo em suas
cartas, a saber, questes sobre as Sagradas Escrituras, so ditados sobretudo pelo Esprito Santo67 .
Ditar uma carta, assim, uma maneira de pregar, e o cristo se apresenta como um testemunho da
Verdade, no como um autor ou simples intrprete desta.
O suporte material de uma carta tambm pode variar: ela pode ser escrita em folhas de
papiro, chartae em latim; ou em folhas soltas rascunhadas, chamadas de schedae; em pergaminho
feito de pele animal, membrana ou pergamena; em lingotes de chumbo, em grego;
tambm em tbuas de cera ou madeira, as tabulae ou buxus; denominaes que podem, todas elas,
significar carta por metonmia. certo, porm, que o papiro foi o suporte mais utilizado a partir
do sculo III a. C., exportado dos rinces dominados pela dinastia Ptolomaica no Egito68 , de modo
que as cartas trocadas entre Jernimo e Agostinho muito provavelmente foram redigidas em
chartae69 . Desta denominao vem a nossa carta, naturalmente.
H outros suportes materiais aludidos por nossos autores schedae, codex, volumen,
chartula mas nenhum deles se refere a uma carta.

I. B. 3. Partes da carta
Tradicionalmente, uma carta dividida em trs partes ou espaos: 1) praescriptio,
geralmente um pargrafo, este que aberto por uma frmula de salutatio, tambm chamado de
praefatio, um prefcio ou cabealho de saudao; 2) res ou narratio (ou mesmo scriptum), o
assunto em si e a maior parte do texto, de tamanho variado; 3) postscriptio ou conclusio, geralmente
um pargrafo nico, seguida de uma subscriptio, comumente uma frmula de concluso. A
subscriptio podia ser assinada pelo prprio punho do autor, manu sua em latim70 . Essa
nomenclatura, no entanto, no inequvoca na Antiguidade, tendo sido proposta apenas pelos
tratadistas renascentistas71, posteriormente aprimorada pelos estudiosos modernos. Os latinos usam
tambm outros termos como exordium ou initium para o incio72, e extremum ou finis para a
)28
concluso73; a nomenclatura para a narratio varia muito: para todos os efeitos, ela simplesmente o
scriptum, aquilo que motiva a escrita da carta. H tambm termos emprestados da fisiologia: a carta
dividida em caput ou frons, cabea ou fronte, corpus, corpo, e calx ou tergo, calcanhar ou
costas74 .
bom salientar que a estrutura epistolar clssica no , embora muito comum, onipresente.
De fato, mesmo na curta correspondncia entre Agostinho e Jernimo h uma carta que omite a
salutatio e a conclusio, sendo uma simples narratio75; h outra carta, um bilhete de louvor,
condensada em um pargrafo s que dispensa a narratio76; excetuamos os libri, isto , tratados
filosficos que Agostinho dedica a Jernimo, nos quais a salutatio tambm est ausente77. Mas as
excees estrutura tridica da epistolografia so muito raras, e a maioria esmagadora das cartas
antigas so dispostas em praescriptio, precedida de salutatio, narratio, e postscriptio, sucedida pela
subscriptio, de modo que a ausncia e a modulao de qualquer uma dessas partes significativa e
demanda investigao. Dezoito das vinte e duas cartas suprstites restantes de nossa
correspondncia seguem essa estrutura tridica, nem que seja em apenas um nico pargrafo onde
todas se misturam. Isso verdadeiro para duas cartas de pargrafo nico, uma de Agostinho para
Presdio, e outra de Jernimo para Agostinho78: ambas abrem com salutationes, elencam tpicos do
gnero, abordam rpidos assuntos e, devemos crer, fecham com assinaturas: ao menos a de
Jernimo possui seguramente uma frmula de concluso.
Colocada essa ressalva, a salutatio (ou praefatio) e a subscriptio so dominadas por
frmulas79 que devem ser escritas de acordo com a posio social, poltica e o nvel de amizade dos
correspondentes80. A salutatio o local onde se indicam os interlocutores, e onde se do as boas-
vindas. Nos tempos de Ccero, esperava-se um sbrio [ []] em grego,
aliquis alicui [salutem [dicit]] em latim, um [[envia] saudaes] a outro, frase s vezes seguida
por alguma frmula mais extensa, como , ou seja, ante omnia
opto te bene valere [cum tuis omnibus], antes de tudo, quero que estejas bem [com tua famlia];
trata-se aqui da formalizao de um tpico epistolar: os votos de boa sade. Todavia, ainda que o
aspecto convencional das frmulas de abertura nas cartas latinas seja evidenciado pelo fato de os
romanos terem transformado esse predicado em uma sigla S, SD ou SPD e terem somado essa
a outra SVBEEV, que significa si vales bene est; ego valeo, se ests bem, tudo bem; eu estou
bem , o envia saudaes nem sempre est presente e no obrigatrio; trata-se de um
costume81. Mesmo Agostinho e Jernimo omitem o salutem nalgumas cartas de sua curta
correspondncia mtua, o primeiro possivelmente para dar um ar de objetividade ao assunto, o
segundo talvez pelo mesmo motivo82 . Adicione-se, no perodo cristo, adjuntos como in Domino e
)29
in Christo, no Senhor e em Cristo, variados em locues escatolgicas como in Christi
membris ou in Christi visceribus, nos membros de Cristo ou nas vsceras de Cristo, as quais
apontam para a corporealidade do sofrimento na crucificao; tais complementos esto muito
presentes nos textos de nossa correspondncia83 .
As partes da salutatio podem ser completadas pelo grau de parentesco: filius patri, do filho
ao pai; pelo cargo: presbyter papae, do presbtero ao padre; pela posio social: aliquis
imperatori suo, um ao seu imperador; por possessivos: tuus suo, do teu ao seu, isto , do teu
querido, ao seu querido; ou por adjetivos afetivos e superlativos: caro, carissimo, dilectissimo,
sincerissimo etc., os quais so tambm muito frequentes nas salutationes de todas as cartas de nossa
correspondncia. No que diz respeito aos verbos, o pode se expandir em ou
, envia muitas saudaes, salutem plurimam dicit em latim; ou ser substitudo por
diferentes verbos, caso do ou , tenha coragem ou fica bem, nas cartas de
consolo, e caso do , tem juzo, nas cartas filosficas. O prprio apstolo Paulo mostra
familiaridade com a tradio da epistolografia filosfica helenstica ao empregar frmulas na
salutatio: ele utiliza , eu exorto, no lugar de , saudaes em seis de suas
catorze cartas84. Em algumas, o apstolo varia a salutatio usando diversas flexes do verbo
construindo um jogo entre este verbo e a , no sentido de Graa crist85.
Na conclusio, encontramos, no perodo clssico, breves termos de despedida como ,
em grego, vale em latim, fica bem. Variaes so comuns, e incluem , ou seja, cura
ut valeas ou fac ut valeas, cuida em ficar bem, age para que fiques bem, com vocativos, quais
carissime, muitssimo querido. Muito raramente encontramos (h)ave, at logo, e macte virtute,
boa sorte. Nas cartas de Ccero, no raro encontramos tambm meque diligas como
complemento, e me ama, assim como pedidos de saudar algum prximo.
Ambas essas frmulas, as da salutatio e da conclusio, apresentam-se mais ornadas nas cartas
dos autores cristos latinos86 . O trabalho outrora sbrio do praefatio d ento lugar elaborao
mais rigorosa, meticulosa e, pelo bem do termo, barroca, reflexo da ascenso social do
cristianismo e do gosto efusivo dos autores cristos87. Trata-se aqui do officium salutationis de que
fala Jernimo em algumas cartas a Agostinho88 . As salutationes trocadas entre nossos autores
podem ser lidas como um dever de testemunhar a amizade crist, uma prtica de civilismo que faz
de um simples sinal uma obrigao de mostrar afeio e respeito ao cargo eclesistico que o
indivduo ocupa. Preench-la corretamente indica a igualdade social entre os interlocutores. A
posio poltica do destinatrio, raramente indicada nas cartas antigas (se no se tratassem de cartas
de ofcio, endereadas ao imperador, a generais, a cnsules ou a demais funcionrios), passa a ser
)30
obrigatoriamente preenchida: presbyter, episcopus, consacerdos, diaconus etc. abundam nos
cabealhos das cartas crists, indcio da profunda hierarquizao do gradus eclesistico. J
inferimos a plenitude de adjetivos como carissimus, sincerissimus, beatissimus (um epteto
reservado a bispos), desiderantissimus, em geral no superlativo. Outros adjetivos, como eximius,
venerabilis, laudabilis, religiosus, beatus e insignis seguem diretrizes semelhantes s da poca
clssica e variam de acordo com o destinatrio e com a relao social e religiosa entre os
correspondentes.
Todavia, o labor excessivo nesta parte parece ser uma constante quase que s na
epistolografia de Agostinho e de Paulino de Nola, pois raramente encontramos testemunhos nas
cartas Ambrsio de Milo89 , e o tom oficioso e objetivo reina nas salutationes de Jernimo, em
cujas cartas pouqussimas so as ocasies e seletos os destinatrios que merecem algo mais que um
dativo e um salutem90. Mesmo Agostinho no emprega essa tcnica seno a partir de Aug. Ep. 21 ao
bispo Valrio, poca em que entra para a hierarquia eclesistica91 . Aqui se coloca um problema:
afinal, teria Agostinho e Paulino formalizado o costume de adornar a salutatio? Seja como for, a
raridade de salutationes afetivas nas cartas de Ambrsio e Jernimo podem ser devidas a uma
escolha de estilo dos autores ou, o que mais provvel, ao fato de elas no terem sobrevivido
autctones, e sim em cpias de arquivo92. Era um costume tanto dos prprios autores, a fim de
atribuir objetividade s suas cartas, e tambm hbito dos compiladores posteriores, o fato de
amputar o frons e a finis epistulae, substituindo-o por um simples Valentiniano Ambrosius
episcopus, a Valentiniano, do bispo Ambrsio, por exemplo93 , a fim de identificar a carta, como
as etiquetas que ficavam para fora dos pergaminhos.
Assim como as frmulas de salutatio, as frmulas outrora simples da subscriptio
desaparecem ou so incorporadas em fraseologias mais extensas, tambm mais adornadas. Esta
inovao j atestada em Paulo de Tarso, fato que se deve, segundo Stowers, tradio da
epistolografia judaica94 . As subscriptiones tornam-se marcas identitrias e pastorais, espcies de
carimbos autorais que, no lugar de simples despedidas, se transformam em frmulas de
concluso, abundantes em Ambrsio95 e Jernimo96 ; Agostinho raramente as utiliza97. Por que
motivo isso se d? Agostinho prescinde delas pois ele se coloca avesso ao mos epistularum
solemnium; Jernimo as utiliza por uma questo pessoal, e por mostrar-se um escritor de cartas
tradicional. H, ainda, uma grande nfase no aspecto da memria em Jernimo: esse autor muitas
vezes finaliza suas cartas com um memor nostri, lembra-te de ns98.
A matria que se escreve, e a maneira com a qual se escreve na praescriptio e na conclusio
vai depender do assunto introduzido e posteriormente conduzido na narratio, naturalmente99 . No
)31
entanto, estas partes so recheadas de tpicos e lugares-comum do gnero epistolar, de modo que
nem sempre fcil inferir-lhes o assunto sob a escuma do civilismo e da formalidade.
Por fim, uma nota sobre a subscriptio escrita de punho prprio pelos autores. Agostinho e
Jernimo comentam o costume de assinar cartas com frequncia100 ; a falta de uma assinatura
autogrfica em uma carta que o bispo de Hipona enviou a seu correspondente acabou por criar uma
tremenda confuso na correspondncia entre os autores101. De fato, a subscriptio no apenas uma
medida de bom tom, como necessria para possibilitar a autentificao da autoria da carta; ela
tambm um mecanismo de crtica externa do texto, para que fosse possvel identificar a autoria
segundo a letra do autor102 . Assinar a carta com a prpria mo de suma importncia tanto mais por
ser atestada nas cartas do prprio apstolo Paulo103.

I. B. 4. Tpicos da carta
H diversos tpicos e temas recorrentes na epistolografia antiga, prprios de cartas de
amizade, mas no se resumindo a elas104. Nosso objetivo aqui no analis-los exaustivamente,
seno apontar e interpretar alguns, ao longo do texto, que auxiliem na leitura da nossa
correspondncia. Stowers d uma lista expressiva deles105, os quais podemos reunir em trs
conjuntos: observaes sobre a correspondncia; observaes sobre a amizade (; entre
elas, o desejo do correspondente, -topos, a mais presente106); e presentificao do
correspondente (-topos)107 .
As observaes sobre a correspondncia e sobre a presentificao do correspondente
gravitam, em geral, nas praefationes e conclusiones da carta. So esses os espaos nos quais os
nossos autores tecem comentrios sobre o estado atual da troca epistolar108 , recomendam e
explicitam os mensageiros (principalmente para provar a autenticidade da carta; chama-se -
topos)109, agradecem as oportunidades de enviar cartas, cumprimentam outras pessoas, enviam
cumprimentos de outras pessoas, do desculpas se no tiveram tempo de responder cartas
anteriores, pedem mais cartas e outros escritos do destinatrio, sintetizam o que disseram
anteriormente, comentam suas outras obras, e retomam cartas de seus correspondentes, por vezes
citando-as110; so neles que os autores tambm confessam desejar a presena fsica do interlocutor,
afirmam poderem ver sua alma ou aparncia fsica atravs de seus escritos111 , lamentam no
poderem conversar presencialmente com eles, reclamam da distncia (fsica e emocional) que existe
entre os interlocutores. As observaes sobre a amizade aparecem por toda a carta, uma vez que
essa consiste no tema por excelncia da epistolografia antiga, questo que esmiuaremos adiante.
Duas cartas de nossa correspondncia so quase que inteiramente dedicadas amicitia112.
)32
A conclusio a chave de ouro que deve trancar o texto. Em geral, uma carta termina em uma
nota de humildade, de elogio amizade. Em compensao, o fim de uma carta, exatamente porque
mais sincero, tambm pode fazer ricochetear o furor do polemista113; com efeito, Jernimo
apresenta incrvel destreza em trabalhar esta parte nas cartas enviadas a Agostinho, enviando-lhe
ameaas, censuras e provocaes114 . Os tpicos de concluso so mais maleveis na Antiguidade
Tardia: um pedido sincero115 , uma lamentao116 , uma queixa117 .
Pertencem tambm categoria dos tpicos epistolares a nfase na dignidade do autor
(dignari, ter a dignidade) e a mitigao de um pedido (non gravari, no considerar um fardo),
muito presentes nas cartas de Agostinho, mas no nas de Jernimo118.

I. B. 5. Tamanho da carta
Qual o tamanho ideal de uma carta? Eis uma questo sem concluso entre os escritores
antigos. Nenhum deles diz expressamente qual seria a dimenso ideal de uma carta, e conferimos
empiricamente que grande a desigualdade. Entre as cartas de Agostinho e Jernimo, h umas de
poucas linhas, quais Hier. Ep. 141 e 142, e outras imensas, de mais de vinte pargrafos, quais Hier.
Ep. 112 e Aug. Ep. 82. O ou em grego, magnitudo ou mensura epistularis em latim,
tambm chamado de ou modus epistulae119, deve se pautar sobretudo pelo bom senso120. No
h uma preciso matemtica para a mensura; no entanto, os escritores antigos concordam que uma
carta deve ser breve.
Pode-se pensar que, no perodo cristo, os escritores de cartas simplesmente ignoraram esta
regra121 ora, Agostinho escreve uma carta de trinta e seis pargrafos para Jernimo! mas isso
no verdade. Aqui, temos o testemunho do prprio Jernimo, que chama Aug. Ep. 40 de liber122 ,
coisa que se deve a trs fatores: o Estridonense afirma estar incerto se o documento de fato uma
carta (pois alega desconhecer sua autoria), o contedo que nela se encerra polmico e avesso ao
gnero, e o tamanho relativamente grande para uma missiva. Agora, se Jernimo chama Aug. Ep.
28 e 71 de libelli, livrinhos, os quais ele j sabe que so cartas, isso se deve posio irnica do
autor em relao tambm ao contedo polmico e ao tamanho excessivo desses textos123 . Ao insistir
nessa nomenclatura, o autor deixa implcito que Agostinho no estava obedecendo corretamente as
prerrogativas da epistolografia.
muito comum encontrar Agostinho e Jernimo refletindo sobre a extenso de suas cartas;
trata-se de mais um tpico do gnero. Diversas razes podem fazer o escritor exceder os limites de
uma carta: o amor pelas Escrituras, a dor, o medo, o dever, a raiva124 . Por vezes, o escritor torna-se
to absorto ao ditar, como se estivesse conversando com seu correspondente, que acaba se
)33
excedendo125. Mas de vez em quando uma carta pode ser mais breve do que convm, amide pela
pressa do mensageiro que levar a carta para o destinatrio126, ou por outros afazeres que ocupam os
escritores127, ou pela casualidade do ditado.
Em suma, h fatores internos e externos que determinam o tamanho de uma carta, mas no
geral ele deve ser relativamente breve, adequando-se sobretudo ao assunto e ao objetivo do autor128.

I. B. 6. Assuntos da carta
Ao tamanho da carta vincula-se uma outra questo: os assuntos mais adequados
epistolografia. Aqui estamos no espao da res ou narratio, que no possui um tamanho pr-
estabelecido como a praescriptio ou a postscriptio. De fato, a recomendao do que se deve
escrever ou melhor, do que no se deve escrever, o que mais comum parece ser
condicionada pelo desejo de brevidade no tamanho. Os autores antigos recomendam que no se
escreva sobre filosofia e demais matrias tcnicas, por exemplo129 . Quando o assunto muito
tcnico e difcil, demanda tempo, ou mesmo se ele perigoso, a estreiteza necessria carta no
permite que tal matria seja nela tratada130. Assim, se uma carta pretende trabalhar algum tema que
foge ao seu escopo, excedendo seu tamanho, ela deixa de ser carta para se tornar um liber131 ,
livro ou tratado, ou alguma outra coisa132 . Eis o caso do liber de optimo genere interpretandi, a
carta Hier. Ep. 57 a Pamquio133 , e dos libri, tratados filosficos, que Agostinho envia a Jernimo s
vezes de cartas, Aug. Ep. 166-167134 . Esta prtica no s era comum entre os cristos, como
precedia de longa tradio nas letras gregas e romanas, ilustrada por autores como Sneca, o autor
das epistulae morales ad Lucilium, e Epicuro135.
Uma inovao trazida pelos autores cristos no plano da matria epistologrfica foi a
discusso das Sagradas Escrituras e de teologia, centrada nos patriarcas gregos136, coisa muito
presente no incio da correspondncia entre Jernimo e Agostinho. As cartas trocadas entre os
autores abundam em citaes da Bblia, em especial das cartas de Paulo, e de difceis questes de
hermenutica e exegese, as quais se concentram em duas temticas principais, que sero esmiuadas
no segundo captulo: a leitura correta de Gal 2:11-14137 e a traduo das Escrituras para o latim138
(projeto empreendido por Jernimo na poca). Pode-se afirmar com segurana que estas temticas
seriam vistas com maus olhos por um Ccero, e o prprio Jernimo julgou o assunto impassvel de
ser tratado em cartas num primeiro momento. Agostinho justifica sua insistncia em discuti-los ao
dizer que seu esprito ferve em partilhar com Jernimo suas dvidas sobre os estudos das
Escrituras, de modo que ele no ficar contente com os limites e os assuntos prprios de uma carta
cerimoniosa, epistula solemnis em latim139. Quase que vemos o autor indeciso se deve ou no
)34
discutir um assunto polmico em suas cartas, conforme o mesmo acaba por confessar em uma outra
missiva, enviada posteriormente a Jernimo140 . As ltimas cartas trocadas pelos autores, de 416 em
diante, so mais adequadas estrutura tradicional do gnero epistolar e apresentam breves notcias,
comentrios sobre as heresias e sobre a administrao eclesistica141, sem tocar em problemas de
interpretao.
Mas no estamos sendo totalmente justos ao imputar a introduo de assuntos a rigor
inadequados somente ao perodo cristo. Os autores antigos comumente conversavam no s sobre
seus afazeres pessoais, como tambm sobre assuntos administrativos e polticos142, algo ainda muito
comum no tempo de Agostinho e Jernimo, em que a Igreja se firmava como instituio poltica no
seio do Imprio. Os autores antigos conversavam at quando nada tinham a dizer em especfico143 .
No h exatamente um assunto adequado epistolografia. O gnero epistolar sempre foi muito
flexvel nesse ponto. Mais importa a maneira como o assunto tratado: que seja com palavras
amigveis e breves, de maneira coesa e simples144.
Colocado que o tamanho e o assunto de uma carta so interdependentes, veremos no tpico
seguinte que ambos so, em certa medida, determinados pela situao do escritor e pelo tipo de
carta com que se trabalha145.

I. B. 7. Alguns elementos estruturais das cartas crists


Por fim, necessrio discutir algumas idiossincracias estruturais da epistolografia crist
latina, pois elas so importantes para compreendermos as funes que as cartas tomaro no contexto
do cristianismo. No perodo cristo, notvel a ubiquidade do apelativo , latim dominus, em
portugus senhor, tanto nas salutationes quanto no corpo das cartas; igualmente, o ttulo papa,
afetivo de pater, pai146, bastante disseminado. Esse costume vem j do apstolo Paulo, que se
intitula o pai de seus filhos na primeira carta aos Tessalonicenses147. O era, na
Antiguidade, o mesmo que o pai: o chefe da casa, o paterfamilias romano, um rei governando seu
reino148 . Chamar o destinatrio de dominus no s o reconhecia como um lder da Igreja, como
tambm incidia na diminutio do remetente, ao reconhecer-se um sdito do interlocutor e de Deus
(Dominus tambm um dos apelativos de Cristo). Trata-se de um sinal de igualdade (se
correspondido) e submisso (no ato do envio): Jernimo e Agostinho se tratam sempre por
senhores nas salutationes. Por outro lado, caracterizar-se ou caracterizar algum como
, servus Dei em latim, escravo ou servo de Deus, era o mesmo que colocar a si ou o
correspondente em uma posio submissa aos olhos do correspondente e de Deus. O apstolo Paulo
com muita frequncia se apresenta como servo de Deus, mais do que apstolo, nas salutationes
)35
de suas cartas149. Na epistolografia crist latina, raro encontrar esse tipo de autoreferncia na
salutatio, mas ela est presente na parte narrativa e nas concluses das cartas, em especial quando
se refere aos leigos que no ocupavam cargos eclesisticos150. No entanto, Paulino de Nola no raro
emprega a si a alcunha de peccator, pecador, nas salutationes de suas cartas151; trata-se de uma
especificidade deste autor.
Tambm comum nas cartas crists o apelativo , frater em latim, irmo em
portugus, signo de equidade aos olhos de Deus e da comunidade. Paulo tambm sinaliza muitas
vezes estar falando entre irmos, portanto, entre iguais na f crist152. O apelativo frater est
presente em todas as salutationes de Agostinho a Jernimo, mas o contrrio no verdadeiro: o
bispo de Hipona nunca foi considerado um frater por Jernimo153 . Faz ele assim por no gostar de
Agostinho? uma interpretao possvel. Mas deveramos atribuir o apelativo frater, nas cartas de
Jernimo, apenas a pessoas que ele conhecia pessoalmente? outra possibilidade, pois todos os
irmos e irms aos quais o autor se refere em suas missivas so pessoas com as quais o autor
teve contato presencial154. importante salientar que o gnero masculino no o nico depositrio
destes ttulos: as mulheres, tambm, sero sorores e dominae, ainda que mais frequentemente filiae,
filhas, ou famulae Dei, serviais de Deus155. A Igreja no deixa a sociedade romana na
Antiguidade Tardia menos patriarcal, mas ela antes incorpora esta estrutura na hierarquia
eclesistica.
O emprego abundante de dominus e frater na epistolografia crist revela que as interaes
sociais na poca crist fundamentavam-se nas relaes hierrquicas intrafamiliares156 : a Igreja
como uma grande famlia; Deus o Paterfamilias supremo, e todos os crentes so seus filhos,
sendo os ministrantes da Igreja irmos entre si, mas domini dos leigos, estes que, por sua vez, so
seus filii; assim Jernimo chama Marcelino e Anapsquias de filhos157 . O objetivo dos cristos em
empregar estes apelativos buscar uma identidade comunitria e familiar, mas que seja distinta da
tradio pag. Essa busca tambm demarcada por adjetivos cristos como sanctus, santo, que
tambm aparece de maneira recorrente nas cartas de autores desde Paulo de Tarso158 . Sanctus o
selo que indica que o destinatrio pertence, como o remetente, ao privilegiado grupo do
cristianismo catlico-ortodoxo. Se ele catholicus, to mais eminente nos afazeres de Deus: esse
adjetivo o distingue seguramente dos hereges159 . Outrossim, a presena frequente de merito,
merecidamente, e principalmente de vere, verdadeiramente, na salutatio, uma forma de
realar a posio social e religiosa do correspondente para alm de qualquer dvida: ora, o mrito
que justifica a autoridade do fiel; a verdade que separa o cristo do heresiarca.

)36
Aps essa introduo aos aspectos estruturais da carta antiga, exploremos agora a prtica da
epistolografia e as funes da carta na Antiguidade, a fim de aprofundar o que afirmamos acima.

I. C. Estilo
I. C. 1. O sermo
O problema de qual estilo deve ser adotado em cartas chamemo-lo de elocutio
epistularis, em grego ou coloca-se j ao designarmos a carta como uma das
metades de uma conversa. Uma vez que a carta antiga tradicionalmente assim definida, convm
que ela seja escrita num estilo semelhante a uma 160 , em latim sermo ou sermocinatio161 . Esse
termo bastante polissmico no latim, mas seu significado geralmente gravita nas noes de
conversa162, dilogo163 (mesmo o dilogo filosfico platnico164 ) e linguagem165 , e indica um
tipo de discurso menos rebuscado que uma oratio, o discurso prprio da oratria166; neste sentido o
sermo deve se aproximar da fala comum e parecer mais natural que um discurso167 (mas o termo
to flexvel que na Idade Mdia se tornar at sinnimo de palavra168). Seja como for, o sermo,
num sentido mais apropriado de ou em grego, a conversao comum, estabelece
a primeira baliza do estilo mais adequado s cartas169, e os testemunhos antigos criticam muito
alguns escritores que utilizam um estilo epistolar mais rebuscado s vezes da oratria170 , muito
apelativo, ou da disputatio filosfica171 , muito rido e tcnico.
O estilo da carta se pauta, a princpio, por duas aes: o autor informa, ensina ou instrui seu
interlocutor ou seja, preciso saber ensinar, docere; por isso que ela foi inventada, segundo
Ccero172 mas o autor deve tambm afagar e brincar com seu correspondente, atravs de jogos
lingusticos, provrbios, citaes, clusulas rtmicas173 ou seja, preciso saber agradar,
delectare, como convm em uma conversa entre amigos174. Essas duas funes bsicas, coladas ao
fato de a carta ser um dilogo escrito, condicionam o estilo da carta antiga: independente de o autor
ser culto ou no, este deve a princpio seguir algumas convenes e prerrogativas prprias ao
gnero175 . Nesta chave, podemos nos aproximar dos preceitos da epistolografia.
Estas funes ganharo contornos diferentes no perodo cristo, uma vez que docere e
delectare no raro sero excludentes quando se travam discusses mais srias. Trata-se de um bom
critrio de medida saber quando o delectare se ausenta e os autores rebaixam o discurso, adotando o
sermo humilis cristo176 : aqui que a carta deixa de lado as regras do civilismo para discutir as
Escrituras e porventura se tornar um liber. O prprio Agostinho diz que convm que amigos
brinquem em suas cartas, mas no quando o assunto difcil177.

)37
Sendo assim, h uma grande nfase, nas cartas cristos da Antiguidadade Tardia, no
emprego do verbo docere e derivaes substantivadas, qual doctrina e doctor, tradues latina para
os gregos , e , o ensinar corretamente178. Nesta poca, o verbo
docere acaba por abraar tanto o sentido de ensinar como de instruir ou, mais prximo deste
termo normatizante em nossa lngua, educar: docere tirar o cristo da mpia ignorncia e
conduzir-lhe pelo caminho correto da f. Agostinho lembra Jernimo inmeras vezes da
necessidade de interpretar e ensinar corretamente as Sagradas Escrituras, para que a f crist resida
em uma castae fidei auctoritas, ou seja, em uma autoridade da verdade pura179 . preciso lembrar
tambm que docere a atividade do pregador cristo, atestada pelo apstolo Paulo, o
, em latim doctor gentium, o professor dos gentios original180 . Quando se faz necessrio
discutir a doctrina, portanto, os autores devem empregar um estilo baixo, cuja presumida
superioridade deve-se crena de que ele inspirado pela prpria Divindade e no se pode ater s
normas e regras ditadas pela retrica de tradio pag181. A verdade deve prescindir de adornos182 .
No entanto, exceo de uma parte de nossa correspondncia e dos tratados filosficos que
Agostinho dedicou a Jernimo (mas mesmo nessas h tpicos e temas tpicos da epistolografia183), a
ausncia do delectare um caso atpico das cartas trocadas entre eles, as quais em geral se pautam
pelos mesmos princpios estilsticos que governavam uma carta de Ccero. Melhor dizendo, tais
funes sucumbem ao peso da hierarquia social na Antiguidade Tardia, deixando um aspecto que
outrora era de simplicidade e naturalidade para se tornarem elementos necessrios aos
necessitudinis iura, s leis da cordialidade de que fala Jernimo em uma de suas cartas184.

I. C. 2. Princpios da elocutio epistularis


Colocadas as funes bsicas de docere e delectare prprias ao sermo, eis que a elocutio
epistularis merece um exame mais detalhado. H algumas prerrogativas para ela, as quais so
amplamente discutidas pelos testemunhos antigos, por serem fundamentais para garantir a boa
comunicao epistolar. Elas se devem ao fator mais essencial da carta, o de ser uma fala escrita,
tenso entre elocuo e redao do texto.
J falamos que o estilo epistolar distinto daquele da oratria, de modo que um estilo
elevado no se adequa a uma carta185. De incio, Pseudo-Demtrio de Faleros salienta que uma carta
deve ser escrita no estilo de aspecto fraco [ ]186 , mas arremata, ao concluir seu tratado,
que o estilo epistolar deve ser antes uma mistura entre os estilos gracioso (ou elegante) [] e
fraco []187 . O rtor explica: a estrutura da elocutio epistularis deve ter certo grau de liberdade,
mas ater-se brevidade e clareza, no podendo correr solta188 ; deve ter algum adorno, como
)38
provrbios e sinais de afeio189 , que so prprios de uma conversa entre amigos. O autor tambm
critica quebras no discurso, afirmando que estas o tornam obscuro: as quebras so apropriadas a um
estilo imitativo e encenado, como o de um ator, mas no s cartas, que so escritas190 .
As outras fontes antigas esto amplamente de acordo com os preceitos dados por Pseudo-
Demtrio de Faleros. Os testemunhos mais completos aqui so os de Filstrato de Lemnos e
Gregrio de Nazianzo. Gregrio indica trs princpios fundamentais para o estilo epistolar: a
, brevitas em latim, a brevidade com a qual se deve escrever em perodos curtos e
geis191 ; a , claritas ou perspicuitas em latim, a clareza de dico, interdependente da
brevitas, pois um discurso demasiado curto torna-se obscuro192 ; e a , gratia em latim, a
elegncia ou adorno moderado do estilo, elemento que torna a carta mais vvida. Os elementos da
gratia so semelhantes queles propostos por Pseudo-Demtrio de Faleros: primeiro, evitar escrever
de maneira pedestre e rida, aqum do que convm a uma conversa entre amigos; ento, usar
moderadamente provrbios, figuras de linguagem, aforismos e outros elementos para adoar o
discurso, antes de maneira bem-humorada que com seriedade (no a fim de construir uma
argumentao, portanto193).
O que diz Filstrato de Lemnos segue a mesma linha de raciocnio de Gregrio de Nazianzo.
Filstrato concebe o estilo epistolar como, em aparncia, uma mistura entre a linguagem pura e
erudita; no caso, uma mistura entre o aticismo, a imitao do grego da poca de Plato194 , e o
grego do quotidiano195 . Pseudo-Libnio repete a sentena de Filstrato em seu tratado: o estilo de
uma carta deve ser moderadamente aticizante, para que no se torne pomposo196. Ambos os
autores tambm prezam a brevitas e a claritas, censurando tanto os perodos longos, pois so
exagerados (a no ser quando necessrio us-los na concluso da carta, para arrematar o que foi
dito), quanto a brevidade excessiva197. Deve haver equilbrio entre claritas, brevitas e gratia, a fim
de criar um texto bem escrito198.
Todavia, os autores antigos tambm chamam a ateno para um paradoxo do estilo epistolar:
ele deve parecer natural e descuidado, ainda que este aspecto de naturalidade e descuido no pode
seno ser fruto de engenho e arte, pois a carta um objeto escrito, devendo ser assim mais
elaborada que a fala comum. Aps descrever algumas prerrogativas para tornar o estilo epistolar
elegante, Gregrio de Nazianzo arremata: esse aspecto sem beleza que se deve preservar nas
cartas, como se ele fosse prximo da natureza199. Mas a nica maneira de atingi-lo, o autor sabe,
atravs do labor de composio. preciso ento que a carta d a impresso de ser simples, que haja
um certo desleixo cuidado200 no manejo da linguagem ao comp-la. Assim, uma carta bem escrita
deve, no que concerne ao discurso que lhe prprio, ter duas camadas, uma simples e uma elevada,
)39
colocando-se no meio de ambas; a carta deve agradar tanto ao culto quanto ao inculto201 . A carta
deve ser escrita com preciso e tcnica, seguir diversas prerrogativas, justamente para dar sob a
tcnica uma impresso de ser espontnea e leve202 .

I. C. 3. O genus medium dicendi


Podemos ento interpretar a elocutio epistularis a partir do genus medium dicendi de que
fala Ccero no Orator, aquele entre o grandiloquens e o tenue, que flui em movimento constante,
no trazendo consigo nada seno facilidade e uniformidade203 . A elocutio epistularis parte do
sermo plebeius mas no se limita a ele: na ocasio de autores cultos conversarem entre si, a elocutio
deve se elevar um pouco, aproximando-se do sermo urbanus, contanto que tenha medida. Em suma,
a epistolografia converge para aquela preciosa categoria da oratria, ou melhor, do modus vivendi
dos antigos: o , em latim decorum204 , com a distino de que no h propriamente regras
para o estilo epistolar, mas prerrogativas e preceitos205. Mesmo seus princpios, quais a perspicuitas
e a brevitas, de modo algum so exclusivos s cartas: Quintiliano recomenda as duas coisas a todo
orador206. Est modus in rebus, dizia Horcio; na epistolografia, no deve ser diferente207. Assim,
para se escrever bem uma carta, preciso antes de tudo saber se escrever bem no geral, como
coloca Jlio Vtor208 .
Esta soluo, no entanto, ainda que universal a todo texto, guarda especificidades no interior
do gnero epistolar, no tocante s funes da epistolografia. Embora os autores antigos concordem
que deve haver certas caractersticas no tom e no estilo das cartas, a fim de que este sobretudo se
distingua do discurso de oratria, no se deve escrever da mesma maneira ao imperador e a um
amigo. Outrossim, no se compe uma carta privativa da mesma maneira que se compe uma carta
dirigida a um pblico maior. Alm de residir na tenso de ser um registro escrito da fala, de modo
que sua naturalidade no pode ser seno aparente, o estilo epistolar deve ser adequado posio
social e poltica de quem escreve, situao em que o autor se encontra, e ao destinatrio a quem a
carta enviada. Quando se escreve a um superior, convm que se eleve um pouco o tom, mas no a
ponto da carta tornar-se um discurso sisudo e tcnico, prprio de um tratado; a um inferior, pode
haver mais liberdade, mas nunca descuido209 .
Haver, assim, diferentes nveis de elocuo ou aspectos a serem empregados dependendo
de quem escreve a carta, da situao em que este escreve a carta e, logo, da funo que a carta toma
e do tipo de carta que se escreve210. No muito diferente, nesse sentido, das funes da retrica: a
carta, como texto, tambm objetiva persuadir211.

)40
I. C. 4. Cartas de amizade e cartas de ofcio
Os melhores testemunhos para nos guiar nesta parte sobre quais nveis de estilo so mais
apropriados a determinado tipo epistolar ou contexto epistologrfico so Ccero e Caio Jlio Vtor,
embora Agostinho e Jernimo tambm faam aluses ao tema. As tipologias de Pseudo-Demtrio e
Pseudo-Libnio sero analisadas apenas no prximo tpico, por entendermos que elas dizem
respeito a funes e no propriamente tipos da epistolografia.
O problema dos nveis da elocutio reside com frequncia em uma variao quantitativa: a
carta deve ser mais cuidada se escrita a um superior, ainda que obedea s mesmas regras de uma
carta qualquer; ela deve se ater a um certo limite cerimonioso, se trata-se de uma primeira carta
de recomendao212. Dito isso, h trs divises binrias que conhecemos na epistolografia antiga:
uma entre epistulae publicae e privatae, cartas pblicas e privativas; outra entre genus familiare et
iocosum e negotiosum et grave; e a terceira, mais afamada, entre epistulae familiares et negotiales,
cartas de amizade e cartas de ofcio.
A primeira diviso aludida por Ccero no Pro Flacco213 e diz respeito ao pblico leitor da
carta: caso ela se destine a um correspondente ou a um grupo pequeno, si que ela seja escrita de
modo mais ntimo e secretivo; caso ela seja destinada a um pblico maior, deve em geral ser mais
cuidada e impessoal. conhecida, aqui, a tradio de publicar colees de cartas no mundo
antigo214; ao longo da histria latina, as cartas de Ccero e Csar gozavam de muita fama215 . E
quanto as cartas trocadas entre nossos autores: foram elas foram publicadas ou escritadas tendo em
vista um pblico maior? Acreditamos que sim. H menes, nalgumas delas, a um pblico que
ultrapassa um nico interlocutor216 , as quais no s esto nos tratados filosficos217 . Lietzmann,
Divjak, Hennings, Cain e outros autores discutiram a publicao imediata de algumas colees de
cartas de Jernimo e Agostinho, quais um conjunto de epistulae ad Paulam, ad diversos e ad
Marcellam do primeiro e algumas das cartas doutrinrias do segundo218.
Seja como for, toda carta de Jernimo apresenta profundo esmero no cuidado do estilo e na
autorepresentao do autor, uma vez que, para ele, escrever j era uma maneira de publicar219 . Esta
uma observao importante, pois Jernimo e Agostinho, alm de dialogarem em um mundo que
no tinha a mesma noo de privacidade que ns temos220 , discutiram questes que eram caras
comunidade crist e provavelmente foram lidas por todos os letrados de ento. No entanto, isso no
significa que a diviso entre cartas pblicas e privadas deixa de existir: a distino, assim como
a necessidade de adotar prerrogativas distintas em cada uma dessas situaes persistem na
Antiguidade Tardia, ainda que algumas modalidades da epistolografia crist acabem por derrubar
algumas fronteiras, caso das cartas da pregao de Paulo a comunidades especficas, mas a fim de
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serem lidas por todos os cristos, e tambm dos epitaphia de Jernimo, os quais so endereados a
indivduos, ao passo que claramente obras literrias221 . Igualmente, se a diviso entre cartas
pblicas e privativas no existisse mais, Jernimo no teria reclamado tanto do fato de uma
carta que Agostinho lhe escreveu ter circulado em Roma, antes de chegar a Belm222. coerente
concluir, portanto, que as cartas foram redigidas tendo em mente um nico correspondente
(Jernimo ou Agostinho), mas em vista de serem publicadas futuramente223.
A segunda diviso abordada por Ccero em uma carta a seu amigo Curio. Aqui, o
contexto que determina o assunto e o estilo mais adequado a uma carta: assuntos corriqueiros e
domsticos, brincadeiras, notcias pessoais pertencem ao genus familiare et iocosum, gnero
amigvel e brincalho, prprio de tempos de paz; questes sobre poltica e assuntos mais elevados
pertencem ao genus severum et grave, gnero austero e srio, prprio de tempos turbulentos e de
crise, que precludem as brincadeiras prpias do primeiro tipo224. Agostinho alude a uma diviso
binria semelhante em uma carta a Jernimo, na qual diz querer conversar com ele sobre assuntos
que sejam tanto abertos e planos como rduos e difceis: ou seja, ele quer trocar cartas com
Jernimo que sejam tanto amigveis quanto srias225 .
A terceira e mais afortunada diviso, aquela que Caio Jlio Vtor prope entre epistulae
familiares et negotiales, cartas de amizade e cartas de ofcio, deve-se tambm ao contexto ou
profisso do autor, por se assim dizer: se a carta enviada a um amigo, ou se ela configura uma
correspondncia cerimoniosa e negociosa, como uma mensagem ao imperador ou a uma pessoa
de grande influncia. Ambos os tipos certamente se fundamentam nos trs elementos elencados
anteriormente por Gregrio de Nazianzo: brevidade, clareza, e elegncia; deve haver, no entanto,
diferena no uso destas e no tom. Comecemos pela segunda categoria, que Jlio Vtor, com esprito
ciceroniano, afirma serem de argumento oficioso e srio: aqui, convm todos os preceitos da
oratria, com a exceo de que o discurso de desenrole mais prximo do sermo226 . Em cartas de
ofcio,o rtor admite que se discuta tambm assuntos mais eruditos, contanto que no se exceda o
tamanho ideal de uma carta227. Por outro lado, s cartas de amizade, Vtor preceitua primeiro
brevidade e clareza, mas admite que cartas podem ser obscuras a um pblico que no aquele ao
qual elas se destinam, tendo em mente que o interlocutor, a quem a carta deve ser imediatamente
compreensvel no pode pedir esclarecimentos ao narrador, por estarem ausentes um do outro228
(parece-nos que este o caso de algumas referncias feitas por Jernimo a Agostinho, em especial
numa carta alegrica enviada em meados de 418229).
A concluso de Jlio Vtor similar quela de seus antecessores: o estilo da carta deve ter
medida: o que diferencia uma epistula negotialis de uma familiaris , no fim das contas, uma
)42
severitas maior, maior austeridade230 . Ccero d veredicto semelhante: ainda que o estilo da carta
deva permanecer fundamentado no sermo plebeius, ele nem sempre igual; varia de relao para
relao231 . Assim, o que nos interessa no De epistulis de Jlio Vtor no sua concluso, que nada
traz de novo, mas a riqueza de detalhes trazidos pelo rtor. Devemos nos deter em alguns elementos
preceituados s cartas pelo autor: Jlio Vtor recomenda palavras estrangeiras, versos de poesia232 ,
jogos de palavras, figuras de linguagem, mximas, provrbios, ditos espirituosos, fatos histricos
que sejam conhecidos, citaes de autores estimados, interpelaes da fala como ei, tu a! e vejo
que ris233 . Com exceo destes ltimos, que eram vistos como vulgarismos na Antiguidade Tardia,
todos os outros elementos esto presentes nas missivas trocadas entre Jernimo e Agostinho. Eles
devem ser interpretados como smbolos de legitimao do discurso polido e civilizado, o sermo
urbanus da correspondncia entre homens cultos. Fry chama-os de automatismos do ritual
epistolar234.
Por fim, ainda que se preceitue um estilo mais elevado nas cartas de ofcio, a elocuo da
carta nunca deve perder de vista seu tom essencialmente amistoso235. Agostinho parece aludir a isso
quando afirma que uma carta que recebera de Jernimo, embora se veja nela censurado, no deixa
de ter um hilarior quidam vultus, um aspecto algo brincalho, e uma hilaritas, jocosidade, que
so prprios a uma conversa entre amigos236. Jernimo d a sentena noutra carta: deve-se
conversar com um amigo como um outro de si237. Ora, aqui temos o testemunho do prprio Jlio
Vtor, novamente: nunca se deve brigar, muito menos em cartas238 .
Mesmo nos estilos epistolares de Jernimo e Agostinho, que esto longe de serem
simples, o tom raramente se afasta de um princpio de equidade e amistosidade. Jernimo pode
ameaar, reclamar e atacar Agostinho em suas cartas, mas sempre a nota da humilitas e da
simplicitas que ele busca em suas concluses239 .

I. C. 5. A elocutio epistularis na correspondncia de Jernimo e de Agostinho


Deixamos uma discusso mais apropriada da elocutio epistularis na correspondncia entre
Jernimo e Agostinho para o final deste tpico. O estilo de ambos os autores surge de uma tenso
entre as regras da epistolografia, especificamente das epistulae familiares se assim quisermos, e o
fato de eles serem cristos, isto , de estarem trabalhando em um gnero de fortuna pag. evidente
que os estilos dos autores so profundamente diferentes um do outro, mas h traos em comum que
esto de acordo com os preceitos que discutimos acima.
De incio, uma anlise conjuntural dos estilos de nossos autores nos mostra que a pretenso
de naturalidade e imediatez do sermo uma questo problemtica, se no especiosa. O sermo
)43
plebeius, aquele mais vulgar, se j no adequado para explicar a epistolografia de um Ccero,
quo mais a de Jernimo, autor que circulava em grupos da elite semelhantes queles que
produziram o Arpinate, e que viveu em um perodo de gosto pelo esmero lingustico e pelos efeitos
retricos. O fato de tanto Agostinho quanto Jernimo utilizarem o latim gramaticalmente correto,
idioma que no artificial mas no natural tambm, outro sinal de que so homens da elite
que conversam entre si. Nunca devemos perder de vista que a lngua latina utilizada por nossos
autores, sendo um reflexo de sua posio social, uma lngua de arte, codificada e, em sua poca,
plus ciceronienne que Cicern, distante da linguagem popular240 .
Poder-se-ia pensar que o sermo humilis ou imperitus de Paulo de Tarso seria o mais
adequado a Jernimo e a Agostinho em suas cartas. Ora, so raras as ocasies em que nossos
autores o adotam. Em geral, o estilo de nossos correspondentes est distante de um estilo baixo
cristo, o qual, segundo Peter Auksi241, o parmetro de que o autor fala a verdade, livre de
adornos retricos. Este sermo humilis reservado aos sermes do bispo de Hipona e propriamente a
uma parte da correspondncia, que conforma uma disputatio, a qual provavelmente teve circulao
pblica242. Mesmo quando o estilo torna-se humilis e simplex, humilde e simples, fazendo-se
sentir pelo rebaixamento do discurso o qual se torna muito repetitivo e quase didtico, cheio de
subordinaes, pronomes mal referenciados e marcadores argumentativos de escola, como ergo, id
est, quia e scilicet abundantes243 o tom geral das cartas trocadas pelos nossos autores se pauta
pelas convenes de um sermo mais culto, entre o tenuis e o gratiosus propriamente244 . Ora, o
prprio Jernimo reclama do estilo algo pedestre que Agostinho emprega nalgumas vezes, como se
ele no fosse adequado s cartas, e sim s missas que ele reza ao povo245. Agostinho tem plena
noo de estar ento violando os princpios estilsticos da epistolografia, mas para ele justamente
no momento em que se preferem as convenes (ou seja, a aparncia) verdade que as leis de
uma amizade crist so violadas246 .
Certo, nunca se trata de uma busca por aticismo e pureza lingustica, como acontecia entre
os escritores pagos que eram contemporneos a Agostinho e Jernimo. No vocabulrio de nossos
autores, encontramos diversos neologismos e termos tcnicos eclesisticos Agostinho chama
alguns de termos polticos, vocabula honorum em latim247 ; na sintaxe, diversos relaxamentos e
conjugaes vulgares que revelam a influncia da linguagem falada, sem dvidas pelo fato de as
cartas serem ditadas248 . Todavia, tanto Agostinho como Jernimo dispem seu arsenal estilstico
atravs de citaes, provrbios, jogos de linguagem, perodos longos, at apstrofes249 como se
fossem golpes com os quais um disputa com o outro. Eles inclusive criticam e imitam a linguagem
um do outro, em um jogo de gato-e-rato que domina suas primeiras cartas250. A imperitia dicendi,
)44
rudeza na fala, do apstolo Paulo seria completamente inaceitvel na correspondncia mtua de
nossos autores, ou melhor, em qualquer correspondncia entre autores cultos cristos do sculo
IV251 .
Devemos agora demarcar as diferenas entre os autores no plano da elocutio. O estilo de
Jernimo mais breve e claro, construdo em perodos curtos, rpidos e contundentes, nunca
carente de adorno252: o autor no abandona sua atitude de esteta; sua linguagem formada por
diversos termos do jargo militar que ele usa para censurar Agostinho253. O estilo de Agostinho, por
outro lado, dado ao gosto da especulao e elaborao argumentativa, apresenta-se no raro em
sucesses de subordinaes, perodos longos e conjunes que o torna prolixa e labirntico, como se
a retrica tivesse se lhe tornado uma segunda natureza254 ; a fim de defender uma causa, o autor
abusa de termos do jargo escolar e discursa como um orador255. Para um e para o outro, estes sero
problemas no s estilsticos, mas morais, algo notado por Erasmo no sculo XVI em relao
brevidade de elocuo na retrica crist em geral256. Os nossos autores criticam o estilo um do outro
por diferentes razes: Jernimo chama a linguagem de Agostinho de , silogismos
escolares, ou at mesmo de fabula, novela, distantes da elegncia e da simplicidade necessrias
na epistolografia257; por sua vez, Agostinho diz que Jernimo discursa como se estivesse todo
armado, longe do tom amistoso necessrio ao sermo, afirmando que isto lhe traz indignidade258.
Ao criticarem o estilo um do outro, os autores esto, assim, criticando tambm a conduta do cristo
no plano da amicitia, a amizade, e da caritas, o amor ou a amizade crist. Nesse sentido, o
excessivo no raro traz a suspeita de heresia. Como coloca Fry, essa questo no se traduz na
condenao pura e simples da cultura pag ora, nossos autores esto longe de fazerem isso
mas na crtica de uma certa forma de afetao esttica que desloca o foco do sentido para a forma,
da verdade para a aparncia: segundo Fry, um excesso obnubilante de preocupao estilstica que
causa o problema, no o uso de elementos pagos259, algo que Agostinho parece criticar em
Jernimo260 .
Tendo isso em mente, podemos identificar vrias das prerrogativas dadas pelos tratadistas
antigos, as quais mostram a herana da tradio epistologrfica helenstica que nossos autores
estudaram na escola e aprenderam lendo as cartas de Ccero e outros autores. As citaes, os
provrbios e os outros elementos que do elegncia s cartas devem ser interpretados como acenos
pelos quais os autores mostram pertencer a uma mesma cultura e civilizao, a do mundo romano.
Na elaborao do discurso, isso acontece tanto no plano invisvel pelas busca intermitente de
brevidade e clareza, e pela crtica quando estas se ausentam quanto no plano visvel a srie de

)45
elementos preceituados por Jlio Vtor e Pseudo-Libnio, uma vez mais. As cartas de nossos
autores se pautam pelos princpios da brevitas, claritas e gratia.
Na correspondncia mtua de Agostinho e Jernimo, os principais autores clssicos citados
e aludidos so, em ordem descrescente: Ccero, nove vezes261 ; Salstio, cinco vezes262 ; Virglio,
quatro vezes263 ; Terncio, tambm quatro vezes264 ; Prsio, uma vez265. O rol no surpreende, pois
eram todos autores modelares da escola latina na Antiguidade Tardia. Tambm h menes
de Estescoro266, ao mito da carne invulnervel de Aquiles267 , e a doutrinas filosficas268.
H diversos termos estrangeiros, todos do grego, como a prpria e os
citados acima, os quais figuram no original nas cartas de nossos autores; so quase
todos termos tcnicos, como , acerca de uma hiptese sobre a origem da alma, e a
e a , usados por Agostinho para falar sobre as virtudes e os vcios269. Jogos de
palavras, h alguns, a maioria de Agostinho270 . Provrbios, h aos montes, quase todos de Jernimo:
o boi cansado pisa com mais firmeza271; o amigo como um outro de si272; a espada lambuzada
de mel273 ; entre outros, os quais so empregados por serem expresses tradicionais da sabedoria
coletiva: atravs delas, Jernimo mostra que a verdade de suas palavras autoevidente. Agostinho
j mais afeito s clausulae e s sententiae274, mximas que fecham os perodos e so prprias do
orador. Todos esses elementos sero analisados com mais detalhes em notas que apusemos nossa
traduo.
Devemos nos demorar um pouco, porm, no que diz respeito ao teor das citaes de autores
clssicos e dos provrbios. Podemos concluir que eles so muito mais abundantes em Jernimo, que
de fato os utiliza para adornar as suas cartas, a fim de demonstrar sua erudio275 . H inclusive um
caso em que ele prefere citar um autor clssico, Prsio, a uma passagem de teor semelhante,
proveniente do Evangelho de Mateus276 . Que tais elementos so ornamento no quer dizer que eles
no so fundamentais para a construo do sentido das cartas: as passagens que Jernimo tira de
Virglio (Dares contra Entelo), Ccero (Anbal contra Quinto Mximo) e Prsio (a mantica), assim
como os provrbios do boi cansado, do amigo como um outro de si, e da espada lambuzada de
mel servem todos como ameaas e corretivos da conduta de Agostinho, como veremos no captulo
seguinte. Por outro lado, so poucas as citaes que encontramos em Agostinho, a maioria delas de
Ccero, Salstio e Terncio. Devemos atribuir esta situao ignorncia do autor? certo que sua
erudio estava longe do conhecimento enciclopdico de Jernimo, mas esta resposta no nos
suficiente. Agostinho nos parece mais cuidadoso ao citar os autores pagos, e assim o faz, na
maioria das vezes, somente quando a passagem til para a sua argumentao. com esse esprito
que ele trabalha o argumento estoico-ciceroniano para a filologia de fides em uma carta277 ; o
)46
exemplo de Lcio Catilina, emprestado de Ccero e Salstio, como um homem no qual se
encontravam vcios e virtudes278 ; e os exemplos de figuras de linguagem, tropicae locutiones em
latim, tirados do De oratore e das Gergicas em outra carta279 . Os versos de Terncio e a noo da
, por outro lado, parecem ser empregados guisa de provrbios.
interessante notar que grande parte das passagens citadas de autores clssicos esto, na
maioria das vezes, acompanhadas de passagens bblicas, a fim de purific-las. Isso verdadeiro
sobretudo para Jernimo, que as cita com abundncia. Assim, o combate entre Anbal e Quinto
Mximo e alguns versos das Gergicas de Virglio so seguidos por uma anedota do Velho
Testamento, do segundo livro do profeta Samuel280. Outrossim, os Barceus vagantes da Eneida,
citados noutra carta, logo so corrigidos por uma passagem do Gnesis281. Dito isso, nossos
correspondentes aludem tambm a outros autores cristos, mas curiosamente pouco empregam
passagens de suas obras nas cartas282 (embora elas sejam citadas com muita frequncia). Por qual
razo isso acontece? Acreditamos que porque tais obras seriam autoevidentes um ao outro283.
Mas sob a artificialidade e elegncia, produto dos automatismos da arte do discurso, h
sempre a brutalidade do acaso presente no mtodo de composio dos autores, o ditado, que no
raro atropela a fala e preserva cacoetes que nem mesmo os copistas puderam expurgar: em
algumas cartas de Agostinho, preservam-se at locues verbais vulgares284; noutras, a sucesso
rpida de frases curtas e parenttica parece conservar antes os vcios inconscientes da fala que
surgir do desleixo cuidado sobre o qual falamos acima285.
Em suma, podemos concluir que os estilos dos autores em suas cartas est longe de ser
simples286: se ele fica colado ao sermo, trata-se de uma conveno do gnero, e pelo fato de os
autores ditarem suas cartas. Se o estilo se rebaixa ou se eleva, depende do contexto em que os
autores conversam: eles modulam suas elocues segundo os seus objetivos. De resto, h fatores
sociais, estruturais e casuais que escancaram o problema da epistolografia ser uma escrita da fala,
rendendo-lhe uma dupla camada de artificialidade. Um exame mais detalhado do estilo epistolar de
nossos autores, ou melhor, de todos os autores modelares da epistolografia antiga nos mostraria que
a naturalidade e a amistosidade da elocutio epistularis s pode ser, na realidade, produto de
meticulosa elaborao artstica, seja por ser escrita, seja por ser composta por autores versados na
arte do discurso.

)47
C. 6. Alguns elementos estilsticos das cartas crists
H alguns elementos estilsticos que identificamos em nossos estudos da correspondncia
entre Agostinho e Jernimo, os quais se devem ao fato de os autores serem cristos conversando em
um perodo de institucionalizao poltica da Igreja e universalizao da doutrina catlica.
Nas cartas de Agostinho, abundam termos como recta fides ou rectitudo fidei, auctoritas,
dignitas e canonicus, e, sobretudo, veritas287. Eles so indcios da busca por uma verdade
unvoca, isto , uma leitura correta das Escrituras, que possua tanto a auctoritas poltica do gradus
eclesistico, e a dos eventos recordados nas Escrituras Sagradas, quanto a indubitabilidade de uma
soluo racional, certa ratio, da reflexo filosfica uma verdade que esteja acima de todas as
particularidades, e assim de todas as suspeitas de heresia. Na realidade, este parece ser o grande
projeto da vida do autor288 .
Um aspecto interessante abundante na epistolografia crist tardia, mas no exclusivo dela,
o uso de substantivos abstratos, acompanhados por um possessivo tua ou vestra que se
tornam como que apelativos morais, frmulas de polidez com que os autores cristos se tratam
reciprocamente289. Esses apelativos, como dilectio, intelligentia, eruditio, sinceritas, beatitudo,
voluntas, caritas, prudentia, sanctitas, fraternitas, germanitas, benignitas, benevolentia, reverentia
e dignatio290 so metonmias que adquirem valor pronominal no texto, e tambm indicam com qual
disposio de nimo se deve ler determinada passagem, como se sinalizassem ao leitor mensagens
como: leia isso com amor, ou: preste ateno no que lhe digo. Quando Jernimo interpela
Agostinho ao dizer optime novit prudentia tua unumquemque in suo sensu abundare, de resto, tua
prudncia sabe muito bem que cada um conhece bem seu prprio modo de pensar291, ele no s
est censurando o seu correspondente, como tambm estabelece uma imagem. O uso desses
apelativos transforma a carta em um teatro de alegorias, um campo de batalha de emoes e de
escolhas ticas, estticas e polticas292 . patente, ainda, que a maioria dos apelativos, os mais
efusivos, so utilizados por Agostinho para Jernimo, ora para exort-lo, ora para repreende-lo293. O
monge de Belm s vai se dirigir a seu correspondente como tua prudentia, ameaando-o e
inferindo que sua interpretao das Escrituras incorreta; tua eruditio, de modo zombeteiro; tua
reverentia (apenas no segundo perodo da correspondncia); e sobretudo tua dignatio, tua
dignidade, em aluso ao poder poltico que o episcopado conferia Agostinho294. H ainda o uso
singular de tua corona em uma nica carta, um apelativo da terminologia dos mrtires295 .
justamente como um homem eminente que Agostinho, na condio de bispo de Hipona,
fala em suas cartas. Analisemos, ento, algumas das funes da epistolografia.

)48
I. D. Funes
I. D. 1. As situaes da epistolografia
evidente que, de incio, as cartas existem, mais do que qualquer outro gnero discursivo,
para construir e manter relaes a distncia e in absentia entre amigos. Ancorados nesta funo, foi
atravs da prtica de escrever cartas que os valores definidos como mais adequados epistolografia
flexibilidade de estrutura e estilo, naturalidade, moderao, maior liberdade acabaram
lentamente se tornando caractersticos desse gnero. Na Antiguidade, o gnero epistolar ento
passou a ser visto como um gnero de escrita essencialmente amigvel296 . Utilizar uma elocutio
colada no sermo a conversa ntima, direta, imediata mas que tenha a elegncia prpria do
sermo urbanus partilhado pelas elites coloc-la no plano da amizade.
Mas, se as funes bsicas de uma carta na Antiguidade so primeiramente docere e
delectare, o crescente grau de importncia da epistolografia no mbito profissional, assim como os
diferentes objetivos de cada autor far com que as cartas adquiram diversas outras funes que, em
ltima instncia, representam as relaes sociais do mundo helenstico297. Isso acontece porque a
epstola, sendo uma das metades de uma conversa, imita as mais diversas situaes nas quais um
sujeito pode dialogar com seu interlocutor: em momentos de alegria, de tristeza, de exortao, de
censura, de correo... Os autores antigos, entre os quais esto mesmo Ccero e Caio Jlio Vtor ao
terem proposto dividir as cartas entre dois tipos, logo perceberam que as diversas situaes da
epistolografia, por serem ancoradas no mundo real, eram bastante diferentes umas das outras e
pediam, assim, estilos, nveis de elocuo distintos e at modulaes estruturais diferentes.
Aqui se coloca um problema: entendido que a carta d voz s dinmicas das relaes sociais,
e sabemos que estas abarcam tambm o dio, o escrnio, a inveja e a malcia, que incorrem em
brigas, rixas e querelas, possvel encontrar, em muitas ocasies, um ar suspicioso na missiva,
como se o seu escritor desconfiasse que a voz amistosa fosse, na realidade, apenas uma mscara
dissimulando gestos na verdade hostis. Esse o caso das primeiras cartas trocadas entre Jernimo e
Agostinho: o primeiro sente-se ofendido e provocado pelo segundo, enquanto este critica muito a
posio de seu correspondente. Uma carta de contedo hostil era com frequncia vista como um
abuso do gnero epistolar e refletia, assim, um abuso proposital de seu autor ou a ignorncia deste
quanto s leis da epistolografia. A humildade e a simplicidade devem, assim, sempre pautar o tom
da carta: os correspondentes devem conversar como amigos, isto , como iguais298 , no havendo, a
princpio, lugar para crticas mais contundentes.

)49
I. D. 2. Epistolografia e retrica
As duas tipologias mais completas que nos chegaram da Antiguidade foram preservadas nos
manuais de Pseudo-Demtrio, os , e de Pseudo-Libnio, as
. Estes autores no propem uma cartilha de regras a ser seguida, mas uma taxonomia
de acordo com aes, situaes e contextos tpicos da epistolografia299 . Em busca de analisar as
cartas de Agostinho e Jernimo segundo a teoria antiga do gnero epistolar, objetivando assim
apresent-las de maneira prxima a como os prprios contemporneos dos autores as teriam lido,
empregamos amplamente as listas dos autores nas anlises individuais que fizemos da cada carta300.
Dito isso, Pseudo-Demtrio elenca vinte e um aspectos [] nos quais uma cartas pode ser
escrita. So eles:

1. , de amizade; 12. , de splica;


2. , de recomendao; 13. , de inqurito;
3. , de culpa; 14. , de declarao;
4. , de repreenso; 15. , de alegoria;
5. , de consolao; 16. , de satisfao;
6. , de censura; 17. , de acusao;
7. , de admonio; 18. , de desculpa, ou carta
8. , de ameaa; apologtica;
9. , de invectiva; 19. , de congratulao;
10. , de louvor; 20. , de ironia;
11. , de conselho; 21. , de agradecimento.

Estes so, portanto, vinte e um aspectos possveis de dar a uma carta, separados pelo autor
em formas [] acompanhadas de um breve esboo do arranjo e do contedo [ ] de
cada uma301. J Pseudo-Libnio elenca quarenta e uma situaes [] pertinentes
composio de cartas302 , as quais:

1. , parentica (persuaso e 12. , arrependimento;


dissuaso), ou de conselho; 13. , repreenso;
2. , culpa; 14. , compaixo;
3. , pedido; 15. , conciliao;
4. , recomendao; 16. , congratulao;
5. , ironia; 17. , desprezo;
6. , agradecimento; 18. , contra-acusao;
7. , amizade; 19. , resposta;
8. , desejo; 20. , provocao;
9. , ameaa; 21. , consolao;
10. , negao; 22. , ofensa;
11. , ordem; 23. , relato;
)50
24. , ira; 33. , consulta;
25. , diplomacia; 34. , declarao;
26. , louvor; 35. , escrnio;
27. , instruo; 36. , submisso;
28. , reprovao; 37. , enigma;
29. , difamao; 38. , sugesto;
30. , censura; 39. , lamentao;
31. , inqurito; 40. , amor;
32. , encorajamento; 41. , mista.

Essa ltima situao, a mista, alerta que a tipologia da epistolografia antiga, ao menos nos
testemunhos que temos dela, resiste a constituir uma taxonomia sistemtica: o prprio Pseudo-
Demtrio afirma, no incio de seu manual, que o tempo pode produzir mais tipos de cartas303 . Sendo
assim, a comparao com as tipologias propostas nesses manuais logra uma aproximao imperfeita
e tentativa.
no campo das funes da carta que encontramos os traos mais contundentes da
epistolografia em relao retrica304. O pesquisador de literatura clssica deve estar familiarizado
com a clssica diviso tripartite da arte do discurso305 : o genus deliberativum, o discurso
deliberativo [ ] ou suasrio, tpico da assembleia ou do Senado, onde se
decide a procedncia de uma ao futura, a fim de persuadir ou dissuadir o ouvinte de tomar uma
atitude; o genus iudiciale [ ], ou discurso judicial, o da corte e do frum, a fim de
debater se um ato ou no justo; e o genus laudativum, o discurso exortativo ou epiditico [
], usado em celebraes como festas, casamentos e funerais; alguns rtores admitiram
que estas categorias eram artificiais e tendiam mesmo a se sobrepor306 .
A experincia oratria, ou ao menos uma educao que levasse em conta a retrica, oferecia
ao escritor de cartas ferramentas para o manejo das convenes do gnero epistolar e para a
construo de seu texto. Sendo assim, as cartas pertencentes s categorias da amizade e da
recomendao so muito prximas da epiditica, o gnero discursivo mais afortunado na
epistolografia helenstica, segundo Stowers307; o mesmo vale para as categorias que orbitam nas
noes de louvor e responsabilidade308 isto , as cartas de louvor, culpa, invectiva,
congratulao, desculpa e agradecimento. Pertencem ao discurso deliberativo as cartas de conselho,
de admonio, de censura, repreenso e consolao. Todos esses tipos podem ser utilizados como
meios de exortao. O tipo exortativo da epistolografia, que tambm gravita nas noes de louvor
e culpa, importantssimo pois estas categorias o ato de dar e tirar a dignidade de uma
pessoa so basilares para o bom funcionamento da sociedade antiga309 . Do discurso judicial,

)51
podemos aproximar a carta de acusao (carta de contra-acusao em Pseudo-Libnio). Os outros
tipos no se encaixam muito bem na nomenclatura da retrica e dizem respeito tradio
pragmtica da epistolografia, que independente daquela310 .

I. D. 3. Algumas funes das cartas crists


Foram as cartas parenticas, aquelas mais prximas da epiditica, que se tornaram
exemplares para uma tradio especfica da epistolografia: a da carta filosfica311. Uma vez que a
carta o meio pelo qual se dialoga com pessoas ausentes, e vez que ela se baseia na linguagem
simples e direta, foi quase natural que os filsofos antigos empregassem-na como um instrumento
de instruo moral e doutrinamento. com zelo semelhante, na esteira dos epicuristas e estoicos,
que os escritores cristos escrevero de incio, com o objetivo central de converter os hereges
verdade de Cristo312. Paulo, os outros apstolos e os primeiros cristos como Incio de Antiquia
(ca. 35/50 - 98/117), Policarpo de Esmirna (ca. 69 - 155/160) e Clemente de Alexandria (ca. 150 -
ca. 250) assim trabalharam mais precisamente com missivas protrpticas, aquela parte do discurso
exortativo que convoca as pessoas a adotar um novo estilo de vida313 . As cartas tornaram-se desde o
princpio um grande, de fato o mais importante instrumento para os primeiros cristos pregarem e
difundirem sua f e articularem-se no mundo314.
De fato, a epistolografia crist nunca vai perder esse zelo missionrio, mas as cartas j
haviam adquirido muitas funes mais especficas na poca de nossos correspondentes, tornando-as
distantes da epistolografia protrptica paulina, cuja retrica surgiu em momentos de crise e de
perseguio. Para Agostinho e Jernimo, Paulo representa uma influncia de conduta e pregao
mais que de estilo e estrutura, os quais se devem maiormente epistolografia helenstica315 . Nossos
autores assim variam seu estilo de acordo com as situaes em que se encontram.
Fundamentalmente, a maioria das cartas trocadas entre Agostinho e Jernimo so cartas de
amizade, as ou epistulae familiares316 , pois contm tpicos prprios desse tipo. Todavia, o
contedo que nelas se coloca nos fora a especific-las. Trs tipos de carta deliberativa, as de
culpa uma carta de admonio317, da parte de Agostinho, a fim de obrigar Jernimo a repreender
um erro de interpretao das Escrituras; uma carta mista de desculpa318, consolao319 e censura320 ,
tambm da parte de Agostinho, a fim de conciliar-se com Jernimo e repreende-lo ao mesmo
tempo; e so de repreenso algumas cartas que Jernimo tambm escreve a Agostinho, pois se sente
moralmente ofendido por ele321 dominam o primeiro perodo de correspondncia entre os
autores. Jernimo tambm produz uma brilhante carta de acusao, ou melhor, contra-acusao,
uma espcie de adversus Augustinum que funciona como uma contra-causa emulando satiricamente
)52
o discurso de seu correspondente322. Ambos os autores tambm mostram destreza ao elaborar
simples relatos ou respostas, presentes entre as cartas finais trocadas por eles323; o mesmo para
curtas e efusivas cartas de agradecimento e de louvor324 . H tambm exemplos de uma carta de
recomendao, escrita por Jernimo325; de uma carta de desculpa, escrita por Agostinho326; e uma
carta de satisfao, da parte de Jernimo327.
importante ressaltar que a taxonomia das funes epistolares no sistemtica. Na
Antiguidade Tardia, sociedade em que o cristianismo j era religio oficial do Imprio e os bispos
eram homens de grande poder poltico, encontramos a rearticulao, ou mesmo violao, dos
limites do gnero epistolar nesse quesito. De incio, uma carta pode se tornar mais oficiosa e
pblica, por se assim dizer: um padre estava ligado sua comunidade e Igreja. Baxter cita
diversos tipos de cartas formais, litterae formatae, comuns na troca epistolar mais oficiosa da
Igreja328. Assim, peties, satisfaes, polmicas, defesas de interpretaes, crenas e prticas,
cartas de exortao vida monstica tornam-se funes comuns nas cartas de epistolgrafos
cristos latinos como Ambrsio, Agostinho e Jernimo329 . Podemos citar ainda o uso de cartas
como invectivas, atas de snodos e conclios, panfletos de doutrina, ditos, tratados e sermes330 .
Mesmo o epitaphium, a carta de consolao, adquire toda uma tonalidade nova no perodo cristo:
sendo um subgnero do louvor, no qual se elabora um elogio fnebre enquanto se impele o lutuoso
para a vida crist, os autores cristos usavam o epitaphium para pregar os ensinamentos de
Cristo331. Esses autores usaram suas cartas tambm para louvar e censurar uns aos outros332 , discutir
a administrao da Igreja, articular as bases de uma doutrina catlica, interceder pela comunidade
eclesistica.
Sendo assim, muito comum encontrar Agostinho utilizando termos e jarges do
vocabulrio jurdico333, e Jernimo os do vocabulrio militar. O fato de o primeiro empregar muitas
vezes um estilo epistolar que imita o discurso jurdico explica-se pelo seu cargo de bispo
(Agostinho era um personagem pblico que atuava no mundo poltico); por uma caracterstica
prpria da polmica crist; e pelos vcios lingusticos provenientes de sua carreira como rtor. A
profuso de palavras vindas do vocabulrio militar, no caso de Jernimo, parece vir j da postura do
autor, no menos poltica, em combater as heresias como o velho soldado, posio que se deve a
uma disputatio. possvel encontrar, ainda no estilo desse autor, ecos da crescente militarizao do
Imprio: ele parece escrever como um historiador da poca, o general Amiano Marcelino (325/330 -
391)334. Apontamos e discutimos esses elementos nas introdues individuais de cada carta.
No mais, Jennifer Ebbeler, especialista na epistolografia agostiniana, tem demonstrado em
artigos e livros que a relao conturbada entre nossos autores deve-se em partes ao fato de o bispo
)53
de Hipona ter introduzido tpicos de censura, repreenso e admonio em cartas que so
essencialmente de amizade (e endereadas a uma pessoa que ele se correspondia pela primeira vez,
devemos adicionar), uma vez que aqueles eram tradicionalmente reservados a pessoas com quem o
correspondente tinha uma relao prvia e turbulenta335. A pesquisadora indica que Agostinho,
assim, estava conscientemente violando as prerrogativas do gnero epistolar, e ainda adiciona que o
autor introduziu tais tpicos a fim de admoestar e censurar um erro de interpretao de Jernimo
como se este fosse uma atitude repreensvel, pois entre os cristos no deve haver diferena entre
palavra e ao: pense o tal isto, que, quais somos na palavra por cartas, estando ausentes, tais
seremos tambm por obra, estando presentes336. Assim, um erro de interpretao de Jernimo
equivaleria a uma ferida na comunho universal da caritas, a amizade crist337. nessa chave que
vai se dar a disputatio entre os autores, a qual discutiremos no tpico seguinte.
No entanto, cartas tpicas de amizade ainda so trocadas amplamente, e, como discutimos
em tpicos anteriores, tornam-se bastante mais elaboradas na Antiguidade Tardia, refletindo a
ascenso social do cristianismo e a origem, ainda que no aristocrtica, educada da maioria dos
bispos338 . Sendo assim, encontramos, nas cartas trocadas por nossos autores, dois cristos eruditos e
educados devendo conversar entre si, a princpio, como amigos, isto , como iguais, e assim
devendo seguir os cdigos de conduta prprios da religio amicitiae, as leis da amizade. nela,
enfim, que reside o dever epistolar que mencionamos no incio do captulo: reflexo turvo, pois
interrompido, de uma conversa amigvel no mundo real, a carta est mergulhada em jogos de
etiqueta, poder, e anelo; como coloca Trapp: de modo calculado ou no, os escritores controlam
seu estilo e a maneira como se apresentam aos seus correspondentes, luz da posio social deles
mesmos e de seus correspondentes, e do tipo de relao que eles esto tentando cultivar339 . O
perodo cristo no exceo a essa regra.
Portanto, o gnero epistolar, assim como as mudanas que os cristos trazem a ele, deve ser
contextualizado, pois as convenes da epistolografia so, em parte, as mesmas das relaes sociais.
Cartas, na medida em que refletem as dinmicas das relaes sociais, so dominadas por
expectativas e regras de conduta. Uma funo importante da carta, assim, identitria: troc-las
uma maneira de inserir-se e mover-se social e politicamente no mundo; elas so tambm o campo
ideal para a construo do , o carter, do escritor340.

)54
I. E. Contextos
I. E. 1. A religio amicitiae: construir redes de contatos
Se a finalidade de uma carta na Antiguidade em origem informar uma pessoa ausente, sua
funo ser, por meio escrito, conduzir as relaes sociais em um mundo cuja hierarquia tem razes
profundas e firmes, e cujo valor mais importante cristalizado na representao ou imagem que
uma pessoa tem aos olhos de seus pares, no jargo jurdico a honra objetiva: falamos da dignitas, a
qual traduziremos por dignidade341 . Esta pressupe, na epistolografia, que um autor represente-se de
maneira sobretudo adequada a sua posio social, poltica e, no perodo cristo, religiosa, mas
tambm de modo amigvel, para que assim se obtenha f para a veracidade do que se diz. Na
realidade, a professora Elaine Sartorelli indica que a dignitas uma prerrogativa a todo gnero
discursivo, do contrrio a mensagem convencionada levanta a suspeita de no ser legtima e dar-se
por qualquer outro motivo, qual a inveja, o dio, e o desprezo342 . No caso do gnero epistolar,
quando um autor adota um discurso que no amigvel, ou seja, que no pressupe uma conversa
entre iguais, ou quando prescinde das convenes prprias da epistolografia, tais situaes
consequentemente so vistas como violaes do dever epistolar e das leis da cordialidade sobre
as quais falamos acima.
Segundo Stowers, havia trs conjuntos centrais de relaes sociais na Antiguidade343 . Em
primeiro lugar, relaes hierrquicas entre subordinados e superiores, exemplificadas pela relao
do patronus com seus clientes: enquanto a aristocracia intercedia pelo povo, preenchia os cargos
pblicos das cidades e cuidava das finanas pblicas, a populao lhe honrava com esttuas,
memoriais e inscries; este sistema permanece em larga parte imutado at o sculo IV, perodo em
que os curiales, os funcionrios pblicos da burocracia imperial, do lugar aos bispos e presbteros
na gerncia dos municpios. Em segundo lugar, havia relaes entre pares, baseadas nas convenes
da amizade. Em terceiro e ltimo lugar, encontramos as relaes intrafamiliares, as quais combinam
caractersticas dos dois primeiros conjuntos: tratam-se de interaes hierrquicas baseadas na
supremacia do paterfamilias, mas que se fundamentam no ideal de amicitia.
Coadunados a esses trs tipos de relaes, Stowers destaca dois processos morais basilares
para o bom funcionamento da sociedade antiga. O primeiro deles fundamenta-se na dupla ao de
louvar e censurar os hbitos, aes e o comportamento de determinada pessoa, isto , dar e tirar a
reputao ou dignidade. Louvar significa confiar a dignitas a algum, reconhecendo-lhe a
eminncia; censurar, por outro lado, incorria em extrair a dignitas de um homem, considerando-lhe
indignus, causando-lhe vergonha, tratando-o como um inferior. O segundo processo moral, por sua
)55
vez, baseia-se na dupla ao de persuadir e dissuadir o destinatrio de qualquer coisa, para se atingir
um objetivo qualquer. Na epistolografia, na medida em que a prtica reflete as dinmicas sociais, a
centralidade da persuaso explica-se pela importncia de construir uma imagem crvel e plausvel
de si e dos outros, adequada aos status dos escritores na vida real, e a fim de convencer o leitor da
carta da veracidade do que foi dito ou escrito. A frmula mihi crede, acredita em mim, por
exemplo, aparece j amide em cartas de Ccero344.
Em partes, na necessidade de mostrar respeito, isto , portar-se com dignitas, onde se situa
o officium epistulare, o qual, por sua vez, pretende imitar o officium da vida real, o dever de
tomar determinada conduta que seja adequada com a posio social e poltica do autor. O sistema
maior que proporcionar esse officium, tanto o real quanto o epistolar, desses dois processos de
legitimao do status quo um exortativo, quando se louva ou censura uma pessoa; e o outro
suasrio/deliberativo, quando se tenta persuadi-la e que consequentemente os sustenta advm do
conceito antigo de , o ideal grego de amizade, que acaba influenciando na ideia de amicitia,
ou mais propriamente religio amicitiae, as leis no-ditas que regulam as interaes sociais entre
pares no mundo romano. O princpio da amistosidade, por se assim traduzir, est presente na
maioria esmagadora das cartas antigas, at mesmo em cartas a superiores, aquelas que devem ser
mais elaboradas e devem levar em conta o primeiro conjunto de relaes hierrquicas345. No
entanto, a , que era exclusivamente masculina, no tinha papel poltico central no mundo
hiperurbanizado e massificado dos tempos helensticos e romanos: em seu lugar, a amicitia latina
(cujo parentesco antes com a grega346) no enfatizava tanto os sentimentos e afeies do
gnero masculino, mas ancorava-se sobretudo nas relaes hierrquico-familiares e nas alianas
intrafamiliares.
Segundo Ccero, a amizade a unio em tudo que humano e divino347. Diferente dos
gregos, os latinos consideravam a amicitia a base de sua poltica: toda relao social no mundo
romano deveria se regular atravs dela348. Ambos esses processos, o de louvar/censurar e o de
persuadir, nuclear para a construo do do escritor, esto fundamentados na dignitas e assim
intrinsecamente ligados um ao outro na amicitia. Do mesmo modo, as funes derivadas da
categoria da epiditica conselho, exortao, dissuasso, ou mesmo a repreenso, a censura e a
admonio dada a centralidade da persuaso para se construir um modelo crvel de si e do outro,
so igualmente importantes para a prtica epistologrfica. Por exemplo, na amicitia que se
sustenta um tipo especfico e muito importante de carta ao longo de toda a Antiguidade, a carta de
recomendao, em grego ou commendaticia em latim349. Ela representa o smbolo mais
fiel e honesto da amizade, pois uma pessoa intercede em favor de outra, falando em nome da
)56
dignitas de um terceiro. Para o homem antigo, era importantssimo tanto retratar-se como ser
retratado favoravelmente, em especial por homens importantes. Uma descrio negativa traria
dificuldades no convvio social; uma descrio positiva, ao contrrio, poderia abrir portas; uma
descrio ofensiva e falaciosa incorreria na ira do retratado, pois atentaria contra a sua dignitas,
subestimando a correo de sua conduta350.
Desse modo, era muito raro encontrar censura e repreenso em cartas que fossem
essencialmente de amizade, pois esses tpicos entram em confronto com a dignitas. Na
Antiguidade, o tom das cartas, devendo ser amistoso, no raro se caracterizava pela bajulao do
correspondente. Stowers nota que mesmo cartas de admonio, as quais buscam a (a
mudana de juzo) do interlocutor, se escreviam geralmente quando a relao entre os autores j era
previamente tensa351 . A censura, no importa no que fosse e qual fosse o motivo, sempre implicava
em um juzo desfavorvel da outra parte e assim era evitada em cartas, pois poderia parecer um
abuso do meio epistolar.
No entanto, essa questo deve ser problematizada no tocante correspondncia crist, em
especial a agostiniana, a partir de um outro ideal de amizade, a caritas ou caridade.

I. E. 2. A caritas crist: identidade e articulao poltica na Antiguidade Tardia


O objetivo dos cristos ao se corresponderem por meio de cartas era, desde o incio, o
mesmo de seus antecessores pagos: por um lado, construir redes de contatos e articular-se poltica
e socialmente no mundo helenstico; por outro, construir uma identidade prpria que os
distinguisse como grupo, como fizeram os epicuristas e estoicos352. O que os diferencia a procura
de uma identidade holstica que subjulgasse a individualidade e exclusividade dada pela civitas, a
cidadania que ligava o homem romano aos valores de seu mundo, por uma identidade construda
em ideais pan-cristos universalizantes, comunitrios, e que fossem distintos daquela353 . As
modificaes introduzidas nas cartas crists, as quais vimos trabalhando at ento, se devem
basicamente a esse objetivo de construir uma identidade e de converter quem ainda no pertencia a
ela; um objetivo que o cristianismo emprestou da tradio da epistolografia filosfica354. As cartas
de exortao, to importantes para os cristos, tm sempre o fim de contribuir para a vida em
comunidade, e no na conquista individual da virtude; melhor dizendo, esta se d somente atravs
da articulao dos cristos como um grupo.
Inicialmente, os autores cristos evitaram utilizar os denominadores , latim amicus, em
suas cartas, pela fortuna pag que os termos carregavam355, preferindo, como mostramos ao discutir
a estrutura da carta, denominadores emprestados do vocabulrio familiar. Isso tambm acontece
)57
porque os evangelizadores, alm de descenderem das tradies da epistolografia judaica (como as
romanas, elas enfatizaram as relaes hierrquico-familiares356 ) buscam um comunitrio, no
individual. Os cristos se viam como uma terceira raa, advinda dos judeus, mas no exatamente
pertencente a esse povo, e nem aos gregos ou romanos tampouco. Um documento elucidativo nesta
busca por uma definio comunitria e avessa aos valores greco-romanos a carta a Diogneto,
escrita por um cristo annimo do sculo II ou III d. C.357 . A definio supralocal e supraterrena do
que ser cristo est nas origens do cristianismo.
Assim, a epistolografia foi o meio utilizado pelos cristos para articularem sua identidade.
As cartas, uma vez que eram o meio pelo qual era possvel construir e manter relaes in absentia,
se tornam o suporte textual ideal para o cristianismo, de modo que esta religio pode ser definida
inicialmente como um movimento de escritores de cartas358. Stowers estima mais de nove mil
cartas suprstites de cristos na Antiguidade, muitas das quais descendem da Antiguidade Tardia. Se
no fosse pela epistolografia, os cristos no teriam conseguido se articular e se solidificado como
um grupo. No se de espantar que a maioria dos textos do Novo Testamento j so
epistologrficos: no s as cartas de Paulo de Tarso, mas tambm os Evangelhos so, embora
prescindam das convenes do gnero epistolar helenstico, textos fundamentalmente epistolares.
O mesmo para a Revelao de Joo e os Atos dos Apstolos, os quais contm, em seu corpo, cartas.
A funo do Novo Testamento como um todo anunciar a vinda de Cristo, levando as boas novas
a todos os homens359.
Paulo foi o grande epistolgrafo e pregador cristo do Novo Testamento. Pode-se dizer que
os vrios sectos do cristianismo que surgiram durante a Antiguidade descendem todos, em ltima
instncia, de diferentes interpretaes das cartas do apstolo; ele sempre a pedra de toque, no que
diz respeito ao modelo de conduta do pregador, dos autores patrsticos360. De Paulo a Cassiodoro, os
grupos cristos, ao trazerem vises de mundo articuladas, e a oferecerem cada qual uma identidade
de grupo, almejaram suplantar a civitas latina, mas fizeram isso de maneira to diferente que
surgiram diversos cristianismos cada qual com caractersticas ligeiramente diferentes das dos
demais361. At a cristianizao do Imprio, o cristo no existe seno como uma sensao
abstrata de ser fundamentalmente um seguidor de Cristo e, sobretudo, um no-romano.
Ser somente ao longo do sculo IV e V que um grupo cristo especfico, o catlico, buscar
se firmar s custas da excluso de outros sectos, fundamentando-se em uma unidade doutrinria e
religiosa. Jernimo, Agostinho e Ambrsio esto no epicentro desse processo, e a correspondncia
travada pelos dois primeiros se d em um perodo de crises, cismas e polmicas, em especial contra
os donatistas e pelagianos, as quais discutiremos no segundo captulo.
)58
Assim, com a cristianizao do Imprio e com a consequente institucionalizao da Igreja e
ascenso social de seus membros, a amicitia passou novamente a influenciar as relaes sociais362 .
Indcio disso que h, na epistolografia crist latina e semelhana da epistolografia clssica, uma
grande nfase na dignitas e no meritus, o mrito o indcio de que a dignitas ilibada dos
escritores eminentes do cristianismo, homens preocupados com sua figura pblica e com as
dinmicas polticas da poca363 . Em referncia, a nosso ver irnica, posio social de seu
correspondente, veremos que Jernimo chama Agostinho de tua dignatio e tua reverentia copiosas
vezes364 . Atravs da amicitia, a cristandade instalou-se no campo scio-poltico do mundo
helenstico (ou, como diria Agostinho, a civitas Dei fez-se a civitas terrena).
Mas sempre existir uma tenso entre o estrangeirismo inerente de ser cristo frente ao
ser romano, uma vez que os valores da cristandade haviam se desenvolvido em oposio aos
valores helensticos. Desse modo, os autores cristos do sculo IV apresentam em suas cartas um
dialtico e em si contraditrio: um social e individual, representado na dignitas, na esteira das
convenes da epistolografia e dos valores sociais que sustentavam essa prtica; e um comunitrio,
essencialmente cristo, que a princpio se coloca contra os valores nutridos pelo Imprio e,
notadamente, pela retrica365 . Em outras palavras, o contexto da epistolografia crist latina reside
em uma tenso intrnseca entre a busca de uma identidade particular e uma universal, as quais so,
segundo a tradio, excludentes: ora, a dignitas deve ser a princpio baseada na civitas, e no na
religio.
Os cristos devem, para solucionar esta oposio, modificar as regras de conduta e
expectativas que at ento regiam as relaes epistolares, assim expandindo os limites do gnero.
Na Antiguidade Tardia, a religio amicitiae toma ento novos contornos, religiosos e tambm
sociais, que se amalgamam com a caritas, um tipo essencialmente cristo de amizade366. Agostinho
d uma formulao simples para o significado de uma amicitia crist: ubicumque fratrem diligitis,
amicum diligitis, sempre que tu amas um irmo, tu estars amando um amigo367. Assim, a caritas
vincula-se tambm aos ideais de fraternitas e germanitas, fraternidade e irmandade, e tambm
de benevolentia, os quais, por sua vez, descendem da noo de ou amor, que de fato o
cumprimento da Lei e a nica virtude segundo o apstolo Paulo, a lei maior do cristianismo368 .
A verdadeira amizade crist aquela na qual o prprio Deus juntou os amigos, unidos na comunho
do Esprito369 : nela, o amigo se entrega totalmente a seus companheiros, devendo-lhes completa f,
pois a unio pela caritas representa a unio com Deus370 . Igualmente, a verdadeira amizade,
segundo Agostinho, pressupe que amigos aprendam e ensinem uns aos outros mutuamente, e assim
corrijam os erros um do outro371. Assim, prerrogativa da caritas que se ame ao prximo como a
)59
um irmo, que se fale a verdade (veritas)372 com franqueza e sinceridade (sinceritas)373, que haja
liberdade (libertas)374 para conversar sobre o que quer que o seja de maneira aberta (aperte), que se
aceite humildemente a repreenso de um amigo, ainda que ela seja aplicada com austeridade
(severitas) quando se desvia do mau caminho375 .
certo que o dever de repreender um amigo algo j presente no ideal de amicitia
ciceroniana. Mas na caritas crist, esta se faz uma necessidade e ainda mais grave: mais do que
uma relao de amizade, a observncia da caritas confunde-se com a conduta correta de
determinado autor como um cristo, ou seja, com sua ortodoxia376. Agir em detrimento dela incorria
no esvaziamento da dignitas do correspondente, na suspeita de heresia e na consequente
deslegitimao de seu discurso, devendo este ser este assim legitimamente censurado e corrigido.
Agostinho vai criticar muito a postura toda armada, e mesmo a resistncia de Jernimo em
respond-lo377 .
Em suma, os primeiros autores cristos haviam, desde a poca de Paulo, concludo que as
noes de amicitia e caritas eram antitticas. A primeira se sustentava no mundo social e poltico,
mergulhado nos valores romanos; a segunda, na medida em que se colocava em oposio a esses,
sustentava-se pela unio na f ortodoxa e na busca de irmandade, simplicidade e humildade. A
religio amicitiae proibia a censura em cartas de amizade, e no raro se caracterizava pela
efusividade e pelo tom adulatrio ao correspondente. Todavia, os autores cristos do sculo IV
procuraram aliar os conceitos de amicitia e caritas, modificando, como vimos acima, os prprios
aspectos das dinmicas sociais, que se refletem em mudanas estruturais, estilsticos e funcionais no
gnero epistolar, a fim de criar um officium, tanto na vida social quanto na epistolografia, que fosse
tanto latino quanto cristo. Na latinidade, Ambrsio de Milo foi o terico pioneiro desse
processo378.

I. E. 3. Caritas maior: alm da religio amicitiae


Frst, Ebbeler e Rebenich mostraram que o ideal corretivo e disciplinante da caritas,
aplicada mutuamente por amigos, central para o pensamento agostiniano, sendo tanto
imprescindvel para o desenvolvimento moral do prprio autor quanto bastante inovador e
controvertido para o gnero epistolar379 . Mesmo autores cristos da Antiguidade Tardia, exemplos
de Gregrio de Nazianzo e Jernimo, continuaram a evitar admonies, repreenses e censuras em
suas cartas a amigos, tendo procurado convencionar a caritas amicitia380. O ideal agostiniano de
caritas descende em partes da influncia de Paulo de Tarso e de Ambrsio na pregao do autor381 ,
e em partes de sua formao neoplatnica (e ciceroniana-estoica): para ele, a razo, o debate e a
)60
correo mtua eram prerrogativas das relaes de amizade382 . Equivale dizer que o cdigo de
conduta aventado por Agostinho em um debate cristo fundamentalmente aquele da heurstica
filosfica, proposto por Plato no Grgias383 e retomado por Ccero no De finibus. Citamos a
passagem do Arpinate, a qual ser importante para compreendermos a rixa que surge entre
Agostinho e Jernimo em suas cartas:

Por essa razo, as repreenses entre pessoas que discutem no devem ser respondidas com o vituprio, a
queixa, o insulto, mesmo a fria; as contendas e rixas que surgem na obstinao pela disputa me parecem
indignas para a filosofia [...] ora, no possvel discutir sem que haja repreenso, tampouco se pode discutir na
presena da fria e da obstinao.384

A caritas agostiniana no se ope amicitia pag como acontecia entre os autores do


cristianismo primevo, mas representa a busca de sua reinterpretao385, conforme afirmamos acima.
Em grande parte, os termos amor, amicitia, caritas e dilectio so sinonmicos para o bispo de
Hipona386; o problema de Agostinho era com a amizade mundana, que se pautava pela
artificialidade dos gestos387 . Para o autor, a amizade antes uma questo de esprito que de matria:
a legitimidade de uma censura est na pureza do corao de um cristo e na confiana de que ele
fala a verdade, de modo que corrigir o erro de um amigo no representa um ataque dignidade do
correspondente388. Usaremos o termo caritas to-somente para diferenci-lo da noo que Jernimo
tem de amicitia, a qual ainda est intimamente ligada aos ideais pagos da religio.
A caritas agostiniana procura ultrapassar os limites colocados pelo gnero epistolar: para o
bispo de Hipona, uma censura franca permitida, ou melhor, necessria em uma conversa entre
amigos, como o prprio autor enfatiza em suas cartas a Jernimo389. Afinal, as diferentes formas de
repreender algum de um erro moral a admonio, a repreenso, e a censura so mecanismos
legtimos em qualquer tipo de discurso, e amplamente utilizados na tradio da epistolografia
filosfica e protrptica crist desde tempos de Paulo. Agostinho interpreta a legitimidade da
repreenso em uma relao amistosa do ponto de vista medicinal: ela necessria para que uma
pessoa seja curada de um erro, como um homem se cura de uma doena390.
Agostinho prope um novo cdigo epistolar baseado na caritas, na presena da qual o autor
vai se dar o direito de introduzir tpicos avessos tradio do gnero epistolar, assim
conscientemente violando as convenes da amicitia391 . Imbudo do esprito de Paulo de Tarso392 , o
bispo de Hipona introduz ento a repreenso amigvel393 e a censura franca como topoi
inovadores de epistulae familiares e, no entender do prprio Agostinho, essencialmente cristos,

)61
tambm maneira de um officium. Esta inovao no se limitou correspondncia dele com
Jernimo, mas tambm aparece em cartas ao gramtico Mximo e a Paulino de Nola; a censura
franca figura at mesmo em uma pseudo-carta de consolao, na realidade uma carta de satisfao
na qual Agostinho se recusa a escrever um epitaphium, enviada a Cornlio (interlocutor que os
pesquisadores identificaram com o antigo protetor do bispo, Romaniano). Nela, Agostinho justifica
sua recusa sob o pretexto de Cornlio buscar a lisonja e no um paliativo para a sua dor, e ao
mesmo tempo censura-o por seu comportamento errtico e imoral (Romaniano, recm enviuvado,
estava namorando outras mulheres)394.
Nas cartas de nossos autores, portanto, encontramos uma tenso entre os ideais de amicitia,
cujas leis balizavam o velho mos epistularum, e de caritas, ora adaptada quela, nas cartas de
Jernimo, ora contrastante, nas cartas de Agostinho, este que foi, no entender de Carolinne White, o
grande terico da amizade crist em seu tempo395 . Em nenhum outro lugar Agostinho expressa
to bem a tenso entre a amicitia e a caritas, e assim entre os valores pagos e os valores cristos,
que nesta passagem de sua mais longa carta a Jernimo:

[...] no caso de haver passagens em tuas obras que venham a me incomodar, eu j confiei a ti a minha
preocupao, desejoso de que todos mantenham em relao a mim um princpio que eu tambm mantive em
relao a ti: que, se suspeitarem de qualquer coisa reprovvel em meus textos, que no a escondam nas
profundezas do corao; que no a repreendam entre outros, a fim de se calarem em minha presena; estimo
que antes numa situao tal que se golpeia a amizade, que so violadas as leis da cordialidade. Afinal, eu no
sei se podemos considerar crists as amizades nas quais mais vale o provrbio popular, o favor produz
amigos; a verdade, o dio, que o dito eclesistico, leais so as feridas feitas pelo amigo, mas os beijos do
inimigo so enganosos. 396

Outrossim, Agostinho diz querer de Jernimo uma caritas maior para que possam
repreender um ao outro sem que com isso eles se sintam ofendidos397, mas seu correspondente
responder com a iracundia, contumelia e maledicentia que Ccero havia censurado no De finibus.
Jernimo no aceita que haja uma censura em cartas de amizade, no conseguindo diferenciar entre
uma crtica de conduta e uma chamada ao confronto398 , de modo que as cartas de Agostinho lhes
foram tomadas como uma polmica disfarada. Aos olhos do monge de Belm, como notou
Ebbeler, a noo agostiniana de caritas parecia estranhamente epicurista uma espada
lambuzada de mel , pois escondia censuras graves sob a retrica epistolar da amizade399 . Mas
Jernimo no estava de todo errado: a repreenso amigvel uma estratgia tpica de Agostinho
para que ele possa corrigir os erros de outros400 .

)62
A caritas agostiniana tambm pressupunha uma conversa entre iguais, ou seja, entre fratres,
mas que estivesse imbuda dos valores cristos e que pudesse assim prescindir dos onerosos cdigos
de conduta devidos religio amicitiae. Neste impasse, que se deve fundamentalmente a concepes
diversas de amizade e assim dos objetivos de uma relao epistolar, encontra-se a chave para
interpretarmos a rixa que veremos surgir entre os autores. Ao longo de todas as cartas trocadas entre
nossos eles, Agostinho aparece como um cristo que procura se livrar das convenes sociais da
religio amicitiae, ao passo que Jernimo mostra-se como um fiel observador desta.

I. E. 4. O problema do cristo: polmica e censura


Entendemos como a construo de uma imagem de si que, no caso do cristianismo,
torna-se invariavelmente uma imagem universal do cristo pois, como h um nico Deus e uma
nica Verdade, deve haver uma nica conduta correta crist, a qual deve ser imitada por todos os
fiis. Partimos da definio clssica de Aristteles: o a representao moral do orador,
utilizada, ao lado da argumentao, o , e da emoo, a , para se persuadir o
interlocutor401. Uma vez que a carta se faz tradicionalmente inimiga da platitude declamatria e da
minuciosidade argumentativa, o , uma vez mais, que se faz corao na epistolografia. na
sua autorepresentao, engendrada pelo discurso, que o locutor se legitima e faz com que suas
palavras sejam legtimas.
No perodo cristo, comportamento moral e discurso, ao e palavra, se ligaram de uma
maneira que no fora possvel outrora. verdade que, na retrica antiga, j havia uma relao de
dependncia entre o mtodo discursivo de um orador e sua vida. Um homem que discursa bem
reflete um homem que vive de maneira correta, algo condensado em uma frase de Ccero: qualis
autem homo ipse esset, talis eius esse sermonem, qual seja o prprio homem, tal seja a sua
conversa402 . Quintiliano afirma que as qualidades de um orador so fundamentais para que ele
venha a persuadir sua audincia, algo que no mundo latino se dizia facere fidem, fazer a f, ou
criar confiana403.
Para os cristos, essa fides, antes resultado de uma negociao discursiva entre orador e
audincia, passa agora a fazer parte do plano moral e religioso. Os verba se colam ento res, e o
modo de falar se torna um espelho do esprito do homem404 . Pois do que h abundncia no
corao, disso fala a boca405, de modo que um discurso bem escrito e correto na perspectiva da f
reflete a conduta boa e correta de um cristo. Esta conduta deve ser simples [simplex], humilde
[humilis], pura [munda], e deve ter caritas; do mesmo modo, o estilo tambm deveria ser simples,
humilde, puro e amoroso. Trata-se, aqui, mais que um mecanismo de persuaso, mas de uma
)63
profisso de f, uma prova tanto da autenticidade da interpretao quanto da integridade moral do
autor. Sendo assim, quaisquer vcios de linguagem correspondem a faltas morais, ou a pecados do
autor cristo. Um erro de interpretao sinal de que o autor pode ser um herege.
O orador cristo deve falar e agir de modo verdico pois a Verdade uma, simples e pura, e
ela que, autosuficiente, legitima o seu discurso. Ele atua como um testemunho dela, devendo
provar, por meio de sua conduta, que o mensageiro apto a receber e pregar a Palavra, e que sua
leitura ou interpretao das Escrituras a nica correta, estando todas as outras erradas, pois
diferentes e assim excludentes. Sartorelli indica, a partir da noo de Apostolikon, a apresentao do
apstolo como um eu enviado (um protetor da verdade, nas palavras de Jernimo406), visto que
a passagem de leitor das Escrituras a pregador da Verdade no pode ser seno uma misso407. O
intrprete das Escrituras coloca-se como veculo da autoridade das Escrituras e dos pais da Igreja408 ,
cuja interpretao correta um officium, pois atravs dela depende a salvao dos homens e a
remisso dos pecados e assim, na viso de Agostinho, o prprio bem-estar e unidade da Igreja
como instituio, a qual ele deve salvaguardar na condio de bispo, descendente dos apstolos.
Trata-se tambm de uma misso, portanto, comunicar e corrigir qualquer erro de interpretao
por meio de qualquer gnero do discurso, pois a autoridade das Escrituras deve estar acima das
convenes sociais nas quais o gnero epistolar se sustenta. O do autor cristo deve assim
apresentar total submisso autoridade de Deus e da Bblia, ao mesmo tempo em que exige total
adeso de seus ouvintes que, ao dar-lhe razo, esto dando razo tambm a Deus.
Em contrapartida, a discrdia colocada por um falso mestre pressupe a insurgncia e a
desobedincia morais que devem ser acusadas, corrigidas, repreendidas e, se necessrio,
aniquiladas409 . Para provar que as demais falas esto erradas e investir-se da autoridade de nico
intrprete das Escrituras, um autor cristo deve portanto lanar mo de diversas estratgias de
legimitao de seu discurso e deslegitimao do discurso do outro. A primeira e principal delas
justamente a alegao de que a sua fala anti-retrica, livre de convenes, e assim reflete sua
simplicidade, pureza e humildade410 contra todas as expectativas e contra todo o mundo, como se o
autor falasse sozinho, uma voz clamando no deserto411. Dessa forma, aquele que defende o
contrrio inadvertidamente discute e age de uma maneira que no simples, falando de maneira
artificiosa e ludibriosa, de modo que sua opinio de trevas devesse ser derrotada pela luz da
verdade caso fosse revelada; o adversrio assim algum desprovido do Esprito Santo e, em
ltima instncia, um herege que usa de artimanhas para seduzir os incautos atravs de palavras e
ensinamentos falsos. A ignorncia de um inimigo, como coloca Sartorelli, longe de ser inofensiva,
transforma-o automaticamente numa ferramenta do Diabo, ou seja, o que poderia ser somente
)64
falta de informao converte-se de imediato em intencionalidade maligna contra toda a Verdade412.
Doravante, ele deve ser derrotado no campo de batalha das Escrituras.
O objetivo de legitimao de uma determinada interpretao implica consequentemente na
deslegitimao do discurso do outro. No perodo cristo, isso se d tanto no plano esttico quanto
no tico: preciso, na presena de um debate, desconstruir o do adversrio ao passo que se
constri um favorvel a si mesmo, ou seja, simples e puro contra o comportamento
sofismtico e pecaminoso de seu interlocutor. A segunda estratgia utilizada pelo autor cristo,
portanto, a emulao satrica do discurso do adversrio, a qual atestada por uma carta especfica
de Jernimo em nossa correspondncia413 . Devemos concordar com Sartorelli, ainda que a leitura
da autora seja centrada na retrica seiscentista dos tempos da Reforma, que o discurso ento adquire
carter panfletrio e propagandstico, essencialmente humorstico, na medida em que empresta
algo de jocoso a um discurso de outra forma pesado, e assim, torna-o mais leve414. Outrossim, a
crtica do estilo, que ao mesmo tempo descrito como mal elaborado os de
Agostinho mas contraditoriamente como sobre-elaborado e assim capaz de ludibriar os
ignorantes415 um meio de ridicularizar o discurso do adversrio.
Esta concluso coloca um problema: como discutir desse jeito em cartas ou mesmo entre
cristos, uma vez que um ataque est longe de ser amoroso, e Jesus falara, segundo consta no
Evangelho de Lucas, que preciso amar nossos inimigos416? Certo, Jernimo pressupunha um leitor
indulgente e no admite leituras diferentes da sua. Agostinho diferente. Aqui, a caritas e a
sinceritas servem, para o bispo, como as sanes pelas quais uma discusso adquire legimidade:
possvel que amigos discordem, discutam, at mesmo briguem, desde que haja amor e unio na f,
para que os hereges tambm no atribuam que um desacordo se deva a uma rixa pessoal417. Ainda
assim, a tenso entre as estratgias de uma polmica e as prerrogativas da amicitia no desaparece,
pois em uma discusso preciso defender uma interpretao prpria como se ela fosse a verdade,
usando de todos os recursos. Assim, Jernimo empregar estratgias pesadas de deslegitimao
semelhantes s que utilizara contra outros adversrios ao discutir com Agostinho, mas antes
vejamos se o discurso de nossos correspondentes, mesmo nestas ocasies, atm-se ao estilo baixo
tpico dessas discusses.

I. E. 5. O sermo humilis cristo


De incio, o estilo baixo (sermo humilis) cristo, baseado no sermo imperitus de Paulo de
Tarso, aparecer-nos-ia como o mais adequado epistolografia crist, pois atravs dele um autor
cristo poderia construir um simples, e a carta o suporte ideal para mostrar e comunicar este
)65
de maneira fiel. Ademais, Pseudo-Demtrio j havia indicado que o estilo mais adequado s cartas
o , o sermo tenuis. Um estilo baixo, assim, deveria ser desprovido de artifcios retricos,
esses esplios do Egito sobre os quais fala Agostinho no De doctrina christiana418 , sem os quais
um leitor seria capaz de medir a integridade moral do interlocutor. Como indica Sartorelli, afirmar
que escreve sine tropo et sine sophismate , portanto, a primeira prova oferecida pelo autor cristo
de que fala a lngua da Verdade419 . E, de fato, o sermo humilis, ainda que no caracterize o todo da
correspondncia travada entre Agostinho e Jernimo, aparece nos momentos em que nossos autores
discutem as interpretaes das Escrituras.
A realidade entretanto mais complexa que a teoria, devido s reiteradas convenes do
gnero e a questes sociais, as quais discutimos anteriormente. A carta escrita por pessoas com
dignitas deve ser tambm elegante e assim empregar elementos de ornatus prprios de um sermo
urbanus entre amigos cultos. Isso bastante conspcuo na epistolografia crist do sculo IV, em
especial em nossa correspondncia, sobretudo nas cartas de Jernimo. Ainda que este autor
reivindique simplicidade e humildade para si e pratique a diminutio sui ante Agostinho, ele o
faz tanto por necessidades sociais, quanto por estar na condio de um monge que fala com um
bispo420. Entendemos, todavia, que o Estridonense age aqui de maneira irnica, a fim de censurar o
estilo professoral e, assim, a posio profissional, religiosa e social de Agostinho como um cristo
filosofante, como um bispo sem mrito, e como um jovem que quer fazer frente autoridade de um
velho, corrompendo a religio amicitiae que deveria governar o discurso epistologrfico421. Dito
isso, seguro afirmar que o estilo de Jernimo est longe de simples e convenciona-nos a
imagem de um autor erudito e experiente na retrica e na epistolografia, que emprega de maneira
abundante citaes de autores clssicos e provrbios. O mesmo pode ser dito de Agostinho, que
mostra familiaridade com tpicos do gnero e, quando os viola, f-lo para construir perodos longos
e difceis, prprios dos discursos filosficos.
Resta-nos concluir que a epistolografia cristo do sculo IV possui uma contradio
inerente, reflexo de uma dialtica identitria, entre o fato de os autores serem latinos, ou seja, de se
expressarem em uma lngua e um gnero que dominado por convenes, e de eles serem cristos,
ou seja, de enxergarem que aqueles convenes, e os valores que estas carregam, os quais so em
ltima instncia incompatveis com o cristianismo. Sendo assim, nossos autores, ao criticarem o
estilo um do outro pelo excesso de elaborao e consequentemente censurarem suas respectivas
condutas morais, portando-se como a alternativa contrria e corretiva para os erros de cada um,
fazem-no como estratgias discursivas de deslegitimao da palavra do adversrio, as quais so

)66
tpicas da polmica crist, um gnero que passa a ser realizado por meio de cartas nesta poca,
modificando os limites da epistolografia.

I. E. 6. Uma disputatio na correspondncia entre Jernimo e Agostinho


Na Antiguidade Tardia, a carta comeou a ser utilizada como um meio pelo qual os autores
cristos podiam discutir e polemizar sobre diferentes interpretaes das Escrituras422. neste
esprito que se dar o primeiro perodo de correspondncia entre nossos autores: como uma
disputatio, uma disputa ou polmica.
Um autor cristo de temperamento difcil como Jernimo no raro adota em suas cartas uma
posio combativa, minaz e irnica, antes a fim de vencer seus adversrios em uma discusso que
de conseguir um consenso mtuo. Devemos compreender o tom agressivo do autor como aquele
prprio de um polemista cristo avant la lettre em um debate, o qual no s dialgico, mas
tambm dialtico, ou seja, delimitado entre oposies binrias, entre as quais se deve escolher uma
posio; no pode haver meio-termo423 . Igualmente, isso significa colocar o do autor cristo
no campo do genus deliberativum, onde h um adversrio e o uso do discurso visa a conquistar o
favor de certa hiptese, que invariavelmente faz s vezes da Verdade. Neste caso, a funo de
docere que toma proeminncia nas cartas crists, prescindindo do delectare, tomar tambm
contornos do movere ou flectere, como se a discusso fosse uma verdadeira briga ou lamentao,
elevando o tom do discurso para que o correspondente seja afetivamente convencido. Nesse sentido,
algumas das primeiras cartas trocadas entre nossos autores apresentam mecanismos prprios das
polmicas. Podemos elencar a diminutio sui, que tambm prerrogativa da caritas e da posio dos
autores (Jernimo, no caso, manipula essa expectativa ao se diminuir ante Agostinho, que era
bispo424), a ameaa e o ataque pessoal (nas cartas de Jernimo, emergente em um vocabulrio
altamente militarizado, algo que no escapou ao entendimento do bispo, que o censura por isso425 ),
a acusao do adversrio de ter cometido um crime ou pecado, mesmo uma heresia426 , o uso do
baixo calo427, a redefinio e a desqualificao do ponto de vista do adversrio (algo que Jernimo
faz copiosamente428), a crtica do estilo, a chamada de autoridades terceiras um rol de
testemunhos, no dizer do Estridonense429 para se apoiar a interpretao, a obrigao de se
publicar uma interpretao que se julga verdadeira (pois uma contenda s escondidas traz tambm a
suspeita de heresia)430.
verdade que a maioria desses exemplos partem de Jernimo, que de fato enxergou a
discusso como uma disputatio in illum e chamou uma das cartas de Agostinho de liber, um dos
materiais tradicionais para se publicar polmicas na Antiguidade Tardia431 . Por sua vez, Agostinho
)67
nega insistentemente que seu objetivo criar uma polmica432 , mas o tom empregado pelo autor nas
primeiras cartas repreensivo, de confronto; seus pedidos de desculpa parecem ser antes colocados
por precauo que por sinceridade, e seu desejo de ser repreendido implica seu objetivo de
repreender um erro de Jernimo433. O Estridonense tambm diz no querer brigar434, mas enxerga a
discusso segundo a imagem de um combate corporal. A resistncia deste autor em firmar uma
relao de amizade com seu correspondente, para alm da dissimulao de Agostinho, deve-se
tambm suspeita de que este era um herege, com quem um cristo ortodoxo como Jernimo nunca
poderia construir laos de amizade435. Para Agostinho, h uma diferena essencial na disputatio
epistolar travada com Jernimo, porm: nela, no se trata de um herege brigando com um fiel,
mas supostamente amigos discutindo e repreendendo, quando necessrio, a conduta um do outro.
A mudana est no mtodo, no no objetivo: para Agostinho, toda disputa positiva, pois
ela leva Verdade. O bispo de Hipona argumenta segundo uma causa, um processo jurdico,
atravs da produo de indicia, indcios, para provar uma tese. Isso no quer dizer que ele no
busca confrontar Jernimo.
Visto que a anlise da correspondncia travada entre Jernimo e Agostinho cartas luz do
gnero epistologrfico nos levou dos aspectos estruturais aos estilsticos e ento aos discursivos,
acabamos por entrar invariavelmente no contedo das cartas, o qual ser elucidado no captulo
seguinte, em que traaremos um histrico da correspondncia. Concluamos, portanto, esta primeira
parte, de teor formalista, do trabalho.

I. F. Concluso
Harald Hagendahl, em seu monumental Augustine and the Latin Classics, diz do bispo de
Hipona que poucos contriburam tanto para remover a cristandade do esprito do mundo antigo436.
Procuramos mostrar, na leitura comparativa da correspondncia entre nossos autores com as
convenes do gnero epistolar antigo que, se o juzo de Hagendahl correto, ele s mostra um
lado da questo. Autores de fato estranhos a seu tempo, Agostinho e Jernimo ficam inerentemente
ligados ao mundo em que viveram. Se por um lado eles apresentam o mesmo rigor negativo em
relao tradio pag, por outro eles representam expoentes de uma nova corrente, caracterizada
por uma viso menos preconceituosa do pensamento e da literatura helenstica437 . Dito isso,
acreditamos que a correspondncia mtua dos autores pode ser interpretada a partir de uma tenso
entre a tradio pag da epistolografia helenstica e uma nova, nutrida pela tradio crist, cujo
fundador Paulo de Tarso; uma tenso que emerge em diferentes concepes de cdigos de conduta

)68
e de relaes de amizade, simbolizadas pelo conservador Jernimo e pelo liberal Agostinho,
por se assim dizer.
O cristianismo trouxe diversas modificaes importantes para o gnero epistolar, mas muitas
das caractersticas materiais, estruturais, estilsticas, e funcionais da epistolografia helenstica
permaneceram em larga parte imutadas ao longo da Antiguidade, de modo que a epistolografia
crist latina est intrinsecamente ligada tradio do gnero epistolar antigo. notvel que
Agostinho e Jernimo usavam o mesmo papiro que Ccero usou para escrever suas cartas;
estruturavam suas missivas da mesma maneira; abordavam tpicos e temas semelhantes (dos quais
os mais notveis so o , a , e o ), ainda que tenham dado outro teor a eles438;
adotavam nveis de elocuo e estilos regidos pelos mesmos princpios reguladores do sermo
urbanus e no do humilis (ora, Jernimo chega a dizer que o estilo epistolar de Paulino de Nola
semelhante ao do Arpinate439!); compuseram algumas de suas cartas segundo funes tradicionais
na Antiguidade (uma carta de recomendao, uma carta de louvor, cartas de censura, tratados
epistolares); e continuaram a utilizar a troca epistolar como principal meio de articular-se poltica e
socialmente entre seus pares, ou seja, como o suporte ideal para a construo do e das relaes
de amicitia. Alguns dos princpios epistolares, no que concerne estrutura e ao estilo, tornaram-se
seno onerosos em um momento em que acabam por configurar mais que peas artificiosas de
adorno, sim testemunhos de civilismo (as citaes de autores clssicos), de afeio (o trabalho
barroco com as salutationes e subscriptiones) e de retido da f. verdade que, enquanto a
discusso de passagens bblicas torna-se recorrente nas cartas crists do sculo IV, a maneira com
que Agostinho prope discutir Gal 2:11-14, atravs de uma disputatio na presena da amicissima
reprehensio, inovadora. Mas nossas pesquisas nos levaram a concluir que tanto Jernimo
(principalmente) quanto Agostinho permanecem atrelados a lugares-comuns da epistolografia, de
modo que ambos presumem que h algo errado quando o texto epistolar no est adequado s
prerrogativas do gnero. Nossa concluso no deve surpreender: afinal, ambos os autores se
formaram segundo os mesmos ideais de um Quintiliano, e provavelmente aprenderam a escrever
cartas com apoio de manuais semelhantes aos de Pseudo-Demtrio e Pseudo-Libnio.
A presena de elementos genricos, e a crtica de quando eles se ausentam, sintoma de que
a religio amicitiae, na qual se sustentava a epistolografia, permaneceu forte mas no
incontestada, como procuramos mostrar no tpico anterior ao longo da Antiguidade Tardia. Os
aspectos estruturais, convencionais, estilsticos e funcionais genricos da epistolografia que
elencamos podem ser interpretados dentro da nica categoria sociolgica da amicitia, e assim do
contexto fundamental da epistolografia, o de construir e manter redes de contatos. No mundo
)69
antigo, inclusive no perodo crist, ler, escrever e enviar uma carta, portanto, era uma maneira de
situar a si e a a um outro, ou a si contra um outro no mundo social e poltico. Mesmo o incio e o
fim de uma carta, as partes mais formulaicas dela, ou seja, a praescriptio, onde os renascentistas
localizaram a captatio benevolentiae, e a postscriptio so partes essenciais para o balano daquela e
assim importantes para o autor modular seu , como defendemos desde o incio440 . na
salutatio e na conclusio que o autor estabelece seu vnculo de amizade (e de f) com seu
destinatrio, adaptando-a segundo seus objetivos. O amigvel de Agostinho, assim, j se deixa
entrever na efusividade de suas salutationes; o temperamental de Jernimo, na frieza e
artificialidade de suas conclusiones. As inovaes e tenses trazidas na correspondncia desses
autores se devem fundamentalmente a um ideal racional e disciplinante de caritas que se colocasse
diferente dos valores pagos.
Ebbeler tem demonstrado que a nfase dada por Agostinho ao ideal corretivo e censurvel
da caritas crist sinal de que o autor buscava se livrar dos protocolos do officium epistulare e
expandir os limites do gnero epistolar. A estranheza de um mos epistularum augustinianus
embrionrio no est propriamente na introduo da admonio, da censura e da repreenso em
cartas (ora, estas eram abundantes entre os filsofos), mas no fato de estes tpicos serem
introduzidos nas cartas de amizade: ao agir assim, Agostinho estava de certa forma obrigando seu
correspondente a posicionar-se; deixar de responder pareceria falta de educao. Segundo Ebbeler,
a maior originalidade de Agostinho como um escritor de cartas pode ser encontrada nas
expectativas (algo ingnuas) do autor em iniciar um dilogo epistolar corretivo no qual ele e
Jernimo censurariam um o erro do outro para que assim progredissem mutuamente na vita
Christiana441. O objetivo do bispo de Hipona, assim, era nada menos que reinventar as epistulae
familiares, tornando-as cartas que podemos chamar de epistulae caritatis (cum reprehensione),
cartas de caridade (com repreenso).
Aspectos formais, como a ausncia de frmulas de concluso nas cartas do bispo e a
manipulao dos tpicos das cartas de amizade, revelam a mesma sanha que o bispo de Hipona
apresentava em relao s demais reas do conhecimento: Agostinho buscava cristianizar a
tradio epistologrfica de acordo com sua prpria concepo de amizade crist. Esta situao
encontrou grande resistncia da parte de Jernimo. Atravs da anlise de indcios formais de suas
cartas a Agostinho a escassez de tpicos de amizade, o tom agressivo, a postura fria, polida e
distante, as salutationes secas, a abundncia de frmulas de concluso , podemos inferir que este
autor no estava interessado em dialogar, ao menos no dessa forma, com o bispo de Hipona.

)70
Mas que motivos Agostinho teria para disciplinar Jernimo? E como ele procede para
convencer seu correspondente da legitimidade e da pureza de suas intenes? Um mecanismo, que
exploramos acima, o Apostolikon: a auctoritas precedente do pregador episcopal, isto seja, o
nuntius cristo. A fim de explorarmos mais a fundo essa concluso, a rica correspondncia mtua
entre Jernimo e Agostinho no pode se limitar a uma leitura dos vnculos que ela guarda com o
gnero epistolar helenstico. preciso agora contextualiz-la.
Acreditamos que falamos o suficiente sobre o , o campo da construo do gnero
discursivo; entremos agora no campo do , da ao, para substanciar os elementos que
apontamos acima. Desse modo, vamos conhecer um pouco desses homens, ancorados no que
cada um atribui a si e a seu correspondente, para assim tentar descobrir as razes que levaram um a
entrar em contato com o outro, e a maneira como conduziram sua relao epistolar.

)71
NOTAS

1Stowers (1986) p. 17-47; Malherbe (1988) p. 2-7; Rosenmeyer (2001) p. 1-35, towards the end of the fifth century
and after, letters are sometimes mentioned in a way which suggests that they are perfectly ordinary and normal methods
of communicating [...] letters were written by writers of both high and low social classes, and by hired scribes of
varying skill [...] these epistolary habits continued ininterrupted into Roman and then Christian times (citao nas p.
31-32).
2 Stowers (1986) p. 21-22; Frst (2002) p. 74-80; Fry (2010) p. XVI-XVII, les lettres qui constituent la correspondance
change par Jrme et Augustin se prsentent sous une forme pritextuelle qui se distingue du modle classique par
des ajouts, des modifications et des supressions. As modificaes apontadas pela autora metonmias caracterizantes
s vezes de apelativos, salutationes mais extensas, frmulas de concluso mais rgidas, emprego de eptetos
emprestados das hierarquias familiares, flexibilizao da extenso das cartas, citao de passagens da Bblia no so
especficas somente das cartas trocadas entre esses autores, mas, como procuraremos demonstrar nessa introduo,
tambm esto presentes nas cartas crists do sculo IV. Como distines desta correspondncia, Fry entretanto apresenta
duas concluses que so, a nosso ver, improcedentes: a supresso da data epistologrfica como uma novidade, pois este
elemento que atestamos somente na epistolografia ciceroniana; e o ajunte de um cabealho como epistula Augustini
Hieronymo, carta de Agostinho a Jernimo, como outra, pois coisa que est presente em todo textus receptus de
qualquer escritor cristo cuja obra epistologrfica esteja publicada na Patrologia Latina, e a qual, a autora confessa,
deve-se provavelmente antes des copistes soucieux de clart do que aos prprios autores.
3 Usaremos a definio de Jernimo: epistolare officium est de re familiari aut de quotidiana conversatione aliquid
scribere et quodammodo absentes inter se praesentes fieri, dum mutuo, quid aut velint aut gestum sit, nuntiant, licet
interdum confabulationis tale convivium doctrinae quoque sale condiatur, o dever epistolar consiste em escrever algo
sobre a amizade ou o dia-a-dia, e de algum jeito fazer presentes as pessoas ausentes, enquanto elas contam umas s
outras o que querem ou o que aconteceu; convm a temperar um tal encontro coloquial tambm com o sal da doutrina.
Os melhores estudos sobre esse impasse esto em Ebbeler (2007) e id. (2012) p. 65-80 e 101-150.
4 Rosenmeyer (2001) p. 5, the most personal and intimate letter depends on highly stylized epistolary conventions for
its form, while the more literary productions are still inevitably connected to an individual, his addressee, and his
society; tambm em Koskenniemi (1956) p. 88-95; Thraede (1970) p. 1-4; Stowers (1986) p. 17-20; Stirewalt (1993)
p. 87; Trapp (2003) p. 4.
5 Rosenmeyer (2001) p. 5, epistulary technique always problematizes the boundaries between fiction and reality. While
this issue is not limited to the epistolary genre lyric poetry, for example, creates a different ego upon each occasion
of reperformance it has a huge impact on our reading of letters.
6Ebbeler (2007) p. 302, the practice itself was governed by a clearly articulated set of rules: write back frequently,
maintain confidentiality when it was expected, use an appropriate tone, avoid excessive length, and so forth.
7 Malherbe (1988) p. 6, that the basic characteristics of the private letter are so faithfully preserved from the fifth
century B.C. can only be explained as partly due to school instruction and the guides to letter writing; Trapp 2003 p.
38, it is a plausible assumption that this general acceptance, and the subsequent stability of epistolary formulae over
time, owed something to elementary instruction in schools. H evidncias concretas e suficientes de que a
epistolografia era ensinada nas escolas romanas, mas os pesquisadores discutem em que estgio a matria se encaixava.
Alguns defendem que a epistolografia j era matria do primeiro ensino, das crianas com o praeceptor litterarum,
como simples exerccio que visava a familiarizao do estudante com a estrutura e os preceitos epistolares hiptese
que encontra suporte em cartas em papiro encontradas em Oxyrhyncus. Outros defendem que ela entrava apenas no
segundo ensino, aos jovens de 12 a 15 anos com o grammaticus, com recurso ao exerccio de
personificao [] incluso nos como os de Teo de Alexandria, contemporneo de
Quintiliano (cf. II, 115, 22 Spengel); v. Kennedy (1972) p. 312-327 e 615-616 hiptese que encontra suporte nas
observaes de Caio Jlio Vtor. Por fim, alguns estudiosos avanam que era apenas no ensino com o rhetor e no ensino
profissionalizante, isto , aos estudantes que pretendiam se especializar no cargo pblico ab epistulis, em escrever cartas
oficiais para o Imprio, que a epistolografia tornava-se de fato matria independente de estudo hiptese na qual se
encaixam os manuais de Pseudo-Demtrio e Pseudo-Libnio e as discusses de Filstrato de Lemnos e Gregrio de
Nazianzo. H, porm, quem defenda que o ensino de epistolografia estava presente em todas as etapas da educao
romana, com fins diferentes. V. Schneider (1954) p. 573-574; Kennedy (1963) p. 269-273; mais recentes, Russell
(1983) p. 106-128; White (1986) p. 189-192; Swain (1996) p. 33-42; Rosenmeyer (2001) p. 32-33, [i]t is likely that
basic epistolary composition was taught in some schools at an early stage, perhaps with the help of rudimentary
collections of model letters, and presumably concentrating on grammar and form rather than niceties of style. V.
Stowers (1986) p. 32-35 para uma opinio contrria; o historiador acredita que letter writing was learned in the
secondary stage of education, somente.

)72
8 a concluso de Trapp (2003) p. 37-38, given that the need to be able to write acceptable letters, both for the socially
lowly to deal with their superiores and rulers, and for the lite to maintain its social and political networks, was not new
with the arrival of the Roman Empire, it is highly likely that the same educational provision [de epistolografia] was also
made rather earlier; e p. 42-43, for the educated lite, accustomed in general to judging and being judged on verbal
ability, it mattered to be able to write elegantly (and to recognize and appreciate elegant writing by others), and to
follow the rules at a much higher level of sophistication. V. tambm Swain (1996) p. 33-42.
9 Texto em Malherbe (1988) p. 16-19 apud Roberts (1932).
10 Texto em Malherbe (1988) p. 62-65 apud Halm (1863); Giomini & Celentano (1980). Estes ltimos editores supem
que Jlio Vtor teria se apoiado nas obras de Jlio Ticiano, um rtor que, no sculo III, foi discpulo de Fronto (cf. Sid.
Ep. 1,1,2). Kennedy (1994) p. 278 demonstra que a Ars rhetorica de Vtor tambm inclui, entre suas fontes, os tratados
retricos de Hermgoras, Marcomano, quila Romano, Ccero e Quintiliano.
11 Texto em Malherbe (1988) p. 30-41 apud Weichert (1910). O ttulo latino que se aps a este texto, De generibus
epistularum, possvel, embora o prprio Pseudo-Demtrio no seja preciso no que diz: ele no deixa claro se h vinte
e um , gneros, , tipos, ou , aspectos, de cartas. Ttulo melhor, a nosso ver, seria De exemplaris
epistularum exemplar uma das possibilidades de traduo para (cf. Schrevelius p. 867; um outro effigies)
pois justamente isso que Pseudo-Demtrio elenca, exemplaria de cartas a partir de seus diferentes tipos e aspectos,
com uma breve descrio de cada. Diz o autor:
,
, vendo que tu ests ansioso em tua sede por conhecimento, tomamos
a empreitada, por meio de formatos [], de organizar e delimitar algumas especificidades [], tanto as que
as cartas apresentam quanto as que possuem, assim como um exemplo [] do arranjo de cada gnero [
] ao oferecer, em adio, e delimitando individualmente o motivo [] de cada um desses (cf. Ps.-
Dem. proem.). V. Stowers (1986) p. 52-53, this unknown author we refer to as Demetrius provides a brief description
and sample letter for each type [...] the handbooks provide brief descriptions of ideal types of letters.
12 Texto em Malherbe (1988) p. 66-81 apud Weichert (1910). Acreditamos que o ttulo tradicional do texto de Libnio
impreciso. Ora, o gramtico afirma que , a forma
epistolar se apresenta variada e composta em vrias partes (cf. Ps.-Lib. 1). H, portanto, apenas uma forma, ,
epistolar, que ser dividida em um grande nmero de , estas que, no caso, no so tipos propriamente
ditos mas situaes o equivalente latino appelationes (cf. Schrevelius p. 719). Pseudo-Libnio no est
preocupado em estabelecer ou prprios s cartas, como faz Pseudo-Demtrio, mas sim em arrolar diversas
situaes que podem aparecer, acreditamos, em uma mesma carta; por conseguinte, seu tratado no entra em conflito
com aquele outro, mas o complementa, pois os autores esto abordando a carta sob diferentes aspectos. Seguindo essa
interpretao, pudemos utilizar o manual de Pseudo-Libnio para identificar diferentes em uma mesma
carta de Jernimo ou de Agostinho. Ademais, Stowers (1986) p. 52-53 diz: Libanius has forty-one styles of letters.
These are not model letters [como em Pseudo-Demtrio] but nuggets of reasoning, often in the form of a rhetorical
syllogism, which gives the gist of the kind of letter [...] [L]ibanius does not mean style either in the ancient or closely
related modern sense; [his] interest is in describing kinds or types of letters; Trapp (2003) p. 44-45 feliz em nomear o
tratado de Pseudo-Libnio como On letter form.
13No sabemos qual era a relao exata entre os manuais e a prtica epistologrfica na Antiguidade. Cartas-modelo em
papiro, que se enquadram em uma tipologia semelhante de Pseudo-Demtrio, as mais famosas das quais so o
Papyrus Bononiensis 5 (PBon 5), o papiro de Bologna (in Malherbe 1988 p. 44-57) e a carta do estudante Teo a seu
pai (in Deissmann 1927 p. 201-204) foram encontradas no Egito, em Oxyrhyncus, e datam dos sculos III-IV d.C;
ambas demonstram a familiaridade dos autores com as convenes do gnero epistolar. Todavia, seria apressado
concluir que a prtica reflete, aqui, qualquer teoria sistemtica. O mais provvel que tanto os autores menos instrudos
das cartas em papiro quanto os tratadistas antigos se fundamentassem em uma mesma tradio epistologrfica. no que
acredita Brinkmann (1909); Weichert (1910) p. XIX-XX; Olsson (1925) p. 7-10; Keyes (1935) p. 44; Koskenniemi
(1956) p. 62-63; mais recentes, Parsons (1980) p. 3-6; White (1986) p. 189-191 e 213-217; Stowers (1986) p. 32-35;
Kennedy (1994) p. 207-208; Rosenmeyer (2001) p. 33-34; Trapp (2003) p. 37-38. Malherbe (1988) p. 4-6 argumenta
que o manual provavelmente usado pelo autor do PBon 5 destinava-se a ensinar os estudantes do ensino bsico a
escrever cartas, ao passo que o de Pseudo-Demtrio mirava um pblico mais especializado. Sobre os papiros de
Oxyrhyncus, v. Trapp (2003) p. 7-11 para discusso e bibliografia.
14 Texto em Malherbe (1988) p. 58-61 apud Gallay (1969).
15 Texto em Malherbe (1988) p. 42-43 apud Kayser (1871).
16 Keyes (1935) p. 44; Koskenniemi (1954) p. 92-107.

)73
17A epistolografia foi prtica que se deu a observaes metatextuais mais que outras formas de escrita na Antiguidade,
(salvo, talvez, a lrica e a elegia). V. Thraede (1970) p. 27-47 e 65-74; Trapp (2003) p. 46 the letter is in any case a
notably reflexive form letter-writers find it easy enough to comment on the process while in the midst of it at the best
of times.
18 Marrou (1948) p. 59-61 e 85-96; Stowers (1986) p. 32-35; Cameron (1993b) p. 63, [bishops] were usually drawn
from the educated upper classes and had often had a thorough training in the classical rhetoric that formed the main
content of higher education, e p. 136-144.
19 Fry (2010) p. 463-464, [Victor] nest quun artigraphe, un faiseur de manuels scolaires [...] cest son manque
doriginalit qui fait ici lessentiel de son intrt, car il se fait pour nous lexact transmetteur d'un savoir dcole que ne
parasite nul esprit de cration. Ce quil affirme peut par consquent tre considr comme constitutif dune vulgate
oratoire familire un enseignement largement rpandu. A escola crist, fundamentada no estudo das Escrituras
coadunado com uma leitura vacinada dos autores clssicos, um fenmeno recente no sculo IV, que surge
gradualmente na gerao de Agostinho e Jernimo, parcialmente devido aos esforos de ambos, e que se consolida com
o Vivarium de Cassiodoro no sculo VI, no reinado do general godo Teodorico; v. Marrou (1948) p. 127-151; Cameron
(2011) p. 41-42; Brown (2013) p. 263-265.
20Malherbe (1988) p. 5, the handbooks on various levels reflect the traditional and typical elements of letter style [...]
they did not intend to set forth detailed norms or forms, but presented a framework which allowed for individual
creativity.
21 Deissmann (1927) p. 227-228.
22 Stirewalt (1993) p. 1.
23 Altman (1982); Stowers (1986) p. 17-20; Rosenmeyer (2001) p. 5-12.
24Stowers (1986) p. 20, Deissmanns antithesis between the natural and the conventional was typical of nineteenth
and early twentieth-century Romanticism; Rosenmeyer (2001) p. 7, the idea that Paul's letters were written with a
wider public in mind, that they followed strict epistolary conventions and formulations, or that they were specifically
written to outlast their author, was untenable to scholars of Deissmanns generation.
25 Conybeare (2000); Cain (2009); Ebbeler (2007), id. (2009) e id. (2012).
26Ebbeler (2009) p. 270-273 e id. (2012) p. 23, in the same way that an author could generate meaning by
manipulating epistolary rhetoric, he could do so by manipulating the conventions of letter exchange.
27 Altman (1982) p. 190-200; Stowers (1986) p. 51-57.
28 Rosenmeyer (2001) p. 39 em diante; Trapp (2003) p. 3-5 e 12-34 para algumas dessas correntes.
29Malherbe (1988) p. 2-11 (texto e notas) debate se realmente existiu uma teoria da epistolografia na Antiguidade.
Stowers (1986) p. 34 menciona, porm, que Filstrato de Lemnos havia autorado um tratado sobre epistolografia, hoje
perdido.
30 Pfleiderer (1885); Stowers (1986) p. 41-47; Auksi (1995) p. 110-143.
31 Curtius (1953) p. 75-76.
32O leitor encontrar uma boa sntese do estilo da ars dictaminis em Santos (1999); Tin (2005); Ueding & Steinbrink
(2011) p. 65-68.
33 Santos (1999) p. 46, mas possvel dizer que a arte do ditado [ars dictaminis], se no floresce com os escritores de
artes mais antigos, jaz de algum modo embrionria nestes; o que se pode concluir com Ccero.
34 Koskenniemi (1956) p. 18-53; Kennedy (1963) p. 54-62 e 69-74; Stowers (1986) p. 34, [l]etter writing remained
only on the fringes of formal rhetorical education in antiquity e p. 52, the letter-writing tradition was essentially
independent of rhetoric; White (1986) p. 189-191; Malherbe (1988) p. 2-4, epistolary theory in antiquity belonged to
the domain of the rhetoricians, but it was not originally part of their system (citao na p. 2); Reed (1997) p. 171-193;
Trapp (2003) p. 45-46, it is perhaps remarkable, given the volume of rhetorical writing that survives from antiquity,
how relatively few these discussions of epistolography are [...] it rather looks as if theoretical discussion of the topic (as
opposed to basic practical instruction) was not an entirely inevitable part of mainstream education, just as the letter
never quite made the grade as a major subject for ancient critical attention.

)74
35 Kennedy (1972) p. 487-514; Fry (2010) p. XV, les anciens [...] ont parfaitement compris que discours et lettres sont
gouverns par des rgles rhtoriques identiques ceci prs que, si le discours veut la prsence immdiate des acteurs de
la communication, la lettre ne sert qu suppler limpossibilit de cette immdiatet.
36 Reed (1997) p. 182, [t]here is no inherent formal relationship between the basic theory of epistolary structure and
the technical teachings about rhetorical arrengement [a dispositio]. The similarities may be explained by the fact that
language is often used pragmatically in different genres to do similar things. More importantly, the epistolary theorists
and letter writers say nothing explicit about structuring letters according to a rhetorical arrangement.
37 Stowers (1986) p. 33, Greco-Roman culture regarded the well-delivered and persuasive speech as the most
characteristic feature of civilized life.
38 Sider (1972) p. 126 diz de Tertuliano, que tambm foi rtor: classical rhetoric provided much more than a stimulus
to stylistic ornamentation. Rather, the canons of invention and disposition affected the structure of his argument and the
movement of his thought.
39 Testemunhos poticos da Antiguidade, dos quais o mais antigo um fragmento do Palamedes de Eurpides, apontam
que a escrita fora inventada para que os homens que no cruzaram o mar soubessem, em sua prpria casa, do que
acontece no mundo (cf. Eu. Pal. fr. 578,3-5 Nauck apud Rosenmeyer 2001 p. 26). Segundo Tertuliano, os romanos
atribuam a inveno da escrita, litterae, a Mercrio, que tambm era deus do comrcio e dos mensageiros: primus
litteras Mercurius enarraverit; necessarias confitebor et commerciis rerum et nostris erga Deum studiis, o primeiro a
narrar por escrito foi Mercrio; confesso que isso necessrio tanto ao comrcio de bens quanto a nossos estudos
perante Deus (cf. Tert. Cor. 8,2). Ao que parece, a epistolografia surgiu to logo o homem antigo colocou-se a
escrever: tanto a correspondncia pblica como a privada parecem ter sido consequncias da inveno da escrita. V.
Harris (1989) p. 65-115; Stirewalt (1993) p. 6-15; Rosenmeyer (2001) p. 28, it is unlikely that we will ever be able to
pinpoint the exact moment of the discovery of letter writing, but we can connect historical letters with the general
spread of literacy in antiquity.
40Em latim, scribimus atque rescribimus, transeunt mare epistulae et findente sulcos carina, per singulos fluctus aetatis
nostrae momenta minuuntur (cf. Hier. Ep. 60,19).
41 Trapp (2003) p. 39, a letter can be welcomed and praised as a true image of the person who sends it, faithfully
expressing his character, and bringing him vividly before the minds eye; or it can be disparaged (in disappointment or
mock modesty) as an usatisfying stopgap, sadly incapable of working that same effect. According to the vantage-point
of the moment, letters can thus be seen either as a bridge, linking the two parties, or as an unwelcome reminder that
they are after all inescapably divided.
42avidum sensuum tuorum, a avidez que tenho de tua presena fsica (cf. Aug. Ep. 28,5); quod a me tam longe absunt
sensus corporis tui, per quos adire possit ad animum tuum animus meus, a sensao da tua presena fsica est longe
demais para que minha alma possa se aproximar da tua(cf. Aug. Ep. 71,2); quam in tam longinquo tuae caritatis
absentiam, ut vix possim meas dare, vix recipere litteras tuas, a ausncia de tua caridade, to distante que mal posso te
enviar cartas minhas, e mal posso receber as tuas (cf. Aug. Ep. 166,1); tambm em Aug. Ep. 9,1; 27,1; 31,3; 205,1. Em
Jernimo: ad nos enim, tantis maris atque terrarum a te divisos spatiis, vix vocis tuae sonus pervenit, a ns, enfim,
tantos so os mares, tantas so as terras que nos separam de ti que o som da tua voz mal nos chega (cf. Hier. Ep.
112,18).
43Aqui tambm temos um testemunho de Ccero em carta enviada a Cornifcio no ano de 52 a. C.: quid mihi iucundius,
quam, cum coram tecum loqui non possim, aut scribere aut te aut tuas legere litteras?, algo me mais agradvel que
j que no posso falar presencialmente contigo te escrever ou ler cartas tuas? (cf. Cic. Fam. 12,30,1); e um de
Sneca: si fieri posset, quid sentiam, ostendere quam loqui mallem, se pudesse ser assim, eu preferiria te mostrar antes
o que sinto do que fal-lo a ti (cf. Sen. Ep. 75,1).
44 tantae autem mihi in litteris tuis, quae in manus nostras venire potuerunt, apparent litterae, ut nihil studiorum
meorum mallem, si possem, quam inhaerere lateri tuo. (cf. Aug. Ep. 73,5). Noutra carta, Agostinho diz: quotidie
praesentem te habere vellem, cum quo loquerer quicquid vellem, eu queria, se isso me fosse possvel, te ter aqui todos
os dias, falar contigo sobre o que eu quisesse! (cf. Aug. Ep. 166,1).
45Conybeare (2000) p. 67, contact through letters [...] came to be considered as superior to the enjoyment of the
physical presence of a friend; Ebbeler (2009) p. 273.

)75
46 vide quid faciant terrae ac maria quae nos corporaliter dirimunt. si haec epistola mea quam legis, ego essem, iam
mihi diceres quod quaesivi: nunc vero quando rescribes? quando mittes? quando perveniet? quando accipiam?, v o
que fazem as terras e os mares que fisicamente nos separam! Se essa carta minha que ls fosse eu mesmo, logo me
dirias o que perguntei; mas agora, quando a responders? Quando a enviars? Quando ela chegar? Quando a
receberei? (cf. Aug. Ep. 73,7). A interpretao que Frst (1999) p. 113-114 d ao tpico da em Agostinho e
Jernimo no tocante a um contraste entre a superioridade do esprito pela letra e a submisso da carne na matria
parece-nos um erro de interpretao das citaes. Este ideal est presente em Paulino de Nola, mas no em nossos
correspondentes.
47 , [que] a carta uma das duas metades do dilogo (cf.
Dem. 223); tambm Pseudo-Libnio:
, a carta, ento, uma conversa escrita de uma pessoa ausente a outra pessoa ausente, e
com um fim particular em mente (cf. Ps.-Lib. 2)
48colloquium (Aug. Ep. 28,1) e litteraria conlocutio, dilogo epistolar (cf. Aug. Ep. 40,1). Noutras cartas, epistolare
colloquium (cf. Aug. Ep. 29,1) e epistolica confabulatio (cf. Hier. Ep. 32,1).
49epistolarum genus propterea repertum, ut quidam nobis cum absentibus sermo sit, in dubium non venit, no resta
dvidas que o gnero epistolar foi inventado para que nos fosse de fato possvel conversar com pessoas ausentes (cf.
Ambros. Ep. 66,1).
50Stowers (1986) p. 23, the letter is adaptable to a wide range of circunstances and purposes but always has the
characteristic of being a communication between people who are separated. That makes the rhetoric of consoling
someone or persuading someone to do something quite different than it would be if the person were present.
51 ,
, necessrio que a carta seja um pouco mais culta que um dilogo: ora, este
imita a fala imediata, ao passo que aquela escrita e enviada como um presente (cf. Dem. 224).
52 O termo epistolarity cunhado por Janet Gurkin Altman, e a definio da autora, cf. Altman (1982) p. 4.
53 A pluralidade semntica, os mtodos de composio e os suportes materiais de escrita da carta so abordados por
Stirewalt (1993) p. 67-87; Rosenmeyer (2001) p. 19-35 e Trapp (2003) p. 6-11. V. tambm Arns (2007) p. 21-32 e nele
o interessante testemunho de Agostinho de Hipona ao desculpar-se de ter usado pergaminho, um material mais ordinrio
que o papiro, para escrever uma carta a Romaniano: non haec epistula sic inopiam chartae indicat, ut membranas
saltem abundare testetur. tabellas eburneas quas habeo, avunculo tuo cum litteris misi, no esta carta que vai indicar
a falta de papiro, j que ela mostra ao menos que h bastante pergaminho. As tabuinhas de mrmore que tenho, enviei-
as junto com uma carta a teu tio (cf. Aug. Ep. 15,1).
54ex quo coepi ad te scribere ac tua scripta desidere, desde que comecei a te escrever e desejar teus escritos [...] (cf.
Aug. Ep. 71,1); Sanctus Innocentius presbyter [...] mea ad dignationem vestram scripta non sumpsit, o santo presbtero
Inocncio [...] no levou consigo meus escritos para vossa dignidade (cf. Hier. Ep. 143,1); tambm Aug. Ep. 67,2;
73,2;4 e Hier. Ep. 105,5.
55 epistulae solemniae, cartas cerimoniosas e huic desiderio meo nulla epistula sat est, nenhuma carta seria
suficiente para esse meu desejo (cf. Aug. Ep. 28,1;5); plenam epistulam, uma carta inteira (cf. Aug. Ep. 40,1;5;8);
audivi pervenisse in manus tuas litteras meas, ouvi que chegaste em tuas mos uma carta minha (cf. Aug. Ep. 67,1);
beatitudinis tuae ad me litterae supervenerunt [...] paene epistulae tuae obliti sumus, chegou a mim uma carta de tua
bondade [...] quase que esquecemos da tua carta (cf. Hier. Ep. 102,1); epistulam miseram, eu mandei uma
carta (Hier. Ep. 103,1); mea tibi adferretur epistula, que minha carta seja leva at ti (cf. Aug. Ep. 71,1-3;6); crebras
epistulas, cartas frequentes (cf. Hier. Ep. 105,1-4); tambm Hier. Ep. 112,1;4;6;12;14-15;17-19;21;23; 115 e Aug. Ep.
73,1-3;5-7;9; 74,1; 82,1;7;13;17;22;29-30;33;36, para ficar no primeiro perodo de correspondncia: as menes so
muitas. O leitor percebeu que traduzimos epistula e litterae sempre por carta sem problematizaes.
56 Cf. Hier. Ep. 102,1 e Aug. Ep. 73,1-2; 74,1; 19*,4. V. Arns (2007) p. 62-64.
57Agostinho menciona cartas arquivadas, epistulae conscriptae, em Aug. Ep. 82,30; tambm em Aug. Ep. 71,2, si
forte servata sunt, se que tu guardaste [as cartas].

)76
58 Arns (2007) p. 50 diz: mas muito fcil constatar que scribere significa mais facilmente compor do que escrever
com a prpria mo. Aqui temos o testemunho de Evdio, em uma carta a Agostinho: det tibi Dominus et gratiam
inveniendi, et sapientiam dictandi, et ad nos celeriter scribendi, que o Senhor te d a Graa de encontrar uma soluo,
e a sabedoria tanto de ditar quanto a de nos escrever rapidamente (cf. Aug. Ep. 158,1). De Ccero em diante, scribere
o verbo mais abundante para delimitar a construo da epistula ou das litterae; nas cartas a tico, e. g. Cic. Att.
9,4,1;9,10,1 e 12,53. Mas o Arpinate tambm diz que ditou suas cartas em Att. 2,23,1; 5,17,1; 10,3a,1; 13,25,3; 14,21,4,
certamente na presena de Tirnio, seu secretrio. Pseudo-Demtrio diz que []
, [as cartas] devem ser escritas o mais habilmente possvel (cf. Ps.-Dem. proem.), mas este
autor dirige-se aos estudantes que de fato estavam escrevendo as cartas. Quando Gregrio de Nazianzo fala,
, entre os escritores de cartas, ele se refere s pessoas que ento pleiteavam um cargo de
magistratus ab epistulis, o funcionrio pblico encarregado de redigir as cartas ditadas pelo Imperador; o mesmo para
Filstrato de Lemnos, no De epistulis, mas este autor no usa o verbo mas sim , compor cartas. A
nica exceo aqui parece ser Sneca, em cujas cartas no aparece uma nica vez o verbo dictare em relao ao mtodo
de composio, indicando que aquele texto de fato foi escrito por seu autor (ou assim ele quis que conclussemos).
59Diz Rosenmeyer (2001) p. 22 que the written nature of the letter may be seen as the only defining feature to survive
the massive changes in epistolary technology from antiquity until now.
60 tibi fides fiat illud me ante dictasse, tenha f de que eu j ditei isso antes. (Aug. Ep. 82,17). Testemunhos de
Jernimo: tristes haec dictavimus; utinam meremur complexus tuos et collatione mutua vel doceremus aliqua vel
disceremus!, com tristeza que ditamos isso: antes pudssemos te abraar e num encontro mtuo ensinarmos ou
aprendermos algo! (cf. Hier. Ep. 112,1); hoc ipsum quod loquor, quod dicto, quod scribitur, quod emendo, quod relego,
aquilo que digo, que dito, que escrito, que corrijo, que releio (Hier. In Gal. 3,6,10). V. Arns (2007) p. 43-50, o
ditado depende do acaso, pode tornar-se uma temeridade devido pressa, e representa um perigo para o talento e a
doutrina (citao na p. 48).
61Arns (2007) p. 45, aps a doena nos olhos, Jernimo no pode mais escrever, nem sequer as cartas dirigidas ao
papa Dmaso. Arns tambm demonstra que o verbo dictare surge na obra jerominiana entre 378 e 380, mesma poca
em que ele inicia seus comentrios e tradues.
62Arns (2007) p. 50-56. O taqugrafo est presente na redao do comentrio da carta de Paulo aos Glatas, accito
notario, na presena do taqugrafo (cf. Hier. in. Gal. praef.; Ep. 112,4).
63 Glzer (1884) p. 244; Wikenhauser (1910) p. 56-57; Arns (2007) p. 43-50.
64[...] paene in procinctu haec qualiacumque sunt, effutire compellar et tumultuario respondere sermone non maturitate
scribentis, sed dictantis temeritate [...], [...] como se em estado de alerta sou obrigado a balbuciar essas palavras
quaisquer e a responder com uma conversa improvisada, desprovida do aprumo de quem escreve, e com a precipitao
de quem dita [...] (cf. Hier. Ep. 112,1).
65 Thraede (1970) p. 138 e AugA p. 306, like others in his position, Augustine normally dictated his letters to a
stenographer. Agostinho desculpa-se pela brevidade de sua carta a Jernimo, pois no teve tempo de comp-la:
quamquam itaque nos negotiorum alienorum eorumque saecularium curis circumstemur ingentibus [...], embora
grandes responsabilidades para com outros afazeres, afazeres mundanos, nos cerquem por ora [...] (Aug. Ep. 40,1).
Mas Jernimo tambm no teve tempo de ditar uma resposta s cartas de Agostinho, devido aos problemas de sua vida
pessoal: sed incidit tempus difficillimum, quando mihi tacere melius fuit quam loqui [...] itaque duobus libellis tuis [...]
ad tempus respondere non potui, mas houve um perodo muito difcil durante o qual eu preferi me calar a falar [...] foi
por isso que no consegui responder a tempo aos teus dois livrinhos [...]
66 Wikenhauser (1910) p. 56; Arns (2007) p. 44-45.
67 maius aliquid expeto a benignitate virium tuarum prudentiaque tam docta et otiosa, annosa, studiosa, ingeniosa,
diligentia haec tibi non tantum donante, verum etiam dictante spiritu sancto [...], eu espero algo maior da bondade das
tuas foras, da tua prudncia, to erudita, e da tua diligncia plcida, experiente, aplicada e talentosa, e isso no somente
de uma ao tua, mas sobretudo das palavras ditadas pelo Esprito Santo [...] (cf. Aug. Ep. 82,2); illum possim in
exponendis epistulis eorum habere spiritum, quem illi in dictando habuerunt [...], que eu possa, ao expor suas cartas,
ter o mesmo Esprito que eles tiveram ao ditar [...] (cf. Hier. Gal. 3 praef.). V. Wikenhauser (1910) p. 56 e Arns (2007)
p. 44-45.
68 Harris (1989) p. 94-5; Stirewalt (1993) p. 213-214; Rosenmeyer (2001) p. 22-23; Trapp (2003) p. 7-8.
69 Arns (2007) p. 22-23 e 28, onde nota que as chartae ainda eram preferidas aos pergamena, pergaminhos.
70Pois ento Iul. Vit. Ars rhetorica 27: observabant veteres karissimis sua manu scribere vel plurimum subscribere, os
antigos costumavam escrever, ou ao menos assinar, de prprio punho a seus amigos mais queridos.

)77
71 Henderson (1983) p. 331-355; Murphy (1984) p. 194-268 passim e Tin (2005) p. 17-67 passim. Os tratadistas
medievais haviam dividido a carta em quatro partes: 1) salutatio, saudao; 2) exordium, que na epistolografia antiga
o incio da parte seguinte, em que se intenta a captatio benevolentiae (essas duas primeiras partes formam o praefatio
da carta antiga); 3) a narratio, correspondente da res ou parte central das cartas gregas e latinas; 4) conclusio,
concluso. Entre as duas ltimas, havia uma quinta possvel, 5) petitio, o pedido que tambm se intenta na narratio
ou na postscriptio de cartas antigas, em especial as do perodo tardio. O exordium ainda era subdividido em a)
principium, incio, e b) insinuatio, a insinuao do assunto que viria a seguir na narratio. Que o gnero epistolar foi
dividido em mais de trs partes, cada uma das quais possua frmulas e tpicos prprios, sinal de que ele se tornou
mais codificado conforme foi sistematizado a partir do fim da Idade Mdia.
72Agostinho, sobre a carta de Paulo aos Glatas: et audio paulo superius in eiusdem narrationis exordio, e eu o escuto,
um pouco antes, no exrdio do mesmo texto (cf. Aug. Ep. 82,24). Devemos acreditar que o fato de Agostinho usar
exordium indica que ele via a carta como um subgnero da retrica, como acredita Fry (2010) p. 278, n. 137? No
vemos necessidade para tirar essa concluso. A nomenclatura comum, e ela sequer despertou a ateno de Frst
(2002).
73proinde illud quod in extremo epistulae tuae posuisti, por conseguinte, o que colocaste no final de tua carta (cf.
Aug. Ep. 73,5); peto in fine epistulae [...], peo, no fim da carta [...] (cf. Hier. Ep. 112,23).
74his enim verbis uteris in calce epistulae tuae, tu usas essas palavras no fim da tua carta (cf. Hier. Ep. 66,15); in calce
epistulae recordatus sum [...], no fim da carta, eu me lembrei [...] (cf. Hier. Ep. 129,1), exemplos dados por Arns
2007 p. 89-91.
75 Cf. Hier. Ep. 142.
76 Cf. Hier. Ep. 143.
77 Cf. Aug. Ep. 166-167. V. Divjak (1984) p. 287.
78 Cf. Aug. Ep. 74 e Hier. Ep. 115, respectivamente.
79Para uma discusso exaustiva das frmulas de concluso, v. Koskenniemi (1956); Exler (1976); Cotton (1984) e id.
(1985); White (1986), em especial p. 198-219; Cugusi (1989); Trapp (2003) p. 34-42.
80praefationes ac subscriptiones litterarum computandae sunt pro discrimine amicitiae aut dignitatis, habita ratione
consuetudinis, os prefcios e as subscriptiones das cartas devem se pautar segundo o grau de amizade e a posio
social [dignitas], tendo em mente a prtica tradicional (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27).
81 Sneca, em carta a Luclio, comenta que mos antiquis fuit, usque ad meam servatus aetatem, primis epistulae verbis
adicere si vales bene est, ego valeo, era costume antigo, conservado at minha poca, colocar como primeiras
palavras de uma carta: se ests bem, tudo bem; eu estou bem (cf. Sen. Ep. 15,1). Pseudo-Libnio, ao criticar as
longas salutationes de sua poca, tem opinio semelhante do estoico romano:
[...]
.
, convm, quele que quer escrever [uma carta],
antes de [adotar] qualquer forma epistolar, no tagarelar, nem mesmo empregar apelativos [] [...] mas comear
desse modo: de um a outro, saudaes. Ora, assim, claramente, que faziam todos os antigos versados no
conhecimento e no discurso, e preciso que quem quer imit-los siga os seus passos (cf. Ps.-Lib. 51). V. White (1978)
e (1986) p. 219-220.
82 Tratam-se das cartas Aug. Ep. 28; 40 e Hier. Ep. 105; 112.
83A saber, in Domino: Aug. Ep. 67; 71; 73; 74; 82; 19*; 202A e Hier. Ep. 102. In Christo: Hier. Ep. 103; 115; 126; 134;
143. In Christi visceribus: Aug. Ep. 82; 19*. In Christi membris: Aug. Ep. 180.
84Em Rom 16:3-16, 1 Cor 16:19-21, 2 Cor 13:12-13, Phil 4:21-22, I Th 5:26 e Phm 23-24. Alm das cartas de Paulo, a
salutatio clssica, que pode ser expressa pela frmula , aparece tambm em Act 15:23;23:26 e
Jac 1:1. V. Schubert (1939) para tais aproximaes formalistas, e Stowers (1986) p. 21-22 e 78 para uma discusso das
mesmas.
85 Schubart (1939); Stowers (1986) p. 21, Paul and other early Christian writers turn the greeting into a wish for
blessing from God.
86 A melhor obra sobre as variaes nas frmulas epistolares e nos pronomes de tratamento a de Bastiansen (1964).
87 Arns (2007) p. 90; Fry (2010) p. XV-XVII.

)78
88 Cf. Hier. Ep. 103,1; 115.
89Saudaes afetivas esto presentes, por exemplo, em Ambros. Ep. 10-14;17-18;40 todas missivas de ocasio especial,
concernentes aos afazeres da Igreja de Milo e endereadas aos imperadores Graciano, Teodsio e Valentiniano,
respectivamente. O bispo de Milo parece adotar um tom neutro na maioria de suas cartas, salvo um augustissimo ou
clementissimo aos imperadores, como em Ambros. Ep. 57,1.
90 Arns (2007) p. 90 elenca vinte e duas saudaes afetivas de Jernimo, a maioria das quais so destinadas a
funcionrios do Imprio, a pessoas que lhe so prximas, ou a homens de grande influncia (especificamente a
Agostinho): Hier. Ep. 36; 63; 84; 88; 99; 102; 103; 105; 106; 112; 114; 115; 134; 138; 141; 143; 151-154 (a Ep. 126 a
Marcelino e Anapsquias tambm tem uma salutatio extensa, mas oficiosa). Muitas vezes, Jernimo sequer usa a
salutatio, caso de Hier. Ep. 121-125.
91Cf. Aug. Ep. 21,1, domino beatissimo et venerabili et in conspectu domini sincera caritate carissimo patri Valerio
episcopo Augustinus presbyter in domino salutem, ao senhor muitssimo abenoado e venervel e de honesta caridade,
aos olhos do Senhor, ao pai muito querido, ao bispo Valrio, o presbtero Agostinho sada em nome do Senhor.
92 Engelbrecht (1893) p. 28; Domerc (1980) vol. I, p. 40-47; Divjak (1984) p. 294.
93Em Ambros. Ep. 21,1;25,1. A ausncia de salutationes mais extensas em cartas de Jernimo pode se explicar tambm
por essa possibilidade, de os originais no terem sobrevivido e s cpias de arquivo serem atribudas apenas etiquetas
com remetente e destinatrio, conforme completa Arns (2007) p. 90 acerca de Hier. Ep. 20, carta enviada ao papa
Dmaso: por que razo teria Jernimo pecado contra tais convenes, at ao escrever para o papa Dmaso? Segundo
creio, as cpias tero sido tiradas do exemplar guardado por Jernimo, e este, para dar um cunho de objetividade a sua
correspondncia, omitiu as saudaes do incio.
94Em Rom 1:7, , a todos os que estais em
Roma, amados de Deus, chamados santos: graa e paz de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo, frente a carta de
Nabucodonosor citada pelo profeta Daniel em Dan 4:1, Nabucodonosor rei, a todos os povos, naes e lnguas, que
moram em toda a terra: paz vos seja multiplicada (v. Stowers (1986) p. 21).
95Ambrsio em Ambros. Ep. 8,15;16,6;19,34;25,9;26,20;28,8;29,24;30,16 emprega ou deriva a mesma frmula de
concluso: vale frater, et nos dilige, quia et nos te diligimus, fica bem, irmo, e nos ama, pois ns tambm te amamos,
ou com vale fili, fica bem, filho.
96Jernimo em Hier. Ep. 103,2, 115, 134,2, 141 e 143,2 utiliza a frmula incolumem te et memorum mei Christus deus
noster tueatur omnipotens, domine vere sancte et suscipience papa (ou domine ou fili ou frater etc.), lembra-te de
mim, e que Cristo, o Nosso Senhor todo-poderoso, conserve-te inclume, senhor verdadeiramente santo e louvvel
padre; semelhantes so as concluses de Hier. Ep. 102,3, 105,5 e 126,3. Na realidade, as nicas cartas de Jernimo a
Agostinho nas quais a frmula de concluso est ausente so Hier. Ep. 112,23, esta atipicamente desprovida de muitos
tpicos do gnero, e Hier. Ep. 142.
97Agostinho, em sua correspondncia mtua com Jernimo, utiliza uma frmula de concluso apenas em uma carta ao
monge de Belm: memor nostri exaudiaris a Domino in omni sancto desiderio tuo, domine carissime et
desiderantissime, et honorande merito frater, lembra-te de mim, e que sejas atendido pelo Senhor em todo desejo
santo teu, meu senhor carssimo e queridssimo, meu irmo digno de louvor (cf. Aug. Ep. 67,3); e em outra a Oceano:
memor nostri Deo vivas, lembra-te de ns; vive em Deus (cf. Aug. Ep. 180,5).
98Cf. Hier. Ep. 102,3; 103,1; 115; 134,2; 141; 143,2. Segundo Koskenniemi (1956) p. 147, das -Motiv gehrt zu
den allerfestesten Bestandteilen der Brief-Phraseologie.
99Discordamos assim de Arns (2007) p. 90, que afirma que o incio de uma carta, a frons epistulae, um fragmento
especial, e no vale como argumento para os problemas suscitados no corpo da carta.
100propria manu quod scribo, beatitudini tuae scribo, o que escrevo de punho prprio, escrevo exclusivamente para
tua bondade (cf. Hier. Ep. 153). Agostinho: pro subscripta salutatione, em troca de uma saudao escrita mo (cf.
Aug. Ep. 40,1); manu mea subnotata exemplaria, cpias assinadas de mo prpria, ou com a prpria letra (cf. Aug.
Ep. 19*,4). Lembramos da observao de Jlio Vtor na Ars rhetorica 27.
101 Cf. Hier. Ep. 102,1; 105,3-4 e Aug. Ep. 73,1-5.
102 Wikenhauser (1910); De Bruyne (1929) e id. (1932); Arns (2007) p. 169-170, um meio de ter certeza da
autenticidade dos escritos a subscriptio; Reynolds & Wilson (2013) p. 39-43.
103 Em 1 Cor 16:21; Ga 6:11; Col 4:18; 2 Th 3:17.

)79
104Stowers (1986) p. 60, the letter of friendship was so important to the epistolary tradition that its commonplaces and
phraseology widely influenced virtually all levels and types of letter writing. A melhor obra sobre os tpicos
epistolares ainda a de Thraede (1970), mas v. tambm Bohnenblust (1905), Koskenniemi (1956) p. 64-87 e 186-200;
White (1986) p. 204-213; Trapp (2003) p. 36-38.
105 Stowers (1986) p. 186.
106 Thraede (1970) p. 165-173. E. g. Vt scias in tua colloquia quam olim inardescam, et quam vim patiar, quod a me tam
longe absunt sensus corporis tui, per quos adire possit ad animum tuum animus meus, [...] para que saibas o quo
ardentemente eu desejo conversar contigo desde aquela poca, e quo firmemente eu suporto, pois a sensao da tua
presena fsica est longe demais para que minha alma possa se aproximar da tua [...] (cf. Aug. Ep. 71,2). O tpico est
intimamente ligado definio da carta como uma das metades de um dilogo.
107 cum quasi tecum loquor, cum vero tuas epistulas lego, quando pareo falar contigo, e quando leio tuas cartas (cf.
Cic. Att. 8,14); ego, etsi nihil habeo, quod ad te scribam, scribo tamen, quia tecum loqui videor, eu, embora nada tenha
a te escrever, escrevo mesmo assim, porque pareo falar contigo (cf. Cic. Fam. 12,53); te totum in litteris vidi, te vi
inteiro na carta (cf. Cic. Fam. 16,16,2); tu mihi ostendis [...] litterae, quae vera amici absentis vestigia, veras notas
adferunt, tu te apresentas para mim [...] as cartas, que trazem vestgios verdadeiros, e traos verdadeiros de um amigo
ausente (cf. Sen. Ep. 40,1); quasi praesentem alloqui, falar como se estivesse presente (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica
27); tam praesens inter absentes, quam per epistulas et adloqui et audire quos diligas, estar tanto presente entre
ausentes, quanto falar e escutar por cartas aqueles que tu amas (cf. Hier. Ep. 8,1); ubi tamquam praesenti loquar, falar
como se estivesse presente (cf. Aug. Ep. 200,3). Outros exemplos em Agostinho: Aug. Ep. 29,1; 33,4; 48,4; 80,2; 84,1;
138,1; 145,8; 180,5; 199,54. De resto, esta descrio tornou-se tpica em toda a epistolografia: encontramo-la at em
cartas de pessoas menos instrudas, caso de uma de Aquilio a Hieracapolo, do sculo III d. C., descoberta entre os
papiros de Oxyrhynchus, na qual que o autor afirma que ns teremos a impresso, atravs de nossas cartas, de que nos
vemos pessoalmente; texto em Stowers (1986) p. 72. V. tambm Butler & Purves (2003) para as caractersticas
sinestsicas e sensoriais que a epistolografia revela, tema de estudo fascinante e muito recente.
108Comentrios sobre a relao epistolar formam um tpico presente em todas as cartas da correspondncia mtua entre
os autores, geralmente nos pargrafos iniciais de suas cartas. Por vezes a praescriptio se estende no pargrafo seguinte,
caso de uma carta de Agostinho: ex quo coepi ad te scribere ac tua scripta desiderare [...] quia ergo duas iam epistolas
misi, nullam autem tuam postea recepi, easdem ipsas rursus mittere volui, credens eas non pervenisse, desde que
comecei a te escrever e desejar teus escritos [...] j que eu te enviei duas cartas mas no recebi nenhuma tua em troca,
quis enviar as mesmas novamente, por acreditar que elas no chegaram (cf. Aug. Ep. 71,1-2).
109 Thraede (1970) p. 117; Koskenniemi (1956) p. 79-87. Os mensageiros das cartas trocadas entre Agostinho e
Jernimo so explicitados em Aug. Ep. 28,1; 40,9; 71,1; 73,1; 166,2; 19*,3 e Hier. Ep. 102,1; 103,1; 115; 134,1; 143,1.
Como falamos no texto, a meno explcita ao mensageiro da carta no bem um tpico epistolar mas, como a
subscriptio, tambm uma maneira de provar a autenticidade do documento. O serve de testemunho para a
pessoa que carregava a mensagem.
110 Disso diz Caio Jlio Vtor: rescribere sic oportet, ut litterae, quibus respondes, prae manu sint, ne quid, cui
responsio opus sit, de memoria effluat, convm reescrever de modo que se tenha em mos as cartas que respondemos
para que nada que necessita de resposta escape da memria (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27). Jernimo e Agostinho
seguem esse preceito risca, inclusive citando largas passagens um do outro, em especial nas cartas Hier. Ep. 112 e
Aug. Ep. 82.
111Cf. Aug. Ep. 28,1; 40,1; 71,6. Outros exemplos: Hier. Ep. 130,2; 145; 153 e Aug. Ep. 194,2; 229,1. A viso da alma
do correspondente, variao do -topos, torna-se tpico epistolar recorrente ao longo de toda histria da
epistolografia, no apenas na Antiguidade como tambm em tempos modernos. O bispo cristo Baslio de Cesareia (ca.
330 - 379) o retoma amide, exclamando em uma carta ao filsofo Mximo, que
, de fato, as palavras so imagens das almas (cf. Bas. Ep. 2;9). Samuel Johnson (1709 - 1784), sculos mais
tarde, mais enftico em uma carta Sra. Thrale: in a Mans Letters you know, Madam, his soul lies naked, his letters
are only the mirrour of his breast, whatever passes within him is shown undisguised in its natural process (apud
Kermode & Kermode (1995) p. 130). V. Koskenniemi (1956) p. 40-42; Mller (1980).
112 Tratam-se de Hier. Ep. 105 e Aug. Ep. 73, respectivamente.
113 Citado de Arns (2007) p. 91.

)80
114peto in fine epistulae, ut quiescentem senem, olimque veteranum, militare non cogas, et rursum De vita periclitari. tu
qui iuvenis es, et in pontificali culmine constitutus, doceto populos; et novis Africae frugibus Romana tecta locupleta.
Mihi sufficit, cum auditore et lectore pauperculo in angulo monasterii susurrare, peo, no fim da carta, que no
obrigues um velho em inatividade, outrora veterano, a servir novamente o exrcito e mais uma vez sofrer perigo de
vida. Tu, que s jovem e que tens teu lugar no alto escalo pontifical, v conduzir tuas comunidades e enriquecer os
celeiros de Roma com as novas searas da frica! Sussurrar num canto do monastrio ao lado de um pobrezinho que
comigo leia ou que me escute isso me suficiente (cf. Hier. Ep. 112,23); si autem amicus, qui me primus gladio
petiit, stilo repulsus est; sit humanitatis tuae atque iustitiae, accusantem reprehendere, non respondentem. In
Scripturarum campo, si placet, sine nostro invicem dolore ludamus, agora, se um amigo aquele que primeiro
mostrou-me a espada (e foi repelido pela pena), cabe tua humanidade e justia repreender quem acusa, no quem se
defende. No campo de batalha das Escrituras, se assim o queres, exercitemo-nos sem ferirmos um ao outro (cf. Hier.
Ep. 115).
115sed obsecro te per Dominum, ne te pigeat ad omnia respondere, et praestare mihi, quantum potueris, praesentiam
tuam, enfim, eu te imploro, em nome do Senhor, no te aborreas em responder a tudo e me oferece, na medida do
possvel, tua presena (cf. Aug. Ep. 71,6).
116verum tamen illum maluerim aliquo modo mitiorem, quam te isto modo armatiorem, no entanto, eu preferiria aquele
Jernimo de algum modo mais manso a te ver, deste modo, todo armado (cf. Aug. Ep. 73,10); illa enim caritas quam
tecum habere vellem, profecto maior est; sed melius haec minor quam nulla est, afinal, a caridade que gostaria de
manter contigo com certeza maior; mas, melhor esta, menor, do que nenhuma (cf. Aug. Ep. 82,36).
117grandem latini sermonis in ista provincia notariorum patimur penuriam, passamos por uma grandez escassez de
copistas da lngua latina nesta provncia [...] (cf. Hier. Ep. 134,3).
118dignari: Aug. Ep. 28,5; 40,9; 71,6; 73,1;6; 82,15;17;22;33-34; 166,6;8; 167,21. Non gravari: Aug. Ep. 28,2; 40,9;
71,2; 166,3; 167,21. Em Jernimo, h apenas um non gravari em Hier. Ep. 134,2.
119Malherbe (1988) p. 13 e Arns 2007 p. 91-92. Ao passo que o termo mensura tem significado singularmente espacial,
o modus, polissmico, abarca uma gama de sentidos, todos os quais passam pela ideia de equilbrio. O modus o
adequado, o meio, a temperana; o modus a traduo latina para o grego , do verbo impessoal , preciso
ou convm.
120
, , o tamanho [de uma carta] deve ser moderado, assim
como o estilo (cf. Dem. 228).
121Segundo afirma Fry (2010) p. XXXIII, dans ce genre dopration, la mesure simpose. Les chrtiens lignorent [...]
Pour un Pre de lglise, la longueur dune lettre est sans importance. Acreditamos que a autora deveria ter
demonstrado suas afirmaes atravs de outros autores cristos, no se atendo somente s cartas de Agostinho e
Jernimo.
122suggestum [est] caritati tuae [...] quod librum adversus te scriberim Romamque miserim (Aug. Ep. 67,1), sugeriram
tua caridade que eu escrevi um livro contra ti e o mandei a Roma; satisfacis te contra parvitatem meam librum
Romam non misisse, tu prestas satisfao dizendo no teres enviado um livro a Roma contra minha pequenez (Hier.
Ep. 102,1) e tambm tuam liquido epistulam non credebam, eu no tinha certeza absoluta de que a carta era tua (Hier.
Ep. 105,4). Agostinho protesta: quod sane scripseram nullum me librum adversus te Romam misisse, ideo scripseram
quia et libri nomen ab illa epistula discernebam, certo, o que eu te escrevi, que no mandei a Roma nenhum livro
contra ti, escrevi desse jeito porque l eu distinguia o conceito de livro de minha carta (Aug. Ep. 82,33).
123tres simul epistulas, immo libellos [...] accepi, trs foram as cartas, ou melhor, livrinhos [...] que recebi ao mesmo
tempo (Hier. Ep. 112,1). Diz Arns (2007) p. 93 sobre isso: as controvrsias ocupam os comentrios, no as cartas.
Devido ao tamanho do texto, ele [Jernimo] corrige, s vezes, o emprego da palavra epistula para libellus.
124 Em ordem: neque enim epistularis angustia evagari longius patiebatur [...] cernis me scripturarum amore raptum
excesisse modum epistulae, ora, a estreiteza prpria a uma carta no permitia que vagssemos muito longe [...] tu me
vs tomado pelo amor das Escrituras, excedi o limite da carta (cf. Hier. Ep. 53,6;9); neque enim epistulae patitur
brevitas diutius in singulis morari [...] excessi mesuram epistulae, sed non excessi doloris modum, ora, a brevidade de
uma carta no permite que nos demoremos em detalhes [...] excedi a medida da carta, mas no excedi o limite da
tristeza (cf. Hier. Ep. 57,8;13); conabor modum non egredi epistulae longioris [...] modum meum egredi, tentarei no
exceder a extenso de uma carta mais longa [...] passei dos meus limites (cf. Hier. Ep. 112,1;18). Em Agostinho: itaque
faciam quod ultra solitum modum hanc epistulam porrigat, desse modo, farei com que essa carta se estenda alm do
tamanho costumeiro (cf. Aug. Ep. 7,3); unde supra locutus sum plus fortasse quam debui, sed non plus quam timui,
por isso discorri acima, talvez mais do que precisava, mas no mais do que receava (cf. Aug. Ep. 73,9); prolixioris
epistulae me confitens debitorem, eu me confesso devedor de uma carta mais prolixa (cf. Aug. Ep. 80,1). Arns (2007)
p. 111, n. 65 d mais exemplos.

)81
125 brevem putabam futuram hanc epistulam, sd nescio quomodo ita mihi dulce factum est in ea progredi ac si tecum
loquerer [...], eu pensei que esta carta seria breve, mas no sei como ela se tornou to agradvel para mim que me
estendi nela como se falasse contigo (cf. Aug. Ep. 71,6). Antes, tali viro, a quo tempora quantalibet occupet, nullus
sermo prolixus est, de um homem honrado, de quem as conversas, seja qual for o tempo que tomem, jamais so
enfadonhas (cf. Aug. Ep. 40,1). Outros testemunhos em Hier. Ep. 53,9 e Paul. Nol. Ep. 20,1. Trata-se tambm de um
tpico, v. Thraede (1970) p. 154-157.
126conabor [...] et festinanti fratri moram non facere, qui ante triduum, quam profecturus erat, a me epistolas flagitavit,
tentarei [...] no provocar demora a um irmo apressado, que uns trs dias antes de partir insistiu tanto por uma carta a
mim (cf. Hier. Ep. 112,1).
127quanquam itaque nos negotiorum alienorum, eorumque secularium, curis circumstemur ingentibus; tamen epistulae
tuae brevitati facile non ignoscerem, nisi cogitarem quam paucioribus verbis meis redderetur, embora grandes
responsabilidades para com outros afazeres, afazeres mundanos, nos cerquem por ora, ainda assim, eu mal perdoaria a
brevidade de tua carta, se no levasse em considerao quo mais breves foram as minhas palavras, s quais ela
responde (cf. Aug. Ep. 40,1).
128Gregrio de Nazianzo reitera a importncia da medida ao escrever uma carta, comparando-a ao alvo mirado pelos
arqueiros, mas faz uma admonio quanto brevidade excessiva: ,
, ,
, , , .
, [modus], entre os escritores de cartas, h aqueles que escrevem mais do que o
apropriado, e tambm aqueles que so breves em exagero; ambos perdem completamente a medida [ ], assim
como os arqueiros quando perdem o alvo por atirarem por baixo ou por alto: eles erram do mesmo jeito, mas por razes
opostas. A medida das cartas [ ] o seu objetivo [ ] (cf. Greg. Naz. Ep. 51,1).
129 , , .
[] , , , .
, , preciso lembrar, ainda, que,
assim como no somente existe um nico estilo epistolar [ ], h tambm assuntos epistolares
especficos [ ]. Aristteles, ao menos, considerado particularmente hbil como compositor de
cartas, diz: eu no te escreverei sobre isso, pois no adequado a uma carta [ ] (cf. Dem. 230). No
pargrafo seguinte, Pseudo-Demtrio de Faleros abre outra exceo filosofia, em elaborar provas de lgica
[] quando se quer demonstrar um argumento que apropriado a uma carta, como o faz Aristteles ao tratar de
poltica: , afinal, o assunto que ele aborda
apropriado a uma carta, e assim a prpria prova. (cf. Dem. 233).
130Agostinho: non enim potest aut oportet in litteris explicari quanta et quam inexplicabilia mala consequantur, si hoc
concesserimus, posset autem oportune minusque periculose demonstrari, si coram inter nos colloqueremur, no mais,
no se pode, ou sequer convm explicar em uma carta os males, quo graves e quo inexplicveis, haveriam de seguir
caso assentissemos a essa interpretao; isso poderia ser demonstrado de forma mais oportuna e menos perigosa caso
pudssemos conversar pessoalmente (cf. Aug. Ep. 40,5). Jernimo: brevis epistula longas explanare non valet
quaestiones, uma carta breve no pode explicar questes longas (cf. Hier. Ep. 55,1); et quia epistularis brevitas non
potest omnia comprehendere [...] epistularis angustia non patitur longi operis magnitudinem, e j que a brevidade da
carta no pode abarcar tudo [...] a estreiteza prpria a uma carta no permite a magnitude de uma obra longa (cf. Hier
Ep. 133,1;11).
131ad quas [epistulas] respondere voluero, libri magnitudine opus erit, se eu quiser respond-las [as cartas], ser
preciso um livro inteiro (Hier. Ep. 112,1).
132 , . ora, se algum
quiser escrever problemas filosficos [] ou questes de cincia natural [] em uma carta, ele
escreve algo, mas no escreve uma carta (cf. Dem. 231); latam disputationem brevi sermone comprehendimus, ut non
tam epistulam quam commentariolum dictaremus, encerramos uma discusso demorada em uma conversa breve, como
se ditssemos no uma carta mas um comentariozinho (cf. Hier. Ep. 48,13); quaeso igitur te, et iterum atque iterum
obsecro, ut ignoscas disputatiunculae meae, eu te peo, ento, e te imploro muitas e muitas vezes que perdoes minha
polemicazinha (cf. Hier. Ep. 112,18).
133quod genus interpretationis in scripturis sanctis sequendum sit, liber quem scripsit de optimo genere interpretandi
[explicat], qual seria o melhor mtodo de traduo a se adotar para as santas Escrituras, disso [trata] o livro que escrevi
sobre o melhor mtodo de traduo (cf. Hier. Ep. 112,20 e Aug. Ep. 82,34). Arns (2007) p. 93 elenca outros treze libri
de Jernimo, dentro os quais nove so epitfios, discursos de consolao escritos em ocasio da morte de conhecidos
(Agostinho no tem nenhum desses).

)82
134itaque duobus libellis tuis, aos teus dois livrinhos (cf. Hier. Ep. 134,1); in Orientem misi librum, enviei meu livro
ao Oriente (cf. Aug. Ep. 202A,1) e quod duos libros a me missos commemoravit, de ele ter mencionado dois livros
enviados por mim (cf. Aug. Ep. 202A,20). Nas retractationes, Agostinho elenca nove libri que enviou como cartas: ad
inquisitiones Ianuarii libri duo [Aug. Ep. 54-55 ad Ianuarium]; quaestiones expositae contra paganos, numero sex
[Aug. Ep. 102 ad Honoratum]; liber de Gratia Novi Testamenti [Aug. Ep. 140 ad Deogratias]; liber de videndo Deo
[Aug. Ep. 147 ad Paulinam]; os libri De origine animae hominis et De sententia Iacobi apostoli [Aug. Ep. 166-167 ad
Hieronymum]; liber de correctione Donatistarum [Aug. Ep. 185 ad Bonifatium] e liber de praesentia Dei [Aug. Ep. 187
ad Dardanum] (cf. Aug. Retract. 2,20;31;36;41;45;48;49).
135 Russell (1974) p. 72-79; Trapp (2003) p. 22 e 25-31.
136 Sykrutis (1931) p. 200-217, 218-220; Schneider (1954) p. 578; Thraede (1970) p. 186-191; Stowers (1986);
Satterthwaite (1997) p. 676-678; Frst (1999) p. 169; id. (2002) p. 26, die berkommene antike Briefform wurde
inhaltilich gefllt mit Diskussionen ber Bibel und Bekenntinis.
137 Cf. Aug. Ep. 28,3-4; 40,3-7; 82,4-31 e Hier. Ep. 112,3-17.
138 Cf. Aug. Ep. 71,3-6; 82,32-35 e Hier. Ep. 112,19-22.
139 hactenus fortasse scribere debuerim, si esse vellem epistularum solemnium more contentus, sed scatet animus in
loquelas communicandas tecum de studiis nostris, "eu deveria talvez parar de escrever por aqui, se quisesse me ater ao
costume das cartas cerimoniosas, meu esprito, porm, ferve em partilhar contigo algumas palavrinhas acerca de nossos
estudos (cf. Aug. Ep. 28,1).
140
ex qua illud mihi suggestum est, cum istam dictarem, quod in hac quoque praetermittere non debui, dela [i.e. de
Aug. Ep. 28], no momento em que eu a ditava, veio-me a ideia de adicionar algo que no devia deixar de lado [...] (cf.
Aug. Ep. 40,8).
141Cf. Hier. Ep. 134; 141; 142; 143,1-3 e Aug. Ep. 19*, e mesmo Aug. Ep. 180 dirigida a Oceano, que emprega os
exemplos de figuras de linguagem [tropicae locutiones] de maneira adequada escrita de cartas (cf. Dem. 233).
142Jernimo e Agostinho com frequncia conversam sobre os afazeres da Igreja em suas cartas, a saber: vacare autem
studiis diligentius quam quae populi audiunt instruendis, propter ecclesiasticas occupationes omnino non possum,
arrumar tempo livre para me aprofundar em estudos mais elevados que aqueles que o povo capaz de ouvir algo que,
devido aos afazeres da igreja, no me absolutamente possvel (cf. Aug. Ep. 73,5); quamquam enim secundum
honorum vocabula quae iam Ecclesiae usus obtinuit, [...] segundo os termos polticos que a Igreja, pelo uso, j tornou
familiares [...] (cf. Aug. Ep. 82,33); tambm o caso do bispo em Oea, cf. Aug. Ep. 71,5-6, e a polmica pelagiana em
Aug. Ep. 19*,2-3. Em Jernimo: episcopus es, Ecclesiarum Christi magister [...] tu qui iuvenis es, et in pontificali
culmine constitutus, doceto populos, tu s um bispo, um diretor das igrejas de Cristo [...] tu, que s jovem e que tens
teu lugar no alto escalo pontifical, v conduzir tuas comunidades (cf. Hier. Ep. 112,15;23).
143Em diversas cartas de Ccero a tico, das quais citamos duas: nihil habebam quod scriberem, eu no tenho nada a
escrever, carta que foi motivada pela insnia e pela dor fsica causadas pela febre (cf. Cic. Att. 9,4,1); ego, etsi nihil
habeo, quod ad te scribam, scribo tamen, quia tecum loqui videor, eu, embora nada tenha a te escrever, escrevo
mesmo assim, j que pareo falar contigo (cf. Cic. Att. 10,1).
144 ,
, uma carta almeja transmitir sentimentos de amizade com breves palavras, e expressar um assunto simples, de
maneira simples (cf. Dem. 231).
145 ,
, , o tamanho da carta, portanto,
deve atentar ao assunto [ ], e de maneira alguma deve-se considerar a plenitude de argumentao como uma
falta; s vezes necessrio estender algumas cartas alm do conveniente, devido ao objetivo [] que se coloca (cf.
Ps.-Lib. 50).
146 Engelbrecht (1893); OBrien (1930); Bastiansen (1964); Thraede (1968); Dineen (1929;1995) para os ttulos em
cartas crists; Frst (1999) p. 119-128 aborda a questo com mincia. Holder (1997) proporciona um bom exame das
cartas de Agostinho. Desconhecemos artigos centrados nas cartas de Jernimo.
147Cf. I Thes. 2:11, , , em portugus assim como bem
sabeis de que modo vos exortvamos e consolvamos e testemunhvamos, a cada um de vs, como o pai a seus filhos.
Paulo se d o ttulo de em algumas passagens dos corpos de suas cartas, mas nunca nas salutationes, nas quais se
apresenta sempre como , Paulo, escravo de Deus.
148 Stowers (1986) p. 31.

)83
149O apstolo Paulo se caracteriza como nas salutationes de 1 Cor 1:1; 2 Cor 1:1; Gal 1:1; Eph 1:1;
Col 1:1; 1 Tim 1:1; 2 Tim 1:1
150
Por exemplo, Agostinho chama o hipodicono Cipriano de servus Dei em duas cartas (cf. Aug. Ep. 71,1; 73,1) e d o
mesmo ttulo a um portador de cartas, Lucas, e a dois alunos seus, Timsio e Tiago (cf. Aug. Ep. 19*,3).
151 E.g. Aug. Ep. 24; 30.
152S na cartas aos Romanos, aparece onze vezes (cf. Rom 1:13; 7:1; 7:4; 8:12; 10:1; 11:25; 12:1; 15:14-15;
15:30; 16:17); na carta aos Glatas, aparece dez vezes (cf. Gal 1:11; 2:4; 3:15; 4:12; 4:28; 4:31; 5:11; 5:13; 6:1; 6:18).
Enumerar todas as vezes nas quais o apelativo aparece na epistolografia paulina seria oneroso e cansativo.
153Agostinho chama Jernimo e outras pessoas de irmo em diversas passagens, s vezes mais de uma vez (cf. Aug.
Ep. 28; 40; 67; 71; 73; 74; 82; 166-167; 180; 19*; 202A). Nas cartas de Jernimo, apenas os outros, como os portadores
de cartas e amigos como Alpio, so chamados de irmos; o ttulo nunca dado a Agostinho, sempre caracterizado
como papa, padre (cf. Hier. Ep. 102; 103; 105; 112; 115; 126; 134; 142; 143).
154Em sua correspondncia mtua com Agostinho, o ttulo frater dado a Sisnio (cf. Hier. Ep. 102,1; 105,1);
Pauliniano (cf. Hier. Ep. 102,3); Astrio (cf. Hier. Ep. 103,1); Alpio (cf. Hier. Ep. 103,1; 141); Profuturo (cf. Hier. Ep.
105,1); Cipriano (cf. Hier. Ep. 112,1); Firmo (cf. Hier. Ep. 115); Oceano (cf. Hier. Ep. 126,3); Orsio (cf. Hier. Ep.
134,1); e Eusbio (cf. Hier. Ep. 143,2).
155 Em Agostinho, a carta Aug. Ep. 99 endereada a Itlia, dita sancta famula Dei, santa servial de Deus; Aug. Ep.
126 endereada a Albina, uma domina sancta ac venerabilis famula Dei, senhora santa, e venervel servial de Deus;
Aug. Ep. 150 endereada a Proba e Juliana, dominae honore dignissimae merito inlustris et praestantissimae filiae
Proba et Iuliana, as merecidamente mais dignas em honra dentre as senhoras, as ilustres e eminentes filhas Proba e
Juliana; e Aug. Ep. 210 a Felicitas e Rstico, dilectissima et sanctissima matri Felicitas et frater Rusticus et sorores
quae vobiscum sunt, a mais amada, a mais santa me Felicitas, e o irmo Rstico, e as irms que esto convosco. Em
contraste, a maior parte das salutationes de Jernimo a Paula, Marcela e Eustquio so secas e prescindem de adjetivos.
H duas hipteses para tentar explicar essa situao: ela se deve ao fato dos arquivistas terem extirpado as salutationes
das cpias posteriores das cartas do Estridonense, ou a uma escolha estilstica do autor.
156Bastiansen (1964) p. 20-30;36-43. Vocativos familiares esto presentes no incio de todas as cartas trocadas entre
Jernimo e Agostinho, e nas concluses das seguintes cartas de Jernimo: Hier. Ep. 102,2, 103,2, 126,3, 134,2, 141 e
143,2; em Hier. Ep. 105,5, o Estridonense termina com vale, mi amice carissime, aetate fili, dignitate parens, fica bem,
meu amigo, muito querido, meu filho em idade e pai em dignidade. J Agostinho raramente usa vocativos nas
concluses; o nico testemunho em sua correspondncia com Jernimo na carta Aug. Ep. 67, que na realidade uma
frmula de concluso.
157 Cf. Hier. Ep. 126,1.
158O adjetivo j tem esse sentido identitrio e excludente nas cartas do apstolo Paulo, por exemplo:
, aos santos e irmos santos em Cristo, que esto em Colossos (cf. Col 1:2) e
, saudai a todos os santos em Cristo Jesus (cf. Phil 4:21).
159 O adjetivo catholicus, significa, nesta poca, cristo de f verdadeira, o que partilha da recta fides ou da rectitudo
fidei, alinhado f ortodoxa e universal, sempre oposto ao haereticus, ou seja, utilizado em um sentido prximo ao de
nosso fiel (v. Blaise p. 139 catholicus).
160 A a base da da epistolografia grega, como o sermo a base da elocutio da epistolografia latina. A
que se torna o termo especfico para uso na explanao das Sagradas Escrituras, aproximando-se do verbum
latino (simplesmente transliterado, ou sendo traduzido como tractatus ou commentarius), entretanto distinta do estilo
da carta, ainda que influa nele. Isidoro de Sevilha (ca. 560 - 636) cita aquelas como um tipo de opusculus, pequena
obra, menor que o tomo, tomus: [homiliae], quas Latini uerbum appellant, [p]roferuntur in populis [...] tomi uero, id
est libri, maiores sunt disputationes, as homilias, que os latinos chamam de verbum, so proferidas ao povo [...] por
outro lado, os tomos, isto , os livros, so discusses maiores (cf. Isid. Etim. 6,8,13). O primeiro a utiliz-lo neste
sentido, de um comentrio escrito como se fosse prosa solta, foi Orgenes, que o diferenciou de , a oratio latina, o
discurso formal. De todo modo, o fato de os cristos terem escolhido e no outro termo mais especfico para
denominar seus comentrios indcio de que eles almejavam, desde o incio, aproximar seus escritos da linguagem
popular, e da epistolografia em especfico (ora, no fortuito que o apstolo Paulo decidiu se expressar atravs de
cartas, quando tinha mo diversos outros gneros), na medida em que se distanciavam do latim literrio da tradio
pag, aspecto central para compreendermos a formao da identidade crist antiga; v. Stowers (1986) p. 41-47; Arns
(2007) p. 87-89. De fato, o sermo aparece, no perodo cristo, como um tipo de texto de exegese bblica mais prximo
da linguagem comum, que deu no nosso sermo e traduz o uso que se faz de entre os gregos mas este uso
mais recente que nossos autores, e os sermes ou homiliae de Agostinho so chamados pelo prprio de tractatus
populares (cf. Aug. Ep. 224,2); v. Fry (2010) p. XXXV.
)84
161 , a carta uma conversa escrita (cf. Ps.-Lib. 2); epistulis conveniunt multa
eorum, quae de sermone praecepta sunt, s cartas convm muitos dos preceitos que dizem respeito conversao (cf.
Iul. Vit. Ars rhetorica 27).
162Aqui, o sermo pode significar uma fala ou conversa (cf. Cic. Fam. 9,8,1 feci sermonem, tive uma conversa); o
contedo dessa conversa (cf. Plin. Nat. 11,19,21 nunc enim sermo De natura est, agora vamos falar sobre a natureza).
163Varro define o sermo como um discurso entre duas partes: [sermo] non potest in uno homine esse solo, sed ubi
oratio cum altero coniuncta, [o sermo] no pode existir em um homem sozinho, mas quando h um discurso conjunto
com outro homem (cf. Varr. Ling. 6,64). Tambm Isidoro de Sevilha o d pura e simplesmente como traduo latina do
grego: dialogus est collatio duorum uel plurimorum, quem latini sermonem dicunt. nam quos Graeci dialogos
vocant, nos sermones vocamus. sermo autem dictus quia inter utrumque seritur, o dilogo acontece em um encontro de
duas ou mais pessoas, o que os latinos chamam de sermo. Pois aquilo que os gregos chamam de dilogo, ns chamamos
de sermo: diz-se, porm, sermo porque se faz uma unio entre dois (cf. Isid. Etim. 6,8,3).
164Ccero define em alguns locais o sermo como o dilogo prprio das conversaes entre os filsofos, no sentido desta
ser uma modulao oposta quela prpria do discurso do orador: mollis est enim oratio philosophorum et umbratilis nec
sententiis nec verbis instructa popularibus nec vincta numeris sed soluta liberius; nihil iratum habet nihil invidum nihil
atrox nihil miserabile nihil astutum; casta verecunda virgo incorrupta quodam modo. itaque sermo potius quam oratio
dicitur. quanquam enim omnis locutio oratio est tamen unius oratoris locutio hoc proprio signata nomine est, branda,
com efeito, a expresso dos filsofos e fica sombra, no armada nem de palavras nem de pensamentos dirigidos ao
povo, nem presa em uma cadncia, mas solta mais livremente; no tem nada de colrico, nada de odioso, nada de
violento, nada de miserando, nada de astuto: casta, respeitvel, como uma donzela intocada, e, dessa forma, antes
conversao [sermo] do que discurso [oratio] chamada. Pois, ainda que toda fala seja uma oratio, apenas a fala do
orador foi designada propriamente com o termo oratio (cf. Cic. Or. 64); e tambm illa enim sunt curricula
multiplicium variorumque sermonum in quibus Platonis primum sunt impressa vestigia. sed et huius et aliorum
philosophorum disputationibus et exagitatus maxume orator est et adiutus, l [na Academia], com efeito, as caladas
se prestam a mltiplas e variadas conversas; nelas, ficaram marcados, por primeiro, os passos de Plato. Mas, pelas
discusses desse e de outros filsofos, o orador no s foi extremamente perseguido, mas tambm auxiliado (cf. Cic.
Or. 12); ambas as tradues so de Sidney Calheiros de Lima. Outros testemunhos do Arpinate: sermo in circulis,
disputationibus, congressionibus familiarum uersetur, sequatur etiam convivia, o sermo se d nos grupos de filsofos,
nos debates, nos encontros de amigos, segue-se ento as festas (cf. Cic. Off. 1,132 e Or. 64) e in quo circulo de
philosophia sermo haberetur, grupo de filsofos no qual conversavam sobre filosofia (cf. Nep. Epam. 3,3). Mesmo
assim, o sermo no deixa de ser conversao, e no se aproxima do dilogo filosfico enquanto gnero de escrita, como
Ccero parece indicar no De oratore: cuius ingenium variosque sermones immortalitati scriptis suis Plato tradidit, cum
ipse litteram Socrates nullam reliquisset, cujo talento e conversao variadas Plato legou imortalidade em seus
escritos, uma vez que o prprio Scrates no deixou uma nica palavra escrita (cf. Cic. De or. 3,16,60).
165Aqui, o sermo significa o conjunto de palavras empregado numa conversa, isto , o vocabulrio ou a linguagem (cf.
Cic. Off. 1,31,111, sermone eo debemus uti, qui notus est nobis, devemos utilizar uma linguagem tal que nos seja
conhecida; e Hier. Ep. 112,20, tuo tibi sermone respondeo, eu te respondo com tua prpria linguagem).
166 A melhor definio quem d Ccero, novamente: magna vis orationis est duplex, altera contentionis, altera
sermonis, contentio disceptationibus tribuatur iudiciorum, contionum senatus; sermo in circulis, disputationibus,
congressionibus familiarium versetur, a grande fora do discurso dplice: por um lado vem da contentio, por outro
do sermo. Atribumos a contentio aos debates jurdicos e aos da assembleia no senado; o sermo acontece nos crculos
sociais, nas discusses, nos encontros entre amigos (cf. Cic. Off. 1,37,132; tambm Quin. Inst. orat. 8,5,15). Inferimos
da que o sermo o contrrio da contentio, que a modalidade prpria do discurso de oratria. Mais: sermo est oratio
remissa et finimita cottidianae locutioni, o sermo uma oratio relaxada e mais afim da fala quotidiana (cf. Auct. Her.
3,13,23); Quintiliano d uma perspectiva comparativa oratio, o discurso apropriado s cartas: est igitur ante omnia
oratio alia vincta atque contexta, soluta alia, qualis in sermone et epistulis, nisi cum aliquid supra naturam suam
tractant, ut de philosophia, de re publica similibusque, portanto, o discurso ser, antes de tudo, ou firme e enredado,
ou solto, como em uma conversa e em cartas, a no ser que tratem de algo que seja maior que seu escopo natural, como
filosofia, poltica e similares (cf. Quin. Inst. orat. 9,4,19). Muito embora, o sermo aparece por vezes como sinnimo de
oratio, mas este uso parece se encerrar no De Re Publica de Ccero, em provvel adaptao do vocabulrio dos tempos
de Cipio Africano (cf. Cic. Rep.1,11,17; 1,13,19; 1,24,38).
167Aqui, tanto a linguagem do povo, o sermo plebeius ou vulgaris, quanto o idioma de uma civilizao: chega s vezes
a se confundir com este (cf. Cic. Fin. 1,1,1 quae philosophi graeco sermone tractavissent, o que os filsofos
abordaram na lngua grega; Hor. A. P. 57, cum lingua Catonis et Enni sermonem patrium dictaverit, quanto a lngua
de Cato e nio ditou a lngua ptria).
168 sermo Graecus est, uma palavra grega (cf. Cassiod. in Psalt. 21,1).

)85
169qualis sermo meus esset, si una sederemus aut ambularemus, inlaboratus et facilis, tales esse epistulas meas volo,
quae nihil habent accersitum nec fictum, como se fosse uma conversa minha, se estivssemos sentados ou caminhando
juntos, espontneo e leve, assim quero que sejam minhas cartas, que nada tenham de forado ou artificial (cf. Sen. Ep.
75,1).
170Pseudo-Demtrio de Faleros, ao criticar uma carta de Aristteles a Antpatro, sentencia que
, , um homem falando assim d a impresso de estar discursando, e no
conversando (cf. Dem. 225).
171 , , o homem que discursa
sobre a sabedoria ou faz exortaes parece no mais falar em uma carta, mas lecionar (cf. Dem. 232).
172 epistularum genera multa esse non ignoras, sed unum illud certissimum, cuius causa inventa res ipsa est, ut
certiores faceremus absentes, si quid esset, quod eos scire aut nostra aut ipsorum interesset, tu no ignoras que h
muitos tipos de cartas, mas h um absolutamente preciso, por cuja razo a prpria atividade foi inventada: para informar
as pessoas ausentes, se houver algo sobre ns ou sobre eles que lhes interesse saber (cf. Cic. Fam. 2,4,1).
173 Labourt (1963) vol. IV, p. 173-176; Nougaret (1986), p. 116-121. A estrutura rtmica de uma carta se pauta por
cursus, clusulas colomtricas distintas dos metros poticos, e que se localizavam nas extremidades de um perodo, ou
em qualquer lugar onde se desejava criar um efeito determinado. Os cursus se distinguem por sequncias idnticas ou
proporcionais de slabas ou palavras recorrentes em aliterao e assonncia, por construes sintticas parecidas, e por
repetio, variao ou oposio de lxico e temtica. Dividimo-los em cursus planus, o mais comum; cursus tardus, que
d peso ao argumento; cursus velox, que d leveza e rapidez ao que se diz; e o cursus espondaico, mais austero que o
tardus. Tanto Jernimo como Agostinho utilizam cursus em sua correspondncia: exemplos claros so as variationes
com concordia em Aug. Ep. 73,8 e error em Hier. Ep. 112,7. Embora nossa traduo e a de Labourt (1963) e a de
Frst (2002) tambm pouco tenha atentado a este aspecto, a de Fry (2010) abundante em notas que chamam a
ateno para ele. A ns, foi difcil o suficiente traduzir o texto em prosa. Por no termos atentado a este aspecto formal
em nossa traduo, decidimos relegar uma discusso prolfica e tcnica a uma pequena nota de rodap, bastando dizer
que o cursus tem rica fortuna na tradio epistologrfica latina, tanto a clssica Ccero, Plnio, o Jovem, Fronto
quanto a crist Lactncio, Mincio Flix, Cipriano de Cartago, Ambrsio de Milo, e certamente Agostinho e
Jernimo. Ademais, a presena ou ausncia do cursus tm tanto valor de ornamento quanto de informao no texto. No
sculo IV, como mostra Fry (2010) p. XL, a presena do cursus atenta aos preceitos do civilismo; sua ausncia, em
contrapartida, com frequncia sinal de que o argumento importante a ponto de prescindir de tais regras. Henderson
(1983) p. 336 indica que o cursus foi utilizado regularmente na epistolografia oficial, em especial a eclesistica, durante
a Idade Mdia e na correspondncia papal da Renascena, at ser por fim abandonada no sculo XVI por Pietro Bembo
e Jacopo Sadoleto, ento secretrios do papa Leo X.
174 Stowers (1986) p. 34-35, the social contexts for such literary letters is a small circle of intimate aristocratic friends
who share advanced rhetorical educations. The purpose is aesthetic entertainment. As Pliny remarks, the first
requirement for this kind of literary activity is leisure [...] The subject matter is somewhat different, and traditional
aristocratic leisure is replaced by the monastic leisure of the contemplative life [nos tempos cristos].
175Diz Rosenmeyer (2001) p. 34 sobre a famosa carta de Teo a seu pai, uma carta em papiro que foi encontrada em
Oxyrhyncus, no Egito: [t]he young Theon shows a startling familiarity with epistolary conventions. He alludes to
epistolary formulas by threatening to undermine them [...] as peeved as he is, the child still knows the value of
epistolary closing convention. A carta de Teo est em Deissmann (1927) p. 201-204.
176Este o caso de partes de Aug. Ep. 28, 40 e 71, e Aug. Ep. 82, uma carta quase que completamente sem adornos.
Entre as cartas de Jernimo, o caso de Hier. Ep. 112, mas esta parece ser escrita ironicamente empregando o prprio
sermo de Agostinho.
177 [...] hilarior quidam vultus litterarum tuarum [...] si autem propter hilaritatem quam esse inter carissimos
disserentes decet, putasti dicendum esse ludamus [...], o aspecto algo brincalho da tua carta [...] no entanto, se foi por
brincadeira (convm que ela exista quando amigos prximos discutem) que julgaste conveniente dizer que nos
exercitamos [...] (cf. Aug. Ep. 82,1-2). Anos antes, Agostinho havia questionado algo semelhante em uma carta ao
gramtico Mximo: seriumne aliquid inter nos agimus, an iocari libet?, afinal, estamos discutindo algo srio, ou
melhor fazer gracejos? (cf. Aug. Ep. 15,1).
178E. g. uma passagem da Ep. 102,2 de Jernimo, na qual o Estridonense exclama utinam mereremur complexus tuos et
collatione mutua vel doceremus aliqua vel disceremus, antes pudssemos te abraar e num encontro mtuo ensinarmos
ou aprendermos algo, palavras que Agostinho retomar ipsis litteris diversas vezes, em Aug. Ep. 73,2;3;7 e 82,3. H
tambm uma grande nfase de ambos os autores para o verbo docere ao caracterizam a atividade do apstolo Paulo ao
longo de Hier. Ep. 112 e Aug. Ep. 82, resposta a esta.
179 A expresso castae fidei auctoritas est em Aug. Ep. 28,2.

)86
180Cf. Hier. Ep. 112,5 e Aug. Ep. 180,4; o prprio apstolo Paulo assim se intitula na primeira carta a Timteo, doutor
dos gentios, pois era ele o encarregado de sua converso (cf. 1 Tim 2:7).
181 Sartorelli (2005) p. 48.
182Cf. Aug. Doctr. Christ. 4,27-28. V. Auksi (1995) p. 160-173, the early patristic period added a topos that remained
the trademark of the plain style well into the seventeenth century: truth needs no ornamentation (citao na p. 163);
Fry (2010) p. XIX, sitt lenjeu thologique engag, plus aucun prcepte ne prvaut, sinon celui de la Verit.
183Em especial no incio e no fim de Aug. Ep. 166-167, h elogios do correspondente, desejos de conversar com ele
pessoalmente, pedidos de que ele esclarea algo que o remetente no consegue, e comentrios sobre o tamanho e a
escrita do texto (cf. Aug. Ep. 166,1;26;28; 167,1;3;14;21).
184 Cf. Hier. Ep. 105,4.
185 Sneca, ao discutir o tom, vox, adequado s cartas, diz: quis enim accurate loquitur, nisi qui vult putide loqui? [...]
etiam si disputarem, nec supploderem pedem nec manum iactarem nec attolerem vocem, sed ista oratoribus reliquissem,
afinal, quem fala com preciso, a no ser quem quer falar afetadamente? [...] Mesmo ao discutir, eu no bateria o p,
nem abanaria as mos, nem levantaria a voz, mas deixaria isso aos oradores (cf. Sen. Ep. 75,1-2).
186Traduzimos sempre como aspecto. Nossa deciso em faz-lo, embora possa causar o espanto de alguns por
estar avessa tradio, que o v traduzido em geral como gnero ou forma, foi tomada com fundamento no Lexicon
de Schrevelius, que d os equivalentes latinos species, praestans forma, facies para (cf. Schrevelius p. 203).
Ademais, entendemos que a origem do termo est em , aoristo do verbo , ver; assim, entendemos, que o
termo diz respeito epistolografia, qual to importante o aspecto visual de uma carta.
187 [...]
, , o estilo epistolar deve ser fraco [...] em sntese, a carta deve ser,
quanto ao estilo [], uma mistura de duas formas [], a graciosa [] e a plana [] (cf. Dem.
223;235). Pseudo-Demtrio de Faleros estava preocupado em lecionar o uso correto das quatro formas estilsticas do
discurso, quanto ao estilo grandioso, elegante, leve e foroso (e um quinto, o gracioso ou elegante) em diversos
gneros de argumentao, genera dicendi; o autor assim analisa a epistolografia inicialmente como sucursal do estilo
fraco, e por fim como uma mistura entre o fraco e o gracioso. Ccero parece ter concluso semelhante em mente quando
fala, em carta a Peto: verum tamen quid tibi ego videor in epistulis? nonne plebeio sermone agere tecum?, todavia,
como eu te pareo em minhas cartas? Eu no uso uma linguagem popular [plebeius sermo] contigo? (cf. Cic. Fam.
9,21,1). O termo ciceroniano parece uma alternativa ao conceito de tenuis exanguisque sermo, discurso fraco e
exangue que o autor adaptadou a partir do , o estilo fraco ou leve (cf. Cic. Or. 76-79 e De or. 1,13,57). V. Auksi
(1995) p. 48-49; Innes (1995) p. 311-340; Reed (1997) p. 183-184; Ueding & Steinbrink (2011) p. 232-234.
188 , ,
, , outrossim, prefervel que haja um certo grau
de liberdade em sua estrutura: ora, ridculo construir perodos longos como se se estivesse escrevendo no uma carta,
mas um discurso forense; isso no s ridculo, mas tambm no obedece as leis da amizade [] nas cartas (cf.
Dem. 229).
189
, , o adorno [] da carta, no entanto, consiste em vislumbres
de amizade e cortesia [ ] e de alguns provrbios: ora, este o nico elemento de filosofia
admissvel, j que [um provrbio] a sabedoria do povo, a sabedoria comum (cf. Dem. 232).
190 ... [...]
, , quebras frequentes em um perodo como ... no
so adequadas s cartas: uma quebra torna a escrita obscura [...] Todo esse estilo imitativo mais adequado a um ator,
no a cartas escritas (cf. Dem. 226).
191 , , , [...]
, [...] , no se deve escrever em
demasia, mesmo onde h muito assunto, e nem em escassez, onde h muito a dizer [...] deve-se evitar a desmedida
[] de ambas as situaes, e assim conquistar o equilibrado [] [...] isso o que penso sobre a brevidade
[] (cf. Greg. Naz. Ep. 51,2-4).
192 , , ,
, sobre a clareza, todos sabem que se deve evitar um estilo prosaico [ ] o quanto possvel, e dar
preferncia a um conversacional [ ] (cf. Greg. Ep. 51,4). Tambm Filstrato de Lemnos:
, , clareza, de fato, apropriada a qualquer tipo de discurso,
principalmente em uma carta (cf. Phil. De epistulis).
)87
193 , , ,
, , ,
, [...]
, , .
, , ns
preservaremos a elegncia se no evitarmos escrever de modo completamente rido, sem beleza, sem adorno, sem
elegncia e sem aparos, num estilo, como se diz, que no permite mximas, provrbios ou aforismos, nem ditos
espirituosos ou charadas, coisas que adoam o estilo; por outro lado, no devemos us-los freneticamente: no us-los
enfadonho, us-los demais enjoativo [...] Figuras de linguagem, ns as aceitamos, mas apenas algumas que no sejam
de mau gosto. Anttesis, comparaes e isocolns eu deixo aos filsofos mas, se precisarmos empreg-las, faamo-no
antes com humor que com seriedade (cf. Greg. Ep. 51,5-6). Tambm Pseudo-Libnio:

, , mencionar fatos histricos e fbulas d elegncia s cartas,
assim como o uso de obras afamadas, provrbios bem colocados, e mximas filosficas, mas estes no devem ser
usados de maneira argumentativa [] (cf. Ps.-Lib. 50).
194 O aticismo de que fala Filstrato de Lemnos (cf. Phil. De epistulis) e, depois dele, Pseudo-Libnio (cf. Ps-Lib.
46-47), distinto do aticismo da poca de Ccero. Este configurava uma corrente da oratria cuja pauta se dava pelo
discurso terso e plano, inspirado em Demstenes (cf. Cic. Brut. 285-289); embora nasa desse aticismo, que j apregoa
a pureza e o preciosismo lingustico, aquele outro um conjunto de maneirismos estilsticos, um sotaque, que
pretende imitar o grego falado no perodo clssico da Grcia, a partir dos dilogos de Plato, entre outros autores da
tradio. O aticismo do qual fala Filstrato aquele estilo difcil, erudito e preciosista do historiador Plutarco (46 -
120) e do satirista Luciano de Samsata (ca. 125 - ca. 181). V. Swain (1996) p. 17-64; Horrocks (1997) p. 71-86.
195 ,
, , o formato [] das cartas deve, em aparncia, ser mais aticizante que uma
conversa ntima [], mas mais ntimo que o aticismo, e tambm composto de acordo com o uso comum
[], mas sem distar de um estilo delicado [ ] (cf. Phil. De epistulis).
196 ,
, .

, , convm quele que almeja compor cartas de maneira hbil que ele no
s utilize o mtodo mais adequado ao assunto [ ], mas tambm empregue beleza de linguagem
para adornar a carta, e a aticize, mas com moderao, sem no entanto cair inadequadamente em um estilo pomposo
[]. Ora, um estilo elevado alm da conta na expresso, uma linguagem prolixa alm da conta a partir da, e
um estilo aticizante alm da conta esto todos fora do estilo apropriado s cartas, como demonstram todos os
antigos (cf. Ps.-Lib. 46-47).
197 , ,
, mas
convm eliminar os perodos de cartas mais longas, pois us-los nelas exagerado demais, a no ser se for necessrio,
no final do que foi escrito, arremater o que foi dito ou concluir o argumento (cf. Phil. De epistulis).
198 , ,
[...]
,
, no entanto, no se deve destruir
a clareza por causa da brevidade, e nem tagarelar sem moderao em vista da clareza, mas mirar a medida certa
[] imitando hbeis arqueiros [...] do mesmo modo, um homem versado na arte do discurso [
] no aquele que tagarela alm do que pede a circunstncia, ou abraa a conciso por no saber o que dizer, de
modo a obscurecer a clareza de sua mensagem, mas somente aquele que mira, com preciso de linguagem [],
a medida certa [] e assim expressa com clareza e beleza aquilo que diz (cf. Ps.-Lib. 49).
199 (cf. Greg. Naz. Ep.
51,7).
200Emprestamos a expresso desleixo cuidado de Ccero, que descreve o discurso de gnero baixo, em latim genus
tenue, como quaedam etiam neglegentia est diligens, um certo desleixo cuidado (cf. Cic. Or. 78).
201 , , ,
, , , , a melhor e mais adequada das cartas
aquela que persuasiva tanto ao homem sem instruo quanto ao homem culto, parecendo, aos primeiros, ter sido
escrita de modo inculto; aos segundos, acima disso; mas que seja discernvel de imediato (cf. Greg. Ep. 51,4).

)88
202 , ,
convm quele que quer escrever cartas que no as componha de maneira rudimentar ou indiferente, mas com muita
preciso e tcnica (cf. Ps.-Lib. 1); , fundamental que [as cartas] sejam
escritas o mais habilmente possvel [ ] (cf. Ps.-Dem. proem.).
203 A traduo de Sidney Calheiros de Lima. Citamos: tria sunt omnino genera dicendi quibus in singulis quidam
floruerunt, peraeque autem, id quod volumus, perpauci in omnibus. nam et grandiloqui, ut ita dicam, fuerunt cum
ampla et sententiarum gravitate et maiestate verborum, vehementes varii copiosi graves, ad permovendos et
convertendos animos instructi et parati quod ipsum alii aspera tristi horrida oratione neque perfecta atque conclusa,
alii levi et structa et terminata et contra tenues acuti, omnia docentes et dilucidiora, non ampliora facientes, subtili
quadam et pressa oratione <et> limata; in eodemque genere alii callidi sed impoliti et consulto rudium similes et
imperitorum, alii in eadem ieiunitate concinniores, idem faceti, florentes etiam et leviter ornati. est autem quidam
interiectus inter hos medius et quasi temperatus nec acumine posteriorum nec fulmine utens superiorum, vicinus
amborum, in neutro excellens, utriusque particeps vel utriusque, si verum quaerimus, potius expers, isque uno tenore, ut
aiunt, in dicendo fluit nihil afferens praeter facultatem et aequalitatem aut addit aliquos ut in corona toros omnemque
orationem ornamentis modicis verborum sententiarumque distinguit, so trs, ao todo, os gneros de eloquncia, nos
quais, tomados separadamente, alguns se sobressaram; no entanto, de modo igual em todos eles (que o que
buscamos), pouqussimos. Pois, por um lado, houve oradores grandiloquentes, por assim dizer, dotados de enorme
gravidade quanto aos pensamentos; quanto s palavras, de enorme solenidade; veementes, variados, copiosos, graves,
armados e prontos para mover as almas e para faz-las mudar de direo nesse gnero, justamente, uns de discurso
spero, pouco vistoso, rude, sem construo peridica nem cadncia, outros, de discurso gil, bem arranjado, bem
acabado por outro lado, h os oradores delgados, agudos, que demonstram tudo e que se preocupam em tornar as
coisas claras, no em amplific-las, de discurso preciso, eu diria, alm de conciso e enxuto. Nesse gnero, precisamente,
alguns, hbeis com o raciocnio, mas pouco esmerados, e deliberadamente semelhantes aos rudes e aos pouco
experientes; outros, nessa mesma magreza, soam melhor, so tambm graciosos, ostentam flores, inclusive, e se servem
de ornatos ligeiros. Entre esses dois, porm, encontra-se um mdio e, por assim dizer, temperado, que no se serve nem
da agudeza do ltimo, nem do mpeto do primeiro, vizinho de ambos, no se sobressai numa coisa nem noutra, toma
parte em ambos ou, se o que buscamos a verdade, antes se afasta de ambos; desse, o discurso flui em movimento
constante, no trazendo consigo nada seno facilidade e uniformidade; pode, como em uma guirlanda, aplicar alguns
ramos e distinguir a unidade do discurso por meio de ornamentos moderados, tanto de palavras como de
pensamentos (cf. Cic. Or. 20-21; tambm Quint. Inst. orat. 4,2). V. tambm Ueding & Steinbrink, p. 233-234.
204 ut enim in vita sic in oratione nihil est difficilius quam quid deceatvidere. appellant hoc Graeci, nos dicamus
sane decorum. de quo praeclare et multa praecipiuntur et res est cognitione dignissima. huius ignoratione non modo in
vita sed saepissime et in poematis et in oratione peccatur, pois, do mesmo modo que na vida, tambm no discurso
nada mais difcil do que perceber o que convm. A isso, os gregos chamam ; quanto a ns, poderamos dizer
perfeitamente decorum. Sobre isso, do-se muitos e excelentes preceitos e coisa que merece de fato ser conhecida. Por
ignor-lo, cometem-se muitos erros, no apenas na vida, mas, muitssimo amide, tanto em poesia quanto no
discurso (cf. Cic. Or. 70), na traduo de Sidney Calheiros de Lima.
205 Reed (1997) p. 185, [t]he standard principle of epistolary style seems to be that there was no strictly endorsed
stylistic theory.
206 nos autem brevitatem in hoc ponimus, non ut minus sed ne plus dicatur quam oportet, ns atribumos a brevidade
ao fato de no dizer menos e nem mais do que o conveniente (cf. Quint. Inst. orat. 4,2,44). Mais adiante: nobis primus
sit virtus perspicuitas, propria verba, rectus ordo, non in longum dilata conclusio, nihil neque desit neque superfluat, a
ns, a primeira virtude deve ser a clareza, o uso apropriado das palavras, a ordem correta, uma concluso no muito
alongada, que nada esteja em falta ou em excesso (cf. Quint. Inst. orat. 8,2,22).
207Cf. Hor. S. 1,106. Tambm Pseudo-Demtrio: , , o
tamanho [de uma carta] deve ser moderado, assim como o estilo (cf. Dem. 228).
208in summa id memento et ad epistolas et ad omnem scriptionem bene loqui, resumindo, lembra de discursar bem
tanto nas cartas quanto em qualquer texto. (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27).
209 , .
, uma
vez que ocasionalmente escrevemos tanto s cidades como a governantes, tais cartas devem ser compostas em um estilo
um pouco mais elaborado; afinal, deve-se atentar pessoa a quem se escreve. Elevar o estilo, porm, no deve levar a
um tratado [] no lugar de uma carta (cf. Dem. 234).
210 Stowers (1986) p. 22-23, letters were classified into types according to typical situations and social contexts of
letter writing. This meant classification according to typical purposes that letter writers hoped to accomplish, e p.
53-54, the theory of epistolary types requires that the writer compose according to generic patterns, which must fit the
circumstances of the authors particular situation in writing.

)89
211 ,
, segundo a teoria que regula os tipos epistolares, cartas podem ser escritas em diversos
aspectos [], mas so compostas naqueles que sempre so mais adequados circunstncia (cf. Ps.-Dem. proem.)
Aqui cabe comparar com uma passagem da Retrica de Aristteles, que define os trs gneros do discurso segundo a
audincia e o objetivo de cada um, a saber: :
. , ,
, [...] , , h,
em quantidade, trs aspectos da retrica, pois tantos so tambm os que ouvem os discursos. Ora, o discurso dividido
em trs partes: aquele que fala, o assunto sobre o qual ele fala, e quele para quem ele fala; a finalidade aponta para esse
(refiro-me quele que ouve) [...] h uma finalidade especfica para cada um deles, tambm trs [finalidades], pois h
trs [aspectos do discurso] (cf. A. R. 1558a-b).
212 Cf. Aug. Ep. 28,1.
213 Cf. Cic. Flac. 37. No nosso entender, esta diviso puramente pragmtica: afinal, escreve-se de uma maneira
quando se envia uma carta a um ou poucos indivduos, e de outra quando se envia a muitos leitores (cf. Cic. Fam.
15,21,4). Quintiliano, no incio da Institutio oratoria, tambm fala de epistulae secretae et familiares, cartas secretas e
de amizade, realando o aspecto ntimo deste tipo de correspondncia (cf. Quint. Inst. orat. 1,1,29).
214 Sykrutis (1931) p. 198; Schneider (1954) p. 569-571; Cugusi (1989) p. 415-417.
215 Trapp (2003) p. 12-16. Ccero menciona colees de cartas de Cato o Velho (234 - 149 a. C.) e de Cornlia (fl. sec.
II a. C.), me de Tibrio e Caio Graco (cf. Cic. Off. 1,37 e Brut. 211). Suetnio usou amplamente as cartas de Ccero e
outros autores como documentos histricos (cf. Suet. Caes. 9;49;56; Aug. 50; Tib. 26; Calig. 9;23; Claud.
3-4;24-25;28;35). Quintiliano, Plnio, o Jovem, e Tcito seguramente leram as cartas do Arpinate; Fronto considerava
o conjunto das cartas do orador seu magnum opus, mais louvvel que seus discursos: epistolis Ciceronis nihil est
perfectius, no h nada mais perfeito que as cartas de Ccero (cf. Fronto II, 158-159 Haines).
216 H possveis menes leitura pblica de cartas privativas em Aug. Ep. 28, onde o Tagastense fala em nome de
toda a esforada comunidade (studiosa societas) da Igreja africana (cf. Aug. Ep. 28,2); o cuidado empreendido em
Aug. Ep. 82 tambm indcio a favor, e nesta carta Agostinho fala tanto de carissimos nostros, nossos amigos mais
queridos (cf. Aug. Ep. 82,32) a afirmao pode muito bem ser tpica, pois se d num contexto de reflexo geral
sobre a amizade quanto conclui: rescribe quod visum fuerit ad nos vel alios instruendos, responda o que te parecer
bom para instruir a ns ou aos demais (cf. Aug. Ep. 82,36). Igualmente, Jernimo, em Hier. Ep. 112, diz: haec non
debent molesta esse lectori, essas passagens no devem entediar o leitor (cf. Hier. Ep. 112,8) e a meno ao leitor
prudente (cf. Hier. Ep. 112,20); e em Hier. Ep. 134,1: ceterum aemuli et maxime haeretici, si diversas inter nos
sententias viderint [...], de resto, os dissimulados, e sobretudo os herticos, se encontrarem opinies divergentes entre
ns [...] (a mesma sentena em Hier. Ep. 143,1). O fato de Agostinho mencionar a discusso do officiosum mendacium
em Aug. Ep. 180,2 a Oceano indcio de que as suas cartas a Jernimo j circulavam para um pblico mais amplo, sem
falar em Aug. Ep. 166-167 que foram redigidas com vistas de publicao. Outros testemunhos de Jernimo em Hier. Ep.
49,3; 77,5; 127,5;14.
217videte, vide (cf. Aug. Ep. 167,3); propter alios, qui forte haec legerint, em vista daqueles que podem vir a ler esta
carta (cf. Aug. Ep. 167,10).
218 De Bruyne (1932) p. 240-244; Lietzmann (1958) p. 293-296; Divjak (1983) p. 20-23; Hennings (1994) p. 69-76;
Frst (1999) p. 168-173 e id. (2002) p. 87-88, es ist deshalb davon auszugehen, dass diese Korrespondenz nicht nur in
den Archiven der beiden Briefpartner vorhanden war, sondern dass einzelne Briefe oder Briefpartner gruppen auch
schon zur Zeit ihres Austauschs zirkulierten; Cain (2009) p. 13-19. certo que algumas cartas dos autores circulavam
publicamente, como indicam o prprio Jernimo (cf. Hier. Vir. ill. 54; 135) e Possdio no indiculum da vita Augustini
(cf. Poss. vita Aug. X 37 (184 Wilmart)).
219dic, oro te, celandas schedulas scripseras an prodendas? si ut celares, cur scripsisti? si ut proderes, cur celebas?,
diz, eu te pergunto, tu escreveras as pginas para serem escondidas ou publicadas? Se para esconderes, escreveste por
qu? Se para publicares, escondias por qu? (cf. Hier. Ep. 1,1;3,34); tambm Agostinho: neque enim hoc scribere ad
quemquam deberem, quod semper latere voluissem, ora, eu no deveria ter escrito a qualquer pessoa algo que eu
quisesse manter sempre escondido (cf. Aug. Ep. 202A,6). V. Arns (2007) p. 83-84.
220Schneider (1954) p. 570-582; Stowers (1986) p. 19, the distinction between public and private letters are not very
helpful; Frst (1999) p. 170, die Verwendung der Briefform als ffentliches Kommunikationsmittel hat zur Folge, da
die in den augustinischen und hieronymianischen Briefsammlung erhaltenen Schriften nicht als Privatbriefe im strikten
Sinn angesehen werden knnen.
221 Kelly (1975) p. 212-217.

)90
222 quicquid mihi scripseris, ad me primum facias pervenire, atende a este meu pedido: tudo que vieres a me escrever,
cuida para que chegue primeiro a mim (cf. Hier. Ep. 105,5); [...] si forsitan litteras scripseris, ante eas Italia ac Roma
suscipient, quam ad me, cui mittendae sunt, deferantur, [...] se por um acaso vieres a me escrever alguma carta, Roma
e Itlia iro tom-la antes que ela seja entregue a mim, a quem foi destinada (cf. Hier. Ep. 112,18).
223Frst (1999) p. 170, dieser Briefwechsel hat vor einem ffentlichen Publikum stattgefunden; id. ibid. p. 171 nota
que improvvel que a correspondncia tenha sido publicada pelos prprios autores ainda em vida. Fry (2010) p.
XXXIV, lorsquune clbrit ecclsiastique rdige quelque trait de cette sorte [sob a forma de uma carta], elle sattend
ce quil soit lu [...] ainsi, parfaitement conscient de ce qui allait se passer, lauteur de ce genre de texte crivait-il au
moins autant pour son interlocuteur que pour un public plus large.
224Aps delimitar o gnero puramente informativo, em razo do qual a carta foi inventada, Ccero diz: reliqua sunt
epistularum genera duo, quae me magno opere delectant, unum familiare et iocosum, alterum severum et grave. Vtro
me minus deceat uti, non intelligo. locerne tecum per litteras? civem mehercule non puto esse, qui temporibus his ridere
possit. an gravius aliquid scribam? quis est, quod possit graviter a Cicerone scribi ad Curionem, nisi de republica?,
restam dois gneros de cartas, que me agradam grandemente, um amigvel e brincalho, e o outro austero e srio. No
consigo concluir qual deles menos conveniente para eu usar. Brincar contigo nas cartas? Arre, no acredito que h um
cidado sequer que possa rir nos dias de hoje. Talvez escrever algo mais srio? Que h de mais srio que possa ser
escrito de Ccero a Curio, a no ser sobre poltica? (cf. Cic. Fam. 2,4,1). Noutras cartas, o orador fala de uma tradio
especfica de cartas para quando as coisas esto bem (seriam as epistulae genere familiare et iocoso?), mas que
impossibilitada em tempos de crise, e que reliquebatur triste quoddam et miserum, et his temporibus consentaneum
genus litterarum, sobrou um tipo de cartas algo triste e melanclico, adequado nossa poca (cf. Cic. Fam. 4,13,1);
em carta a tico, retoma a questo do tempo que probe um assunto mais leve: ipse egeo argumento epistularum [...]
quae enim soluto animo familiariter scribi solent, ea temporibus his excluduntur, quae autem sunt horum temporum, ea
iam contrivimus, eu mesmo careo de argumento para as cartas [...] afinal, as coisas que costumam ser escritas
amigavelmente quando estamos bem dispostos, estes tempos as excluem; porm, as que pertencem a estes tempos, essas
ns j esgotamos (cf. Cic. Att. 9,4,1; Cic. Fam.12,30,1). V. Thraede (1970) p. 31;34.
225sive illud apertum et planum sit unde colloquimur sive arduum atque difficile [...], seja quando dialogamos sobre o
que aberto e plano, ou sobre o que rduo e difcil [...] (cf. Aug. Ep. 82,2). Essa aproximao ganha favor se
observarmos que Agostinho diz um pouco antes, na mesma carta, que quer disputar seriamente no campo de batalha
das Escrituras, ao passo que Jernimo o havia chamado para ludere, se exercitar ou brincar, l. Ele no quer que
sua correspondncia se encerre nas caractersticas genricas da epistolografia; o que observa Frst (1999) p. 167.
226 epistulae negotiales sunt argumento negotioso et gravi. in hoc genere et sententiarum pondera et verborum lumina
et figurarum insignia conpendii opera requiruntur atque omnia denique oratoria praecepta, una modo exceptione, ut
aliquid de summis copiis detrahamus et orationem proprius sermo explicet, as cartas de ofcio caracterizam-se pelo
assunto oficioso e srio; neste gnero, imperativo atentar, com conciso, ao peso das frases, clareza da dico, e
excelncia das figuras de linguagem, em suma, a todos os preceitos da oratria, com uma breve exceo, que
descontemos algo de seus recursos mais elevados e que o discurso se desenrole mais prximo da conversa (cf. Iul. Vit.
Ars rhetorica 27).
227si quid etiam eruditius scribas, sic disputa ut ne modum epistulae corrumpas, se tambm escreveres algo mais
erudito, discuta-o de modo a no exceder o limite de uma carta (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27).
228 in familiaribus litteris primo brevitas observanda: ipsarum quoque sententiarum ne diu circumferatur, quod Cato
ait, ambitio, sed ita recidantur, ut numquam verbi aliquid deesse videatur [...] lucem epistolis praefulgere oportet, nisi
cum consulto clandestinae litterae fiant, quae tamen ita ceteris occultae esse debent, ut his, ad quos mittuntur, clarae
perspicuae sint. solent etiam notas inter se secretiores pacisci, quod et Caesar et Augustus et Cicero et alii plerique
fecerunt. ceterum cum abscondito nihil opus est, cavenda obscuritas magis quam in oratione aut in sermocinando:
potes enim parum plane loquentem rogare, ut id planius dicat, quod in absentium epistolis non datur, a primeira coisa
a se observar nas cartas de amizade a brevidade: as frases individuais no devem, tambm, e como diz Cato, serem
muito carregadas de ambio, mas devem ser antes reduzidas na medida em que nunca parea faltar nelas qualquer
coisa [...] convm que a luz brilhe fortemente nas cartas, a no ser que elas sejam secretas de propsito, as quais, porm,
devem ser ocultas aos outros, a fim de serem claras e evidentes queles a quem so enviadas. Os homens esto
acostumados a estabelecer cdigos que permaneam secretos entre si, medida que Csar, Augusto, Ccero e muitos
outros adotaram. De resto, quando no h necessidade de esconder coisa alguma, a obscuridade deve ser evitada nas
cartas mais que no discurso ou na conversa comum: ora, tu podes pedir que algum, que est falando baixo, fale mais
alto, algo que no se d nas cartas de pessoas que esto ausentes (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27).
229Trata-se de Hier. Ep. 142, que precisa ser interpretada para a compreendermos: ela diz respeito condenao e fuga
de Pelgio. H diversas referncias hermticas em outras cartas de Jernimo, entre as quais o Calprnio Lanrio
mencionado no lugar de Rufino em Hier. Ep. 102,3.

)91
230 neque dum amputatae brevitati studes, dimidiatae sententiae sit intellegentia requirenda, nec dilatione verborum et
anxio struendi labore lux obruenda [...] sed haec, ut dixi, in familiaribus litteris; nam illarum aliarum severitas maior
est, no se deve, ao mirar a conciso e a brevidade [amputata brevitas], deixar o sentido de uma frase pela metade,
nem deixar a luz obscurecer devido verbosidade ou ansiedade em construir o texto [...] mas isso, como falei, nas
cartas de amizade; a austeridade daquelas outras maior (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27).
231verum tamen quid tibi ego videor in epistulis? nonne plebeio sermone agere tecum? quid enim simile habet epistula
aut iudicio aut concioni? quin ipsa iudicia non solemus omnia tractare uno modo: privatas causas, et eas tenues,
agimus subtilius, capitis aut famae scilicet ornatius; epistulas vero quotidianis verbis texere solemus, todavia, como
eu te pareo em minhas cartas? Eu no uso uma linguagem popular [plebeius sermo] contigo? Que afinal uma carta tem
de parecido com um discurso judicial [iudicium] ou um deliberativo [contio]? Ora, mesmo nos discursos jurdicos no
costumamos tratar tudo de um nico modo: os processos privados, em especial os mais frgeis, neles agimos com
delicadeza; j nos de pessoas importantes e famosas, com mais preparo; mas costumamos tecer as cartas com palavras
do dia-a-dia (cf. Cic. Fam. 9,21,1).
232 Estes so muito comuns desde a poca de Ccero: o Arpinate cita Homero sete vezes em uma carta a Csar (cf. Cic.
Fam. 13,15). Plnio, o Jovem tambm retoma a elegncia de citar versos com moderao em uma carta a Fusco: fas est
et carmine remitti, non dico continuo et longo id enim perfici nisi in otio non potest , sed hoc arguto et brevi, quod
apte quantas libet occupationes curasque distinguit, cumpre citar tambm algum poema, no digo um contnuo e
longo ora, no se pode cit-lo inteiro a no ser no cio mas um astuto e breve, que acentue de modo conveniente
os negcios e quinhes (cf. Plin. Ep. 7,9,8).
233 ideo nec historia occultior addenda nec proverbium ignotius aut verbum cariosius aut figura putidior [...] graece
aliquid addere litteris suave est, si id neque intempestive neque crebro facias: et proverbio uti non ignoto
percommodum est, et versiculo aut parte versus. lepidum est nonnumquam quasi praesentem alloqui, uti heus tu et
quid ais et video te deridere: quod genus apud M. Tullium multa sunt, assim, no se deve incluir fatos obscuros de
histria, provrbios desconhecidos nem preciosismos ou figuras de linguagem pedantes [...] agradvel colocar algo em
grego, desde que no o faas na hora errada ou com frequncia; empregar um provrbio conhecido, tambm, muito
conveniente, assim como um versinho, ou parte de um verso. s vezes, alegre dirigir-se a algum como se estivesse
presente, usando expresses como ei, tu a! e que dizes? e vejo que ris: h muitas coisas desse tipo em Ccero (cf.
Iul. Vit. Ars rhetorica 27)
234Fry (2010) p. XXXV-XXXIX e LI, damiti il ne saurait tre question au-del de lautomatisme dune civilit
pistolaire que leffusivit chrtienne veut hyperbolique.
235 epistola, si superiori scribas, ne iocularis sit; si pari, ne inhumana; si inferiori, ne superba; neque docto incuriose,
neque indocto indiligenter, nec coniunctissimo translatitie, nec minus familiari non amice, uma carta, se a escreves a
um superior, no deve ser jocosa; se a um igual, no deve ser fria; se a um homem erudito, no deve ser descuidada, e
nem indiferente a uma pessoa sem instruo, nem acochambrada a um amigo muito prximo, ou menos amigvel a um
estranho (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27). V. Koskenniemi (1956) p. 35-37; Stowers (1986) p. 58-60, high officials often
adopt the manner of friends in their letters even when writing to inferiors or people they do not know personally; Trapp
(2003) p. 40-42. Por fim, outro testemunho: embora Pseudo-Demtrio descreva a carta de amizade, ,
como aquela que , d a impresso de ser escrita de um amigo para outro, ele
adiciona logo em seguida que .
, , , , mas
no so, de maneira alguma, apenas amigos que as escrevem. Ora, muitas vezes espera-se que homens ocupando cargos
importantes escrevam em tom amistoso [] a seus inferiores, e tambm a outros que so seus iguais, como
generais, comandantes e governantes (cf. Ps.-Dem. 1). Salvo uma situao especfica, uma carta sempre apresenta um
tom amistoso, que, neste gnero, caracteriza-se como neutro.
236 [...] hilarior quidam vultus litterarum tuarum [...] si autem propter hilaritatem quam esse inter carissimos
disserentes decet [...] [...] o aspecto algo brincalho da tua carta [...] se foi por brincadeira (convm que ela exista
quando amigos prximos discutem) [...] (cf. Aug. Ep. 82,1-2).
237 sic eum amico, quasi cum altero se, est loquendum (cf. Hier. Ep. 105,2).
238 iurgari numquam oportet, sed epistulis minime (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27).

)92
239 Aqui,Jernimo advoga-se simplicidade com mais frequncia que Agostinho: ego simpliciter fateor dignitatione tuae,
eu simplesmente confesso tua dignidade (cf. Hier. Ep. 102,1); ego autem, ut simpliciter fatear dignationi tuae, eu
simplesmente devo confessar tua dignidade [...] (cf. Hier. Ep. 105,1); tambm parvitas mea, minha pequenez e o
tuguriunculum, casebrezinho em Hier. Ep. 112,1;5; a simplicitas a condio prpria do monge, como discutiremos
nos contextos da carta. J Agostinho porta-se humilde: id quod tibi per humilitatem meam fraterna caritas indicit, algo
que a caridade, por intermdio da minha humildade, proclama fraternamente em teu favor (cf. Aug. Ep. 40,9); tambm
a humilitas dos apstolos em Aug. Ep. 82,22; 180,4. Mas os termos prprios so bastante raros na correspondncia
mtua dos autores, estando mais presente em seus sermes, comentrios e obras de exegese (e.g. Hier. In Gal. praef.).
V. Antin (1961) para a ideia de simplicitas em Jernimo.
240Marrou (1948) p. 129 assevera: le christianisme est une rligion savante et ne saurait exister dans un contexte de
barbarie. Basta lembrar aqui do sonho em que Jernimo censurado por Deus, por ser um ciceronianus, non
christianus, um ciceroniano, no cristo (cf. Hier. Ep. 22,30). Fry (2010) p. XXX afirma que o latim falado
corretamente , desde os tempos de Ccero, une marque sociale dont le bon maniement tmoignerait de lappartenance
une elite intelectuelle. Brown (1989) p. 110 certeiro ao julgar Jernimo: many of the spokesmen of monastic piety
men like Sulpicius Severus and the brilliant Jerome tended to look down on the average man. They betray, in their
denunciations of the world, of the corruption of the clergy, and of the life of great cities, a Latin aristocrats enduring
contempt for the petite bourgeoisie, and an ancient longing for the seclusion of a great estate. V. ainda Cameron
(1993a) p. 136-138 e id. (1993) p. 151-169.
241 Auksi (1995) p. 21-24 e 67-109; Sartorelli (2005) p. 48.
242 Tratam-se de Aug. Ep. 28,3-4; 40,3-6; 71,3-5 e toda a 82, esta escrita s vezes de um tractatus; v. Mohrmann (1932)
p. 8-68. Jernimo guarda o sermo humilis para suas cartas-tratado, seus comentrios e livros expositivos como o De
viris illustribus, preferindo um estilo mais elevado em suas cartas: mesmo em Hier. Ep. 112, sua contra-causa a
Agostinho, o esmero lingustico nalgumas partes muito distinto da argumentao mais pedestre do bispo de Hipona, e
o sermo humilis l se coloca antes de maneira irnica que argumentativa; Jernimo brincando com o estilo de seu
oponente e com a elocuo prpria da epistolografia.
243Somos gratos s notas de Fry (2010) por chamarem a nossa ateno para essas particularidades do estilo epistolar
agostiniano, que por vezes o aproximam do tractatus. Tentamos preservar tais elementos estilsticos em nossa traduo,
mas raramente puxamos notas para indic-los, a fim de no sobrepesar ainda mais a anlise das cartas.
244 Fry (2010) p. 42, n. 41 sentenciosa: on aurat remarqu quAugustin [...] ne se soucie pas de rpter ce quil vient
daffirmer quelques lignes plus haut. Lorsquil sagit de rduire une difficult de lcriture, redondances et lourdeurs
nont aucune importance, seule la clart de la dmonstration importe [...] le style nest cependant pas rvoqu, puisque
la prose en est rythmique, ce qui reste la marque de la plus haute lvation dans lordre de lart prosaque. Ainda assim,
a pesquisadora s vezes nos parece superinterpretar o texto, como quando enxerga uma divisio prpria da oratria em
Aug. Ep. 82,7; v. Fry (2010) p. 258, n. 46.
245neque mihi imperitorum plebeculam concites, qui te venerantur ut episcopum, et in ecclesia declamantem, no me
incites, ainda, o povinho de ignorantes que te veneram como bispo e te elevam s honras do sacerdcio por causa das
tuas declamaes na igreja (cf. Hier. Ep. 112,18).
246 Cf. Aug. Ep. 40,5; 82,2.
247 Cf. Aug. Ep. 82,33.
248 Aqui, Labourt (1963) vol. I, p. LII-LVI. Bassetto (2001) p. 174-175 indica que os vocbulos latinos carnalis,
spiritualis, regeneratio e restauratio so adaptaes dos termos gregos , , e
, todos de fortuna estoica, tambm amplamente usados pelos neoplatnicos. V. tambm Frst (2002) p.
86 para alguns neologismos de Agostinho, a maioria dos quais aparece nos tratados filosficos.
249 Cf. Hier. Ep. 112,9-10 e Aug. Ep. 82,30.
250tuo tibi sermone respondeo, eu respondo com tua prpria linguagem (cf. Hier. Ep. 112,20). Discutimos essa
questo com mais rigor no tpico seguinte, nas funes da carta.
251Cf. Gal 11:6. Stowers (1986) p. 46, Paul's style would not have been considered acceptable by these Christian
authors if he had written in their day.

)93
252Labourt (1963) vol. I, p. LV sobre o estilo de Jernimo em suas cartas: quant au style lui-mme, il varie selon la
nature des lettres et leur object. Les exposs exgtiques sont, bien entendu, dune simplicit toute didactique; le
language en est ais, coulant, parfois mme un peu lche. Mais ailleurs voire en de courts billets il devient chti,
pour ne pas dire prcieux. Jrme se rpang en rminiscences du divin Virgile ou du noble Tullius. Il ne nglige aucune
des ressources quoffrent qui a appris sen servir les figures de mots et de pense [...] le rythme de son art lemporte
au-del des limites de la modration que semblerait comporter un sermo vraiment pedestris, au del mme des limites
du vraisemblable et parfois du vridique.
253 Overbeck (1879) p. 236 foi o primeiro a propor esta interpretao; v. tambm Frst (1999) p. 139. O estudo mais
slido sobre a linguagem de Jernimo ainda Glzer (1884); mas v. tambm Brochet (1905); Courcelle (1943) p.
37-115; Antin (1947); Hagendahl (1958); Conring (2001).
254 Estudos da linguagem de Agostinho, Mohrmann (1932) e id. (1958); Wankenne (1984). Marrou (1955) p. 20 d um
bom juzo do estilo de Agostinho: si ce grand lettr [Augustin] apparut ses contemporains comme aussi un grand
savant, il faut entendre que cet loge sadresse une rudition de caractre livresque: rarets grammaticales,
tymologies plus ou moins ingnieuses, anecdotes mythologiques ou historiques, Faits et Dits mmorables,
propres tre enchsses dans le discours pour leur pittoresque ou leur moralit, bizarreries de toute sorte [...]. Mas
devemos confrontar com ele a viso de Baxter (1930) p. XXXIX-XL: critics and biographers have emphasized his
[Augustines] early training in rhetoric and his adoption of public speaking as a career, ye their insistence upon the
rhetorical nature of his prose is over-done. He does like, at times, to seize hold of a word or phrase in an opponents
letter, and to play upon the word or the idea for the duration of his reply; he has a fondness for jingle and assonance,
and many of his most quoted phrases owe their popularity as much to their balance, point, and rhyme, as to their
meaning. But even granting all this, we fall short of accuracy in describing his language as rhetorical and in crediting
his early and pre-Christian studies with a permanent and unmistakable moulding of his style. In reality, if he be
compared with his contemporaries, none has emerged so far from enslavement to rhetoric; no one of them shows less
solicitude than he for the frills and flourishes of mere ornament. Of a sober and introspective nature, he is too much in
earnest about the truth to be anything but direct, weighty, and unadorned. Entendemos que a posio direta, sria e
sem adornos do estilo de Agostinho j retrica, assim como sua natureza sbria e introspectiva um construto,
uma identidade. O juzo de Baxter est correto, se entendermos retrico como o termo utilizado hoje, mas pisa em
falso de acordo com sua concepo antiga, de construo do discurso. No mais, a viso de Baxter a oposta daquela do
prprio Jernimo, a qual parece-nos mais correta: Agostinho sim retrico na medida em que discursa como um
magister. O Estridonense pe nu o didatismo, vcio de escola, que domina o discurso de seu correspondente.
255Fry (2010) p. XXV-XXVI diz: Augustin raisonne comme un orateur judiciaire. Il a le culte de la preuve [...] et ne
voit defficacit que dans un raisonnement racl de ses affects.
256 Diz Sartorelli (2005) p. 48, to indissolvel a relao entre o que se diz e o que se faz que Erasmo trata de faltas
morais num tratado sobre a lngua latina. O mau uso da palavra, ou seja, a tagarelice (garrulitas, loquacitas, insatiabilis
libido ou immodica dicendi copia) um problema moral, bem como a destinata malitia, a mentira; v. tambm id. ibid.
p. 71-72.
257ego simpliciter fateor dignationi tuae, licet stilus et tua mihi viderentur, eu simplesmente confesso
tua dignidade que, ainda que o estilo e os parecessem ser teus [...] (cf. Hier. Ep. 102,1). Jernimo critica
a prolixidade de Agostinho noutra carta: totius sermonis tui, quem disputatione longissima protraxisti, hic sensus est,
de todo esse discurso teu, que tu esticaste numa discusso sem fim, eis o sentido (cf. Hier. Ep. 112,12); novamente:
frequenter enim in longum sermo protractus caret intellegentia; et dum non sintitur, ab imperitis minus reprehenditur,
um discurso arrastado longamente no raro carece de clareza, e quo mais confuso menos ele repreendido pelos
ignorantes (cf. Hier. Ep. 112,15); ainda: huiuscemodi enim in epistola tua texis fabulam, dessa estirpe a novela que
fazes na tua carta (cf. Hier. Ep. 112,21).
258quaedam ad me in epistula tua legerem tuae indignationis indicia [...] cum te indignatum sensero, nihil aliud quam
veniam deprecabor [...] verum tamen illum maluerim aliquo modo mitiorem, quam te isto modo armatiorem, alguns
indcios de tua indignao na tua carta que mandaste a mim [...] quando eu perceber tua indignao, no suplicarei nada
alm do perdo [...] no entanto, eu preferiria aquele Jernimo de algum modo mais manso a te ver, deste modo, todo
armado (cf. Aug. Ep. 73,9-10).
259Fry (2010) p. XXXVIII, citando o sonho do ciceronianus (cf. Hier. Ep. 22,30): il faut saisir dans cette antinomie
non pas la condamnation de la culture classique, mais la critique dune certaine forme daffectation esthtique qui
dplace le point focal de la parole du sens vers la forme, de la vrit vers le paratre [...] cest donc bien un excs
opacifiant de proccupation stylistique qui est cause de trouble, et non pas lusage de choses paennes.
260Ao afirmar que quali eloquio explicata sint, non nimis curo, eu no me preocupo muito com o estilo pelo qual as
questes foram elucidadas (cf. Aug. Ep. 167,21), Agostinho coloca a nfase na res, deixando os verba de lado. Estaria
ele criticando a preocupao que Jernimo tem com seu estilo? Acreditamos que sim.

)94
261 Cf. Hier. Ep. 105,2; 126,2 e Aug. Ep. 73,4 (tambm um dito de Cato, o Velho); 82,22;32; 166,14; 167,4; 180,3.
262 Cf. Hier. Ep. 102,3 e 134,1 e Aug. Ep. 166,14; 167,7-8.
263 Cf. Hier. Ep. 105,2-3; 126,2 e Aug. Ep. 180,3.
264 Cf. Hier. Ep. 112,2; 143,2 e Aug. Ep. 40,3; 82,31.
265 Cf. Hier. Ep. 102,2.
266 Cf. Aug. Ep. 40,7; 82,33 e Hier. Ep. 102,1; 105,2; 112,18.
267 Cf. Aug. Ep. 166,3.
268Cf. os indifferentia ou em Hier. Ep. 112,16 e Aug. Ep. 82,14; a discusso da unidade das virtudes e vcios
segundo o estoicismo, em Aug. Ep. 167.
269: Hier. Ep. 126,1. e : Aug. Ep. 167,11. Tambm em Hier. Ep. 112,22, quando se
discutem as tradues das Escrituras.
270profuturum com o mensageiro Profuturo em Aug. Ep. 28,1; uma trplice variao de concordia em Aug. Ep. 73,8;
luditur/illuditur em Aug. Ep. 82,2; pius deductor/impius violator em Aug. Ep. 82,16; posterus/posterior e minor/maior
em Aug. Ep. 82,22; indigner/indignum/indignior em Aug. Ep. 166,28. De Jernimo, uma trplice variao de error em
Hier. Ep. 112,6. V. Mohrmann (1958) p. 43-66 para os jogos de linguagem no estilo de Agostinho.
271 Cf. Hier. Ep. 102,2.
272 Cf. Hier. Ep. 105,2.
273 Cf. Hier. Ep. 105,2 e Aug. Ep. 82,2.
274 Veja-se por exemplo Aug. Ep. 73,6.
275simulque (ut cum venia et honore tuo dixerim) ne solus mihi de poetis aliquid proposuisse videaris, memento Daretis
et Entelli, e, para dizer com tua licena e sem atentar contra tua honra (e para que no pareas ser o nico a me apontar
exemplos dos poetas), lembra-te de Dares e Entelo (cf. Hier. Ep. 102,2).
276 Cf. Hier. Ep. 102,2, conforme indica White (2002) p. 141. A passagem de Mateus Mt 7:3.
277 Cf. Aug. Ep. 82,22, a partir de Cic. Off. 1,23.
278 Cf. Aug. Ep. 167,7-8 a partir de Cic. Catil. 3,16 e Sall. Catil. 5,3.
279 Cf. Aug. Ep. 180,3, a partir de Cic. De orat. 3,38 e Verg. Geor. 1,75.
280 Cf. Hier. Ep. 105,3 a partir de 2 Sam 16:32-40 e 1 Reg 2:7.
281 Cf. Hier. Ep. 126,2 a partir de Gen 16:12.
282 Apenas em Hier. ep. 112,2.
283Veja-se por exemplo Hier. Ep. 112,20, no qual Jernimo elenca diversos escritores eclesisticos; Aug. Ep. 180,3;5,
carta em que Agostinho menciona Hilrio de Poitiers e Cipriano de Cartago. H muitos outros exemplos e os autores
aludem a obras um do outro em suas cartas, ponto que exploraremos no histrico da correspondncia.
284 E.g. opinatus fuero, eu no teria tido imaginado (cf. Aug. Ep. 73,2); fuerant ministrata, tinham sido
ministradas (cf. Aug. Ep. 82,9); adiuta non fuerit, no tiver sido resgatada (cf. Aug. Ep. 82,20); possivelmente um
lucrifacias no lugar de lucrifaciat (cf. Aug. Ep. 82,29); noverat quod, sabia que, em vez de noverat com infinito (cf.
Aug. Ep. 166,10). Jernimo esquece at de expressar um verbo em Hier. Ep. 112,6.
285 Veja-se Aug. Ep. 19*, por exemplo, enviada no calor da polmica pelagiana.
286Frst (2002) p. 80, bei den Briefen beider Korrespondenten handelt es sich um stilistische und literarische
Kunstwerke auf hchstem Niveau.

)95
287A veritas termo sempre presente na correspondncia de Agostinho a Jernimo, em especial quando discutem as
tradues da Bblia para o latim, algo que chamam de veritati latinae interpretare, traduzir para a verdade latina. H
dezenas de menes ao conceito de verdade e correlatos nas cartas de Agostinho a Jernimo, das quais citamos Aug.
Ep. 28,3-5; 40,3-5;7-9; 67,2; 71,6; 73,1-6;8-9, em muitas das quais o termo se repete assiduamente; seria laborioso e
enfadonho enumerar todas as ocorrncias. Na correspondncia de Jernimo, apenas Hier. Ep. 112 cita expressamente a
verdade repetidas vezes: tu veritatis tuae saltem unum adstipulatorem proferre debebis, tu devers apresentar ao
menos um intercessor para tua verdade (cf. Hier. Ep. 112,6). V. Dorsch (1911); Schade (1911); Frst (1994b);
Prinzinalli (1997); Pinto (2013) para a importncia da veritas e da auctoritas na obra de Jernimo. Para a importncia
desse conceito na obra de Agostinho, v. Jouassard (1956); Tbet Ballady (1988b).
288Cf. Aug. Ep. 73,1 a Jernimo, si mihi certa ratione volueris et potueris demonstrare illud ex epistula apostoli [...] te
verius intellexisse quam me, se quiseres e puderes expor, por meio de um argumento definitivo, que tu
compreendeste de modo mais verdadeiro que eu o que est na carta do apstolo [...]; v. a interpretao que d Brown
(2013) p. 272 ao termo certa ratio.
289 Baxter (1930) p. XXXVIII-XXXIX, the title bestowed by a writer upon his correspondent depends upon the
circumstances of their respective relations, the purpose of the letter, and the degree of veneration and respect which the
writer thought proper to assume. Epistolary language of the period is exaggeratedly deferential, and the employment of
the infinite variaties of honorific terms of address is only symptomatic of the rhetorical and pompous style in vogue
among pagans and Christians alike. Para esse tema, Zilliacus (1949); Bastiansen (1964); Domerc (1980) vol. I, p.
122-136 e vol. II, p. 15-38; Frst (2002) p. 84-86; Fry (2010) p. XXXVI-XXXVII.
290Trs desses apelativos encontram correlatos nas trs virtudes do orador elencadas por Aristteles (cf. A. R. 1378a). A
prudentia a , em cuja falta surge a incorreo; a benevolentia a , que implica na condescendncia e
na falta de sinceridade do autor; j a dilectio, que traduz o grego (tambm caritas), sendo a nica das virtudes
crists, correlata da , a excelncia.
291 Cf. Hier. Ep. 102,2.
292 Nesse sentido, os apelativos morais utilizados pelos cristos tm funes semelhantes quelas dos substantivos
abstratos em caixa alta usados pelos autores do sculo XVIII na Inglaterra, como Samuel Johnson. Confronte-se, por
exemplo, essa passagem que acabamos de citar no texto, um excerto de Hier. Ep. 102,2, com um trecho do Dr. Johnson
no vigsimo-terceiro nmero do peridico The rambler, direcionado aos crticos desta publicao: [a man] invokes all
the powers of criticism, and store his memory with Taste and Grace, Purity and Delicacy, Manners and Unities, sounds
which, having been once uttered by those that understood them, have been since re-echoed without meaning, and kept
up the disturbance of the world, by a constant repercussion from one coxcomb to another (apud Greene (2008) p. 184).
De fato, Fry (2010) capitaliza todas as ocorrncias, qualificando-as de metonmias caracterizantes.
293 Tua caritas: Aug. Ep. 28,1; 67,2; 73,1;9; 82,1;3; 166,1. Tua germanitas: Aug. Ep. 28,1; 82,1; 19*,4. Tua
intelligentia: Aug. Ep. 28,5. Tua benignitas: Aug. Ep. 40,9; 82,17. Tua dilectio: Aug. Ep. 67,1; 167,21; 19*,1. Tua
voluntas: Aug. Ep. 67,1. Tua benevolentia: Aug. Ep. 67,2. Tua sanctitas: Aug. Ep. 73,5; 82,32; 19*,1;3. Tua indignatio:
Aug. Ep. 73,9. Tua prudentia: Aug. Ep. 82,6; 166,26. Tua sinceritas: Aug. Ep. 82,14; 19*,4. Tua eruditio: Aug. Ep.
167,21. A nfase na caritas e na indignatio em Aug. Ep. 73 e 82 claramente em tom de censura; os apelativos
sanctitas e sinceritas em Aug. Ep. 19* do um tom algo oficioso a esta carta; a prudentia sobretudo mobilizada
quando se trata de um problema filosfico.
294 Tua prudentia: Hier. Ep. 102,2; 112,3;20; 141. Tua eruditio: Hier. Ep. 112,4. Tua reverentia: Hier. Ep. 143,1. E
sobretudo tua dignatio: Hier. Ep. 102,1; 103,1; 105,2; 112,1; 134,1; 143,1; dela diz Zilliacus (1949) p. 47, einer der
allerhufigsten geistlichen Hflichkeitstitel do sculo IV. Jernimo nunca chama Agostinho de tua caritas. Frst
(1999) p. 121-122 chama a ateno para o fato de Jernimo usar esse apelativo a todo bispo, inclusive Aurlio (cf. Aug.
Ep. 27*,1).
295 tua corona usada unicamente em Hier. Ep. 142. V. Zilliacus (1949) p. 105-108; Bastiansen (1964) p. 41.
296Trapp (2003) p. 40-42, a letter with hostile contents risks appearing an abuse of the medium. It is therefore not
surprising that the letter is often conceptualized, and spoken of by practising letter-writers, as an essentially friendly
form. Este aspecto parece ter se fixado ao longo da tradio, pois [letters] are in a familiar style because they take the
place of easy talk between friends, em Kermode & Kermode (1995) p. XXI.

)96
297 Stirewalt (1993) p. 1, letters are as varied in function as are the possibilities of social intercourse; Rosenmeyer
(2001) p. 24-35, esp. p. 27-28, no writing is an unloaded tool whose purpose and function are merely to inform: it is
always referential, a reflection of the culture and the purpose which produce it; Trapp (2003) p. 41, everyone knows
that the moods, tones and purposes of letter-writing are as varied as the moods, tones and purposes of social interaction
in general [...] more obviously than many other kinds of writing, letters exist in order to establish and conduct
relationships, between senders and recipients. Stowers (1986) p. 15-16 nos d uma lista do que era possvel fazer por
meio de cartas no perodo cristo: pedir ajuda; louvar ou censurar um comportamento ou ao; iniciar, manter, terminar
ou retomar uma relao com uma pessoa ou um grupo; ameaar algum; consolar algum; dar notcias etc.
298 Stowers (1986) p. 29, friends were to be equals; equality was to characterize the relationship.
299Cf. Stowers (1986) p. 56, the concept of epistolary types provided the ancient writer with a taxonomy of letters
according to typical actions performed in corresponding social contexts and occasions; Reed (1997) p. 174, ancient
typologies [of epistolography] were practical, that is, they served the needs of professional letter writers.
300Fomos influenciados, nesta empresa, uma vez mais por Stowers (1986), que faz algo semelhante com os mais
diversos autores antigos.
301 Cf. Ps.-Dem. proem.
302 Cf. Ps.-Lib. 3-4.
303 , , . [...], so
estes, ento, os vinte e um gneros que conhecemos. Talvez o tempo produza mais que esses [...] (cf. Ps.-Dem. proem.)
304 Stowers (1986) p. 51-57 e Reed (1997) p. 171-176.
305Seguiremos aqui o livro terceiro da Retrica de Aristteles (cf. A. R. 1358b) e o livro terceiro da Institutio oratoria
de Quintiliano (cf. Quint. Inst. orat. 3,14-15; 4,1-16).
306 Cf. Quint. Inst. orat. 3,4,15-16.
307Stowers (1986) p. 27-28, most types of letters used in the Greco-Roman world were associated with the epideitic
division of rhetoric. Following Aristotle, the ancients regarded epideictic as the rhetoric of praise and blame. Aristotle
said that the purpose of epideitic was to honor or dishonor something or someone. Exploramos essa questo no tpico
sobre os contextos da carta.
308 Stowers (1986) p. 77-80 e 85-87.
309Stowers (1986) p. 77, praising and blaming were fundamental activities through which the social construction of
the ancient world was maintained. Praise legitimated and effected social structures and constructions of reality [...] In a
society where there is deep agreement about the way things ought to be, those who give praise and blame work to
locate each person and thing in their proper place by bestowing honor and causing shame.
310Reed (1997) p. 174, the similarities [entre os tipos de cartas e a nomenclatura da retrica] may simply be due to
culturally-shared means of argumentation [...] groups within the society (e. g. rhetors and philosophers) may have
developed and classified ways of persuading others to serve their own needs. Thus, functions of judicial, deliberative,
and epideitic species of rhetoric would likely have been used in various literary contexts such as the letter (itlico do
autor).
311 Stowers (1986) p. 38-40, the letter was one of the most characteristic means of expression for ancient philosophy
[...] the letter was the literary genre through which the living example of the guide and the shared lives of the teacher
and student could best be communicated.
312Stowers (1986) p. 36, the kinds of letters that figure most prominently in early Christianity were types used
especially by those who pursued the philosophical life.
313 As tcnicas de exortao, sejam o louvor ou a censura, so centrais para as cartas de Paulo aos Corntios, aos
Romanos, aos Glatas, aos Filipenses, a Tito, a Filemon, enfim, para todas elas, das quais devemos destacar I
Tessalonicenses, que inteiramente parentica. Stowers (1986) p. 23-25; 36-49: the writings of the so-called apostolic
fathers, i.e., the letters of Ignatius and Polycarp and the first letter of Clement, are also primarily letters of exhortation
and advice (citao na p. 43); 112-125: protreptic writings were important to Christianity because of its strong
missionary impulse (citao na p. 113). Tambm Aune (1987) p. 183-225; Ehrman (2003) p. 18-20 (Clemente de
Alexandria), 206-209 (Incio de Antiquia) e 324-329 (Policarpo de Esmirna).

)97
314 Stowers (1986) p. 15-16; Trapp (2003) p. 17-18, perhaps even more than for the members of the Greco-Roman
pagan lite, and its administrators and rulers, the letter was a highly significant form for Christians, being a major tool
for the propagation of doctrine, the maintenance of group solidarity in the face of worldly temptations and persecution,
and the administration of the structures and processes of the young Church.
315Stowers (1986) p. 34, it was the study of rhetoric which developed these sensitivities, and it was the cultivation of
these classical aesthetic interests which most dinstinguishes the letter writing of certain later Christian authors like
Gregory of Nazianzus or Jerome from Paul or Ignatius; Trapp (2003) p. 18, just as the early letters mirror the
characteristic social status of the first Christians generally unsophisticated, and lacking any high rhetorical or literary
culture so the later ones (from the third and fourth centuries A. D. onwards) reflect the new religions progress up the
social scale, and show a literary polish comparable with the best products of a Julian or a Libanius.
316 Cf. Ps.-Dem. 1. Stowers (1986) p. 58-60.
317 Cf. Ps.-Dem. 7. Stowers (1986) p. 125-127, the most gentle type of blame was admonition [...] its goal was to
reclaim a person from moral error. Aug. Ep. 28 e 40 so cartas de admonio; Aug. Ep. 71 e 82 tambm so, mas Aug.
Ep. 71 mais jocosa, ao passo que Aug. Ep. 82 tem um forte carter didtico ausente nas outras.
318Cf. Ps.-Dem. 18. Stowers (1986) p. 167, apologetic letters typically begin with an account of the charges made
against the writer [...] if someone has not made explicit charges, then a writer may anticipate charges and defend against
those. Aug. Ep. 73,1-5 faz-se, em parte, caracterstica de uma carta de desculpa ou de conciliao, na tipologia de
Pseudo-Libnio (cf. Ps.-Lib. 19).
319 Cf. Ps.-Dem. 5. Stowers (1986) p. 142-144, any kind of grief or misfortune might be the subject of the
philosophers consolation. Aug. Ep. 73,6-8 apresenta-se em partes como uma carta de consolao.
320Cf. Ps.-Dem. 6. Stowers (1986) p. 133, rebuke was generally considered to be harsher than admonition [...] rebuke
was directed at fundamental flaws of character or a basic pattern of immoral behavior. Aug. Ep. 73,9-10 possui
elementos de uma carta de censura.
321 As cartas Hier. Ep. 102 e 105.
322Cf. Ps.-Dem. 17. Stowers (1986) p. 166-167, accusing would seem to be blame with a forensic style. Hier. Ep. 112
a contra-causa, a carta de acusao que Jernimo envia a Agostinho, em resposta s cartas anteriores do autor.
323Aug. Ep. 19* e Hier. Ep. 126; 143 so relatos ou respostas simples, cartas de amizade nas quais o nico assunto
especfico so notcias dos autores e da polmica pelagiana.
324Cf. Dem. 21 (agradecimento); 10 (louvor); 15 (alegoria). A saber, Hier. Ep. 134 uma carta de agradecimento, por
Agostinho lhe ter enviado Aug. Ep. 166-167; Hier. Ep. 141 uma carta de louvor pela condenao de Pelgio; Hier. Ep.
142 uma carta alegrica, aludindo fuga de Pelgio para o Egito. Pseudo-Libnio diferencia o louvor do encmio (cf.
Ps.-Lib. 30), de modo que categorizar Hier. Ep. 141 como um encmio, como faz Frst (1999) p. 221, deve ser
problematizado.
325 Stowers (1986) p. 154-156. Trata-se de Hier. Ep. 103, uma recomendao do mensageiro Presdio a Agostinho.
326
Trata-se de Aug. Ep. 67, na qual o autor se defende de terem lhe acusado de enviar um liber contra Jernimo a
Roma.
327Stowers (1986) p. 171, the accounting type does not answer charges or necessarily even anticipate hostility but
gives explanations for some sort of behavior that is open to misunderstanding or might be subject to blame. Trata-se de
Hier. Ep. 115, na qual o autor se satisfaz do tom agressivo utilizado em Hier. Ep. 112.
328Baxter (1930) p. XXXV, there were official letters communicating the decision of local synods, and others
demanded in the exercise of episcopal duties and discipline. The litterae formatae might be certificates of church
communion to Christians who were compelled to travel and were in this way commended to bishops elsewhere (litterae
communicatoriae); they might be letters granting authority to local clergy to remove to another diocese with credentials
from their own bishop (litterae dimissoriae); they might be simple letters of introduction (commendatoriae).
329 Stowers (1986) p. 43-44, as hortatory letters dominate the remains from first- and second-century letter writing, so
judicial and deliberative rhetoric comes to the fore in bishops letters of the fourth and fifth centuries [...] It was no
longer a matter of the lone itinerant apostle and his fellow workers struggling to build several small churches over a
large area. Now there was a network of churches often led by articulate bishops which mutually supported and
sometimes feuded with one another [...] the church itself had a distinct social pyramid and had developed its own
peculiar life-contexts which regularly generated specific types of letters, e. g., doctrinal controversy, worship, church
government, monastic life.

)98
330Stowers (1986) p. 46, it was by means of letter that local disputes became empire-wide theological controversies.
Ambrsio, Jernimo e Agostinho utilizaram suas cartas como meios de propagandear suas ideais, enfrentar seus
inimigos e posicionar-se politicamente na hierarquia eclesistica e no mundo cvico romano. Citamos ou referimos as
cartas Ambros. Ep. 10-14;17-18 aos imperadores, escritas entre os anos de 381 e 384; Aug. Ep. 175-179, enviadas, em
conjunto com Alpio, Possdio e outros bispos africanos, ao Papa Inocncio, ao sacerdote Hilrio, e ao bispo Joo de
Jerusalm, a fim de reverter a deciso que inocentou Pelgio no ano de 415, durante o Snodo de Dispolis (as respostas
de Inocncio esto em Aug. Ep. 181-184); e Hier. Ep. 80-91;95, escritas entre 398 e 401, as quais recordam a polmica
origenista contra Rufino e Joo de Jerusalm. A escrita de cartas no deixa de se confundir, como nos tempos de Ccero,
com a atuao poltica de seus praticantes. To mais profunda a atuao poltica tanto de Ambrsio quanto de
Agostinho: ambos eram homens ativos nos afazeres da Igreja, e foram responsveis por coligir atas e relatrios de
snodos e conclios. O bispo de Milo reuniu as decises do Conclio de Aquileia, que condenou Paldio e Secundiano
em 381 d. C. [PL 16,916a-940a]; j o bispo de Hipona foi responsvel por organizar um conclio contra os donatistas
em 411 d. C. [PL 43,613-650], e teve papel deciviso no XVI Conclio de Cartago em 418, no qual Pelgio foi
condenado. Jernimo, embora no dispusesse de ttulo eclesistico porque era monge, foi o mais vitrilico polemista de
sua poca, de temperamento temido por todos, caracterstica que lhe rendeu muitas inimizades. V. Kelly (1975) p.
108-109; Brown (2013) p. 222-239 e 354-377.
331 Stowers (1986) p. 142-144 faz um comentrio pertinente importncia da carta de consolao no contexto cristo:
the letter of consolation was one of the most important types for Christian letter writers in the fourth and fifth
centuries. Essa importncia se d, acreditamos, porque a morte sempre uma questo central para a reflexo dos
filsofos cristos e para a administrao dos bispos; v. aqui Brown (2009) p. 255-258.
332Agostinho no cansa de elogiar Jernimo (cf. Aug. Ep. 28,1;5; 40,9; 67,3; 71,2-6; 167,21; 180,2-3; 19*,2; 202A,2),
mas por vezes o censura (cf. Aug. Ep. 40,7; 67,1; 73; 82). J Jernimo, por sua vez, no raro repreende ou ameaa o
Tagastense (cf. Hier. Ep. 102,2-3; 105; 112), mas permite-se elogiar-lhe o intelecto e a postura firme na batalha contra
as heresias (cf. Hier. Ep. 126,2; 134,1; 141-143).
333Agostinho, no entanto, no o primeiro a faz-lo: ele segue o exemplo de Cipriano de Cartago. Stowers (1986) p. 45
diz: his [Cyprians] judicial rhetoric shows itself in his controversial apologetic and polemical letters such as the
violent correspondence between him and Stephen, bishop of Rome, concerning whether heretics could administer
baptism.
334 Cf. Hier. Ep. 105,2. Quem nota a semelhana Fry (2010) p. 126, n. 25.
335 Ebbeler (2009) p. 270-283, Augustines argument that frank censure is appropriate to a letter of friendship is
another remarkable epistolary innovation [...] when Augustine incorporates censorious rhetoric into letters that purport
to be friendly, he is conflating two apparently incompatible letter types (citao na p. 273-274).
336 Cf. 2 Cor 10:11.
337 Ebbeler (2009) p. 282-283, Augustine's claim that letter exchange was an appropriate forum for the censure of
friends precisely because it invited the gaze of the Christian community and encouraged the sinners repentance was
similarly revolutionary.
338Stowers (1986) p. 47, friendly letters became typical of educated monks or bishops. A few, such as Basil and
Paulinus of Nola, developed a critical view of the tradition and contrasted Christian brotherly love to friendship.
Typically, however, the friendly letter not only appears but is also used to maintain relationships of amicitia or an
ascetic Greek friendship.
339 Trapp (2003) p. 41, more obviously than many other kinds of writing, letters exist in order to establish and conduct
relationships, between senders and recipients. In this role they are constantly liable to become involved in games of
etiquette and power, especially (but not only) when passing between correspondents of relatively high social status.
Calculatingly or unconsciously, writers attempt to control style and presentation in the light of their sense of their own
and their correspondents status, and the particular relationship they are attempting to cultivate.
340 ,
. , ,
, convm que a carta, assim como o dilogo, seja profusa em caracterizao [ ], pois todo aquele
que escreve uma carta, pode-se dizer, escreve nela uma imagem [] da prpria alma [ ]. Certo,
possvel discernir em qualquer outra forma de comunicao a personalidade do escritor [ ], mas
em nenhum outro como em uma carta (cf. Dem. 227). Stowers (1986) p. 36-40; Rosenmeyer (2001) p. 10: all letter
writers consciously participate in the invention of their personas; there is no such things an unself-censored, natural
letter, because letters depend for their very existence on specific, culturally constructed conventions of form, style, and
content.

)99
341 Traduzimos dignitas como dignidade por aproximao etimolgica, mas a semntica do termo na sociedade
romana mais abrangente, significando algo como reputao. LS d dignitas como sinnimo de honos, honestas,
laus, existimatio, gloria, fama e nomen; no De inventione, Ccero define a dignitas como alicuius honesta et cultu et
honore et verecundia digna auctoritas, a autoridade distinta, digna de respeito, honra e apreenso (cf. Cic. Inv. 166);
Blaise p. 272 a descreve como la bont, la condescendance de Dieu, les marques quil donne de sa bont, de son
estime pour nous, de sa grce, de sa liberalit, de ses faveurs, indicando a naturalizao da boa reputao no mundo
antigo: dignus era o bem-nascido, o proveniente genere nobili. Quintiliano parece isolar a dignitas s relaes pessoais
quando diz que in senatu conservanda auctoritas, apud populum dignitas, deve-se conservar a autoridade no senado
[i.e., na vida poltica], e a reputao entre o povo [i.e., na vida social] (cf. Quint. Inst. orat. 11,3,153). A dignitas era
uma virtude essencial tambm ao ministrante cristo, ao menos desde Cipriano de Cartago (cf. Cip. Ep. 38,1 e 40,1).
Por fim, Stowers (1986) p. 27 afirma: it was through honor that a persons rightful place in society was defined. Honor
provided a person with a status in society. It was like a social rating that entitled the person to act and be treated in
certain ways.
342 Cf. Sartorelli (2005) p. 28-33.
343At o fim deste tpico, seguiremos Stowers (1986) p. 27-47 e 77-90 passim. Acreditamos contudo que o sistema
proposto pelo historiador no to algebraico, como se as instituies antigas fossem balanceadas por operaes quase-
matemticas de dar e tirar a honra, e como se fosse possvel quantificar os elementos que produzem a dignitas
(Stowers menciona a glria blica e o sucesso financeiro, aos quais poderamos adicionar a eminncia poltica, caso de
Ccero, e a conduta religiosa ortodoxa, caso de Agostinho e Jernimo).
344 E.g. Cic. Fam. 6,2; 7,7;15;18; 9,14-15; 10,25-26.
345 Koskenniemi (1956) p. 35-37; 115-127; Thraede (1970) p. 125-146; Stowers (1986) p. 29, the ideals of Greek male
friendship greatly influenced ancient epistolography. Throughout antiquity, theorists asserted that the genre of the letter
was epitomized by the friendly letter [...] a group of motifs and clichs derived from classical Greek friendship became
part of the standard content of the letter [...] Theorists tended to suggest that the true and genuine function of the letter
genre was as a vehicle for expressing and maintaining the sharing and affections of friendship.
346 Segundo White (2002) p. 31-35.
347A definio mais tradicional de amizade no mundo latino dada por Ccero no Laelius, cf. Cic. Lael., esp. 91-100.
Antes, o Arpinate define a amicitia como nihil aliud nisi omnium divinarum humanarumque rerum cum benevolentia et
caritate consensio; qua quidem haud scio an excepta sapientia nihil melius homini sit a dis immortalibus datum, no
outra coisa seno a unio, com boa-vontade e amor, no que diz respeito a tudo que humano e divino; com relao
qual, de fato, no sei bem se o homem recebeu ddiva melhor dos deuses imortais, com exceo da sabedoria (cf. Cic.
Lael. 20); Agostinho retoma esta definio em uma carta escrita a Jernimo, na qual descreve sua amizade com Alpio:
non enim animo me atque illum, sed corpore duos, qui noverit, dixerit, concordia dumtaxat et familiaritate fidissima
quem nos conhece diria que somos duas pessoas unidas no pela alma, mas pelo corpo, no que diz respeito nossa
afinidade e amizade mais fiel (cf. Aug. Ep. 28,1); novamente em uma carta protocolar a Marciano, escrita entre 411 e
430 (cf. Aug. Ep. 258). V. White (2002) p.187-192; Frst (1996) p. 138-183 para o ideal ciceroniano de amizade e sua
imensa influncia no pensamento de Agostinho.
348Diferente da sociedade burguesa moderna, na qual a esfera poltica segregada da esfera da famlia e da amizade,
Stowers (1986) p. 28 indica que in classical thought, friendship was the basis of politics, and the family was the basis
of economic activity [...]. Tambm Rebenich (2012) p. 365: amicitia designated both the horizontal interconnection
between aristocrats of equal rank and the vertical relations of patrons to their dependent clients.
349 Segundo Caio Jlio Vtor, commendaticias fideliter dato aut ne dato. id fiet, si amicissime dabis ad amicissimum, et
si probabile petes et si impetrabile, devem-se dar cartas de recomendao de maneira honesta, se no, no devem ser
dadas. Isso acontecer se deres [uma carta] da maneira mais amigvel a um grande amigo, e se pedires algo plausvel, e
tambm factvel; tambm Ps.-Dem. 2 e Ps.-Lib. 8;55, tratadista este que tambm a chama de , carta de
introduo. V. Stowers (1986) p. 153-165 para uma discusso e exemplos de cartas de mediao.
350 Stowers (1986) p. 30, a breach of these norms [da amicitia] involved a loss of dignity (dignitas) and honor
(gloria); os parnteses so do autor. Esta situao ocorre na correspondncia entre Agostinho e Jernimo. O bispo de
Hipona parece considerar a conduta do Estridonense indigna na apologia deste contra Rufino, qual atribui os ferres
da indignao, aculei indignationis, do Estridonense; Jernimo, em possvel resposta censura de Agostinho,
reivindica para si a integritas, integridade, em seu trabalho como tradutor e exegeta, inferindo que sua posio foi
justa (cf. Aug. Ep. 73,6 e Hier. Ep. 112,20).
351 Stowers (1986) p. 25-27.

)100
352 Stowers (1986) p. 42, many Christian groups had, on the one hand, the character-building goals that made
Epicureanism a letter-writing movement and, on the other hand, the supralocal organizational impulse that made letter
writing essential for the Roman imperial administration; Frst (2002) p. 26, im Christentum fungierte der Brief
darber hinaus von Anfang an als Ausdruck und Mittel kirchlicher Gemeinschaft.
353
Brown (1989) p. 65-68, the Christians had already taken the step of calling themselves a non-nation [...] to be a
Christian in 250 brought more protection from ones fellows than to be a civis romanus.
354 Stowers (1986) p. 36-40.
355 Stowers (1986) p. 42-43, the classical ideal of friendship is not and could not have been expressed in Pauls letters.
Circles of friends were associations of individual social equals bound by similarity of social background and political or
philosophical goals. Even in Epicurean groups, the community existed for the private spiritual goals of each individual.
In the Pauline letters, there is a strongly communal goal.
356 Aune (1987) p. 174-182.
357 In Stowers (1986) p. 122-125 apud Lake (1917;1997) p. 350-379.
358 Stowers (1986) p. 15, something about the nature of early Christianity made it a movement of letter writers.
359 O substantivo vem do verbo , contrao do prefixo mais o incoativo de (verbo
usado para a missiva epistolar, o nuntiare no latim), que significa literalmente anunciar bondosamente ou dar as boas
novas. Jernimo preferiu transliterar o termo em sua traduo, e empregou o verbo evangelizare e o substantivo
evangelium na Vulgata. V. Aune (1987) p. 46-76.
360 Stowers (1986) p. 41, Paul, the Hellenistic Jew, provided the most important models for Christian letters until
Gregory of Nazianzus and Basil became the most imitated letter writers in the Byzantine church; o mesmo pode ser
dito de Agostinho e Jernimo em relao Igreja romana.
361Chadwick (1967) p. 213-236; Stowers (1986) p. 42-47, in the first three centuries C.E., this drive toward social self-
definition produced remarkably diverse forms of Christianity. Perhaps it is best to speak of Christianities in this period.
The next three centuries are just as remarkable for their movement toward political and theological consolidation and
uniformity (citao na p. 42); Brown (1989) p. 96-112; Cameron (1993a) p. 68-84 e id. (1993b) p. 61-75.
362White (2002) p. 60, it would seem that philia/amicitia, for a number of reasons, regained in the fourth and fifth
centuries a large measure of importance that these ethical and social concepts had enjoyed in earlier antiquity [no que
concerne ao cristianismo] before the coming of Christianity began to effect changes in Classical society. The similarities
between the Classical theories of friendship and some of the ideas developed by Christian writers is very striking. They
can be partially explained by the continuity of the cultural heritage made possible by the forms of education and
government which these men experienced.
363Stowers (1986) p. 77, some philosophical groups and Christians might challenge the accepted structure of
honorable and dishonorable behavior, but they did not challenge the system of honor itself or the process of praise and
blame through which the system was sustained. Na correspondncia mtua entre Agostinho e Jernimo, dignitas,
meritus e verbos aparentados dignari e indignari, ter a dignidade e ter a indignidade; mereari, ser merecido
aparecem em inmeras ocasies, e.g. Aug. Ep. 28,1;5; 40,9; 67,1;3; 71,1;6; 73,1;5-6;9-10; 82,1;15;17;26;32;34; 19*,1-3
e Hier. Ep. 102,1; 103,1; 105,1;5; 112,1;4;17; 134,1-2; 143,1.
364 Cf. Hier. Ep. 102,1; 103,1; 105,2; 112,1; 134,1; 141,1; 143,1.
365 Auksi (1995) p. 9-32.
366AugA p. 298 letters were of vital importance to Augustine because friendship was essential do him. Para a noo
de caritas na obra de Agostinho, v. Arendt (1929;1999); McNamara (1958); Geerlings (1981); White (2002); Ebbeler
(2012); Rebenich (2012).
367Cf. Aug. In Ioh. 10,7; tambm Conf. 14,3. Paulino de Nola caracteriza-a como spiritalis germanitas, irmandade
espiritual, nalgumas cartas (cf. Paul. Nol. Ep. 11,1-2; 13,2; 51,2).

)101
368 caritas igitur de corde puro et conscientia bona et fide non ficta, magna et vera virtus est, quia ipsa est et finis
praecepti, ora, o amor de corao puro, de boa inteno e na f de maneira no fingida uma grande e verdadeira
virtude, j que ele a prpria virtude e o fim do preceito divino (cf. Aug. Ep. 167,11). Em Tim 1:5:
, vertido por Jernimo como finis autem praecepti est caritas de corde
puro, e traduzido na ACF como ora, o fim do mandamento o amor de um corao puro. Na correspondncia entre
Agostinho e Jernimo, o conceito de caritas aparece em Aug. Ep. 28,1; 40,7;9; 67,2; 73,3;9-10; 74,1 e principalmente
em Aug. Ep. 82,1-3;17;22;27;31-32; 167 passim - ora como o termo prprio, ora como ius caritatis, juzo da caridade,
libertas caritatis, liberdade da caridade, caritas fraterna, caridade fraterna. A caritas indica a relao que
Agostinho quer ter com Jernimo: no final de uma carta, o bispo de Hipona exclama: illa enim caritas quam tecum
habere vellem [...], afinal, essa caridade que gostaria de manter contigo [...] (cf. Aug. Ep. 82,36). Jernimo no utiliza
o termo uma nica vez em suas cartas a Agostinho. J fraternitas, fraternidade, e germanitas, irmandade, aparecem
em Aug. Ep. 28,1;5; 40,9; 67,2; 74; 82,1;22;30;36 e 19*,4 e Hier. Ep. 105,5; 115; 134,2, novamente mais abundantes
em Agostinho.
369 Cf. Aug. Ep. 28,1; Conf. 4,7.
370 in quorum ego caritatem, fateor, facile me totum proicio, praesertim fatigatum scandalis saeculi; et in ea sine ulla
sollicitudine requiesco: Deum quippe illic esse sentio, in quem me securus proicio, et in quo securus requiesco, eu,
na caridade dos meus amigos], confesso, que me jogo de corpo e alma, em especial quando me canso das tribulaes do
mundo, e nela que descanso sem qualquer preocupao; pois, eu sinto, Deus est l, em quem me jogo seguro e em
quem seguro descanso (cf. Aug. Ep. 73,10).
371 Cf. Aug. Conf. 4,8,1-14. V. Carriker (1999) p. 128-131; Frst (1999) p. 157-166.
372veritas [...] quae debetur amicitiae, a verdade devida amizade (cf. Aug. Ep. 82,33). Em Eph 4:25: por isso
deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu prximo; porque somos membros uns dos outros.
373
Aug. Ep. 28: sincerissimus cor tuus, teu corao muitssimo sincero (cf. Aug. Ep. 28,5). Aug. Ep. 82: sinceritas
amicitiae, sinceridade da amizade (cf. Aug. Ep. 28,5); tambm sincerissime (cf. Aug. Ep. 82,32).
374Aug. Ep. 73: libertas iustitiae, liberdade da justia (cf. Aug. Ep. 73,4). Aug. Ep. 82: securior libertas, liberdade
algo mais despreocupada (cf. Aug. Ep. 82,2); libertas caritatis, liberdade da caridade (cf. Aug. Ep. 82,22); libertas
amicitiae, liberdade da amizade (cf. Aug. Ep. 82,36). O ideal agostiniano de libertas amicitiae mais prximo da
noo grega de , franqueza, que de , a liberdade de ao. Trata-se de uma liberdade de poder dizer
o que quiser, como mostrou Barterlink (1970).
375 Aug. Ep. 28: sincera et fraterna severitas, sincera e fraterna austeridade (cf. Aug. Ep. 28,5). Aug. Ep. 40: ingenua
et vere christiana cum caritate severitas, aquela austeridade pura e verdadeiramente crist, unida caridade (cf. Aug.
Ep. 40,7). Em 2 The 3:15: todavia no o tenhais como inimigo, mas admoestai-o como irmo.
376mecum enim familiarissimus amicus meus, non solum de probabilitate humanae vitae, verum etiam de ipsa religione
concordat, quod est veri amici manifestissimum indicium, ora, meu amigo mais querido concorda comigo no s sobre
as convenes da vida humana, mas tambm sobre a prpria religio; esta a prova mais evidente de um verdadeiro
amigo (cf. Aug. C. Acad. 3,13).
377H menes amicitia desde o incio da correspondncia entre Agostinho e Jernimo, a saber, j em Aug. Ep. 28,1 e
Hier. Ep. 103,1, mas o caso mais especfico est em cartas de Agostinho onde ele aborda a rixa entre Jernimo e Rufino,
que a seus olhos consiste em uma inimicitia, uma quebra da amicitia que incorre na indignatio do Estridonense (cf.
Aug. Ep. 73 passim e 82,32-33;36).
378 Hagendahl (1958) p. 358: charity being the Christian virtue par excellence [...] in antiquity, friendship was
cultivated, not only among the Pythagoreans, as a cornerstone of human society and a blessing of life; from the rise of
Christianity it had to yield to charity. In Ambrose, however, friendship reassumes its old place; White (2002) p.
111-128.
379Cf. Aug. Conf. 4,13; Ep. 1,3; 143,2-4; 148,4; 193,10; 224,2; Trin. 3,2; Persev. 55. V. McNamara (1958) p. 193-198,
207-210; White (2002) p. 129-145, 185-217.
380 Ebbeler (2009) p. 274-276.
381 White (2002) p. 45-60; Ebbeler (2012) p. 42-50.

)102
382Cf. itaque tanto magis amo amicos meos, quanto magis bene utuntur anima rationali, vel certe quantum desiderant
ea bene uti, dessa forma, eu amo tanto mais meus amigos, quanto melhor eles usam sua alma racional, ou certamente
quanto melhor desejam us-la (cf. Aug. Soliloq. 1,2). Na correspondncia, e.g. Aug. Ep. 28,5; 40,8; 67,2; outros
exemplos em Aug. Ep. 1,3; 37,3; 143,2-4; 148,4; 193,10; Trin. 3,2, aqui: in omnibus litteris meis non solum pium
lectorem sed etiam liberum correctorem desiderem, eu gostaria, em todas as minhas palavras, no s de um leitor
dedicado, mas tambm de um corretor franco.
383 Cf. P. G. 457c-e.
384quam ob rem dissentientium inter se reprehensiones non sunt vituperandae, maledicta, contumeliae, tum iracundiae,
contentiones concertationesque in disputando pertinaces indignae philosophia mihi videri solent [...] neque enim
disputari sine reprehensione nec cum iracundia aut pertinacia recte disputari potest (cf. Cic. Fin. 1,27-28).
385Thraede (1970) p. 34-39; Frst (1999) p. 114, zwischen amicitia und caritas ( und ) besteht im Rahmen
der Topik des Freundschaftsbriefes nur ein terminologischer, kein sachlicher Unterschied.
386Os termos so abundantes nas cartas dos autores. Dilectio e diligere: Aug. Ep. 28,1; 82,30; 86 e Hier. Ep. 102,2;3;
141. Amicitia, amor e amare: Aug. Ep. 28,5 e Hier. Ep. 105,4; 115; 134,1.
387Cf. Aug. Conf. 4,8,13, passagem em que o autor contrasta o amor em Deus e entre cristos com a amizade terrena,
a qual ele caracteriza como ingens fabula et longum mendacium, uma imensa fbula e grande mentira.
388 Cf. Aug. Ep. 82,32.
389Cf. Aug. Ep. 73,9; noutra carta, Agostinho fala da necessitas refellendi, necessidade de refutao (cf. Aug. Ep.
82,2). Frst (1999) p. 158-159, Kritik unter Freunden ist nach Augustinus nicht nur grundstzlich mglich, sondern als
Freundschaftserweis und Freundespflicht sogar erwnscht und gefordert.
390magis amat obiurgator sanans, quam adulator unguens caput, mais ama aquele que castiga curando, que aquele
que adula perfumando a cabea (cf. Aug. Ep. 28,5); caedebatur ille, non curabatur; et ideo vincebatur, non sanabatur,
ele, Dares, era golpeado, no curado, e assim era vencido, no remediado (cf. Aug. Ep. 73,4).
391Ebbeler (2009) p. 278 indica que Augustine realized that he had broken the rules by importing censure into a letter
that so explicitly invoked the codes of friendship letters; id. (2012) p. 129.
392Segundo Ebbeler (2012) p. 44-46, a carta de Paulo aos Glatas, uma carta de repreenso (e no de admonio),
pioneira na introduo da repreenso amigvel, mas mesmo nela h o precedente da relao delicada entre os
correspondentes, como mostra Stowers (1986) p. 134. A situao de Agostinho e Jernimo outra, pois ambos no se
conheciam previamente.
393 amicissima reprehensio, termo empregado em Aug. Ep. 73,3. Reprehensio e reprehendere aparecem amide nas
cartas de ambos os autores, cf. Aug. Ep. 28,5; 40,6;9; 73,3; 82,1;5;23;31 e Hier. Ep. 102,1-3; 105,2;4-5;
112,1-2;4-6;8-9;11;15-18; 115; 134,1.
394 Cf. Aug. Ep. 259, conforme trabalhada por Ebbeler (2009) p. 181-182.
395 White (2002) p. 218: with Augustine we reach the culmination of fourth-century Christian theories of friendship,
for it is he who arguably provides the most profound views, touching on many areas of Christian life and doctrine and
accordingly a crucial role to friendship in each Christians progress towards salvation.
396Em Aug. Ep. 82,31: [...] quod cum in opusculis tuis aliqua me moverent, motum meum intimavi tibi: hoc erga me ab
omnibus servari volens, quod erga te ipse servavi, ut quicquid improbandum putant in scriptis meis, nec claudant
subdolo pectore, nec ita reprehendant apud alios, ut taceant apud me; hinc potius existimans laedi amicitiam et
necessitudinis iura violari. nescio enim, utrum christianae amicitiae putandae sint, in quibus magis valet vulgare
proverbium: obsequium amicos, veritas odium parit (cf. Ter. Andr. 68), quam ecclesiasticum: fideliora sunt vulnera
amici, quam voluntaria oscula inimici (cf. Pr 27:6).
397O ideal mutuamente corretivo da caritas tambm est em Aug. Ep. 27,6; 28,5; 67,2; 73,3-4;9; 82,31-33; 151,11;
166,1; 167,21, segundo indica Frst (2002) p. 77: im Anschluss an die antike Tradition der Hochschtzung des
Freimuts unter Freunden und der Warnung vor Schmeichelei wertete er als grere Liebe (caritas maior) gerade eine
solche Freundschaft, in der auch eine kritische Auseinandersetzung mglich ist. Cf. Aug. Ep. 167,14 para a
possibilidade de haver mais ou menos amor em determinado homem.

)103
398Frst (1999) p. 149, unter Freunde gebe es nur Liebe, kein Kritik; id. (2002) p. 76-78. V. tambm Ebbeler (2007)
p. 280: whereas Jerome saw criticism and friendship as incompatible, even if acceptable in the general practice of late
antique friendship, Augustine implicitly argued that, if the Christian community is a society of friends, then there
should be no distinction between the practice of friendship and the practice of letter exchange; id. (2012) p. 141-145.
399Cf. Hier. Ep. 105,2; segundo Ebbeler (2012) p. 48. O provrbio semelhante a uma passagem de Lucrcio, cf. Luc.
4,11-13.
400 Cf. Aug. Ep. 67,2; 73,9.
401A definio clssica do dada por Aristteles: parte de uma das trs provas artsticas [] ou modos de
persuaso, ao lado do , da palavra, e da , a emoo, o um mecanismo de convencimento que reside no
comportamento moral do escritor, a fim de conseguir uma adeso no s racional, mas tambm afetiva a determinada
causa (cf. A. R. 1355b-1356b;1392a). Sobre a construo do , v. tambm Amossy (2005) p. 1-17.
402 Cf. Cic. Tusc. 5,47. Tambm em Sneca: talis hominibus fuit oratio qualis vita, o discurso desses homens foi tal
qual a sua vida (cf. Sen. Ep. 114,1); e em Quintiliano: quando igitur orator est vir bonus, is autem citra virtutem
intellegi non potest, virtus, etiam si quosdam impetus ex natura sumit, tamen perficienda doctrina est: mores ante
omnia oratori studiis erunt excolendi atque omnis honesti iustique disciplina pertractanda, sine qua nemo nec vir bonus
esse nec dicendi peritus potest, portanto, quando o orador um homem bom, ele no pode ser compreendido aqum da
virtude; esta, ainda que tenha quaisquer mpetos por natureza, deve ser aperfeioada pelo aprendizado: a conduta do
orador dever ser, antes de tudo, cultivada pelo estudo e a disciplina de todo orador honesto e justo deve ser aparada,
sem a qual ningum pode ser um homem bom ou experiente no discurso (cf. Quint. Inst. orat. 10,2,1). Quando um
homem parece mal ao discursar, seu discurso ser recebido como algo ruim: qui, cum dicit, malus videtur, utique male
dicit, quem parece mal quando fala, certamente fala mal (cf. Quint. Inst. orat. 6,2,18). Antes, Aristteles, embora
defendesse que o devesse se encerrar no discurso, sem que haja vnculos entre o que se diz e a posio do orador,
acaba admitindo que damos mais f ao que uma pessoa justa do que uma injusta diz (cf. A. R. 1356a; EN 1095a). V.
Sartorelli (2005) p. 21-35 para uma discusso desse problema.
403denique omne bonum et comem virum poscit. quas virtutes cum etiam in litigatore debeat orator, si fieri potest,
adprobare, utique ipse aut habeat aut habere credatur. sic proderit plurimum causis, quibus ex sua bonitate faciet
fidem, finalmente, o busca todo o bem e seus aliados nas qualidades. O orador, quando lhe for necessrio aprovar,
se possvel, tais virtudes em seu adversrio, preciso certamente que ele prprio as tenha, ou parea t-las. Assim ele
mostrar grande excelncia nas causas, com as quais ele criar confiana atravs da sua prpria bondade (cf. Quint.
Inst. orat. 6,2,18; tambm em 4,2,125).
404sermo enim viri mentis est speculum, ora, o discurso o espelho do esprito do homem (cf. Paul. Nol. Ep. 13,2).
Seguiremos aqui Auksi (1995) p. 9-32 e Sartorelli (2005) p. 42-75.
405 Cf. Mt 12:34 e Lc 6:45.
406 nec potest fieri ut veritatis cultor, mendacio colla submittam, tampouco possvel que eu, um protetor da verdade,
arrisque meu pescoo por causa de uma mentira (cf. Hier. Ep. 112,18).
407Sartorelli (2005) p. 8 e 35-41, a partir de Berger (1998) p. 238-252, esp. p. 244-245. A autora afirma na p. 37 que a
essa legitimao do texto e pelo texto, mas apoiada na credibilidade da prtica da imitatio Christi, d-se o nome de
Apostolikon.
408 quos si vellem discutere, non dicam a me, qui nihil sum, sed a veterum Graecorum docerem interpretationibus
discrepare, se eu quisesse contestar teus livros, mostraria e demonstraria que destoam no de mim (ora, no sou
ningum) mas das interpretaes dos patriarcas (cf. Hier. Ep. 105,5).
409 Sartorelli (2005) p. 41.
410 Curtius (1953) p. 407-413 e Auksi (1995) passim.
411 Conforme demonstrado por Cain (2006) p. 500-525 no que concerne s primeiras cartas de Jernimo.
412 Sartorelli (2005) p. 53.
413 Trata-se de Hier. Ep. 112, cujos mecanismos analisamos em uma introduo parte, dedicada a essa carta.
414 Sartorelli (2005) p. 54-55, v. p. 53-67 para uma discusso dessa estratgia.
415 Cf. Hier. Ep. 102,1 e 112,15, respectivamente.

)104
416Cf. Lc 6:27-28: mas a vs, que isto ouvis, digo: amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os
que vos maldizem, e orai pelos que vos caluniam.
417 Cf. Aug. Ep. 202A,4.
418 Cf. Aug. Doctr. Christ. 2,63. V. Auksi (1995) p. 110-126.
419Sartorelli (2005) p. 14. H um testemunho em Agostinho, mas em um texto que no propriamente uma carta: quali
eloquio explicata sint, non nimis curo, eu no me preocupo muito com o estilo pelo qual essas questes foram
elucidadas (cf. Aug. Ep. 167,21).
420non enim convenit ut ab adolescentia usque ad hanc aetatem, in monasteriolo cum sanctis fratribus labore desudans,
aliquid contra episcopum communionis meae scribere audeam, ora, no convm a algum que se exaure de trabalhar,
desde a juventude at hoje, num monasteriozinho com seus santos irmos, a ousadia de escrever algo contra um bispo
de minha comunho (cf. Hier. Ep. 105,2;4).
421 Esmiuaremos todas essas concluses no captulo seguinte, ao traar o contexto histrico da correspondncia.
422 Frst (2002) p. 26, der Briefwechsel zwischen Augustinus und Hieronymus war nicht nur Zeichen und Produkt
ihrer persnlichen Beziehung zueinander, sondern auch und sogar vor allem Medium fr eine kontroverse Debatte ber
exegetische und dogmatische Themen.
423medium esse nihil potest: aut mea sententia sequenda est, aut Ioviniani, no pode haver nada no meio: deve-se
tomar a minha concluso, ou a de Joviniano (cf. Hier. Ep. 48,2).
424Jernimo se diminui ao se chamar de parvitas mea, minha pequenez (cf. Hier. Ep. 102,1; 112;18) e principalmente
ao utilizar diversos diminutivos que pretendem contrastar a sua insignificncia com o esplendor do episcopado de
Agostinho, como tuguriunculum, casebrezinho (cf. Hier. Ep. 112,5); outros exemplos, todos em Hier. Ep. 112, so:
operula, disputatiunculae, praefatiunculae, oppidulum, pauperculus. O uso dos termos uma estratgia de
rebaixamento do autor, a qual no deixa de ser contraditria com as ameaas que Jernimo tece em Hier. Ep. 112 e com
o esmero retrico que ele proporciona a esta carta.
425 Cf. Aug. Ep. 73,6;10.
426 incomparabiliter enim pulchrior est veritas christianorum, quam Helena graecorum, a verdade dos cristos
incomparavelmente mais bela que a Helena dos gregos! (cf. Aug. Ep. 40,7); neque enim eiusdem est criminis in
explanatione Scripturarum diversas maiorum sententias ponere, et haeresim sceleratissimam rursum in Ecclesiam
introducere, ora, no se trata de um mesmo crime expor, na explanao das Sagradas Escrituras, as diferentes solues
dos autores antigos, e trazer uma heresia muito perversa novamente na Igreja (cf. Hier. Ep. 112,13); e tambm Aug.
Ep. 82,13, passagem em que o autor acusa Jernimo de ser um filsofo. Os de Agostinho, silogismos
prprios dos filsofos, tambm apontam para uma acusao de heresia, uma vez que so contrastados com a
simplicidade que Jernimo arroga sua confisso (cf. Hier. Ep. 102,1).
427 Cf. Hier. Ep. 112,16.
428Cf. Hier. Ep. 112,5;12-18 na discusso de Gal 2:11-14; e Hier. Ep. 112,19-22 acerca de outras questes levantadas
por Agostinho: pace tua dixerim, videris mihi non intellegere quod quaesisti, parece-me que tu, perdoa-me a liberdade,
no entendeste o que perguntaste (cf. Hier. Ep. 112,19).
429 ex quo ostendi, me non ex definito id defendere, quod in graecis legeram, sed ea expressisse quae legeram, ut
lectoris arbitrio derelinquerem, utrum probanda essent an improbanda, no que mostrei que eu no defendia em
definitivo o que li nos gregos, mas que eu havia dado voz s ideias que li, para que deixasse ao leitor a deciso de
aprov-las ou no (cf. Hier. Ep. 112,4;7).
430tu ut episcopus in toto orbe notissimus, debes hanc promulgare sententiam, et in assensum tuum omnes coepiscopos
trahere, tu, como bispo muito conhecido em todo o mundo, deves ento publicar essa concluso e trazer todos os teus
colegas de bispado a consentir contigo" (cf. Hier. Ep. 112,5).
431 Ebbeler (2009) p. 279, by labeling Augustines text a liber (treatise, pamphlet), Jerome underscores his point that
Augustine did not have a proper understanding of epistolary convention. The liber, after all, was the traditional form of
censure. A autora, no entanto, exagera: o liber indica quase qualquer tipo de escrito em prosa na Antiguidade Tardia;
afinal, Aug. Ep. 166-167 tambm so libri.
432 Cf. Aug. Ep. 67,2; 82,33.

)105
433Cf. Aug. Ep. 67,2; 73,3, aqui: ego amicissimam reprehensionem gratissime accipiam, etiam si reprehendi non meruit
quod recte defendi potest; aut agnoscam simul et benevolentiam tuam, et culpam meam, et, quantum Dominus donat, in
alio gratus, in alio emendatus inveniar, eu aceitaria, de muito bom grado, uma repreenso muitssimo amigvel, ainda
que no haja mrito em repreender o que pode ser corretamente defendido, ou reconheceria, ao mesmo tempo, tanto a
tua benevolncia e a minha culpa, quanto, na medida em que o Senhor permite, eu me mostraria grato de um lado, e
corrigido de outro. V. Ebbeler (2012) p. 75-80.
434ne videamur certare pueriliter et fautoribus invicem vel detractoribus nostris tribuere materiam contendendi; haec
scribo, quia te pure et christiane diligere cupio, no pareamos brigar como crianas e dar, tanto aos nossos defensores
quanto aos nossos detratores, matria para contenda; escrevo isso porque desejo te amar de maneira pura e crist (cf.
Hier. Ep. 105,4).
435sit inter nos una fides, et ilico pax sequetur, que haja entre ns uma f, e seguir imediatamente a paz (cf. Hier.
Adv. Ruf. 3,44). V. Frst (1999) p. 147-149.
436 Hagendahl (1967) p. 729.
437
Hagendahl (1958) p. 309-310. Ainda que juzo se aplique especificamente a Jernimo, ele adequado tambm a
Agostinho, no nosso entender.
438 Thraede (1970) p. 112, ganz landlufige Kreuzung rhetorisch Brieftopik mit Bibelzitat und Dogmatik.
439in epistolari stylo propre Tullium repraesentas, no estilo epistolar tu no ests longe de lembrar Ccero (cf. Hier.
Ep. 85,1).
440Reed (1997) p. 181 afirma que tais funes se assemelham ao exordium e peroratio do discurso: in the same way
that epistolary openings function to expose the general nature of the relationship between the sender and the recipient
(be it positive or negative), so also the exordium serves to generate a positive relationship of trust and compliance
between the speaker and the listener, that is, to build ethos. The same may be said of the epistolary closing and the
peroratio.
441 Ebbeler (2012) p. 56.

)106
II. Jernimo e Agostinho, correspondentes

II. A. Antes da correspondncia


II. A. 1. Apresentao
Quando Aurlio Agostinho (354 - 430) enviou sua primeira carta a Jernimo, ele era um
recm-chegado no mundo da hierarquia eclesistica. Um homem de meia-idade, contando ento
quarenta anos, a fama lhe precedia Agostinho fora um importante professor de retrica em Roma
e Milo e sua ascenso na Igreja foi rpida batizado apenas em 386, foi eleito ao presbiterado
em Hipo Rgio, um dos centros comerciais do Norte da frica, j em 391; l, o bispado era ento
chefiado por Valrio, um homem velho e flbil, que no conseguira barrar o cisma donatista na
provncia.
Eusbio Jernimo (331 - 419/420), por sua vez, era vinte e trs anos mais velho que o
presbtero de Hipona. Um homem sexagenrio, sua reputao como grande estudioso das Escrituras
era admirada e temida tanto por cristos quanto por pagos do mundo todo. Jernimo era conhecido
da intelligentsia de todas as regies do Imprio: viveu com os monges anacoretas nos ridos
desertos de Clcis do Egito, com os nobres da alta sociedade latina nas ruas hiperurbanizadas de
Roma, e agora residia com seus seguidores na mesma terra onde Cristo nascera, a Palestina, em
Belm, j havia oito anos. Sua obra era notria de Ocidente a Oriente, pelos falantes do latim, do
grego e do hebraico.
O ento presbtero de Hipona tinha muito a ganhar ao iniciar um dilogo com o monge de
Belm. A erudio e a reputao de Jernimo tornavam-no exatamente o homem que Agostinho
procurava1. No sabemos quando este tomou conhecimento de sua obra, mas foroso concluir que
a fama precedia tambm o nome de Jernimo, pois Agostinho j mostra familiaridade com os
escritos de seu correspondente na primeira carta que lhe envia, assim como no cansa de pedir que
ele envie seus livros e tradues2. De fato, o conhecimento enciclopdico do Estridonense, seu
domnio do grego e do hebraico, sua rapidez e clareza ao escrever faziam dele o estudioso mais
competente em matria escriturria de seu tempo3. Era a Jernimo que Agostinho deveria pedir
tradues latinas das obras dos patriarcas gregos: afinal, ningum entre os latinos conhecia
literatura grega (e hebraica) como ele, a quem fora confiada at a reviso das Escrituras4. Era a
Jernimo que Agostinho deveria levar qualquer dvida para ser solucionada, pois se Jernimo no
pudesse resolv-la, quem mais poderia, afinal? E era Jernimo, enfim, cujo parecer Agostinho devia
procurar e confrontar, caso buscasse projetar seu nome entre os autores da Igreja5.
)107
Sem entrar em problematizaes acerca da datao e da ordem de envio das cartas
Hennings e Frst j discutiram exaustivamente sobre isso6 a correspondncia de Jernimo com
Agostinho pode ser dividida em dois perodos, o primeiro de ca. 394/395 a 405 e o segundo de
412/415 a 419, um quarto de sculo intercalado por um silncio de dez anos. No primeiro perodo,
as cartas de Agostinho so mais frequentes, mas por uma margem pequena: seis cartas do bispo
(sete, se incluirmos uma carta perdida), contra cinco de Jernimo (seis, se incluirmos uma carta
perdida); no segundo, a situao se inverte: apenas uma carta suprstite de Agostinho (trs, se
incluirmos dois tratados filosficos que o bispo ento envia a Jernimo, guisa de cartas; e cinco,
se incluirmos mais duas cartas perdidas), contra cinco de Jernimo (nove, se incluirmos diversas
cartas perdidas). Essa contagem no inclui as cartas enviadas a outros correspondentes (uma de
Agostinho a Presdio no primeiro perodo; uma de Jernimo a Marcelino, e duas de Agostinho, uma
a Oceano e a outra a Optato, no segundo perodo). Nosso propsito analisar separadamente as
fases da correspondncia, ainda que tentemos seguir uma linha narrativa no texto. Nossa abordagem
aqui ser pela via da contextualizao das cartas, com foco nos assuntos que nelas se encerram, e
como estes se relacionam ao suporte epistolar utilizado pelos autores.
Todavia, necessrio, antes de entrarmos no texto em si, que conheamos um pouco da vida
e da obra de nossos correspondentes.

II. A. 2. Agostinho antes da correspondncia7


Muito do que sabemos da juventude de Agostinho vem de uma obra que ele mesmo
escreveu, as Confisses, e da Vida de Agostinho, livro este autorada por seu discpulo Possdio (fl.
sec. IV d. C.). Aurlio Agostinho vinha de uma famlia de recursos mdicos, algo que hoje
chamaramos de classe mdia baixa8 . Nascido no dia 13 de Novembro de 354 d. C., durante o
reinado de Constncio II, em uma viela de Tagaste, na Numdia (hoje Souk Ahras, na Arglia),
Aurlio era filho de Patrcio, um centurio romano aposentado, e Mnica, uma catlica fervorosa e
provavelmente nativa da regio. O Tagastense frequentou as melhores escolas da capital da
provncia, Cartago, almejando uma carreira como funcionrio pblico no magistrio. Competitivo
desde criana, Agostinho mostrava j jovem que era um homem ambicioso, tendo por objetivo
ascender socialmente, subir de vida9 . Este tipo de desejo condiz com a criao do autor e
sobretudo com o perodo em que ele viveu: Agostinho nasceu em uma poca de profunda crise
poltica e social, marcada por uma grande mobilidade que permitiu a ascenso das ordens militares
(das quais vinha seu pai), poca que assim trouxe mudanas lentas, mas duradouras na estrutura da

)108
civilizao greco-romana. Agostinho nos aparece como um baby boomer, para aplicar uma
expresso moderna, desses novos estratos sociais10.
Podemos afirmar que Aurlio Agostinho decididamente um homem de seu tempo, sendo
tambm o que pode parecer contraditrio um estranho em relao a seus pares. Esta nota,
que ficar clara durante a leitura das cartas, se explica tanto pela regio onde o autor nasceu, ainda
de minoria catlica na poca, quanto por suas caractersticas formativas e psicolgicas11. Seu
temperamento afetivo, cordial, efusivo e impaciente j pareceu a alguns fruto do clima clido da
Numdia, para usar um juzo da velha historiografia12 . Sua doutrina, ou melhor, seu projeto em
busca de uma unidade catlica-ortodoxa, est de acordo com outros autores cristos do perodo,
Ambrsio principalmente, sendo porm e em grande parte condicionada pelos afazeres pblicos e
pela posio poltica que o bispado em Hipona lhe confere; no caso de Agostinho, a busca de uma
unio para a Igreja est calcada na obra de Cipriano de Cartago, seu ascendente como homem forte
do cristianismo africano13.
Mas o estrangeirismo de Agostinho de fato em partes uma caracterstica que ele partilha
com outros cristos do perodo, por encontrar-se no limiar entre os valores pagos e os valores
catlicos. Trata-se de um produto da reao do autor frente aos pensadores da tradio. Os maiores
dolos de Agostinho sero, desde sua infncia, Ccero, o grande difusor do pensamento helenstico
entre os romanos (foi o Hortensius do Arpinate que propelou Agostinho para sua primeira
converso, para a filosofia, em 37314), e Virglio, o eminente poeta de Mntua, patrono da
literatura latina15. Na velhice, o autor apresentar sentimentos contraditrios em relao a eles, pois,
como seu correspondente Jernimo, Agostinho sabe que, em ltima instncia, Ccero e Virglio so
irreconciliveis com a palavra de Cristo16.Este trao muito tpico dos autores latinos cristos de seu
perodo.
Devemos compreender os sentimentos desencontrados de nosso autor segundo duas
vertentes: uma em relao ao mundo helenstico, como um autor cristo, sendo Agostinho um
outsider em um mundo que ainda no bem o seu, o que equivale a dizer, no caso dos textos que
estudaremos, que o autor trabalhava em um gnero de fortuna pag e que se sustentava nos valores
pagos da amicitia, como discutimos no captulo anterior; e outra em relao aos prprios cristos,
fator que o torna nico entre seus contemporneos a prpria ideia de Pecado Original, por
exemplo, no era amplamente aceita na poca do autor, sendo em partes uma inveno agostiniana
(o mesmo para interpretaes sui generis que Agostinho dar a passagens espinhosas da Escritura, e
para a tentativa que este autor fez, em sua correspondncia, de redimensionar alguns preceitos do
gnero epistolar, coisa que foi vista com maus olhos mesmo por seus pares cristos).
)109
Seja qual for a razo, psicolgica ou tica, uma sensao de estrangeirismo nunca deixa de
estar presente nas obras de Agostinho. Ainda assim, essa dimenso no consiste em uma carncia de
erudio, como alguns estudiosos quiseram acreditar17 . verdade que Agostinho um autodidata,
dado filosofia, que desconhecia o grego18 , mas, ainda que o conhecimento do Tagastense fosse
diminuto comparado a o de seu correspondente (talvez nenhum cristo na histria possa rivalizar
com Jernimo), Agostinho tinha domnio considervel da literatura romana e de alguns filsofos
gregos, certamente atravs de tradues latinas, os quais Plato, Aristteles, Plotino e Porfrio19 . A
imagem que alguns pesquisadores tiveram de Agostinho, a de que ele foi obrigado a utilizar to-
somente a inteligncia nua e crua contra o conhecimento enciclopdico de Jernimo, e a de que ele
era desprovido de erudio so falsas. Conclui-se com justia, porm, que seu conhecimento
limitado e de segunda mo deixou sua mente mais livre para abordar algumas questes da f
crist: de fato, a inteligncia de Agostinho no livresca como o de Jernimo, mas profundamente
inserida na observao do mundo e na experincia vivida20 .
Aurlio Agostinho mostrou desde cedo interesse para a filosofia, compreendida aqui em seu
sentido socrtico, isto , a busca pela vida racional. Como seus antecessores pagos, o futuro bispo
de Hipona era um homem preocupado com a busca pela verdade atravs da razo. Este seu grande
projeto de vida: Agostinho nunca deixar de busc-lo, mesmo aps abraar a f crist. Nos
Solilquios, essa srie de monlogos, ou melhor, de dilogos de Agostinho com a prpria razo,
publicados nos finais da dcada de 380, o Tagastense afirma que Deum et animam scire cupio; nihil
plus omnino, desejo conhecer Deus e a alma; nada alm disso, absolutamente21 . Podemos
assumir, dada a influncia do platonismo no pensamento agostiniano, que a alma indica aqui algo
como o verdadeiro eu: primeiramente na rea da condio humana e sua relao com a
divindade que reside o interesse de Agostinho.
importante compreender esse impasse para enxergarmos o autor, anos depois, como
algum em busca de uma verdade que no se encerrasse na pura crena, mas que no se entreguasse
tambm pura razo, negando assim a f. Para Agostinho, a razo insuficiente pois no tem
autoridade bastante para levar o homem a agir; j a f move montanhas, mas se perde caso no
estiver amparada pela razo. A fides no irreconcilivel com ratio, mas ampara-se nela22 . A unio
dessas categorias necessria para buscar a veritas, o conhecimento e a interpretao verdadeiros
das Escrituras, os quais so imprescindveis para lhes dar autoridade suficiente para serem lidas,
compreendidas corretamente e ministradas.
Para Agostinho, o conhecimento deve ser algo que surge da unio da ratio desvelada pelos
filsofos, com a fides, o mais importante instrumento de Deus dado aos cristos. Ainda que Plato e
)110
seus seguidores tenham conseguido intuir a verdade, eles no tinham os meios para encontr-la,
pois lhes faltava a f a assim a iluminao divina23 . O mtodo argumentativo de Agostinho reside
nesta busca dialtica da verdade atravs da f e da razo. Nisso, ele bastante distinto de Jernimo,
o qual baseia suas explicaes pela f e demonstrao, seja apoiado nas Escrituras, seja,
principalmente, naqueles autores que as estudaram, cuja autoridade, para ele, maior do que a do
raciocnio filosfico. Para Agostinho, pouco parece importar a autoridade dos maiores, ou seja, dos
intrpretes mais antigos e conceituados da tradio, como veremos na leitura das cartas: a
autoridade maior a Bblia, e s nela a verdade inconteste. preciso crer para entender, mas
preciso tambm entender para crer24. A f sem razo cega; a razo sem f vazia.
Como atingir a felicidade? O que a sabedoria? possvel conhecer a verdade? O que
significa ser um bom homem? Como podemos ser bons e agir corretamente? Um homem bom pode
mentir s vezes? Na realidade, embora o Tagastense volte-se cada vez mais para o pensamento
poltico em sua obra de maturidade, devido aos seus afazeres como bispo de Hipona, estes
problemas filosficos fundamentais permanecem fundamentais durante toda a vida do autor25. Se
certo que muitos de seus escritos so respostas a uma variedade de circunstncias pessoais,
teolgicas e polticas concernentes aos afazeres da Igreja26 , e que raramente encontramos neles a
especulao por si mesma, esta entretanto nunca deixa de estar presente, determinando o espao que
o autor concede a um problema em suas obras. Seu discurso, assim, no raro se torna prolixo e
fastidioso, at labirntico. Trata-se de um bom critrio de avaliao, para saber quando a questo
coloca problemas srios para Agostinho, atentar para os momentos em que ele abandona os
mecanismos retricos de disposio do texto para entregar-se ao prosaico, situao presente em
muitas de suas cartas.
O discursivo de Agostinho, aponta o professor Luciano Garcia Pinto, manifesta a
figura do cristo convertido, absolutamente convencido de sua mudana ideolgica, [e que] tenta
fundament-la de todas as formas possveis27 . Agostinho, notadamente um filsofo cristo, sempre
parte do pressuposto de que h uma maneira propriamente crist de ler, sentir e compreender o
mund, a qual fosse distinta de outras doutrinas, ainda que aparentada delas. Seu objetivo
cristianizar o mundo e o prprio pensamento e, assim todas as formas de conhecimento e gneros de
discurso (inclusive a epistolografia): veremos adiante que sua autoridade argumentativa sustenta-se
sobretudo em sua funo episcopal, fundamentalmente poltica, de modo que Agostinho endossa o
debate pblico e no est satisfeito com o saber por si s, preocupando-se sempre com maneiras
prticas de como ensinar (docere) seus fiis e instru-los na retido da f (recta fides)28 .

)111
Durante as primeiras dcadas de sua vida adulta, Agostinho foi um pensador carreirista
prximo do que hoje chamaramos de acadmico29. Ele havia galgado os degraus da fama
intelectual como um homem de escola, especialista em apresentar e explorar ideias. Agostinho
essencialmente um professor30. O Tagastense havia se tornado tutor de retrica no final de sua
adolescncia, primeiro em Tagaste, depois em Cartago31 , e atuou nesse cargo at sua converso, em
376. Nesse contexto, seu mtodo argumentativo tambm se deve em parte longa carreira que
Agostinho teve como rtor: seu raciocnio aquele do professor, daquele que ensina o orador
tribuncio a discursar, cheio de automatismos escolares, de vcios lingusticos, e de palavras e
mecanismos prprios da retrica.
Foi j em Tagaste que Agostinho teve seu primeiro contato filosfico com as Sagradas
Escrituras, atravs do maniquesmo, esse secto filosofante, mstico e asctico do cristianismo no
qual ele circulou de 373 a 382, dos dezenove aos vinte e um anos32 . Ainda que visto com maus
olhos em Roma j h quase um sculo33, o grupo dos maniqueus persistia na Numdia como uma
espcie de lngua franca da jovem intelligentsia crist africana, uma tentativa de aproximar os
ensinamentos cristos da filosofia pag. Quem liderava o maniquesmo africano era ento Fausto,
bispo de Milevis, contra quem Agostinho escrever uma apologia34.
O maniquesmo surgiu no sculo III com o profeta srio Mani (216-276), e misturava
elementos do zoroastrismo, do budismo e do gnosticismo. A tese maniqueia partia de uma
interpretao dualista e antittica das Escrituras, dividindo o mundo entre um Deus Bom,
representado pela luz que nos deu a alma, e um Deus Mal, representado pelas trevas que confinaram
a alma no corpo. Esses elementos trabalhavam em unio conflituosa desde o primrdio dos tempos.
Para Agostinho, particularmente interessante a teoria maniqueia do pecado. Diziam os maniqueus
que este se deve unicamente concupiscncia da carne, a qual pode ser expurgada pela mortificao
da mesma. Ainda importante para nossos estudos, si relevar que a pregao maniqueia residia em
uma leitura seletiva e particular do Novo Testamento, sendo que para eles o Velho Testamento era
completamente falacioso35. O contato com o maniquesmo foi certamente formativo e duradouro
para o pensamento agostiniano, pois o autor ser acusado diversas vezes de ser um maniqueu
durante a vida adulta36 e passar um bom tempo procurando se desvencilhar dos raciocnios
mentirosos desse secto at o fim de sua vida. No entanto, a desiluso de Agostinho para com as
insuficincias e idiossincracias da doutrina maniqueia se mostrar j em sua juventude37.
No ano de 383, Agostinho se mudou para Roma, onde lecionou retrica durante um tempo,
graas aos seus contatos com os intelectuais maniqueus da Numdia. No ano de 384, Agostinho
mudou-se da urbe para Milo, onde ficou at o ano de 387, dos vinte nove aos trinta e dois anos.
)112
Nesta cidade, ento capital do Imprio, Agostinho chefiou a ctedra de retrica sob indicao de
Quinto Aurlio Smaco (345 - 402), prefeito de Roma, correspondente amicssimo do imperador
Honrio e ltimo grande rtor pago do mundo antigo38. Igualmente, foi em Milo que o Tagastense
veio a conhecer a filosofia neoplatnica, verdadeira moda entre os intelectuais da poca39, por
influncia de um homem inchado da mais monstruosa vaidade40 (possivelmente o presbtero
Simpliciano, que viria a substituir Ambrsio no bispado de Milo; ou o gramtico Mrio Vitorino),
atravs de tradues latinas das obras de Plotino, filsofo que verdadeiramente despertou Agostinho
do sono dogmtico do maniquesmo. Nesta poca, Agostinho se lanou para o estudo mais
aprofundado da filosofia, flertando, durante um tempo, com o ceticismo, estudos que tambm foram
formativos para o pensamento do autor. Ainda que venha a abraar a f em sua vida adulta,
Agostinho permaneceu mesmo velho um filsofo fundamentalmente ctico, um neoacadmico
insatisfeito com qualquer explicao que no consiga se sustentar pela razo.
Nesse contexto, a primeira ruptura com o racionalismo maniqueu e neoplatnico em direo
ao cristianismo veio com Ambrsio de Milo41 , autor que Agostinho conheceu to logo havia se
mudado para esta cidade. Aurlio Ambrsio nasceu em Augusta Treverorum (atual Trier, na
Alemanha) em 340, filho do praefectus praetorio da Itlia. Ambrsio tornou-se bispo de Milo em
374, aos trinta e quatro anos, e l viria a morrer em 397. A presena deste autor divisora de guas
na vida de Agostinho42 , mesmo no pensamento cristo latino em geral43. Foi ele que, compenetrado
na leitura das Escrituras44, mostrou ao futuro bispo de Hipona que os textos bblicos eram dignos de
rivalizar com o mais contundente discurso de Ccero. Mas o pensamento do bispo de Milo est
longe de querer anular completamente a influncia da tradio pag. O prprio Ambrsio era um
homem versado em literatura grega. Sua viso de Deus era platnica em certos aspectos, other-
worldly nas palavras de Peter Brown45, isto , espiritual e algo mstica; Ambrsio tambm
circulava com facilidade nos grupos intelectuais neoplatnicos de sua poca46. Como qualquer outro
escritor latino, ele conhecia Ccero, tendo inclusive escrito uma obra influenciada por ele, o tratados
sobre os deveres dos ministrantes eclesisticos, em latim De officiis ministrorum47. A figura e obra
do bispo de Milo serviram, para Agostinho, como um modelo de que era possvel aliar Ccero e
Plato a Paulo: estes deveriam ser cristianizados e utilizados somente quando fossem
absolutamente necessrios. Agostinho chegara ao cristianismo atravs da filosofia, uma vez mais,
mas aps a revelao de Ambrsio. Foi por influncia dele e de Simpliciano que Agostinho
acabaria se convertendo finalmente ao catolicismo48.
Agostinho, de licena de seu cargo, retirou-se com seus amigos no ano de 386 para
Cassiciacum, na Itlia, para l fruir do mesmo otium que Ccero frua em Tsculo quando livre dos
)113
afazeres cvicos49. Seduziu-o ento a possibilidade de uma vida monstica e dedicada filosofia
crist50. Data dessa poca a primeira leva de escritos suprstites do autor, entre eles o Contra
Academicos, baseado no livro homnimo de Ccero, os Soliloquia e diversos tratados e dilogos: o
De magistro sobre a carreira do professor; o De beata vita sobre a possibilidade de atingir a
felicidade; o De ordine sobre as leis que regem o cosmo; o De musica sobre a arte da composio e
da versificao. O projeto do autor parece ter sido ento escrever sobre todos os campos do
conhecimento, produzindo uma srie de dilogos que formariam uma enciclopdia do pensamento
de sua poca51. Mas uma vida de contemplao no era o que o destino guardava para Agostinho.
Se ele buscava a quietude filosfica, sabia que ela no era, por si s, suficiente. Agostinho, que
tivera uma carreira brilhante em Cartago, Roma e Milo, e que j tinha, na poca de converso, uma
fama notvel como professor de retrica, nunca conseguiria deixar de lado, mesmo j cristianizado,
suas ambies polticas. possvel conciliar as duas coisas, a teoria com a prxis, afinal?
Encontramos aqui, de flagrante, Agostinho como um homem de impasses e contradies. O final da
dcada de 380 marcou para o autor um tempo de crise de valores e objetivos.
A soluo Agostinho encontrou novamente em Ambrsio. Foi tambm o bispo de Milo que
mostrou a Agostinho que a vida poltica no exclua uma vida dedicada busca pela verdade; pelo
contrrio. Assim, o Tagastense acabar por concluir que, embora seja certo que a verdade sustenta-
se na hermenutica, dependendo da razo, ela se realiza apenas, Ambrsio mostrou-lhe, na ao
pastoral e litrgica, no na lgica dos estoicos. Tanto em Ambrsio quanto em Agostinho, portanto,
a dimenso poltica e de ensino o docere adquirem propores importantes. Grande figura
poltica da Igreja em sua poca, Ambrsio de Milo correspondia-se frequentemente com os
imperadores Honrio e Valentiniano52 ; tomou parte contra Smaco na petio que este fez ao
imperador Valentiniano para retomar as celebraes e festivais tradicionais do paganismo53 ; no se
furtou a impedir a entrada de Teodsio na baslica de Milo aps o imperador ter chacinado um
grupo de camponeses gregos que protestavam em Tessalnica54 . Foi ele que, em seus avanos
polticos, infiltrando-se na burocracia imperial, lanou as vigas que sustentariam a estrutura poltica
da Igreja, e assim a administrao e a hierarquia eclesistica. Dizia Ambrsio que ns, bispos,
temos nossas maneiras de ascender ao Imprio55. Diferente do que pensavam os filsofos
neoplatnicos da poca de Agostinho, entregar-se ao mundo dos homens no significava
necessariamente manchar a razo com a impureza das coisas materiais. A fala que no leva ao
tambm v, porque o reino de Deus no consiste em palavras, mas em poder56. O futuro bispo
de Hipona trilhar os passos de seu maior, tomando-o como modelo de ao e pregao.

)114
Agostinho voltou a Milo no ano de 387, logo demitindo-se de seu cargo como rtor e
pondo-se finalmente a batizar por Ambrsio57 ; voltou a Tagaste aps ter permanecido alguns dias no
porto de Ostia, onde morreu sua me Monica; brevemente depois foi eleito presbtero em Hipona,
no ano de 391; apenas cinco anos se passaram at que se tornou bispo, ainda que j substitusse
Valrio nas missas desde o presbiterado58 . A ascenso de Agostinho na carreira eclesistica foi
meterica. Este fato se explica tanto pela fama do autor como professor de retrica quanto pelos
planos principiados em Cassiciacum por influncia de Ambrsio.O jovem presbtero de Hipona
compreendia perfeitamente a responsabilidade essencialmente poltica que a hierarquia eclesistica
lhe conferia. Agostinho, que outrora cogitara a vida reclusa de um filsofo neoplatnico, abandonou
de vez esse futuro perdido para abraar a vida ativa de um ministro cristo59 , um servus Dei
dotado de grande dignitas e encarregado de conduzir sua comunidade no bom caminho da f. Os
afazeres da Igreja Africana deviam estar acima de tudo60 . A partir de ento, no raro encontrar, nas
cartas de Agostinho, reclamaes acerca do constante fluxo de sua correspondncia e da sua falta de
tempo para estudar e escrever. A autoridade do presbtero estar, daqui em diante, em constante
demanda da mais variada sorte de gente, os frequentadores de suas missas: figures locais que
procuravam reconhecimento, polticos proeminentes, soldados, autores cristos, bispos influentes,
velhos amigos61.
No por isso que a busca pela verdade deixou de seduzi-lo, mas ela precisou ser assim
reformulada62 . A ratio aventada pelo autor deixa de ser uma questo apenas de conduta individual
para se tornar coletiva, de urgncia poltica. Presente nos dilogos de juventudade de Agostinho, a
imagem da ascenso estoica da ignorncia para o conhecimento desaparece, dando lugar quela
do iter, de uma progresso moral constante do cristo63 . O contato de Agostinho com a experincia
vivida mostrou que no era possvel atingir a sapientia, a sabedoria perfeita cobiada pelos
filsofos, na vida terrena, pois, o autor retorna ento ao mote ciceroniano, magna est consuetudinis
vis64.
Uma vez que no havia em nada perfeio, era preciso estabelecer a veritas do
conhecimento, e por consequncia das Escrituras, na medida em que estas tivessem auctoritas
suficiente para serem pregadas nas Igrejas, para que assim no fosse possvel desviar da retido da
f. No exagero dizer que Agostinho relacionar, na maioria das vezes, os sectos heterodoxos do
cristianismo a erros de traduo ou interpretao dos textos sagrados. Tampouco possvel, para
ele, que o cristianismo seja mais de um: a Bblia encerra uma nica leitura possvel, pois Deus
um, Cristo um, e assim a Verdade uma s. O papel dos ministros cristos, na tradio dos

)115
apstolos, encontrar essa leitura correta e ento explic-la aos cristos leigos, para quem as
Escrituras so mistrio65.
Retrica e filosofia e poltica. Nas obras desse perodo, assistimos emergncia do que se
tornar, ento, o pensamento maduro de Agostinho, mistura de dialtica com oratria, cujo fim,
independente do tom que se coloca, sempre a busca pela verdade. Ainda h o gosto pela abstrao
filosfica nos tratados sobre a verdadeira religio (De vera religione, sobre a utilidade da f (De
utilitate credendi), e sobre o livre arbtrio (De libero arbitrio), livros escritos entre 391 e 393 ,
mas estes no se sustentam mais nos corolrios da filosofia antiga, mas to somente na
interpretao das Escrituras66, embora no deixem de recorrer a partes do mtodo e a certas teses
prprios da filosofia. E mesmo suas primeiras obras de polmica, todas direcionadas ao
maniquesmo e de exegese aqui em especial as Enarrationes in Psalmos; uma interpretao
literal inacabada do Gnesis, conhecida como De Genesi ad litteram opus imperfectum; e a
exposio da carta do apstolo Paulo aos Glatas, em latim Expositio epistulae ad Galatas,
publicada ca. 393/394 pautar-se-o pela argumentao minuciosa e pelo mtodo dialtico em
busca de provas e testemunhos de uma soluo67 .
A reaproximao com a obra de Paulo tambm foi central para as mudanas que acontecem
no pensamento de Agostinho no perodo. Em junho de 394, o presbtero rezou uma srie de missas
em Cartago sobre a carta de Paulo aos Romanos68; Agostinho inclusive almejou escrever um livro
de comentrios a todas as cartas do apstolo, projeto que teve de abandonar devido aos afazeres da
igreja em Hipona69. No lugar do Paulo maniqueu e platnico que Agostinho encontrara em sua
juventude, ele vai enxergar nele agora uma tenso entre carne e esprito, impossvel de ser
resolvida na vida terrena; uma tenso inerente a todo ser humano. Paulo tambm vai se tornar um
modelo, essencialmente poltico e s vezes de Ambrsio, de como o ministro cristo deve agir70 .
Assim, a instruo do apstolo se tornar a pedra de toque da pregao agostiniana71 . Mas
Agostinho no era o nico cristo de sua poca interessado nas cartas do apstolo. Paulo de Tarso
era um autor em voga entre os jovens escritores cristos das dcadas finais do sculo IV, de modo
que estes podem ser referidos como pertencentes a uma gerao de So Paulo72. Alm dos
tratados do telogo alexandrino Orgenes, os quais serviram de base aos famosos comentrios de
Jernimo, sobreviveu um comentrio de Mrio Vitorino, pub. ca. 36373, e partes de obras autoradas
pelo leigo que a tradio conhece por Ambrosiastro (fl. sculo IV), pelo bispo donatista Ticnio
(370 - 390), e tambm por ningum menos que Ambrsio de Milo, em seu livro sobre a carta do
abenoado Paulo aos Glatas.

)116
O Agostinho que encontramos no incio da dcada de 390, portanto, um homem em plena
transformao, algum que revia seus conceitos e buscava aliar um estilo de vida pessoal monstico
com os fardos do presbiterado, e que apresentava crescente interesse na interpretao dos escritos
paulinos. Agostinho havia j deixado de ser propriamente o rtor que provavelmente substituiria
Smaco, abandonando esta pretenso na Milo da dcada de 380; nunca veio a se tornar o filsofo
cristo que se entregaria vida monstica em Tagaste; mas ainda no , entretanto, o futuro e
eminente bispo de Hipona, o representante poltico do catolicismo africano que viria a se tornar na
dcada de 400 em diante, somente aps vencer o donatismo e, posteriormente, o pelagianismo.
Agostinho nem havia finalizado as Confisses, a obra em que finalmente daria adeus ao seu
passado: elas seriam publicadas apenas em 401. Sua voz como pensador cristo e representante da
Igreja da Numdia comeava ento a se projetar74.

II. A. 3. Jernimo antes da correspondncia75


Ao passo que Agostinho era um homem dado contemplao da vida humana e busca da
verdade pela razo, esses motivos pouco significavam para Jernimo, autor este que tinha
verdadeira paixo pela filologia, pela literatura e pela pesquisa76 . Como apontou o latinista Harold
Hagendahl, se h um autor cristo que merece a alcunha de humanista avant la lettre, este
Jernimo77 . Seu esprito era livresco, similar ao de Petrarca e Erasmo, e dado aos fatos, no
especulao78.
Elaborar um retrato de Jernimo uma trefa rdua, pois dele no h nenhuma biografia
antiga consistente, tampouco um livro de Confisses. O que nos resta pinar as informaes
espalhadas a partir de obras suas e de outros autores79. Eusbio Jernimo nascera no ano de 33180 ,
ainda sob o imprio de Constantino, em Estrido (hoje Liubliana, na Eslovnia), uma cidade entre
as provncias da Pannia e Dalmcia. O Estridonense viera de uma famlia catlica de bons
recursos81, a qual provavelmente descendia de soldados Godos emigrados durante as campanhas
militares que marcavam aquela regio nos ltimos dois sculos; as referncias que o autor faz a seu
pai so escassas, mas podemos conjecturar que ele era provavelmente um comerciante82 (sua me
nunca mencionada em seus escritos). A formao de Jernimo foi superior de Agostinho, tendo
ele estudado os mesmos autores latinos em escolas romanas, as mais afamadas do Imprio, e sob a
tutela de um ilustre gramtico da poca, lio Donato83.
Os talentos, as caractersticas psicolgicas e a vida posterior de Jernimo so bastante
distintos dos de seu par africano. Ele nos aparece primeiramente como um homem dominado pela
sede de conhecimento, algo que os latinos chamariam de curiositas. Seu pendor para lnguas, sua
)117
facilidade para aprender e acumular informaes, e sua memria prodigiosa manifestaram-se desde
cedo. O autor parece ter lido j na juventude alguns filsofos antigos, como Plato e os estoicos,
sobretudo em tradues latinas (muito embora seu conhecimento fosse, na contramo do de
Agostinho, superficial e desinteressado)84.
Eusbio Jernimo foi um escritor infatigvel, talvez o maior estilista latino de sua poca85 .
Desde jovem, ele foi capaz de dominar diversos registros lingusticos e diferentes estilos: com
exceo de tratados filosficos, gnero em que nunca trabalhou Jernimo nunca chegou a
escrever um de re, ou seja, um tratado, o que torna sua obra muito distinta da obra de Agostinho86
, escreveu hagiografia, etimologia, comentrios, homilias, historiografia, uma antologia
biogrfica na tradio de Suetnio, polmicas, epitfios, cartas, sem falar nas tradues que
preparou para o latim dos patriarcas gregos e das Sagradas Escrituras; em todos esses o autor se
aplicou com zelo e excelncia. Assim, se Jernimo tcnico e direto em suas Crnicas, prosaico e
emotivo nas vitae, seu estilo pode se tornar adornado e at potico, no sentido em que utilizamos
este termo87. Autor que nunca perde de vista a elegncia, Jernimo um esteta, um arauto da
ortografia e boa gramtica, algum que est preparado para atacar qualquer adversrio cujo discurso
lhe parea mal escrito88. Ele sobretudo uma pessoa que tem horror ao erro e a crticas89 e que,
quando confrontado por qualquer problema, usa todos os artifcios disponveis para provar, sempre
com veemncia, sua hiptese. Jernimo argumenta no raro como um poltico, buscando deliberar
uma sentena: ele ameaa, reclama, eleva o tom, procura impressionar usando sua erudio, busca
suscitar emoes; mais que tudo, Jernimo apresenta uma facilidade incrvel para incorporar e
emular o estilo de outros escritores: ele essencialmente um satirista e um moralista, da mesma
veia de Juvenal e Prsio90 . Longe de modesto, o prprio autor tinha cincia de seu talento: dizia ele
que era filsofo, rtor, professor de gramtica, professor de lgica, falante do hebraico, do grego,
do latim, trilngue91.
No entanto, Jernimo costumava exagerar seu conhecimento e recursos, at inventar fontes
para blazonar sua erudio92 , trao bastante conhecido e nada laudatrio do autor. Ao contrrio do
que ele afirma, o Estridonense no poderia estar mais distante do filsofo e do rtor, se
atribumos essas qualidades a Agostinho. O gosto de Jernimo no pela dialtica, pela elaborao
onerosa da argumentao, mas sobretudo pela erudio, pelo literrio, isto , pelos efeitos retricos,
pelo esplendor da linguagem, pela abundncia de citaes, pelo precioso. Uma de suas atividades
mais interessantes, empresa na qual se aplicou durante toda a vida, foi a construo de uma
biblioteca que contemplasse toda a literatura do perodo, da qual tentou se livrar diversas vezes e
no conseguiu93.
)118
O mtodo argumentativo de Jernimo consiste na demonstrao a partir da autoridade das
Escrituras coadunada com a autoridade dos autores da tradio, atravs de exemplos e ilustraes,
no da especulao e do raciocnio como em Agostinho; sua posio frente aos tantos estudiosos da
Bblia, homens pelos quais ele tem grande admirao e certa ansiedade da influncia, para usar
um termo da teoria literria moderna94 beira nalgumas vezes o servilismo95. Quanto a seu
discursivo, como pontuou Pinto, Jernimo representa a vertente monstica, o cristo frugal, o leitor-
especialista das Escrituras que se dedica ao estudo exaustivo da Bblia, o amante das palavras par
excellence96. Ele passa longo tempo solitrio, rodeado de vrias edies, recenses e tradues dos
textos sagrados, a fim de tirar concluses a partir da comparao emprica entre eles. Como
tradutor, intrprete, comentador e fillogo, Jernimo encontra na Palavra divina a fundamentao
de sua autoridade, tentando harmonizar neste ofcio seu carter cristo como evangelizador. Se
Agostinho cita diversas passagens do Novo Testamento, aquela parte mais abstrata das Escrituras,
Jernimo prefere os livros profticos, cheios de fatos histricos e poesia97. Sua linguagem
combativa e acalorada, caracterizada por termos do jargo militar, endurecida contra os hereges e
avessa aos debates. Eusbio encara uma discusso como uma batalha corporal, no um debate a fim
de chegar a um acordo comum; dado polmica, alinhava-se a ideais beligerantes do missionarismo
cristo, como se o fiel, na posio de soldado, servisse a um Cristo como a um general que o lidera
na militia Christi, o servio militar a Cristo, ou guerra em nome de Cristo, contra os hereges e
infiis que ameaam a ortodoxia98. Ainda diferente de seu correspondente de Tagaste, que no raro
descreve Deus de maneira essencialmente platnica, como esprito ou amor, Jernimo parece
estar atrelado, ainda, a uma concepo de Deus que fundamentalmente o Senhor invejoso e
vingativo99 do Velho Testamento.
Jernimo, portanto, um autor de erudio, um leitor, e no um pensador como
Agostinho. Ele tambm marcado pela impacincia, pelo temperamento difcil, pela facilidade com
que se sente ofendido, ao passo que pela total devoo a seus amigos; de personalidade forte,
hipersensvel e vaidoso ao mesmo tempo que dotado de um corao imenso100 , Jernimo era uma
pessoa intensa. Diferente de seu par africano tambm nisto, o Estridonense viajou muito durante sua
vida a lugares que encompassam, geograficamente, quase todo o limite do Imprio Romano, do
Ocidente ao Oriente. As peregrinaes de Jernimo parecem ter sido impulsionadas tanto pela
curiosidade infatigvel de conhecer novos lugares quanto pela busca de grandes homens com quem
ele poderia aprender.
Jernimo viveu at os trinta e sete anos em Roma, quando mudou-se ento, no ano de 368,
para Trier, na Germnia, e posteriormente para Aquileia, na Glia Cisalpina, cidades em que parece
)119
ter se envolvido durante um tempo com o funcionalismo pblico101. Em 373, aos quarenta e dois
anos, Jernimo decidira abandonar sua pretenses polticas e abraar a vida crist. Voltou para
Estrido, onde ficou alguns meses, mas houve um turbilho repentino que o obrigou a sair de sua
cidade e ir at Roma, cidade em que ficou durante um breve perodo102.
Como muitos outros devotos de sua poca, o autor ento deixou a Itlia e viajou para o
Oriente, primeiro para Antiquia, cidade em que provavelmente aperfeioou seu conhecimento do
grego103. Aps isso, em 374, Jernimo mudou-se para o deserto de Clcis, no Egito, onde habitou
com os estilitas e estudou hebraico com rabinos judeus104 . Decepcionado com a rudeza e falta de
instruo dos monges em Clcis105 estes tambm consideravam o autor, que no deixou de lado
sua lngua afiada e suas idiossincracias, como um intruso106 , o Estridonense deixou sua
estncia em 376 e, nos prximos seis anos, viajou pelos centros culturais do Oriente. Morou em
Antiquia, onde aprofundou seus estudos da lngua grega sob a tutela de Apolinrio de Laodiceia107 ,
e ento Constantinopla, onde conheceu o famoso exegeta Gregrio de Nazianzo, assim como
provavelmente Gregrio de Nissa e Baslio de Cesareia108. nesse mesmo sexnio que
encontramos os primeiros escritos suprstites do autor109, entre os quais suas primeiras cartas e
obras, entre as quais a altercao entre um seguidor de Lcifer e um ortodoxo (em latim Altercario
Luciferiani et Orthodoxi), algumas hagiografias ou vidas de santos, e tradues para o latim de
textos de Orgenes, o grande exegeta grego de Alexandria, autor que o Estridonense provavelmente
conheceu atravs de Gregrio110 . Trata-se de uma ironia do destino que o telogo alexandrino, a
quem Jernimo costumava dar voz em seus escritos, viria posteriormente a ser, semelhante ao que
o maniquesmo foi a Agostinho, um motivo de vergonha para o monge em sua obra de velhice. Com
o tempo, Jernimo se tornar uma autoridade em Orgenes, cuja doutrina, apesar das sucessivas
polmicas e condenaes, nunca deixou de causar sentimentos desencontrados entre os cristos111.
No ano de 382, aos cinquenta e um anos, Jernimo foi ento chamado pelo papa Dmaso em
Roma para trabalhar como seu praefectus notariorum, uma espcie de lder dos secretrios112.
Impressionado com a erudio do Estridonense, Dmaso ento o encarregou de revisar os textos das
Sagradas Escrituras traduzidas pelo latim, os quais se encontravam espalhados em diversos
conjuntos de cdices que hoje se convencionam chamar de Vetus Latina, a verso velha113 . A
ideia de Dmaso ao tomar essa empresa no era, no entanto, reformista, se com esse adjetivo
pensamos nas motivaes que levaram Lutero a traduzir a Bblia para o alemo. O papa no
almejava popularizar os textos bblicos e assim produzir uma verso que fosse eminentemente
latina e distinta da Igreja Oriental, cujas missas eram fundamentadas no texto da Septuaginta ora,
sua leitura e interpretao caberia somente aos ministrantes eclesisticos, no a toda populao
)120
mas estabelecer uma traduo final, completa e autoritativa, assim suplantando o estado
fragmentrio da Vetus Latina e calando as diversas acusaes de falsidade, em especial dos judeus
que eram especialistas no idioma hebraico e que acusavam as verses gregas e latinas de serem
falsas114. O projeto de Dmaso, portanto, era dar fruto a uma Bblia latina que fosse a mais
confivel possvel em relao aos originais grego e hebraico; somente assim o cristianismo catlico-
ortodoxo encontraria fundamentos doutrinrios slidos em Roma.
A despeito das precaues polticas do papa Dmaso, o objetivo de Jernimo parece ter sido
muitas vezes suplantar a Septuaginta115. Eventualmente, o autor resolveu no s traduzir novamente
todo o Velho Testamento desde o princpio e no a partir da verso tradicional em grego, mas do
original hebraico, deciso que causou muita polmica116 como tambm verter novamente os
Evangelhos e demais textos do Novo Testamento do grego para o latim, contribuindo assim para
estabelecer a canonicidade dos textos bblicos117, cujo conjunto se convencionar a chamar
posterior, histrica e tradicionalmente de Vulgata, a verso popular118 . Este projeto, iniciado em
meados de 390, levou mais de uma dcada para ficar pronto, tendo durado at 405119 .
Todavia, Jernimo tornou-se famoso no s como um escritor e tradutor, mas tambm como
um moralista, no sentido em que usamos esse termo. Na dcada de 380, Jernimo era visto como
um campeo da virgindade120, aparecendo-nos nas vias de Roma como uma figura la Samuel
Johnson, o erudito ingls que causava tanto admirao quanto repugnncia nas ruas da Londres
setecentista devido a suas tiradas espirituosas e seu mau humor afamado. Igualmente, Jernimo era
muito bem e suspiciosamente relacionado com as matronas da alta sociedade Paula, Estquio,
Marcela, Blesila , mulheres que descendiam das famlias mais tradicionais de Roma, quais os
Frios, famlia cuja origem remontava aos tempos das Guerras contra Cartago; os laos que o autor
criou com a nobreza romana, sendo apadrinhado por ela, acabariam por lhe acompanhar a vida toda:
muitas de suas amigas o acompanhariam anos mais tarde a Belm121.
Nesse contexto, importante salientar que o nterim entre o inverno de 383 e o vero de 384
foi o nico perodo no qual Jernimo e Agostinho moraram na mesma cidade, mas certo que eles
no tiveram a oportunidade de se conhecerem pessoalmente122 , talvez por estarem em momentos
diferentes de suas vidas e, assim, frequentarem crculos intelectuais distintos. certo, porm, que
Jernimo conhecera Ambrsio e tivera uma relao conturbada com ele123 .
A segunda estada de Jernimo em Roma durou pouco, mas provavelmente foram os anos
mais felizes de sua vida124. Sua parceria com Dmaso era to forte que na cidade corriam rumores
que Jernimo seria o prximo papa. Muito embora, o Estridonense fez em Roma tantos amigos
quanto inimigos125 , estes que encontraram um articulador eficiente em Helvdio, j no ano de 383,
)121
contra quem o secretrio do papa escreveu uma apologia que lhe rendeu fama internacional de
polemista na mesma medida em que causou imenso mal-estar entre os romanos126. A gota final da
turbulenta estada de Jernimo em Roma foi a morte premeditada de Blesila, que se deu devido ao
ascetismo rigoroso que Jernimo pregava entre as mulheres de seu entorno. Um ms depois que
Blesila morreu, deu-se tambm a morte de Dmaso, evento que deixou Jernimo em um vcuo, pois
no havia mais quem o protegesse publicamente. Alm disso, foi o bispo Sircio, pontfice que no
tinha grande simpatia pelo Estridonense, que substituiu o papa127 . Assim, Jernimo, cuja reputao
estava bastante agravada, foi enfim expulso da urbe no ano de 386. Roma tornava-se, para ele, uma
Babilnia de amor e dia para a qual ele nunca mais voltaria128.
Jernimo ento partiu novamente, acompanhado de Paula, Marcela e Eustquio, para
Jerusalm e posteriormente Alexandria129 , cidade em que conheceu rio Ddimo130 , o brilhante
telogo cego, homem que admirava desde seus dias como secretrio papal, tendo traduzido um
tratado seu sobre o Esprito Santo (em latim Interpretatio liber Dydimi de Spiritu Sancto)131. No fim
de 386 ou incio de 387, Jernimo por fim se estabeleceu em um mosteiro em Belm, no qual
pretendia criar um centro de educao crist e uma escola de copistas semelhante quilo que viria a
ser a Vivarium de Cassiodoro no sculo V132 .
Os anos seguintes foram marcados por poucos acontecimentos relevantes na vida do autor.
O Jernimo que encontramos em Belm, j quase na terceira idade, prximo daquela figura
patriarcal que a tradio viria a nos legar: o velho cristo combalido com aura de santidade, o sbio
de barba filosfica mergulhado nos estudos das Escrituras. Jernimo, nessa poca, dedicava-se
sobretudo traduo tanto das Escrituras quanto de sermes de Orgenes. Assistimos ento os
primeiros passos de Jernimo como comentarista e intrprete: escrevia tambm comentrios s
cartas do apstolo Paulo, a saber, quelas aos Glatas, a Filemo, aos Efsios e a Tito, todos livros
publicados ca. 386-390133 . Seguiram-se uma interpretao anotada do livro de J134 , comentrios
aos profetas do Velho Testamento, e mais vitae de santos; enquanto editava estes livros, o
Estridonense tambm preparava o De viris illustribus, um compndio de breves biografias dos
cristos mais famosos da histria, comeando do apstolo Pedro e terminando no prprio Jernimo.
Este livro, que ser publicado ca. 393-395, era indito na literatura eclesistica latina135. A pena do
monge de Belm ainda infatigvel, ainda que cessem, por algum tempo, as polmicas. Nesse
sentido, Jernimo deve ter ficado decepcionado com a recepo, profundamente negativa, por parte
de Roma e at de seus amigos, de sua apologia contra Joviniano, publicada ca. 393/394136 . O
Estridonense parece ento querer se se recolher ao silncio do mosteiro, afastando-se das
atribulaes mundanas que dominavam a Igreja em Roma e s quais ele havia assistido durante
)122
quase uma dcada. O autor apresenta-se, nessa poca, como algum fatigado, um soldado que j
desistiu de batalhar e quer agora fruir do descanso merecido. A imagem capciosa na realidade,
Jernimo chefiava o mosteiro mais movimentado de Belm137 mas no deixa de nos jogar uma
luz psicolgica na maneira como Estridonense queria ser visto e deixar seu legado s posteridade.
No entanto, questes polticas de Belm, polmicas que se seguiriam contra Rufino,
antigo amigo do autor, e contra Joo de Jerusalm e mesmo os problemas colocados por
Agostinho em suas cartas vo impelir Jernimo a retomar a verve polmica e, como a Musa fez
com Horcio em seu quatro livro das Odes, nunca lhe daro o stipendium (isto , a licena
militar) que ele tanto desejava, movendo-o sempre para as guerras138. Mesmo na velhice, o mpeto
e a violncia do estilo de Jernimo se mostraro invictos, permanecendo robustos e firmes mesmo
em meio a tantos e tamanhos infortnios pessoais que o abatero nos ltimos anos.
Mas estamos adiantando os eventos. No ano de 394, frustrado com sua expulso de Roma,
possvel que Jernimo pensasse que sua importncia como formador de opinio havia chegado ao
fim, e que devia ento se dedicar unicamente a comentar as Escrituras139. A posio do autor era
oposta quela de Agostinho, que iniciava uma carreira brilhante. Assim o Estridonense, de sade
cada vez mais frgil, j quase cego140, entregava-se ao monasticismo e dava continuidade a seus
estudos, afamados no mundo todo.

II. B. Primeiro perodo da correspondncia, ca. 394/395-405


II. B. 1. Alpio, o alter ego
O primeiro contato que Agostinho teve com Jernimo foi por intermdio de um amigo seu,
Alpio (ca. 354 - 428/430), ento presbtero de Tagaste. Um companheiro de infncia, Alpio se
tornou uma espcie de empresrio ou agente publicitrio do presbtero de Hipona, tornando-se
o principal responsvel pela difuso dos escritos de Agostinho entre seus pares cristos141.
mediante Alpio que o Tagastense buscar construir sua rede de contatos com as personalidades
eminentes do cristianismo142, entre os quais Paulino de Nola (ca. 354 - 431)143, nobre de Roma, e
Aurlio (? - 390)144, o bispo de Cartago recm-eleito em 391.
Alpio, aps viajar para a Palestina em 393, onde apresentou Agostinho oralmente e
talvez tambm por escrito, pois o Tagastense poderia ter assinado cartas de seu amigo como o
mesmo alude futuramente145 para Jernimo, retornou para a Numdia no ano seguinte e
encontrou Agostinho em Hipona. L, ele lhe deu notcias do monge de Belm, de maneira to
vvida que foi possvel ver a aparncia fsica do Estridonense por suas palavras e olhos146.

)123
A primeira missiva que Agostinho envia a Jernimo data do ano de 394 (ou 395), e funciona
como uma dupla carta de mediao na qual o autor manipula habilmente diversos tpicos
tradicionais da epistolografia. O primeiro deles, um de grande fortuna, o do alter ego, em
portugus um outro eu147 . Ora, Agostinho ainda no havia introduzido a si mesmo, e de mo
prpria, ao monge de Belm, tampouco o conhecia pessoalmente; tratava-se de um sinal de respeito
introduzir-se antes de iniciar qualquer dilogo epistolar, enviando uma carta curta e programtica,
ou, nas palavras do autor, cerimoniosa (epistula solemnis)148 . O que Agostinho faz, no entanto,
afirmar que ele pode prescindir desta conveno por duas razes: Alpio, sendo seu alter ego no s
no esprito como no corpo, j havia introduzido Agostinho ao ter se introduzido a Jernimo;
igualmente, Agostinho est unido a Jernimo na comunho do Esprito Santo, fundamentalmente
crist, uma unio to fortalecida pela leitura dos estudos do Estridonense (que revelam a alma de
Jernimo, um pensamento tipicamente agostiniano) que ambos j foram introduzidos um ao outro
em Cristo. Falta apenas uma pequena parte de Jernimo a Agostinho: sua presena fsica, e esta
se fez presente atravs do relato de Alpio e dos escritos que o presbtero leu de seu
correspondente149. Sob tais pretextos, Agostinho afirma que Jernimo j o ama, ou seja, que eles j
tm uma relao prvia de amizade. Mas o presbtero de Hipona faz mais: alm de prescindir de
uma introduo, resolve tanto introduzir uma outra pessoa, o mensageiro Profuturo, algo que
poderia ser visto como sinal de ousadia, quanto anexar de prontido uma crtica obra de Jernimo.
Assim, mencionar a visita de Alpio a Jernimo vale mais como um pretexto, pois os assuntos que
se encerram nesta primeira carta, Aug. Ep. 28, so suficientementes problemticos para que
Agostinho no se contente com o costume das cartas cerimoniosas.
Acreditamos que aqui se encontra a chave para compreendermos algumas das motivaes de
Agostinho. A abertura de um dilogo epistolar com Jernimo no se resume a uma correspondncia
protocolar e convencional. O esprito do presbtero de Hipona aqui movido pela mesma razo que
ocupa o restante de sua obra: a busca da veritas, a qual se traduzir agora na procura da
interpretao correta das Sagradas Escrituras. No caso do primeiro perodo de correspondncia,
poderemos isolar ento dois temas principais: o problema de como se deve interpretar corretamente
as passagens bblicas, o qual se divide em dois grandes assuntos, isto , a traduo das Escrituras
para o latim e a discusso da leitura correta de um episdio da carta de Paulo aos Glatas conhecida
como incidente em Antiquia, a saber, Gal 2:11-14, passagem em que Paulo repreende Pedro por
ter deixado de comer entre os gregos pagos quando algumas autoridades judaicas chegaram no
local150; e, mais importante para nossos estudos, uma discusso implcita do significado da
amizade crist e consequentemente dos objetivos de uma troca epistolar.
)124
II. B. 2. O incidente em Antiquia151
A passagem de Gal 2:11-14 havia ocasionado querelas desde os primrdios da tradio
literria crist, e era o tipo de problema insolvel da teologia tetracentista152 com que um jovem e
ambicioso cristo como Agostinho poderia construir sua reputao153 . Embora no diga em suas
cartas a Jernimo, o presbtero de Hipona havia recentemente trabalhado a passagem em seu
comentrio aos Glatas, tendo provavelmente estudado o comentrio que o Estridonense publicara
h quase uma dcada. A maneira mais tradicional de explicar a passagem, leitura proposta por
Orgenes e endossada pelos autores gregos posteriores (entre os quais se encontrava Jernimo154 ),
era simplesmente dispensar o evento como se ele no passasse de uma encenao ou simulao
em grego; simulatio em latim que o monge de Belm acabou por classificar como
poltica dispensoria, termo correlato de dispensatio, que a traduo latina para o grego
155 . Segundo esta interpretao, o incidente em Antiquia no passara de um teatro a fim
de Paulo corrigir em Pedro aquilo que queria corrigiar em outros, e de os apstolos assim
mostrarem a boa conduta de um cristo e sustentarem a boa administrao das igrejas: Pedro havia
simulado se retratar em temor aos judeus, a fim de que no causasse um escndalo por estar
comendo entre os gentios156 . Paulo, por sua vez, estaria assim repreendendo os crentes que Pedro
simulava, isto , aqueles que pressupunham que a salvao em Cristo ainda dependia da obedincia
s autoridades do judasmo e observao dos sacramentos da Lei.
Tanto a atitude simulatria de Pedro quanto a atitude de repreenso por parte de Paulo
deviam ser interpretadas como frutos da honestidade e da prudncia, no da mentira157 . De acordo
com a leitura tradicional da passagem, no era possvel, em primeiro lugar, que Pedro ou Paulo
tivessem observado verdadeiramente as cerimnias de uma Lei que j estava obsoleta e deveria ser
abandonada de imediato aps o nascimento de Cristo158; segundo, no era tambm possvel que
Paulo tivesse censurado em Pedro uma ao da qual ele mesmo era culpado: ora, o apstolo
tambm simulava os sacramentos dos judeus para que pudesse convert-los ao cristianismo159 .
Admitir qualquer outra soluo seria tolerar o judasmo, ou tombar em alguma heresia judaizante160 ,
ou no mnimo pressupor uma inconsistncia na pregao paulina, dando vazo a uma contenda
entre os apstolos. Esta concluso era indesejvel no s por razes teolgicas poderia pressupor
que havia uma dissonncia entre as opinies de Pedro e Paulo, fato que colocaria em perigo a
unidade doutrinria do Evangelho; ora, como a Verdade uma s, a instruo apostlica s pode ser
uma161 como tambm por razes histricas tratava-se de uma crtica feita pelo filsofo pago
Porfrio de Tiro (ca. 234 - ca. 302/305), que caracterizara o evento como uma briga infantil (em
latim puerile certamen) entre Pedro e Paulo162. A posio de Porfrio era grave e apontava para uma
)125
questo de Gal 2:11-14 que ser cara correspondncia entre nossos autores, isto , o problema da
legitimidade de uma correo de uma pessoa mais jovem a algum que mais velho. A relao
entre o iuvenis Paulo e o senex Pedro vai posteriormente servir como reflexo do dilogo entre
Agostinho e Jernimo.
Na contramo de Jernimo, o presbtero de Hipona discorda completamente da teoria da
simulatio, e, apoiado em Ambrsio de Milo e Cipriano de Cartago163, argumenta que qualquer
interpretao que d vazo a uma simulao algo que ele chamar de mentira devida,
officiosum mendacium em latim164 est errada, nociva, e deve ser imediatamente descartada165 .
Defender uma mentira nas Escrituras colocaria deriva no s a autoridade e a instruo dos
apstolos (compreendidos como um conjunto, no como pessoas individuais histricas), mas
tambm todo o fundamento moral e doutrinrio da Igreja166 . Agostinho vai ento propor outra
leitura, uma que leve em conta as relevncias histricas do incidente em Antiquia: o problema no
estava no que Pedro fez ou deixou de fazer; foi a maneira como ele agiu que certamente estava
errada167. Pedro fez o mesmo que mentir, pois levou os pagos a crerem que a salvao ainda
dependia do respeito aos sacramentos da Lei. Em outras palavras, no foi por supostamente
observar as tradies de seus pais, portanto, que Paulo repreendeu Pedro: tivesse Pedro agido assim,
ele no teria feito nada de maneira mentirosa, simulada, ou incongruente; ora, os sacramentos,
embora j fossem suprfluos, no eram nocivos, eram habituais, e poderiam ser ministrados para os
judeus e entre os judeus (em latim, usa-se o verbo iudaizare, agir como os judeus), como fazia
Paulo. O apstolo repreendeu Pedro verdadeiramente, no de maneira simulada, como
colocara Orgenes e Jernimo pois este ento levou os pagos a lhe imitar, e por consequncia
imitar os judeus, a quem ele ento imitava168 .
A interpretao agostiniana eventualmente se tornar a soluo aceita por toda a Igreja,
Jernimo incluso169; vamos analis-la nos tpicos seguintes, pois a discusso carece de
contextualizao: ela est intrinsecamente ligada aos interesses episcopais do autor, que ento
enfrentava o cisma donatista na frica. Igualmente, a leitura que Agostinho prope para Gal
2:11-14 se sustenta em uma relao ambgua com a tradio exegtica e coloca em jogo a prpria
noo de auctoritas dos estudiosos da Bblia, um ponto que os autores desenvolvero ao longo de
sua correspondncia. Por enquanto, interessa-nos a essncia polmica da questo que o presbtero
de Hipona coloca em Aug. Ep. 28, e a maneira com que o autor resolveu abord-la: tratava-se
primeiro de uma inovao encerrar um assunto problemtico dessa estirpe em um dilogo epistolar;
mais, o desejo do jovem Agostinho de repreender sem mediaes um erro de Jernimo, um autor
velho e de reputao slida, violava de maneira escancarada os preceitos da epistolografia, e por
)126
conseguinte as leis da amizade, como discutimos na concluso do captulo anterior. a partir desse
problema que poderemos compreender a rixa que surgir entre os autores.
A primeira carta de Agostinho no logrou chegar em Belm. Seu mensageiro, Profuturo, foi
chamado para ser bispo em Cirta e morreu logo em seguida170 . Trs anos se passaram at que o
bispo de Hipona Agostinho fora eleito para o bispado em 396, em ocasio da morte de Valrio
resolveu escrever outra carta a Jernimo. A demora se explica: sendo um homem pblico,
Agostinho no tinha mais tempo livre para se dedicar integralmente aos estudos171 . Nesse meio-
tempo, o Tagastense enviou uma salutatio, talvez em uma carta de Alpio, ao monge de Belm,
recebendo uma carta inteira de Jernimo em troca; ambos os textos, que provavelmente tratavam de
Orgenes, esto perdidos172.
A prxima carta suprstite da correspondncia, Aug. Ep. 40, enviada ca. 397, em grande
parte uma verso retrabalhada de Aug. Ep. 28; nela Agostinho adicionou breves discusses sobre o
De viris illustribus de Jernimo, livro que havia recebido sob o nome de epitfio, assim como
reflexes sobre os erros de Orgenes173 . A maior parte dessa carta compreende o mesmo problema
de Gal 2:11-14, com a diferena de Aug. Ep. 40 ser mais judiciosa que sua gmea: Agostinho chega
agora a pedir que Jernimo entoe uma palindia, o mesmo canto de retratao que o poeta lrico
Estescoro (ca. 640-555 a. C.) fora obrigado a cantar por ter ofendido Helena de Troia, para que
assim abra seus olhos luz do seu corao174 . O bispo de Hipona tambm efetua uma acusao
implcita de que Jernimo apresenta uma obedincia quase pag aos maiores da tradio crist,
dizendo que a verdade dos cristos incomparavelmente mais bela que a Helena dos gregos175!
Eis uma recorrente na correspondncia de Agostinho, e no s naquela travada com Jernimo176 .
Assim, embora escritas de maneira cordial e fossem um efusivas em elogios e insistentes em
pedidos para uma correspondncia regular, as duas primeiras cartas de Agostinho continham
argumentos firmes e graves, os quais Jernimo no leria com prazer. A mensagem de Agostinho
clara: ao admitir que Paulo, ou qualquer outro escritor dos Livros Divinos, pudesse ter simulado
qualquer coisa que o seja, isto , ao concluir que Pedro ou Paulo tivesse mentido uma vez sequer,
Jernimo, tendo a viso obnubilada por algum tipo de dissimulao (dissimulatio em latim),
defendeu uma soluo hertica, ofendendo a palavra de Cristo e devendo assim retratar-se. O
presbtero justifica: sendo um cristo, ele tem o dever de repreender os desvios de seus pares. Certo,
Agostinho suaviza sua admonio ao exigir que Jernimo tambm corrija seus erros: afinal, se ele
estiver errado, seu erro favorece a verdade se para Jernimo correto que a verdade possa
favorecer a mentira177.

)127
A segunda carta que Agostinho escreveu a Jernimo tambm no teve sorte: seu mensageiro,
Paulo viajou para a Itlia e deixou que o texto circulasse publicamente em Roma como um liber
o suporte tradicional de uma polmica , deixando de levar a missiva at Jernimo178 . possvel
conjecturar se este Paulo, provavelmente um africano, no era na realidade um espio donatista que
almejava manchar a reputao de Agostinho. Seja qual tenha sido a razo do infortnio, a carta Aug.
Ep. 40 seria encontrada posteriormente em uma ilha do Adritico na qual vivia Bonoso, amigo
de infncia de Jernimo179 por Sisnio, um mensageiro do Estridonense, e s chegaria em Belm
cinco anos depois de ter sido enviada180 .
J era o ano de 402, e uma resposta de Jernimo demorava a chegar. Agostinho
provavelmente pensava que seu correspondente o havia ignorado, sem saber do azar da carta. O
bispo ento escreveu uma outra carta a Jernimo, Aug. Ep. 67, na qual se desculpava de antemo
pelo tom polmico de suas cartas anteriores e dava satisfaes de no ter enviado um liber a Roma:
sua repreenso devia ser tomada de maneira afetiva, como um mecanismo legtimo de um debate
entre amigos181. No entanto, sente-se, nas desculpas de Agostinho, mais um ar de precauo que de
arrependimento. verdade que o autor tentar posteriormente imputar o mal-entendido do liber a
pessoas de m-f que querem incitar inimizades entre ns182 , mas Agostinho parece exonerar-se
de uma culpa que ele discordava de ser sua. O Tagastense conhecia bem o temperamento de
Jernimo, e parece ter utilizado de sua temperana para incit-lo183 , havendo indcios de que o
Tagastense estava provocando seu correspondente184. Ao repreender o monge, e ao manipular os
tpicos do gnero epistolar o alter ego, a profuso de elogios e afagos, a insistncia no dilogo
para que o Estridonense se sentisse na obrigao de lhe responder, o autor estava chamando-o
para um confronto tico e esttico acerca das Sagradas Escrituras e do que consiste a conduta
correta do cristo. Agostinho quer discutir com Jernimo de igual para igual.
Nesse sentido, o bispo de Hipona se mostra obstinado no problema de Gal 2:11-14, e vai
insistir durante uma dcada para que monge de Belm o responda sobre o assunto. Esta questo
volta de maneira indireta at na quarta carta, Aug. Ep. 71, que Agostinho envia a Jernimo por meio
do mensageiro Cipriano no ano de 403, mensagem em que se abordavam outros temas a princpio
distintos daquele (nesta carta, Agostinho faz uma crtica traduo do monge para o livro do
profeta Jonas). A insistncia em solucionar o problema do incidente em Antiquia passa do texto
para o plano material: com Aug. Ep. 71, o Tagastense envia novamente Aug. Ep. 28 e 40, pois
acreditava que Jernimo ainda no as havia recebido185; outrossim, nenhuma carta do Estridonense
havia chegado em Hipona at ento. Agostinho s viria a receber cartas de Jernimo nos meses
seguintes.
)128
Devemos, antes de continuarmos o histrico da correspondncia, voltarmos
contextualizao biogrfica e definir a posio de ambos os autores na ltima dcada, para assim
compreendermos a teimosia de Agostinho em retornar ao mesmo problema de um lado, e de outro a
discrio e m vontade de Jernimo quando este resolver responder suas cartas.

II. B. 3. O problema da mentira contra os maniqueus186


A passagem de Gal 2:11-14, em especial o problema do officiosum mendacium, foi
amplamente debatido por Agostinho na dcada de 390, e no apenas nas cartas que ele trocou com
Jernimo. O incidente em Antiquia aparece sobretudo em um longo sermo, ministrado
originalmente em 397, descoberto por Franois Dolbeau na dcada de 80187, e cuja argumentao
muito parecida com a de Aug. Ep. 28 e 40.
Segundo Agostinho, a interpretao correta de Gal 2:11-14 impunha um duplo problema.
Primeiro, a questo da mentira. Aqui, devemos procurar o teor real da fala e da conduta de Paulo, de
modo que uma no seja incongruente com a outra (ora, o cristo no distingue palavra de
ao). Caso afirmemos que Paulo falou ou agiu de maneira simulada, isto , que de alguma maneira
o apstolo mentiu ao repreender Pedro, o que nos impediria de afirmar que ele mentiu em todas as
suas cartas? Pior, o que nos impediria de afirmar que os apstolos no teriam mentido mesmo ao
afirmarem que Cristo ressuscitou, de modo que nossa f seria v188 ? Ser que Jernimo no
enxergava que admitir a existncia de uma mentira na Bblia, seja ela devida ou no, e por mais
inofensiva que ela seja, o mesmo que deixar as Escrituras deriva de uma completa ambiguidade,
afastando-lhes da autoridade da verdade mais pura189? Para o bispo de Hipona, no se trata de
questionar se um homem bom pode mentir por um bom motivo: uma vez admitida uma nica
mentira nas Escrituras, toda a veritas crist estaria em perigo190. Mas o problema da mentira no
to abstrato ou teolgico quanto possa parecer. Agostinho tinha um inimigo real ao insistir na
impossibilidade de interpretar Gal 2:11-14 como uma simulatio: os maniqueus.
Talvez por ser um assunto que se encontrava no centro das filosofias ctica e platnica, das
quais o autor procurava se afastar aps ter tomado o fardo episcopal, a mentira consistia em um
assunto que preocupou o bispo em todas as suas obras desde sua juventude. Entre os livros que
Agostinho escreveu no incio da dcada de 390, est maiormente um tratado dedicado integralmente
mentira, o De mendacio, publicado ca. 393/394; a questo tambm aparece amide na apologia
contra o maniqueu Fausto (Contra Faustum Manichaeum), publicado ca. 398/399, e em um tratado
sobre o monacato e as tarefas dos monges (De opere monachorum), publicado ca. 399, todas as
quais so obras de polmica maniqueia191 .
)129
Os maniqueus, afirmando que o Velho Testamento era permeado de mentiras introduzidas
por corruptores dos cdices gregos e latinos, procuravam defender uma interpretao bastante
particular e mstica do Novo Testamento, centrada quase que exclusivamente no Evangelho de
Joo e nas cartas de Paulo. Seguidores deste secto, na contramo do cristianismo catlico-ortodoxo,
no acreditavam que havia uma unidade pr-estabelecida entre os dois livros. Para Agostinho, esta
posio poderia ser desmascarada atravs da crtica textual, mas o mesmo no seria possvel caso se
fosse admitida a existncia de mentiras no prprio texto sagrado produzido aps a vinda de Cristo.
Assim, o bispo tem responsabilidades prticas em mente, sabendo que os maniqueus teriam uma
grande oportunidade de crescerem caso se afirme que so os prprios apstolos que falsearam seus
textos, e no outros homens192 , abrindo caminho para a dilapidao da autoridade catlica e da
retido da f crist (leia-se, da ortodoxia). Agostinho define o problema como uma tautologia: no
se pode admitir que os textos sagrados sejam mentirosos, pelo simples fator de no ser devido que
eles favoream a mentira193.
A preocupao de Agostinho com a mentira, portanto, concerne sobretudo ao bem-estar da
Igreja como instituio unida, no que ele busca minar a influncia dos maniqueus. Estabelecer uma
leitura unvoca da passagem no diz respeito apenas a um problema abstrato. Uma soluo final,
que seja a veritas e que no admita nenhum tipo de mentiras ou simulaes, necessria para
desmontar os fundamentos da doutrina maniqueia194 . Recorremos aqui a uma parfrase de
Agostinho: o ministrio da Sacristia crist deve ser cargo apenas de um homem tal que saiba
interpretar corretamente os livros divinos, ou deixe de lado aquilo que no entende, em vez de
tentar explicar como fazem os discpulos de Mani qualquer passagem como mentira, mesmo
que, na compaixo por Pedro, seja isso que diga a voz de seu corao195. Uma leitura dessas levaria
irremediavelmente a uma concepo mentirosa, isto , anti-catlica por definio, das Escrituras,
e assim a uma concepo deturpada do que ser cristo.

II. B. 4. O problema da Lei contra os donatistas196


Estabelecida a verdade da palavra de Paulo197, resta uma segunda parte do problema. Ainda
falta esclarecer a aparente incongruncia de Paulo em celebrar os ritos judaicos de maneira verdica,
e em ter censurado de forma aparentemente paradoxal em Pedro algo que ele supostamente fazia.
Para solucionar essa contradio, Agostinho prope uma distino diacrnica que se sustenta na
noo de liberdade apostlica (libertas apostolica)198 . Ao defender a posio de Paulo, o bispo de
Hipona se esfora para mostrar que, nos tempos dos apstolos, os sacramentos deveriam ser
respeitados na condio de tradies ancestrais (paternae traditiones), e no condenados como
)130
detestveis, como era o caso dos costumes praticados entre os gentios199 . Ora, tendo sido a Lei um
presente dado pelo prprio Deus ao povo escolhido, em prenncio da vida de Cristo, observ-la foi
legtimo em tempos idos e ainda era ento legtimo entre os judeus em tempos apostlicos, contanto
que no se pensasse que a salvao ainda dependia dela; tanto Paulo quanto Pedro eram judeus de
nascena. Entre os seguidores do judasmo que eram recrutados pelos apstolos, os sacramentos da
Lei deveriam ser abolidos lenta e gradualmente, e no instantaneamente, como os rituais pagos. O
erro de Pedro, como afirmamos no incio deste tpico, estava em levar os gentios a crerem que a
salvao ainda dependia da Lei, e que assim deviam se converter ao judasmo; foi isso que Paulo
viu Pedro fazer, e foi por isso que ele o repreendeu.
Logo, a conduta de Paulo nada tinha a ver com a ao de Pedro em Antiquia: o apstolo
observava, de modo verdico e legtimo, os ritos dos judeus somente para e entre os judeus, devido
pura fora do hbito200 ; os sacramentos, j esvaziados de seu potencial salvfico, lhe eram
indiferentes e teis para converter os judeus para o cristianismo201 . O erro de Pedro estava na f, no
modo, e no na prpria ao, no fato202 . Em concluso, como s podia ser de maneira verdica que
Paulo falou, s podia ser de maneira verdica que ele tambm agia; fazer uma coisa ou outra de
maneira simulada seria uma infantilidade, como Porfrio havia enxergado, e uma heresia. Paulo
assim agia sempre de acordo com o sentimento de algum que se compadece (compatientis
affectus) do erro dos judeus, padecendo da mesma m conduta deles, e no de acordo com a
simulao de uma mentira (simulatio fallaciae), ou segundo a astcia de um mentiroso (mentientis
astus), como Jernimo parecia acreditar203 .
No entanto, Agostinho insiste que sua interpretao no implica que os cristos podem,
ainda hoje, obedecer quela srie de penitncias e rigores prprios dos judeus para atingir a
salvao, seja de maneira verdica ou em simulao. De acordo com Agostinho, se Paulo era,
naquele tempo, um observador fiel que agia em respeito verdico Lei, atuando como um agente
funerrio de sua sepultao, hoje um homem que agisse como ele seria um mpio violador de uma
sepultura, como o caso dos sectos cristos cujo rigorismo lembra aquele dos fariseus, os judeus
ultra-ortodoxos devotos da Tor204 . Ora, a salvao competncia unicamente da Graa de Cristo,
um dom livre que depende da f, no das aes auto-corretivas e auto-punitivas do prprio
homem205. Aqui, o bispo de Hipona tem outro inimigo ao buscar as distines histricas do
significado de estar sob a Lei206 : Agostinho procura derrubar, com sua interpretao de Gal
2:11-14 e sua nfase na diacrocia da Lei, o pensamento de extremismo asctico e exclusivismo de
alguns sectos cristos do mundo romano, em especfico o donatismo207 .

)131
O donatismo foi um secto cristo que surgiu no norte da frica durante o sculo IV. que, por
razes histricas208, era tambm radicalmente avesso institucionalizao da Igreja catlica no seio
do Imprio. O movimento tinha um esprito reformista e austero de liberdade, semelhante quele do
protestantismo. Essa posio de resistncia era antiga e j havia causado mal-estar desde a poca do
imperador Constantino (ca. 272 - 337), o qual buscou, em vo, suprimir o grupo209 . Na poca de
Agostinho, o cisma donatista havia se transformado, sob a influncia de Optato, o bispo donatista
de Timgad, em um verdadeiro movimento regionalista o donatismo nunca deixa de ser
essencialmente africano e de rebelio social, de repdio autoridade eclesistica romana, e at
de participao popular (os circuncelies, nmades brberes que se revoltaram contra a
administrao romana, eram donatistas210), consistindo assim na maior ameaa para o projeto de
pan-cristianismo aventado pela Igreja de Roma, ao qual se afiliavam Agostinho e os demais bispos
catlicos da frica. verdade que diversas leis e ditos foram levantados ao longo do sculo III
para coibir o avano do donatismo pelos rinces da Numdia e da Mauritnia, mas havia uma
quantidade massiva de cristos africanos seguidores desse secto. As provncias setentrionais do
Imprio encontravam-se ento divididas: quase toda cidade tinha duas sedes episcopais, uma
donatista e uma catlica. Ser em grande parte por intermdio de Agostinho e de seus colegas de
bispado Alpio, em Tagaste, Aurlio, em Cartago, e Evdio, em Uzala, certamente mobilizados pelo
bispo de Hipona, que o catolicismo, atravs de uma releitura da tradio de Cipriano e de Paulo de
Tarso, vir a dominar a regio ao longo das dcadas seguintes.
Agostinho procurou mostrar, em seus sermes e obras escritos na dcada de 390211 , que no
havia grande diferena entre os donatistas os judeus de tempos passados: ambos, afinal,
acreditavam que a salvao dependia da obedincia de determinadas leis, agindo como se os
homens fossem essencialmente independentes da Graa de Cristo212; ambos recusavam-se a aceitar
a autoridade da Igreja de Roma. De fato, os donatistas tinham profunda admirao para pelo zelo
que um judeu ortodoxo pagava Tor; sua religio tambm era concebida como uma Lei213; mas
evidente que o donatismo no pregava obedincia s cerimnias judaica. Talvez a caracterstica
que torna o donatismo o mais prximo ao judasmo antigo, e a mais perigosa ao ministrio da
Igreja, a crena de que qualquer cristo seria independente da autoridade eclesistica romana para
mediar os ensinamentos de Cristo e assim buscar a purificao do pecado. Semelhante a sectos
islamistas contemporneos na Sria e na Lbia, o donatismo no tinha liderana, mas sim oferecia a
seus seguidores uma sensao de pertencimento baseada num tipo de pregao.
O donatismo uma religio de combate. A Igreja aventada por eles consistia em um clube
de santos guerreiros, de modo que qualquer pecador que nela fosse admitido nulificaria a
)132
sacralidade de Cristo e ameaaria a identidade crist, criando uma anti-Igreja unida pela mancha
original de seus fundadores214. Os donatistas se viam como uma alternativa sociedade mundana e
decadente, representada pelo partido cecilianista de Agostinho (isto , fundamentado nos
princpios de Ceclio Cipriano, o antigo bispo de Cartago), que os ameaava: os donatistas eram os
nicos cristos, os fiis puros215 . Ao passo que esta concepo exclusivista de f crist era comum
no cristianismo primevo, em tempos nos quais a Igreja foi perseguida por Roma e sobrevivia s
escuras (e ainda no havia totalmente apartado do judasmo, poder-se-ia argumentar), a mania de
perseguio de sectos cristos como o donatismo havia se tornado problemtica na poca de
Agostinho, em que a Igreja j havia se tornado uma parte essencial do Imprio Romano,
estabelecendo rapidamente os fundamentos doutrinrios e polticos que a caracterizariam nos
sculos seguintes. Em ltima instncia, os donatistas, em sua concepo atvica da cristologia como
uma Lei, condenariam a Igreja a permanecer isolada e inefetiva, como Israel nos tempos dos
profetas, satisfeita em ser obediente aos mandamentos divinos, e assim imaculada. nisso que
acredita Agostinho, e nisso que ele quer que acreditemos216 .
Na contramo dessa viso tradicionalista e conservadora do cristianismo, os bispos catlicos
africanos acreditavam firmamente que a vida crist dos leigos deveria ser ministrada pelos membros
de uma Igreja universal e centralizada. O catolicismo latino possua a confiana de que era possvel
tornar o mundo todo cristo sem que a Igreja perdesse assim sua identidade, pois esta residia no na
santidade de seus membros, mas inerentemente como o corpo mstico de Cristo como uma ideia.
Este corpo era independente dos homens: ele estava acima e alm de seus membros, de modo que
um sacramento ministrado por um bispo pecador no deixaria de ser legtimo, pois sua objetividade
e sacralidade dependiam unicamente de ele ter sido aplicado na Igreja e pela Igreja, una e
ortodoxa217 . A Lei est na Igreja, no a Igreja que est na Lei. Para Agostinho, portanto, a
observncia de um conjunto de regras e cerimnias no suficiente e to menos necessrio para a
salvao dos pecados. Afinal, a vinda de Cristo no havia liberado os cristos daquele fardo pesado
e desnecessrio do judasmo218 ? Os ritos habituais da Igreja eram, como os sacramentos dos judeus
se tornaram nos tempos apostlicos, apenas atividades habituais e prticas nas quais residia a
estrutura da Igreja. Mesmo aps batizado, um fiel ainda tinha diante de si um longo processo de
crescimento espiritual, de maneira alguma inteiramente livre do pecado. Podemos novamente sentir,
aqui, a influncia do neoplatonismo no pensamento agostiniano: para ele, a verdadeira Igreja no
s o corpo de Cristo ou a Jerusalm celeste, mas a ideia a prpria realidade, cuja imagem
terrena apenas sombra219 .

)133
sobretudo uma questo de identidade crist que est em jogo na polmica contra os
donatistas: uma que era tradicional e elitista, mas que ao mesmo tempo dava maior liberdade e
responsabilidade ao homem; contra outra nova, abraada por Ambrsio e Agostinho, que era
universalizante e comunitria, mas ao mesmo tempo hierrquica e por assim dizer poltica, a qual
logrou vencer e expandir-se to somente por ter absorvido a retrica e os valores do Imprio atravs
da reinterpretao do passado pago e da flexibilizao da doutrina220 . Assim, pode-se dizer que o
donatismo representava, junto com o o priscilianismo na Espanha e o pelagianismo por toda Roma
na dcada seguinte, um dos ltimos suspiros do que entendemos por cristianismo antigo221 , ao
passo que Agostinho e Ambrsio figuravam como membros de novas vertentes de um cristianismo
que surge em uma poca de profundas mudanas de paradigmas e valores. Rejeitando a viso
rigorista do donatismo, Agostinho concebe uma Igreja que, no amor infindvel de Cristo, abraava
tambm os pecados222, uma eclsia cuja concepo comea a se desenvolver na polmica contra os
donatistas e que se caracterizar por ser expansiva, aberta no um clube de santos, mas um
hospital de pecadores223. Nesta Igreja, a salvao deveria ser algo muito mais simples de algo que
pudesse ser conquistado por uma mera cartilha de regras: para redimir os pecados, era preciso
somente f, arrependimento sincero, amor ao prximo, e obedincia ao clero. Para Agostinho,
somente pela unio e obedincia que o cristianismo deixaria de ser um grupo minoritrio que
combate a sociedade impura para assim se tornar uma comunidade forte que se prontifica a
realizar sua misso de dominar, absorver e liderar o mundo224 .
Na Igreja em Roma, a situao era muito delicada. Os godos pressionavam as fronteiras da
Itlia h anos, e os vndalos ao cabo invadiram a Glia em 406. O cerco apertava fora e dentro do
Imprio: havia uma batalha pelo trono que levou queda, no ano de 408, do general Estilico,
magister militum de Teodsio I e governador de facto de Roma desde 395. A situao na frica era
um reflexo da perturbao poltica que atingia as provncias alm-Mediterrneo. A opresso policial
e o arrocho fiscal era generalizado. Gildo, governador da frica, havia se rebelado em 395 e
institudo um reino independente, massacrado trs anos depois pelo exrcito imperial. A atmosfera
de um expurgo pesava sobre a Numdia. A luta contra os donatistas se traduz, no plano poltico,
pelo endurecimento da autoridade eclesistica e imperial contra os grupos no-catlicos africanos.
Agostinho o principal articulador desse processo225. O bispo tomou diversas providncias para
suprimir os costumes seculares daquela igreja, providncias que culminaram no dito de Unidade
promulgado pelo imperador Honrio em 405226. Esta lei proibia expressamente o donatismo em
Roma, enquanto este continuar a ser tolerado na frica durante muitos anos. Nesse contexto,

)134
diversos conclios, dezesseis no total, ocorrem em Cartago entre 394 e 411, ano em que a igreja
donatista finalmente banida e desmontada227 .
O real significado de estar sob a Lei e do sentido da censura de Paulo e Pedro esto
intrinsecamente ligados a este contexto maior de reformulao dos objetivos de um ministro cristo,
que deveria tomar uma posio politicamente ativa e combativa contra os sectos rigoristas. Assim,
podemos ir alm: a defesa de uma interpretao de Gal 2:11-14 a partir da qual Paulo teria
censurado Pedro de modo verdadeiro e Pedro teria errado de modo verdadeiro tambm uma
maneira de defender que at os homens cristos podem errar e pecar, sem que sua salvao seja
abalada por isso228. Segundo o historiador Peter Brown, o mpeto que Agostinho aplicar em sua
luta contra o donatismo, movimento que almejava um ideal de autosuficincia e inocncia do
homem cristo, reflete em parte o esforo do prprio bispo de Hipona em dominar sua tendncia
romana em desprezar e desdenhar dos mais pobres e humildes229 . Ora, era essa a ordem entre os
donatistas, os quais desprezavam os pecadores; sua presuno de que a nica Igreja possvel era
uma Igreja pura ocasionar ataques furiosos do bispo de Hipona230 .
Agostinho havia aprendido, atravs de sua experincia de vida, que impossvel viver sem
pecado no mundo; sua formao neoplatnica tambm havia cravado em seu pensamento que a
espiritualidade era um progresso lento, no uma conquista de tudo ou nada maneira dos
estoicos. Embora no se intimidasse em criticar um erro de interpretao ou de conduta de seus
contemporneos, o bispo de Hipona se mostrar, a partir de ento, sempre cuidadoso ao criticar a
personalidade de qualquer pessoa, independente de sua provenincia. A admonio disciplinante e
austera que ele aplica em Jernimo e em outros correspondentes se deve fundamentalmente a uma
noo de dever episcopal do autor em reformar os pecadores de uma sociedade imperfeita e
incompleta, dentro e fora da Igreja231. Assim, justamente no contexto da reao agostiniana contra
os donatistas que o bispo de Hipona desenvolve sua concepo da caritas como uma repreenso
amigvel e comea a aplic-la entre seus pares. Quando aplicada aos movimentos herticos, o
autor vai dar um nome especfico para a necessidade de uma atitude corretiva: no reprehensio, mas
disciplina232.

II. B. 5. A controvrsia origenista233


Jernimo estava alienado da polmica donatista. A nica meno que o autor fizera ao secto
em toda sua obra est em sua altercatio contra os luciferianos, publicada quando o Estridonense
ainda morava em Roma234 . Se devemos compreender as primeiras cartas trocadas entre nossos
correspondentes dentro da polmica donatista, portanto, isso diz respeito somente ao lado
)135
agostiniano da relao. Aos olhos de Jernimo, a insistncia de Agostinho na questo de Gal
2:11-14 parecer ser antes uma simpatia idiossincrtica do bispo para com os judeus e os diversos
grupos herticos de cristos judaizantes que ento existiam235 . Alm disso, ainda que no possamos
saber ao certo se Jernimo sabia quem era Agostinho antes de Alpio t-lo visitado em 394, ou
mesmo se ele ouvira falar muito dele na dcada seguinte, provvel que seus contatos em Roma e
na frica lhe tivessem contado que o jovem presbtero era um ex-rtor ambicioso, cujos vnculos
mais notveis estavam com os neoplatnicos milaneses e com os maniqueus africanos, certamente
um cristo heterodoxo, e cuja acenso na hierarquia eclesistica foi incrivelmente rpida. Esta
situao seria suficiente para levantar a suspeita do monge de Belm.
Aug. Ep. 67 foi a primeira carta autctone que Jernimo recebeu de Agostinho, conforme o
mesmo indica em Hier. Ep. 102, sua primeira resposta enviada ao bispo de Hipona, escrita ca.
402236. Esta carta no atrasou e foi enviada imediatamente, por meio do dicono Astrio. O monge
ento j havia recebido um outro texto do Tagastense, certamente Aug. Ep. 40, cuja autoria, diz
Jernimo, no pde ser verificada pois a carta no estava assinada237 . O Estridonense usar esse
pretexto para no entrar no assunto de Gal 2:11-14 em suas primeiras cartas ao bispo de Hipona,
mas pouco crvel que ele no tenha conseguido determinar a autoria daquela carta: afinal, o nome
de Agostinho estava na salutatio, e o Estridonense diz expressamente que havia reconhecido o estilo
silogstico do autor238. O mais provvel, segundo J. N. D. Kelly, bigrafo de Jernimo, que este
tenha ignorado o contedo de propsito, pois percebeu, to logo havia lido as cartas de seu
correspondente, que sua interpretao de Paulo estava equivocada239 .
As repreenses que Agostinho dirige a Jernimo chegaram em um momento nada propcio
para o autor240. Primeiro, sendo um homem j velho, sua sade estava fragilizada241 ; adicione-se a
isso a doena de Paula, sua protetora, cuja morte em 404 o deixar estarrecido242. Muito alm disso,
o monge de Belm j se encontrava com os nervos flor da pele devido s recentes polmicas nas
quais se metera com Rufino de Aquileia, seu antigo amigo de infncia e agora discpulo de Joo, o
bispo de Jerusalm, acerca da doutrina de Orgenes, o autor mais polmico no fim do quarto sculo,
ento considerado um herege pago.
A controvrsia origenista, como ficou conhecida a rixa entre Jernimo, Rufino e Joo, se
deu de incio por conta de uma traduo para o latim que Jernimo fez de uma carta de Epifnio,
bispo de Salamina, na qual este acusava Joo de Jerusalm de ser um herege origenista243 ; esse
evento se deu entre os anos de 393 e 397. A altercao residiu em acusaes, dos dois lados, de
desviar da retido da f catlica em adeso ao origenismo. A situao tornou-se to grave que
Jernimo chegou a ser excomungado por um ano pelo bispo Joo; o monge de Belm alude a esse
)136
exlio imposto em outra carta que escreve a Agostinho, Hier. Ep. 103, a qual pode ter sido enviada
antes mesmo de ele ter recebido Aug. Ep. 67244. Em sua defesa, ou melhor, a fim de atacar seus
detratores, o Estridonense preparou mais uma apologia, agora contra Joo de Jerusalm, em latim
Contra Iohannem Hierosolymitanum liber. Semelhante ofensiva contra Joviniano publicada no
final da dcada de 380, a apologia contra Joo se fazia como uma verdadeira Filpica. Devemos
incluir nesse mesmo contexto de turbulncia o importante tratado sobre o melhor mtodo de
traduo, em latim de optimo genere interpretandi, uma carta que Jernimo escreveu a seu amigo
Pamquio a fim de justificar sua traduo da carta de Epifnio e dos livros de Orgenes245 .
Aps anos de contenda, a briga enfim entrou em um cessar-fogo por intermdio de Tefilo,
bispo de Alexandria, mas de maneira intranquila246. A controvrsia origenista ser logo reacendida
no ano de 398, por conta de uma traduo latina do , o tratado sobre os princpios de
Orgenes, que Rufino ento preparara. O Aquilense havia, em sua verso, elencado Jernimo como
sua principal influncia, o que causou imenso mal-estar em Belm e em Roma247. Esta situao
levou o Estridonense a retraduzir o livro inteiro e a lanar uma violenta campanha contra Orgenes e
contra Rufino em particular248 ; suas consequncias foram ainda mais graves que a primeira fase da
contenda, tendo esta envolvido agora Tefilo em Alexandria, Joo Crisstomo em Constantinopla e
o papa Anastcio em Roma249 . Os frutos da segunda controvrsia origenista foram as apologias que
Rufino e Jernimo escreveram um contra o outro, desmanchando de vez uma amizade que nunca
ser reatada250 . Publicada em trs livros ao longo de 401, a apologia contra Rufino (Apologia
adversus libros Rufini) a obra-prima das polmicas jeronimianas. Sua violncia contra Rufino era
tamanha que deixar Pamquio e Agostinho horrorizados251 .
Mas, como se esse cenrio conflituoso no bastasse por si s, Agostinho vai insistir diversas
vezes para que seu correspondente lhe envie livros de Orgenes, e que escreva sobre ele252 .
Podemos supor a irritao de Jernimo com a obstinao de seu correspondente, a qual pode muito
bem ter parecido proposital aos olhos de Jernimo253. Sem dvidas, seria desconfortvel ao monge
que ele tivesse de retornar aos comentrios do telogo alexandrino para debater Gal 2:11-14; o
Estridonense se encontrava em uma posio delicada e qualquer passo em falso poderia incorrer
novamente na acusao de ser um herege origenista254. Seja como for, trata-se certamente de uma
ironia do destino que Jernimo tenha se tornado um arauto do anti-origenismo no Oriente, ao passo
que ele nunca deixou de ser considerado o maior especialista em Orgenes entre os ocidentais.

)137
II. B. 6. Uma espada lambuzada de mel
no contexto da segunda controvrsia origenista, no calor da polmica contra Rufino, que
Jernimo escreve suas primeiras cartas a Agostinho. Mergulhado nesses escndalos, a primeira
reao de Jernimo, em Hier. Ep. 102, ser censurar seu correspondente e afast-lo por meio de
ameaas, dispostas em um vocabulrio pesadamente militarizado, irnico e at de baixo calo,
permeado de sinais de erudio. Sob o pretexto de no ter certeza da autoria de Aug. Ep. 40,
Jernimo recusa-se a entrar na discusso de Gal 2:11-14 afinal, diz ele, citando o apstolo Paulo,
que cada um conhece bem seu prprio modo de pensar255 . Jernimo deixa de responder
propriamente, para que Agostinho no venha assim a reclamar com justia de ter sido ofendido,
como se o bispo estivesse arriscando seu pescoo por uma Apologia adversus Augustinum256. No
por menos que Jernimo anexa, nessa mesma carta, as duas apologias, a de Rufino contra ele, e a
sua contra Rufino: para que seu correspondente tome precaues.
Ainda que Jernimo afirme no ter ficado ofendido com a crtica de Agostinho em si, mas
com o fato de o bispo ter-lhe dirigido uma repreenso disfarada de conselho amigvel, quo
mais publicamente, ele se mostra notadamente irritado com o contedo das cartas257 . Como se isso
no bastasse, o monge de Belm entende que o Tagastense criticava sua interpretao a fim de pr
em dvida sua prpria auctoritas como intrprete e tradutor258 , agindo no em busca de um amigo,
mas antes interessado em procurar a fama s custas de ofender homens ilustres259. Para Jernimo,
essa atitude de censura aparentemente franca mas na realidade presunosa nulificava qualquer
possibilidade de criar laos de amizade. O monge, que havia ficado furioso com a bajulao
capciosa que Rufino lhe dirigira no prefcio traduo de Orgenes260, agora se mostra avesso
bajulao de Agostinho. Se Jernimo deixa implcito que a petulncia de seu correspondente em
querer repreend-lo, da mesma maneira que fez Rufino, consiste em uma ofensa estima devida
entre os cristos261 , ele diz expressamente que a repreenso agostiniana uma violao clara e
consciente das leis da amizade262. Esta situao criada de Agostinho exala o odor ftido e pesado de
um rano de clera (rancor stomachi)263.
A segunda carta que o monge de Belm escreve a seu correspondente, Hier. Ep. 105,
resposta a uma possvel carta perdida de Agostinho, Aug. Ep. C (no j enviada Aug. Ep. 71, pois
Jernimo reagir a essa apenas anos depois). Embora contenha notas de humildade, esta missiva
caracteriza-se pela mesmo tom ameaador e suspicioso da carta anterior264. notvel como o
Estridonense vai tratar seu correspondente com condescendncia, forando-o ao papel de um novato
que deve se submeter sua autoridade como autor velho e experiente265.

)138
Em Hier. ep. 105, o monge de Belm imputa a uma atitude a seu ver infantil do bispo a
postura combativa que ele adotar em suas cartas. Jernimo passa ento a enxergar sua
correspondncia com Agostinho como uma luta corporal266 ; dialogar com seu correspondente
utilizando sempre uma estratgia tpica de suas polmicas, a qual mistura vitimizao e agresso;
discursa, contra Agostinho, a partir tanto da postura defensiva de um monge pobre e humilde,
(contrastante com o bispo poderoso e abusivo), quanto da postura ofensiva de um velho soldado
(contrastante com o jovem inexperiente); e ameaa: Agostinho est mexendo com um velho que
poderia derrot-lo facilmente em uma discusso, se assim quisesse. Muito embora, o Estridonense
insiste que no convm a um velho enfrentar um jovem, ou a um monge enfrentar um bispo: ao
procurar se retirar da discusso, Jernimo sugere que ele buscava vencer Agostinho pelo cansao,
como o general Quinto Fbio Mximo, o Cuncator, derrotara Anbal nas Guerras Pnicas267. O
monge esquiva-se novamente de entrar na discusso de Gal 2:11-14, ou melhor, de entrar em
qualquer debate, recusando-se inclusive a comentar as obras que Agostinho havia lhe enviado268 .
No entender de Jernimo, a carta Aug. Ep. 40 era uma espada lambuzada de mel (litus
melle gladius)269 , por se assim dizer uma censura disfarada de prova de amizade. O autor havia
usado imagem semelhante na apologia contra Rufino270 . A descrio emblemtica, uma vez que,
para o Estridonense, repreenso e amizade eram coisas incompatveis271. Jernimo j havia
compreendido a estratgia da repreenso amigvel de Agostinho, que queria lhe corrigir272 , mas no
a aceitou. Aos olhos do velho monge, tal atitude se devia a uma briga infantil, exatamente como
aquela que Porfrio disse haver entre Pedro e Paulo pois deve-se falar com um amigo como se este
fosse um outro eu, afinal. Esta chamada do tpico do alter ego para descrever a amizade foi um tiro
pela culatra: ora, Agostinho queria justamente dele uma postura de censura franca que fosse mtua
e desse incio a um debate.

II. B. 7. Os ferres da indignao


A primeira resposta direta de Agostinho a Jernimo vem em sua quinta carta ao
Estridonense, Aug. Ep. 73, um longo elogio da amizade crist enviado entre os anos de 403 e 404.
Nesse texto, Agostinho no esconde sua frustrao com a postura combativa de Jernimo em Hier.
ep. 102, a qual lhe pareceu os duros e dodos socos de Entelo273. A segunda carta que o monge
havia enviado, Hier. Ep. 105, ainda no chegara em Hipona, mas podemos pressupor o rancor mais
acentuado que ela exaltar no bispo. O bispo de Hipona agora tinha ideia do temperamento de
Jernimo, e tomou o cuidado de requisitar agora Presdio, o mensageiro que Jernimo havia lhe

)139
recomendado anteriormente, para levar a mensagem at Belm, e para que intercedesse em seu
nome, se fosse necessrio.
De incio, Agostinho imputou a culpa da situao para si, implorando que Jernimo o perdoe
por seja l o que ele tenha feito, mas mostrando-se sobre sua culpa. Irnico, o bispo de Hipona
afaga efusivamente o ego de Jernimo e chega at a imputar-se o papel de novato, se isso que seu
correspondente quer para que eles possam dialogar274 , mas Agostinho, recusando-se a retratar-se por
ter apontado um erro e feito uma crtica, assevera que a repreenso e a crtica so mecanismos
legtimos em uma discusso entre amigos275. O pedido de vnia de Agostinho assim retrico, com
o objetivo de desarmar Jernimo276.
Assim, essa carta, se na superfcie parece uma elaborada carta de desculpa e de consolao,
na realidade uma dura carta de repreenso da postura combativa de Jernimo277 e de sua dupla
recusa de aceitar uma crtica e de entrar em um debate, atitudes que, na viso de Agostinho,
ofendem a caritas, a verdadeira amizade crist, e nulificam a auctoritas de seu correspondente. A
sentena de Cato sobre a amizade no Laelius de Ccero mais valem os inimigos que reprovam,
que os amigos que tm medo de nos repreender278 d a sentena agostiniana sobre a postura
resistente de seu interlocutor: um amigo que no repreende um erro no um amigo verdadeiro.
O bispo de Hipona ento encontra na rixa que surgiu entre Jernimo e Rufino a comparao
ideal do que poderia acontecer entre eles279. Ao invocar essa inimicitia, Agostinho lembra seu
correspondente de seu fracasso mais retumbante em uma relao de amizade, tendo por objetivo
destruir a credibilidade da censura que Jernimo havia lhe colocado280 , e deixando implcito que
Jernimo quem est agindo como uma criana, e no ele. Segundo o bispo de Hipona, a atitude de
seu correspondente, na apologia contra Rufino, configura ferres da indignao (indignationis
aculei)281. O termo forte: indignatio diz respeito aniquilao da dignitas, pressupundo o
abandono do debate civilizado para se abraar a luta corporal. A ofensa no est na repreenso que
o bispo buscou aplicar em Jernimo que ofendeu a dignitas; a ofensa est antes no fato de o monge
ter se ofendido com isso.
Este o ponto principal, que retoma a discusso sobre amicitia que empreendemos no
captulo anterior. Agostinho reconhece que ele e Jernimo tm concepes diferentes sobre uma
relao epistolar de amizade, insistindo uma ltima vez para que eles abram um dilogo corretivo
no qual a caritas esteja presente:

)140
Eu te peo, se for possvel que isso acontea, que investiguemos e discutamos entre ns algo com que nossos
coraes se nutram sem o amargor da discrdia; se, porm, eu no posso apontar aquilo que me parece carente
de correo em teus escritos, nem tu nos meus, sem que com isso se levante a suspeita de inveja ou de ofensa
amizade, abstenhamo-nos dessas discusses e poupemos nossa vida (e nossa salvao). Atente-se menos quilo
que incha, desde que no se lese aquilo que edifica.282

Mas Agostinho no deixa de lamentar a postura agressiva, isto , toda armada que seu
correspondente havia adotado283 . Assim, diante da indignatio de Jernimo, o autor coloca
novamente em dvidas a competncia de seu interlocutor como intrprete: como confiar na solidez
dos estudos do monge de Belm, se ele se mostra incapaz de a explicar sua interpretao? O que
Agostinho busca de Jernimo uma certa ratio, um argumento definitivo284 , e um debate entre
amigos; o que ele encontra, porm, um homem ocioso e rancoroso, dominado pelo desejo de
bajulao, que age de maneira deceptiva e se esconde por trs das convenes jocosas das cartas
de amizade285 . A partir dessa crtica, Agostinho busca apontar que a conduta de Jernimo como um
amigo cristo tambm no adequada, podendo beirar a heresia286. Pois o autor entende que seu
correspondente insiste em um mal, o que o torna um inimigo de toda a f crist287.
Com efeito, Agostinho parece ter ficado desapontado com a resposta de seu correspondente.
Ele esperava que Jernimo o ajudasse, pois os deveres episcopais no permitem que o bispo se
aprofunde nos estudos288. Quando o monge propor futuramente que eles deixem as diferenas de
lado e se exercitem no campo de batalha das Escrituras289 , Agostinho se mostrar bastante
contrariado: veja, no que diz respeito a mim, eu preferiria que ns a agssemos antes como em
uma disputa sria, do que como em um exerccio290.
Quanto inimizada entre Jernimo e Rufino, o monge colocar a repreenso agostiniana de
escanteio, deixando implcito que aquela rixa no problema dele291.

II. B. 8. A questo da auctoritas e o exemplum dos apstolos292


Jernimo eventualmente percebeu que no poderia continuar ignorando as cartas de
Agostinho sem que sua reputao fosse manchada293. O mundo cristo devia estar acompanhando
esse debate no campo de batalha das Escrituras, e Jernimo no era o tipo de pessoa que deixaria
barato a afronta de algum. Assim, tendo finalmente em mos todas as cartas que Agostinho lhe
enviara at ento294 Cipriano deve ter lhe entregue Aug. Ep. 71 com novas cpias de Aug. Ep. 28
e 40 no incio de 404 , o Estridonense finalmente d o brao a torcer e aceita a abertura de um
dilogo. Sua resposta veio ento na forma de uma longa e meticulosa carta escrita no ano de 404,
Hier. Ep. 112. Apesar de o monge afirmar que ela foi ditada s pressas, trata-se de um texto

)141
primoroso do ponto de vista estilstico, quase um pequeno liber que provavelmente foi destinado
publicao295. Agora, como o soldado do exrcito de Cristo que ele foi outrora, o humilde Jernimo
veste novamente sua armadura de Cristo e se coloca a postos para derrotar o formidvel bispo
Agostinho, como o pequeno Davi derrotou o orgulhoso Golias296 .
O mtodo discursivo do Estridonense permanece no mesmo tom nessa carta: Jernimo
ameaa, combate, diminui-se, zomba, utiliza as mesmas estratgias que havia empregado
anteriormente em Hier. Ep. 102 e 105; o monge o esconde sua ira para com a insistncia de seu
correspondente em repreende-lo e censura-o novamente. A diferena desta carta em relao s
anteriores o flego e a veemncia que o autor agora emprega: emprestando a estrutura de um
iudicium ou processo civil, Jernimo compe o texto emulando o sermo do prprio Agostinho297 ,
abusando agora de termos do vocabulrio jurdico, a fim de produzir uma stira s vezes de um
adversus Augustinum, texto que exala o rancor galhofeiro que fizera Jernimo temido e admirado
por todo o mundo romano.
A maior parte de Hier. Ep. 112 consiste ao mesmo tempo em uma defesa que Jernimo faz
de sua interpretao e em um ataque crtica agostiniana do officiosum mendacium, a qual
caracterizada como um tipo estranho de heresia judaizante298 . No entanto, uma vez mais o debate
verdadeiro no se faz presente, se por isso compreendemos a discusso de ideias e anlises. A
defesa jerominiana se sustenta nos autores que o monge adotou em sua leitura de Gal 2:11-14, essa
que estava alinhada tradio exegtica grega a partir de Orgenes (e de um nmero expressivo de
autores elencados pelo Estridonense ao longo da carta)299 . Em Hier. Ep. 112, objetivo de Jernimo
antes deslegitimar a interpretao de Agostinho atravs tanto de ataques implcitos ignorncia
deste no tocante aos estudos patrsticos, quanto da crtica de sua autoridade episcopal, do que
apresentar indcios a partir do raciocnio para estabelecer a verdade de sua interpretao. Assim,
Jernimo reafirma a hiptese da simulatio na medida em que busca exonerar-se de um erro300.
O autor justificar seu tom agressivo e vituperante em uma carta que envia logo aps a
anterior, a saber, Hier. Ep. 115. Nela, o Estridonense afirma que sua veemncia l se deu porque era
uma causa que respondia a outra causa301 deixando tambm a entender que a responsabilidade
inteiramente de Agostinho, que violou a religio amicitiae. Em Hier. Ep. 115, Jernimo mostra
definitivamente que no est interessado em aceitar a repreenso de Agostinho302.
Esta mea culpa de Jernimo no encontrar simpatia da parte de Agostinho, mas, uma vez
mais, repreenso. O bispo de Hipona, tendo em mo as trs ltimas cartas do monge Hier. Ep.
105, 112 e 115 ao responder, se mostrar irredutvel em sua prxima missiva, escrita no ano de
405, a monumental Aug. Ep. 82, texto mais longo de sua toda correspondncia mtua com
)142
Jernimo. Embora seja permeada de elogios efusivos da amizade, de pedidos de desculpa pela
confuso da circulao pblica de Aug. Ep. 40 e de repreenses indiretas postura combativa de
Jernimo, essa carta em larga parte uma reafirmao e elucidao da interpretao agostiniana de
Gal 2:11-14. Diferente do discurso de seu correspondente, o qual era fundamentado na autoridade
dos autores patrsticos, Agostinho busca provar seu ponto de vista atravs do raciocnio, a fim de
desarmar paulatinamente a posio do Estridonense. O bispo de Hipona finalmente encontrara a
oportunidade que tanto almejava: a de esclarecer sua leitura de Gal 2:11-14 em uma discusso com
o grande Jernimo, em uma carta que muito provavelmente circulou em pblico.
De fato, o que Agostinho queria de Jernimo era um argumento definitivo que nascesse de
um debate sobre a questo um debate que fosse fundamentado na dialtica, onde seria permitido
que amigos repreendessem e corrigissem um o erro do outro, no importa se isso fosse julgado
como uma espada lambuzada de mel303. No entanto, o que o bispo encontrou em Hier. Ep. 112 foi
um discurso que novamente se fazia prepotente e apreensivo, escrito por um homem que recusava-
se a discutir e que alegava a legitimidade de uma interpretao problemtica to-somente por esta
gozar de longa tradio nos estudos exegticos patrsticos. Ao pedido de perdo que o monge fizera
ao bispo, este ento responde com uma pergunta irnica: quem que quer errar com quem quer que
o seja304? A subservincia de Jernimo para com os autores que ele havia estudado, assim como sua
resistncia em aceitar a crtica e em iniciar um dilogo deixaro o Tagastense uma vez mais
decepcionado; a seus olhos, essas eram caractersticas de uma pessoa vaidosa e mesquinha, inchada
com a glria do mundo, inadequadas a um cristo verdadeiro. Agostinho diz expressamente que
esperava mais do grande exegeta latino305.
Para alm da polmica do officiosum mendacium e da obsolescncia histrica da Lei, a
disputatio entre nossos autores acaba se transformando ento, no final do primeiro perodo de
correspondncia, essencialmente em um debate envolvendo diferentes noes de auctoritas ou
autoridade, termo enfatizado amide nesta ltima carta do bispo de Hipona. Esta palavra tem ampla
significncia em latim, de foro lexical (um dos critrios para avaliar a propriedade de um discurso,
segundo Quintiliano306), de foro social e poltico307 e tambm de foro doutrinrio308 . So estes dois
ltimos sentidos, relativos interpretao correta das Escrituras, autoridade poltica da Igreja, e
legitimidade da censura agostiniana, que nos interessam nessa discusso.
De um lado, temos a auctoritas de Jernimo, proveniente da tradio exegtica grega e de
sua idade avanada. O autor era de fato um homem orgulhoso de sua erudio, marcado por um
respeito quase servil aos autores patrsticos; nesta caracterstica, o monge se apresenta como um fiel
observador da religio amicitiae e do mos maiorum. Um escritor moda antiga, de formao
)143
ciceroniana, Jernimo pode ser descrito como um homem conservador, do senso comum,
convenes sociais e valores tradicionais. Pois assim que ele argumenta, ou melhor, demonstra: ad
verecundiam, a partir da citao e comparao mtua de diversos autores e intrpretes. Este mtodo
era j tradicional entre os romanos, tendo provavelmente sido ensinado a ele por lio Donato
quando era criana, e est alinhado tambm com as estratgias exegticas dos escritores
helnicos309.
Agostinho, por sua vez, no poderia ser mais diferente. Livre de uma servido
voluntria (ingenua servitus, em latim) para com seus antecedentes nos estudos das Escrituras
servido que ele critica duramente em Jernimo310 , o Tagastense buscava fundamentar suas
interpretaes atravs do exame dialtico e racional aplicado s questes da f, apoiado unicamente
na auctoritas inerrante das Escrituras311 , e fundamentar sua crtica a Jernimo em sua auctoritas
como bispo de Hipona, convencionada a partir da hierarquia eclesistica. Agostinho sintetiza sua
relao com a auctoritas dos maiores ao mesmo tempo que critica a curiositas de Jernimo na
seguinte passagem:

[...] se eu me deparar, naquelas palavras, com qualquer coisa que parea contrria verdade, no teria dvida
alguma de que o cdice que falso, ou de que foi o tradutor que no seguiu o sentido original, ou de que fui
eu que no consegui compreender. Os outros, porm, leio-os independentemente da importncia de sua
santidade e doutrina, de modo no a consider-los verdadeiros porque eles concordam comigo, mas porque
eles puderam me convencer de que no desviaram da verdade, por terem recorrido seja aos mesmos autores
cannicos, seja razo, por meio de argumentos provveis. E no estimo, meu irmo, que seja outra a tua
opinio; em outras palavras, diria, no julgo que tu queres que leiam teus livros como os livros dos profetas ou
dos apstolos, de cujos escritos, j que esto isentos de qualquer erro, pecaminoso duvidar.312

O bispo de Hipona era um autor interessado em problemas prticos, no em teorias ou


escritores313. Como mostrou o estudioso de teologia tetracentista Ralph Hennings, na contramo do
mtodo demonstrativo jeronimiano, que se sustenta na autoridade dos maiores, Agostinho apresenta
outro critrio para provar a veracidade de sua leitura de Gal 2:11-14, a confiabilidade dogmtica314 .
Para o bispo de Hipona, pouco importa o que disse Orgenes ou qualquer outro autor que
interpretou a Bblia315: se a interpretao no estiver de acordo com a verdade da f, a qual se
encontra unicamente nas Escrituras, e se aquela no se sustentar aps o escrutnio da razo, tal
interpretao deve ser descartada imediatemente316 . A defesa obstinada de uma leitura que aceitasse
a veritas da palavra e da ao de Paulo, assim como a veritas do erro de Pedro, dessa maneira
significava tambm uma declarao franca de guerra contra a auctoritas dos pais gregos, a qual
estava simbolizada na auctoritas de Jernimo.

)144
Entre os autores da tradio latina, Agostinho no estava sozinho ao enfrentar a
interpretao grega de Gal 2:11-14, contudo. Dois outros autores haviam se posicionado contra a
simulatio origenista: Ceclio Cipriano, o Africano (ca. 200-258), antigo bispo de Cartago e
Ambrsio de Milo, dois bispos de esprito essencialmente poltico e muito influentes no
pensamento agostiniano; ambos j haviam se esforado para mostrar a veracidade do erro de Pedro
e a legitimidade da correo de Paulo317. Cipriano e Ambrsio so fundamentais para Agostinho
elaborar a crtica do officiosum mendacium318; ao segui-los, o autor alinhava-se tradio exegtica
latina, fundamentando-se em um outro tipo de auctoritas, a autoridade episcopal, a qual acaba por
refletir uma controvrsia entre os mtodos interpretativos do Ocidente e do Oriente, nas palavras do
especialista no estudo das cartas paulinas Maurice Wiles319.
Nesse sentido essencialmente poltico de auctoritas, o autor que Agostinho traz
imediatamente para o debate, aquele que ele coloca em um pedestal indiscutvel, o prprio
apstolo Paulo de Tarso seu antecessor entre os ministrantes da Igreja. Agostinho sintetiza sua
posio em relao auctoritas do doctor gentium frente a dos exegetas e comentadores em uma
nica sentena:

Me perdoe quem quer que pense outra coisa; eu acredito mais no que o eminente apstolo atesta nos, e sobre
seus escritos, do que qualquer homem muitssimo erudito discute acerca dos escritos de um outro.320

Tendo de um lado a auctoritas da tradio exegtica e de outro a auctoritas conferida pelo


episcopado, a querela de Gal 2:11-14 nos leva para uma terceira e ltima noo de auctoritas que
tambm est em jogo entre nossos autores. H uma discusso implcita sobre a procedncia de uma
censura pblica de Paulo a Pedro, isto , de um amigo a outro, e de um autor jovem e inexperiente
(em latim iuvenis) a um autor velho e experiente (em latim senex). Paulo era mais jovem que Pedro,
e Jernimo no cansa de sublinhar a partir da a autoridade maior do prncipe dos apstolos321. As
diferentes interpretaes do incidente em Antiquia acabam assim oferecendo imagens dissonantes
da relao entre Jernimo e Agostinho, para um e para o outro. A contenda entre Pedro e Paulo
serve de espelho e reflexo da rixa entre o monge de Belm e o bispo de Hipona.
A nica explicao para Gal 2:11-14, segundo Jernimo, a simulatio no somente por
razes teolgicas, mas tambm, parece-nos, por razes psicolgicas. Explicamos: o Estridonense
parece no admitir uma repreenso pblica foi frontalmente que Paulo havia censurado Pedro
que no seja simulada322 , no s por Paulo ser supostamente culpado da mesma simulao,
como tambm por ele ser tanto amigo de Pedro quanto algum mais jovem do que ele. Atravs

)145
dessa leitura de afronta entre as auctoritates dos apstolos, Jernimo objetiva, uma vez mais, forar
Agostinho no papel de iuvenis (qual Paulo), fazendo valer sua autoridade como um senex (qual
Pedro). Desse modo, a obstinao de Agostinho em sua interpretao projeta-se, para o
Estridonense, com a mesma presuno infantil com a qual Paulo teria agido de acordo com a
explicao de Porfrio323.
Agostinho, contra a posio de seu interlocutor, acreditava que uma censura pblica, se
fosse amigvel, era legtima e positiva independente de quem a fizesse, contanto que fosse feita
com amor e entre amigos. Ora, no h dvidas de que Paulo tinha profundo respeito por Pedro, seu
maior, mas, por t-lo visto errar em Antiquia, ele no se intimidou em censur-lo publicamente,
ocasio em que agia segundo o sentimento de algum que se compadece, no da astcia de um
mentiroso324. Ora, o prprio Jernimo havia agido assim para com Agostinho, ao sentir que ele
poderia cometer o mesmo erro de Pedro, mostrando obedincia para com os judeus325.
Mas o reflexo inverte-se. Pedro diferente de Jernimo foi humilde o suficiente para
aceitar a correo de algum que era mais jovem que ele. A liberdade tomada por Paulo, assim
como a humildade apresentada por Pedro, legaram assim um exemplum de como uma relao de
amizade deve ser mantida entre cristos. Agostinho desenvolve esta ideia em um pargrafo que
serve de insgnia sua relao com seu correspondente:

O prprio Pedro, afinal, aceitou, com a piedade da santa e bondosa humildade, o que Paulo fazia,
apropriadamente, com a liberdade da caridade, e assim legou um exemplo aos seus psteros que eles no
desprezassem a correo de seus posteriores, se em algum momento se afastassem o caminho da retido
ainda mais raro e santo que o exemplo de Paulo que at os menores deveriam ousar resistir com coragem os
seus maiores, a fim de defender a verdade do Evangelho, na presena da caridade fraterna. Enfim, ainda que seja
mais sensato no desviar de qualquer ponto (quanto mais de um nico) da via que tomamos, muito mais
admirvel e louvvel receber de bom grado uma pessoa que nos corrige, a corrigir de maneira ousada algum
que desvia.326

Tanto Paulo quanto Agostinho deveriam agir com a libertas caritatis e com a caritas
fraterna ao censurar Pedro e Jernimo pois, embora ento jovens, sentiram que a verdade do
Evangelho havia sido ferida. A questo da caritas volta ao palco da discusso. Agostinho agora
fundamenta a legitimidade de sua censura franca na auctoritas do prprio apstolo Paulo, em ao e
em palavra. Por conseguinte, no que concerne ao gnero epistolar, a introduo da repreenso
amigvel (amicissima reprehensio) torna-se tambm legtima, pois ela atestada na carta aos
Glatas, pelo exemplum dos apstolos no incidente em Antiquia.

)146
Todavia, como verdade para a maioria dos interesses do bispo de Hipona, h tambm
relevncias polticas e pastorais em uma defesa to obstinada deste exemplum, em especial de uma
interpretao autoritativa das palavras de Paulo no Novo Testamento327 relevncias que vo alm
do combate ao maniquesmo e ao donatismo. Ora, Paulo o grande professor do catolicismo, a
pedra de toque de todas as vertentes do cristianismo, a origem de toda a pregao; defend-lo
tambm abraar uma vertente hierrquica e poltica de cristianismo, para usar o termo usado
Jernimo, dispensatorius. do mesmo modo que Paulo corrigira Pedro na condio de apstolo
que Agostinho fundamentar sua correo ao erro e conduta de Jernimo em sua auctoritas
episcopal, pois o bispado a instituio legtima herdeira do apostolado. Em suas obras e cartas
deste perodo, Agostinho nos aparece pela primeira vez como uma figura imbuda da auctoritas
episcopal, portando-se, qual um segundo o apstolo Paulo, como um dos lderes da cristandade
latina328 . O autor ento comeava a redigir quatro de suas obras mais importantes329 : as
Confisses330, publicadas ca. 401; a segunda verso da interpretao literal do Gnesis (de Genesi
ad litteram), publicada ca. 414; o De trinitate, publicado tambm ca. 414; e aquela que viria a se
tornar a Institutio oratoria do cristianismo, obra que demoraria trinta anos para ficar pronta: o De
doctrina christiana331 , publicado ca. 426; sem falar no sem-nmero de sermes que o tornariam um
pregador conhecido mundo afora.
Para amarrar a discusso sobre a auctoritas, o juzo de Jernimo, de que Agostinho era um
homem dominado pela ambio, que buscava a glria s custas de ofender homens ilustres, se
parece exagerado, no deixa de ser em parte justo. A ns no restam dvidas de que Agostinho
procurava iniciar um confronto com Jernimo. Ora, o bispo questionava expressamente a auctoritas
de seu correspondente, tanto em relao sua capacidade como intrprete quanto no tocante ao fato
de ele ser mais velho. Enfrentar, melhor dizendo, vencer o grande e velho Jernimo em um
ponto to controverso da pregao paulina, a partir de uma interpretao aventada por Cipriano de
Cartago , era no s uma discreta declarao de independncia intelectual individual como
sobretudo da tradio latina em relao patrstica grega332, em especial da Igreja Africana333 ,
lanando-a aos olhos do mundo. A posio de Agostinho como magister ecclesiarum, um diretor
das igrejas334, isto , aquela que se deve sua auctoritas como intrprete, justifica-se, como a
Ambrsio e a Cipriano, pela sua auctoritas episcopal; ambas se confundem.
O mesmo para a posio legtima que Agostinho tem para repreender e retificar seus pares
cristos. Conduzir os fiis na retido da f para que seja salvaguardada a Verdade do Evangelho
um officium christianum acima de qualquer officium epistulare. officium de qualquer ministrante
da Sacristia corrigir os homens segundo os ideais da recta fides, pois a ele cabe ensinar a doutrina
)147
correta, evitar as ms leituras, proteger o rebanho de fiis dos inimigos de m-f que pretendem
corromper as Escrituras no importando o que aventara Orgenes ou qualquer outro; no
importando qual a idade do padre, ou qual seja sua ndole. Assim, a fim de demonstrar a
legitimidade de sua censura, Agostinho, em uma manobra retrica, diminui sua prpria auctoritas
episcopal frente auctoritas de Jernimo como monge (qual o exemplum de humildade de Pedro),
ao mesmo tempo que a joga contra a auctoritas de seu correspondente como um senex (qual o
exemplum de liberdade de Paulo), em uma passagem desta carta que fecha o primeiro perodo de
correspondncia entre os autores:

Uma vez mais, e novamente, eu suplico que me corrijas fielmente, sempre que vieres a constatar que preciso
me corrigir. Afinal, embora o bispado seja mais importante que o presbiterado (segundo os termos polticos que
a Igreja, pelo uso, j tornou familiares), Agostinho , porm, em muitos aspectos inferior a Jernimo, e ainda
assim convm que uma correo, mesmo que ela venha de um inferior, no seja ignorada ou menosprezada.335

II. B. 9. Veritas e auctoritas na traduo das Escrituras336


Ainda que o problema de Gal 2:11-14 domine as primeiras cartas trocadas entre Agostinho e
Jernimo, seu primeiro perodo de correspondncia mtua no se encerra nesse debate. H um outro
tema discutido entre os autores, o qual corre paralelamente questo do officiosum mendacium e
merece uma discusso mais detalhada agora. Ora, ainda que iniciado em Aug. Ep. 71, tal tema s se
desenvolve nas duas ltimas duas cartas, Hier. Ep. 112 e Aug. Ep. 82. Intimamente ligado questo
da auctoritas, trata-se do debate sobre o melhor mtodo de traduo do Velho Testamento para o
que os autores chamam de veritas latina, a verdade latina337. Isso no significa, como bem aponta
Frst, que h uma discusso implcita sobre a canonicidade e veracidade das Escrituras, tese
proposta por Hennings338 ; o certame pragmtico e diz respeito proficuidade de introduzir uma
verso da Bblia que pudesse colocar em xeque a auctoritas da verso grega mais tradicional, a
Septuaginta.
Agostinho sabia que era preciso introduzir novas verses das Escrituras339, pois as tradues
antigas da Vetus Latina, usadas desde o sculo II d. C., no consistiam em uma unidade, mas eram
dspares, espalhadas por diversos cdices, cheias de erros, portanto sem autoridade alguma340. De
fato, no havia ainda um texto definido, seja em hebraico, grego ou latim, das Sagradas Escrituras;
mesmo as verses da chamada Vetus Latina se dividiam na Itala, usada na Itlia, na Hispania, usada
na Hispnia, e na Afra, utilizada no norte da frica (esta provavelmente a verso que Agostinho
detinha341). Todavia, o presbtero de Hipona mostrava-se veementemente contrrio deciso de
Jernimo de retraduzir todo o Velho Testamento a partir do idioma original hebraico, uma posio
)148
bastante comum entre os cristos de sua poca342. Agostinho defendia que Jernimo devia traduzir o
texto a partir do idioma grego, ou veritas graeca, utilizando decididamente a Septuaginta pois, por
ter sido inspirada pelo Esprito Santo e por ser a edio mais presente nas Igrejas e mais utilizada
nas missas, era a verso cuja autoridade tinha o maior peso (os proprios apstolos a utilizaram)343.
Pode soar estranho que Agostinho tenha preferido a verso grega, que j era um filtro a
partir de um texto original, em detrimento das palavras supostamente escritas pelos prprios
profetas. Interpretar a posio do autor dessa maneira, no entanto, seria um anacronismo. Primeiro,
no havia, na poca do bispo, a mesma noo arqueo-filolgica que se busca hoje para estabelecer
um texto, dando preferncia ao arqutipo ou manuscrito mais antigo; isso s ser verdadeiro, muito
depois, aps o mtodo dos stemmata desenvolvido por Karl Lachmann no sculo XIX344 . Para um
cristo contemporneo de nossos autores, as verses mais confiveis das Escrituras seriam as da
Septuaginta, pois, como afirmamos acima, tratava-se de um texto tradicionalmente ministrado na
Sacristia e cuja transmisso podia ser atestada desde os tempos do apostolado345 . Alm disso,
qualquer verso latina das Escrituras necessitava ser filologicamente comprovvel e verificvel;
uma vez que o hebraico era uma lngua praticamente desconhecida Agostinho no cansa de
lembrar desse fato346 , introduzir uma traduo do Novo Testamento a partir da veritas hebraica
no teria auctoritas suficiente, perigando ocasionar a uma srie de dissonncias entre as verses
latina e grega e assim colocando em risco a unio das missas e da Igreja. esse tipo de preocupao
que o bispo de Hipona tem em mente ao apontar, em Aug. Ep. 71, que:

Certo, eu preferiria que tu antes traduzisses para ns as Escrituras gregas estabelecidas como cannicas, as
quais seguem a tradio da Septuaginta. Ora, ser bastante prejudicial se em muitas igrejas comearem a
introduzir tua traduo com mais frequncia, j que as missas latinas entraro em dissonncia com as gregas,
sobretudo porque, jurado o livro, fcil vencer qualquer contestador; trata-se da lngua mais conhecida.347

A Septuaginta era o textus receptus do cristianismo e, ainda que no fosse uma traduo
literal ou mesmo completa do original hebraico, j havia se habituado tanto nos espritos e na
memria de todos quanto no que se repetiu por sucessivas geraes, como coloca o prprio
Agostinho348. A preferncia do autor pela Septuaginta fia-se, portanto, a uma questo
majoritariamente prtica: por tratar-se da verso mais tradicional das Escrituras, aquela mais
comum nas missas do Oriente e Ocidente, por essa razo ela gozava de maior auctoritas349 . O texto
massortico hebraico, por no fazer parte da tradio crist helenstica, possui, para o bispo de
Hipona, uma auctoritas menor que a daquela verso; alm do mais, a tradio qual o original
hebraico se fiava era a do judasmo350 . Introduzir uma nova verso que no se apoiasse na traduo
)149
grega representava, assim, um perigo real. A um cristianismo catlico-ortodoxo que procurava
firmar sua unidade em meio a tamanha diversidade de grupos dissidentes, sectos e heterodoxias, era
imperativo garantir a univocidade de leitura e interpretao, assim garantindo a unio doutrinria
entre as igrejas de todo o Imprio. Afinal, os cristos helnicos, no s os arcebispos de
Constantinopla, Antiquia e Alexandria, como os padres Egito, Sria afora, todos eles falavam
grego; uma rixa com eles causaria no somente uma diferena lingustica, mas poderia gerar, a
partir desta, uma aguda crise social e religiosa.
Jernimo nos aparece, em sua deciso de retraduzir todo o Velho Testamento a partir do
hebraico, como um personagem bastante idiossincrtico dentro da cristandade latina de sua
poca351. Ainda que se mostre respeitoso Septuaginta na maior parte do tempo, h indcios de que
o autor via essa verso com maus olhos. Jernimo preferia usar a Hxapla em seu trabalho352 . Esta
era uma edio que fora preparada por Orgenes e na qual se alinhavam seis verses diferentes da
Bblia, tanto uma do texto hebraico massortico quanto mais cinco verses em grego: a traduo
literal feita pelo judeu quila de Snope (fl. sec. I a. C.); a Septuaginta; a traduo feita por Smaco,
o Ebionita (fl. sec. II d. C.); a traduo feita por Teodocio (? - ca. 200); e uma recenso crtica da
Septuaginta, a partir das correes de Orgenes para o texto deste ltimo.
Nas cartas que Jernimo trocou com Agostinho, a discusso acerca da traduo das
Escrituras se concentrou em dois livros especficos do Velho Testamento, a saber, o de J, em duas
verses, e o de Jonas. A primeira verso de Jernimo para o livro do profeta J, publicada ca.
389-392, foi, na realidade, uma recenso crtica que o Estridonense havia preparado com o apoio da
Hxapla, utilizando as correes de Teodocio e Orgenes para assim comparar os textos em
hebraico, latim e grego353. Esta verso incomodou muito o bispo de Hipona, a quem chegavam j;a
rumores de que Jernimo pretendia retraduzir todas as Escrituras a partir do hebraico. Nesse
contexto, Agostinho duvida, colocando em dvida da prpria competncia de seu interlocutor como
tradutor e intrprete das escrituras situao tpica de sua correspondncia com Jernimo e, vimos
anteriormente, estratgia prpria de uma polmica.
A preocupao de Agostinho parece ter se confirmado com a segunda verso do livro de J,
publicada ca. 393. Esta era uma traduo diretamente do hebraico e que no dispunha de aparato
crtico, levando o bispo a consider-la algo desleixada, colocando novamente em dvida a
competncia de Jernimo como tradutor354 . Ao criticar seu correspondente por no ter apresentado a
mesma f para com as palavras, Agostinha sinaliza uma vez mais que desaprovava, por questes
prticas, o critrio jeronimiano de hebraica veritas. O Estridonense protesta que esta censura, no
entanto, no se sustenta: a ausncia de sinais diacrticos na segunda verso do livro de J deve-se ao
)150
fato de o autor no ter em mos uma verso crtica do original hebraico, s vezes da Hxapla. Em
midos, o monge de Belm tinha objetivos diferentes ao preparar as duas verses de J.
Em terceiro e ltimo lugar, temos a traduo de Jernimo para o livro de Jonas, publicada
ca. 396. Esta verso foi produzida inteiramente nova a partir do texto massortico e acabou por
causar, conta-nos Agostinho, uma tremenda confuso durante uma missa em Oea (a moderna
Trpoli, no Lbia) por conta de uma nica palavra (Agostinho no revela qual) que Jernimo havia
traduzido errado; Jernimo pensa tratar-se de Jon 4:6, passagem que deu incio notria
controvrsia da aboboreira355 . Seja como for, o bispo toma essa ocasio para questionar de novo a
competncia de Jernimo e sublinhar seu desacordo com a hebraica veritas, inferindo que abrir
caminho para uma diferena poderia ser to ruinoso para a cristandade, de um ponto de vista
prtico, quanto admitir uma mentira no texto original356. O Estridonense exonera-se por ter utilizado
uma traduo mais prxima do hebraico, portanto a correta357 .
A preocupao de Agostinho com a auctoritas da Septuaginta parece no ter importado para
Jernimo, que era um defensor ardoroso da veritas hebraica358. Para o monge, se a Septuaginta
estivesse errada, ela devia ser corrigida com base no texto mais puro e mais antigo. No entanto, O
Estridonense acaba por confessar, guisa de um cessar-fogo, que no quer substituir o texto grego,
mas sim estabelecer uma verso latina que tenha auctoritas suficiente para rivalizar com os judeus,
esses especialistas no idioma hebraico que viviam acusando os gregos e os romanos de ministrarem
verses erradas das Escrituras359. O prprio Agostinho havia reconhecido a malcia deles no
problema do livro de Jonas360. O estado dspare e anrquico da Vetus Latina, como afirmamos
acima, agravava ainda mais essa situao361. A justificativa de Jernimo que ele encontrou no
texto hebraico a verso mais integral e confivel para estabelecer uma Bblia na veritas latina; se o
bispo ainda tem dvidas, que ele perguntasse aos prprios judeus362 .
importante salientar que os autores parecem ento inverter suas posies acerca do
incidente em Antiquia ao discutirem a traduo das Escrituras. Agostinho, que havia mostrado
tolerncia em relao aos judeus e relevar o contexto histrico de Gal 2:11-14, agora no se redime
e defende com unhas e dentes a auctoritas da Septuaginta contra a do idioma hebraico. Essa
polarizao, no entanto, no deve nos enganar: os interesses do bispo continuam sendo os mesmos.
Se ele defendera a veritas de Gal 2:11-14 contra os maniqueus e donatistas, ele defende a auctoritas
da Septuaginta por questes que tambm so pastorais, polticas e prticas, as quais dizem respeito
administrao eclesistica e unio das Igrejas em Roma e Constantinopla. Por outro lado,
Jernimo, o campeo da simulatio, agora parece mostrar maior flexibilidade, reconhecendo a
historicidade de uma traduo e a importncia de voltar ao texto original para sustentar os textos da
)151
doutrina crist contra as crticas dos judeus. Muito embora, no devemos nos enganar aqui tambm:
o monge fia-se a critrios arqueo-filolgicos do texto, buscando sempre a interpretao literal de
determinada passagem. Ele um amante das palavras.
Assim, emprestando as palavras de Kelly, patente que Jernimo mostrou um instinto
acadmico verdadeiro e o mesmo respeito ur-auctoritas da tradio ao preferir o Velho
Testamento hebraico Septuaginta, ao passo que Agostinho estava em grande parte correto em sua
interpretao (obstinada) de Gal 2:11-14363. Ao cabo, Agostinho reconhecer a importncia
propagandstica e cientfica do projeto de Jernimo364, mas nunca deixar de se mostrar resoluto em
sua preferncia pela Septuaginta365 . Sua resistncia substituio dos textos latinos traduzidos a
partir do grego por aqueles traduzidos por Jernimo a partir do hebraico, e sua fidelidade verso
latina da Afra366 teriam ao cabo obstrudo o uso da Vulgata at o sculo VIII, por ocasio da
chamada Reforma Carolngia.
O debate sobre a interpretao e traduo das Escrituras empreendido por Jernimo e
Agostinho em suas cartas permite-nos entrever por fim dois modelos de estudos escriturrios,
fundamentados em dois critrios dissonantes, se no opostos, de auctoritas. Ele est no corao da
disputatio do primeiro perodo, e se convenciona tambm com a questo d. Agostinho, na posio
de magister e, com o bem da palavra, philosophus christianus, defende suas interpretaes a partir
da regula fidei, a regra de f fundamentada em sua auctoritas episcopal coadunada com a
especulao da razo; ao passo que a Jernimo, esse ano que se sobrepunha no ombro de Orgenes
e outros gigantes, valia sobretudo a vix verborum, a fora das palavras como balizadora da
verdade367. Nesse sentido, no exagero comparar a contenda com aquela que surgiu no final do
sculo XIX entre os austracos Friedrich Nietzsche, o filsofo, e Ulrich von Wilamowitz-
Mllendorf, o fillogo.

II. B. 10. Uma interrupo abrupta


Embora Agostinho concordasse com Jernimo que fosse necessrio substituir as verses
latinas das Escrituras, as crticas que ele fez dos mtodos interpretativos e tradutrios do
Estridonense sobrepesou mais ainda uma relao j fragilizada368 . O bispo de Hipona, alm de ter
questionado a capacidade do autor como estudioso ao ter insistido em repreender um erro de
interpretao, colocava agora em dvida a auctoritas e a integritas de Jernimo em um campo no
qual ele at ento nunca fora desafiado, a traduo das Escrituras. A defesa da veritas graeca frente
veritas hebraica deve ter sido a gota dgua para o monge de Belm.

)152
Jernimo assim rompeu seu dilogo epistolar com Agostinho. Fosse por ele ter
deliberadamente ignorado seu correspondente, fosse por ele se calar devido s atribulaes de sua
vida pessoal369 afinal, Jernimo j contava setenta e quatro anos em 405 , no houve reao,
ao menos nenhuma que conheamos, trplica agostiniana em Aug. Ep. 82. Talvez esta foi
satisfatria ao Estridonense, e ele acreditou que no havia mais nada de construtivo para se dizer.
Fato que nossos autores nunca retornaro expressamente questo do officiosum mendacium, cuja
interpretao permaneceu em aberto: Jernimo no deu o brao a torcer, e Agostinho no a
asseverou em definitivo. Na realidade, essa uma discusso que no foi solucionaao at hoje e
ainda permanece no Vaticano370 .
Inicia-se aqui um silncio que vai durar dez anos.

II. C. nterim, 405-415


II. C. 1. A condenao dos donatistas
Ao longo da primeira dcada em que se correspondeu com Jernimo, Agostinho deixou de
ser o presbtero novato que procurava enfrentar a auctoritas de seu correspondente para se tornar
ele mesmo um bispo de grande auctoritas, famoso em todo o Ocidente por seu papel nas polmicas
maniqueia e donatista no Norte da frica. Mas, ainda que j fosse um homem pblico e cheio de
responsabilidades, o bispo de Hipona nunca abandonara sua busca pela veritas. Para ele, como
Ambrsio havia lhe indicado, esta passou a se encerrar no ministrio da Sacristia crist: o dever do
pregador era cuidar dos cidados do mundo no desta terra, de Roma, mas da Jerusalm
Celeste371. A distino entre a civitas terrena e a civitas Dei tornou-se a principal preocupao de
Agostinho no incio do quinto sculo. O fruto dessa busca, talvez a empresa mais importante do
nterim que separa sua correspondncia com Jernimo, foi o incio do De civitate Dei, chamado de
Cidade de Deus em portugus, livro que Agostinho comeou a escrever entre 412 e 413 e que
terminaria em idos de 428, apenas quinze anos mais tarde372 .
A Cidade de Deus foi escrita em reao ao saque de Alarico, o general dos visigodos, em
Roma, evento que chocou o mundo romano373 . Durante trs dias em Agosto de 410, a cidade foi
pilhada e incendiada, no estopim de um movimento de migraes brbaras que amedrontavam civis
romani Imprio afora; tanto Jernimo374 quanto Agostinho375 lamentaram essa situao em diversas
de suas cartas e sermes. A invaso visigtica catalizou uma onda de refugiados da Itlia, muitos
dos quais migraram para a Numdia376 . Entre eles estavam Piniano, sua esposa Albina e sua filha
Melnia, da mesma estirpe de Paula e Eustquio, e um monge Breto, Pelgio, que se tornar um
personagem central para o cristianismo377. O Imprio mergulhava novamente em crise, com a
)153
Bretanha declarando-se independente e a Glia sendo dominada por usurpadores. A frica, em
grande parte por interveno de Agostinho e dos demais bispos catlicos, permaneceu fiel ao
imperador378; ainda que as autoridades seculares cartaginenses tenham a princpio buscado outorgar
leis de tolerncia para com os donatistas a fim de apaziguar os nimos conturbados379, o clero
ortodoxo tomava providncias. Assim, da sede Imperial em Ravena vieram, imediatamente aps a
investida visigtica, leis que reafirmavam o dito de Unidade e baniam definitivamente os sectos
no-catlicos380.
A concluso desse cenrio foi a condenao final do donatismo em 411, graas aos esforos
do bispo de Hipona, ao clima de pnico por todo o Imprio, e mediao do tribunus Flvio
Marcelino381, um oficial pblico enviado pelo Imperador Honrio para chefiar uma collatio em
Cartago382. Qual a vitria de Ccero sobre Verres, a de Agostinho significou a solidificao de sua
autoridade em uma instituio, a Igreja Africana, e o incio de sua fama internacional. Em
retribuio ao apoio poltico da Repblico, o Tagastense dedicou a Marcelino seu magnum opus et
arduum, justamente a Cidade de Deus383. Nesta obra, Agostinho mostrava-se duro no combate
contra as heresias, passando a defender a necessidade de observao pblica da conduta crist. Leis
seculares, realizadas pelos homens e inspiradas por Deus, deveriam fundamentar a governana da
civitas terrena384 . Uma vez que o homem comum permanecia um escravo do hbito, era preciso
reform-lo atravs da autoridade eclesistica385. Tal se torna a misso do clero: a disciplina torna-se
uma vez mais a protagonista da auctoritas episcopal. Estreitam-se os laos entre Igreja e Repblica,
entre f e poltico.
No entanto, a Cidade de Deus tambm representou, semelhante s Confisses, o fechamento
de um ciclo, no que Agostinho buscava superar sua formao pag. A tradio ciceroniana, o mos
maiorum, deixa de ter grande importncia para o bispo, tornando-se cada vez mais caduca e
alienada da nova moral crist386 . O inimigo no era mais exatamente o homme des lettres romano
culto, a quem era um heri Virglio agora demarcado como vosso poeta ou poeta deles387 ;
desterr-los era simples e breve: bastava mostrar a incongruncia da gloria, a glria mundana, e da
libido dominandi, a sede de poder, valores que haviam servido de motor aos grandes feitos da
civilizao romana, dos princpios cristos, puros e superiores388 . Os neoplatnicos representavam
adversrios mais formidveis. Plotino, e principalmente Porfrio, so os principais alvos de
Agostinho nessa obra389. Fazia-se necessrio finalmente separar o joio de Plato do trigo de Cristo,
e estabelecer vigas morais slidas e distintas daquelas da filosofia helenstica.
Agostinho havia comeado uma nova fase de sua carreira. O bispo j era um homem quase
velho, contando cinquenta e seis anos em 410, cuja sade j dava sinais de desgaste390 , e que
)154
abandonara de vez suas pretenses de viver uma vida contemplativa391 para abraar a oportunidade
de encabear a Igreja Africana e tomar papel mais ativo nas polmicas crists. Qual um veterano do
exrcito de Cristo contra os donatistas, um pensador que buscava traduzir as consequncias do
saque de Alarico para o mundo e para os cristos, e um homem que acertava as contas com seu
passado, tornando-se melhor conforme escreve392, este o Agostinho que encontramos no incio
da dcada de 410.

II. C. 2. A investida dos brbaros


Quanto ao monge de Belm nos anos seguintes a 405, encontramo-lo preparando
comentrios para os livros de Ezequiel393, de Daniel (prometido havia mais de uma dcada a
Paulino de Nola394 ), de Isaas, de Jeremias (este inacabado)395 e de profetas menores como Oseias,
Joel, Ams, Malaquias e Zacarias todos os quais se fundamentavam nos comentrios de
Orgenes (de fato, o monge de Belm nunca resolvera sua relao ambgua com o Alexandrino)396 .
Jernimo tambm havia selado seu projeto de tradues das Escrituras a partir da veritas hebraica
em meados de 405; tradues dos patriarcas, no entanto, parecem ter cessado. Jernimo uma vez
mais mergulhara nos estudos das Escrituras, a fim de encontrar alvio e conforto das calamidades
mundanas, as quais pareciam-lhe anunciar o fim dos tempos397.
Houve uma nova polmica em que o monge participara, contra Vigilncio de Aquitnia, um
bispo que Jernimo havia recebido em Belm ainda em 395 e que ento j havia lhe causado
problemas, pois espalhara rumores de que o Estridonense era um origenista398. A contenda se deu
em torno do culto de relquias e do ministrio de viglias noturnas399. O resultado foi a produo de
uma apologia contra o Aquitans, o Contra Vigilantium liber, e a consequente damnatio memoriae
de Vigilncio, cuja obra desapareceu. Mas o Estridonense estava escrevendo cada vez menos. Sua
idade avanada, de oitenta e um anos em 410, sobrepesada por diversos infortnios a sade cada
vez mais debilitada, a cegueira, as mortes de seus amigos mais prximos (Paula em 404; Pamquio
e Marcela em 409), a migrao de povos brbaros na Itlia, no Egito, na Fencia, na Galileia e
mesmo na Palestina contriburam para criar, segundo o prprio Jernimo, um estado catico que
prevalecer durante seus anos finais, fazendo-o calar-se longamente e interromper os estudos400.
Este estado turbulento de coisas mencionado expressamente em uma carta, Hier. Ep. 126,
que Jernimo enviou ao tribunus Flvio Marcelino e a Anapsquias, esposa deste, no ano de 412,
ambos os quais estavam ento em Cartago. Nesse texto, o Estridonense menciona uma investida
dos brbaros (o monge no precisa quem seriam) que varreu o Oriente como um furaco que
devasta tudo por onde passa, de modo que ele prprio quase no escapou da morte e precisou
)155
cessar seu trabalho401 . Marcelino, no entanto, no teve a mesma sorte e logo viria a morrer.
Envolvido em uma revolta liderada pelo conde africano Heracliano em 413, o tribunus foi preso e
condenado pelo Imperador402 . Esta notcia deixou Agostinho, que havia lhe acompanhado por anos
no combate contra o donatismo, arrasado403.
Mas h um outro problema, mais importante para nossos estudos, que Jernimo aborda
brevemente em Hier. Ep. 126: a origem da alma do homem, questo de urgncia doutrinria da
Igreja no perodo404. Contra todas as expectativas, Jernimo recomendou Agostinho para que
solucionasse dvidas sobre esse assunto que Marcelino havia abordado em uma mensagem anterior
e hoje perdida, sem deixar de elencar, com sua erudio costumeira, as cinco hipteses ou opiniones
acerca do assunto, s vezes de uma bibliografia de diversos pensadores pagos e cristos, da Grcia
arcaica at o tempo presente, que trataram sobre a origem da alma do homem.
Atravs do conselho de Jernimo para que Marcelino e Anapsquias busquem o parecer de
Agostinho, o monge de Belm parece sinalizar de maneira indireta, que deseja retomar o dilogo
com seu correspondente. No deixa de ser irnico que Jernimo venha a deixar para o bispo de
Hipona a resoluo de um problema que nem mesmo ele pde resolver. Teria ele reconhecido a
autoridade do bispo e aceito sua amizade ou estaria ele desafiando Agostinho a deliberar sobre
um dos problemas mais espinhosos da teologia tetracentista? Seja como for, o monge passou a
tarefa para seu correspondente405.
E assim se interrompe a tacitez de quase dez anos que separa Aug. Ep. 82, escrita no ano de
405, de Hier. Ep. 126, enviada no ano de 412.

II. D. Segundo perodo da correspondncia, 412/415-419


II. D. 1. A origem da alma do homem e a concluso do apstolo Tiago406
Flvio Marcelino procurou Agostinho ainda no ano de 412, inqurito que acabou por
produzir dois tratados filosficos, escritos s vezes de cartas entre os anos de 412 e 415, Aug. Ep.
166-167. Esses textos, dedicados a Jernimo, foram entregues ao monge pelas mos de Paulo
Orsio407 , presbtero hispnico que o bispo de Hipona conhecera na poca em que escrevia a
Cidade de Deus. O primeiro tratado, intitulado De origine animae hominis, abordava diretamente a
questo colocada por Marcelino, concentrando-se em duas hipteses sobre a origem da alma do
homem, a do criacionismo, de que cada alma criada individualmente a cada indivduo, opinio
que era a de Jernimo e a da Igreja Oriental; e a do traducionismo, de que as almas descendem
todas de uma alma s, a de Ado, da qual herdam o Pecado Original, tese esta de maior fortuna na
Igreja Ocidental. O outro tratado, intitulado De sententia Iacobi apostoli, tratava de uma concluso
)156
do apstolo Tiago sobre a paridade dos pecados e sobre o significado da Lei judaica (o qual,
Agostinho conclui, a caritas ou o amor)408. pertinente lembrar que tais obras, como apontamos
no captulo anterior, no configuram cartas propriamente, mas livros mandados em ocasio de
missivas409.
Atravs desses textos, o bispo de Hipona sinaliza que tambm deseja retomar seu dilogo
com Jernimo, inclusive alguns dos assuntos abordados h uma dcada: alm da reabertura da
causa da Lei e do retorno temtica da caritas em Aug. Ep. 167, ambos os tratados contm ecos e
indiretas relativos postura do Estridonense em suas mensagens anteriores, principalmente no que
tange ingenua servitus dele frente literatura crist410, sua incapacidade de receber crticas411, e
ao problema da auctoritas entre velhos e jovens412 . como algum j senil que Agostinho fala, mas
no por isso, diz o autor, que ele teria vergonha de aprender aquilo que ele no sabe413 qual
Jernimo, h dez anos. Embora uma afirmao desse tipo seja tpica no gnero epistolar, a presena
dela no texto do bispo adquire, luz da correspondncia passada entre nossos autores, significado
especial. Em ambos os tratados o Tagastense relembra inclusive do dever cristo do monge em lhe
conceder perdo (pela mesma misericrdia de Paulo)414 .
Assim, embora o tom de Agostinho seja mais diplomtico nesses tratados, e neles se evite
qualquer tipo de censura, o autor novamente insiste tanto em estabelecer uma troca amigvel de
repreenses com seu correspondente, quanto em lhe enfrentar no campus Scripturarum415 . O bispo
sabia que Jernimo havia defendido o criacionismo anmico na apologia contra Rufino416, hiptese
que colocava problemas ao modo de transmisso Pecado Original, conceito a que a opinio do
traducionismo era mais adequada (afinal, no possvel que Jernimo negue, como fazem alguns
sectos herticos, a herana do Pecado Original e a necessidade salvfica da Graa de Cristo no
batismo417). Ainda que Agostinho no endosse expressamente nenhuma das duas hipteses em Aug.
Ep. 166, ele procura argumentos, talvez em deferncia a seu interlocutor, para sustentar a teoria
criacionista418, mas no deixa de adicionar: se ela estiver errada, tanto Agostinho quanto Jernimo
devem abandon-la, para que a verdadeira f no seja ofendida419 . Com esprito provocador, o bispo
de Hipona aproveita tambm para criticar duas passagens bblicas elencadas por Jernimo anos
antes para defender o criacionismo em sua apologia contra Joo de Jerusalm420; aos olhos de
Agostinho, elas so insuficientes. Certa ratio: isso que o autor procura mais uma vez de seu
correspondente, agora sobre o problema da origem da alma e sobre a concluso do apstolo Tiago.
Uma nova batalha nunca aconteceria. Ao agradecer os tratados agostinianos em sua prxima
carta, Hier. Ep. 134, enviada em 416 tambm em mos de um Paulo Orsio que voltava a Cartago
em 416, para representar Agostinho em um conclio carta que consistiu na primeira troca direta
)157
entre os autores desde Aug. Ep. 82 , o monge de Belm esquiva-se uma vez mais do debate,
alegando que no teve tempo de responder e elencando o mesmssimo verso paulino com o qual
havia afastado o jovem presbtero vinte anos antes: cada um conhece bem seu prprio modo de
pensar421. Jernimo era um homem velho, acometido por muitos problemas nesses que seriam os
anos finais de sua vida, um perodo muito difcil em suas prprias palavras422. Seu mosteiro havia
sido atacado recentemente por seus inimigos423, e ataques de povos brbaros na Palestina ocasionou
uma acentuada escassez de copistas falantes do latim, de modo que seus planos literrios, inclusive
o envio da Septuaginta e de outros livros a Agostinho, requisitados havia j dez anos, tiveram de ser
postergados424. O nico conforto do velho monge estava em Eustquio e na jovem Paula, esta a neta
de Paula, a Velha, que havia morrido em 404.
A imagem de Jernimo, entretanto, deceptiva: o boi cansado, dizia ele, pisa com mais
firmeza. Se o Estridonense carece, em seus anos finais, da mesma contundncia ameaadora que
havia anteriormente aplicado em Agostinho, sua espirituosidade irnica no mostra sinais de fadiga.
Certo, o monge agora cumprimenta a eloquentia de seu correspondente; chama Agostinho de tua
reverncia.; pede para louvar um pouquinho o talento do bispo; afirma que somente pessoas
dissimuladas vo pensar que qualquer divergncia de opinio entre eles se deva a um rano da
alma425. Eis uma situao diferente, que seja pelo inflexvel Jernimo que a correspondncia tenha
sido retomada, e com tantos elogios. Teria o autor mudado de opinio sobre Agostinho, e finalmente
aceito seu correspondente como um igual? Trata-se de uma hiptese possvel, mas acreditamos que
no. O excesso de efusividade do Estridonense, a nosso ver, parece ser fruto de uma bajulao
capciosa; sintomtico que ele se recuse novamente a dar ateno aos pedidos do bispo de Hipona.
Ainda que tratassem de problemas distintos, Aug. Ep. 166-167 convergiam em um nico
ponto: a necessidade da mediao da Graa de Cristo para a remisso dos pecados, tanto a remisso
do Pecado Original de Ado no batismo, intrinsecamente ligado origem da alma; quanto a
remisso dos pequenos pecados do dia-a-dia, dos quais fala Tiago. Esta questo estava no corao
do pensamento de Pelgio, monge asctico da Bretanha. Ainda que nossos autores, ao voltarem a se
corresponder, no tenham por isso superado o rancor que dominou em suas primeiras cartas, ou
sequer firmado uma relao de amizade ou debatido de fato essas questes, ambos se mostram
agora dispostos a deixar as diferenas de lado e a unir foras contra um problema maior, a mais
perigosa heresia das igrejas426 , o pelagianismo.

)158
II. D. 2. A polmica pelagiana427
Havia outra razo pela qual Agostinho havia escolhido justamente Paulo Orsio para levar
seus tratados at Jernimo em Belm. Esse jovem opinativo, impetuoso e ctico fora um dos
principais opositores do priscilianismo428 , um outro secto rigorista que ento assolava a Igreja
hispnica; Orsio provavelmente foi recrutado pelo bispo de Hipona como um reforo luta contra
a resistncia heterodoxa ao catolicismo da Igreja Romana. No ano de 415, o presbtero havia
viajado at a Palestina e a Judeia para participar de um conclio em Jerusalm e de um snodo em
Dispolis429. Enquanto estava no Oriente, portando Aug. Ep. 166-167, Orsio aproveitou para
buscar, provavelmente em nome de Agostinho, a adeso de Jernimo no que seria a ltima batalha
de nossos autores pela ortodoxia430. O principal adversrio da recta fides nesta segunda dcada do
quinto sculo foi Pelgio, lder de um secto asctico que negava o Pecado Original. Ou assim
Agostinho, o protagonista desta polmica, queria que se acreditasse: o pelagianismo, entendido
como uma doutrina, nunca existiu se no nos escritos do bispo de Hipona431.
Sabemos muito pouco sobre Pelgio (ca. 354 - aps 418)432 . Como Agostinho, ele era um
provinciano que vinha das margens do Imprio, em seu caso dos glidos paludes da Bretanha.
Pelgio tinha exatamente a mesma idade que Agostinho, e se mudara para Roma tambm em idos
de 383-384, na mesma poca em que o Tagastense lecionara retrica por l. Assim como a obra do
bispo, os escritos de Pelgio eram amplamente admirados pela facundia, riqueza, e acrimonia,
preciso433 ; eles eram lidos nos mesmos crculos sociais em que se discutiam os textos de
Agostinho e de Jernimo. De fato, a biografia desse personagem bastante semelhante do bispo
at que entremos em sua vida adulta.
O leitor deve se lembrar que Agostinho contemplara durante quatro anos, de 387 a 391, a
carreira de um filsofo cristo, um monge que se entregasse contemplao da verdade divina,
planos que abandonara ao assumir o fardo do presbiterado em Hipona e tomar as responsabilidades
e a autoridade que sua posio eclesistica lhe conferia. O ano de 391 tambm foi transformador
para Pelgio. O monge Breto resolveu permanecer em Roma, onde se tornara, semelhana de
Jernimo, imensamente famoso como um lder espiritual da aristocracia Paulino de Nola foi um
de seus mecenas, assim como Joo de Jerusalm, a bte noire de Jernimo434; e ficou na capital at
410, quando, fugindo da invaso dos godos, aportou primeiro na frica e depois na Palestina, terra
em conquistou diversos seguidores, entre os quais o jurista Celstio, o qual seria o verdadeiro
responsvel pela difuso de seus escritos e pela contenda que se deu acerca de seus
ensinamentos435.

)159
Pelgio parecia trilhar o caminho do filsofo do qual Agostinho havia se afastado. De certa
maneira, ele representava o velho ideal agostiniano de uma vida monstica contemplativa,
cosmopolita e asctica, um reflexo turvo do que o bispo de Hipona poderia ter sido. Um autor
sobretudo marcado pela independncia intelectual e por uma mente livre das amarras da tradio, o
monge Breto questionava pontos escriturrios que um bispo de uma provncia da frica e um
velho polemista considerariam concludos e indiscutveis. Uma carta que ele escrevera em 413 a
Demtria, uma de suas seguidoras, continha uma mensagem simples e controversa: j que a
perfeio possvel ao homem, ela obrigatria436 . Sede vs pois perfeitos, como perfeito o
vosso Pai que est nos cus437. Em nenhum momento Pelgio parece ter duvidadoe que o homem
poderia conquistar a perfeio terrena, semelhana de Cristo: seu Deus, como o Deus dos judeus e
dos donatistas, era o Deus que exigia obedincia total e irredarguvel do cristo.
No que diz respeito doutrina, o problema do pelagianismo residia fundamentalmente em
sua concepo radicalmente asctica de alma, e assim de natureza humana. Para os seguidores de
Pelgio, a alma era dotada da mesma substncia divina, de modo que ela gozava de uma liberdade
total de escolha. O livre arbtrio est no centro da pregao pelagiana: atravs deste, que eles
consideravam o mais completo dom divino no homem, o cristo tem total responsabilidade por seus
bem-feitos e tambm por seus pecados. No que Pelgio negasse o poder mediador da Graa,
mas esta no lhe representava o poder misterioso da eterna misericrdia de Deus que perdoa todos
os pecados, como acreditava a Igreja em Roma. Para o monge Breto, a Graa era antes
simbolizada pela exortao moral e pelo exemplo supremo de Cristo, a quem os cristos deveriam
seguir e imitar. Ela est fundamentalmente ligado ao livre arbtrio, atravs do qual o homem tem a
possibilidade, ou melhor, o dever de obedecer a Deus e buscar a perfeio438 .
Os ensinamentos de Pelgio acabaram invariavelmente tocando em pontos bastante
controversos da teologia tetracentista. O primeiro deles residia na relao do homem com o pecado.
Pelgio se recusava a aceitar que a capacidade de aperfeioamento da alma fosse limitada por um
Pecado Original, ideia que lhe soava absurda439 . Igualmente, a viso agostiniana do pecado como
algo incontornvel e essencialmente humano parecia a Pelgio fruto de pregao barata e
ineficiente, tendo ocasionado a escrita de uma apologia raivosa contra o Tagastense, o De natura440.
Para Agostinho essas concluses de Pelgio levariam a um refluxo de um paganismo441
sustentado nos ideais estoicos de , a liberdade das tribulaes, e , liberdade das
paixes; no jargo catlico, impeccantia, liberdade dos pecados442. Em todas as principais obras
que o bispo de Hipona publicou entre 415 e 421 contra os pelagianos, das quais podemos destacar o
tratado sobre a natureza e a Graa (De natura et gratia)443, escrito a Timsio e Tiago, ex-alunos de
)160
Pelgio, em retaliao sua obra; o tratado sobre os mritos e remisso dos pecados e sobre o
batismo dos recm-nascidos (De peccatorum meritis et remissione et de baptismo parvulorum)444; o
tratado sobre os filhos dos adlteros (De coniugis adulterinis)445 ; um tratado sobre a alma e sua
origem (De anima et eius origine)446; mesmo Aug. Ep. 166-167; e o tratado sobre o esprito e a letra
(De spiritu et littera)447, considerado pelo prprio autor como sua obra anti-pelagiana definitiva,
enfatiza-se muito a insuficincia da alma humana e a impossibilidade de viver sem pecado na terra,
a fim de minar os ideais ascticos de Pelgio. Mais que isso, nelas Agostinho busca diferenciar o
livre arbtrio da Graa de Cristo. O Tagastense j havia demarcado esses problemas anteriormente,
contra os donatistas: de fato, a vontade de Pelgio em edificar uma Igreja sem mancha ou chaga
em grande parte se assemelhava aos objetivos daqueles que concebiam o cristianismo como uma
Lei448. Tanto o donatismo quanto o pelagianismo colocavam um peso desproporcional nos mritos
de nossas prprias aes, e o ideal de justia divina de ambos os sectos pressupunha um Deus a
quem era obrigatrio a retribuio dos esforos humanos. Trocando em midos, a salvao, para os
pelagianos, semelhana dos donatistas, era uma conquista da boa conduta humana, e no uma
ddiva da Graa de Cristo.
No entanto, Pelgio era antes um pensador, e sua doutrina fazia-se fundamentalmente como
um corpo de argumentaes (em latim disputationes), no uma srie de panfletarismos ou
polmicas. Em nenhum momento o monge Breto desejou desviar da retido da f; foi por um
golpe da histria que seus ideais acabaram lanando um verdadeiro movimento de ascetismo em
Roma449 . imperativo relevar, aqui, que a assim dita polmica pelagiana se d no contexto das
migraes brbaras450. O pelagianismo apelava para um tema universal, crtico para a poca
turbulenta em que nossos autores viveram: a necessidade de criar e sustentar uma identidade frente
a insuficincia e a incerteza da vida social e poltica do mundo helenstico, cujos homens viam seus
valores se dissolvendo ante rpidas mudanas de paradigmas e de valores. Nesse sentido, a
mensagem de Pelgio foi reconfortante aos espritos romanos em confuso, particularmente os da
aristocracia: havia uma certeza absoluta, e ela estava na obedincia absoluta a Deus.
O monge Breto e o bispo de Hipona buscaram cada um a seu modo uma resposta para o
mal do mundo e, a partir dela, a possibilidade de reformar a eclsia de dentro para fora. A grande
contribuio destes dois autores foi apresentar, cada um deles, qual duas faces de Paulo de Tarso,
uma identidade crist coesa que servisse de alternativa para a civitas romana. Mas h uma diferena
fundamental que se coloca em suas concepes para o catolicismo. Agostinho abraou os ideais de
auctoritas e de disciplina, reinterpretando e transformando o passado pago, buscando assim atar os
laos da civitas Dei com a civitas terrena, a fim de que a Igreja pudesse se expandir pelo mundo
)161
todo e se tornar a Repblica; por sua vez, Pelgio ainda pensava o cristianismo como um pequeno
grupo dentro de um mundo pago hostil, cujos valores deveriam ser negados e abandonados. A
Igreja pelagiana de fato pressupunha expandir-se, tornar-se catlica no sentido de universal, mas
de maneira que demolisse, no que absorvesse, a societas do mundo antigo. Nas palavras de Peter
Brown, eis a caracterstica mais marcante deste movimento: a corrente de perfeccionismo que levou
os seguidores de Jernimo a acompanh-lo at Belm, e que levou Agostinho a abraar uma vida de
pobreza no interior da frica, de repente sugerido para toda a Igreja. Os pelagianos queriam que
todos os cristos fossem monges451 .
O segundo ponto controverso defendido por Pelgio decorre da negao do Pecado Original.
Ao se afirmar tal coisa, segue-se que o batismo torna-se um sacramento sem necessidade salvfica,
realizado pelo puro hbito452. Isso vale inclusive para o batismo infantil, pois no h herana do
pecado de Ado nos recm-nascidos. No entanto, essa posio causou pouco rebulio Imprio afora.
Na maior parte do mundo romano, o batismo era visto como um ritual que simbolizava uma
transformao radical, aplicado apenas em homens adultos que deixavam conscientemente uma
vida de pecados para trs. De fato, ainda que nenhum cristo negasse a necessidade salvfica do
sacramento, aplic-lo em crianas era uma atitude estranha, pois estas poderiam se tornar pecadoras
e, a grupos cristos que ainda partilhavam da mentalidade combativa de pureza em relao ao
mundo, nocivas comunidade. Houve um autor, no entanto, que havia h muito defendido a
necessidade do batismo infantil, baseando-se um proto-raciocnio que levava a ideia de Pecado
Original: Cipriano de Cartago, em cuja auctoritas se fundamentava a tradio eclesistica
africana453 . Assim, os bispos da Numdia, que h mais de um sculo sustentavam a necessidade do
batismo infantil para salvar as crianas do pecado de Ado, no iriam tolerar as especulaes
trazidas por Celstio e Pelgio.
Assim, os objetivos do monge Breto, ainda que honestos e puros, eram perigosos. Seus
ideais reformistas ameaavam a auctoritas da Igreja como instituio mediadora da Graa, essa
estrutura eclesistica pan-crist e aberta segundo a concepo agostiniana. De fato, o bispo de
Hipona, em suas obras contra os pelagianos, vai apelar no raro sua posio episcopal para
defender seu ponto de vista contra as ideias monge Breto: nisso que a Igreja acredita, isso
que a Igreja coloca, na f mais slida (fundatissima fides) que isso se sustenta so refres
constantes454; entenda-se por Igreja a instituio romana, mas sustentada ideologicamente pela
tradio norte-africana cujo patrono era Cipriano. apoiado nos escritos desse autor, e em reao
polmica pelagiana que o bispo de Hipona desenvolver os conceitos que se tornaro centrais para o

)162
seu pensamento: o Pecado Original, a predestinao, a Graa para assim se tornar, nas palavras
de Henri-Irne Marrou, o campeo moral que a posteridade acabou por nos legar455 .
Assim, os problemas colocados por Pelgio fez com que Agostinho tornasse mais robusta
sua filosofia e sua atuao como bispo, trazendo uma mudana final na interpretao que at ento
se fazia da relao do homem com o pecado. No que antes se costumava colocar um peso
descomunal neste, como se fosse necessrio contorn-lo ou remedi-lo a qualquer custo atravs de
mecanismos de compensao como a auto-flagelao, o bispo de Hipona procura novamente
demonstrar que no se vive sem pecado. Peca-se inconscientemente, atravs de pensamentos, de
atos falhos456. Aqui, Agostinho parece ter em mente o homem comum, ou melhor, todos os homens,
os quais no so capazes de regular sozinhos os seus pensamentos e suas aes457; cada homem
parece ser movido por uma fora interior the life of the mind, cuja histria o autor narrara em
suas Confisses que lhe foge ao controle e da qual ele no plenamente ciente. Uma vez que no
pode deixar de pecar, o homem agostiniano permanece sempre incapaz de atingir a perfeio nesta
vida; esta existe apenas na vida espiritual458 . Sendo impossvel controlar totalmente nossas aes,
resta confiar em Cristo, o nico mediador, para interceder por ns, sem a Graa do qual o homem
no suficiente459 ; a Graa que ministrada pela Igreja catlica, nica e universal, a qual vem em
auxlio do homem, atravs de um processo lento, errtico e progressivo de cura do pecado que
comea com o batismo460; Graa que a nica que pode libertar o homem, mesmo os recm-
nascidos, do pecado461.
A diferena entre Agostinho e Pelgio deixa de ser um debate abstrato sobre os limites da
responsabilidade, do pecado e do livre arbtrio para se tornar uma reflexo poltica sobre a
instituio da Igreja e sobre o papel do cristo na sociedade da Antiguidade Tardia. Peter Brown462
nos mostrou que esta diferena pode ser sintetizada nas questes abordadas por um e outro autor: ao
passo que o bispo de Hipona era fascinado pelos bebs, por como estes permaneciam indefesos e
constantemente dependentes do seio de suas mes, e pela questo do batismo infantil463; os
pelagianos, por sua vez, desdenhavam os recm-nascidos: a eles, a nomenclatura filhos de Deus
sinalizava que os cristos eram pessoas completamente separadas e independentes de Deus464 . O
homem pelagiano era concebido como um emancipatus a Deo, um escravo liberto do Senhor465 ,
auto-suficiente, livre e completamente responsvel por suas escolhas, no o invlido agostiniano
que permanecia merc do grande hospital eclesistico que o Tagastense havia concebido ao
batalhar os donatistas.
O livre arbtrio, conceito que se faz corao na polmica, representava ento uma faca de
dois gumes para os pelagianos. Ao mesmo tempo que emancipadora, este representava o peso da
)163
responsabilidade total e da solido; trata-se de uma liberdade angustiada, semelhante quela dos
existencialistas. Soltos em um mundo sem sentido e sem fim, o nico lastro do pelagiano a busca
individualista, asctica e cclica pela perfeio: il faut les imaginer heureux. O homem agostiniano,
por sua vez, no livre. Ele predestinado. Ele tem, entretanto, a vantagem de carregar consigo a
eterna misericdia de um Deus que amor e perdo infinitos; de estar absorto com outros cristos
na unio vasta e misteriosa do Esprito Santo.
H, por fim, uma terceira vertente do debate que est implcita nos tratados filosficos de
Agostinho. Os ideais de Pelgio no soavam estranhos a ouvidos versados na teologia oriental, a
qual defendia o criacionismo e colocava um grande peso na questo do pecado. Os patriarcas
gregos eram simpticos causa do monge breto e o admiravam466 . Podemos afirmar que o bispo
de Hipona, ao colocar-se contra Pelgio, fundamenta-se na mesma razo pela qual havia se
colocado contra a tradio origenista de Gal 2:11-14 dez anos antes: o autor deseja novamente
enfrentar a auctoritas da Igreja Oriental, portando-se como a voz da teologia latina467 . A batalha
contra o pelagianismo , em certos aspectos, a primeira grande discrdia entre a Igreja do Oriente e
do Ocidente, a origem de um cisma embrionrio que se consolidaria mais de quinhentos anos
depois.

II. D. 3. Agostinho e Jernimo contra Pelgio468


A polmica pelagiana representou uma ameaa aos fundamentos mais slidos do
pensamento agostiniano e da auctoritas da Igreja conforme o bispo de Hipona a concebia. No
por menos que a luta contra Pelgio extrapolou os limites do debate doutrinrio, semelhante ao que
havia acontecido anos antes contra os donatistas. O combate tambm se deu por vias oficiais
conclios e snodos em Jerusalm e Dispolis em 415, Milevis e Cartago em 416, collationes e
ditos ora de tolerncia, ora de proibio mas em circunstncias bastante diferentes daquelas que
regeram aquela polmica. O donatismo era uma questo regional da frica; o pelagianismo foi um
problema concernente a toda a cristandade. Afirmar que os pelagianos estavam errados pelo puro
argumento da tradio no era suficiente. Era preciso requisitar as foras de toda a comunidade
eclesistica ortodoxa para derrot-los. Agostinho intitulou essa cruzada de causa gratiae, a
campanha pela Graa469 .
Entre os anos de 415 e 419, todo o Imprio, de Roma a Constantinopla, comeou a ser
pilhado com textos alarmistas do Tagastense: panfletos, apologias, cartas enviadas a
correspondentes distantes e eminentes como o papa Inocncio I; o praefectus praetorio Drdano na
Glia; o bispo Joo em Jerusalm e o bispo Eulgio em Cesareia; o bispo Cirilo em Alexandria; o
)164
bispo tico em Constantinopla; Bonifcio, conde romano, e Sixto, presbtero, ambos os quais
seriam papas futuramente; Paulino de Nola e o senador Oceano, na Itlia; os prprios imperadores
Teodsio e Honrio; e, certamente, Jernimo470.
Ainda que sua fama fossegrande entre os latinos, Agostinho era praticamente um
desconhecido fora do mundo ocidental. Sua vitria contra os donatistas o tornou ilustre entre os
cristos da frica, se muito os de Roma. O bispo de Hipona, no ano de 415, ainda era uma
autoridade provinciana, de modo que o prprio Pelgio podia porventura se perguntar: mas quem
Agostinho, afinal?471 Ao que parece, o Tagastense encontrou no dilogo epistolar com Jernimo
mais uma oportunidade de procurar a fama s custas de ofender homens ilustres. O monge
representava uma das principais autoridades do cristianismo, morava na mesma provncia onde
Pelgio ento residia, e dominava o grego, de modo que podia traduzir as obras e as cartas de
Agostinho no Oriente, intercedendo em seu nome472 . Jernimo era o homem da situao que seu
correspondente no podia ser473.
O bispo de Hipona havia tomado o papel de protagonista na polmica pelagiana, mas no
devemos concluir que o monge de Belm atuou como representante do bispo em Belm,
subestimando seu papel na polmica. Antes mesmo de reagir aos tratados de Agostinho, Jernimo
havia escrito uma longa carta a seu amigo Ctesifo, a qual configurava verdadeiro tratado anti-
pelagiano, certamente influenciado por Aug. Ep. 167 por enfatizar a questo dos vcios e das
virtudes474 . A obra mxima do Estridonense produzida durante esta controvrsia, ltima que
completou em sua vida, foi tambm a derradeira de suas polmicas: o dilogo contra os pelagianos
(Dialogus adversus Pelagianos), publicado ca. 415, livro em que Jernimo acusa Pelgio
impiedosamente de ser um pago ao atribuir-lhe o epnimo helenfilo Critbulo475. Agora, se
Agostinho enxerga o pelagianismo como um retorno da controvrsia donatista, Jernimo ler a
doutrina do monge Breto na chave do origenismo. O Estridonense via no herege o sucessor
espiritual de Rufino476.
nesse contexto de polmica contra os pelagianos que Agostinho e Jernimo retomam sua
correspondncia de fato, portanto. As cartas que os autores trocaram entre 415 e 416 parecem ter
sido frequentes, mas muitas delas podemos inferir ao menos quatro, trs de Jernimo e uma de
Agostinho, levadas por personagens importantes da controvrsia, quais o presbtero Inocncio,
mensageiro de confiana de Jernimo, e o bispo Lzaro de Aix, que presidiu o Snodo de Dispolis
em 415 com Hero de Arles477 foram perdidas. A nica carta suprstite de Agostinho a Jernimo
nesse segundo perodo de correspondncia Aug. Ep. 19*.

)165
Esse texto, na qual o assunto novamente o pelagianismo, deve ter sido enviada no incio de
416, logo aps o Snodo de Dispolis, pois nela Agostinho menciona as objees dos
gauleses (isto , de Hero e de Lzaro) negadas por Pelgio em uma apologia, a chartula
defensionis478, e tambm mostra esperanas de que o asceta venha a confessar seus pecados. De
fato, tanto Pelgio tendo atribudo as acusaes a seus inimigos479 , isto , a Jernimo,
Agostinho e Orsio quanto Celstio foram inocentados durante aquele Snodo480. Se esta
concluso pareceu regular ao bispado do Oriente, ela ocasionou grande rebulio na frica e na
Cria Romana. Novos conclios, em Cartago e em Milevis, se encontraram para discutir as
consequncias do pelagianismo; deles que partiram as cartas que os bispos da frica enviaram ao
papa Inocncio481. Estas guardavam ento as marcas de uma verdadeira caa s bruxas, e alertavam
para os perigos que a heresia apresentava para a autoridade episcopal482.
O trinio de 416 a 418 foi o mais inflamado da controvrsia pelagiana. O clima era de
confuso por todo o Imprio; em uma carta a seu amigo Riprio, Jernimo menciona que teve de
fugir s pressas de seu mosteiro devido aos ventos contrrios que sopravam de Roma483. O papa
Inocncio, que chegou a condenar o pelagianismo no XV Conclio de Cartago em 417484, morreu
logo em seguida. Ele foi sucedido por Zsimo, um inimigo pessoal de Lzaro e Hero485 .
Impressionado com a seriedade de Celstio, que foi ter pessoalmente com ele em Roma486 , e
simptico com a busca de Pelgio por imitar Cristo, Zsimo revogou a excomunho dos pelagianos
e declarou tolerncia ao secto487. A crise descambou para verdadeiras manifestaes de fiis contra
catlicos nas ruas de Roma, coisa que as autoridades pblicas no iriam assistir impassveis. No
podemos precisar quando foi que a corte interviu no processo, mas certo que Pelgio e Celstio
foram enfim banidos dos limites da Itlia no ano de 418. Paldio, o ento praefectus praetorio de
Roma, foi encarregado de promulgar uma lei para superar todas as leis e pr um fim a qualquer
cisma que pudesse haver na Igreja488. Esse segundo dito de Unidade, maneira daquele
promulgado em 415 contra os donatistas, representa mais um passo na solidificao poltica da
Igreja catlica e ortodoxa.
Ento, aps muita presso dos bispos africanos e da interveno da corte, o papa decidiu
condenar de vez o pelagianismo em 418, aps o XVI Conclio de Cartago. A excomunho foi
outorgada em forma de lei: Zsimo redigiu uma epistula tractatoria, uma carta de deliberao, e
a fez circular em todo o Imprio489. Pelgio foi expulso de Jerusalm e fugiu para o Egito, onde foi
acolhido por Cirilo, patriarca de Alexandria, at sua morte490.
Com a derrota do pelagianismo, Agostinho tornou-se um autor de fama internacional, a vox
ecclesiae e o campeo da Graa que a tradio nos legou. Sua vitria significou um triunfo para a
)166
Igreja Africana e para a teologia latina491 . Se tomamos a liberdade de comparar os donatistas com
Verres, os pelagianos representaram o Catilina na carreira do bispo de Hipona. Jernimo ficou
encantado com a condenao do monge Breto. Em um bilhete que enviaa Agostinho em 418, Hier.
Ep. 141, o monge de Belm no economiza elogios: o bispo o refundador da f antiga, s vezes
de um Augusto, ou de uma nova encarnao de Paulo de Tarso; o fato de ser odiado pelos hereges
sinal de sua glria492.
No entanto, mesmo a palavra final de Zsimo no foi suficiente. O papa morreu em 418,
deixando a Igreja paralisada e dando aos seguidores de Pelgio a oportunidade de defender-se.
Jernimo recorda esta situao em mais um bilhete que envia a Agostinho em 418, Hier. Ep. 142,
carta em que infere haver pelagianos ainda em Jerusalm493 . Os bispos africanos foram rpidos
nesse problema, tendo contactado o senador Valrio494, que intercedeu pela Igreja Africana. Alm
disso, o sucessor de Zsimo, Bonifcio, tambm era um velho amigo pessoal de Jernimo495, e agiu
em vista de eliminar o pelagianismo. A legalidade deste secto foi momentnea e rapidamente
dirimida pelas autoridades496 .
O pelagianismo sofrera sua derrota institucional em 418, portanto. Mas os ideais do
progenitor desse movimento continuariam a conquistar adeptos durante muitos anos497. Um deles
foi Aniano, dicono de Celeda, na Itlia, que havia traduzido as homilias de Joo Crisstomo.
Assim Jernimo menciona, em uma carta que envia a Agostinho e a Alpio em 419, Hier. Ep. 143,
que est escrevendo livros contra os choramingos desajeitados deste herege498. Esta carta uma
resposta a outra perdida de Agostinho (e Alpio?) que tratava de Aniano; provavelmente houve
outras cartas trocadas entre os autores em que se discutiam as consequncias do pelagianismo para a
Igreja, as quais infelizmente se perderam499. Na mesma carta, Jernimo menciona a condenao de
Celstio500. A imagem que Hier. Ep. 143 nos deixa do pelagianismo a de um secto que sobrevivia
teimosamente, s escondidas.
Para os efeitos da posteridade, no entanto, Agostinho havia triunfado. De certa maneira, a
luta do bispo contra o pelagianismo representou uma defesa do catlico leigo e comum, em
oposio a um ideal austero e reformista, mais adequado Igreja primitiva, de um outro clube de
santos em que os cristos estariam condenados a permanecerem isolados e hostis ao mundo. Uma
concepo de catolicismo qual uma societas orgnica, incompleta na terra e fundamentada em um
ideal de dependncia da auctoritas eclesistica e da caritas divina, representa ideais que viriam a
dominar a Igreja nos sculos seguintes. Por mais que o pelagianismo tenha defendido sua pureza
crist, auto-consciente e abstrata, permaneceu atado a valores ticos que eram semelhantes s
filosofias pags. As exortaes morais de Pelgio apelavam velha sensibilidade de autonomia do
)167
esprito humano, to enfatizado pelos estoicos e epicuristas. Agostinho tinha o povo do seu lado; ele
aparece, uma vez mais, como um homem moderno em relao a seus pares.
Eis a realidade terrena que Agostinho almejava para a civitas Dei: que ela aceitasse o
homem comum, de boas intenes e capaz de fazer boas obras, que tivesse medo e dvidas, que no
contornasse a glria do mundo, sem a qual ele no poderia se firmar, que no deixasse de ser
humano; que a Igreja tivesse seus combatentes e seus leigos, sua vinha e seus plantadores, seu
rebanho e seus pastores501. Assim, a consequente vitria de Agostinho sobre Pelgio pode ser
interpretada como um sintoma notvel do processo que costumamos chamar de fim do Mundo
Antigo e incio da Idade Mdia502 .

II. D. 4. Uma interrupo premeditada


Enquanto Agostinho colhia os frutos de sua conquista, os anos finais de seu correspondente
Jernimo foram rduos. Pego no calor da controvrsia pelagiana, o velho autor foi perseguido e
obrigado a fugir diversas vezes de seu mosteiro; ele no tinha mais tempo, ou sequer sade (sua
cegueira j era completa), para trabalhar ou estudar503 . Seu comentrio sobre Jeremias nunca viria a
ser finalizado. A morte de Eustquio em 418504 foi o golpe de misericrdia neste homem que,
obstinado, recusava-se a mostrar sinais de fadiga em sua postura de combatente das heresias505 .
Eusbio Jernimo morreu em Belm no dia 30 de Setembro de 419 ou 420, aos oitenta e oito
ou oitenta e nove anos506, deixando Piniano, Melnia, Albina e Paula a cargo do mosteiro em
Belm507. A ltima carta que o autor enviou a Agostinho foi Hier. Ep. 143; no sabemos se esta foi
respondida. Para todos os efeitos, ela coloca um fim nesta relao bastante conturbada que dois dos
mais importantes autores cristos latinos do perodo travaram por meio de cartas. Ambos nunca se
conheceram pessoalmente.
Agostinho sobreviveria Jernimo por doze anos508. Neste tempo, o Tagastense, afamado no
mundo todo, nunca deixou de elogiar o velho monge de Belm509 , este que havia batalhado a
heresia pelagiana com tanto ardor. Mas a trgua que o bispo de Hipona teve ao vencer Pelgio
duraria pouco. O velho Agostinho logo se veria confrontado pelas sombras do pelagianismo, desta
vez figuradas em Juliano (ca. 386 - ca. 455), o jovem e brilhante bispo de Eclano, cuja obra veio a
ameaar as fundamentaes mais slidas de sua doutrina510 . Em um contexto de crise generalizada
no Imprio, no demoraria para que a Numdia e a Mauritnia fossem tambm invadidas por tribos
de vndalos, alanos e godos, forando a administrao da frica Romana ao colapso511.
Estas so histrias, porm, que ultrapassam os limites do perodo compreendido pela
correspondncia entre nossos autores; paremos, portanto, por aqui512.
)168
II. E. Problemas de correio513
Por ltimo, devemos abordar algumas questes materiais sobre a correspondncia.
A relao conturbada que predominou nas cartas trocadas pelos autores no deve ser
imputado simplesmente resistncia e m vontade de Jernimo, ou insistncia de Agostinho, mas
se explica tambm por problemas tpicos que a troca epistolar encontrava na Antiguidade Tardia.
Naquela poca, no havia um sistema organizado de mensageiros e o cursus publicus, o correio do
Imprio, s podia ser utilizado para a correspondncia oficial. Encontrar algum confivel para
enviar cartas era um grande problema514, ainda mais se levarmos em conta que Hipona distava dois
mil quilmetros de Belm.
O primeiro perodo de correspondncia, que se estende de 394/395 at 405, se deu em meio
a tantos encontros e desencontros que, catico, torna muito difcil at precisar quando, ou at se
Jernimo leu todas as cartas enviadas por Agostinho, e qual carta responde qual515. A primeira carta,
Aug. Ep. 28, fora enviada primeiramente por Profuturo, um mensageiro que desviou de rota, pois
foi ento eleito bispo de Cirta. Jernimo parece t-la recebido apenas em 403 ou 404, j depois da
segunda carta que Agostinho lhe enviou, Aug. Ep. 40516 . Esta, por sua vez mandada por intermdio
de um certo Paulo, chegou sem assinatura para o monge, e pelas mos de Sisnio, que havia a
encontrado perdida em uma ilha do Adritico. Jernimo s pde comprovar sua autenticidade aps
Agostinho ter-lhe enviado novas cpias, junto com a carta Aug. Ep. 71, que foi confiada ao dicono
Cipriano no ano de 402, e que acompanhava uma nova cpia de Aug. Ep. 28. No podemos precisar
quando Jernimo recebeu Aug. Ep. 71, se j ao escrever Hier. Ep. 105 (improvvel), ou apenas em
404, quando envia Hier. Ep. 112. O bispo de Hipona no menciona qual foi o mensageiro de Aug.
Ep. 67, carta que cruzou com Hier. Ep. 102, mas o hipodicono Astrio um nome possvel, e
certo que esta foi a primeira carta dele recebida por Jernimo. Os mensageiros de Agostinho
parecem no ter sido muito confiveis, ou mesmo constantes: com exceo de Aug. Ep. 73, enviada
por intermdio de Presdio mensageiro que fora recomendado a Agostinho pelo prprio
Jernimo, e a quem o bispo dera instrues expressas de que a carta chegasse a este em uma carta a
parte, Aug. Ep. 74 todas as outras missivas autoradas pelo bispo de Hipona no primeiro perodo
parecem ter chegado com atraso, corrompidas ou incompletas. A situao parece ter se normalizado
aps 405, pois h indcios de que Jernimo tinha todas as cartas de Agostinho em mos, ou seja,
Aug. Ep. 28, 40, 67, 71 e 73, quando escreveu Hier. Ep. 112 e Hier. Ep. 115, esta uma resposta
direta a Aug. Ep. 73.
Tais contratempos parecem no ter acometido o mosteiro de Belm. Jernimo tinha homens
de confiana para entregar suas cartas. Ele havia encarregado o hipodicono Astrio de levar Hier
)169
Ep. B (resposta a uma subscripta salutatio perdida de Agostinho) e Hier. Ep. 102 a Hipona, as quais
parecem no ter atrasado. Embora o monge no mencione a quem confiara suas cartas Hier. Ep.
105, 112 e 115, inferimos que utilizara, entre os anos de 403 e 404, Cipriano para as duas primeiras
e Firmo para a segunda. Quanto ao bispo de Hipona, certo que ele recebera, no momento em que
escreve Aug. Ep. 73, Hier. Ep. 102 e 103 (cuja data permanece impossvel de se certificar), mas
Hier. Ep. 105 parece lhe ter sido entregue somente com Hier. Ep. 112, quando Agostinho coloca-se
a redigir a concluso final da discusso do officiosum mendacium na carta Aug. Ep. 82, a qual
mandara provavelmente no ano de 405 por meio de Firmo, o mensageiro de Hier. Ep. 115.
No segundo perodo, a correspondncia fluiu com mais rapidez. Aps Marcelino ter
procurado Agostinho em 412, sob a recomendao de Jernimo, o qual havia lhe mandado uma
carta, Hier. Ep. 126, no mesmo ano, o bispo de Hipona enviar Aug. Ep. 166-167 ao Estridonense,
tratados escritos entre 412 e 415 e enviados por meio do presbtero Paulo Orsio ao monge de
Belm. Orsio trar de volta, um ano depois, uma carta de Jernimo, Hier. Ep. 134, a qual
Agostinho responde em 416, em Aug. Ep. 19*, este um texto enviado atravs do mensageiro Lucas.
Jernimo no expressa o nome do mensageiro que leva a Agostinho suas prximas duas cartas,
Hier. Ep. 141 e 142, curtos bilhetes parabenizando o bispo de Hipona por seu papel na condenao
de Pelgio em 418. A carta final da correspondncia, Hier. Ep. 143, enviada em mos do presbtero
Inocncio em 419, chegara a tempo. Nenhuma das cartas do segundo perodo de correspondncia
parece ter atrasado. Uma explicao possvel que os mensageiros foram estimulados pela
importncia dos debates que se encerravam nelas.
H, ainda, o problema das cartas perdidas. A correspondncia entre Jernimo e Agostinho
nos chegou incompleta, de modo que elaborar um histrico e estudo sobre ela tarefa que
permanece invariavelmente imprecisa e vulnervel a possveis descobertas futuras. No primeiro
perodo, possvel entrever trs cartas perdidas, segundo menes dos autores: uma salutatio que
Agostinho enviara a Jernimo (Aug. subscripta salutatio); uma carta inteira que o Estridonense
teria enviado em reposta a essa, atravs do hipodicono Astrio (Hier. Ep. B) ambas as quais so
mencionadas em Aug. Ep. 40 e Hier. Ep. 103 ; e uma provvel carta de Agostinho (Aug. Ep. C).
No segundo perodo, h nada menos que seis cartas perdidas, quatro das quais so mencionadas em
Aug. Ep. 19*: no ano de 416, trs cartas de Jernimo (Hier. Ep. D, F e G), enviadas cada uma por
mensageiros diferentes o presbtero Inocncio, Lzaro de Aix, e Palatino de Hipona , contra
uma de Agostinho (Aug. Ep. E), resposta a Hier. Ep. D; no ano de 418, segundo inferimos a partir
de Hier. Ep. 143, perdemos mais uma carta de Jernimo (Hier. scripta) que o presbtero Inocncio

)170
no teria levado a Agostinho, assim como uma carta deste (Aug. Ep. I) na qual pediam-se
informaes sobre o herege Aniano de Celeda.
Tangentes s cartas trocadas entre os autores, h algumas mensagens enviadas a outras
pessoas. Em nenhuma delas menciona-se expressamente o mensageiro, mas podemos deduzir o
nome de alguns: Aug. Ep. 74, endereada a Presdio, enviada juntamente com Aug. Ep. 73, deve ter
sido entregue quele pelas mos do prprio Agostinho. possvel que Aug. Ep. 180, endereada a
Oceano, tenha sido confiada a Paulo Orsio, espcie de secretrio pessoal do bispo de Hipona, que
levava ento ao senador romano as cartas da correspondncia mtua entre Agostinho e Jernimo;
Orsio tambm mencionado nesta carta como o portador de uma missiva perdida de Oceano a
Agostinho517. A carta Aug. Ep. 202A a Optato, bispo de Milevis, deve ter sido confiada ao
presbtero Saturnino, pela mesma razo de este ter trazido a carta de Optato que Agostinho ento
respondia518 . Agora, uma vez que Flvio Marcelino era um funcionrio do alto escalo imperial,
plausvel que Jernimo tenha utilizado o cursus publicus para lhe enviar Hier. Ep. 126.
Podemos elaborar a seguinte tabela para o primeiro perodo de correspondncia:

Autor Aug. ep. Hier. ep. Data Resposta Mensageiro


Agostinho 28 56 394/395 [Hier. Ep. 112] Profuturo

Agostinho subscripta - ca. 397 Hier. Ep. B ?


salutatio
Jernimo - B ca. 397 Aug. Ep. 40? Astrio

Agostinho 40 67 ca. 397 [Hier. Ep. 112] Paulo [Sisnio]

Agostinho 67 101 402 Hier. Ep. 102 Astrio?

Jernimo 39 102 402 Aug. Ep. 73 Astrio

Jernimo 68 103 402-404 - Presdio

Agostinho 71 (com Aug. Ep. 104 402 Hier. Ep. 112 Cipriano
28 e 40)
Agostinho C? - 403 Hier. Ep. 105? ?

Jernimo 72 105 403 [Aug. Ep. 82] Cipriano?

Agostinho 73 110 403/404 Hier. Ep. 115 Presdio

Agostinho 74 111 403/404 ad Praesidium Agostinho?

Jernimo 75 112 404 Aug. Ep. 82 Cipriano?

Jernimo 81 115 404 Aug. Ep. 82 Firmo

Agostinho 82 116 405 - Firmo?

)171
Uma tabela para o segundo perodo ainda menos assertativa:

Autor Aug. ep. Hier. ep. Data Resposta Mensageiro


Jernimo 165 126 412 ad Marcellinum cursus publicus

Agostinho 166 131 415 Hier. Ep. 134 Orsio

Agostinho 167 132 415 Hier. Ep. 134 Orsio

Jernimo 172 134 416 Aug. Ep. E/19*? Orsio

Agostinho 180 - 416 ad Oceanum ?

Jernimo - D 416 Aug. Ep. E? Inocncio

Agostinho E - 416 ? Inocncio

Jernimo - F 416 Aug. Ep. 19* Lzaro ou


Palatino
Jernimo - G 416 Aug. Ep. 19* Lzaro ou
Palatino
Agostinho 19* - 416 ? Lucas

Jernimo 195 141 418 ? ?

Jernimo 123 142 418 ? ?

Jernimo - scripta 418 ? Inocncio

Agostinho I - 418 Hier. Ep. 143 ?

Jernimo 202 143 419 ? Inocncio

Agostinho 202A 144 419 ad Optatum Saturnino?

Por fim, restam tambm mensagens perdidas, de Marcelino a Jernimo, de Oceano e de


Optato a Agostinho, as quais so mencionadas nas cartas a esses correspondentes. Porm, uma vez
que no dizem respeito ao escopo de nosso trabalho, ainda que nesses textos pudesse haver
menes s cartas que nossos autores trocaram entre si, sobre elas silenciamos.

F. Concluso
No dilogo epistolar empreendido entre Agostinho e Jernimo durante vinte e cinco anos,
foi o jovem presbtero de Hipona quem tomou a iniciativa de procurar a amizade do velho monge
de Belm. Podemos tirar essa concluso a partir dos elogios efusivos e da manipulao de tpicos
de amizade nas primeiras cartas que Agostinho envia para seu correspondente. No entanto, o autor
j se mostrava, em Aug. Ep. 28, que no ficaria satisfeito com uma troca de simples e genricas
cartas de amizade (epistulae familiares): ele buscava, na realidade, abrir um dilogo corretivo e
)172
disciplinante, uma troca de epistulae caritatis (cum reprehensione), nas quais fosse possvel discutir
diferentes interpretaes da Bblia e corrigir um o erro do outro, sem que com isso se ofendesse a
amizade. J havamos demonstrado essa concluso no captulo anterior; a contextualizao da
correspondncia agora nos possibilitou enxergar que a disciplina epistularis, por se assim dizer,
uma estratgia intimamente ligada tanto a outras vertentes de seu pensamento, em que ele reflete
acerca de sua autoridade e misso como bispo, quanto a um ideal cristo que Agostinho tinha de
amizade: atravs dela que os amigos, como se se aperfeioassem espiritualmente, tornam-se
melhores juntos, e juntos caminham na via caritatis519. Agostinho tinha no ideal da amicissima
reprehensio que busca aplicar em seus correspondentes o verdadeiro officium de um ministro
cristo, de um amigo cristo, e por consequncia de um escritor de cartas cristo.
Jernimo, por sua vez, mostrou-se desde o incio contrrio aos objetivos disciplinantes de
seu interlocutor. Em todas as suas cartas, onerosas com as caractersticas estruturais e estilsticas
tradicionais da epistolografia helenstica frmulas, tpicos, cumprimentos, citaes , o autor
sempre procurou tanto forar Agostinho a uma troca convencional de cartas de amizade520 quanto se
esquivar de entrar propriamente no assunto. A postura do Estridonense deve-se a problemas
concernentes ao gnero epistolar antigo, os quais abordamos no primeiro captulo; e, igualmente, a
caractersticas biogrficas. Jernimo, por sua vez, no sabia diferenciar uma crtica a sua obra de
uma crtica pessoal521. A postura combativa e contrria do autor deve ser interpretada nesse duplo
sentido, no se devendo apenas a seu proverbial mau humor522.
Nesse sentido, a descrio de Peter Brown para a correspondncia travada pelos autores
certeira: dois homens profundamente civilizados conduzindo uma relao singularmente rancorosa,
com meticulosa cordialidade523 . Com efeito, Jernimo nunca escondeu seu desinteresse em se
corresponder com Agostinho. Alm de se apresentar de maneira fria e oficiosa, o autor enfatiza
diversas vezes que foi obrigado a responder seu correspondente524. Adicione-se a esse desinteresse
as diversas controvrsias e infortnios que abateram sua velhice. Mesmo quando se Jernimo se
mostrou disposto a retomar o dilogo no segundo perodo de correspondncia, isto no significou
que ele havia aceitado a proposta agostiniana, que ele quisesse firmar uma amizade com Agostinho,
ou sequer que ele se disponibilizaria a debater com o Tagastense. Em suas ltimas cartas ao bispo,
Jernimo nunca definiu o pelagianismo, ou discutiu a fundo suas implicaes para a doutrina crist.
Pelgio permaneceu uma figura fantasmagrica de uma troca epistolar que se tornou seno
oficiosa da maneira que Agostinho desejava evitar.
Quanto a isso, deve-se o tom frio e programtico de Aug. Ep. 19* a mais uma decepo que
o bispo de Hipona teve ao receber a esquiva de Jernimo em Hier. Ep. 134? Ainda que Agostinho
)173
faa um aceno jovial ao problema da subscriptio, que causou mal-estar no primeiro perodo de sua
correspondncia com Jernimo 525, o autor parece ter desistido de empreender uma
correspondncia corretiva ou um debate com Jernimo. De fato, Agostinho esperaria a vida toda
por uma resposta para seus tratados Aug. Ep. 166-167, mas eis algo que ele confessa somente a
outros correspondentes: ao senador Oceano, em uma carta enviada em 416, Aug. Ep. 180, na qual
pergunta ingenuamente se ele tem alguma coisa de Jernimo sobre o assunto526 ; e ao bispo de
Milevis, Optato, em uma carta, Aug. Ep. 202A, enviada em 419527 , na qual se discutem algumas
hipteses sobre a origem da alma do homem. Anos mais tarde, ao preparar as Revises de suas
obras, Agostinho lamentar o fato de seu correspondente ter morrido antes de poder respond-lo528.
Mas ento como interpretar a elocuo cerimoniosa e profundamente deferente de Jernimo
em suas cartas finais? Estaria ele tratando Agostinho com imenso respeito e afeio, como
acreditou Kelly, seu bigrafo529 ? Entendemos que a situao deve ser interpretada de outra maneira.
Comentamos anteriormente que as palavras calorosas de Jernimo em Hier. Ep. 134 parecem dever-
se antes a uma precauo irnica e a uma efusividade artificial que a sentimentos verdadeiros.
Ainda que em cartas futuras Jernimo chame elogiosamente Agostinho de tua coroa e tua
reverncia, ele continua a contrastar-se com ele, alegando sua pequenez530. Certo, o Estridonense
abranda seu tom em relao s cartas do primeiro perodo, deixando-o mais amigvel, menos
agressivo; o autor parece ter passado a respeitar a gana de Agostinho no combate s heresias531 . No
entanto, Jernimo continua a se esquivar e a forar seu correspondente aos aspectos tradicionais da
epistolografia, como apontamos acima. A aliana que os dois firmaram contra Pelgio no segundo
perodo interessada e turbulenta532, portanto. Atravs dela podemos entrever que Jernimo no
superou o rancor que havia predominado em suas missivas h vinte anos. triste mas necessrio
concluir que as cartas trocadas entre nossos autores nunca logrou se transformar nas epistulae
caritatis (cum reprehensione) que Agostinho tanto almejava.
O debate entre os autores deve-se fundamental e implicitamente sob as tantas discrdias
acerca da interpretao e traduo das Escrituras e sobre os objetivos de uma troca epistolar a
diferentes noes do que significa a amizade533. Aqui, a rixa entre os autores no se deve somente
ao fato de Jernimo levar a discusso para o lado pessoal, e Agostinho no534 , mas a diferentes
concepes que os autores tm da legitimidade de uma repreenso em uma relao amistosa, fosse
esta aplicada a um erro de leitura, fosse a um erro de comportamento). Esse o ponto que se faz
corao da diferena de pensamento entre os autores, e devemos agora esmiu-lo.
O exemplum de Paulo nos serve de indcio para nossas concluses: o apstolo havia
corrigido a conduta de Pedro, assim como Agostinho buscava corrigir tambm a conduta de
)174
Jernimo. este o significado da caritas maior que o bispo pede a seu correspondente: que haja
entre eles uma relao amorosa crist, franca, livre, com a presena da correo amigvel, na qual
fosse possvel discutir e trocar opinies mutuamente, algo til para ambos535 mesmo se entre eles
pudesse haver a suspeita de heresia. Assim, mesmo ao envolver-se em polmicas, inclusive em sua
breve disputatio contra Jernimo, o mtodo de confronto utilizado por Agostinho em suas cartas,
alinhado a seu ideal de amicitia, profundamente diferente do seu interlocutor. Ao contrrio deste,
que no se furtava a criticar pessoalmente seus inimigos e a destruir reputaes, a disputatio o
mtodo de argumentao de Agostinho se apoia nos ideais de disciplina, de auctoritas e de
amicissima reprehensio. Para o bispo de Hipona, mesmo Pelgio devia ser corrigido como um
amigo, caso ele se mostrasse arrependido536 ; mesmo Pelgio tratado com bastante respeito nos
libri publicados contra sua doutrina537. Pois para o autor toda discusso tinha sempre um fim
positivo: a busca da verdade. E essa verdade no era dada ou evidente, mas precisava ser descoberta
atravs do confronto da f e do exame da razo.
O embate entre Pelgio e Agostinho pode servir como coda dessa introduo. Ela apelava a
problemas que incomodava o bispo de Hipona desde a sua juventude: sobre a felicidade, sobre a
natureza do bem, sobre a complexidade da motivao humana. Para Pelgio, uma boa ao era
aquela que atendia certas prerrogativas de comportamento, uma ideia comum na filosofia pag:
trata-se, uma vez mais, do officium; julga-se um amigo pelo exterior, por aquilo que ele faz. Para
Agostinho, uma boa ao simbolizava a realidade interior do homem, culminando de um progresso
espiritual; julga-se um amigo pela sua f, pela pureza de seu corao, e no pelo fato de ele
observar ou no rituais e preceitos. Defendemos que Jernimo tinha um pensamento, nesse sentido,
semelhante ao do monge Breto.
A questo da amicitia devida ao officium epistulare pode ser interpretada tambm nesta luz.
Talvez por sua identidade estrangeira vinda das margens do Imprio, talvez por sua longa carreira
como bispo que o colocou em contato com toda diversa sorte de homens, o Tagastense nos aparece,
em suas cartas, como um homem que se mostrava avesso artificialidade, ao senso comum, s
regras de conduta, a qualquer comportamento que parecesse officiosum ou dispensatorium, em
suma538. Nessa guinada, de ultrapassar os limites do officium, encontra-se a originalidade mais
radical que Agostinho trouxe ao pensamento cristo ocidental539, alinhando-se a leitura que o bispo
faz de Gal 2:11-14.
Pois, tanto para o apstolo Paulo quanto para Agostinho, no devia haver nada no esprito
que estivesse distante dos lbios. Quanto a isso, bem, os autores nunca chegaro a um acordo
verdadeiro. Se devemos responder conclusivamente pergunta: se Agostinho e Jernimo se
)175
tornaram amigos, nossa concluso deve ser negativa540 . A relao entre eles pode ser definida como
uma sucesso de conflitos e alianas: eles se abordam sempre como pessoas eminentes reunidas por
Deus, a despeito de uma distncia que nunca suprimida pela intimidade541.
Queremos ir alm e arriscar um comentrio derradeiro da relao entre ambos os autores. A
discrdia entre Jernimo e Agostinho se deve a diferentes noes de amizade e assim a diferentes
concepes das propostas de uma troca epistolar, certamente. No entanto, tais noes residem em
algo alm disso: elas se sustentam em valores. A relao entre eles parece estar malograda desde o
incio por razes que a nosso ver so ticas e psicolgicas. Dizemos, toda sociedade possui regras
implcitas de como uma pessoa, em determinada idade e posio, deve se comportar, as quais se
estabelecem no raro em dicotomias: rico/pobre, homem/mulher, nobre/plebeu, velho/jovem. O
mundo antigo no era diferente; pelo contrrio, era mais hierrquico, e os autores que nele viveram
tinham plena conscincia destas condies, tendo amide refletido sobre elas542 . A carta, sendo o
suporte escrito das relaes sociais, deveria a princpio refletir tais regras e valores. Estamos aqui
novamente no terreno pantanoso do , esse campo em que se d a interseco entre o discurso e
o comportamento ou moral543.
Devemos ter em mente que Jernimo era um homem muito mais velho que Agostinho. Ele
tinha vinte e trs anos a mais que ele; idade para ser seu pai. Sejamos coerentes com o Estridonense:
a ele, era impossvel enxergar seu interlocutor como a figura imponente em que as geraes
posteriores, providas da viso retrospectiva e panormica da histria, acabariam por transform-lo.
O jovem Agostinho nasceu em um mundo j cristianizado e estava no incio de uma carreira
brilhante; o velho Jernimo nascera em um mundo ainda em cristianizao, e, gozando de firme
reputao como polemista, tradutor, exegeta e comentarista, via eclipsar a sua carreira. Seus valores
eram outros, e antigos. A discrdia entre os autores parece residir, portanto, em um conflito de
geraes544. O paradigma disso a rixa entre Diomedes e Nestor na Ilada: o jovem e ambicioso
guerreiro que procura a aprovao e o reconhecimento de seu maior, buscando rivalizar com ele545 .
curioso que, por mais que Jernimo censure seu interlocutor por se recusar a atuar como
um iuvenis, ele parece enxergar em Agostinho tanto um sucessor capaz de continuar seu trabalho
como intrprete das Sagradas Escrituras546, quanto um homem superior a ele mesmo na pregao da
palavra de Cristo. Um segundo Paulo, o refundador da antiga f. possvel que o monge, um
homem frustrado, expulso de Roma, parecia enxergar no bispo algo que ele poderia ter sido e a
histria decidiu que no fosse.

)176
A anlise da correspondncia entre Jernimo e Agostinho na chave do gnero epistolar se
mostrou insuficiente para elucidarmos os temas das cartas e a relao que os autores construram
entre si, e assim tivemos de adentrar o campo do , da ao, para completarmos o nosso
trabalho. Se no primeiro captulo de nossa introduo discutimos a forma e os elementos implcitos
da prtica epistologrfica, ou seja, se l falamos sobre os narradores implcitos, aqui os
explicitamos, discutindo o contedo das cartas e o contexto em que elas foram escritas.
Abandonamos o eu que cria para aqui falarmos do homem que sofre, para usar os termos da
crtica eliotiana547.
Assim, a correspondncia entre Jernimo e Agostinho em relao especialmente s
mudanas que o bispo de Hipona apresenta com o objetivo de cristianizar a tradio epistologrfica
helenstica deve, em concluso, ser interpretada a partir da relao entre os autores tanto em
relao ao gnero epistolar antigo quanto no tocante ao contexto histrico em que eles viveram, o
qual se faz tambm o estofo da epistolografia. Ambos viveram em mundo de transio, o qual se
configura como um chocalho, que no ainda a entrada, mas j a sada, como diz Jernimo
em uma emocionante carta, enviada em meados de 412, recm-nascida Pactula548. As cartas que
eles trocam tambm so paradigmticas dessas transformaes de valores, ocorridas nos tempos
difceis da Antiguidade Tardia, as quais, tendo significado o rompimento gradual do mundo
helenstico, se fazem sentir at hoje.
Um estudo mais minucioso da correspondncia entre os autores, portanto, dever levar em
conta as mudana de paradigmas nas noes de officium (comparando o conceito agostiniano com o
de Ambrsio) e de amicitia/caritas no perodo. Essa aproximao sociolgica para a anlise da
epistolografia difcil e demanda uma pesquisa em separado549. Dado o prazo exguo de um
mestrado, e da proposta de nossa dissertao, no tivemos tempo de explorar essas questes mais a
fundo, ainda que as tenhamos abordado ao longo introduo. Dessa forma, colocamos um fim em
nossa empresa de apresentar a correspondncia entre Agostinho e Jernimo, lembrando que a
discusso est longe de se esgotar. Deixamos agora ao leitor a misso de entrar por si no campus
epistularum.

)177
NOTAS

1 ODonnell (1991) p. 14, Jerome was nothing if not well-, if often acerbically, connected, and by coming into
communication with Jerome Augustine was linking up with a textual community of no small importance. Esta
interpretao clssica e j havia sido proposta por Mhler (1839) e Overbeck (1879).
2Agostinha elogia a obra de Jernimo diversas vezes na correspondncia que mantm entre si: Aug. Ep. 28,1-2; 40,1;9;
166,6;7; 167,4;1;21. V. Bastiansen (1987) p. 42-44.
3 Kelly (1975) p. 334, there is no gainsaying Jeromes learning; he was the best equipped Christian scholar of his day,
and for centuries to come; Bastiansen (1987) p. 25-27; Hennings (1994) p. 27, in der Auseinandersetzung mit
Hieronymus erweist such zum einen der Einflu seiner Lehrer als bestimmend, der ihn in die lateinische Theologie und
Exegese einbindet, zum anderen aber auch die kirchliche Entwicklung des ausgehenden 4. Jahrhunderts im Westen des
rmischen Reiches; Fry (2010) p. XLIV-XLV, aux yeux dAugustin, Jrme saffirme non seulement comme le
traducteur par excellence des critures, mais aussi comme le commentateur le plus prolifique et le mieux inform des
dix dernires annes.
4 O trabalho tradutrio de Jernimo, nesse quesito, tem o mesmo valor para os cristos que o de Ccero teve para os
romanos pagos: se este havia vulgarizado a filosofia grega, introduzindo-a nas letras latinas, Jernimo fez o mesmo
com a teologia grega em relao literatura crist latina. O prprio Agostinho d testemunho disso: quanto iustius abs
te hoc caritatis debitum flagito, cuius doctrina, in nomine et adiutorio Domini, tantum in latina lingua ecclesiasticae
litterae adiutae sunt, quantum numquam antea potuerunt!, quo mais justo ainda permanecer em enorme dvida para
com tua caridade, por meio de cuja instruo, em nome e com a ajuda do Senhor, a literatura crist em lngua latina foi
auxiliada imensamente como nunca antes foi possvel! (cf. Aug. Ep. 167,21). Segundo Hennings (1994) p. 22,
Hieronymus ist geprgt in seiner gesamten Entwicklung aks christlicher Schriftsteller durch Theologie und Exegese
des griechischsprachigen Ostens und das asketische Mnchtum, obwohl er lateinisch schreibt und die Adressaten seiner
Werke vor allem im Westen des Reiches leben. Vieles aus der griechischen Theologie und Exegese wurde erst durch
seine Schriften bekkant.
5 Ebbeler (2012) p. 79-80, certainly, modern readers should not discount personal ambition as a motive for Augustines
interest in establishing a correspondence with Jerome. He was poised to become the bishop of Hippo and probably
knew as much. He might also have anticipated some of the concerns about the orthodoxy of his ordination. It would
benefit to be in conversation with the most famous Christian scholar of his generation. Such a high-profile letter
exchange would elevate his standing not only among African Christians but also throughout the international Christian
community.
6 Hennings (1994) p. 27-62; Frst (1999) p. 89-90; 92-110; 178-187.
7 Usaremos Brown (2013) para os fatos da vida de Agostinho, por vezes citando tambm outras obras do mesmo autor e
alguns outros de seus estudiosos, entre os quais Van Oort (1991).
8O pai de Agostinho, segundo o prprio: longinquioris apud Carthaginem peregrinationis sumptus praeparabantur
animositate magis quam opibus patris, municipis Thagastensis admodum tenuis, as despesas destinadas s viagens a
Cartago, que era mais longe, eram preparadas por meu pai um cidado de Tagaste, de recursos bastante mdicos
mais por esforo prprio que por dinheiro (cf. Aug. Conf. 2,3,5).
9 Marrou (1955) p. 63, il y a donc chez lui quelque chose dun peu centr sur soi, quelque hauteur parfois; Brown
(2013) p. 23-28.
10 Brown (1989) p. 22-47 e 32-33, in the later empire, indeed, one feels a sudden release of talent and creativity such as
often follows the shaking of an ancien rgime. A rising current of able men, less burdened by the prejudices of an
aristocracy and eager to earn, maintained a tone of vigour and disquietude that distinguishes the intellectual climate of
Late Antiquity from any other period of ancient history [...] The men who were able to leave their mark on the highest
society of the empire had all of them made their own way from obscure towns [...] Augustine from Thagaste, Jerome
from a Stridon that he was glad to see the last of, John Chrysostom from a clerks office in Antioch; Kelly (1975) p.
1-9; Cameron (1993b) p. 81-103; Brown (2013) p. 7-15.
11 Tal estrangeirismo no se deve sua descendncia brbere, entretanto; l-lo desta forma seria anacrnico.
Agostinho veio luz em um local que, embora marginal, j era romanizado h sculos, e bastante integrado dinmica
do Imprio. Isso no quer dizer que no haja elementos em sua obra que no se devam ao ambiente onde ele nasceu e
cresceu. O prprio Agostinho nos conta que os italianos zombavam de seu sotaque norte-africano, cheio de
barbarismos, quando ele chegou a Roma (cf. Aug. Ord. 2,17,45).
12 Marrou (1955) p. 15.
13 Cf. Aug. Serm. 37. V. Brown (2013) p. 146 e 198-221.
)178
14 Cf. Aug. Conf. 3,4,7. V. MacCormack (1998) p. 1-44.
15 Cf. Aug. Conf. 1,13,20-23. V. MacCormack (1998) p. 136-137 e 225-231, [the] subject matter of some of
Augustines most abiding thoughts did converge, as he saw it, with what Vergil had written [] of course, Augustine
often quoted Vergil in order to persuade his pagan contemporaries by recourse to the words of the poet whom they
themselves recognized as supreme. But the other side of this medal is that Augustine also regarded Vergil as supreme
and quoted him even when writing to and for Christians and even when disagreeing with him, indeed so as to disagree
with him (citao na p. 228).
16 Tertuliano pergunta-se: quid ergo Athenis et Hierosolymis? quid Academiae et Ecclesiae? quid haereticis et
Christianis?, mas o que une Atenas e Jerusalm? A Academia com a Igreja? Os hereges com os cristos? (cf. Tert.
Praescr. 7). Jernimo tem as mesmas dvidas: quid facit cum psalterio Horatius? cum evangeliis Maro? cum apostolo
Cicero?, o que Horcio tem a ver com os Salmos? Virglio com os Evangelhos? Ccero com o apstolo? (cf. Hier. Ep.
22,29). Uma boa sntese sobre os sentimentos desencontrados de Agostinho em relao a seus ancestrais pagos est em
Hagendahl (1967) e MacCormack (1998).
17 Assim simplifica, a nosso ver grosseiramente, Fry (2010) p. XXVI-XXVII.
18 Cf. Aug. Conf. 1,13,20; 1,14,23 e Ep. 28,2; 40,9; 82,23.
19Brown (2013) p. 79-107 e 315-318 mostra que a leitura de Agostinho foi cuidadosa e expansiva, tendo compreendido
as obras de Plato, Aristteles, Plotino e demais neoplatnicos, sem falar as de Ccero e Lucrcio.
20 Marrou (1955) p. 66, la pense de saint Augustin est au contraire profondment insre dans lexprience vcue.
21 Cf. Aug. Soliloq. 1,7.
22Cf. Aug. Trin. 15,2, fides quaerit, intellectus invenit, a f procura, o intelecto encontra. V. Marrou (1955) p. 67,
auctoritas et ratio, la connaissance de foi et la connaissance rationnelle sont bien deux catgories fondamentales du
systme, si on peut dire, ou mieux du rgime de pense proprement augustinien.
23 Cf. Aug. Conf. 7,9,14;18,24.
24Cf. Aug. Mag. 11,37; Conf. 9,5,13; In Ioh. 29,6. A mxima vem do profeta Isaas, se no o crerdes, certamente no
haveis de permanecer (cf. Isa 7:9). V. Risk (1994) p. 12-13.
25Cf. Aug. Conf. 3,4,7;8,7,17. V. Marrou (1955) p. 20-23, cette qute de Vrit qui devait animer toute sa vie (citao
na p. 21); Rist (1994) p. 1-22.
26 Marrou (1955) p. 43-44; ODaly (1987) p. 3-4.
27 Pinto (2013) p. 286-288.
28 Cf. Aug. Doctr. Christ. 1,9.
29 Fry (2010) p. XIX-XX, Augustin sy affirme en intellectuel ambitieux, ce qui est normal tant donn la nature et
ltendue de ses dons. Il ne montre aucun got pour quelque honneur politique que ce soit, mais entend faire carrire au
sein de ce que nous appelerions aujourdhui lUniversit.
30 Cf. Aug. Conf. 7, 21, 27.
31 Cf. Aug. Conf. 2,2; 5,12; 5,14-15; 6,11. Brown (2013) p. 50-61.
32O quinto livro das Confisses cobre o perodo maniqueu de Agostinho. Para a relao de Agostinho com o secto, v.
Chadwick (1967) p. 216-217; Van Oort (2001); Brown (2013) p. 35-49.
33 Cf. Aug. Util. cred. 1,2; v. Chadwick (1967) p. 169.
34Cf. Aug. Conf. 5,3-7, esp. 5,6,11. O livro o contra Faustum manichaeum (v. infra Aug. Ep. 82, n. 54). V. Brown
(2013) p. 47-48.
35 Cf. Aug. Conf. 3,7,12-10;18; C. Faust. 13,1.
36 Cf. Aug. C. Iulian. op. imperf. 1,97; C. litt. Petil. 3,16,19; C. Cresc. 3, 80, 92; Serm. 153,2. Jernimo tambm parece
insinuar preocupao com a herana maniquesta de Agostinho em Hier. Ep. 112,14. Brown (2013) p. 127-128; 198-199
e 372-373.

)179
37 Cf. Aug. Conf. 5,10,18.
38 Cf. Aug. Conf. 5,13,23; Ep. 23,6. Brown (2013) p. 54-61.
39 Brown (1989) p. 60-81, it is precisely the men who were being uprooted and cast adrift from their old life who
provided the background to the anxious thoughts of the religious leaders of the late second century [...] in all this, the
outlook of the upper classes of the Roman world ran counter to the experience of the more prosperous plebeians in the
towns. E mais adiante, sobre as elites pags: up to the end of the sixth century, a large circle of Hellenes held their
own against the barbarian theosophy Christianity [...] these Hellenes impress us because, though open to the
spiritual turmoil of their age, they turned to the ancient methods to find a solution for contemporary anxieties. Their
quiet faith in a continuously evolving tradition stemming from Plato was perhaps the most reassuring fact of Late
Antique civilization. Para essa discusso, v. tambm o trabalho monumental de Dodds (1965); Chadwick (1967) p.
116-159; Cameron (1993a) p. 164-166 e id. (1993b) p. 128-151.
40 [...] procurasti mihi per quemdam hominem immanissimo typho turgidum quosdam platonicorum libros ex graeca
lingua in latinam versos [...], tu me colocaste merc, atravs de um certo homem inchado com a mais monstruosa
vaidade, de alguns livros dos platnicos, traduzidos da lngua grega para a latina [...] (cf. Aug. Conf. 7,9,13).
Agostinho permanece em silncio, durante toda sua vida, sobre a identidade deste homem. V. Brown (2013) p. 79-92
para a formao neoplatnica de Agostinho.
41 Allgeier (1930) p. 6, der Umschwung ging von den Predigten des hl. Ambrosius aus. Hier hrte Augustin zum
erstenmal biblische Texte in einer Weise behandeln, da er die bisherigen Anste nicht mehr sprte, und der Paulinus
Grundsatz, den Ambrosius oft wiederholte, begann auch in ihm nachzuhallen: littera occidit, spiritus autem vivicat!
Damit fing sein Interesse fr die allegorische Schriftauslegung an.
42 Brown (2013) p. 71-80 para a influncia de Ambrsio sobre Agostinho.
43Brown (2013) p. 71, on the surface, [Ambrose] is the most striking representative of the Roman governing class of
his age that is, of men whose position depended less on their patrician birth, than on their ability to grasp and hold
power in a ruthless society. O personagem pouco representado quando comparado a Jernimo e Agostinho, mas sua
importncia certamente equiparvel; Ambrsio o homem forte da poltica eclesistica de sua poca. As biografias
existentes do bispo a melhor a de McLynn (1994) so ou reducionistas, ou demasiadamente teologizantes, ou
simplesmente incapazes de oferecer-nos um retrato completo do personagem. Resta-nos lamentar que Ambrsio ainda
no tenha encontrado o seu Peter Brown.
44 Cf. Aug. Conf. 6,3,3;4,6;5,7-8; Beata Vita 1,4; Mor. Eccl. 21,38; Ep. 40,7.
45 Brown (2013) p. 75-76.
46 Cf. Aug. Beata Vita 1,4. Brown (1989) p. 77-78 e 119
47et sicut Tullius ad erudiendum filium, ita ego quoque ad vos informandos filios meos, assim como Ccero [escreveu
aquele livro] para ensinar seu filho, eu tambm o fao para informar a vs, meus filhos (cf. Amb. Off. minist. 1,4,24).
Hagendahl (1958) p. 347-381 faz uma leitura comparativa das duas obras.
48 Cf. Aug. Conf. 8,12,28-30. V. Brown (2013) p. 98-102.
49 Cf. Aug. Retract. 1,1,1. V. Trout (1988); Brown (2013) p. 108-120.
50 Cf. Aug. Ord. 1,2,4; C. Acad. 2,2,4.
51 Cf. Aug. Ord. 2,10,28; Retract. 1,1-12. Brown (2013) p. 114-115.
52 E.g. Ambros. Ep. 10-14;17-18.
53 A longa Ambros. Ep. 18 [PL 16,971d-982b], dirigida ao imperador Valentiniano, uma invectiva do bispo contra o
relato de Smaco [PL 16,966a-971c], ento prefeito de Roma.
54O evento, que se deu em 390 d. C., ocasionou a censura de Ambrsio ao Imperador em sua carta Ambros. Ep. 51 [PL
16,1159d-1164b]; o episdio est narrado em Gibbon (1952) vol. I, p. 451-457, mas v. tambm Chadwick (1967) p.
167-168.
55 Citado de Brown (2013) p. 72.
56 1 Cor 4:20.
57 Cf. Aug. Conf. 9,6,14.
)180
58 Cf. Aug. Serm. 355,2. Brown (2013) p. 132-134 para uma breve biografia de Valrio.
59Cf. Aug. Vera relig. 4,7;12; De Gen. c. Man. 1,25,43; Ep. 10,2; 11,2; 18,1. Brown (2013) p. 125-150 faz uma sntese
brilhante dos sentimentos desencontrados do jovem presbtero.
60 Cf. Aug. Ep. 17,2.
61 E.g. Aug. Ep. 37 a Simpliciano e a interpretao que Brown (2013) p. 146-150 faz dessa carta.
62Comparar Aug. Ep. 1 endereada a Hermogeniano, escrita antes de Agostinho tomar o presbiterado, com Aug. Ep. 26,
carta enviada ao jovem Licncio, non dicit verum nisi Veritas: Christus est veritas, s a Verdade diz o verdadeiro: e
Cristo a verdade, e tambm com Aug. Ep. 27 a Paulino e Aug. Ep. 28 a Jernimo.
63 Cf. Aug. Lib. Arb. 2,16,41-42.
64Cf. Aug. De Serm. Dom. in monte 1,3,10; Conf. 10, 40, 65. Brown (2013) p. 139-144, Augustine was helped in this
growing awareness of the intractable elements in behaviour by his experience as a priest in Hippo [...] like a single
cloud that grows to darken the whole sky, this sense of the force of past habit deepens in Augustine (citao na p. 143).
65 Cf. Aug. Ep. 21,3; De Serm. Dom. in monte 2,20,68; Doctr. Christ. 1,41. Segundo Brown (2013) p. 135.
66 Cf. Aug. Retract. 1,13-14.
67Cf. Aug. Retract. 1,15;1,24. V. Van Oort (1991) p. 55, after his conversion and baptism [...] a strong emphasis on
Neoplatonism can be seen: in the Cassiciacum dialogues and in the works written in Milan, Rome and Thagaste.
68 Cf. Aug. Retract. 1,22.
69 Cf. Aug. Retract. 1,24,1.
70 Segundo Brown (2013) p. 145.
71 Baxter (1930), p.XXIV, [Augustine] re-discovered and re-interpreted St. Paul; it might even be said that he re-lived
the Pauline contribution to Christian doctrine; Marrou (1955) p. 53, de sa conversion la controverse anti-plagienne,
la pense augustinienne tout entire nous apparat inspire du paulinisme.
72 Brown (2013) p. 144-147.
73 non ignorem Caium Marium Victorinum, qui Romae, me puero, rhetoricam docuit, edidisse commentarios in
apostolum, no vou ignorar que Caio Mrio Vitorino publicou comentrios sobre o apstolo, ele que ensinava retrica
em Roma quando eu era jovem (cf. Hier. In Gal. praef.). Hennings (1994) p. 242-247 descreve a interpretao de
Vitorino.
74 Agostinho reflete sobre seu papel como bispo de modo recorrente em suas obras; alguns exemplos em Serm. 46,6;
196,4; 355,3; De Serm. Dom. in Monte; In Gal. 59. V. Brown (2013) p. 187-193, as Christian bishop, Augustine had
become a public figure in a town where much of life was public, explicit, guided by long traditions of correct behaviour
[...] Augustine stepped into a position where certain things were expected of him (citao na p. 188), tambm p.
200-206.
75Usaremos as biografias de Kelly (1975) para os fatos da vida de Jernimo, por vezes citando obras do autor e tambm
Cavallera (1922) e Rebenich (1990).
76 Curtius (1953) p. 73, philology and monasticism, literary Humanism and the passion for research, were united in
Jerome. We find none of these in Augustine. But he has everything Jerome lacks: the most delicate emotional life and
spiritual fire, that longing to know essence which soars above all factual science. He is not a man of learning, but a
thinker.
77 Hagendahl (1958) p. 327-328.
78 Kelly (1975) p. 221, [...] his suspicion and dislike for intellectual speculation.
79 E.g. Paldio da Galcia na historia lausiaca; Joo Cassiano nas institutiones, e o prprio Agostinho no contra
Iulianum Pelagianum.

)181
80 Adotamos a data de 331 para o nascimento de Jernimo, contra as escolhas mais recentes de localiz-la no ano de
342, 345 ou 347. Para isso, fundamentamo-nos nas discusses de Hamblenne (1969) p. 1087-1091; 1096-1111 e de
Kelly (1975) p. 337-339, que demonstram, a partir de uma anlise do uso que Jernimo faz de palavras como iuvenis e
senex, que o ano de 331, data do consulado de Basso e Ablvio, apontada nas crnicas de Prspero da Aquitnia (ca.
390 - ca. 455), provavelmente a correta. Rezava a tradio mais antiga que Jernimo teria morrido em torno dos
noventa anos, o que est de acordo com a datao de Prspero, historiador que d o ano de 420 para sua morte (cf.
Prosp. Tiro Chron. 1274). Em favor desta informao, afirma Agostinho, na apologia contra Juliano de Eclano, que
Jernimo usque ad decrepitam vixit aetatem, viveu at ficar muito velho (cf. Aug. C. Iulian. 1,34). Kelly ainda nota
que algumas afirmaes feitas nas cartas de Jernimo a Agostinho pressupem a profunda diferena de idade entre os
autores; poderamos citar aqui Hier. Ep. 102,2, em que ele acusa Agostinho de ser um adulescentulus que busca a fama
ao ofender homens ilustres; Hier. Ep. 105,3;5, em especial a expresso ego quondam miles, nunc veteranus, outrora
eu fui soldado; hoje, veterano; e Hier. Ep. 112,23, em que o Estridonense se chama quiescens senex, um velho em
inatividade. Jernimo tambm reclama constantemente de sua sade precria, por exemplo, em Hier. Ep. 143,2, onde o
autor afirma ter demorado a escrever a Agostinho porque adoecera. Este, por sua vez, trata seu correspondente sempre
com suma deferncia, ainda que esta caia por vezes em ironia (cf. Aug. Ep. 28,1;5; 67,1-2; 71,6; 73,8; 166,1; 167,1).
Tudo indica que Jernimo j tinha uma carreira slida antes de se corresponder com o Tagastense: no ano de 395,
Jernimo teria j sessenta e quatro anos de idade, contra quarenta e um de Agostinho. Outro argumento a favor da
velhice do Estridonense so as referncias ocasionais viso cada vez mais pobre do monge sabemos que, como
Milton, que ficou cego na velhice e assim dependente de suas filhas para compor suas obras, Jernimo tambm deixara
de enxergar no fim da vida e tivera de contar com Paula, a Jovem, Eustquio e demais seguidoras para redigir seus
livros. Diante de todos esses indcios, temos um testemunho aparentemente contraditrio de Jernimo, o qual nos conta
que ainda era um puer quando o imperador Juliano morreu em 363: dum adhuc essem puer, et in grammaticae ludo
exercerer, omnesque urbes victimarum sanguine polluerentur, subito in ipso persecutionis ardore Juliani nuntiatus esset
interitus, quando eu ainda era um menino, e ainda estudava na escola do gramtico, e todas as cidades eram poludas
com o sangue das vtimas, de repente, no meio do fervor da perseguio, foi anunciado que Juliano havia morrido (cf.
Hier. In Abd. 3,14); contra isso, repetimos os argumentos de Kelly: conhecido o exagero de Jernimo, ele bem mais
flexvel em usar os adjetivos iuvenis, puer e adulescentulus (ora, ele os dirige a Agostinho, um homem de quarenta
anos!), e poderamos atribuir o ludus grammaticus a uma falha da memria. Estabelecendo uma data anterior, ns nos
posicionamos a favor dos testemunhos antigos, retomados por Hamblenne (1969) e Kelly (1975). V. Booth (1979);
Rebenich (2001) para vises contrrias.
81 Cf. Hier. in Iob. praef.; Ep. 82,2.
82 Jernimo assim se descreve no De viris illustribus: Hieronymus, patre Eusebio natus, oppido Stridonis, quod, a
Gothis eversum, Dalmatiae quondam Pannoniaeque confinium fuit, Jernimo, filho de Eusbio, da cidade de Estrido,
que fora destruda pelos godos e ento ficava na fronteira entre a Dalmcia e a Pannia (cf. Hier. Vir. ill. 135). A
hiptese de que o autor era provavelmente filho de um comerciante vem de Kelly (1975) pp. 5-9.
83 Cf. Hier. In Eccl. 1,9. V. Hagendahl (1958) p. 216-227 para os autores que Donato lecionou a Jernimo; Kelly (1975)
p. 10-11.
84 Cf. Hier. Apol. 1,30; Ep. 50,1; 60,5; 84,6; In Ioh. Hom. V. Courcelle (1948) p. 64-72; Hagendahl (1958) p. 337, apart
from [Jeromes] sincere admiration for their literary qualities and his ambition to enrich his own works in matter and
form by all kinds of imitation and borrowings, he shows a remarkable lack of interest in or esteem for pagan
philosophers and their ideas [...] he did not posses the creative genius of Augustine, but was far more what the Germans
call ein unphilosophischer Kopf; Kelly (1975) p. 16-17.
85 Kelly (1975) p. 70, there was no more dazzling stylist in the fourth century [...] in Latin than Jerome.
86 Kelly (1975) p. 334, even the description of Jerome as a Doctor of the Church needs qualification. Insofar as it
suggests a creative theologian grappling with, and seeking to elucidate, the problems of Christian belief, it was wide off
the mark. In contrast to Augustine, Jerome had neither the aptitude nor the inclination for adventurous thinking.
87 O prprio testemunho de Jernimo, em uma carta a Nepociano, se aplica aqui: dum essem adulescens [...] scripsi ad
avunculum tuum sanctum Heliodorum exhortatoriam epistulam plenam lacrimis querimoniisque [...] sed in illo opere
pro aetate tunc lusimus, et calentibus adhuc rhetorum studiis atque doctrinis, quaedam scolastico flore depinximus.
Nunc iam cane capito et arata fronte [...], quando eu era jovem, escrevi a teu tio, o santo Heliodoro, uma carta cheia de
lgrimas e queixumes [...] mas naquela obra ns, devido a nossa idade, brincamos, ainda frescos dos exerccios e dos
estudos dos rtores, pincelamos at algumas coisas com floreios escolares. Mas agora nossa cabea j grisalha, nossa
fronte enrugada [...] (cf. Hier. Ep. 52,1). Ainda que o autor diga que no convm a um velho escrever como um esteta,
entendemos que Jernimo nunca perde esse costume.
88 Cf. Hier. c. Hel. 16; Adv. Iovin. 1,1; Adv. Ruf. 1,17; mesmo Ep. 102,1 e 112 passim contra Agostinho.
89 Wiesen (1964) p. 235 fala de uma inability to bear competition calmly and without rancor.

)182
90 Acerca da apologia contra Rufino, diz Kelly (1975) p. 253 que throughout Jerome is revealed as an unscrupulous,
relentlessly mordant satirist in the finest Roman tradition.
91 ego philosophus, rhetor, grammaticus, dialecticus, Hebraeus, Graecus, Latinus, trilinguis (cf. Hier. Adv. Ruf. 3,6).
92 Kelly (1975) p. 48-52 e 70-71; Arns (2007) p. 131, seu instinto, sua formao doutrinal, sua vaidade lhe servem de
guia na escolha [de outros escritores] [...] [Jernimo] os nomeia juntos, e confunde muitas vezes as prprias ideias com
as deles. Na verdade, Jernimo um dos maiores plagirios conhecidos pela Antiguidade.
93 Cf. Hier. Ep. 22,30. Kelly (1975) p. 20 estima que deve ter sido a coleo privada mais importante do perodo;
sabido que muitos cristos do Ocidente e do Oriente iam ao mosteiro de Jernimo em Belm para consultar os mais
diversos livros em matria de teologia.
94 A expresso anxiety of influence foi cunhada pelo crtico norte-americano Harold Bloom em seu famoso ensaio
homnimo, publicado em 1973. Entendemos por ansiedade da influncia a relao ambgua que os autores tm em
relao a seus precursores, a qual acaba por condicionar suas obras, uma vez que eles, ainda que no consigam se
desvencilhar de seus antecessores, precisam se rebelar contra eles para poderem criar algo de novo.
95 Brown (2013) p. 274 diz: the average Latin clergyman had a Roman respect for authority. As Christians, they could
base this attitude on a cult of human infirmity, and on an appeal to the lasting traditions of inverted snobbery in the
Early Church. The mysteries, they said, must be an impenetrable cloud to fallen men; and, in any case, to admit the
claims of reason would be to admit the expert, and so to open the leadership of the church to suspect intellectuals,
and to orators and philosophers. Jernimo apresenta o mesmo respeito romano pela autoridade.
96 Pinto (2013) p. 285-286.
97Marrou (1955) p. 51 computa, citando as edies da Patrologia Latina, 29540 citaes do Novo Testamento contra
13276 na obra de Agostinho; Fry (2010) p. XXVI interpreta: l'adhsion de Jrme lexgse allgorisante, o le
subjectif, sinon mme le projectif, se glisse, et le got dAugustin pour la thologie spculative, o le coeur se fait
gomtrie, sont autant de signes clairs destination de qui chercherait saisir leur personnalit profonde. Trata-se
tambm de uma diferena de mtodo de exposio e argumentao das Escrituras, v. Satterthwaite (1997) p. 682-683.
98O ideal da militia Christi fundamenta-se na pregao paulina, em especial nas cartas a Timteo. Exemplo crucial o
de 2 Tim 2:3-4, tu pois, sofre as aflies, como bom soldado < > de Jesus Cristo. Ningum que milita
<> se embaraa com negcios desta vida, a fim de agradar quele que o alistou para a guerra.
99 Nah 1:2
100Kelly (1975) p. 336 sintetiza em poucas palavras a personalidade do escritor: warm-hearted, kind to the poor and
the distressed, easily reduced to tears by their sufferings, [Jerome] was also inordinately vain and petty, jealous of
rivals, morbidly sensitive and irascible, had-ridden by imaginary fears.
101Cf. Hier. Ep. 1;3;5-14. A tese de que Jernimo pleiteava a carreira pblica de Cavallera (1922) vol. 1, p. 17; v.
tambm Kelly (1975) p. 25-33.
102postquam me a tuo latere subitus turbo convolvit [...], depois que um turbilho repentino me arrancou do teu
lado (cf. Hier. Ep. 3,3 a Rufino). Kelly (1975) p. 33-35 confabula que Jernimo rompera laos com sua famlia e
causara mal-estar entre os monges de Aquileia devido a seu temperamento e a sua austeridade (cf. Hier. Ep. 11-12).
103 Cf. Hier. Ep. 50,1. Kelly (1975) p. 39-40.
104 Jernimo rememora seus dias no deserto em Hier. Ep. 125,12, carta enviada a vito. Kelly (1975) p. 50, the
boldest, most surprising of his linguistic enterprises, the one moreover which was to have the most dramatic impact on
his career and reputation, was his decision to learn Hebrew [...] [Jerome] was the first Latin Christian to venture into
this field, indeed the first Christian of note at all apart from the great theologian and thinker, Origen. preciso alertar,
porm, que h diversos estudos contemporneos que colocam em dvida a extenso do conhecimento de Jernimo do
idioma; disso faz uma sntese Graves (2007) p. 1-12.
105 Cf. Hier. Ep. 17,3.
106 Kelly (1975) p. 55-56.
107 Cf. Hier. Ep. 84,3. V. Kelly (1975) p. 59-60.
108 Cf. Hier. Ep. 52,8. Kelly (1975) p. 67-72; Rebenich (1990) p. 120-148.

)183
109Trata-se de uma triste realidade o fato de que nenhuma obra produzida por Jernimo antes disso tenha sobrevivido.
Talvez o autor tenha preferido destrui-las, por ter se convertido tardiamente, assim como Agostinho? Esta tese
plausvel, pois era comum que os cristos na Antiguidade abandonassem a vida mundana aps o batismo, este visto
ento como uma converso mais profunda para a vida espiritual, deixando para trs sua carreira, famlia e bens
materiais. Talvez Jernimo tenha recebido o batismo tambm tardiamente, apenas em 374, e quaisquer obras pags
que ele tenha escrito antes disso, possveis versos satricos de juventude, teriam sido relegadas ao esquecimento aps
sua converso para o monasticismo. Seja como for, Jernimo reconhece que sua carreira literria comeou tardiamente,
com uma lngua enferrujada (cf. Hier. Vita Malchi 1). Sobre isso, v. Rebenich p. 148-163.
110 Kelly (1975) p. 60-64 e 72-79 faz uma sntese das obras escritas em Antiquia e Constantinopla.
111Em uma carta, Erasmo de Roterd afirma que uma nica pgina de Orgenes me instrui mais sobre filosofia crist
do que dez de Agostinho, citado de Auksi (1995) p. 149.
112 Cf. Hier. Ep. 108,6; 127,7; Adv. Ruf. 3,20. V. Kelly (1975) p. 80-84.
113Jernimo comenta a cronologia e os passos desse projeto nos prefcios da Vulgata, e.g. Hier. Vulg. Ioh. praef.; v.
Kelly (1975) p. 86-90.
114Hennings (1994) p. 110-121. Trata-se de uma ironia do destino que [Jerome] was accused of humbling the church
before Jewish learning por ter posteriormente decidido retraduzir a Bblia do hebraico; citado de Curtius (1953) p.
72-73.
115 Cf. Hier. Ev. praef.; Ep. 112,21-22.
116Jernimo comenta a polmica de sua deciso em praticamente todos os prefcios da Vulgata, assim como em Ep.
43,2; In Ion. 4,6; Adv. Ruf. 2,24-35; tambm Ruf. Adv. Hier. 2,36-41.
117Hennings (1994) p. 195, n. 268 indica que .Jernimo foi o primeiro autor a introduzir a noo de textos apcrifos
entre os latinos: Hieronymus ist der einzige christliche Author, der die Septuaginta-Zustze als bezeichnet.
118 A denominao Vulgata surgiu somente na Idade Mdia, sendo difundida no sculo XIII por Francis Bacon e adotada
pelo clero somente em 1546, aps o Conclio de Trento. Jernimo chamou sua traduo de Divina Bibliotheca; v.
Curtius (1953) p. 73; Labourt (1963) vol. I, p. XXXIV, n. 2. Nos tempos de Jernimo, Vulgata editio dizia respeito
, a verso popular, que na realidade a Septuaginta, para diferenci-la da edio douta que a
Hexapla, a verso crtica preparada por Orgenes, quila de Snope, Smaco e Teodocio.
119 Kelly (1975) p. 159-163 faz uma sntese da preparao da Vulgata.
120Cf. Hier. Ep. 22, uma longa carta enviada a Eustquio sobre a glria da virgindade. Kelly (1975) p. 99-103 d o
contexto em que ela foi escrita.
121 Kelly (1975) p. 91-103; Rebenich (1990) p. 164-201.
122 Frst (2002) p. 11.
123 Jernimo criticou muito o fato de Ambrsio no ter mencionado Orgenes em sua exposio do Evangelho de Lucas,
assim como o conhecimento insuficiente dele do idioma grego, em Hier. Didym. spirit. praef.; Hom. Orig. In Luc.
praef.; Adv. Ruf. 1,2; e Ruf. Apol. Adv. Hier. 3,11. V. Kelly (1975) p. 143-144; Adkin (1992), id. (1993) e id. (1997) para
leituras mais aprofundadas da relao entre os autores.
124
A ascenso, o declnio e a queda de Jernimo em Roma so narrados por Kelly (1975) p. 80-115; Rebenich (1990) p.
202-245; Cain (2010) p. 99-128.
125Jernimo tinha conscincia disso: cunctorum digitis notor, todos os dedos apontam para mim (cf. Hier. Ep. 27,2).
Cf. tambm Hier. Ep. 43, escrita um pouco antes de ele ser expulso da cidade.
126 Cf. Hier. C. Helv. 1;8. Kelly (1975) p. 104-111 d o contexto.
127 Kelly (1975) p. 112.
128 Cf. Hier. Ep. 45,6.
129 Cf. Hier. Ep. 108 passim.
130 Cf. Hier. Ep. 50,1; 84,3; Adv. Ruf. 3,27.

)184
131 Cf. Hier. Ep. 35,1; 36,1.
132Rufino ficou escandalizado com esse projeto de Jernimo, que abarcava tambm os autores pagos, cf. Ruf. Apol. in
Hier. 2,8. Kelly (1975) p. 136-140 faz uma sntese.
133 Kelly (1975) p. 145-152 faz uma sntese desse projeto de Jernimo, que originalmente deveria abarcar todas as
cartas de Paulo (cf. Hier. In Phil. 1).
134Esta edio foi preparada a partir do texto de Orgenes sobre aquele de Teodocio na Hxapla, conforme diz o
prprio Jernimo em Hier. Ep. 112,19 (v. infra Aug. Ep. 28, n. 14).
135Kelly (1975) p. 174-178 para o contexto no qual a obra foi escrita. O De viris illustribus aparece na correspondncia
de Jernimo com Agostinho, cf. Aug. Ep. 40,2 e Hier. Ep. 112,3.
136Cf. Hier. Ep. 49,2;14. Kelly (1975) p. 180-189 discute o contexto e a recepo do adversus Iovinianum (v. infra Aug.
Ep. 167, n. 14). Agostinho menciona este livro de Jernimo em duas ocasies, em Aug. Ep. 166,6,21; 167,4;10.
137Jernimo faz comentrios acerca dos viajantes e dos afazeres que o mantinham sempre ocupado no mosteiro em
diversas de suas cartas escritas na poca, e.g. Hier. Ep. 107,2.
138 A comparao provm de Hor. C. 4,1,1-2.
139 Kelly (1975) p. 141, actually this was a period of prodigious, sometimes feverish literary activity. Over and above
his other preoccupations, Jerome was pouring out a spate of books translations, commentaries, scholarly studies and
compilations, even an outline history of Christian literature [...] No doubt it was a relief, after his humiliations at Rome,
to immerse himself in pursuits so congenial and so suited to his talents.
140 Cf. Hier. In Gal. 3 praef.
141 Cf. Aug. Conf. 6,7,11; Ep. 22,9; 24,3; 26,3; 29; 32,5. A comparao de Marrou (1955) p. 36-37.
142 Kelly (1975) p. 217; Brown (2013) p. 56-57; 126-127; 136-137 e 155.
143 Cf. Aug. Ep. 27; 31.
144Cf. Aug. Ep. 22,2. Agostinho se dirigir a Aurlio sempre como auctoritas tua, tua autoridade, em respeito ao
papel central que o bispo de Cartago tinha na Igreja Africana.
145Conforme Agostinho afirma em Aug. Ep. 40,1, que recebeu uma carta inteira de Jernimo em troca de uma
subscripta salutatio. Jernimo alude talvez mesma carta, hoje perdida, em Hier. Ep. 103,1. possvel que esta seja a
primeira carta da correspondncia.
146
cum te ille ibi videbat, ego videbam, sed oculis eius, quando ele te via a, eu, por minha vez, tambm te via, mas
com os olhos dele (cf. Aug. Ep. 28,1).
147 Frst (1999) p. 111-116; Ebbeler (2012) p. 76-78. Para uma fortuna do topos, v. Bohnenblust (1905) p. 39-41.
148hactenus fortasse scribere debuerim, si esse vellem epistolarum solemnium more contentus, eu deveria talvez parar
de escrever por aqui, se quisesse me ater ao costume das cartas cerimoniosas (cf. Aug. Ep. 28,1).
149Trata-se, aqui, de uma radicalizao do tpico da , a presentificao do correspondente; v. Thraede
(1970) p. 122.
150Citamos a passagem para que o leitor possa acompanhar o texto: e, chegando Pedro Antiquia, lhe resisti na cara,
porque era repreensvel. Porque, antes que alguns tivessem chegado da parte de Tiago, comia com os gentios; mas,
depois que chegaram, se foi retirando, e se apartou deles, temendo os que eram da circunciso. E os outros judeus
tambm dissimulavam com ele, de maneira que at Barnab se deixou levar pela sua dissimulao. Mas, quando vi que
no andavam bem e direitamente conforme a verdade do evangelho, disse a Pedro na presena de todos: Se tu, sendo
judeu, vives como os gentios, e no como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus? (cf. Gal 2:11-14).
151A discusso acerca de Gal 2:11-14 certamente o tema mais explorado e de maior fortuna dentre os estudados a
partir da correspondncia mtua entre Agostinho e Jernimo. Autores medievais e renascentistas como Toms de
Aquino, Lutero e Erasmo deram especial ateno a ele. Os patronos desses estudos na modernidade so Mhler (1839)
e Overbeck (1879); a melhor leitura atual est em Frst (1999) p. 1-87. Outras obras, Malfatti (1921); Lange (1931);
Odonne (1931); Auvray (1939); Simard (1942); Churbuck (1953); Coughlin (1957); Menestrina (1975; 1997);
OConnell (1979); Cole-Turner (1980); Hennings (1994) p. 218-264; Carriker (1999). Resumo em Frst (2002) p.
27-51.
)185
152Frst (2002) p. 28, als zentrales Argument im Streit um die christliche Wahrheit hat sich in der sptantiken
Theologie der Rekurs auf die Anfnge der Kirche herausgebildet.
153Ebbeler (2007) p. 317, this passage had been a crux of Christian scholarship in both the Greek and Latin traditions
since at least Clement of Alexandria; and it was the sort of issue on which a young, ambitious Christian could make or
break his reputation.
154Cf. Hier. In Gal. praef. Hennings (1994) p. 149-256 e Frst (1999) p. 26-45 para uma discusso da posio de
Jernimo; Schatkin (1970) para a influncia origenista no comentrio aos Glatas.
155 Cf. Orig. C. Cels. 2,2; 3,11; Hier. In Gal. 2,11-14; Ioan. Chr. Hom. In Gal. 2,11; Comm. In Gal. 2,5. Frst (2002) p.
28-51 faz uma sntese da discusso e elenca os diversos autores que endossaram a interpretao da simulatio, entre os
quais Apolinrio de Laodiceia, rio Ddimo, Eusbio de meso, Teodoro de Heracleia e Joo Crisstomo. Jernimo
cita a maioria deles em Hier. In Gal. praef; Ep. 112,4.
156 Cf. Hier. Ep. 112,8.
157 Cf. Hier. Ep. 112,9.
158 Cf. Hier. Ep. 112,14.
159 Cf. Hier. Ep. 112,17.
160 Cf. Hier. Ep. 112,13 e Aug. Ep. 82,16. V. Hennings (1994) p. 274-291 e Frst (1999) p. 73-77.
161 Cf. Hier. Ep. 112,6;11. V. Hennings (1994) p. 225-228 para a interpretao de Porfrio.
162Cf. Ioan. Chr. hom in Gal 2,11 9. V. Hennings (1994) p. 121-130; Frst (2002) p. 29 judicioso: ein Streit zwischen
Aposteln ist in diesem Bild apostolicher Eintracht in Wort und Tat nicht unterzubringen, weil er den apostolich
fundierten Wahrheitsanspruch des Christentums zu untergraben scheint.
163Cf. Aug. Ep. 82,23. Frst (2002) p. 40-41 defende que Ambrsio na realidade era o Ambrosiastro, um autor
desconhecido cuja obra presumia-se ser do bispo de Milo at recentemente; v. tambm Hennings (1994) p. 240-242 e
247-249.
164 Cf. Aug. Ep. 28,3.
165
Cf. Aug. In Gal. 2,11-14. Hennings (1994) p. 256-263 e Frst (1999) p. 45-64 para uma discusso da posio de
Agostinho.
166 Cf. Aug. Ep. 82,7.
167 Cf. Aug. Ep. 82,8.
168 Cf. Aug. Ep. 40,5.
169 Cf. Hier. Adv. Ruf. 3,2; Adv. Pelag. 1,22-23. V. De Bruyne (1932) p. 238 e 247-248; Frst (1999) p. 242-247.
170 Cf. Aug. Ep. 40,8; 71,2 e Hier. Ep. 105,1.
171 Brown (2013) p. 197.
172 Estes textos so aludidos em Aug. Ep. 40,1 e Hier. Ep. 103,1.
173 Cf. Aug. Ep. 40,2;9. Jernimo vai corrigir seu correspondente posteriormente em Hier. Ep. 112,3.
174 Cf. Eph 1:18, em Aug. Ep. 40,7.
175 Cf. Aug. Ep. 40,7.
176 E. g. Aug. Ep. 82,23; 119,1; 120,3;13.
177Cf. Aug. Ep. 28,5; 40,8, aqui: si enim aliter sentis, verumque tu sentis (nam nisi verum sit, melius esse non potest), ut
non dicam nulla, certe non magna culpa meus error veritati favet, si recte in quoquam veritas potest favere mendacio,
agora, se for outro teu juzo, e o mesmo for verdadeiro (ora, se no for verdadeiro, no pode ser melhor), meu erro
favorece certamente a verdade, e sem grande culpa (para no dizer que no h nenhuma), se para algum correto que a
verdade possa favorecer a mentira.

)186
178 Cf. Aug. Ep. 40,9; 73,5; 82,32 e Hier. Ep. 105,1; 112,18.
179 Cf. Hier. Ep. 3,4-6.
180 Segundo Jernimo diz em Hier. Ep. 105,1.
181 Cf. Aug. Ep. 67,2.
182 Cf. Aug. Ep. 73,9; 82,32.
183 Conforme Agostinho diz a Presdio em Aug. Ep. 74,1.
184 Kelly (1975) p. 217-218; Ebbeler (2007; 2009); Brown (2013) p. 271-272.
185 Cf. Aug. Ep. 71,1-2.
186 A obra de Decret (1978) continua insupervel sobre a temtica da frica maniqueia; Van Oort (2001) para a
influncia do maniquesmo em Agostinho. Pinto (2013) p. 336-371 pontua, no que discute as diferentes maneiras de
Agostinho e de Jernimo comentarem as Escrituras, o debate do bispo de Hipona contra os maniqueus no De Genesi
adversus Manichaios.
187 Cf. Aug. Serm. ed. Dolbeau 10, totalmente dedicado Gal 2:11-14. V. Brown (2013) p. 449-451 para uma
interpretao.
188 Cf. 1 Cor 14:15; Aug. Ep. 28,3-5; 40,3.
189 Cf. Aug. Ep. 40,3.
190 Cf. Aug. Ep. 40,5.
191
Cf. Aug. Retract. 1,14-2,7;18;21. V. Frst (2002) p. 43-44, n. 97-101 para a lista completa de obras nas quais
Agostinho defende esse ponto.
192 Cf. Aug. Ep. 82,6.
193quam enim testimonia mendacia esse non debent, tam non debent favere mendacio, ora, j que os testemunhos no
devem ser mentirosos, no devido que favoream a mentira (cf. Aug. Ep. 28,5).
194Van Oort (1991) p. 41, Augustine's emphasis on the truth of the Scriptures can also be explained as a reaction to his
experience among the Manichaen.
195 Cf. Aug. Ep. 28,4.
196O melhor livro sobre o donatismo continua sendo Frend (1952); o melhor artigo sobre o problema donatista na
correspondncia entre Agostinho e Jernimo o de Cole-Turner (1980). Para uma sntese a partir da biografia de
Agostinho, v. Brown (2013) p. 207-255. Para a questo dos ritos e cerimoniais dos judeus, v. Hennings (1994) p.
265-291.
197 Cf. Aug. Ep. 82,7.
198 Cf. Aug. Ep. 82,25.
199 Cf. Aug. Ep. 82,8-16.
200quamvis enim iam superflua, tamen solita non nocerent [...] os sacramentos, embora j fossem suprfluos, no eram
nocivos, eram habituais [...] (cf. Aug. Ep. 40,5).
201 Cf. Aug. Ep. 40,4.
202 Cf. Aug. Ep. 40,6.
203 Cf. Aug. Ep. 40,6; tambm em Aug. Ep. 82,26-29.
204 Cf. Aug. Ep. 82,16.
205 Cf. Aug. Ep. 82,9.
206 Cf. Aug. Ep. 82,20.
)187
207 Cole-Turner (1980) p. 166, thus it is that Augustines anti-Donatist debate provides an additional reason to
correspond with Jerome about Galatians 2:11-14. Augustine must defend his interpretation of Galatians 2 against
Jerome if he is to maintain his cases against the Manichees and against the Donatists.
208Frend (1952) p. 3-23 e 141-168 narra a histria com detalhes. Chadwick (1967) p. 121-124 e Brown (2013) p.
210-211 a resumem.
209 Cameron (1993a) p. 67-69.
210E.g. Aug. In Psalm. 10,5; Ep. 105,3; 108,19; 111,1; 133,1. V. Marrou (1955) p. 46, il y a dans lagitation donatiste
tout un aspect de rvolte sociale et de jacquerie; Brown (2013) p. 225.
211
Cf. Aug. C. litt. Petil. 2,8,17; 2,36,90. A mais importante dessas obras o tratado sobre o De baptismo, publicado ca.
401.
212 Cf. Aug. Ep. 40,6.
213 Brown (2013) p. 213-215, the feeling of having defended something precious, of preserving a Law that had
maintained the identity of a group in a hostile world, these are potent emotions [...] [the donatists] had led the Christian
Church, always thought of as a True Israel, embracing its past and also Moses, the prophets, and the Maccabees, to
victory in Africa. Such a Church was catholic in what the Donatists regarded as the most profound sense of the word:
for it was the only church that had preserved the total Christian Law (citao na p. 213).
214 Cf. Aug. litt. Petil. 2,11,25. Kelly (1977) p. 410, the Donatists took the line of rigorism; the validity of the
sacraments, they taught, depended on the worthiness of the minister, and the Church ceased to be holy and forfeited its
claim to be Christs body when it tolerated unworthy bishops and other officers.
215 Cf. Aug. Coll. Carthag. 3,258.
216 Aug. In Psalm. 21,28-29; Ep. ad cath. 5,9; 13,33.
217 E.g. Aug. Bapt. 4,23,30. Chadwick (1967) p. 220-222 d uma sntese da questo sobre a objetividade dos
sacramentos, e conclui: all that is required of the priest is awareness that in the sacramental action which he is
administering it is the whole church which is acting.
218 Cf. Gal 4:4-5; e tambm Aug. Ep. 40,4 e Hier. Ep. 112,14.
219 Segundo Brown (2013) p. 217. No mais, Dorsch (1911) argumenta que para Agostinho somente as Escrituras
representam as coordenadas para a via Christi, o caminho at Cristo.
220 Cameron (1991) p. 120-154.
221 Brown (1989) p. 116.
222 Frend (1952) p. 315-332; Chadwick (1967) p. 219, each community made the exclusive claim to be the one
mystical body of Christ and the sole ark of salvation [...] the Catholics answer to the Donatist depended not merely on
their denial of the factual truth of the charges brought against Caecilians consecrators. They also rejected in principle
the puritan view of the Church as a holy and exclusive community in its empirical reality, and affirmed that the church
was like Noahs ark with clean and unclean beast [...] [the Catholics] observed that since the Donatists were not in
community with Jerusalem, Rome, and the churches outside Africa, they could not claim to be the catholic, i.e.
universal, church.
223Cf. Aug. Serm. 131,6, stabulum si agnoscitis, Ecclesia est [...], se reconheceis um hospital, este a Igreja [...];
tambm Serm. 151,4-5.
224 Brown (2013) p. 220-221, Augustine believed that the Church might become coextensive with human society as a
whole: that it might absorb, transform and perfect, the existing bonds of human relations. He was deeply preoccupied
by the idea of the basic unity of the human race [...] Augustines writings against the Donatists betray his increasing
absorption of the common stock of ideas available to African Christians above all, the idea of the Church as a clearly
distinguished group in society, marked out as the sole possessor of a body of saving rites [...] [Augustines church] was
not the old church of Cyprian, it was the new, expanding church of Ambrose, rising above the Roman world like a
moon waxing in its brightness, it was a confident, international body, established in the respect of Christian Emperors,
sought out by noblemen and intellectuals, capable of bringing to the masses of the known civilized world the esoteric
truths of the philosophy of Plato, a church set no longer to defy society, but to master it.
225 Brown (2013) p. 222-231 faz uma sntese deste tema.

)188
226 Cf. CTh. 16,5,38; 6,4-5; 11,2. V. Frend (1952) p. 263-265.
227
Cf. Aug. Serm. ed. Dolbeau 10,7-12; v. Frst (2002) p. 43-44, n. 97-101 para a lista completa de obras nas quais
Agostinho defende esse ponto, e Brown (2013) p. 449-451 para uma interpretao.
228Segundo Cole-Turner (1980) p. 164: on the basis of this image of St. Peter as the one who excels in humility and
grace, Augustine finds a way to maintain, against the Donatists, that any bishop, St. Peter or St. Cyprian, might be
wrong without any loss of worthiness.
229 Cf. Aug. In Psalm. II 30,7, comparar com Aug. de Mor. Eccl. 34,75 e Ep. 21,2. Em Brown (2013) p. 204.
230 intonant nubes coelorum per totum orbem terrarum aedificari domum Dei; et clamant ranae de palude: nos soli
sumus christiani, as nuvens vociferam com raios que a casa de Deus ser construda por toda a terra, e ainda assim os
sapos clamam no brejo: s ns somos cristos! (cf. Aug. In Psalm. 95,11). V. Brown (2013) p. 216-217 para mais
testemunhos.
231 Cf. Aug. De Serm. Dom. in Monte 1,9,24; 2,9,34; In Gal. 57; In Ioh. 7,8; C. Ep. Parm. 2,21,41; 3,1,3. Brown (2013)
p. 204 diz: to coexist with ones fellows, however, also meant taking an active interest in reforming their ways. For
this reason, the power of correptio, of admonition, which Augustine exercised as a bishop, preoccupied him deeply.
Even in his early works as a priest, Augustine will constantly attempt to define the uneasy boundary between severity
and aggression. The role of anger in delivering a rebuke, for instance, is examined with scrupulous honesty; mais
adiante, em id. ibid. p. 218: [the Christian] must perform a threefold task: he must himself become holy; he must
coexist with sinners in the same community as himself, a task involving humility and integrity; but he must also be
prepared, actively, to rebuke and correct them.
232 Cf. Aug. In Psalm. XVII 118,2; Ep. 93,4; Serm. 112,8; 173,3. V. Brown (2013) p. 232-233, [disciplina] was a
corrective process of teaching, eruditio, and warning, admonitio, which might even include fear, constraint, and
external inconvenience [...] for him, it was an essentially active process of corrective punishment, a softening-up
process, a teaching by inconveniences. O que est em jogo na noo de disciplina na realidade a legitimidade da
lei terrena, isto , do direito romano para punir os crimes de heresia, e o papel do bispo como representante cristo
daquela lei, como indica em seguida Brown (2013) p. 233-239; dois textos conspcuos dessa questo so a longa carta
Aug. Ep. 93 enviada ao bispo donatista de Cartennae (atual Tns, na Arglica), Vicncio, e Aug. Ep. 108 enviada ao
procnsul Donato.
233Hagendahl (1958) p. 161-183 e Chadwick (1967) p.184-191 fazem uma sntese dessa questo; Kelly (1975) p.
195-209 e 227-263 a contextualiza.
234Cf. Hier. c. Lucif. 28, passagem em que Jernimo se refere aos montenses, montanistas, alcunha comum dos
donatistas.
235 E.g. os marcionitas, os ebionitas, os nazarenos e os fariseus, conforme Jernimo indica em Hier. Ep. 112,13.
236 Cf. Hier. Ep. 102,1.
237 Cf. Hier. Ep. 102,1; Agostinho tambm ouvira falar que Jernimo havia recebido sua carta, cf. Aug. Ep. 67,1.
238 Os em Hier. Ep. 102,1.
239Kelly (1975) p. 272, "the fact is, once [Jerome] had read Letter 40A, he was sharp-witted enough to realise that it
destroyed the traditional Greek exegesis of Galatians 2:11-14; but he was not big enough to avow his mistaken
preference, and instead stalled and tried every device to get the discussion dropped.
240 Jernimo descreve Aug. Ep. 40 como uma importuna narratio, uma interveno inoportuna, em Hier. Ep. 102,1.
241 Cf. Hier. In Gal 3 prol.; In Mat. prol., Ep. 71,5; 73,10; 74,6.
242Cf. Hier. Ep. 99,1-2; 102,1. A morte de Paula recordada em Hier. Ep. 108, um longo epitfio da matrona que ele
escreveu a Eustquio. Kelly (1975) p. 277-279 faz uma sntese tocante do desespero de Jernimo no perodo.
243 Trata-se de Hier. Ep. 51.
244 Cf. Hier. Ep. 103,1; o exlio tambm mencionado em Hier. Ep. 82,10.
245Trata-se de Hier. Ep. 57, mencionada em Hier. Ep. 112,20 e Aug. Ep. 82,34. Barterlink (1980) tem um livro dedicado
a esta carta.
246 Cf. Hier. Ep. 82,8. Kelly (1975) p. 204-209.
)189
247 Cf. Hier. Ep. 83.
248 Cf. Hier. Ep. 84; 85; Adv. Ruf. 1,12. Rufino reclama da agressividade de seu adversrio em Ruf. Apol. c. Hier. 2,44.
249 H diversas cartas de Jernimo concernentes ao problema, cf. Hier. Ep. 63; 86-100. Kelly (1975) p. 243-263.
250Jernimo continua criticando duramente seu desafeto mesmo aps este morrer, em 411, e assim continuar at sua
prpria morte. E.g. Hier. Ep. 125, carta escrita ao monge Rstico no ano de 412, na qual Jernimo chama Rufino de
Grunnius, porco (cf. Hier. Ep. 125,18).
251 Cf. Hier. Ep. 124,1 e Aug. Ep. 73,6-10.
252 Cf. Aug. Ep. 28,2; 40,9; 82,23. Sobre Jernimo como mediador do origenismo para Agostinho, v. Courcelle (1948)
p. 185-187; La Bonnardire (1974); OConnel (1984); Frst (1999) p. 117-130 e 212-223 e id. (2002) p. 71-74.
253Brown (2013) p. 147, [no incio da dcada de 390] Origen will fall out of favour. The Latin church will find itself
without any classic of Christian scholarship, with which to solve its problems.
254Cf. Ruf. Apol. c. Hier. 1,22-44; 2,13-22; 2,28. Kelly (1975) p. 250 acerta: if after claiming Origen for thirty years
[Jerome] now denounced him as a heretic, he was surely passing sentence on himself.
255optime novit prudentia tua, unumquemque in suo sensu abundare, tua prudncia sabe muito bem que cada um
conhece bem seu prprio modo de pensar (cf. Hier. Ep. 102,2), a partir de Rom 14:5.
256 Cf. Hier. Ep. 102,4.
257 Cf. Hier. Ep. 102,2. Ebbeler (2009) p. 280, Jerome does not challenge the propriety of Augustines epistolary
censures per se. Rather, he takes issue with Augustines motives for such a public form of rebuke, in the guise of a
friendship letter.
258 Cf. Aug. Ep. 40,9. A questo ser pormenorizada no tpico seguinte.
259 Cf. Hier. Ep. 105,4.
260 Cf. Hier. Ep. 81,1; Adv. Ruf. 3,37.
261 Cf. Hier. Ep. 102,3.
262 Cf. Hier. Ep. 102,2.
263 itaque, si tua est epistola, aperte scribe, vel mitte exemplaria veriora, ut absque ullo rancore stomachi in
Scripturarum disputatione versemur [...], pois bem, se tua a carta, escreve sem medo, ou envia uma cpia mais
verdadeira, para que assim possamos nos engajar na discusso das Escrituras sem rano de clera [...] (cf. Hier. Ep.
102,2).
264Kelly (1975) p. 267 no nada generoso com Jernimo: despite occasional flashes of affection, even of common-
sense (let not the world see us quarrelling like children), Letter 105J surpassed Letter 102J in hostile insinuations,
distrust, cantankerousness.
265Segundo Ebbeler (2007) p. 322, [Jerome] repeatedly attempted to force Augustine into the role played by so many
of Jeromes other correspondents: the inquisitive student who wants the advice and guidance of the famous Jerome. For
his part, Augustine resisted this inscription and staked his claim as Jeromes equal, even superior, in the field of
scriptural exegesis. O atributivo senex aparece em Hier. Ep. 102,2; 105,3;5; 112,23; Jernimo imputa os atributivos
iuvenis e adulescentulus a Agostinho em Hier. Ep. 102,2; 105,4; 112,23.
266
O campus Scripturarum em Hier. Ep. 102,2 e o advrbio comminus, mano-a-mano, em Hier. Ep. 105,4; tambm
manus conserere, bater de frente, em Hier. Ep. 112,7.
267 Cf. Hier. Ep. 105,3.
268 Cf. Hier. Ep. 105,5.
269 litum melle gladium, espada lambuzada de mel (cf. Hier. Ep. 102,2).
270 veneni callice circumlinere melle, circundar o clice de mel com veneno (cf. Hier. Adv. Ruf. 1,7).

)190
271 reprehensionis a te meae, textos em que eu sou repreendido por ti (cf. Hier. Ep. 105,4). Adiante, reprehensiones
opusculorum meorum continentes, repreenses, eu tenho a forte impresso, das minhas obrinhas (cf. Hier. Ep. 112,1)
e reprehensionem mei, a repreenso que me diriges (cf. Hier. Ep. 112,2).
272 Cf. Hier. Ep. 105,5.
273 Cf. Aug. Ep. 73,1.
274 Cf. Aug. Ep. 73,5.
275 amicissimam reprehensionem, uma repreenso muitssimo amigvel (cf. Aug. Ep. 73,3).
276 De Bruyne (1932) p. 243, sans violence, gentiment il tourne et retourne sur la plaie; Frst (1999) p. 154.
277 Cf. Aug. Ep. 73,3.
278 Cf. Aug. Ep. 73,4; a passagem de Ccero est em Cic. Lael. 90.
279 Cf. Aug. Ep. 73,8.
280Frst (1999) p. 154-157; Ebbeler (2009) p. 280-281, by raising the specter of Rufinus, Augustine reminded Jerome
(and the Christian community) of Jeromes most spectacular failed friendship [...] he did so in a deliberate effort to
destroy Jeromes credibility on the topic of Christian friendship.
281Cf. Aug. Ep. 73,6; indignatio aparece novamente: quod autem pertinet ad offensionem tuam, cum te indignatum
sensero, nihil aliud quam veniam deprecabor, no que, porm, diz respeito a tua ofensa: quando eu perceber tua
indignao, no suplicarei nada alm do perdo (cf. Aug. Ep. 73,9).
282rogo te, si fieri potest, ut inter nos quaeramus et disseramus aliquid, quo sine amaritudine discordiae corda nostra
pascantur, fiat. si autem non possum dicere quid mihi emendandum videatur in scriptis tuis, nec tu in meis, nisi cum
suspicione invidiae, aut laesione amicitiae, quiescamus ab his, et nostrae vitae salutique parcamus. minus certe
assequatur illa quae inflat, dum non offendatur illa quae aedificat (cf. Aug. Ep. 73,9).
283
illum maluerim aliquo modo mitiorem, quam te isto modo armatiorem, eu preferiria aquele Jernimo de algum
modo mais manso a te ver, deste modo, todo armado (cf. Aug. Ep. 73,10).
284 Brown (2013) p. 272, certa ratione: this, typically, is what Augustine wanted; and there is little to suggest that he
seriously thought that Jerome would provide it.
285non tam illa de Entello et bove lasso, ubi mihi potius hilariter iocari quam iracunde minari visus es, [...] no tanto
naquela parte sobre Entelo e o boi cansado, onde julguei que tu, jovial, brincavas antes que, irado, ameaavas [...] (cf.
Aug. Ep. 73,9).
286Vessey (1993) p. 175-213 enxerga na censura repreenso um adversus Hieronymum embrionrio, concluso que nos
parece exagerada.
287 Cf. Aug. Ep. 73,10.
288 Cf. Aug. Ep. 73,5.
289 Cf. Hier. Ep. 115.
290 equidem quantum ad me attinet, serio nos ista, quam ludo, agere mallem (cf. Aug. Ep. 82,2).
291 Cf. Hier. Ep. 115.
292Artigos sobre esse tema, Ltcke (1968) e ODonnell (1991). Para o exemplum de Paulo, v. a concluso de Frst
(1999) p. 233-235.
293 Kelly (1975) p. 268-269.
294 Cf. Hier. Ep. 112,1.
295 Ebbeler (2009) p. 281.
296 Cf. Hier. Ep. 112,2.
297 tuo tibi sermone respondeo, te respondo com tua prpria linguagem (cf. Hier. Ep. 112,20).
)191
298 Cf. Hier. Ep. 112,16.
299 Cf. Hier. Ep. 112,4; Jernimo cita os autores gregos em Hier. Ep. 112,4;6.
300 Cf. Hier. Ep. 112,5.
301 Cf. Hier. Ep. 115,1.
302 Frst (1999) p. 166, erneut zeigte sich Hieronymus weder an einer echten Freundschaft noch an einem offenen und
kritischen Disput interessiert.
303 Cf. Aug. Ep. 82,2.
304 Cf. Aug. Ep. 82,23.
305ego fateor, maius aliquid expeto a benignitate virium tuarum, prudentiaque tam docta, et otiosa, annosa, studiosa,
ingeniosa diligentia, devo confessar que eu espero algo maior da bondade das tuas foras, da tua prudncia to erudita,
e da tua diligncia plcida, experiente, aplicada e talentosa (cf. Aug. Ep. 82,2).
306sermo constat ratione vetustate auctoritate consuetudine [...] auctoritas ab oratoribus uel historicis peti solet, o
discurso se funda na razo, na antiguidade, na autoridade, e na tradio [...] a autoridade costuma ser auferida dos
oradores e historiadores (cf. Quint. Inst. orat. 1,6,1). Agradecemos Pinto (2013) p. 360-362 por chamar nossa ateno
para alguns sentidos de auctoritas.
307in senatu conservanda auctoritas, apud populum dignitas, deve-se conservar a autoridade no senado [i.e., na vida
poltica], e a reputao entre o povo [i.e., na vida social] (cf. Quint. Inst. orat. 11,3,153). O termo auctoritas no raro
aparece como propriedade do Senado romano (cf. Cic. Leg. 2,15,37; Off. 3,30,109; Fam. 1,2) e dos patres (cf. Liv.
26,2). Trata-se, portanto, de um termo essencialmente poltico que tambm se conecta s ideias de tradio, consuetudo,
e de mos maiorum. De fato, o significado no dista de nosso autoridade.
308 No s entre os cristos, mas j em Ccero: ac tamen si qui sunt, qui philosophorum auctoritate moveantur, dent
operam parumper atque audiant eos, quorum summa est auctoritas apud doctissimos homines et gloria; quos ego
existimo, etiam si qui ipsi rem publicam non gesserint, no entanto, se h quem se deixa levar pela autoridade dos
filsofos, que deem um pouco de ateno e ouvidos a eles, cuja autoridade e glria imensa entre os homens mais
doutos; eu mesmo os estimo, ainda que no tenham exercido nenhum cargo pblico (cf. Cic. Rep.1,12).
309Segundo Hennings (1994) p. 251, diese Arbeitsweise hat Hieronymus wahrscheintlich von seinem Lehrer Donatus
bernommen. Darin unterscheidet er sich von den lteren lateinischen Kommentatoren, die sich um ein eigenstndiges
Verstndnis der biblischen Texte bemht haben. Er steht auch darin den griechischen Auslegern nher, die ebenfalls
fremdes Material aufnehmen.
310 Cf. Aug. Ep. 82,23.
311 Ltcke (1968) p. 128-136, 147.
312 ac si aliquid in eis offendero litteris, quod videatur contrarium veritati; nihil aliud, quam vel mendosum esse
codicem, vel interpretem non assecutum esse quod dictum est, vel me minime intellexisse, non ambigam. alios autem ita
lego, ut quantalibet sanctitate doctrinaque praepolleant, non ideo verum putem, quia ipsi ita senserunt; sed quia mihi
vel per illos auctores canonicos, vel probabili ratione, quod a vero non abhorreat, persuadere potuerunt. Nec te, mi
frater, sentire aliud existimo: prorsus, inquam, non te arbitror sic legi tuos libros velle, tamquam prophetarum, vel
apostolorum; de quorum scriptis, quod omni errore careant, dubitare nefarium est (cf. Aug. Ep. 82,3). Outros
exemplos: Aug. C. Cresc. 2,40; Pecc. Mer. 3,14; Nat. et grat. 71; C. Pelag. 4,20; Ep. 147,54; 193,10.
313 Brown (2013) p. 273.
314Hennings (1994) p. 125, gegen die klassischen Kriterien von Zahl und Alter der von ihm herangezogenen
Autoritten beruft sich Augustinus gegenber Hieronymus auf ein anderes Kriterium, die dogmatische Zuverlssigkeit.
315 Frst (1999) p. 164, niemand kann sich nach Augustins Ansicht unter Berufung auf eine persnliche Autoritt
gleich werter Art gegen Kritik immunisieren [...] was zhlt, ist die Wahrheit einer Aussage; zu deren Eruierung forderte
er Argumente ad rem, nicht ad personam.
316vel rerum ratione apertissime vel Scripturarum auctoritate certissima, algo totalmente manifesto pela razo de ser
ou totalmente certo pela autoridade das Escrituras (cf. Aug. Gen. ad litt. 7,1).

)192
317Cf. Cipr. Ep. 71,3; Aug. Bapt. 2,2-6; 4,8;17; 6,3; C. Cresc. 1,38; 2,39-40; Un. Bapt. 22; C. Gaud. 2,9. Ambrsio na
realidade provavelmente o Ambrosiastro, como acreditam Hennings (1994) p.257 e Frst (2002) p. 40-41, cf.
Ambrosiaster In Gal. 2,11-14. V. Cole-Turner (1980) p. 162-166.
318 Cf. Aug. Ep. 82,24.
319Wiles (1967) p. 25, the difference of approach between East and West stands out most clearly in the different
premises from which they argue in discussing the story of Pauls rebuke of Peter. The controversy between Jerome and
Augustine on the subject was in effect a controversy between East and West.
320dent veniam quilibet aliud opinantes; ego magis credo tanto apostolo in suis, et pro suis Litteris iuranti, quam
cuiquam doctissimo de alienis litteris disputanti (cf. Aug. Ep. 82,25).
321denique tantae Petrus auctoritatis fuit [...] se non habuisse securitatem Evangelii praedicandi, nisi Petri, et qui cum
eo erant, fuisset sententia roboratum, enfim, a autoridade de Pedro era tamanha [...] ele [Paulo] no tinha segurana de
pregar o Evangelho se no estivesse firmado no parecer de Pedro e daqueles que viviam com ele (cf. Hier. Ep. 112,8).
Adiante, Jernimo ameaa: simulasti ergo iudaeum ut iudaeos lucrifaceres; et hanc ipsam simulationem Iacobus et
ceteri te docuere presbyteri: sed tamen evadere non potuisti, tu [Paulo] ento simulaste ser judeu para ganhar judeus, e
essa mesma simulao te ensinaram Tiago e os outros ancios. E mesmo assim no pudeste te salvar! (cf. Hier. Ep.
112,10). Diz Bodin (1966) p. 143 que pour Jrme, dsigner Pierre comme le roc ou comme le fondement de lglise,
cest le dsigner comme celui qui dtient lautorit contre lerreur.
322Acerca de Gal 2:1-2, passagem em que Paulo ministra os Evangelhos particularmente, Jernimo pergunta: quare
separatim, et non in publico? ne forte fidelibus ex numero Iudaeorum, qui Legem putabant esse servandam, et sic
credendum in Domino Salvatore, fidei scandulum nasceretur, por que particularmente, e no em pblico? Para que no
surgisse um escndalo na f entre os judeus que eram, que pensavam que a lei devia ser observada para assim crer no
Senhor Salvador (cf. Hier. Ep. 112,8).
323 Cf. Hier. Ep. 112,6.
324 Cf. Aug. Ep. 82,29.
325 Cf. Aug. Ep. 82,31.
326 ipse vero Petrus, quod a Paulo fiebat utiliter libertate charitatis, sanctae ac benignae pietate humilitatis accepit:
atque ita rarius et sanctius exemplum posteris praebuit, quo non dedignarentur, sicubi forte recti tramitem reliquissent,
etiam a posterioribus corrigi; quam Paulus, quo confidenter auderent etiam minores maioribus pro defendenda
evangelica veritate, salva fraterna caritate resistere. nam cum satius sit a tenendo itinere, in nullo quam in aliquo
declinare, multo est tamen mirabilius et laudabilius, libenter accipere corrigentem, quam audacter corrigere deviantem
(cf. Aug. Ep. 82,22).
327Frst (2002) p. 50, no entanto, parece no ter enxergado as questes polticas em jogo para o bispo de Hipona, e
aqui bastante severo: die Unwahrheit einer Stelle im Wortlaut stellt demnach nicht die Wahrheit der Bibel als ganzer in
Frage. Dieser Eintwand Augustins entpuppt sich als trivialer Biblizismus, und sein Insistieren auf der (in diesem Fall)
buchstblichen Wahrheit des paulinischen Berichts vom Apostelstreit ist nichts weiter als ein Zufallstreffer.
328Brown (2013) p. 267-278, for, in Augustines middle age, his intellectual progress had come to involve the
commitment of the whole personality to the Catholic church (citao na p. 275).
329 Cf. Aug. Retract. 2,4; 6; 15; 24.
330 Brown (2013) p. 151-175 d o contexto das Confisses, iniciada h mais de uma dcada em Milo.
331 Brown (2013) p. 256-266 analisa a gnese do De doctrina christiana.
332 Frst (2002) p. 44, mit dieser originellen Deutung, die schon Hieronymus als novum argumentum (epist. 112,5)
einstufte, versuchte Augustinus als erster lateinischer Theologe Hieronymus gehrt mit seiner Exegese in die
griechische Tradition, die er dem lateinischen Welt vermittelt , dem Apostelstreit und den damit aufgeworfenen
Probleme eine umfassende Erklrung zu geben, die die westkirchliche Tradition kntig bestimmte.
333Brown (2013) p. 449-452, [Augustines] sermons on controversial issues, such as on the correct interpretation of the
rebuke of Paul to Peter and on Pauls teaching on marriage, were a discreet declaration of independence. On issues that
were debated by Christians all over the Mediterranean, the Church of Africa, with Augustine now as its most eloquent
spokesman, would not march to the beat of any other drum but its own (citao na p. 452).
334 Este termo usado ironicamente por Jernimo em Hier. Ep. 112,15.

)193
335atque identidem rogo, ut me fidenter corrigas, ubi mihi hoc opus esse perspexeris. quamquam enim secundum
honorum vocabula quae iam Ecclesiae usus obtinuit, episcopatus presbyterio maior sit: tamen in multis rebus
Augustinus Hieronymo minor est; licet etiam a minore quolibet non sit refugienda, vel dedignanda correctio (cf. Aug.
Ep. 82,33).
336Depois da discusso acerca de Gal 2:11-14, a veritas e a traduo das Escrituras o tema mais explorado da
correspondncia entre os autores, j desde a Antiguidade. O livro de Bindesbll (1825) inaugurou os estudos modernos
sobre ele. Citamos tambm as obras de Lagrange (1899); Dorsch (1911); Schade (1911); Davis (1956); Jouassard
(1956); Semple (1965/66); Jellicoe (1968) p. 134-171; La Bonnardire (1986); Mller (1988); Tbet Ballady (1988a;
1988b); Hennings (1994) p. 131-217; Prinzivalli (1997); Frst (1994b); Pinto (2013). Snteses em Frst (1999) p.
139-145; id. (2002) p. 51-60.
337 Entende-se por veritas tanto um critrio filolgico e lingustico de traduo, o qual permita a comprovao e
verificao de determinada verso, de acordo com Frst (1994b) p. 117; quanto um balizador da canonicidade dos
textos bblicos, como mostrou Pinto (2013) p. 304. No entraremos em uma discusso sobre o conceito, no entanto, por
fugir do escopo de nosso trabalho; para todos os efeitos, entendemos que veritas tambm sinnimo de idioma (no
tocante aos textos sagrados, detentores nicos da veritas) para os autores.
338 Hennings (1994) p. 206-216; conforme sublinhou em diversas ocasies Frst (1994b) p. 106, n.2; id. (1999) p. 140,
n. 361. certo que a converso hebraica veritas, como argumentou Hennings (1994) p. 189-200, fez Jernimo aceitar
a canonicidade dos livros pertencentes ao Velho Testamento massortico em detrimento dos livros que tradicionalmente
compunham a Septuaginta. No entanto, esta questo no parece estar em jogo em sua correspondncia com Agostinho;
os motivos que levam este a se colocar contra a escolha de Jernimo de traduzir a partir da hebraica veritas nos
parecem antes prticos, fundamentados na preocupao do bispo com a unio eclesistica, que puramente teolgicos e
filolgicos.
339 Cf. Aug. Doctr. Christ. 2,18;21-22; Ep. 5*,3.
340Cf. Aug. Ep. 71,6; 82,35. Nossos autores salientam este ponto diversas vezes no conjunto de suas respectivas obras:
Aug. Doctr. Christ. 2,11;16;18-21; Ep. 75,1; 120,1; 149,12sq; Retract. 2,32 e Hier. praef. Vulg. evang.; praef. Vulg. Ios.;
praef. Vulg. par.; praef. Vulg. Esdr.; praef. Vulg. Iudith; praef. Vulg. Esth.; In Tit. 3,9; Ep. 106,2; 5*,3.
341 Pinto (2013) p. 333-334. Mas isso no significa, novamente, que est um debate acerca da canonicidade das
Escrituras nas cartas trocadas entre Jernimo e Agostinho, ainda que eles possam discordar sobre critrios de traduo e
interpretao.
342 O prprio Jernimo tinha noo disso, e comenta que, ao decidir retraduzir a partir do hebraico, ele estava sciens ego
et prudens et in flammam mitto manum, consciente e seguramente metendo a mo no fogo (cf. Hier. Vulg. Isa. praef.).
343 Cf. Aug. Ep. 28,2; 71,6.
344 Reynolds & Wilson (2013) p. 210-215.
345Pinto (2013) p. 295-302, basicamente, o pressuposto mais tradicionalista fiava-se no princpio da autoridade, seja
essa expressa em termos quantitativos (quantas igrejas contm tais livros), seja em termos qualitativos (quais livros
esto entre as igrejas mais antigas e outras sedes apostlicas), como vimos em Agostinho (citao na p. 302).
346 Cf. Aug. Ep. 101,4; C. Faust. 12,37; Gen. ad litt. 11,2; Civ. 20,23.
347 ego sane te mallem graecas potius canonicas nobis interpretari Scripturas, quae Septuaginta interpretum
perhibentur. perdurum erit enim, si tua interpretatio per multas ecclesias frequentius coeperit lectitari, quod a graecis
ecclesiis latinae ecclesiae dissonabunt, maxime quia facile contradictor convincitur graeco prolato libro, id est linguae
notissimae (cf. Aug. Ep. 71,4).
348 [...] omnium sensibus memoriaeque inveteratum, et tot aetatum successionibus decantatum [...] (cf. Aug. Ep. 71,5).
349 O juzo de Frst (2002) p. 57-58 no tocante a isso da [Augustinus] nmlich seinerseits die Erstellung eines neuen
lateinischen Bibeltextes auch gegen mgliche Widerstnde befrwortete (epist. 71,6), ist seine Haltung gegenber den
Bibelbersetzungen des Hieronymus nicht einfach als pastoral und dogmatisch motivierter Traditionalismus zu
beschreiben, wenngleichen solche Gedanken anklingen. In den Briefen, die er in dieser Sache nach Bethlehem schrieb,
stellte er seine Kritik vielmehr auf ein philologisches Argument coloca um sobrepeso na discusso filolgica sobre
a crtica da veritas hebraica. Contra o professor alemo, e juntos com o prprio Agostinho (cf. Aug. Ep. 71,4; 82,35),
acreditamos que os motivos so sobretudo e certamente pastorais e dogmticos.
350 Como mostra Hennings (1994) p. 132-146.

)194
351 Frst (1994b) p. 104-106.
352Cf. Hier. In Tit. 3,9; In Psalm. 1; Ep. 27,1; 36,12; 57,11; 71,5; 106,2; In Zach. 12,10; Adv. Ruf. 2,24;34. V. Marti
(1974) p. 69 e 134 em diante; Hennings (1994) p. 154-161 e 175-176. Kelly (1975) p. 135 aponta que Jernimo tomara
contato com a Hxapla durante suas visitas ocasionais em Cesareia, j depois de ter se mudado para Belm.
353 Cf. Aug. Ep. 28,2.
354 Cf. Aug. Ep. 71,3.
355Cf. Hier. Ep. 112,22. Tratar-se-ia fundamentalmente de uma discusso sobre a ambiguidade das palavras, que
passaram a incomodar o bispo quando ele se pe a escrever o De doctrina christiana e o seu de dialectica, inacabado?
Para isso, v. Pinto (2013) p. 322-324.
356 Cf. Aug. Ep. 71,5.
357 Cf. Hier. Ep. 112,22.
358 Kelly (1975) p. 159-167; Pinto (2013) p. 297-302 comentam a converso de Jernimo veritas hebraica, que se
deu durante sua estada em Roma, a qual documentada em cartas da poca (e.g. Hier. Ep. 20,2;5) e nos prefcios aos
livros da Vulgata (e.g. Hier. Vulg. Isa. praef.; Vulg. Iob praef.).
359Cf. Hier. Ep. 112,20; outras obras nas quais o Estridonense faz afirmaes semelhantes: Hier. Ep. 32,1; praef. Vulg.
Iob; praef. Vulg. Ios.; praef. Vulg. Isa.; Adv. Ruf. 3,25.
360 Cf. Aug. Ep. 71,5.
361 Labourt (1963) vol. I, p. XXIX, les Juifs se moquaient de cette anarchie; ils dclaraient que les textes allgus par
les controversistes chrtiens et parmi eux quelques-uns des plus importants au point de vue dogmatique navaient
aucun correspondant dans leurs manuscrits de lhbreu original [...] o trouver le savant qualifi pour mener bien la
revision indispensable? Dans lOccident latin, peu de clercs connaissaient le grec; quant lhbreu, qui osait mme y
penser?
362 Cf. Hier. Ep. 112,20.
363Kelly (1975) p. 271-272, to modern students it seems plain that, if Jerome showed the true scholars instinct in
preferring the Hebrew Old Testament to the Septuagint, Augustine was broadly correct in his assessment of the
confrontation between the two Apostles.
364 Cf. Aug. Ep. 82,34.
365Cf. Aug. Ep. 82,34-35; Doctr. Christ. 2,22; 4,15; Quaest. hept. 1,169; In Psalm. 87,10; Civ. 15,14;23; 18,42-44;
20,29.
366Pinto (2013) p. 334-336, ademais, ao longo de sua obra, embora apaream certas divergncias nas citaes,
[Agostinho] sempre se manteve fiel sua to querida Afra, a despeito de todas as crticas vindas de cristos mais
eruditos e que achavam essa verso por demais rude do ponto de vista literrio.
367 Pinto (2013) p. 328-329.
368 Frst (1999) p. 139-145.
369 Asslaber (1908) p. 118-119.
370Hennings (1994) p. 265; Frst (1999) p. 86. Mussner (1981) p. 157-167 discute a situao contemporneo do debate
envolvendo Gal 2:11-14.
371rem populi gerimus, non terreni atque Romani, sed Hierosolymitani caelestis, magis me libuit loqui tecum ex illo
quod erimus, quam ex isto quod sumus, ns cuidamos dos afazeres do povo, no do povo terreno ou romano, mas da
Jerusalm celeste; mais me convinha falar contigo daquilo que seremos, que daquilo que somos (cf. Aug. Ep. 95,5).
372Cf. Aug. Retract. 2,43. A melhor obra sobre o De Civitate Dei a de Van Oort (1991). Chadwick (1967) p. 225-227 e
Cameron (1993b) p. 188-190 sintetizam o carter poltico da Cidade de Deus; Brown (2013) p. 297-329 discute a
gnese desta obra.
373 Brown (1989) p. 122-124; Cameron (1993b) p. 138-139.

)195
374Cf. Hier. Ep. 123,15-17; 126,2; 127,13; 128,5; 130,6; In Ezech. prol. Na realidade, todas as cartas do autor escritas
no perodo se caracterizam por um tom de desespero e lamentao; v. Kelly (1975) p. 296-298.
375 Esp. Aug. Ep. 111; Serm. 296; Serm. de urbis excidio. O autor raramente trata do episdio em suas cartas escritas
nesse perodo, as quais se caracterizam, no entanto, por um endurecimento da questo da disciplina e pela busca de uma
justificativa divina para o evento; Brown (2013) p. 286-296.
376Essa turba de migrantes recordada tanto em cartas de Agostinho a amigos em Roma (Piniano, Albina e Melnia) e
a Alpio na frica (cf. Aug. Ep. 124; 125; 126) quanto em sermes do mesmo autor (cf. Aug. Serm. 81; 105).
377Pelgio ainda no era o herege mais perigoso da Igreja que ser combatido alguns anos depois por nossos autores.
Em 410, o monge Breto havia enviado uma carta a Agostinho, a qual se perdeu; temos, no entanto, a resposta do bispo
de Hipona em Aug. Ep. 146. Ainda que Agostinho estivesse em Cartago na poca, os autores nunca se encontraram
pessoalmente.
378
Brown (2013) p. 336, after the sack of Rome, Africa had become the sheet anchor of the fortunes of the Emperor
Honorius.
379 Frend (1952) p. 269-274.
380 CTh. 16,5,51 (25/08/410); 16,11,3 (14/10/410). O saque de Alarico aconteceu de 24 a 26 de Agosto de 410.
381A correspondncia de Marcelino com o bispo de Hipona profcua, pertencendo ao mesmo perodo: Aug. Ep. 128;
133; 136; 138; 139; 143; v. tambm o retrato que Agostinho faz dele a Ceciliano, em Aug. Ep. 151,8-9.
382Cf. Aug. Ep. 128,1; Coll. Carthag. [PL 21,1419a]. Brown (2013) p. 330-336 para o desfecho da polmica donatista,
sobre a qual Agostinho refletir anos depois, em um tratado intitulado De correctione donatistarum [PL 33,792c-815a],
a correo dos donatistas (cf. Aug. Ep. 185).
383 Cf. Aug. Civ.. praef.
384 Cf. Aug. Civ. 1,10,32; 2,7,23.
385 Cf. Aug. Ep. 137,12; 138,17; Civ. 26,5,1.
386O texto mais interessante de Agostinho nesse quesito Aug. Ep. 137 a Volusiano, um jovem pago que havia pedido
informaes sobre Ccero (cf. Aug. Ep. 135) aps ter escutado que o bispo era um especialista na obra do Arpinate.
387E.g. Aug. Civ. 5,12,2; 15,5. Jernimo menciona Virglio como tuus Vergilius em Hier. Ep. 126,2 a Marcelino,
demarcando o contraste do poeta pago com uma passagem do Gnesis.
388 Cf. Aug. Civ. 3,14,47; 5,12,15-19. V. Brown (2013) p. 307-311.
389Todo o dcimo livro do De civitate Dei dedicado crtica do pensamento porfiriano. Brown (2013) p. 305-306;
315-318; 323-324.
390 Cf. Aug. Ep. 109,3; 118,34; 119,1; 122,1; 124,2.
391Veja-se a longa e emotiva carta que ele enviara ca. 408 a Paulino de Nola sobre a impossibilidade de aliar a vida
contemplativa com os afazeres episcopais, cf. Aug. Ep. 95.
392 omnia quae scripta sunt in sanctis canonicis libris nos qui disputamus et libros scribimus, longe aliter scribimus,
proficiendo scribimus, cottidie discimus, scrutando dictamus, pulsando loquimur, ns, que discutimos e escrevemos
livros sobre tudo que est presente nos livros cannicos, escrevemos de maneira muito dspare, ns melhoramos
enquanto escrevemos, aprendemos todos os dias, investigamos enquanto ditamos, encontramos solues enquanto
falamos (cf. Aug. Serm. 162/c Dolbeau 10,15).
393 Mencionados em Hier. Ep. 126,2; v. Kelly (1975) p. 304-308.
394 Cf. Hier. Ep. 85,3.
395 Kelly (1975) p. 316-317.
396Segundo salienta Kelly (1975) p. 302-304, Jerome's large-scale dependence on Origen in these commentaries was
no more than the continuation of his life-long practice. But it is noticeable that his use of the master had become
markedly more critical (citao na p. 302).

)196
397 nobis interim prodest: dum enim hoc facimus, et nihil aliud cogitamus, in modum furti explanationes aggredimur, et
dierum miserias, noctium studio compensamus; pascitur animus, et obliviscitur saeculi calamitatum, quod in extremo
fine iam positum congemiscit et parturit, eis que nos til no nterim: enquanto trabalhamos, e no pensamos em mais
nada, atacamos nossos comentrios ao modo dos ladres, e compensamos as misrias do dia com os esforos da noite;
assim nutre-se nossa alma, ela esquece a calamidade do mundo, que, j vinda no ltimo dos fins, suspira e geme
profundamente (cf. Hier. In Ezech. VIII prol.).
398 Cf. Hier. Ep. 61; C. Vig. 11.
399 Cf. Hier. Ep. 109. A controvrsia narrada por Kelly (1975) p. 286-290.
400 Cf. Hier. Ep. 126,2.
401 Novamente, cf. Hier. Ep. 126,2.
402 Frend (1952) p. 292-293.
403 Cf. Aug. Ep. 151,3;5-6;9.
404super animae statu memini vestrae quaestiunculae, imo maximae ecclesiasticae quaestionis, lembro-me de vossa
questozinha sobre a condio da alma: por certo, trata-se de uma das questes mais importantes da Igreja (cf. Hier.
Ep. 126,1). Kelly (1977) p. 344-374 faz um resumo da discusso tetracentista acerca da origem da alma e da
necessidade do batismo, questo intrinsecamente ligada primeira.
405 Cf. Hier. Ep. 126,1.
406Para Aug. Ep. 166, v. Geiger (1957); Menestrina (1972); Teske (1983; 2008); ODaly (1983; 1987); Evans (1985);
OConnell (1987); Rist (1994); Nash (2003); Rombs (2011). Para Aug. Ep. 167, v. Menestrina (1978); Langan (1979);
Dibelius (1984); ORourke Boyle (1985); Frst (1999) p. 187-203. Resumo de ambos os textos em Frst (2002) p.
60-71.
407 Cf. Aug. Ep. 166,2. Jernimo sinaliza que Orsio entregou-lhe os tratados em Hier. Ep. 134,1.
408Cf. Aug. Ep. 167,16. Que o amor o cumprimento da Lei um ponto afirmado por Paulo em Rom 13:14 e 1 Tim
1:5.
409Anos mais tarde, Agostinho refere-se aos tratados Aug. Ep. 166-167 como duo libri, dois livros, compondo uma
nica obra, opus, em passagem que integra as suas Revises, escritas aps a morte de Jernimo (cf. Aug. Retract. 2,45.
410 Cf. Aug. Ep. 166,9.
411Agostinho parece brincar com a resistncia de seu correspondente em aprender dos mais jovens: sed quid ego,
tamquam oblitus cui loquor, doctori similis factus sum, cum proposuerim quid abs te discere velim?, o que estou
fazendo, afinal? Como se eu tivesse me esquecido a quem falo, fiz-me similar a um professor, pois busquei expor o que
queria aprender de ti (cf. Aug. Ep. 167,14).
412A nfase que Agostinho d ao pecado de fazer acepo de pessoas, isto , tratar um homem pobre e um homem
rico de maneira desigual, segundo Tiago argumenta em Jac 2:1-6 (cf. Aug. Ep. 167,2;18-19), pode ser interpretada
como um outro sermo a Jernimo, que havia destratado de Agostinho por este ser mais jovem.
413 Cf. Aug. Ep. 166,9.
414Cf. Aug. Ep. 167,19-20; lembremo-nos que Agostinho havia pedido vnia a Jernimo anteriormente em Aug. Ep.
82,1.
415 Cf. Aug. Ep. 166,9-10.
416 Cf. Hier. Adv. Ruf. 3,28, e conforme Agostinho afirma em Aug. Ep. 166,8;10;15.
417 Cf. Aug. Ep. 166,8.
418 Contra Frst (1999) p. 229.
419
Agostinho reafirma a mesma clusula em trs pargrafos, variando suas palavras ao chamar a ateno de Jernimo,
em Aug. Ep. 166,25-27. V. Frst (1999) p. 226.

)197
420Cf. Aug. Ep. 166,26; Jernimo havia utilizado ambas as passagens, no caso Zac 12:1 e Ps 33:15 <32:15>, para
defender o criacionismo em Hier. C. Ioh. 2,6-8.
421Cf. Hier. Ep. 134,1; a mesma passagem, emprestada de Rom 14:5, estava em Hier. Ep. 102,2. Frst (1999) p. 223
categrico: dazu pat ein weiteres Nein des Hieronymus.
422 Cf. Hier. Ep. 134,1.
423
Agostinho recorda a investida desses inimigos, provavelmente seguidores de Pelgio, no mosteiro de Jernimo em
Aug. Gest. Pelag. 66. V. De Plinval (1943) p. 306-308; Kelly (1975) p. 322.
424 Cf. Hier. Ep. 134,2.
425 Cf. Hier. Ep. 134,1.
426 Cf. Hier. Ep. 134,1.
427Wermelinger (1975) a obra mais atual sobre a polmica pelagiana, mas De Plinval (1943) continua um clssico.
Kelly (1977) p. 357-361 faz um resumo da doutrina.
428 Cf. Aug. Ep. 166,2.
429 Cf. Aug. Ep. 169,13; tambm em Or. Lib. Apol. 3,2.
430 Wermelinger (1975) p. 43.
431 Brown (2013) p. 346.
432 Sobre a vida e o pensamento de Pelgio, seguimos De Plinval (1943) p. 47-71; Brown (2013) p. 341-353.
433 Cf. Aug. Ep. 188,13; Gest. Pelag. 50.
434 Brown (1968; 1971) para os patronos e seguidores de Pelgio.
435
Kelly (1975) p. 309-310; Brown (2013) p. 344. Agostinho resume, ainda que vagamente, a jornada de Pelgio em
Aug. Gest. Pelag. 46.
436 Cf. Pelag. ad Demetriadem 1. A missiva ocasionou uma carta de Jernimo a Demtria, Hier. Ep. 130.
437 Mt 5:48.
438 Cf. Pelag. ad Demetriadem 9. Jernimo critica essa noo em Hier. Ep. 133,5-8.
439 Cf. Aug. Nat. et grat. 21.
440 Reconstrudo em PL 48,599-606.
441 Baxter (1930) p. XXIII, Pelagianism was an outbreak of paganism within the church.
442Tal o objetivo de Agostinho ao enfatizar a inexistncia de uma unio entre virtudes e pecados em Aug. Ep. 167,
carta em que o autor ataca o estoicismo e o pelagianismo ao mesmo tempo. A ideia de impeccantia colocada por
Jernimo em Hier. Ep. 133,3; Adv. Pelag. praef., mas j havia sido rechaada pelo prprio Pelgio em Pelag. ad
Demetriadem 26-27; ad Celsum 56.
443 Cf. Aug. Retract. 2,42. Agostinho envia esta obra a Jernimo, conforme o mesmo diz em Aug. Ep. 19*,3. Nela,
Agostinho menciona Jernimo como presbyter venerabilis Hieronymus, Jernimo, venervel presbtero (cf. Aug. Nat.
et grat. 68).
444 Cf. Aug. Retract. 2,33. possvel que Agostinho tenha tambm enviado esta obra a Jernimo, pois este
mencionado nela: sanctus Hieronymus, qui hodieque in litteris ecclesiasticis tam excellentis doctrinae fama ac labore
versatur, o santo Jernimo, que at hoje se dedica, com fama e esforo, a seus estudos eclesisticos de to excelente
doutrina (cf. Aug. Pecc. Mer. 3,12).
445 Cf. Aug. Retract. 2,57.
446 Cf. Aug. Retract. 2,56.
447 Cf. Aug. Retract. 2,63.
)198
448 Cf. Aug. Gest. Pelag. 27-28; Ep. 185,38.
449Veja-se em especial Aug. Ep. 183, carta que o Papa Inocncio enviou aos bispos africanos, para a perspectiva do
pelagianismo como um movimento.
450Cf. Pelag. ad Demetriadem 10. V. Brown (1989) p. 126; id. (2013) p. 347-353, it may be more than a coincidence
that the Pelagian ideas seem to have had the greatest resonance in just those provinces where the old ways of life had
been dislocated by the barbarian invasions (citao na p. 352).
451Brown (2013) p. 348, this is the most remarkable feature in their movement [dos pelagianistas]: the narrow stream
of perfectionism that had driven the noble followers of Jerome to Bethlehem, had led Paulinus to Nola and Augustine
from Milan to a life of poverty in Africa, is suddenly turned outwards in the Pelagian writings, to embrace the whole
Christian church [...] This is the most pungent protest in all Late Roman literature, against the subtle pressure, which
Augustine had experienced in Hippo, to leave the Christian life to recognized saints and to continue to live as ordinary
men, like pagans. Pelagius wanted every Christian to be a monk.
452 Conforme Agostinho infere ao longo de Aug. Ep. 166.
453Cf. Aug. Pecc. Mer. 5,10; Agostinho o cita expressamente em Aug. Ep. 166,23-24. O bispo tambm defende a
necessidade do batismo infantil em diversas ocasies, e.g. Aug. Nupt. et concup. 2,4; gen ad litt. 10,23; in epist. Ioh.
4,11; In Psalm. 50,10; C. Iulian. 6,11; C. Iulian. op. imperf. 3,182.
454E.g. omnis credit Ecclesia, toda a Igreja acredita (cf. Aug. Ep. 166,21); contra Ecclesiae fundatissimum morem,
contrria mais slida tradio da Igreja (cf. Aug. Ep. 166,24); et sancta Scriptura, et sancta est testis Ecclesia,
tanto a Santa Escritura quanto a santa Igreja servem de testemunho (cf. Aug. Ep. 166,25); robustissimae ac
fundatissimae fidei, a mais slida e estabelecida f (cf. Aug. Ep. 166,28); fatemur, et fide catholica tenemus, ns
confessamos, e sustentamos pela f catlica (cf. Aug. Ep. 167,2).
455Marrou (1955) p. 48, c'est la polmique anti-plagienne quil [Augustin] doit tre pass la postrit surtout, ou
dabord, comme le thologien du pch originel, de la prdestination, de la grce, comme le moraliste de la
concupiscence et de la misre de lhomme abandonn ses seules forces.
456 E.g. Aug. Divers. quaest. 1,2,21-22; Nat. et grat. 33; de Perf. iust. 44. A noo de que os pecados podem ser
cometidos de maneira inconsciente encontra em Agostinho um precursor da psicanlise, como notou, por exemplo,
Marrou (1955) p. 71-72 e Brown (2013) p. 368. No De perfectione iustitiae hominis, Agostinho usa o termo lapsus
linguae para falar dos pecados inconscientes, que justamente o nome dado ao conceito psicanaltico de deslize na fala,
na memria ou no comportamento que surge da ao do desejo inconsciente; em alemo, diz-se Freudscher
Verspreche, nomeado a partir de Sigmund Freud (o qual, apesar disso, referia-se a esses fenmenos como
Fehlleistungen, atos falhos, e no lapsus linguae). O bispo de Hipona parece inferir a existncia do subconsciente
avant la lettre no homem, uma fora que foge ao controle racional do mesmo. O psicanalista francs Jacques Lacan
utilizou amide as Confisses de Agostinho para exemplificar o despertar do desejo Outro, em especial a passagem em
que o bispo narra ter visto um beb com inveja de um outro que era amamentado pela me (cf. Aug. Conf. 1,7,11 in
Lacan 1999 vol. 1 p. 113).
457Cf. Aug. Ep. 167,10. No mais, Jernimo argumentou que Jac 2:10 era um dos sustentos da teoria pelagiana da
obedincia (cf. Hier. Adv. Pelag. 1,19).
458 et fiet quod apostolus ait: quousque veniat Dominus, et illuminet abscondita tenebrarum, et manifestabit
cogitationes cordis: et tunc laus erit unicuique a Deo; quando publicabuntur conscientiae, quae modo teguntur, e se
realizar o que diz o apstolo <Paulo>: at que o Senhor venha, o qual tambm trar luz as coisas ocultas das trevas,
e manifestar os desgnios dos coraes; e ento cada um receber de Deus o louvor; quando as conscincias se
revelaro, e se tornaro imediatamente palpveis (cf. Aug. Serm. 252,7).
459 Cf. Aug. Nat. et grat. 4-5;23.
460 Cf. Aug. Nat. et grat. 82; Perf. iust. 43.
461 Cf. Aug. Ep. 166,28.
462 Brown (2013) p. 352; 368-370.
463 Cf. Aug. Ep. 166,21-24.
464 Cf. Pelag. ad Demetriadem 17.
465 Cf. Aug. C. Iulian. op. imperf. 1,78.

)199
466 Cf. Aug. Gest. Pelag.25.
467 Inferido por Frst (1999) p. 219.
468 Kelly (1975) p. 309-332; Frst (1999) p. 203-230; Brown (2013) p. 340-377.
469 Brown (2013) p. 355-365.
470Em sntese, Aug. Ep. 175-202 e 4*;6*;19* (Aug. Ep. 181-183 so cartas do papa Inocncio aos bispos africanos, e
Aug. Ep. 201 uma carta dos imperadores a Agostinho) cobrem a polmica pelagiana. Uma delas, Aug. Ep. 179 a Joo
de Jerusalm, provavelmente mencionada em Aug. Ep. 19*,4, carta enviada a Jernimo. Interessante notar que
Agostinho utiliza em Aug. Ep. 179 o mesmo mecanismo que utilizara ao entrar em contato com Jernimo: ele se auto-
apresenta, sem antes enviar uma epistula solemnis de amizade introdutria, justificando-se que a situao
demasiadamente grave para esse tipo de costume (cf. Aug. Ep. 179,1).
471 et quis est mihi Augustinus?, recordado por Possdio (cf. Poss. Lib. Apol. 4,1).
472 Marti (1974) p. 20-25; Frst (1999) p. 216-218 chamam a ateno para esse ponto. Possdio fala de livros do autor
traduzidos para o grego (cf. Poss. Vit. Aug. 11), entre os quais poderia estar a carta Aug. Ep. 179 a Joo de Jerusalm
(talvez traduzida pelo prprio Jernimo?).
473Em uma carta ao papa Inocncio, os bispos africanos dizem em unssono: Pelagius vero, sicut a quibusdam fratribus
nostris missae loquuntur epistulae, Hierosolymis constitutus nonnullos fallere asseritur; verum tamen multo plures, qui
eius sensus diligentius indagare potuerunt, adversus eum pro gratia Christi et catholicae fidei veritate confligunt, sed
praecipue sanctus filius tuus, frater et compresbyter noster Hieronymus, verdade que Pelgio como dizem cartas
que nos foram enviadas por alguns irmos encontrava-se protegido em Jerusalm, onde enganara alguns homens; no
entanto, h muitos mais autores que puderam colocar em dvida a opinio dele, e se opuseram contra ele, em nome da
Graa de Cristo e da verdade da f catlica, principalmente o teu filho santo, nosso irmo e compresbtero,
Jernimo (cf. Aug. Ep. 176,4).
474 Trata-se de Hier. Ep. 133, discutida por Kelly (1975) p. 314-316.
475 Cf. Hier. A obra mencionada em Hier. Ep. 134,1 e Aug. Ep. 180,5; 19*,2.
476 Cf. Hier. In Ezz. VI prol.
477As cartas perdidas Hier. Ep. D, Aug. Ep. E, Hier. Ep. F e Hier. Ep. G, todas as quais so inferidas em Aug. Ep. 19*,1.
V. Chadwick (1967) p. 229-230; Brown (2013) p. 338 para persectivas histricas do Conclio de Dispolis.
478 Cf. Aug. Ep. 19*,2.
479 Cf. Pelag. ad Innocentium papam.
480 Cf. Aug. Gest. Pelag.44-45.
481 Cf. Aug. Ep. 175-177 e 186, especialmente; v. a interpretao de Brown (2013) p. 358-360.
482 Cf. Aug. Ep. 175,2;4; 177,15.
483 Cf. Hier. Ep. 138; a mesma imagem em Hier. Ep. 141.
484 Cf. Aug. Ep. 182,6.
485 Cf. Zos. Ep. postquam 2.
486 Cf. Zos. Ep. postquam 1.
487 Cf. Zos. Ep. magnum pondus 3.
488Brown (2013) p. 363 Palladius received a law to outdo the laws of every age. It is the most depressing edict in the
Later Roman Empire: Pelagius and Caelestius, the new disturbers of the Catholic faith, it said, think that is a mark of
lower class pettiness to agree with everybody else, and think that they are exceptionally knowledgeable, because they
destroy what is agreed upon the whole community. Pelagius and Caelestius were to be expelled from Rome; anyone
who spoke in their favour was to be brought before the authorities.
489 A epistula tractatoria [PL 20,693-395] de Zsimo foi em grande parte perdida.

)200
490 De Plinval (1943) p. 329-331.
491Pietri (1976) vol. 2, p. 1241, c'tait un triomphe africain: une victoire relle contre la procdure pontificale, un
succs plus considrable, puisque le sige de Rome proclamait, sans aucune rserve dsormais, contre Plage et contre
Caelestius, la foi dAurelius, dAugustin et de tout leur collge.
492 in toto orbe celebraris, Catholici te conditorem antiquae rursum fidei venerantur atque suspiciunt, et quod signum
maioris gloriae est, omnes haeretici detestantur: et me pari persequuntur odio; ut quos gladiis nequeunt, voto
interficiant, alegra-te, tu s celebrado no mundo inteiro! Os cristos fiis te veneram e te admiram como o refundador
da antiga f e, o que sinal de glria ainda maior, todos os hereges te detestam e te perseguem como a mim com
tanto dio que, ainda que no consigam te matar com a espada, fazem-no pela vontade (cf. Hier. Ep. 141).
493 Cf. Hier. Ep. 142. A imagem alegrica e provavelmente diz respeito fuga de Pelgio.
494 Cf. Aug. Ep. 200; 206.
495 Cf. Hier. Ep. 153.
496 Cf. Aug. Ep. 201.
497 De Plinval (1943) p. 336-341; Chadwick (1967) p. 231-325; Kelly (1977) p. 369-373.
498 Cf. Hier. Ep. 143,2.
499 Conforme Jernimo infere em Hier. Ep. 143,1-2; seriam as cartas perdidas Hier. scripta e Aug. (e Alpio?) Ep. I.
500 Cf. Hier. Ep. 143,1.
501Em carta ao bispo Srvio, Agostinho defende que habet enim ecclesia quodammodo suos milites, et quodammodo
provinciales [...] habet et vineam et plantatores, habet gregem et pastores, ora, a Igreja tem, de algum modo, os seus
combatentes, e de algum modo os seus leigos [...] ela tem a vinha e os plantadores, tem o rebanho e os pastores (cf.
Aug. Ep. 157,37).
502 Brown (2013) p. 369-370.
503dum quoque quae volumus multa non possumus, et mentis ardorem superat imbecillitas senectutis, ainda que
queiramos fazer muitas coisas, no podemos; a fraqueza da velhice supera o fervor do esprito (cf. Hier. Ep. 151,3). Eis
as ltimas palavras recordadas de Jernimo, em uma carta ao bispo Donato: ego autem et maerore et longa aetate
confectus et frequentibus morbis fractus vix in haec pauca verba prorupi, quanto a mim, esgotado pela tristeza e pela
velhice, acometido pela doena, mal consegui sacudir aqui umas poucas palavras (cf. Hier. Ep. 154,3).
504[...] vel ingruentibus morbis, vel dormitione sanctae et venerabilis filiae vestrae Eustochii [...], [...] primeiro por ter
adoecido continuamente, depois em ocasio do falecimento da vossa santa e venervel filha, Eustquio [...] (cf. Hier.
Ep. 143,2). A morte de Eustquio mencionada tambm em Hier. Ep. 151,2; 153; 154.
505 vere dicam quod sentio: in his haereticis illud exercendum est Daviticum: in matutinis interficiebam omnes
peccatores terrae. delendi sunt, spiritaliter occidendi, immo Christi mucrone trucandi, qui non possunt per emplastra
et blandas curationes recipere sanitatem, direi o que penso de verdade: contra estes herticos <os pelagianos>,
devemos tomar o exemplo de Davi: pela manh destruirei todos os mpios da terra. preciso destru-los, mat-los
espiritualmente, melhor, trucid-los com a espada de Cristo, esses que no conseguem recuperar a sanidade atravs de
medicamentes e remdios (cf. Hier. Ep. 154,1).
506Kelly (1975) p. 331-332 e supra captulo 2, n. 80 para a uma discusso da data em que Jernimo morreu, e qual
idade ele tinha ento.
507Mencionados em Hier. Ep. 143,3. Eles j haviam estado com Agostinho em Tagaste e Hipona, e se mudaram para
Belm em 417.
508 Agostinho morreu em 430 ou 431, segundo Possdio na vita Augustini, 29-31; v. Brown (2013) p. 437.

)201
509omnesque vel paene omnes qui ante illum aliquid ex utraque parte orbis de doctrina ecclesiastica scripserant legit,
qui Graeco et Latino, insuper et Hebraeo eruditus eloquio, ele que leu todos ou quase todos, de ambas as partes do
mundo, que escreveram alguma coisa sobre a doutrina da Igreja, ele que tinha conhecimento do grego, do latim, e, ainda
mais, do hebraico (cf. Aug. C. Iulian. 1,34); homo doctissimus et omnium trium linguarum peritus, um homem
muitssimo erudito e especialista em todas as trs lnguas (cf. Civ. Dei 18,48); tambm Aug. Civ. 20,23. O bispo de
Hipona louvou seu correspondente quando este ainda era vivo, cf. Aug. Ep. 157,53; 148,7;9;11;14; 180,5, aqui
venerabilis frater, irmo venervel; 197,1.
510 Cf. Aug. C. Iulian. op. imp. 1,48; 3,67-68.
511O contexto das investidas dos brbaros na frica durante os anos finais da dcada de 420 provocou reaes
desesperanosas de Agostinho em diversas cartas dessa poca, entre as quais Aug. Ep. 220; 228.
512 A histria de Agostinho continua na quinta parte de Brown (2013) da pgina 383-410 at o final.
513 Frst (1999) p. 90-110; id. (2002) p. 13-15; Fry (2010) p. XL-XLIII.
514 Ccero j reclama disso em Cic. Att. 1,13,1; 4,15,3; 4,17,1.
515 De Bruyne (1932) p. 233, enfin ces lettres sont et restent trs difficiles malgr tout ce quon a crit. La date de
plusieurs lettres est encore controverse. Le sens est souvent obscur. Mas a perspectiva de Frst (1999) p. 109 de que
cada carta deve ser absoluta e individualmente concebida como uma resposta a outra (do contrrio, diz o autor, seguir-
se-ia logischerweise ein bisweilen groteskes Chaos) parece-nos no mnimo limitante, ainda mais se lembrarmos que
Hier. Ep. 112 uma resposta a Aug. Ep. 28, 40 e 71 (e provavelmente Aug. Ep. 73). O autor faz esta afirmao no
contexto da possvel carta perdida de Agostinho, Aug. Ep. C, a qual Hier. Ep. 105 provavelmente responderia; se for
assim, por que o bispo de Hipona no respondeu Hier. Ep. 105 em uma carta em separado, deixando para respond-la
junto a Hier. Ep. 112 em Aug. Ep. 82?
516 Seria esta uma resposta a uma carta perdida de Jernimo, Hier. Ep. B, como quer Frst (1999) p. 98-102?
517 Cf. Aug. Ep. 180,5.
518 Cf. Aug. Ep. 202A,1.
519 Esta expresso est em Aug. Trin. 1,5, e a ideia presente em Aug. ep. 73,9.
520Mais notvel em Hier. Ep. 115, carta em que ele fala de scripta non quaestionum, sed caritatis, cartas no com
problemas, mas de caridade.
521 Sobre isso, Frst (1999) p. 231-232.
522Trata-se de uma interpretao tradicional, aventada por Mhler (1839) p. 9, 16-17 e Overbeck (1879) p. 225, 242;
tambm por Tourscher (1917/1918) p. 479; De Vathaire (1930) p. 486, 493; Coughlin (1957) p. 108-111; Hagendahl
(1967) p. 524; Kelly (1975). Ela muito criticada por Frst (1999) p. 145 e Ebbeler (2009) p. 280.
523Brown (2013) p. 271, [a relao epistolar entre Agostinho e Jernimo] shows two highly civilized men conducting
with studied courtesy, a singularly rancorous correspondence. They approach each other with elaborate gestures of
Christian humility. They show their claws, for an instant, in classical allusions, in quotations from the poets which the
recipient would complete for himself. Neither will give an inch.
524respondere compulsus sum, fui obrigado a responder (cf. Hier. Ep. 105,4); coegisti, ut rescriberem, tu que me
obrigaste a responder (cf. Hier. Ep. 112,18); ut rescriberem, negare non potui, no pude deixar de responder (cf.
Hier. Ep. 115).
525 Cf. Aug. Ep. 19*,4.
526 Cf. Aug. Ep. 180,5.
527
Cf. Aug. Ep. 202A,2;5; A mesma ideia tambm est presente em Aug. Ep. 169,13 ad Evodium, e em 190,21 ad
Oceanum.
528 Cf. Aug. Retract. 2,45.
529Kelly (1975) p. 321, it (Letter 134J) glows with the immense respect and affection the aged monk had come to feel
for the now commanding champion of orthodoxy. The frictions of the past have been laid aside and forgotten [...]
Discordamos completamente dessa concluso.

)202
530 Cf. Hier. Ep. 141; 142; 143,1.
531mihi enim omnis occasio gratissima est, per quam scribo vestrae reverentiae [...] meliusque hoc faceret sanctitas tua,
ne compellamur contra haereticum nostra laudare, afinal, considero preciosssima toda ocasio em que escrevo a
vossa reverncia, chamando Deus como testemunha [...] e to melhor faria a tua santidade, para no sermos levados a
louvar a nossa atuao contra o hertico (cf. Hier. Ep. 143,1-2). Schmid (1931) p. 8 fala de uma magna reverentia que
Jernimo apresenta nesta carta a Agostinho.
532 O termo schiefe Allianz foi cunhado por Frst (1999) p. 220.
533 Frst (1999) p. 235-240 para os paradigmas eclesisticos nos quais essa discusso encontra respaldo.
534Posicionamo-nos contrrios a uma concluso de Frst (1999) p. 164-165, que situa no fato de Agostinho no tomar
pessoalmente uma crtica a diferena entre as noes de amizade dos autores. Frst est correto, mas isso parece no
estar em jogo na correspondncia entre os autores.
535Frst (1999) p. 165, gem dieser greren Liebe hat [Augustinus] sich seine Kontakte zu Hieronymus von
Anfang an vorgestellt: getragen von christlicher und freundschaftlicher Verbundenheit, aufrichtig, freimtig, kritisch
und kritikbereit, in gegenseitigem Disput und Austausch zum Nutzen fr beide.
536[...] sicut amicum corrigi cupiebam, quod fateor adhuc cupio, quod nec tuam sanctitatem ambigo optare, [...] eu
desejava que ele fosse corrigido como um amigo (algo que, confesso, ainda desejo, e no duvido ser essa tambm a
vontade de tua santidade) (cf. Aug. Ep. 19*,3). Outros exemplos: Aug. Gest. Pelag. 46-49; Nat. et grat.
6;22;52-53;62-63; Ep. 186,1; 193,3.
537Cf. Aug. Pecc. Mer. 3,1;5-6;18; Retract. 2,33. Frst (1999) p. 234 v nisso um distanciamento do confronto e da
polmica, concluso com a qual no concordamos.
538quod si te ipsum, consideratione vitae ac morum tuorum, non simulate nec fallaciter dixisse credo [...], agora, se tu
mesmo falaste, creio eu, tendo em mente tua vida e teus hbitos, e no de maneira simulada ou mentirosa [..] (cf. Aug.
Ep. 82,4).
539 Esta concluso segundo Brown (2013) p. 373-377.
540Frst (1999) p. 230. Contra Tourscher (1917/1918) p. 54; De Vathaire (1930) p. 497; Schmid (1931) chama Hier. Ep.
143 de testimonium inturbatae amicitiae et concordiae, um testemunho de uma amizade sem conturbaes, de
harmonia; Davis (1956) p. 103.
541Fry (2010) p. IX, defaut dtre fonde sur lamour, leur relation fut ainsi toute utilitaire et en grande partie
motive par ce sentiment qui agite Augustin de la ncessit dun contact, sinon mme dune collaboration, entre les
deux meilleurs esprits chrtiens du temps, e p. XVII, [ils] saborderont toujours comme de trs minents personnages
que Dieu runit par-dessus une distance jamais supprim par lintimit [...]
542 A distino clssica entre as elocues adequadas a cada condio (ao velho/jovem, rico/pobre) esto no segundo
livro da Retrica de Aristteles, cf. A. R. 1388b-1391b. Tambm Ccero refletiu sobre a diferena da conduta entre a do
jovem e a do velho, cf. Cic. Cato 36.
543Sartorelli (2005) p. 8; v. tambm Goffmann (1959) e Amossy (2005) para a construo do , eu ou self, nas
aes e no discurso.
544Assim, Frst (1999) p. 136-139, fr die Einschtzung dieses von ihm mit viel Pathos bemhten Kontrast spielt
Hieronymus nicht exakt festlegbares Geburtsdatum eine gewisse Rolle. Entscheidt man sich fr das traditionelle
Datum 331 [...] die Unterscheidung zwischen senex und iuvenis wrde dann eine Generationswechsel
ausdrcken (citao na p. 136).
545Ebbeler (2007) p. 301-302 e 315-323, in the case of Augustine and Jerome, I will suggest, the discernible hostilities
in the correspondence arise because Augustine deliberately refuses to play the iuvenis to Jeromes senex and instead
represents himself as Jeromes exegetical equal (citao na p. 302); id. (2012) p. 75-80.
546Kelly (1975) p. 329 diz de Hier. Ep. 143 que here for the first time we observe the indomitable fighter hinting that
he would prefer to pass the burden to another.
547 Eliot (1932;2009) p. 3-11.

)203
548his Pacatula est nata temporibus. inter haec crepundia primam carpit aetatem, ante lacrimas scitura quam risum;
prius fletum sensura quam gaudium. necdum introitus, iam exitus. talem semper fuisse putat mundum. nescit praeterita,
fugit praesentia, futura desiderat, essa a poca em que Pactula nasceu. ao som desse chocalho que ela passar
seus primeiros anos; ela vai conhecer as lgrimas antes do riso; ela vai sentir a tristeza antes que a alegria. Ainda no a
entrada, mas j a sada. Ela pensa que o mundo foi sempre assim; ela desconhece o passado, foge do presente, e deseja o
futuro (cf. Hier. Ep. 128,5). Curioso apontar que Pactula, no original, encontra-se sintaticamente presa na poca em
que nasceu his Pacatula [...] temporibus no podendo, ainda que anseie, dela fugir.
549Frst (1999) p. 131-176 e 231-235 j o aborda. H estudos nessa direo sociolgica sobretudo nas obras de
Conybeare (2000) sobre Paulino de Nola, Ebbeler (2007; 2009; 2012) sobre Agostinho, e Cain (2009) sobre Jernimo.
Igualmente, h uma pesquisa muito interessante nessa temtica sobre as cartas de Ccero autorada por Hall (2009).

)204
)205
)206
EPISTVLAE MVTVAE
(CARTAS)

)207
PRIMEIRO PERODO
394/395 - 405

)208
1

Agostinho Ep. 28 / Jernimo Ep. 56


[394/395]

A primeira carta que Agostinho enviou a Jernimo, Aug. Ep. 28, foi escrita no ano de 394 ou 3951 . Agostinho

era ento um jovem presbtero subordinado do bispo Valrio em Hipona, eleito para o presbiterado havia apenas trs

anos. A mensagem foi escrita em ocasio de uma divergncia de interpretao que o ento presbtero de Hipona tinha

com seu correspondente acerca de uma passagem da carta de Paulo aos Glatas, em Gal 2:11-14, na qual o apstolo

repreende Pedro por ter agido incorretamente, do ponto de vista da f, ao se retratar na presena de autoridades judias

por estar comendo entre os gentios, isto , entre os gregos pagos.

Nos trs livros dos comentrios carta do abenoado Paulo aos Glatas (Commentariorum in beati Pauli

epistulam ad Galatas libri tres, em latim2 ), publicado ca. 386-387, Jernimo havia interpretado a passagem como uma

simulatio utilis, simulao til (o que Agostinho chamar de officiosum mendacium, mentira devida), de modo que

a correo que Paulo aplicara a Pedro no passara de uma encenao para condenar em outros o que ele fingia condenar

em seu colega (de modo que ambos haviam fingido o verbo latino simulare ser o que no eram). Antes de

enviar essa carta a Jernimo, Agostinho, em sua exposio da carta aos Glatas (Epistulae ad Galatas expositionis liber

unus, em latim), publicada ca. 394/395, j havia se colocado frontalmente contra a concluso de seu interlocutor. Na

contramo da interpretao defendida por Jernimo, que era a tradicional na literatura exegtica, Agostinho buscou

mostrar que ler a passagem como uma simulatio d vazo a afirmarmos que Paulo mentiu ao repreender Pedro, o que

em ltima instncia poderia deixar toda a verdade das Escrituras deriva. A contenda que se seguir entre os autores vai

continuar no s nesta carta como em todas aquelas do primeiro perodo de nossa correspondncia.

Utilizando uma elocutio cerimoniosa, Agostinho parece tomar cuidados necessrios ao empreender o primeiro

contato com Jernimo, homem que ento j era conhecido no mundo cristo pela sua erudio e temperamento. A

natureza da crtica agostiniana, grave em matria o autor parece acusar Jernimo de defender implicitamente a

mentira ao tomar o partido de Pedro em Gal 2:11-14 , acaba por condicionar o estilo e a prpria estrutura da carta.

Aps uma calorosa saudao, segue-se um longo exrdio inicial em que Agostinho lamenta a ausncia fsica de seu

interlocutor, a qual confessa entrever pelos olhos de seu amigo Alpio (um alter ego do autor), e aproveita tambm para

recomendar Profuturo, o mensageiro que levava esta carta, a seu correspondente (cf. Aug. Ep. 28,1).

Em seguida, Agostinho pede a Jernimo tradues dos patriarcas gregos para o latim, ao mesmo tempo em que

critica a escolha dele em traduzir os textos do Velho Testamento a partir do original hebraico, e no do grego da

Septuaginta (cf. Aug. Ep. 28,2). s vezes de um discurso em que se produzem indcios, indicia, para se demonstrar uma

)209
tese, Agostinho abusa do vocabulrio jurdico e de foro pblico munus, controversia, sententiam ferre, patrocinium,

ministerium, iudex para defender sua opinio. O bispo de Hipona caracteriza os problemas colocados pelas tradues

de Jernimo como causae, causas ou processos. Agostinho pede ento a Jernimo uma edio crtica de sua reviso

da Septuaginta, como o Estridonense fizera com sua verso do livro de J, para que se possa solucionar a causa acerca

deste livro. Esta outra questo que ser discutida pelos autores ao longo de suas primeiras cartas: a interpretao e

traduo das Sagradas Escrituras.

Nos terceiro e quarto pargrafos, o futuro bispo de Hipona abordar a sua interpretao de Gal 2:11-14: crtico

de um Jernimo defensor de uma simulao til (ou mentira devida, segundo o prprio Agostinho) utilizada por

Paulo quando tal se mostrasse indispensvel, o autor argumenta que qualquer possibilidade de mentira por parte do

apstolo, fosse ela explcita ou implcita, significaria a runa de toda a veracidade das Escrituras (cf. Aug. Ep. 28,3-4).

A carta ento conclui de maneira genrica no que diz respeito epistolografia antiga, em um pargrafo que

elenca diversos tpicos do gnero: o anseio pelo correspondente (minha sede por ti maior), uma citao potica (no

caso, um salmo), o exerccio da diminutio sui (a modstia do remetente ante o destinatrio), e um pedido: Agostinho

pede que Jernimo lhe corrija e instrua no ponto em questo (cf. Aug. Ep. 28,5).

Como argumentamos no segundo captulo da introduo, o incio da correspondncia mtua entre nossos

autores se d s vezes de uma polmica silenciosa, revestida de passos cautelosos, quase que de cortesia e cordialidade.

Prescindindo de uma salutatio afetiva, e no economizando no emprego dos tpicos mais afamados das cartas de

amizade (esto presentes o , a , o e a em Aug. Ep. 28,1;5), Agostinho logo chama

Jernimo para um combate de interpretaes, e decididamente de uma passagem espinhosa do Novo Testamento,

criando uma situao que futuramente o monge de Belm caracterizar como campo de batalha (cf. Hier. Ep. 102,2).

Diante disso, ficamos com a impresso de que Agostinho procura provocar seu interlocutor3 .

Emprestando a tipologia de Pseudo-Demtrio, essa carta comea como uma tpica carta de amizade4 , para se

tornar uma carta de admonio5; j segundo a de Pseudo-Libnio, distinguimos as situaes da amizade e da

parentica6. Agostinho quer que Jernimo d satisfaes sobre seu erro. Trata-se de uma carta cuja sofisticao sinttica

beira o exagero em algumas partes; noutras, quando Agostinho passa a discutir o problema de Gal 2:11-14, o discurso

torna-se mais rasteiro, prprio de um sermo, onde o objetivo a busca pela verdade, a qual deve prescindir do

costume das cartas cerimoniosas (cf. Aug. Ep. 28,1).

1Seguiremos Hennings (1994) e Fry (2010) para a datao das cartas, salvo quando noticiarmos o contrrio. No caso de
Aug. Ep. 28, v. Hennings (1994) p. 29-32 e Fry (2010) p. 27-28.
2 Ambos os trechos dos livros citados esto traduzidos para o francs em Fry (2010) p. 1-26.
3 Interpretao que discutimos no segundo captulo da introduo.
4 Cf. Ps.-Dem. 1.
5 Cf. Ps.-Dem. 7.
6 Cf. Ps.-Lib. 5;52; 11;58.
)210
Aug. ep. 28

Domino dilectissimo et cultu sincerissimo caritatis observando atque amplectendo fratri et


compresbytero Hieronymo Augustinus.

1. Numquam aeque quisquam tam facie cuilibet innotuit quam mihi tuorum in Domino
studiorum quieta laetitia et vere exercitatio liberalis. Quamquam ergo percupiam omnino te
nosse, tamen exiguum quiddam tui minus habeo, praesentiam videlicet corporis. Quam ipsam
etiam, posteaquam te beatissimus nunc episcopus, tunc vero iam episcopatu dignus, frater
Alypius vidit remeansque a me visus est, negare non possum magna ex parte mihi esse relatu
eius impressam, et ante reditum, cum te ille ibi videbat, ego videbam, sed oculis eius. Non enim
animo me atque illum, sed corpore duos qui noverit dixerit, concordia dumtaxat et familiaritate
fidissima, non meritis, quibus ille antecellit. Quia ergo me primitus communione spiritus quo in
unum nitimur, deinde illius ex ore iam diligis, nequaquam impudenter quasi aliquis ignotus
commendo germanitati tuae fratrem Profuturum, quem nostris conatibus, deinde adiutorio tuo
vere profuturum speramus; nisi forte quod talis est, ut ipse tibi per eum fiam commendatior
quam ille per me. Hactenus fortasse scribere debuerim si esse vellem epistularum solemnium
more contentus; sed scatet animus in loquelas communicandas tecum de studiis nostris quae
habemus in Christo Iesu Domino nostro, qui nobis multas utilitates et viatica quaedam
demonstrati a se itineris, etiam per tuam caritatem non mediocriter ministrare dignatur.
2. Petimus ergo, et nobiscum petit omnis Africanarum ecclesiarum studiosa societas, ut
interpretandis eorum libris, qui Graece Scripturas nostras quam optime tractaverunt, curam
atque operam impendere non graveris. Potes enim efficere ut nos quoque habeamus tales illos
viros, et unum potissimum, quem tu libentius in tuis litteris sonas. De vertendis autem in
Latinam linguam sanctis litteris canonicis laborare te nollem, nisi eo modo quo Iob interpretatus
es; ut signis adhibitis quid inter hanc tuam et Septuaginta, quorum est gravissima auctoritas,
interpretationem distet, appareat. Satis autem nequeo mirari, si aliquid adhuc in Hebraeis
exemplaribus invenitur, quod tot interpretes illius linguae peritissimos fugerit. Omitto enim
Septuaginta, de quorum vel consilii vel spiritus maiore concordia quam si unus homo esset, non
audeo in aliquam partem certam ferre sententiam, nisi quod eis praeminentem auctoritatem in
hoc munere sine controversia tribuendam existimo: illi me plus movent, qui cum posteriores
interpretarentur, et verborum locutionumque Hebraearum viam atque regulas mordacius, ut
fertur, tenerent, non solum inter se non consenserunt, sed etiam reliquerunt multa, quae tanto
post eruenda et prodenda remanerent. [Et aut obscura sunt, aut manifesta:] si enim obscura sunt,
)211
Aug. ep. 28
te quoque in eis falli posse creditur; si manifesta, illos in eis falli potuisse non creditur. Huius
igitur rei pro tua caritate expositis causis certum me facias obsecraverim.
3. Legi etiam quaedam scripta, quae tua dicerentur, in epistulas apostoli Pauli, quarum ad
Galatas cum enodare velles, venit in manus locus ille, quo apostolus Petrus a perniciosa
simulatione revocatur. Ibi patrocinium mendacii susceptum esse vel abs te, tali viro, vel a
quopiam si alius illa scripsit, fateor, non mediocriter doleo, donec refellantur si forte refelli
possunt ea quae me movent. Mihi enim videtur exitiosissime credi aliquod in Libris sanctis
haberi mendacium, id est eos homines, per quos nobis illa Scriptura ministrata est atque
conscripta, aliquid in libris suis fuisse mentitos. Alia quippe quaestio est sitne aliquando mentiri
viri boni, et alia quaestio est utrum scriptorem sanctarum Scripturarum mentiri oportuerit; immo
vero non alia sed nulla quaestio est. Admisso enim semel in tantum auctoritatis fastigium
officioso aliquo mendacio, nulla illorum librorum particula remanebit quae non ut cuique
videbitur vel ad mores difficilis vel ad fidem incredibilis, eadem perniciosissima regula ad
mentientis auctoris consilium officiumque referatur.
4. Si enim mentiebatur apostolus Paulus cum apostolum Petrum obiurgans diceret: si tu cum
sis Iudaeus, gentiliter et non iudaice vivis, quemadmodum gentes cogis iudaizare? et recte illi
videbatur Petrus fecisse quem non recte fecisse et dixit et scripsit, ut quasi animos
tumultuantium deliniret; quid respondebimus, cum exurrexerint perversi homines prohibentes
nuptias quos futuros ipse praenuntiavit, et dixerint totum illud, quod idem apostolus de
matrimoniorum iure firmando locutus est, propter homines qui dilectione coniugum tumultuari
poterant fuisse mentitum, scilicet non quod hoc senserit, sed ut illorum placaretur adversitas?
Non opus est multa commemorare. Possunt enim videri etiam de laudibus Dei esse officiosa
mendacia, ut apud homines pigriores dilectio eius ardescat, atque ita nusquam certa erit in Libris
sanctis castae veritatis auctoritas. Nonne attendimus eumdem apostolum cum ingenti cura
commendandae veritatis dicere: si autem Christus non resurrexit, inanis est praedicatio nostra,
inanis est et fides vestra. Invenimur autem et falsi testes Dei, quia testimonium diximus
adversus Deus, quod suscitavit Christum quem non suscitavit. Si quis huic diceret: quid in
hoc mendacio perhorrescis cum id dixeris quod, etiam si falsum sit, ad laudem Dei maxime
pertinet, nonne huius detestatus insaniam, quibus posset verbis et significationibus in lucem
penetralia sui cordis aperiret, clamans non minore aut fortasse etiam maiore scelere in Deo
laudari falsitatem, quam veritatem vituperari? Agendum est igitur ut ad cognitionem divinarum
Scripturarum talis homo accedat, qui de sanctis Libris tam sancte et veraciter existimet ut nolit
aliqua eorum parte delectari per officiosa mendacia, potiusque id quod non intellegit transeat
)212
Aug. ep. 28
quam cor suum praeferat illi veritati. Profecto enim cum hoc dicit credi sibi expetit, et id agit ut
divinarum Scripturarum auctoritatibus non credamus.
5. Et ego quidem qualibuscumque viribus quas Dominus suggerit, omnia illa testimonia quae
adhibita sunt astruendae utilitati mendacii aliter oportere intellegi ostenderem, ut ubique eorum
firma veritas doceretur. Quam enim testimonia mendacia esse non debent tam non debent favere
mendacio. Sed hoc intellegentiae relinquo tuae. Admota enim lectioni diligentiore
consideratione, multo id fortasse facilius videbis quam ego. Ad hanc autem considerationem
coget te pietas qua cognoscis fluctuare auctoritatem Scripturarum divinarum, ut in eis quod vult
quisque credat, quod non vult non credat, si semel fuerit persuasum aliqua illos viros per quos
nobis haec ministrata sunt in scripturis suis officiose potuisse mentiri; nisi forte regulas
quasdam daturus es quibus noverimus ubi oporteat mentiri, et ubi non oporteat . Quod si fieri
potest [(quod ego non credo)] nullo modo mendacibus dubiisque rationibus id explices quaeso,
nec me onerosum aut impudentem iudices per humanitatem veracissimam Domini nostri. Nam,
ut non dicam nulla, certe non magna culpa meus error veritati favet, si recte in te potest veritas
favere mendacio.
6. Multa alia cum sincerissimo corde tuo loqui cuperem et de christiano studio conferre, sed
huic desiderio meo nulla epistula satis est. Uberius id possum per fratrem quem miscendum et
alendum dulcibus atque utilibus sermocinationibus tuis misisse me gaudeo. Et tamen, quantum
vellem nec ipse quod pace eius dixerim forsitan capit, quamquam nihilo me illi
praetulerim. Ego enim me fateor tui capaciorem, sed ipsum video fieri pleniorem quo me sine
dubitatione antecellit, et posteaquam redierit, quod Domino adiuvante prosperatum iri spero,
cum eius pectoris abs te cumulati particeps fuero, non est impleturus quod in me adhuc vacuum
erit atque avidum sensuum tuorum. Ita fiet ut et ego etiam tunc egentior sim, ille copiosior. Sane
idem frater aliqua scripta nostra fert secum, quibus legendis si dignationem adhibueris, etiam
sinceram atque fraternam severitatem adhibeas quaeso. Non enim aliter intellego quod scriptum
est: emendabit me iustus in misericordia, et arguet me; oleum autem peccatoris non impinguet
caput meum, nisi quia magis amat obiurgator sanans quam adulator unguens caput. Ego autem
difficillime bonus iudex lego quod scripserim, sed aut timidior recto aut cupidior. Video etiam
interdum vitia mea, sed haec malo audire a melioribus, ne cum me recte fortasse reprehendero
rursus mihi blandiar, et meticulosam potius mihi videar in me quam iustam tulisse sententiam.

)213
Aug. ep. 28

Agostinho ao compresbtero1 Jernimo, senhor2 muitssimo amado e irmo3 a quem se deve


respeitar e abraar com as mais sinceras manifestaes de afeio4.

1. Nunca de maneira igual algum se fez conhecer de modo to manifesto pela aparncia a
quem quer que o seja quanto a mim a alegria serena dos teus estudos sobre o Senhor e, mais, a
tua nobre ocupao. Ainda que eu tenha grande vontade de te conhecer por inteiro, falta-me uma
pequena parte de ti, a saber, a tua presena fsica; sobre esta mesma, ainda, aps o abenoado
irmo Alpio5 (agora bispo6, mas ento j digno do bispado) t-la visto, quando ele retornou,
pareceu-me, no posso negar, que em grande parte o relato dele produziu tua imagem tambm
em mim, e mesmo antes de Alpio retornar, quando ele te via a, eu, por minha vez, tambm te
via, mas com os olhos dele7. Quem nos conhece diria que somos duas pessoas unidas no pela
alma, mas pelo corpo8, no que diz respeito nossa afinidade e amizade mais fiel (mas no aos
mritos, nos quais ele me superior). Logo, j que tu me amas desde o incio, na comunho do
Esprito (no qual tendemos a nos tornar um s), e agora tambm pela boca de Alpio, no
absolutamente atrevido de minha parte, como se eu te fosse algum desconhecido, recomendar
tua fraternidade o irmo Profuturo, ele que ser, graas aos nossos esforos, e agora graas a tua
ajuda assim esperamos verdadeiramente til no futuro9 ; a no ser, talvez, que ele seja de
tal grandeza que eu mesmo venha a me tornar mais recomendvel a ti atravs dele, do que ele
atravs de mim! Eu deveria talvez parar de escrever por aqui, se quisesse me ater ao costume
das cartas cerimoniosas10 ; meu esprito, porm, ferve em partilhar contigo algumas palavrinhas
acerca de nossos estudos em Jesus Cristo Nosso Senhor, Ele que tem a boa vontade em nos
munir, inclusive mediante tua caridade, e de maneira nada negligencivel, de muitas vantagens,
assim como de diversas provises dessa jornada, este caminho que foi apontado por Ele.
2. por isso que ns te pedimos, e conosco pede toda a esforada comunidade das igrejas
africanas: no consideres como um fardo o teu empenho em interpretar, com diligncia e
ateno, aqueles autores gregos que trabalharam as nossas Escrituras da melhor maneira
possvel11. Assim, poders te empenhar para que ns tenhamos, tambm, esses escritores to
importantes, em especial aquele homem a quem tu tanto gostas de dar voz em teus escritos12 .
Sobre traduzir os santos escritos cannicos13 para o latim, eu no gostaria que trabalhasses nisso
a no ser do modo como traduziste o Livro de J14, acrescentando sinais para que sejam
apontadas as diferenas entre a Septuaginta15 , cuja autoridade a que tem maior peso, e a tua
traduo. Mas eu no poderia deixar de me surpreender se um dia for encontrado, nos
)214
Aug. ep. 28
exemplares hebraicos, qualquer coisa que tenha escapado a tantos interprtes, os mais versados
nessa lngua. Deixo de lado a Septuaginta; a respeito das solues dadas por esses intrpretes,
quer por deliberao ou inspirao (maior do que se fosse de um nico homem16 ), no ouso
emitir em qualquer ponto nenhum juzo conclusivo, a no ser que, segundo estimo, a autoridade
superior que lhes atribuda neste ofcio esteja acima de qualquer controvrsia17 . Mais me
incomodam os intrpretes que ainda que tenham vindo depois daqueles, e ainda que tenham
atentado de maneira, dizem18, demasiadamente tenaz ordem e s relaes das palavras e das
frases do hebraico no s no conseguiram chegar a um consenso mtuo, como tambm
deixaram de lado muitas passagens que, tanto tempo depois, ainda carecem de correo e
reviso. [Seja em passagens obscuras ou evidentes]19; ora, se essas passagens so obscuras, tudo
leva a crer que tu tambm podes te enganar acerca delas; se so evidentes, no acreditamos que
eles possam ter se enganado acerca delas. Portanto, eis uma problema que, por tua caridade, e
expostas as causas20 , imploro, meu desejo, que me esclareas.
3. Li ainda alguns textos, que supostamente seriam teus, sobre as cartas do apstolo Paulo21 ,
dentre as quais, a fim de explicar a carta aos Glatas, tu lanaste mo daquela passagem em que
o apstolo Pedro corrigido de uma simulao nociva22. Aqui, advogou-se em favor da mentira;
foste tu, homem honrado, ou foi um qualquer; se foi outro quem escreveu isso, confesso, no
pouca minha aflio at que sejam refutadas, se que podem ser refutadas, essas concluses que
me incomodam. Parece-me muito perigoso, no caso, que seja possvel acreditar que exista
qualquer tipo de mentira nos livros santos, isto , que esses homens, por quem as Escrituras nos
foram legadas e estabelecidas, tenham mentido sobre qualquer coisa em seus livros23. De fato,
trata-se de uma questo perguntar-se se h algum momento propcio no qual um homem bom
pode mentir24 ; trata-se de outra questo buscar saber se foi necessrio ao escritor das Sagradas
Escrituras mentir; antes, no se trata bem de outra questo, mas de uma questo que nem existe.
Se uma mentira devida25, for admitida uma s vez nesse que o ponto mais crucial da
autoridade, no restar, a quem quer que esta possa parecer ou difcil prtica moral, ou
impossvel de crer pela f, a mnima parte naqueles livros que no seja medida segundo essa
mesma regra perigosssima, e segundo a reflexo utilitria de um autor mentiroso.
4. Ora, se o apstolo Paulo estava mentindo quando disse a Pedro, repreendendo-o: se tu, sendo
judeu, vives como os gentios, e no como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como
judeus26?, sendo que na realidade ele julgava que Pedro agira a corretamente, algum que ele
no s afirmou, mas tambm escreveu como se quisesse apaziguar os nimos irrequietos?
que no havia agido de maneira correta, que responderemos ento quando surgirem homens
)215
Aug. ep. 28
perversos que quiserem proibir o casamento, os quais o prprio Paulo prenunciou; que quiserem
afirmar que tudo o que o mesmo apstolo disse sobre a legalidade do matrimnio27 foi uma
mentira para homens que, por afeio a suas esposas, poderiam se revoltar, que Paulo disse tais
coisas no porque acreditava nelas, certamente, mas porque procurava aplacar a oposio
deles28 ? Desnecessrio citar muitos exemplos. Certo, pode parecer que existam mentiras
devidas quando se trata dos louvores a Deus, para que faam arder o amor a Ele nos homens
mais displicentes; se for assim, em lugar nenhum dos santos livros haver com certeza a
autoridade da verdade pura. Afinal, no observamos com ateno o mesmo apstolo quando ele
diz, sempre atento a garantir a solidez da verdade: e, se Cristo no ressuscitou, logo v a
nossa pregao, e tambm v a vossa f. E assim somos tambm considerados como falsas
testemunhas de Deus, pois testificamos de Deus, que ressuscitou a Cristo, ao qual, porm, no
ressuscitou29? E se algum lhe dissesse: por que te apavora tanto essa mentira, se afirmas que
ela, mesmo se falsa, serve sobretudo glria de Deus? No pensas que Paulo teria abominado
a estupidez dele, e que, com toda a capacidade de expresso e raciocnio que lhe era possvel,
no teria ele escancarado luz as profundezas do seu corao, clamando que no se trata de
algo menor (ou que talvez algo ainda mais grave) a ofensa de louvar em Deus a falsidade, do
que a de difamar Nele a verdade? Eis como devemos agir: que tenha acesso ao conhecimento
das Sagradas Escrituras apenas um homem tal que, em estimvel reverncia pela verdade e
santidade dos santos livros, no tome gosto por uma determinada passagem por causa de
mentiras devidas, mas, antes, que deixe de lado aquilo que no entende em vez de preferir
suma verdade a voz de seu corao. Com efeito, ao dizer coisas assim, uma pessoa tal esperaria
que acreditssemos nela, e faria com que no acreditssamos nas autoridades das Sagradas
Escrituras30.
5. Eu, ao menos, gostaria de mostrar, com todas as foras que o Senhor me fornece, que todos
esses indcios, os quais foram empregados a fim de estabelecer a utilidade da mentira31 ,
deveriam ser interpretados de outra maneira, para que em sua totalidade se ensinasse uma
verdade slida. Ora, j que eles no devem ser mentirosos, no devido que favoream a
mentira. Mas deixo isso a teu entendimento. Aps aplicares uma considerao mais diligente
discusso, tu talvez vers o caso com muito mais facilidade que eu. Quem vai te conduzir a essa
considerao a devoo; por meio daquela concluso, tu vs bem, a autoridade das Sagradas
Escrituras estaria fadada ao naufrgio, de modo que cada pessoa passaria a acreditar naquilo que
quer, e a no acreditar naquilo que no quer, se formos convencidos, por uma s vez e por um
nico jeito, de que aqueles homens, pelos quais as Escrituras nos foram legadas, puderam
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mentir de modo devido naquilo que escreveram. A no ser que tu possas, talvez, apresentar
critrios com os quais consigamos aprender onde se deve e onde no se deve mentir. Se isso
possvel [(o que eu no creio)32 ], por favor, explica-o sem recorrer, de maneira alguma, a
raciocnios falsos ou ambguos, e no me julgues por isso desagradvel ou insolente; isso eu te
peo pela humanidade verdadeiramente grandiosa de Nosso Senhor33. Agora, meu erro favorece
certamente a verdade e sem grande culpa (para no dizer que no h nenhuma), se para ti
correto que a verdade possa favorecer a mentira.
6. Queria eu falar de muitas outras coisas com teu corao muitssimo sincero, queria discutir
sobre nossos esforos cristos, mas nenhuma carta seria suficiente para esse meu desejo; posso
realiz-lo de modo mais abundante por meio desse irmo <Profuturo>, quem tenho a felicidade
em te enviar para que ele se banhe e se alimente em tuas doces e pertinentes conversaes. No
entanto, talvez nem mesmo ele (digo sem a inteno de ofend-lo) consiga extrair delas tanto
quanto eu gostaria, ainda que eu no me considere superior a ele em nada. Eu, no caso, confesso
que minha sede por ti maior; eu j o vejo, porm, encher-se a tal ponto que ele sem dvidas
me superar e, quando tiver voltado (que seja um retorno prspero, com a ajuda do Senhor,
espero), e assim que eu partilhar do esprito dele, pleno de ti, mesmo assim Profuturo no
poder preencher em mim o vazio e a avidez que tenho de tua presena fsica. E mesmo a
acontecer que eu terei ainda mais necessidade de ti, e ele mais abundncia. Enfim, o mesmo
irmo leva consigo outros textos nossos34 , os quais, ao l-los (se os julgares dignos de leitura),
no deixes por favor de consider-los, eu te peo, com sincera e fraterna austeridade. No de
outra maneira que eu compreendo a seguinte passagem, a saber: o justo me corrigir na
misericrdia, e me censurar; mas no ungir minha cabea com o perfume dos pecadores35,
seno que mais ama aquele que castiga curando, do que aquele que adula perfumando a cabea.
Eu, por minha vez, dificilmente me fao bom juiz daquilo que escrevo; sou por demais inseguro
que o normal, ou mais exigente. claro que s vezes vejo meus erros, mas prefiro escut-los de
quem mais experiente, para que eu, no caso de eu ter sido feliz em minha repreenso, no
venha a me adular, ou achar que lancei contra mim uma sentena mais meticulosa do que justa.

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NOTAS

1 Compresbyter, latinizado a partir do grego , latim senior ou antiquior, mais velho, que elativo de
, ancio (cf. Schrevelius p. 698). Trata-se de uma posio no gradus eclesistico subordinada apenas ao
bispo. Agostinho utiliza esse apelativo com o objetivo de estabelecer a igualdade eclesistica entre os correspondentes,
j que ainda no havia tomado posse do bispado de Hipona, fato que se deu apenas no ano de 395, brevemente aps a
escrita desta carta. O ttulo presbyter era familiar s personagens pblicas da comunidade crist da poca: ministrante
da Sacristia subordinado ao bispo, era dever do presbtero auxiliar na realizao da missa; no entanto, Jernimo nos
conta em carta a Evngelo que presbyter era sinnimo de episcopus nos tempos do Novo Testamento, e que o ltimo foi
criado apenas para evitar um cisma (cf. Hier. Ep. 146; In Tit. 1,5; tambm em Aug. Ep. 82,33). Presbtero, cf. LThK VIII
p. 538-539 e 557-570; NDPAC p. 4315-4317. Para o cargo de episcopus, v. infra Aug. Ep. 28, n. 6.
2 O ttulo dominus (em grego ) tpico da linguagem epistolar na Antiguidade Tardia, sinnimo de boa educao
em uma sociedade de hierarquias enraizadas e profundas. A despeito do que diz Fry (2010) p. 35, n. 2, no acreditamos
que o termo tenha perdido seu parentesco com domus ou qualquer relao com a , a governana do lar pelo
paterfamilias, uma vez que a organizao do cristianismo, neste caso, baseada nas relaes familiares, como
discutimos no tpico Alguns elementos estruturais das cartas crists na introduo. O uso de dominus em cartas no
atestado na epistolografia do fim da Repblica e do Alto Imprio; trata-se, no que pudemos conferir, de uma inovao
formal introduzida pelos escritores cristos. Ccero no faz uso dele, mas elenca os ttulos pblicos de seu
correspondente (cf. Cic. Fam. 27 a Marco Clio, aedilis curulis), ou simplesmente no usa nenhum tratamento. Plnio, o
Jovem prefere um simples suus, querido, e se dirige a Trajano como imperator. Via de regra, os autores do perodo
clssico no usam apelativos. O dominus atestado em algumas cartas de Fronto (ca. 100 - 166/170) a Marco Aurlio,
nas quais se faz alternativa para Caesar. O apelativo, porm, parece ter se tornado comum apenas nas salutationes das
cartas dos cristos gregos e sobretudo dos latinos, presente em textos de Ambrsio, Agostinho, Jernimo, Alpio, e
Evdio, mas no em autores como Atansio, Baslio de Cesareia ou Gregrio de Nissa.
3O apelativo frater, irmo ( em grego), termo comum de endereamento entre os cristos desde a pregao
paulina, presente em todas as cartas do apstolo, seja j na salutatio nunca em referncia ao prprio Paulo, que se diz
apostolus, mas a Sstenes, Timteo e outros que falam consigo (cf. 1 Cor 1:1; Col 1:1) , seja no exrdio (cf. 1 Cor
1:10), seja na narratio (cf. Ro 15:14); fratres so os pertencentes de uma mesma unio fraternal, fraternitas, os
membros de uma Igreja fundamentada na concepo da familia romana, ncleo da estrutura social na Antiguidade.
Signo de equidade, indica uma relao qualitativamente diferente daquela com o dominus. importante adiantar que
Agostinho nunca ser chamado de irmo por Jernimo, indcio de que este nunca ver o futuro bispo como um fiel ou
um estudioso sua altura (cf. Aug. Ep. 82,2).
4 Esta parte da carta se chama salutatio, e aparece na imensa maioria das cartas antigas. Trata-se do pargrafo de
saudao, como o prprio nome diz. O leitor perceber, conforme l os textos que traduzimos, a diferena de tom nas
salutationes de Agostinho, efusivas, e Jernimo, secas e diretas. V. o tpico Partes da carta na introduo para uma
discusso do tema.
5 Alpio (ca. 354 - 428/430), Tagastense conterrneo e grande amigo de Agostinho, o mesmo que mencionado nas
Confisses, em especial nos livros 6 a 9, e destinatrio de diversas cartas do bispo de Hipona (e.g. Aug. Ep.
29;83;125;227). Alpio estudou direito em Roma e Milo, cidade em que presenciou a converso de Agostinho em 386
(cf. Aug. Conf. VIII, 6-12), tendo sido batizado, ao lado do amigo, por Ambrsio, um ano depois. Alpio percorreu a
Palestina nos anos iniciais da dcada de 390. Aps viver com Agostinho no mosteiro em Hipona, onde provavelmente
lhe contou sobre Jernimo, tornou-se bispo de Tagaste em 394 (cf. Paul. Nol. Ep. 30), onde teve papel importante nas
polmicas contra os donatistas e contra os pelagianos. Alpio permaneceu em Tagaste at morrer, fato que se deu entre
428 e 430. V. Kelly (1975) p. 217-220, 312, 328-329 para a viagem de Alpio a Belm, a qual provavelmente principiou
a correspondncia entre Agostinho e Jernimo; Brown (2013) p. 56-57, 99-102, 126-127, 137-138, 155 e 196 para sua
relao com Agostinho. Alpio, cf. PCBE I p. 55-56 Alypius; LThk I p. 479; NDPAC p. 214. V. Hennings (1994) p.
30-32; Fry (2010) p. 36, n. 6.

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6 O episcopus, bispo. Cargo local mais alto do gradus eclesistico, apenas abaixo do papa, pontifex, episcopus, do
grego , intendente, era termo cristo prximo do sacerdote, sacerdos no latim clssico, o superintendente
dos templos pagos: como este, era cargo do bispo administrar tanto a diocese de determinada cidade quanto os
presbteros, seus subordinados (cf. Aug. Ep. 82,33). Na Antiguidade Tardia, o papel do bispo era no s religioso, mas
sobretudo sociopoltico: ele no raro fazia as vezes de curialis ou de praefectus urbis, sendo responsvel pelo bem estar
da comunidade da cidade em que residia, estando a seu cargo a manuteno do bem estar e o cumprimento da lei. O
historiador Peter Brown estudou ao longo de toda sua obra a figura do bispo na Antiguidade Tardia, v. em especial
Brown (1989) p. 104-110, 128-135; Brown (2010) p. 243-258, a questo que se coloca para tais geraes [de
Ambrsio e de Agostinho] saber como a fachada restaurada da antiga cidade romana corre o risco de desmoronar,
deixando o bispo cristo, munido por sua prpria definio no cvica da comunidade, livre para intervir como o nico
ator representativo da vida urbana nas margens do Mediterrneo (citao na p. 255); e Brown (2013) p. 183-197 e
229-266, em especial p. 187-189, passagem em que o historiador analisa o papel de Agostinho como homem pblico. V.
tambm Cameron (1994a) p. 61-67, in many individual areas they [the bishops] took on a leadership role increased in
scope and in proportion to the difficulties experienced in keeping up the civil administration. Alm de Agostinho, que
chefiava o bispado de Hipona, muitos de seus amigos tornaram-se bispos: Alpio em Tagaste, Evdio em Uzala, Aurlio
em Cartago. Bispo, cf. LThK II p. 481-492; NDPAC p. 5584-5593.
7Agostinho aqui brinca com o vocabulrio filosfico do estoicismo: imprimere termo tcnico de presena da imagem.
Imprimere indica a maneira como os objetos se nos apresentam, como impresses imagticas a serem apreendidas, ou
conhecidas (nosse), pela alma. Em linguagem direta, Agostinho argumenta que viu Jernimo e pde conhecer algo dele
atravs do relato de Alpio, to vvida foi a imagem do Estridonense que suas palavras lhe imprimiram na alma; trata-se
de uma radicalizao do tpico da , segundo Thraede (1970) p. 122. A noo de que a carta era uma imagem
da alma do autor tpica na Antiguidade (cf. Dem. 227).
8 A noo do amigo como um alter ego tpica na Antiguidade. Ela foi formulada primeiramente pelos gregos (conta a
tradio que por Pitgoras); seu testemunho escrito mais famoso o de Aristteles (cf. A. EN 9,4,1116a). Na cultura
latina, a imagem retomada por Ccero no De amicitia, onde o Arpinate afirma que um amigo est enim is qui est
tamquam alter idem, [um amigo] , portanto, aquele que como um outro igual (cf. Cic. Lael. 80). Jernimo a utiliza
tambm no Adv Ruf. 3,39, passagem em que conduz a discusso sobre Rufino (v. Hier. Ep. 102, n. 17), um traidor a seus
olhos, segundo esse adgio. Outros exemplos, a noo atestada tambm em uma carta de Ccero a Csar: vide quam
mihi te persuaserim te me esse alterum, veja como eu te convenci de que tu s outro de mim (cf. Cic. Fam. 7,5); em
um verso das tristia de Ovdio: qui duo corporibus, mentibus unus erant, quem em dois corpos, uma mente
tinham (cf. Ov. Trist. 4,4,72). A diferena nessa carta de Agostinho que o autor no se retrata como um alter ego de
Jernimo, e sim do prprio Alpio, manipulando um tpico da epistolografia a fim de introduzir-se e recomendar o
mensageiro da carta, Profuturo. Cf. Otto p. 25-26 animus 1. V. Bohnenblust (1905) p. 39-41; Frst (2002) p. 148, n. 32.
9 Profuturo era, na poca, um presbtero na mesma diocese de Agostinho; aps tornar-se bispo de Cirta em 395, veio a
falecer logo em seguida (cf. Aug. Ep. 38; 71,2 e Paul. Nol. Ep. 71,1). Profuturo, cf. PCBE I p. 928-929 Profuturus;
NDPAC p. 4359; v. Brown (2013) p. 138;196. Alm disso, h no latim um jogo lingustico de Agostinho, autor que era
afeito a esse tipo de recurso. Aqui, ele brinca com o nome de seu pupilo, Profuturus, e com profuturum, h de ser til,
conjugao do verbo proesse, estar frente, tambm ser til. Tentamos manter o jogo ao explicitar o tempo futuro
em nossa traduo.
10 No original, epistula solemnis. Nenhum dos tratadistas antigos sobre o gnero epistolar que conhecemos destacou a
epistula solemnis como categoria ou tipo especfico, embora alguns afirmem que a solenidade caracterstica da
correspondncia pblica (cf. Dem. 234), e que desta tpico o argumentum negotiosum et grave (cf. Cic. Fam. 2,4,1,
retomado por Caio Jlio Vtor no De epistulis). Ademais, a solemnitas no parece, aqui, contrapor-se ideia de
amizade: justamente nesse momento de Aug. Ep. 28 que Agostinho empreende uma aproximao, j preparada
anteriormente no exrdio ao enfatizar a comunho no Esprito Santo. Dito isso, a carta parece sugerir, na realidade, de
um salto de uma epistula familiaris comum em direo a uma epistula familiaris modificada, uma espcie de carta
amigvel de admonio, deixando de lado um simples dilogo tpico para entrar numa discusso sria sobre as
Escrituras.
11Uma das atividades pela qual Jernimo era conhecido em seu tempo era justamente a de tradutor, em especial dos
patriarcas gregos para o latim. Na poca, ele j havia traduzido o livro de rio Ddimo sobre o Esprito Santo,
publicado ca. 390, e diversos livros de Orgenes, publicados a partir de 393; so estes que Agostinho provavelmente tem
em mente. Com efeito, Jernimo era conhecido como um especialista em Orgenes e nos exegetas gregos em geral. V.
Kelly (1975) p. 141-152.

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12 Trata-se de Orgenes (185 - 253/254), telogo alexandrino e autor da Hxapla (v. infra Hier. Ep. 112, n. 126),
influente pensador do cristianismo primevo. Autor controverso na poca, j muito criticado, seus escritos foram
condenados no Conclio de Alexandria em 400, e posteriormente em um Conclio em Constantinopla, em 533. Jernimo
havia traduzido, na dcada de 380, seus comentrios sobre o Cntico dos Cnticos, Jeremias, Ezequiel, Isaas, e
homilias sobre o Evangelho de Lucas; foi tambm inspirado em Orgenes que o Estridonense produziu todos seus
comentrios s cartas de Paulo. Jernimo elenca todas as obras de Orgenes que conhecia em uma carta a Paula, cf.
Hier. Ep. 33,4. No incio dos anos 390, vivia-se entre os telogos latinos uma polmica origenista, em cujo centro
estavam Jernimo e seu adversrio, Rufino, mas da qual Agostinho ficar, a princpio, distante. Orgenes, cf. Hier. Vir.
ill. 54; LThK VII p. 1131-1136; NDPAC p. 3665-3685.
13 Em tempos de Agostinho e Jernimo, ainda no havia uma noo perfeita de escritos cannicos, uma vez que os
escritos apcrifos eram considerados cannicos por alguns autores. Muito se discutiu sobre a contenda entre Jernimo
e Agostinho sobre o critrio de canonicidade dos textos bblicos do Velho Testamento, temtica trabalhada por Hennings
(1994) e Pinto (2013), mas, como mostrou Frst (1994b), esta uma discusso que no est sistematicamente em jogo
nas cartas, nas quais o debate se concentrar em apenas dois livros, o de J e o de Jonas. Podemos sintetizar que, para o
bispo de Hipona, canonici so os texto da Septuaginta, segundo o critrio da tradio e da autoridade pela inspirao
divina (cf. Aug. Doctr. Christ. 2,13); para Jernimo, canonici so os livros que encerram a veritas hebraica, ou seja, os
textos massorticos (cf. Hier. Ep. 71,5; Vulg. Reg. praef.). Quanto ao Novo Testamento, todos os seus livros so
cannicos os Evangelhos, as cartas de Paulo, Pedro, Joo, Judas e Tiago, e o livro da Revelao, todos os quais esto
escritos em grego. V. Chadwick (1967) p. 41-45; Kelly (1975) p. 160-161; Hennings (1994) 131-217.
14A primeira verso de Jernimo ao Livro de J [PL 26,619-802b] era antes uma reviso do texto latinizado a partir da
Septuaginta, preparado provavelmente entre 389-392, conforme o autor diz em Hier. Ep. 112,19-21. V. Kelly (1975) p.
158-159 e Frst (2002) p. 54-56.
15 Nas cartas, quando Agostinho emprega Septuaginta, dos setenta, o termo segue sempre um verbo no plural, tendo
em mente os setenta e dois rabinos que empreenderam a traduo dos textos massorticos do hebraico para o grego, a
mando do rei Ptolomeu II Filadelfo (309 - 246 a. C.). Preferimos usar, em nossa traduo, um coletivo, e assim adaptar
as conjugaes verbais no texto, tornando-o mais legvel ao incorporar um termo cuja naturalidade no singular precede
longa tradio, a iniciar j na Antiguidade Tardia, na Cidade de Deus de Agostinho, livro em que este diz: has [sacras
litteras] ei cum idem pontifex [Eleazarus] misisset hebraeas, post ille [Ptolomeus] etiam interpretes postulavit; et dati
sunt septuaginta duo, de singulis duodecim tribubus seni homines, linguae utriusque doctissimi, hebraeae scilicet atque
graecae, quorum interpretatio ut Septuaginta vocetur, iam obtinuit consuetudo, quando o mesmo pontfice Eleazar
mandou-lhe estes escritos sagrados dos hebreus, Ptolomeu imediatamente contratou tradutores; foram escolhidos
setenta e dois, homens experientes de cada uma das doze tribos, os mais versados em ambas as lnguas (isto , em
hebraico e em grego), e a tradio acabou por legar traduo feita por eles o ttulo de Septuaginta (cf. Aug. Civ.
18,42). Septuaginta, cf. LThK II p. 382-383.
16 A referncia ao unus homo provavelmente a Orgenes; v. supra Aug. Ep. 28, n. 12.
17 A controversia designa o enfrentamento de teses diferentes frente a um tribunal, debate prprio do discurso
deliberativo (cf. Cic. Or. 14,45). O termo pode ter um sentido mais atenuado de controvrsia como o compreendemos
hoje, mas acreditamos que o caso especfico e portanto pede nota explicativa.
18 No latim, esta sentena atenuada por um ut fertur, dizem, que pode ser um indcio de que Agostinho no lia
hebraico. Em princpio, trata-se de atenuar uma crtica que o autor no quer endossar expressamente; ele age assim com
cautela, por saber-se grave e ofensivo contra um Jernimo que h dez anos causava discrdia entre as autoridades
crists aps ter decidido traduzir, para a preparao da Vulgata, as Sagradas Escrituras do hebraico, em vez de utilizar o
texto grego inspirado da Septuaginta. Por fim, Agostinho faz aqui aluso aos outro intrpretes da Bblia hebraica para
o grego, a saber, quila de Snope, Smaco o Ebionita e Teodocio, os quais foram reunidos por Orgenes na Hxapla
(v. infra Hier. Ep. 112, n. 126). V. Frst (2002) p. 103, n. 14.
19A passagem em colchetes uma emenda de Fry (2010) p. 30, n. 5, talvez para atenuar uma mudana de tpico que do
contrrio soaria abrupta, e para concordar com a citao que Jernimo far da presente carta em Hier. Ep. 112,20. O
texto das outras edies, entre as quais as de Labourt e Frst, iniciam o perodo diretamente em si enim obscura sunt,
ora, se so obscuras.
20 Em latim, exposita causa, exposta a causa, ou exposto o processo. O vocabulrio causa adquire, neste fim de
pargrafo, peso tribuncio: alm dos mais comuns razo, motivo e origem, a causa, latim para o grego ,
jargo jurdico para processo (tambm iudicium) indicando o argumento desvelado pela oratio do advogado a fim de
defender uma tese. termo copioso em Ccero (cf. Cic. Inv. 1,3,4; De or. 2,48,199 e 3,20,74; Verr. 2,5,1; Tusc. 1,7 etc.)
mas tambm presente em Quintiliano (cf. Quint. Inst. orat. 3,6,9), Plnio, o Jovem (cf. Plin. Ep. 1,20,7 e 4,12,4),
Suetnio (cf. Suet. Caes. 49) e em Agostinho amide. Traduzimos sempre como causa, dada a especificidade da
palavra na lngua latina.

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Aug. ep. 28

21 O ttulo apostolus, latinizado do grego , vem do verbo mais , enviar afora ou despachar,
amitto ou dimitto no latim (cf. Schrevelius p. 780). Por conseguinte, apostolus o despenseiro de Deus para pregar a
palavra de Cristo, seu embaixador, legatus, e encarregado de instruir sua tripulao, instruendae classi praefectus (cf.
Schrevelius p. 85). Os autores gregos antigos j usavam com este sentido (cf. Hdt. 1,21 e Id. 5,38); a
imagem naval, de classi praefectus, capito de uma tripulao, est j em Lsias (cf. Lys. 19,21). Pode-se inferir,
ainda, que apostolus o contraponto terreno do angelus, , o mensageiro divino, que tambm nuntius em latim
(cf. Schrevelius p. 4).
22 Jernimo havia publicado, nos anos finais da dcada de 380, comentrios s cartas de Paulo a Filemo, aos Glatas,
aos Efsios e a Tito, mas Agostinho refere-se, como o mesmo diz, aos Commentariorum in epistulam beati Pauli ad
Galatas libri tres [PL 26,307-438d], os trs livros de comentrios carta do apstolo Paulo aos Glatas, publicado ca.
387-389. Nessa obra, o Estridonense define a censura de Paulo a Pedro como uma simulatio utilis, simulao til,
usada apenas para apaziguar os judeus presentes (cf. Hier. In Gal. 2,11-14 [PL 26,339c]). Agostinho havia comentado a
mesma passagem em seu epistulae ad Galatas expositionis liber unus [PL 35,2105-2148], a exposio da carta aos
Glatas, publicado ca. 394-395, e chegado a concluses distintas das de Jernimo. Esta questo ser recorrente no
primeiro perodo de correspondncia entre os autores, que debatem as verdadeiras intenes de Paulo ao chamar a
ateno de Pedro nesta ocasio de Gal 2:11-14. V. Hennings (1994) p. 218-291 para um estudo minucioso do debate;
Fry (2010) p. 1-26 para tradues dos excertos desses comentrios.
23Agostinho traa discusso paralela no De mendacio, do qual citamos um trecho: haec certe omnis disputatio quamvis
alternet, aliis asserentibus numquam esse mentiendum, et ad hoc divina testimonia recitantibus; aliis contradicentibus,
et inter ipsa verba divinorum testimoniorum mendacio locum quaerentibus: nemo tamen potest dicere, hoc se aut in
exemplo aut in verbo scripturarum invenire, ut diligendum vel non odio habendum ullum mendacium videatur, por
certo, toda essa discusso, embora vacilante no que uns asseveram que nunca se deve mentir, para isso recitando os
testemunhos divinos; e outros os contradizendo, em busca de um lugar para a mentira entre as prprias palavras dos
testemunhos divinos ningum, porm, pode afirmar que se encontra, seja no exemplo prtico ou no texto das
Escrituras, que qualquer mentira parea ser algo a ser amado, ou que no deva ser odiado (cf. Aug. De mend. 36-39).
V. Frst (2002) p. 104-105.
24Esta questo j fora censurada de escanteio no De officiis de Ccero: cadit ergo in virum bonum mentiri, emolumenti
sui causa criminari, praeripere, fallere? nihil profecto minus, logo, cabe que um homem bom minta, ou que ele
incrimine algum em benefcio prprio, que roube, que ludibrie? Nada mais errado (cf. Cic. Off. 3,81).
25 O conceito importante para a construo do argumento agostiniano na presente carta: trata-se do officiosum
mendacium, que vertemos por mentira devida. Aqui, nossa traduo distancia-se da escolha de Labourt, que traduz o
termo como mensonge officieux; da escolha de Fry, mensonge utile; e tambm da escolha de Frst, dienende
Lge. O officium tem sobretudo o sentido de dever moral: aqui, basta citar a obra de Ccero sobre os deveres, De
officiis: omnis de officio duplex est quaestio: unum genus est quod pertinet ad finem bonorum, alterum quod positum est
in praeceptiis, toda questo sobre o dever tem duas faces: uma saber o que diz respeito ao princpio que rege as boas
aes, e outra o que reside em preceitos (cf. Cic. Off. 1,3,8). Igualmente, uma obra inspirada no De officiis de Ccero,
escrita por Ambrsio de Milo, de officiis ministrorum, sculos mais tarde, traz os deveres dos quais os ministrantes da
Sacristia estariam encarregados, tendo minister aqui o sentido de pregador (cf. Ambros. Off. 1,19,86). O seu uso por
Agostinho faz pensar no vocabulrio do foro pblico romano, aparentado da filosofia estoica, como a ao apropriada
que pode ser justificada racionalmente, por meio de argumentos e silogismos, ou, simplesmente, o dever como
obrigao, munus (cf. Sen. Ep. 77,14 e 99,6). Officium tambm traz mente o officium epistulare e a necessidade de
adotar certas regras de conduta em uma relao epistologrfica, como discutimos longamente na introduo. O termo
ingls duty uma boa variante moderna para officium.
26 Gal 2:14.
27Paulo aborda a instituio do casamento em diversas passagens de suas cartas, mas Agostinho parece ter em mente 1
Tim 4:1-3, na qual o apstolo diz que apostataro alguns da f [...] proibindo o casamento, e 1 Cor 7:1-40. Frst
(2002) p. 105, n. 19 e Fry (2010) p. 41, n. 37 atentam para que os homens prenunciados por Paulo seriam os
maniqueus, ascetas extremados que se abstinham de toda e qualquer relao sexual (cf. Aug. Mor. Eccl. 1,79; C. Faust.
15,7; Haer. 46,13).
28 Agostinho toca no mesmo ponto em um sermo ministrado nessa poca, cf. Aug. Serm. ed. Dolbeau 10,14.
29 1 Cor 15:14-15.

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Aug. ep. 28

30Sanctae scripturae, Sagradas Escrituras, na poca diziam respeito ao conjunto de textos da tradio hebraica, aos
Evangelhos e s cartas de Paulo, que viriam a formar posteriormente os Testamentos da Bblia. Esto inclusas, mas no
exclusivamente, nos divini libri, que se referem, por sua vez, tanto s sanctae scripturae quanto tradio exegtica
cannica iniciada por Tertuliano (v. infra Hier Ep. 126, n. 15) e Orgenes (v. supra Aug. Ep. 28, n. 12), at Cipriano de
Cartago e os patriarcas capadcios; o termo se ope saecularis litteratura ou litterae latinae, a literatura latina pag, e
no abrange a literatura crist contempornea, os divini libri (v. infra Hier. Ep. 112, n. 50). Sagradas Escrituras, cf.
LThK p. 1280-1283.
31Igualmente em Aug. De mend. 26-37. Possivelmente, estes testemunhos so os autores citados por Jernimo em Hier.
In Gal. praef., posteriormente em Hier. Ep. 112,4, a fim de sustentar sua interpretao de Gal 2:11-14.
32 Emenda de Fry (2010) p.32, ausente nas outras edies.
33 No original, per humanitatem veracissimam domini nostri, pela mais verdadeira humanidade do Nosso Senhor. O
conceito de humanitas tem longa histria na tradio cultural romana, sendo introduzido por Ccero como equivalente
latino do grego (cf. Schrevelius p. 1055), ao longo do De Republica e do De oratore. Para o Arpinate, trata-se
do objetivo da formao do orador, um conjunto holstico de virtudes que caracterizaria o homem bom e apto,
coadunando a misericrdia, a gentileza e a brandura, assim como conhecimentos adquiridos atravs dos estudos e do
refinamento para a vida cvica. Nas lnguas modernas, o alemo Ausbildung uma traduo boa para humanitas; o
mais prximo em portugus a formao conforme utilizado por um autor como Joaquim Nabuco. Uma vez que
Agostinho, ao modo do estoicismo, escola filosfica que muito lhe influenciou, bastante cuidadoso ao categorizar as
virtudes (aparecero, nas cartas seguintes, misericordia, pietas, diligentia, caritas; cf. Aug. Ep. 167,5-9), resolvemos ser
literais e traduzir humanitas como humanidade. Usar o adjetivo em referncia a Deus, inclusive, faz pensar no
autosacrifcio da encarnao: que Ele, no arcabouo infinito de Sua compaixo, abarca tambm a humanidade,
significando esta o padecer pelos pecados, o sofrimento dos homens e a carnalidade do ser humano. Do mesmo modo
cristo tambm Schrevelius p. 1076 l este termo, dando os equivalentes gregos e , cujo
verbete latino l amor in homines (cf. Schrevelius p. 916).
34Possivelmente os soliloquia e as trinta e duas enarrationes in Psalmos que Jernimo menciona em Hier. Ep. 105,5,
assim como o De mendacio mencionado na carta.
35Trata-se aqui de uma antiga verso do Ps 140:5 <141:5>, ainda presente na Vulgata mas extirpada da Neo-Vulgata
hoje usada pelo Vaticano. Em latim, emendabit me iustus in misericordia, et arguet me; oleum autem peccatoris non
impiguet caput meum; a traduo, neste caso, nossa, pois est ausente na ACF. Ademais, a ideia de que mais vale um
amigo que repreende do que um inimigo que adula j era tpica na Antiguidade, cf. Otto p. 18 e Thraede (1970) p.
127-143.

)222
2e3

CARTAS PERDIDAS
Agostinho subscripta salutatio
Jernimo Ep. B
[ca. 397]

Agostinho faz meno, em Aug. Ep. 40,1, a uma carta que Jernimo teria lhe enviado em retorno a uma

simples saudao; na volta, em Hier. Ep. 103,1, Jernimo menciona uma (e talvez a mesma) carta que enviara a

Agostinho em idos de 396, por intermdio do hipodicono Astrio, qual prontamente [havia ajuntado] a saudao

devida (promptum officium salutationis, em latim). No sabemos se a primeira carta perdida era de fato de Agostinho:

poderia ser apenas uma subscriptio, assinatura ou subscrio, a uma carta de Alpio, conhecido de ambos, a fim de

empreender o primeiro contato com Jernimo1; ou poderia ser uma saudao adicionada a uma carta de Aurlio, recm-

eleito bispo de Cartago aps a morte do bispo Ciro, endereada a Jernimo. Aventamos essa hiptese pois o monge

havia escrito para Aurlio entre 392 e 393, com quem Agostinho se encontrou em meados de 3972 .

A carta perdida Hier Ep. B supostamente consistia em uma discusso de Orgenes, conforme Agostinho

sinaliza em Aug. Ep. 40,9.

Sinto-me grato por teres me enviado, em retorno a uma saudao subscrita, uma carta
inteira, ainda que essa seja muito mais breve do que eu gostaria de receber de ti [...] Acerca,
porm, do que tivestes a dignidade de me responder sobre Orgenes [...]
(Aug. Ep. 40,1;9)

No ano passado, por meio de nosso irmo, o hipodicono Astrio, eu mandei uma carta a
tua dignidade, enviando de prontido as devidas saudaes [...]
(Hier. Ep. 103,1)

1 De Bruyne (1932) p. 235; Hennings (1994) p. 32-34.


2A tese de Hennings (1994) p. 32-33; v. tambm Frst (2002) p. 16-17; Fry (2010) p. 49-50. Uma resposta da suposta
carta de Aurlio, que no sobreviveu, seria Aug. Ep. 27* de Jernimo ao bispo de Cartago, mas nela nada se fala sobre
Agostinho.
)223
4

Agostinho Ep. 40 / Jernimo Ep. 67


[ca. 397]

Aps dois anos de espera por uma resposta de Jernimo Aug. Ep. 28, Agostinho retoma a temtica dessa

carta em Aug. Ep. 40, texto escrito entre 397 e 3991 , reforando a crtica que fizera ao monge de Belm e

desenvolvendo o raciocnio que o levara a concluir que o Estridonense havia interpretado erroneamente a passagem em

que Paulo repreende Pedro na carta aos Glatas.

A carta Aug. Ep. 40 inicia-se, como a anterior, com um exrdio no qual Agostinho agradece ter recebido uma

carta de Jernimo, insistindo para que ele persevere num dilogo epistolar consigo, e brincando com a possibilidade de

conhecer o Estridonense sem o ver, como se a carta lhe imprimisse uma imagem da alma um elemento tpico do

gnero epistolar, a (cf. Aug. Ep. 40,1). Agostinho aborda, no pargrafo seguinte, um livro de Jernimo que ele

recebera sob o ttulo de Epitaphium, onde se lia sobre a vida e obra de homens ilustres (cf. Aug. Ep. 40,2). Agostinho

ento entra no assunto propriamente dito, o mesmssimo da carta anterior, ou seja, a censura de Paulo a Pedro em Gal

2:11-14, dando-lhe argumentao mais firme, novamente s vezes de um tractatus (cf. Aug. Ep. 40,3-6).

Segundo o Tagastense, o raciocnio de Jernimo em justificar as palavras de Paulo como uma encenao

seria enviesado, pois teria considerado que o apstolo repreendera Pedro de maneira simulada ou

poltica (dispensative, em latim), e que sua censura fora, na realidade, teatral, isto , falsa e mentirosa, direcionada a

corrigir em Pedro um comportamento projetado em outros. Agostinho se esfora para mostrar que a maneira como

Pedro reagiu entre os gentios, quando os judeus chegaram, havia sido verdadeiramente errada, e era bastante distinta

do comportamento de Paulo ao celebrar os ritos judaicos. O problema no estava em continuar a observar os

sacramentos dos judeus que, embora suprfluos, no eram mais nocivos, mas estava justamente no mau exemplo dado

pelo primeiro apstolo em ter se retratado ante as autoridades judias, algo que levaria os gentios a imit-lo, fazendo-os

pensar que os sacramentos ainda fossem necessrios salvao e assim impelindo-os a agir como os judeus. No

importa se foi ou no por temor ou apreenso dos judeus: Pedro agira verdadeiramente de maneira errada, e Paulo o

repreendera verdadeiramente. A questo maior que se coloca, portanto, sobre a veracidade, e assim a legitimidade

tanto do comportamento de Paulo ao celebrar a Lei dos judeus, quanto de suas palavras de repreenso ao corrigir Pedro

em Antiquia2.

Na concluso da argumentao, Agostinho convida Jernimo a retratar-se de seu erro (mencionando a

, termo que discutimos em uma nota), e a abrir seus olhos luz do seu corao, esta que ficou obstruda

por algum tipo de dissimulao, a ponto de o monge no conseguir enxergar quais seriam as consequncias graves

que viriam, caso se admitisse, uma nica vez, que qualquer autor dos livros divinos mentiu. Seguem-se indagaes

)224
sobre a polmica origenista, assim como sugestes para que Jernimo escreva uma enciclopdia de heresias e

heresiarcas mais completa que o tal Epitaphium, para o uso interno na Igreja (cf. Aug. Ep. 40,7-8). A recomendao do

mensageiro Paulo finaliza a carta; este, no entanto, no a teria entregue: Aug. Ep. 40 chegou a Jernimo apenas pelas

mos de Sisnio, dicono que morava em uma ilha no Adritico, cinco anos depois, desprovida da subscriptio, e aps ter

passado por muitas outras mos na Itlia (cf. Hier. Ep. 102,1 e 105,1-2). Mas estamos adiantando a histria.

Segundo a diviso de Pseudo-Demtrio, esta carta seria mais um exemplo de carta de admonio3 s vezes de

carta de amizade4 ; j segundo a tipologia de Pseudo-Libnio, distinguimos as situaes da parentica5, da repreenso,

do pedido, do comando, da instruo, e do questionamento (Jernimo parece ter lido tambm uma provocao, e de fato

o tom que se coloca polmico, em especial na meno ). Equilibrada entre verba e res como a carta Aug.

Ep. 28, a carta Aug. Ep. 40, na esteira do que prescreveram alguns tratadistas de epistolografia, faz uso de uma citao

literria, s vezes de um provrbio, como parte ldica e integrante da argumentao.

1 Hennings (1994) p. 34-36; Fry (2010) p. 51-53.


2 A qual ser desenvolvida anos depois por Agostinho em Aug. Ep. 82.
3 Cf. Ps.-Dem. 7.
4 Cf. Ps.-Dem. 1.
5 Cf. Ps.-Lib. 5;52.

)225
Aug. ep. 40

Domino dilectissimo et cultu sincerissimo caritatis observando atque amplectendo fratri, et


compresbytero Hieronymo Augustinus.

1. Habeo gratiam quod pro subscripta salutatione plenam mihi epistulam reddidisti, sed
breviorem multo quam ex te vellem sumere tali viro, a quo tempora quantalibet occupet nullus
sermo prolixus est. Quamquam itaque nos negotiorum alienorum eorumque secularium curis
circumstemur ingentibus, tamen epistulae tuae brevitati facile non ignoscerem, nisi cogitarem
quam paucioribus verbis meis redderetur. Quare aggredere, quaeso, istam nobiscum litterariam
collocutionem, ne multum ad nos disiungendos liceat absentiae corporali; quamquam simus in
Domino spiritus unitate coniuncti, etiam si ab stilo quiescamus, et taceamus. Et libri quidem
quos de horreo dominico elaborasti, paene totum te nobis exhibent. Si enim propterea te non
novimus quia faciem tui corporis non vidimus, hoc modo nec ipse te nosti; nam tu quoque non
vides eam. Si autem tibi non ob aliud notus es nisi quia nosti animum tuum, et nos eum non
mediocriter novimus in litteris tuis, in quibus benedicimus Domino quod tibi et nobis
omnibusque fratribus qui tua legunt te talem dedit.
2. Liber quidam tuus inter cetera non diu est ut venit in manus nostras. Quae sit eius inscriptio
nescimus adhuc; non enim hoc codex ipse, ut assolet, in liminari pagina praetendebat.
Epitaphium tamen appellari dicebat frater apud quem inventus est. Quod ei nomen tibi placuisse
ut inderetur crederemus, si eorum tantum vel vitas vel scripta ibi legissemus qui iam defuncti
essent; cum vero multorum et eo tempore quo scribebatur, et nunc usque viventium, ibi
commemorentur opuscula, miramur cur hunc ei titulum vel imposueris vel imposuisse credaris.
Sane utiliter a te conscriptum eumdem librum satis approbamus.
3. In expositione quoque epistulae Pauli apostoli ad Galatas invenimus aliquid quod nos
multum moveat. Si enim ad Scripturas sanctas admissa fuerint velut officiosa mendacia, quid in
eis remanebit auctoritatis? Quae tandem de Scripturis illis sententia proferetur, cuius pondere
contentiosae falsitatis obteratur improbitas? Statim enim ut protuleris, si aliter sapit qui contra
nititur, dicet illud quod prolatum erit honesto aliquo officio scriptorem fuisse mentitum. Vbi
enim hoc non poterit, si potuit in ea narratione, quam exorsus Apostolus ait: quae autem scribo
vobis, ecce coram Deo quia non mentior, credi affirmarique mentitus eo loco ubi dixit de Petro
et Barnaba: cum viderem quia non recte ingrediuntur ad veritatem Evangelii? Si enim recte
illi ingrediebantur, iste mentitus est; si autem ibi mentitus est, ubi verum dixit? An ibi verum
dixisse videbitur ubi hoc dixerit quod lector sapit; cum vero contra sensum lectoris aliquid
)226
Aug. ep. 40
occurrerit officioso mendacio deputabitur? Non enim deesse poterunt causae cur existimetur
non solum potuisse, verum etiam debuisse mentiri si huic regulae conceditur locus. Non opus
est hanc causam multis verbis agere praesertim apud te cui sapienter providenti dictum sat est.
Nequaquam vero mihi arrogaverim ut ingenium tuum divino dono aureum meis obolis ditare
contendam, nec est quisquam te magis idoneus, qui opus illud emendet.
4. Neque enim a me docendus es quomodo intellegatur quod idem dicit: factus sum Iudaeis
tamquam Iudaeus, ut Iudaeos lucrifacerem, et cetera quae ibi dicuntur compassione
misericordiae, non simulatione fallaciae. Fit enim tamquam aegrotus qui ministrat aegroto, non
cum se febres habere mentitur, sed cum animo condolentis cogitat quemadmodum sibi serviri
vellet si ipse aegrotaret. Nam utique Iudaeus erat, Christianus autem factus non Iudaeorum
Sacramenta reliquerat, quae convenienter ille populus et legitime tempore quo oportebat
acceperat. Ideoque suscepit ea celebranda, cum iam Christi esset apostolus, sed ut doceret non
esse perniciosa iis qui ea vellent sicut a parentibus per Legem acceperant custodire, etiam cum
Christo credidissent, non tamen in eis iam constituerent spem salutis, quoniam per Dominum
Iesum salus ipsa quae illis Sacramentis significabatur advenerat. Ideoque Gentibus, quod
insuetos a fide revocarent onere gravi et non necessario nullo modo imponenda esse censebat.
5. Quapropter non ideo Petrum emendavit, quod paternas traditiones observaret quod si
facere vellet nec mendaciter nec incongrue faceret; quamvis enim iam superflua, tamen solita
non nocerent sed quoniam Gentes cogebat iudaizare, quod nullo modo posset nisi ea sic
ageret, tamquam adhuc etiam post Domini adventum necessaria saluti forent; quod vehementer
per apostolatum Pauli veritas dissuasit. Nec apostolus Petrus hoc ignorabat, sed id faciebat
timens eos qui ex circumcisione erant. Ita et ipse vere correctus est, et Paulus vera narravit, ne
sancta Scriptura quae ad fidem posteris edita est, admissa auctoritate mendacii, tota dubia nutet
et fluctuet. Non enim potest aut oportet litteris explicari, quanta et quam inexplicabilia mala
consequantur, si hoc concesserimus. Posset autem opportune minusque periculose demonstrari,
si coram inter nos colloqueremur.
6. Hoc ergo Iudaeorum Paulus dimiserat quod malum habebant, et in primis illud, quod
ignorantes Dei iustitiam, et suam iustitiam volentes constituere, iustitiae Dei non sunt
subiecti; deinde quod post passionem et resurrectionem Christi dato ac manifestato Sacramento
gratiae secundum ordinem Melchisedech adhuc putabant vetera Sacramenta, non ex
consuetudine solemnitatis, sed ex necessitate salutis esse celebranda, quae tamen si numquam
fuissent necessaria, infructuose atque inaniter pro eis Machabaei martyres fierent; postremo
illud, quod praedicatores gratiae Christianos Iudaei tamquam hostes Legis persequebantur. Hos
)227
Aug. ep. 40
atque huiusmodi errores et vitia dicit se damna et stercora arbitratum, ut Christum lucrifaceret,
non observationes Legis, si more patrio celebrarentur, sicut et ab ipso celebratae sunt sine ulla
salutis necessitate, sicut Iudaei celebrandas putabant, aut fallaci simulatione, quod in Petro
reprehenderat. Nam si propterea illa Sacramenta celebravit, quia simulavit se Iudaeum, ut illos
lucrifaceret, cur non etiam sacrificavit cum Gentibus, quia et iis qui sine Lege erant, tamquam
sine Lege factus est ut eos quoque lucrifaceret, nisi quia et illud fecit ut natura Iudaeus. Et hoc
totum dixit, non ut fallaciter se fingeret esse quod non erat, sed ut misericorditer eis ita
subveniendum esse sentiret, ac si ipse in eodem errore laboraret, non scilicet mentientis astu,
sed compatientis affectu? Sicut eo ipso loco generaliter intulit: factus sum infirmis infirmus, ut
infirmos lucrifacerem, ut sequens conclusio: omnibus omnia factus sum, ut omnes
lucrifacerem, ad hoc referenda intellegatur ut cuiusque infirmitatem tamquam in seipso
miseratus appareat. Non enim et cum diceret: quis infirmatur, et ego non infirmor?,
infirmitatem alterius simulasse se potius quam condoluisse volebat intellegi.
7. Quare arripe, obsecro te, ingenuam et vere christianam cum caritate severitatem, ad illud
opus corrigendum atque emendandum, et , ut dicitur, cane. Incomparabiliter enim
pulchrior est veritas Christianorum quam Helena Graecorum. Pro ista enim fortius nostri
martyres adversus hanc Sodomam quam pro illa illi heroes adversus Troiam dimicaverunt.
Neque hoc ego dico ut oculos cordis recipias quos absit ut amiseris, sed ut advertas quos cum
habeas sanos et vigiles nescio qua dissimulatione avertisti, ut non intenderes quae consequantur
adversa, si semel creditum fuerit posse honeste ac pie scriptorem divinorum Librorum in aliqua
sui operis parte mentiri.
8. Scripseram hinc iam aliquando ad te epistulam quae non perlata est, quia nec perrexit cui
perferendam tradideram. Ex qua illud mihi suggestum est cum istam dictarem, quod in hac
quoque praetermittere non debui, ut si alia est sententia tua eademque est melior, timori meo
libenter ignoscas. Si enim aliter sentis verumque tu sentis nam, nisi verum sit melius esse
non potest ut non dicam nulla, certe non magna culpa, meus error veritati favet, si recte in
quoquam veritas potest favere mendacio.
9. De Origene autem quod rescribere dignatus es, iam sciebam non tantum in ecclesiasticis
litteris, sed in omnibus recta et vera quae invenerimus approbare atque laudare, falsa vero et
prava inprobare atque reprehendere. Sed illud de prudente doctrinaque tua desiderabam et adhuc
desidero, ut nota nobis facias ea ipsa eius errata quibus a fide veritatis ille vir tantus recessisse
convincitur. In libro etiam quo cunctos, quorum meminisse potuisti scriptores ecclesiasticos et
eorum scripta commemorasti commodius, ut arbitror, fieret, si nominatis eis quos haeresiotas
)228
Aug. ep. 40
esse nosti quando ne ipsos quidem praetermittere volueris subiungeres etiam in quibus
cavendi essent; quamquam nonnullos etiam praeterieris quod scire cuperem quo consilio factum
sit. Aut si illud volumen forte onerare noluisti, ut commemoratis haereticis non adderes in
quibus eos catholica damnarit auctoritas, quaeso, ne grave sit litterario labori tuo, quo non
mediocriter per Domini Dei nostri gratiam in latina lingua sanctorum studia et accendisti et
adiuvisti id quod tibi per humilitatem meam fraterna caritas indicit ut si occupationes tuae
sinent omnium haereticorum perversa dogmata, qui rectitudinem fidei christianae usque ad hoc
tempus vel impudentia vel pervicacia depravare conati sunt, uno libello breviter digesta, edas in
notitiam eorum quibus aut non vacat propter alia negotia, aut non valent propter alienam
linguam, tam multa legere atque cognoscere. Diu te rogarem nisi hoc soleret esse indicium
minus praesumentis de caritate. Hunc interea fratrem nostrum Paulum in Christo multum
commendo benignitati tuae, cuius in nostris regionibus existimationi bonum coram Deo
testimonium perhibemus.

)229
Aug. ep. 40

Agostinho ao compresbtero1 Jernimo, senhor muitssimo amado e irmo a quem se deve


respeitar e abraar com as mais sinceras manifestaes de afeio.

1. Sinto-me grato por teres me enviado, em retorno a uma saudao subscrita2, uma carta
inteira, ainda que essa seja muito mais breve do que eu gostaria de receber de ti3, homem
honrado, de quem as conversas, seja qual for o tempo que tomem, jamais so enfadonhas.
Embora grandes responsabilidades para com outros afazeres, afazeres mundanos, nos cerquem
por ora, ainda assim eu mal perdoaria a brevidade de tua carta, se no levasse em considerao
quo mais breves foram as minhas palavras s quais ela responde. Por isso, empenha-te, eu te
peo, nesse dilogo epistolar conosco4, para que a distncia fsica no acabe por nos apartar
muito um do outro, embora estejamos ligados no Senhor, pela Unidade do Esprito, e mesmo
que descansemos a pena5 e nos calemos. Agora, os livros que tu elaboraste a partir do celeiro do
Senhor6, eles te mostram quase que por inteiro7 ! Pois, se no te conhecemos pelo simples fato
de no vermos a tua aparncia, deste modo nem tu prprio poderias te conhecer, pois tu tambm
no a vs; mas se tu no s conhecido de ti mesmo a no ser por conheceres a tua prpria alma,
ns tambm a conhecemos razoavelmente em teus escritos8 , e neles bendizemos o Senhor, por
ter te mostrado tal como s de fato a ti, a ns, e a todos os irmos que te leem.
2. Um certo livro teu, entre outros escritos, chegou a nossas mos no faz muito tempo. Ainda
no sabemos qual o ttulo dele, pois o prprio cdice no o apresentava na primeira pgina,
como de costume. Chama-se, porm, Epitfio9 , dizia o irmo com quem o livro foi
encontrado. O porqu de teres decidido dar-lhe tal ttulo, ns compreenderamos caso nele
lssemos sobre as vidas ou os escritos somente de autores que j morreram; no entanto, uma vez
que nele so mencionadas obras de muitos escritores que estavam vivos na poca em que
escrevias10, alguns dos quais esto vivos at hoje, ficamos surpresos com o porqu de teres
dado, ou de acreditarem que deste tal nome ao livro. De resto, aprovamos em muito o livro to
til que escreveste.
3. Na exposio da carta do apstolo Paulo aos Glatas tambm encontramos algo que nos
incomodou profundamente. Ora, se forem admitidas coisas como mentiras devidas11 nas
Escrituras sagradas, o que sobrar nelas de autoridade? Que tipo de juzo poderia ser ento
emitido acerca daquelas Escrituras teria ele peso para poder esmagar a desonestidade de uma
alegao falsa e contestvel12 ? Ora, to logo tu venhas a defender um tal juzo, algum,
discordando por ter outra opinio, poder afirmar que a concluso defendida por ti mostra que o
)230
Aug. ep. 40
escritor mentiu segundo um dever que , de alguma maneira, honesto. Onde ento, se Paulo
pde mentir naquela histria em que o apstolo comea dizendo: ora, acerca do que vos
escrevo, eis que diante de Deus testifico que no minto13, poderemos acreditar e afirmar que
ele no pde mentir, se ele tambm mentiu naquela passagem em que diz de Pedro e Barnab:
quando vi que no andavam bem e direitamente conforme a verdade do Evangelho14? Ora, se
eles andavam bem e direitamente, ento ele mentiu; mas, se ele mentiu, onde que ele disse a
verdade? Ou talvez devemos julgar que ele diz a verdade somente onde tiver dito o que vem de
encontro com o gosto do leitor? Mas que, quando surgir algo que se coloque contra a opinio
deste, isso dever ser atribudo, ento, a uma mentira devida? Pois no podero faltar razes
por que se estimaria que ele no somente pde, como, pior, precisou mentir, se abrirmos espao
a esse tipo de critrio. No necessrio defender essa causa com longos discursos, sobretudo
contigo; a bom entendedor, meia palavra basta15. Mas de modo algum teria eu a pretenso de
enriquecer com minhas moedas16 o ouro da tua inteligncia, presente divino: no h ningum
mais adequado que ti para corrigir a obra em questo17.
4. Ora, tampouco necessrio que aprendas de mim de que maneira se deve compreender
aquela passagem em que o mesmo Paulo diz: e fiz-me como judeu para os judeus, para ganhar
os judeus18, e o resto que l se diz; a partir da compaixo da misericrdia, e no da simulao
de uma falsidade19. Certo, quem cuida de um doente age como um doente, mas no porque
mente dizendo que tem febre, e sim porque, colocando-se no lugar de quem sofre, procura saber
de que maneira ele gostaria de ser atendido, caso ele mesmo adoecesse. Em todo caso, o prprio
Paulo era judeu, e ele no deixou, mesmo aps se tornar cristo, de celebrar os sacramentos dos
judeus, os quais este povo recebera de acordo com as circunstncias e no tempo em que eram
necessrios. por isso que Paulo sustentou que os sacramentos podiam ser celebrados mesmo
quando j havia se tornado um apstolo de Cristo: para, no caso, ensinar aos judeus que eles no
eram nocivos queles que quisessem observ-los conforme os haviam recebido de seus pais,
atravs da Lei, ainda que j acreditassem em Cristo; ele no o fez para que, no entanto, eles
estabelecessem nesses sacramentos a esperana da salvao, uma vez que, por meio do Senhor
Jesus, essa mesma salvao, que antes era simbolizada naqueles sacramentos, finalmente
chegara. E por isso que ele julgava que no se deveria impor os sacramentos aos gentios20 de
maneira alguma, como se aqueles fossem apartar da f os fiis pouco acostumados com um
fardo pesado e desnecessrio.
5. No foi por supostamente observar as tradies de seus pais, portanto, que Paulo corrigiu
Pedro; tivesse esse agido assim, no teria agido de forma mentirosa nem incongruente (os
)231
Aug. ep. 40
sacramentos, embora j fossem suprfluos, no eram nocivos, eram habituais); Paulo o fez
porque Pedro levava os pagos a agirem como os judeus, o que de modo algum este poderia ter
feito se no tivesse antes julgado que os sacramentos ainda eram, mesmo aps o advento do
Senhor, necessrios salvao; ora, eis o que foi combatido pela verdade, e com mpeto, atravs
da pregao de Paulo! O apstolo Pedro no ignorava isso, mas agia de modo a temer os que
eram da circunciso21 . Assim, ele foi corrigido verdadeiramente, e Paulo narrou a verdade, de
modo que a Santa Escritura, legada f dos homens que o sucederam, nunca pudesse vacilar ou
ficar deriva de uma completa ambiguidade, caso fosse admitida a autoridade de uma mentira.
No mais, no se pode, ou sequer convm explicar em uma carta os males, quo graves e quo
inexplicveis, haveriam de seguir caso assentssemos a essa interpretao; isso poderia ser
demonstrado de forma mais oportuna e menos perigosa caso pudssemos conversar
pessoalmente22 .
6. Paulo portanto abandonara o que as prticas dos judeus tinham de mal: primeiro, porque
no conhecendo a justia de Deus, e procurando estabelecer a sua prpria justia, no se
sujeitaram justia de Deus23; segundo, porque, mesmo aps a paixo e ressurreio de Cristo,
na qual os sacramentos da Graa segundo a ordem de Melquisedeque24 foram dados e tornaram-
se manifestos, eles <os judeus> ainda pensavam que os antigos ritos deviam ser celebrados no
em virtude do carter tradicional das celebraes, mas segundo a necessidade da salvao (os
quais, se nunca tivessem sido necessrios, seria em vo e sem proveito que os macabeus
tivessem se dado como mrtires em sua defesa25); por fim, porque os judeus perseguiam os
cristos, pregadores da Graa, como inimigos da Lei. So erros e vcios desse tipo que Paulo
considera escria para que se pudesse ganhar a Cristo26, e no as observaes da Lei (como
eram celebradas, segundo o costume ancestral), conforme o prprio Paulo as celebrava, sem
consider-las necessrias salvao (como os judeus pensavam que deviam ser celebradas), e
sem qualquer simulao falaciosa (que repreendera em Pedro). Ora, se Paulo celebrou aqueles
sacramentos porque simulou ser um judeu, a fim de ganhar judeus, por que ento no praticou
sacrifcios com os gentios, j que ele se tornou um sem Lei entre esses que eram sem Lei, para
que tambm os ganhasse? No foi porque ele era judeu de origem que ele agiu daquele jeito?
Ele usou todo esse discurso no para fingir mentirosamente ser o que na realidade no era, mas
porque acreditava que devia lhes prestar auxlio, com misericrdia, como se padecesse do
mesmo erro; ou seja, no por meio da astcia de um mentiroso, mas do sentimento de algum
que se compadece. Como naquela mesma passagem em que ele completou, de maneira mais
geral: fiz-me como fraco para os fracos, para ganhar os fracos, de modo que se segue a
)232
Aug. ep. 40
concluso: fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns27; atravs
disso compreende-se que ele se mostra compadecido da fraqueza de cada um, como se esta
estivesse dentro dele mesmo. Ora, ao perguntar-se: quem enfraquece, que eu tambm no
enfraquea28 ?, Paulo desejava que compreendessem no que ele havia fingido a fraqueza de
um outro, mas que ele havia se condodo dela.
7. Por essa razo, agarra-te, eu te imploro, com aquela austeridade pura e verdadeiramente
crist, unida caridade, ao trabalho de retificar e corrigir aquela obra, e canta, como se diz, a
29 ! A verdade dos cristos incomparavelmente mais bela que a Helena dos gregos!
Afinal, em sua defesa os nossos mrtires combateram esta Sodoma30 com mais coragem que os
heris deles, em defesa de Helena, combateram Troia. Eu digo isso no para que recuperes os
olhos de vosso corao (que tu nunca os perca!31), mas para que percebas, tendo-os sos e
abertos, que tu desviaste do bom caminho devido a algum tipo de dissimulao32, de sorte que
no enxergaste quais consequncias seguiriam caso fosse possvel acreditar uma s vez que o
escritor dos livros divinos33 pde mentir, com honestidade e devoo, em qualquer parte de sua
obra.
8. Eu j havia te escrito daqui, h algum tempo, uma carta34 que no foi enviada, pois aquele
homem <Profuturo>35, a quem eu a entregara para lev-la, acabou no viajando. Dela, no
momento em que eu a ditava, veio-me a ideia de adicionar algo que no devia deixar de lado, de
modo que, se outro teu juzo, e se o mesmo melhor, tem aqui a boa-vontade de perdoar
minha discrio. Agora, se tu julgas que a soluo outra, e a mesma for a soluo verdadeira
(ora, se no for verdadeira, no pode ser melhor), meu erro favorece certamente a verdade, e
sem grande culpa (para no dizer que no h nenhuma), se para algum correto que a verdade
possa favorecer a mentira.
9. Acerca, porm, do que tivestes a dignidade de me responder sobre Orgenes36, eu j sabia
que devemos louvar e aprovar o correto e o verdadeiro que encontrarmos nele, e decerto
descartar e repreender o falso e calunioso no s em seus escritos eclesisticos, como tambm
em toda a sua obra. Todavia, o que eu desejava, e ainda desejo, da tua prudncia e erudio
que tu chames a nossa ateno justamente para os desvios de Orgenes pelos quais ele acusado
de ter se afastado em muito da f na verdade. Digo, naquele mesmo livro no qual elencaste
todos os escritores eclesisticos (isto , daqueles que conseguiste lembrar) e suas respectivas
obras, seria ainda mais conveniente, penso eu, se tu ainda anexares, aps teres nomeado aqueles
que tens por heresiotas37 (se que tu no desejaste tambm omiti-los por completo), em quais
pontos estes devem ser lidos com cautela; no obstante, tu deixaste alguns de lado, coisa que eu
)233
Aug. ep. 40
gostaria de saber com que propsito se deu. Agora, se tu no quiseste deixar aquele volume
muito pesado, de modo que, mencionados os hereges, decidistes no acrescentar em que a
autoridade catlica38 os condena, ento eu te peo: no te seja um fardo o ofcio de escritor, com
o qual, pela Graa do Nosso Senhor, iluminaste e auxiliaste em muito os estudos em lngua
latina sobre os homens santos (algo que a caridade, por intermdio da minha humildade,
proclama fraternamente em teu favor); se tuas ocupaes te permitirem, cataloga as doutrinas
subversivas de todos os hereges que, por impercia ou teimosia, tentaram corromper a retido da
f crist39 at o tempo presente; edita-as num nico livrinho para o conhecimento daqueles que
no podem ler e conhecer tantas coisas porque no tm tempo suficiente devido a outros
afazeres, ou no so capazes por causa da lngua estrangeira. Eu insistiria no pedido, caso isso
no fosse comumente um indcio de que se presume menos respeito tua caridade. No nterim,
confio tua bondade esse nosso irmo muitssimo fiel em Cristo, Paulo40, cuja boa reputao
em nossa regio ns atestamos perante Deus.

)234
Aug. ep. 40
NOTAS

1 Compresbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.


2 No original, pro subscripta salutatione, em troca de uma saudao subscripta. A subscriptio, preceituada por Caio
Jlio Vitor na Ars rhetorica 27, formava-se por algumas palavras acrescentadas de punho prprio, manu sua, pelo autor
no fim da carta, diferente do texto principal desta, que era ditado e anotado por um notarius. A funo da subscriptio
dupla: tanto cumpre uma regra da etiqueta era de bom tom assinar as cartas quanto sobretudo permite a
autentificao do documento; por conseguinte, trata-se de algo mais especfico que uma simples assinatura. Adicionar
algo mo indicaria que a cpia do texto era verdadeira, e no uma falsificao (cf. Aug. Ep. 19*,4). O costume to
mais importante por ser atestado pelo prprio apstolo Paulo: saudao da minha prpria mo, de mim, Paulo, que o
sinal em todas as epstolas; assim escrevo (cf. 2 The 3:17; tambm 2 Cor 16:21; Ga 6:11; Col 4:18). V. Arns (2007) p.
50;63 e 169-170; Reynolds & Wilson p. 39-43 subscriptio. No mais, a passagem faz referncia a uma subscriptio
salutatio perdida de Agostinho.
3 Possvel referncia a uma carta perdida, Hier. Ep. B.
4A noo de que a carta a metade de uma conversa definidora deste gnero na Antiguidade (cf. Dem. 223; Ps.-Lib.
2). Discutimos esse tema amplamente na introduo.
5 A frmula ab stilo quiescere evoca certa gama ameaadora de imagens, uma vez que o stylus, espcie de estilete
pontiagudo de madeira, com que se escrevia nas tabuinhas de cera, no raro comparado espada, como o mesmo
Jernimo o faz em Hier. Ep. 115, talvez em reao a esta carta de Agostinho (de fato, h alguns traos de provocao
neste clon, como se Agostinho admoestasse Jernimo a lhe responder). Traduzimos o ab stilo quiescere como
descansar a pena, tendo em mente o adgio a pena mais forte que a espada conhecido em nossa cultura, e cuja
origem moderna est no dramaturgo vitoriano Edward Bulwer-Lytton, the pen is mightier than the sword.
6A expresso horreum dominicum, celeiro do Senhor, baseada em Mt 3:12 (ou Lc 3:17) e atestada pela primeira vez
nesta carta de Agostinho. Segundo Frst (2002) p.120, n. 46, ela se tornou proverbial entre os autores da Idade Mdia.
7Embora no possamos saber ao certo quais eram todos os livros de Jernimo que Agostinho tinha ento em mos,
certo que entre eles estava o comentrio carta de Paulo aos Glatas (cf. Aug. Ep. 28,3-4), o De viris illustribus (cf.
Aug. Ep. 40,2), a traduo e comentrio do livro de J (cf. Aug. Ep. 28,2) e do livro de Jonas (cf. Aug. Ep. 71,5), e
possivelmente a apologia contra Rufino (cf. Hier. Ep. 102,3). V. Frst (2002) p. 120, n. 46.
8 A ideia de que a carta a impresso escrita da alma do autor, isto , que possvel conhecer algum atravs da letra
escrita, tpica na Antiguidade (v. supra Aug. Ep. 28, n. 7). Ademais, Fry (2010) p. 63, n. 12 alude ausncia de
espelhos nos mosteiros, fato que dificultaria Jernimo de fitar seu prprio semblante, o qual, no entanto, torna-se
reflexo cristalino nas palavras que este escreveu (cf. Dem 227). Trata-se do tpico da , a presentificao do
autor atravs de suas palavras, como discutimos no item Tpicos das cartas na introduo.
9 A referncia , na realidade, ao De viris illustribus, o compndio sobre os homens ilustres que Jernimo publicara
entre 393 e 395 (v. infra Hier. Ep. 112, n. 28). Agostinho o nomeia curiosamente por Epitaphium, uma vez que havia
recebido o cdice ou livro, codex, contendo o texto sem a pgina inicial [liminaris pagina], na qual havia o ttulo;
conta-nos o bispo que o nomeara assim o mensageiro que lhe entregou a obra. Por sua vez, um epitaphium ou
consolatio pode ser tanto um discurso fnebre, uma biografia, ou uma carta de consolao, ou os trs de uma s vez. O
Estridonense protestar a incorreo do ttulo em Hier. Ep. 112,3. V. Frst (2002) p. 72, n. 217 e Stowers (1986) p.
142-144.
10Frst (2002) p. 121, n. 52 d a lista de alguns autores que estavam vivos na poca em que o De viris illustribus foi
publicado: entre os gregos, Gregrio de Nissa, Joo Crisstomo, Gelsio, Tetimo, Dextro, Anfloco de Icnio e
Sofrnio; entre os latinos, Fobdio, Ddimo de Alexandria, Epifnio de Salamina, Eunnimo, Ambrsio de Milo,
Ambrsio de Alexandria, e o prprio Jernimo.
11 officiosum mendacium, v. supra Aug. Ep. 28, n. 25.
12 No latim, contenciosa falsitas, falsidade contestvel, que, segundo Fry (2010) p. 64, n. 24, indicaria a suspeita de
heresia. Agostinho talvez tinha em mente o que diz Paulo em 1 Cor 11:16, mas, se algum quiser ser contencioso
[contensiosus], ns no temos tal costume, nem as igrejas de Deus. O adjetivo tambm deriva de contentio, uma
disputa ou contestao, prpria da oratria (cf. Cic. Leg. 3,10,24; Quint. Inst. orat. 4,2,132; 5,14,12).
13 Gal 1:20. O pargrafo diz respeito a todo o texto da carta de Paulo aos Glatas.
14 Gal 2:14. O texto de Agostinho l ingrediuntur, avanam, ao passo que a Vulgata d ambularent, andavam.

)235
Aug. ep. 40

15 No latim, cui sapienter prudenti dictum sat est, diz-se o suficiente a quem antev com prudncia. Embora o cui se
refira ao te da frase anterior, isto , a Jernimo, a concluso parece-nos ter sabor proverbial, a que lhe servem de
testemunho os versos 729 do Persa de Plauto e o verso 541 do Phormio de Terncio. Optamos por um provrbio de
sentido semelhante, se no idntico, em portugus. Cf. Otto p. 112.
16 No latim, Agostinho diz ingenium tuum divino dono aureum meis obolis ditare contendam; literalmente, ter a
pretenso de enriquecer com os meus bolos a tua inteligncia dourada, presente divino. O bolo era uma das moedas
usadas na Grcia, de origem ateniense. Em vista de no truncar a leitura, e visto que se trata de dado cultural muito
especfico do perodo, optamos por desfazer a referncia e traduzir como moedas.
17 A referncia aqui opus illud aos comentrios de Jernimo carta de Paulo aos Glatas, e no carta em si.
18 1 Cor 9:20.
19 Em latim, simulatio fallaciae, simulao de uma falsidade. Foi como simulatio utilis, simulao til, que
Jernimo descrevera tanto a atitude de Pedro em ter deixado de comer entre os gentios, quanto a atitude de Paulo em ter
corrigido em Pedro o que ele queria corrigir em outros (cf. Hier. In Gal. 2,11-14). A expresso ser retomada diversas
vezes na correspondncia, e.g. Aug. Ep. 82,26-29, e em outras obras do bispo de Hipona, cf. Aug. C. mend. 26; C.
Faust. 19,17; Op. monach. 12. V. Frst (2002) p. 124, n. 57 e o captulo do histrico da correspondncia na introduo.
20 O latim gens, traduo do grego (Schrevelius p.1072), dizia respeito originalmente a todo e qualquer povo
cf. Aug. Civ. 2,5 para esse sentido antropolgico fraco. Nas cartas de Paulo, no entanto, o termo grego adquire sentido
especfico, e diz respeito estritamente aos gregos pagos que ainda professavam aos deuses olmpicos. O uso de /
gens como sinnimo de pago entra na literatura latina j por Tertuliano, cuja obra mais famosa intitulada
apologeticum adversus gentes pro christianis, apologtico contra os gentios em defesa dos cristos. Na tradio
portuguesa, este significado acabou solidificado em gentio, substantivao do adjetivo gentilis, e assim o adotamos
sem maiores questionamentos. Levantamos apenas uma ressalva, de que gentes, no perodo tardio, cada vez mais
usado no contexto de discusso sobre os povos fronteirios e brbaros, tornando-se algo antagnico dos romanos e,
no caso de Paulo e Agostinho, abarcando tambm os gregos e latinos pagos no balaio dos povos invasores, em
oposio aos helenos e romanos cristos e filiados Igreja catlica; no prefcio ao De viris illustribus, Jernimo afirma
que escreveu este livro, a pedido do procnsul Nmio Emiliano Dexter, ao imitar Suetnio in enumerandis gentilium
litterarum viris illustribus, enumerando os homens ilustres da literatura dos gentios (cf. Hier. Vir. ill. praef.). O termo
carrega, assim, todos os aspectos negativos que o termo barbarus supe na poca.
21 Gal 2:12.
22 Esta passagem contm uma interessante reflexo acerca do gnero epistolar: Agostinho afirma que non enim potest
aut oportet in litteris explicari, pois no possvel ou conveniente explicar em uma carta as consequncias de admitir
mentiras na pregao paulina. O autor parece aludir a uma conveno antiga, de que a carta no o suporte ideal para
discusses filosficas mais profundas (cf. Dem. 231; Ps.-Dem. 1; Iul. Vit. Ars rhetorica 27; tambm Aug. Ep. 162,1;
220,2). A ressalva de Agostinho tambm de ordem prtica: a correspondncia dos cristos, em especial de pensadores
da relevncia dele e de Jernimo, era de interesse pblico, podendo cair em mos desonestas.
23 Rom 10:3.
24 No bem uma citao, mas um eco do Ps 110:4.
25A referncia ao stimo captulo do segundo livro dos Macabeus (cf. 2 M 7), livro deuterocannico, presente na
Vulgata mas ausente na ACF.
26 Phil 3:8.
27 1 Cor 9:22.
28 2 Cor 11:29.

)236
Aug. ep. 40

29 palindia, em grego no original. Segundo Arns (2007) p. 62, cantar a era a mais mortificante
prova para um escritor: [significava] retomar tudo que j disse; a inteno conquistar a , a mudana do
juzo, do interlocutor. Sua referncia mais tradicional ao mito em que Estescoro, poeta lrico que viveu entre os
sculo VII e VI a. C. na Grcia, supostamente ficou cego aps compor versos ofensivos a Helena de Troia, e recuperou
sua viso posteriormente ao compor-lhe uma , literalmente um canto de retratao. Uma ocorrncia famosa
desse episdio, com esse sentido, est presente j no Fedro de Plato (cf. P. Phdr. 243a); entre os latinos, a citao
suprstite mais antiga est em uma carta de Ccero a tico, que citamos: mihi autem nulla de eo datur
propter superioris epistulae testimonium. sit igitur sane bonus vir, a mim, porm, nenhuma se d disso, a
supor pelo testemunho da carta anterior. Que um homem bom fique portanto satisfeito com isso (cf. Cic. Att. 7,7,1). No
sculo IV, a j h muito havia se tornado tpica tambm entre os cristos: fora utilizada por Irineu de Lyon,
Tertuliano, Ambrsio de Milo, e Jernimo (cf. Ir. Haer. 1,23,2; Tert. Anim. 34,4; Ambros. In Luc. 3,37; Hier. Adv.
RuFin. 1,10). , cf. Otto p. 262 palinodia; Blaise p. 589-590 palinodia. V. Hennings (1994) p. 35, n. 80; Frst
(2002) p. 83, n. 259; para uma interpretao do conceito na carta, v. Jamieson (1987), que supe a possibilidade de
Jernimo ter suspeitado que a fazia meno sua rixa com Rufino. V. Campbell (1991) p. 29-199 para os
testemunhos de vida e fragmentos de Estescoro (a invectiva a Helena e a esto em p. 89-97).
30 A comparao, colocada pelo pronome haec <Sodoma>, a Helena, que simboliza os costumes dos pagos e a vida
tradicional em Roma, cidade que, na poca de Agostinho, era comumente comparada capital da devassido no Antigo
Testamento. O illi heroes que se segue so aqueles heris da Ilada e da Odisseia, demarcando sua distncia temporal
e espiritual dos cristos e aproximando-os de Helena e Sodoma. Ademais, no vocabulrio cristo graecus no raro fazia
subentender pago ou gentio (v. supra Aug. Ep. 40, n. 20 para gens), de modo que devemos compreender que
Agostinho est acusando Jernimo indiretamente de defender uma interpretao hertica e pag, leia-se origenista.
31A referncia oculi cordis, olhos do corao, est na carta de Paulo aos Efsios; ela traduzida na ACF como olhos
do entendimento (cf. Eph 1:18). A interpelao absit ut [eos] amiseris, que no acontea de tu [os] perderes, talvez
toque no problema de viso de Jernimo: corriam boatos na poca que ele estava ficando cego. Fry (2010) p. 70, n. 47
acredita que Agostinho no sabia disso.
32 dissimulatio, v. supra Aug. Ep. 40, n. 19. O termo ofensivo.
33 Aqui, divini libri so sinnimos de sanctae scripturae, v. supra Aug. Ep. 28, n. 28.
34 Cf. Aug. Ep. 28,1.
35 Profuturo, v. supra Aug. Ep. 28, n. 9.
36 Orgenes, v. supra Aug. Ep. 28, n. 12.
37 Haeresiota, grego latinizado. O termo heresia, latim para o grego , j era vocbulo corrente na poca, cujo
significado o mesmo que se tem hoje: cristos que se apartam da f verdadeira ou correta, a rectitudo fidei em latim, e
pregam doutrinas heterodoxas e pecaminosas que questionam ou se opem s tradies do cristianismo ortodoxo.
Originalmente, o termo significava nada mais que escolha, do verbo , latim capio ou eligo (cf. Schrevelius p.
17) afinal, a heresia existe na boca de quem a condena. Jernimo havia includo alguns autores controvertidos
herticos em seu De viris illustribus (v. infra Hier. Ep. 112, n. 28), entre eles Orgenes, os judeus Filo de
Alexandria e Flvio Josefo, e at Sneca, em sua correspondncia apcrifa com Paulo (cf. Hier. Vir. ill. 12).
38 A auctoritas catholica toma este adjetivo, catholicus, como sinnimo de cristo de f verdadeira, recta fides ou
rectitudo fidei, alinhado f ortodoxa e universal, sempre oposto ao haereticus, sentido prximo do nosso fiel hoje
(cf. LThK VII p. 1156-1157). Igualmente, o fato de estar qualificando auctoritas, emprstimo do vocabulrio oficial do
Imprio, d peso institucional expresso, procurando-lhe legitimao poltica.
39As expresses rectitudo fidei, recta opinio ou recta linea se repetem em Hier. Ep. 103,4 e 112,6 e so verses latinas
para o grego , como indica Schrevelius p. 584: : cuius recta est opinio; qui doctrinam Christianam
vere profitetur, : cuja opinio correta; aquele que professa de maneira verdadeira a doutrina crist. Cf.
Blaise p. 585 orthodoxus.
40 Nada sabemos ao certo sobre esse Paulo que Agostinho menciona na concluso, a no ser que se tratava do
mensageiro a quem a presente carta foi confiada (cf. PCBE I p. 841 Paulus 3), o qual no a teria entregue a Jernimo
(cf. Hier. Ep. 102,1; 105,4; 112,1). V. Frst (2002) p. 17, n. 11.

)237
5

Agostinho Ep. 67 / Jernimo Ep. 101


[402]

Cinco anos haviam se passado desde que Agostinho enviara suas cartas Aug. Ep. 28 e 40, mas Jernimo ainda

no lhe havia respondido, de sorte que o Tagastense provavelmente concluiu que este no havia recebido suas missivas,

ou as havia ignorado (talvez pela delicadeza da discusso de Gal 2:11-14). Assim, a presente carta Aug. Ep. 67, escrita

em 4021 , l-se como uma mea culpa de Agostinho: no bem uma confisso de arrependimento, mas uma precauo.

Aps uma breve referncia correspondncia anterior dos autores, em que supostamente so mencionadas duas cartas

perdidas (cf. Aug. Ep. 67,1), Agostinho se defende e se retrata a priori da possvel reao de Jernimo leitura de suas

cartas (cf. Aug. Ep. 67,2). Ao dever de dar satisfaes segue-se uma breve concluso na qual, em tom insistente, o

Tagastense pede a seu interlocutor que, se no lhes for concedido (ou sequer desejado) que possam se conhecer

pessoalmente, que eles ao menos conservem um dilogo epistolar (cf. Aug. Ep. 67,3). Quanto ao mensageiro desta

carta, Agostinho no o menciona.

Segundo a diviso de Pseudo-Demtrio, essa carta seria um exemplo tpico de carta de desculpa ou carta

apologtica2; j segundo a de Pseudo-Libnio, distinguimos as situaes da negao3 , da retratao, do pedido e do

relato. Interessante notar, ainda, que, na correspondncia de Jernimo e Agostinho, esta a carta deste em que

entrevemos mais facilmente uma estrutura tpica, tripartite, da epistolografia antiga: salutatio segue-se a praescriptio

ou exrdio, onde fala-se brevemente sobre a correspondncia travada pelos autores at ento; no meio, a res ou

narratio, em que se discute o assunto propriamente dito da carta; por ltimo, a postscriptio ou concluso, na qual o

remetente deseja a supresso da distncia fsica do destinatrio, e lhe deseja votos de boa sade. Todas as trs partes so

recheadas de temas e figuras tpicas do gnero epistolar (o , o ), escritos em um estilo bem-humorado,

prprio de uma epistula familiaris, mas que por vezes se eleva a um discurso de dissuaso, atravs do apelo ao

testemunho da conduta pessoal, elaborao de hipteses, s repeties e redundncias que procuraram esgotar as

possibilidades de refutao, todos estes mecanismos semelhantes queles de um acusado que se defende4 .

1 Hennings (1994) p. 36-37; Fry (2010) p. 75-76.


2 Cf. Ps.-Dem. 18.
3 Cf. Ps.-Lib. 14;61.
4 Como nota Fry (2010), p. 81, n. 12.

)238
Aug. ep. 67

Domino carissimo et desideratissimo et honorando in Christo fratri et compresbytero


Hieronymo Augustinus in Domino salutem.

1. Audivi pervenisse in manus tuas litteras meas; sed, quod adhuc rescripta non merui,
nequaquam imputaverim dilectioni tuae. Aliquid procul dubio impedimenti fuit. Vnde agnosco,
a me Dominum potius deprecandum, ut tuae voluntati det facultatem mittendi quod rescripseris.
Nam rescribendi iam dedit, quia cum volueris facillime poteris.
2. Etiam hoc ad me sane perlatum, utrum quidem crederem dubitavi; sed hinc quoque tibi
aliquid utrum scriberem dubitare non debui. Hoc autem brevi suggestum esse caritati tuae a
nescio quibus fratribus mihi dictum est, quod librum adversus te scripserim Romamque
miserim. Hoc falsum esse noveris. Deum nostrum testor, hoc me non fecisse; sed si forte aliqua
in aliquibus scriptis meis reperiuntur, in quibus aliter aliquid quam tu sensisse reperiar, non
contra te dictum, sed quod mihi videbatur a me scriptum esse, puto te debere cognoscere; aut si
cognosci non potest, credere. Ita sane hoc dixerim, ut ego non tantum paratissimus sim, si quid
te in meis scriptis moverit, fraterne accipere quid contra sentias, aut de correctione mea aut de
ipsa tua benevolentia gavisurus; verum etiam hoc a te postulem ac flagitem.
3. O si licuisset, et si non cohabitante, saltem vicino te in Domino perfrui ad crebrum et dulce
colloquium! Sed quia id non est datum, peto ut hoc ipsum, quod in Domino, quam possumus
simul simus, conservari studeas, et augeri ac perfici, et rescripta quamvis rara non spernere.
Saluta obsequio meo sanctum fratrem Paulinianum et omnes fratres qui tecum ac de te in
Domino gloriantur. Memor nostri exaudiaris a Domino in omni sancto desiderio tuo, domine
carissime et desideratissime, et honorande merito in Christo frater.

)239
Aug. ep. 67

Agostinho envia saudaes em nome do Senhor ao compresbtero1 Jernimo, senhor


muitssimo querido e irmo muitssimo desejado, a quem se deve honrar em Cristo.

1. Ouvi que chegaste em tuas mos uma carta minha2, mas o fato de eu no ter merecido at
ento uma resposta tua, de modo algum eu atribuiria isso a teu amor; algo te impediu, sem
sombra de dvida. A partir da eu reconheo que mais vale rogar ao Senhor para que Ele d
tua vontade a capacidade de me enviares o que tiveres escrito em resposta, pois com certeza Ele
j te deu a capacidade de me responderes; ora, sempre que quiseres, poders faz-lo com muita
facilidade.
2. Ainda, isso me foi reportado com tanta certeza que tive minhas dvidas se deveria acreditar,
mas a partir da no me permiti duvidar se eu deveria te escrever ou no. Isso breve, porm:
contaram-me que sugeriram tua caridade, no sei por quais irmos, que eu escrevi um livro
contra ti e o mandei a Roma. Saibas que isso falso; tenho Nosso Deus por testemunha de que
eu no fiz isso, mas, se porventura apresentarem qualquer coisa, em qualquer escrito meu, em
que me encontrem com qualquer opinio diferente do teu juzo, penso que tu deves ter
conhecimento e, se isso no for compreensvel, acreditar que no era contra ti que se
argumentava, mas que se escreveu o que parecia conveniente a mim. Certo, precisei dizer isso
no apenas para me colocar completamente preparado a aceitar, de modo fraternal, qualquer
opinio contrria de ti, caso algo em meus escritos te cause m impresso (havendo de ficar
feliz ou pela correo dos meus erros, ou pela prpria boa-vontade de tua parte em me corrigir),
como tambm para insistir e persistir nisso.
3. Ah, se me tivesse sido permitido, ainda que no moremos lado a lado, ao menos, mediante a
proximidade no Senhor, desfrutar de um dilogo doce e frequente contigo! Mas, j que isso no
nos foi dado, peo que te esforces para conserv-lo; para que estejamos o mais prximo possvel
em Cristo; para que nosso dilogo assim cresa e amadurea; para que no deixes de responder,
ainda que raramente. Sada, por favor, o santo irmo Pauliniano3 e todos os irmos que se
alegram no Senhor contigo e devido a ti. Lembra-te de mim, e que tu sejas atendido pelo Senhor
em todo desejo santo teu, meu senhor carssimo e queridssimo, meu irmo merecidamente
digno de louvor4.

)240
Aug. ep. 67
NOTAS

1 Compresbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.


2 A saber, Aug. Ep. 40.
3Pauliniano era o irmo mais jovem de Jernimo, com quem ele vivia em Belm desde 386 (cf. Hier. Adv. RuFin. 3,22;
Ep. 66,12;81,2). No sabemos quando Agostinho o conheceu, mas provvel que entre 398 e 401, quando Pauliniano
viajou para o Ocidente. Pauliniano, cf. NDPAC p. 3824. V. Frst (2002) p.138, n. 94.
4 Esta a nica carta de Agostinho, entre as trocadas diretamente entre Agostinho e Jernimo, que figura uma frmula
de concluso, trao muito comum nas cartas do Estridonense e coerente com a tradio da epistolografia helenstica (cf.
Iul. Vit. Ars rhetorica 27). Haver outra, em Aug. Ep. 180, carta endereada a Oceano.

)241
6

Jernimo Ep. 102 / Agostinho Ep. 68


[402]

Jernimo respondeu a Agostinho em 402, talvez impelido pela insistncia do Tagastense em Aug. Ep. 671, e

aparentemente a contragosto, dado seu tom condescendente e esquivo. A comear pela salutatio, Jernimo , nesta carta

Hier. Ep. 102, seco e direto, muito diferente do caloroso Agostinho nas salutationes de suas cartas anteriores. O exrdio

que se segue no busca estabelecer um vnculo com o remetente, pelo contrrio: Jernimo quer afastar Agostinho,

repreendendo-o atravs de ironias com as quais ele, aps mostrar-se incerto se a carta que recebera era realmente de

Agostinho, procede em atacar o sermo de seu correspondente, construdo, aos olhos do Estridonense, sobre

: epiqueremas ou silogismos de escola, de modo afetadamente retrico, com os vcios e o linguajar de um

professor de oratria. A esquiva do autor tambm justificada pelo tom presunoso que, para Jernimo, Agostinho

havia adotado em Aug. Ep. 40 e 67.

Jernimo no entra, porm, no que seria o assunto propriamente dito de uma narratio, a saber, na interpretao

de Gal 2:11-14. O autor antes alega que no quis responder Agostinho, pois no podia ter certeza que as cartas

realmente eram dele ainda que o raciocnio da carta, a seu ver pseudo-filsofico, o remetesse ao estilo do presbtero

(cf. Hier. Ep. 102,1). Na verdade, acreditamos que o texto d indcios de que Jernimo deixa deliberadamente de

responder o seu interlocutor: aqui, nada mais h que ameaas. Jernimo acusa Agostinho de querer buscar a fama s

custas de ofender homens ilustres, mostra-se notadamente irritado ao ser enfrentado no campus scripturarum, o

campo de batalha das Escrituras, e abusa do vocabulrio militar senex, campus, mantica, conlutatio, otium tudo

em vista de acuar seu correspondente. A meno apologia contra Rufino nos pargrafos finais serve de precauo a

um Agostinho que arriscava ser vtima de uma disputatio escrita pelo temido monge de Belm (cf. Hier. Ep. 102,2-3).

Segundo a diviso de Pseudo-Demtrio, essa carta seria um exemplo de censura2 , com elementos de ameaa e

da ironia. Segundo a tipologia de Pseudo-Libnio, distinguimos as situaes da censura3, da ironia, da ameaa, da

condescendncia, talvez da contra-acusao (no possvel, porm, caracterizar essa carta como uma resposta ou

consulta, pois Jernimo deliberadamente no entra na questo sobre Gal 2:11-14). No mais, a carta em questo , a

exemplo de Aug. Ep. 67, modelar em sua arquitetura: aps a salutatio, contam-se trs pargrafos, mnimos,

perfeitamente equilibrados em exordium, uma contra-narratio, e conclusio. Importante salientar, tambm, que, alm da

meno novamente , na qual Jernimo cita abertamente Estescoro, h um provrbio de gosto popular o

boi cansado pisa com mais firmeza e outras trs menes tradio literria latina, duas em tom de ameaa, e no

retratao: a mantica na quarta stira de Prsio, a batalha do velho e paciente Entelo contra o jovem e ansioso Dares no

)242
quinto canto da Eneida, e, simples marca de erudio, o personagem Calprnio Lanrio, das historiae de Salstio,

pseudnimo que Jernimo d a Rufino. Jernimo muito mais afeito a esse tipo de recurso convencional da

epistolografia que Agostinho: atravs de sua erudio, o monge pretende, com os duros e dodos socos de Entelo (cf.

Aug. Ep. 73,1), nocautear um Agostinho que, a seus olhos, um jovem inexperiente.

1 Hennings (1994) p. 37-38.


2 Cf. Ps.-Dem. 6.
3 Cf. Ps.-Lib. 34;81.

)243
Hier. ep. 102

Domino vere sancto et beatissimo papae Augustino Hieronymus in Domino salutem.

1. In ipso profectionis articulo sancti filii nostri Asterii hypodiaconi beatitudinis tuae litterae
pervenerunt, quibus satisfacis te contra parvitatem meam librum Romam non misisse. Hoc nec
ego factum audieram, sed epistulae cuiusdam quasi ad me scriptae per fratrem nostrum
Sisinnium diaconum huc exemplaria pervenerunt, in qua hortaris me ut super
quodam apostoli capitulo canam, et imiter Stesichorum inter vituperationes et laudes Helenae
fluctuantem, ut qui detrahendo oculos perdiderat, laudando receperit. Ego simpliciter fateor
dignationi tuae, licet stilus et tua mihi viderentur, tamen non temere exemplaribus
litterarum credendum putavi, ne forte me respondente laesus iuste expostulares, quod probare
ante debuissem tuum esse sermonem, et sic rescribere. Accessit ad moram sanctae et venerabilis
Paulae longa infirmitas. Dum enim languenti multo tempore assidemus, paene epistulae tuae,
vel eius qui sub tuo nomine scripserat, obliti sumus, memores illius versiculi: Musica in luctu,
importuna narratio. Itaque si tua est epistola, aperte scribe, vel mitte exemplaria veriora: ut
absque ullo rancore stomachi in Scripturarum disputatione versemur, et vel nostrum emendemus
errorem, vel alium frustra reprehendisse doceamus.
2. Absit autem a me, ut quicquam de libris beatitudinis tuae attingere audeam. Sufficit enim
mihi probare mea, et aliena non carpere. Ceterum optime novit prudentia tua unumquemque in
suo sensu abundare, et puerilis esse iactantiae, quod olim adulescentuli facere consueverant,
accusando illustres viros, suo nomini famam quaerere. Nec tam stultus sum ut diversitate
explanationum tuarum me laedi putem, quia nec tu laederis si nos contraria senserimus. Sed illa
est vera inter amicos reprehensio, si nostram peram non videntes, aliorum, iuxta Persium,
manticam consideremus. Superest ut diligas diligentem te; et in Scripturarum campo iuvenis
senem non provoces. Nos nostra habuimus tempora, et cucurrimus quantum potuimus; nunc te
currente et longa spatia transmittente, nobis debetur otium: simulque (ut cum venia et honore
tuo dixerim) ne solus mihi de poetis aliquid proposuisse videaris, memento Daretis et Entelli, et
vulgaris proverbio, quod bos lassus fortius figat pedem. Tristes haec dictavimus; utinam
mereremur complexus tuos, et collatione mutua vel doceremus aliqua, vel disceremus.
3. Misit mihi temeritate solita maledicta sua Calpurnius cognomento Lanarius, quae ad
Africam quoque studio eius didici pervenisse. Ad quae breviter ex parte respondi, et libelli eius
vobis misi exemplaria, latius opus, cum opportunum fuerit, primo missurus tempore; in quo
illud cavi, ne in quoquam existimationem laederem christianam; sed tantum ut delirantis
)244
Hier. ep. 102
imperitique mendacium ac vecordiam confutarem. Memento mei, sancte ac venerabilis papa.
ViDe quantum te diligam, ut ne provocatus quidem voluerim respondere, nec credam tuum esse
quod in altero forte reprehenderem. Frater communis suppliciter te salutat.

)245
Hier. ep. 102

Jernimo envia saudaes em nome do Senhor ao padre1 Agostinho, senhor verdadeiramente


santo e muitssimo abenoado.

1. Foi no exato momento em que partia o nosso santo filho, o hipodicono2 Astrio3 , que me
chegou uma carta4 de tua bondade, na qual prestas satisfao dizendo no teres enviado um
livro a Roma contra minha pequenez. Eu nem tinha ouvido falar disso; mas a cpia5 de uma
certa carta, aparentemente endereada a mim, chegou em mos do nosso irmo, o dicono
Sisnio6; nela, tu me incitas a cantar a 7 sobre um certo captulo do apstolo, e assim
imitar Estescoro, to indeciso entre elogiar e ofender Helena ele que, aps perder os olhos
na crtica, recuperou-os no elogio. Eu simplesmente confesso tua dignidade que, embora o
estilo e os 8 parecessem ser teus, pensei, entretanto, que no deveria dar crdito de
modo precipitado a essas cpias para que, se eu as respondesse, tu talvez no reclamasses
justamente de ter se ofendido; pensei que eu deveria antes me assegurar que o discurso era
realmente teu, e s a responder. Adiciona ao nosso atraso a longa doena da santa e venervel
Paula9 . Enquanto estivemos muito tempo ao lado da enferma, ns quase que esquecemos da tua
carta (ou da carta do homem que escrevera em teu nome), mas lembramos sempre daquele
versinho: a msica no luto uma interveno inoportuna10 . Pois bem, se tua a carta, escreve
sem medo, ou envia uma cpia mais verdadeira, para que assim possamos nos engajar na
discusso das Escrituras sem rano de clera11, seja para corrigirmos nosso erro, seja para
demonstrarmos que alguma outra pessoa o repreendeu em vo.
2. Longe de eu, porm, ousar sequer tocar qualquer coisa nos livros de tua beatitude.
suficiente a mim fazer valer os meus e no destrinchar os dos outros. De resto, tua prudncia
sabe muito bem que cada um conhece bem seu prprio modo de pensar12 , e que se trata de
presuno infantil procurar, como faziam os jovenzinhos de outrora, a fama s custas de ofender
homens ilustres. No sou tambm to estpido para pensar que uma diferena nas tuas
interpretaes possa me ofender, porque nem tu te ofenderias caso pensssemos de maneira
diferente. Mas eis uma situao perfeitamente repreensvel entre amigos se, no enxergando a
nossa prpria bolsa, como diz Prsio, reparamos no bornal dos outros13 . Resta-te amar quem te
amas e no provocar, como um adolescente, um veterano no campo de batalha das Escrituras14 .
Ns tivemos nosso tempo e avanamos o quanto pudemos. Agora, enquanto tu avanas e
atravessas longas distncias, ns, por nossa vez, temos direito ao descanso e, para dizer com tua

)246
Hier. ep. 102
licena e sem atentar contra tua honra (e para que no pareas ser o nico a me apontar
exemplos dos poetas), lembra-te de Dares e Entelo15, e do provrbio popular: o boi cansado pisa
com mais firmeza16. com tristeza que ditamos isso: antes pudssemos te abraar e num
encontro mtuo ensinarmos ou aprendermos algo!
3. Enviou-me suas maldades, com o atrevimento tpico, o Calprnio, de sobrenome Lanrio17;
fiquei sabendo que tamanho o zelo do homem elas chegaram at frica. Respondi-as
com rapidez, em parte, e enviei uma cpia desse livrinho18 a vs. Assim que me for oportuno,
mandarei prontamente obra mais extensa, na qual cuidei para que no ofendesse em qualquer
parte que seja a estima entre os cristos, mas busquei somente refutar a mentira e a insensatez
de um louco inepto. Lembra-te de mim, santo e venervel padre! V o quanto eu te amo; ainda
que provocado, eu no quis respond-lo, e nem acreditaria tampouco vir de ti o que eu
certamente repreenderia em um outro. Um irmo em comum19 humildemente te sada.

)247
Hier. ep. 102
NOTAS

1 Papa. Inicialmente afetivo de pater e termo de linguagem popular, na poca era usado como vocativo afetuoso aos
bispos e demais ministros cristos. O termo s vai se tornar sinnimo de pontifex a partir do sculo VI d. C. Fry (2010)
p. 87 n. 4 aponta que Jernimo, ao escolher tal apelativo, parece diminuir Agostinho, j que no o considera um bispo
(mas talvez Jernimo no soubesse ainda que seu correspondente tornara-se bispo de Hipona), e nem um compresbyter,
um companheiro no governo das comunidades crists. O tom seco e programtico da salutatio de Jernimo, ademais,
contrasta com a abertura acalorada das cartas anteriores de Agostinho. Papa, cf. LThK X p.540-543; NDPAC p. 3867; v.
Blaise p. 592 papa. preciso notar tambm a ausncia de frater na salutatio: o adjetivo nunca ser usado por Jernimo
em direo a Agostinho, indcio de que o monge recusava-se a enxerg-lo como um igual.
2 Hypodiaconus, latinizao de , sendo o um servo ou ministro. O dicono auxilia o
presbtero e o bispo na celebrao da Sacristia, no podendo realiz-la individualmente. No caso, o hipodicono, ou
subdicono, nada mais do que um dicono em treinamento, que ainda no ingressou oficialmente na carreira
eclesistica. Raramente o latim usava termos nativos para a hierarquia clerical: alm de papa, e exceto sacerdos
(sinnimo de bispo) e raramente pontifex, ambos que tambm so adaptaes da hierarquia religiosa tradicional de
Roma, todos os outros termos presbtero, dicono, bispo so latinizaes do grego do Novo Testamento,
sobretudo a partir da epistolografia paulina. Dicono, cf. LThK III p. 178-186; NDPAC p. 1385-1388.
3 No sabemos ao certo quem esse Astrio, exceto que foi portador da carta anterior de Agostinho. Pode ser que ele
seja Astrio de Amsia (378/395 - 400/431); cf. LThK p. I 1101; NDPAC p. 610. Astrio de Amsia foi um amigo de
Gregrio de Nissa (ca. 335 - ca. 395). O mais provvel, porm, que seja Astrio, bispo de Anseduno que fora discpulo
de Jernimo; cf. PCBE I p. 97 Asterius 2; NDPAC p. 610-611. V. Hennings (1994) p. 37, n. 89; Frst (2002) p. 139, n.
97.
4 Trata-se de Aug. Ep. 67, carta em que Agostinho se retratava a priori pela confuso causada por Aug. Ep. 40.
5 No latim, exemplaria cuiusdam epistulae, contra as litterae mencionadas antes. Os exemplaria so uma cpia de
determinado escrito; v. Arns 2007 p. 63, a palavra no tem mais o sentido ativo de exemplar que serve de modelo, de
prottipo, e sim o sentido passivo, de cpia, realizada conforme o exemplar no sentido primeiro. Optamos ora pelo
singular, ora pelo plural, cpia ou cpias, conforme o ritmo do texto. A carta mencionada por Jernimo Aug. Ep.
40.
6Sisnio, provavelmente um dicono seguidor do bispo Exuprio de Toulouse e mensageiro habitual de Jernimo (cf.
Hier. C. Vig. 3,17; In Zach. praef.; Ep. 119). Foi ele quem encontrou Aug. Ep. 40 perdida em uma ilha do Adritico (cf.
Hier. Ep. 105,1). V. Hennings (1994) p. 35-36, n. 81; Frst (2002) p.17, n. 12.
7 , v. supra Aug. Ep. 40, n. 29. Segundo Jamieson (1987), Jernimo teria enxergado aqui uma aluso sua
rixa com Rufino, tendo sido inclusive levado a crer que a meno seria um indcio de que Aug. Ep. 40 era,
na realidade, uma carta falsificada de Agostinho, autorada na realidade pelo Aquilense.
8 O , epiquerema, um argumento lgico disposto a apresentar, em ambas as partes, a prova ou razo de
ser de determinado sujeito. Tratando-se uma demonstrao menos rigorosa que o silogismo, j nos tempos de Ccero era
usado como jargo para argumentos falsos na retrica (cf. Cic. Inv. 1,57). Quintiliano d o termo latino aggressio para
traduzir , mas repete o juzo do Arpinate (cf. Quint. Inst. orat. 5,10,1-8 e 5,14,14); Lausberg, em seu manual
de retrica, d ratiocinatio (cf. Lausberg (1990) p. 194-195 e 198-201). O fato de Jernimo ter mantido o termo grego
para um conceito com equivalente latino nos leva a crer que zomba de Agostinho, em imitao da escolha do
Tagastense em ter usado o grego em vez de algum equivalente em seu idioma. Ademais, o uso do termo
ainda mais acurado: Jernimo, com ele, desdenha da argumentao do Tagastense, como se estas fossem
construdas em raciocnios fracos e hipotticos; parece, ainda, deixar implcito que o estilo escolar de Agostinho,
alm de escancarar certa artificialidade e rudeza, se sustenta em um mtodo tpico de filsofos pagos e hereges. De
fato, o linguajar do autor do em Aug. Ep. 40 professoral e bastante silogstico; v. aqui Mohrmann (1932) p. 43; Fry
(2010) p. 65, n. 27 e p. 80, n. 8.
9 Paula (347 - 404), matrona da mais alta sociedade italiana, de famlia tradicionalssima, descendia da mesma prole de
Marco Frio Camilo, general responsvel pela reconstruo de Roma aps a invaso glica de 387 a. C. (cf. Liv.
5,48-49). Ela foi uma correspondente privilegiada de Jernimo, sua confidente e protetora. Aps acolher o Estridonense
na Urbe, Paula e uma de suas filhas, Eustquio (370 - 418/419), mudaram-se com ele para Belm em 385, onde viveram
at morrer. A morte de Paula se deu em 404 e deixou Jernimo arrasado, a ler em sua longa e dolorosa carta Hier. Ep.
108, o epitaphium Sanctae Paulae (apud Labourt (1963) vol. V p. 159-201). Paula de Roma, cf. PLRE 1 p. 674-675
Paula 1; LThK VII p. 1487; NDPAC p. 3823-3824. Eustquio, cf. PLRE 1 p. 312 Iulia Eustochium; LThK III p. 1017;
NDPAC p. 1866-1867. V. Frst (2002) p. 140, n. 103.
10 A citao do Eclesistico 22:6, livro deuterocannico da Bblia, ausente entre os textos traduzidos na ACF. Em
latim, musica in luctu importuna narratio, a msica no luto uma interveno inoportuna.

)248
Hier. ep. 102

11Expresso latina de difcil transliterao, bastante forte e prxima do registro vulgar, rancor stomachi parece ter sido
cunhada por Jernimo. Labourt (1963) vol. V, p. 94 o traduz pela glosa rancoeur ou colre; em Frst (2002) p. 141
temos um Verstimmung demasiadamente psicanaltico; e Fry (2010) p. 89 opta por um aigreur algo mal du sicle.
O termo rancor, substantivo do verbo ranceo, apodrecer, refere-se tanto a ira ou clera quanto ao seu sinal fsico, a
clica e o odor ftido decorrentes do mau funcionamento do sistema digestivo, o stomachus em latim, o qual
compreende o estmago e o intestino. Em termos cientficos, trata-se de um desbalano dos humores no corpo cujo
centro humoral justamente o stomachus em momentos de grande raiva ou clera (no latim, o verbo stomachor j
usado j por Ccero em ad. Fam. 15, 16 para irritar-se). Optamos por preservar o carter fisiolgico e o tom de baixo
calo em rano de clera. O termo ser retomado em Aug. Ep. 73,1, e reaparecer como rancor animi, rano da
alma, em Hier. Ep. 134,1.
12Aluso a Rom 14:5, cada um esteja inteiramente seguro em sua prpria mente na ACF. A passagem aparecer
novamente em Hier. Ep. 134,1; trata-se de uma desculpa tpica do autor para se esquivar de uma discusso, estando
tambm presente em Hier. Adv. Iovin. 1,8; 2,16; C. Vig. 7; in Hie. 4,15,3; Ep. 49,4; 125,8; 130,14.
13Referncia aos versos 23-24 da quarta stira de Prsio, ut nemo in sese temptat descendere, nemo, / sed praecedenti
spectatur mantica tergo! cair em si ningum mesmo tenta, ningum, / mas de costas tambm se mostra a mala! (cf.
Pers. 4,23-24). A mantica, espcie de mochila ou bornal que os soldados carregavam nas costas, contraposta pera,
bolsa, algo menor que aquela e usada principalmente para carregar dinheiro (no caso os bolos que Agostinho cita em
Aug. Ep. 40,3). A expresso, proverbial, encontra-se primeiramente em um poema de Catulo, non videmus manticae
quod in tergo est no vemos o que h no bornal que est nas costas (cf. Catull. 22,21) e significa que reparamos
nos defeitos dos outros, mas no conseguimos enxergar os nossos prprios; cf. Otto p. 209 mantica.
14 Os termos usados por Jernimo neste perodo trazem mente o vocabulrio militar romano: antes, a mantica, o
bornal do soldado; agora, o Estridonense se diz um senex, velho ou experiente, designao do soldado
aposentado, nosso veterano, no campus, campo de batalha, das Escrituras (cf. Fry (2010) p. 90 n. 27 e 28). Mais
adiante, o descanso, otium, era fruto da aposentadoria merecida de quem j havia completado o commitatus, o servio
militar romano. Por fim, collatione mutua tambm pode ter significado militar, j que a collatio era uma reunio entre
soldados ou oficiais (Cic. De or. 1,48,210;).
15 Referncia aos versos 368-484 do quinto canto da Eneida de Virglio, passagem em que o velho Entelo, contra todas
as expectativas, vence o jovem Dares, que o havia desafiado no pugilato, durante os jogos fnebres de Anquises. Na
traduo de Odorico Mendes, versos 387-483.
16Em latim, bos lassus fortius figat pedem, o boi cansado finca o p com mais firmeza. Este provrbio usado pela
primeira vez por Jernimo nesta carta, aparentemente seu nico testemunho na literatura latina; cf. Otto p. 58 bos 4.
17 A aluso a Pblio Calprnio Lanrio das historiae de Salstio (86 - 34 a. C.), cf. Sall. Hist. frg. 1,95 / 2,42
Maurenbrecher. Uma vez que sobraram poucos fragmentos dessa obra, desconhecemos os motivos da m fama de
Lanrio. A meno do personagem dirigida, na realidade, a Rufino de Aquileia (ca. 340/345 - 411), antigo amigo de
infncia de Jernimo, e agora seu desafeto (cf. Hier. Adv. Ruf. 1,30 e 2,32). Tradutor de Orgenes para o latim (cf. Hier.
Ep. 80-81) e autor de comentrios, Rufino havia se mudado para Jerusalm j em 381, cinco anos antes de Jernimo.
Sua rixa com o Estridonense data dos anos finais da dcada de 390, no contexto da polmica origenista que assolou a
cristandade latina. A obra extante do Aquilense, boa parte da qual compe retrataes aos ataques de Jernimo, est
reunida em PL 21. A presena de Rufino na vida de Jernimo marcante, alguns episdios da qual so narrados por
Kelly (1975), esp. p. 227-258. Rufino de Aquileia, cf. LThK VIII p. 1350; NDPAC p. 4614-4615.
18Aluso Apologia adversus libros Rufini [PL 23,395-492a], livro em que Jernimo ento trabalhava, e que foi
publicado em idos de 396. Segundo Frst (1999) p. 132, o Estridonense mandara o terceiro de dois livros desta obra a
Agostinho, o qual sinaliza t-lo lido em Aug. Ep. 73,6.
19Talvez Communis seja um nome prprio; caso contrrio, ignoramos quem seria esse irmo em comum; v. Hilberg
(1918) vol. II, p. 236 e Goldbacher (1923) vol. II, p. 243 para suposies. Frst (2002) p. 145, n. 122 acredita se tratar
de Pauliniano, irmo de Jernimo, mencionado anteriormente por Agostinho (v. supra Aug. Ep. 67, n. 3).

)249
7

Jernimo Ep. 103 / Agostinho Ep. 39


[ca. 402-404]

A carta Hier. Ep. 103, enviada por meio do hipodicono Astrio, um exemplo do que Pseudo-Demtrio

chama de carta de recomendao1 , que encontra mesmssimo equivalente situacional em Pseudo-Libnio2 . Ela no

contm os tpicos das cartas anteriores, pois no se trata de uma carta de amizade propriamente dita3. Na presente

missiva, de dois pargrafos simples aps a salutatio, nada mais h que a recomendao do dicono Presdio para o

cargo de baiulus litterarum um mensageiro ou portador de cartas, prximo do nosso carteiro a Agostinho (cf.

Hier. Ep. 103,1), qual se seguem breves notcias de Belm e observaes sobre o exlio (peregrinatio, em latim)

terreno de Jernimo nos mosteiros da Palestina (cf. Hier. Ep. 103,2). Ao que parece, Agostinho receber de bom grado

Presdio, cujos servios utilizar futuramente para levar a sua Aug. Ep. 73 at Belm.

O carter negotialis desse texto impede que o datemos com preciso: alm de uma carta, hoje perdida, que

Jernimo menciona no exrdio (Hier. Ep. B, resposta a uma subscripta salutatio de Agostinho), nada nela permite

entrever missivas anteriores ou posteriores na correspondncia. Aqui, fomos levados a adotar, sem problematizaes, a

ordem de Labourt, que a mesma do corpus epistularum de Jernimo na Patrologia Latina, a mesma adotada por

Hilberg, Hennings e Fry. Na correspondncia de Agostinho, entretanto, a carta Hier. Ep. 103 equivale a Aug. Ep. 39, ou

seja, anterior at mesmo a Aug. Ep. 40. Goldbacher e Frst seguiram a ordem agostiniana, que baseada no corpus

epistularum de Agostinho proposto pelos editores deste autor na Patrologia Latina, e assim adotaram um intervalo entre

397 e 399 para a escrita dessa carta, como se ela fosse a primeira de Jernimo ao Tagastense. Ns, porm, datamos esta

carta, novamente com Hennings e Fry, entre os anos de 403 e 4044 .

1 Cf. Ps.-Dem. 2.
2 Cf. Ps.-Lib. 8;55.
3 Segundo mostrou Frst (1999) p. 128-129.
4Hennings (1994) p. 38-39 e Fry (2010) p. 93-94. O ano de 404 a opo final para situar essa carta, j que Agostinho
se refere a Astrio, aqui ainda hipodicono, como seu colega a partir de Aug. Ep. 82. Frst (1999) p. 92-93; id. (2002)
p. 114-117 d argumentos em favor para uma datao anterior dessa carta, entre 397 e 399.
)250
Hier. ep. 103

Domino vere sancto et beatissimo papae Augustino Hieronymus in Christo salutem.

1. Anno praeterito per fratrem nostrum Asterium hypodiaconum dignationi tuae epistulam
miseram promptum reddens salutationis officium; quam tibi arbitror redditam. Nunc quoque per
sanctum fratrem meum Praesidium diaconum, obsecro primum ut memineris mei. Dein, ut
baiulum litterarum habeas commendatum, et mihi scias germanissimum, et in quibuscumque
necessitas postularit, foveas atque sustentes; non quo aliqua re, Christo tribuente, indigeat, sed
quod bonorum amicitias avidissime expetat, et se in his coniungendis maximum putet
beneficium consecutum. Cur autem ad Occidentem navigaverit, ipso poteris narrante
cognoscere.
2. Nos in monasterio constituti, variis hinc inde fluctibus quatimur et peregrinationis molestias
sustinemus. Sed credimus in eo qui dixit: confidite; ego vici mundum, quod ipso tribuente et
praesule, contra hostem diabolum victoriam consequamur. Sanctum et venerabilem fratrem
nostrum papam Alypium, ut meo obsequio salutes obsecro. Sancti fratres, qui nobiscum in
monasterio Domino servire festinant, oppido te salutant. Incolumem te et memorem mei
Christus Dominus noster tueatur omnipotens, domine vere sancte et suscipiende papa.

)251
Hier. ep. 103

Jernimo envia saudaes em nome de Cristo ao padre1 Agostinho, senhor verdadeiramente


santo e muitssimo abenoado.

1. No ano passado, por meio de nosso irmo, o hipodicono Astrio2 , eu mandei uma carta3 a
tua dignidade, enviando de prontido as devidas saudaes4 ; carta que, acho eu, te foi entregue.
Agora, tambm por meio de um irmo santo, o meu dicono Presdio5, eu te imploro, em
primeiro lugar, que te lembres de mim, e ento que o aceites como teu mensageiro6; eu o
recomendo; saibas que ele para mim um companheiro queridssimo, e, sejam quais forem as
exigncias da necessidade, d-lhe suporte e sustento, no porque ele carece de algo, pois Cristo
lhe generoso, mas porque ele anseia com enorme avidez a amizade dos homens bons, e assim
julga que conquistar o maior dos benefcios unindo-se a eles. Agora, por que ele viajou ao
Ocidente, tu poders saber por suas prprias palavras.
2. J ns, estabelecidos em um mosteiro, somos chacoalhados c e l por ondas inconstantes e
suportamos os incmodos do exlio7. Mas acreditamos nele que diz: tende bom nimo, eu
venci o mundo,8 pois, por meio de sua generosidade e liderana, conquistaremos a vitria
contra o inimigo, o diabo. Ao nosso irmo santo e venervel, o padre Alpio9, imploro que
envies saudaes em meu nome. Os irmos santos que se esforam conosco em servir ao Senhor
no mosteiro, eles te enviam saudaes calorosas. Lembra-te de mim, e que Cristo, o Nosso
Senhor todo-poderoso, conserve-te inclume, senhor verdadeiramente santo e louvvel padre10.

)252
Hier. ep. 103
NOTAS

1 Papa, v. supra Hier. Ep. 102, n. 1.


2 Astrio, supra Hier. Ep. 102, n. 3; quanto ao cargo de hypodiaconus, v. Hier. Ep. 102, n. 2.
3 Possvel referncia a uma carta perdida, Hier. Ep. B.
4 No latim, promptum officium salutationis, literalmente pronto dever de saudao. Diz Fry (2010) p. 97, n. 5 que o
officium salutationis est une de ces pratiques de civilit qui faisait de la diligence une preuve daffection. Vale
lembrar que esse termo deixa entrever uma prtica de bons modos e civilismo na prtica epistologrfica antiga, aludindo
ao officium epistulare que discutimos na introduo. Trata-se do dever de escrever a salutatio e de dar votos de boa-
sade, presente na maioria esmagadora de cartas antigas. No mais, Hier. Ep. 103 atende este dever em todos os seus
quesitos nesta carta, trazendo mente preceitos de Caio Jlio Vtor na Ars rhetorica 27: segundo este autor, cartas de
recomendao devem ser escritas de modo honesto e apenas entre amigos. O termo officium retomado por Jernimo
em Hier. Ep. 115, e aparece em formulao similar omnis officiorum caritas, toda afeio dos deveres em Hier.
Ep. 126,1.
5 Presdio, ento dicono, foi o mensageiro encarregado de levar Hier. Ep. 103 para Agostinho e Aug. Ep. 73 para
Jernimo. Presdio, cf. PCBE I p. 899 Praesidius 1. V. Frst (2002) p. 17, n. 10. Agostinho refere-se a ele em Aug. Ep.
74 como consacerdos, indicando que ele foi ento elevado ao bispado. Quanto ao cargo de diaconus, v. supra Hier. Ep.
102, n. 2.
6 Em latim, baiulus litterarum, o carregador de cartas, algo prximo do nosso carteiro. A raiz est em baiulo,
carregar um peso (cf. Dig. 50, 16, 235; Hier. Ep. 6,1); o termo sinonmico de perlator litterarum (v. infra Aug. Ep.
19*, n. 15).
7 Na Antiguidade, o termo latino peregrinatio, exlio, usado, tanto por pagos (e.g. Cic. Tusc. 5,37, 107; Sen. Ep.
104) quanto, com mais frequncia, por cristos (e.g. Aug. In Psalm. 137,12; Civ. 18,1,3; In Ioh. 40,7); para os ltimos,
peregrinatio sinonmico da vida terrena desterrada da divina, como se o homem, um estrangeiro, estivesse na terra de
passagem, em um iter obscurus (cf. Aug. Lib. Arb. 2,16,41-42); cf. Blaise p. 609 peregrinatio. Segundo Overbeck
(1879) p. 227, num juzo retomado por Kelly (1975) p. 220, n. 39 e Frst (2002) p. 116, n. 37, caso aceitarmos a
datao desta carta para entre os anos de 397 e 399, o termo peregrinatio seria uma referncia ao banimento imposto ao
mosteiro de Jernimo durante a polmica origenista contra Joo de Jerusalm; a data tardia nos levaria a interpretar o
indcio como relativo polmica contra Rufino. V. Brown (2013) p. 323-324 para uma discusso do significado da
peregrinatio no velho Agostinho.
8 Jo 16:33.
9 Alpio, v. supra Aug. Ep. 28, n. 5.
10Eis uma frmula de concluso na postscriptio, muito comum nas cartas de Jernimo. Ela aparece novamente em Hier.
Ep. 115, 134,2, 141 e 143,2.

)253
8

Agostinho Ep. 71 / Jernimo Ep. 104


[403]

Agostinho reitera na carta Aug. Ep. 71 sua exigncia para que Jernimo responda as suas mensagens

anteriores, o que nos leva a crer que ela foi enviada antes de ele receber a carta Hier. Ep. 102 (e possivelmente Hier. Ep.

103 tambm). Aproveitando a viagem do dicono Cipriano at Jerusalm, o Tagastense anexa nessa presente carta

novas cpias das missivas anteriores, a saber, Aug. Ep. 28 e 40, explicando porque essas haviam atrasado. A

argumentao do texto agora no diz respeito, porm, a Gal 2:11-14, e sim preparao da futura Vulgata, ofcio

empreendido na poca por Jernimo, que revisava os textos da Vetus Latina a mando do ento papa Dmaso.

Aps um exordium de dois pargrafos em que Agostinho comenta o estado atual da correspondncia (cf. Aug.

Ep. 71,1-2), inicia-se a narratio, em que o autor tece consideraes sobre o trabalho de Jernimo no preparo de suas

tradues do livro de J a partir do grego e do hebraico (cf. Aug. Ep. 71,3). Aps abrir uma causa exigindo satisfao

do Estridonense quanto a seu mtodo de interpretao, o bispo de Hipona se coloca nova e veementemente contra a

escolha de seu interlocutor em traduzir a Bblia a partir do texto massortico hebraico, e no do grego da Septuaginta.

Para Agostinho, propor uma nova verso a partir dos escritos hebraicos causaria confuso na comunidade crist,

arriscando quebrar a unidade das igrejas; e ainda mais grave seria deixar de usar a Septuaginta, nem que fosse para

referncia, numa traduo das Sagradas Escrituras, pois tal medida poderia causar uma dissonncia irreparvel entre

as missas em grego e em latim (cf. Aug. Ep. 71,4). O bispo de Hipona ilustra esse possvel cenrio de crise de leituras e

interpretaes ao contar o caso de um bispo em Oea (atual Trpoli, no Lbia), que decidira usar a traduo de Jernimo

para o livro de Jonas, na qual havia uma passagem de traduo problemtica (a saber, Jon 4:6) que acabou por produzir

imenso tumulto na parquia, especialmente entre os gregos (cf. Aug. Ep. 71,5).

Ao aventar qualquer linha de desacordo com a tradio, Agostinho parece acreditar que Jernimo corria o srio

risco de cair em um erro e assim desviar do caminho correto, tombando na heresia. O bispo de Hipona parece acusar

seu correspondente implicitamente ao abusar do vocabulrio jurdico para defender sua causa e inferir as consequncias

de uma tal condenao causa, obiectum, damnare, consultus, arguere, favere, calumnia falsitatis. Caracterizar o

erro de Jernimo como mendositas, a propsito, traz de volta os perigos do officiosum mendacium em Gal 2:11-14

abordado nas cartas anteriores: admitir uma variante na traduo das Sagradas Escrituras to grave quanto admitir que

nelas haja qualquer possibilidade de mentira (cf. Aug. Ep. 71,5). A univocidade das Escrituras deve, assim, estar acima

de qualquer suspeita e qualquer divergncia de interpretao.

)254
Agostinho ento conclui a carta ao mesmo tempo em que termina a discusso sobre a Vulgata, louvando a

utilidade do trabalho de Jernimo ao revisar e traduzir as Escrituras para o latim (cf. Aug. Ep. 71,6).

Segundo a diviso de Pseudo-Demtrio, esta carta seria mais um exemplo da admonio1 , com elementos da

carta de consulta, e da carta de recomendao. Agostinho tenta agora dissuadir Jernimo de traduzir as Sagradas

Escrituras a partir do hebraico. Segundo a tipologia de Pseudo-Libnio, distinguimos as situaes da parentica2, do

pedido, e da consulta. A elocutio diplomtica, adequada ao argumentum grave. Dessa vez, no h ornamentos ou

provrbios, apenas a Bblia como objeto a partir do qual, prolato libro, jurado o livro, se extraem os indicia, ou

provas, do problema em questo. Tpicos, h alguns, como a presentificao do correspondente e o elogio (cf. Aug. Ep.

71,1-2;6), mas em menor abundncia que nas duas cartas anteriores de Agostinho. O relato do caso em Oea to

urgente que acaba por no admitir digresses. Aos dois assuntos da presente missiva, o pedido de resposta e a discusso

sobre a Vulgata, segue-se uma concluso breve, em que o fim do assunto anterior coincide com o fim da carta, no

havendo, ento, uma conclusio propriamente dita.

Adotamos, com Hennings e Fry, a data de 402 para essa carta3.

1 Cf. Ps.-Dem. 7.
2 Cf. Ps.-Lib. 5;52.
3 Hennings (1994) p. 39-40; Fry (2010) p. 101-102.

)255
Aug. ep. 71

Domino venerabili et desiderabili sancto fratri et compresbytero Hieronymo Augustinus in


Domino salutem.

1. Ex quo coepi ad te scribere ac tua scripta desiderare, numquam mihi melior occurrit occasio,
quam ut per Dei servum ac ministrum fidelissimum mihique carissimum mea tibi afferretur
epistola, qualis est filius noster Cyprianus diaconus. Per hunc certe ita spero litteras tuas, ut
certius in hoc rerum genere quicquam sperare non possim. Nam nec studium in petendis
rescriptis memorato filio nostro deerit, nec gratia in promerendis, nec diligentia in custodiendis,
nec alacritas in perferendis, nec fides in reddendis; tantum si aliquo modo mereor, adiuvet
Dominus, et adsit cordi tuo et desiderio meo, ut fraternam voluntatem nulla voluntas maior
impediat.
2. Quia ergo duas iam epistolas misi, nullam autem tuam postea recepi, easdem ipsas rursus
mittere volui, credens eas non pervenisse. Quod si et pervenerunt, ac fortasse tuae potius ad me
pervenire minime potuerunt, ea ipsa scripta, quae iam misisti, iterum mitte, si forte servata sunt.
Sin minus, rursus dicta quod legam, dum tamen his respondere ne graveris, quod iam diu est ut
expecto. Primas etiam quas ad te adhuc presbyter litteras praeparaveram mittendas per
quemdam fratrem nostrum Profuturum, qui postea collega nobis factus, iam ex hac vita
migravit, nec eas tunc ipse perferre potuit, quia continuo, dum proficisci disponit, episcopatus
sarcina detentus, ac deinde in brevi defunctus est, etiam nunc mittere volui, ut scias in tua
colloquia quam olim inardescam, et quam vim patiar quod a me tam longe absunt sensus
corporis tui, per quos adire possit ad animum tuum animus meus, mi frater dulcissime, et in
Domini membris honorande.
3. In hac autem epistola hoc addo quod postea didicimus ex Hebraeo Iob a te interpretatum,
cum iam quamdam haberemus interpretationem tuam eiusdem prophetae ex Graeco eloquio
versam in Latinum, ubi tamen asteriscis notasti quae in Hebraeo sunt et in Graeco desunt;
obeliscis autem quae in Graeco inveniuntur et in Hebraeo non sunt, tam mirabili diligentia ut
quibusdam in locis ad verba singula stellas significantes videamus, eadem verba esse in
Hebraeo, in Graeco autem non esse. Porro in hac posteriore interpretatione, quae versa est ex
Hebraeo, non eadem verborum fides occurrit. Nec parum turbat cogitantem, vel cur in illa prima
tanta diligentia figantur asterisci ut minimas etiam particulas orationis indicent deesse codicibus
Graecis, quae sunt in Hebraeis, vel cur in hac altera quae ex Hebraeis est, neglegentius hoc
curatum sit, ut hae eaedem particulae locis suis invenirentur. Aliquid inde exempli gratia volui
)256
Aug. ep. 71
ponere, sed mihi ad horam codex defuit, qui ex Hebraeo est. Verum tamen, quia praevolas
ingenio, non solum quid dixerim, verum etiam quid dicere voluerim, satis, ut opinor, intellegis,
ut causa reddita, quod movet, edisseras.
4. Ego sane te mallem Graecas potius canonicas nobis interpretari Scripturas quae Septuaginta
interpretum perhibentur. Perdurum erit enim, si tua interpretatio per multas ecclesias frequentius
coeperit lectitari, quod a Graecis ecclesiis Latinae ecclesiae dissonabunt, maxime quia facile
contradictor convincitur, Graeco prolato libro, id est linguae notissimae. Quisquis autem in eo
quod ex Hebraeo translatum est, aliquo insolito permotus fuerit, et falsi crimen intenderit, vix
aut numquam ad Hebraea testimonia pervenietur, quibus defendatur obiectum. Quod si etiam
perventum fuerit, tot Latinas et Graecas auctoritates damnari quis ferat? Huc accedit, quia etiam
consulti Hebraei possunt aliud respondere, ut tu solus necessarius videaris, qui etiam ipsos
possis convincere; sed tamen quo iudice, mirum si potueris invenire.
5. Nam quidam frater noster episcopus, cum lectitari instituisset in ecclesia cui praeest,
interpretationem tuam, movit quiddam longe aliter abs te positum apud Ionam prophetam, quam
erat omnium sensibus memoriaeque inveteratum, et tot aetatum successionibus decantatum.
Factus est tantus tumultus in plebe maxime Graecis arguentibus, et inflammantis calumniam
falsitatis, ut cogeretur episcopus (Oea quippe civitas erat) Iudaeorum testimonium flagitare.
Vtrum autem illi imperitia an malitia hoc esse in hebraeis codicibus responderunt, quod et
Graeci et Latini habebant atque dicebant. Quid plura? Coactus est homo velut mendositatem
corrigere, volens post magnum periculum non remanere sine plebe. Vnde etiam nobis videtur,
aliquando te quoque in nonnullis falli potuisse. Et vide hoc quale sit, in eis litteris quae non
possunt collatis usitatarum linguarum testimoniis emendari.
6. Proinde non parvas Deo gratias agimus de opere tuo, quod Evangelium ex Graeco
interpretatus es, quia (et paene in omnibus) nulla offensio est, cum Scripturam Graecam
contulerimus. Vnde si quisquam veteri falsitati contentiosus faverit, prolatis collatisque
codicibus, vel docetur facillime, vel refellitur. Et si quaedam rarissima merito movent, quis tam
durus est qui labori tam utili non facile ignoscat, cui vicem laudis referre non sufficit? Quid tibi
autem videatur, cur in multis aliter se habeat Hebraeorum codicum auctoritas, aliter Graecorum,
quae dicitur Septuaginta, vellem dignareris aperire. Neque enim parvum pondus habet illa, quae
sic meruit diffamari, et qua usos apostolos, non solum res ipsa indicat, sed etiam te attestatum
esse memini. Ac per hoc plurimum profueris, si eam Scripturam Graecam quam Septuaginta
operati sunt, Latinae veritati reddideris, quae in diversis codicibus ita varia est, ut tolerari vix
possit, et ita suspecta, ne in Graeco aliud inveniatur, ut inde aliquid proferre aut probari
)257
Aug. ep. 71
dubitetur. Brevem putabam futuram hanc epistulam: sed nescio quomodo ita mihi dulce factum
est in ea progredi ac si tecum loquerer. Sed obsecro te per Dominum, ne te pigeat ad omnia
respondere et praestare mihi, quantum potueris, praesentiam tuam.

)258
Aug. ep. 71

Agostinho envia saudaes em nome do Senhor ao compresbtero1 Jernimo, senhor


venervel e irmo desejado e santo.

1. Desde que comecei a te escrever e a desejar teus escritos, nunca me ocorreu melhor
oportunidade para fazer minha carta ser levada at ti que por meio de um servo e instrumento
muitssimo fiel de Deus, tambm um amigo muitssimo querido, tal qual o nosso eminente
filho, o dicono Cipriano2 . Por meio dele, espero cartas tuas com tanta certeza que eu no
poderia esperar nada, no atual estado de coisas, com mais certeza. Ora, no faltar, ao nosso
filho mencionado, empenho em requisitar respostas, ou decoro em apress-las, ou zelo para
cuid-las, ou agilidade em traz-las, ou confiabilidade para entreg-las; enfim, se de algum
modo tenho esse mrito, que o Senhor nos ajude, e que esteja entre teu corao e meu desejo
que nenhuma vontade maior venha a impedir a nossa vontade fraterna.
2. J que eu te enviei duas cartas mas no recebi nenhuma tua em troca, eu quis enviar
novamente essas mesmas3, pois acredito que elas no te chegaram. No entanto, se chegaram e
foram talvez antes as tuas que no puderam chegar at mim, envia novamente essas mesmas que
j enviaste, se que tu as guardaste; do contrrio, dita-as novamente para que eu as possa ler, na
condio de que no te sejas um fardo responder a elas, pois j faz tempo que espero isso. No
mais, a primeira destas cartas4 , uma que eu, ento presbtero, preparava para te enviar por meio
de um certo irmo nosso, Profuturo5, que depois tornou-se um companheiro nosso, ele j migrou
desta vida, mas mesmo ento ele no a pde entregar, j que, logo em seguida, enquanto ele se
preparava para partir, foi convocado pelo fardo6 do bispado e, logo depois, faleceu; eu quis
envi-la tambm agora para que saibas o quo ardentemente eu desejo conversar contigo desde
aquela poca, e quo firmemente eu sofro, pois a sensao da tua presena fsica est longe
demais para que minha alma possa se aproximar da tua7 , meu irmo muitssimo gentil e
estimvel entre os membros do Senhor8!
3. Nesta carta, porm, adiciono mais uma coisa: ficamos sabendo que o livro de J9 foi
traduzido do hebraico por ti, ao passo que j tnhamos uma verso tua do mesmo profeta,
traduzida da lngua grega para a latina, na qual tu anotaste com asteriscos as palavras presentes
no hebraico mas que faltam no grego, e tambm anotaste com obeliscos as que so encontradas
no grego mas no no hebraico, e com to admirvel aplicao que em algumas passagens
vemos, para cada palavra, estrelas assinalando os mesmos termos do hebraico que no esto no
texto grego10. Ora, nessa nova verso, traduzida a partir do hebraico, no ocorre a mesma f
)259
Aug. ep. 71
para com as palavras. No pouca a confuso que surge a quem questiona o porqu de os
asteriscos terem sido aplicados com tanta diligncia naquela primeira verso, a ponto de indicar
at as mnimas partes do discurso que esto ausentes nos cdices gregos (mas que esto
presentes nos hebraicos), e o porqu de o trabalho, nessa segunda edio a partir do hebraico, ter
sido algo desleixado, tanto que essas mesmas partculas dificilmente se encontram nos mesmos
lugares. Eu quis citar algo dessa verso como exemplo, mas no momento no tenho em mos o
cdice com a traduo do hebraico. Em todo caso, j que enxergas longe com teu talento,
acredito que j compreendes bem no s o que eu disse mas tambm o que eu quis dizer, de
modo que, aberta a causa11, poders esclarecer o que me incomoda.
4. Certo, eu preferiria que tu antes traduzisses para ns as Escrituras gregas estabelecidas como
cannicas12, as quais seguem a tradio da Septuaginta. Ora, ser bastante prejudicial se em
muitas igrejas comearem a introduzir tua traduo com mais frequncia, j que as missas
latinas entraro em dissonncia com as gregas, sobretudo porque, jurado o livro, fcil vencer
qualquer contestador; trata-se da lngua mais conhecida. Quem quer que, porm, nessa traduo
a partir do hebraico, vier a se revoltar com algo estranho e apontar um crime de falsificao, ele
dificilmente (ou talvez nunca) consultar os testemunhos hebraicos a fim de defender a
acusao. E se isso vier a acontecer, quem ter a coragem de condenar tantas autoridades latinas
e gregas? A isso adicione-se que at os especialistas hebreus13 podem responder outra coisa, de
modo que tu parecerias ser o nico que ainda poderia convenc-los, mas perante qual juiz, eu
me espantaria se pudesses encontrar algum.
5. Agora, um certo irmo nosso, um bispo14, tendo decidido introduzir tua traduo na igreja a
seu cargo, acabou por citar algo colocado por ti, no livro de Jonas15, que destoava
profundamente do que se habituou tanto nos espritos e na memria de todos quanto do que se
repetiu por sucessivas geraes. Fez-se to grande tumulto na assembleia (em especial entre os
gregos que, revoltosos e aos berros, acusavam-no de fraude e falsificao)16 que o bispo (isso se
deu na cidade de Oea)17 se viu obrigado a solicitar a opinio dos judeus. Se foi por
incompetncia ou malcia, enfim, esses responderam que nos cdices hebraicos se encontrava a
mesma palavra que estava nos cdices gregos e latinos. Que mais? O homem, no querendo
perder sua assembleia aps essa situao perigosssima, foi coagido a consertar isso como se
fosse uma mentira. A partir da, at a ns parece que tu pudeste, alguma vez, ter te enganado em
algumas passagens, e veja que tipo de coisa h nesses escritos que no poderia ser corrigida ao
confront-la com os testemunhos das lnguas mais utilizadas.

)260
Aug. ep. 71
6. por isso que no pouca nossa gratido a Deus por tua dedicao em traduzir o Evangelho
a partir do grego, j que, e quase em todo texto, no h nada que seja ofensivo quando o
comparamos com as Escrituras gregas. A partir da, se algum, malicioso, vier a tomar partido
de uma velha falsidade18, ser fcil, jurando e confrontando-lhe os cdices, ensin-lo e refut-
lo. E se algumas passagens muito raramente de fato causarem m impresso, quem seria to
inflexvel de no perdoar facilmente um trabalho to til, ao qual nunca basta render as glrias
merecidas? Mas a razo pela qual te parece, em tantas passagens, que a autoridade dos cdices
hebraicos seguem um sentido, e os gregos, que chamamos de Septuaginta, outro, isso eu
gostaria que tivesses a boa-vontade de me esclarecer. Ora, a autoridade da verso grega, que
merecidamente conhecida, no tem pouco peso: ela foi usada pelos apstolos, coisa que no s
o prprio texto j indica, como tu tambm, lembro-me, o atestaste19. E neste ofcio tu sers
ainda mais til se adequares aquele texto grego, no qual os setenta tradutores trabalharam,
verdade latina20, uma vez que nossas verses so to dspares, to espalhadas em diversos
cdices21 (o que mal se pode tolerar), e to suspeitas que hesitamos, com receio de
encontrarmos algo diferente no grego, em mostrar ou demonstrar algo a partir delas22 . Eu pensei
que esta carta seria breve, mas no sei como ela se tornou to agradvel para mim que me
estendi nela como se falasse contigo23. Enfim, eu te imploro, em nome do Senhor, no te
aborreas em responder a tudo e me oferece, na medida do possvel, tua presena24 .

)261
Aug. ep. 71
NOTAS

1 Compresbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.


2 Cipriano, ento presbtero, dicono em 404 (cf. Aug. Ep. 73,1), e finalmente bispo em 405 (cf. Aug. Ep. 82,30).
difcil precisar maiores detalhes sobre sua vida, uma vez que era homnimo de outro Cipriano, ento bispo de Cartago
(no o santo, morto em 258), mas no devem se tratar da mesma pessoa. Cipriano presbtero, cf. PCBE 1 p. 257-258
Cyprianus 3-4; LThK II p. 1363-1364; NDPAC p. 1036; v. Frst (2002) p. 19, n. 15. Para o ttulo de diaconus, v. supra
Hier. Ep. 102, n. 2. V. tambm Kelly (1975) p. 266-269
3 Sabemos ao certo que uma dessas duas cartas era Aug. Ep. 28, j que Agostinho a menciona em seguida como primae
quae litterae, a primeira destas cartas. Muito provavelmente, a outra carta Aug. Ep. 40, uma vez que Jernimo
certamente j havia lido Aug. Ep. 67 ao enviar Hier. Ep. 102 (que, no entanto, Agostinho ainda no recebera) e
improvvel que ele chamasse esta carta de liber, livrinho, ao sinalizar que recebera Aug. Ep. 71 em Hier. Ep. 112,1.
Fry (2010) p. 108, n. 9 pensa tratarem-se de Aug. Ep. 28 e 40 ou 67; j Hennings (1994) p. 39, Frst (1999) p. 103 e id.
(2002) p. 20, n. 16 propem serem Aug. Ep. 28 e Aug. Ep. 67 ou Aug. Ep. C.
4 Isto , Aug. Ep. 28.
5 Profuturo, v. supra Aug. Ep. 28, n. 9.
6 No latim, a sarcina era uma mala grande, maior que a mantica (v. supra Hier. Ep. 102, n. 14), na qual os soldados
carregavam suas provises (cf. Caes. B. G. 1,24; Liv. 44,38). A metfora militar provavelmente faz parte da linguagem
popular dos romanos desde os tempos de Ccero, certamente j comum nos tempos de Agostinho (cf. Aug. Ep. 85,2; 86
episcopalem sarcinam Hippone sustineo, carrego em Hipona o fardo episcopal; 122,1); v. Brown (2013) p. 188.
Optamos por fardo, como uma rotina rgida e austera, sentido da palavra na passagem acima, e cuja sonoridade
semelhante farda militar. Ademais, traduzimos detentus por convocado usando a mesma linha de raciocnio. V.
Blaise p. 739 sarcina; Jourjon (1955) para uma reflexo do uso que Agostinho faz do termo em vrias obras.
7Para questes relativas ao sensus corporis e possibilidade de conhecer a alma atravs de uma carta (a ), v. a
breve discusso sobre os tpicos das cartas na introduo e supra Aug. Ep. 28, n. 7. Agostinho retomar a mesma ideia
em Aug. Ep. 166,1.
8A quase repetio da salutatio aqui serve para estreitar os laos de amizade entre os correspondentes; v. Divjak (1984)
p. 289.
9 Trata-se de uma outra traduo do livro de J feita por Jernimo, publicado ca. 393, agora a partir do original hebraico
(v. supra Aug. Ep. 28, n. 14) e no do grego da Hxapla.
10 Nesta passagem, Agostinho menciona o trabalho de crtica textual empreendido por Jernimo ao preparar sua verso
latina do livro de J a partir de Septuaginta. O Estridonense foi um precursor da filologia, tendo empregado, em seus
comentrios, tradues e revises, sinais diacrticos puncta em latim j de tradio grega e originalmente prprios
da atividade taquigrfica (cf. Hier. Ep. 57; 60,19; 61,2; 84,7; 106,7; 134,2; Vulg. Pent. praef.). Aqui, Agostinho fala de
asterisci [], ou stellae (originrio do grego ), assinalando o verbo latino significare as lacunas no texto
grego, e obelisci (do grego ) ou veru [], as adies que no esto no original hebraico. Adiante, Jernimo
falar, em Hier. Ep. 112,19, novamente dos sinais: asteriscos, virgulae [|], pequenas vigas ou bastezinhos, e obeliscos
novamente, que utilizou ao corrigir a traduo da Septuaginta. O leitor encontrar estudo mais aprofundado desta
sinalizao em Clemens & Graham (2007) p. 82-93; Reynolds & Wilson (2014) p. 32-39. Hennings (1994) p. 175-176 e
Frst (2002) p. 52-54 para uma sntese.
11 Causa reddita, v. supra Aug. Ep. 28, n. 20. Em Aug. Ep. 28,2, o verbo era exponere, agora reddere. Frst (2002) p.
162, n. 175 v a um parentesco com rationem reddere em Cic. Off. 1,8;1,101, que faz sentido ora, faz parte do
officium cristo assegurar a verdade mas no vemos como concluir que se trataria aqui de uma argumentao
dialtica, como acredita o tradutor alemo. A causa antes de tudo o processo jurdico.
12 Para o adjetivo canonicus, v. supra Aug. Ep. 28, n. 13.
13O termo consultus em consulti Hebraei deve ser entendido em seu sentido tcnico, a partir da raiz no vocbulo latino
de foro jurdico iurisconsultus, o especialista em justia, o conhecedor da lei, que era o advogado romano. Portanto,
especialistas hebreus ou especialistas no hebraico.
14 No sabemos quem o bispo a quem Agostinho se refere.

)262
Aug. ep. 71

15Agostinho faz meno a uma traduo de Jernimo ao livro do profeta Jonas, mas possvel que tivesse tambm em
mente o livro de comentrios sobre o profeta Jonas, o Commentariorum in Ionam prophetam liber unus [PL
1117-1152b], finalizado ca. 391-392 e publicado por Jernimo em idos de 396. A passagem em questo est em Jon 4:6,
e dar na notria discusso sobre a aboboreira em Hier. Ep. 112,21-22 e Aug. Ep. 82,35.
16No latim, calumnia falsitatis como objeto de arguentibus; arguo, acusar, termo da linguagem jurdica romana, e o
objeto alude a um dos crimes passveis de punio no direito romano, o crimen falsi, referido no pargrafo anterior,
prximo de nosso crime de falsidade ideolgica; v. Fry (2010) p. 112, n. 31. Traduzimos como crime de falsificao.
Visto que o uso de calumnia serve para atenuar uma acusao que Agostinho no quer endossar completamente,
preferimos fraude calnia.
17 Oea, atual Trpoli, segunda maior cidade do Lbia; v. Frst (2002) p. 164, n. 180. Alguns manuscritos variam em ea
civitas, aquela cidade.
18No latim, veteri falsitati favere, favorecer, promover" ou tomar o partido de uma velha falsidade, sendo faveo
verbo de cunho jurdico. Expresso que alude no s escolha errtica de Jernimo em sua traduo do livro de J, mas
tambm ao officiosum mendacium de Paulo nas cartas anteriores, v. supra Aug. Ep. 28, n. 25.
19Jernimo trata brevemente desse assunto, de que a Septuaginta fora utilizada pelos apstolos na redao do Novo
Testamento, em suas diversas introdues aos Evangelhos, na Vulgata; v. Frst (2002) p. 166, n. 186.
20 Veritas latina, verdade, ou um mais fraco verso latina Frst traduz Latinae veritati reddere, adequar
verdade latina, simplesmente como in das Lateinische bersetzen. O leitor atento j ter percebido a nfase que
Agostinho d ideia de veritas em suas cartas; neste caso, a metonmia caracterizante de uma concepo de verdade
encerrada pela lngua (cf. Hier. Quaest. Hebr. in gen. praef.). V. Hennings (1994) p. 110-121; Frst (1999) p. 139-145;
id. (2002) p. 51-60, esp. n. 137 nas p. 53-54.
21 O codex designa o livro em forma material semelhante ao que concebemos hoje, com lombada e folhas, diferente do
volumen, que originalmente era o pergaminho, o rolo de papiro. Ao que parece, o codex surge como alternativa barata
ao volumen, e foi usado sobretudo pelos cristos a partir do sculo I d. C.; j na Antiguidade Tardia, ele se torna termo
sinonmico de liber, vindo a lhe substituir. Arns (2007) p. 103-106 nota que, na obra de Jernimo, o codex aparece
mormente como referncia s Sagradas Escrituras, tanto as sacrae litterae quanto os divini codices (cf. Hier. Ep. 20,2-4;
29,1; 106,63; 107,12), cabendo supor que os cristos utilizaram esse suporte em vista de distinguirem a prpria
materialidade de seus escritos dos volumina usados pelos pagos. O codex j apareceu antes em Aug. Ep. 28,2; 71,3.
22 Que as tradues das Sagradas Escrituras nas diversas verses da Vetus Latina, a antiga coleo de tradues latinas
da Septuaginta, so dspares e suspeitas, que in diversis codicibus ita varia [latina veritas] est, que [a verdade latina]
to espalhada em diversos cdices, eis um juzo que Agostinho repete no De doctrina christiana: latinorum
interpretum infinita varietas, a disparidade inumervel de intrpretes latinos (cf. Aug. Doctr. Christ. 2,11) e Jernimo
tambm no prefcio aos Evangelhos, tot enim sunt exemplaria paene quot codices, ora, h quase tantos cdices quanto
exemplares (cf. Hier. Vulg. Evang. praef.). Jernimo afirmara desde o incio de sua atividade que seu objetivo, ao
coligi-los, era corrigir quaisquer erros, isto , quaisquer desvios do texto original hebraico que estivessem nas verses
latinas, nem que eles fossem tradues fiis da Septuaginta (cf. Hier. Ep. 27,1 e 71,5). V. Labourt 1963 vol. I, p.
XXVIII-XXIX; Arns (2007) p. 103-104; Pinto (2013) p. 333-334.
23 A afirmao
de que a conversa foi to aprazvel a ponto de ultrapassar o tamanho mais adequado a uma carta tpica,
como discutimos na introduo.
24 Tpico da , como discutimos no item Tpicos da carta na introduo.

)263
9

CARTA PERDIDA
Agostinho Ep. C
[403]

De Bruyne e Frst1 defendem que as reclamaes de Jernimo em Hier. Ep. 105 deixam entrever mais uma

carta perdida, hiptese contestada por Hennings e relativizada por Fry2 . As cartas frequentes que Jernimo menciona

em Ep. 105,1 podem bem ser trs cartas anteriores de Agostinho, a saber, Aug. Ep. 28, 40 e 67 (e, ainda, cpias duplas

de Aug. Ep. 28 e Aug. Ep. 40, totalizando cinco cartas, levadas supostamente pelo dicono Cipriano, a quem foram

confiadas, como o prprio Tagastense afirmara em Aug. Ep. 71,1 anteriormente).

possvel que entre tais cartas tambm esteja inclusa Aug. Ep. 71, pois Jernimo sinalizar apenas em Hier.

Ep. 112, enviada um ano depois, que recebera os trs livrinhos de Agostinho, isto , Aug. Ep. 28, 40 e 71 (cf. Hier.

Ep. 112,1). Contudo, esta hiptese bastante improvvel, pois na presente carta Jernimo no aborda a discusso da

traduo das Escrituras, tema principal de Aug. Ep. 71.

Ao lado de Fry, consideraremos essa carta perdida meramente hipottica, portanto.

Frequentes so as cartas que me mandas e com frequncia tu insistes que eu responda uma
em especfico [...] [cartas] que, tu ds a entender, enviaste primeiro pelo irmo Profuturo, e depois
por algum outro [...]
(Hier. Ep. 105,1)

1De Bruyne (1932) p. 238-239; Frst (1999) p. 98-101, whrenddessen hat Hieronymus bald darauf einen weiteren
Brief von Augustinus erhalten, der verlorengegangen ist, jedoch aufgrund verschiedener Indizien zwingend postuliert
werden mu (citao na p. 98); id. (2002) p. 18-19.
2Hennings (1994) p. 40-41, die These, da Augustinus in dieser Phase des Briefwechsels einen weiteren Brief allein
mit dieser mageren Botschaft geschickt hat, ist nicht berzeugend. Es drfte sich vielmehr darum handeln, da
Hieronymus dem Boten ironisch bergroe Furchtsamkeit unterstellt; Fry (2010) p. 115.

)264
10

Jernimo Ep. 105 / Agostinho Ep. 72


[403]

O primeiro perodo de correspondncia entre Agostinho e Jernimo se desenrola numa sucesso de

desencontros cartas atrasadas, perdidas e reencontradas, recebidas tardiamente ou incompletas , e em

descompassos de tom. A Agostinho, no incio, parece ter faltado tato ao se dirigir a Jernimo; a pacincia do

Estridonense, por sua vez, parece ter se esgotado com os insistentes pedidos para que ele lhe respondesse. No por

menos que Jernimo reclama da insistncia do bispo de Hipona em lhe enviar cartas no incio do texto que agora

leremos, Hier. Ep. 105, missiva escrita no ano de 403 ou 4041e enviada provavelmente por meio do dicono Cipriano2 .

No sabemos quantas e quais cartas enviadas por Agostinho Jernimo havia recebido de fato at ento. Vimos

na introduo a Hier. Ep. 102 que o Estridonense havia aparentemente lido somente uma verso sem assinatura de Aug.

Ep. 40 e Aug. Ep. 67. possvel conjecturar que o monge, dada sua clara irritao, teria agora tomado cpias duplas de

algumas cartas anteriores as cartas Aug. Ep. 28, 40, 67 e talvez j a 713 tanto atravs do dicono Sisnio, que teria

encontrado Aug. Ep. 40 em uma ilha do Adritico, como em mos de outro mensageiro a quem o Estridonense alude,

talvez Paulo, conforme Agostinho havia sinalizado nas linhas finais de Aug. Ep. 40, ou o dicono Astrio, que ficara a

cargo de entregar Aug. Ep. 67. Podemos entrever ainda uma carta hipottica, Aug. Ep. C, como faz De Bruyne4 .

No incio de Hier. Ep. 105, aps uma rida salutatio, Jernimo faz comentrios e queixas pelas falhas de

comunicao da correspondncia, as quais atribui ao desleixo de Agostinho (cf. Hier. Ep. 105,1). Ainda que a escrita de

cartas estivesse, naquela poca, sujeita a tais contratempos e incertezas de idas e vindas, Jernimo atribui ao alvoroo

(ou atrevimento) do Tagastense toda a confuso que se produziu. Afinal, cinco anos haviam se passado, e todos na Itlia

j conheciam o que se discutia nas cartas de Agostinho a Jernimo, antes que o Estridonense, a quem unicamente as

cartas de Agostinho foram enviadas, tivesse as lido.

A narratio ento procede algo violentamente. A imagem que Jernimo desenha de Agostinho a de um homem

dominado pela ambio juvenil, que tira concluses precipitadas, que passa por cima das leis da amizade, e d a

entender que sua insistncia na disputa acerca da passagem em Gal 2:11-14 seria antes uma maneira de buscar a fama

do que uma via para chegar a uma soluo verdadeira quanto ao problema (cf. Hier. Ep. 105,2). O monge de Belm,

sutil e minaz, repreende duramente seu interlocutor: ao longo da carta, ele parece se comparar ao velho e experiente

general romano, ao passo que v, em seu interlocutor, um Anbal o general cartaginense que foi derrotado pelo

paciente Fbio Cunctator durante as Guerras Pnicas jovem e dominado pela ansiedade. Jernimo, recusando-se a

batalhar novamente no campo das Escrituras (cf. Hier. Ep. 102,2), espera vencer Agostinho pelo cansao. A censura

)265
do Estridonense a seu interlocutor se direciona para as atitudes do bispo de Hipona, que, para o monge, ofenderam a

amizade e as leis da cordialidade (necessitudinis iura, em latim) (cf. Hier. Ep. 105,4). Ecoando a repreenso enviada j

dois anos antes, em Hier. Ep. 102, de que o Tagastense estaria em busca da fama s custas de ofender homens ilustres, e

esquivando-se novamente do cerne da questo a discusso de Gal 2:11-14 est novamente ausente , a mensagem

ser, pela terceira e ltima vez, reiterada: a concluso de Agostinho foi apressada, sua correo idem, e o Estridonense

no vai perder tempo refutando argumentos que seriam, a seus olhos, vazios, ou, mais grave ainda, herticos. Leia-se

aqui uma ameaa implcita: Agostinho arrisca ser vtima de uma polmica autorada pelo temido Jernimo.

Segundo a diviso de Pseudo-Demtrio, esta carta seria um exemplo da carta de censura5 , com elementos da

ameaa, da admonio, e da ironia. Segundo a tipologia de Pseudo-Libnio, distinguimos as situaes da censura6, da

ironia, da ameaa, da condescendncia, da contra-acusao, do insulto, e da ira. Trata-se de uma ocasio em que

Jernimo, um autor de autoridade e reputao conhecidas, repreende uma vez mais o jovem Agostinho, recm-eleito

bispo de Hipona. A elocuo dessa carta semelhante Hier. Ep. 102, mas mais elaborada que a anterior. H duas

citaes, uma de Virglio e uma da Bblia, assim como aluso a um episdio da histria romana, das Guerras Pnicas, e

um provrbio, espada lambuzada de mel, que como Jernimo caracteriza o livro de um Agostinho que, para ele,

procurava feri-lo enquanto o bajulava. Outrossim, o tom minaz reforado pelo vocabulrio militar ostentare,

exercere, miles, veteranus, dimicare, comminus to presente nas cartas de Jernimo no primeiro perodo de sua

correspondncia com Agostinho.

1 Hennings (1994) p. 40-41 e Fry (2010) p. 117-118.


2 Conforme sinalizado por Agostinho em Aug. Ep. 82,36.
3 Improvvel, pois esta no toca no assunto de Aug. Ep. 71. Frst (1999) p. 98 aqui sentencioso: Epistula 105 als
Antwort auf Epistula 71, nherhin epist. 105,1 als Reaktion auf epist. 71,2 zu lesen, ist das in der
relativen Chronologie dieses Korrespondenz.
4 De Bruyne (1932) p. 238-239.
5 Cf. Ps.-Dem. 6.
6 Cf. Ps.-Lib. 34;81.

)266
Hier. ep. 105

Domino vere sancto et beatissimo papae Augustino Hieronymus.

1. Crebras ad me epistulas dirigis, et saepe compellis ut respondeam cuidam epistulae tuae,


cuius ad me, ut ante iam scripsi, per Sisinnium diaconum exemplaria pervenerant absque
subscriptione tua, et quae primum per fratrem Profuturum, secundo per quemdam alium te
misisse significas; et interim Profuturum retractum de itinere, et episcopum constitutum, veloci
morte subtractum; illum cuius nomen retices, maris timuisse discrimina, et navigationis mutasse
consilium. Quae cum ita sint, satis mirari nequeo quomodo ipsa epistola et Romae et in Italia
haberi a plerisque dicatur, et ad me solum non pervenerit, cui soli missa est; praesertim cum
idem frater Sisinnius inter ceteros tractatus tuos dixerit eam se non in Africa, non apud te, sed in
insula Hadriae, ante hoc ferme quinquennium reperisse.
2. De amicitia omnis tollenda suspicio est, et sic eum amico, quasi cum altero se, est
loquendum. Nonnulli familiares mei et vasa Christi, quorum Hierosolymis et in sanctis locis
permagna copia est, suggerebant non simplici a te animo factum sed laudem atque rumusculos
et gloriolam populi requirente, ut de nobis cresceres; ut multi cognoscerent te provocare, me
timere; te scribere ut doctum, me tacere ut imperitum; et tandem reperisse qui garrulitati meae
modum imponeret. Ego autem ut simpliciter fatear dignationi tuae, primum idcirco respondere
nolui, quia tuam liquido epistulam non credebam, nec (ut vulgi de quibusdam proverbium est)
litum melle gladium. Deinde illud cavebam, ne episcopo communionis meae viderer procaciter
respondere; et aliqua in reprehendentis epistula reprehendere, praesertim cum quaedam in illa
haeretica iudicarem.
3. Ad extremum, ne tu iure expostulares, et diceres: Quid enim? Epistulam meam videras, et
notae tibi manus in subscriptione signa deprehenderas, ut tam facile amicum laederes, et alterius
malitiam in meam verteres contumeliam? Igitur ut ante iam scripsi, aut mitte eandem epistulam
tua subscriptam manu, aut senem latitantem in cellula lacessere desine. Sin autem tuam vis
ostentare vel exercere doctrinam, quaere iuvenes et disertos et nobiles, quorum Romae dicuntur
esse quam plurimi, qui possint et audeant tecum congredi, et in disputatione sanctarum
Scripturarum iugum cum episcopo ducere. Ego quondam miles, nunc veteranus, et tuas et
aliorum debeo laudare victorias, non ipse rursus effeto corpore dimicare; ne si me frequenter ad
rescribendum impuleris, illius recorder historiae, quod Hannibalem iuveniliter exultantem, Q.
Maximus patientia sua fregerit.

)267
Hier. ep. 105

Omnia fert aetas, animum quoque. Saepe ego longo


Cantando puerum memini me condere soles:
Nunc oblita mihi tot carmina; vox quoque Moerim
Iam fugit.

Et (ut magis de Scripturis sanctis loquar) Berzellai ille Galaadites, regis David beneficia
omnesque delicias iuveni delegans filio, ostendit senectutem haec appetere non debere, nec oblata
suscipere.
4. Quod autem iuras te adversum me librum non scripsisse, neque Romam misisse quem non
scripseris; sed si forte aliqua in tuis scriptis reperiantur quae a meo sensu discrepent, non me a
te laesum, sed a te scriptum quod tibi rectum videbatur; quaeso ut me patienter audias. Non
scripsisti librum, et quomodo mihi reprehensionis a te meae per alios scripta delata sunt? Cur
habet Italia quod tu non scripsisti? Qua ratione poscis ut rescribam ad ea quae scripsisse te
denegas? Nec tam hebes sum ut, si diversa senseris, me laesum putem. Sed si mea cominus
dicta reprehendas, et rationem scriptorum expetas, et quae scripserim emendare compellas, et ad
provoces, et oculos mihi reddas, in hoc laeditur amicitia, in hoc necessitudinis iura
violantur. Ne videamur certare pueriliter et fautoribus invicem vel detractoribus nostris tribuere
materiam contendendi, haec scribo, quia te pure et christiane diligere cupio, nec quicquam in
mea mente retinere quod distet a labiis. Non enim convenit, ut ab adolescentia usque ad hanc
aetatem in monasteriolo cum sanctis fratribus labore desudans, aliquid contra episcopum
communionis meae scribere audeam, et eum episcopum quem ante coepi amare quam nosse; qui
me prior ad amicitiam provocavit; quem post me orientem in Scripturarum eruditione laetatus
sum. Igitur aut tuum negato librum, si forte non tuus est, et desine flagitare rescriptum ad ea
quae non scripsisti; aut si tuus est, ingenue confitere, ut si in defensionem mei aliqua scripsero,
in te culpa sit qui provocasti, non in me, qui respondere compulsus sum.
5. Addis praeterea te paratum esse ut, si quid me in tuis scriptis moverit aut corrigere voluero,
fraterne accipias, et non solum mea in te benevolentia gavisurum, sed ut hoc ipsum faciam,
deprecaris. Rursum dico quod sentio: provocas senem, tacentem stimulas, videris iactare
doctrinam. Non est autem aetatis meae putari malevolum erga eum cui magis favere debeo. Et si
in Evangeliis ac Prophetis perversi homines inveniunt quod nitantur reprehendere, miraris si in
tuis libris, et maxime in Scripturarum expositione, quae vel oscurissimae sunt, quaedam a recti
linea discrepare videantur? Et hoc dico, non quod in operibus tuis quaedam reprehendenda iam
censeam. Neque enim lectioni eorum umquam operam dedi, nec horum exemplariorum apud
)268
Hier. ep. 105
nos copia est, praeter Soliloquiorum tuorum libros, et quosdam commentariolos in Psalmos,
quos si vellem discutere, non dicam a me, qui nihil sum, sed a veterum Graecorum docerem
interpretationibus discrepare. Vale, mi amice, carissime, aetate fili, dignitate parens; et hoc a me
rogatus observa, ut quicquid mihi scripseris, ad me primum facias pervenire.

)269
Hier. ep. 105

Jernimo ao padre1 Agostinho, senhor verdadeiramente santo e muitssimo abenoado.

1. Frequentes so as cartas2 que me mandas, e com frequncia tu insistes que eu responda uma
carta tua em especfico, cuja cpia, como j escrevi anteriormente3, chegou a mim por meio do
dicono Sisnio4, e sem a subscrio5, cujas cpias, tu ds a entender, tu enviaste primeiro pelo
irmo Profuturo, e depois por algum outro, e que, nesse meio tempo, Profuturo teria mudado de
caminho e, tendo se tornado bispo, teria sucumbido a uma morte repentina6 ; e que aquele cujo
nome tu omites7 mudou de planos porque temia os perigos do mar8 . Sendo assim, no posso
deixar de me perguntar como que tantos dizem que essa carta, precisamente, circula tanto em
Roma quanto na Itlia, e foi unicamente a mim que ela no chegou, a quem unicamente ela foi
enviada, ainda mais agora que o mesmo irmo Sisnio diz t-la encontrado entre outros tratados
teus9 no na frica, no contigo, mas em uma ilha do Adritico10, h quase cinco anos!
2. Da amizade deve-se eliminar qualquer suspeita e, assim, deve-se conversar com um amigo
como com um outro de si11. Alguns amigos ntimos meus, recipientes de Cristo, dentre os quais
uma enorme quantidade se encontra Jerusalm e em outros lugares santos, puseram-se a sugerir
que tu no agiste motivado por simplicidade12, mas por procurares cair nos braos, na boca e na
bajulao do povo, a fim de cresceres s nossas custas, para que muitos fiquem com a impresso
de que tu provocas, enquanto eu me apavoro; que tu escreves com ares de mestre, enquanto eu,
ignorante, me calo; que eu finalmente encontrei algum que impusesse um termo a minha
matraca13. Mas eu, quanto a mim, para me expressar com franqueza e dignidade, confesso que
no quis responder tua dignidade num primeiro momento precisamente porque eu no tinha
certeza absoluta de que a carta era tua; ou se era (como diz o provrbio popular sobre alguns
homens) uma espada lambuzada de mel14; ento eu me esforcei para ter o cuidado de no dar
a impresso de responder de maneira abusiva a um bispo da minha comunho, nem de
repreender alguma coisa numa carta de algum que me repreendia, sobretudo porque julgasse
haver nela algumas passagens herticas15.
3. Por ltimo, para que tu no reclamasses com direito16 ou viesses a dizer, como assim? Tu
havias visto minha carta, tu identificaste minha letra na subscrio escrita mo, e mesmo
assim me elogias como um amigo com a mesma facilidade que me infliges a malcia de outro,
como se ela fosse afronta minha?17 Portanto, como j escrevi antes18, ou manda a mim a
mesma carta assinada a mo, ou deixa de importunar um velho que vive isolado em sua cela!
Agora, se queres bradar ou exercitar tua doutrina19, procura jovens estudados e nobres (dizem
)270
Hier. ep. 105
que eles esto espalhados nas ruas de Roma) que possam e ousem lutar contra ti e at, na
discusso das Sagradas Escrituras, prender o jugo com o bispo20. Outrora eu fui soldado; hoje,
veterano, meu dever louvar as tuas vitrias e as de outros, no batalhar novamente com este
corpo exausto21 , para no ter de recordar se tu me importunares tanto para que eu te escreva
de volta daquele episdio da histria em que Quinto Mximo, com a sua pacincia, destruiu
Anbal que comemorava como uma criana22,

Tudo, a prpria memria, os anos tiram!


Da aurora ao posto sol cantava em moo;
esqueo hoje a cantiga, a voz me falha.23

E (para falar antes das santas Escrituras) Barzilai, o Gileadita, deixando os bens e todas as
riquezas do rei David a seu jovem filho, mostrou que a velhice no deve ansiar tais coisas nem
aceit-las se lhe forem oferecidas24.
4. Quanto ao fato, porm, de jurares que no escreveste contra mim um livro25 e que no
enviaste a Roma esse livro que no escreveste, mas, se por acaso for encontrado algo em teus
escritos que destoem daquilo que penso, que a, julgavas, tu no quiseste me ofender, mas
escreveste o que te parecia correto; peo por favor que me escutes com pacincia. No
escreveste livro algum. E como me foram relatados, por outras pessoas, textos em que eu sou
repreendido por ti? Por que a Itlia tem algo que tu no escreveste? Por qual motivo me pedes
para responder algo que tu negas veementemente que escreveste? No sou to obtuso a ponto de
me sentir ofendido, caso tu tenhas outra opinio! Mas, se tu repreendes minhas palavras no
mano-a-mano26 , e exiges uma explicao dos meus textos, e me compeles a corrigir o que
escrevi, e me desafias a cantar a ,27 e devolves a mim os olhos; a golpeia-se a
amizade, a so violadas as leis da cordialidade28! Que ns no pareamos brigar como crianas
e dar, tanto aos nossos defensores quanto aos nossos detratores, matria para contenda; escrevo
isso porque desejo te amar de maneira pura e crist e no quero guardar na cabea qualquer
coisa que esteja na borda dos lbios. Ora, no convm a algum que se exaure de trabalhar,
desde a juventude29 at hoje, num monasteriozinho com seus santos irmos, a ousadia de
escrever algo contra um bispo de minha comunho, e ainda mais esse bispo que eu comecei a
amar antes mesmo de conhecer, que me provocou ao pedir minha amizade, que me deixou
alegre por ter me seguido no estudo das Escrituras. Portanto, ou nega de uma vez por todas o
livro, se porventura ele no for teu, e deixa de insistir numa resposta a algo que no escreveste;
ou, se for teu, tem a humildade de confess-lo para que assim, se eu vier a escrever alguma
)271
Hier. ep. 105
coisa em minha defesa, que a culpa recaia sobre ti, que me provocaste, e no em mim, que fui
constrangido a te responder.
5. Alm disso, tu acrescentas que ests preparado, caso haja algo em teus escritos que me cause
m impresso e que eu queira corrigir, para aceit-lo de modo fraternal, havendo no s de ficar
feliz com a minha boa-vontade para contigo, mas tu chegas at a suplicar para que eu o faa30 .
Digo novamente o que penso: tu provocas um velho, tu mexes com quem est quieto, tu pareces
bradar tua erudio. Por outro lado, no cabe a um homem de minha idade a reputao de querer
mal quele que eu devo antes favorecer. E, se mesmo nos Evangelhos e nos profetas homens
perversos tambm encontram passagens que se esforam em repreender, tu admiras que, em
teus livros, e sobretudo em tua exposio das Escrituras (at mesmo nas mais obscuras), possa
haver algo que destoe da retido31? E digo isso no porque j tenha encontrado em tuas obras
algo a ser repreendido; eu nem tive ocasio de me dedicar leitura delas, e no temos nossa
disposio muitos exemplares, salvo dos teus Solilquios32 e de alguns comentariozinhos sobre
os Salmos33 que, se eu quisesse contestar, mostraria e demonstraria que destoam no de mim,
que no sou ningum, mas das interpretaes dos patriarcas. Fica bem, meu amigo, muito
querido, meu filho em idade e pai em dignidade, e atende a este meu pedido: tudo que vieres a
me escrever, cuida para que chegue primeiro a mim.

)272
Hier. ep. 105
NOTAS

1 Papa, v. supra Hier. Ep. 102, n. 1.


2 Quais? Provavelmente Aug. Ep. 28, 40, 67; talvez tambm 71, mas Jernimo s diz abertamente ter recebido esta,
acompanhada de Aug. Ep. 28 e 40, anos mais tarde, em Hier. Ep. 112,1, o que torna esta possibilidade improvvel. De
Bruyne (1932), Hennings (1994) e Frst (2002) entrevm uma carta perdida, Aug. Ep. C.
3Conforme Jernimo responde em Hier. Ep. 102,1. Trata-se ou de Aug. Ep. 28 ou de Aug. Ep. 40; Jernimo parece
confundir as duas.
4 Sisnio, v. supra Hier. Ep. 102, n. 6; hypodiaconus, supra Hier. Ep. 102, n. 2.
5 subscriptio, v. supra Aug. Ep. 40, n. 2.
6 Profuturo, v. supra Aug. Ep. 28, n. 9; cf. Aug. Ep. 71,2.
7 Agostinho havia mencionado um Paulo nas linhas finais de Aug. Ep. 40,9. A reticncia de Jernimo sobre este outro
se deixa esclarecer pelo fato de a subscriptio de Aug. Ep. 40 ter se perdido, conforme o autor indicara em Hier. Ep.
102,1. V. Frst (2002) p. 148, n. 131.
8Para os antigos, o mar representava a fronteira final, o no-espao do desconhecido e de perigos, onde o homem est
sujeito s foras da natureza e do capricho dos deuses; v. Brown (2013) p. 464-465. Os discrimina maris, perigos do
mar, faz aluso, no caso, queles do Mediterrneo, o mare nostrum dos romanos.
9No podemos especificar quais seriam estes tractatus; possvel que formem um simples conjunto de outras cartas de
Agostinho, ou poderiam ser, antes, o conjunto dos solilquios e dos comentrios aos Salmos feitos pelo autor, pois
Jernimo vai mencion-los adiante, em Hier. Ep. 105,5. A afirmao no deixa de ser irnica, se diz respeito s cartas
mencionadas anteriormente: o Estridonense estaria criticando o tamanho excessivo delas.
10Segundo Cavallera (1922) vol.1, p. 34 esta ilha do Adritico estaria no arquiplago do golfo de Carnaro, ou baa de
Kvarner, ao norte da pennsula de stria, na costa da antiga Dalmcia, hoje territrio trplice dividido entre a Crocia, a
Eslovnia e a Itlia. Na poca, quem morava l era Bonoso, amigo de infncia de Jernimo que vivera consigo em Trier
e Aquileia, para depois se isolar em um mosteiro (cf. Hier. Ep. 3,4-6). V. Kelly (1975) p. 25-45.
11 A sentena do amigo como um alter ego, um outro de si, tpica na Antiguidade. V. supra Aug. Ep. 28, n. 8.
12A ausncia de simplicitas na inteno de Agostinho faz com que Jernimo o condene moralmente. Como discutimos
na introduo, Jernimo enxerga segundas intenes nas cartas que o bispo de Hipona lhe envia.
13 A construo garrulitati modum imponere, ditar bons modos matraca, faz pensar no verso 852 da Eneida de
Virglio: pacique imponere morem, ditar a lei paz. Outrossim, garrulitas, do verbo garrio, tagarelar, faz parte da
linguagem do povo, palavra que algo vulgar e bastante expressiva (cf. Plaut. Aul. 5,21).
14No latim, litum melle gladium, espada lambuzada de mel, imagem que tpica na Antiguidade Tardia: diz respeito
a aes dissimuladas, aparentemente benficas ou inofensivas, cujo objetivo real atacar o oponente (cf. Hier. Ep.
15,4). Trata-se de expresso semelhante ao nosso lobo em pele de cordeiro. Cf. Otto p. 218 mel 6; v. Frst (2002) p.
150, n. 135.
15Quais? Jernimo no esclarece. A argumentao tpica do autor; trata-se de uma ameaa vaga ainda que incisiva,
pois Agostinho no havia tocado em pontos propriamente doutrinrios em Aug. Ep. 28 e 40. Doravante, nessa parte o
aspecto psicolgico (e tico) se sobrepe ao doutrinrio, que fica em segundo plano.
16 A nosso ver, no fortuita a preferncia de Jernimo pelo advrbio iure, de ius, justia ou lei no sentido
institucional, jurisprudncia talvez, ao mais comum iuste, de iustitia, justia no sentido de equidade. O
Estridonense parece criticar a linguagem afetada de Agostinho, saturada de termos e construes do vocabulrio
jurdico romano; o mesmo advrbio repetido em Hier. Ep. 112,5. Da nossa escolha por com direito, e no com
justia (como havamos traduzido iuste em Hier. Ep. 102).
17 Jernimo antecipa, nesta passagem, a voz e reao de Agostinho, de certa maneira trabalhando um preceito de Caio
Jlio Vtor na Ars rhetorica 27, de que elegante, nalguns momentos, dirigir-se ao correspondente como se este
estivesse presente, s vezes de uma conversa ao vivo.
18 Cf. Hier. Ep. 102,1-2.

)273
Hier. ep. 105

19 O vocbulo latino doctrina deriva do verbo docere, ensinar, e tambm se relaciona com seu passivo, discere,
aprender. Seus significados so vrios, desde uma traduo para o grego corpo de ensinamentos e
regras estabelecidos em um sistema jurdico ou filosfico, ou colocados em prtica por uma instituio como a escola
(assim o traduzem Fry e Labourt, science) at o polissemismo do grego , que se traduz tanto em institutio
como na Institutio oratoria, a formao ou instruo do orador de Quintiliano, cujo sentido semelhante ao da
doctrina no De doctrina christiana de Agostinho quanto, ainda, um ideal formativo, prximo do latim humanitas.
Em vista de evitar discrepncias, utilizamos uma simples transposio para o tua doctrina, mas estamos cientes do
possvel anacronismo do termo, j que no existe uma doutrina crist, sequer uma agostiniana, propriamente dita
nesta poca.
20A imagem do iugum ducere, prender o jugo, remete a Paulo em 2 Cor 6:14, no vos prendais a um jugo desigual
com os infiis [...]. A imagem j era tpica; cf. Otto p. 178 iugum; v. Frst (2002) p. 150 n. 139. Episcopus, v. supra
Aug. Ep. 28, n. 6.
21O vocabulrio militar recorrente ao longo de Hier. Ep. 105. Nesta ocasio, a frase traz mente dois outros autores: o
historiador Amiano Marcelino (325/330 - 391), cuja obra mestra, as res gestae, tem um final marcadamente semelhante
a esta frase: [...] miles quondam et Graecus, outrora soldado e ainda Grego (Am. res ges. 31,16,9); e Virglio quanto
imagem do effectum corpus, corpo exausto, no verso 396 do quinto canto da Eneida (cf. Verg. Aen. 5,396).
22No tempo das Guerras Pnicas contra Cartago, no incio do sculo III a. C. (entre 218 e 217 a. C. para ser mais
especfico), o cnsul e general romano Quinto Fbio Mximo, o Cunctator, o que atrasa, abateu o general
cartaginense Anbal ao esperar com pacincia e, finalmente, venceu-o pelo cansao, impedindo que Roma fosse
destruda pelos soldados africanos. O evento era famosssimo na histria de Roma, sendo j aludido por nio nos Anais
unus homo nobis cunctando restituit rem, um homem s ao atrasar nos salvou a Lei (cf. Cic. Sen. 4,10) e
narrado por Tito Lvio na Ab urbe conditae, cf. Liv. 22, 12-18. Jernimo aplica a mesma estratgia em Agostinho, e
espera vencer o jovem pnico a comparao tambm guarda barbas de preconceito tnico atravs do cansao,
como fez o cnsul romano em relao a Anbal. V. Ebbeler (2007) p. 320-321.
23 Citao dos versos 51-54 da nona Buclica de Virglio; versos 52-54 na traduo de Odorico Mendes, de que nos
servimos. A citao no tem ligao direta com a passagem das Guerras Pnicas mencionada anteriormente. V.
Hagendahl (1958) p. 281.
24 A parbola narrada tanto em 2 Sam 16:32-40 quanto em 1 Reg 2:7.
25 Com liber, Jernimo se refere a Aug. Ep. 40, guisa de criticar esta carta devido a seu tamanho excessivo.
26O advrbio latim comminus vem da adio de cum mais manus, com as mos, e prprio da linguagem militar (cf.
Caes. B. C. 1,58; Liv. 44,35,12; Tac. A. 15,4). No lugar de um frontalmente" ou em combate frontal ou qualquer
naturalizao do advrbio Labourt escolhe um imbele minutieusement, e Frst, um inefetivo scharf , optamos
por um termo mais popular, semelhante a corps--corps, feliz escolha de Fry, decidindo empregar esta expresso to
familiar em nossa lngua, resqucio do ablativo: mano-a-mano.
27 , v. supra Aug. Ep. 40, n. 29.
28 Traduzimos o latim necessitudinis iura por leis da cordialidade, uma vez que significa, para os romanos, as regras
que presidem a intimidade e estreiteza das relaes. A construo se ancora em longa tradio romana de escritos sobre
a amizade, que no raro pede comparaes s leis e s prticas jurdicas, como em Cic. Lael. 35;63; o termo aponta, no
caso, para as regras de civilidade e bom tom de cordialidade, por conseguinte que devem ser adotadas em
determinada situao, e, no caso, s regras de conduta prprias da epistolografia, como discutimos na introduo. V.
Frst (2002) p. 154, n. 147.
29Jernimo exagera. O monge se mudara para Belm em 386, h menos de duas dcadas, e quando j contava 55 anos
de idade. V. Kelly (1975) p. 127-128.
30 Cf. Aug. Ep. 67,2.
31 Em latim, recta linea, traduo do grego ; v. supra Aug. Ep. 40, n. 38.
32Os dois livros dos soliloquia [PL 32,867-904] foram escritos por Agostinho no inverno de 386, momento em que ele,
ento em Cassiciacum, mergulhara nos estudos do neoplatonismo. Esta srie de monlogos (ou conversaes
solitrias), obra pioneira na literatura latina, serviu de ensaio para as Confisses, que seriam escritas anos mais tarde, a
partir de 397. V. Brown (2013) p. 108-120, esp. p. 111.
33 Tratam-se das enarrationes in Psalmos [PL 36,67-1027], publicadas entre 394 e 395, que consistem em um dos
primeiros trabalhos de Agostinho, na poca presbtero, aps sua entrada no gradus eclesistico. Frst (2002) p. 156, n.
158 e Fry (2010) p. 129, n. 45 argumentam que Jernimo teria ento acesso s trinta e duas primeiras enarrationes.

)274
11

Agostinho Ep. 73 / Jernimo Ep. 110


[403/404]

A carta Aug. Ep. 73 foi provavelmente escrita em meados de 403-4041 , antes de Agostinho ter lido Hier. Ep.

105, visto que o bispo de Hipona insiste mais uma vez em uma resposta do monge de Belm. A presente carta, que

provavelmente foi enviada atravs do bispo Presdio2, se desenrola como um elogio da amizade crist, em repreenso

reao de Jernimo em Hier. Ep. 102, cujas palavras parecem ter dado ao bispo de Hipona a impresso de lhe

golpearem com os duros e dodos socos que o velho Entelo aplicava no jovem Dares, personagens da Eneida, durante

os jogos funerrios de Anquises (cf. Hier. Ep. 102,2).

A carta inicia com uma meno a Aug. Ep. 71, carta que o bispo acredita que Jernimo j havia recebido por

meio do mensageiro Cipriano (mas que no foi respondida em Hier. Ep. 105), e tambm a Hier. Ep. 102, que Agostinho

recebera por meio de Astrio. Os pargrafos que dispem a narratio, na esteira de um longo exrdio no qual Agostinho

ento mostra suas impresses da carta de Jernimo, se dividem ento em duas partes distintas que se fundamentam em

um mesmo tpico de discusso: a amicitia ou amizade, que a temtica por excelncia do gnero epistolar3.

A primeira parte da narratio (cf. Aug. Ep. 73,1-5) se apresenta como uma e intrincada anlise de uma frase do

Estridonense em sua carta anterior, em especfico de um advrbio: que Agostinho no reclamasse com justia (iuste, em

latim) de ter se ofendido pela resposta de seu correspondente. O bispo, aps onerosa argumentao dialtica

construda em um discurso pedestre, cheio de conjunes e subordinaes, assim como alguns vulgarismos como

opinatus fuero, eu teria tido imaginado , conclui que no haveria razo para reclamar, com ou sem justia, pois uma

resposta de Jernimo, por mais agressiva (o que ele no cr) e cheia de repreenso (o que ele aceita, se for benevolente

e com retido) que fosse, no poderia ofend-lo de modo algum. O autor ento pede que seu correspondente o absolva

por qualquer descompasso de tom e d o caso por encerrado. O jovem bispo faz frente ao velho monge: ainda que

afirme que no foi sua inteno ofender Jernimo, Agostinho se recusa a pedir desculpas por sua atitude, mostrando-se

disposto a defender a sua leitura de Gal 2:11-14 a todo custo. O Tagastense ilustra sua posio atravs de diferentes

definies, pags e crists, do que a amicitia, dadas por Ccero no Laelius, por Mateus em seu Evangelho, e com

citaes indiretas das cartas de Paulo (cf. Aug. Ep. 73,4-5). Citando um adgio ciceroniano, o bispo assim defende a

sua posio: ser repreendido, e assim corrigido, algo que est de acordo com as leis da amizade, pois mais vale um

amigo que censura, que um inimigo que nos adula.

Agostinho ento eleva o tom e conduz a discusso para uma lamentao da discrdia que surgiu entre Jernimo

e Rufino, esta inimizade que feriu a caritas, a amizade notadamente crist, entre eles. A rixa que surgiu entre tais

autores, essa condio miservel e digna de comiserao nas palavras de Agostinho, iniciou-se nos anos finais da

)275
dcada de 390, no contexto da polmica origenista, mas teria chegado aos ouvidos dos cristos africanos apenas nos

primeiros anos da dcada seguinte. A parte que se inicia aqui, tambm centrada na questo da amicitia, serve para

mudar a conduo do discurso filosfico a um mais emotivo, e se desdobrar at o fim da narratio. A meditao acerca

da amizade continua, e toda essa situao serve de ilustrao para que o bispo de Hipona venha a criticar implicitamente

a atitude rspida que Jernimo teve no tocante primeira carta que lhe havia enviado. Ao falar da relao entre

Jernimo e Rufino, Agostinho est, na verdade, falando tambm da sua prpria relao com seu correspondente (cf.

Aug. Ep. 73,6-7). Ambas as relaes, aos olhos do bispo de Hipona, configuram-se como indignationes indicia,

indcios da indignao, do Estridonense tanto em sua apologia contra Rufino quanto em sua carta a Agostinho.

Chocado com tais sinais, Agostinho pede ento benevolncia: que Jernimo queira discutir e buscar mutuamente algo

com que seus coraes se nutram sem o amargor da discrdia. Se isso no for possvel, porm, se Agostinho no puder

apontar erros nos textos de Jernimo, nem Jernimo nos escritos dele, sem que com isso se levante suspeita de inveja ou

de ofensa amizade, melhor calar-se, poupar o flego, e dar a correspondncia por encerrada (cf. Aug. Ep. 73,8-9). A

carta ento termina com mais observaes sobre a amizade (cf. Aug. Ep. 73,10).

Na narratio desta carta, a linguagem utilizada na primeira parte (cf. Aug. Ep. 73,1-5) laboriosamente

emprestada do vocabulrio jurdico: reclamar justamente, iuste expostulare, uma questo, quaestio, a fim de

contest-la, respondere; expor, demonstrare, suas razes e argumentar, arguere, em seu favor contra um pecado

que ele confessa, agnoscere, ter cometido; em vista de pedir que Jernimo lhe conceda perdo a seu suposto delito,

veniam dare delicto. A causa toma contornos fraternais e militares na segunda parte (Aug. Ep. 73,6-10), e assim a

elocutio muda: Jernimo e Rufino abandonaram os fardos do mundo, sarcina saecularia, e, deles dispensados,

expediti, lutavam em unssono no exrcito de Cristo; mas que a inimizade no amargasse o mel de seu companheirismo,

para que no esfarrapassem, spargere, suas reputaes ao alistar, conscribere, aes que possam reabrir o litgio,

iterum litigare, mesmo aps um acordo, concordia (cf. Aug. Ep. 73,8). Agostinho ainda fala dos ferres da

indignao, aculei indignationis, de Jernimo contra Rufino, e dos afiados aguilhes das dores, acerrimi dolorum

stimuli, que o flagelaram ao ler a polmica. O texto corre todo como um discurso, primeiro o tribuncio, e depois o de

uma exortao (ou repreenso), no que o prprio Agostinho se desculpa ao dizer que discorreu o verbo eloqui

mais do que precisava, mas no mais do que receava (cf. Aug. Ep. 73,9).

Acreditamos que Aug. Ep. 73 um exemplo misto entre carta de desculpa4 , de consolao5 e de censura6 ,

segundo a diviso de Pseudo-Demtrio. Agostinho tenta se conciliar com Jernimo; lamenta os infortnios da rixa com

Rufino; e censura-o por sua posio combativa, elevando o tom, em uma de suas composies mais belas e emotivas7 .

Esto presentes os tpicos mais recorrentes das epistulae familiares, e de modo abundante: o elogio do destinatrio, o

desejo por sua presena fsica, o estilo da carta como conversao, os votos de boa-sade (cf. Aug. Ep. 71,2;5;10). A

inteno de Agostinho aqui parece ser chamar a ateno de Jernimo, censurando sua m conduta como cristo e

criticando sua concepo de amizade (o leitor perceber a nfase em tua caritas e tua indignatio ao longo da carta), ao

mesmo tempo em que espanta as ameaas de seu correspondente, afirmando-se como pensador de ideias prprias e

)276
livres da autoridade deste. Nesta carta distinguimos, tomando o manual de Pseudo-Libnio, tambm as situaes da

censura, do arrependimento, da tristeza e maiormente da conciliao8 .

1 Hennings (1994) p. 41-42; Fry (2010) p. 131-132.


2Conforme Agostinho instrui em Aug. Ep. 74. Porque Frst (2002) p. 21 diz que whrend epist. 112 zusammen mit der
zunchst in Bethlehem liegen gebliebenen epist. 105 vom Diakon Cyprian nach Hippo befrdert wurde, war epist. 73
mit einem unbekannten Boten unterwegs nach Bethlehem algo que foge a nossa compreenso.
3 Segundo discutimos longamente na introduo.
4 Cf. Ps.-Dem. 18.
5 Cf. Ps.-Dem. 5.
6 Cf. Ps.-Dem. 6.
7Lange (1931) p. 247, ein Meisterstck der Vershnungskunst; Kelly (1975) p. 267, Augustine had despatched in
404 a marvellously self-effacing, conciliatory reply to Letter 102J, one of his most deeply felt and beautiful
compositions.
8 Cf. Ps.-Lib. 19;66.

)277
Aug. ep. 73

Domino venerando et desideratissimo fratri compresbytero Hieronymo Augustinus in


Domino salutem.

1. Quamvis existimem antequam istas sumeres, venisse in manus tuas litteras meas, quas per
Dei servum, filium nostrum Cyprianum diaconum misi, quibus certissime agnosceres meam
esse epistulam, cuius exemplaria illuc pervenisse commemorasti unde iam me arbitror
rescriptis tuis, velut Entellenis grandibus atque acribus caestibus, tamquam audacem Daretem
coepisse pulsari atque versari nunc tamen eis ipsis respondeo litteris tuis, quas mihi per
sanctum filium nostrum Asterium mittere dignatus es, in quibus multa in me comperi tuae
benevolentissimae caritatis, et rursus quaedam nonnullius a me tuae offensionis indicia. Itaque
ubi mulcebar legens, ibi continuo feriebar: hoc sane vel maxime admirans, quod cum te dicas
exemplaribus litterarum mearum ideo temere non putasse credendum, ne forte, te respondente
laesus iuste expostularem, quod probare ante debuisses meum esse sermonem, et sic rescribere,
postea iubeas, si mea est epistula, aperte me scribere, aut mittere exemplaria veriora, ut absque
ullo rancore stomachi in Scripturarum disputatione versemur. Quo pacto enim possumus in hac
disputatione sine rancore versari, si me laedere paras? Aut si non paras, quomodo ego, te non
laedente, abs te laesus iuste expostularem, quod probare ante debuisses, meum esse sermonem,
et sic rescribere, hoc est et sic laedere? Nisi enim rescribendo laesisses, ego iuste expostulare
non possem. Proinde cum ita rescribis, ut laedas, quis locus nobis relinquitur in disputatione
Scripturarum sine ullo rancore versandi? Ego quidem absit ut laedar, si mihi certa ratione
volueris et potueris demonstrare illud ex epistola apostoli, vel quid aliud Scripturarum
sanctarum te verius intellexisse quam me: immo vero absit, ut non cum gratiarum actione lucris
meis deputem, si fuero te docente instructus, aut emendante correctus.
2. Verum tamen tu, mi frater carissime, nisi te putares laesum scriptis meis, non me putares
laedi posse rescriptis tuis. Nullo enim modo id de te opinatus fuero, quod non te arbitrans
laesum sic tamen rescribis ut laedas. Aut si te non sic rescribente, ego propter nimiam stultitiam
meam laedi posse putatus sum, hoc ipso laesisti plane, quod de me ita sensisti. Sed nullo modo
tu me, quem numquam talem expertus es, temere talem crederes, qui litterarum mearum
exemplaribus etiam cum stilum meum nosses, temere credere noluisti. Si enim non immerito
vidisti, me iuste expostulaturum fuisse, si temere crederes esse litteras meas, quae non essent
meae: quanto iustius expostularem, meipsum temere putatum talem, qualem me non nosset qui

)278
Aug. ep. 73
putavisset? Nequaquam ergo ita prolabereris, ut te non rescribente, quo laederer, me tamen
existimares nimis insipientem, etiam tali tuo rescripto laedi potuisse.
3. Restat igitur ut laedere me rescribendo disponeres, si certo documento meas esse illas
litteras nosses. Atque ita, quia non credo quod iniuste me laedendum putares, superest ut
agnoscam peccatum meum, quod prior te illis litteris laeserim, quas meas esse negare non
possum. Cur itaque conor contra fluminis tractum, ac non potius veniam peto? Obsecro te ergo
per mansuetudinem Christi, ut si te laesi dimittas mihi, nec me vicissim laedendo, malum pro
malo reddas. Laedes autem me, si mihi tacueris errorem meum, quem forte inveneris in factis
vel dictis meis. Nam si ea in me reprehenderis, quae reprehendenda non sunt, te laedis magis
quam me: quod absit a moribus et sancto proposito tuo, ut hoc facias voluntate laedendi, culpans
in me aliquid dente maledico, quod mente veridica esse scis non esse culpandum. Ac per hoc aut
benivolo corde arguas, etiam si caret delicto quod arguendum putas [aut paterno affectu mulceas
quem abicere nequeas]. Potest enim fieri ut tibi aliud videatur, quam veritas habet, dum tamen
abs te aliud non fiat quam caritas habet. Et ego amicissimam reprehensionem gratissime
accipiam, etiam si reprehendi non meruit, quod recte defendi potest. Aut agnoscam simul et
benevolentiam tuam, et culpam meam; et, quantum Dominus donat, in alio gratus, in alio
emendatus inveniar.
4. Quid ergo? Fortasse dura, sed certe salubria verba tua tamquam caestus Entelle
pertimescam? Caedebatur ille, non curabatur, et ideo vincebatur, non sanabatur. Ego autem si
medicinalem correptionem tuam tranquillus accepero, non dolebo. Si vero infirmitas vel
humana, vel mea, etiam cum veraciter arguor, non potest nisi aliquantulum contristari; melius
tumor capitis dolet, dum curatur, quam dum ei parcitur, non sanatur. Hoc est enim quod acute
vidit qui dixit utiliores esse plerumque inimicos iurgantes, quam amicos obiurgare metuentes.
Illi enim dum rixantur, dicunt aliquando vera, quae corrigamus, isti autem minorem quam
oportet exhibent iustitiae libertatem, dum amicitiae timent exasperare dulcedinem. Quapropter
et si forte bos, ut tibi videris, lassus senectute corporis, non vigore animi tamen, in area
dominica fructuoso labore desudans; ecce sum: si quid perperam dixi, fortius fige pedem. Non
mihi esse debet molestum pondus aetatis tuae, dum conteratur palea culpae meae.
5. Proinde illud quod in extremo epistulae tuae posuisti, cum magni desiderii suspirio vel lego,
vel recolo. Utinam, inquis, mereremur complexus tuos, et collatione mutua vel doceremus
aliqua, vel disceremus. Ego autem dico: utinam saltem propinquis terrarum locis habitaremus;
ut si non possent misceri nostra colloquia, litterae possent esse crebriores. Nunc vero tanto
locorum intervallo absumus a sensibus nostris, ut de illis verbis apostoli ad Galatas, iuvenem me
)279
Aug. ep. 73
ad tuam Sanctitatem scripsisse meminerim; et ecce iam senex, nondum rescripta meruerim;
faciliusque ad te exemplaria epistulae meae pervenerint, nescio qua occasione praeveniente,
quam ipsa epistula, me curante. Homo enim, qui eam tunc acceperat, nec ad te pertulit, nec ad
me retulit. Tantae mihi autem in litteris tuis, quae in manus nostras venire potuerunt, apparent
litterae, ut nihil studiorum meorum mallem, si possem, quam inhaerere lateri tuo. Quod ego quia
non possum, aliquem nostrorum in Domino filiorum erudiendum nobis ad te mittere cogito, si
etiam de hac re tua rescripta meruero. Nam neque in me tantum scientiae Scripturarum
divinarum est, aut esse iam poterit, quantum inesse tibi video. Et si quid in hac re habeo
facultatis, utcumque impendo populo Dei. Vacare autem studiis diligentius, quam populi audiunt
instruendis, propter ecclesiasticas occupationes omnino non possum.
6. Nescio quae scripta maledica super tuo nomine ad Africam pervenisse nescimus. Accepimus
tamen quod dignatus es mittere, illis respondens maledictis. Quo perlecto, fateor, multum dolui,
inter tam caras familiaresque personas, cunctis paene ecclesiis notissimo amicitiae vinculo
copulatas, tantum malum extitisse discordiae. Et tu quidem quantum tibi modereris,
quantumque teneas aculeos indignationis tuae, ne reddas maledictum pro maledicto, satis in tuis
litteris eminet. Verum tamen si eas ipsas cum legissem, contabui dolore, et obrigui timore; quid
de me illa facerent quae in te ille scripsit, si in manus meas forte venissent? Vae mundo ab
scandalis. Ecce fit, ecce prorsus impletur quod veritas ait quoniam abundabit iniquitas,
refrigescet caritas multorum. Quae sibi enim iam fida pectora tuto refundantur? In cuius sensus
tota se proiciat secura dilectio? Quis denique amicus non formideretur, quasi futurus inimicus, si
potuit inter Hieronymum et Rufinum hoc quod plangimus, exoriri? O misera et miseranda
conditio! O infida in voluntatibus amicorum scientia praesentium, ubi nulla est praescientia
futurorum! Sed quid hoc alteri de altero gemendum putem, quando ne ipse quidem sibi homo
est notus in posterum? Novit enim utcumque, vix forte, nunc qualis sit; qualis autem postea sit
futurus, ignorat.
7. Haec porro non tantum scientia qualis quisque sit, verum etiam praescientia qualis futurus
sit, si est in sanctis et beatis angelis, et quomodo fuerit diabolus beatus aliquando, cum adhuc
angelus bonus esset, sciens futuram iniquitatem suam, et sempiternum supplicium, omnino non
video. De qua re, si tamen eam nosse opus est, vellem abs te audire quid sentias. Vide quid
faciant terrae ac maria quae nos corporaliter dirimunt. Si haec epistula mea, quam legis, ego
essem, iam mihi diceres quod quaesivi: nunc vero quando rescribes? Quando mittes? Quando
perveniet? Quando accipiam? Et tamen utinam quandoque fiat, quod tam cito fieri non posse
quam volumus, quanta possumus tolerantia sustinemus. Vnde recurro ad illa verba epistulae
)280
Aug. ep. 73
tuae dulcissima, sanctique desiderii plenissima, et ea facio vicissim mea: utinam mereremur
complexus tuos; et collatione mutua vel doceremus aliqua, vel disceremus; si tamen esse ullo
modo posset, quod ego te docerem.
8. In his autem verbis, non iam tuis tantum, sed etiam meis, ubi delector et reficior, et ipso
quamvis pendente et non attingente utriusque nostrum desiderio, non parva ex parte consolor:
ibi rursus acerrimis dolorum stimulis fodior, dum cogito inter vos quibus Deus hoc ipsum quod
uterque nostrum optavit, largum prolixumque concesserat, ut coniunctissimi et familiarissimi
mella Scripturarum sanctarum pariter lamberetis, tantae amaritudinis irrepsisse perniciem,
quando non, ubi non, cui non homini formidandam: cum eo tempore, quo abiectis iam sarcinis
saecularibus, iam expediti Dominum sequebamini, et in ea terra vivebatis simul, in qua
Dominus humanis pedibus ambulans: pacem meam, inquit, do vobis, pacem meam relinquo
vobis, viris aetate maturis, et in eloquio Domini habitantibus vobis accidere potuit? Vere
tentatio est vita humana super terram. Heu mihi, qui vos alicubi simul invenire non possum:
forte ut moveor, ut doleo, ut timeo, prociderem ad pedes vestros, flerem quantum valerem,
rogarem quantum amarem. Nunc unumquemque vestrum pro seipso, nunc utrumque pro
alterutro, et pro aliis, ac maxime infirmis, pro quibus Christus mortuus est, qui vos tamquam in
theatro vitae huius cum magno sui periculo spectant, ne de vobis ea conscribendo spargatis,
quae quoniam concordantes delere non poteritis, concordare nolitis; aut quae concordes legere
timeatis, ne iterum litigetis.
9. Verum dico caritati tuae, nihil me magis quam hoc exemplum tremuisse, cum quaedam ad
me in epistula tua legerem tuae indignationis indicia, non tam illa de Entello et de bove lasso,
ubi mihi hilariter iocari, quam iracunde minari visus es, quam illud, quod serio te scripsisse satis
apparet, unde supra elocutus sum, plus fortasse quam debui, sed non plus quam timui, ubi aisti:
ne forte laesus iuste expostulares. Rogo te, si fieri potest, ut inter nos quaeramus et
disseramus aliquid, quo sine amaritudine discordiae corda nostra pascantur, fiat. Si autem non
possum dicere, quid mihi emendandum videatur in scriptis tuis, nec tu in meis, nisi cum
suspicione invidiae, aut laesione amicitiae, quiescamus ab his, et nostrae vitae salutique
parcamus. Minus certe assequatur illa quae inflat, dum non offendatur illa quae aedificat. Ego
me longe esse sentio ab illa perfectione, de qua scriptum est: si quis in verbo non offendit, hic
perfectus est vir. Sed plane in Dei misericordia puto me posse facile abs te petere veniam, si
quid offendi quod mihi aperire debes; ut, cum te audiero, lucreris fratrem tuum. Neque enim
quia hoc propter longinquitatem terrarum non potes facere inter me et te, propterea debes sinere
errare me. Prorsus quod ad ipsas res, quas nosse volumus, attinet, si quid veri me tenere vel
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Aug. ep. 73
scio, vel credo, vel puto, in quo tu aliter sentis, quantum dat Dominus sine tua iniuria, conabor
asserere. Quod autem pertinet ad offensionem tuam, cum te indignatum sensero, nihil aliud
quam veniam deprecabor.
10. Nec omnino arbitror te succensere potuisse, nisi aut hoc dicerem quod non debui, aut non sic
dicerem ut debui: quia nec miror minus nos scire invicem, quam scimur a coniunctissimis et
familiarissimis nostris. In quorum ego caritatem, fateor, facile me totum proicio, praesertim
fatigatum scandalis saeculi; et in ea sine ulla sollicitudine requiesco: Deum quippe illic esse
sentio, in quem me securus proicio, et in quo securus requiesco. Nec in hac mea securitate,
crastinum illud humanae fragilitatis incertum, de quo superius ingemui, omnino formido. Cum
enim hominem Christiana caritate flagrantem, eaque mihi fidelem amicum factum esse sentio,
quicquid ei consiliorum meorum cogitationumque committo, non homini committo, sed illi in
quo manet, ut talis sit. Deus enim caritas est; et qui manet in caritate, in Deo manet, et Deus in
eo: quem si deseruerit, tantum faciat necesse est dolorem, quantum manens fecerat gaudium.
Verum tamen ex amico intimo factus inimicus, quaerat sibi potius quod fingat astutus; non
inveniat quod prodat iratus. Hoc autem unusquisque facile assequitur, non occultando quod
fecerit, sed non faciendo quod occultari velit. Quod misericordia Dei bonis piisque concedit, ut
inter amicos, quoslibet futuros, liberi securique versentur, aliena peccata sibi commissa non
prodant, quae prodi timeant, ipsi nulla committant. Cum enim falsum quid a maledico fingitur,
aut omnino non creditur, aut certe integra salute, sola fama vexatur. Quod autem malum
perpetratur, hostis est intimus, etiam si nullius intimi loquacitate aut lite vulgetur. Quapropter
quis prudentium non videat, etiam tu quam tolerabiliter feras amicissimi quondam et
familiarissimi incredibiles nunc inimicitias, consolante conscientia; et quemadmodum vel quod
iactitat, vel quod a quibusdam forsitan creditur, in sinistris armis deputes, quibus non minus
quam dextris contra diabolum dimicatur? Verum tamen illum maluerim aliquo modo mitiorem,
quam te isto modo armatiorem. Hoc magnum et triste miraculum est, ex amicitiis talibus ad has
inimicitias pervenisse. Laetum erit, et multo maius, ex inimicitiis talibus ad pristinam
concordiam revertisse.

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Aug. ep. 73

Agostinho envia saudaes em nome do Senhor ao compresbtero1 Jernimo, senhor


reverencivel e irmo muitssimo desejado.

1. Ainda que eu estime que, antes de tomares esta carta, chegaram a tuas mos uma missiva
minha que enviei por meio de um servo de Deus, nosso filho, o dicono Cipriano2 pelas
quais poderias reconhecer muito certamente que minha aquela carta cuja cpia3 tu indicaste ter
chegado at a ; a partir do que, julgo, graas tua resposta, como se ela fosse os socos duros
e dodos de Entelo, que eu, como se eu fosse o inexperiente Dares comecei a apanhar4 no
entanto, respondo quela missiva tua, decerto, que tu tiveste a dignidade de me enviar por meio
de nosso santo filho Astrio5 , na qual encontrei muitas provas6 da tua mais benevolente caridade
e tambm certos indcios de uma ofensa a ti feita de minha parte. Assim, l onde a leitura me
afagava, eu era de pronto golpeado, por certo e sobretudo estupefato com o fato de teres
afirmado que tu pensaras que no deverias dar crdito que tais cpias fossem de fato de uma
carta minha, de modo to precipitado, para que eu talvez no reclamasse com justia de ter me
ofendido por uma resposta tua, e pelo fato de que tu deverias antes te assegurar que o estilo era
meu e assim responder; em seguida, tu me exortas, caso seja minha a carta, a escrever
abertamente ou enviar uma cpia mais confivel para que possamos nos engajar na discusso
das Escrituras sem qualquer rano de clera7. De que modo podemos nos engajar nesta
discusso sem rano, se tu te preparas para me ofender? Ou, se no te preparas, de que jeito eu,
se tu no me ofendes, reclamaria com justia de ter sido ofendido por ti, pelo fato de que tu
deverias antes te assegurar que o discurso era meu, e assim responder, isto , e assim me
ofender? Ora, se tua resposta no tivesse sido ofensiva, eu no poderia reclamar com justia
dela. Por conseguinte, se tu respondes com o intuito de me ofender, que chance nos sobra para
nos engajarmos sem rano na discusso das Escrituras? Eu, por minha vez, longe de eu me
sentir ofendido caso queiras (e possas) demonstrar para mim, por meio de um argumento
definitivo8 , que tu compreendeste de modo mais verdadeiro do que eu seja aquela passagem que
est na carta do apstolo, seja qualquer outra das Escrituras Santas; muito pelo contrrio, longe
de eu deixar de considerar, com expressa gratido, como um ganho para mim se eu, por uma
lio tua, for instrudo por ti, ou se, por uma correo tua, eu for retificado.
2. Na verdade, porm, tu, meu irmo muitssimo querido, se tu no te sentisses ofendido com o
que escrevi, no pensarias que eu poderia me ofender com o que respondeste; ora, de modo
algum eu teria tido imaginado isso de ti, que eu, mesmo no julgando que tu foste ofendido,
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Aug. ep. 73
ainda assim tu escreverias para me ofender. Ou, se tu no respondeste com esse intuito, mas em
tua opinio eu poderia ter me ofendido por causa de minha estupidez desmedida, ento por isso
mesmo tu me ofendeste pois pensaste isso de mim. Mas de modo algum tu acreditarias de modo
precipitado que eu sou uma pessoa de cuja ndole tu jamais tiveste prova, tu que no quiseste
dar crdito de modo precipitado s cpias de minha carta, mesmo tendo reconhecido minha
pena. Agora, se te pareceu, no sem mrito, que eu teria podido reclamar com justia, se
acreditaste que era minha uma carta que no era minha; quanto mais com justia eu poderia
reclamar de ter sido eu prprio de modo precipitado considerado ser uma pessoa tal por algum
que, afinal, no me conhecia de fato? De modo algum, portanto, tu deverias te inclinar a pensar,
no tendo tuas respostas o propsito de me ofender, que eu sou simplrio a ponto de poder me
ofender com uma resposta tal como a tua.
3. Resta ento que tu estarias disposto a me ofender ao me responderes, se soubesses por meio
de prova segura que aquela carta era minha. E assim, j que no acredito que tu pensarias que
devo ser ofendido injustamente, no posso seno confessar o meu pecado, pois teria sido eu o
primeiro a te ofender naquela carta, a qual, no posso negar, era minha. Por que, nesse caso,
tento nadar contra a correnteza9 e no peo antes desculpas? Pois eu te imploro, pela mansido
de Cristo, que, se eu te ofendi, me absolva e no pagues o mal com o mal, ofendendo-me em
retorno. Tu me ofenders, porm, se omitires um erro meu que porventura encontrares em
minhas aes ou palavras. Ora, se tu repreenderes em mim o que no precisa ser repreendido, a
tu ofendes mais a ti que a mim; que fique longe da tua conduta e do teu santo propsito que tu
ajas assim, pela vontade de ofender, me inculpando (e sorrindo maldosamente) de algo que,
pensando veridicamente, sabes que eu no devo ser inculpado10; por isso, ou tu discutes de
corao benevolente, mesmo que no haja um delito que julgues passvel de arguio, [ou
afagas com afeio paternal uma pessoa que no podes rejeitar]11. Pois pode acontecer que a ti
algo parea diferente do que constitui a verdade, sem que, no entanto, se d a partir de ti algo
diferente do que constitui a caridade; e eu aceitaria, de muitssimo bom grado, uma repreenso
feita com toda afeio, ainda que no haja justificativa em repreender o que pode ser
corretamente defendido, ou reconheceria, ao mesmo tempo, tanto a tua benevolncia e a minha
culpa, quanto, na medida em que o Senhor permite, eu me encontraria grato de um lado, e
corrigido de outro12 .
4. Por que ento eu temeria tuas palavras, talvez duras, mas certamente salutares, como se elas
fossem os socos de Entelo? O famoso Dares era golpeado, no curado, e assim era vencido, no
remediado. Quanto a mim, porm, se eu aceitar tranquilamente a tua reprimenda, no sentirei
)284
Aug. ep. 73
dores13. No entanto, se uma doena no deixa de causar nem que um pouco de desconforto, seja
ela prpria da condio humana ou minha, e ainda que eu seja inculpado de modo verdadeiro,
melhor sofrer de dor de cabea, enquanto ela tratada, do que, negligenciando-a, deixar de
remedi-la; foi isso mesmo que reconheceu, com perspiccia, aquele homem que afirmou que os
inimigos, que reprovam, so, na maioria das vezes, mais teis que os amigos, que tm medo de
nos contestar14: aqueles, quando brigam conosco, dizem por vezes verdades que devemos
retificar; estes, por outro lado, demonstram uma liberdade menor que a justia requer, temendo
amargar a doura da amizade. Por esse motivo, ainda que o boi esta a imagem que fazes de
ti esteja talvez exausto pela velhice do corpo, entretanto no est exausto quanto ao vigor da
alma, ele que sua em um trabalho frutuoso nas terras do Senhor; eis-me aqui: se eu disse algo de
errado, pisa com mais firmeza. A mim no deve ser um incmodo o peso da tua idade, contanto
que se esmague a palha da minha culpa15.
5. Por conseguinte, o que colocaste no final de tua carta16, com um suspiro de profundo
remorso que eu o leio e releio. Antes pudssemos te abraar e num encontro mtuo ensinarmos
ou aprendermos algo, tu dizes. Eu, porm, digo: quem dera morssemos em regies prximas
para que, j que no possvel entrelaar nossas conversas, nossas cartas pudessem ao menos
ser mais frequentes! Agora, porm, estamos to distantes um do outro pela distncia fsica e
de nossos sentidos17 que eu me lembro de ter, ainda jovem, escrito a tua santidade sobre
aquelas palavras do apstolo aos Glatas18, e eis que, j velho, ainda no obtive resposta, e que
foi com mais facilidade que te chegaram, no sei por qual motivo, cpias de uma outra carta
minha antes dessa mesma carta, que enviei com tanto cuidado19; pois a pessoa20 que daquela
ento se encarregara no pde lev-la at ti, nem retorn-la a mim. To importantes, em meio s
cartas que puderam chegar at nossas mos, me parecem as tuas palavras, que de todos os meus
desejos nada me seria mais aprazvel que no sair mais do teu lado21 , se eu pudesse! Agora, j
que eu no posso, estou pensando em te mandar algum dos nossos filhos no Senhor, para que
ele nos transmita teus ensinamentos, se eu ainda merecer uma resposta tua sobre esse assunto.
Ora, em mim no h, ou sequer poder haver, tanto conhecimento das Escrituras divinas quanto
vejo haver em ti; alm disso, se tenho algum recurso nesse assunto, de toda forma eu o gasto
com o povo de Deus. Arrumar tempo livre para me aprofundar em estudos22 mais elevados que
aqueles que o povo capaz de ouvir algo que, devido aos afazeres da igreja, no me
absolutamente possvel.
6. No sei por que coisa uns textos cheios de maldade23 acerca da tua pessoa chegaram a
frica, no sabemos24. Recebemos, no entanto, um que tu tiveste a dignidade de enviar, no qual
)285
Aug. ep. 73
respondes quelas palavras ms25 . Tendo-o lido por inteiro, confesso, foi grande meu sofrimento
em saber que entre pessoas to queridas e to prximas26, ligadas por um vnculo de amizade
to conhecido em quase todas as igrejas, tenha surgido tamanho mal, provocado pela discrdia!
Tu, tambm, o quanto tu te moderaste, e o quanto tu refreaste os ferres da tua indignao27 , a
fim de no pagares o maldizer com o maldizer, eis algo que fica muito evidente em teus
escritos. Mas, para dizer a verdade, se, tendo lido precisamente essas coisas, eu me desfiz em
sofrimento e fiquei paralisado de medo, que poderiam causar em mim aquelas palavras que ele
escreveu contra ti, se elas tivessem chegado a minhas mos? Ai do mundo, por causa dos
escndalos!28, eis que acontece, eis que se realiza de vez o que a Verdade diz: e, se por
multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriar29 . Que coraes a ingnuos podero
encher-se de novo em confiana? No sentimento de quem a afeio poder-se-ia lanar toda?
Que amigo, enfim, no ser temido como um inimigo em potencial, se entre Jernimo e Rufino
pde surgir essa situao que deploramos! condio miservel e digna de comiserao!
vacilante percepo das vontades dos amigos presentes, na qual nada h de intuio das
vontades dos amigos futuros30 ! Mas, o que, aqui, deveria eu julgar que se deve lamentar de um
em relao ao outro, quando nem o prprio homem sabe o que vir a ser no futuro? Pois ele
sabe bem pouco (e olhe l) em que condio se encontra agora, mas o que ele vir a ser no
futuro, isso ele no sabe31 .
7. A questo mais ampla: no se trata somente da percepo de que tipo de pessoa cada um ,
mas antes da intuio daquele que ela vir a ser; se esta existe nos santos e nos anjos
abenoados, como que o diabo pde ter sido outrora abenoado, quando ainda era um anjo
bom, mesmo percebendo sua injustia e o castigo eterno32? No consigo ver como. Sobre este
assunto, se , porm, necessrio conhec-lo, gostaria de escutar o que pensas. V do que so
capazes as terras e os mares que fisicamente nos separam! Se essa carta minha que ls fosse eu
mesmo, logo me dirias o que perguntei; mas agora, quando a responders? Quando a enviars?
Quando ela chegar? Quando a receberei? Entretanto, ah que acontea um dia o que no pode
acontecer com a velocidade que queremos; aguentaremos isso com o mximo de pacincia!
Daqui, retorno s muito doces palavras de tua carta, to plenas de santo desejo, e fao dessas
palavras as minhas: antes pudssemos te abraar e num encontro mtuo ensinarmos ou
aprendermos algo, se que de algum modo poderia haver algo que eu pudesse te ensinar!
8. Nestas palavras, pois bem, que j no so somente tuas, mas tambm minhas, que consigo
encontrar alegria, vigor e embora o desejo de fato que temos um do outro esteja sempre
incerto e no se realize no pouco conforto; nelas que tambm sou ferido pelos afiados
)286
Aug. ep. 73
aguilhes das dores33 quando penso que, entre vs, a quem Deus concedera, com grande
generosidade e abundncia, exatamente aquilo que ambos desejvamos, que no mais estreito
companheirismo e proximidade vs sorvsseis lado a lado o mel das Sagradas Escrituras, que
entre vs tenha invadido um amargor to ruinoso quando no, onde no, que homem34 no
deve temer esse amargor, ainda mais em tempos em que vs, tendo j abandonado os fardos do
mundo35, e deles j aliviados, segueis o Senhor e viveis em conjunto na mesma terra em que
Ele, andando com ps humanos, disse: deixo-vos a paz, a minha paz dou a vs,36 a homens
adultos, vivendo na palavra do Senhor pensar que isso vos pde acontecer! Verdadeiramente,
a vida humana provao sobre a terra37 ! Ai de mim que no vos posso encontrar ao mesmo
tempo em algum lugar! Talvez, em toda minha tristeza, em toda minha dor, em todo meu temor
eu pudesse ante vossos ps tombar, com todas as foras chorar, com todo o amor implorar que
agora, cada um de vs em favor de si prprio, que, agora, vs dois, pensando um no outro, e em
todos, e sobretudo nos oprimidos, por quem Cristo morreu, eles que so vossos espectadores,
correndo grande perigo ao fazerem isso, como se esta vida fosse um teatro; eu poderia implorar
que no esfarrapeis vossa reputao ao alistar aes a respeito das quais, ainda que venham a
fazer um acordo sobre elas, no podereis quebr-lo, o acordo no seria de vossa vontade, ou,
ainda, vs temereis ler tais coisas em acordo, para no reacender o litgio38 .
9. Mas digo tua caridade que nada me apavorou mais que esse exemplo, De quando me pus a
ler, na tua carta, certos indcios de tua indignao dirigidos a mim; no tanto naquela parte sobre
Entelo e o boi cansado, onde julguei que tu, jovial, brincavas antes que, irado, ameaavas; mas
naquele ponto que, parece bem claro, tu escreveste em seriedade e foi por isso que discorri
acima, talvez mais do que precisava, mas no mais do que receava39 onde falaste que tu
talvez no reclamasses com justia de ter se ofendido. Eu te peo, se for possvel que isso
acontea, que investiguemos e discutamos entre ns algo com que nossos coraes se nutram
sem o amargor da discrdia; se, porm, eu no posso apontar aquilo que me parece carente de
correo em teus escritos, nem tu nos meus, sem que com isso se levante a suspeita de inveja ou
de ofensa amizade, abstenhamo-nos dessas discusses e poupemos nossa vida (e nossa
salvao). Atente-se menos quilo que incha, desde que no se lese aquilo que edifica40! Eu, de
minha parte, sinto que estou longe daquela perfeio da qual est escrito: se algum no
tropea em palavra, o tal perfeito41, mas acredito plenamente que, na misericrdia de Deus,
posso facilmente te pedir perdo se te ofendi em algo (tu deves me revelar em qu) para que, ao
te escutar, tu ganhes teu irmo. E, afinal, no porque tu no o podes fazer por causa da
distncia fsica entre mim e ti que tu deves me permitir que eu erre42. Enfim, no que diz respeito
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Aug. ep. 73
s questes que queremos resolver, se sei, se acredito, se penso43 ter com segurana algo de
verdadeiro, em relao quilo sobre o qual tu tens outra opinio, tentarei, com a permisso do
Senhor, sustentar o que penso sem te causar afronta. No que, porm, diz respeito a tua ofensa:
quando eu perceber tua indignao, no suplicarei nada alm do perdo.
10. E eu julgo que tu no poderias, de modo algum, ter te inflamado a menos que ou eu tenha
dito o que no devia, ou eu no tenha dito, enfim, como devia, j que (e isso no me espanta)
ns conhecemos um ao outro menos do que os nossos conhecidos e amigos mais prximos nos
conhecem. na caridade deles, confesso, que eu me entrego completamente, sobretudo fatigado
como estou das tribulaes do mundo44 , e nela que descanso sem qualquer inquietao; pois,
eu sinto, l est Deus, em Quem me jogo seguro e em quem seguro descanso45. E nesta minha
segurana perco toda e qualquer temor das incertezas vindouras da fragilidade humana, sobre as
quais lamentei acima. De fato, quando sinto que um homem, ardendo na caridade crist, tornou-
se atravs dela meu amigo fiel, e confio-lhe todos os meus pensamentos e planos, no os confio
ao homem, mas quele em quem o homem permanece a fim de se tornar semelhante a Ele. Pois
Deus amor; e quem est em amor est em Deus, e Deus nele46 , e, se algum o abandonar,
necessariamente deve experimentar uma dor to grande quanto a alegria que experimenta
permanecendo Nele. No entanto, um homem que de amigo ntimo tornou-se um inimigo pode
antes buscar em proveito prprio algum estratagema que, astuto, possa lhe ser til, mas no
poder encontrar nada que, irado, possa revelar. A esta regra, porm, todos podem facilmente
atentar, no escondendo o que se fez, mas antes no fazendo o que se quis esconder. Sim, a
misericrdia de Deus permite aos bons e aos pios que, para viver em liberdade e sem
inquietaes entre quaisquer amigos, no importa quem sero eles, no revelem os pecados de
outros cometidos contra si, e que eles no cometam nenhum pecado que temam ver revelados.
Afinal, quando um falso rumor inventado por uma pessoa de m-f, ou no acreditamos em
nada do que ela diz ou no caso de ela ter sua salvao garantida a s sua reputao
manchada; quando, porm, algum espalha o mal, eis um adversrio ntimo, mesmo se o mal
no for propagado pela tagarelice ou contenda de ningum ntimo. Por essa razo, quem dentre
os homens prudentes no poderia enxergar, at tu, com quanta pacincia tu suportas os incrveis
atos de uma inimizade recente de algum que outrora foi to amigo e prximo de ti, s tua
conscincia te conforta, e de que maneira tu confias os ataques que ele espalha coisa que
pode at encontrar crdito junto a algumas pessoas s armas da esquerda, com as quais,
no menos do que com as da direita, se luta contra o diabo47 ? No entanto, eu preferiria aquele
Jernimo de algum modo mais manso a te ver, deste modo, todo armado. Trata-se de algo muito
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Aug. ep. 73
triste e espantoso que to grande amizade tenha se reduzido a esta condio de inimizade.
Haver alegria, e muito mais nobreza, em se retornar de to grande inimizade concrdia de
outrora48 .

)289
Aug. ep. 73
NOTAS

1 Compresbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.


2 Cipriano, v. supra Aug. Ep. 71, n. 2; para diaconus, v. supra Hier. Ep. 102, n. 2. As litterae meae das quais fala
Agostinho so Aug. Ep. 28 e 40 (e provavelmente 71), entregues a Jernimo por Cipriano (cf. Aug. Ep. 71,1 e Hier. Ep.
112,1).
3Provvel meno a Aug. Ep. 40, que Jernimo sinaliza ter recebido sem assinatura, por meio de Sisnio, em Hier. Ep.
102,1.
4O confronto entre Dares e Entelo pertence ao quinto canto da Eneida e j foi mencionado por Jernimo em Hier. Ep.
102,2; v. supra Hier. Ep. 102, n. 15.
5 Astrio, supra Hier. Ep. 102, n. 3.
6A locuo indicium comperire, encontrar provas, de indicium admonere (tambm profiteri e offerre) prpria do
vocabulrio jurdico, apresentar indcios ou dar provas (cf. Sall. Iug. 35,6; Cic. Clu. 10,30; Plin. Ep. 3,16,9 e Tac. A.
11,35). V. Satterthwaite 1997 p. 676-679
7 Rancor stomachi, v. supra Hier. Ep. 102, n. 11.
8 No latim, certa ratio, argumento definitivo ou razo exata, termo com consequncias fundamentais para o
pensamento de Agostinho: associado a rectitudo e veritas, o conceito procura englobar uma soluo acertrica e
indiscutvel a determinado assunto, uma soluo que tenha auctoritas. Neste caso, o autor solicita que Jernimo d uma
certa ratio discusso do officiosum mendacium de Pedro em Gal 2:11-14 (v. supra Aug. Ep. 28, n. 25).
9 A imagem de nadar contra a correnteza, contra fluminis tractum, j era tpica na Antiguidade, cf. Otto p. 139-140
flumen 7.
10Agostinho constri um complexo quiasmo nesta passagem, que em latim corre culpans in me aliquid dente maledico
quod mente veridica scis non est culpandum. Logo, dens maledicus, dente maldito dent mdisante em Labourt e
Fry ope-se a mens veridica, alma verdadeira conscience bien disante em Labourt, esprit vridique em Fry;
Frst desfaz a figura ao traduzir como simples gehssiger Zunge... ganz genau ; em Labourt (1963) vol. VI, p. 10;
Frst (2002) p. 237; Fry (2010) p. 144 n. 20 e 21. A expresso proverbial; cf. Otto p. 107 dens 1.
11Esta passagem est ausente em alguns manuscritos, mas adotada pelos editores modernos, sendo provavelmente
uma interpolao de copistas do sculo XII. V. De Bruyne (1932) p. 240; Vaccari (1931) p. 355-358; Frst (2002) p.
236, n. 364; Fry (2010) p. 145, n. 23 para elucubraes sobre ela.
12 Esta difcil passagem, dividida em et / aut / aut, causou problemas para os tradutores da correspondncia; v. Frst
(1999) p. 157-158, n. 456. Fry (2010) p. 145, n. 25 mostra que o perodo de fato composto para impressionar o leitor,
prprio de uma amplificatio retrica, que a marca do grande estilo e modo perfeito para concluir um raciocnio
intrincado como o deste pargrafo.
13A noo de que um amigo cura os erros de outro amigo pela repreenso tpica na Antiguidade, v. Bohnenblust
(1905) p. 38-39. Agostinho alude aqui figura do Christus medicus, noo de Messias j presente no Velho Testamento
(porque eu sou o Senhor que te sara no Ex 15:26) e presente em todo os Evangelhos, em especial no de Lucas (e a
virtude do Senhor estava ali para os curar em Lc 5:17). O tema entra na tradio epistologrfica crist atravs de Incio
de Antiquia em sua carta aos Efsios; v. Ehrman (2003) p. 218-241. Cabe lembrar que o tema da refutao, em grego
, j aparece associado medicina no Grgias e no Sofista de Plato.
14A sentena, dada por Agostinho tomada de Cato no De amicitia de Ccero: scitum est enim illud Catonis, ut multa:
melius de quibusdam acerbos inimicos mereri quam eos amicos qui dulces videantur, pois conhecida, dentre muitas,
aquela sentena de Cato: a alguns servem com mais mrito os acres inimigos, que aqueles amigos que parecem
doces (cf. Cic. Lael. 90). A amicitia o grande tema da epistolografia antiga, questo que abordamos nos contextos da
correspondncia, na introduo. V. Testard (1958) vol. I, p. 246 e Hagendahl (1967) p. 94-96.
15 A imagemdo bos lassus, boi cansado, foi usada por Jernimo anteriormente; v. supra Hier. Ep. 102, n. 16. Aludindo
a uma passagem em Mt 3:12, e queimar a palha com fogo que nunca se apagar, Agostinho desenvolve a figura,
pedindo que Jernimo, com seu peso, pise mais firme, e assim esmague a palha de sua culpa, palea meae culpae
conterere.
16 Todas essas referncias so Hier. Ep. 102.

)290
Aug. ep. 73

17A construo latina a sensibus abesse, estar distante dos sentidos, parece medir no s a dimenso fsica do espao
cerca de 2000 km separava Hipona de Belm entre Agostinho de Jernimo, mas tambm parece indicar um
abismo espiritual e afetivo entre os dois, no que diz respeito aos seus pensamentos, atitudes e afinidades. V. supra Aug.
Ep. 28, n. 7.
18
Evidentemente, a referncia a Aug. Ep. 28 e 40, enviadas j faz uma dcada, quando Agostinho tinha ento pouco
mais de quarenta anos.
19Conforme argumentamos nas introdues a Aug. Ep. 71 e Hier. Ep. 105, h indcios de que Agostinho teria enviado
Aug. Ep. 73 antes de ler Hier. Ep. 105, carta que provavelmente foi escrita antes de Jernimo ler Aug. Ep. 71 tambm.
Por conseguinte, as cartas mencionadas aqui devem ser, respectivamente, Aug. Ep. 67 e Aug. Ep. 28.
20 No sabemos quem seria este homo, o mensageiro de Aug. Ep. 67; no pode ser Profuturo, que morreu sem ter
entregue Aug. Ep. 28, e seria estranho se fosse Sisnio ou Cipriano, pois ambos j teriam entregue as Ep. 40 e 71 a
Jernimo. provvel que seja Astrio, como indicamos na introduo a Aug. Ep. 67.
21A expresso inhaerere lateri tuo, no sair mais do teu lado, indica subordinao, isto , condio de discpulo a um
mestre; cf. Blaise p. 446 inhaereo. Trata-se de uma variao dos tpicos da e do . Agostinho nega essa
possibilidade imediatamente, recusando-se a subordinar-se a Jernimo como um aluno; ele quer discutir de igual para
igual.
22Como indicam Hilberg (1918) vol. II, p. 361; Goldbacher (1923) vol. II, p. 269; Labourt (1923) p. 165, alguns
manuscritos leem aqui studiosis, estudiosos. Todos os editores modernos preferem studiis, estudos; a mesma
expresso aparece em Aug. Civ. 19,1. V. Frst (1999) p. 118, n. 190.
23Agostinho fala de scripta maledicta super tuo nomine, escritos maledicentes acerca da tua pessoa. A referncia
aos livros que Rufino escreveu contra Jernimo, entre os quais os dois livros da apologia contra So Jernimo,
Apologiae in Sanctum Hieronymum libri duo [PL 21,541-624a], publicados em 397.
24A repetio no se deve a uma falha de edio, mas est presente na tradio manuscrita da correspondncia. Ela
preservada por Labourt (1963) vol. VI, p. 12 e Fry (2010) p. 148, mas no por Frst (2002) p. 242-243, que usa quae
pervenerunt, que chegaram, no lugar de qua pervenisse, por qual coisa chegaram. Em latim, nescio <no sei> qua
scripta maledicta super tuo nomine ad Africam pervenisse nescimus <no sabemos>. Seja um erro de um copista
sonolento, seja talvez um erro do prprio bispo, seja, ainda, um elemento retrico deliberamente colocado em vista de
enfatizar o espanto do autor ao ler os scripta maledicta (cf. Hier. Ep. 65,11): no podemos concluir com certido qual a
razo da repetio, seno apontar esse dado problemtico do texto que temos disposio.
25 Referncia apologia contra Rufino, publicada em idos de 396; v. supra Hier. Ep. 102, n. 18.
26Isto , Jernimo e Rufino, que trocaram farpas na ltima dcada do sculo IV. Agostinho teria lido as duas apologias
somente agora, quase dez anos aps a concluso da rixa, v. Brown (2013) p. 268-278 e p. 498-499.
27 O termo forte e ofensivo. Indignatio o contrrio da dignitas, a dignidade, uma das virtudes do homem romano,
elemento fundamental de sua auctoritas (cf. Cic. Inv. 2,55). A dignitas tambm uma das virtudes essenciais do homem
cristo, como afirma, numa carta a Caldnio e Herculano, Cipriano de Cartago em passagem que trata do confessor:
quem sic Dominus honoravit caelistis gloriae dignitate, o qual o Senhor assim honrou com a dignidade da glria
celeste (cf. Cip. Ep. 38,1 e 40,1); trata-se tambm de termo que indica a posio social de determinado homem.
Agostinho empregar a raiz da palavra mais duas vezes nesta carta: indignationis indicia e indignatus, em Aug. Ep.
73,9. Ao caracterizar a reao de Jernimo como indignatio, o bispo de Hipona aponta que ele fere as leis da amizade e
do bom convvio social cristo. O aculeus ou ferro, por sua vez, era um instrumento usado para punir animais e
escravos, como o stimulus ou aguilho mencionado abaixo, em Aug. Ep. 73,8.
28 Mt 18:7
29 Mt 24:12
30Os termos latinos so scientia, do verbo scire, conhecer, e praescientia, de prae mais scire, saber frente ou
prever, os quais traduzimos por percepo e intuio, termos anlogos de, e mais naturais que cincia e
prescincia em portugus, no nosso entender.

)291
Aug. ep. 73

31 Quintiliano preconiza na Institutio oratoria que todo perodo do discurso deve finalizar com uma sententia: vocatur
aliquid et clausula: quae si est quod conclusionem dicimus, et recta et quibusdam in partibus necessaria est, quare
prius de vestro facto fateamini necesse est quam Ligari culpam ullam reprehendatis. sed nunc aliud volunt, ut omnis
locus, omnis sensus in fine sermonis feriat aurem, h ainda o que se nomeia clausula; se ela o que chamamos
concluso, trata-se de algo correto e necessrio nalgumas partes [do discurso], como em pois vos necessrio antes
confessar vosso feito do que acusar Ligrio de qualquer coisa (cf. Cic. Lig. 2). Mas hoje [nossos rtores] desejam algo
diferente, que todo argumento, toda ideia ressoe nos ouvidos no fim do discurso (cf. Quin. Inst. orat. 8,5,15). V.
tambm o item Princpios da elocutio epistularis na introduo, onde tratamos de algumas prerrogativas do gnero,
que indicam a necessidade de usar provrbios e mximas de forma parcimoniosa.
32Agostinho trabalha com a questo da oniscincia dos anjos em diversas obras (cf. Aug. Gen. ad litt. 5,19; 11,16;23,
Civ. 9,22; 11,21, Enchir. 28). Jernimo, por outro lado, e ainda que Agostinho pea aqui uma opinio sobre o problema,
parece nunca ter dado ateno a ele. V. Frst (2002) p. 72, n. 218 e p. 244, n. 382.
33Em latim, acerrimi dolorum stimuli. O stimulus era um aguilho, ferramenta rstica, usada para conduzir o gado. Os
romanos tambm o empregavam para punir os escravos desobedientes (cf. Plaut. Curc. 1,2,40; Cic. Phil. 2,34,86).
34Em latim: quando non, ubi non, cui non o triclon interrogativo faz parte dos automatismos da oratria, como
indica Fry (2010) p. 150, n. 54.
35 Sarcina, v. supra Aug. Ep. 71, n. 6. O expeditus podia ser tanto o soldado que havia cumprido e, assim, sido
dispensado do servio militar, quanto um pedes, um recruta desprovido de bagagem e pronto para a ao (cf. Caes. B.
G. 1,49,3 e B. C. 1,42,2; 2,19,2). A ideia que Jernimo e Rufino haviam sido aliviados da sarcina saecularium, os
fardos do mundo, e poderiam agora batalhar unicamente em nome de Cristo. Rufino vivia em Belm desde 381,
quando fundou um mosteiro; Jernimo se mudara para a mesma cidade em 386.
36 Jo 14:27
37A citao variante da Vetus Latina para Jo 7:1, tentatio est vita humana super terram; na Vulgata, l-se nonne
militia est vita hominis super terram? A ACF traduz: porventura no tem o homem guerra sobre a terra? O termo em
hebraico tsabah, combate, servio militar ou tempo de servido, prxima de militia no latim. A aluso
possivelmente ao sermo de Jernimo, pois este traz mente o tpico da militia Christi.
38 Neste perodo que d sentena ao pargrafo, h um intrincado jogo de palavras de Agostinho, construdo a partir da
raiz presente no vocbulo concordia, o acordo ou aliana dos tribunais e nos pactos de guerra (cf. Cic. Phil. 13,1,2):
concordantes, concordare, concordes. Preferimos recriar esta variao a partir do vocbulo acordo, inspirados no
francs de Labourt (1963) vol. VI, p. 23 e Fry (2010) p. 151, n. 62. Jernimo parece zombar desse recurso de variao
em Hier. Ep. 112,6 ao variar error. No mesmo pargrafo, litigare tambm verbo do foro jurdico, que vertemos para
uma locuo, reacender o litgio.
39Em latim, unde supra elocutus sum plus fortasse quam debui, sed non plus quam timui. Agostinho parece desculpar-
se de sua verbosidade e de seu sermo de tom oratrio, uma vez que o verbo eloqui muito usado na retrica no sentido
de falar como um orador (cf. Cic. or. 19 e Quint. Inst. orat. 10,1,3); em portugus, temos seu particpio adjetivo,
eloquente, de eloquens, cujo sentido positivo. No mais, trata-se aqui de uma referncia ao tpico epistologrfico da
.
40Aluso a primeira carta de Paulo aos Corntios, cf. 1 Cor 8:1, ora, no tocante s coisas sacrificadas aos dolos,
sabemos que todos temos cincia. A cincia incha, mas o amor edifica.
41 Jac 3:2.
42 Sobre a distncia que separa os interlocutores (uma variao do tpico do ), v. supra Aug. Ep. 28, n. 7.
43 Sucesso anafrica em triclon: vel scio vel credo vel puto, de estilo elevado, como indica Fry (2010) p. 152, n. 71.
44A locuo latina scandala saeculi, tribulaes do mundo. O saeculum diz respeito vida temporria na terra, s
preocupaes da gerao em que se vive, e palavra tpica da linguagem crist e eclesistica da poca. Relaciona-se,
portanto, a mundus, cuja imagem j foi evocada anteriormente em Aug. Ep. 40,1 e Aug. Ep. 73,8.
45A noo de que se encontra descanso nos amigos tpica; ela j figura em Ccero, cf. Cic. Lael. 22;103 e Att. 1,18,1.
Noutras obras de Agostinho, ela aparece em cf. Aug. Ep. 48,1; Divers. quaest. 71,6; Civ. 19,8. V. Frst (2002) p. 250, n.
393.
46 1 Jo 4:16.

)292
Aug. ep. 73

47Aluso segunda carta de Paulo aos Corntios: na palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justia,
esquerda e direita (cf. 2 Cor 6:7). A imagem tambm se refere ao armamento dos soldados na Antiguidade, os quais
costumavam empunhar o escudo na mo esquerda, e a espada ou lana de ataque na direita. V. Fry (2010) p. 154, n. 82.
48A clusula ecoa a concluso de Aug. Ep. 73,8, em concordia pristina (Aug. Ep. 73, n. 38). O sentido aqui pode ser
mais fraco, como traduzem Labourt (1963) vol. VI, p. 18: concorde; Frst (2002) p. 253: Eintracht; e Fry (2010) p.
154: union des coeurs. Estamos de acordo com Labourt, que d conta de preservar a imagem, modificando apenas o
prefixo da palavra. No mais, a observao final generalizante: Agostinho, ao abordar a rixa de Jernimo com Rufino,
no deixa de acenar para a difcil relao com seu atual correspondente.

)293
12

Agostinho Ep. 74 / Jernimo Ep. 111


Agostinho a Presdio
[403/404]

A carta Aug. Ep. 74 um curto bilhete de Agostinho destinado ao consacerdote Presdio. Nela, h informaes

sobre Aug. Ep. 73, carta que provavelmente foi confiada a esse mensageiro. Segundo a crtica, a presente missiva foi

escrita em meados de 403 ou 4041 . Nela se condensam exrdio, narratio e concluso em um nico e curto pargrafo,

nos quais Agostinho instrui Presdio a interceder por ele, caso haja algo em seus textos que venha a despertar a ira de

Jernimo. A mensagem indica que o Tagastense ainda havia anexado, junto Aug. Ep. 73 e a este bilhete, todas as

cartas que havia enviado a Jernimo e recebido dele at ento.

Entre os tipos de Pseudo-Demtrio, esta carta um exemplo da splica ou petio2 , em que se d instrues de

algum tipo. A situao equivalente em Pseudo-Libnio seria a da ordem ou do comando3. Esto ausentes quaisquer

tpicos das epistulae familiares.

1 Isto , imediatamente aps Aug. Ep. 73. V. Hennings (1994) p. 41-42 e Fry (2010) p. 155-156.
2 Cf. Ps.-Dem. 12.
3 Cf. Ps.-Lib. 15;62.
)294
Aug. ep. 74

Domino beatissimo et merito venerando fratri et consacerdoti Praesidio Augustinus in


Domino salutem.

1. Sicut praesens rogavi sinceritatem tuam, nunc quoque commoneo, ut litteras meas sancto
fratri et compresbytero nostro Hieronymo mittere non graveris. Vt autem noverit caritas tua
quemadmodum etiam tu illi pro mea causa scribere debeas, misi exemplaria litterarum et
mearum ad ipsum, et ad me ipsius. Quibus lectis pro tua sancta prudentia facile videas et
modum meum, quem servandum putavi, et motum eius, quem non frustra timui. Aut si ego quod
non debui, vel quomodo non debui, aliquid scripsi, non ad illum de me, sed ad me ipsum potius
fraterna dilectione mitte sermonem; quo correctus petam ut ignoscat, si meam culpam ipse
cognovero.

)295
Aug. ep. 74

Agostinho envia saudaes em nome do Senhor ao consacerdote1 Presdio2, senhor


muitssimo abenoado e irmo merecidamente reverencivel.

1. Assim como eu pedi pessoalmente a tua sinceridade, agora tambm solicito que no
consideres um fardo enviar minha carta ao nosso compresbtero Jernimo, nosso irmo santo.
No mais, a fim de que tua caridade saiba de que modo tu deves escrever-lhe em favor de minha
parte, enviei cpias das cartas, tanto das que eu enviei a ele, quanto das que ele enviou a mim.
Depois de l-las, tu observars facilmente, pela tua santa prudncia, tanto a minha temperana,
que acreditei de bom grado conservar, quanto o temperamento3 dele, que no temi em vo.
Agora, se eu escrevi algo que no devia, ou se escrevi de algum modo que no devia, no v
contar a ele sobre mim, mas, antes, pelo amor fraterno, venha contar a mim mesmo o que
pensas, para que eu, corrigido pelo que dizes, pea perdo, se eu mesmo reconhecer a minha
culpa.

)296
Aug. ep. 74
NOTAS

1 Consacerdos, sacerdos designa um ttulo episcopal; no caso, trata-se de um episcopus (Aug. Ep. 28, n. 6). V. Frst
(2002) p. 17, n. 10.
2 Presdio fora um mensageiro recomendado pelo prprio Jernimo, v. supra Hier. Ep. 103, n. 5.
3 Agostinho constri um jogo lingustico entre modus meus, minha temperana, e motus eius, temperamento dele. O
modus o latim para medida, da equilbrio est modus in rebus, h equilbrio nas coisas, de Horcio, em Hor.
S. 1,106 ao passo que motus, emoo ou agitao ou, ainda, perturbao, do verbo movere (cf. Cic. Off.
1,38,136), traria mente a descompensao emocional em cuja origem estaria a ira, o medo e outras perturbaes
anmicas, da nossa opo por traduzir como temperamento. O termo ainda teria relao com o motus animi da
filosofia estoica; v. Fry (2010) p. 160, n. 11.

)297
13

Jernimo Ep. 112 / Agostinho Ep. 75


[404]

Uma longa dcada havia se passado desde que Agostinho escrevera sua primeira carta a Jernimo, na qual o

autor pedia esclarecimentos acerca da interpretao que este dera a Gal 2:11-14. Contava-se quase a mesma quantidade

de anos a partir dos quais o Estridonense evitava abordar diretamente esta questo, seja sob o pretexto de no ter certeza

de que as cartas que recebera eram realmente de Agostinho, seja por dela se esquivar deliberadamente. Aps reiterados

pedidos, Jernimo finalmente atender o pedido de Agostinho e responder a tudo o que ele desejava na presente carta,

Hier. Ep. 112, provavelmente enviada em meados de 4041. Mais: diz o Estridonense em dado momento que porro quod

dicis [...] tuo tibi sermone respondeo, alm do mais, o que dizes [...] eu te respondo com tua prpria linguagem (cf.

Hier. Ep. 112,20). Eis uma sntese do que Jernimo faz nesta mensagem: emular o sermo de Agostinho, absorvendo sua

linguagem e empregando-a, de maneira irnica, contra a argumentao de seu interlocutor.

Em um longo incio que ocupa os dois primeiros pargrafos, Jernimo menciona ter recebido, das mos do

dicono Cipriano, trs cartas de Agostinho, contendo diferentes problemas que, na leitura do Estridonense, seriam

correes de sua obra. As cartas em questo so Aug. Ep. 28, 40 e 712. Teria ele recebido tambm Aug. Ep. 73, de um

Agostinho que se acautelava da ira de Jernimo? Frst acredita que no3 , mas tendemos a pensar que sim e revelia

do que o prprio Agostinho pensar futuramente (cf. Aug. Ep. 82,1) pois encontramos indcios lingusticos para essa

hiptese4 . Quanto ao mensageiro desta carta, provvel que ele tenha sido o mesmo Cipriano a quem Agostinho

confiara sua carta Aug. Ep. 71. Jernimo, porm, no o explicita, nem deseja votos de sade a pessoas que esto com

Agostinho, tampouco termina a carta com uma frmula de concluso: dentre as cartas do autor, esta quase desprovida

de tpicos (o nico presente o da ) e elementos do gnero.

Em suas cartas anteriores, de fato, o Estridonense j dera a impresso de responder a contragosto. Agora,

porm, como os israelitas que batalharam contra os soldados de Golias ao lado do rei David, Jernimo retoma sua

armadura de Cristo o escudo da f, o capacete da salvao e a espada do Esprito (Eph 16:3) para se colocar

novamente em estado de alerta como um velho soldado veterano de Cristo imagem que o autor j construra de

si numa carta anterior (cf. Hier. Ep. 105,3) para enfrentar Agostinho no campo de batalha das Escrituras. O monge

vai enfim desafiar Agostinho no campo de batalha das Escrituras. Ento, aps um exrdio em que Jernimo ape

diversas passagens de temtica blica do Velho Testamento, assim como algumas admonies acerca da amizade a

partir da pregao paulina, diz ele que, enfim, ir direto s causas: ad ipsas causas veniam.

A narratio da carta assim dividida ento em trs partes, que apresentam dois problemas distintos, totalizando

vinte pargrafos. Jernimo responder ponto por ponto s questes levantadas por Agostinho nas cartas anteriores. No

)298
haver aqui qualquer adorno potico ou proverbial vindo de fontes pags, ou qualquer meno aos autores da cultura

clssica: o discurso ir se deter, rido e minucioso, desenrolando-se como se fosse causae em um tribunal cristo,

tomando uma estrutura semelhante a de um processo5 . A linguagem se aproxima, neste caso, do discurso tribuncio:

preciso apresentar a veracidade dos fatos; preciso tambm tomar uma deciso e convencer o leitor. Nessa chave de

leitura, a estrutura empregada pelo Estridonense nesta carta, acreditamos, empresta a dispositio de um processo civil

(melhor dizendo, uma disputatio ou polmica, como diz o autor em Hier. Ep. 112,18) em exordium (ou prohemium),

narratio, confirmatio, refutatio e peroratio, com suas respectivas subdivises6 . No deixamos, porm, de utilizar a

terminologia do gnero epistolar para analis-la porque, embora adote a estratgia e a estrutura de uma causa, o texto

Hier. Ep. 112 no deixa de ser, arquitetonicamente falando, uma carta.

Antes de entrar na causa maior da repreenso de Paulo a Pedro, Jernimo aborda o problema sobre o ttulo do

De viris illustribus, que contaram a Agostinho ser Epitaphium: o autor estabelece sua rplica em um pargrafo curto e

direto, censurando a incorreo do nome.

Jernimo entra, ento, na causa propriamente dita, isto seja, no cerne de sua discusso com Agostinho: por

que, afinal, Paulo repreendera Pedro quando este deixou de imitar os gentios na presena dos judeus? Essa discusso

durar quinze longos pargrafos. Os oito primeiros so divididos em cinco partes distintas. De incio, um exordium em

Hier. Ep. 112,4, no qual Jernimo cita o prefcio aos seus livros dos comentrios sobre a carta de Paulo aos Glatas,

arrolando todos os autores nos quais baseou sua interpretao. Vem a narratio em Hier. Ep. 112,5, na qual se

estabelecem as nuanas do caso: afinal, pergunta Jernimo, a vinda de Cristo significou que os preceitos da Lei judaica

deveriam ser abandonados e no deviam mais serem observados, sendo a correo que Paulo aplicara em Pedro ou uma

medida atrevida, como argumentou Porfrio, ou uma mera encenao, isto , uma repreenso poltica, pois nem um

nem outro obedeciam s autoridades judias verdadeiramente? Ou, por outro lado, como quer Agostinho, os ritos no

precisavam mais serem observados, e assim tanto os devedores da Lei no deveriam ser condenados entre os rus

como os gentios ou os hereges pecadores, quanto era possvel a Paulo, assim, celebrar os sacramentos da Lei

verdadeiramente? Significa, ento, que os judeus ainda podiam observar a Lei, mas os gentios no? O caso, porm,

no diz respeito somente a esse problema. Agostinho, ao tomar o partido de Paulo, se torna, Jernimo conclui, um

cmplice dele e um herege judaizante.

Jernimo inicia o pargrafo Hier. Ep. 112,5 com uma acusao contra o Tagastense. A essa, segue-se a partitio

ou divisio condensada com a narratio em Hier. Ep. 112,5-6 o erro de Jernimo encontra diversos aliados, socii, ao

passo que Agostinho no consegue encontrar um nico intercessor para sua verdade7 . Seguem-se as confirmationes ou

defesas de Pedro e Paulo em Hier. Ep. 112,7-8 e 112,9-8. Na primeira, a autoridade de Pedro encontra testemunho firme

nos Atos dos Apstolos. A partir disso, no se pode admitir que ele teria agido como transgressor de uma concluso que

ele mesmo atestara anteriormente. Pedro agira, portanto, com medo dos judeus, utilizando de uma simulatio utilis,

simulao til que era perfeitamente legtima (cf. Hier. In Gal. 2,11-14). Na segunda confirmatio, Jernimo

argumenta que Paulo fingira ser judeu para ganhar os judeus, em apreenso diante dos judeus, e partilhara da mesma

)299
simulatio utilis de Pedro. A reprehensio ou confutatio, na qual o Estridonense sintetiza o argumento de Agostinho, so

incorporadas ao longo das duas confirmationes. Por fim, segue a conclusio ou peroratio da segunda causa em Hier. Ep.

112,11, concluindo o que se argumentou anteriormente: tanto Pedro como Paulo teriam agido pelo mesmo motivo, a

apreenso diante dos judeus, e teriam simulado serem judeus para ganhar os judeus, assim como Paulo se fazia gentio

para ganhar os gentios. Pedro inocente e Paulo no agira de maneira errada, tendo utilizado de uma mentira devida,

officiosum mendacium, mas sim de uma medida poltica e honesta, honesta dispensatio. Esta foi a mesma concluso

dos intrpretes nos quais Jernimo se apoiou em seu livro dos comentrios, o primeiro dos quais foi Orgenes, em

confronto s crticas que o filsofo pago Porfrio de Tiro havia feito mesma passagem.

Ao longo dos prximos seis pargrafos, em Hier. Ep. 112,12-16, o Estridonense tentar refutar a acusao de

Agostinho, dando novos rumos sua causa. Para o autor, o cerne da questo, ou da concluso de Agostinho, implicaria

o fato de que, mesmo aps a vinda de Cristo, aos judeus seria permitido que observem os ritos da Lei, enquanto para os

gentios no o seria, concluso esta que, para Jernimo, errada e hertica. Na confirmatio e na confutatio do problema,

que se mesclam durante os pargrafos Hier. Ep. 112,13-16, o autor demonstrar que a concluso de Agostinho corre o

risco de cair em um tipo de heresia judaizante. Tomar o partido de Paulo, de que era indiferente observar os ritos da Lei,

no entender de Jernimo, tolerar que os judeus continuem a celebrar os sacramentos tradicionais at hoje; diz

Jernimo que quem est debaixo da Lei no de maneira poltica, como quiseram nossos antepassados, mas

verdadeiramente, como tu compreendes ele no tem o Esprito Santo. Deus enviara Jesus Cristo a fim de que

fssemos remidos de estar sob a Lei (cf. Gal 4:4-5), e assim vivssemos sob um Cristo dominus et heres, senhor e

um herdeiro (cf. Gal 3:25 e 4:7). Est aqui uma pista importante para desatar o n da discrdia entre Agostinho e

Jernimo: enquanto para este Cristo j era um adulto, a quem devamos obedecer, quele ele sempre permanecer um

paedagogus, um professor primrio a cuja Graa os homens, falhos e invlidos, precisaro sempre recorrer (cf. Hier.

Ep. 112,14).

Aps um breve pargrafo de admonio a Agostinho, em Hier. Ep. 112,18, entramos na terceira e ltima causa,

que concerne traduo e interpretao das Sagradas Escrituras (cf. Hier. Ep. 112,19-22). Essa discusso, que ocupa os

quatro ltimos pargrafos, ter foco em trs problemas: as duas verses do livro de J (cf. Aug. Ep. 28,2), a questo das

passagens obscuras e evidentes, e o problema de traduo de Jernimo para uma passagem do livro de Jonas,

abordado por Agostinho anteriormente em uma carta sua (cf. Aug. Ep. 71,5).

Por fim, imperativo reiterar que esta carta a nica de Jernimo, em sua correspondncia com Agostinho, a

prescindir de uma frmula de concluso. Devemos atribuir a postscriptio da carta pressa que o autor reporta no incio?

Mais que isso: ainda que inslito, o fim desta carta no abrupto, adequando-se perfeitamente ao tom colocado no

promio e estrutura adotada em sua composio. Entendemos que o Estridonense, ao construir Hier. Ep. 112 segundo

partes mais prximas de uma causa, procurou concluir o texto como uma peroratio, e no uma postscriptio. Em outras

palavras, o peso do que se disse antes determinou a ausncia de uma frmula. Alm disso, h, ao longo dessa carta,

diversas aluses e reflexes sobre a prtica epistologrfica, sobre a prtica de traduo e crtica textual, e sobre o

)300
suporte material do texto na Antiguidade so mencionados opuscula, liber, codex, volumen, os puncta de correo

questes que preferimos abordar nas notas. Diga-se em concluso que a carta Hier. Ep. 112 de Jernimo , do ponto de

vista histrico-documental, uma das mais ricas da correspondncia mtua dele com Agostinho, e certamente a mais

elaborada dentre estas, do ponto de vista estilstico8. Jernimo inclusive emprega apstrofes o beate apostole Paule;

o Paule (cf. Hier. Ep. 112,9-10) fazendo uso de mencanismos prprios do discurso suasrio para convencer o leitor,

conforme os preconizava Quintiliano9 .

Algo sobre a linguagem. Jernimo, ao adotar o mesmo estilo minaz e autoritrio que utilizara em Hier. Ep. 102

e 105, ser ainda mais contundente. Aqui, o Estridonense empregar, para efeito cmico, expresses de baixo calo,

como digerere alvi stercora, digerir os dejetos do intestino, capitis naribus purgamenta proicere, tacar catota da

cabea pelo nariz, e sputis rheumata iacere, cuspir catarro, que so descries de defecar, espirrar, e cuspir (cf. Hier.

Ep. 112,16). O autor continua a empregar diversos termos do vocabulrio militar: in procinctu, tumultuarius, armatura,

manum conserere, lancea, phalarica, estes dois ltimos talvez em resposta ao stimulus e ao aculeus empregados por

Agostinho anteriormente (cf. Aug. Ep. 73,6;8). Por outro lado, patente que Jernimo busca, nesta carta, emular o

sermo, a linguagem ou discurso de Agostinho, tomando a vox causae para defender sua verdade. O Estridonense

parece zombar da linguagem advocatcia de Agostinho ao abusar de termos como quaestio, causa, dispensatorius,

socius, adstipulator, reus, consequentia, debitor, in sententiam transire, praevaricator, legitimus, dispensatio, fautor,

defendere, declamare, magister, todos os quais encontram uso especfico no vocabulrio de foro jurdico e poltico do

Imprio. Jernimo inclusive critica explicitamente o sermo de Agostinho: totius sermonis tui, quem disputatione

longissima protaxisti, sensus est, de todo esse discurso teu, que tu esticaste numa discusso sem fim, eis o sentido (cf.

Hier. Ep. 112,12). Sendo assim, concluimos que emular o sermo de Agostinho uma estratgia de Jernimo para

ridicularizar seu oponente: maneira de uma anti-causa, essa carta escrita como uma oratio, ou melhor, uma

disputatiunculae (cf. Hier. Ep. 112,18), uma polemicazinha semelhante quela que Jernimo escrevera como Rufino.

Alm de sua anlise argumentativa, trs outros elementos apoiam essa tese, quanto estrutura da carta: a salutatio tersa

e seca; a preterio dos salutationis officia, como o prprio Jernimo diz (cf. Hier. Ep. 112,1); e a ausncia de frmula

de concluso apontada acima, situaes que aparecem tambm nas cartas retricas de Demstenes10. O contraste com

as salutationes efusivas de Agostinho, portanto, no , neste caso, devido a diferena de nimo entre os autores, ou ao

menos no se limita a isso: trata-se de convenes formais que sinalizam a especificidade desse texto frente s cartas

anteriores da correspondncia.

Por fim, importante chamar a ateno para o fato de que um discurso cheio de termos jurdicos, cujo tom

aproxima-se do estilo elevado, dissoa do estilo mais adequado s cartas, e visto comumente na Antiguidade como

motivo de riso, o que possvel entrever pela emulao satrica de Jernimo. Esta situao, na realidade, inferida pelo

tratadista Pseudo-Demtrio de Faleros, sculos antes: em seu De elocutione, ao criticar uma carta de Aristteles a

Antpatro, o autor sentencia que , , um homem

falando assim d a impresso de estar discursando, e no conversando, para em seguida arrematar dizendo que

)301
, , , ora, ridculo construir perodos longos como se se

estivesse escrevendo no uma carta, mas um discurso forense11, este que em grego se diz (latim causa). Mas

exatamente isso que Jernimo faz aqui, escrever, ou contra-escrever, uma polmica em busca de deslegitimar seu

oponente, e para efeitos que so tambm humorsticos. De fato, o Estridonense logrou escrever uma espcie de adversus

Augustinum.

Encontrar um exemplo nico na diviso de Pseudo-Demtrio, e entre as situaes elencadas por Pseudo-

Libnio, especialmente difcil para essa carta, uma vez que nela h muita informao e so discutidas muitas questes.

Segundo a diviso do tratadista, acreditamos que Hier. Ep. 112 seria um exemplar da carta de acusao12, na qual o

autor argumenta a favor de uma causa contra um interlocutor. Afinal, Jernimo parece entender que Agostinho o acusou

de modo atrevido. Trata-se de uma contra-acusao e uma acusao, portanto. A esse tipo especfico de carta, mesclam-

se elementos das cartas de censura, de admonio, e de ameaa. Das situaes de Pseudo-Libnio, identificamos

sobretudo a da contra-acusao13, acompanhada pela repreenso, ironia, ameaa, desprezo, censura, e escrnio.

1 Hennings (1994) p. 42-43; Fry (2010) p. 161-163.


2 Frst (1999) p. 104 argumenta que o presbtero Cipriano havia levado Aug. Ep. 28 e 67 junto com Aug. Ep. 71 a
Jernimo; este, por sua vez, ento com cinco cartas de Agostinho, confundiu seus mensageiros. Argumentamos sobre
isso supra Aug. Ep. 71, n. 3.
3 Frst (2002) p. 20.
4Inclusive Aug. Ep. 73, pois o autor faz uma brincadeira, em Hier. Ep. 112,6, com a raiz do termo latino error, em
possvel aluso ao jogo lingustico que Agostinho faz com a raiz de concordia em Aug. Ep. 73,8.
5 Stowers (1986) p. 43-46; Satterthwaite (1997) p. 685-693.
6 Seguimos a nomenclatura de Quintiliano, cf. Quint. Inst. orat. 3,9; cf. id. ibid. 4-5 passim.
7Ao cristo, no basta estar certo sozinho, mas preciso conquistar os outros de sua verdade, conforme discutimos
brevemente nos contextos da epistolografia, no primeiro captulo da introduo.
8Kelly (1975) p. 268-272, in fact, it [Hier. Ep. 112] was a chef doeuvre of style and erudition, carefully planned
with an eye to wider publication, a partir de De Bruyne (1932) p. 240.
9 Quintiliano recomenda a apstrofe como mecanismo de persuaso em Quint. Inst. orat. 9,2,38.
10 Sobre isso, v. Goldstein (1968), esp. p. 31-34.
11 Cf. Dem. 229.
12 Cf. Ps.-Dem. 17.
13 Cf. Ps.-Lib. 22;69.

)302
Hier. ep. 112

Domino vere sancto et beatissimo papae Augustino Hieronymus in Christo salutem.

1. Tres simul epistulas, immo libellos breves, per diaconum Cyprianum, tuae dignationis
accepi, diversas, ut tu nominas, quaestiones, ut ego sentio, reprehensiones meorum opusculorum
continentes. Ad quas, si respondere voluero, libri magnitudine opus erit. Tamen conabor
quantum facere possum, modum non egredi epistulae longioris, et festinanti fratri moram non
facere: qui ante triduum quam profecturus erat, a me epistolas flagitavit: ut paene in procinctu
haec qualiacumque sunt, effutire compellerer, et tumultuario respondere sermone, non
maturitate scribentis, sed dictantis temeritate: quae plerumque non in doctrinam, sed in casum
vertitur: ut fortissimos quoque milites subita bella conturbant, et ante coguntur fugere quam
possint arma corripere.
2. Ceterum nostra armatura Christus est, et apostoli Pauli institutio, qui scribit ad Ephesios:
Assumite arma Dei, ut possitis resistere in die malo. Et rursum: State succincti lumbos
vestros in veritate, et induti loricam iustitiae, et calceati pedes in praeparationem Evangelii
pacis: super omnia accipientes scutum fidei, in quo possitis universa tela maligni ignita
extinguere; et galeam salutis accipite, et gladium Spiritus, quod est verbum Dei. His quondam
telis rex David armatus procedebat ad proelium; et quinque lapides de torrente accipiens
levigatos, nihil asperitatis et sordium inter huius saeculi turbines in sensibus suis esse
monstrabat, bibens de torrente in via: et idcirco exaltatus caput, et superbissimum Goliam suo
potissimum mucrone truncavit, percutiens in fronte blasphemum; et in ea parte corporis
vulnerans, in qua et praesumptor sacerdotii Ozias lepra percutitur; et sanctus gloriatur in
Domino dicens: Signatum est super nos lumen vultus tui, Domine. Dicamus igitur et nos:
Paratum cor meum, Deus, paratum cor meum; cantabo et psallam in gloria mea. Exurge
psalterium et cithara; exurgam diluculo; ut in nobis possit impleri: Aperi os tuum, et ego
adimplebo illud. Et: Dominus dabit verbum evangelizantibus virtute multa. Te quoque ipsum
orare non dubito, ut inter nos contendentes veritas superet. Non enim tuam quaeris gloriam, sed
Christi; cumque tu viceris, et ego vincam, si meum errorem intellexero: et e contrario me
vincente, tu superas; quia non filii parentibus, sed parentes filiis thesaurizant. Et in
Paralipomenon libro legimus, quod filii Israel ad pugnandum processerint mente pacifica: inter
ipsos quoque gladios et effusiones sanguinis et cadavera prostratorum non suam, sed pacis
victoriam cogitantes. Respondeamus igitur ad omnia; ac multiplices quaestiones, brevi, si

)303
Hier. ep. 112
Christus iusserit, sermone solvamus. Praetermitto salutationis et officia, quibus meum demulces
caput: taceo de blanditiis, quibus reprehensionem mei niteris consolari. Ad ipsas causas veniam.
3. Dicis accepisse te librum meum a quodam fratre, qui titulum non haberet, in quo scriptores
ecclesiasticos tam Graecos quam Latinos enumeraverim. Cumque ab eo quaereres, ut tuis verbis
utar, cur liminaris pagina non esset inscripta, vel quo censeretur nomine, respondisse appellari
Epitaphium; et argumentaris quod recte sic vocaretur, si eorum tantum vel vitas vel scripta ibi
legisses, qui iam defuncti essent. Cum vero multorum et eo tempore quo scribebatur, et nunc
usque viventium commemorentur opuscula, mirari te, cur ei hunc titulum imposuerim. Puto
intellegere prudentiam tuam, quod ex opere ipso titulum potueris intellegere. Legisti enim et
Graecos et Latinos, qui vitas virorum illustrium descripserunt, quod numquam Epitaphium
indiderint, sed De illustribus viris, verbi gratia, ducibus, philosophis, oratoribus, historicis,
poetis, epicis, tragicis, comicis: Epitaphium autem proprie scribitur mortuorum: quod quidem in
dormitione sanctae memoriae Nepotiani presbyteri olim fecisse me novi. Ergo hic liber vel de
illustribus viris, vel proprie de scriptoribus ecclesiasticis appellandus est: licet a plerisque
emendatoribus imperitis, De auctoribus dicatur inscriptus.
4. Secundo loco quaeris, cur dixerim in commentariis epistulae ad Galatas, Paulum id in Petro
non potuisse reprehendere, quod ipse fecerat: nec in alio arguere simulationem cuius ipse
tenebatur reus: et asseris, reprehensionem apostolicam non fuisse dispensatoriam, sed veram; et
me non debere docere mendacium, sed universa quae scripta sunt, ita sonare, ut scripta sunt. Ad
quae primum respondeo, debuisse prudentiam tuam praefatiunculae Commentariorum meorum
meminisse, dicentis ex persona mea: Quid igitur? Ego stultus, aut temerarius, qui id pollicear
quod ille non potuit? Minime: quin potius in eo, mihi videor cautior atque timidior, quod
imbecillitatem virium mearum sentiens, Origenis commentarios secutus sum. Scripsit enim ille
vir in epistulam Pauli ad Galatas quinque proprie volumina, et decimum Stromatum suorum
librum, commatico super explanatione eius sermone complevit. Tractatus quoque varios, et
excerpta, quae vel sola possent sufficere, composuit. Praetermitto Didymum videntem meum, et
Laodicenum, de ecclesia nuper egressum, et Alexandrum veterem haereticum, Eusebium
quoque Emisenum, et Theodorum Heracleotem: qui et ipsi nonnullos super hac re
commentariolos reliquerunt. E quibus vel si pauca decerperem, fieret aliquid, quod non penitus
contemneretur. Et ut simpliciter fatear, legi haec omnia, et in mente mea plurima coacervans,
accito notario, vel mea, vel aliena dictavi, nec ordinis, nec verborum interdum, nec sensuum
memor. Iam Domini misericordiae est, ne per imperitiam nostram ab aliis bene dicta dispereant;
et non placeant inter extraneos, quae placent inter suos. Si quid igitur reprehensione dignum
)304
Hier. ep. 112
putaveras in explanatione nostra, eruditionis tuae fuerat quaerere, utrum ea quae scripsimus,
haberentur in Graecis, ut si illi non dixissent tunc meam proprie sententiam condemnares:
praesertim cum libere in praefatione confessus sim, Origenis commentarios me secutum, et vel
mea, vel aliena dictasse; et in fine eiusdem capituli, quod reprehendis, scripserim: Si cui iste
non placet sensus, quod nec Petrus peccasse, nec Paulus procaciter ostenditur arguisse maiorem,
debet exponere, qua consequentia Paulus in altero reprehendat, quod ipse commisit. Ex quo
ostendi, me non ex definito id defendere, quod in Graecis legeram: sed ea expressisse quae
legeram, ut lectoris arbitrio derelinquerem, utrum probanda essent, an improbanda.
5. Tu igitur ne quod ego petieram faceres, novum argumentum reperisti, ut assereres Gentiles
qui in Christum credidissent, Legis onere liberos; eos autem qui ex Iudaeis crederent; Legi esse
subiectos: ut per utrorumque personam, et Paulus recte reprehenderet eos qui Legem servarent,
quasi doctor Gentium; et Petrus iure reprehenderetur, qui princeps circumcisionis id imperavit
Gentibus, quod soli qui ex Iudaeis erant, debuerint observare. Hoc si placet, imo quia placet, ut
quicumque credunt ex Iudaeis, debitores sint Legis faciendae: tu ut episcopus in toto orbe
notissimus, debes hanc promulgare sententiam; et in assensum tuum omnes coepiscopos trahere.
Ego in parvo tuguriunculo cum monachis, id est, cum compeccatoribus meis, de magnis statuere
non audeo, nisi hoc ingenue confiteri, me maiorum scripta legere, et in commentariis secundum
omnium consuetudinem varias ponere explanationes, ut e multis sequatur unusquisque quod
velit. Quod quidem te puto et in saeculari litteratura, et in divinis Libris legisse et probasse.
6. Hanc autem explanationem quam primus Origenes in decimo Stromatum libro, ubi
epistulam Pauli ad Galatas interpretatur, et ceteri deinceps interpretes sunt secuti, illa vel
maxime causa subintroducunt, ut Porphyrio respondeant blasphemanti, qui Pauli arguit
procacitatem, quod principem apostolorum Petrum ausus sit reprehendere, et arguere in faciem,
ac ratione constringere, quod male fecerit, id est in eo errore fuerit, in quo fuit ipse, qui alium
arguit delinquentem. Quid dicam de Ioanne qui dudum in pontificali gradu,
Constantinopolitanam rexit Ecclesiam; et proprie super hoc capitulo latissimum exaravit librum,
in quo Origenis et veterum sententiam est secutus? Si igitur me reprehendis errantem, patere
me, quaeso, errare cum talibus; et cum me erroris mei multos socios habere perspexeris, tu
veritatis tuae saltem unum adstipulatorem proferre debebis. Haec de explanatione unius capituli
epistulae ad Galatas.
7. Sed ne videar adversus rationem tuam niti testium numero, et occasione virorum illustrium
subterfugere veritatem, nec manum audere conserere, breviter de Scripturis exempla proponam.
In Actibus Apostolorum vox facta est ad Petrum, dicens: Surge, Petre, occide et manduca, id
)305
Hier. ep. 112
est, omnia animalia quadrupedum, et serpentium terrae, et volatilium coeli. Quo dicto,
ostenditur nullum hominem secundum naturam esse pollutum; sed aequaliter omnes ad Christi
Evangelium provocari. Ad quod respondit Petrus: Absit, quia numquam manducavi commune
et immundum. Et vox ad eum de coelo secundo facta est, dicens: Quae Deus mundavit, tu ne
commune dixeris. Ivit itaque Caesaream; et ingressus ad Cornelium, aperiens os suum, dixit:
In veritate comperi, quia non est personarum acceptor Deus; sed in omni gente, qui timet eum
et operatur iustitiam, acceptus est illi. Denique cecidit Spiritus sanctus super eos, et
obstupuerunt ex circumcisione fideles, qui venerant cum Petro, quod et in Nationes gratia
Spiritus sancti fuisset effusa. Tunc respondit Petrus: Numquid aquam quis prohibere potest, ut
non baptizari. Audierunt autem Apostoli et fratres qui erant in Iudaea, quia et gentes receperunt
verbum Dei. Cum autem ascendisset Petrus Hierosolymam, disceptabant adversus illum qui
erant ex circumcisione, dicentes: Quare introisti ad viros praeputium habentes, et manducasti
cum illis? Quibus omni ratione exposita, novissime orationem suam hoc sermone conclusit:
Si ergo eandem gratiam dedit illis Deus, sicut et nobis qui credidimus in Dominum Iesum
Christum; ego quis eram, qui possem prohibere Deum? His auditis, tacuerunt; et glorificaverunt
Deum dicentes: Ergo et Gentibus Deus paenitentiam ad vitam dedit. Rursum cum multo post
tempore Paulus et Barnabas venissent Antiochiam; et congregata Ecclesia, retulissent quanta
fecisset Deus cum illis, et quia aperuisset Deus Gentibus ostium fidei, quidam descendentes de
Iudaea docebant fratres atque dicebant: Nisi circumcidamini secundum morem Moysi, non
potestis salvi fieri. Commota igitur seditione non minima adversus Paulum et Barnabam,
statuerunt ascendere et ipsi qui accusabantur, et hi qui accusabant, ad apostolos et presbyteros
Hierosolymam super hac quaestione. Cumque Hierosolymam perrexissent, surrexissent quidam
de haeresi Pharisaeorum, qui crediderant in Christum, dicentes: Oportet circumcidi eos, et
praecipere illis ut servent Legem Moysi. Et cum magna super hoc verbo oriretur quaestio,
Petrus solita libertate: Viri, inquit, fratres, vos scitis quoniam ab antiquis diebus in nobis elegit
Deus per os meum audire Gentes verbum Evangelii et credere; et qui novit corda Deus,
testimonium perhibuit, dans illis Spiritum sanctum, sicut et nobis, et nihil discrevit inter nos et
illos, fide purificans corda illorum. Nunc autem quid tentatis Deum imponere iugum super
cervicem discipulorum, quod neque patres nostri, neque nos portare potuimus? Sed per gratiam
Domini nostri Iesu Christi credimus salvari, quemadmodum et illi. Tacuit autem omnis
multitudo, et in sententiam eius Iacobus apostolus, et omnes simul presbyteri transierunt.
8. Haec non debent molesta esse lectori, sed et illi et mihi utilia, ut probemus ante apostolum
Paulum non ignorasse Petrum, immo principem huius fuisse decreti, Legem post Evangelium
)306
Hier. ep. 112
non servandam. Denique tantae Petrus auctoritatis fuit, ut Paulus in epistula sua scripserit:
Deinde post annos tres veni Hierosolymam videre Petrum, et mansi apud eum diebus
quindecim. Rursumque in consequentibus: Post annos quatuordecim ascendi iterum
Hierosolymam cum Barnaba, assumpto et Tito. Ascendi autem secundum revelationem, et
exposui eis evangelium quod praedico inter Gentes, ostendens se non habuisse securitatem
evangelii praedicandi, nisi Petri et qui cum eo erant, fuisset sententia roboratum. Statimque
sequitur: Separatim autem his qui videbantur aliquid esse, ne forte in vacuum currerem aut
cucurrissem. Quare separatim, et non in publico? Ne fidelibus ex numero Iudaeorum, qui
Legem putabant esse servandam, et sic credendum in Domino Salvatore, fidei scandulum
nasceretur. Ergo et eo tempore cum Petrus venisset Antiochiam (licet hoc Apostolorum Acta non
scribant, sed affirmanti Paulo credendum sit) in faciem illi Paulus restitisse se scribit, quia
reprehensibilis erat. Prius enim quam venirent quidam a Iacobo, cum Gentibus edebat; cum
autem venissent, subtrahebat se, et segregabat, timens eos qui ex circumcisione erant. Et
consenserunt cum illo ceteri Iudaei: ita ut et Barnabas adduceretur ab his in illam simulationem.
Sed cum vidissem, inquit, quod non recte ingrediuntur ad veritatem Evangelii, dixi Petro
coram omnibus: Si tu, cum sis Iudaeus, gentiliter et non iudaice vivis; quomodo cogis Gentes
iudaizare? et cetera. Nulli ergo dubium est, quod Petrus apostolus sententiae huius, cuius nunc
praevaricator arguitur, primus auctor extiterit. Causa autem praevaricationis, timor est
Iudaeorum. Dicit enim Scriptura: quod primum edebat cum Gentibus; cum autem venissent
quidam a Iacobo, subtrahebat se et segregabat, timens eos qui ex circumcisione erant. Timet
autem Iudaeos, quorum erat apostolus, ne per occasionem Gentilium a fide Christi recederent, et
imitator pastoris boni, perderet gregem sibi creditum.
9. Sicut igitur ostendimus, Petrum bene quidem sensisse de abolitione Legis Mosaicae; sed ad
simulationem observandae eius timore compulsum: videamus an ipse Paulus qui alium arguit,
tale quid fecerit. Legimus in eodem libro: Perambulabat autem Paulus Syriam, et Ciliciam,
confirmans Ecclesias: pervenitque in Derben, et Listram; et ecce discipulus quidam erat ibi,
nomine Timotheus, filius mulieris Iudeae fidelis, patre gentili. Huic testimonium reddebant qui
Listris erant et Iconio fratres. Hunc voluit Paulus secum proficisci; et assumens circumcidit eum
propter Iudaeos qui erant in illis locis: sciebant enim omnes quod pater eius gentilis esset. O
beate apostole Paule, qui in Petro reprehenderas simulationem, quare se subtraxisset a Gentibus
propter metum Iudaeorum, qui a Iacobo venerant, cur Timotheum, filium hominis gentilis,
utique et ipsum gentilem, neque enim Iudaeus erat, qui non fuerat circumcisus, contra
sententiam tuam circumcidere cogeris? Respondebis mihi: Propter Iudaeos qui erant in illis
)307
Hier. ep. 112
locis. Qui igitur tibi ignoscis in circumcisione discipuli venientis ex Gentibus, ignosce et Petro
praecessori tuo, quod aliqua fecerit metu fidelium Iudaeorum. Rursum scriptum est: Paulus
vero cum adhuc sustinuisset dies multos, fratribus valedicens, navigavit Syriam, et cum eo
Priscilla et Aquila: et totondit sibi in Cenchreis caput; votum enim habuerat. Esto ut ibi
Iudaeorum timore compulsus sit facere quod nolebat, quare comam nutrivit ex voto? Et postea
eam in Cenchreis totondit ex Lege, quod Nazaraei, qui se Deo voverint, iuxta praeceptum Moysi
facere consuerunt?
10. Verum haec ad comparationem eius rei quae sequitur, parva sunt. Refert Lucas sacrae
scriptor historiae: Cum venissemus Hierosolymam, libenter susceperunt nos fratres; et
sequenti die Iacobus et omnes seniores, qui cum eo erant, evangelio illius comprobato, dixerunt
ei: Vides, frater, quot millia sunt in Iudaea, qui crediderunt in Christum, et hi omnes
aemulatores sunt Legis. Audierunt autem de te quod discessionem doceas a Moyse eorum qui
per Gentes sunt Iudaeorum, dicens non debere eos circumcidere filios suos, neque secundum
consuetudinem ingredi. Quid ergo est? Utique oportet convenire multitudinem; audierunt enim
te supervenisse. Hoc ergo fac quod tibi dicimus. Sunt nobis viri quatuor votum habentes super
se; his assumptis, sanctifica te cum ipsis, et impende in eos ut radant capita; et scient omnes
quia quae de te audierunt falsa sunt, sed ambulas et ipse custodiens Legem. Tunc Paulus,
assumptis viris, postera die purificatus, cum illis intravit in templum, annuntians expletionem
dierum purificationis, donec offerretur pro unoquoque eorum oblatio. O Paule, et in hoc te
rursus interrogo: cur caput raseris; cur nudipedalia exercueris de cerimoniis Iudaeorum; cur
obtuleris sacrificia, et secundum Legem hostiae pro te fuerint immolatae? Utique respondebis:
Ne scandalizarentur qui ex Iudaeis crediderant. Simulasti ergo Iudaeum, ut Iudaeos
lucrifaceres; et hanc ipsam simulationem Iacobus te, et ceteri te docuere presbyteri: sed tamen
evadere non potuisti. Orta enim seditione, cum occidendus esses, raptus es a tribuno, et ab eo
missus Caesaream, sub custodia militum diligenti, ne te Iudaei quasi simulatorem ac
destructorem Legis occiderent. Atque inde Romam perveniens, in hospitio quod tibi conduxeras,
Christum et Iudaeis et Gentibus praedicasti, et sententia tua Neronis gladio confirmata est.
11. Didicimus quod propter metum Iudaeorum et Petrus et Paulus aequaliter finxerint se Legis
praecepta servare. Qua igitur fronte, qua audacia Paulus in altero reprehendat quod ipse
commisit? Ego, immo alii ante me exposuerunt causam quam putaverant, non officiosum
mendacium defendentes, sicut tu scribis; sed docentes honestam dispensationem, ut et
apostolorum prudentiam demonstrarent, et blasphemantis Porphyrii impudentiam coercerent,
qui Petrum et Paulum puerili dicit inter se pugnasse certamine; immo exarsisse Paulum invidia
)308
Hier. ep. 112
virtutum Petri, et ea scripsisse iactanter, quae vel non fecerit, vel si fecerit, procaciter fecerit id
in alio reprehendens quod ipse commiserit. Interpretati sunt illi ut potuerunt. Tu quomodo istum
locum edisseres? Utique meliora dicturus, qui veterum sententiam reprobasti.
12. Scribis ad me in epistola tua: Neque enim a me docendus es, quomodo intellegatur quod
idem apostolus dicit: Factus sum Iudaeis tamquam Iudaeus, ut Iudaeos lucrifacerem, et cetera;
quae ibi dicuntur compassione misericordiae, non simulatione fallaciae. Fit enim tamquam
aegrotus, qui ministrat aegroto, non cum se febres habere mentitur, sed cum animo condolentis
cogitat quemadmodum sibi serviri vellet, si ipse aegrotaret. Nam utique Iudaeus erat;
Christianus autem factus, non Iudaeorum sacramenta reliquerat, quae convenienter ille populus,
et legitimo tempore quo oportebat, acceperat: ideoque suscepit ea celebranda cum iam Christi
esset apostolus, ut doceret non esse perniciosa his qui ea vellent, sicut a parentibus per Legem
acceperant, custodire, etiam cum in Christum credidissent; non tamen in eis iam constituerent
spem salutis, quoniam per Dominum Iesum salus ipsa quae illis sacramentis significabatur,
advenerat. Totius sermonis tui, quem disputatione longissima protraxisti, hic sensus est: ut
Petrus non erraverit in eo quod his qui ex Iudaeis crediderant, putaverit Legem esse servandam:
sed in eo a recti linea deviarit quod Gentes coegerit iudaizare. Coegerat autem, non docentis
imperio, sed conversationis exemplo. Et Paulus non contraria sit locutus his, quae ipse gesserat;
sed quare Petrus eos, qui ex Gentibus erant, iudaizare compelleret.
13. Haec ergo summa est quaestionis, immo sententiae tuae: ut post Evangelium Christi, bene
faciant credentes Iudaei, si Legis mandata custodiant; hoc est, si sacrificia offerant, quae obtulit
Paulus, si filios circumcidant, si sabbatum servent, ut Paulus in Timotheo, et omnes observavere
Iudaei. Si hoc verum est, in Cerinthi et Hebionis haeresim delabimur, qui credentes in Christum
propter hoc solum a patribus anathematizati sunt, quod Legis cerimonias Christi Evangelio
miscuerunt; et sic nova confessi sunt, ut vetera non amitterent. Quid dicam de Ebionitis, qui
Christianos esse se simulant? Usque hodie per totas Orientis synagogas inter Iudaeos haeresis
est, quae dicitur Mineorum, et a Pharisaeis nunc usque damnatur, quos vulgo Nazaraeos
nuncupant, qui credunt in Christum Filium Dei, natum de Maria virgine, et eum dicunt esse, qui
sub Pontio Pilato passus est, et resurrexit, in quem et nos credimus: sed dum volunt et Iudaei
esse et Christiani, nec Iudaei sunt nec Christiani. Oro ergo te, ut qui nostro vulnusculo
medendum putas, quod acu foratum, immo punctum, ut dicitur, huius sententiae medearis
vulneri, quod lancea, et ut ita dicam, phalaricae mole percussum est. Neque enim eiusdem est
criminis in explanatione Scripturarum diversas maiorum sententias ponere, et haeresim
sceleratissimam rursum in ecclesiam introducere. Sin autem haec nobis incumbit necessitas, ut
)309
Hier. ep. 112
Iudaeos cum legitimis suis suscipiamus, et licebit eis observare in ecclesiis Christi, quod
exercuerunt in synagogis satanae: dicam quod sentio, non illi Christiani fient, sed nos Iudaeos
facient.
14. Quis enim hoc Christianorum patienter audiat, quod in tua epistola continetur: Iudaeus erat
Paulus; Christianus autem factus, non Iudaeorum sacramenta reliquerat, quae convenienter ille
populus, et legitimo tempore quo oportebat, acceperat: ideoque suscepit celebranda ea cum iam
Christi esset apostolus, ut doceret non esse perniciosa his qui ea vellent, sicut a parentibus per
Legem acceperant, custodire? Rursum obsecro te, ut pace tua meum dolorem audias:
Iudaeorum Paulus cerimonias observabat, cum iam Christi esset apostolus, et dicis eas non esse
perniciosas his qui eas vellent, sicut a parentibus acceperant, custodire. Ego e contrario loquar,
et reclamante mundo, libera voce pronuntiem cerimonias Iudaeorum et perniciosas esse et
mortiferas Christianis; et quicumque eas observaverit, sive ex Iudaeis, sive ex Gentibus, eum in
barathrum diaboli devolutum. Finis enim Legis Christus, ad iustitiam omni credenti: Iudaeo
scilicet et Gentili; neque enim omni credenti erit finis ad iustitiam, si Iudaeus excipitur. Et in
Evangelio legimus: Lex et prophetae usque ad Ioannem Baptistam. Et in alio loco: Propterea
ergo magis quaerebant eum Iudaei interficere, quia non solum solvebat sabbatum, sed et Patrem
suum dicebat esse Deum, aequalem se faciens Deo. Et iterum: De plenitudine eius nos omnes
accepimus, et gratiam pro gratia, quia Lex per Moysen data est; Gratia autem et veritas per
Iesum Christum facta est. Pro Legis gratia quae praeteriit, gratiam evangelii accepimus
permanentem; et pro umbris et imaginibus veteris Instrumenti, veritas per Iesum Christum facta
est. Ieremias quoque ex persona Dei vaticinatur: Ecce dies veniunt, dicit Dominus, et
consummabo domui Israel et domui Iuda testamentum novum; non secundum testamentum
quod disposui patribus eorum, in die quando apprehendi manum eorum, ut educerem eos de
terra Aegypti. Observa quid dicat, quod non populo Gentilium, cum quo ante non fecerat
Testamentum; sed populo Iudaeorum, cui Legem dederat per Moysen, Testamentum novum
evangelii repromittat: ut nequaquam vivant in vetustate litterae, sed in novitate spiritus. Paulus
autem super cuius nomine nunc quaestio ventilatur, crebras huiuscemodi ponit sententias; e
quibus brevitatis studio pauca subnectam. Ecce ego Paulus dico vobis quoniam si
circumcidamini, Christus vobis nihil prodest. Et iterum: Evacuati estis a Christo, qui in Lege
iustificamini; a gratia excidistis. Et infra: Si spiritu ducimini, iam non estis sub Lege. Ex quo
apparet, qui sub Lege est, non dispensative, ut nostri voluere maiores, sed vere, ut tu intellegis,
eum Spiritum Sanctum non habere. Qualia autem sint praecepta legalia, Deo docente, discamus.
Ego, inquit, dedi eis praecepta non bona, et iustificationes in quibus non vivant in eis. Haec
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Hier. ep. 112
dicimus non quo Legem iuxta Manichaeum et Marcionem destruamus, quam et sanctam et
spiritalem iuxta apostolum novimus; sed quia postquam fides venit et temporum plenitudo, misit
Deus filium suum factum ex muliere, factum sub Lege, ut eos qui sub Lege erant redimeret, ut
adoptionem filiorum reciperemus; et nequaquam sub paedagogo, sed sub adulto, et Domino et
herede vivamus.
15. Sequitur in epistola tua: Non ideo Petrum emendavit, quod paternas traditiones observaret:
quod si facere vellet, nec mendaciter, nec incongrue faceret. Iterum dico: episcopus es,
ecclesiarum Christi magister, ut probes verum esse quod asseris, suscipe aliquem Iudaeorum,
qui factus Christianus, natum sibi filium circumcidat, qui observet sabbatum, qui abstineat a
cibis quos Deus creavit ad utendum cum gratiarum actione, qui quartadecima die mensis primi
agnum mactet ad vesperam; et cum hoc feceris, immo non feceris (scio enim te Christianum, et
rem sacrilegam non esse facturum) velis nolis, tuam sententiam reprobabis: et tunc scies opere
difficilius esse confirmare sua, quam aliena reprehendere. Ac ne forsitan tibi non crederemus,
immo non intellegeremus quid diceres (frequenter enim in longum sermo protractus caret
intellegentia; et dum non sentitur, ab imperitis minus reprehenditur) inculcas et replicas: Hoc
ergo Iudaeorum Paulus dimiserat, quod malum habebant. Quod est malum Iudaeorum, quod
Paulus dimiserat? Utique illud quod sequitur: quod ignorantes Dei iustitiam, et suam volentes
constituere, iustitiae Dei non sunt subiecti; deinde quod post passionem et resurrectionem
Christi, dato ac manifestato sacramento gratiae, secundum ordinem Melchisedech, adhuc
putabant vetera sacramenta non ex consuetudine solemnitatis, sed necessitate salutis esse
celebranda: quae tamen si numquam fuissent necessaria, infructuose atque inaniter pro eis
Machabaei martyres fierent; postremo illud quod praedicatores gratiae Christianos Iudaei,
tamquam hostes Legis persequerentur. Hos atque huiusmodi errores et vitia dicit se damna et ut
stercora arbitratum, ut Christum lucrifaceret.
16. Didicimus per te, quae apostolus Paulus mala reliquerit Iudaeorum; rursum te docente
discamus, quae bona eorum tenuerit. Observationes, inquies, Legis, quas more patrio
celebrant, sicut ab ipso Paulo celebratae sunt, sine ulla salutis necessitate. Id quid velis dicere,
sine ulla salutis necessitate, non satis intellego. Si enim salutem non afferunt, cur
observantur? Si autem observanda sunt, utique salutem afferunt; maxime quae observata
martyres faciunt. Non enim observarentur, nisi afferrent salutem. Neque enim indifferentia sunt
inter bonum et malum, sicut philosophi disputant. Bonum est continentia, malum luxuria; inter
utrumque indifferens, ambulare, digerere alvi stercora, capitis naribus purgamenta proicere,
sputis rheumata iacere. Hoc nec bonum, nec malum est; sive enim feceris, sive non feceris, nec
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Hier. ep. 112
iustitiam habebis, nec iniustitiam. Observare autem Legis cerimonias, non potest esse
indifferens; sed aut bonum malum est, aut malum est. Tu dicis bonum, ego assero malum; et
malum non solum his qui ex Gentibus, sed et his qui ex Iudaico populo crediderunt. In hoc, ni
fallor, loco, dum aliud vitas, in aliud devolveris. Dum enim metuis Porphyrium blasphemantem,
in HHebionis incurris laqueos, his qui credunt ex Iudaeis, observandam Legem esse decernens.
Et qui periculosum intellegis esse quod dicis, rursum illud superfluis verbis temperare conaris:
Sine ulla salutis necessitate, sicut Iudaei celebranda putabant, aut fallaci simulatione, quod in
Petro reprehenderat Paulus.
17. Petrus igitur simulavit Legis custodiam. Iste autem reprehensor Petri, audacter observavit
legitima. Sequitur enim in epistula tua: Nam si propterea illa sacramenta celebravit, quia
simulavit se Iudaeum, ut illos lucrifaceret, cur non etiam sacrificavit cum Gentibus, quia et his
qui sine Lege erant, tamquam sine Lege factus est, ut eos quoque lucrifaceret? Nisi quia et illud
fecit, ut natura Iudaeus, et hoc totum dixit, non ut Paulus se fingeret esse quod non erat, sed ut
misericorditer ita subveniendum esse sentiret, ac si ipse in eo errore laboraret; non scilicet
mentientis astu, sed compatientis affectu. Bene defendis Paulum, quod non simulaverit errorem
Iudaeorum, sed vere fuerit in errore. Neque imitari Petrum voluerit mentientem, ut quod erat,
metu Iudaeorum dissimularet: sed tota libertate Iudaeum se esse diceret. Novam clementiam
apostoli; dum Iudaeos Christianos vult facere, ipse Iudaeus factus est. Non enim poterat
luxuriosos ad frugalitatem reducere, nisi se luxuriosum probasset, et misericorditer, ut ipse dicis,
subvenire miseris, nisi se miserum ipse sentiret. Vere enim miselli et misericorditer deplorandi,
qui contentione sua et amore Legis abolitae apostolum Christi fecere Iudaeum. Nec multum
interest inter meam et tuam sententiam, quia ego dico et Petrum et Paulum timore fidelium
Iudaeorum, Legis exercuisse, immo simulasse mandata: tu autem asseris hoc eos fecisse
clementer, non mentientis astu, sed compatientis affectu, dummodo illud constet, vel metu,
vel misericordia eos simulasse se esse quod non erant. Illud autem argumentum quo adversus
nos uteris, quod et Gentilibus debuerit gentilis fieri, si Iudaeis Iudaeus factus est, magis pro
nobis facit: sicut enim non fuit vere Iudaeus, sic nec vere gentilis erat; et sicut non fuit vere
Gentilis, sic nec vere Iudaeus erat. In eo autem imitator Gentilium est, quia praeputium recipit
in fide Christi: et indifferenter permittit vesci cibis quos damnant Iudaei; non cultu, ut tu putas,
idolorum. In Christo enim Iesu nec circumcisio est aliquid, nec praeputium, sed observatio
mandatorum Dei.
18. Quaeso igitur te, et iterum atque iterum deprecor, ut ignoscas disputatiunculae meae; et quod
modum meum egressus sum, tibi imputes, qui coegisti ut rescriberem, et mihi cum Stesichoro
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Hier. ep. 112
oculos abstulisti. Nec me putes magistrum esse mendacii, qui sequor Christum dicentem: Ego
sum via et vita et veritas; nec potest fieri ut veritatis cultor, mendacio colla submittam. Neque
mihi imperitorum plebeculam concites, qui te venerantur ut episcopum, et in ecclesia
declamantem, sacerdotii honore suspiciunt; me autem aetatis ultimae et paene decrepitum, ac
monasterii et ruris secreta sectantem parvi pendunt; et quaeras tibi quos doceas sive
reprehendas. Ad nos enim tantis maris atque terrarum a te divisos spatiis vix vocis tuae sonus
pervenit. Et si forsitan litteras scripseris, ante eas Italia ac Roma suscipient, quam ad me cui
mittendae sunt, deferantur.
19. Quod autem in aliis quaeris epistolis: cur mea prior in libris canonicis interpretatio asteriscos
habeat, et virgulas praenotatas, et postea aliam translationem absque his signis ediderim; pace
tua dixerim, videris mihi non intellegere quod quaesisti. Illa enim interpretatio Septuaginta
interpretum est; et ubicumque virgulae, id est obeli sunt, significatur quod Septuaginta plus
dixerint quam habetur in Hebraeo; ubi autem asterisci, id est stellae praelucentes, ex
Theodotionis editione ab Origene additum est: et ibi Graeca transtulimus, hic de ipso Hebraico,
quod intellegebamus expressimus, sensuum potius veritatem quam verborum interdum ordinem
conservantes. Et miror quomodo Septuaginta interpretum libros legas non puros ut ab eis editi
sunt, sed ab Origene emendatos, sive corruptos per obelos et asteriscos; et Christiani hominis
interpretatiunculam non sequaris, praesertim cum ea quae addita sunt, ex hominis Iudaei atque
blasphemi, post passionem Christi, editione transtulerit. Vis amator esse verus Septuaginta
interpretum? Non legas ea quae sub asteriscis sunt, immo rade de voluminibus, ut veterum te
fautorem probes. Quod si feceris, omnes ecclesiarum bibliothecas condemnare cogeris. Vix
enim unus aut alter invenietur liber, qui ista non habeat.
20. Porro quod dicis non debuisse me interpretari post veteres, et novo uteris syllogismo: Aut
obscura fuerunt quae interpretati sunt Septuaginta, aut manifesta. Si obscura, te quoque in eis
falli potuisse credendum est; si manifesta, illos in eis falli non potuisse, perspicuum est, tuo tibi
sermone respondeo. Omnes veteres tractatores qui nos in Domino praecesserunt, et qui
Scripturas sanctas interpretati sunt, aut obscura interpretati sunt, aut manifesta. Si obscura, tu
quomodo post eos ausus es disserere, quod illi explanare non potuerunt? Si manifesta,
superfluum est te voluisse disserere, quod illos latere non potuit, maxime in explanatione
Psalmorum, quos apud Graecos interpretati sunt multis voluminibus, primus Origenes, secundus
Eusebius Caesariensis, tertius Theodorus Heracleotes, quartus Asterius Scythopolita, quintus
Apollinaris Laodicenus, sextus Didymus Alexandrinus. Feruntur et diversorum in paucos
Psalmos opuscula; sed nunc de integro Psalmorum corpore dicimus. Apud Latinos autem
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Hier. ep. 112
Hilarius Pictaviensis et Eusebius Vercellensis episcopus, Origenem et Eusebium transtulerunt,
quorum priorem et noster Ambrosius in quibusdam secutus est. Respondeat mihi prudentia tua,
quare tu post tantos et tales interpretes in explanatione Psalmorum diversa senseris? Si enim
obscuri sunt Psalmi, te quoque in eis falli potuisse credendum est. Si manifesti, illos in eis falli
potuisse non creditur: ac per hoc utroque modo superflua erit interpretatio tua, et hac lege post
priores nullus loqui audebit, et quodcumque alius occupaverit alius de eo scribendi licentiam
non habebit. Quin potius humanitatis tuae est, in quo veniam tibi tribuis, indulgere et ceteris.
Ego enim non tam vetera abolere conatus sum, quae linguae meae hominibus emendata de
Graeco in Latinum transtuli, quam ea testimonia quae a Iudaeis praetermissa sunt vel corrupta,
proferre in medium; ut scirent nostri quid Hebraea veritas contineret. Si cui legere non placet,
nemo compellit invitum. Bibat vinum vetus cum suavitate, et nostra musta contemnat, quae in
explanatione priorum edita sunt; ut sicubi illa non intelleguntur, ex nostris manifestiora fiant.
Quod autem genus interpretationis in Scripturis sanctis sequendum sit, liber quem scripsi de
optimo genere interpretandi, et omnes praefatiunculae divinorum voluminum, quas editioni
nostrae praeposuimus, explicant; ad illasque prudentem lectorem remittendum puto. Et si me, ut
dicis, in Novi Testamenti emendatione suscipis, exponisque causam cur suscipias; quia plurimi
linguae Graecae habentes scientiam, de meo possent opere iudicare, eandem integritatem
debueras etiam in Veteri credere Testamento, quod non nostra confinximus; sed ut apud
Hebraeos invenimus, divina transtulimus. Sicubi dubitas, Hebraeos interroga.
21. Dices: Quid si Hebraei aut respondere noluerint, aut mentiri voluerint? Tota frequentia
Iudaeorum in mea interpretatione reticebit? Nullus invenire poterit, qui Hebraeae linguae habeat
notitiam; aut omnes imitabuntur illos Iudaeos, quos dicis in Africae repertos oppidulo in meam
calumniam conspirasse? Huiuscemodi enim in epistula tua texis fabulam: Quidam frater noster
episcopus, cum lectitari instituisset in ecclesia cui praeest, interpretationem tuam, movit
quiddam longe aliter a te positam apud Ionam prophetam, quam erat omnium sensibus
memoriaeque inveteratum, et tot aetatum successionibus decantatum. Factusque est tantus
tumultus in plebe, maxime Graecis arguentibus, et inflammantibus calumniam falsitatis, ut
cogeretur episcopus (Oea quippe civitas erat) Iudaeorum testimonium flagitare. Vtrum autem
illi imperitia an malitia, hoc esse in Hebraeis codicibus responderunt, quod et Graeci et Latini
habebant atque dicebant. Quid plura? Coactus est homo velut mendositatem corrigere, volens
post magnum periculum non remanere sine plebe. Vnde etiam nobis videtur aliquando te
quoque in nonnullis falli potuisse.

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Hier. ep. 112
22. Dicis me in Ionam prophetam male quiddam interpretatum, et seditione populi conclamante,
propter unius verbi dissonantiam, episcopum paene sacerdotium perdidisse; et quid sit illud
quod male interpretatus sum, subtrahis, auferens mihi occasionem defensionis meae, ne
quicquid dixeris, me respondente solvatur: nisi forte, ut ante annos plurimos, cucurbita venit in
medium, asserente illius temporis Cornelio et Asinio Pollione, me hederam pro cucurbita
transtulisse. Super qua re in commentario Ionae prophetae plenius respondimus. Hoc tantum
nunc dixisse contenti, quod in eo loco ubi Septuaginta interpretes cucurbitam et Aquila cum
reliquis hederam transtulerunt, id est , in Hebraeo volumine ciceion scriptum habetur,
quam vulgo Syri ciceiam vocant. Est autem genus virgulti, lata habens folia, in modum pampini;
cumque plantatum fuerit, cito consurgit in arbusculam absque ullis calamorum et hastilium
adminiculis, quibus et cucurbitae et hederae indigent, suo trunco se sustinens. Hoc ergo verbum
de verbo edisserens, si ciceion transferre voluissem, nullus intellegeret; si cucurbitam, id
dicerem quod in Hebraico non habetur; hederam posui, ut ceteris interpretibus consentirem. Sin
autem Iudaei vestri, ut ipse asseris, malitia vel imperitia, hoc dixerunt esse in voluminibus
Hebraeorum, quod in Graecis et Latinis codicibus continetur; manifestum est eos aut Hebraeas
ignorare litteras, aut ad irridendos cucurbitarios voluisse mentiri.
23. Peto in fine epistulae, ut quiescentem senem olimque veteranum militare non cogas, et rursum
De vita periclitari. Tu qui iuvenis es, et in pontificali culmine constitutus, doceto populos, et
novis Africae frugibus Romana tecta locupleta. Mihi sufficit cum auditore vet lectore
pauperculo in angulo monasterii susurrare.

)315
Hier. ep. 112

Jernimo ao padre1 Agostinho, senhor verdadeiramente santo e muitssimo abenoado.

1. Trs cartas2 , ou melhor, livrinhos3 da parte de tua dignidade, recebi ao mesmo tempo por
intermdio do dicono4 Cipriano5, contendo diferentes, como tu ds a entender, problemas;
repreenses, como eu vejo, das minhas obrinhas6. A elas, se eu quiser respond-las, ser preciso
um livro inteiro. Ainda assim eu tentarei, na medida do possvel, no exceder a extenso de uma
carta mais longa7 , e no provocar demora a um irmo apressado, que uns trs dias antes de partir
insistiu tanto para que eu ditasse uma carta que, como se em estado de alerta8, sou obrigado a
balbuciar essas palavras quaisquer e a responder com uma conversa improvisada9 , desprovida
do aprumo de quem escreve, e com a precipitao de quem dita, essa que amide desemboca
no em erudio mas em caos: as guerras repentinas confundem at os soldados mais valentes, e
os obrigam a fugir antes que possam pegar em armas10.
2. No mais, Cristo nossa armadura, e a instruo11 que recebemos do apstolo Paulo, que
escreve aos Efsios: vesti a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau12, e ainda:
estai firmes, tendo cingido os vossos flancos com a verdade, e vestido a couraa da justia; e
calados os ps na preparao do Evangelho da paz; tomando sobretudo o escudo da f, com o
qual podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno. Tomai tambm o capacete da
salvao, e a espada do Esprito, que a palavra de Deus13 . Armando-se outrora com esse
arsenal, o rei David partia para a batalha e, tomando cinco seixos do rio, mostrava, ao beber no
mesmo enquanto andava14, que nada havia de aspereza em seu esprito, e nada de imundcie em
meio s turbulncias desse mundo, e por isso foi de cabea erguida que ele degolou, com sua
adaga, e com muita fria, o mais soberbo Golias, golpeando o blasfemo na testa ferindo a
mesma parte do corpo em que o usurpador de Uzias foi acometido pela lepra15 e, santo,
glorificou-se no Senhor dizendo: a luz do teu rosto exaltou-se sobre ns, Senhor16. Digamos
ento tambm ns17 : preparado est o meu corao, Deus, preparado est o meu corao;
cantarei, e darei louvores; desperta, glria minha; despertai, saltrio e harpa; eu despertarei ao
romper da alva,18 para que em ns se possa encher, abre a tua boca, e ta encherei19 , e o
Senhor dar a palavra; grande a virtude dos que anunciam as boas novas20. Tu mesmo, eu no
duvido, tambm rezas para que, em meio nossa contenda, sobressaia a verdade. Pois tu no
buscas a glria pessoal, mas a de Cristo, e, se tu venceres, eu tambm vencerei, se eu
compreender meu erro; e, do contrrio, se a vitria for minha, tu vais me sobressair, pois no
so os filhos que entesouram para os pais, mas os pais, para os filhos21 . Ainda, nos livros das
)316
Hier. ep. 112
Crnicas22 , lemos que os filhos de Israel partiram para a guerra com esprito de quem quer paz,
e, mesmo entre tantas armas e derramamento de sangue e tantos cadveres amontoados,
pensavam em uma vitria que favorecesse esta, no a si prprios23 . Respondamos, portanto, a
tudo e solucionemos tuas questes complexas com breves palavras, se Cristo o exigir. Deixo de
lado tambm as devidas saudaes, com as quais afagas minha cabea24; passo em silncio
sobre os elogios com os quais tu te esforas para abrandar a repreenso que me diriges. Vou
direto s causas25.
3. Tu dizes que recebeste, por meio de um certo irmo, um livro meu que no tinha ttulo, no
qual eu enumerei os escritores eclesisticos, tanto os gregos quanto os latinos26 . E, ao
perguntares a ele (aqui uso tuas palavras) por que a pgina inicial no estava intitulada, ou por
qual nome o livro era conhecido, tu dizes que ele respondeu que se chamava Epitfio27, e
argumentas que seria correto cham-lo assim, se nele tivesses lido sobre as vidas ou sobre os
escritos somente de autores que j morreram. No entanto, uma vez que nele so mencionadas
obrinhas de muitos escritores que estavam vivos na poca em que foi escrito, alguns dos quais
esto vivos at hoje, tu ficaste surpreso com o porqu de eu ter dado tal ttulo ao livro. Creio que
tua prudncia compreende que tu poderias ter compreendido o ttulo a partir da prpria obra. Tu
certamente leste os autores, tanto os gregos quanto os latinos, que escreveram acerca das vidas
de homens ilustres (ora, eles nunca deram o ttulo de Epitfio, mas Os homens ilustres), por
exemplo: generais, filsofos, oradores, historiadores, poetas lricos, picos, trgicos, cmicos28;
Epitfio, por outro lado, atribui-se popriamente a um livro sobre os mortos, algo que, bem sei,
eu fiz certa vez, em ocasio do falecimento do presbtero Nepociano29 , em sua santa memria.
Portanto, esse livro deve ser chamado de Os homens ilustres ou, o que tambm apropriado, de
Os escritores eclesisticos30, no importa que ele seja chamado de Os autores31 pela maioria dos
corretores incompetentes.
4. Em segundo lugar, tu perguntas porque eu afirmei, em meus comentrios carta aos
Glatas32, que Paulo no pde repreender em Pedro aquilo que ele mesmo fizera, e nem inculpar
tampouco em outro uma simulao da qual ele mesmo era manifestamente culpado; tu
defendes, ainda, que a repreenso apostlica no foi poltica33 mas verdadeira, e que eu no
devo ensinar uma mentira, mas que tudo que est escrito deve soar assim como est escrito. Ao
que, primeiro, respondo que tua prudncia devia ter se lembrado daquele prefaciozinho de meus
comentrios no qual falo sobre mim mesmo34: ento o qu? Seria eu estpido e precipitado a
ponto de prometer algo que nem ele35 conseguiu? Claro que no! Antes, julgo-me ter sido aqui
mais cauteloso e prudente, j que, ciente da limitao de minhas foras, segui os comentrios de
)317
Hier. ep. 112
Orgenes36. A saber, esse grande homem escreveu (pasme!) cinco volumes sobre a carta de
Paulo aos Glatas, e ainda terminou o dcimo livro de seus Stromata37 com uma ligeira
explicao da mesma. Ademais, ele produziu diversos tratados e excertos que seriam por si s
suficientes. Deixo de lado meu caro Ddimo, o vidente38 ; o Laodiceu39 , que deixou a Igreja
recentemente; o velho herege Alexandre40 ; Eusbio de meso igualmente41 ; e Teodoro de
Heracleia42, homens que deixaram, tambm eles, alguns comentariozinhos sobre o tema. Desses
autores, se eu pudesse apanhar nem que uma coisinha, dar-se-ia um resultado no em todo
desprezvel. E, devo confessar humildemente, eu li as obras todas e, acumulando tanta coisa na
memria, ditei, tendo chamado o taqugrafo43, as minhas ideias junto com as de outros, sem me
preocupar com a ordem, com as palavras, s vezes, nem com o sentido. Depende, agora, da
misericrdia do Senhor que as boas ideias dos outros no se percam devido a nossa
incompetncia, e que no deixe de ser aprovado pelos estrangeiros <latinos> o que foi aprovado
pelos nativos <gregos>. Se antes tu julgaste, portanto, que havia algo digno de repreenso em
nossa exposio, era dever da tua erudio buscar saber se o que escrevemos se encontrava nos
autores gregos, para que, se no tivessem sido eles que tiveram essas ideias, s a tu
condenasses meu modo de pensar, principalmente tendo em vista que eu declarei abertamente,
no prefcio, ter seguido os comentrios de Orgenes, e ter ditado as minhas ideias junto com as
de outros e que, no fim do mesmo captulo que repreendes, escrevi: se algum no aprovar essa
interpretao, a de que nem Pedro pecou, nem Paulo se mostrou atrevido ao censurar seu
superior, preciso que ele apresente que raciocnio permite concluir que Paulo repreende em
outro aquilo que ele mesmo cometeu. Nessa passagem, mostrei que eu no defendia em
definitivo44 o que havia lido nos gregos, mas que eu dava voz ao que havia lido, para que
deixasse ao leitor a deciso de aprov-lo ou no45.
5. Tu, portanto, longe de fazer aquilo que eu pedi, arrumaste um novo argumento para
asseverar que os gentios crentes em Cristo estariam livres do peso da Lei, ao passo que os
judeus crentes estariam sujeitos a ela, de modo que, por meio desses dois tipos de fiis, Paulo
teria repreendido corretamente tanto os gentios que obedeciam a Lei, na posio de doutor dos
gentios46 , como tambm Pedro teria sido com direito repreendido, ele que, como prncipe da
circunciso47 , teria ordenado aos gentios o que somente aqueles que estavam entre os judeus
deveriam observar. Ora, se tu aprovas, ou melhor, porque tu aprovas que todos os judeus crentes
seriam devedores da Lei, tu, como bispo muito conhecido em todo o mundo, deves ento
publicar essa concluso e trazer todos os teus colegas de bispado a consentir contigo48 ; eu, por
minha vez, num pobre casebrezinho, com os monges, digo, com os meus companheiros de
)318
Hier. ep. 112
pecado49, eu no ouso assentir sobre esses grandes assuntos, seno declarar francamente que
leio os escritos dos meus maiores e que procuro, em meus comentrios (e como j tradio),
produzir diferentes explicaes, para que de muitas dessas cada um escolha a que lhe aprouver.
Algo que, certamente, tu leste e aprovaste tanto na literatura profana como nos livros divinos50.
6. Esta exposio, porm, que Orgenes foi o primeiro no dcimo livro dos Stromata51, onde
ele interpretou a carta de Paulo aos Glatas, e que depois outros intrpretes52 endossaram,
sobretudo por essa causa que eles a adicionaram, para responder as blasfmias de Porfrio53 , o
qual censura o atrevimento de Paulo por este ter ousado repreender Pedro, primeiro dos
apstolos, e, ainda, por t-lo censurado publicamente e constrangido a retratar-se por ter agido
incorretamente; isto , que ele <Pedro> teria incorrido no mesmo erro em que incorreu o mesmo
<Paulo> que censura o delito alheio. Que devo dizer de Joo54 , que h algum tempo governava,
na condio de pontfice55 , a Igreja em Constantinopla, e compilou, propriamente sobre essa
passagem, um livro imenso, no qual endossou a concluso de Orgenes e dos demais
patriarcas56 ? Portanto, se tu me repreendes ao errar, permita-me, por favor, que eu erre com tais
homens, e, quando tu constatares que tenho muitos aliados em meu erro, tu devers apresentar
ao menos um intercessor57 para tua verdade58 . Isso sobre a explanao desse nico captulo da
carta aos Glatas.
7. Mas para que eu no parea, contra teu raciocnio, apoiar-me em um rol de testemunhos e
fugir s escondidas da verdade, usando, como pretexto, escritores muito conhecidos, nem que
ouso tampouco bater de frente contigo59 , citarei brevemente alguns exemplos das Escrituras60 .
Nos Atos dos Apstolos, uma voz dirigia-se a Pedro, dizendo: levanta-te Pedro, mata e come!,
isto , todos os animais quadrpedes e rpteis da terra, e aves do cu. Atravs desta passagem,
mostra-se que nenhum homem sujo por natureza, mas que todos so chamados de maneira
igual ao Evangelho de Cristo. A isso respondeu Pedro: de modo nenhum, Senhor, porque
nunca comi coisa alguma comum e imunda. E segunda vez lhe disse a voz, no faas tu
comum ao que Deus purificou61. Foi ento a Cesareia e l visitou Cornlio, a quem disse,
abrindo sua boca: reconheo por verdade que Deus no faz acepo de pessoas; mas que lhe
agradvel aquele que, em qualquer nao, o teme e faz o que justo62. Finalmente: caiu o
Esprito Santo sobre todos os que ouviam a palavra. E os fiis que eram da circunciso, todos
quantos tinham vindo com Pedro, maravilharam-se de que o dom do Esprito Santo se
derramasse tambm sobre os gentios. Respondeu, ento, Pedro, pode algum porventura
recusar a gua, para que no sejam batizados estes, que tambm receberam como ns o Esprito
Santo? E mandou que fossem batizados em nome do Senhor. E ouviram os apstolos, e os
)319
Hier. ep. 112
irmos que estavam na Judeia, que tambm os gentios tinham recebido a palavra de Deus. E,
subindo Pedro a Jerusalm, disputavam com ele os que eram da circunciso, dizendo, por que
entraste em casa de homens incircuncisos, e comeste com eles?63 Aos quais, tendo exposto
todos seus motivos, <Pedro> concluiu seu discurso de forma bastante original: portanto, se
Deus lhes deu a mesma graa que a ns, quando havemos crido no Senhor Jesus Cristo, quem
era ento eu, para que pudesse resistir a Deus? E, ouvindo estas coisas, calaram-se, e
glorificaram a Deus, dizendo: na verdade at aos gentios deu Deus o arrependimento para a
vida64 . Novamente, passado muito tempo, Paulo e Barnab foram a Antiquia e, reunida a
Igreja, relataram: quo grandes coisas Deus fizera por eles, e como abrira aos gentios a porta
da f. Ento alguns que tinham descido da Judeia ensinavam assim os irmos, se no vos
circuncidardes conforme o uso de Moiss, no podeis salvar-vos. Tendo surgido a Paulo e
Barnab no pequena discusso e contenda contra eles, resolveu-se que Paulo e Barnab, e
alguns dentre eles, subissem a Jerusalm, tanto eles que eram acusados quanto aqueles que
acusavam, aos apstolos e aos ancios, sobre aquela questo. E, quando chegaram a Jerusalm,
alguns da seita dos fariseus, que tinham crido em Cristo, se levantaram, dizendo, mister
circuncid-los e mandar-lhes que guardem a lei de Moiss!, e surgiu grande contenda acerca da
afirmao. Pedro, com sua franqueza habitual: Homens irmos, bem sabeis que j h muito
tempo Deus me elegeu dentre ns, para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do
Evangelho, e cressem. E Deus, que conhece os coraes, lhes deu o testemunho, dando-lhes o
Esprito Santo, assim como tambm a ns; e no fez diferena alguma entre eles e ns,
purificando os seus coraes pela f. Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre o pescoo
dos discpulos um jugo que nem nossos pais nem ns pudemos suportar? Mas cremos que
seremos salvos pela Graa do Senhor Jesus Cristo, como eles tambm65. Ento toda a
multido se calou e deram-lhe razo o apstolo Tiago e tambm todos os ancios.
8. Essas passagens no devem entediar o leitor66 , mas ser teis tanto a ele como a mim, para
assim provarmos que Pedro, diante do apstolo Paulo, no ignorara (ora, ele foi o primeiro a
tomar essa deciso!) que a Lei no devia mais ser observada aps o Evangelho. Enfim, a
autoridade de Pedro era tamanha que o prprio Paulo escreveu em sua carta: depois, passados
trs anos, fui a Jerusalm para ver Pedro67 , e ficar com ele quinze dias; e, novamente, em
seguida: depois, passados catorze anos, subi outra vez a Jerusalm com Barnab, levando
comigo tambm Tito. E subi por uma revelao, e lhes expus o Evangelho, que prego entre os
gentios, mostrando que ele no tinha segurana de pregar o Evangelho se no estivesse firmado
no parecer de Pedro e daqueles que viviam com ele. Segue-se de imediato: e particularmente
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aos que pareciam estar em estima, para que de maneira alguma no corresse em vo ou no
tivesse corrido em vo68 . Por que particularmente, e no em pblico? Para que no surgisse um
escndalo na f entre os fiis vindos dos judeus, os quais pensavam que a Lei devia ser
observada para assim crer no Senhor Salvador. Ento, na mesma poca em que Pedro vinha a
Antiquia esta informao no est nos Atos dos Apstolos, mas deve-se crer no que afirma
Paulo , Paulo escreve que lhe resistiu frontalmente porque era repreensvel. Porque, antes
que alguns tivessem chegado da parte de Tiago, comia com os gentios; mas, depois que
chegaram, se foi retirando, e se apartou deles, temendo os que eram da circunciso. E os outros
judeus tambm dissimulavam com ele, de maneira que at Barnab se deixou levar por aquela
simulao. Mas, quando vi que no andavam bem e direitamente conforme a verdade do
Evangelho, disse a Pedro na presena de todos, se tu, sendo judeu, vives como os gentios e no
como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus? e o resto. A ningum, ento,
vago que foi o apstolo Pedro o primeiro a atestar essa concluso, da qual ele agora censurado
como transgressor69. E a causa da impostura a apreenso diante dos judeus; diz a Escritura:
porque primeiro comia com os gentios; mas, depois que chegaram, se foi retirando, e se
apartou deles, temendo os que eram da circunciso. Ele temia, porm, que os judeus, de quem
era o apstolo, se apartassem da f em Cristo, em ocasio dos gentios, e tambm temia que ele
perdesse o rebanho que lhe fora confiado, imitando o bom pastor70 .
9. Ento, assim como ns71 mostramos que Pedro tinha uma opinio bastante coerente quanto
abolio da Lei de Moiss, mas que ele foi levado, pela apreenso, simulao de que ela devia
ser observada; vejamos se o prprio Paulo, que censura Pedro, teria feito algo de semelhante.
Lemos no mesmo livro <nos Atos dos Apstolos>: e [Paulo] passou pela Sria e Cilcia,
confirmando as igrejas. E chegou a Derbe e Listra. E eis que estava ali um certo discpulo por
nome Timteo, filho de uma judia que era crente, mas de pai gentio; do qual davam bom
testemunho os irmos que estavam em Listra e Icnio. Paulo quis que este fosse com ele; e
tomando-o, o circuncidou, por causa dos judeus que estavam naqueles lugares; porque todos
sabiam que seu pai era gentio72 . abenoado apstolo Paulo, que repreenderas em Pedro uma
simulao, por ele ter se retirado do convvio com os gentios, com medo dos judeus que vieram
com Tiago! Por que tu obrigas Timteo, ele que era filho de gentio, e assim ele mesmo gentio
que no era ento judeu, pois no havia sido circuncidado por que, contra tua prpria
opinio, tu o circuncidas por obrigao? Tu me responders: por causa dos judeus que estavam
naqueles lugares. Tu, que te perdoas por causa da circunciso de um discpulo vindo dos
gentios, perdoa tambm Pedro, teu predecessor, de ter feito algo semelhante por medo dos
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judeus fiis! Novamente, est escrito: e Paulo, ficando ainda ali muitos dias, despediu-se dos
irmos, e dali navegou para a Sria, e com ele Priscila e quila, tendo rapado a cabea em
Cencreia, porque tinha voto. Que seja, que Pedro tenha sido levado, ento, por apreenso
diante dos judeus, a fazer o que no queria; por qual razo tu deixaste ento o cabelo crescer,
tomando voto, e depois o rapaste em Cencreia, segundo a Lei, algo que os nazireus, que se
entregaram a Deus, costumavam fazer segundo o preceito de Moiss73?
10. No entanto, isso pouco em comparao com o que se segue. Lucas, o escritor da histria
sagrada, reporta: logo que chegamos a Jerusalm, os irmos nos receberam de muita boa-
vontade, e que, no dia seguinte, Tiago e todos os mais velhos que estavam com ele, aprovado
seu Evangelho, disseram-lhe: bem vs, irmo, quantos milhares de judeus h que creram em
Cristo, e todos so zeladores da lei. E j acerca de ti foram informados de que ensinas todos os
judeus que esto entre os gentios a apartarem-se de Moiss, dizendo que no devem circuncidar
seus filhos, nem andar segundo o costume da Lei. Que faremos pois? em todo caso necessrio
que a multido se ajunte; porque tero ouvido que j s vindo. Faz, pois, isto que te dizemos:
temos quatro homens que fizeram voto. Toma estes contigo, e santifica-te com eles, e faz por
eles os gastos para que rapem a cabea, e todos ficaro sabendo que nada h daquilo de que
foram informados acerca de ti, mas que tambm tu mesmo andas guardando a lei. Ento Paulo,
tomando consigo aqueles homens, entrou no dia seguinte no templo, j santificado com eles,
anunciando serem j cumpridos os dias da purificao; e ficou ali at se oferecer por cada um
deles a oferta74 . Paulo, nisto tambm eu te questiono novamente: por que rapaste a cabea,
por que procedeste de ps nus nas cerimnias dos judeus75, por que ofereceste sacrifcios, e
fizeste com que vtimas te fossem imoladas, como prega a Lei? Certamente responders: para
que no se escandalizassem aqueles judeus que eram crentes. Tu ento simulaste ser judeu para
ganhar judeus, e essa mesma simulao te foi ensinada por Tiago e os outros ancios. E mesmo
assim no pudeste te salvar! A insurreio estourara, tu terias sido morto, tu foste capturado por
um tribuno e por ele enviado a Cesareia, sob a frrea custdia do exrcito, para que os judeus
no te matassem como um simulador e destruidor da Lei, e, vindo de l at Roma, tu, na
casa que te arrumaras, pregaste Cristo tanto aos judeus quanto aos gentios, e tua sentena foi
selada pela espada de Nero76.
11. Aprendemos que foi devido ao medo dos judeus que tanto Pedro como Paulo fingiram
igualmente observar os preceitos da Lei. E com qual afronta, com qual audcia Paulo repreende
em outro o que ele mesmo cometeu? Eu mesmo, ou melhor, outros antes de mim expuseram o
que julgaram ser a razo, defendendo no uma mentira devida, como tu escreves, mas
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demonstrando uma medida poltica e honesta77 , para que pudessem expor a prudncia dos
apstolos e refutar a petulncia das blasfmias de Porfrio78, o qual afirma que Paulo e Pedro
brigaram entre si como crianas, e mais, que Paulo ardia de inveja das virtudes de Pedro, e que
ele escreveu por presuno algo que no fizera ou, se o fez, fez com insolncia, repreendendo
em outro o que ele mesmo teria cometido. Bem, eles interpretaram como puderam. E tu, como
tu explicarias essa passagem? Certamente tu tens algo melhor a dizer, j que tu reprovaste a
concluso dos patriarcas.
12. Tu me escreves em tua carta: ora, tampouco necessrio que aprendas de mim de que
maneira se deve compreender aquela passagem, na qual o mesmo Paulo diz, e fiz-me como
judeu para os judeus, para ganhar os judeus, e o resto que l se diz: a partir da compaixo da
misericrdia, e no da simulao de uma mentira. Certo, quem cuida de um doente age como
um doente, mas no porque mente dizendo que tem febre, e sim porque, colocando-se no lugar
de quem sofre, procura saber de que maneira ele gostaria de ser atendido, caso ele mesmo
adoecesse. Em todo caso, o prprio Paulo era judeu, e mesmo aps se tornar cristo ele no
deixou de celebrar os sacramentos dos judeus, os quais o povo judeu recebera de acordo com as
circunstncias e no tempo em que eram necessrios. por isso que Paulo sustentou que os
sacramentos podiam ser celebrados mesmo quando j havia se tornado um apstolo de Cristo:
para, no caso, ensinar aos judeus que eles no eram nocivos queles que quisessem observ-los
conforme os haviam recebido de seus pais, atravs da Lei, ainda que j acreditassem em Cristo;
no para que, no entanto, eles estabelecessem nesses sacramentos a esperana da salvao, uma
vez que, por meio do Senhor Jesus, essa mesma salvao, que antes era simbolizada naqueles
sacramentos, finalmente chegara79. De toda essa conversa tua, que tu esticaste numa discusso
sem fim, eis o sentido: que Pedro no teria errado, no caso, ao julgar que a Lei deveria ser
observada por aqueles que eram crentes entre os judeus, mas que, na realidade, ele teria
desviado da retido por ter obrigado os gentios a imitar os judeus; que ele os obrigava, porm,
baseando-se no na palavra de ordem do professor, mas tomando como exemplo o modo de vida
deles; e que Paulo teria falado coisas que no entravam em conflito com seus prprios atos, mas
com razo, pois Pedro coagia os que eram vindos dos gentios a imitar os judeus.
13. Eis ento o ncleo do problema, ou melhor, da tua concluso: que, aps o Evangelho de
Cristo, os judeus crentes agiriam corretamente se preservarem os mandamentos da Lei, isto , se
oferecerem os sacrifcios que Paulo tambm ofereceu, se circuncidarem seus filhos, se
observarem o sab, como Paulo com Timteo e todos os judeus observavam. Se isto verdade,
camos na heresia de Cerinto80 e Ebio81, eles que, crendo em Cristo unicamente por isso, foram
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anatematizados pelos patriarcas82, j que confundiram as cerimnias da Lei com o Evangelho de
Cristo, e professaram a nova f to somente para no abandonar a antiga. Que devo dizer dos
ebionitas, que simulam serem cristos? Ainda persiste, por todas as sinagogas do Oriente, uma
heresia de judeus conhecida como a dos mineus83, que at hoje condenada pelos fariseus84
(que os chamam popularmente de nazarenos85 ), e que creem em Cristo o filho de Deus, que Ele
nasceu da virgem Maria, e afirmam que Ele quem padeceu sob Pncio Pilatos e ressuscitou,
em quem ns tambm acreditamos, mas que tambm, por quererem ser judeus e cristos, no
so nem judeus nem cristos86 . Por isso, tu que julgas que nosso machucadozinho deve ser
curado, esse que, dizem, s um buraco de agulha, ou melhor, uma picadinha, eu oro a ti que
cures antes o machucado dessa concluso, uma ferida trespassada por uma lana e, digo mais,
por uma do tamanho de uma falrica87. Ora, no se trata de um mesmo crime expor as diferentes
solues dos autores antigos na explanao das Sagradas Escrituras, e trazer uma heresia muito
perversa novamente na Igreja. Se, porm, h uma necessidade que nos incumbe a aceitarmos os
judeus com suas legalidades88, e se lhes for permitido observar nas igrejas de Cristo o que
exerciam nas sinagogas de Satans89 (digo o que penso!), no so eles que se tornaro cristos,
mas eles que nos faro judeus.
14. Quem, pois, entre os cristos, teria a pacincia para dar ouvidos ao que se encerra em tua
carta: em todo caso, o prprio Paulo era judeu, e mesmo aps se tornar cristo ele no deixou
de celebrar os sacramentos dos judeus, os quais o povo judeu recebera de acordo com as
circunstncias e no tempo em que eram necessrios. por isso que Paulo sustentou que os
sacramentos podiam ser celebrados mesmo quando j havia se tornado um apstolo de Cristo:
para, no caso, ensinar aos judeus que eles no eram nocivos queles que quisessem observ-los
conforme os haviam recebido de seus pais90 ? Novamente, eu te imploro: d ouvido minha
dor, para o teu bem. Paulo observava as cerimnias dos judeus, mesmo j sendo apstolo de
Cristo; tu afirmas que elas no eram nocivas aos que queriam observ-las, conforme as
receberam de seus pais. J eu diria o contrrio e (que o mundo proteste!) pronunciaria em alto e
bom som91 que elas eram, sim, nocivas e mortais aos cristos; quem quer que as observasse,
fosse ele vindo dos judeus ou vindo dos gentios, esse rolaria direto no fosso do diabo92. Porque
o fim da lei Cristo para a justia a todo aquele que cr93, ou seja, ao judeu e ao gentio. Ora, o
fim no poder ser justia a todos os crentes, caso for aberta uma exceo ao judeu. Lemos
tambm no Evangelho: a Lei e os profetas duraram at Joo Batista94 ; em outra passagem,
ainda: por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam mat-lo, porque no s quebrantava o
sbado, mas tambm dizia que Deus era seu prprio Pai, fazendo-se igual a Deus95 ; uma vez
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mais: todos ns recebemos tambm da sua plenitude, e graa por graa, porque a Lei foi dada
por Moiss; a graa e a verdade vieram por Jesus Cristo96 . Em lugar da Graa da Lei que ficou
no passado, recebemos a graa eterna do Evangelho; no lugar das sombras e imagens do Velho
Instrumento97, fez-se a verdade por Jesus Cristo. Jeremias, ele tambm, com a voz de Deus,
vaticina: eis que dias vm, diz o Senhor, em que farei um testamento novo com a casa de
Israel e com a casa de Jud. No conforme o testamento que fiz com seus pais, no dia em que os
tomei pela mo, para os tirar da terra do Egito98. Considera o que ele diz: no ao povo dos
gentios, com o qual ele no fizera testamento algum, mas ao povo dos judeus, a quem dera a Lei
por Moiss, que Ele repromete um novo Testamento do Evangelho, para que eles de modo
nenhum vivam na caducidade das tradies escritas, mas na frescura do esprito. J Paulo, cuja
reputao est agora em jogo, aventa com frequncia opinies nesse mesmo sentido, das quais,
para ser conciso, anexarei poucas: eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes
circuncidar, Cristo de nada vos aproveitar; uma vez mais: separados estais de Cristo, vs os
que vos justificais pela Lei; da Graa tendes cado; e adiante: mas, se sois guiados pelo
Esprito, no estais debaixo da Lei99. Disso, bvio: quem est debaixo da Lei no de
maneira poltica, como quiseram nossos antepassados100 , mas verdadeiramente, como tu
compreendes ele no tem o Esprito Santo. Analisemos, porm, que peso tm os outros
preceitos da Lei, tendo Deus como professor. Diz Ele: Eu lhes dei estatutos que no eram bons,
juzos pelos quais no haviam de viver101 . Afirmamo-lo no a fim de, como querem os
maniqueus102 e Marcio103 , destruir a Lei, que santa e sagrada (sabemos disso pelo apstolo);
mas porque, aps a vinda da f e da plenitude dos tempos, Deus enviou seu filho, nascido de
mulher, nascido sob a Lei, para remir os que estavam sob a Lei, a fim de recebermos a adoo
de filhos104, de modo algum para vivermos sob um professor primrio, mas sob um adulto, um
senhor e um herdeiro105 .
15. Segue em tua carta: no foi por supostamente observar as tradies de seus pais, portanto,
que Paulo corrigiu Pedro; tivesse esse agido assim, no teria agido de forma mentirosa nem
incongruente106 . Repito: tu s um bispo, um diretor107 das igrejas de Cristo; a fim de provar que
o que asseveras verdade, arruma algum entre os judeus que, convertido ao cristianismo,
circuncide seu filho, que observe o sab, que se abstenha dos alimentos que Deus criou a fim
de usarem como aes de graas108, que imole um cordeiro ao entardecer do dcimo quarto dia
do primeiro ms109 , e, quando tu o encontrares, ou melhor, quando tu no o encontrares pois
sei que tu s cristo e no cometerias nenhum sacrilgio queira ou no queira tu reprovars
tua concluso, e assim aprenders por experincia prpria que mais difcil fundamentar as
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nossas prprias palavras que repreender as palavras dos outros. E, a fim de evitares que no
acreditemos em ti, ou melhor, que no consigamos compreender o que dizes um discurso
arrastado longamente no raro carece de clareza, e quo mais confuso menos ele repreendido
pelos ignorantes tu inculcas e replicas: Paulo doravante abandonara o que as prticas dos
judeus tinham de mal. Que mal esse que havia nas prticas dos judeus, que Paulo
abandonara? Certamente aquilo que se segue: primeiro, porque no conhecendo a justia de
Deus, e procurando estabelecer a sua prpria justia, no se sujeitaram justia de Deus;
segundo, porque, mesmo aps a paixo e ressurreio de Cristo, em que os sacramentos da
Graa segundo a ordem de Melquisedeque foram dados e tornaram-se manifestos, eles ainda
pensavam que os antigos ritos deviam ser celebrados no em virtude do carter tradicional das
celebraes, mas da necessidade da salvao (os quais, se nunca tivessem sido necessrios, seria
em vo e sem proveito que os macabeus teriam se dado como mrtires em sua defesa); por fim,
porque os judeus perseguiam os cristos, pregadores da Graa, como inimigos da Lei. So esses
os erros, eles e parecidos com eles, que Paulo considera vcios e escria para que se pudesse
ganhar a Cristo110.
16. Aprendemos contigo quais eram as prticas ms dos judeus que Paulo abandonou; agora,
seguindo a ti como professor, aprendamos quais eram as prticas boas que ele teria
preservado. Dirs: as observaes da Lei, que celebravam segundo o costume de seus pais,
assim como o prprio Paulo as celebrava, sem consider-las necessrias salvao. No
entendo muito bem o que queres dizer com sem consider-las necessrias salvao. Ora, se
elas no trazem a salvao, por que so observadas? Se, porm, elas devem ser observadas,
certamente trazem a salvao, sobretudo porque observ-las produz mrtires; elas no seriam
observadas caso no trouxessem a salvao. Ora, no se trata aqui de opes indiferentes entre o
bem e o mal, como discutem os filsofos: o bem est na continncia, o mal no excesso, e entre
ambos indiferente o andar, o defecar os dejetos do intestino, o tacar catota da cabea pelo
nariz, o cuspir catarro111. Isso no bom nem mal; ora, se o fizeres ou no fizeres, teu ato no
ser por isso justo ou injusto. Observar, porm, as cerimnias da Lei no pode ser algo
indiferente, mas ou algo ruim, ou algo bom. Tu afirmas que bom, eu digo que ruim, e
ruim no s aos que vieram dos gentios, mas igualmente aos crentes vindos dos judeus. Nesse
ponto, salvo engano, enquanto tu evitas um mal, tu tombas em outro, pois enquanto temes as
blasfmias de Porfrio, tu te apressas forca de Ebio, ao decidires que a Lei deve ser observada
pelos judeus que so crentes. Alis, j que tu compreendes que perigoso o que afirmas,
novamente tentas abrandar a coisa com palavras suprfluas: sem consider-las necessria
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salvao (como os judeus pensavam que deviam ser celebradas), ou sem qualquer simulao
falaciosa que repreendera em Pedro112.
17. Ento Pedro simulou a custdia da Lei. Este, porm, aquele que repreende Pedro, observou-
a, atrevidamente, de maneira legtima. Segue-se, pois, em tua carta: ora, se Paulo celebrou
aqueles sacramentos porque simulou ser um judeu, a fim de ganhar judeus, por que ento no
praticou sacrifcios com os gentios, j que ele se tornou um sem lei entre eles que eram sem lei,
para que tambm os ganhasse? No foi porque ele era judeu de origem que ele agiu assim? Ele
usou todo esse discurso no para fingir mentirosamente ser o que na realidade no era, mas
porque acreditava que devia lhes prestar auxlio, com misericrdia, como se padecesse do
mesmo erro; ou seja, no por meio da astcia de um mentiroso, mas do sentimento de algum
que se compadece113 . tima a tua defesa de Paulo; ele no teria simulado o erro dos judeus,
mas cometido, verdadeiramente, o mesmo erro; ele no teria desejado imitar a mentira de Pedro
para, era isso, dissimular por medo dos judeus, mas teria se afirmado judeu de livre e
espontnea vontade. Eis uma nova clemncia do apstolo! J que ele quer tornar os judeus
cristos, ele mesmo se fez judeu! Ele, pois, no podia resgatar os luxuriosos frugalidade, a no
ser que se fizesse luxurioso, ou vir em misericrdia (como tu mesmo dizes) em auxlio aos
mseros, a no ser que ele mesmo se sentisse um msero! Ora, verdade, so miserveis, e
misericordiosamente dignos de d os homens que, por um tal malabarismo prprio, e por amor a
uma Lei abolida, fizeram do apstolo de Cristo um judeu! Mas no h grande diferena entre
minha e a tua opinio, pois eu digo que tanto Pedro como Paulo exerceram, ou melhor,
simularam os mandamentos da Lei por apreenso diante dos judeus fiis; tu, porm, adicionas
que eles o fizeram com clemncia, no por meio da astcia de um mentiroso, mas do
sentimento de algum que se compadece, desde que se coloque que foi por apreenso ou por
misericrdia que eles simularam ser o que no eram114. O argumento, porm, que usas contra
ns, que Paulo deveria se fazer gentio aos gentios se ele se fez judeu aos judeus, joga antes em
nosso favor. Ora, assim como ele no foi um judeu de verdade, ele no era um gentio de
verdade; assim como ele no foi um gentio de verdade, ele no era um judeu de verdade. Neste
caso, porm, ele um imitador dos gentios, pois aceitou a incircunciso na f de Cristo, e
tolerou, de modo indiferente, que fossem comidos os alimentos condenados pelos judeus (e no,
como tu pensas, por causa da idolatria). Porque em Jesus Cristo nem a circunciso nem a
incircunciso tem valor algum115 , mas sim a observncia dos mandamentos de Deus.
18. Eu te peo, ento, e te imploro muitas e muitas vezes que perdoes minha polemicazinha116 e,
j que passei dos limites117, consideres ser tua a responsabilidade, tu que me obrigaste a
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responder, e me arrancaste os olhos como Estescoro118 . E no penses que sou um professor de
mentiras119, eu que sigo Cristo ao dizer eu sou o caminho, a vida e a verdade120; tampouco
possvel que eu, um protetor da verdade, arrisque meu pescoo por causa de uma mentira. No
me incites, ainda, o povinho de ignorantes121 que te veneram como bispo e te elevam s honras
do sacerdcio por causa das tuas declamaes122 na igreja; eu, porm, um homem beira da
morte, quase decrpito, sequioso do isolamento dos mosteiros e do campo, a mim eles pouco
estimam; v procurar-te a quem ensinar ou repreender. A ns, enfim, tantos so os mares, tantas
so as terras que nos separam de ti que o som da tua voz mal nos chega123 e, se por um acaso
vieres a me escrever alguma carta, Roma e Itlia iro tom-la antes que ela seja entregue a mim,
a quem foi destinada.
19. Agora, o que perguntas em outra carta124, por que minha primeira traduo dos livros
cannicos tem asteriscos e bastezinhos de notao125, se posteriormente cheguei a editar uma
outra traduo sem tais sinais, parece-me que tu, perdoa-me a liberdade, no entendeste o que
perguntaste. Ora, a primeira verso foi traduzida a partir da Septuaginta e, onde quer que nesta
h bastezinhos (isto , obeliscos), significa que a Septuaginta diz mais que o texto hebraico;
onde, porm, h asteriscos (isto , estrelas cintilantes), trata-se aqui de uma adio de Orgenes
a partir da edio de Teodocio126. No mais, l traduzimos do grego, e aqui expressamos o que
compreendemos diretamente a partir do hebraico, preservando mais a verdade dos sentidos que,
por vezes, a ordem das palavras127. E eu no me conformo que tu ls a Septuaginta no na
verso original, como editaram seus tradutores, mas na verso corrigida (ou corrompida) com
obeliscos e asteriscos por Orgenes, e mesmo assim tu no queres adotar a interpretaozinha de
um homem cristo ainda mais porque aqueles sinais, que foram colocados depois, ele
<Orgenes> os tirou da edio de um homem judeu e blasfemo128 mesmo aps a paixo de
Cristo! Queres ser um verdadeiro apreciador da Septuaginta? No leias a verso cheia de
asteriscos; antes raspa-os dos volumes129; prova que s um promotor dos patriarcas130 . Se o
fizeres, sers obrigado a condenar todas as bibliotecas das igrejas. Mal se encontra um ou outro
livro que no tenha esse aparato.
20. Alm do mais, o que dizes, que eu no devia traduzir depois dos patriarcas, e a usas um
novo silogismo131 , que as passagens traduzidas na Septuaginta foram ou obscuras ou evidentes;
se obscuras, tudo leva a crer que tu tambm pudeste te enganar acerca delas; se evidentes,
bvio que eles no puderam ter se enganado acerca delas132, te respondo com tua prpria
linguagem. Todos os antigos estudiosos da literatura crist133 que nos precederam, e que
interpretaram as santas Escrituras, interpretaram passagens ou obscuras, ou evidentes. Se
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obscuras, como que tu tiveste a ousadia de, depois deles, discutir o que eles no puderam
esclarecer? Se evidentes, em vo que tu quiseste discutir aquilo que no pde passar
despercebido deles, sobretudo na explanao dos Salmos134, os quais haviam sido interpretados,
em muitos volumes, por autores gregos: primeiro por Orgenes135, segundo por Eusbio de
Cesareia136, terceiro por Teodoro de Heracleia137, quarto por Astrio de Citpolis138 , quinto por
Apolinrio de Laodiceia139 , sexto por Ddimo de Alexandria140; h, ainda, obras menores de
diversos autores141 sobre uns poucos Salmos, mas no momento falamos do texto integral. J
entre os latinos, tanto Hilrio de Poitiers142 quanto Eusbio, o bispo de Vercelli143 , traduziram
Orgenes e Eusbio; de tais autores, nosso Ambrsio144, ele tambm, endossou esse primeiro em
algumas obras. Que tua prudncia ento me responda: por qual razo, aps tantos e tamanhos
intrpretes, tu terias outra opinio acerca da exegese dos Salmos? Ora, se os Salmos so
obscuros, tudo leva a crer que tu tambm pudeste te enganar acerca deles; se evidentes, no se
pode acreditar que eles puderam ter se enganado acerca deles. E por isso que, de uma maneira
ou de outra, tua interpretao ser suprflua; ao adotarmos essa regra, ningum ousaria abrir a
boca depois dos primeiros intrpretes e, independente do tema com que algum venha a se
ocupar, outro no teria permisso para escrever sobre o mesmo. No seria melhor tua
humanidade145 ceder tambm aos outros o perdo que tu te permites? Eu, de fato, no tentei
exatamente superar as tradues antigas, as quais corrigi e traduzi, do grego para o latim, aos
falantes da minha lngua, mas antes publicar os testemunhos que foram omitidos ou
corrompidos pelos judeus, para que nossos conterrneos conhecessem o que encerra a verdade
hebraica146 . Ningum vai obrigar a ler quem no quer. Que ele beba o vinho velho com
delicadeza, que ele despreze a nossa nova safra, ela que foi produzida sobre nossos
predecessores147 ; onde quer que apaream passagens incompreensveis, que elas se tornem mais
evidentes atravs de nossas obras! Agora, qual seria o melhor mtodo de traduo a se adotar
para as santas Escrituras, disso trata o livro que escrevi sobre o melhor mtodo de traduo148, e
todos os prefaciozinhos dos volumes divinos que anexamos em nossa edio149; a elas, penso, o
leitor prudente deve retornar. E se, como afirmas, tu aceitas minha correo ao Novo
Testamento, e expes o motivo de a aceitares, porque um sem-nmero de fluentes na lngua
grega poderiam julgar o meu trabalho, era teu dever confiar a mesma integridade150 tambm ao
Velho Testamento, pois ns no inventamos nada, mas traduzimos as palavras divinas
exatamente como encontramos nos textos hebraicos. Se ainda duvidas, pergunta aos hebreus151.
21. Tu dirs: mas e se os hebreus no quiserem responder ou quiserem mentir? E toda a corja
de judeus vai se calar sobre minha traduo? E ningum poder encontrar quem conhea a
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lngua hebraica? Ou todos imitaro aqueles judeus que, tu dizes, foram descobertos conspirando
contra mim numa cidadezinha da frica? dessa estirpe a novela152 que fazes na tua carta: um
certo irmo nosso, um bispo, tendo decidido introduzir tua traduo na igreja a seu cargo,
acabou por citar algo colocado por ti, no livro de Jonas, que destoava profundamente do que se
habituou tanto nos espritos e na memria de todos quanto do que se repetiu por sucessivas
geraes. Fez-se to grande tumulto na assembleia (em especial entre os gregos que, revoltosos
e aos berros, acusavam-no de fraude e falsificao) que o bispo (isso se deu na cidade de Oea)
se viu obrigado a solicitar a opinio dos judeus. Se foi por incompetncia ou malcia, enfim, os
judeus responderam que nos cdices hebraicos se encontrava a mesma palavra que estava nos
cdices gregos e latinos. Que mais? O homem, no querendo perder sua assembleia aps essa
situao perigosssima, foi coagido a consertar isso como se fosse uma mentira. A partir da, at
a ns parece que tu pudeste, alguma vez, ter te enganado em algumas passagens, e veja que tipo
de coisa h nesses escritos que no poderia ser corrigida ao confront-la com os testemunhos
das lnguas mais utilizadas153.
22. Tu afirmas que eu traduzi mal uma certa passagem no livro de Jonas154 e que, em meio aos
gritos do povo em revolta, o bispo quase perdeu o sacerdcio por causa da dissonncia de uma
nica palavra. E qual seria essa palavra que eu traduzi mal, tu a surrupias, tirando-me a
oportunidade de me defender, para que qualquer coisa que afirmaste no seja resolvida por uma
resposta minha a no ser que se trate, como h muitos anos, da discusso sobre a aboboreira,
em que os Cornlios e Asnios Polies155 daquela poca me criticaram por ter traduzido
aboboreira por hedra. Sobre esse assunto j discorremos exaustivamente no comentrio ao
profeta Jonas156. No momento, ficamos contentes to-somente em dizer que naquela passagem,
em que a Septuaginta l aboboreira, quila157 e outros tradutores usam hedra, isto , ;
no volume hebraico est escrito ciceion, coisa que os Srios conhecem popularmente como
ciceia. Trata-se de uma espcie de moita com folhas largas, semelhantes s vinhas, que, to logo
plantada, cresce rapidamente em arbusto e no precisa de qualquer pedao de pau ou estaca com
que as aboboreiras e as hedras se servem de apoio, sustentando-se em seu prprio tronco.
Pormenorizando ento palavra por palavra, se eu quisesse manter ciceion, ningum
entenderia; se aboboreira, usaria algo que no est no hebraico; coloquei hedra, assim de
acordo com os demais tradutores. No entanto, se os vossos judeus, como tu mesmo asseveras,
responderam, seja por malcia ou incompetncia, que nos volumes hebraicos se encontrava a
mesma palavra que estava nos cdices gregos e latinos, bem claro que eles ou desconhecem os
volumes hebraicos158 , ou quiseram mentir para tirar sarro dos aboboreiros159.
)330
Hier. ep. 112
23. Peo, no fim da carta, que no obrigues um velho em inatividade, outrora veterano, a servir
novamente o exrcito e mais uma vez sofrer perigo de vida. Tu, que s jovem e que tens teu
lugar no alto escalo pontifical, v conduzir tuas comunidades e enriquecer os celeiros de Roma
com as novas searas da frica! Sussurrar num canto do mosteiro ao lado de um pobrezinho que
comigo leia ou que me escute isso me suficiente160 .

)331
Hier. ep. 112
NOTAS

1 Papa, v. supra Hier. Ep. 102, n. 1.


2Certamente Aug. Ep. 71, e muito provavelmente Aug. Ep. 28 e 40, uma vez que o monge j havia respondido Aug. Ep.
67 havia anos (cf. Hier. Ep. 102,1). Ademais, improvvel que Jernimo chamasse uma carta curta como Aug. Ep. 67
de livrinho.
3 Os libelli designam, aqui, as cartas de Agostinho, de forma irnica. Literalmente, o libellus um pequeno liber, cujas
dimenses, embora menores que as de um livro inteiro, seriam maiores do que uma carta comum. importante notar
que, ao passo que na Antiguidade Tardia o liber um termo genrico de uso intercalado com volumen, codex, exemplar,
tractatus entre outros, Jernimo o usa sobretudo para designar os cinquenta e trs tratados que escreve em forma
epistolar (de fato, Frst o traduz liber como Traktat nesta carta). V. Arns (2007) p. 94-96 para liber e libellus.
4 Diaconus, v. supra Hier. Ep. 102, n. 2.
5 Cipriano, v. supra Aug. Ep. 71, n. 2.
6 Em latim, opuscula, diminutivo plural de opus, no plural. O prprio Jernimo atesta que um hbito dos hebreus e
dos latinos chamar qualquer composio escrita, independente da forma, de opusculum: autem non solum
Hebraicae sed et Latinae linguae est pro syngmatibus et scriptis opuscula dicere, porm, prprio do idioma hebraico,
mas tambm da lngua latina chamar rascunhos e escritos de obrinhas (cf. Hier. Ep. 65,6). Alm disso, tanto Jernimo
(cf. Hier. Ep. 132,12) quanto Agostinho (cf. Aug. Ep. 166,21) chamam por vezes suas produes literrias, em sua
totalidade, de opuscula. Uma vez que as fontes indicam que o termo era familiar e j no tinha valor especfico de
diminutivo, preferimos no qualificar opus, e traduzimos opusculum sempre como obrinha, do mesmo modo afetivo
como Jernimo, acreditamos, emprega o termo.
7 Em latim, modum egredi epistulae longioris, exceder, ou ultrapassar a extenso de uma carta mais longa. Que a
carta na Antiguidade devia ter um certo tamanho, de preferncia curto, o qual era determinado pelos objetivos do
dilogo, eis um tpico presente nos autores gregos e latinos que escreveram sobre epistolografia; comentar essa
mensura tambm tpico, como indicamos na introduo. O termo no deixa de ser irnico, tambm, pois modus
significa igualmente temperana, e o motus, temperamento, de Jernimo era bem conhecido, como Agostinho
indicou em Aug. Ep. 74,1 (v. supra Aug. Ep. 73, n. 3).
8 A locuo adverbial latina in procinctu deriva do verbo procingo, preparar. Tpica do vocabulrio militar, ela se
refere viglia do soldado espera do ataque (cf. Gell. 1,11,3; Quint. Inst. orat. 12,9,21; Tac. H. 3,2). Em portugus,
daria em um pronto para a ao ou em estado de alerta, opo que a nosso ver mais prxima da linguagem blica,
preserva o imediatismo da expresso, e encontra precedente em Fry (2010) p. 182, que traduz a locuo para tat
dalerte. V. Frst (2002) p. 169, n. 198.
9A conversa improvisada, tumultuarius sermo, que Jernimo afirma utilizar, emprega um adjetivo tambm comum ao
exrcito: tumultuarius qualifica a tropa que foi convocada s pressas devido a uma guerra repentina (cf. Liv. 5,37,7;
35,2,7; Gell. 16,10,13).
10 A necessidade de ditar cartas de improviso e na pressa comum na Antiguidade, como discutimos na introduo,
alm de ser um tpico presente na epistolografia: h outros testemunhos semelhantes, indicados por Frst (2002) p. 169,
n. 198, em Aug. Ep. 38,3 e Hier. Ep. 119,1; 128,5; 129,8. Lembramos, ainda, que Agostinho esperava por uma resposta
fazia dez anos, no deixando de haver, nas palavras de Jernimo, certa ironia, portanto.
11 Jernimo usa institutio no sentido de instruo, formao, ou doutrina; v. supra Hier. Ep. 105, n. 19.
12Eph 6:13; a citao de Jernimo tem adsumere, vestir" ou assumir, ao passo que a Vulgata l accipere, tomar ou
receber.
13
Eph 6:14-17; ao contrrio da passagem anterior, temos aqui accipere no lugar de adsumere, na Vulgata; a traduo da
ACF, no entanto, no distingue os dois verbos e os traduz ambos como tomar. Trocamos, igualmente, o lombos da
ACF para flancos.
14 Aluso ao Ps 110 <109>:7, beber do ribeiro no caminho, por isso exaltar a cabea.
15Meno ao segundo livro das Crnicas, i.e. ento Uzias se indignou; e tinha o incensrio na sua mo para queimar
incenso. Indignando-se ele, pois, contra os sacerdotes, a lepra lhe saiu testa perante os sacerdotes, na casa do Senhor,
junto ao altar do incenso (cf. 2 Chr 26:19).
16 Ps 4:7.

)332
Hier. ep. 112

17 Ataqui, o pargrafo glosa o captulo 17 do primeiro livro do profeta Samuel, no qual David (cf. 1 Sam 17:40-51), rei
do povo de Israel, parte para a batalha contra os filisteus, liderados pelo gigante Golias. O vocabulrio que usamos neste
pargrafo parte em muito da ACF, com poucas modificaes para concordar com variantes de vocabulrio e de
conjugao usadas por Jernimo.
18 Ps 57 <56>:8-9 e Ps 108 <107>.
19 Ps 81 <80>:11.
20 Em latim, Dominus dabit verbum evangelizantibus virtute multa; trata-se de uma verso antiga do Ps 68 <67>:12,
mais prxima da Septuaginta, mas diferente do texto que se l na Vulgata. Nesta verso, lemos Dominus dat verbum;
virgines annuntiantes bona sunt agmen ingens, que, Ps 68:11 na ACF, traduzido como o Senhor deu a palavra;
grande era o exrcito dos que anunciavam as boas novas.
21 Aluso a 2 Cor 12:14, porque no devem os filhos entesourar para os pais, mas os pais para os filhos.
22O ttulo Paralipomenon liber nada mais que uma latinizao do grego , livro das
Crnicas. O nome helenfono ainda usado na Vulgata, ainda que se abrevie em Chr, de Chronicorum.
23 Meno ao captulo 12 do primeiro livro das Crnicas, em que os povos de Israel se juntam a David para batalhar
contra os filisteus, e.g. ento veio o esprito sobre Amasai, chefe de trinta, e disse: Ns somos teus, Davi, e contigo
estamos, filho de Jess! Paz, paz contigo, e paz com quem te ajuda, pois que teu Deus te ajuda. E Davi os recebeu, e
os fez capites das tropas (cf. 1 Chr 12:18).
24Possvel aluso ao verso 762 do Heauton Timorumenos de Terncio: non possum pati quin tibi caput demulceam,
no posso resistir a afagar tua cabea. Frst (2002) p. 172, n. 201 acredita que a chamada a Terncio responde a
Agostinho que, em Aug. Ep. 40, tambm acena para um verso do poeta. Ns, todavia, concordamos com Fry (2010) p.
184, n. 20 e no vemos necessidade na concluso do professor: Terncio era autor muito lido e citado na poca.
25Em latim, ad ipsas causas veniam, vou direto s causas. Este perodo marca a mudana de estilo da carta e o incio
da emulao que Jernimo faz do discurso de Agostinho, questo que abordamos na introduo a esta carta. O
vocabulrio causa adquire peso tribuncio, como anteriormente empregado por Agostinho em Aug. Ep. 28,2 (v. supra
Aug. Ep. 28, n. 20). V. Fry (2010) p. 184, n. 21, en outre, causa, cause, comme un peu avant quaestio, lenqute,
place le dbat dans la perspective bien romaine de laffrontement entre advocats.
26 Cf. Aug. Ep. 40,2.
27O epitaphium que na realidade o De viris illustribus, citado em Aug. Ep. 40,2, v. Aug. Ep. 40, n. 9 e infra Hier. Ep.
112, n. 28.
28 Referncia ao De viris illustribus [PL 23,181-206b], publicado por Jernimo em 393, no qual se acumulavam
pequenas biografias de figuras notveis do cristianismo em 135 pargrafos, comeando em Paulo de Tarso e acabando
no prprio Jernimo. Agostinho fora informado erroneamente de que se chamava Epitaphium, incorreo que Jernimo
emenda nesta passagem. Na poca do autor, as biografias de homens ilustres descendiam de longa tradio na literatura,
tendo em seu rol autores gregos como Digenes Larcio (fl. sculo III d. C.), com suas Vidas e pensamentos dos
eminentes filsofos, e Plutarco (46 - 120), com suas Vidas paralelas; e autores latinos, os mais ilustres dos quais
foram Cornlio Nepos (110 - 25 a. C.), que escreveu sobre generais e heris militares e polticos em um De viris
illustribus, e maiormente Suetnio (ca. 69 - ca. 130), autor do De vita Caesarum, vidas dos Csares, e de coletneas
biogrficas de poetas, gramticos, e rtores. Jernimo, no entanto, parece ter sido o primeiro entre os latinos a autorar
um De viris illustribus de autores cristos. Sobre a obra, v. Kelly (1975) p. 174-178.
29Nepociano (? - 396) era sobrinho de Heliodoro, bispo de Altino, e amigo de Jernimo, que lhe dedicara Hier. Ep. 52,
o tratado sobre a vida dos clrigos e monges, De vita clericorum et monachorum. Sua morte prematura em 396 foi
imortalizada por Jernimo em Hier. Ep. 60, justamente um epitfio, isto , um discurso fnebre em forma de carta, a
Heliodoro (apud Labourt (1963) vol. III p. 90-110). Nepociano, cf. LThK p. VII 738; NDPAC p. 3479-3480. Para o
cargo de presbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.
30 Jernimo d como variante de De illustribus viris o ttulo De scriptoribus ecclesiasticis, Os escritores eclesisticos
ou Os escritores da igreja. No entanto, foi o primeiro ttulo o que acabou firmando-se na tradio. Disso, temos um
testemunho do Estridonense: scripsi librum de illustribus viris ab apostolis usque nostra aetatem, imitatus Tranquillum
Graecumque Apollonium, escrevi um livro sobre os homens ilustres, desde os apstolos at os de nossa poca,
imitando Suetnio e o grego Apolnio (cf. Hier. Ep. 47,3; tambm em Adv. Iovin. 1,26 e In Ion. praef.).
31 Embora Jernimo afirme que pouca diferena haveria em chamar seu livro de De viris illustribus ou De scriptoribus
ecclesiasticis, ele afirma que no correto nome-lo De auctoribus, Os autores, devido ao carter genrico deste
ttulo, que poderia dar a entender que em tal livro se perfilava escritores quaisquer.

)333
Hier. ep. 112

32 Referncia aos trs livros de comentrios de Jernimo carta de Paulo aos Glatas, v. supra Aug. Ep. 28, n. 22.
33 O adjetivo dispensatorius, do verso dispensere, gerenciar, e diz respeito ao carter formal ou oficioso da
repreenso que Paulo aplicara em Pedro. A origem estaria antes em um substantivo da mesma raiz: o dispensator, termo
que designava o funcionrio do Imprio responsvel pela administrao das contas pblicas (cf. Suet. Aug. 67; Plin. Ep.
33,3,13). O termo grego para a dispensatio justamente , algo como administrao" (cf. Schrevelius p.
1054). Traduzimos como poltico, de maneira semelhante Labourt (1963) vol. VI, p. 21, que acerta ao usar
politique. A dispensatoria reprehensio, repreenso poltica, que Jernimo aqui menciona faz referncia crtica que
Agostinho fizera anteriormente da simulatio utilis, v. supra Aug. Ep. 28, n. 25 e Aug. Ep. 40, n. 19.
34O trecho a seguir uma citao ipsis litteris de uma parte do prefcio aos comentrios de Jernimo carta de Paulo
aos Glatas, cf. Hier. In Gal. praef. [PL 26,308-309].
35Frst (2002) p. 175, n. 212 e Fry (2010) p. 185, n. 12 julgam que o ille aqui se refere a Mrio Vitorino (fl. sculo IV),
gramtico, rtor e tradutor dos neoplatnicos para o latim, autor que tambm escreveu comentrios s cartas de Paulo
aos Glatas, aos Efsios, e aos Filipenses. O rtor fora amigo de lio Donato (fl. sculo IV), professor secundrio de
Jernimo em Roma (cf. Hier. Vir. ill. 101), e de Ambrsio de Milo. Alguns estudiosos argumentaram que fora Vitorino
quem ensinou retrica a Jernimo, mas a concluso improvvel segundo Kelly (1975) p. 14-15, devido a conflitos de
idade. No mais, Mrio Vitorino teria sido introduzido a Agostinho por Simpliciano (ca. 320 - 400) que sucederia a
Ambrsio no bispado em Milo quando esse morou em Roma e Milo, na dcada de 380; v. aqui Brown (2013) p.
79-107. Mrio Vitorino, cf. Hier. Vir. ill. 101; LThK VI p. 1387-1388; NDPAC p. 3063-3066. V. Hennings (1994) p.
242-247 para o papel de Vitorino na vida de Jernimo.
36 Orgenes, v. supra Aug. Ep. 28, n. 12. A referncia aqui aos comentrios de Orgenes carta de Paulo aos Glatas. O
livro no sobreviveu: na realidade, nenhum dos tratados e excertos de Orgenes sobre as cartas paulinas, os quais
Jernimo menciona neste pargrafo, chegaram at ns seno em fragmentos. V. Hennings (1994) p. 221-225; Frst
(2002) p. 27-51, esp. p. 32-33.
37O liber Stromatum continha miscelneas de Orgenes sobre diversos assuntos. A obra no sobreviveu, mas h uma
semelhante, tambm chamada Stromata, de Clemente de Alexandria (ca. 150 - ca. 215) em PG 8,685-1384 e 9,40-602.
Hennings (1994) p. 220-221 defende que a exposio de Orgenes era originalmente influenciada pela de Clemente.
38 Ddimo de Alexandria (ca. 313 - 398), dito , o cego, telogo da Igreja oriental. Na Historia Lausiaca [PG
34,995-1262], publicada em 419-420, o historiador Paldio da Galcia diz que estudara com Ddimo, e ao lado de
Jernimo, Rufino, e Evgrio (cf. Pall. Hist. laus. 4). De fato, Jernimo afirma que Ddimo no s foi, ao lado de
Gregrio de Nazianzo, seu , instrutor, como tambm o homem mais erudito de sua poca (cf. Hier. Ep.
50,1; in Hos. praef.). O Estridonense conta em Hier. Ep. 84,3, carta endereada a Pamquio e Oceano, que conheceu
Ddimo enquanto viajava por toda a regio do Oriente passando por Alexandria, Antiquia, Cesareia, Constantinopla
e o deserto de Clcis na Sria nos finais da dcada de 380, miro discendi ardore fertus, levado por grande fervor em
aprender, j aps ter se exilado de Roma. Alm disso, Jernimo, antes de visitar o Egito, j havia traduzido um livro do
alexandrino para o papa Dmaso, o tratado sobre o Esprito Santo, a interpretatio libri Dydimi de Spiritu Sancto [PL
23,99-154b] (cf. Hier. Ep. 36,1). Kelly (1975) p. 124-126 e 142-144 narra sua relao com Jernimo. Ddimo, o Cego,
cf. Hier. Vir. ill. 109; LThk III p. 212-213; NDPAC p. 1404-1406. V. Frst (2002) p. 176, n. 215.
39 O Laodiceu Apolinrio de Laodiceia (? - 390), um bispo da Frgia que Jernimo conhecera em Antiquia, e com
quem aprendera grego. Disse o monge em uma carta a Pamquio e Oceano que Apollinarem Laodicenum audivi
Antiochiae frequenter, et colui, com frequncie eu escutei e aprendi com Apolinrio de Laodiceia em Antiquia (cf.
Hier. Ep. 84,3). Das obras de Apolinrio, a nica que nos restou integralmente foi uma interpretao sobre os Salmos,
interpretatio in Psalmos [PG 33,1309-1538], mas Jernimo conta que ele havia escrito tambm livros contra Porfrio
(cf. Hier. Ep. 84,2-3). Seu papel na vida de Jernimo narrado por Kelly (1975) p. 58-60. Apolinrio de Laodiceia, cf.
Hier. Vir. ill. 104; LThK I p. 826-828; NDPAC p. 421-422. V. Hennings (1994) p. 228; Frst (2002) p. 176, n. 215.
40 O velho herege Alexandre provavelmente do mesmo telogo da Igreja gnstica valentiniana, mencionado por
Tertuliano em seu tratado sobre o corpo de Cristo, De carne Christi (cf. Tert. Carn. 16,1 e 17,1); v. Frst (2002) p. 176,
n. 216. possvel, porm, que ele seja Alexandre de Afrodsias (fl. sec. II d. C.), um famoso comentador de Aristteles,
bastante influente para os autores da Antiguidade Tardia; cf. LThK I p. 360; NDPAC p. 199-202.
41 Eusbio de meso (ca. 300 - ca. 359), natural da Fencia, foi pupilo de Eusbio de Cesareia e autor de vasta obra, da
qual Jernimo alude aqui aos seus livros de comentrios carta de Paulo aos Glatas. Eusbio de meso, cf. Hier. Vir.
ill. 91; LThK III p. 1010; NDPAC p. 1854-1855. V. Hennings (1994) p.228-230 e Frst (2002) p. 176-177 n. 217.
42Teodoro de Heracleia (? - ca. 355), dito , o general, foi um mrtir cristo que teve papel central na
polmica contra o arianismo como opositor do trinitarianismo. Possumos fragmentos de algumas de suas obras, como
um comentrio ao profeta Isaas. Teodoro de Heracleia, cf. Hier. Vir. ill. 90; LThK IX p. 1412; NDPAC p. 5247-5249. V.
Frst (2002) p. 177, n. 218

)334
Hier. ep. 112

43 Notarius, que traduzimos por taqugrafo, era aquele que, tendo aprendido as notae, abreviaes taquigrficas,
utilizava-as para anotar as palavras ditadas pelo conferencista (cf. Aug. De doctr. chr. 2,26). Note-se que o notarius era
diferente do librarius, o secretrio ou o copista propriamente dito (v. infra Hier. Ep. 126, n. 34). Segundo Jernimo, o
notarius tinha as funes de notare, anotar as palavras ditadas, mas tambm de excipere, preparar o material para
que essas fossem anotadas antes que cassem, e emendare, corrigir os textos com os puncta, os sinais diacrticos
citados anteriormente por Agostinho (v. supra Aug. Ep. 71, n. 10). Este cargo no era exclusivo dos mosteiros, mas
existia j h muito na administrao romana: o notarius era uma espcie de tribunus responsvel por guardar e fiscalizar
os arquivos e os escritos imperiais e, s vezes, at da correspondncia oficial; ocupava por vezes tambm a funo de
magister ab epistulis. Curioso notar que, estando Belm na parte oriental, isto , helenfona do Imprio, Jernimo
reclama diversas vezes da dificuldade de encontrar taqugrafos fluentes no latim para copiar seus livros, e.g. Hier. Ep.
134,3 e Is. praef.; disso diz Arns (2007) p. 56: e no nos escapa a gravidade do problema, pois, para ele [Jernimo], o
taqugrafo era um instrumento cuja necessidade comparava-se de nossas canetas ou lpis. V. Arns (2007) p. 43-64;
Frst (2002) p. 439 n. 757.
44 No latim, ex definito, em definitivo. Fry (2010) p. 188, n. 46 atenta para o fato de que a locuo, do jargo
eclesistico, designa toda deciso fundamentada sobre os cnones de um conclio, cf. Blaise p. 247 definitum.
45 De modo semelhante, Jernimo exonera-se de dar satisfaes a seus detratores em Hier. In Eph. praef.; in eccles.
4,13-16; in Is. praef. 11; In Ier. praef. 3; Ep. 20,2 e 72,5, em que diz: in rebus obscuris diversas ponimus opiniones, ut
non tam scribere quam loqui tibi coram videamur, nestes assuntos obscuros apresentamos opinies divergentes, a fim
de parecermos no tanto escrever uma carta quanto falar em tua presena. Trata-se de uma estratgia tpica do autor
para se esquivar de uma questo. V. Frst (2002) p. 178, n. 223.
46Paulo o doctor gentium original do cristianismo, o professor dos gentios e pedra de toque da pregao. O mesmo
assim se intitula, em grego , na carta a Timteo, pois era ele o encarregado de sua converso (cf. 1
Tim 2:7). V. supra Aug. Ep. 40, n. 20 e Hier. Ep. 105, n. 19.
47A circunciso designa o judasmo praticado aps a vinda de Cristo, usado com este sentido desde Tertuliano (cf.
Tert. Praescr. 23,9). O praeputium, vocbulo que aparecer adiante e que traduzimos por incircunciso (cf. Hier. Ep.
112,17), diz respeito aos gentios que foram aceitos por Paulo nos ensinamentos de Jesus, mesmo no tendo antes se
convertido ao judasmo; v. Fry (2010) p. 207, n. 149. O prncipe da circunciso, no caso, epteto do apstolo Pedro.
48Os coepiscopi seriam, portanto, Alpio em Tagaste, Evdio em Uzala, Astrio em Cartago, entre outros colegas de
Agostinho. Para episcopus, v. supra Aug. Ep. 28, n. 6. No mais, Jernimo provavelmente sabia da fama internacional
que Agostinho conquistara durante a polmica contra os donatistas, culminando na promulgao do dito de Unidade
em 405 pelo imperador Honrio (cf. CTh. 16, 5,38; 6,4-5 e 11,2), lei que proscreveu toda seita crist que no estivesse
de acordo com a ortodoxia catlica. V. Frend (1952) p. 263-265 e Brown (2013) p. 229-236.
49 Jernimo cunha um neologismo, conpeccator, unindo cum mais peccator. Traduzimos por companheiros de
pecado.
50 Contraposio entre saecularis litteratura, literatura secular ou profana, e os divini libri, os livros divinos. A
primeira designa toda o conjunto de escritos pagos gregos e latinos, de Homero a Smaco; os segundos comportam
todo o corpus da literatura crist, a inclusas as sacrae litterae (v. supra Aug. Ep. 28, n. 28) e com ela toda a tradio
exegtica greco-romana, passando por Tertuliano, Lactncio, Orgenes, pelos patriarcas Incio de Antiquia, Policarpo,
Clemente de Alexandria, Cipriano de Cartago, e chegando at Baslio de Cesareia, Ddimo, Apolinrio de Laodiceia,
Teodoro de Heracleia e os outros autores citados por Jernimo nesta carta. No sabemos, entretanto, se Jernimo ou
Agostinho incluam os autores de sua gerao de Ambrsio de Milo a Joo Crisstomo entre os divini libri, ou se
divinos eram s os patriarcas. Nossa aposta na segunda opo, uma vez que o bispo de Hipona afirma em uma carta a
Marcelino que illae autem litterae tuae [...] habent quaestionem mihi propositam ex libris non divinis, sed meis, quos
scripsi De libero arbitrio, as tuas cartas, porm, contm um problema levantado por mim no a partir dos livros
divinos, mas dos meus prprios, que escrevi sobre o livre arbtrio (cf. Aug. Ep. 143,2). Quanto literatura profana,
Hagendahl (1958) p. 269-297 e 312-328 prope uma lista de todos autores pagos que Jernimo provavelmente havia
lido. V. tambm Kelly (1975) p. 20; Frst (2002) p. 180, n. 226; Fry (2010) p. 189, n. 54.
51 A passagem carece de verbo j no original latino: hanc autem expositionem quam primus Origenes in decimo
Stromatum librum [...], talvez devido pressa com que Jernimo ditava, como o prprio Estridonense afirma no incio
desta carta (cf. Hier. Ep. 112,1). V. Frst (2002) p. 180, n. 227.
52Ou seja, todos os intrpretes citados acima: Ddimo de Alexandria, Apolinrio de Laodiceia, o herege Alexandre,
Teodoro de Heracleia, e tambm Joo Crisstomo (cf. Hier. Ep. 82,4).

)335
Hier. ep. 112

53Porfrio de Tiro (ca. 234 - ca. 302/305), filsofo neoplatnico, discpulo e bigrafo de Plotino (ca. 204/205 - 270), foi
um dos grandes polemistas pagos contra o cristianismo na Antiguidade. As blasfmias de Porfrio sinalizam os seus
quinze livros contra os cristos, adversus Christianos. Jernimo conhecera a obra do autor quando ainda estava na
escola (cf. Hier. Ep. 50,1), mas o mesmo parece no ter lhe chamado grande ateno na poca. A relao de Agostinho
com o filsofo mais problemtica, pois no podemos saber quando o autor comeou a l-lo: o bispo possivelmente
tomou nota da obra de Porfrio apenas no ano 400 (atravs desta carta de Jernimo, talvez?). Seja como for, o
neoplatnico foi importante na obra de maturidade do Tagastense, pois citado diversas vezes no dcimo livro da
Cidade de Deus, sendo o principal alvo e adversrio filosfico do bispo de Hipona em sua refutao do platonismo (cf.
Civ. 10,9-10); v. aqui Hadot (1960); Kelly (1975) p. 16-17; Brown (2013) p. 79-92, 305-307 e 314-318. Segundo
Jernimo, Orgenes teria sido motivado a escrever seus comentrios s cartas de Paulo para fazer frente s crticas de
Porfrio e dos outros neoplatnicos; reza a lenda, ainda, que o telogo alexandrino teria estudado com Plotino, mestre
de Porfrio, sob a tutela de Amnio Saca (fl. sculo III d. C.). Porfrio, cf. LThK VIII p. 429; NDPAC p. 4228-4235. V.
Hennings (1994) p. 225-228 e Frst (2002) p. 37-38 e 180, n. 226.
54 Joo Crisstomo (ca. 345 - 407), o boca de ouro, foi um dos mais brilhantes e raivosos pregadores da Igreja
oriental, uma espcie de Savonarola na Antiguidade Tardia. Patriarca do Bispado em Constantinopla de 397 a 403, ano
em que foi expulso desta cidade, Crisstomo viria a morrer no exlio aps acumular diversos inimigos (cf. Hier. Vir. ill.
129). Prolfico, sua obra ocupa impressionveis dezessete volumes da Patrologia Graeca, PG 47-64. Joo Crisstomo,
cf. LThK V p. 889-892; NDPAC p. 2216-2224. V. Hennings (1994) p. 230-234; Frst (2002) p. 33-37, esp. n. 57; Kelly
(1975) p. 259-263 para a relao conturbada de Crisstomo com Jernimo.
55 A locuo latina in pontificali gradu, na posio ou no cargo de pontfice, indica que Crisstomo era a autoridade
mxima da Igreja de Constantinopla quando l chefiou o Patriarcado. Os tradutores modernos atentam para o fato de a
Igreja Oriental no seguir a mesma hierarquia eclesistica do catolicismo ocidental Labourt (1963) vol. VI, p. 23
traduz in pontificali gradu como en qualit de pontife; Frst (2002) p. 181, als Bischof; Fry (2010) p. 190, avec
rang pontifical.
56 A designao veteres Graeci, velhos gregos, j era tradicional no jargo eclesistico para os , os
ancios (assim traduz a ACF, ancio). Lembramos o leitor que vem de , que o grego para
velho, latim vetus ou senex (cf. Schrevelius p. 698). Todavia, a designao nada tem a ver com a hierarquia
eclesistica e diz respeito to somente tradio exegtica autorada pelos pais apostlicos, no sendo relacionada, nesse
caso, ao presbyter. O latissimus liber ao qual Jernimo se refere a homilia que Crisstomo pregou sobre Gal 2:11,
Ioan. Chr. Hom. In Gal. 2,11 [PG 51,371-388].
57Neste perodo, Jernimo emprega dois termos do vocabulrio jurdico: socius, aliado ou cmplice, que designa
uma parte de acordo, e o adstipulator, intercessor ou assistente em um julgamento.
58 Possivelmente em imitao irnica da tcnica retrica utilizada por Agostinho ao variar concordia em sua Ep. 73,8 (v.
supra Aug. Ep. 73, n. 38), Jernimo aqui varia o vocbulo error, engano, em errans, errare e error. Procedemos da
mesma maneira que o autor da carta, e conduzidos tambm por Labourt (1963) vol. VI, p. 24, que varia erreur, e Frst
(2002) p. 183, Irrtum. Fry (2010) p. 190 preferiu desfazer a sutileza do Estridonense na concluso deste pargrafo. O
termo veritas tambm fortalece a concluso: o que est em jogo a interpretao correta das Escrituras, a qual no
suficiente se for defendida por um nico autor. Como apontamos na introduo, o cristo deve convencer o maior
nmero de pessoas de que sua verdade a correta.
59A locuo manum conserere, literalmente meter a mo, prpria do vocabulrio militar e prxima do advrbio
comminus, utilizado por Jernimo em Hier. Ep. 105,4 (cf. Cic. Mur. 9,20; Plaut. Mil. 1,1,3; Tac. A. 6,35). Gria vulgar,
imagem do corpo-a-corpo, traduzimos por bater de frente. V. supra Hier. Ep. 105, n. 26.
60 O exemplum, exemplo, termo de tradio retrica, abundante no discurso deliberativo e jurdico. Diz Quintiliano
que omnis igitur probatio artificialis constat aut signis aut argumentis aut exemplis, assim, toda demonstrao
construda por provas consiste em indcios, em argumentos, ou em exemplos (cf. Quint. Inst. orat. 5,9,1). No perodo
cristo, exemplum havia se tornado termo tcnico tambm do vocabulrio exegtico: o exegeta deve demonstrar a
verdade de uma tese ao destacar exemplos das Sagradas Escrituras (cf. Blaise p. 327 exemplum); v. Satterthwaite (1997)
p. 676-678. H outro significado para exemplum que pertence ao campo cvico e tico, dos exemplos de vida dos
grandes homens, aqueles reunidos nos De viris illustribus (v. supra Hier. Ep. 112, n. 28).
61 Act 10:13-15. Todo esse pargrafo da carta estruturado nos captulos 10 e 11 dos Atos dos Apstolos.
62 Act 10:34-35.
63 Act 10:44-47 e 11:1-3.
64Act 11:17-18. A verso citada por Jernimo levemente diferente da Vulgata, que traz aequabile donum, um dom
equivalente, no lugar de eandem gratiam, a mesma graa; e acquieverunt, apaziguaram-se, no lugar de tacuerunt,
calaram-se. A traduo que colocamos a mesma da ACF, mas que modificamos de acordo com as variaes.
)336
Hier. ep. 112

65Act 14:27 e 15:1-11. Embora o texto tenha o mesmo contedo e utilize as mesmas palavras da Vulgata, ele aqui
todo reestruturado com intervenes de Jernimo. No mais, a ACF traz seditio como discusso, opo certamente
eufemstica para algo que seria antes uma verdadeira contenda. Outrossim, mudamos tambm cervix de cerviz para
pescoo, a fim de modernizar a leitura.
66Esta passagem indica que a carta provavelmente destinava-se publicao, conforme discutimos brevemente no item
Cartas de amizade e cartas de ofcio na introduo.
67A Vulgata, e com ela o texto original de Paulo, leem , Cephas, Cefs, que o aramaico para
pedra, em grego e Petrus, no latim. importante salientar que Paulo nunca usa em suas cartas o epnimo
Pedro, mas aponta seu colega sempre como Cefs. Neste pargrafo da carta, e tambm no texto da ACF, temos,
porm, a grafia Pedro; acreditamos que os tradutores concluram ser de bom tom preservar a alcunha j utilizada por
Jernimo, afinal, trata-se de uma simples traduo do nome dado a Cefs por Cristo (cf. Mt 16:18).
68At aqui, Jernimo cita versculos da carta de Paulo aos Glatas, cf. Gal 1:18 e 2:1-2. Novamente, h algumas
variantes em relao Vulgata, que so por demais minuciosas para que com elas entediemos o leitor; seguimos a grafia
da ACF, adequando-a ao texto do autor.
69O praevaricator do latim, diferente do culpado de prevaricao em portugus, que crime cometido pelo funcionrio
contra a administrao pblica, antes o prevaricator ou sham da lngua inglesa, um falsificador ou transgressor.
Dizem os Digestorum libri que praevaricator esse eum ostendimus, qui colludit cum reo, et translaticie munere
accusandi defungitur, eo quod proprias quidem probationes dissimularet, falsas vero rei excusationes admitteret,
mostramos que praevaricator aquele que conspira com o ru, e, indiferente, exonera-se do dever de advogar, a fim
de dissimular os verdadeiros argumentos, e de levantar falsas quitaes ao ru (cf. Dig. 48,16,1).
70 A imagem do bom pastor que cuida de seu rebanho est no Evangelho de Joo, cf. Jn 10:1-18; 21:15-17.
71 Devemos compreender esse ns como o conjunto de autores que endossaram esta interpretao de Gal 2:11-14, isto
, os autores elencados em Hier. Ep. 112,4, dentre os quais Jernimo se inclui.
72Act 15:41 e 16:1-3. Aqui, a mudana mais substancial da traduo da ACF e da Vulgata que ambas j utilizam
Graecus (de fato, o NTG empregue ) quando Jernimo usa Gentilis; v. supra Aug. Ep. 40, n. 20.
73 Aluso a Num 6:1-21.
74 Act 21:20-26.
75Frst (2002) p. 192, n. 243 e Fry (2010) p. 196, n. 91 atentam para o fato de que a nudipedalia, a procisso em ps
nus, no uma tradio prescrita pelo nazireu judaico, e sim um rito romano de suplicao (cf. Petr. Sat. 44; Tert. Apol.
40,14; Ieiun. 16,5).
76Toda esta passagem final refere-se aos anos finais (e proverbiais) da vida de Paulo, narrados por Jernimo no
Chronicorum liber, livro das crnicas (Hier. chr. 9 Helm), e no De viris illustribus (cf. Hier. Vir. ill. 5,8).
77 honesta dispensatio, v. supra Hier. Ep. 112, n. 33.
78 Cf. Porph. chr. 21 (53 Harnack). Para a relao da interpretao tradicional de Gal 2:11-14, fundamentada em
Clemente de Alexandria e Orgenes, contra as blasfmias de Porfrio (v. supra Hier. Ep. 112, n. 53), v. Hennings
(1994) p. 218-236 e Frst (2002) p. 36-37.
79 A citao ipsis litteris de Aug. Ep. 40,4.
80 Cerinto (fl. sculo II d. C.) foi um dos primeiros lderes do gnosticismo, ativo na sia Menor durante o primeiro
cristianismo, em tempos em que alguns autores do Novo Testamento ainda estavam vivos. O autor, que negava a
divindade de Cristo e afirmava o dever de observar a Lei judaica mesmo aps a vinda do Messias, foi condenado como
herege judaizante pelos patriarcas (cf. Ir. Haer. 1,26,1; Eus. Caes. H. E. 3,28,5; 4,14,6). Segundo Irineu de Lyon (ca.
sculo II d. C. - 202 d. C.) em seu tratado contra as heresias, Adversus haereses [PG 7a,433-1118 e 7b,1119-1225], Joo
(fl. sec. I d. C.) teria escrito seu Evangelho em reao aos ensinamentos de Cerinto (cf. Ir. Haer. 3,11,1); Jernimo
endossa essa hiptese (cf. Hier. Vir. ill. 9,19). Cerinto, cf. LThK V p. 1402-1403; NDPAC p. 991-992. V. Frst (2002) p.
198, n. 258.

)337
Hier. ep. 112

81 Ebio (fl. sculo II d. C.?), supostamente outro herege judaizante, mencionado por Tertuliano (cf. Tert. Praescr. 10,8).
Na realidade, a alcunha Ebio foi provavelmente uma inveno dos patriarcas para designar um lder para o
movimento dos ebionitas, secto judaico-cristo cujos membros, embora aceitassem Cristo como o Messias, negavam
sua divindade e insistiam na obrigao de observar a Lei e os ritos dos judeus (como o fazia Cerinto). Os Hebionistas,
rejeitando a pregao paulina e seguindo os ensinamentos do apstolo Tiago, pregavam a pobreza ,
Ebionismo, vem de aebyonm, pobre em hebraico. A citao conjunta de Cerinto e Ebio tpica nas
polmicas contra os hereges na Antiguidade Tardia, a julgar pelas obras de Irineu e Jernimo (cf. Ir. Haer. 1,26,2;
3,11,7; 3,21,1; 4,33,4; 5,1,3; Hier. C. Lucif. 23-26; in Matth. praef.). Ebio e ebionitas, cf. LThK p. III 430-431;
NDPAC p. 1523-1524. V. Frst (2002) p. 198-199, n. 259 e 260.
82 Os parentes Latinos designam os ascendentes e maiores, prximos aos gregos. Trata-se de um sinnimo do
epteto veteres Graeci (v. supra Hier. Ep. 112, n. 56), cujo sentido anlogo aos forefathers norte-americanos: so,
uma vez mais, os patriarcas que fundaram o mtodo de interpretao bblica e antecederam Jernimo e Agostinho nos
estudos das Escrituras; cf. Blaise p. 593 parens 3. A alcunha tambm possui forte conotao familiar: atentar contra os
parentes, Jernimo infere, atentar contra toda a famlia que a Igreja e contra a autoridade dos mais velhos e da
tradio exegtica, na qual o autor sustenta sua interpretao. V. Fry (2010) p. 199, n. 106.
83 No vocabulrio do hebraico rabnico, ha-mnm, os dissidentes, designava todos os tipos de sectos judaizantes
do cristianismo, e tambm os gnsticos; por conseguinte, os mineus so todos os cristos que ainda praticam os ritos
dos judeus, hereges condenados tanto pelo cristianismo como pelo judasmo. Jernimo, porm, d ao termo um
significado mais estreito ao lhe tornar sinnimo de nazarenos. Mineus, cf. LThK VII p. 267. V. Frst (2002) p. 200, n.
261.
84 Os fariseus, do hebraico prshm literalmente os postos de lado o nome dado a um grupo poltico-
religioso de judeus ortodoxos devotos da Tor que teve incio no sculo II a. C. e durou at a destruio do Templo em
70 d. C. Na poca de Jernimo, a alcunha indicava todo judeu ortodoxo e opositor do cristianismo. Principais
autoridades laicas do judasmo, os fariseus eram observadores ferrenhos da Lei judaica. Invoc-los , para Jernimo,
uma maneira de endossar a concluso da simulatio, pois Paulo era originalmente um fariseu (cf. Phil 3:5). Fariseus, cf.
LThK VIII p. 204-206. V. Frst (2002) p. 200, n. 262 e Fry (2010) p. 199, n. 108.
85 Mateus recorda em seu Evangelho que Jesus Cristo se auto-nomeia ou (cf. Mt 2:23), de
Nazar ( em hebraico), cidade na qual passou a infncia. Ao passo que no primeiro cristianismo o termo
sinnimo de cristo (cf. Apg. 24,5; Tert. Adv. Marc. 4,8,1), na Antiguidade Tardia passou a ser nome dado pelos
fariseus, os judeus ortodoxos, aos mineus (cf. Hier. Vir. ill. 3,2; in Matth. 13,54; Aug. Bapt. 7,1). Nazarenos, cf. LThK
VII p. 707-708; NDPAC p. 3433-3435. V. Frst (2002) p. 200-201, n. 263.
86A passagem faz parfrase do credo das missas, baseado na cena da condenao, crucificao e ressurreio de Cristo
nos Evangelhos (cf. Mt 27-28; Mc 15-16; Lc 23-24; Jo 18-21).
87 O machucadozinho, vulnusculus citado nesta passagem traz uma sucesso de imagens proverbiais. A primeira
delas, o punctum, picadinha, ou acu foramen, buraco de agulha, registrada como proverbial por Otto acus 3, p.
3-4. Ao vulnusculus contrape-se o vulnus, machucado ou ferida, causado por um instrumento blico, a lana, em
especfico a falrica, pesada e longa, comumente usada como projtil incendirio pelos exrcitos ibricos. A passagem
parece retomar as imagens dos aculei e stimuli que Agostinho usara em Aug. Ep. 73,6;8.
88 Em latim, legitimi, legalidades, indicam tudo que permitido pela lei, sendo adjetivo prprio do vocabulrio
jurdico (cf. Cic. Verr. 2,2,52; id. Phil. 11,10,26; id. Or. 34,120; Liv. 25,2; Suet. Claud. 14; Dig. 47,20,3).
89 A imagem das sinagogas de Satans emprestada do livro da Revelao, presente em Ap 2:9 e 3:9.
90 Citao de Aug. Ep. 40,4.
91 A locuo no ablativo absoluto libera voce, literalmente de voz livre, soa, como diz ela mesma, prxima do latim
falado. Labourt (1963) vol. VI, p. 32 a traduz como dire franchement; Frst (2002) p. 203 como mit allem Freimut
verknden; e Fry (2010) p. 201 como pleine voix. Tentamos preservar o carter oral ao usar uma expresso
corrente em portugus, em alto e bom som.
92 Em latim, barathrum diaboli, literalmente bratro do diabo. O era originalmente o precipcio onde se
jogavam os criminosos em Atenas, mas o termo j havia perdido sua especificidade desde a poca de Augusto (cf. Hor.
S. 2,3,166) para se tornar sinnimo de um fosso qualquer de grandes dimenses. A expresso tpica, cf. Otto p. 53
barathrum.
93 Rom 10:4.
94 Lc 16:16; tambm Mt 11:13.

)338
Hier. ep. 112

95 Job 5:18.
96 Job 1:16-17.
97A designao Vetus Instrumentum intercala como Vetus Testamentum nos autores da cristandade latina, cf. Blaise p.
458 Vetus Instrumentum. Mais expressivo, o vocbulo indica o valor instrumental" que os livros dos profetas tiveram
como prenncio do Novo Testamento, atuando-lhe como imagem e sombra; v. Fry (2010) p. 201 n. 17.
98 Jer 31:31-32. H uma nica diferena com o texto que se l na Vulgata, que porta pactum, aliana, ao invs de
testamentum, testamento. Labourt (1963) vol. VI, p. 33 nota que a mesma palavra hebraica, brith, pode
significar as duas coisas.
99 At aqui, Gal 5:2-4;18. Modificamos a traduo da ACF para evacuati, de separados para esvaziados.
100 A expresso nostri maiores deixaria fortes ecos aos ouvidos de um romano, habituado expresso desde os
primrdios da lngua latina afinal, o fundamento de toda prtica moral, social e cvica, seja em foro pblico ou
privado, era calcado no que os antigos pagos chamavam de mos maiorum (cf. Cic. De or. 3,20,74), o qual nenhum
equivalente poderia traduzir com perfeio. O mos maiorum , ao mesmo tempo, o costume dos melhores, a tradio
dos ancestrais e uma espcie de common law. V. Fry (2010) p. 202, n. 122.
101 Ez 20:25
102 O Manichaeus colocado aqui , a nosso ver, genrico, abarcando qualquer seguidor dos ensinamentos de Mani (216 -
274/277), profeta persa que pregava um dualismo de extremo ascetismo entre a alma pura e o corpo impuro que a
infectava. O maniquesmo, apesar de visto com maus olhos pela Igreja e pela administrao imperial, pois rejeitava o
Deus do Velho Testamento, era seita bastante popular na poca de Jernimo, em especial na frica; o jovem Agostinho
foi, antes de converter-se ao catolicismo, um dos mais importantes pensadores maniqueus de seu tempo. Os maniqueus
acabaram por se espalhar pelo Oriente, em especial na sia Central, chegando at a China; v. Brown (2003) p. 80-84 e
282-285. A citao provavelmente uma farpa a Agostinho, cuja suspeita de maniquesmo sempre ser usada como
munio de ataque por parte de seus detratores. V. Frst (2002) p. 206, n. 276; Fry (2010) p. 203, n. 126. Mani e
maniquesmo, cf. LThK VI p. 1265-1269; NDPAC p. 2991-3000.
103 Marcio (ca. 85 - ca. 160), filho do bispo de Snope, na regio do Ponto, foi um pensador cristo que, numa leitura
literal das cartas de Paulo, rejeitou o Velho Testamento por completo e adotou uma pregao baseada em alguns poucos
livros do Novo Testamento, entre os quais o Evangelho de Lucas e apenas dez cartas de Paulo (cf. Ir. Haer. 1,27,2). Foi
em reao s idiossincracias de Marcio que nasceu a filologia bblica e a exegese tipolgica, cujas funes tm por
fundamento procurar sinais de Cristo nos livros dos profetas, a fim de reafirmar a relao do Velho com o Novo
Testamento. Tertuliano foi um dos crticos mais ferozes de Marcio, tendo escrito uma apologia contra ele (cf. Tert. Adv.
Marc. 1,20,2-4; 4,3,2-4; 5,12,6; Praescr. 22-24; Monog. 14,1). Fry (2010) p. 203, n. 127 afirma que os maniqueus nada
tm a ver com os marcionitas, salvo pela rejeio do Velho Testamento, mas cabe salientar que ambos os sectos esto no
extremo oposto de Cerinto, Ebio e dos mineus citados acima em Hier. Ep. 112,13, os cristos judaizantes que preteriam
os Evangelhos em favor dos textos da tradio abramica. Marcio e marcionismo, cf. LThK VI p. 1392-1393; NDPAC
p. 3020-3024. V. Hennings (1994) 265-268; Frst (2002) p. 31-32 e 206-207, n. 277.
104 Gal 4:4-5.
105Cristo aparece como professor primrio, paedagogus (latinizado do grego , o encarregado da educao
infantil; cf. Marrou (1948) vol. II, p. 63-73, esp. p. 65), e tambm herdeiro, heres (grego ), de Deus em
duas passagens da carta de Paulo aos Glatas, cf. Gal 3:25 e Gal 4:7 respectivamente. Dominus alcunha conhecida de
Deus; j adultus um qualificativo colocado por Jernimo que no encontra correspondncia no Novo Testamento.
106 Citao de Aug. Ep. 40,5.
107Jernimo usa magister, vocbulo polissmico cuja origem est em magnus, grande, que pode indicar tanto um
simples professor de escola, o magister ludi afinal, era funo do bispo pregar os ensinamentos de Cristo a seus fiis;
como um funcionrio pblico do alto escalo (cf. Dig. 50,16,57); ou at um lder qualquer. Magister deu no nosso
mestre e tambm cai em magistratus, magistrado. Jernimo parece brincar com os diversos sentidos do termo,
zombando uma vez mais do sermo oficioso de Agostinho, proveniente tanto de sua carreira como rtor, quanto de sua
posio como bispo: Agostinho um magister ecclesiarum na medida em que argumenta como um professor e assim
ensina a f crist aos outros. V. Fry (2010) p. 203-204, n. 129.
108 1 Tim 4:3.
109 O primeiro ms do calendrio judaico o Nisan, geralmente entre maro e abril.
110 A citao de Aug. Ep. 40,6 continua no incio do pargrafo seguinte.

)339
Hier. ep. 112

111Jernimo no esconde o tom de escrnio ao mencionar as , indifferentia no latim, as coisas indiferentes


que j haviam cado no gosto popular; cf. Pohlenz (1980) vol. 1, p. 245-249. O conceito tem origem na filosofia estoica
e designa toda ao e coisa que no diz respeito conduta moral; por extenso, no cristianismo, tudo aquilo
que no diz respeito conduta da f. Quanto aos filsofos, estes eram comumente desprezados pelos telogos na poca
de Jernimo: Agostinho parece ser criticado implicitamente por sua veia filosofante e, mais perigoso, quase hertica,
uma vez que philosophus no vocabulrio cristo da poca era quase sinonmico de pago e grego. V. Long & Sedley
(1987) vol. 1, p. 354-359; Hennings (1994) p. 281-285; Fry (2010) p. 205, n. 137.
112 Cf. Aug. Ep. 40,6.
113 Jernimo continua citando Aug. Ep. 40,6-7.
114 Frst (2002) p. 214, n. 299 indica que, ao passo que Agostinho afirmar que Pedro agira por timor, algo como
apreenso (cf. Aug. Ep. 82,15), Jernimo usa um equivalente mais forte, metus, medo, em seu comentrio carta de
Paulo aos Glatas, o que o coloca na mesma interpretao de Orgenes (cf. Hier. In Gal. 2,11-14). Nesta passagem,
porm, ele caracteriza a ao de Pedro como sendo motivada por timor, parafraseando Agostinho. Os termos metus e
timor no raro so sinonmicos (cf. Cic. Verr. 2,4,19), mas necessrio diferenci-los aqui. Frst (2002) p. 214 traduz,
de maneira indiferente, timor e metus como Sorge, mas traduz timor como Angst em Aug. Ep. 82,15; v. Frst
(2002) p. 290, n. 462. O mesmo para Labourt (1963) vol. VI, p. 37, que traduz como crainte, mas timidit em Aug.
Ep. 82,15; v. Labourt (1963) vol. VI p. 58. J Fry (2010) p. 207 traduz timor como proccupation, mas peur em
Aug. 82,15, e metus como souci na mesma passagem; v. Fry (2010) p. 266. Ns acreditamos ser improducente variar
os trs termos em tantas formas, portanto usamos apenas apreenso e medo, tendo em mente a definio estoica que
Ccero apresenta para o timor nas Tusculanas: definiunt [...] timorem metum mali appropinquantis, [os estoicos]
definem a apreenso como o medo de que vai acontecer algo ruim (cf. Cic. Tusc. 4,8,19). Agostinho discutir as
implicaes desta variao em Aug. Ep. 82,26-29. V. tambm Frst (1999) p. 73-77 e (2002) p. 47-51.
115At aqui, a carta parafraseia Gal 5:6, mas h tambm ecos de Gal 6:15 (indiferena da circunciso), 1 Cor 7:19
(inutilidade das observaes da Lei aps a vinda de Cristo) e 1 Cor 9:20-21 (Paulo se faz judeu aos judeus).
116O diminutivo disputatiuncula tpico de Jernimo; aqui, ele indica que a carta excedeu seu tamanho, seu assunto e
seu mtodo construtivo apropriados, tornando-se uma pequena disputatio, uma discusso ou, ao gosto cristo,
polmica.
117Em latim, modum meum egredi, ultrapassei meu modo, passei dos limites, fazendo referncia tanto ao tamanho
da carta (o tpico da ) quanto temperana, modus, de que Jernimo supostamente carecia; v. supra Aug. Ep.
73, n. 3.
118 Aluso de Estescoro (cf. Aug. Ep. 40,7), v. supra Aug. Ep. 40, n. 29.
119Em latim, magister mendacii, literalmente um mestre de mentiras; v. supra Hier. Ep. 112, n. 107. Fry (2010) p.
208, n. 153 nota que a repetio de magister indica uma contra-acusao a Agostinho, no que Jernimo diz
implicitamente que seu correspondente o verdadeiro professor de mentiras.
120 Jo 14:6.
121Em latim, plebecula imperitorum. A plebs a comunidade presidida pelo bispo; seu diminutivo no deixa de ser
pejorativo, algo como ral, sentido presente j no latim clssico (cf. Cic. Att. 1,16; Hor. Ep. 2,1,186; Pers. 4,6); cf.
Blaise p. 629 plebs.
122Em latim, in ecclesia declamens, a declamar na igreja. Aqui, o verbo declamare evoca os exerccios e tcnicas do
orador, os quais consistem na prtica do conselho e da controvrsia, artificiais e mal vistos se usados na conversao
comum, portanto inadequados ao sermo prprio da epistolografia (cf. Quint. Inst. orat. 2,20,4 e 5,12,17-23). O uso do
verbo especfico e consistente com a maneira sutil com que Jernimo emula o discurso de Agostinho, absorvendo-o
em seu prprio estilo. Aos ouvidos de Jernimo, Agostinho declama como um orador no frum. V. Fry (2010) p.
208-209, n. 156.
123 Sobre a distncia fsica que separava Jernimo e Agostinho, v. supra Aug. Ep. 71, n. 7.
124Cf. Aug. Ep. 71,3, passagem em que o Tagastense critica o trabalho algo desleixado de Jernimo ao traduzir o livro
de J a partir do hebraico, revelia de uma correo dele para a interpretao grega do mesmo texto. V. supra Aug. Ep.
71, n. 9.
125
Asteriscos e bastezinhos virgulae, que so o mesmo que os obelisci dos quais fala Agostinho em Aug. Ep. 71,3.
Ambos so puncta, sinais diacrticos, que Jernimo usara ao corrigir a traduo de Orgenes para o livro de J; v. supra
Aug. Ep. 71, n. 10.

)340
Hier. ep. 112

126 Na poca de Jernimo, o trabalho exegtico se apoiava na , latinizado Hxapla. Este compndio fora
preparado por Orgenes e continha cerca de seis mil pginas em quinze volumes; nela, o telogo alexandrino alinhou
lado-a-lado seis verses diferentes da Bblia: o texto hebraico massortico, a traduo literal em grego do judeu quila
de Snope (fl. sec. I a. C.), a Septuaginta, a traduo grega de Smaco o Ebionita (fl. sec. II d. C.), a edio de Teodocio
(? - ca. 200) e uma recenso crtica da Septuaginta, preparada com correes de Orgenes a partir da verso de
Teodocio; esta verso que Jernimo afirma ter usado. O Estridonense exonera-se de dar satisfaes a Agostinho,
afirmando que apenas copiou os puncta que estariam na quinta coluna da Hxapla ao preparar sua primeira traduo
latina do livro de Jonas. Trata-se, novamente, de uma estratgia tpica do autor. Teodocio, cf. LThK II p. 382-383;
NDPAC p. 5273.
127 Em latim, sensuum potius veritatem quam verborum interdum ordinem conservare, preservar mais a verdade dos
sentidos que por vezes a ordem das palavras, perodo em que se coloca uma interessante reflexo sobre a atividade de
traduo na Antiguidade. Jernimo alude a tais critrios, inspirados nos de Smaco ao corrigir a Septuaginta, assim
como nos dos tradutores da lngua latina Ccero, por exemplo, que assim havia traduzido o Protgoras de Plato, o
Econmico e Xenofonte, e discursos de squines e Demstenes do mesmo modo que havia feito anos antes em uma
carta a Pamquio: ego enim non solum fateor, sed libera voce profiteor me in interpretatione Graecorum absque
scripturis sanctis, ubi et verborum ordo mysterium est, non verbum e verbo sed sensum exprimere de sensu, eu, por
minha vez, no apenas confesso, mas declaro em alto e bom som que, ao traduzir os gregos exceto nas Santas
Escrituras, onde a ordem das palavras tambm mistrio eu no o fao exprimindo palavra por palavra, mas o
sentido a partir do sentido (cf. Hier. Ep. 57,5). Para Jernimo, o ofcio do tradutor acontece em uma tenso entre o
sentido e a ordem das palavras, no bastando traduzir literalmente termo por termo mas sendo preciso por vezes recriar
o texto na lngua de chegada, traduzindo-o indiretamente para captar o sentido, ou seja, a verdade" das palavras (cf.
Hier. Vulg. Esth. praef., Vulg. Iob praef. e Vulg. Iudith praef.) V. Marti (1964) p. 61-62 e 73-76; Frst (2002) p. 218, n.
311.
128 O homo Iudaeus atque blasphemus indica Teodocio, pois foi sob sua edio que Orgenes trabalhou (cf. Hier. Vir.
ill. 54,6; In Hab. 3,11-13; In Dan. praef.). V. Frst (2002) p. 218-219, n. 312.
129Era possvel raspar, radere, as pginas de um volumen para apagar seu contedo. O volumen designava, na poca,
um manuscrito qualquer, seja um pergaminho volumen vem do verbo volvere, rolar quanto o liber e o codex,
este em formato dos livros modernos e feito com pele de animal, o vellum. O volumen era sobretudo a unidade bsica
dos livros na Antiguidade, ou seja, o rolo de papiro. V. Frst (1999) p. 104-106 e Arns (2007) p. 101-103.
130No latim, fautor veterum, literalmente algum que favorece os patriarcas. Traduzimos por promotor, a fim de
preservar a carga jurdica do termo (v. supra Aug. Ep. 71, n. 18).
131Tendo em vista o tom zombeteiro adotado anteriormente por Jernimo ao comparar os argumentos de Agostinho a
(v. supra Hier. Ep. 102, n. 8), o conceito de syllogismus, originrio da lgica aristotlica e caracterstico de
uma retrica filosofante, provavelmente empregado de maneira pejorativa (ainda que esteja transliterado para o latim
e no no original, em grego). Para Aristteles, o silogismo a forma fundamental de todo raciocnio dedutivo (cf. A.
APr. 24b 18; 47a 34).
132 Citao indireta de Aug. Ep. 28,5.
133 Devemos compreender tractatores in domino, estudiosos no Senhor, como referncia queles da tradio da
literatura crist: so os autores dos divini libri mencionados acima em Hier. Ep. 112,5; v. supra Hier. Ep. 112, n. 50.
134 Aluso as enarrationes in Psalmos de Agostinho; Hier. Ep. 105, n. 33.
135Orgenes, v. supra Aug. Ep. 28, n. 12. Dele, Jernimo conhecia diversas obras sobre os Salmos, elencadas em Hier.
Ep. 33,4. V. Devreesse (1970) p. 1-88; Frst (2002) p. 220, n. 316.
136 Eusbio de Cesareia (260/265 - 339/340), escritor da historia ecclesiastica, publicada ca. 323, um documento
importante para reconstruir a histria da Igreja antiga. Eusbio tambm autorou um comentrio aos salmos que
Jernimo qualifica de eruditissimus. Eusbio de Cesareia, cf. Hier. Vir. ill. 81; LThK III p. 1007-1009; NDPAC p.
1844-1853. V. Devreesse (1970) p. 89-146; Frst (2002) p. 220, n. 317.
137 Teodoro de Heracleia, v. supra Hier. Ep. 112, n. 42. V. Devreesse (1970) p. 328.
138 Provavelmente Astrio (? - ca. 341), filsofo sofista de Citpolis, telogo ativo na Capadcia, na atual Turquia,
durante o incio do sculo IV (cf. Hier. Ep. 70,4). Frst (2002) p. 220, n. 319, no entanto, coloca a possibilidade de ser
um outro Astrio de Citpolis, um homilita mencionado em alguns escritos de Joo Crisstomo. No se trata do mesmo
Astrio que foi mensageiro de Jernimo, mencionado anteriormente em diversas cartas. Astrio de Citpolis, cf. Hier.
Vir. ill. 94; cf. LThK I p. 1102; NDPAC p. 611-612. Astrio o homilita, cf. LThK I p. 1101. V. Devreesse (1970) p.
234-237; Frst (2002) p. 220-221, n. 319.

)341
Hier. ep. 112

139 Apolinrio de Laodiceia, v. supra Hier. Ep. 112, n. 39. V. Devreesse (1970) p. 211-223; Frst (2002) p. 221, n. 320.
140 Ddimo de Alexandria, v. supra Hier. Ep. 112, n. 38. V. Devreesse (1970) p. 147-210; Frst (2002) p. 221, n. 321.
141Segundo Frst (2002) p. 221, n. 322, estes diversi seriam Hiplito de Roma (? - 235), autor do primeiro comentrio
aos Salmos; Baslio de Cesareia (ca. 330 - 379); Gregrio de Nissa (ca. 335 - ca. 395); e Joo Crisstomo (v. supra Hier.
Ep. 112, n. 54).
142 Hilrio de Poitiers (ca. 300 - ca. 368), bispo da regio da Glia, autor de um tratado em doze livros sobre a Trindade,
De trinitate [PL 10,25-472a], bastante influente para a argumentao de Agostinho em seu livro homnimo [PL
42,815-1098], este publicado ca. 410. Hilrio tambm escreveu um tratado sobre os Salmos, Tractatus super Psalmos
[PL 9,231-890a], por sua vez fundamentado na interpretao de Orgenes; a este volume que Jernimo alude nesta
passagem. Hilrio de Poitiers, cf. Hier. Vir. ill. 100; LThK V p. 100-102; NDPAC p. 2521-2528. V. Frst (2002) p. 222,
n. 324.
143Eusbio (ca. 283 - ca. 371), bispo de Vercelli, tradutor dos comentrios de Orgenes e de Eusbio de Cesareia sobre
os Salmos (cf. Hier. Ep. 61,2). Eusbio de Vercelli, cf. Hier. Vir. ill. 96; LThK III p. 1012-1013; NDPAC p. 1861-1862.
V. Frst (2002) p. 222, n. 325.
144 Aurlio Ambrsio (ca. 340 - 397), bispo de Milo. Talvez a figura mais brilhante e poderosa do cristianismo latino de
sua gerao, encarnou perfeitamente o papel do bispo como um vir publicus, um homem poltico. Jernimo no lhe era
muito simptico o Estridonense o via como um falsificador de Orgenes (cf. Hier. Didym. spirit. praef.; Hom. Orig.
In Luc. praef.; Adv. Ruf. 1,2; Ruf. Apol. Adv. Hier. 3,11); o Estridonense entretanto no omite que utilizou os
comentrios de Ambrsio aos Salmos. No caso de Agostinho, o bispo de Milo o influenciou profundamente: de fato,
este afirma que foi a Milo por causa dele, et veni Mediolanum ad Ambrosium episcopum, e fui at Milo, at o bispo
Ambrsio (cf. Conf. 5,13,23). Ambrsio foi o heri de Agostinho, sendo inclusive quem o batizou em 387 (cf. Aug.
Conf. 6,1,1; 6,4,6; 8,6,15; beata vita 1,4), e no poderamos fazer jus importncia deste autor na vida e pensamento do
bispo de Hipona. Ambrsio de Milo, cf. Hier. Vir. ill. 124; LThK I p. 495-497; NDPAC p. 228-235. V. Frst (2002) p.
222-223, n. 326.
145
humanitas, v. supra Aug. Ep. 28, n. 32. A metonmia tua humanitas serve aqui para Jernimo chamar a ateno de
Agostinho para as regras de etiqueta e as leis que caracterizam uma relao de amizade.
146Veritas hebraica, correlato de veritas latina (v. supra Aug. Ep. 71, n. 20). Os testimonia, testemunhos, seriam,
segundo Fry (2010) p. 213, n. 190, os livros do Antigo Testamento no original hebraico os quais os judeus teriam
corrompido fosse maliciosamente, fosse por serem ignorantes desse idioma.
147 Aluso a Lc 5:39: e ningum tendo bebido o velho quer logo o novo, porque diz: melhor o velho.
148 A denominao liber indica que este texto no exatamente uma carta, mas um tratado. Trata-se da longa Hier. Ep.
57 enviada no ano de ca. 395 a Pamquio (ca. 340 - ca. 409), tambm conhecida como De optimo genere interpretandi,
tratado sobre o melhor mtodo de traduo (apud Labourt (1963) vol. III, p. 55-73). Pamquio, cf. LThK VII p.
1306-1307; NDPAC p. 3789. V. Barterlink (1980) para um estudo dessa carta; supra Hier. Ep. 112, n. 146 para o mtodo
de interpretao (e traduo) de Jernimo.
149Naturalmente, todos os prefcios Pentateuco, livro dos Reis, J, Jonas, Jeremias, Ezequiel etc. escritos por
Jernimo que servem de introduo s verses latinas do Velho Testamento na Vulgata; v. Frst (2002) p. 224, n. 224.
Ademais, a palavra editio no indica, no mundo antigo, o livro ou o objeto em si, mas a prpria atividade, ou seja, sua
substncia. O verbo edere significa tanto editar como colocar em circulao em um sentido mais amplo; v. Arns
(2007) p. 83-84.
150 O termo integritas faz parte do vocabulrio tpico da atividade de traduo na Antiguidade Tardia; diz respeito ao
texto original, em sua completude e fidelidade (cf. Hier. Ep. 85,3; Aug. Doctr. Christ. 2,19). O emprego que Jernimo
faz dele no prescinde tambm de contornos morais, atravs dos quais o autor no s afirma sua auctoritas como
tradutor, contra as acusaes de Agostinho, como tambm sua dignitas de conduta como homem Ccero elenca a
integritas entre as virtudes do homem romano, ao lado da virtus e a humanitas, cf. Cic. Q. fr. 1,1,13 e como cristo,
uma vez que o autor afirma ter conservado a integridade das Sagradas Escrituras em questo. V. Marti (1974) p.
86-93; Frst (2002) p. 225, n. 33; Fry (2010) p. 214, n. 195. A nfase em integritas provavelmente uma invectiva
contra a indignatio usada por Agostinho em Aug. Ep. 73,6; v. supra Aug. Ep. 73, n. 28.
151O adjetivo Hebraeus indica, aqui, os judeus que conhecem o hebraico, significando um grupo cultural e lingustico.
A denominao Iudaeus, usada no resto da carta, indica, por sua vez, uma comunidade religiosa e poltica.
152Fry (2010) p. 215, n. 199 indica que a expresso fabulam texere do jargo popular, literalmente compor uma pea
de teatro. Encontramos um equivalente em portugus, fazer novela.

)342
Hier. ep. 112

153 Em Aug. Ep. 71,5.


154A interpretao do livro de Jonas a partir do hebraico foi finalizada ca. 391-392 e publicada ca. 396; v. supra Aug.
Ep. 71, n. 15.
155 A chamada conjunta dos Cornlios e Asnios Polies parece ser tpica, evocando dois crticos literrios vetustos e
temidos, mas citados genericamente, semelhante ao que faz Horcio com Quintlio (cf. Hor. A. P. 438); poderamos
adaptar em Silvios Romeros e Osrios Duque-Estradas. Cornlio provavelmente um Caio Cornlio que Ccero teria
defendido em 65 a. C., em um discurso que no chegou at ns. Asnio Polio (76 a. C. - 4 d. C.) j personagem assaz
conhecido: fundador da primeira biblioteca pblica em Roma, ele autorou uma histria da guerra civil entre Csar e
Pompeu, tambm perdida (cf. Cic. Fam. 10,31-32; Vell. 2,125; Tac. A. 4,34; Suet. Caes. 30; Gram. 10); Asnio Polio
teria sido o crtico literrio mais eminente de sua poca, e aparentemente Ccero, Csar, Salstio e Tito Lvio no
escaparam de suas farpas (cf. Hier. In Ion. 4,6). V. Frst (2002) p. 228, n. 343.
156 Jernimo justifica esta escolha em seu comentrio ao profeta Jonas: pro cucurbita sive hedera, in hebraeo legimus
ciceion [], quae etiam lingua Syra et Punica ciceia dicitur. est autem genus virgulti vel arbusculae lata habentis
folia in modum pampini et umbram densissimam sustinens. quae Palestinae creberrime nascitur et maxime in arenosis
locis. mirumque in modum, si sementem in terram ieceris, cito confortata surgit in arborem et intra paucos dies quam
herbam videas arbusculam susceperis. Vnde et nos, eo tempora quo interpretabamur prophetas, voluimus idipsum
Hebrae linguae nomen exprimere quia latinus sermo hanc speciem arboris non habebat. sed timuimus grammaticos, ne
invenirent licentiam commentandi et, vel bestias Indiae vel montes Boeotiae, aut istiusmodi quaedam portenta
configerent, secutique sumus veteres translatores qui et ipsi hederam interpretati sunt, quae graece appellantur ;
aliud enim quid dicerent non habebant, no lugar de cucurbita ou hedera, lemos ciceion [ ]em hebraico, o que se
chama ciceia em srio e pnico. Trata-se de uma espcie de moita ou arbusto com folhas largas, semelhantes s vinhas,
e que produz sombras largas. So bastante comuns na Palestina, sobretudo em locais arenosos. Mais espantoso que,
aps jogar-se a semente na terra, ela logo brota, cresce em tronco e tornam-se arbustos, em poucos dias, to logo se
ergam as folhas. Sobre tal planta, ns, na poca em que traduzamos os profetas, queramos usar exatamente o termo
hebraico, sem traduzi-lo, uma vez que no havia correspondente em latim. No entanto, tivemos receio que os
gramticos achassem por demais livre a traduo e que considerassem nossa escolha como uma bizarrice (qual os
monstros da ndia ou os montes da Becia ou qualquer coisa parecida); assim, seguimos os antigos tradutores que, por
sua vez, traduziram tambm por hedera o que em grego se chama eles no tinham outra opo, afinal (cf.
Hier. in. Ion. 4,6). Jernimo estava errado, contudo, em afirmar que no existia um equivalente em latim, idioma que
emprestaria um cicinus de prontido (cf. Plin. Nat. 23,4,41).
157 quila de Snope (fl. ca. sculo II), responsvel por uma traduo literal do Velho Testamento do hebraico para o
grego, foi um dos intrpretes arrolados por Orgenes na Hxapla (v. supra Hier. Ep. 112, n. 126). Os reliqui
[interpretes], outros tradutores, seriam Teodocio, Smaco o Ebionita e os da prpria Septuaginta, cujas verses
tambm estavam presentes na Hxapla. Frst (2002) p. 228-229 n. 345 atenta que os fragmentos dessa antologia nos
mostram que quila de Snope e Teodocio na realidade empregaram , e no , palavra escolhida, na
verdade, por Smaco. Jernimo parece ter se confundido. quila de Snope, cf. LThK II p. 382-383.
158As Escrituras Sagradas originais em hebraico ainda no haviam sido transcritas em codices, mas permaneciam em
volumina, isto , em rolos de papiro, como bem nota Fry (2010) p. 216, n. 210.
159 Em latim, cucurbitarius, neologismo de Jernimo a partir de cucurbita, latim para abbora; traduzimos por
aboboreiros. A leguminosa era evidentemente motivo de riso entre os antigos, se tomarmos por testemunho a
Apocolocynthosis divi Claudii, a aboborao do Divino Cludio escrita ca. 54 por Sneca (abbora em
grego); tambm a mesma passagem de Jernimo em Hier. In Ion. 4,6, onde encontramos , algo como
filobboro. Para a discusso da aboboreira, v. Duval (1966) e Frst (1994a). Kelly (1975) p. 221 acredita que a
escolha de Jernimo tambm se deve observao emprica da flora da Palestina: from his knowledge of Hebrew and
observation of local flora [Jerome] deduced that the tree which overshadowed Jonah (4:6) must in fact have been a
castor-oil plant.
160 Esta a nica carta de Jernimo, em sua correspondncia com Agostinho, a prescindir de uma frmula de concluso.

)343
14

Jernimo Ep. 115 / Agostinho Ep. 81


[404]

No fim de 404 ou incio de 405, o presbtero Firmo havia deixado a frica s pressas, sem avisar Agostinho, e

de l passou por Belm, onde visitara Jernimo, antes de voltar para Hipona1. O Estridonense aproveitou a rpida visita

de Firmo para enviar a Agostinho esta pequena carta na qual, prescindindo de estruturao em pargrafos, faz uma mea

culpa da reao que Agostinho poderia ter ao ler sua longa, contundente e sentenciosa carta Hier. Ep. 112, que foi

enviada talvez pelo mesmo Firmo, ou pelo bispo Presdio. Na carta anterior, fora necessrio adotar um estilo oficioso e

contundente, pois, segundo o Estridonense, no era ele que respondia Agostinho naquela ocasio, mas uma causa que

respondia uma outra causa. O nus jurdico da carta repetido em sua concluso, quando o autor aconselha o ex-

professor de retrica a repreender quem acusa, e no quem se defende.

Segundo Pseudo-Demtrio, esta seria um exemplo de uma carta de satisfao2 . Entre as situaes de Pseudo-

Libnio, podemos discernir as da conciliao3 , da autoridade, e, ainda, de uma possvel provocao final.

1 Hennings (1994) p. 44-45 e Fry (2010) p. 219.


2 Cf. Ps.-Dem. 16.
3 Cf. Ps.-Lib. 19;66.

)344
Hier. ep. 115

Domino vere sancto et beatissimo papae Augustino Hieronymus in Christo salutem.

1. Cum a sancto fratre nostro Firmo sollicite quaererem quid ageres, sospitem te laetus audivi.
Rursum cum tuas litteras non dico sperarem, sed exigerem, nesciente te, ex Africa profectum
esse se dixit. Itaque reddo tibi per eum salutationis officia, qui te unico amore complectitur,
simulque obsecro ut ignoscas pudori meo, quod diu praecipienti ut rescriberem, negare non
potui. Nec ego tibi, sed causae causa respondit. Et si culpa est respondisse (quaeso ut patienter
audias) multo maior est provocasse. Sed facessant istius modi querimoniae; sit inter nos pura
germanitas; et deinceps non quaestionum, sed caritatis ad nos scripta mittamus. Sancti fratres
qui nobiscum Domino serviunt affatim te salutant. Sanctos qui tecum Christi leve trahunt
iugum, praecipue sanctum et suscipiendum papam Alypium, ut meo obsequio salutes, precor.
Incolumem te et memorem mei, Christus Deus noster tueatur omnipotens, domine vere sancte et
beatissime papa. Si legisti librum explanationum in Ionam, puto quod ridiculam cucurbitae non
recipias quaestionem. Sin autem amicus qui me primus gladio petiit, stylo repulsus est; sit
humanitatis tuae atque iustitiae accusantem reprehendere, non respondentem. In Scripturarum si
placet campo sine nostro invicem dolore ludamus.

)345
Hier. ep. 115

Jernimo envia saudaes em nome do Senhor ao padre1 Agostinho, senhor verdadeiramente


santo e muitssimo abenoado.

1. Tendo eu perguntado solicitamente a nosso santo irmo <Firmo>2 como tu estavas, fiquei
feliz em ouvir que ests bem. De novo, enquanto eu esperava, melhor dizendo, exigia cartas
tuas, ele disse que partiu da frica sem te avisar. Por isso te reenvio, por meio dele, as devidas
saudaes3 , por ele que te dedica um amor sem igual; ao mesmo tempo imploro que perdoes
minha discrio, porque no pude deixar de atender a algum que h muito pedia uma resposta.
No sou eu que te respondo, mas uma causa que responde a outra causa4 . E se h culpa em ter
respondido (peo que me escutes com pacincia), h culpa muito maior em ter provocado. Mas
que cessem os queixumes5 dessa espcie; que entre ns haja a pura irmandade e doravante no
enviemos um ao outro cartas com problemas, mas de caridade6. Os santos irmos que conosco
servem o Senhor te enviam numerosas saudaes. Os santos que carregam contigo o tnue jugo
de Cristo, em especial o santo e louvvel padre Alpio7, imploro que lhe envies saudaes em
meu nome. Que Cristo Nosso Deus Todo-poderoso te proteja so e salvo, e lembra-te de mim,
senhor verdadeiramente santo, e muitssimo abenoado padre8! Se leste meu livro de
explicaes sobre Jonas9 , acho que no retomars a discusso ridcula acerca da aboboreira10.
Agora, se um amigo11 aquele que primeiro mostrou-me a espada (e foi repelido pela pena12 ),
cabe tua humanidade e justia repreender quem acusa, no quem se defende. No campo de
batalha das Escrituras, se assim o queres, exercitemo-nos sem ferirmos um ao outro.

)346
Hier. ep. 115
NOTAS

1 Papa, v. supra Hier. Ep. 102, n. 1.


2 Firmo, compresbtero, um dos escreventes de Agostinho, e, ao lado de Sisnio, um dos mensageiros da
correspondncia entre os autores. O sanctus frater especificado como sendo Firmo somente em um nico manuscrito,
mas todos os editores modernos, com a nica exceo de Hilberg, o adotam. Firmo, cf. PCBE 1 p. 458-459 Firmus 2. V.
Hennings (1994) p. 43, n. 123; Frst (2002) p. 21, n. 20; Fry (2010) p. 223, n. 6.
3 Em latim, salutationis officia, v. supra Hier. Ep. 103, n. 4.
4 Causa; v. Aug. Ep. 28, n. 20.
5O latim querimonia, queixa ou queixume, do verbo queror, queixar-se, , aqui, sinnimo de querela, e como
bem nota Frst (2002) p. 257, n. 407 ecoa quaestio, problema ou questo, termo abundante nas cartas de
Agostinho e Jernimo. Fry (2010) p. 224, n. 12 indica que uma palavra arcaica, da nosso queixume.
6Em latim, scripta caritatis. Deve-se compreender que Jernimo busca uma troca de cartas de amizade convencionais
com Agostinho, que no contenham repreenses.
7 Alpio, v. supra Aug. Ep. 28, n. 5.
8Eis novamente a frmula de concluso na postscriptio, muito comum nas cartas de Jernimo. Ela aparece tambm em
Hier. Ep. 103,2, 134,2, 141 e 143,2.
9 Meno ao livro de comentrios de Jernimo sobre profeta Jonas, v. supra Aug. Ep. 71, n. 15.
10 Em latim, cucurbita, conforme Jernimo arguira no fim de Hier. Ep. 112,22.
11Este amicus de quem fala Jernimo, ecoando as lamentaes de Agostinho em Aug. Ep. 73,6, Rufino (cf. Hier. Ep.
102, n. 17); v. Frst (2002) p. 258, n. 410 e Fry (2010) p. 225, n. 22.
12 Contraposio entre gladium, espada, e stylus, que traduzimos por pena, no caso, uma espcie de estilete ou
clamo feito de madeira que os antigos usavam para escrever nas tabullae, tabuinhas feitas de cera. O vocbulo deu no
nosso estilo, e no stylo, caneta, do francs. V. supra Aug. Ep. 40, n. 4.

)347
15

Agostinho Ep. 82 / Jernimo Ep. 116


[405]

A carta Aug. Ep. 82 est entre as mais demoradas e minuciosas de toda a correspondncia de Agostinho, seja

aquela travada com Jernimo, seja com qualquer outro correspondente. Em no menos de trinta e seis pargrafos, o

bispo de Hipona responder, como o Estridonense fizera em sua carta anterior, ponto por ponto dos problemas que

levantara desde o incio da correspondncia. A elocutio, no entanto, se distancia do vocabulrio forense que o antigo

professor de retrica vinha empregando at ento, para dar lugar comunicao dialtica de um filsofo cristo,

permeada de demonstraes bblicas e minuciosidades argumentativas. Se Agostinho no pode vencer Jernimo em

erudio dado momento, o Tagastense confessa que no leu nenhum dos autores citados por este em sua carta

anterior, qual a presente mensagem responde (cf. Aug. Ep. 82,23) ele procurar mostrar que seu poder

argumentativo e capacidade interpretativa so mais sofisticados que os de seu par. Ora, j que Jernimo arma-se de seu

imenso acmulo de conhecimento para enfrentar Agostinho, este entrar ento no campo de batalha das Escrituras com

recurso unicamente ao seu intelecto, e buscar vencer Jernimo atravs do raciocnio lgico, produzindo um

verdadeiro tratado de teologia1.

Assim, Agostinho se mostra aberto, desde o incio, no exrdio, ao exerccio no campo de batalha das

Escrituras desde que ele seja srio, e no mera brincadeira (contrariando o que Jernimo dissera em Hier. Ep.

115,1). Com tais palavras, o autor parece pedir a Jernimo que deixe de trat-lo com condescendncia, tal qual um

jovem inexperiente, e o aceite de uma vez por todas como um intrprete a sua altura. Para ter uma discusso sria,

portanto, Agostinho requisita que eles possam falar com a liberdade da amizade (libertas amicitiae, em latim) seja em

ocasio de um assunto aberto e plano manifesto , seja em ocasio de um rduo e difcil obscuro , um pedido

de franqueza e seriedade ao abordar questes problemticas das Sagradas Escrituras. Segue-se um prembulo no qual o

autor reafirma a inerrncia das Escrituras e a superioridade delas em relao a seus intrpretes, dando incio a narratio,

que se estender por trinta e dois pargrafos, de Aug. Ep. 82,4 at 82,35. O corpo da carta pode ser ento dividido em

trs pontos ou causae: a discusso dos Gal 2:11-14, que constitui o grosso da narrao, em Aug. Ep. 82,4-32); aps, a

questo de Aug. Ep. 40, o livro contra Jernimo que este abordara em sua Ep. 105,4, coadunada com o problema das

edies e tradues preparadas por Jernimo, em especfico a passagem de Jonas sobre a cucurbitas (cf. Hier. Ep.

112,21-22) em trs pargrafos sucessivos, Aug. Ep. 82,33-35.

Agostinho estrutura a primeira causa, tese central de sua carta, em blocos que empregam funes da estrutura

do discurso, semelhana da mensagem anterior de Jernimo. O bispo parte de uma hiptese admissvel acreditar

que h mentiras nas Sagradas Escrituras? para analisar suas possveis consequncias em Aug. Ep. 82,4-6, e conclui,

)348
aps usar passagens das cartas da Paulo como testimonia, que foi Pedro quem agira, verdadeiramente, de maneira

incorreta, e no Paulo quem simulara ser o que no era ou escrevera uma mentira. Nos prximos pargrafos, em Aug.

Ep. 82,7-15, Agostinho demonstrar que sua interpretao a nica possvel, e portanto a correta. Para tal, ele precisa

distinguir a observncia da Lei nos tempos apostlicos, nos quais ainda era permitido realizar os sacramentos para e

entre os judeus (mas no para e entre os gentios), da observncia da Lei nos tempos atuais, que est terminantemente

proibida a quem quer que o seja. Assim, o autor estabelece sua posio, em Aug. Ep. 82,16-22, relevando as diferenas

histricas entre o judaizar nos tempos do Novo Testamento, durante os quais ainda era permitido aos evangelizadores

e aos judeus, e o judaizar no presente, em que estritamente proibido. Por fim, explica seu mtodo e comenta o de

Jernimo ao reafirmar a autoexplicao das Escrituras e criticar o uso servil do Estridonense dos exegetas em Aug.

Ep. 82,23-29, como se ele confiasse mais nos estudiosos da literatura crist do que nas prprias Escrituras. s

concluses finais de Agostinho segue um elogio da franqueza e amizade entre os cristos em Aug. Ep. 82,30-32. A

argumentao do autor, portanto, se d como contraparte daquele de Jernimo em sua carta anterior.

Uma anlise mais minuciosa desse primeiro ponto se faz necessria, no que concerne o teor com que as

celebraes dos judeus eram realizadas nos tempos do Novo Testamento. Para Agostinho, os judeus deviam ser

apartados delas lenta e gradualmente, no de imediato, de modo que observar a Lei era ento legtimo. Trata-se aqui de

uma interpretao bastante distinta daquela de Jernimo. Com recurso aos Atos dos Apstolos e s cartas de Paulo, o

bispo de Hipona demonstrar que o apstolo no pde, por definio, mentir, mas que ele escreve a verdade, de modo

que Pedro de fato no agiu corretamente, pois agiu de maneira indevida ao obrigar os gentios a agirem como os judeus.

Para esta interpretao, interessante a anlise etimolgica que Agostinho constri do termo officiosus, a fim de criticar

a hiptese do officiosum mendacium. Aps distinguir a posio de Paulo em relao observao das cerimnias da

Lei, o bispo de Hipona ento traar paralelos lingusticos entre o officiosus, devido, e o officium, dever, de um

lado, e simulatio, simulao, e mendacium, mentira, de outro, assim como far contraposies entre o utilis, til,

o dispensatorius, poltico. Agostinho extrair desse jogo etimolgico o seguinte argumento: no importa que nome se

d a uma mentira nas Sagradas Escrituras se dispensatoria simulatio, dispensatio utilis, officiosum ou utile

mendacium ela no deixar de ser mentira e, portanto, deve ser descartada como interpretao de quaisquer

passagens bblicas, pois inadmissvel que haja qualquer tipo de falsidade nelas (cf. Aug. Ep. 82,21).

Na esteira da discusso de Gal 2:11-14, o professor Alfons Frst d uma pista: a chave para compreender de

vez por todas a discrdia entre Agostinho e Jernimo acerca das verdadeiras intenes de Paulo ao corrigir Pedro em

Gal 2:11-14 pode residir em uma confuso etimolgica, que se deu devido ao conhecimento insuficiente de Agostinho

da lngua grega. Trata-se do real significado de simulatio, que pode traduzir tanto o termo grego , em sentido

positivo, como uma atuao qual a do orador2, quanto o termo , em sentido negativo, a dissimulatio ou

dissimulao3 de um ator, e assim a mentira4. Agostinho d o segundo sentido, de , simulatio utilis que

Jernimo atribui a Pedro em Gal 2:135 , ao passo que o Estridonense adota a primeira, , que justamente a

usada por Paulo no texto grego: que Pedro e Barnab agiram ento , em simulao, dos judeus (Gal

)349
2:13)6. Seja como for, para o bispo de Hipona melhor compreender a passagem dos Gal 2:11-14 fundamentando-se na

libertas apostolica de Paulo (uma liberdade especial dos apstolos), e na santa humildade de Pedro (ao ter recebido de

bom grado a crtica de seu inferior), que admitir, ou mesmo acreditar, que Paulo agira de maneira simulada,

dissimulada, ou escancaradamente mentirosa naquela ocasio.

A diacronia temporal quanto observao da Lei foi, na realidade, sempre a posio de Agostinho. Temos,

portanto, a resposta para uma pergunta central: qual era, enfim, a posio de Paulo em relao s cerimnias dos judeus,

que se tornaram obsoletas aps a vinda da salvao com Jesus Cristo? O que significa estar sob a Lei? A essncia da

Lei a caridade ou o amor, a caritas uma das tradues para o grego (cf. 1 Tim 5). este o fim da Lei, a base

dos mandamentos recebidos por Moiss, o valor central para a conduta crist, que se realizou com a vinda de Cristo, o

fundamento de toda relao entre fratres catlicos. Nesse sentido, os cristos se veem emancipados da Lei por Cristo,

mas permanentemente tambm sob Ela, tanto porque dependem eternamente do amor, que a Graa de Cristo (de modo

que a Lei no destruda, mas realiza-se no Filho de Deus), quanto na condio de sucessores dos judeus.

interessante salientar que Agostinho, de fato, no foi o nico autor da poca a tecer essa observao etnolgica: ela

tambm est presente nas obras historiogrficas de Eusbio de Cesareia (260/265 - 339/340), por exemplo. Por mais

que os seus contemporneos, entre eles o prprio Jernimo, tentassem distinguir as especificidades do catolicismo e do

judasmo, o bispo de Hipona no se esquivou do fato problemtico de que uns descenderam historicamente dos outros.

um fato curioso, ento, que a tolerncia para com os judeus tenha vindo justamente de Agostinho, um autor que

sempre esteve em busca de uma unidade na doutrina crist que expurgasse toda heterodoxia7.

Algo sobre o mtodo argumentativo de Agostinho em sua dissertao. Ao concluir a sua leitura sobre Gal

2:11-14, o autor expe seus fundamentos: o princpio da inerrncia e autoexplicao das Sagradas Escrituras; a

impossibilidade de admitir quaisquer mentiras nestas; e, fundamentalmente, a supremacia da doutrina de Paulo frente a

todos os autores que lhe sucederam na pregao crist inclusive criticando a liberdade servil (ingenua servitus, em

latim) que ele identifica em Jernimo no que tange ao trabalho com a tradio exegtica grega (cf. Aug. Ep. 82,23-29).

Em concluso, uma vez que Paulo afirma que se fez judeu aos judeus, e tudo a todos (cf. 1 Cor 9:20-21) a fim de

ganhar adeptos ao cristianismo, e atestou que no mente em Gal 1:20, a nica concluso possvel que ele diz somente

a verdade; que foi de maneira verdica que ele tomou as observaes da Lei; e, assim, que foi verdadeiramente que ele

repreendeu Pedro. Pretender qualquer outra soluo esvaziar o prprio conceito de veritas e colocar toda a estrutura

da f deriva. H, portanto, no somente um problema de leitura na interpretao de Jernimo, mas um de f e

princpio; e, na concluso de Agostinho, Paulo corrigiu Pedro e agiu como os judeus atravs da compaixo do

sentimento de algum que se compadece, no da astcia de um mentiroso. Ora, o prprio Jernimo havia agido da

mesma forma que Paulo ao repreender um Agostinho que agira como Pedro em suas cartas anteriores; isso o monge de

Belm pode conferir ao rel-las (cf. Aug. Ep. 82,30-31). Por fim, s vezes de uma peroratio da discusso anterior, o

bispo de Hipona desculpa-se uma vez mais pelo tom do livro, isto , de Aug. Ep. 40, carta em que pedira para

Jernimo cantar a em retratao de sua interpretao dos Gal 2:11-14, justificando que no tinha ms

)350
intenes ao faz-lo. Agostinho agora inverte a comparao que fizera entre a relao de Pedro com Paulo com aquela

que ele tem com Jernimo: embora o bispo seja, em muitos aspectos, inferior ao monge, ainda assim convm que uma

correo, mesmo que ela venha de um inferior, no seja ignorada ou menosprezada. Jernimo deve, portanto, usar do

exemplo de humildade de Pedro, que havia desviado da retido da f, e aceitar a correo de Agostinho. Assim se

conclui, de modo breve, uma segunda causa da carta que temos em mos (cf. Aug. Ep. 82,33).

Nos pargrafos seguintes, Agostinho aborda ligeiramente mais uma causa que apareceu em suas cartas

anteriores: a traduo e interpretao das Escrituras. Aqui, Agostinho tanto elogia o empenho de Jernimo em verter o

Velho Testamento do hebraico para o latim quanto aceita a explicao do uso de hedera e no cucurbitas em Jon 4:6,

mas, ainda que se mostre mais flexvel quanto s diversas possibilidades de interpretar uma passagem obscura

moderando o tom que havia empregado anteriormente em Aug. Ep. 28,2 e 40,4 , o bispo de Hipona confessa que vai

continuar a dar preferncia segunda leitura, mais prxima da da Septuaginta, e assim se mostra convicto

de que a verso grega tem a maior autoridade, j que goza de tradio mais slida. Uma traduo dela, reitera, seria

mais conveniente que uma do hebraico, uma lngua pouco conhecida no mundo helnico.

Apesar de ser a carta mais longa da correspondncia mtua com Jernimo, Aug. Ep. 82 mais comedida que

Hier. Ep. 112. Nessa carta, a elocutio forense d lugar ao modo de argumentao didtico-filosfico de um professor.

Como as palavras de quem dita com pressa, a sintaxe aqui no raro alquebrada, deixando escapar perodos de flego e

cheios de subordinao, chacoalhados por pronomes relativos mal referenciados (e.g. Aug. Ep. 82,8); vulgarismos como

fuerant ministrata e adiuta non fuerit no lugar de erant ministrata e adiuta non erit (cf. Aug. Ep. 82,9;20); e um

lucrifacias no lugar de lucrifaciat em Aug. Ep. 82,29 (erro que acreditamos vir de um copista distrado, e assim

optamos por apag-lo silenciosamente8 ). Nossa traduo procurou dar conta desses tropeos, os quais, a nosso ver,

trazem o texto para mais prximo da linguagem falada. Quanto ao vocabulrio, este no se dilata com a mesma

proporo das cartas anteriores: enxuto e repetitivo, bastante tcnico. As especificidades, quando aparecem, pertencem

uma vez mais ao vocabulrio jurdico criminatio, infrao, attestatio, juramento, provocare, recorrer e

sobretudo ao filosfico e etimolgico, caso dos indifferentia em Aug. Ep. 82,13, da nfase na veritas, e na relao

etimolgica entre officiosus, dispensatio, simulatio, mendacium discutida longamente em Aug. Ep. 82,21-22. H

diversos tpicos do gnero, que se concentram no incio e no final (cf. Aug. Ep. 82,1;36), quais a , o , o

e a .

A carta Aug. Ep. 82 seria, a nosso ver, uma elaborada carta de admonio na diviso de Pseudo-Demtrio9 .

Entre as situaes de Pseudo-Libnio, destacamos a negao, a retratao, a conciliao, a rplica, a diplomacia, a

instruo, a parnese, e, em princpio, a didtica10 , uma vez que o bispo de Hipona pretende ensinar e demonstrar a

Jernimo a sua interpretao da censura de Paulo a Pedro em Gal 2:11-14. importante salientar que aqui o nico

recurso a um autor que no seja bblico a Ccero, a partir de uma passagem do De officiis, a fim de admitir um

argumento de autoridade para explicar a etimologia de fides (cf. Aug. Ep. 82,22). Diferente de Jernimo em Hier. Ep.

112, o qual citara diversas autoridades eclesisticas, Agostinho recorrer agora unicamente aos indicia das Sagradas

)351
Escrituras, em especial s palavras de Paulo, para construir sua argumentao. Em uma discusso sria como essa que

est em jogo fundamentalmente, se permitido ou no acreditar que os apstolos pudessem ter mentido os

maiores, sejam os da tradio pag ou crist, se ausentam. Sendo assim, o sermo do autor rebaixa-se ao sermo humilis

cristo, e deixa de lado os artifcios retricos mais abundantes em cartas anteriores.

Enviada em meados de 40511, certamente aps Hier. Ep. 112, a carta Aug. Ep. 82 a resposta final de

Agostinho, enviada provavelmente atravs do mensageiro Firmo (cf. Hier. Ep. 115), a trs cartas anteriores de seu

interlocutor (Hier. Ep. 105, 112 e 115). Nada nos permite entrever, todavia, uma rplica do monge de Belm a ela. Com

essa carta, tem-se o fim do primeiro perodo de correspondncia.

1 Frst (1999) p. 171, Epistula 82 ist ein veritabler theologischer Traktat.


2 Cf. A. Rh. 1386a-1403b.
3 Cf. D. 4,7;37.
4 Frst (1999) p. 32-33; 53; id. (2002) p. 312-313, n. 505. Os equivalentes latinos simulatio como e
, assim como dissimulatio como , mas no como so ambos tambm dados por
Schrevelius p. 1142. Ccero, no entanto, entende a como aquela atribuda por Plato a Scrates, um mtodo
com que o filsofo ateniense desmascarava o conhecimento aparente de seus adversrios. O Arpinate diferencia a
da dissimulatio de Lcio Licnio Crasso no De oratore, mas tambm d a ela conotao positiva, sendo
sobretudo a dissimulatio scientiae, o fato modesto de no mostrar conhecimento profundo de determinado assunto (cf.
Cic. De or. 2,269-270). Acreditamos que tal sentido positivo havia sido perdido nos tempos de Agostinho.
5 Em sua exposio da carta aos Glatas, Agostinho usa simulate, de maneira simulada, para caracterizar a ao de
Pedro: timens ergo eos, qui adhuc putabant in illis observationibus salutem constitutam, segregabat se a gentibus et
simulate illis consentiebat ad imponenda gentibus illa onera servitutis, quod in ipsius obiurgationis verbis satis
apparet, logo, temendo aqueles homens que at ento pensavam que a salvao estava encerrada naquelas
observaes, Pedro se apartava dos gentios e de maneira simulada consentia aos judeus que era preciso impor aos
gentios o peso daquela servido, algo que aparece de modo bastante claro nas palavras de censura do prprio Paulo (cf.
Aug. In Gal. 2,14). V. Fry (2010) p. 17-26 para uma traduo desse trecho.
6 Jernimo de fato usa o termo hypocrisis transliterado em seu comentrio carta de Paulo aos Glatas, a saber: sed ut
ante diximus, restitit secundum faciem publicam Petro et ceteris, ut hypocrisis observandae Legis, quae nocebat eis qui
ex gentibus crediderant, correptionis hypocrisi emendaretur, mas, como afirmamos anteriormente, ele resistiu a Pedro
e aos outros publicamente, para que essa hypocrisis, de que era necessrio observar a Lei, que era nociva queles que os
gentios crentes, fosse remendada por uma hypocrisis de uma correo (cf. Hier. In Gal. 2,11-14), ou seja, tanto Pedro
quanto Paulo haviam agido de maneira hipcrita ou simulada, o primeiro por ter levado mentirosamente os gentios
a acreditarem na necessidade da Lei, e o segundo por ter corrigido em Pedro algo que no precisava ser corrigido, e que
ele, o prprio Paulo, fazia. Ambos, assim, mentiram. V. Fry (2010) p. 5-16 para uma traduo desse trecho.
7 Para a relao de Agostinho com o judasmo e os judeus, Fredriksen (2008).
8 Labourt (1963) vol. VII, p. 70 faz o mesmo e sequer nota a discrepncia. Frst (2002) p. 321 l o imperativo fiere no
lugar do infinito fieri, e traduz a orao por werde wie jener, um ihm zu gewinnen. Aos que entretanto ainda tiverem
interesse nessa mincia, v. Fry (2010) p. 282, n. 149.
9 Cf. Ps.-Dem. 6.
10 Cf. Ps.-Lib. 31;78.
11 Hennings (1994) p. 44-45; Fry (2010) p. 227-229.

)352
Aug. ep. 82

Domino dilectissimo et in Christi visceribus honorando sancto fratri et compresbytero


Hieronymo Augustinus in Domino salutem.

1. Iam pridem tuae caritati prolixam epistulam misi, respondens illi tuae, quam per sanctum
filium tuum Asterium, nunc iam non solum fratrem, verum etiam collegam meum, misisse te
recolis. Quae utrum in manus tuas pervenire meruerit, adhuc nescio, nisi quod per fratrem
sincerissimum Firmum scribis, si ille qui te primum gladio petiit, stylo repulsus est; ut sit
humanitatis meae atque iustitiae, accusantem reprehendere, non respondentem. Hoc solo
tenuissimo indicio, utcumque conicio, legisse te illam epistolam meam. In ea quippe deploravi
tantam inter vos extitisse discordiam, de quorum tanta amicitia, quaquaversum eam fama
diffuderat, caritas fraterna gaudebat. Quod non feci reprehendendo germanitatem tuam, cuius in
ea re aliquam culpam me cognovisse non ausim dicere, sed dolendo humanam miseriam, cuius
in amicitiis mutua caritate retinendis, quantalibet illa sit, incerta permansio est. Verum illud
malueram tuis nosse rescriptis, utrum mihi veniam quam poposceram, dederis. Quod apertius
mihi intimari cupio;,quamvis hilarior quidam vultus litterarum tuarum, etiam hoc me impetrasse
significare videatur, si tamen post lectam illam missae sunt; quod in eis minime apparet.
2. Petis, vel potius fiducia caritatis iubes, ut in Scripturarum campo sine nostro invicem dolore
ludamus. Equidem quantum ad me attinet, serio nos ista, quam ludo agere mallem. Quod si hoc
verbum tibi propter facilitatem ponere placuit, ego fateor, maius aliquid expeto a benignitate
virium tuarum, prudentiaque tam docta, et otiosa, annosa, studiosa, ingeniosa diligentia; haec
tibi non tantum donante, verum etiam dictante Spiritu Sancto, ut in magnis et laboriosis
quaestionibus, non tamquam ludentem in campo Scripturarum, sed in montibus anhelantem
adiuves. Si autem propter hilaritatem, quam esse inter carissimos disserentes decet, putasti
dicendum esse, ludamus: sive illud apertum et planum sit, unde colloquimur, sive arduum atque
difficile, hoc ipsum edoce, obsecro te, quonam modo assequi valeamus: ut cum forte aliquid nos
movet, quod nobis, et si non cautius attendentibus, certe tardius intellegentibus non probatum
est, et quid nobis videatur contra conamur asserere, si hoc aliquanto securiore libertate dicamus,
non incidamus in suspicionem puerilis iactantiae, quasi nostro nomini famam, viros illustres
accusando quaeramus, si autem aliquid asperum refellendi necessitate depromptum, quo
tolerabile fiat, leniore circumfundamus eloquio, ne litum melle gladium stringere iudicemur.
Nisi forte ille modus est, quo utrumque hoc vitium, vel vitii suspicionem caveamus, si cum

)353
Aug. ep. 82
doctiore amico sic disputemus, ut quicquid dixerit, necesse sit approbare; nec quaerendi saltem
causa, liceat aliquantulum reluctari.
3. Tum vero sine ullo timore offensionis tamquam in campo luditur; sed mirum si nobis non
illuditur. Ego enim fateor Ccritati tuae, solis eis Scripturarum libris, qui iam canonici
appellantur, didici hunc timorem honoremque deferre, ut nullum eorum auctorem scribendo
aliquid errasse firmissime credam. Ac si aliquid in eis offendero litteris, quod videatur
contrarium veritati, nihil aliud quam vel mendosum esse codicem, vel interpretem non
assecutum esse quod dictum est, vel me minime intellexisse, non ambigam. Alios autem ita
lego, ut quantalibet sanctitate doctrinaque praepolleant, non ideo verum putem, quia ipsi ita
senserunt; sed quia mihi vel per illos auctores canonicos, vel probabili ratione, quod a vero non
abhorreat, persuadere potuerunt. Nec te, mi frater, sentire aliud existimo: prorsus, inquam, non
te arbitror, sic legi tuos libros velle, tamquam prophetarum, vel apostolorum, de quorum
scriptis, quod omni errore careant dubitare nefarium est. Absit hoc a pia humilitate, et veraci de
temetipso cogitatione;,qua nisi esses praeditus, non utique diceres: Utinam mereremur
complexus tuos, et collatione mutua vel doceremus aliqua, vel disceremus.
4. Quod si teipsum, consideratione vitae ac morum tuorum, non simulate, nec fallaciter dixisse
credo, quanto magis aequum est me credere apostolum Paulum non aliud sensisse quam
scripserit, ubi ait de Petro et Barnaba: Cum viderem quia non recte ingrediuntur ad veritatem
Evangelii, dixi Petro coram omnibus: Si tu, cum sis Iudaeus, gentiliter et non iudaice vivis,
quomodo Gentes cogis iudaizare? De quo enim certus sim, quod me scribendo vel loquendo
non fallat, si fallebat apostolus filios suos, quos iterum parturiebat, donec in eis Christus, id est,
veritas, formaretur, quibus cum praemisisset dicens: Quae autem scribo vobis, ecce coram Deo,
quia non mentior. Non tamen veraciter scribebat, sed nescio qua dispensatoria simulatione
fallebat, vidisse se Petrum et Barnabam non recte ingredientes ad veritatem evangelii, ac Petro
in faciem restitisse, non ob aliud nisi quod Gentes cogeret iudaizare?
5. At enim satius est credere apostolum Paulum aliquid non vere scripsisse, quam apostolum
Petrum non recte aliquid egisse. Hoc si ita est, dicamus (quod absit) satius esse credere mentiri
evangelium, quam negatum esse a Petro Christum, et mentiri Regnorum librum, quam tantum
prophetam a Domino Deo tam excellenter electum, et in concupiscenda atque abducenda uxore
aliena commisisse adulterium, et in marito eius necando, tam horrendum homicidium. Immo
vero sanctam Scripturam, in summo et caelesti auctoritatis culmine collocatam, de veritate eius
certus ac securus legam; et in ea homines vel approbatos, vel emendatos, vel damnatos veraciter

)354
Aug. ep. 82
discam, potius quam facta humana, dum in quibusdam laudabilis excellentiae personis
aliquando credere timeo reprehendenda, ipsa divina eloquia mihi sint ubique suspecta.
6. Manichaei plurima divinarum Scripturarum, quibus eorum nefarius error clarissima
sententiarum perspicuitate convincitur, quia in alium sensum detorquere non possunt, falsa esse
contendunt, ita tamen, ut eandem falsitatem non scribentibus apostolis tribuant, sed nescio
quibus codicum corruptoribus. Quod tamen quia nec pluribus sive antiquioribus exemplaribus,
nec praecedentis linguae auctoritate (unde Latini libri interpretati sunt) probare aliquando
potuerunt, notissima omnibus veritate superati confusique discedunt. Itane non intellegit sancta
prudentia tua, quanta malitiae illorum patescat occasio, si non ab aliis apostolicas litteras esse
falsatas, sed ipsos apostolos falsa scripsisse dicamus?
7. Non est, inquis, credibile, hoc in Petro Paulum, quod ipse Paulus fecerat, arguisse. Non nunc
inquiro quid fecerit; quid scripserit quaero. Hoc ad quaestionem quam suscepi maxime pertinet;
ut veritas divinarum Scripturarum, ad nostram fidem aedificandam memoriae commendata, non
a quibuslibet, sed ab ipsis apostolis, ac per hoc in canonicum auctoritatis culmen recepta, ex
omni parte verax atque indubitanda persistat. Nam si hoc fecit Petrus quod facere debuit,
mentitus est Paulus, quod eum viderit non recte ingredientem ad veritatem evangelii. Quisquis
enim hoc facit quod facere debet, recte utique facit; et ideo falsum de eo dicit, qui dicit eum non
recte fecisse quod eum novit facere debuisse. Si autem verum scripsit Paulus, verum est quod
Petrus non recte tunc ingrediebatur ad veritatem evangelii. Id ergo faciebat quod facere non
debebat; et si tale aliquid Paulus ipse iam fecerat, correctum potius etiam ipsum credam,
coapostoli sui correctionem non potuisse neglegere, quam mendaciter aliquid in sua epistula
posuisse. Et si hoc non in epistula qualibet, quanto magis in illa, in qua praelocutus ait: Quae
autem scribo vobis, ecce coram Deo quia non mentior?
8. Ego quidem illud Petrum sic egisse credo, ut Gentes cogeret iudaizare. Hoc enim lego
scripsisse Paulum, quem mentitum esse non credo; et ideo non recte agebat hoc Petrus. Erat
enim contra evangelii veritatem, ut putarent qui credebant in Christum sine illis veteribus
sacramentis salvos se esse non posse. Hoc enim contendebant Antiochiae, qui ex circumcisione
crediderant, contra quos Paulus perseveranter acriterque confligit. Ipsum vero Paulum non ad
hoc id egisse, quod vel Timotheum circumcidit, vel Cenchreis votum persolvit, vel
Hierosolymis a Iacobo admonitus, cum eis qui noverant, legitima illa celebranda suscepit; ut
putari videretur per ea sacramenta etiam Christianam salutem dari, sed ne illa quae prioribus, ut
congruebat, temporibus, in umbris rerum futurarum Deus fieri iusserat, tamquam idolalatriam
Gentilium damnare crederetur. Hoc est enim quod illi Iacobus ait, auditum de illo esse, quod
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discissionem doceat a Moyse. Quod utique nefas est, ut credentes in Christum discindantur a
propheta Christi, tamquam eius doctrinam detestantes atque damnantes; de quo ipse Christus
dicit: Si crederetis Moysi, crederetis et mihi; de me enim ille scripsit.
9. Attende enim obsecro ipsa verba Iacobi: Vides, inquit, frater, quot millia sunt in Iudaea,
qui crediderunt in Christum; et hi omnes aemulatores sunt Legis. Audierunt autem de te quia
discissionem doces a Moyse eorum, qui per gentes sunt, Iudaeorum; dicens non debere
circumcidere eos filios suos, neque secundum consuetudinem ingredi. Quid ergo est? Utique
oportet convenire multitudinem; audierunt enim te supervenisse. Hoc ergo fac, quod tibi
dicimus. Sunt nobis viri quatuor votum habentes super se; his assumptis, sanctificate cum ipsis,
et impende in eos ut radant capita; et scient omnes quia quae de te audierunt falsa sunt, sed
sequeris et ipse custodiens Legem. De Gentibus autem qui crediderunt, nos mandavimus,
iudicantes nihil eiusmodi servare illos, nisi ut se observent ab idolis immolato, et a sanguine, et
a fornicatione. Non, ut opinor, obscurum est, et Iacobum hoc ideo monuisse, ut scirent falsa
esse quae de illo audierant, hi qui cum in Christum ex Iudaeis credidissent, tamen aemulatores
erant Legis, ne per doctrinam Christi, velut sacrilega, nec Deo mandante conscripta damnari
putarentur, quae per Moysen patribus fuerant ministrata. Hoc enim de Paulo iactaverant non illi
qui intellegebant quo animo a Iudaeis fidelibus observari tunc ista deberent, propter
commendandam scilicet auctoritatem divinam, et sacramentorum illorum propheticam
sanctitatem, non propter adipiscendam salutem, quae iam in Christo revelabatur, et per baptismi
sacramentum ministrabatur; sed illi hoc de Paulo sparserant, qui sic ea volebant observari,
tamquam sine his in evangelio salus credentibus esse non posset. Ipsum enim senserant
vehementissimum gratiae praedicatorem, et intentioni eorum maxime adversum, docentem non
per illa hominem iustificari, sed per gratiam Iesu Christi, cuius praenuntiandae causa illae
umbrae in Lege mandatae sunt. Et ideo illi invidiam et persecutionem concitare molientes,
tamquam inimicum Legis mandatorumque divinorum criminabantur; cuius falsae criminationis
invidiam congruentius devitare non posset, quam ut ea ipse celebraret quae damnare tamquam
sacrilega putabatur; atque ita ostenderet, nec Iudaeos tunc ab eis tamquam a nefariis
prohibendos, nec Gentiles ad ea tamquam ad necessaria compellendos.
10. Nam si revera sic ea reprobaret, quemadmodum de illo auditum erat, et ideo celebranda
susciperet, ut actione simulata suam posset occultare sententiam, non ei diceret Iacobus: et
scient omnes, sed diceret: et putabunt omnes, quoniam quae de te audierunt, falsa sunt,
praesertim quia in ipsis Hierosolymis apostoli iam decreverant, ne quisquam Gentes cogeret
iudaizare; non autem decreverant, ne quisquam tunc Iudaeos iudaizare prohiberet, quamvis
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etiam ipsos iam doctrina christiana non cogeret. Proinde si post hoc apostolorum decretum,
Petrus habuit illam in Antiochia simulationem, qua Gentes cogeret iudaizare, quod iam nec ipse
cogebatur, quamvis propter commendanda eloquia Dei, quae Iudaeis sunt credita, non
prohibebatur; quid mirum si constringebat eum Paulus libere asserere, quod cum ceteris
apostolis se Hierosolymis decrevisse meminerat?
11. Si autem hoc, quod magis arbitror, ante illud Hierosolymitanum concilium Petrus fecit, nec
sic mirum est, quod eum volebat Paulus non timide obtegere, sed fidenter asserere, quod eum
pariter sentire iam noverat, sive quod cum eo contulerat evangelium, sive quod in Cornelii
centurionis vocatione, etiam divinitus eum de hac re admonitum acceperat, sive quod antequam
illi quos timuerat, venissent Antiochiam, cum Gentibus eum convesci viderat. Neque enim
negamus in hac sententia fuisse iam Petrum, in qua et Paulus fuit. Non itaque tunc eum quid in
ea re verum esset docebat, sed eius simulationem, qua Gentes iudaizare cogebantur, arguebat,
non ob aliud, nisi quia sic illa omnia simulatoria gerebantur, tamquam verum esset quod
dicebant illi, qui sine circumcisione praeputii atque aliis observationibus, umbrae futurorum,
putabant credentes salvos esse non posse.
12. Ergo et Timotheum propterea circumcidit, ne Iudaeis, et maxime cognationi eius maternae
sic viderentur, qui ex Gentibus in Christum crediderant, detestari circumcisionem, sicut
idolalatria detestanda est, cum illam Deus fieri praeceperit, hanc Satanas persuaserit; et Titum
propterea non circumcidit, ne occasionem daret eis qui sine illa circumcisione dicebant
credentes salvos esse non posse, et ad deceptionem Gentium hoc etiam Paulum sentire iactarent.
Quod ipse satis significat, ubi ait: Sed neque Titus qui mecum erat, cum esset Graecus,
compulsus est circumcidi: propter subintroductos autem falsos fratres, qui subintroierant
perscrutari libertatem nostram, ut nos in servitutem redigerent, quibus nec ad horam cessimus
subiectione, ut veritas Evangelii permaneat ad vos. Hic apparet quid eos captare intellexerit, ut
non faceret quod in Timotheo fecerat, quod ea libertate facere poterat, qua ostenderet illa
sacramenta, nec tamquam necessaria debere appeti, nec tamquam sacrilega debere damnari.
13. Sed cavendum est videlicet in hac disputatione ne, sicut philosophi, quaedam facta hominum
media dicamus, inter recte factum et peccatum: quae neque in recte factis, neque in peccatis
numerentur; et urgeamur eo quod observare Legis cerimonias non potest esse indifferens, sed
aut bonum, aut malum. Vt si bonum dixerimus, eas nos quoque observare cogamur; si autem
malum, non vere, sed simulate ab apostolis observatas esse credamus. Ego vero apostolis, non
tam exemplum philosophorum timeo, quando et illi in sua disputatione veri aliquid dicunt, quam
forensium advocatorum, quando in alienarum causarum actione mentiuntur. Quorum similitudo,
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si in ipsa expositione epistulae ad Galatas ad confirmandam simulationem Petri et Pauli putata
est, decenter induci, quid ego apud te timeam nomen philosophorum, qui non propterea vani
sunt quia omnia falsa dicunt, sed quia et falsis plerisque confidunt, et ubi vera inveniuntur
dicere, a Christi gratia, qui est ipsa veritas, alieni sunt?
14. Cur autem non dicam praecepta illa veterum sacramentorum nec bona esse, quia non eis
homines iustificantur (umbrae sunt enim praenuntiantes gratiam, qua iustificamur), nec tamen
mala, quia divinitus praecepta sunt, temporibus personisque congruentia, cum me adiuvet etiam
prophetica sententia, qua dicit Deus se illi populo dedisse praecepta non bona? Forte enim
propterea non dixit mala; sed tantum non bona, id est, non talia ut illis homines boni fiant, aut
sine illis boni non fiant. Vellem me doceret benigna sinceritas tua, utrum simulate quisquam
sanctus orientalis cum Romam venerit, ieiunet sabbato, excepto illo die Paschalis vigiliae. Quod
si malum esse dixerimus, non solum Romanam Ecclesiam, sed etiam multa ei vicina et
aliquanto remotiora damnabimus, ubi mos idem tenetur et manet. Si autem non ieiunare sabbato
malum putaverimus, tot ecclesias Orientis, et multo maiorem orbis Christiani partem, qua
temeritate criminabimur? Placetne tibi, ut medium quiddam esse dicamus, quod tamen
acceptabile sit ei, qui hoc non simulate, sed congruenti societate atque observantia fecerit? Et
tamen nihil inde legimus in canonicis libris praeceptum esse Christianis. Quanto magis illud
malum dicere non audeo, quod Deum praecepisse ipsa christiana fide negare non possum, qua
didici non eo me iustificari, sed gratia Dei per Iesum Christum Dominum nostrum?
15. Dico ergo circumcisionem praeputii, et cetera huius modi, priori populo per Testamentum
quod Vetus dicitur, divinitus data ad significationem futurorum, quae per Christum oportebat
impleri: quibus advenientibus remansisse illa Christianis legenda tantum ad intellegentiam
praemissae prophetiae, non autem necessario facienda: quasi adhuc expectandum esset ut
veniret fidei revelatio, quae his significabatur esse ventura. Sed quamvis Gentibus imponenda
non essent, non tamen sic debuisse auferri a consuetudine Iudaeorum, tamquam detestanda
atque damnanda. Sensim proinde atque paulatim fervente sana praedicatione gratiae Christi, qua
sola nossent credentes se iustificari salvosque fieri, non illis umbris rerum antea futurarum, tunc
iam venientium atque praesentium, ut in illorum Iudaeorum vocatione, quos praesentia carnis
Domini et apostolica tempora sic invenerant, omnis illa actio consumeretur umbrarum, hoc eis
suffecisse ad commendationem, ut non tamquam detestanda et similis idololatriae vitaretur, ultra
vero non haberet progressum; ne putaretur necessaria, tamquam vel ab illa salus esset, vel sine
illa esse non posset. Quod putaverunt haeretici, qui dum volunt et Iudaei esse et Christiani, nec
Iudaei nec Christiani esse potuerunt. Quorum sententiam mihi cavendam, quamvis in ea
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numquam fuerim, tamen benevolentissime admonere dignatus es: in cuius sententiae non
consensionem, sed simulationem timore Petrus inciderat, ut de illo Paulus verissime scriberet:
quod cum eum vidisset non recte ingredientem ad veritatem evangelii, eique verissime diceret,
quod Gentes iudaizare cogebat. Quod Paulus utique non cogebat, ob hoc illa vetera veraciter,
ubi opus esset, observans, ut damnanda non esse monstraret; praedicans tamen instanter non eis,
sed revelata gratia fidei, salvos fieri fideles, ne ad ea quemquam velut necessaria suscipienda
compelleret. Sic autem credo apostolum Paulum veraciter cuncta illa gessisse, nec tamen nunc
quemquam factum ex Iudaeo Christianum, vel cogo, vel sino talia veraciter celebrare, sicut nec
tu, cui videtur Paulus ea simulasse, cogis istum vel sinis talia simulare.
16. An vis ut etiam ego dicam hanc esse summam quaestionis, immo sententiae tuae, ut post
evangelium Christi, bene faciant credentes Iudaei, si sacrificia offerant quae obtulit Paulus; si
filios circumcidant, si sabbatum observent, ut Paulus in Timotheo, et omnes observavere Iudaei,
dummodo haec simulate ac fallaciter agant? Hoc si ita est, non iam in haeresim Hebionis, vel
eorum quos vulgo Nazaraeos nuncupant, vel quamlibet aliam veterem; sed in nescio quam
novam delabimur, quae sit eo perniciosior, quo non errore, sed proposito est ac voluntate fallaci.
Quod si respondeas, ut te ab hac purges sententia, tunc apostolos ista laudabiliter simulasse ne
scandalizarentur infirmi, qui ex Iudaeis multi crediderant, et ea respuenda, nondum
intellegebant; nunc vero confirmata per tot gentes doctrina gratiae Christianae, confirmata etiam
per omnes Christi ecclesias lectione Legis et prophetarum, quomodo haec intellegenda, non
observanda recitentur, quisquis ea simulando agere voluerit, insanire, cur mihi non licet dicere
apostolum Paulum, et alios rectae fidei Christianos, tunc illa vetera sacramenta paululum
observando veraciter commendare debuisse, ne putarentur illae propheticae significationis
observationes a piissimis patribus custoditae tamquam sacrilegia diabolica a posteris detestatae?
Iam enim cum venisset fides, quae prius illis observationibus praenuntiata, post mortem et
resurrectionem Domini revelata est, amiserant tamquam vitam officii sui. Verum tamen sicut
defuncta corpora necessariorum deducenda erant quodam modo ad sepulturam, nec simulate,
sed religiose; non autem deserenda continuo, vel inimicorum obtrectationibus tamquam canum
morsibus proicienda. Proinde nunc quisquis Christianorum, quamvis sit ex Iudaeis, similiter ea
celebrare voluerit, tamquam sopitos cineres eruens, non erit pius deductor, vel baiulus corporis,
sed impius sepulturae violator.
17. Fateor sane in eo quod epistula mea continet, quod ideo sacramenta Iudaeorum Paulus
celebranda susceperat, cum iam Christi esset apostolus, ut doceret non esse perniciosa his qui ea
vellent, sicut a parentibus per Legem acceperant custodire, minus me posuisse: Illo dumtaxat
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tempore, quo primum fidei gratia revelata est: tunc enim hoc non erat perniciosum. Progressu
vero temporis illae observationes ab omnibus Christianis desererentur; ne si tunc fieret, non
discerneretur quod Deus populo suo per Moysen praecepit, ab eo quod in templis daemoniorum
spiritus immundus instituit. Proinde potius culpanda est neglegentia mea, quia hoc non addidi,
quam obiurgatio tua. Verum tamen longe ante quam litteras tuas accepissem, scribens contra
Faustum manichaeum, quomodo eumdem locum quamvis breviter explicaverim, et hoc illic non
praetermiserim, et legere poterit, si non dedignetur, benignitas tua, et a carissimis nostris, per
quos haec scripta nunc misi, quomodo volueris, tibi fides fiet, illud me ante dictasse; mihique de
animo meo crede, quod coram Deo loquens, iure caritatis exposco, numquam mihi visum fuisse,
etiam nunc Christianos ex Iudaeis factos sacramenta illa vetera quolibet affectu, quolibet animo
celebrare debere, aut eis ullo modo licere; cum illud de Paulo semper ita senserim, ex quo illius
mihi litterae innotuerunt, sicut nec tibi videtur hoc tempore cuiquam ista esse simulanda, cum
hoc fecisse apostolos credas.
18. Proinde sicut tu e contrario loqueris, et licet reclamante, sicut scribis, mundo, libera voce
pronuntias, cerimonias Iudaeorum et perniciosas esse, et mortiferas Christianis; et quicumque
eas observaverit, sive ex Iudaeis, sive ex Gentibus, eum in barathrum diaboli devolutum, ita ego
hanc vocem tuam omnino confirmo, et addo: quicumque eas observaverit, sive ex Iudaeis, sive
ex Gentibus, non solum veraciter, verum etiam simulate, eum in barathrum diaboli devolutum.
Quid quaeris amplius? Sed sicut tu simulationem apostolorum ab huius temporis ratione
secernis, ita ego Pauli apostoli veracem tunc in his omnibus conversationem ab huius temporis,
quamvis minime simulata, cerimoniarum Iudaicarum observatione, secerno, quoniam tunc fuit
approbanda, nunc detestanda. Ita quamvis legerimus: Lex et prophetae usque ad Ioannem
Baptistam; et quia propterea quaerebant Iudaei Christum interficere, quia non solum solvebat
sabbatum, sed et Patrem suum dicebat Deum, aequalem se faciens Deo; et quia gratiam pro
gratia accepimus; et quoniam Lex per Moysen data est, gratia autem et veritas per Iesum
Christum facta est; et per Hieremiam promissum est, daturum Deum Testamentum novum
domui Iuda, non secundum Testamentum quod disposuit patribus eorum: non tamen arbitror
ipsum Dominum fallaciter a parentibus circumcisum. Aut si hoc propter aetatem minime
prohibebat, nec illud arbitror eum dixisse fallaciter leproso, quem certe non illa per Moysen
praecepta observatio, sed ipse mandaverat: Vade et offer pro te sacrificium quod praecepit
Moyses in testimonium illis. Nec fallaciter ascendit ad diem festum usque adeo non causa
ostentationis coram hominibus, ut non evidenter ascenderit, sed latenter.

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19. At enim dixit idem apostolus: Ecce ego Paulus dico vobis quia si circumcidamini, Christus
vobis nihil proderit. Decepit ergo Timotheum, et fecit ei nihil prodesse Christum? An quia hoc
fallaciter factum est, ideo non obfuit? At ipse hoc non posuit, nec ait: si circumcidamini
veraciter, sicut nec fallaciter; sed sine ulla exceptione dixit: Si circumcidamini, Christus vobis
nihil proderit. Sicut ergo tu vis hic locum dare sententiae tuae, ut velis subintellegi, nisi
fallaciter, ita non impudenter flagito, ut etiam nos illic intellegere sinas eis dictum: si
circumcidamini, qui propterea volebant circumcidi, quod aliter se putabant in Christo salvos
esse non posse. Hoc ergo animo, hac voluntate, ista intentione quisquis tunc circumcidebatur,
Christus ei nihil omnino proderat; sicut alibi aperte dicit: Nam si per Legem iustitia, ergo
Christus gratis mortuus est. Hoc declarat et quod ipse commemorasti: Evacuati estis a Christo
qui in Lege iustificamini; a gratia excidistis. Illos itaque arguit, qui se iustificari in Lege
credebant; non qui legitima illa in eius honorem, a quo mandata sunt, observabant intellegentes,
et qua praenuntiandae veritatis ratione mandata sint, et quousque debeant perdurare. Vnde est
illud quod ait: Si spiritu ducimini, non adhuc estis sub Lege; unde, velut colligis, apparere, qui
sub Lege est, non dispensative, ut nostros putas voluisse maiores, sed vere, ut ego intellego,
eum Spiritum sanctum non habere.
20. Magna mihi videtur quaestio, quid sit esse sub Lege sic, quemadmodum apostolus culpat.
Neque enim hoc eum propter circumcisionem arbitror dicere, aut illa sacrificia, quae tunc facta
a patribus, nunc a Christianis non fiunt, et cetera huiusmodi, sed hoc ipsum etiam quod Lex
dicit: Non concupisces, quod fatemur certe Christianos observare debere, atque evangelica
maxime illustratione praedicari. Legem dicit esse sanctam, et mandatum sanctum, et iustum et
bonum. Deinde subiungit: Quod ergo bonum est, mihi factum est mors? Absit; sed peccatum ut
appareat peccatum, per bonum mihi operatum est mortem, ut fiat supra modum peccator aut
peccatum, per mandatum. Quod autem hic dicit, peccatum per mandatum fieri supra modum,
hoc alibi ait: Lex subintravit ut abundaret delictum. Vbi autem abundavit delictum,
superabundavit et gratia. Et alibi, cum superius de dispensatione gratiae loqueretur, quod ipsa
iustificet, velut interrogans ait: Quid ergo Lex? atque huic interrogationi continuo respondit:
Praevaricationis gratia posita est, donec veniret semen cui promissum est. Hos ergo
damnabiliter dicit esse sub Lege, quos reos facit Lex, non implentes Legem, dum non
intellegendo gratiae beneficium ad facienda Dei praecepta, quasi de suis viribus superba
elatione praesumunt. Plenitudo enim Legis caritas. Caritas vero Dei diffusa est in cordibus
nostris, non per nos ipsos, sed per Spiritum Sanctum qui datus est nobis. Sed huic rei
quantum satis est explicandae, prolixior fortasse et sui proprii voluminis sermo debetur. Si ergo
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illud, quod Lex ait: Non concupisces, si humana infirmitas gratia Dei adiuta non fuerit, sub se
reum tenet, et praevaricatorem potius damnat quam liberat peccatorem, quanto magis illa, quae
significationis causa praecepta sunt, circumcisio, et cetera, quae revelatione gratiae latius
innotescente, necesse fuerat aboleri, iustificare neminem poterant? Non tamen ideo fuerant
tamquam diabolica Gentium sacrilegia fugienda, etiam cum ipsa gratia iam coeperat revelari,
quae umbris talibus fuerat praenuntiata; sed permittenda paululum eis, maxime qui ex illo
populo cui data sunt venerant. Postea vero tamquam cum honore sepulta sunt, a Christianis
omnibus irreparabiliter deserenda.
21. Hoc autem quod dicis: Non dispensative, ut nostri voluere maiores, quid sibi vult, oro te?
Aut enim hoc est, quod ego appello officiosum mendacium, ut haec dispensatio sit officium
velut honeste mentiendi; aut quid aliud sit, omnino non video, nisi forte, addito nomine
dispensationis, fit ut mendacium non sit mendacium; quod si absurdum est, cur ergo non aperte
dicis officiosum mendacium defendendum? Nisi forte nomen te movet: quia non tam usitatum
est in ecclesiasticis libris vocabulum officii, quod Ambrosius noster non timuit, qui suos
quosdam libros utilium praeceptionum plenos, De officiis voluit appellare. An si officiose
mentiatur quisque culpandus est; si dispensative, approbandus? Rogo te, mentiatur ubi elegerit
qui hoc putat: quia et in hoc magna quaestio est, sit ne aliquando mentiri viri boni, immo viri
Christiani, qualibus dictum est: Sit in ore vestro: Est, est, non, non, ut non sub iudicio
decidatis; et qui cum fide audiunt: Perdes omnes qui loquuntur mendacium.
22. Sed haec, ut dixi, et alia et magna quaestio est; eligat quod voluerit, qui hoc existimat, ubi
mentiatur; dum tamen a scribentibus auctoribus sanctarum Scripturarum, et maxime
canonicarum, inconcusse credatur, et defendatur abesse omnino mendacium, ne dispensatores
Christi, de quibus dictum est: Hic iam quaeritur inter dispensatores, ut fidelis quis inveniatur,
tamquam magnum aliquid sibi fideliter didicisse videantur, pro veritatis dispensatione mentiri,
cum ipsa fides in Latino sermone ab eo dicatur appellata, quia fit quod dicitur. Vbi autem fit
quod dicitur, mentiendi utique non est locus. Fidelis igitur dispensator apostolus Paulus procul
dubio nobis exhibet in scribendo fidem: quia veritatis dispensator erat, non falsitatis. Ac per hoc
verum scripsit vidisse se Petrum non recte ingredientem ad veritatem evangelii eique in faciem
restitisse, quod Gentes cogeret iudaizare. Ipse vero Petrus, quod a Paulo fiebat utiliter libertate
caritatis, sanctae ac benignae pietate humilitatis accepit; atque ita rarius et sanctius exemplum
posteris praebuit, quo non dedignarentur sicubi forte recti tramitem reliquissent, etiam a
posterioribus corrigi, quam Paulus, quo fidenter auderent, etiam minores maioribus pro
defendenda evangelica veritate, salva fraterna caritate resistere. Nam cum satius sit, a tenendo
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itinere in nullo, quam in aliquo declinare, multo est tamen mirabilius et laudabilius libenter
accipere corrigentem, quam audacter corrigere deviantem. Laus itaque iustae libertatis in Paulo
et sanctae humilitatis in Petro: quantum mihi pro modulo meo videtur, magis fuerat adversus
calumniantem Porphyrium defendenda, quam ut ei daretur obtrectandi maior occasio, qua multo
mordacius criminaretur Christianos fallaciter vel suas litteras scribere, vel Dei sui sacramenta
tractare.
23. Flagitas a me, ut aliquem saltem unum ostendam, cuius in hac re sententiam sim secutus,
cum tu tam plures nominatim commemoraveris, qui te in eo quod adstruis praecesserunt; petens
ut in eo, si te reprehendo errantem, patiar te errare cum talibus; quorum ego fateor neminem
legi; sed cum sint ferme sex, vel septem, horum quattuor auctoritatem tu quoque infringis. Nam
Laodicenum, cuius nomen taces, de ecclesia dicis nuper egressum; Alexandrum autem veterem
haereticum; Origenem vero ac Didymum reprehensos abs te, lego in recentioribus opusculis
tuis, et non mediocriter, nec de mediocribus quaestionibus, quamvis Origenem mirabiliter ante
laudaveris. Cum his ergo errare puto, quia nec te ipse patieris, quamvis hoc perinde dicatur ac si
in hac sententia non erraverint. Nam quis est, qui se velit cum quolibet errare? Tres igitur
restant, Eusebius Emisenus, Theodorus Heracleotes, et quem paulo post commemoras,
Iohannes, qui dudum in pontificali gradu Constantinopolitanam rexit ecclesiam.
24. Porro si quaeras vel recolas quid hinc senserit noster Ambrosius, quid noster itidem
Cyprianus, invenies fortasse nec nobis defuisse quos in eo quod asserimus sequeremur,
quamquam sicut paulo ante dixi, tantum modo Scripturis canonicis hanc ingenuam debeam
servitutem, qua eas solas ita sequar, ut conscriptores earum nihil in eis omnino errasse, nihil
fallaciter posuisse non dubitem. Proinde cum quaero tertium, ut tres etiam ego tribus opponam,
possem quidem, ut arbitror, facile reperire, si multa legissem. Verum tamen ipse mihi pro his
omnibus, immo supra hos omnes apostolus Paulus occurrit. Ad ipsum confugio, ad ipsum ab
omnibus qui aliud sentiunt litterarum eius tractatoribus provoco, ipsum interrogans interpello, et
requiro in eo quod scripsit ad Galatas, vidisse se Petrum non recte ingredientem ad veritatem
evangelii, eique in faciem propterea restitisse, quod illa simulatione Gentes iudaizare cogebat,
utrum verum scripserit, an forte nescio qua dispensativa falsitate mentitus sit. Et audio paulo
superius in eiusdem narrationis exordio religiosa voce mihi clamantem: Quae autem scribo
vobis, ecce coram Deo, quia non mentior.
25. Dent veniam quilibet aliud opinantes; ego magis credo tanto apostolo in suis et pro suis
litteris iuranti, quam cuiquam doctissimo de alienis litteris disputanti. Nec dici timeo, sic me
Paulum defendere, quod non simularit errorem Iudaeorum, sed vere fuerit in errore. Quoniam
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neque simulabat errorem qui libertate apostolica, sicut illi tempori congruebat, vetera illa
sacramenta, ubi opus erat, agendo commendabat ea, non Satanae versutia decipiendis
hominibus, sed Dei providentia, praenuntiandis rebus futuris prophetice constituta. Nec vere
fuerat in errore Iudaeorum, qui non solum noverat, sed etiam instanter et acriter praedicabat eos
errare, qui putabant Gentibus imponenda, vel iustificationi quorumcumque fidelium necessaria.
26. Quod autem dixi eum factum Iudaeis tamquam Iudaeum, et tamquam Gentilem Gentilibus,
non mentientis astu, sed compatientis affectu quemadmodum dixerim, parum mihi visus es
attendisse; immo ego fortasse non satis hoc explanare potuerim. Neque enim hoc ideo dixi,
quod misericorditer illa simulaverit; sed quia sic ea non simulavit, quae faciebat similia Iudaeis;
quemadmodum nec illa quae faciebat similia Gentibus, quae tu quoque commemorasti; atque in
eo me, quod non ingrate fateor, adiuvisti. Cum enim abs te quaesissem in epistula mea,
quomodo putetur ideo factus Iudaeis tamquam Iudaeus, quia fallaciter susceperit sacramenta
Iudaeorum, cum et Gentibus tamquam Gentilis factus sit, nec tamen suscepit fallaciter sacrificia
Gentium; tu respondisti in eo factum Gentibus tamquam Gentilem, quod praeputium receperit;
quod indifferenter permiserit vesci cibis quos damnant Iudaei. Vbi ego quaero utrum et hoc
simulate fecerit; quod si absurdissimum atque falsissimum est, sic ergo et illa, in quibus
Iudaeorum consuetudini congruebat libertate prudenti, non necessitate servili, aut quod est
indignius, dispensatione fallaci potius quam fideli.
27. Fidelibus enim, et his qui cognoverunt veritatem, sicut ipse testatur (nisi forte et hic fallit):
omnis creatura Dei bona est, et nihil abiciendum quod cum gratiarum actione accipitur. Ergo
et ipsi Paulo non solum viro, verum etiam dispensatori maxime fideli, non solum cognitori,
verum etiam doctori veritatis, omnis utique in cibis creatura Dei, non simulate, sed vere bona
erat. Cur igitur nihil simulate suscipiendo sacrorum cerimoniarumque Gentilium, sed de cibis et
praeputio verum sentiendo, ac docendo, tamen tamquam Gentilis factus est Gentibus, et non
potuit fieri tamquam Iudaeus Iudaeis, nisi fallaciter suscipiendo sacramenta Iudaeorum? Cur
oleastro inserto servavit dispensationis veracem fidem: et naturalibus ramis non extra, sed in
arbore constitutis, nescio quod dispensatoriae simulationis velamen obtendit? Cur factus
tamquam Gentilis Gentibus, quod sentit docet, quod agit, sentit: factus autem tamquam Iudaeus
Iudaeis, aliud claudit in pectore, aliud promit in verbis, in factis, in scriptis? Sed absit hoc
sapere. Vtrisque enim debebat caritatem de corde puro, et conscientia bona, et fide non ficta. Ac
per hoc omnibus omnia factus est, ut omnes lucrifaceret, non mentientis astu, sed compatientis
affectu, id est, non omnia mala hominum fallaciter agendo, sed aliorum omnium malis omnibus,
tamquam si sua essent, misericordis medicinae diligentiam procurando.
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28. Cum itaque illa Testamenti Veteris sacramenta, etiam sibi agenda minime recusabat, non
misericorditer fallebat; sed omnino non fallens, atque hoc modo a Domino Deo illa usque ad
certi temporis dispensationem iussa esse commendans, a sacrilegis sacris Gentium distinguebat.
Tunc autem, non mentientis astu, sed compatientis affectu, Iudaeis tamquam Iudaeus fiebat,
quando eos ab illo errore, quo vel in Christum credere nolebant, vel per vetera sacerdotia sua
cerimoniarumque observationes se a peccatis posse mundari, fierique salvos existimabant, sic
liberare cupiebat tamquam ipse illo errore teneretur, diligens utique proximum tamquam
seipsum, et haec aliis faciens, quae sibi ab aliis fieri vellet, si hoc illi opus esset. Quod cum
Dominus monuisset, adiunxit: Haec est enim Lex et prophetae.
29. Hunc compatientis affectum, in eadem epistula ad Galatas praecipit, dicens: Si
praeoccupatus fuerit homo in aliquo delicto; vos qui spiritales estis, instruite huiusmodi in
spiritu lenitatis, intendens teipsum, ne et tu tempteris. Vide si non dixit fieri tamquam ille, ut
illum lucrifacias. Non utique, ut ipsum dilectum fallaciter ageret, aut se id habere simularet, sed
ut in alterius delicto, quid etiam sibi accidere posset, attenderet, atque ita alteri, tamquam sibi ab
altero vellet, misericorditer subveniret, hoc est non mentientis astu, sed compatientis affectu. Sic
Iudaeo, sic Gentili, sic cuilibet homini Paulus in errore, vel peccato aliquo constituto, non
simulando quod non erat, sed compatiendo, quia esse potuisset, tamquam qui se hominem
cogitaret, omnibus omnia factus est, ut omnes lucrifaceret.
30. Te ipsum, si placet, obsecro, te paulisper intuere; te ipsum, inquam, erga me ipsum; et
recole, vel si habes conscripta, relege verba tua in illa epistula, quam mihi per fratrem nostrum
iam collegam meum Cyprianum breviorem misisti, quam veraci, quam germano, quam pleno
caritatis affectu, cum quaedam me in te commisisse expostulasses, graviter subiunxisti: In hoc
laeditur amicitia, in hoc necessitudinis iura violantur. Ne videamur certare pueriliter, et
fautoribus invicem, vel detractoribus nostris tribuere materiam contendendi. Haec abs te verba,
non solum ex animo dicta sentio, verum etiam benigno animo ad consulendum mihi. Denique
addis, quod etiam si non adderes, appareret, et dicis: Haec scribo, quia pure et Christiane
diligere te cupio, nec quicquam in mea mente retinere, quod distet a labiis. O vir sancte
mihique (ut Deus videt animam meam) veraci corde dilecte, hoc ipsum quod posuisti in litteris
tuis, quod te mihi exhibuisse non dubito, hoc ipsum omnino Paulum apostolum credo
exhibuisse in litteris suis, non uni cuilibet homini, sed Iudaeis, et Graecis, et omnibus Gentibus
filiis suis, quos in evangelio genuerat, et quos pariendos parturiebat, et deinde posterorum tot
milibus fidelium Christianorum, propter quos illa memoriae mandabatur epistula, ut nihil in sua
mente retineret, quod distaret a labiis.
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31. Certe factus es etiam tu, tamquam ego, non mentientis astu, sed compatientis affectu, cum
cogitares tam me non relinquendum in ea culpa in quam me prolapsum existimasti, quam nec te
velles si eo modo prolapsus esses. Vnde agens gratias benevolae menti erga me tuae, simul
posco, ut etiam mihi non succenseas, quod cum in opusculis tuis aliqua me moverent, motum
meum intimavi tibi; hoc erga me ab omnibus servari volens, quod erga te ipse servavi, ut
quicquid improbandum putant in scriptis meis, nec claudant subdolo pectore, nec ita
reprehendant apud alios, ut taceant apud me; hinc potius existimans laedi amicitiam et
necessitudinis iura violari. Nescio enim, utrum Christianae amicitiae putandae sint, in quibus
magis valet vulgare proverbium: Obsequium amicos, veritas odium parit, quam
ecclesiasticum: Fideliora sunt vulnera amici, quam voluntaria oscula inimici.
32. Proinde carissimos nostros, qui nostris laboribus sincerissime favent, hoc potius quanta
possumus instantia doceamus, quo sciant fieri posse, ut inter carissimos aliquid alterutro
sermone contradicatur, nec tamen caritas ipsa minuatur, nec veritas odium pariat, quae debetur
amicitiae; sive illud verum sit, quod contradicitur, sive corde veraci qualecumque sit dicitur, non
retinendo in mente, quod distet a labiis. Credant itaque fratres nostri, familiares tui, quibus
testimonium perhibes quod sint vasa Christi, me invito factum, nec mediocrem de hac re
dolorem inesse cordi meo, quod litterae meae prius in multorum manus venerunt, quam ad te, ad
quem scriptae sunt, pervenire potuerunt. Quo autem modo id acciderit, et longum est narrare, et,
nisi fallor, superfluum, cum sufficiat si quid mihi in hoc creditur, non eo factum animo quo
putatur; nec omnino meae fuisse voluntatis, aut dispositionis, aut consensionis, aut saltem
cogitationis, ut fieret. Haec si non credunt, quod teste Deo loquor, quid amplius faciam non
habeo. Ego tamen absit, ut eos credam, haec tuae sanctitati malevola mente suggerere ad
excitandas inter nos inimicitias (quas misericordia Domini Dei nostri avertat a nobis) sed, sine
ullo nocendi animo, facile de homine humana vitia suspicari. Hoc enim me de illis aequum est
credere, si vasa sunt Christi, non in contumeliam, sed in honorem facta, et disposita in domo
magna a Deo, in opus bonum. Quod si post hanc attestationem meam, si in notitiam eorum
venerit, facere voluerint; quam non recte faciant, et tu vides.
33. Quod sane scripseram, nullum me librum adversus te Romam misisse, ideo scripseram, quia
et libri nomen ab illa epistula discernebam. Vnde omnino nescio quid aliud te audisse
existimaveram; et Romam nec ipsam epistulam, sed tibi miseram; et adversus te non esse
arbitrabar, quod sinceritate amicitiae, sive ad admonendum, sive ad te, vel me abs te
corrigendum fecisse me noveram. Exceptis autem familiaribus tuis, te ipsum obsecro per
gratiam qua redempti sumus, ut quaecumque tua bona, quae tibi Domini bonitate concessa sunt,
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in litteris meis posui, non me existimes insidioso blandiloquio posuisse. Si quid autem in te
peccavi, dimittas mihi. Nec illud, quod de nescio cuius poetae facto ineptius, fortasse quam
litteratius a me commemoratum est, amplius quam dixi, ad te trahas cum continuo subiecerim,
non hoc ideo me dixisse, ut oculos cordis reciperes (quos absit inquam ut amiseris), sed ut
adverteres quos sanos ac vigiles haberes. Propter solam ergo si aliquid scripserimus,
quod scripto posteriore destruere debeamus, imitandam, non propter Stesichori caecitatem,
quam cordi tuo nec tribui, nec timui, attingendum illud existimavi: atque identidem rogo, ut me
fidenter corrigas, ubi mihi hoc opus esse perspexeris. Quamquam enim secundum honorum
vocabula, quae iam ecclesiae usus obtinuit: episcopatus presbyterio maior sit, tamen in multis
rebus Augustinus Hieronymo minor est, licet etiam a minore quolibet non sit refugienda, vel
dedignanda correctio.
34. De interpretatione tua iam mihi persuasisti, qua utilitate Scripturas volueris transferre de
Hebraeis; ut scilicet ea quae a Iudaeis praetermissa vel corrupta sunt, proferres in medium; sed
peto insinuare digneris a quibus Iudaeis, utrum ab eis ipsis, qui ante adventum Domini
interpretati sunt, et si ita est, quibus, vel quonam eorum; an ab istis posterius, qui propterea
putari possunt, aliqua de codicibus Graecis vel subtraxisse, vel in eis corrupisse, ne illis
testimoniis de Christiana fide convincerentur. Illi autem anteriores cur hoc facere voluerint, non
invenio. Deinde nobis mittas, obsecro, interpretationem tuam de Septuaginta, quam te edidisse
nesciebam. Librum quoque tuum, cuius mentionem fecisti, de optimo genere interpretandi,
cupio legere, et adhuc nosse quomodo coequanda sit in interprete peritia linguarum, coniecturis
eorum qui Scripturas disserendo pertractant; quos necesse est, etiam si rectae atque unius fidei
fuerint, varias parere in multorum locorum obscuritate sententias, quamvis nequaquam ipsa
varietas ab eiusdem fidei unitate discordet; sicut etiam unus tractator, secundum eandem fidem,
aliter atque aliter eumdem locum potest exponere, quia hoc eius obscuritas patitur.
35. Ideo autem desidero interpretationem tuam de Septuaginta, ut et tanta Latinorum
interpretum, qui qualescumque hoc ausi sunt, quantum possumus imperitia careamus: et hi, qui
me invidere putant utilibus laboribus tuis, tandem aliquando, si fieri potest, intellegant,
propterea me nolle tuam ex Hebraeo interpretationem in ecclesiis legi, ne contra Septuaginta
auctoritatem, tamquam novum aliquid proferentes, magno scandalo perturbemus plebes Christi,
quarum aures et corda illam interpretationem audire consueverunt, quae etiam ab apostolis
approbata est. Vnde illud apud Ionam virgultum, si in Hebraeo nec hedera est, nec cucurbita,
sed nescio quid aliud, quod trunco suo nixum, nullis sustentandum adminiculis erigatur; mallem

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iam in omnibus Latinis cucurbitam legi. Non enim frustra hoc puto Septuaginta posuisse, nisi
quia et huic simile sciebant.
36. Satis me, immo fortasse plus quam satis, tribus epistulis tuis respondisse arbitror; quarum
duas per Cyprianum accepi, unam per Firmum. Rescribe quod visum fuerit ad nos vel alios
instruendos. Dabo autem operam diligentiorem, quantum me adiuvat Dominus, ut litterae quas
ad te scribo prius ad te perveniant quam ad quemquam a quo latius dispergantur. Fateor enim
nec mihi hoc fieri velle de tuis ad me, quod de meis ad te factum iustissime expostulas. Tamen
placeat nobis invicem non tantum caritas, verum etiam libertas amicitiae, ne apud me taceas, vel
ego apud te, quod in nostris litteris vicissim nos movet; eo scilicet animo qui oculis Dei in
fraterna dilectione non displicet. Quod si inter nos fieri posse sine ipsius dilectionis perniciosa
offensione non putas, non fiat. Illa enim caritas quam tecum habere vellem, profecto maior est:
sed melius haec minor, quam nulla est.

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Agostinho envia saudaes em nome do Senhor ao compresbtero1 Jernimo, senhor


muitssimo querido e irmo santo, digno de honra nas vsceras de Cristo2.

1. J h muito enviei para tua caridade uma longa carta respondendo uma outra tua3 , a qual tu
recordas teres enviado por meio do teu santo filho Astrio4 (que agora no apenas meu irmo,
mas colega tambm); at hoje no sei se ela mereceu chegar em tuas mos, a no ser pelo que
escreves por meio de um irmo muito sincero, Firmo5 , que, se ele primeiro te mostrou a espada
(e foi repelido pela pena), cabe minha humanidade e justia repreender quem acusa, e no
quem se defende6 . somente por essa mnima prova que de algum jeito chego concluso que
tu leste minha carta. Nela, eu lamentei que tivesse surgido entre vs tamanha discrdia7, e ainda
de tamanha amizade mtua, da qual a caridade fraterna se alegrava por onde quer que a fama a
tivesse difundido. Eu no fiz isso buscando repreender a tua irmandade, em cujo mago, eu no
ousaria dizer, eu tinha conhecimento de qualquer falta; mas o fiz buscando lamentar a misria
humana, em cuja caridade mtua, a zelar pelos amigos, no importa quo profunda ela seja, nela
a incerteza sempre permanece. Contudo, eu certamente teria gostado de saber, pela tua resposta,
se me concedeste perdo, conforme eu havia te pedido; eu desejo que isso me seja confiado com
mais franqueza, ainda que o aspecto algo brincalho da tua carta8 me d a impresso de indicar
que eu o obtive tambm; a no ser que ela tenha sido enviada aps a leitura dela (o que no
parece ser o caso, na realidade)9.
2. Tu pedes, ou melhor, tu me chamas, pela confiana na caridade, para nos exercitarmos no
campo de batalha das Escrituras sem ferirmos um ao outro10. Veja, no que diz respeito a mim,
eu preferiria que ns a agssemos antes como em uma disputa sria, do que como em um
exerccio. Mas, se porventura tu usaste tal termo por ser mais brando, devo confessar que eu
espero algo maior da bondade das tuas foras, da tua prudncia to erudita, e da tua diligncia
plcida, experiente, aplicada e talentosa, e isso no somente de uma ao tua, mas sobretudo das
palavras ditadas pelo Esprito Santo, para que nesses problemas difceis e laboriosos tu prestes
auxlio a mim, no s como se eu estivesse me exercitando no campo de batalha das
Escrituras, mas como se eu estivesse sem flego por escalar uma montanha. No entanto, se foi
por brincadeira (convm que ela exista quando amigos prximos discutem11) que julgaste
conveniente dizer que nos exercitamos seja quando dialogamos sobre o que aberto e
plano, ou sobre o que rduo e difcil12 , explica-me, rogo-te, exatamente isso: de que modo
teramos segurana para alcanar uma concluso quando, devido talvez a nossa falta de ateno
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(e certamente s limitaes de nosso raciocnio), no se pode pr prova algo que nos
incomoda, que nos parea contrrio ao que tentamos asseverar ainda mais se falamos com
uma liberdade algo mais despreocupada13 sem que assim tombemos na suspeita de uma
presuno infantil, como se procurssemos a fama s custas de ofender homens ilustres? Se,
porm, qualquer coisa for apontada como spera devido a uma necessidade de refutao,
mergulhemo-na em uma conversa mais suave, para que ela se torne mais tolervel; sejamos
julgados por ter sacado uma espada lambuzada de mel14 ; a no ser que talvez seja outra a
maneira com que devemos evitar tanto esse vcio quanto a suspeita dele, ao discutirmos com um
amigo mais erudito de modo a ser necessrio aprovar tudo o que ele diz, e assim no nos ser
permitido problematizar qualquer coisa sequer, quo menos questionar!
3. assim que, na verdade, podemos nos exercitar num campo de batalhas sem qualquer receio
de afrontamentos, mas seria estranho se no brincssemos um com o outro15. Ora, eu, ao menos,
confesso tua caridade, eu aprendi a deixar de lado, com recurso unicamente queles livros das
Escrituras que j so chamados cannicos16, essa apreenso e essa honra mundana, para crer
com toda firmeza que nenhum daqueles autores errou em qualquer coisa quando escreveram; se
eu me deparar, naquelas palavras, com qualquer coisa que parea contrria verdade, no teria
dvida alguma de que o cdice que falso, ou de que foi o tradutor que no seguiu o sentido
original, ou de que fui eu que no consegui compreender. Os outros, porm, leio-os
independentemente da importncia de sua santidade e doutrina, de modo no a consider-los
verdadeiros porque eles concordam comigo, mas porque eles puderam me convencer de que
no desviaram da verdade, por terem recorrido seja aos mesmos autores cannicos, seja razo,
por meio de argumentos provveis17. E no estimo, meu irmo, que seja outra a tua opinio; em
outras palavras, diria, no julgo que tu queres que leiam teus livros como os livros dos profetas
ou dos apstolos, de cujos escritos, j que esto isentos de qualquer erro, pecaminoso duvidar.
Que isso fique longe da humildade piedosa e da verdadeira opinio que tu tens de ti mesmo; se
dela no fosses provido, no dirias de maneira alguma: antes pudssemos te abraar e num
encontro mtuo ensinarmos ou aprendermos algo18.
4. Agora, se tu mesmo falaste, creio eu, tendo em mente tua vida e teus hbitos, e no de
maneira simulada ou mentirosa, quo mais seguro me crer que no era outra coisa que o
apstolo Paulo pensou ao escrever19 quando fala de Pedro e Barnab: mas, quando vi que no
andavam bem e direitamente conforme a verdade do Evangelho, disse a Pedro na presena de
todos, se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e no como judeu, por que obrigas os gentios
a viverem como judeus?20 Ora, em que ocasio teria eu a certeza de que ele no estaria me
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enganando ao escrever e falar, se o prprio apstolo enganava seus filhos ao lhes regenerar at
que neles se formasse Cristo, isto , a verdade21? Em que ocasio, se a eles, quando os prevenia
dizendo: ora, acerca do que vos escrevo, eis que diante de Deus testifico que no minto22, ele
no estaria escrevendo verdadeiramente, mas os enganando atravs de uma simulao
poltica23 qualquer, ao afirmar que viu que Pedro e Barnab no andavam bem e direitamente
conforme a verdade do Evangelho, que resistiu frontalmente a Pedro por nenhum outro motivo a
no ser que este obrigava os gentios a viverem como os judeus?
5. Ora, a mais sensato crer que o apstolo Paulo escreveu algo no verdadeiramente, a crer
que Pedro fez algo que no estivesse correto. Se este o caso (espero que no), diramos que
mais sensato antes crer que o Evangelho mente, a crer que Cristo foi negado por Pedro; crer que
o livro dos Reis mente, a crer que o eminente profeta, escolhido to admiravelmente pelo
Senhor Deus, tivesse cometido adultrio ao cobiar e possuir a mulher de outro, e crer que ele
tivesse tambm cometido um assassinato terrvel ao matar o marido dela24. Ao contrrio, a Santa
Escritura, colocada no pice mais alto do cu da autoridade, eu a lerei com a certeza e segurana
de sua verdade, e nela aprenderei que houve homens que foram aprovados ou corrigidos ou
condenados verdadeiramente; antes que as declaraes divinas ainda que, temo, devo crer
que decises humanas por vezes precisam ser repreendidas em certas pessoas de louvvel
excelncia me sejam em qualquer lugar suspeitas.
6. Os maniqueus pretendem que diversas passagens das Escrituras divinas so falsas, mediante
as quais o erro deles, grave, uma vez que no podem estrangul-las em significados estranhos,
sentenciado na mais clara evidncia das concluses, mas o fazem de tal maneira que no
atribuem essa falsidade aos apstolos que as escreveram, e sim a uns corruptores quaisquer
dos cdices25. Mas j que no puderam provar isso nem com os exemplares mais numerosos ou
mais antigos, nem se apoiando na autoridade da lngua anterior, da qual os livros latinos foram
traduzidos26, eles debandam confusos, esmagados por uma verdade patente a todos27. Ser que
tua prudncia no compreende quo grande seria a oportunidade para a malcia deles se
afirmarmos que no so os escritos apostlicos que foram falseados, mas que foram os prprios
apstolos que escreveram falsidades?
7. Isso, dizes, no crvel, que Paulo censurasse em Pedro algo que o prprio Paulo
fizera28. No quero saber ento o que ele teria feito; o que ele teria escrito, isso que eu quero
saber. Trata-se de algo de suma importncia para o problema que levantei, de modo que a
verdade das divinas Escrituras confiada nossa memria a fim de estruturar a nossa f, e no
por meio de homens quaisquer, mas pelos prprios apstolos, e por isso recebida no pice
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cannico da autoridade resista veraz e indubitvel em todas as partes. Ora, se Pedro agira
como devia, ento Paulo mentiu que o viu no andar bem e direitamente conforme a verdade
do Evangelho. Ora, quem quer que age como deve agir, age de maneira absolutamente correta,
e portanto aquele que afirma que ele no agiu de maneira correta mente acerca dele, mesmo
sabendo que ele agira como teve de agir. Porm, se Paulo escreveu a verdade, ento verdade
que Pedro no andava bem e direitamente conforme a verdade do Evangelho, ou seja, que ele
agia como no deveria agir; se o prprio Paulo fizera algo semelhante anteriormente, eu
preferiria acreditar que ele seria, ele prprio, corrigido, e que no poderia ignorar a correo de
seu colega apstolo, do que teria colocado algo de maneira mentirosa nessa sua carta. E isso no
em uma carta qualquer, mas sobretudo naquela em que ele anuncia de antemo que acerca do
que vos escrevo, eis que diante de Deus testifico que no minto.
8. Eu, por minha vez, acredito que Pedro agiu daquela maneira a fim de obrigar os gentios a
viverem como os judeus. Ora, isto que leio que Paulo escreveu, quem eu no acredito que
mentiu. E assim Pedro no agia corretamente; ora, tratava-se de uma afronta verdade do
Evangelho, que os crentes em Cristo pensassem que no poderiam ser salvos sem aqueles
velhos sacramentos. Ora, isso o que pretendiam em Antiquia os homens da circunciso que
eram crentes29 , em oposio queles homens que Paulo reuniu com tanta perseverana e ardor.
Mas, na verdade, o prprio Paulo no agiu sob esse mesmo pretexto, seja ao circuncidar
Timteo, seja ao abandonar seu voto em Cencreia, seja, quando foi advertido por Tiago e por
aqueles que sabiam em Jerusalm, ao considerar que as celebraes dos sacramentos da Lei
eram legtimos; no foi para que eles pudessem acreditar que a salvao crist fosse dada (por
aparncia) ainda mediante tais sacramentos, mas para que no mais acreditassem que os
sacramentos, os quais Deus ordenara realizar nos tempos primevos (como convinha, e na
penumbra dos bens futuros), deviam ser condenados como se fossem a idolatria dos gentios.
Ora, isso que Tiago diz ter escutado sobre sua pessoa, que Paulo supostamente promovia o
afastamento de Moiss, o que absolutamente pecaminoso; que os crentes em Cristo se
apartassem do profeta de Cristo como se detestassem e condenassem sua doutrina30 , sobre a
qual o prprio Cristo diz: se vs crsseis em Moiss, crereis em mim; porque de mim escreveu
ele31.
9. Ora, presta ateno, imploro, nas prprias palavras de Tiago: vs, irmo, quantos milhares
h na Judeia que creem em Cristo, e todos so zeladores da Lei. E j acerca de ti foram
informados que ensinas todos os judeus que esto entre os gentios a apartarem-se de Moiss,
dizendo que no devem circuncidar seus filhos, nem andar segundo o costume da Lei. Que
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faremos pois? [em todo caso necessrio que a multido se ajunte]; tero ouvido que j s
vindo. Faze, pois, isto que te dizemos: temos quatro homens que fizeram voto. Toma estes
contigo, e santifica-te com eles, e faze por eles os gastos para que rapem a cabea, e todos
ficaro sabendo que falso aquilo que foram informados acerca de ti, mas que tambm tu
mesmo andas guardando a Lei. Todavia, quanto aos que creem dos gentios, j ns havemos
escrito, [que nada disto observem; mas] que s se guardem do que se sacrifica aos dolos, e do
sangue, e da fornicao32 . No , penso eu, obscuro o fato de Tiago t-lo aconselhado para
aqueles que estavam entre os judeus os quais, embora fossem crentes em Cristo, ainda eram
emuladores da Lei soubessem que eram falsas as coisas que escutaram sobre Paulo, e para
que no se pensasse que as tradies, que tinham sido ministradas a seus pais por meio de
Moiss, estivessem condenadas por conta da doutrina da Cristo, como se fossem sacrilgios, ou
porque foram encerradas a mando de Deus. Ora, isso que conspiravam contra Paulo no os
crentes que entendiam com que esprito as tradies deviam ser ento observadas pelos judeus
fiis por conta de sua autoridade, por se assim dizer, eminente e divina, e da santidade
proftica daqueles sacramentos, no em vista de alcanar a salvao que j se revelava em
Cristo e se ministrava no sacramento do batismo ; isso espalhavam sobre Paulo os crentes que
queriam que elas fossem observadas desse jeito, como se sem elas no pudesse haver salvao
aos homens que creem no Evangelho. Ora, esses sentiram que o prprio Paulo era um pregador
assaz fervoroso da Graa, algum que sobretudo se colocava contra sua pretenso, que lhes
ensinava que no era pelas tradies que o homem se justifica, mas sim pela Graa de Jesus
Cristo, em prenncio da qual as tradies foram enviadas como sombras da Lei. Desse modo, na
inteno de incitar o dio e a perseguio, eles tambm o incriminavam como inimigo da Lei e
dos mandamentos divinos; o dio de cuja falsa infrao ele no poderia evitar com maior
coerncia a no ser celebrando, ele prprio, os sacramentos (que, pensava-se, seriam
condenados como sacrilgios), e assim mostrar que os judeus no deviam ser proibidos deles,
como se fossem tradies nefastas, e nem que os gentios deviam tampouco ser obrigados a
adot-los, como se fossem necessrios33.
10. Pois se Paulo de fato assim os reprovasse, da maneira como afirmavam os rumores sobre
ele, e ento os tomasse em celebrao para que pudesse esconder, num gesto simulado, sua
verdadeira opinio, Tiago no teria dito a ele, e todos ficaro sabendo, mas sim, e todos
ficaro pensando que falso aquilo de que foram informados acerca de ti, especialmente
porque os apstolos j haviam decidido, na mesma Jerusalm, que ningum deveria obrigar os
gentios a agirem como os judeus; no haviam decidido, porm, que ningum deveria proibir os
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judeus de agirem como judeus, ainda que a prpria doutrina crist j no os obrigava a isso34 .
Por conseguinte, se Pedro, aps a deciso dos apstolos, agiu de maneira fingida em Antiquia,
a fim de obrigar os gentios a agirem como os judeus visto que nem mesmo ele era obrigado a
agir assim, e ainda que agir desse jeito no lhe era proibido, por conta das eminentes
declaraes de Deus que foram creditadas aos judeus , qual o problema se Paulo o
constrangeu a proclamar abertamente algo que ele se lembrava de ter decidido, em Jerusalm,
com os outros apstolos?
11. Porm, se Pedro fez isso, o que me faz mais sentido, antes daquele encontro em Jerusalm35 ,
no h quaisquer problemas no fato de Paulo querer que ele no se esconda timidamente, mas
proclame fielmente a opinio que, ele j sabia, Pedro partilhava consigo, seja porque ele
<Paulo> havia construdo o seu Evangelho junto com ele <Pedro>; seja porque, ao ser chamado
pelo centurio Cornlio, ele <Pedro> havia recebido uma inspirao divina que o advertiu sobre
aquela situao36 ; seja porque, antes que eles viessem a Antiquia, Paulo o havia visto (como
temia) comendo com os gentios. Ora, ns no negamos que Pedro j tinha a mesma opinio que
a de Paulo. No era por lhe ensinar o que era verdadeiro naquela situao, mas por causa de
uma simulao, pela qual os gentios eram obrigados a agir como os judeus, que ele <Paulo> lhe
redarguia; no era por outra razo seno que todas as aes de simulao eram ento
realizadas como se fosse verdadeiro aquilo que afirmavam os homens que pensavam que, sem a
circunciso do prepcio e sem as outras observaes as sombras dos bens futuros , os
crentes no poderiam ser salvos.
12. Logo, ele <Paulo> circuncidou Timteo pela mesma razo, para que algo que fez tanto
aos judeus quanto sobretudo aos seus parentes por parte de me os gentios crentes em Cristo
no viessem a detestar a circunciso como se deve detestar a idolatria, uma vez que Deus teria
preceituado aquela, e Satans instigado essa; e ele no circuncidou Tito pela mesma razo, para
que no se desse assim abertura aos homens que afirmavam que os crentes no poderiam ser
salvos sem a circunciso, os quais intrigavam que Paulo, a fim de enganar os gentios, mantinha
a mesma opinio que a deles. Isso o prprio Paulo indica claramente quando diz: mas nem
ainda Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se; e isto por causa
dos falsos irmos que se intrometeram, e secretamente entraram a espiar a nossa liberdade, para
nos porem em servido; aos quais nem ainda por uma hora cedemos com sujeio, para que a
verdade do Evangelho permanecesse entre vs37. patente que aqui ele compreendeu aonde
que eles queriam chegar, tanto que no agiu como agira em relao a Timteo; e porque ele
pudera tambm agir com a mesma liberdade com que mostrava que aqueles sacramentos no
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deviam ser almejados como se fossem necessrios, mas no deviam, no entanto, ser condenados
como se fossem sacrlegos38 .
13. Mas devemos tomar cuidado, e evidentemente nessa discusso, para no afirmamos, como
fazem os filsofos, que certas aes humanas, as quais no so propriamente aes corretas e
nem pecados, se do no meio entre essas e aquelas; continuemos a insistir nesse argumento,
de que observar as cerimnias da Lei no pode ser algo indiferente, mas deve ser algo bom ou
ruim para que, se afirmarmos que bom, sejamos obrigados, ns tambm, a observ-las,
mas, se afirmarmos que algo ruim, que acreditemos ento que no foi verdadeiramente, mas
em simulao que as cerimnias foram observadas pelos apstolos. Mas eu, na verdade, em
relao aos apstolos, eu temo menos o exemplo dos filsofos (de vez em quando at eles dizem
alguma verdade em suas discusses) do que o exemplo dos advogados de acusao39, quando
estes mentem a fim de defender os casos de outros40. semelhana deles, se for concludo que
conveniente aplic-la na explicao da carta aos Glatas em questo, a fim de que se confirme a
simulao de Pedro e Paulo, por que deveria eu temer em ti a reputao dos filsofos? Eles so
ocos no porque afirmam que tudo falso, mas porque confiam em muitas dessas falsidades
e porque eles permanecem, mesmo onde os encontramos dizendo a verdade, alienados da Graa
de Cristo, que ela prpria a verdade41.
14. Por que ento eu no deveria afirmar que aqueles preceitos dos velhos sacramentos no so
bons, visto que os homens no so justificados por eles (ora, tratam-se de sombras que
prenunciam a Graa pela qual somos justificados42), e mesmo assim no so ruins (visto que
so preceitos de inspirao divina, de acordo com o tempo e seus indivduos), uma vez que vem
em meu auxlio tambm uma sentena proftica, na qual Deus diz ter dado preceitos no bons
quele povo43 ? Ora, talvez foi por essa razo que ele no disse ruins, mas somente no
bons, isto , no de qualidade tal que os homens se tornassem bons atravs deles, ou que
deixassem de ser bons sem eles. Gostaria que tua bondosa sinceridade me ensinasse se de
maneira simulada que qualquer santo do Oriente, aps se mudar para Roma, continua a jejuar
no sab (excetuando a vspera da Pscoa); se afirmarmos que isso algo ruim, condenaremos
no s a Igreja Romana, mas tambm muitas que lhe so prximas ou consideravelmente
longnquas, onde o mesmo costume existe e persiste. Se, porm, considerarmos que no jejuar
durante o sab algo ruim, encriminaremos (com que petulncia!) tantas igrejas do Oriente e
uma parte muito maior do mundo cristo44. Seria admissvel para ti que afirmssemos se dar no
meio uma coisa que era, porm, aceitvel a ele <Paulo> que agiu no de maneira simulada,
mas de acordo com a situao e os costumes? No entanto, no encontramos, nos livros
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cannicos, nada da que seja preceito aos cristos. Quo mais no ouso afirmar ser algo ruim
aquilo que Deus preceituou, algo que no posso negar devido prpria f crist, atravs da qual
aprendi que no por isso, porm, que sou justificado, mas sim pela Graa de Deus, por meio
de Jesus Cristo Nosso Senhor45!
15. Logo, eu afirmo que a circunciso do prepcio e as demais prticas daquele tipo foram
dadas ao povo primeiro, por meio do chamado Velho Testamento, como indcio dos bens futuros
que ao cabo seriam trazidos por Cristo. Uma vez cumpridas, essas prticas permaneceram entre
os cristos para serem examinadas, a fim de que compreendessem a profecia precedente, e no
para serem necessariamente celebradas, como se at ento fosse preciso esperar que chegasse a
revelao da f, a qual aquelas prticas indicavam que viria. Mas, ainda que no devessem ser
impostas aos gentios, elas no deviam, no entanto, serem tolhidas da tradio dos judeus, como
se fossem detestveis e condenveis. Por conseguinte, seria de modo sensato e gradativo na
ardente e slida pregao da Graa de Cristo (unicamente mediante a qual, sabem os crentes, se
justificado e se atinge a salvao), no por meio das sombras de coisas antes futuras (mas j
ento vindouras e presentes); e na chamada queles judeus (os quais a presena da carne do
Senhor e os tempos apostlicos haviam assim encontrado) que ento se consumiria todo
aquele teatro de sombras; isso lhes foi suficiente como recomendao, que elas no fossem
detestadas e evitadas como se semelhantes idolatria, contanto que no fossem continuadas de
modo a consider-las necessrias, como se a salvao viesse delas, ou no pudesse vir sem elas.
Foi esse o juzo dos herticos que, no desejo de serem judeus e cristos, no puderam ser
judeus, nem cristos46; dos perigos da concluso deles, ainda que eu nunca tenha incorrido nela,
tu, em tua imensa bondade, tiveste a dignidade de me advertir; foi por medo dessa concluso
que Pedro tombara, no em consenso, mas em simulao47, tanto que Paulo dele escreveu
perfeita e verdadeiramente que ele no andava bem e direitamente conforme a verdade do
Evangelho, e disse perfeita e verdadeiramente que ele obrigava os gentios a agirem como
os judeus. Algo que Paulo certamente no fazia por essa razo, ao observar de maneira verdica
as velhas tradies, quando necessrio, a fim de mostrar que no eram condenveis; mas ao
pregar que os fiis fossem salvos com base no nelas, mas na graa revelada da f, para que no
levasse ningum a tom-las como necessrias. Enfim, assim que, creio eu, o apstolo Paulo
realizava de maneira verdica todas as tradies; isso no significa, porm, que eu obrigo ou
permito a qualquer cristo vindo dos judeus celebr-las de maneira verdica, assim como nem
tu, que julgas que Paulo as simulou, obrigas ou permites que algum as simule.

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Aug. ep. 82
16. Ou talvez queres que eu mesmo diga que o ncleo do problema, ou melhor, de tua concluso
seria esse: que agem bem os judeus crentes, aps o Evangelho de Cristo, se oferecem os
sacrifcios que Paulo probe, se circuncidam seus filhos, se observam o sab como observaram
todos os judeus e Paulo em relao Timteo contanto que faam tudo isso em simulao e
fingimento? Se esse o caso, cairemos j no na heresia de Ebio48 , ou na heresia daqueles que
o povo chama de nazarenos49, ou em qualquer outra antiga, mas em uma nova e desconhecida, a
qual seria to mais perigosa pois resultaria no de um erro, mas de uma inteno e de uma
vontade fingida. Agora, se tu vieres a responder, a fim de te livrares desta concluso, que foi
honrosamente que os apstolos ento simularam as tradies, para que os muitos judeus
crentes e ingnuos, os quais ainda no compreendiam que as cerimnias deviam ser rejeitadas,
no fossem escandalizados; e que hoje a doutrina da Graa de Cristo fora confirmada por tantos
povos, e confirmada tambm por todas as igrejas de Cristo no exame da Lei e dos profetas de
que maneira as tradies devem ser ento ensaiadas, e no observadas, para serem
compreendidas? Se uma pessoa qualquer que quiser realiz-las em simulao estiver ento
louca, por que eu no poderia ento dizer que o apstolo Paulo e outros cristos precisaram, na
retido da f50 , verdadeiramente, e durante algum tempo, recomendar os velhos sacramentos, de
modo que essas observaes do anncio proftico no fossem consideradas detestveis pelos
pais mais reverentes de sua custdia, como se fossem os sacrilgios diablicos, detestados pelos
seus descendentes? Ora, tendo j se realizado a f, a qual fora anteriormente prenunciada pelas
cerimnias e revelada aps a morte e ressurreio do Senhor, os sacramentos perderam, por se
assim dizer, sua vida til, e no entanto tiveram, como os defuntos de nossos pais, de ser
conduzidas de uma maneira especfica sepultura: no de maneira simulada, mas em respeito;
no tiveram de ser, assim, descartadas de uma vez, ou lanadas s crticas dos adversrios como
s mordidas dos ces. Por conseguinte, se algum dentre os cristos (ainda que ele venha dos
judeus) quiser celebr-las hoje de maneira semelhante, como se desenterrasse cinzas quentes,
esse no ser um observador fiel ou um agente funerrio, mas um violador mpio de uma
sepultura51.
17. Devo confessar, acerca do assunto que minha carta encerra52 que Paulo tomara em
celebrao os sacramentos dos judeus quando j era apstolo de Cristo, para que ensinasse que
eles no eram nocivos aos crentes que queriam mant-los conforme os receberam de seus pais
pela Lei que eu deixei de especificar, somente naquele primeiro tempo em que a graa da f
foi revelada; pois ento observar a Lei no era nocivo. Mas, passado aquele tempo, tais
observaes deveriam ser descartadas por todos os cristos; se isso no acontecesse, no seria
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Aug. ep. 82
possvel discernir aquilo que Deus preceitou a seu povo, mediante Moiss, de algo que um
esprito imundo instituiu nos templos dos demnios. Sendo assim, antes digna de culpa a
minha falta de ateno, no a tua exprobrao, por no ter ajuntado aquilo! Todavia, muito antes
de eu ter recebido as tuas cartas, ao escrever contra o maniqueu Fausto53 sobre como essa
mesma passagem54 deve ser lida, eu a expliquei, ainda que brevemente, e no deixei de cit-la
daquela vez: isso tua bondade poder conferir, se no considerares indigno; tenha f, da maneira
que quiseres, e a partir de nossos amigos mais queridos55 , por meio dos quais agora mando esses
escritos, de que eu j ditei isso antes. Alm disso, cr em mim, de minha alma, falo perante
Deus, depreco, pelo juzo da caridade, que eu at hoje nunca julguei que os cristos convertidos
do judasmo devem celebrar os velhos sacramentos por tal sentimento ou tal vontade, ou sequer
que podem faz-lo de algum modo, visto que essa sempre foi minha opinio acerca de Paulo,
desde que as cartas dele vieram a meu conhecimento, assim como nem tu julgas que hoje em dia
as tradies devem ser simuladas por quem quer que o seja, ainda que tu acredites que os
apstolos assim agiram.
18. Por conseguinte, como tu afirmas exatamente o contrrio (e que proteste, tu escreves, o
mundo), assim tu pronuncias em alto e bom som que as cerimnias dos judeus so tanto nocivas
quanto mortais aos cristos e, quem quer que as observe, seja entre os judeus ou entre os
gentios, ele rolar direto no fosso do diabo56. Eu mesmo concordo plenamente com essa
afirmao tua, e digo mais: quem quer que as observe no s verdadeiramente, mas certamente
em simulao, ele rolar direto no fosso do diabo. Que queres alm disso? Mas, como tu
distingues a simulao dos apstolos das condies do tempo presente, assim eu tambm
distingo, em relao a todas essas tradies, a intimidade do apstolo Paulo, ento verdadeira,
da observao, ainda que minimamente simulada, das cerimnias dos judeus hoje em dia, j que
elas eram ento passveis de aprovao, mas hoje devem ser detestadas. Assim, embora leiamos
que a Lei e os profetas duraram at Joo Batista57 , e que por isso os judeus ainda mais
procuravam mat-lo, porque no s quebrantava o sbado, mas tambm dizia que Deus era seu
prprio Pai, fazendo-se igual a Deus58 , e que assim todos ns recebemos graa por graa,
porque a Lei foi dada por Moiss; a graa e a verdade vieram por Jesus Cristo59 , e que foi
prometido, mediante Jeremias, que Deus daria um novo testamento para a casa de Jud (mas
no de acordo com o testamento que ofereceu a seus pais), eu no julgo, porm, que o prprio
Senhor foi mentirosamente circuncidado por seus pais. Ou, se era por causa de sua idade que ele
no pde impedir isso, eu no julgo tambm que ele falou mentirosamente ao leproso, que
certamente no havia sido purificado pela observao dos preceitos vindos por Moiss, mas por
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Aug. ep. 82
ele mesmo: vai e oferece pela tua purificao o que Moiss determinou, para lhes servir de
testemunho60; e no foi mentirosamente que ele subiu <a Jerusalm> no dia de festa, e de tal
maneira que, para no se revelar a todos os homens, ele no subira de maneira evidente mas s
escondidas61 .
19. Ora, o mesmo apstolo afirmou: eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes
circuncidar, Cristo de nada vos aproveitar62. Ento ele enganou Timteo e fez com que Cristo
de nada lhe aproveitasse? Ou, j que isso aconteceu mentirosamente, ele no o prejudicou,
ento? Mas nem o prprio <Paulo> menciona isso, ou diz se vos deixardes circuncidar
fielmente, ou mesmo mentirosamente, mas ele afirmou sem excees que se vos deixardes
circuncidar, Cristo de nada vos aproveitar. Portanto, assim como tu queres dar lugar aqui tua
concluso, e que se subentenda no mentirosamente, logo no atrevido de minha parte
insistir que tu permitas que ns, tambm, leiamos aqui que se vos deixardes circuncidar foi
dito queles que procuravam a circunciso pois pensavam que no poderiam ser salvos em
Cristo de outra maneira. Portanto, se fosse com esse esprito, com essa vontade, com essa
inteno que algum se deixasse circuncidar, Cristo de nada lhe aproveitaria, como ele diz
abertamente noutra passagem: porque, se a justia provm da Lei, segue-se que Cristo morreu
em vo63. Ele tambm declara exatamente algo que tu mesmo mencionaste: separados estais
de Cristo, vs que vos justificais pela Lei; da Graa tendes cado64 . Dessa maneira, ele
repreende os crentes que pensavam serem justificados pela Lei, e no os que observavam os
sacramentos, legtimos, em honra de quem as confiou, ento conscientes tanto de que elas
haviam sido enviadas em razo de anunciar a verdade, quanto do momento at o qual deveriam
perdurar. Disso resulta o que ele diz: se sois guiados pelo Esprito, no estais debaixo da
Lei65; disso, como tu concluis, patente que o homem que est sob a Lei, no de maneira
poltica (como quiseram nossos antecedentes, na tua opinio), mas verdadeiramente (como
eu entendo), ele que no tem o Esprito Santo.
20. Trata-se de uma questo importante, parece-me, o que significa estar sob a Lei no sentido
em que o apstolo censura. Ora, ele no afirma isso, julgo eu, em vista da circunciso, ou dos
sacrifcios que eram ento cumpridos pelos pais (que no acontecem mais entre os cristos), ou
de coisas desse tipo, mas, ainda, em vista do que a Lei propriamente diz: no cobiars, algo
que, confessamos, os cristos devem observar e pregar sobretudo com recurso clareza do
Evangelho. Ele <Paulo> afirma que a Lei santa e que o mandamento santo, justo e bom66. E
ento adiciona: logo tornou-se-me o bom em morte? De modo nenhum; mas o pecado, para
que se mostrasse pecado, operou em mim a morte pelo bem; a fim de que pelo mandamento o
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pecador ou o pecado se fizesse excessivamente67. Mas, ao passo que aqui se afirma que pelo
mandamento o pecado se faz excessivamente, noutra passagem segue que veio, porm, a Lei
para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graa68 . Noutra
passagem, ainda, depois de falar acima da ddiva da Graa, que s ela justifica, ele coloca a
pergunta para que a Lei? e responde de imediato a essa questo, que ela foi ordenada por
causa das transgresses, at que viesse a semente a quem a promessa tinha sido feita69.
Portanto, so esses homens que, ele afirma, esto condenavelmente sob a Lei, os que a Lei
transforma em rus, que no cumprem a Lei por presumirem, sem compreender o benefcio da
Graa, que realizar os preceitos de Deus depende unicamente de suas prprias foras, uma
tremenda arrogncia. Ora, o cumprimento da Lei o amor, mas o amor de Deus est
derramado em nossos coraes pelo Esprito Santo que nos foi dado70. Certo, para explicar
satisfatoriamente essa questo preciso um texto talvez longo, que ocupasse um volume inteiro.
Portanto, se aquilo que afirma a Lei, no cobiars, se a fraqueza humana no tiver sido
resgatada pela Graa de Deus, e ela <a Lei> acabar por torn-lo um ru sob si, e conden-lo
como um transgressor em vez de libertar o pecador, quanto mais aquelas tradies, que foram
dadas como preceitos, quase como anncios, a circunciso e outras, as quais foi necessrio
abolir assim que a revelao da Graa se fez espalhar quanto mais elas no puderam
justificar ningum! Mas no por isso que elas deveriam ser evitadas como se fossem os
sacrilgios diablicos dos gentios, ainda que a Graa j comeasse ento a se revelar, ela que
fora prenunciada por aquelas sombras; mas elas deviam ser permitidas durante algum tempo,
sobretudo a eles que vieram daquele povo <os judeus>, e a quem elas foram dadas. depois,
enfim, como se tivessem sido sepultadas com honras fnebres, que elas deveriam ser rejeitadas,
irrevogavelmente, por todos os cristos.
21. Porm, o que quer dizer isso que afirmas, no de maneira poltica, como quiseram nossos
antecedentes, eu te pergunto? Ora, trata-se ou do que eu mesmo chamo de mentira devida71,
de modo que aquela ao poltica atue como um dever de se mentir honestamente, ou de outra
coisa que foge da minha compreenso a no ser que, por acaso, a mentira, ao ser definida
como poltica, deixe de ser mentira. Agora, se absurdo dizer isso, por que ento no afirmas
abertamente que se deve defender uma mentira devida? A no ser que seja o prprio conceito
que te incomode, pois no to comum, nos livros eclesisticos, essa noo de devido72; mas
dela nosso Ambrsio no tem medo, j que quis intitular certos livros seus, cheios de preceitos
teis, de Os deveres73. Ou, talvez, algum que vier, no caso, a mentir devidamente deve ser
culpado, mas, se politicamente, deve ser aprovado? Eu te suplico: estaria mentindo quem tiver
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Aug. ep. 82
escolhido pensar assim? Porque essa sim uma questo importante, se h momentos em que um
homem bom deve mentir74 , ainda mais homens cristos, sobre os quais est dito: seja, porm, o
vosso falar, sim, sim; no, no,75 e que escutam com f: destruirs aqueles que falam a
mentira76 .
22. Mas esta , como falei, uma outra e importante questo; escolha a soluo que quiser, quem
estima assim ao mentir, contanto que se acredite e se defenda incontestavelmente que, nos
escritores das Sagradas Escrituras, evidentemente nas cannicas77, inexiste qualquer mentira em
absoluto, para assim evitar que os despenseiros de Cristo78 , sobre os quais est dito: alm disso
requer-se dos despenseiros que cada um se ache fiel79, paream mentir no lugar de administrar
a verdade, como se tivessem fielmente aprendido da algo de importante, j que a prpria
palavra f em latim quer dizer que se faa o que se diz80 ; porm, onde se faz o que se diz,
certamente no h lugar algum para a mentira. Outrossim, sendo um despenseiro fiel, o
apstolo Paulo nos mostra (longe de dvidas) f ao escrever, pois era despenseiro da verdade,
no da falsidade. Foi por isso que ele escreveu a verdade, ao dizer ter visto Pedro no andando
bem e direitamente conforme a verdade do Evangelho, e ao censur-lo frontalmente por ter
obrigado os gentios a agirem como os judeus. O prprio Pedro, afinal, aceitou, com a piedade
da santa e bondosa humildade, o que Paulo fazia, apropriadamente, com a liberdade da
caridade81 , e assim legou um exemplo aos seus psteros que eles no desprezassem a
correo de seus posteriores, se em algum momento se afastassem o caminho da retido
ainda mais raro e santo que o exemplo de Paulo que at os menores deveriam ousar resistir
com coragem os seus maiores, a fim de defender a verdade do Evangelho, na presena da
caridade fraterna82. Enfim, ainda que seja mais sensato no desviar de qualquer ponto (quanto
mais de um nico) da via que tomamos, muito mais admirvel e louvvel receber de bom
grado uma pessoa que nos corrige, a corrigir de maneira ousada algum que desvia. Assim, mais
havia valido (eis a minha humildade opinio) defender, contra as calnias de Porfrio83, o louvor
da liberdade justa em Paulo, e o louvor da santa humildade em Pedro, do que dar quele maior
oportunidade de difamaes ao incriminar, de maneira extremamente tenaz, os cristos de agir
mentirosamente seja ao escreverem suas cartas, seja ao tomarem os sacramentos de seu Deus.
23. Tu insistes de mim que eu apresente ao menos um nico autor cuja hiptese eu teria adotado
neste assunto, j que tu, ao citar tantos e diversos nomes que te precederam na concluso que
elaboras84, pediste que, se te repreendo ao errar, que nisso te permita errar com tais autores, dos
quais, devo confessar, no li nenhum85; mas, sendo eles uns seis ou sete, tu tambm violas a
autoridade de ao menos uns quatro. Pois tu afirmas que o Laodiceu86, cujo primeiro nome no
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Aug. ep. 82
mencionas, deixou a Igreja recentemente; tu chamas Alexandre de velho herege87 ; quanto a
Orgenes88 e Ddimo89, agora leio em tuas obras mais recentes que eles so repreendidos de
forma contundente, e por causa de questes bastante problemticas, embora tu antes celebrasses
Orgenes com admirao90 ! Penso que tu erras tambm com tais autores, j que mesmo tu no
tolerarias um erro ainda que neles se afirmasse exatamente a mesma coisa, e mesmo se eles
no tiverem errado nessa concluso. Pois quem que quer errar com quem quer que o seja?
Sobram, ento, trs autores: Eusbio de meso91 , Teodoro de Heracleia92 e quem mencionas um
pouco depois, Joo93, que h algum tempo governava, na condio de pontfice, a Igreja em
Constantinopla.
24. No mais, se procuras ou recordas o que aqui pensava nosso Ambrsio94 , ou igualmente
nosso Cipriano95 , tu talvez descobrirs que no nos faltam autores que poderamos adotar nessa
discusso, embora eu, como disse h pouco, deva uma servido voluntria96 to-somente s
Escrituras cannicas, e devo assim seguir unicamente a elas, de modo a nunca duvidar que seus
compiladores erraram em absolutamente lugar algum, ou que escreveram qualquer coisa de
maneira mentirosa. Por conseguinte, ao procurar um terceiro autor para que eu tambm coloque
trs contra trs, eu certamente poderia, julgo eu, facilmente encontr-lo, se lesse muito. No
entanto, antes de todos eles, ou melhor, acima de todos eles, o primeiro que me ocorre o
apstolo Paulo. nele, e nele mesmo, que eu me refugio, afastando-me de todos que pensam de
maneira diferente; a ele que eu recorro, frente aos comentadores de suas cartas; ele que
solicito e busco quando me pergunto naquilo que ele escreveu aos Glatas, que ele viu Pedro
no andando bem e direitamente conforme a verdade do Evangelho, e que o censurou
frontalmente, j que ele <Pedro> obrigava, por meio daquela simulao, os gentios a agirem
como judeus se o que ele escreveu era verdade, ou se ele possivelmente mentiu segundo uma
falsidade poltica qualquer. E eu o escuto, um pouco antes, no exrdio do mesmo texto,
clamar a mim com sua voz fiel: ora, acerca do que vos escrevo, eis que diante de Deus testifico
que no minto97 .
25. Me perdoe quem quer que pense outra coisa; eu acredito mais no que o eminente apstolo
atesta nos, e sobre seus escritos, do que qualquer homem muitssimo erudito discute acerca dos
escritos de um outro. No temo que digam que assim eu defendo Paulo, pois ele no teria
simulado o erro dos judeus, mas teria errado de verdade. Ora, ele no podia simular um
erro, um homem que, segundo a liberdade apostlica98 (e conforme convinha quele tempo),
recomendava os velhos sacramentos, realizando-os quando necessrio, mostrando que esses no
vinham da velhacaria de Satans para enganar os homens, mas que foram colocados,
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Aug. ep. 82
profeticamente, pela providncia divina, em anncio dos bens futuros. E Paulo tambm no
incorrera de verdade no erro dos judeus: ele no s tinha noo disso, mas tambm pregava
com vigor e ardor que estavam errados aqueles que pensavam que os sacramentos deveriam ser
impostos aos gentios, e que eram necessrios justificao de quaisquer fiis que estivessem l.
26. Porm, o que eu afirmei, que ele se fez judeu aos judeus e se fez gentio aos gentios, no
porque usava da astcia de um mentiroso, mas do sentimento de algum que se compadece99 ,
parece-me no teres prestado muita ateno na maneira como falei, ou talvez sou eu que no
consegui te explicar muito bem. Ora, eu no disse isso, desse jeito, porque ele simulou
aqueles atos com misericrdia, mas porque ele no fingiu os sacramentos que, semelhana
dos judeus, realizava ento; a mesma coisa para os homens que, semelhana dos gentios, no
os realizavam, fatos que tu tambm mencionaste, e na interpretao dos quais, confesso, no
serei ingrato, me ajudaste. Ora, tendo eu perguntado a ti, em minha carta, como se deve
interpretar, ento, o fato de ele se ter feito judeu aos judeus (visto que ele supostamente tomou
os sacramentos dos judeus em mentira), ainda que ele se tenha feito gentio aos gentios (e
entretanto no tenha tomado os sacrifcios dos gentios em mentira), tu respondeste a que ele
se fez gentio aos gentios porque aceitou o prepcio, e porque foi indiferente ao permitir que se
comessem os alimentos condenados pelos judeus. Donde eu pergunto se ele tambm teria agido
de maneira simulada aqui, j que, se for assim to absurdo e falso, logo isso tambm vale para
os sacramentos aos quais ele observava de acordo com a tradio dos judeus: afinal, ele
concordava aqui segundo uma liberdade cautelosa (no uma obedincia necessria), ou, o que
muito mais indigno, segundo uma pregao de mentiras, e no de f?
27. Ora, tambm em relao aos fiis, e em relao queles que conheceram a verdade, como
ele mesmo testifica (a no ser que ele se engana tambm aqui): porque toda criatura de Deus
boa, e no h nada que rejeitar, sendo recebida com aes de graas100 . Portanto, ao mesmo
Paulo no s ao homem, mas sobretudo ao despenseiro da f no s a ele que conhecia,
mas a ele que sobretudo ensinava a verdade que toda criatura parecia no em
simulao, mas verdadeiramente adequada para comer. Por que ento, ainda que ele no
tomasse nenhum dos sacramentos e cerimnias dos gentios (mas tendo compreendido e ainda
ensinado a verdade acerca dos alimentos e da incircunciso), ele se teria feito gentio aos gentios,
ao passo que ele no podia tambm se fazer judeu aos judeus a no ser que tomasse os
sacramentos dos judeus em mentira? Por que ao zambujeiro enxertado ele conservou a
verdadeira f da pregao, enquanto ele estendeu, aos seus ramos naturais, dispostos no fora
mas dentro da rvore, um velame qualquer de uma simulao poltica101? Por que, ao se fazer
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gentio aos gentios, ele ensina aquilo que aprova, e aprova aquilo que faz, enquanto ele esconde,
ao se fazer porm judeu aos judeus, uma coisa em seu corao, ao passo que pontua outra em
suas palavras, aes, escritos102 ? Longe de ns descobrirmos a razo. Ora, ele oferecia a
caridade, de corao puro, boa conscincia, e f no fingida, a ambos <gentios e judeus>. E foi
por isso que ele se fez tudo a todos, de modo a ganhar todos, servindo-se no da astcia de um
mentiroso, mas do sentimento de algum que se compadece, isto , no cometendo em
mentira todos os pecados dos homens, mas aplicando cuidadosamente o remdio da
misericrdia em todos os pecados dos outros homens, como se fossem os seus prprios pecados.
28. Igualmente, Paulo no se enganava por misericrdia, visto que ele no recusava, de
maneira alguma, que se realizassem os sacramentos do Velho Testamento, e em relao tambm
a si prprio, mas ele buscava distinguir no se enganando em nada que fosse, e
recomendando, dessa maneira, as tradies que haviam sido ordenadas pelo Senhor Deus at a
pregao do tempo fixado , os sacramentos dos sacrilgios sagrados dos gentios. Era assim,
porm no atravs da astcia de um mentiroso, mas do sentimento de algum que se
compadece que ele se fazia judeu aos judeus quando desejava libert-los de um erro tal em
que os judeus ou se recusavam a crer em Cristo, ou estimavam poder se purificar dos pecados e
encontrar a salvao atravs de seus velhos sacerdcios e da observao de suas cerimnias:
como se ele mesmo padecesse desse erro, amando o prximo como a si mesmo, certamente, e
fazendo aos outros o que ele desejava que lhe fizessem, se ele precisasse. Tendo o Senhor
aconselhado isso, ajuntou: porque essa a Lei e os profetas103.
29. Esse sentimento de quem se compadece, ele o prescreve na mesma carta aos Glatas,
dizendo: se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vs, que sois espirituais,
encaminhai o tal com esprito de mansido; olhando por ti mesmo, para que no sejas tambm
tentado104. Veja se ele no disse que se fez como ele para ganh-lo, certamente no para que ele
mesmo cometesse um crime em mentira, ou que simulasse assim partilhar dela, mas era a fim
de atentar para o crime de um outro, o qual poderia acontecer tambm consigo, que ele vinha
em seu auxlio: com misericrdia, como ele gostaria que um outro lhe viesse, isto , no com
a astcia de um mentiroso, mas com o sentimento de algum que se compadece. Assim ao
judeu, assim ao gentio, assim a qualquer homem, era assim, tomando no importa qual desvio
ou pecado estabelecido, no simulando ser o que no era, mas compadecendo, pois poderia
acontecer com ele, como se ele tivesse em mente o sofrimento do prprio homem; foi assim que
Paulo se fez tudo para todos, para que a todos ganhasse.

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30. Tu mesmo, se me permites, te imploro, olha um pouco para ti, digo, por minha causa, e
relembra, ou releia (se tu as tem arquivadas105) tuas palavras naquela carta que, to breve,
mandaste por nosso irmo (e hoje colega meu) Cipriano106 , quo veraz, quo fraterna, quo
cheia do sentimento da caridade; nela, ao se queixares que eu havia te desrespeitado em algo, tu
adicionaste em tom srio: a golpeia-se a amizade, a so violadas as leis da cordialidade! Que
ns no pareamos brigar como crianas e dar, tanto aos nossos defensores quanto aos nossos
detratores, matria para contenda. Essas palavras, sinto, no foram ditas por ti s de corao,
mas verdadeiramente de corao benevolente, como um conselho a mim. Mais adiante, tu
mencionas uma coisa que, mesmo que no a tivesses mencionado, seria patente, pois dizes:
escrevo isso pois desejo te amar de maneira pura e crist, e porque no quero guardar na
cabea qualquer coisa que esteja na borda dos lbios107. homem santo e querido a mim de
corao verdadeiro, Deus est de prova, isso que colocaste em tua carta, isso que no duvido
teres demonstrado a mim, exatamente isso que, acredito eu, o apstolo Paulo demonstrou em
suas cartas no a um nico homem, seja quem for, mas aos judeus, aos gregos, a todos os
gentios, aos filhos seus que gerara no Evangelho, por quem sentira as dores do parto108, e
finalmente aos tantos milhares de cristos fiis que vieram depois dele, foi por causa deles que
ele legou sua carta memria dos homens, para que no guardasse na cabea qualquer coisa que
estivesse na borda dos lbios!
31. Sim, tu mesmo tambm te colocaste no meu lugar109 , no com a astcia de um mentiroso,
mas com o sentimento de quem se compadece, ao estimares que eu no deveria ser abandonado
na culpa em que eu havia, tu pensaste, tombado, pois tu mesmo no gostarias de ser
abandonado, caso tivesses nela tambm tombado! Por isso, no que agradeo tua alma bondosa,
peo que no voltes a te irritar comigo j que, no caso de haver passagens em tuas obras que
venham a me incomodar, eu j confiei a ti a minha preocupao, desejoso de que todos
mantenham em relao a mim um princpio que eu tambm mantive em relao a ti: que, se
suspeitarem de qualquer coisa reprovvel em meus textos, que no a escondam nas profundezas
do corao; que no a repreendam entre outros, a fim de se calarem em minha presena; estimo
que antes numa situao tal que se golpeia a amizade, que so violadas as leis da
cordialidade110. Afinal, eu no sei se podemos considerar crists as amizades nas quais mais
vale o provrbio popular, o favor produz amigos; a verdade, o dio111, que o dito eclesistico,
leais so as feridas feitas pelo amigo, mas os beijos do inimigo so enganosos112 .
32. Por conseguinte, os nossos amigos mais queridos, e muito sinceros, que apoiam os nossos
trabalhos, ensinemos a eles, da maneira mais perseverante que pudermos, para que saibam,
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antes, que uma situao assim possvel; que mesmo entre os mais queridos pode se contradizer
algo pela conversa um do outro; que no por isso, porm, que a prpria caridade dirimida;
que no por isso que a verdade aquela que se deve amizade113 gera o dio; que haja
verdade naquilo que se contradiz; que haja verdade no corao; seja o que for, que se diga sem
deixar na cabea o que estiver na borda dos lbios! E que assim acreditem os nossos irmos e os
teus amigos (tu ests de prova que eles so vasos de Cristo), que isso aconteceu contra a minha
vontade, e que no pouca a dor que me toma o corao nessa situao, a de que as minhas
cartas passaram pelas mos de muitos antes de conseguirem chegar a ti, a quem elas foram
escritas. De que maneira isso aconteceu, porm, eis uma longa histria, e, salvo engano, uma
histria tambm intil; suficiente, se o que digo aqui merece crdito, que isso no aconteceu
de propsito (como se pensa), e que no dependeu, em absoluto, da minha vontade, dos meus
planos, do meu assentimento, ou at mesmo dos meus pensamentos que isso acontecesse. Se
eles no acreditarem nisso, e afirmo tendo Deus como testemunha, no tenho mais o que fazer.
Deus me livre, porm, de acreditar que eles te sugerem isso de m f, a fim de incitar inimizades
entre ns (que a misericrdia de Deus Nosso Senhor as afastem de ns), mas natural suspeitar
que haja defeitos humanos em um homem, sem que haja uma nica inteno de ofend-lo.
Afinal, justo que eu acredite, em relao a eles, se so vasos de Cristo, que tais coisas no
aconteceram em prejuzo, mas em honra, e que se deram por Deus em sua grande casa para um
fim bom. Agora, se isso vier ao conhecimento desses amigos mesmo aps esse meu juramento,
e eles ainda quiserem fazer o que no fazem de maneira correta, bem, a tu vs.
33. Certo, o que eu te escrevi, que no mandei a Roma nenhum livro contra ti114 , escrevi desse
jeito porque l distinguia o conceito de livro de minha carta. Disso conclu que tu escutaste
alguma outra coisa (o qu, no fao ideia); tambm no foi a Roma, mas a ti que eu mandei essa
carta, e no julgava que era contra ti, j que, sei bem, agi segundo a sinceridade da amizade,
seja para te aconselhar, seja para te corrigir ou ser corrigido por ti. Com a exceo, porm, dos
teus amigos, imploro a ti mesmo, pela Graa na qual nos redimimos: quaisquer que forem teus
dons que te foram agraciados pela bondade do Senhor (eu os mencionei em minhas cartas), no
concluas que eu assim agi por bajulao capciosa deles. No entanto, se eu pequei contra ti em
qualquer ponto, me inocenta. Aquilo que eu mencionei sobre o fim de no sei qual poeta (coisa
que foi talvez mais inadequada que erudita), no o interpretes com mais peso do que falei, visto
que eu imediatamente expliquei que eu no o afirmei daquele jeito para que tu recuperasses os
olhos do corao (que tu nunca os perca, digo novamente), mas para que tu cuidasses de mant-
los sos e atentos. Logo, por causa da mera meno da 115, que se deve imitar caso
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Aug. ep. 82
tenhamos escrito qualquer coisa que precisemos suprimir por um escrito seguinte, no foi por
causa da cegueira de Estescoro (eu no a atribu, ou sequer cogitei, a teu corao) que eu
estimei tocar no assunto. Uma vez mais, e novamente, eu suplico que me corrijas fielmente,
sempre que vieres a constatar que preciso me corrigir. Afinal, embora o bispado seja mais
importante que o presbiterado (segundo os termos polticos que a Igreja, pelo uso, j tornou
familiares116), Agostinho , porm, em muitos aspectos inferior a Jernimo, e ainda assim
convm que uma correo, mesmo que ela venha de um inferior, no seja ignorada ou
menosprezada.
34. Sobre a tua traduo, j me convenceste com que utilidade queres verter as Escrituras do
hebraico, a saber, para divulgares as passagens omitidas ou corrompidas pelos judeus117. Mas,
peo que tenhas a dignidade de apontar por quais judeus, se por aqueles mesmos que traduziram
antes da vinda do Senhor118 (e, se for assim, por quais ou qual deles), ou se por esses outros
vindos depois que, por essa razo, podem parecer ter omitido ou corrompido qualquer coisa dos
ou nos cdices gregos, para que no fossem incriminados por aqueles testemunhos sobre a f
crist119; mas eu no vejo porque os seus precedentes teriam desejado agir assim. Alm disso,
manda-nos, eu imploro, a tua traduo da Septuaginta; eu no sabia que tu a publicaste.
Tambm, esse teu livro de que fizeste meno, sobre o melhor mtodo de traduo120, desejo l-
lo e ento aprender de que maneira a habilidade com idiomas deve ser manejada pelo intrprete,
segundo as conjecturas dos que estudaram as Escrituras a fundo, os quais, embora tenham sido
corretos e unvocos em sua f, inevitvel que eles manifestem as opinies mais variadas sobre
a obscuridade de diversas passagens, ainda que essa mesma variedade no entre, de maneira
alguma, em desacordo com a unidade de uma mesma f (assim como um nico estudioso pode,
segundo a mesma f, esclarecer tambm a mesma passagem de diversas maneiras, porque a
dificuldade dela permite isso121).
35. Desejo, porm, tua traduo da Septuaginta de modo que afastemos o mximo possvel a
tamanha impreciso dos tradutores latinos122 , quaisquer deles que tiverem coragem de traduzir
as Escrituras; e de modo que aqueles que pensam que eu invejo os teus teis trabalhos
compreendam, finalmente, e se possvel, que eu no quero que tua traduo a partir do hebraico
seja usada nas missas por essa razo, para que no incitemos como se estivssemos trazendo
algo de estranho contra a autoridade da Septuaginta um imenso escndalo nos povos de
Cristo, cujos ouvidos e coraes se habituaram a escutar essa traduo, a qual foi, alm do mais,
aprovada pelos apstolos. Por isso tambm aquele arbusto em Jonas, se no aboboreira e
nem hedra em hebraico, mas qualquer outra coisa que, sustentada em seu prprio tronco, no
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precisa de qualquer estaca que lhe sirva de apoio, eu ento preferiria que a leitura fosse
universalmente aboboreira em latim. Afinal, no sem motivo, penso eu, que a Septuaginta o
utilizou, a no ser porque os tradutores sabiam que tal termo parecido123.
36. suficiente, ou mais que suficiente, talvez, essa minha resposta, julgo, s tuas trs cartas,
das quais recebi duas por Cipriano, e uma por Firmo124 . Responda o que te parecer bom para
instruir a ns ou aos demais. Prestarei mais ateno, porm, na medida em que o Senhor me
ajudar, para que as cartas que te escrevo cheguem antes a ti que a qualquer outro, por quem
poderiam ser espalhadas por toda parte. Ora, confesso que no quero que acontea com tuas
cartas destinadas a mim algo que, tu reclamas muito justamente, aconteceu com minhas cartas
destinadas a ti. Assim, queiramos fruir juntos no somente da caridade, mas certamente da
liberdade da amizade, para que no guardes para ti, ou para que eu no guarde para mim
qualquer coisa que nos incomoda mutuamente em nossas cartas; qualquer coisa que, nesse
esprito, a saber, no se torna ofensivo aos olhos de Deus, e se faz em amor fraterno. Agora, se
no acreditas que isso pode acontecer entre ns sem que se ofenda perigosamente o prprio
amor, que no acontea. Afinal, a caridade que gostaria de manter contigo com certeza maior;
mas, melhor esta, menor, do que nenhuma.

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Aug. ep. 82
NOTAS

1 Compresbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.


2 No latim, in Christi visceribus, nas, ou entre as vsceras de Cristo. A expresso de organicidade semelhante in
Christi membris (cf. Aug. Ep. 180,1), nos membros de Cristo, apontando para a corporeabilidade, a substncia fsica e
humana, de Cristo. As viscerae, no caso, centro de gravidade do corpo, eram onde aportava a alma; alguns tradutores as
mudam para um simples corao, e o sentido de fato similar ao que este rgo representa em nossa cultura. O termo
na realidade traduo latina para a expresso grega , j usada no Novo Testamento (cf. Lc 1:78 e
Phil 1:8).
3 Cf. Aug. Ep. 73 e Hier. Ep. 102, respectivamente.
4 Astrio, v. supra Hier. Ep. 102, n. 3. Ele agora bispo, ao passo que antes era hipodicono.
5 Firmo, v. supra Hier. Ep. 115, n. 2.
6 Esta admonio est em Hier. Ep. 115, carta que acompanhava a mais longa Hier. Ep. 112. O ille a quem Agostinho se
refere Rufino, v. supra Hier. Ep. 102, n. 17.
7Discordia, separao de coraes, como Agostinho anteriormente caracterizara a rixa entre Jernimo e Rufino (cf.
Aug. Ep. 73,6-8).
8Acreditamos que Agostinho est errado. H elementos em Hier. Ep. 112 que apontam para o fato de Jernimo ter lido
Aug. Ep. 73, v. supra Hier. Ep. 112, n. 58.
9Agostinho distingue, ainda que vagamente, um hilarior quidam vultus, um aspecto algo brincalho, da carta Hier.
Ep. 115. H aqui uma referncia ao gnero, e s epistulae familiares em especfico: as regras de cordialidade do
convvio social, presentes na epistolografia e na retrica, prescreviam absolutamente qualquer tipo de briga. Como diz
Jlio Vtor: iurgari numquam oportet, sed minime in litteris, nunca se deve brigar, muito menos em cartas (cf. Iul. Vit.
Ars rhetorica 27).
10 Cf. Hier. Ep. 115.
11Agostinho fala de uma hilaritas, jocosidade ou brincadeira, que conveniente em conversas entre amigos. Este
um preceito das epistulae familiares presente em Ccero, que fala da carta de genus familiare et iocosum, isto , gnero
amigvel e brincalho (cf. Cic. Fam. 2,4,1).
12 Em latim, apertum et planum e arduum atque dificile. Devemos compreender, aqui, que Agostinho pede uma
discusso mais sria de Jernimo, ao passo que este at ento lhe dedicara apenas epistulae familiares convencionais,
algo frias e formais. Devemos concluir que Agostinho pede uma epistulae negotialis, como indica Frst (2002) p. 263,
n. 424? possvel: Ccero qualifica um dos gneros de cartas como severum et grave, austero e srio, enquanto Caio
Jlio Vtor qualifica o argumento da epistula negotialis como negotiosum et grave, oficioso e srio (cf. Cic. Fam.
2,4,1 e Iul. Vit. Ars rhetorica 27). Seja como for, Agostinho pede que Jernimo deixe de lado as convenes da
epistolografia para que eles possam discutir as Escrituras por meio de cartas, de igual para igual, e que um possa
corrigir os erros do outro.
13Convm que exista, nas cartas trocadas entre amigos, uma libertas securior, uma liberdade mais despreocupada,
porque toda carta desse tipo deve se pautar por um tom amistoso (cf. Dem. 229; Cic. Fam. 2,4,1; 4,13,1 e Iul. Vit. Ars
rhetorica 27). O adjetivo securus surge da juno da preposio sine com cura, sem preocupao. Deve-se ter
cuidado, porm, para que a libertas no degrida em licentia, libertinagem (cf. Quint. Inst. orat. 10,165 e 3,8,48),
como Agostinho parece crer que acontece em Hier. Ep. 112 nalguns momentos, conforme indica abaixo em Aug. Ep.
82,31.
14 O litum melle gladium fora citado por Jernimo em Hier. Ep. 105,2; v. supra Hier. Ep. 105, n. 14.
15Agostinho constri um jogo de palavras entre luditur, exercita-se ou joga-se, com illuditur, brincar consigo
mesmo ou divertir-se.
16 Para o adjetivo canonicus, Aug. Ep. 28, n. 13.

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Aug. ep. 82

17As Sagradas Escrituras devem estar isentas de qualquer erro, e qualquer raciocnio plausvel, ratio probabilis, que v
contra ela, independente de quo brilhante, est fadado a ser enganoso. Esta uma afirmao reiterada amide pelos
escritores cristos latinos da poca; Agostinho a repete em diversas ocasies, mesmo nesta carta (cf. Aug. C. Faust.
11,5; Gen. ad litt. 7,1.24; Ep. 82,24; 143,7; 166,24; 167,10). A passagem tambm lembra o De officiis de Ccero: atque
ea sic definiunt, ut rectum quod sit, id officium perfectum esse definiant; medium autem officium id esse dicunt, quod
cur factum sit, ratio probabilis reddi possit, e os gregos o definem [o , ou officium] de modo que seja
correto o dever que eles esto definindo; afirmam, porm, que o dever est no meio, pois ele s pode ser feito a
partir de um argumento provvel (cf. Cic. Off. 1,8). O termo traz o perigo da verossimilhana notadamente pag e
hertica, contrastando-a verdade crist: possvel discutir as Escrituras e elaborar diferentes interpretaes para ela,
conquanto no nos afastemos da littera e da veritas que l se fazem soberanas. V. Frst (2002) p. 267, n. 431.
18 Cf. Hier. Ep. 102,2.
19A comparao entre a relao de Paulo e Pedro com a de Agostinho e Jernimo um mote que o bispo empregar por
toda Aug. Ep. 82, tema que discutimos no item A questo da auctoritas e o exemplum dos apstolos no segundo
captulo da introduo.
20 Gal 2:14.
21Aluso a Gal 4:19, meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, at que Cristo seja formado em vs;
alm disso, que Cristo a verdade o que coloca Joo em seu Evangelho, cf. Jo 14:6.
22 Gal 1:20.
23A dispensatoria simulatio, simulao poltica, se assemelha ao termo atribudo por Jernimo censura de Paulo a
Pedro, simulatio utilis, simulao til (cf. Aug. Ep. 28,3; 40,4; Hier. Ep. 112), e tambm dispensatoria reprehensio
mencionada pelo Estridonense em Hier. Ep. 112,4; v. supra Aug. Ep. 40, n. 19 e Hier. Ep. 112, n. 33.
24 O tantus propheta, eminente profeta, David, que no um profeta propriamente dito. Na poca de Agostinho
propheta era nome dado a todos os personagens do Velho Testamento, uma vez que so todos figuras que prenunciaram
a vinda de Cristo; cf. Blaise p. 674 propheta 2. A mulher desse episdio, que narrado em 2 Sam 11:2-17 (e no no
livro dos Reis, como afirma Agostinho), Bate-Seba, esposa de Urias, o Heteu.
25Em razo de buscarem a desjudeizao das Escrituras Sagradas, os maniqueus rejeitavam o Velho Testamento em
sua totalidade, e haviam expurgado boa parte do Novo Testamento, o qual consideravam avariado (cf. Aug. Ep. 28,5 e
Hier. Ep. 112,14). V. Frst (2002) p. 273, n. 438.
26So as verses esparsas da Vetus Latina (v. supra Aug. Ep. 71, n. 22). A Vulgata de Jernimo ficar pronta apenas em
405 ou 406; v. Kelly (1975) p. 283-285. Exemplaria tem aqui o sentido original de modelo ou prottipo textual a partir
do qual se fazem cpias; v. Arns (2007) p. 62-64 e supra Hier. Ep. 102, n. 5.
27
A praecedens lingua o grego da Septuaginta, verso que tem a maior auctoritas (cf. Aug. Ep. 28,2), ante a qual os
maniqueus debandam confusos e superados, imagem retomada por Agostinho noutras obras (cf. Aug. Util. cred. 7;
mor. 2,60; C. Faust. 11,2).
28Cf. Hier. Ep. 112,4;11; In Gal. 2,11-14. Agostinho vai parafrasear esse trecho novamente em um sermo ministrado
na poca (cf. Aug. Serm. ed Dolbeau 10,13). V. Frst (2002) p. 275, n. 440.
29 Os homens da circunciso (v. supra Hier. Ep. 112, n. 47) so os judeus crentes, naturalmente.
30At aqui, Agostinho aludiu a Act 16:3 (a circunciso de Timteo), Act 18:18 (o abandono do voto em Cencreia), Act
21:18-26 (a adverso de Tiago), Col 2:17 e Hbr 8:5;10:1 (as sombras dos bens futuros) e Act 21:21 (os rumores de que
Paulo prega o afastamento de Moiss).
31 Jo 5:46.
32Act 21:20-25; h diversas modificaes em relao ao texto da Vulgata, s quais atentamos ao trabalharmos o texto
da ACF. Algumas delas: o em Cristo do incio no est presente no NTG, nem na Vulgata, e as partes em colchetes
esto ausentes da Vulgata, mas presentes no NTG, na ACF e nessa passagem da carta.
33 Que a pregao paulina, em especial em Gal 2:11-14, demonstra que h uma diferena entre a condenao
detestvel da idolatria e a proibio lenta e gradual das cerimnias da Lei Judaica, interpretao que Agostinho
defender diversas vezes em outras obras (cf. Aug. De mend. 5,8; C. mend. 2; C. Faust. 19,17; Serm. ed Dolbeau
10,6;8-11). A concluso de Jernimo era exatamente a contrria: todas as cerimnias que no fossem crists deviam ser
condenadas imediatamente aps a vinda de Cristo (cf. Hier. In Gal. 3,4; 5,11). V. Hennings (1994) p. 274-291; Frst
(2002) p. 280, n. 450.

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Aug. ep. 82

34 Cf. Act 15:28.


35 Agostinho usa o mesmo argumento cronolgico em Aug. C. Faust. 19,17.
36 Aluso a Act 10:9-16.
37 Gal 2:3-5. A Vulgata l gentilis, e no graecus (tambm no grego), v. supra Aug. Ep. 40, n. 20.
38 Agostinho diz com palavras pouco diferentes o que afirmara acima em Aug. Ep. 82,10, com foco na diferena das
situaes de Timteo e de Tito, a qual retomada em outras obras do autor (cf. Aug. In Gal. 11; De mend. 8; C. Faust.
19,17).
39 Em latim, forenses advocati. A eles cabia o nus da prova, como hoje acontece com os advogados de acusao (cf.
Quint. Inst. orat. 12,1,13; Plin. Ep. 7,22; Tac. A. 11,5,6; Suet. Claud. 15;33). A referncia traz mente uma passagem do
comentrio de Jernimo aos Glatas, onde o Estridonense compara a contenda dos apstolos com a simulao dos
oradores tribuncios: aliquoties cum adulescentulus Romae controversias declamarem, et ad vera certamina fictis me
litibus exercerem, currebam ad tribunalia iudicum, et disertissimos oratorum tanta inter se videbam acerbitate
contendere ut, omissis saepe negotiis, in proprias contumelias verterentur, et ioculari se invicem dente morderent. si hoc
illi faciunt ut apud reos nullam suspicionem praevaricationis incurrant, et fallunt populum circunstantem: quid
putamus tantas ecclesiae columnas, Petrum et Paulum, tanta vasa sapientiae inter dissidentes Iudaeos atque gentiles
facere debuisse?, quando eu era jovem em Roma, e s vezes ia declamar controvrsias e tambm exercitar o discurso
de contestao por meio de litgios fictcios, eu ia correndo ao tribunal jurdico, e l via os mais hbeis dos oradores
tanto debatendo entre si com fervor, quanto, nas vezes em que no estavam em servio, se rebaixando a verdadeiras
discusses, mordendo-se uns aos outros com dentes fesceninos. Se eles faziam aquilo sem despertarem, aos rus,
nenhuma suspeita de serem transgressores, se eles enganavam o povo que estava l: o que devemos pensar que essas
imensas colunas da Igreja, esses imensos vasos de sabedoria deveriam estar fazendo entre os judeus e os gentios
dissidentes? (cf. Hier. In Gal. 2,11).
40 A construo de actio mais genitivo indica, no vocabulrio jurdico, um processo criminal (cf. Cic. Mil. 14). Dito isso,
a actio causae nada mais que a defesa de processo judicial qualquer, o proceder da causa; v. supra Aug. Ep. 28, n. 20.
A meno guarda barbas de crtica defesa tenaz que Jernimo faz de Orgenes, como se o monge fosse um advogado
deste.
41 Neste pargrafo, Agostinho retoma a discusso dos indifferentia ou que Jernimo abordara em Hier. Ep.
112,16 (v. supra Hier. Ep. 112, n. 111). O bispo de Hipona atribui esse tipo de distino aos filsofos; na poca,
philosophus, como aponta Fry (2010) p. 264, n. 70, era um epteto para os tericos pagos, ou ao menos aqueles que
constroem suas reflexes sem o apoio das Sagradas Escrituras. No De doctrina christiana, Agostinho condenar os
philosophi, afirmando que, embora possam ter burilado o ouro e a prata da divina providncia, esto todos fatalmente
alienados da verdade pois no creem em Cristo e devem ser, portanto, evitados ou lidos com precauo (cf. Aug. Doctr.
Christ. 2,60). V. supra Aug. Ep. 40, n. 20.
42 O Velho Testamento e os sacramentos da Lei aparecem como sombras da Revelao em Col 2:17, Hbr 8:5;10:1.
43 Aluso a Ez 20:25; por isso tambm lhes dei estatutos que no eram bons, juzos pelos quais no haviam de viver.
44Agostinho trata da questo da necessidade de jejuar durante o sab em uma carta a Casulano, enviada ca. 397, na qual
conclui que lcito observar tal costume por tradio, sendo ele indiferente para a salvao dos pecados (cf. Aug. Ep.
36,7,15). V. Frst (2002) p. 288, n. 459.
45 Aluso a Rom 3:24, sendo justificados gratuitamente pela sua graa, pela redeno que h em Cristo Jesus.
46Conforme Jernimo discorrera em Hier. Ep. 112,13-16 sobre as heresias judaizantes de Cerinto, dos ebionitas e dos
mineus (ou nazarenos).
47 Agostinho afirma que Pedro agira errado por timor, apreenso, dos judeus, ao contrrio de Jernimo, que afirmara
ter sido por metus, medo (v. supra Hier. Ep. 112, n. 114). Aqui, o bispo de Hipona alinha-se mesma interpretao
que Irineu de Lyon (ca. 130 - 202) e Mrio Vitorino (v. supra Hier. Ep. 112, n. 35) deram a esta passagem (cf. Ir. Haer.
3,12,15; Mar. Vict. In Gal. 2,12-13). V. Hennings (1994) p. 242-247; Frst (2002) p. 290, n. 462.
48 Ebio, v. supra Hier. Ep. 112, n. 81.
49 Nazarenos, v. supra Hier. Ep. 112, n. 85.
50 O termo latino recta fides, v. supra Aug. Ep. 40, n. 38.

)391
Aug. ep. 82

51H, neste final de pargrafo, um jogo de palavras entre pius deductor, observador fiel, e impius violator, violador
mpio; Agostinho compara o primeiro termo a um baiulus corporis, a pessoa responsvel por carregar o corpo de um
morto at a pira durante os funerais, que traduzimos por agente funerrio (cf. Amm. 14,7,17; Sid. Ep. 3,12). O bispo
de Hipona usa imagem semelhante da Lei como sepultura no dcimo sermo descoberto por Dolbeau em 1990 (cf. Aug.
Serm. ed Dolbeau 10,6).
52 Cf. Aug. Ep. 40,4.
53 Fausto (ca. 340 - ca. 410) foi o lder dos maniqueus em Cartago e conhecido do jovem Agostinho. Os autores se
encontraram no ano de 383 e mantiveram contato at a nomeao do Tagastense como professor de retrica em Milo.
O futuro bispo de Hipona nos conta que Fausto era um homem eloquente, mas de cultura limitada (cf. Aug. Conf.
5,3,3;5,6,10-13). Sua grande obra se chama Capitula na qual tentou demonstrar que o ascetismo maniqueu a forma
mais pura de cristianismo, assim como buscou rejeitar os textos do Velho Testamento em favor de uma interpretao
extremista do Novo. V. Brown (2013) p. 47-49 e 317-318 para uma narrativa do papel de Fausto na vida de Agostinho.
Fausto, PCBE p. 390-397 Faustus 1; LThK III p.1199; NDPAC p. 1913-1914.
54 A passagem se encontra em Gal 5:2, eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos
aproveitar. A explicao de Agostinho, por sua vez, est no dcimo-nono livro dos trinta e trs contra o maniqueu
Fausto, Contra Faustum manichaeum libri triginta et tres [PL 42,207-0518], publicado ca. 397/398; o autor faz uma
distino entre a observncia da Lei pelos judeus e pelos gentios ao afirmar: in iis quidem hominibus quos iam talibus
sacramentis institutos eadem fides invenerat, nec cogebatur ista observare, nec prohibebatur; in iis autem qui talibus
vacui, nulla generis, nulla consuetudinis vel congruentiae necessitudine retenti crediderant, etiam prohibebatur: ut per
eos [Iudaeos] iam inciperet apparere, illa omnia propter promittendum Christum fuisse instituta; quo veniente atque
haec promissa adimplente, iam oportere cessare, de fato, naqueles homens <os judeus>, os quais a mesma f
encontrar j institudos em tais sacramentos, no lhes era obrigado, e nem proibido, observ-los; nesses <os gentios>,
porm, que no pertenciam a tais sacramentos, que acreditaram <em Cristo> sem que fosse necessrio, por qualquer
gnero, qualquer tradio, ou qualquer conformidade, ret-los neles, a eles, sim, era proibido: para que Cristo
comeasse a se manifestar atravs deles [i.e., dos sacramentos], tudo isso havia sido institudo em promessa Dele; uma
vez vindo e tendo cumprido tais promessas, convinha ento abandon-los (cf. Aug. C. Faust. 19,17).
55 No sabemos quantos e quais seriam, em especfico, esses carissimi nostri, mas Frst (2002) p. 296-297, n. 471
acredita que eram no s os portadores das cartas, como aqueles que teriam trazido os livros do Contra Faustum para
Jernimo.
56 Cf. Hier. Ep. 112,14.
57 Lc 16:16.
58 Jo 5:18.
59 Jo 1:16-17.
60 Mc 1:44.
61Referncia a Jo 7:10, mas, quando seus irmos j tinham subido festa, ento subiu ele tambm, no
manifestamente, mas como em oculto.
62 Gal 5:2; todo este pargrafo responde a argumentao de Jernimo em Hier. Ep. 112,14.
63 Gal 2:21; trocamos o arcaico debalde por em vo.
64 Gal 5:4.
65 Gal 5:18.
66 Aluso a Rom 7:12, e assim a Lei santa, e o mandamento santo, justo e bom.
67 Rom 7:13.
68 Rom 5:20.
69 Gal 3:19; a ACF traduz semen, grego , como posteridade. Preferimos o mais literal semente; o termo se
refere a Cristo. No mais, Paulo retoma o mesmo juzo em Rom 7:7, que diremos pois? a Lei pecado? De modo
nenhum. Mas eu no conheci o pecado seno pela Lei; porque eu no conheceria a concupiscncia, se a Lei no
dissesse, no cobiars.

)392
Aug. ep. 82

70Em Rom 13:10 e 5:5, respectivamente. O primeiro trecho traz caritas, caridade nesta carta, e dilectio, amor na
Vulgata; o segundo, caritas em ambas as variantes. Mantivemos o amor da ACF, verso para o grego , presente
nos dois trechos do NTG. Agostinho desenvolve essa argumentao, de que o amor a realizao da Lei, em Aug. Ep.
167,16-19.
71 O officiosum mendacium, que Agostinho afirma ser, na realidade, o mesmo que a dispensatoria simulatio de
Jernimo, v. supra Aug. Ep. 28, n. 25 e Hier. Ep. 112, n. 33.
72Agostinho alterna os significados de officiosum, devido, utile, til, e officium, dever. V. supra Aug. Ep. 28, n.
25 sobre o officium, e Aug. Ep. 180, n. 9 para mais um parelhamento entre utile e officiosum.
73Ambrsio de Milo (v. supra Hier. Ep. 112, n. 144) escrevera os trs livros sobre os deveres dos ministrantes da
Sacristia, De officiis ministrorum libri tres [PL 16,23b-184b], publicado ca. 388/389, em imitao do clssico livro
sobre os deveres, De officiis, de Ccero, publicado no ano de ca. 44 a. C. V. Frst (2002) p. 306, n. 482.
74 Esta dvida a mesma dada por Ccero como exemplo do discurso deliberativo, a partir do conhecimento por
consequncia da causa, no De oratore: cognitionis autem tres modi, coniectura, definitio et, ut ita dicam, consecutio [...]
tractatur, cum quid quamque rem sequatur, anquiritur, ut illud, sitne aliquando mentiri boni viri, porm, h trs modos
de conhecimento: a conjectura, a definio e, por assim dizer, a consequncia [...] [que] abordada quando se exanima
o que se segue a cada coisa, como, por exemplo: prprio de um homem bom mentir s vezes? (cf. Cic. De or.
3,113; traduo de Adriano Scatolin, modificada).
75 Mt 5:37.
76 Ps 5:6 <5:7>.
77 canonicus, v. supra Aug. Ep. 28, n. 13.
78A frmula latina dispensatores Christi, isto , os administradores da palavra de Cristo, foi vertida com base na ACF,
que utiliza despenseiros de Cristo (cf. 1 Cor 4:2). Traduzimos assim para diferenciar o termo de praedicatores,
pregadores.
79 1 Cor 4:2.
80 Esta interpretao da etimologia de fides, f, vem de Ccero a partir do De officiis e fundamentada na filosofia
estoica latina. Citamos: [Stoicorum] unde verba sint ducta, credamusque, quia fiat, quod dictum est appellatam fidem,
[os Estoicos], dos quais derivamos estes termos, acreditamos que chamam f o acontecer o que se diz (cf. Cic. Off.
1,23 e Aug. De mend. 41). O latim fides, f, segundo os estoicos, teria relao com o verbo passivo fio, acontecer
ou se fazer, e dicere, dizer. Note-se que o Arpinate logo adiciona, na passagem, que a explicao suspeita de
fato, Ccero no era afeito argumentao etimolgica, a qual considerava uma periculosa consuetudo, uma tradio
perigosa (cf. Cic. N. D. 3,62) mas Agostinho parece no dar ateno ao alerta do autor.
81libertas, v. supra Aug. Ep. 82, n. 13. A expresso libertas caritatis aparece tambm em Aug. Ep. 63,1; 95,4. Frst
(2002) p. 308, n. 490 ao contrrio de Fry (2010) p. 275, n. 115 indica que ela diferente da libertas apostolica de
que fala Agostinho abaixo.
82 O exemplum como Agostinho aqui emprega significa exemplo de vida dos grandes homens, no campo cvico e
tico (cf. Cic. Off. 3,17,69; Phil. 10,2,5). O exemplum tinha papel determinante na conduta moral do cidado romano:
era ele modelo a ser imitado, e exemplo a ser admirado. No mais, h, na mesma orao, um duplo jogo de linguagem
entre posterus/posterior, pstero/posterior, e minor/maior, menor/maior, que preservamos em nossa traduo.
83 Porfrio de Tiro, v. supra Hier. Ep. 112, n. 53.
84 Em Hier. Ep. 112,4-6.
85 No terceiro livro sobre as diferentes punies e remisso dos pecados, De peccatorum meritis et remissione [PL
44,109-200], publicado ca. 411, Agostinho reafirma a superioridade da erudio de Jernimo, ao comentar que, embora
ele mesmo ignore quando os telogos comearam a discutir a questo da origem da alma, ele sabe porm que quod
etiam sanctus Hieronymus, qui hodieque in litteris ecclesiasticis tam excellentis doctrinae fama ac labore versatur, ad
quasdam solvendas in suis libris quaestiones, etiam hoc certissimum adhibet sine ulla disceptatione documentum, mas
tambm o santo Jernimo, que, de excelente e afamada erudio, e com esforo, at hoje est ativo na literatura crist; o
mesmo traz, nesse assunto, e a fim de resolver problemas especficos em seus livros, uma constatao confiabilssima
sem uma nica ambiguidade (cf. Aug. Pecc. Mer. 3,12; tambm Hier. Adv. RuFin. 2,10-11).
86 Apolinrio de Laodiceia, v. supra Hier. Ep. 112, n. 39.

)393
Aug. ep. 82

87 O velho herege Alexandre, v. supra Hier. Ep. 112, n. 40.


88 Orgenes, v. supra Aug. Ep. 28, n. 12.
89 Ddimo, v. supra Hier. Ep. 112, n. 38.
90 Esta afirmao se esclarece atravs da polmica origenista, que tomou a cristandade latina nos anos finais da dcada
de 390. Nessa poca, Jernimo mudava sua opinio acerca de Orgenes, autor que fora imensamente influente na
elaborao de seus comentrios e exposies, o que explica em partes sua rixa com Rufino (cf. Hier. Adv. RuFin.
3,9;3,27). Agostinho j havia feito a mesma observao anteriormente, e tambm havia pedido uma avaliao
dogmtica da obra de Orgenes a Jernimo (cf. Aug. Ep. 28,2; 40,9). V. Frst (2002) p. 311, n. 498.
91 Eusbio de meso, v. supra Hier. Ep. 112, n. 41.
92 Teodoro de Heracleia, v. supra Hier. Ep. 112, n. 42.
93 Joo Crisstomo, v. supra Hier. Ep. 112, n. 54.
94Ambrsio de Milo, v. supra Hier. Ep. 112, n. 144. No sabemos a qual obra de Ambrsio se refere Agostinho; Frst
(2002) p. 40-41 acredita que trata-se antes do conjunto de escritos do Ambrosiastro. V. no caso Hennings (1994) p.
247-249.
95 Ceclio Cipriano Afer (ca. 200 - 258), o Africano, bispo de Cartago, foi um dos mais importantes pensadores cristos
latinos de sua poca. Um dos patriarcas do Ocidente, sua obra serviu de base para todos os autores que lhe sucederam;
Agostinho foi especialmente influenciado por ele, uma vez que Cipriano foi um dos fundadores da tradio africana na
Igreja. Sua obra extante, incluindo suas epistulae, das quais Agostinho tem em mente Cip. Ep. 71,3 nesta passagem, est
reunida no volume 4 da Patrologia Latina. Cipriano de Cartago, cf. Hier. Vir. ill. 67; LThK II p.1364-1366; NDPAC p.
1029-1034. V. Hennings (1994) p. 240-242; Frst (2002) p. 40, n. 89.
96 Em latim, a construo ingenua servitus um oxmoro que coordena ingenuus adjetivo que indicava, em sua
origem, uma caracterstica prpria dos homens nascidos livres (cf. Gai. Inst. 1,11) e servitus que justamente a
servido ou escravido, a condio de um servus (cf. Cic. Phil. 6,7,19). Ao longo da histria romana, porm, o ingenuus
j havia perdido sua especificidade por derivao aplica-se tambm a outras caractersticas dos homens livres, j em
Ccero, cf. Cic. Fam. 2,6,2;13,27,1 e Fin. 5,18,48 para tornar-se, no latim tardio, algo como de livre vontade, e,
mais tardiamente, prximo do nosso ingnuo ou genuno. Optamos por traduzir ingenua servitus como servido
voluntria, assim tentando preservar a especificidade da locuo. Labourt (1963) vol. VI, p. 67 d a opo loyale
dpendance; Fry (2010) p. 277, n. 134 d a alternativa servitude librement consentie; Frst (2002) p. 313 traduz
como freiwillig Gehorsam. possvel aprofundar as implicaes do termo atravs da noo que Agostinho tem de
livre abtrio: inato ao homem, mas na medida em que lhe deixa livre para servir a Deus como um escravo serve a um
Senhor, por quem a liberdade lhe foi concedida; nos contentamos entretanto com essa breve explanao em nota.
97 Novamente, Gal 1:20.
98 Em latim, libertas apostolica, conceito-chave com o qual Agostinho resolve o problema de Gal 2:11-14. A libertas
apostolica a traduo latina que Agostinho d para o grego presente nas cartas de Paulo (cf. 2 Cor 3:17).
Nos tempos do Novo Testamento, os apstolos, na condio de pregadores da palavra divina, detinham uma liberdade
especfica que lhes dava o direito de ministrar os ensinamentos de Deus de maneira diferente aos judeus e aos pagos.
No caso da argumentao acerca da carta aos Glatas, a libertas apostolica diz respeito legitimidade dos apstolos
ministrarem as celebraes dos judeus verdadeiramente entre e para os judeus convertidos. V. Frst (1999) p. 32-53;
id. (2002) p. 46-47 e 314, n. 507.
99 Cf. Aug. Ep. 40,6 e Hier. Ep. 112,17.
100 1 Tim 4:4.
101 Referncia a Rom 11,17-18. O zambujeiro enxertado assim a ACF traduz insertum oleastrum refere-se aos
gentios, ao passo que os ramos naturais, naturales rami em latim, indicam os judeus. A passagem toda segue, e se
alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo zambujeiro, foste enxertado em lugar deles, e feito participante da raiz e
da seiva da oliveira, no te glories contra os ramos; e, se contra eles te gloriares, no s tu que sustentas a raiz, mas a
raiz a ti.
102H aqui um eco da descrio feita do conjurador Lcio Catilina (108 - 62 a. C.) pelo historiador romano Salstio (86
- 34 a. C.), a saber: aliud clausum in pectore, aliud in lingua promptum habere, ter uma coisa escondida no peito, e
outra na ponta da lngua (cf. Sall. Catil. 10,5).
103 Neste final de pargrafo, h duas referncias ao Evangelho de Mateus, cf. Mt 7:22 e 22:39.

)394
Aug. ep. 82

104 Gal 6:1.


105As epistulae conscriptae referem-se s cartas que foram copiadas e arquivadas pelos librarii (v. infra Hier. Ep. 126,
n. 34), em vista de preserv-las e eventualmente retom-las para escrever uma resposta. Em relao a isso afirma Caio
Jlio Vtor que rescribere sic oportet, ut litterae, quibus respondes, prae manu sint, ne quid, cui responsio opus sit, de
memoria effluat, convm reescrever de modo que se tenha em mos as cartas que respondemos, para que nada que
necessita de resposta escape da memria (cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27). V. Arns (2007) p. 176.
106Cipriano presbtero, v. supra Aug. Ep. 71, n. 2. Cipriano havia entregue a carta Aug. Ep. 71 a Jernimo, o qual por
sua vez enviara pelo mesmo mensageiro a carta Hier. Ep. 105 ao bispo de Hipona.
107 Em Hier. Ep. 105,4.
108 Aluso a Gal 4:19.
109 Aqui se faz aluso ao tpico do alter ego, v. supra Aug. Ep. 28, n. 8.
110 Necessitudinis iura, leis da cordialidade, v. supra Hier. Ep. 105, n. 28.
111Citao do verso 68 da Andria de Terncio, obsequium amicos, veritas odium parit o favor produz amigos; a
verdade, o dio. A noo j era tpica (cf. Otto p. 368 veritas 3); dela Jernimo faz uso tambm em outras obras (cf.
Hier. In Gal. 4,16; Adv. Pel. 1,27).
112
Pr 27:6. A passagem semelhante a Cic. Lael. 90, esta citada em Aug. Ep. 73,4; v. supra Aug. Ep. 73, n. 15.
Ambrsio (cf. Ambros. Off. 3,128), Jernimo (cf. Hier. in Eccles. 7,6-7) e Agostinho (cf. Aug. Ep. 93,4) fazem uso do
mesmo provrbio noutros lugares.
113 A veritas quae debetur amicitiae, a verdade que se deve amizade, j aparece no De amicitia de Ccero, como
veritas, sine qua nomen amicitiae valere non potest, a verdade, sem a qual a noo de amizade no significa nada (cf.
Cic. Lael. 92). No pargrafo seguinte, Agostinho fala de uma sinceritas amicitiae, sinceridade da amizade; tambm
em Aug. Ep. 202A,4. Discutimos a relao da amizade com as regras de conduta e a escrita de cartas longamente na
introduo, em especial na parte sobre os contextos da epistolografia.
114Cf. Aug. Ep. 67,2. O liber aqui mencionado seria a carta Aug. Ep. 40, e as referncias seguintes so as reaes de
Jernimo em Hier. Ep. 102 e 105.
115 , v. supra Aug. Ep. 40, n. 29.
116 No latim, honorum vocabula traz mente, de imediato, o cursus ou gradus honorum, o caminho ou escala das
honras percorrido pelos polticos romanos, do magistrio ao consulado (cf. Liv. 32,7;40,44). Traduzimos por termos
polticos, pois acreditamos significarem exatamente isso. Agostinho deixa implcito neste pargrafo algo que Jernimo
diz expressamente em Hier. Ep. 146 a Evngelo: que o bispado foi uma inveno dos cristos posteriores aos apstolos
a fim de determinar a hierarquia eclesistica, e que, embora os presbyteri sejam subordinados ao episcopus, na poca do
Novo Testamento bispo ainda era um sinnimo de presbtero.
117 Em Aug. Ep. 28,2 e 71,4-5 e Hier. Ep. 112,20-22.
118Os judeus que traduziram antes da vinda do Senhor seriam os setenta e dois tradutores contratados por Ptolomeu II
Filadelfo (309 - 246 a. C.) para preparar a Septuaginta (v. supra Aug. Ep. 28, n. 15).
119Os outros tradutores seriam o judeu quila de Snope, Teodocio, Smaco o Ebionita e o prprio Orgenes, aquele
que os reuniu na Hxapla (v. supra Hier. Ep. 112, n. 126).
120 Trata-se de Hier. Ep. 57 de Jernimo a Pamquio, intitulada de optimo genere interpretandi (v. supra Hier. Ep. 112,
n. 146).
121 Que a obscuridade e dificuldade de algumas passagens bblicas permite diversas explicaes, desde que estejam de
acordo com os princpios de uma nica f, eis um lema que Agostinho repetir diversas vezes em suas obras de
maturidade. Damos um exemplo: em uma carta a Paulino de Nola (ca. 354 - 431), o bispo de Hipona afirma que utile
est ut de obscuritatibus divinarum Scripturarum, quas exercitationis nostrae causa Deus esse voluit, multae inveniantur
sententiae, cum aliud alii videtur, quae tamen omnes sanae fidei doctrinaeque concordent, til que encontremos
diversas concluses sobre as obscuridades das divinas Escrituras; Deus quis que elas nos servissem de exerccio.
Quando algum tem outra opinio, porm, que todas estejam de acordo com a pureza da f e da doutrina (cf. Aug. Ep.
149,34; tambm Conf. 12,42; In Psalm. 18; Serm. 2,4; Nat. et grat. 70 e C. Iulian. 1,22). V. Frst (2002) p. 331, n. 543
122 Sobre os textos da Vetus Latina, v. supra Aug. Ep. 71, n. 22.

)395
Aug. ep. 82

123 Jernimo discutira a questo da cucurbitas, aboboreira, em Hier. Ep. 112,22, e tambm a citara em Hier. Ep. 115;
v. supra Hier. Ep. 112, n. 158. A passagem bblica est em Jon 4:6. revelia da explicao do Estridonense, Agostinho
acaba preferindo a leitura aboboreira no lugar de hedra, ainda que traduza incorretamente o termo hebraico, por ser
mais prxima do grego presente na Septuaginta. O bispo de Hipona retomar sua escolha no s aqui, como
tambm em Aug. Ep. 149,35-37 e Gen. ad. litt. 9,14.
124 Tratam-se, naturalmente, de Hier. Ep. 105, 112 (levadas por Cipriano) e 115 (levada por Firmo).

)396
EPISTVLAE MVTVAE
(CARTAS)

)397
SEGUNDO PERODO
412/415 - 419

)398
16

Jernimo Ep. 126 / Agostinho Ep. 165


Jernimo a Marcelino e Anapsquias
[412]

A correspondncia entre Jernimo e Agostinho entrou, no ano de 405, em um hiato aps o bispo de Hipona ter

enviado sua Aug. Ep. 82. Sete anos se passaram at que Jernimo retomou a comunicao de maneira indireta, atravs

da carta Hier. Ep. 126, enviada no ano de ca. 4121 a Flvio Marcelino, um tribunus do Imprio e secretrio pessoal do

Imperador Honrio, e a Anapsquias, sua esposa. O casal desejava tirar dvidas com o monge sobre uma importante

questo da filosofia crist, particularmente espinhosa na poca porque central para os debates que circulavam nos

cenculos ortodoxos e heterodoxos ps-Niceia: a origem da alma humana.

Essa carta, que uma resposta a uma outra ou a algumas outras de Marcelino, as quais foram perdidas,

inicia-se com uma breve salutatio, seguida de um exrdio ainda mais breve, no qual o monge confessa seu desejo em

persistir no dilogo epistolar com seus correspondentes. No mesmo pargrafo inicia-se, ento, a narratio, na qual so

elencadas as cinco opiniones, hipteses ou teorias, sobre a origem da alma humana em voga no perodo: a do pr-

existencialismo, a da (ou jorro) da substncia divina, a do tesouro, a do criacionismo defendida por

Jernimo e a do traducionismo de maior tradio entre os latinos, e qual Agostinho se alinha.

A carta segue com breves menes do atual ordo rerum em Belm. Na poca, o monge preparava os livros de

comentrios ao profeta Ezequiel, trabalho interrompido pelas notcias que ele ento recebera do saque de Alarico em

Roma, e da investida dos godos nas provncias ocidentais (isto , a Glia, a Itlia e a Hispnia), assim como do ataque

que ele mesmo sofrera dos brbaros cuja violncia foi to grande que dela o autor quase no escapou. Recuperado

desse susto, Jernimo continuou seu ofcio, pois menciona que j finalizou dois livros, os quais enviou a Fabola, e que

est tambm para concluir os outros. A carta termina com uma breve recomendao de Marcelino e Anapsquias a

Oceano, aristocrata romano e um dos protetores de Jernimo.

Segundo a diviso de Pseudo-Demtrio, essa carta seria um exemplo de resposta2, embora a razo real da

missiva seja dupla: trata-se tanto de um retorno sobre uma questo, quanto de uma dupla recomendao: a dos

destinatrios a Oceano, com quem Marcelino e Anapsquias desejavam firmar contato, assim como a recomendao de

Agostinho a esses para sanar suas dvidas. Sabemos que Marcelino seguiu as orientaes de Jernimo e assim foi

procurar o parecer do bispo de Hipona, pois este menciona explicitamente que o tribunus o visitou diversas vezes em

trs cartas escritas nesse perodo3, alm de ele ter enviado uma carta a Marcelino4 . Consideremos, portanto, Hier. Ep.

126 uma carta de situao mista na diviso de Pseudo-Libnio: nenhuma delas central, mas algumas, entre elas a da

)399
resposta5 , da recomendao, do relato, e da instruo, so elencadas com igual enfoque. A elocutio breve e ponderada;

a escrita nos parece mais direta e concisa, com nada menos que trs citaes, duas de autores clssicos, Virglio e

Ccero, e uma da Bblia, alm de ecos do livro do Eclesiastes, bem ao gosto de uma epistula familiaris, permeada de

alguns tpicos do gnero (a insistncia em respostas, os votos de boa-sade), e desprovida de um argumento oneroso

como Hier. Ep. 112 e Aug. Ep. 82. Por fim, Jernimo no menciona qual foi o baiulus que levava esta carta. Podemos,

todavia, arriscar e deduzir que o monge teria usado as vias oficiais do correio imperial, o cursus publicus, para faz-la

chegar at Marcelino, uma vez que este era um funcionrio do alto escalo.

1 Goldbacher (1923) vol. V, p. 43; Fry (2010) p. 291-293.


2 Cf. Ps.-Dem. 14.
3 A saber, Aug. Ep. 166,7-8 enviada a Jernimo; 169,13 enviada a Evdio; 190-17-20 enviada a Optato. Embora essas
trs cartas faam meno a correspondncia entre Jernimo e Agostinho, e tratem da mesma questo sobre a origem da
alma humana, somente a primeira, Aug. Ep. 166, faz tradicionalmente parte da correspondncia entre os autores,
decerto por ser destinada ao monge de Belm.
4 A saber, Aug. Ep. 143. Ao contrrio das cartas citadas anteriormente, isto , Aug. Ep. 166, 169 e 190, essa carta no
faz meno a Jernimo (e sequer figura na ordo epistularum do monge), embora trate tambm do problema sobre a
origem da alma humana. Deve-se pensar que Marcelino entrara em contato com Agostinho mesmo antes de receber a
carta Hier. Ep. 126 (Aug. Ep. 165)? Ou as cartas teriam sido datadas de maneira errada, sendo Aug. Ep. 143 posterior a
Hier. Ep. 126?
5 Cf. Ps.-Lib. 23;70.

)400
Hier. ep. 126

Dominis vere sanctis atque omni officiorum caritate venerandis filiis Marcellino et
Anapsychiae Hieronymus in Christo salutem.

1. Tandem ex Africa vestrae litteras unanimitatis accepi; et non me poenitet impudentiae, qua
tacentibus vobis epistulas meas frequenter ingessi, ut rescriptum mererer, et vos esse sospites,
non aliis nuntiantibus, sed vestro potissimum sermone cognoscerem. Super animae statu memini
vestrae quaestiunculae, immo maximae ecclesiasticae quaestionis: utrum lapsa de caelo sit, ut
Pythagoras philosophus, omnesque Platonici, et Origenes putant; an Dei substantiae,
ut Stoici, Manichaeus, et Hispana Priscilliani haeresis suspicantur; an in thesauro habeantur Dei
olim conditae, ut quidam ecclesiastici stulta persuasione confidunt; an quotidie a Deo fiant, et
mittantur in corpora, secundum illud quod in evangelio scriptum est: Pater meus usque modo
operatur, et ego operor; an certe ex traduce, ut Tertullianus, Apollinaris, et maxima pars
Occidentalium autumant; ut, quomodo corpus ex corpore, sic anima nascatur ex anima, et simili
cum brutis animantibus conditione subsistat. Super quo quid mihi videretur, in opusculis contra
Ruffinum scripsisse me novi, adversus eum libellum, quem sanctae memoriae Anastasio
episcopo Romanae Ecclesiae dedit, in quo lubrica et subdola, immo stulta confessione, dum
auditorum simplicitati illudere nititur, suae fidei, immo perfidiae illusit; quos libros reor
sanctum parentem vestrum habere Oceanum. Olim enim editi sunt, multis Ruffini libris
adversus calumnias respondentes. Certe habes ibi virum sanctum et eruditum Augustinum
episcopum, qui viva, ut aiunt, voce docere te poterit, et suam, immo per se nostram explicare
sententiam.
2. Ezechielis volumen olim aggredi volui, et sponsionem creberrimam studiosis lectoribus
reddere; sed in ipso dictandi exordio ita animus meus Occidentalium provinciarum, et maxime
urbis Romae vastatione confusus est, ut iuxta vulgare proverbium, proprium quoque ignorarem
vocabulum; diuque tacui, sciens tempus esse lacrymarum. Hoc autem anno cum tres
explicassem libros, subitus impetus barbarorum, de quibus tuus dicit Virgilius: Lateque
vagantes Barcaei, et sancta Scriptura de Ismahel: Contra faciem omnium fratrum suorum
habitabit, sic Aegypti limitem, Palaestinae, Phoenices, Syriae percurrit ad instar torrentis
cuncta secum trahens, ut vix manus eorum misericordia Christi potuerimus evadere. Quod si,
iuxta inclytum oratorem, silent inter arma Leges, quanto magis studia Scripturarum, quae et
librorum multitudine, et silentio, ac librariorum sedulitate, quodque vel proprium est, securitate
et otio dictantium indigent! Duos itaque libros misi sanctae filiae meae Fabiolae, quorum
)401
Hier. ep. 126
exempla si volueris, ab ipsa poteris mutuari. Pro angustia quippe temporis alios describere non
potui; quos cum legeris et vestibula videris, facilis coniectura erit, qualis ipsa futura sit domus.
Sed credo in Dei misericordia, qui nos adiuvit in difficillimo principio supra dicti operis, quod
ipse adiuvet et in penultimis prophetae partibus, in quibus Gog et Magog bella narrantur; et in
extremis, in quibus sacratissimi et inexplicabilis templi aedificatio, varietas, mensuraque
describitur.
3. Sanctus frater noster Oceanus, cui vos cupitis commendari, tantus et talis est, et sic eruditus
in lege Domini, ut, absque nostro rogatu, instruere vos possit, et nostram super cunctis
quaestionibus Scripturarum pro modulo communis ingenii explicare sententiam. Incolumes vos
et prolixa aetate florentes Christus Deus noster tueatur omnipotens, domini vere sancti.

)402
Hier. ep. 126

Jernimo envia saudaes em nome de Cristo aos filhos1 Marcelino2 e Anapsquias3 ,


senhores verdadeiramente santos e reverenciveis com todas as devidas afeies4 .

1. Enfim recebi da frica a carta de vossa unanimidade5; no me incomoda minha ousadia em


ter, malgrado vosso silncio, insistido com frequncia em minhas cartas para que eu merecesse
uma resposta, e assim soubesse que vs estais seguros, no pelas notcias de terceiros, mas
maiormente por vossas prprias palavras. Lembro-me de vossa questozinha sobre a condio
da alma: por certo, trata-se de uma das mais importantes questes da Igreja, saber se ela caiu do
cu, como pensam o filsofo Pitgoras6, todos os platnicos7 e Orgenes8 ; ou se ela uma
9 da substncia divina, como pretendem os estoicos10 , os maniqueus11 e o herege
hispnico Prisciliano12; ou se elas, uma vez estabelecidas, pertencem ao tesouro de Deus, como
professam alguns eclesisticos13 em estpida convico; ou se elas so criadas e enviadas aos
corpos todos os dias por Deus, de acordo com o que est escrito no Evangelho: meu Pai
trabalha at agora, e eu trabalho tambm14; ou se, ainda, elas so resultado de uma transmisso,
como Tertuliano15 , Apolinrio16 e a maior parte dos ocidentais17 sustentam que, da maneira
como um corpo nasce de outro, assim a alma nasce da alma e existe numa condio semelhante
aos seres vivos irracionais18 . Sobre esse assunto, sei que escrevi outrora o que me pareceu
conveniente nas obrinhas contra Rufino19, em oposio ao livresco20 que ele dedicou a
Anastcio21, bispo da igreja de Roma, em santa memria; nesse livro, usando de uma profisso
de f movedia e enganosa, pior, uma f estpida, que pretendia se aproveitar da simplicidade
de seus espectadores22, ele acabou por usar sua prpria f, ou melhor, sua m f, de maneira
oportunista. Aqueles livros, creio eu, vosso santo pai Oceano23 os tem; eles foram ento
publicados em resposta s calnias de Rufino, em muitos de seus livros. Por certo, tu tens a um
homem santo e erudito, o bispo Agostinho, que poderia te ensinar, como dizem, ao vivo24 , e que
poderia te explicar com suas prprias palavras a concluso dele, ou melhor, a nossa concluso.
2. O livro de Ezequiel25, faz tempo que eu quis abord-lo, e assim cumprir uma promessa feita
muitas vezes aos meus leitores dedicados; no momento em que eu ditava o exrdio, porm, o
meu esprito foi tomado por tamanha confuso devido devastao das provncias ocidentais,
principalmente de Roma26, que, como diz o provrbio popular, eu no sabia nem meu prprio
nome27 ; calei-me longamente, sabendo que o tempo era de lgrimas28 . Neste ano, porm, aps
eu ter j explicado trs livros <de Ezequiel>, a investida dos brbaros29 dos quais diz o teu
Virglio30: e larga soltos os Barceus vagantes31 ; e a Santa Escritura diz de Ismael: habitar
)403
Hier. ep. 126
diante da face de todos os seus irmos32 foi to repentina que, percorrendo os confins do
Egito, da Palestina, da Fencia e da Sria como um furaco que devasta tudo por onde passa,
quase que no conseguimos escapar, com a misericrdia de Cristo, das mos deles. Mas, se,
segundo o ilustre orador, se as armas falam, as leis se calam33, quo mais o estudo das
Escrituras, apoiado numa multido de livros e no silncio e no zelo dos secretrios34, e tudo o
que lhe prprio quo mais ele carece da segurana e da tranquilidade daqueles que ditam!
Assim, enviei dois livros35 minha filha santa, Fabola36 , cujas cpias, se quiseres, poders
pegar emprestadas dela; foi pela falta de tempo, enfim, que no consegui copiar os outros.
Quando os leres e distinguires a fachada, vai ser fcil conjecturar como ser a prpria casa. Mas
creio na misericrdia de Deus que nos ajudou no incio muito difcil da obra mencionada acima,
pois Ele mesmo nos ajudar nas penltimas partes do profeta, nas quais so narradas as guerras
de Gogue e Magogue37, e tambm nas ltimas, nas quais se descreve a construo, o formato e o
tamanho do templo mais sagrado e inexplicvel38 .
3. Nosso irmo santo, Oceano, a quem vs desejais recomendao, um homem to
importante, to nobre, e to estudado na lei do Senhor que pode vos instruir sem necessidade de
nossa solicitao, e, na medida de uma inteligncia mtua, explicar nossa concluso sobre todas
as questes das Escrituras. Que Cristo Nosso Deus Todo-Poderoso vos proteja inclumes e por
muitos anos de vida, senhores verdadeiramente santos39 .

)404
Hier. ep. 126
NOTAS

1 O filius indica subordinao na comunidade crist, sendo, portanto, diferente do frater, que indica igualdade, e do
dominus, que indica superioridade. Marcelino e Anapsquias, como leigos, so filhos que devem obedecer e ser
zelados por seus pais, os papae, sejam eles monges, bispos, ou presbteros. O apelativo fundamenta-se na concepo
da igreja como uma famlia.
2 Flvio Marcelino, tribuno da provncia da frica, catlico leigo, alto funcionrio do escalo imperial, um dos
confidentes do imperador Honrio no Ocidente. Marcelino presidiu a collatio em Cartago em 411, em que foram
condenados os donatistas (cf. Aug. brev.), e teve papel importante na luta contra os pelagianos (cf. Aug. Gest. Pelag.
25). Suspeito de traio e heresia, Marcelino foi executado em 413, mas, por intermdio de Agostinho e Orsio, teve
sua memria reabilitada j em 414 (cf. Aug. Ep. 151,8-9). A Marcelino, ainda, Agostinho dedicou os dois primeiros
livros da Cidade de Deus (cf. Aug. Civ. 1 praef) e duas cartas (cf. Aug. Ep. 139 e 143), entre outras obras. J das cartas
de Jernimo a Marcelino, embora os estudiosos considerem que havia mais de uma, nosso nico testemunho esta Hier.
Ep. 126. Flvio Marcelino, cf. PLRE II p. 711-712 , Marcellinus 10; PCBE 1 p. 671-688 Flavius Marcellinus 2;
NDPAC p. 3011-3012. V. Frst (2002) p. 22, n. 21. Para seu papel na vida de Jernimo, v. Kelly (1975) p. 304-305; na
de Agostinho, v. Moreau (1973); Brown (2013) p. 290-291, 330-339 e 344-346.
3Anapsquias era esposa de Flvio Marcelino, e dela nada sabemos alm disso. Anapsquias, cf. PLRE II, Anapsychia,
p. 76; PCBE 1, Anapsychia, p. 68.
4 No latim, omni officiorum caritate, com toda afeio dos deveres. A expresso traz mente o dever cvico frente
vida poltica. Pode-se conjecturar que ela se relaciona com o adjetivo venerandus na salutatio: o verbo venero era
comumente endereado aos deuses e seres divinos, como o imperador e seus funcionrios. A forma especiosa de dirigir-
se a Marcelino, figura importante do escalo poltico imperial, distingue-se da maneira com que Jernimo sada seus
pares: basta comparar a maneira com que ele se dirige a Agostinho nas outras cartas, como venerabilis, venervel, e
beatissimus, muitssimo abenoado etc. Para a carga semntica de officium, v. supra Aug. Ep. 28, n. 25; uma
expresso semelhante, officium salutationis, v. supra Hier. Ep. 103, n. 4.
5 O apelativo usado por Jernimo vestra unanimitas, que ecoa tanto a unio do matrimnio quanto a unio da f
catlica; cf. Blaise p. 856 unanimitas. V. Fry (2010) p. 297, n.6.
6 Pitgoras de Samos (ca. 570 a. C. - 495 a. C.), filsofo, matemtico e mstico grego do perodo arcaico. Pitgoras
acreditava que a alma, atemporal e incorprea, era imortal e deixa de ser matria no momento da morte, para migrar de
um corpo para outro, teoria que ficou conhecida como , a transmigrao da alma. Esta teoria
desemboca nas hipteses do pr-existencialismo da alma, duramente criticadas por Agostinho (cf. Aug. Ep. 166,6).
Alm disso, o adjetivo philosophus, nota Fry (2010) p. 298, n. 9, perfrase para os tericos pagos na poca (v. supra
Aug. Ep. 82, n. 41). Discordamos, porm, da afirmao da tradutora de que o neoplatonismo encontrava-se
marginalizado pelo cristianismo, pois no o que atesta, no nosso entender, a prpria formao de Agostinho. A
influncia dos neoplatnicos na filosofia crist, em especial no pensamento do bispo de Hipona, duradoura e
pertinente, como o mesmo comenta em uma carta (cf. Aug. Ep. 118,16-21). Pitgoras e pitagricos, cf. LThK VIII p.
748-750.
7 Os Platonici mencionados por Jernimo so os neoplatnicos, os estudiosos de Plotino e Porfrio, vindos da Segunda
Sofstica, e no os discpulos diretos de Plato na Academia. Ao longo do sculo IV, o neoplatonismo foi a corrente
filosfica mais em voga entre as elites greco-romanas, tanto as pags quanto as crists; tratava-se de um tipo de lngua
franca entre os intelectuais da Antiguidade Tardia. O prprio Agostinho flertou, quando jovem, com os neoplatnicos
de Milo, entre os quais Zenbio, Mnlio Teodoro, Hermogeniano e Mrio Vitorino. O autor relembra, mais tarde em
sua vida, essa fase de sua vida com palavras desaprovadoras: em uma carta enviada em 410 a Discoro, que lhe pedira
uma crtica aos livros de Ccero, e quando j beirava os sessenta anos, o bispo de Hipona diz: falsorum philosophorum
erroribus illo tempore circumlatrantibus [...] [Platonici] emergere coeperant, ad proferendum atque aperiendum quid
Plato sensisset. tunc Plotini schola Romae floruit, habuitque condiscipulos, multos acutissimos et solertissimos viros,
naquele tempo, em que os erros dos falsos filsofos circulavam como latidos de ces [...] [os neoplatnicos]
comearam a aparecer, a fim de propagar e explicar os ensinamentos de Plato. Ento a escola de Plotino floresceu em
Roma, teve diversos discpulos, vrios deles muito inteligentes e brilhantes (cf. Aug. Ep. 118,33). V. Brown (1989) p.
70-80 para uma considerao desse cenrio cultural.
8 Orgenes, v. supra Aug. Ep. 28, n. 12.

)405
Hier. ep. 126

9 O grego equivale aos termos latinos fluxus ou effluxio, corrente ou jorro (cf. Schrevelius p. 82). A
hiptese da , de que a alma partilha da mesma substncia de Deus, vinha desde as teorias estoicas da
corporeabilidade do universo, e que ainda eram sustentadas pelos maniqueus e pelos priscilianistas. Ao passo que o
estoicismo j est fora de moda na poca (cf. Aug. C. Acad. 1,2), o fantasma do maniquesmo e o perigo do
priscilianismo ainda eram recentes, e reais. Ambos esses grupos apostavam em um dualismo alma-corpo em que a alma,
pura, estava condenada a viver em um corpo sujo e corrompvel, binaridade que ser duramente criticada por Agostinho
em sua produo de maturidade (cf. Aug. C. Priscill. 1,4). V. Ratzinger (1959); Frst (2002) p. 61, n. 160.
10 O estoicismo uma escola filosfica fundada em Atenas por Zeno de Ctio no sculo III a.C. Seus representantes
mais conhecidos foram, na Grcia, Cleantes de Assos (330 - 230 a. C.) e Crsipo de Slis (280 - 208 a. C.); em Roma, o
filsofo Sneca (ca. 4 a. C. - 65 d. C.) e o imperador Marco Aurlio (121 - 180 d. C.). Os estoicos defendiam que a alma
era um corpo que emana do , o esprito do mundo, um tipo de sopro gneo e vital que coloca o universo em
movimento e une todas as coisas. Diz Sneca em uma carta que omne hoc quod vides, quo divina atque humana
conclusa sunt, unum est; membra sumus corporis magni, tudo o que vs, seja divino ou humano, est unido, uma
coisa s; ns somos todos membros de um grande corpo (cf. Sen. Ep. 95,2). Aqui, Jernimo inclui a hiptese estoica
sobre a alma entre as variantes da , que na realidade foi um termo que se propagou apenas no perodo cristo.
11Segundo Jernimo, os maniqueus defendiam que a alma era um jorro puro da substncia divina, com a qual
compartilhava a mesma natureza. V. supra Hier. Ep. 112, n. 102.
12Prisciliano (? - 385) foi bispo de vila, na Hispnia, e telogo que fundou um movimento asctico que, embora
condenado no Snodo de Bordeaux em 384, perdurou at o sculo sexto. Semelhante aos maniqueus e posteriormente
aos pelagianos, Prisciliano e seus seguidores buscavam a perfeio da alma, uma vez que, para eles, a substncia da
alma era da mesma natureza de Deus. Prisciliano foi denunciado como um maniqueu em 381 e posteriormente
executado em 385, a mando do imperador Mximo. Prisciliano e priscilianismo, cf. Hier. Vir. ill. 121; LThK VIII p.
599-601; NDPAC p. 4333-4335. V. Kelly (1977) p. 344-345.
13 Difcil determinar quem so esses eclesisticos que defendiam a tese do pr-existencialismo da alma. Frst (2002)
p. 336-337, n. 560 prope alguns nomes, entre os quais Arnbio o Velho (? - ca. 330), mas a afirmao depreciativa do
Estridonense no se presta a cit-los.
14 Jo 5:17
15 Quinto Septmio Florncio Tertuliano (ca. 160 - ca. 255) foi um dos mais brilhantes pensadores cristos da Igreja
primeva, adepto da teoria traducionista da alma, como Jernimo aqui indica. Nascido em Cartago, Tertuliano foi o
primeiro escritor cristo latino cuja obra nos parcialmente extante; seus livros lanaram as bases da Sacristia africana,
a qual posteriormente seria refinada por Cipriano de Cartago e Agostinho de Hipona. Entre suas obras, destacamos o
tratado contra os herticos, De praescriptione haereticorum [PL 2,9-74a], e o tratado sobre a alma, De anima [PL
2,641-752b]; hoje, as mais conhecidas talvez sejam o apologtico em defesa dos cristos, o Apologeticum [PL
1,257536a] e um tratado sobre os espetculos, o De spectaculis [PL 1,627-662b], no qual o autor condena
veementemente os jogos ldicos e circenses dos romanos. Imensamente influente, seus textos se encerram nos volumes
1-2 da PL. Tertuliano, cf. Hier. Vir. ill. 53; LThK IX p. 1344-1349; NDPAC p. 5303-5317.
16 Apolinrio de Laodiceia, v. supra Hier. Ep. 112, n. 39.
17O adjetivo latino occidentales diz respeito s provncias do Ocidente, que estavam sob o comando do imperador
Honrio, e a seus habitantes, dando-se em oposio s orientales, as quais eram governadas, por sua vez, pelo
imperador Teodsio II. O termo occidens apareceu anteriormente em Hier. Ep. 103,1.
18O latim bruti animantes refere-se aos animais desprovidos de inteligncia, portanto, seres vivos irracionais. A ideia
que a alma, como esses seres, no tem vontade prpria e descende de uma nica alma, a de Ado, reproduzindo-se por
protognese.
19Referncia apologia contra Rufino, publicada em idos de 396 (v. supra Hier. Ep. 102, n. 18). Nesta obra, Jernimo
discute a origem da alma em Adv. Ruf. 2,4;10 e 3,28. Cabe notar que Rufino j estava morto a essa altura.
20Trata-se da apologia que Rufino enviara em sua defesa a Anastcio, ento bispo de Roma, no ano de 399 [PL
21,623-628a]. Na mesma poca, Rufino escrevera os livros da apologia contra Jernimo (v. supra Aug. Ep. 73, n. 24).
21 Anastcio I (? - 402) foi bispo de Igreja de Roma at 399, ano em que foi eleito papa, cargo que ocupou at sua
morte, trs anos depois. Durante seu pontificado, Anastcio convocou o conclio onde os escritos de Orgenes foram
condenados. Algumas de suas cartas e decretos esto reunidos em PL 20,51a-80a. A meno a este papa relacionada
com a polmica origenista: Anastcio I fora um protetor de Rufino; v. Kelly (1975) p. 246-254. Anastcio I, cf. LThK I
p. 602; NDPAC p. 271-272.

)406
Hier. ep. 126

22 O latim auditor refere-se queles que assistiam s lies dos filsofos e s pregaes dos padres nas missas. Sua
origem est obviamente no verbo audire, escutar. Optamos por um termo semelhante em portugus, espectador,
visto que o ensino, na poca, se dava viva voce em assembleias. Uma outra possibilidade, embora de menos fora, seria
alunos (cf. Aug. Conf. 6,7,11; 12,23,22; Ep. 19*,3).
23 Oceano (fl. sec. IV d. C.), membro da nobreza romana, senador e correspondente usual de Jernimo. Foi o
destinatrio de Hier. Ep. 69, 77 e 84 e protetor do monge de Belm. Era bastante prximo de Quinto Aurlio Smaco
(345 - 402), o rtor oficial do Imprio, mas no sabemos se Agostinho o conheceu por intermdio deste. Ao senador,
Agostinho enviar trs cartas, das quais somente uma chegou at ns, a carta Aug. Ep. 180, traduzida adiante em nossa
monografia. Para seu papel na vida de Jernimo, v. Kelly (1975) p. 212-217 e 234-240. Oceano, cf. PLRE I p. 636
Oceanus; PCBE I p. 1547-1549 Oceanus; NDPAC p. 3585-3586.
24A expresso latina no ablativo viva voce, a viva voz, figurativa para um presencialmente, da uma expresso
semelhante em portugus, ao vivo; cf. Otto p. 378 vox. A expresso aparece noutras cartas de Jernimo (cf. Hier. Ep.
29,7; 53,2; 125,2; In Gal. 4,20; Vir. ill. 18,2; 36,3). V. Frst (2002) p. 84, n. 262; Fry (2010) p. 300, n. 22.
25Os catorze livros de comentrios ao profeta Ezequiel, Commentariorum in Ezechielem prophetam libri quattuordecim
[PL 25,15-490d] sero a grande obra de exegese da maturidade de Jernimo, iniciados em 410 e s terminados em
meados de 415.
26Esta a nica meno direta, no corpus textual das epistulae mutuae, ao saque de Alarico em Roma, em 410, evento
que provocou um choque nos autores latinos do perodo. importante notar que o episdio aparece em uma carta a um
funcionrio pblico, e no a Agostinho. Para a reao de Jernimo ao evento, v. Kelly (1975) p. 296-298 e 304-305.
Para a reao de Agostinho, que o motivou a escreve a Cidade de Deus, v. Brown (2013) p. 286-311 e Frend (1994). O
cerco de Roma pelos brbaros tratado com mais detalhes por Jernimo em uma carta a Gerquia, Hier. Ep. 123 (apud
Labourt (1963) vol. VII, p. 74-95), e outra a Princpia, Hier. Ep. 127 (apud Labourt (1963) vol. VII, p. 136-148) mas o
mesmo tom de desespero serve de pano-de-fundo a quase todas as cartas escritas pelo monge de Belm no perodo (cf.
Hier. Ep. 118; 122; 125; 128.
27A expresso no saber o prprio nome , como diz o prprio Jernimo, um provrbio bem conhecido; bastante
antiga, ela faz as vezes de um quinho de sabedoria popular em uma conversa entre amigos (cf. Dem. 230-232; Iul. Vit.
Ars rhetorica 27); cf. Otto p. 244-245 nomen 1.
28Eco do livro do Eclesiastes, Eccl. 3:4, tempus flendi et tempus ridendi, tempo de chorar, e tempo de rir; a expresso
tempus lacrimarum certamente traria a mente dos leitores tambm os famoso verso 462 de Virglio no segundo canto da
Eneida, sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt, di mgoa alheia, e remanesce o pranto na traduo de
Odorico Mendes, verso 487.
29 Tais brbaros permanecem em obscura generalidade, e carecem de especificao: Jernimo diz apenas que um
subitus impetus barbarorum, uma repentina investida dos brbaros, varreu como um furaco os limites das provncias
orientais, na antiga Judeia. No sabemos se eram os hunos, os quais Jernimo menciona em Hier. Ep. 77,8 e 114,1; se
os isurios, que varreram as provncias orientais no incio da dcada de 400; se os vndalos, que iniciaram suas
investidas na frica na mesma poca; se os godos, que dilapidavam a Itlia e a Glia; ou, mais provvel, se os
sassnidas sob o comando de Izdegerdes I, rei que, embora tivesse boas relaes com Roma num primeiro momento,
entrou em diversos conflitos com o imperador oriental Teodsio II na poca; v. Gibbon (1952) p. 532-537 e Marti
(1974) p. 26-28. Kelly (1975) p. 304-308 acredita que eram rabes vindos do sul, que saquearam a Palestina em meados
de 411; id. p. 287 tambm menciona os isurios. V. tambm Cavallera (1922) p. 318, n. 2 para outras consideraes.
30 A expresso tuus Vergilius, teu Virglio, marca de maneira sutil a distncia entre os mundos cristo e monstico de
Jernimo em Belm, e o mundo pblico e cvico, ainda eivado de paganismo, que era o dos magistrados em Roma, e no
qual se firmava o status quo de Marcelino. A construo est em flagrante oposio ao Ambrosius noster, nosso
Ambrsio, citado por Jernimo e Agostinho em cartas anteriores (cf. Hier. Ep. 112,20 e Aug. Ep. 82,21;24). Virglio,
nos comentrios e homilias dos autores cristos da gerao de Agostinho em diante, sempre referido como illorum
poeta ou eorum poeta, o poeta deles (cf. Aug. Civ. 5,12 e 15,9). V. MacCormack (1998) p. 175-224 para uma
interpretao brilhante desta guinada, do Virglio to familiar ao jovem Agostinho em Aug. Conf. 1,13 ao peregrino no
mundo cristo, aquele que os convertidos consideravam seu profeta, um cristo sem Cristo que Jernimo repudia em
Hier. Ep. 53,7 a Paulino de Nola: quasi non legerimus Homerocentonas et Vergiliocentonas [] puerilia sunt haec et
circulatorum ludo similia, como se no lssemos esses homerocntricos e virgiliocntricos [...] essas coisas so
infantilidades, parecidas com cirandinhas.
31Verso 42 do quarto canto da Eneida de Virglio, verso 43 na traduo de Odorico Mendes. A substituio do adjetivo
furentes, presente na maioria das edies da Eneida, por vagantes, pode ser ou um erro de Jernimo, ou uma variante de
manuscrito, uma vez que a mesma alterao est nos comentrios ao profeta Isaas (cf. Hier. Comm. in Isai. 5,21,13).
Os Barceus eram guerreiros errantes da Cirenaica, na regio costal da Lbia.
32 Gen 16:12.
)407
Hier. ep. 126

33A frase silent enim leges inter arma, pois as leis se calam entre as armas, originalmente de Ccero no Pro Milone
4,11. Ela logo tornou-se proverbial, simplificada em silent inter arma Leges e variantes; o motivo era tpico e aparece,
ainda, em Ov. Trist. 5,7,48, em Sen. Herc. fur. 253;400, e Luc. 1,277.
34 O librarius, ou scriptor ou ainda scriba, era o responsvel sobretudo pela transcrio de livros, pela organizao da
biblioteca, e por demais afazeres relacionados escrita e manuteno dos arquivos. O termo indicava funo
complementar ao notarius, que designa originalmente o taqugrafo (v. Hier. Ep. 112, n. 43). Traduzimos librarius ora
como secretrio, ora como copista, dependendo do contexto: aqui, este pede um sentido mais geral, de quem
trabalha com livros independente de sua especialidade. V. Arns (2007) p. 56-60.
35 Meno a dois dos quatorze livros de comentrios a Ezequiel, v. supra Hier. Ep. 126, n. 25.
36 Fabola (fl. sec. V d. C.) residia ento no mosteiro de Hipona com Agostinho; a ela, Jernimo dedicara os dois
primeiros livros dos comentrios a Ezequiel. Fabola, cf. PLRE II p. 735 Fabiola 2; PCBE I p. 380 Fabiola; NDPAC p.
1901. V. Frst (2002) p. 340-341, n. 577 e Fry (2010) p. 301 n. 35. No se trata da mesma Fabola que era parente de
Oceano e a quem Jernimo enviara as cartas Hier. Ep. 64 e 78 (postmortem), pois essa morreu em 399/400 (cf. Hier. Ep.
77). Para essa outra Fabola, cf. PLRE I p. 734 Fabiola 1; LThK III p. 1147; NDPAC p. 1901.
37 As guerras entre os prncipes Gogue e Magogue so narradas em Ez 38-39.
38 A construo do Templo de Jerusalm ocupa os captulos finais do livro de Ezequiel, Ez 40-48.
39Eis uma frmula de concluso na postscriptio, muito comum nas cartas de Jernimo. Ela j apareceu em Hier. Ep.
103,2, 115 e aparecer de novo em 134,2, 141 e 143,2.

)408
17

Agostinho Ep. 166 / Jernimo Ep. 131


De origine animae hominis liber
<Tratado sobre a origem da alma do homem>
[415]

Este texto, que menos uma carta do que um tratado filosfico, no encontra equivalente na tipologia de

Pseudo-Demtrio ou na de Pseudo-Libnio. Na realidade, com exceo de um estilo mais prximo do sermo, de um

elogio de Jernimo e Paulo Orsio (caractersticas que de maneira alguma so exclusivas da epistolografia), e de

pedidos que Agostinho faz na concluso ( maneira de subscriptio, talvez?), pouco h de estrutural em Aug. Ep. 166

que pertena propriamente ao gnero epistolar. No h salutatio, no h frmulas de boas-vindas e despedida, sequer

aparecem as temticas tpicas de cartas, como a amicitia. A estrutura do texto estabelecida como um discurso

filosfico: exordium (cf. Aug. Ep. 166,1-2); narratio ou exposio do problema (cf. Aug. Ep. 166,3-5); probationes e

refutationes, ou seja, a argumentao (cf. Aug. Ep. 166,6-27); e a peroratio ou concluso (cf. Aug. Ep. 166,28). Trata-

se, ento, de uma monografia de cunho tcnico. Retornando a Pseudo-Demtrio, uma explicao possvel para esse

texto ter sido escrito como um tratado s vezes de carta, e no diretamente como uma epstola, que a matria excedia

as pretenses do gnero epistolar1 . Mas isso no significa que a tcnica utilizada aqui por Agostinho no contava com

precedentes: a deciso do bispo de Hipona em dedicar a algum um tratado s vezes de uma carta precedia de longa

tradio, a da epistolografia filosfica, cujas origens esto em Epicuro na Grcia e que fora cultivada, nas letras latinas,

por Sneca.

A presente carta, ou melhor, o presente tratado teolgico s vezes de carta Aug. Ep. 166, surgiu neste contexto,

aps Marcelino ter procurado Jernimo e Agostinho2 , por conselho daquele, para sanar suas dvidas. Intitulado De

origine animae hominis, tratado sobre a origem da alma do homem, este texto foi dedicado a Jernimo, ao lado de um

outro, concernente a uma passagem da carta do apstolo Tiago, De sententia Iacobi apostoli, tratado sobre a concluso

do apstolo Tiago, ambos os quais o bispo de Hipona teria enviado ao monge de Belm em conjunto3 , entre os anos de

412 e 415 e por intermdio de Paulo Orsio4. Trata-se de uma outra retomada indireta do dilogo epistolar entre nossos

autores, que agora ressurge no contexto da polmica pelagiana5. Agostinho agora se esfora para mostrar, atravs das

cartas de Paulo e do raciocnio dialtico, que nenhuma alma , na terra, isenta de pecado, e nenhum homem auto-

suficiente, estas duas hipteses aventadas por Pelgio6. Para o bispo de Hipona, em oposio, o homem no s nasce

com o pecado, mas tambm peca a todo momento. Condenado j desde o nascimento, o homem logra somente ansiar e

obedecer a Deus, conduzido na retido da f pela Igreja. A vida crist neste mundo no uma busca pela perfeio e

)409
pelo ascetismo, mas um longo processo de cura e preparao para a vida espiritual, que inicia com o batismo (a

purificao sem a qual no se entra na vida crist), que mantido segundo as leis e ensinamentos deixados pelo Esprito

Santo atravs dos profetas e de Jesus Cristo, os quais so pregados h tempos imemoriveis pelos apstolos, e hoje

pelos bispos e presbteros. Mas defender essas questes pelo argumento da tradio no suficiente. Na realidade,

preciso encontrar um resposta que se sustente pela razo, determinar a origem, isto , a substancialidade da alma, para

estabelecer a imperfeio da alma humana e a necessidade do batismo, e assim do ministrio da Igreja, acima de

qualquer suspeita. Eis a razo de escrita desse tratado, para alm das mincias filosficas: trata-se de uma obra

importante do bispo de Hipona no contexto da polmica pelagiana.

No exrdio do presente texto, Agostinho faz um elogio de Jernimo e de Paulo Orsio (cf. Aug. Ep. 166,1-2).

A seguir, expe os termos do problema, fazendo diversas aluses s cosmologia e fsica helensticas, e usando da

dialtica silogstica, maneira de um tratado filosfico (cf. Aug. Ep. 166,3-5). Temos em conta algumas certezas sobre

a alma do homem: ela imortal segundo uma modalidade prpria (e no segundo todas as modalidades, como Deus),

ela mutvel e corruptvel (no tempo mas no no tempo e no espao, como o corpo), e assim ela no uma parte de

Deus, pois Deus incorruptvel e imutvel; consider-la ento uma deteriorao (defluxio, uma traduo latina para

) da substncia divina seria um absurdo. A alma incorprea, mas coexiste com o corpo. A queda da alma em

pecado nada tem a ver com Deus, que, na realidade, pode livrar-nos do pecado. Mas faz sentido falar em um Pecado

Original da alma, do qual nos livramos apenas atravs do batismo? Como ele surge, e como o herdamos? Para

respondermos essas questes, devemos perscrutar qual a natureza e qual a origem da alma: do que ela feita e de onde

ela vem.

Nos pargrafos seguintes, Agostinho aborda brevemente as cinco hipteses sobre a origem da alma, excluindo

trs deles o pr-existencialismo, a , e o tesouro , e aproveita para comentar a visita de Marcelino e

Anapsquias, a partir da qual surgiu o presente tratado (cf. Aug. Ep. 166,6-9). Retorna, ento, ao problema, cujo cerne,

posto que as Escrituras nos levam a crer que existe o Pecado Original, a necessidade do batismo para a salvao.

Devemos questionar se Deus fez todas as almas na Criao, ou as faz todos os dias? Agostinho reduz a discusso a duas

hipteses sobre a origem da alma, a traducionista que todas as almas descendem da de Ado, soluo mais difundida

entre os latinos e a criacionista que Deus ainda cria as almas diariamente, teoria defendida pelos patriarcas do

Oriente. O autor ento demonstra que o Gnesis, onde lemos que Deus descansou no stimo dia, no contradiz o que

se l no Evangelho de Joo, que Ele ainda trabalha: Deus ainda cria as almas, e modula a vida humana como um msico

compe uma melodia harmoniosa, havendo compatibilidade entre imortalidade e temporalidade. O bispo de Hipona

conclui que, uma vez que Deus o sumo Bem, toda criatura boa, inclusive os filhos dos adlteros, e que os corpos

uma vez que tambm so criaturas divinas no representam espcies de crceres imundos da alma para expiar os

pecados do mundo (cf. Aug. Ep. 166,10-15). Vale lembrar aqui que o problema dos filhos dos adlteros era mais que

um simples argumento abstrato para Agostinho, pois cabe lembrar que seu filho, Adeodato, foi fruto de uma relao

com uma concubina cartaginense7. Agora, porm, e quanto ao sofrimento desmerecido, seja os nossos, os dos doentes

)410
mentais, e principalmente o dos bebs natimortos? Como explic-los? O fato de eles morrerem antes do batismo implica

sua condenao (cf. Aug. Ep. 166,16-17)? Certamente eles no herdam os pecados de vidas passadas ou de seus pais,

pois tais teorias pr-existencialistas da alma, emprestadas de pensadores pagos como Pitgoras, so herticas.

Agostinho havia abordado a questo da condenao dos bebs natimortos em obras anteriores, entre as quais o

prprio autor destaca o De trinitate (o Tratado sobre a trindade), e o De libero arbitrio (o Tratado sobre o livre

arbtrio). O bispo de Hipona cita uma passagem extensa desta obra, reiterando a afirmao que ela encerra, de que o

batismo necessrio para a salvao das crianas recm-nascidas, ainda que elas no tenham tido tempo de pecar. A

doutrina da Igreja clara neste ponto. Mas, que pecado haveria nos recm-nascidos? O pecado da carne? De maneira

alguma, pois tal a teoria hertica do ascetismo maniqueu: o corpo, sendo tambm criatura divina, bom, no

impuro; a alma deve viver em harmonia com ele. Assim, preciso encontrar uma teoria sobre a origem da alma que

explique a necessidade de batismo aos recm-nascidos, estando assim de acordo com as Escrituras e a tradio. De fato,

a condenao dos recm-nascidos ainda permanece um mistrio, tanto pela ambiguidade das passagens das Escrituras

que tratam do assunto, quanto a um Agostinho que ainda no conseguiu elaborar uma soluo para ela (cf. Aug. Ep.

166,18-26). A chave para resolver esse problema, segundo o autor, encontra-se no conceito de Pecado Original: este o

primeiro erro, aquele da desobedincia, caracterstico de toda espcie humana definida pela queda, um pecado que

herdado por todas as almas a partir da primeira alma, a de Ado. No entanto, h como resolver essa questo? o que

Agostinho ainda se pergunta na concluso desta carta, onde pede que Jernimo o esclarea sobre a leitura correta de

Orgenes, reiterando uma solicitao que havia feito em diversas cartas do primeiro perodo de correspondncia (cf.

Aug. Ep. 166,27-28).

necessrio que faamos um adendo sobre a abordagem terminolgica que Agostinho emprega em seus

estudos sobre a alma, a qual no esmiuada aqui pelo bispo de Hipona, pois o mesmo diz no desejar entrar em uma

controversia verbi, ou seja, em um debate conceitual (cf. Aug. Ep. 166,2). Todavia, a nomenclatura aqui utilizada

uma nomenclatura que est presente em outras de suas obras, pressupondo que Jernimo as teria lido, entre as quais o

De quantitate animae (o Tratado sobre o tamanho da alma), o De Genesi ad litteram (uma interpretao literal do livro

do Gnesis), e o De trinitate. Devemos notar, como fizeram outros estudiosos antes de ns8, que os termos empregados

pelo bispo so de profunda influncia neoplatnica, em especial emprestados do vocabulrio de Plotino. Agostinho

entende por anima a alma lato sensu, uma substncia incorprea, dinmica, sem extenso, imortal9, que definida

como o prprio viver; trata-se do sopro que anima o ser vivo (animal, em latim). A alma a substncia mais pura de

todas as criaturas, dotada de razo prpria, destinada a governar o corpo10 tanto dos homens quanto dos animais e dos

vegetais; em latim, essa parte fundamental da alma chamada de spiritus, que traduz o termo grego ou

no vocabulrio neoplatnico. A anima, por sua vez, pode ser dividida em duas categorias com funes

distintas: a anima irrationalis, esta presente em todos os seres vivos e faculdade responsvel pela percepo sensorial,

pela memria, pelas emoes, pelo apetite e pelo movimento atravs do impulso11; e a anima rationalis presente nos

homens e nos anjos, dotada de razo (mens ou ratio), vontade (voluntas) e compreenso (comprehensio)12 . Esta parte

)411
racional da alma seria a ( ) dos neoplatnicos, ou seja, a enquanto , em se tratando da

faculdade intelectual ou espiritual desta parte da alma, que em latim Agostinho chamar tambm de animus. A anima

rationalis (ou ratio hominis) pode ser dividida ainda em ratio superior, capaz de intuir (intellegere) a verdade divina e

assim atingir a sapientia; e ratio inferior, atravs da qual, por meio das sensaes, se conhece (scire) o mundo. Nesta

carta, Agostinho empregar apenas a dicotomia anima/animus (s) para delimitar a coexistncia dessas duas funes da

alma no homem, uma responsvel pela percepo sensorial (sensatio) e dotada de amor (dilectio, que o princpio

vivificante de todo ser, mortal ou imortal), com a qual ele adquire conhecimento (scientia) do mundo; e outra

responsvel pela intuio (intellectio) das formas, dotada de razo (mens ou animus), com a qual ele intui a sabedoria

(sapientia) da verdade divina, parte da alma que o homem partilha com os anjos e outros seres espirituais13.

De fato, Agostinho se tornara cristo atravs do neoplatonismo: ele entrou na vida eclesistica pelas veredas da

filosofia, da a influncia grega nos termos utilizados pelo autor. Entretanto, os mesmos encontram precedentes na

Bblia, talvez a partir de um vocabulrio filosfico helenstico que, na poca da Septuaginta e posteriormente na de

Paulo, j perdera sua especificidade tcnica14 . No Gnesis, , que Jernimo traduz por spiritus, o flego da

vida que Deus soprou nas narinas de Ado (cf. Gen 2:7), e , que Jernimo traduz por anima, a alma vivente dos

seres vivos (cf. Gen. 2:9). Paulo, em sua primeira carta aos Tessalonicenses, afirma que o homem um ser dotado de

, e , esprito, alma, e corpo (cf. 1 Th 5:23). Embora haja uma distino entre o spiritus e a anima,

nada h na Bblia, porm, sobre a diviso entre as partes racional e irracional do homem.

Dito isso, o homem agostiniano um ser vivente intermedirio entre o mundo terreno, das sensaes, e o

espiritual, da inteleco das formas puras. A substncia humana, para Agostinho, no s alma a despeito da carne, ou

s corpo que encapsula a alma, mas se define por uma tenso entre as duas coisas, de modo que o homem caracteriza-se

por uma terceira qualidade anmica, entre uma e outra, cuja faculdade a cogitatio, dotada de abstrao (notitia), a

capacidade de julgar a veracidade das sensaes e de conhecer os princpios que regem as coisas materiais15. Dito isso,

um homem uma nica substncia racional dotada de alma e corpo16 . importante fazer uma elucubrao nesse ponto:

uma vez que o homem definido como uma substncia nica que partilha de alma e corpo, segue-se que homem o

estado de um ser anmico apenas em sua manifestao terrena. Concluir-se-ia a partir da que a , que dada aos

seres puramente espirituais, e que ser a ddiva aps a Ressurreio (e no um prmio terreno pela impeccantia, como

acreditavam os pelagianos), vir com uma transformao da prpria substncia do homem, no que ele deixar de ser

homem para se tornar um ser puramente espiritual, isto , puro animus, no final dos tempos. Assim, o ministrio da

felicidade humana, que cabe Igreja, deve atentar conduta terrena (isto , corporal) dos homens, sempre invlidos

enquanto encarnados, incapazes de transcender sua condio parcial de animal nesta vida, de maneira que esse mundo

seja preparado para a vinda da Cidade de Deus. A partir dessa interpretao, a vontade, a verdade, e a felicidade so

ideias que devem ser balizadas, na filosofia agostiniana, segundo critrios e maneiras diferentes daqueles da filosofia

pag, fundamentalmente por essa viso de insuficincia da natureza humana. Na concepo avanada pelo bispo de

Hipona, o homem, na vida terrena, no pode se ver livre de ou , paixes ou perturbaes. Ele encontra

)412
descanso das tribulaes mundanas no pelos prprios mritos, mas to-somente pela Graa divina, esta que no uma

retribuio a nossos esforos, mas uma ddiva que Deus d de livre vontade por meio da predestinao, e com a qual

ele se ver enfim reunido no Dia do Juzo.

1 Cf. Dem. 230-231.


2 Conforme Jernimo sinalizara em Hier. Ep. 126,2.
3 Cf. Aug. Retract. 2,45. V. Hennings (1994) p. 72-74.
4Favorecemos a data tardia, pois Agostinho se refere a Marcelino neste tratado como vir religiosae memoriae, homem
de memria religiosa, um indcio de que este j estaria morto (cf. Aug. Ep. 166,7). O tribunus fora executado em 413,
suspeito de depellatio, isto , de alta traio contra o imperador; h indcios de que sua reputao foi resgatada pouco
depois de sua morte (do contrrio Agostinho nem diria seu nome abertamente, e possvel que o mesmo fosse apagado
do texto copiado). plausvel, tambm, que o presente texto tenha sido escrito j em 412 mas entregue apenas em 415,
data em que Orsio viajara Judeia para participar no Snodo de Dispolis (cf. Aug. Ep. 169,13; Oro. Lib. Apol. 3,2).
No mais, concordamos, ao adotar a data de 415, com Hennings (1994) p. 45-46 e Frst (1999) p. 180.
5 Fry (2010) p. 303-305 acredita que a polmica origenista, na qual Jernimo se viu uma vez mais envolvido, tambm
faz parte do contato. Talvez, mas o monge de Belm j havia negado a hiptese do pr-existencialismo da alma, aquela
aventada por Orgenes, em sua carta a Marcelino (cf. Hier. Ep. 126,1).
6 Conforme discutimos na quarta parte do segundo captulo de nossa introduo.
7 Cf. Aug. Conf. 9,6,14;12,29.
8Seguiremos especialmente ODaly (1987); Rist (1994); Nash (2003). Rist (1994) p. 92-147 e 317-320 um bom guia
para a terminologia utilizada por Agostinho.
9 Cf. Aug. Soliloq. 1,2,1.
10 Cf. Aug. Quant. anim. 22-32.
11 Cf. Aug. Divers. quaest. 46,2, Immort. 25 e Gen. ad litt. 7,9,12; 7,11,18; 8,23,44; 10,4,7.
12 Cf. Aug. Quant. anim. 13 e 77-78; Enchir. 35-36; Gen. ad litt. 6,12,22; 7,9,12; 7,11,17; 10,23,29; Trin. 3,8; 10,2;
11,6; 15,1;11;22 e Vera relig. 44;82;110. Na Cidade de Deus, porm, Agostinho divide a alma entre intelectualis e
spiritualis (cf. Aug. Civ. 10,2;9;27;32).
13 Nash (2003) p. 76-93.
14 Bassetto (2001) p. 174-175 indica que os vocbulos latinos carnalis, spiritualis, regeneratio e restauratio so
adaptaes dos termos gregos , , e , todos de fortuna estoica e
tambm amplamente usados pelos neoplatnicos.
15 Nash (2003) p. 60-75.
16 Cf. Aug. Ep. 3,4 e 140,2; en. Ps. 145,5; soliloq. 1,1,21; Serm. 150,5; Civ. 13,24, aqui: hoc quidem uerum est, quod
non totus homo, sed pars melior hominis anima est; nec totus homo corpus, sed inferior hominis pars est; sed cum est
utrumque coniunctum simul, habet hominis nomen, realmente, verdade que a alma [anima] no o homem todo mas
a sua parte melhor; nem o corpo o homem todo mas a sua parte inferior; ora, ao conjunto de ambos que se d o
nome de homem; tambm Trin. 15,11: quod si etiam sic definiamus hominem, ut dicamus: homo est substantia
rationalis constans ex anima et corpore; non est dubium hominem habere animam quae non est corpus, habere corpus
quod non est anima, mas se assim definirmos o homem, ento, a fim de formularmos, o homem uma substncia
racional dotada de alma e corpo; no h dvidas de que o homem tem uma alma que no corpo, e que tem um corpo
que no alma.

)413
Aug. ep. 166 de origine...

1. Deum nostrum qui nos vocavit in suum regnum et gloriam, et rogavi et rogo, ut hoc, quod ad
te scribo, sancte frater Hieronyme, consulens te de his, quae nescio, fructuosum esse nobis velit.
Quamquam enim te multo, quam ego sum, aetate maiorem tamen etiam ipse iam senex consulo.
Sed ad discendum, quod opus est, nulla mihi aetas sera videri potest, quia, etsi senes magis
decet docere quam discere, magis tamen discere quam, quid doceant, ignorare. Nihil equidem
molestius fero in omnibus angustiis meis, quas patior in difficillimis quaestionibus, quam in tam
longinquo tuae caritatis absentiam, ut vix possim meas dare, vix recipere litteras tuas per
intervalla non dierum, non mensium, sed aliquot annorum, cum, si fieri posset, quotidie
praesentem te habere vellem, cum quo loquerer quicquid vellem. Nec ideo tamen non debui
facere quod potui, si non potui totum quod volui.
2. Ecce venit ad me religiosus iuvenis, catholica pace frater, aetate filius, honore compresbyter
noster Orosius, vigil ingenio, paratus eloquio, flagrans studio, utile vas in domo Domini esse
desiderans, ad refellendas falsas perniciosasque doctrinas, quae animas Hispanorum multo
infelicius, quam corpora barbaricus gladius, trucidarunt. Nam inde ad nos usque ab oceani
littore properavit, fama excitus, quod a me posset de his, quae scire vellet, quicquid vellet
audire. Neque nullum cepit adventus sui fructum. Primo ne de me multum famae crederet.
Deinde docui hominem quod potui; quod autem non potui, unde discere posset, admonui, atque
ut ad te iret hortatus sum. Qua in re consilium vel praeceptum meum cum libenter et obedienter
acciperet, rogavi eum ut abs te veniens, per nos ad propria remearet. Quam eius pollicitationem
tenens, occasionem mihi credidi a Domino esse concessam, qua tibi scriberem de his, quae per
te scire cupio. Quaerebam enim quem ad te mitterem, nec mihi facile occurrebat idoneus et fide
agendi, et alacritate obediendi et exercitatione peregrinandi. Vbi ergo istum iuvenem expertus
sum, eum ipsum esse qualem a Domino petebam, dubitare non potui.
3. Accipe igitur quae mihi, peto, aperire ac disserere non graveris. Quaestio de anima multos
movet, in quibus et me esse confiteor. Nam quid de anima firmissime teneam, non tacebo.
Deinde subiungam quid mihi adhuc expediri velim. Anima hominis immortalis est, secundum
quemdam modum suum. Non enim omni modo sicut Deus, de quo dictum est quod solus habet
immortalitatem. Nam de animae mortibus sancta Scriptura multa commemorat, unde illud est:
Sine mortuos sepelire mortuos suos; sed quod ita moritur alienata a vita Dei, ut tamen in
natura sua vivere non omnino desistat, ita mortalis ex aliqua causa invenitur, ut etiam
immortalis non sine ratione dicatur. Non est pars Dei anima. Si enim hoc esset, omni modo
incommutabilis atque incorruptibilis esset. Quod si esset, nec deficeret in deterius, nec
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Aug. ep. 166 de origine...
proficeret in melius; nec aliquid in semet ipsa vel inciperet habere quod non habebat, vel
desineret habere quod habebat, quantum ad eius ipsius affectiones pertinet. Quam vero aliter se
habeat, non opus est extrinsecus testimonio; quisquis seipsum advertit, agnoscit. Frustra autem
dicitur ab eis, qui animam Dei partem esse volunt, hanc eius labem ac turpitudinem, quam
videmus in nequissimis hominibus, hanc denique infirmitatem et aegritudinem, quam sentimus
in omnibus hominibus, non ex ipsa illi esse, sed ex corpore. Quid interest unde aegrotet, quae si
esset incommutabilis, unde libet aegrotare non posset? Nam quod vere incommutabile et
incorruptibile est, nullius rei accessu commutari vel corrumpi potest. Alioquin non Achillea
tantum, sicut fabulae ferunt, sed omnis caro esset invulnerabilis, si nullus ei casus accideret.
Non est itaque natura incommutabilis, quae aliquo modo, aliqua causa, aliqua parte mutabilis
est. Deum autem nefas est, nisi vere summeque incommutabilem credere. Non est igitur anima
pars Dei.
4. Incorpoream quoque esse animam, etsi difficile tardioribus persuaderi potest, mihi tamen
fateor esse persuasum. Sed ne verbi controversiam vel superfluo faciam vel merito patiar,
quoniam cum de re constat, non est opus certare de nomine: si corpus est omnis substantia vel
essentia, vel si quid aptius nuncupatur id, quod aliquo modo est in se ipso, corpus est anima.
Item si eam solam incorpoream placet appellare naturam, quae summe incommutabilis et ubique
tota est, corpus est anima; quoniam tale aliquid ipsa non est. Porro si corpus non est, nisi quod
per loci spatium aliqua longitudine, latitudine, altitudine ita sistitur vel movetur, ut maiore sui
parte maiorem locum occupet, et breviore breviorem, minusque sit in parte quam in toto, non est
corpus anima. Per totum quippe corpus, quod animat, non locali diffusione, sed quadam vitali
intentione porrigitur. Nam per omnes eius particulas tota simul adest, nec minor in minoribus, et
in maioribus maior, sed alicubi intentius, alicubi remissius, et in omnibus tota, et in singulis tota
est. Neque enim aliter, in quod corpore etiam non toto sentit, tamen tota sentit. Nam cum exiguo
puncto in carne viva aliquid tangitur, quamvis locus ille non solum totius corporis non sit, sed
vix in corpore videatur, animam tamen totam non latet; neque id quod sentitur, per corporis
cuncta discurrit, sed ibi tantum sentitur ubi fit. Vnde ergo ad totam mox pervenit, quod non in
toto fit, nisi quia et ibi tota est ubi fit, nec ut tota ibi sit, cetera deserit? Vivunt enim et illa ea
praesente, ubi nihil tale factum est. Quod si fieret, et utrumque simul fieret, simul utrumque
totam pariter non lateret. Proinde et in omnibus simul, et in singulis particulis corporis sui, tota
simul esse non posset, si per illas ita diffunderetur, ut videmus corpora diffusa per spatia
locorum, minoribus suis partibus minora occupare, et amplioribus ampliora. Quapropter si
anima corpus esse dicenda est, non est certe corpus quale terrenum est, nec quale humidum, aut
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Aug. ep. 166 de origine...
aerium, aut aetherium. Omnia quippe talia maiora sunt in maioribus locis, et minora in
minoribus, et nihil eorum in aliqua sui parte totum adest: sed ut sunt partes locorum, ita
occupantur partibus corporum. Vnde intellegitur anima, sive corpus, sive incorporea dicenda sit,
propriam quamdam habere naturam, omnibus his mundanae molis elementis excellentiore
substantia creatam, quae veraciter non possit in aliqua phantasia corporalium imaginum, quas
per carnis sensus percipimus, cogitari, sed mente intellegi, vitaque sentiri. Neque haec perinde
loquor, ut te quae tibi nota sunt doceam, sed ut aperiam quid firmissime de anima teneam, ne me
quisquam, cum ad ea venero quae requiro, nihil de anima vel scientia vel fide tenere arbitretur.
5. Certus etiam sum animam nulla Dei culpa, nulla Dei necessitate vel sua, sed propria
voluntate in peccatum esse collapsam, nec liberari posse de corpore mortis huius, vel suae
voluntatis virtute, tamquam sibi ad hoc sufficiente, vel ipsius corporis morte, sed gratia Dei per
Iesum Christum Dominum nostrum, nec omnino esse animam ullam in genere humano, cui non
sit necessarius ad liberationem mediator Dei et hominum homo Christus Iesus. Quaecumque
autem sine gratia mediatoris et sacramento eius, in qualibet corporis aetate, de corpore exierit, et
in poenam futuram, et in ultimo iudicio recepturam corpus ad poenam. Si autem post
generationem humanam, quae facta est ex Adam, regeneretur in Christo ad eius pertinens
societatem, et requiem post mortem corporis habituram, et corpus ad gloriam recepturam. Haec
sunt, quae de anima firmissime teneo.
6. Nunc accipe, obsecro, quid requiram, et noli me spernere; sic non te spernat, qui pro nobis
dignatus est sperni. Quaero ubi contraxerit anima reatum, quo trahitur in condemnationem,
etiam infantis morte praeventi, si ei, per sacramentum quo etiam parvuli baptizantur, Christi
gratia non subvenerit. Non enim es ex illis, qui modo nova quaedam garrire coeperunt, dicentes
nullum reatum esse ex Adam tractum qui per baptismum in infante solvatur. Quod te sapere si
scirem, immo nisi te id non sapere scirem, nequaquam hoc abs te quaererem aut quaerendum
putarem. Sed quia tenemus de hac re sententiam tuam concinentem catholicae fundatissimae
fidei, qua et Ioviniani vaniloquia redarguens, adhibuisti testimonium ex libro Iob: Nemo
mundus in conspectu tuo, nec infans cuius est diei unius vita super terram, deinde adiunxisti:
Tenemurque rei in similitudine praevaricationis Adae; et liber tuus in Ionam prophetam satis
hoc insigniter dilucideque declarat, ubi ieiunare parvulos propter ipsum originale peccatum,
merito coactos esse dixisti: non inconvenienter abs te quaero, hunc reatum anima ubi
contraxerit, unde oporteat eam etiam in illa aetate per sacramentum Christianae gratiae liberari.
7. Ego quidem ante aliquot annos cum libros quosdam scriberem de libero arbitrio, qui in
multorum manus exierunt, et nunc habentur a plurimis, quattuor opiniones de animae
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Aug. ep. 166 de origine...
incarnatione, utrum ex illa una, quae primo homini data est, ceterae propagentur; an singulis
quibusque novae etiam modo fiant; an alicubi iam existentes, vel mittantur divinitus, vel sponte
labantur in corpora; ita putavi esse tractandas, ut quaelibet earum vera esset, non impediret
intentionem meam, qua tunc adversus eos quantis poteram viribus agebam, qui naturam mali
suo principio praeditam, adversus Deum conantur inducere, id est contra Manichaeos. Nam de
Priscillianistis adhuc nihil audieram, qui non multum ab istis dissimiles blasphemias fabulantur.
Ideo quintam opinionem non addidi, quam in tua epistula inter ceteras commemorasti, ne
aliquam praeterires, ubi quaestione interroganti rescripsisti religiosae memoriae viro, nobisque
in Christi caritate gratissimo Marcellino, quod anima sit pars Dei; primo, quia non de
incarnatione eius, sed de natura quaeritur, cum hoc quaeritur; deinde quia hoc sentiunt illi contra
quos agebam, et id maxime agebam, ut Creatoris inculpabilem inviolabilemque naturam a
creaturae vitiis et labe secernerem, cum illi a substantia mali, cui proprium principium
principesque tribuunt, ipsam boni Dei substantiam ex parte, qua capta est corruptam et
oppressam, et ad peccandi necessitatem perductam esse contendant. Hoc itaque excepto
haereticae opinionis errore, ex quattuor reliquis opinionibus quaenam sit eligenda scire desidero.
Quaecumque enim eligenda est, absit ut impugnet hanc fidem, de qua certi sumus, omni animae
etiam parvuli infantis necessariam esse liberationem ex obligatione peccati, eamque nullam esse
nisi per Iesum Christum, et hunc crucifixum.
8. Proinde ne longum faciamus, hoc certe sentis, quod singulas animas singulis nascentibus
etiam modo Deus faciat. Cui sententiae ne obiciatur, quod omnes creaturas sexto die
consummaverit Deus et septimo die requieverit, adhibes testimonium ex evangelio: Pater meus
usque nunc operatur. Sic enim ad Marcellinum scripsisti: in qua epistula etiam mei
commemorationem benevolentissime facere dignatus es, quod hic me haberet in Africa, qui ei
ipsam facilius possem explicare sententiam. Quod si potuissem, non ille hoc abs te tam longe
posito inquireret; si tamen id tibi ex Africa scripsit. Nam quando scripserit nescio; tantum scio
quod de hoc bene cognoverit cunctationem meam: unde me inconsulto facere voluit.
Quamquam etiam si consuleret, magis hortarer, et gratias agerem quod nobis omnibus conferri
posset, nisi tu breviter rescribere, quam respondere maluisses. Credo ne superfluo laborares, ubi
ego essem, quem putabas id optime scire, quod ille quaesiverat. Ecce volo ut illa sententia etiam
mea sit, sed nondum esse confirmo.
9. Misisti ad me discipulos ut ea doceam, quae nondum ipse didici. Doce ergo quod doceam.
Nam ut doceam, multi a me flagitant, eisque me sicut alia multa, et hoc ignorare confiteor. Et
fortasse quamvis in os meum verecundentur, tamen apud se dicunt: Tu es magister in Israel, et
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haec ignoras? Quod quidem Dominus ei dixit, qui erat unus illorum, quos delectabat vocari
Rabbi. Vnde etiam ad verum magistrum nocte venerat, quia fortassis erubescebat discere, qui
docere consueverat. Me autem magistrum potius audire, quam velut magistrum delectat audiri.
Recolo enim quid dixerit eis, quos prae ceteris elegit: Vos autem, inquit, nolite vocari ab
hominibus Rabbi; unus est enim magister vester, Christus. Nec alius docuit Moysen etiam per
Iothor, nec alius Cornelium etiam per priorem Petrum, nec alius Petrum etiam per posteriorem
Paulum. A quocumque enim verum dicitur, illo donante dicitur, qui est ipsa veritas. Quod si ideo
adhuc ista nescimus, et ea neque orando, neque legendo, neque cogitando et ratiocinando
invenire potuimus, ut probemur non solum indoctos quanta caritate doceamus, verum a doctis
etiam quanta humilitate discamus?
10. Doce ergo, quaeso, quod doceam, doce quod teneam, et dic mihi, si animae singillatim
singulis hodieque nascentibus fiunt, ubi in parvulis peccent, ut indigeant in sacramento Christi
remissione peccati, peccantes in Adam, ex quo caro est propagata peccati; aut si non peccant,
qua iustitia Creatoris ita peccato obligantur alieno, cum exinde propagatis membris mortalibus
inseruntur, ut eas, nisi per Ecclesiam subventum fuerit, damnatio consequatur; cum in earum
potestate non sit, ut eis possit gratia baptismi subveniri. Tot igitur animarum millia, quae in
mortibus parvulorum sine indulgentia Christiani sacramenti de corporibus exeunt, qua aequitate
damnantur, si novae creatae, nullo suo praecedente peccato, sed voluntate Creatoris singulae
singulis nascentibus adhaeserunt, quibus eas animandis ille creavit et dedit, qui utique noverat,
quod unaquaeque earum nulla sua culpa sine baptismo Christi de corpore fuerat exitura?
Quoniam igitur neque de Deo possumus dicere, quod vel cogat animas fieri peccatrices, vel
puniat innocentes; neque negare fas nobis est, eas quae sine Christi sacramento de corporibus
exierint, etiam parvulorum, non nisi in damnationem trahi: obsecro te, quomodo haec opinio
defenditur, qua creduntur animae non ex illa una primi hominis fieri omnes, sed sicut illa una
uni, ita singulis singulae?
11. Ea vero quae dicuntur alia contra hanc opinionem, facile puto me posse refellere, sicuti est
illud, quo eam sibi quidam videntur urgere, quomodo consummaverit Deus omnia opera sua
sexto die, et septimo requieverit, si novas adhuc animas creat? Quibus si dixerimus quod ex
evangelio in supra dicta epistula posuisti: Pater meus usque nunc operatur, respondent
operatur dictum est, institutas administrando, non novas instituendo naturas, ne Scripturae
Geneseos contradicatur, ubi apertissime legitur consummasse Deum omnia opera sua. Nam et
quod eum scriptum est requievisse, utique a creandis novis creaturis intellegendum est, non a
gubernandis; quia tunc ea quae non erant fecit, a quibus faciendis requievit: quia
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consummaverat omnia quae antequam essent, vidit esse facienda, ut deinceps non ea quae non
erant, sed ex his quae iam erant, crearet et faceret quicquid faceret. Ita utrumque verum esse
monstratur, et quod dictum est, requievit ab operibus suis, et quod dictum est, usque nunc
operatur: quoniam Genesi non potest evangelium esse contrarium.
12. Verum his qui haec ideo dicunt ne credatur modo Deus, sicut illam unam novas animas,
quae non erant, facere; sed ex illa una, quae iam erat, eas creare, vel ex fonte aliquo sive
thesauro quodam, quem tunc fecit, eas mittere, facile respondetur etiam illis sex diebus multa
Deum creasse ex his naturis quas iam creaverat, sicut ex aquis alites et pisces; ex terra autem
arbores, fenum, animalia; sed quod ea, quae non erant, tunc fecerit, manifestum est. Nulla enim
erat avis, nullus piscis, nulla arbor, nullum animal: et bene intellegitur ab his creatis requievisse,
quae non erant, et creata sunt, id est cessasse, ne ultra quae non erant, crearentur. Sed nunc quod
dicitur, animas non in nescio quo fonte iam existentes mittere, nec de seipso tamquam suas
particulas irrorare, nec de illa una originaliter trahere, nec pro delictis ante carnem commissis
carneis vinculis compedire, sed novas creare singulas singulis suam, cuique nascenti, non
aliquid facere dicitur, quod ante non fecerat. Iam enim sexto die fecerat hominem ad imaginem
suam, quod utique secundum animam rationalem fecisse intellegitur. Hoc et nunc facit, non
instituendo quod non erat, sed multiplicando quod erat. Vnde et illud verum est, quod a rebus,
quae non erant, instituendis requievit, et hoc verum est, quod non solum gubernando quae fecit,
verum etiam aliquid non quod nondum, sed quod iam creaverat, numerosius creando usque nunc
operatur. Vel sic ergo, vel alio quolibet modo eximus ab eo quod nobis obicitur de requie Dei ab
operibus suis, ne propterea non credamus nunc usque fieri animas novas, non ex illa una, sed
sicut illam unam.
13. Nam quod dicitur, quare facit animas eis, quos novit cito morituros?, possumus
respondere, parentum hinc peccata vel convinci, vel flagellari. Possumus etiam recte illius
moderationi ista relinquere, quem scimus omnibus temporaliter transeuntibus rebus, ubi sunt
etiam animalium ortus et obitus, cursum ornatissimum atque ordinatissimum dare; sed nos ista
sentire non posse, quae si sentiremus, delectatione ineffabili mulceremur. Non enim frustra per
prophetam, qui haec divinitus inspirata didicerat, dictum est de Deo: Qui profert numerose
saeculum. Vnde musica, id est scientia sensusve modulandi, ad admonitionem magnae rei,
etiam mortalibus rationales habentibus animas Dei largitate concessa est. Vnde si homo faciendi
artifex carminis novit quas quibus moras vocibus tribuat, ut illud quod canitur, decedentibus ac
succedentibus sonis, pulcherrime currat ac transeat; quanto magis Deus, cuius sapientia, per
quam fecit omnia, longe omnibus artibus praeferenda est, nulla in naturis nascentibus et
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occidentibus temporum spatia, quae tamquam syllabae ac verba ad particulas huius saeculi
pertinent, in hoc labentium rerum tamquam mirabili cantico, vel brevius, vel productius, quam
modulatio praecognita et praefinita deposcit, praeterire permittit! Hoc cum etiam de arboris
folio dixerim, et de nostrorum numero capillorum, quanto magis de hominis ortu et occasu,
cuius temporalis vita brevius productiusve non tenditur, quam Deus dispositor temporum novit
universitatis moderamini consonare!
14. Id etiam quod aiunt, omne quod in tempore coepit esse, immortale esse non posse, quia
omnia orta occidunt, et aucta senescunt, ut eo modo credi cogant, animum humanum ideo
esse immortalem, quod ante omnia tempora sit creatus, non movet fidem nostram. Vt enim alia
taceam, coepit esse in tempore immortalitas carnis Christi, quae iam non moritur, et mors ei
ultra non dominabitur.
15. Illud vero quod in libro adversus Ruffinum posuisti, quosdam huic sententiae calumniari,
quod Deum dare animas adulterinis conceptibus videatur indignum, unde conantur astruere
meritis gestae ante carnem vitae animas quasi ad ergastula huius modi iuste posse perduci, non
me movet multa cogitantem, quibus haec possit calumnia refutari. Et quod ipse respondisti, non
esse vitium sementis in tritico quod furto dicitur esse sublatum, sed in eo qui frumenta furatus
est; nec idcirco terram non debuisse gremio suo semina confovere, quia sator immunda ea
proiecerit manu; elegantissima similitudo est. Quam et antequam legerem, nullas mihi obiectio
ista de adulterinis fetibus in hac quaestione faciebat angustias, generaliter intuenti multa bona
Deum facere, etiam de nostris malis nostrisque peccatis. Animalis autem cuiuscumque creatio,
si habeat prudentem piumque consideratorem, ineffabilem laudem Creatori excitat; quanto
magis creatio non cuiuslibet animalis, sed hominis! Si autem causa creandi quaeritur, nulla
citius et melius respondetur, nisi quia omnis creatura Dei bona est. Et quid dignius quam ut bona
faciat bonus Deus, quae nemo potest facere nisi Deus?
16. Haec et alia quae possum, sicut possum, dico adversus eos qui hanc opinionem, qua
creduntur animae sicut illa una singulis fieri, labefactare conantur. Sed cum ad poenas ventum
est parvulorum, magnis, mihi crede, coarctor angustiis, nec quid respondeam prorsus invenio;
non solum eas poenas dico, quas habet post hanc vitam illa damnatio, quo necesse est trahantur,
si de corpore exierint sine Christianae gratiae sacramento, sed eas ipsas, quae in hac vita
dolentibus nobis versantur ante oculos; quas enumerare si velim, prius tempus quam exempla
deficient. Languescunt aegritudinibus, torquentur doloribus, fame et siti cruciantur, debilitantur
membris, privantur sensibus, vexantur ab immundis spiritibus. Demonstrandum est utique,
quomodo ista sine ulla sua mala causa iuste patiantur. Non enim dici fas est, aut ista ignorante
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Deo fieri, aut eum non posse resistere facientibus, aut iniuste ista vel facere vel permittere.
Numquidnam sicut animalia irrationabilia recte dicimus in usus dari naturis excellentioribus,
etsi vitiosis, sicut apertissime in evangelio videmus, porcos ad usum desideratum concessos esse
daemonibus; hoc et de homine recte possumus dicere? Animal est enim, sed rationale, etsi
mortale. Anima est rationalis in illis membris, quae tantis afflictionibus poenas luit; Deus bonus
est, Deus iustus est, Deus omnipotens est: hoc dubitare omnino dementis est. Tantorum ergo
malorum, quae fiunt in parvulis, causa iusta dicatur. Nempe cum maiores ista patiuntur, solemus
dicere aut sicut in Iob merita examinari, aut sicut in Herode peccata puniri; de quibusdam
exemplis, quae Deus manifesta esse voluit, alia quae obscura sunt homini coniecturae concedi,
sed hoc in maioribus. De parvulis autem quid respondeamus edissere, si poenis tantis nulla in
eis sunt punienda peccata. Nam utique nulla est in illis aetatibus examinanda iustitia.
17. De ingeniorum vero diversitate, quid dicam? Quae quidem in parvulis latet, sed ab ipsis
exordiis naturalibus ductum, apparet in grandibus, quorum nonnulli tam tardi et obliviosi sunt,
ut ne prima quidem discere litterarum elementa potuerint: quidam vero tantae sunt fatuitatis, ut
non multum a pecoribus differant; quos moriones vulgo vocant. Respondetur fortasse: Corpora
hoc faciunt. Sed numquid secundum hanc sententiam quam defendi volumus, anima sibi
corpus elegit, et in eligendo cum falleretur, erravit? aut cum in corpus cogeretur intrare
necessitate nascendi, alia corpora praeoccupantibus animarum turbis, ipsa aliud non invenit, et
sicut in spectaculo aliquo locum, ita carnem non quam voluit, sed quam valuit, occupavit?
Numquid haec et talia vel dicere possumus, vel sentire debemus? Doce igitur quid sentire, quid
dicere debeamus, ut constet nobis ratio novarum animarum singulis corporibus singillatimque
factarum.
18. Ego quidem non de ingeniis, sed saltem de poenis parvulorum, quas in hac vita patiuntur,
dixi aliquid in libris illis de libero arbitrio. Quod quale sit, et cur mihi in ista, quam habemus in
manibus quaestione non sufficiat, intimabo, et eum ipsum de tertio libro locum excerptum his
litteris inseram; nam ita se habet: De cruciatibus autem corporis quibus affliguntur parvuli,
quorum per aetatem nulla peccata sunt, si animae quibus animantur, non prius quam ipsi
homines esse coeperunt, maior querela et quasi misericors deponi solet, cum dicitur: Quid mali
fecerunt, ut ista paterentur? Quasi possit esse innocentiae meritum, ante quam quisque nocere
aliquid possit. Cum autem boni aliquid operatur Deus in emendatione maiorum, cum
parvulorum suorum qui eis cari sunt, doloribus ac mortibus flagellantur, cur ista non fiant,
quando cum transierint, pro non factis erunt, in quibus facta sunt; propter quos autem facta sunt,
aut meliores erunt, si temporalibus incommodis emendati, rectius elegerint vivere; aut
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excusationem in futuri iudicii supplicio non habebunt, si vitae huius angoribus, ad aeternam
vitam desiderium convertere noluerint? Quis autem novit quid parvulis, de quorum cruciatibus
duritia maiorum contunditur, aut exercetur fides, aut misericordia probatur: quis ergo novit quid
ipsis parvulis in secreto iudiciorum suorum bonae compensationis reservet Deus? Quoniam
quamquam nihil recte fecerint, tamen nec peccantes aliquid ista perpessi sunt. Non enim frustra
etiam infantes illos, qui cum Dominus noster Iesus Christus necandus ab Herode quaereretur,
occisi sunt, in honorem martyrum receptos commendat Ecclesia.
19. Haec tunc dixi, cum hanc ipsam de qua nunc agitur vellem communire sententiam. Sicut
enim paulo ante commemoravi, quaecumque illarum de animae incarnatione quattuor
opinionum vera esset, inculpatam substantiam Creatoris, et a nostrorum peccatorum societate
remotissimam nitebar ostendere. Et ideo quaecumque illarum veritate posset convinci et
repudiari, ad curam intentionis meae, quam tunc habebam, non pertinebat: quandoquidem
cunctis diligentiore disputatione discussis, quaecumque illarum recte vinceret ceteras, me
securissimo fieret, quando etiam secundum omnes id, quod agebam, invictum persistere
demonstrabam. Nunc vero unam volo, si possim, rationem rectam eligere ex omnibus; et
propterea huius ipsius, de qua nunc agimus defensionem, in his, quae commemoravi de illo
libro, verbis meis attentius intuens, validam firmamque non video.
20. Nam velut firmamentum eius illud est, quod ibi dixi: Quis autem novit quid parvulis, de
quorum cruciatibus duritia maiorum contunditur, aut exercetur fides, aut misericordia probatur,
quis ergo novit quid ipsis parvulis in secreto iudiciorum suorum bonae compensationis reservet
Deus? Sed hoc non immerito dici video de his, qui vel pro Christi nomine ac vera religione tale
aliquid etiam nescientes patiuntur, vel sacramento Christi iam imbuti sunt, quia sine societate
unius mediatoris liberari a damnatione non possunt, ut possit eis, etiam pro illis malis, quae hic
in diversis afflictionibus pertulerunt, compensatio ista praestari. Nunc autem cum ista quaestio
non possit absolvi, nisi etiam de his parvulis respondeatur, qui post gravissimos cruciatus sine
sacramento Christianae societatis expirant quae circa eos compensatio cogitanda est, quibus
insuper et damnatio praeparata est? Nam et de baptismo parvulorum in eodem libro, non quidem
sufficienter, sed quantum illi operi satis esse videbatur, utcumque respondi, quod etiam
nescientibus, et fidem suam nondum habentibus prodest; non tamen de damnatione eorum
parvulorum, qui sine illo ex hac vita emigrant, tunc aliquid dicendum putavi, quia non quod
nunc agitur agebatur.
21. Sed ut omittamus et contemnamus ea, quae brevi tempore patiuntur, nec transacta
revocantur, numquid similiter contemnere possumus, quod per unum hominem mors, et per
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unum hominem resurrectio mortuorum. Sicut enim in Adam omnes moriuntur, sic et in Christo
omnes vivificabuntur? Per hanc enim apostolicam, divinam, claramque sententiam, satis
evidenter elucet, neminem ire in mortem nisi per Adam, neminem ire in vitam aeternam, nisi per
Christum. Hoc est quippe omnes et omnes, quia sicut omnes homines per primam, hoc est
per carnalem generationem pertinent ad Adam, sic omnes homines ad secundam, id est
spiritalem generationem veniunt, quicumque ad Christum perveniunt. Ideo ergo dictum est, et
hic omnes, et ibi omnes, quia sicut omnes qui moriuntur, non nisi in Adam moriuntur, ita
omnes qui vivificabuntur, non nisi in Christo vivificabuntur. Ac per hoc, quisquis nobis dixerit
quemquam in resurrectione mortuorum vivificari posse nisi in Christo, tamquam pestis
communis fidei detestandus est. Item quisquis dixerit, quod in Christo vivificabuntur etiam
parvuli qui sine sacramenti eius participatione de vita exeunt, hic profecto et contra apostoli
praedicationem venit, et totam condemnat Ecclesiam, ubi propterea cum baptizandis parvulis
festinatur et curritur, quia sine dubio creditur aliter eos in Christo vivificari omnino non posse.
Qui autem non vivificantur in Christo, restat ut in ea condemnatione maneant, de qua dicit
apostolus: Per unius delictum in omnes homines ad condemnationem. Cui delicto obnoxios
parvulos nasci, et omnis credit Ecclesia, et ipse iam contra Iovinianum disputans, et exponens
Ionam prophetam, sicut paulo ante commemoravi, fide veracissima definisti; credo et in aliis
locis opusculorum tuorum, quae vel non legi, vel in praesentia non recordor. Huius igitur
damnationis in parvulos causam requiro; quia neque animarum, si novae fiunt singulis singulae,
video esse ullum in illa aetate peccatum, nec a Deo damnari aliquam credo quam videt nullum
habere peccatum.
22. An forte dicendum est, in parvulo carnem solam causam esse peccati, novam vero illi
animam fieri, qua secundum Dei praecepta vivente, in adiutorio gratiae Christi, et ipsi carni
edomitae ac subiugatae possit incorruptionis meritum comparari. Sed quia in parvulo anima
nondum id agere potest, nisi Christi acceperit sacramentum, per hanc gratiam carni eius
adquiritur, quod illius moribus nondum potuit. Si autem sine illo sacramento anima parvuli
exierit, ipsa quidem in aeterna vita erit, unde eam nullum peccatum potuit separare: caro vero
eius non ressurget in Christo, non percepto ante mortem illius sacramento?
23. Hanc opinionem numquam audivi, numquam legi. Sed plane audivi et credidi, propter quod
et locutus sum, quia venit hora, quando omnes qui in monumentis sunt, audient vocem eius; et
procedent qui bene fecerunt, in resurrectionem vitae. Ipsa est de qua dicitur: et per unum
hominem resurrectio mortuorum; ipsa est qua in Christo omnes vivificabuntur; qui autem
male egerunt, in resurrectionem iudicii. Quid hic ergo de illis infantibus intellegendum est, qui
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prius quam possent agere vel bene vel male, sine baptismo corpore exuti sunt? Nihil hic de
talibus dictum est. Sed si caro eorum ideo non ressurget, quia nec boni aliquid egerunt, nec
mali; nec illorum resurrectura est, qui percepta baptismi gratia, in illa aetate defuncti sunt, in
qua nihil bene vel male agere potuerunt. Si autem illi inter sanctos ressurgent, id est inter eos
qui bene egerunt; inter quos et illi resurrecturi sunt, nisi inter eos qui male egerunt, ne aliquas
humanas animas credamus corpora sua non recepturas, sive in resurrectionem vitae, sive in
resurrectionem iudicii? Quae sententia prius quam refellatur, ipsa novitate iam displicet. Deinde
quis ferat, si credant se illi, qui ad baptismum cum suis parvulis currunt, propter carnes eorum,
non propter animas currere? Beatus quidem Cyprianus non aliquod decretum condens novum,
sed Ecclesiae fidem firmissimam servans, ad corrigendos eos, qui putabant ante octavum diem
nativitatis non esse parvulum baptizandum, non carnem, sed animam dixit non esse perdendam;
et mox natum, rite baptizari posse, cum suis quibusdam coepiscopis censuit.
24. Sed contra Cypriani aliquam opinionem, ubi quod videndum fuit, fortasse non vidit, sentiat
quisque quod libet; tantum contra apostolicam manifestissimam fidem nemo sentiat, quae ex
unius delicto omnes in condemnationem duci praedicat; ex qua condemnatione non liberat, nisi
gratia Dei per Iesum Christum Dominum nostrum, in quo uno omnes vivificantur quicumque
vivificantur. Contra Ecclesiae fundatissimum morem nemo sentiat, ubi ad baptismum, si propter
sola parvulorum corpora curreretur, baptizandi offerrentur et mortui.
25. Quae cum ita sint, quaerenda causa, atque reddenda est, quare damnentur animae, quae
novae creantur singulis quibusque nascentibus, si praeter Christi sacramentum parvuli
moriantur. Damnari enim eas, si sic de corpore exierint, et sancta Scriptura, et sancta est testis
Ecclesia. Vnde illa de animarum novarum creatione sententia, si hanc fidem fundatissimam non
oppugnat, sit et mea; si oppugnat, non sit et tua.
26. Nolo mihi dicatur, pro hac sententia debere accipi quod scriptum est: Qui finxit spiritum
hominis in ipso; et: Qui finxit singillatim corda eorum. Aliquid fortissimum atque
invictissimum requirendum est, quod nos non cogat Deum credere ullarum animarum sine culpa
aliqua damnatorem. Nam vel tantumdem valet, vel plus est forsitan creare, quam fingere, et
tamen scriptum est: Cor mundum crea in me, Deus. Nec ideo putari potest, animam hoc loco
optare se fieri, prius quam aliquid esset: sicut ergo iam existens creatur innovatione iustitiae, sic
iam existens fingitur conformatione doctrinae. Nec illud quod in Ecclesiaste scriptum est: Tunc
convertetur in terram pulvis sicut fuit, et spiritus revertetur ad Dominum qui dedit illum istam
confirmat sententiam, quam esse volumus nostram; plus enim hoc suffragatur eis, qui ex una
putant omnes esse animas. Nam sicut convertitur, inquiunt, pulvis in terram, sicut fuit, et tamen
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caro, de qua hoc dictum est, ad hominem non revertitur, ex quo propagata est, sed ad terram,
unde primus homo factus est, sic et spiritus ex illius unius spiritu propagatus, non tamen ad eum
revertitur, sed ad Dominum, a quo illi datus est. Verum quia hoc testimonium ita pro istis sonat,
ut non omni modo huic opinioni, quam defendi volo, videatur esse contrarium, admonendam
tantum credidi prudentiam tuam, ne talibus testimoniis ex his angustiis me coneris eruere. Nam
licet nemo faciat optando, ut verum sit quod verum non est: tamen si fieri posset, optarem ut
haec sententia vera esset: sicut opto ut, si vera est, abs te liquidissime atque invictissime
defendatur.
27. Haec autem difficultas etiam illos sequitur, qui iam existentes alibi animas, et ab initio
divinorum operum praeparatas, a Deo mitti opinantur in corpora. Nam et ab his hoc idem
quaeritur. Si animae inculpatae obedienter veniunt, quo mittuntur; cur in parvulis, si non
baptizati vitam istam finierint, puniuntur? Eadem prorsus in utraque sententia difficultas est. Illi
sibi videntur de hac facilius exire quaestione, qui animas asseverant pro meritis vitae prioris,
singulas singulis corporibus implicari. Hoc enim putant esse in Adam mori, in carne scilicet,
quae propagata est ex Adam, supplicia pendere; a quo reatu, inquiunt, gratia Christi liberat
pusillos cum magnis. Hoc quidem recte, veraciter, optime, quod gratia Christi liberat a reatu
peccatorum pusillos cum magnis. Sed in alia superiore vita peccare animas, et inde praecipitari
in carceres carneos, non credo, non acquiesco, non consentio. Primo quoniam nescio per quos
circuitus id aiunt isti ut post nescio quanta volumina saeculorum iterum ad istam sarcinam
corruptibilis carnis et supplicia pendenda redeundum sit: qua opinione quid horribilius cogitari
possit ignoro. Deinde quis tandem iustus defunctus est, de quo non, si isti vera dicunt, solliciti
esse debeamus, ne in sinu Abrahae peccans, in flammas illius divitis deiciatur? Cur enim non et
post hoc corpus peccare possit, si et ante potuit? Postremo longe aliud est in Adam peccasse,
unde dicit apostolus, in quo omnes peccaverunt, et aliud est extra Adam nescio ubi peccasse et
ideo in Adam, id est in carnem quae ex Adam propagata est, tamquam in carcerem trudi. Illam
vero opinionem, quod ex una fiant omnes animae, nec discutere volo, nisi necesse sit. Atque
utinam ista, de qua nunc agimus, si vera est, sic abs te defendatur, ut hoc necesse iam non sit.
28. Quamvis autem desiderem, rogem, votis ardentibus exoptem et expectem, ut per te mihi
Dominus huius rei auferat ignorantiam: tamen si, quod absit, minime meruero, patientiam mihi
petam a Domino Deo nostro; in quem sic credimus, ut si aliqua nobis non aperiri etiam
pulsantibus, nullo modo adversus eum murmurare debeamus. Meminerimus prius ipsis apostolis
dictum: Multa habeo vobis dicere, sed non potestis illa portare modo. In his, quantum ad me
attinet, etiam hoc deputem, nec qui hoc sciam me indigner indignum, ne hoc ipso etiam
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convincar indignior. Multa enim alia similiter nescio, quae commemorare vel enumerare non
possum; et hoc tolerabiliter ignorarem, nisi metuerem, ne aliqua istarum opinionum contra illud
quod firmissima retinemus fide, incautis obreperet mentibus. Sed antequam sciam, quaenam
earum potius eligenda sit, hoc me non temere sentire profiteor, eam quae vera est, non adversari
robustissimae ac fundatissimae fidei, qua Christi Ecclesia nec parvulos homines recentissime
natos a damnatione credit, nisi per gratiam nominis Christi, quam in suis sacramentis
commendavit, posse liberari.

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1. A Nosso Deus que nos chamou para o seu reino e glria1 pedi e peo, que Ele queira nos
tornar til aquilo que te escrevo, santo irmo Jernimo, consultando a ti sobre um tema que
desconheo. Ora, embora tu sejas muito mais velho do que eu, ainda assim eu venho te
consultar como algum j idoso. Mas julgo que nenhuma idade avanada para aprender aquilo
que necessrio pois, ainda que aos velhos caiba antes ensinar que aprender, mais lhes cabe
aprender que desconhecer aquilo que eles ensinam2. Quanto a mim, nada me mais lamentvel,
entre todas as minhas angstias, as quais sofro nos problemas mais difceis, que a ausncia de
tua caridade, to distante que mal posso te enviar cartas minhas, e mal receber as tuas (por um
intervalo no de dias, nem de meses, mas at de anos), ao passo que eu gostaria, se isso me
fosse possvel, de te ter aqui todos os dias, falar contigo sobre o que eu quisesse. Porm, no
poder fazer tudo que eu quero no razo para no fazer aquilo que eu devo.
2. Eis que veio a mim um jovem religioso3, irmo na paz catlica, filho nosso em idade mas
compresbtero em honra, Orsio4 , de talento brilhante, de pronta eloquncia, de imensa energia,
desejoso de ser um vaso til na casa do Senhor para combater as doutrinas enganosas e nocivas
que trucidaram as almas dos hispnicos com muito mais crueldade que a lmina brbara
trucidou seus corpos5. Pois foi assim que ele se apressou at ns, desde as praias do
Mediterrneo, impelido pela fama de que poderia escutar o que quisesse de mim sobre tudo o
que quisesse conhecer. Sua chegada no deixou de receber frutos, em primeiro lugar porque ele
deixou de atribuir tamanha fama minha pessoa, e em seguida porque lhe ensinei o que
consegui; o que eu no consegui, porm, recomendei-lhe algum de quem ele pudesse aprender,
e assim o aconselhei a ir at ti. Quanto a isso, uma vez que ele tomou meu conselho (ou
recomendao) com boa-vontade e obedincia, eu supliquei que ele viesse imediatamente at
aqui depois de te deixar. Fiando-me promessa dele, acreditei que uma chance havia sido
concedida pelo Senhor a mim para te escrever sobre assuntos que desejo conhecer atravs de ti.
Ora, eu procurava algum para te enviar e no me era fcil encontrar um homem
suficientemente adequado, algum que tivesse minha confiana para a empresa, prontido em
obedecer, e experincia em viajar. Foi quando deparei com esse jovem, e no pude duvidar que
era exatamente uma pessoa como ele quem eu pedia ao Senhor.
3. Portanto, recebe algo que, eu te peo, no consideres um fardo elucidar e discutir. A questo
sobre a alma incomoda a muitos, entre os quais, confesso, eu tambm me encontro. Certo, eu
no deixarei de mostrar o que sei com muita convico sobre a alma; em seguida, adicionarei os
pontos que gostaria, at ento, que me fossem esclarecidos6 . A alma do homem imortal
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Aug. ep. 166 de origine...
segundo uma modalidade7 que lhe prpria. Ora, ela no imortal em todas as modalidades,
como Deus, de quem foi dito que s Ele tem a imortalidade8: afinal, a Santa Escritura faz
diversas aluses morte da alma, de onde temos aquela passagem: deixa os mortos sepultar os
seus mortos9 ; assim, j que a alma que se afastou da vida em Deus acaba morrendo, ainda que
ela no deixe de viver completamente em sua prpria natureza, assim se conclui que ela
mortal segundo um certo ponto de vista, de modo que no sem razo que ela chamada de
imortal10 . A alma no uma parte de Deus11 . Ora, se ela fosse isso, a alma seria imutvel e
incorruptvel em toda modalidade; e, se ela fosse assim, a alma no se rebaixaria ao pior, nem se
elevaria ao melhor, e nem passaria a ter tampouco em si mesma o que no tinha, ou perderia o
que tinha, ao menos no que diz respeito s disposies anmicas12. No preciso uma prova
extrnseca para demonstrar quo verdadeiro se d o contrrio; chegar a essa concluso quem
quer que observar a si mesmo13 . em vo, porm, que alguns homens, os quais afirmam que a
alma uma parte de Deus, sustentam que a sordidez e a torpeza da alma, as quais encontramos
nas pessoas mais infames que, ainda, a fraqueza, a doena da alma que sentimos em todas as
pessoas , no surgem propriamente a partir da alma, mas a partir do corpo14. Que importa de
onde a alma adoece, j que, se a alma fosse imutvel, no poderia adoecer, no importa de onde
fosse? Pois o que verdadeiramente imutvel e incorruptvel no pode ser modificado e nem
corrompido pela interferncia de coisa alguma. Do contrrio no s a carne de Aquiles seria
invulnervel, como conta a lenda15, mas toda a carne tambm, se no lhe pudesse acontecer
nenhum acidente. Assim, no imutvel por natureza aquilo que de algum modo, por alguma
razo, e em alguma parte mutvel; quanto a Deus, porm, mpio acreditar que Ele seja algo
que no um Ser verdadeira e absolutamente imutvel16. A alma, portanto, no uma parte de
Deus.
4. Que a alma tambm incorprea, ainda que possa ser difcil convencer os mais ineptos,
confesso, porm, que me convenceram disso. Mas para que eu no levante sem motivos (ou
venha a sofrer merecidamente) uma discusso sobre termos17 (j que, quando o assunto
evidente, no necessrio discutir o conceito) se corpo toda substncia ou toda essncia
ou (como mais apropriado lhe designar) tudo aquilo que de algum modo existe em si mesmo,
ento a alma um corpo. Igualmente, se devemos chamar de incorprea somente uma
natureza tal que absolutamente imutvel e ubqua, ento a alma tambm um corpo, j que ela
no desse jeito. No entanto, se um corpo no seno aquilo que ocupa no espao uma certa
altura, largura e profundidade, e que assim se estabelece ou se movimenta ao ocupar um espao
maior ou menor segundo o seu tamanho e que seja menor em parte que em todo, ento a alma
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no um corpo. De fato, a alma se expande por todo o corpo, dando-lhe vida, no atravs de
uma difuso local, mas atravs de uma certa tenso vital18 . Ela est presente total e
simultaneamente por todas as partculas do corpo; ela no menor nas menores, nem maior nas
maiores, mas tem mesma extenso por todo lugar, a mesma retenso por todo lugar, e est em
totalidade tanto em todas as partes, quanto est em totalidade nas partes individuais19. Ora, no
de outra maneira que a alma sente em totalidade aquilo que ela no sente em todo o corpo.
Ora, quando algo tocado na carne viva, em um ponto muito pequeno, embora esse espao no
s no represente o corpo todo, como, ainda, mal se pode v-lo no corpo, esta sensao no
consegue escapar, porm, alma toda; tampouco a sensao que se d consegue percorrer todas
as partes do corpo, mas a sentimos somente onde ela se d20 . Logo, de que modo a alma poderia
expandir-se em totalidade naquilo que no acontece no corpo inteiro se ela no estivesse em
totalidade naquela parte do corpo onde se d a sensao (e ainda assim ela no se ausenta das
outras, de modo que esteja em totalidade naquele local)? Ora, tais partes tambm tm vida em
sua presena, mesmo onde no se sente nada. Se algo acontecesse, e duas coisas acontecessem
ao mesmo tempo, ambas as sensaes no conseguiriam escapar alma simultaneamente. Por
conseguinte, a alma no poderia estar simultaneamente em totalidade nas partculas do corpo,
em todas e ao mesmo tempo nas individuais, se ela por a se espalhasse da mesma maneira que
vemos os corpos, difusos pelo espao, ocuparem espaos menores com suas partes menores, e
mais amplos com as suas partes mais amplas. Por causa disso, se devemos chamar a alma de
corpo, no se trata, certamente, de um corpo feito de terra, gua, ar ou ter21. De fato, todos os
corpos desse tipo so maiores em espaos maiores, e menores em espaos menores, e nada deles
est presente em totalidade em qualquer parte sua, mas existem nas partes do espao conforme
estas so ocupadas por suas partes. A partir da, compreende-se que a alma deva ela ser
chamada de corpo ou de incorprea tem uma natureza especfica que lhe prpria; que ela
criada a partir de uma substncia mais pura em relao a todos os elementos de carter material;
e que ela no pode ser imaginada de maneira verdica como uma representao22 qualquer de
imagens corporais, as quais apreendemos pelos sentidos da carne, mas que ela deve ser
compreendida atravs razo e sentida atravs da vida23. Eu no afirmo tudo isso para te ensinar
algo que tu j conheces, mas para esclarecer o que eu sei com muita segurana sobre a alma,
para que ningum julgue, quando eu chegar ao destino que procuro, que eu no tenho nenhum
conhecimento ou f sobre a alma.
5. Tambm estou certo de que no foi por culpa de Deus, nem devido a uma necessidade que
afeta a Ele ou a si prpria, mas que foi a partir da prpria vontade24 da alma que ela tombou no
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pecado; de que ela no pode se libertar do corpo dessa morte25 seja em virtude de sua prpria
vontade, como se ela lhe fosse suficiente, seja pela morte do prprio corpo, mas somente pela
Graa de Deus, por Jesus Cristo Nosso Senhor26; e de que no h uma nica alma em absoluto
na espcie humana que no tenha necessidade, para libertar-se, do Mediador entre Deus e os
homens, Jesus Cristo homem27 . Assim, qualquer alma que venha a perecer do corpo sem a
Graa do Mediador e sem o seu sacramento28 ser, independente da sua idade corporal,
condenada e castigada quando recuperar seu corpo no Juzo Final. Muito embora, se, aps a
reproduo humana a qual foi criada a partir de Ado , a alma se regenerar em Cristo,
firmando-lhe comunho, ela ter descanso aps a morte e receber seu corpo em glria no
futuro29. So essas as minhas convices acerca da alma.
6. Agora toma, eu te imploro, as minhas dvidas e no me desprezes, assim como no te
desprezaria aquele que se dignou a ser desprezado por ns30. Eu busco saber de onde a alma
contraiu a culpa que lhe arrasta condenao at mesmo na morte prematura dos recm-
nascidos se no lhe vier em auxlio a Graa de Deus, por meio do sacramento em que as
crianas so batizadas31 . Ora, tu no te encontras entre aqueles que comearam recentemente a
tagarelar umas coisas estranhas, afirmando que no h nenhuma culpa que venha de Ado e que
deva ser absolvida nos recm-nascidos atravs do batismo32 . Se eu soubesse que tal tua
opinio, ou melhor, se eu no soubesse que essa no tua opinio, de modo algum eu julgaria
necessrio, ou sequer cogitaria buscar teu parecer sobre isso. Porm, j que temos tua concluso
sobre esse assunto afinada f de fundamento mais slido , qual tu adicionaste, em
refutao aos falatrios de Joviniano33 , um testemunho do livro de J: ningum puro diante
de ti, nem mesmo a criana cuja vida de um dia sobre a terra34 , e em seguida colocaste:
somos condenados no pecado semelhana do pecado de Ado35; e j que tu declaras, em teu
livro sobre o profeta Jonas36 , ter a mesma opinio, de maneira bastante esclarecedora e lcida,
ao afirmares que correto fazer as crianas jejuarem devido ao Pecado Original no se trata
ento de presuno minha buscar saber de ti de onde a alma teria contrado uma culpa tal que,
mesmo em tenra idade, seja preciso libert-la pelo sacramento da Graa crist.
7. Quanto a mim, h alguns anos, quando eu escrevia alguns livros sobre o livre arbtrio
(muitos os leram, e muitos os conhecem bem agora), foram quatro as hipteses sobre a
encarnao da alma37 que eu l coloquei: se a partir daquela nica alma, que foi dada ao
primeiro homem, que as almas seguintes se reproduzem; se almas novas so criadas at hoje
individualmente a cada indivduo; ou se as almas, j existentes em algum lugar, so enviadas
aos corpos por ao divina ou tombariam neles voluntariamente; eu decidi abord-las de
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Aug. ep. 166 de origine...
maneira tal que, independente de qual dessas hipteses fosse a verdadeira, isto no impediria
meu objetivo que era, naquela ocasio, colocar-me com todas as foras contra aqueles que
tentam introduzir, contra Deus, uma natureza do mal dotada de princpio prprio (isto , eu
escrevia em oposio aos maniqueus); at ento eu nada havia escutado sobre os
priscilianistas38, que inventam blasfmias no muito diferentes desses. Desse modo, no ajuntei
a quinta hiptese a qual tu mencionaste (entre as outras) em tua carta39, para que no
deixasses de lado nada ao responderes a Marcelino40 (homem de santa memria, muito querido
por ns na caridade de Cristo), que ento te perguntava sobre esse problema a saber, que a
alma seria uma parte de Deus, primeiro porque, quando se coloca essa questo, questiona-se
sobre sua natureza, no sobre sua encarnao; alm disso, porque esse o juzo dos maniqueus,
contra os quais eu me colocava, e o fazia principalmente para distinguir a natureza inculpvel e
inviolvel do Criador dos vcios e da sordidez da criatura, uma vez que eles pretendem que a
prpria substncia do bom Deus foi em parte (como se essa tivesse sido capturada)
corrompida, coagida e levada necessariamente a pecar pela substncia do mal ( qual atribuem
um princpio prprio e seres governantes)41. Dessa maneira, descartado o erro dessa teoria
hertica, desejo saber qual hiptese, dentre as quatro restantes, deve ser escolhida. Ora, seja qual
devamos escolher, que ela (se Deus quiser) no coloque em dvida a crena, da qual estamos
convictos, de que a libertao das amarras do pecado necessria toda alma, at mesmo
alma da criana, e que no h libertao seno por Jesus Cristo, e este crucificado42.
8. Por conseguinte, para que no nos alonguemos, tu certamente julgas que Deus at hoje cria
almas individualmente a cada indivduo que nasce. Para que o fato de Deus ter consumado todas
as criaturas no sexto dia e descansado no stimo no viesse a criar uma objeo a esta
concluso, tu citaste o seguinte testemunho do Evangelho: meu Pai trabalha at agora, e eu
trabalho tambm43. Ora, foi assim que escreveste a Marcelino44 , carta em que tu tiveste a
dignidade de fazer, com muita boa-vontade, meno a mim, j que ele me tinha aqui, na frica,
eu que poderia lhe explicar com mais facilidade essa opinio. Porm, se eu pudesse, ele no
teria procurado sab-la antes de ti, to distante dele, e mesmo assim ele te escreveu daqui (pois
eu no sei quando ele teria escrito; sei somente que ele conheceu bem a minha incerteza sobre o
tema, da ele ter decidido te escrever sem me consultar45). Ainda assim, mesmo que ele tivesse
me consultado antes, eu o teria encorajado mais ainda a te escrever, e teria o agradecido por ter
conseguido, a ns todos, conferir contigo a questo que ele buscava solucionar, a no ser que tu
quisesses antes responder brevemente do que discutir, evitando assim desgastar-se em vo, creio

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e eis que era essa a minha situao, eu que, pensavas tu, tinha domnio sobre a questo;
quisera eu que essa opinio tambm fosse a minha, mas reitero que esse ainda no o caso.
9. Tu me enviaste alunos46 para que eu lhes ensinasse um assunto que eu mesmo ainda no
aprendi. Logo, ensina tu o que eu ensinaria! Muitos, a saber, me insistem para lhes ensinar
determinado assunto, ao passo que eu lhes confesso que tambm o desconheo (como muitos
outros). E talvez, mesmo que eles possam sentir vergonha em minha presena, eles pensariam
consigo: tu s professor de Israel, e no sabes isso47? Foi exatamente o que o Senhor disse
quele homem, que era um daqueles que gostavam de ser chamados de rabino, quando viera
ter com o verdadeiro professor somente de noite (talvez porque um homem que estava
acostumado a ensinar tinha vergonha de aprender48 ). No meu caso, porm, agrada-me mais
escutar o professor que ser escutado como um professor. Ora, retomo o que Ele disse queles
que Ele escolheu dentre os outros: vs, porm, no queirais ser chamados rabino; um s o
vosso professor, a saber, o Cristo49. E no foi outra coisa que Ele ensinou a Moiss por meio de
Jetro, e no foi tampouco outra a Cornlio, por meio do primognito Pedro, nem foi outra a
Pedro por meio de Paulo, seu posterior50 . No importa por quem proferido o que verdadeiro:
se Ele consente, tal proferido, pois Ele a prpria verdade51. Assim, se desse modo
desconhecemos at ento essa questo e no conseguimos resolv-la atravs da orao, nem da
leitura, nem da imaginao, nem da razo52 , com quanta caridade ns devemos no s ensinar
os ignorantes, mas com quanta humildade ns devemos, tambm, aprender dos eruditos, a fim
de que a aprovemos?
10. Logo, ensina tu, por favor, o que eu ensinaria, ensina tu o que eu saberia, e me diz: se as
almas so criadas ainda hoje uma a uma a cada indivduo que nasce, quando que elas pecam
nas crianas que, no caso, carecem da remisso do pecado no sacramento de Cristo, pecadoras
em Ado, a partir do qual propagou-se a carne do pecado53? Ou, se elas no pecam, por qual
justia do Criador elas so assim amarradas a um pecado que no delas, j que, to logo
inseridas em corpos reproduzidos a partir dos mortais, segue-lhes a condenao (a no ser que a
Igreja venha a ajud-las, j que no depende delas que a Graa do batismo possa lhes vir em
auxlio)? Assim, por qual princpio de equidade tantas milhares de almas so condenadas, as
quais, no caso da morte das crianas, perecem dos corpos sem a prestao do sacramento
cristo, supondo que elas so criadas novas e sem herdar qualquer pecado que lhes precede, mas
que se ajuntam, pela vontade do Criador, individualmente a cada indivduo que nasce almas
que Ele criou e concedeu para lhes dar a vida, Ele que certamente sabia que cada uma delas iria
perecer do corpo sem o batismo de Cristo, sem qualquer falta pessoal54? Afinal, j que no
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Aug. ep. 166 de origine...
podemos dizer de Deus que Ele obriga as almas a se tornarem pecadores, ou que Ele castiga as
almas inocentes, e tampouco nos permitido negar que as almas que perecem dos corpos sem o
sacramento de Cristo so arrastadas (mesmo no caso das crianas) seno condenao, eu te
imploro, de que maneira podemos defender uma hiptese que nos faz acreditar que as almas no
seriam criadas a partir daquela nica do primeiro homem, mas sim como aquela nica a este
nico, e assim individualmente a cada indivduo?
11. Mas, na verdade, sobre os outros argumentos que dizem ser contrrios a essa hiptese, penso
que posso facilmente refut-los, como o caso daquela objeo com a qual alguns procuram
desmont-la: de que maneira teria Deus consumado toda a sua obra no sexto dia e descansado
no stimo, se at hoje Ele cria almas novas? Se repetirmos a eles a passagem que citaste do
Evangelho na carta mencionada anteriormente, meu Pai trabalha at agora, e eu trabalho
tambm, respondero que trabalha significa que Ele administra as almas j estabelecidas,
no que Ele estabelece novas naturezas, para que assim o Evangelho no entre em contradio
com os livros do Gnesis, onde lemos de maneira bastante evidente que Deus consumou toda a
sua obra. Ora, visto que tambm est escrito que Ele descansou, certamente devemos entender
que foi de criar novas criaturas, mas no de govern-las, porque Ele ento fizera coisas que
no existiam, e Ele descansou de faz-las assim, porque Ele havia consumado todas as obras
que, antes mesmo de existirem, julgou necessrio que fossem feitas, de modo que Ele em
seguida criasse e fizesse (independente do que fizesse) no coisas que no existiam, mas a
partir de coisas que j existiam55. Assim demonstramos que ambas as passagens so
verdadeiras, tanto aquela em que se diz: descansou no stimo dia de toda a sua obra, que tinha
feito, quanto aquela em que se diz: meu Pai trabalha at agora, e eu trabalho tambm, j que
o Evangelho no pode ser contraditrio ao Gnesis56.
12. Mas queles que do mesmo modo argumentam para que no se acredite que Ele ainda
cria alma novas (que no existiam) como a alma nica de Ado que Deus as cria a partir dela
(que j existia), e que Ele as envia seja de um tipo de fonte, seja de um tesouro qualquer (que
fizera outrora); ora, a eles respondemos facilmente que em apenas seis dias Deus criou muitas
coisas a partir de naturezas que j havia criado, como as aves e os peixes a partir das guas, e as
rvores, as ervas e os animais a partir da terra; ora, evidente que ele ento fizera coisas que
ainda no existiam. Ora, ainda no existiam aves, nem peixes, nem rvores, nem animais; assim,
bem compreendido, Ele descansou aps t-las criado, isto , Ele deixou de criar coisas que no
existiam. Mas agora, dizer que Deus envia as almas j existentes aos corpos no a partir de uma
fonte qualquer; que Ele no as faz chover de Si prprio como se fossem partculas suas; que Ele
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no as arrasta originalmente daquela nica; que Ele no as amarra com correntes devido a
crimes carnais cometidos antes da encarnao; mas sim que Ele as cria novas e individuais a
cada indivduo, cada uma a cada pessoa que nasce ora, isso no significa dizer que Ele faz
algo que no fizera antes. Ora, j no sexto dia Ele havia feito o homem em sua imagem (deve-se
compreender aqui, seguramente, com uma alma racional57 ). E Ele ainda trabalha nesse sentido
agora, no estabelecendo o que no existia, mas multiplicando o que j existia. Disso se segue
que tanto verdade que Ele parou de estabelecer coisas que no existiam, quanto verdade que
Deus trabalha at agora, no s governando o que Ele fez, como sobretudo aumentando a
quantidade no daquilo que ainda no existia, mas daquilo que Ele j criara. Logo, assim, ou
de outro modo qualquer, que nos livramos daquela objeo acerca do descanso de Deus em
relao a suas obras, para que no deixemos por isso de acreditar que almas novas so criadas
at hoje e no a partir daquela nica, mas como ela.
13. Quanto quela pergunta: por que Deus faz almas a seres que, sabe Ele, morrero em
breve?, poderamos responder que assim que os pecados dos pais so perdoados ou punidos.
Poderamos, ainda, e com razo, abandonar tais consideraes aos cuidados Dele que, sabemos,
regula a mais apropriada e a mais ordenada trajetria a todas as coisas que atravessam a
efemeridade do tempo, entre as quais est a origem e a ocaso dos seres vivos; mas intuir esse
movimento nos impossvel se o intussemos, regojizaramos todos na alegria eterna. Ora,
no foi em vo que foi dito de Deus pelo profeta (que o dissera pela inspirao divina), que Ele
abastece o mundo em grande abundncia58 . Da surge a msica, isto , a tcnica ou a
sensibilidade do ritmo, concedida generosamente por Deus aos homens mortais dotados de
almas racionais, para que se preservasse a memria daquele grande evento59. Da, se o homem,
arteso de cantos, sabe qual tom deve ser atribudo a cada voz, a fim de que se entoe e se toque
o mais belamente aquilo que se canta no suceder de sons mais agudos e mais graves, quanto
mais sabe Deus, cuja sabedoria, com a qual Ele tudo fez, de longe superior a todas as artes!
Nenhuma durao no nascer e perecer das coisas na natureza um ritmo que Ele manipula
como as slabas e as letras que formam as partculas desse mundo, na fluncia do mundo, como
em um cntico milagroso, rompendo sons ou mais breves ou mais longos conforme uma
melodia pr-conhecida e pr-acabada nada, nada deixa Ele escapar. Que eu tivesse falado da
folhagem das rvores, dos nossos fios de cabelo60, quanto mais da origem e do ocaso dos
homens, cuja vida no tempo se entoa no mais breve, no mais longa do que Deus, maestro dos
mundos, sabe afinar harmonia universal61.

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14. Agora, em relao a outra objeo que fazem, que tudo que comeou a existir no tempo no
pode ser imortal, porque tudo o que nasce morre, e o que cresce envelhece62, a fim de que nos
levem assim a acreditar que a a alma humana imortal somente porque teria sido criada antes
de todos os tempos; isso no perturba a nossa f. Ora, deixando de apresentar outras refutaes:
foi no tempo que comeou a existir a imortalidade da carne do Cristo, a qual, porm, j no
morre; a morte no mais tem domnio sobre Ele63.
15. Mas aquilo que tu mencionaste no livro contra Rufino64 , que alguns rejeitam essa hiptese
porque pareceria indigno de Deus dar almas aos filhos dos adlteros da eles tentam endossar
que devido a feitos de uma vida passada, antes da encarnao, que as almas podem com
justia ser conduzidas como se a crceres de certo tipo65 tal justificativa no me incomoda,
pois penso j em muitas objees com as quais essa calnia poderia ser refutada; tambm graas
a ti, por teres afirmado que no h culpa no germe do trigo roubado, o qual foi supostamente
afanado, mas sim naquele que roubou o gro; da mesma maneira, a terra no deveria deixar,
tambm, de aconchegar em seu colo as sementes s porque o lavrador as teria jogado com mos
imundas; a comparao bastante adequada. Ao ler tua concluso, e antes mesmo de l-la, esta
objeo sobre os fetos dos adlteros nunca me trouxe qualquer aflio, no que eu enxerguei, de
maneira geral, que Deus faz muitos bens at de nossos males e de nossos pecados. Muito
embora, se a criao de qualquer ser vivo que seja, quando ela considerada por algum
prudente e religioso, se ela traz tona a glria inefvel do Senhor, quanto mais a criao no de
um ser vivo qualquer, mas do homem! Mas se procurarmos a razo da criao, nenhuma
resposta mais adequada e melhor que a seguinte: que toda criatura de Deus boa; e o que seria
mais digno de um Deus bom que criar bens que ningum, a no ser Ele mesmo, pode criar66?
16. So esses e outros argumentos que eu posso, assim como posso, citar, e que posso colocar
em oposio queles que tentam arruinar a hiptese pela qual se cr que as almas so feitas aos
indivduos como aquela nica. Mas, quando se trata do castigo das crianas, cr em mim, eu me
encho de aflies terrveis e no encontro o que dizer; falo no apenas daqueles castigos que
esto reservados, aps essa vida, naquela condenao, qual necessariamente eles sero
arrastados, caso peream do corpo sem o sacramento da Graa crist; falo antes dos prprios
castigos que elas sofrem ainda em vida, ante nossos olhos e a despeito de nossa dor as quais,
se eu quisesse enumer-las, me faltaria antes tempo que exemplos. As crianas padecem de
doenas, contraem-se de dor, passam fome e sede, seus corpos se enfraquecem, privam-se dos
sentidos, so atormentadas por espritos imundos. Devemos certamente demonstrar de que
maneira as crianas sofrem sem um nico mal de sua parte. Ora, no correto afirmar que isso
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ocorre revelia de Deus, ou que Ele no pode resistir aos agentes dos males, ou, ainda, que Ele
mesmo cria ou permite tais males injustamente. Ora, se correto afirmar, no caso dos seres
vivos irracionais, que estes so dados ao uso de naturezas superiores (ainda que cheias de
defeitos), como vemos de modo muito evidente no Evangelho, no caso dos porcos deixados aos
demnios, para que estes fizessem deles o que bem entendessem67 seria correto afirmar a
mesma coisa sobre os homens? Ora, o homem um ser vivo, mas racional, e ainda mortal. A
alma racional naqueles membros, dos quais ela expia os castigos atravs de tantas aflies.
Deus bom, Deus justo, Deus todo-poderoso; duvidar disso a mais pura loucura. Portanto,
para tantos males que acometem as crianas, devemos afirmar que h, sim, uma razo justa68 .
Pois quando so os adultos que sofrem castigos, costumamos dizer que, como em J, seus
mritos so postos a prova ou, como em Herodes, que eles so punidos pelos pecados69; estes
so exemplos, quis Deus, evidentes, mas restam outros obscuros70, deixados conjectura dos
homens; mas isso entre os adultos. O que diremos, porm, sobre as crianas, examina tu se nelas
no h qualquer pecado a ser punido por tantos castigos; bvio que no h, naquela idade,
qualquer justia a ser posta a prova.
17. Agora, que devo dizer sobre a disparidade das capacidades cognitivas71? De fato, essa
diferena se esconde nas crianas, mas, se conduzida pelo curso natural das coisas, ela se
manifesta nos adultos, entre os quais alguns so lentos e desatentos a ponto de no conseguirem
aprender sequer o alfabeto; mais, alguns so to de fato limitados que mal se diferenciam dos
animais, eles que so chamados vulgarmente de retardados72. possvel dizer aqui que so
os corpos que produzem isso; mas ser, de acordo com essa concluso que queremos defender,
que se pode afirmar que a alma escolheu um corpo para si e, tendo-o escolhido, enganou-se,
errou; ou que, sendo obrigada a entrar no corpo devido necessidade de nascer, que a alma no
conseguiu encontrar outra opo em meio ao tumulto de almas que j ocupavam outros corpos e
que ela como nos assentos de um anfiteatro qualquer assim ocupou no a carne que
escolheu, mas aquela que conseguiu73 ? Ser que podemos afirmar, ou devemos pensar tais
coisas, e coisas parecidas? Ensina tu ento o que devemos pensar, o que devemos afirmar para
que nos seja firme a nossa hiptese das almas novas, feitas individualmente para cada corpo
individual.
18. Por minha vez, eu falei brevemente, em meus livros sobre o livre arbtrio74 , no exatamente
sobre as capacidades cognitivas, mas ao menos sobre os castigos que as crianas sofrem nesta
vida. Eu te revelarei do que se trata, tambm porque os argumentos que temos em mos no me
so suficientes para o problema, e citarei nesta carta uma passagem retirada do terceiro livro. L
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se coloca: reflitamos, agora, sobre o caso dos sofrimentos corporais com os quais as crianas
pequenas so atormentadas, as quais, devido a sua idade, esto isentas de qualquer pecado. Na
suposio de as almas que vivificam as crianas no terem j comeado a existir antes,
costumam alguns erguer lamentaes maiores, como se tivessem pena, e dizem: que mal
fizeram para sofrer assim?, falam como se pudesse haver algum mrito devido a inocncia,
antes de algum poder cometer algum mal. E no caso de Deus pretender obter alguma coisa de
bom para a correo dos adultos, quando os prova pelas dores e morte das crianas, que lhes so
queridas, por qual razo no haveria de faz-lo? Posto que, uma vez tendo passado esses
sofrimentos, tudo ser como se no tivessem existido, para aqueles a quem aconteceram? E
quanto queles em cuja inteno tais coisas tero acontecido, ou eles se tornaro melhores, no
caso de se corrigirem por meio dessas aflies temporais, e assim terem optado por viver com
mais retido, ou, no caso contrrio, no tero desculpa alguma diante da punio no julgamento
futuro, pois recusaram, apesar das angstias da vida presente, a voltarem os seus desejos em
direo da vida eterna. Alis, quem que pode saber o quanto a essas crianas cujos tormentos
visaram abalar a dureza do corao dos mais velhos ou pr em prova sua f, ou ainda manifestar
a sua piedade, quem, pois, poder saber qual ser a feliz compensao que Deus reserva a essas
crianas, no segredo de seus julgamentos? Portanto, se elas no praticaram ainda bem algum, foi
tambm sem haver pecado em nada que suportaram tais sofrimentos. Assim, lembremos aquelas
crianas postas morte, quando Herodes procurava o Senhor Jesus Cristo para o matar. No
em vo que a Igreja as apresenta nossa venerao, reconhecendo-as no nmero glorioso dos
mrtires75.
19. Enfim, eu o argumentei numa ocasio em que procurava fortificar essa mesma concluso
que est agora em pauta. Ora, assim como disse h pouco, independente de qual das quatro
hipteses sobre a encarnao da alma fosse a verdadeira, eu ento me esforava em mostrar que
a substncia do Criador desprovida de culpa e assim que ela completamente isenta do
contato com os nossos pecados. Dessa forma, independente de qual delas pudesse ser refutada e
rejeitada pela verdade, essa preocupao no dizia respeito aos meus objetivos de ento, uma
vez que, analisadas todas as possibilidades mediante detalhada discusso, e independente de
qual delas triunfasse corretamente sobre as outras, eu me encontrava em perfeita certitude, pois
l eu procurava ento demonstrar que a soluo que trabalhei permanecia invicta. Mas agora eu
quero delimitar, se me for possvel, uma nica soluo entre todas as hipteses, e por essa
razo que no vejo, nos excertos que citei daquele livro, e examinando minhas palavras mais de
perto, uma defesa suficientemente firme e slida da mesma concluso que discutimos agora.
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20. Pois o argumento que me serviu de alicerce para a tese aquele que eu l coloquei: alis,
quem que pode saber o quanto a essas crianas cujos tormentos visaram abalar a dureza do
corao dos mais velhos ou pr em prova a sua f, ou ainda manifestar a sua piedade, quem,
pois, poder saber qual ser a feliz compensao que Deus reserva a essas crianas, no segredo
de seus julgamentos? Mas vejo que no sem mrito que possvel tirar tal concluso sobre
tais almas, as quais sofrem algo do tipo (e mesmo sem o perceberem) seja em nome de Cristo
ou da verdadeira religio, seja j imbudas do sacramento de Cristo; e visto que elas no podem
se libertar da condenao sem a interveno do nico Mediador ; deve haver a elas uma tal
compensao em razo dos males que suportaram em tantas aflies por aqui. Mas agora, j que
esse problema no pode ser resolvido a no ser que se chegue a uma concluso acerca das
crianas que, aps gravssimos sofrimentos, faleceram sem o sacramento da comunho crist:
que compensao devemos atribuir a quem a condenao antes de tudo foi pr-estabelecida? Eu
tambm abordei brevemente a questo do batismo das crianas no mesmo livro76, no de
maneira exaustiva, claro, mas com o peso que me pareceu ento satisfatrio obra (a qual til
tambm queles que desconhecem o problema e aos que ainda no firmaram a sua f); l no
cogitei, porm, afirmar coisa alguma sobre a condenao das crianas que deixam esta vida sem
aquele sacramento, pois ento no se tratava do que se trata agora.
21. Mas para omitirmos e deixarmos de lado os sofrimentos breves e que, passados, no
voltam acaso poderamos deixar igualmente de lado que porque assim como a morte veio
por um homem, tambm a ressurreio dos mortos veio por um homem. Porque, assim como
todos morrem em Ado, assim tambm todos sero vivificados em Cristo77 ? Ora, de acordo
com essa divina (e conhecida) concluso do apstolo, mostra-se de maneira bem clara que
ningum chega morte seno atravs de Ado, e ningum chega vida eterna seno atravs de
Cristo. isso que quer dizer todos e todos: assim como todos os homens pertencem a Ado
pela primeira gerao, isso , a carnal, assim todos os homens, quem quer que deles venha at
Cristo, chegam at a segunda gerao, isto , a espiritual78 . Logo, desse modo que se disse
todos aqui e todos acol, porque assim como todos que morrem no morrem seno em
Ado, assim todos que revivero no revivero seno em Cristo. E por isso que devemos
afastar como uma peste da f comum quem quer que venha a nos dizer que algum reviver na
ressurreio dos mortos que no em Cristo; o mesmo para quem quer que venha a dizer que em
Cristo revivero at as crianas que deixaram a vida sem tomar parte do seu sacramento79
ora, isso vem diretamente contra o que prega o apstolo, e condena toda a Igreja, na qual nos
apressamos e corremos para batizar as crianas por essa razo: porque acreditamos sem dvidas
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que de outro modo as crianas no poderiam, absolutamente, reviver em Cristo. Quanto queles
que no revivem em Cristo, resta-lhes permanecer entretanto na condenao da qual diz o
apstolo: por uma s ofensa veio o juzo sobre todos os homens para a condenao80 ; que a
esse delito todas as criana nascem atadas tanto no que toda a Igreja acredita quanto o que tu
mesmo j definiste, com a mais verdadeira f, em tua disputa contra Joviniano e em tua
exposio do profeta Jonas81, conforme mencionei acima (e, creio, tambm em outras passagens
de tuas obras que no li ou das quais no me lembro agora). Portanto, retomo minha busca pela
razo desta condenao nas crianas, j que no vejo haver, naquela idade, um nico pecado nas
almas (supondo que elas so criadas novas e individuais a cada indivduo), e no creio que
qualquer alma, que Deus v ser isenta de pecados, possa ser condenada por Ele.
22. Ou talvez deva-se afirmar que, na criana, a carne a nica razo do pecado, mas que, no
entanto, uma nova alma lhe criada com a qual, vivendo segundo os mandamentos de Deus e
com a ajuda da Graa de Cristo, possa lhe ser concedido sua prpria carne, aps esta ter
sido domada e subjulgada o mrito da incorrupo; mas, j que a alma na criana ainda no
pode fazer algo assim se no tiver recebido o sacramento de Cristo, somente atravs da Graa
que se conquista, carne, o que a alma ainda no consegue lhe dar a partir de suas prprias
caractersticas? E se, no entanto, a alma da criana perecer sem aquele sacramento, estaria ela,
afinal, na vida eterna, da qual nenhum pecado pde separ-la, sendo antes a sua carne que
todavia no iria ressurgir em Cristo, j que no recebeu o sacramento Dele antes da morte?
23. Essa hiptese eu nunca escutei, nunca li, mas certamente ouvi que cri, por isso falei; porque
vem a hora em que todos os que esto nos sepulcros ouviro a sua voz. E os que fizeram o bem
sairo para a ressurreio da vida82, sobre isso o que se diz que tambm a ressurreio dos
mortos veio por um homem, por essa mesma razo que todos sero vivificados em Cristo83
aqueles, porm, que fizeram o mal, sero vivificados para a ressurreio do Juzo84. Afinal, o
que se deve compreender, aqui, sobre as crianas que perecem do corpo sem o batismo, antes
mesmo de poderem realizar o bem ou o mal? Nada foi dito sobre elas. Mas se a carne delas no
vier a ressurgir pelo fato de elas no terem realizado qualquer coisa boa ou m, tampouco
haveria de ressuscitar a carne daquelas crianas que, mesmo aps terem recebido a Graa do
batismo, morreram na mesma idade sem conseguir realizar nada de bom ou de mau. Se, porm,
essas crianas que receberam o batismo vierem a ressurgir entre os santos, isto , entre aqueles
que fizeram o bem, entre quais homens ressuscitaro as outras, a no ser entre aqueles que
fizeram o mal (pois no podemos acreditar que quaisquer almas humanas deixaro de receber
seus corpos seja para a ressurreio da vida, seja para a ressurreio do Juzo)? Essa concluso,
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antes mesmo de ser refutada, j me desagrada por sua completa estranheza85. Alm disso, quem
poderia aceitar que os cristos, que correm com seus filhos ao batismo, acreditariam que o
fazem para lhes salvar a carne, e no a alma? Abenoado foi Cipriano, com efeito, quando
afirmou tomando no uma deciso estranha mas, antes, atentando mais firme f da Igreja; e
afim de corrigir os crentes que julgavam desnecessrio batizar seus filhos antes do oitavo dia
aps o nascimento que no a carne, mas sim a alma que no deve ser perdida, e avaliou,
juntamente com seus colegas de bispado, que a criana pode ser batizada logo aps o
nascimento86 .
24. Mas, contra uma determinada hiptese de Cipriano, em que ele supostamente no enxergou
o que deveria ter enxergado: que cada um forme dela sua opinio, contanto que ningum forme
opinio contrria mais evidente f apostlica, a qual prega que todos sero levados
condenao devido ao delito de um nico homem, e dessa condenao nada nos livra seno a
Graa de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor87 , unicamente em quem todos revivem, quem
quer que reviva; que ningum forme opinio contrria mais slida tradio da Igreja na
qual, se corrssemos ao batismo apenas em vista de salvar os corpos das crianas, assim
ofereceramos ao batismo tambm os mortos.
25. Sendo assim, devemos buscar e encontrar o porqu de as almas, que so criadas novas a
cada indivduo recm-nascido, serem condenadas, no caso das crianas que morrem sem o
sacramento de Cristo. Ora, elas so condenadas se assim perecem do corpo; disso tanto a Santa
Escritura quanto a santa Igreja servem de testemunho88 . Em concluso, a hiptese sobre a
criao de almas novas, se ela no se ope mais slida f, que ela seja tambm a minha; mas
se ela se ope, que deixe de ser a tua.
26. Que no venham me dizer que essa concluso deve ser amparada no que est escrito, que
Ele que forma o esprito do homem dentro dele e que Ele que forma o corao de todos
eles89 . Devemos encontrar um argumento assaz firme e inequvoco, que no nos leve a crer que
Deus seja um condenador de qualquer alma sem qualquer culpa. Assim, o verbo criar to ou
mais forte que formar (e no entanto est escrito cria em mim, Deus, um corao puro90).
Igualmente, no possvel interpretar a que a alma deseja ser criada antes mesmo de existir:
assim como a alma j existente criada por uma renovao da justia, assim que ela, j
existente, portanto formada conforme a doutrina91 . Aquilo que est escrito no Eclesiastes, e
o p volte terra, como era antes, e o esprito volte a Deus, que o deu92, tambm no refora a
concluso que desejamos ser a nossa; a passagem citada serve antes de sustento queles que
julgam que todas as almas existem a partir de uma nica93 . Ora, assim como o p volta terra,
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como era antes (a carne, todavia, da qual afirmamos a mesma coisa, ela no volta ao homem de
quem foi gerada, mas sim terra de onde foi feito o primeiro homem), assim o esprito,
reproduzido a partir do espirto de um nico homem, no volta ao homem, mas ao Senhor por
quem o esprito lhe foi dado. Enfim, j que essa passagem soa assim afinada a esses homens94, e
para que ela no parea, de todo modo, contrria hiptese que pretendo defender, acreditei
apenas ser preciso advertir tua prudncia a no tentares fazer uso de tais passagens para me
resgatar destas aflies. Afinal, ningum pode fazer com que seja verdade aquilo que no
porque assim deseja; se isso fosse possvel, no entanto, eu desejaria que essa concluso fosse a
verdadeira, assim como desejo se ela de fato verdadeira que ela seja defendida por ti
com da maneira mais clara e invicta possvel.
27. A mesma dificuldade se coloca queles que pensam que as almas j existindo em algum
lugar, e j pr-estabelecidas desde o incio das obras divinas so enviadas por Deus aos
corpos. Eles se fazem a mesma pergunta: se as almas so inocentes e chegam com obedincia
para onde so enviadas, por que elas so punidas nas crianas que finalizam esta vida sem serem
batizadas? Em suma, em ambas as concluses h a mesma dificuldade. Parecem escapar com
mais facilidade desse problema aqueles que asseveram que as almas so atadas individualmente
a corpos individuais de acordo com os mritos de uma vida anterior95. Ora, isso que alguns
pensam que significa o morrer em Ado, a saber, que devemos tolerar na carne, reproduzida a
partir de Ado, os suplcios do pecado; de tal culpa, dizem, que a Graa de Cristo liberta tanto
os oprimidos quanto os poderosos96. De fato, correto, verdadeiro e bem fundamentado que a
Graa de Cristo libera tanto os oprimidos quanto os poderosos da culpa dos pecados. Mas que as
almas pecam numa outra vida, numa vida anterior, e que da tombam nas prises da carne:
nisso eu no acredito, isso eu no aceito, isso eu no admito. Primeiro, porque eles sustentam,
no sei por quais rodeios, que preciso retornar de novo e de novo, aps no sei quantas pilhas
de sculos, farda da carne corruptvel e nela tolerar os suplcios do pecado; ignoro se
possvel conceber algo mais horrvel que essa hiptese. Em seguida, quem , afinal, o homem
morto e justo sobre quem se eles dizem a verdade no seramos levados concluir que,
pecando no seio de Abrao, ele seria lanado s chamas do homem rico97? Por que, afinal, no
poderia ele pecar aps este corpo, se ele pde pecar antes dele? Por fim, uma coisa significa ter
pecado em Ado disso diz o apstolo, em quem todos pecaram98 e outra, bastante
diferente, significa ter pecado no sei onde fora de Ado e assim em Ado, isto , na
carne reproduzida a partir dele, como se a alma fosse encarcerada em uma priso. Mas eu no
quero discutir aquela hiptese, a de que as almas so criadas a partir de uma nica alma, a no
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ser que isso seja preciso; tomara que a hiptese sobre a qual discutimos aqui, se ela for
verdadeira, seja defendida por ti, de modo que abordar a outra j no seja necessrio.
28. No entanto, embora eu deseje, rogue, com votos ardentes anseie e espere que atravs de ti o
Senhor sane minha ignorncia nesse assunto, ainda assim, se eu (Deus me livre) no merecer
isso, pedirei pacincia ao Senhor Nosso Deus, em quem acreditamos; se a porta no nos for
aberta mesmo aps nela batermos, de modo algum deveramos ento murmurar contra Ele99 .
Lembremo-nos do que foi antes dito aos prprios apstolos: ainda tenho muito que vos dizer,
mas vs no o podeis suportar agora100 ; nessas palavras, no que diz respeito a mim, eu confio a
nossa dvida, e, tendo-as em mente, no vou me indignar de ficar indignado, para assim no
parecer por isso mesmo ainda mais indigno101. Enfim, h muitas outras questes que
desconheo por igual, as quais no consigo numerar ou mencionar; desconhecer a presente me
seria tambm tolervel, caso eu no temesse que alguma daquelas hipteses fosse contrria ao
que sustentamos com a mais firme f, e que ela pudesse ludibriar os espritos incautos. Mas,
antes de saber qual delas deve ser estabelecida, digo abertamente e sem hesitaes que qualquer
hiptese que for verdadeira no deve entrar em conflito com a mais slida e estabelecida f,
segundo a qual a Igreja de Cristo acredita que ningum, nem mesmo as criancinhas recm-
nascidas, a no ser pela Graa de Cristo, na qual Ele escorou seus sacramentos, pode ser
libertado da condenao102 .

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NOTAS

1 Aluso 1 Th 2:12, para que vos conduzsseis dignamente para com Deus, que vos chama para o seu reino e glria.
2 A meno ao iam senex redimensiona a relao entre Agostinho e Jernimo: no se trata mais do combate entre o
senex e iuvenis, Entelo e Dares, que dominou o primeiro perodo de correspondncia entre eles. Agora, sero dois
velhos que conversaro com a mesma auctoritas trazida pela idade. No mais, a afirmao proverbial, cf. Otto p. 118
discere 3 e p. 139 senex 3.
3O termo religiosus tem, na poca, o sentido de demarcar o catlico ortodoxo e fervoroso, seguidor da rectitudo fidei,
contra os heresiotas; trata-se de um correlato de catholicus (v. supra Aug. Ep. 40, n. 37).
4 Trata-se de Paulo Orsio (ca. 375 - ca. 423), presbtero hispnico, natural de Bracara (hoje Braga, em Portugal).
Orsio foi uma espcie de co-autor da Cidade de Deus e posteriormente escreveu as Historiae adversum paganos [PL
31,663-1174b], estas publicadas em 417, um apanhado universal e teolgico da histria de Roma. O bispo de Hipona
dedicou a Orsio a polmica ad Orosium contra Priscillianistas et Origenistas [PL 42,669-678], livro em que discute os
diversos problemas doutrinrios e polticos da Igreja (cf. Aug. C. Priscill. 1). Orsio era um personagem bastante ativo
nas polmicas da poca, em especial no pelagianismo: participou de um sem-nmero de Conclios e Snodos que
tomaram parte na frica e na Palestina no incio do sculo V. O historiador tambm mediava as relaes entre os
cristos latinos residentes no Ocidente e no Oriente, caso de Agostinho e Jernimo, levando cartas e obras de uns para
os outros (cf. Hier. Adv. Pel. 3,19). Paulo Orsio, cf. LThK VII p. 1138-1139; NDPAC p. 3688-3691; Frst (2002) p. 22,
n. 22. V. Kelly (1975) p. 317-321 e Brown (2013) p. 294-296, 307-311 e 357-358.
5A referncia s doutrinas que trucidaram as almas dos hispnicos heresia priscilianista, v. supra Hier. Ep. 126, n.
12. A lmina brbara aquela dos visigodos e ostrogodos que invadiram a Hispnia no incio da dcada de 410.
6Agostinho estabelece uma divisio, elemento prprio do discurso (cf. Quint. Inst. orat. 3,6,91). O autor vai primeiro
apresentar suas certezas sobre a questo (cf. Aug. Ep. 166,3-5) e depois conjecturar sobre os pontos que julga
problemticos, para ento concluir (cf. Aug. Ep. 166,6-28).
7 Traduzimos modus como modalidade todas as vezes que o vocbulo adquire peso filosfico, designando os diversos
estados e graus de existncia de determinada coisa. Estamos de acordo, assim, com Labourt (1963) vol. VIII, p. 9 e Fry
(2010) p. 326, que traduzem modus por modalit.
8Aluso a 1 Tim 6:16, aquele que tem, ele s, a imortalidade, e habita na luz inacessvel; a quem nenhum dos homens
viu nem pode ver, ao qual seja honra e poder sempiterno.
9 Mt 8:22 e Lc 9:60. A morte da alma no igual do corpo, ainda que ambas possam ser comparadas: sicut enim
anima Deo deserente sic corpus anima deserente moritur, ora, assim como a alma morre pelo abandono de Deus,
tambm o corpo morre pelo abandono da alma (cf. Aug. Trin. 4,5). A morte da alma nada mais que a alienao do
Criador, Deus, mediante o pecado; mas a alma (e ser algum) no pode se separar por completo de Deus pois assim
perderia todo seu bem, isto , sua substncia. Ela nunca deixa de viver em sua prpria natureza, doravante no errado
cham-la de imortal, contanto que saibamos que sua imortalidade distinta daquela de Deus. J que foi a nica
morte de nosso Salvador que serviu de remdio para as nossas duas mortes (cf. Aug. Trin. 14,6), seguir-se- que o
batismo o primeiro passo de redeno dos pecados, no caso do Pecado Original de Ado (cf. Aug. Ep. 143,7; Gen. ad
litt. 7,28; Civ. 6,12; 13,2-6). V. Frst (2002) p. 346, n. 590.
10 Cf. Aug. Trin. 14,6, nam sicut ipsa immortalitas animae secundum quemdam modum dicitur; habet quippe et anima
mortem suam, cum vita beata caret, quae vera animae vita dicenda est; sed immortalis ideo nuncupatur, quoniam
qualicumque vita, etiam cum miserrima est, numquam desinit vivere, pois segundo uma modalidade especfica que se
fala propriamente em imortalidade da alma; de fato, a alma tambm tem sua morte, quando carece da felicidade, que,
deve-se dizer, sua verdadeira vida; mas desse modo que a chamamos de imortal, j que qualquer tipo de vida,
mesmo a mais miservel, nunca deixa de viver; tambm Aug. Ep. 143,7; Gen. ad litt. 7,28; Civ. 6,12 ;13.2.
11A tese da alma como parte de Deus em grego , em latim emanatio ou effluxio que ela um jorro da
substncia divina, atinge sua definio mais crtica com os maniqueus (cf. Aug. Gen. c. Man. 2,10-11 e Duab. anim.
12,16), com os priscilianistas, e com os pelagianos. Segundo Agostinho, a alma no derivada diretamente da
substncia divina pois, se ela o fosse, seria preciso admitir ao menos uma de duas consequncias: que a alma imutvel
(o que, se verdadeiro, tornaria absurda a prpria possibilidade do pecado, pois a alma seria em si perfeita e incapaz de
pecar, independente de a origem do pecado ser ou no o corpo); ou que Deus mutvel, deixando-o merc da
corrupo do mal e das paixes, concluso absurda e hertica para a ortodoxia (cf. Aug. Ep. 140,3; Vera relig. 16). Por
reductio ad absurdum, segue-se que a alma (entendida como anima) no uma parte de Deus, mas uma criatura Dele,
mais pura que o corpo e que compartilha com os seres espirituais algumas caractersticas, como a razo [mens] e a
vontade [voluntas]; j sua imortalidade, vimos acima, se d segundo uma modalidade prpria e nada tem a ver com a
imortalidade de Deus, que se d segundo todas as modalidades.V. O'Daly (1987) p. 31-34.

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12 Uma affectio disposio anmica ou uma paixo, um dos termos latinos para o grego ; cf. Blaise p. 48
adfectio 3. Diz Agostinho na Cidade de Deus que duae sunt sententiae philosophorum de his animi motibus, quae
Graeci , nostri autem quidam, sicut Cicero, perturbationes, quidam in affectiones uel affectus, quidam uero, sicut
iste, de Graeco expressius passiones uocant, so duas as opinies dos filsofos acerca dos movimentos da alma que os
Gregos chamam de , e que alguns dos nossos, por sua vez, como Ccero, chamam de
perturbaes [perturbationes], e outros chamam de disposies [affectiones] ou afetos [affectus], e ainda h outros,
como o citado Apuleio, que as chamam de paixes [passiones] (termo que traduz melhor a palavra grega) (cf. Aug.
Civ. 9,4; a partir de Cic. Tusc. 3,23-24; 4,11 e Ap. De deo Socratis 147-148). Na concepo agostiniana de alma, as
affectiones so as volies que perturbam a parte racional da alma. V. ODaly (1987) p. 7-8; 40-54.
13 Conhecer-se o primeiro e principal passo para conquistar a verdade: essa uma verdade para a filosofia pag que
no questionada por Agostinho. O conhecimento, scientia, de si e do mundo mediado, para o bispo de Hipona, por
uma faculdade especfica do ser humano, a cogitatio ou o cogito, a capacidade de errar (a formulao clssica si fallor
sum, se erro, eu existo em Civ. 11,26), de duvidar, e assim de julgar a veracidade do mundo (cf. Aug. Trin. 14,10;
Vera relig. 39,73). Nessa passagem em especfico, Agostinho afirma que basta olhar para dentro de si para conhecer
(scire) a mutabilidade do ser. V. Rist (1994) p. 85-90 e 145-147.
14Trata-se de um ataque aos maniqueus, que acreditavam que a carne, e no a alma, era a origem do pecado, conforme
Agostinho discute mais tarde nesse mesmo texto (cf. Aug. Ep. 166,27). A concluso de que a carne suja e indigna
da alma de inspirao pag, e se relaciona com a busca pela , liberdade das paixes, conceito central para o
estoicismo e o neoplatonismo; disse Porfrio que Plotino era um filsofo envergonhado de existir em um corpo.
Agostinho discorda veementemente das doutrinas que pregam o dolorismo, baseando suas concluses tanto no atestado
das Escrituras, de que a carne ir ressuscitar no Juzo, e por isso deve ser zelada, quanto na premissa de que Deus um
ser sumamente bom, portanto toda ddiva sua um bem e deve ser preservado. V. Frst (2002) p. 61, n. 161.
15A noo proverbial de que a carne de Aquiles era invulnervel descende de um mito bastante conhecido, segundo o
qual o heri grego havia sido banhado nas guas do Estige quando criana. Seu nico ponto fraco era o calcanhar, parte
pela qual sua me, a deusa Ttis, o segurara ao submergir-lhe no rio. V. Grimal (1964) p. 6.
16Agostinho define Deus da seguinte maneira no De trinitate: est tamen sine dubitatione substantia, vel, si melius hoc
appellatur, essentia, quam Graeci vocant. [...] sed aliae quae dicuntur essentiae, sive substantiae capiunt
accidentias quibus in eis fiat vel magna vel quantacumque mutatio; Deo autem aliquid eiusmodi accidere non potest. Et
ideo sola est incommutabilis substantia vel essentia, quae Deus est, Deus , sem dvida, uma substncia ou (se for
melhor denominar assim) uma essncia, a qual os gregos chamam de [...] mas outras coisas que so chamadas de
substncias' ou essncias admitem acidentes, atravs dos quais lhes acontece mudanas grandes ou de quaisquer
qualidades. Deus, porm, no susceptvel de acidentes, e por isso Ele a nica substncia ou essncia imutvel, que
Deus (cf. Aug. Trin. 5,3).
17controversia verborum, v. Aug. Ep. 28, n. 17. O termo aqui tem o peso do discurso deliberativo na filosofia, a fim de
colocar os prs e os contras de uma questo, como indica Fry (2010) p. 328, n. 26.
18 De fato, a alma provida de uma tenso vital [vitalis intentio], que pode ser definida aqui como o princpio
vivificante pelo qual ela se expande no corpo. Segundo ODaly (1987) p. 84-87, a noo de vitalis intentio
influenciada pelo conceito estoico de , ainda que este no implique no aspecto volitivo que resulta na ao. Em
Agostinho, a vitalis intentio prpria da alma racional, fundamentada no conceito de voluntas, e distinto da tenso
motora que vivifica o ser, algo que o bispo chama de nutus, em portugus impulso, e prximo do termo estoico .
Para a indivisibilidade da alma, ver ainda o argumento da centopeia e sua comparao com o som e significado das
palavras e letras, em Aug. Quant. anim. 62-68. V. Rist (1994) p. 97-104.
19 O mesmo raciocnio em Aug. Immort. 25; Quant. anim. 25; Gen. ad litt. 8,21-22.
20 Essa demonstrao muito parecida com aquela dada por Plotino na quarta Enada, autor que ento comparava a
sensao anmica com a dor no p: ela se d apenas no p, e a sentimos l, mas conseguimos senti-lo porque a alma est
presente em totalidade e em todo o corpo (cf. Plot. En. 4,7,7). O mesmo raciocnio da inexistncia de dimenso
corprea para a alma usado em Quant. anim. 4-6 para provar o mesmo ponto, isto , que a alma no um corpo e no
divisvel e sua grandeza no consiste em extenso corporal, mas sim em virtude de uma tenso vital [vitalis
intentio]. Sobre o crescimento da alma, que no corpreo mas temporal (isto , est condicionado ao tempo e no ao
espao, e no quantitativo mas qualitativo), cf. Aug. Quant. anim. 26-30. A ideia que a sensao se fundamenta na
alma (em sua parte irracional), e no na materialidade do corpo, que somente um veculo pelo qual sentimos. V. Frst
(2002) p. 350, n. 595.

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21 No se deve pensar a alma, portanto, como o sopro pitagrico, como a dos estoicos, ou sequer como o
de Empdocles, pois todas essas definies implicam em dot-la de algum elemento, transformando-a num
material de ar ou fogo. Em seu dilogo sobre a grandeza da alma, Agostinho afirma que nam neque ex terra, neque ex
aqua, neque ex aere, neque ex igni, neque ex his omnibus, neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto,
eu considero que a alma no consta nem de terra, nem de gua, nem de ar, nem de fogo, nem de um conjunto desses
elementos (cf. Aug. Quant. anim. 2); tais elementos so constitutivos somente dos corpos. Assim, a alma tem natureza
(ou substncia) prprias, sendo incorprea, e dever ser antes compreendida, diz Agostinho (e seguindo Plato),
segundo a inteleco das ideias abstratas, como a justia, conforme sinaliza na obra supracitada, em Aug. Quant. anim.
5.
22 Nesta passagem, Agostinho emprega (latinizado para phantasia) para se referir s impresses (ou
representaes) que os corpos nos imprimem (ou representam) imediatamente aos sentidos, isto , as imagines
corporales (corporais na medida em que nascem da percepo dos corpos, pois as imagens so, elas prprias,
incorpreas, produzidas pela imaginao e subsistentes na memria). O termo caro para a filosofia antiga, seja para os
platnicos acadmicos, para os neoplatnicos, para os estoicos e demais correntes helensticas. No De trinitate, o bispo
de Hipona nos d uma definio do que ele entende por : phantasias rerum corporalium per corporis sensum
haustas, et quodam modo infusas memoriae, ex quibus etiam ea quae non visa sunt, ficto phantasmate cogitantur, sive
aliter quam sunt, sive fortuito sicuti sunt, as representaes [phantasiae] provm, atravs dos sentidos do corpo, das
coisas corpreas, e de um certo modo se fixam na memria; a partir delas, at coisas que no foram vistas podem ser
pensadas por uma abstrao mental [fictum phantasma], seja de maneira diferente do que so, ou por acaso exatamente
como so, uma vez que elas permanecem em nossa razo (cf. Aug. Trin. 8,9). Ora, a origem ltima da phantasia
agostiniana encontra-se na representao sensvel catalptica dos estoicos, traduzida por Ccero como visum, viso:
quam ille [Xenocrates] nos visum appellemus licet, si que ns chamamemos de viso aquilo que
Xencrates chama de (cf. CiC. Acad. post. 11). Trata-se, portanto, de um processo fenomenolgico baseado
nos sentidos, principalmente na viso, atravs dos quais o homem percebe a realidade. Agostinho utiliza esse termo a
partir da interpretao ciceroniana-estoica em sua obra de juventude (cf. Aug. C. Acad. 3,18 e 3,21), mas, em sua obra
de velhice, adquire um sentido mais fraco de condicionante da imagem-objeto da representao sensvel, no
se caracterizando como critrio de distino entre falso e verdadeiro, como o era para o estoicismo (cf. Aug. Trin. 11,3;
Quant. anim. 8-9). importante salientar que, ao caracterizar a percepo (o verbo usado percipi) das imagens das
coisas corporais em relao abstrao (o verbo usado cogitare) destas como phantasiai, Agostinho contrasta o
entender (o verbo usado intellegere) da alma atravs da razo ou mente, e da intuio intelectual (o verbo usado
sentire) atravs da vida. Em suma, o filsofo conclui que, admitindo que a alma no um corpo, no se pode conhec-la
atravs dos sentidos, sendo impossvel pens-la como uma coisa material ou dela formar uma imagem corprea: a nica
maneira de conhec-la, portanto, pela intuio da prpria alma. V. ODaly (1987) p. 106-130; Nash (2003) p. 54-55 e
62-68.
23 Isso implica que a alma no pode ser conhecida [scire] ou imaginada [cogitare] como um objeto corpreo (por
exemplo, como uma pessoa), mas deve ser intuda [sentire] como um princpio, uma fora, uma abstrao: a alma intui
a si mesma, isto , entende-se atravs da razo e sente-se atravs da vida (cf. Aug. Quant. anim. 2,22; Gen. ad litt. 7;
Trin. 10,6-16). Devemos pens-la como uma ideia abstrata, tal qual a justia, a honra etc. V. ODaly (1987) p. 162-216;
Nash (2003) p. 58-59 e 68-75.
24Em latim, propria voluntas, vontade prpria, conceito correlato com libertas, liberdade, e assim com o liberum
arbitrium, livre arbtrio. A voluntas , ao lado da mens e da comprehensio, uma das trs faculdades da anima
rationalis, atravs da qual um ser tem a liberdade de louvar a Deus e adquire conscincia do amor divino (cf. Aug. Lib.
Arb. 2,1-3;47-48). Trata-se de uma caracterstica que existe tanto nas almas da espcie humana quanto nos anjos, que
tambm possuem vontade, mas que est ausente nos animais, que so irracionais. A nfase que Agostinho d ao
conceito de voluntas ou liberum arbitrium em sua obra de velhice uma resposta s teorias maniqueias que atribuam a
existncia do mal a um Deus ruim, e aos filsofos pagos que atribuam substancialidade maldade. Para o bispo de
Hipona, o Mal nada mais que a privao do Bem, isto , o afastar-se de Deus, em cuja situao a alma morre. O
mal, ou o pecado sobre o qual aqui se fala, definido de maneira negativa, como um vazio: ele no surge de uma
necessidade que afeta a Deus ou prpria alma (isto , no faz parte de sua natureza), e sequer faz parte dos desgnios
da Providncia para o mundo, mas unicamente culpa do arbtrio dos seres vivos dotados de vontade, tanto dos anjos,
no caso de Lcifer, quanto no caso dos homens (cf. Aug. Lib. Arb. 1,34-35 e 2,54). No mais, a salvao da alma no
depende de seus prprios mritos, como acreditavam os pelagianos, mas to-somente da Graa de Cristo, o Mediador
entre Deus e os homens. V. Rist (1994) p. 148-202; Nash (2003) p. 34-35 e 73-74.
25 Aluso a Rom 7:24, miservel homem que eu sou! Quem me livrar do corpo desta morte?
26 Aluso a Rom 7:25.
27 1 Tim 2:5. Agostinho tece a mesma argumentao, utilizando a mesma passagem do apstolo Paulo, em Aug. Perf.
iust. 42; Grat. Christ. et pecc. orig. 2,28; e na Ep. 190,5.

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28 O sacramento de Cristo o batismo, atravs do qual nos livramos do pecado (cf. Mc 10:39; Tit 3:5). V. Frst (2002)
p. 354, n. 601.
29Aluso a 1 Cor 15:43, semeia-se em ignomnia, ressuscitar em glria. A nfase que Agostinho d Ressurreio
do corpo no Dia do Juzo outro ataque aos sectos ascticos e doloristas do cristianismo no perodo, exemplo dos
maniqueus e pelagianos. Uma vez que o homem agostiniano concebido como uma substncia nica dotada de alma e
corpo (cf. Aug. Trin. 15.11), segue-se que este ficar, aps a morte do corpo, adormecido, para receber de volta sua
alma no fim dos tempos.
30 Aluso Is 53:3, [o Messias] era desprezado e o mais rejeitado entre os homens.
31 Agostinho faz a mesma afirmao, de que os recm-nascidos que morrem sem o batismo so invariavelmente
condenados, em outras cartas, cf. Aug. Ep. 157,11; 169,13; 179,6; 190,23; 217,16; e em outras obras, cf. Aug. Pecc.
Mer. 2,43: quisquis vero adhuc movetur, quare baptizentur qui iam de baptizatis nascuntur, hoc breviter accipiat. sicut
generatio carnis peccati per unum Adam ad condemnationem trahit omnes qui eo modo generantur, sic regeneratio
spiritus gratiae per unum Iesum Christum ad iustificationem vitae aeternae ducit omnes qui eo modo praedestinati
regenerantur. sacramentum autem baptismi profecto sacramentum regenerationis est. quocirca sicut homo, qui non
vixerit, mori non potest et qui mortuus non fuerit ressurgere non potest, ita qui natus non fuerit renasci non potest. ex
quo conficitur neminem in suo parente renasci potuisse non natum. oportet autem ut, si natus fuerit, renascatur, quia
nisi quis natus fuerit denuo, non potest videre regnum Dei, mas se algum ainda tem dvidas sobre o porqu de serem
batizadas as crianas que j nascem de pais batizados, que ele tome essa explicao breve. Assim como a gerao da
carne do pecado arrasta, atravs unicamente de Ado, todos que so gerados desse modo condenao, assim a
regenerao do esprito da Graa conduz, atravs unicamente de Jesus Cristo, todos que desse modo so predestinados a
serem regenerados justificativa da vida eterna. O sacramento do batismo, porm, de fato o sacramento da
regenerao. Doravante, assim como o homem que no viveu no pode morrer, e o homem que no tiver morrido no
pode ressuscitar, assim o homem que no tiver nascido no pode renascer. Disso se abstrai que ningum poderia ter
renascido em seu pai se no tiver nascido. Convm, porm, que ele renasa se tiver nascido, porque no pode ver o
reino de Deus, a no ser que tenha nascido de novo; Nupt. et concup. 2,46; c. Iul. 6,12; Serm. 294,7. V. Frst (2002) p.
63-64, n. 176.
32 A aluso aos pelagianos (v. infra Hier. Ep. 134, n. 9), em especial Pelgio e Celstio, que, crendo que a substncia
anmica era a mesma de Deus, negavam que a alma herdava qualquer culpa [reatus] de Ado, argumento que Agostinho
chama de quaedam nova, certas novidades; coisas estranhas em nossa traduo. O adjetivo novus pode ter uma
conatao pejorativa na lngua latina, em geral associado com seu emprego no discurso poltico e doutrinrio, pois
tratar-se-ia de algo que vai contra a ordem estabelecida (cf. Cic. Cat. 1,1,3; Agr. 2,33,91; Sal. Cat. 28,5). V. Frst (2002)
p. 355, n. 604.
33 Joviniano (? - ca. 406) foi um cristo romano que se ops s correntes ascticas da Antiguidade Tardia, inclusive
entre as ordens monsticas, sob o pretexto de que o batismo redimia todos os pecados de qualquer pessoa que
caminhasse segundo a ortodoxia, independente do celibato e da hierarquia eclesistica. Por essa razo, Jernimo o
chamava de Epicuro do cristianismo. Foi excomungado pelo papa Sircio em 393, e condenado por Ambrsio de
Milo no mesmo ano (cf. Ambros. Ep. 42,14). Agostinho se refere polmica contra Joviniano, adversus Iovinianum
[PL 23,211-338], que Jernimo publicara na mesma poca em que o herege foi condenado. O bispo de Hipona deve ter
em mente uma passagem do livro segundo da obra, no qual o Estridonense aborda o problema da existncia do pecado
nos recm nascidos e arrola diversos testemunhos bblicos, entre os quais Job 14:4-5, que o Tagastense cita a seguir, e
Jac 3:2, para provar sua hiptese (cf. Hier. Adv. Iovin. 2,2). Joviniano, cf. LThK V p. 1020-1021; NDPAC p. 2260-2261.
V. Kelly (1975) p. 180-189 e Frst (2002) p. 356, n. 605.
34Agostinho cita Job 14:4-5 a partir de uma traduo improvisada da Septuaginta,

. Na traduo do bispo de Hipona, lemos nemo mundus in conspectus tuo, nec infans cuius est diei unius vita
super terram; ao passo que na Vulgata, lemos quis potest facere mundum de immundo? ne unus quidem! si statuti dies
hominis sunt, et numerus mensium eius apud te est, et constituti sunt termini eius, quos non praeteribit. A ACF traduz
como quem do imundo tirar o puro? Ningum. Visto que os seus dias esto determinados, contigo est o nmero dos
seus meses; e tu lhe puseste limites, e no passar alm deles. A passagem tambm lembra o Ps 51:7 <51:5>, eis que
em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha me. Ambas as passagens, de J e dos Salmos, sero
fundamentais para sustentar a doutrina do Pecado Original no velho Agostinho (cf. Aug. Ep. 202A,17; Serm. 170,2; Civ.
20,26; c. Iul. op. imperf. 4,90). V. Frst (2002) p. 356, n. 606.
35Aluso Rom 5:14, no entanto, a morte reinou desde Ado at Moiss, at sobre aqueles que no tinham pecado
semelhana da transgresso de Ado, o qual a figura daquele que havia de vir.

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36A referncia ao comentrio de Jernimo ao livro de Jonas (v. supra Aug. Ep. 71, n. 15). Citamos: saccus et ieiunium
arma sunt paenitentiae, auxilium peccatorum [...] maior aetas incipit, et usque ad minorem pervenit: nullus enim
absque peccato, et si unius diei quidem fuerit vita eius, et numerabiles anni vitae illius, a mendicncia e o jejum so
armas da penitncia, auxlio dos pecadores [...] a maioridade comea e chega at a minoridade: ora, ningum existe sem
pecado, mesmo se sua vida durar somente um dia, mesmo se ele contar numerosos anos de idade (cf. Hier. In Ion. 3,5).
Ecoando Job 14:4-5 tambm nesta obra, Jernimo fala dos homens em geral, independente da idade, deixando de
especificar a retido de ministrar o jejum entre as crianas.
37 Trata-se dos trs livros sobre o livre arbtrio, De libero arbitrio libri tres [PL 32,1219-1310], que Agostinho escrevera
ao longo de dez anos, ca. 387-395. Neles, o bispo de Hipona trabalhara com quatro hipteses sobre a origem da alma, as
quais arrola nesse mesmo pargrafo de Aug. Ep. 166: o traducionismo, o criacionismo, e as duas teorias do pr-
existencialismo (que as almas, pr-existentes, encarnam por vontade de Deus ou por vontade da prpria alma).
Comparemos a passagem do De libero arbitrio: harum autem quatuor de anima sententiarum, utrum de propagine
veniant, an in singulis quibusque nascentibus novae fiant, an in corpora nascentium iam alicubi existentes vel mittantur
divinitus, vel sua sponte labantur, nullam temere affirmare oportebit. aut enim nondum ista quaestio a divinorum
Librorum catholicis tractatoribus pro merito suae obscuritatis et perplexitatis evoluta atque illustrata est; aut si iam
factum est, nondum in manus nostras huiuscemodi litterae pervenerunt, mas entre essas quatro hipteses sobre a alma
se elas viriam por reproduo; se novas almas so criadas individualmente a cada indivduo que nasce; ou se elas, j
existentes em algum lugar, so enviadas aos corpos por ao divina ou neles tombam voluntariamente mais
conveniente que no afirmemos nenhuma de maneira irrefletida. Ora, ou esse problema, devido a sua (merecida)
obscuridade e dificuldade, ainda no foi desnodado ou iluminado pelos estudiosos catlicos dos livros divinos; ou, se
isso j aconteceu, textos dessa espcie ainda no vieram em nossas mos. (cf. Aug. Lib. Arb. 3,59; tambm Ep. 202A,
20). No De libero arbitrio, o bispo de Hipona estava preocupado em delimitar as hipteses sobre a origem da alma em
relao sua encarnao, e no sua natureza ou origem, como afirma a seguir.
38 Os priscilianistas, como os maniqueus, acreditavam na substancialidade do mal.
39A quinta hiptese a da , ou emanatio, que Jernimo havia mencionado em sua carta a Marcelino e
Anapsquias (cf. Hier. Ep. 126,1).
40 Flvio Marcelino, v. supra Hier. Ep. 126, n. 2.
41 Os maniqueus defendiam que o mal era uma substncia dotada de princpio prprio, criada por um Deus ruim,
criador do corpo, que batalhava eternamente o Deus bom, o criador da alma, cuja substncia era a mesma que a Dele.
Ambos os Deuses descenderiam de um mesmo Ser, da a interpretao maniqueia de que o mal teria corrompido Deus.
Para Agostinho, o mal no uma substncia, nem subsiste segundo um princpio, mas somente a privao do Bem que
incorre na alma quando ela se afasta de Deus. V. supra Aug. Ep. 166, n. 24.
42 Aluso a 1 Cor 2:2, porque nada me propus saber entre vs, seno a Jesus Cristo, e este crucificado.
43 Jo 5:17.
44 Cf. Hier. Ep. 126,2.
45 Em latim, me inconsulto, sem me consultar, ou minha revelia. Agostinho faz meno este episdio em outra
carta, a saber, em Aug. Ep. 190, uma carta que o bispo de Hipona enviara a Optato; citamos o trecho: a me autem cum
quaesisset amicus mihi carissimus et divinarum studiosissimus litterarum, quid de hac quaestione sentirem, eique
remota verecundia, hinc aestus meos et ignorantiam fassus essem, scripsit inde longe trans mare ad doctissimum virum:
cui rescripsit ille ut potius me consuleret, nesciens quod iam fecerat, nec aliquid a me certum ac definitum audire
potuerat, de mim, porm, quanto um amigo muitssmo querido e muitssimo versado na literatura divina procurou
saber o que eu pensava sobre esse assunto [sobre a origem da alma], eu, deixando de lado minha insegurana e da
minha ansiedade e tendo confessado minha ignorncia, ele escreveu, daqui, to longe e para alm-mar, a esse homem
muitssimo erudito [Jernimo] (ele lhe respondeu dizendo que era melhor me consultar), sem saber que ele j o tinha
feito, e que no conseguira escutar nada certo ou definitivo de mim (cf. Aug. Ep. 190,20). V. Frst (2002) p. 360, n.
618.
46 Os discipuli so Marcelino e Anapsquias.
47 Jo 3:10, modificamos o mestre da ACF por professor. Na NTG, lemos ; e no original hebraico,
ribb, transliterado para rabi no latim, rabino no portugus. Trata-se de um ttulo honorfico dado aos estudiosos da
Tor que podem ensinar os sacramentos dos judeus.
48A passagem est em Jo 3 e refere-se a Nicodemos, um rabino fariseu que viveu na mesma poca de Cristo e
defendeu-o perante a assembleia dos judeus.
49 Mt 23:8-10. A mesma passagem reaparece em Aug. Ep. 202A,15.
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50Referncias a Ex 18:14-23 (Jetro era o sogro de Moiss), Act 10:25-48 (o centurio Cornlio foi o primeiro gentio
convertido para o cristianismo) e Gal 2:11-21 (a correo de Paulo a Pedro em Antiquia), respectivamente. Pode-se ler
a ltima passagem como uma alfinetada em Jernimo pois alude longa e turbulenta discusso do officiosum
mendacium, que dominou o primeiro perodo de correspondncia entre os autores.
51 Em latim, a quocumque verum dicitur, illo donante dicitur, qui est ipsa veritas. H um eco de Jo 14:6, disse-lhe
Jesus, eu sou o caminho, e a verdade e a vida. A mesmssima afirmao est tambm em Aug. Mag. 12,40.
52Agostinho diz que no conseguiu encontrar uma soluo para o problema da origem da alma neque orando neque
legendo neque cogitando neque ratiocinando. A hierarquia lgica fundamental para o pensamento do autor, uma vez
que o primeiro passo para o homem aprender a iluminao divina pela orao [oratio], seguida pela leitura [lectura]
dos livros divinos, e ento da abstrao das ideias [cogitatio] e, por fim, da razo [ratio] que intui a verdade de Deus; v.
Nash (2003) p. 94-101.
53Aluso a Rom 8:3; porquanto o que era impossvel Lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o
seu Filho em semelhana da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne. Trata-se da doutrina do
Pecado Original e da consequente queda do homem, que Agostinho aprofundar em obras seguintes (cf. Aug. Ep. 193,3;
Pecc. Mer. 1,11;28 e 3,14;27; Nupt. et concup. 1,22 e 2,46; C. Pelag.. 2,8; 4,7; c. Iul. 5,4; c. Iul. op. imperf. 2,164;178;
5,64). V. Frst (2002) p. 64-65, n. 178 e 180.
54 O longo arranjo retrico de Agostinho nesta questo, pendurado em subordinaes e questionamentos internos,
procura um princpio de equidade [aequitas] que justificaria a aparente injustia divina em condenar os recm-nascidos
ao Inferno, no caso de eles morrerem antes de receberem o batismo, ainda que no tenham tempo de fazer o bem ou o
mal.
55 Segundo Agostinho, o testemunho de Jo 5:17 no entra em contradio com Gen 2:2 pois Deus pode criar quaisquer
novas criaturas que sejam formalmente iguais quelas que ele estabelecera na Criao, isto , que partam dos mesmos
princpios e naturezas. Essa tese se relaciona com o conceito de rationes seminales, as razes seminais, que Deus
teria lanado na Criao, atravs das quais os seres, sejam eles os corpos ou as almas, se reproduziram e foram assim
criados por Ele aps a consumao de sua obra; v. Nash (2003) p. 6 e 51.
56 Neste pargrafo, permeado de aluses a Gen 1-2, Agostinho confronta e tenta resolver os testemunhos de Gen 2:2, e
havendo Deus acabado no dia stimo a obra que fizera, descansou no stimo dia de toda a sua obra, que tinha
feito (base das teorias pr-existencialistas e traducionista) e Jo 5:17, e Jesus lhes respondeu: Meu Pai trabalha at
agora, e eu trabalho tambm (base da teoria criacionista). Jernimo j havia notado essa aparente contradio em seu
comentrio ao Eclesiastes (cf. Hier. In Eccl. 12,7). Na realidade, este problema causara incmodo desde o incio da
literatura crist, sendo trabalhado j por Tertuliano (cf. Tert. Adv. Hermog. 45,4) e por Nemsio de meso (cf. Nem.
Nat. Hom. 2). V. Frst (2002) p. 366, n. 628.
57 Em um manuscrito, adiciona-se a este perodo o comentrio sincero de um copista: tandem post longam
disputationem confirma<sti> sententiam, finalmente tu chegaste a uma concluso aps um longo debate! Concluso
semelhante est presente na interpretao literal de Agostinho sobre o Gnesis (cf. Aug. Gen. ad litt. 5,20;10,3).
58Citao de uma traduo antiga de Is 40:26, qui profert saeculum numerose, Ele que abastece o mundo em grande
abundncia na ACF. Na Septuaginta, l-se ; no
que essa verso de Agostinho para o texto de Isaas tomou por saeculum, ou mundo.
59Agostinho j tratara dessas questes em uma obra de sua juventude, o de musica [PL 32,1081-1194]. Para o autor, a
msica tcnica [ars] e teoria do ritmo e do intervalo, perfeitamente apropriada parte racional da alma, no afetiva,
sendo prxima da matemtica. V. Frst (2002) p. 370, n. 636.
60Esses so exemplos dados por Mateus e Lucas, respectivamente, para exemplificar a oniscincia divina (cf. Mt 10:30
e Lc 12:7).
61 A comparao do movimento dos cus, ordo caeli, com a msica tpica na cultura helenstica, tendo sido usada
amplamente pelos filsofos antigos. A passagem traz mente, na literatura latina, o sonho de Cipio Africano no De
Republica de Ccero, onde Jpiter apresentado como o regente celcola que coordena o movimento dos planetas como
o msico conduz os cantores e instrumentistas (cf. Cic. Rep.6,9-29), semelhana de Deus, o dispositor temporum,
maestro dos mundos, neste pargrafo; Agostinho retoma uma imagem utilizada anteriormente no De libero arbitrio
(cf. Aug. Lib. Arb. 3,66). A origem da comparao est no mito de Er, na Repblica de Plato (cf. Pl. R. 10,614-621). V.
Fry (2010) p. 340, n. 71.

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62 A citao da Guerra contra Jugurta de Salstio, onde se l, postremo corporis et fortunae bonorum ut initium sic
finis est, omniaque orta occidunt et aucta senescunt; enfim, do corpo e da fortuna dos bens h um incio, assim como
um fim, e tudo que nasce, morre; que cresce, envelhece (cf. Sall. Iug. 2,3). Agostinho utilizara a mesma referncia em
uma carta a Marcelino, e Jernimo tambm, em seu comentrio a Ezequiel (cf. Aug. Ep. 143,6 e Hier. In Ezech. 3
praef.).
63 Rom 6:9.
64 A aluso a uma passagem no terceiro captulo da apologia contra Rufino de Jernimo, onde o monge d a seu rival a
opinio eclesistica [illud ecclesiasticum] acerca da origem das almas: quotidie Deus operatur animas, et in corpore
eas mittit nascentium, illico magistri tendiculas proferas: et ubi est iustitia Dei, ut de adulterio incestuque nascentibus
animas largiatur? ergo cooperator est malorum hominum, et adulteris seminantibus corpora, ipse fabricatur animas?
quasi vitium sementis in tritico sit quod furto dicitur esse sublatum, et non in eo qui frumenta furatus est; idcircoque
terra non debeat gremio suo semina confovere, quia sator immunda ea proiecerit manu? hinc et illa tua arcana
interrogatio, quare moriantur infantes, cum propter peccata corpora acceperint; Deus trabalha com as almas todos os
dias, e as envia aos corpos dos recm-nascidos; aqui mesmo tu mostras tuas tendenciosidades de professor: onde est,
ento, a justia de Deus, para que Ele abra mo de almas aos recm-nascidos do adultrio e do incesto? Ento Ele um
colaborador dos homens maus; alm de corpos aos frutos das relaes adlteras, Ele mesmo que fabrica essas almas?
Como se a culpa devesse estar no germe do trigo roubado, que foi supostamente afanado, e no naquele que roubou o
gro; da mesma maneira a terra tambm no deveria aconchegar em seu colo as sementes porque o lavrador as teria
jogado com mos imundas? Assim tambm a tua pergunta bizarra de por que morrem as criancinhas que supostamente
receberam o corpo por causa dos pecados (cf. Hier. Adv. Ruf. 3,28; tambm Aug. Gen. ad litt. 10,13). V. supra Hier. Ep.
102, n. 18.
65 Em latim, Agostinho emprega ergastulum, que um tipo de regime carcerrio de trabalho rduo, reservado aos
escravos (cf. Cic. Clu. 7,21; Liv. 2,23,7; Suet. Aug. 32); cf. Blaise p. 313 ergastulum 2.
66A noo de que um Deus bom s pode criar (e desejar criar) coisas boas tem origem j no Timeu de Plato:
, , ora, o deus deseja que todas as coisas sejam boas,
e que nada seja mal, na medida do possvel (cf. P. Ti. 29d-30a); Agostinho a retoma na Cidade de Deus (cf. Aug. Civ.
11,21).
67 O raciocnio se sustenta em passagens de Mt 8:31-32; Mc 5:12-13 e Lc 8:32-33.
68A mesma busca pela razo dos sofrimentos das crianas ocupara Agostinho em diversas outras obras, cf. Aug. Civ.
22,22-23; c. Iul. 3,9; C. Iulian. op. imperf. 1,49; 2,22; 3,48; 5,64; 6,27. V. Frst (2002) p. 374, n. 643.
69 Menes Job 2 (J tentado por Deus e Satans) e Ac 12:23 (Herodes devorado pelos vermes).
70Uma vez mais, a distino entre as passagens evidentes [manifesta] e obscuras [obscura], que Agostinho e Jernimo
haviam abordado em cartas anteriores (cf. Aug. Ep. 28,5 e 82,34; Hier. Ep. 105,5 e 112,20); v. supra Aug. Ep. 82, n.
121.
71 Alguns manuscritos adicionam nessa frase immo absurditate, ou melhor, impropriedade, aps de ingeniorum
disparitate (o que faz sentido, j que os exemplos dados por Agostinho neste pargrafo dizem respeito ao retardo
mental, e no a outros tipos de disparidade de capacidades cognitivas ou diversidade de inteligncias, literalmente).
72O adjetivo morionis deriva do verbo moror, demorar-se, retardar-se, que usado no mesmo sentido eufemstico
que no portugus; a meno aos doentes mentais, cujas doenas eram vistas como castigos divinos na Antiguidade. A
disparidade de capacidade cognitiva entre as crianas tambm abordada por Agostinho em outras obras (cf. Aug. Pecc.
Mer. 1,32,66 e C. Iulian. 3,10; 4,16; 5,18; 6,11; 44,821ff). V. Frst (2002) p. 376 n. 646.
73Essa comparao, das almas que entram nos corpos que conseguem encontrar, e no naqueles que querem encarnar,
como se elas fossem os espectadores dos anfiteatros que s conseguem se sentar nos lugares disponveis, e no naqueles
em que querem situao hipottica que Agostinho usa para desbancar a teoria de que as almas encarnam por vontade
prpria guarda resqucios de Lucrcio, que utiliza a mesma imagem, no De rerum natura, contra a imortalidade da
alma (cf. Luc. 3,776-783).
74 Trata-se do De libero arbitrio; v. supra Aug. Ep. 166, n. 37.
75 Cf. Aug. Lib. Arb. 3,68; citado da traduo de Ir. Nair de Assis Oliveira (2011) p. 229-230.
76Agostinho trabalhara a questo da morte prematura das crianas anteriormente em Aug. Lib. Arb. 3,66-70; Pecc. Mer.
1,55; anim. 2,17-21; 3,19.

)449
Aug. ep. 166 de origine...

771 Cor 15:21-22. Esta passagem central para a doutrina agostiniana do Pecado Original (cf. Aug. Pecc. Mer. 1,8-11;
2,47; 3,14;19; Grat. Chr. et pecc. orig. 1,55; 2,34).
78Este mesmo raciocnio, fundamentado na diferenciao de omnes em uma passagem da primeira carta aos Corntios,
e assim da distino da gerao da morte em Ado frente aos omnes da gerao da vida eterna em Cristo, est
presente em Aug. Pecc. Mer. 1,55; Nat. et grat. 48; Nupt. et concup. 2,46; C. Iulian. 6,10; Gen. ad litt. 10,16; Civ.
13,23; Grat. Christ et pecc. orig. 2,28; Ep. 157,13-14; 179,6. V. Frst (2002) p. 384, n. 654.
79 A libertao da condenao primeva, advinda do Pecado Original, d-se somente por intermdio do batismo: assim
como todos os homens podem reviver somente em Cristo, por meio do sacramento batismal que Cristo lhes adentra a
vida e lhes salva da morte da alma, condio qual o corpo humano est condenado devido ao pecado de Ado. O
apstolo Paulo, na carta aos Glatas, afirma que porque todos quantos fostes batizados em Cristo j vos revestistes de
Cristo (cf. Gal 3:27). Sem o batismo, no possvel revestir-se de Cristo, e, por conseguinte, permanece-se na
condenao eterna, ainda que no se tenha cometido nenhum pecado prprio, de modo que tomamos pressa e corremos
para batizar as crianas. Esta nfase, porm, dada unicamente por Agostinho, j que, na poca, o batismo dos recm-
nascidos era uma atividade recente; o sacramento era geralmente ministrado no leito de morte, em vias de preparar a
alma do moribundo para a salvao. A teoria do Pecado Original, fundamentada na interpretao que Agostinho faz da
pregao paulina, em especial da passagem que o bispo cita a seguir, contribuiu grandemente para desenhar uma
situao em que o batismo se tornou o mais importante e urgente sacramento cristo. Cf. Aug. Pecc. Mer. 1,23; 3,22;
Nupt. et concup. 2,4; C. Iulian. 6,11; C. Iulian op. imperf. 3,182; Gen. ad litt. 10,23; in epist. Ioh. 4,11; In Psalm. 50,10;
v. Frst (2002) p. 384 n. 655 e Fry (2010) p. 348, n. 97.
80 Rom 5:18.
81 Cf. Aug. Ep. 166,6; v. supra Aug. Ep. 166, n. 36.
82 Ps 116:10 e Jo 15:28-29.
83 1 Cor 15,21-22
84 Cf. Jo 5:29.
85Isto , se no Dia do Juzo ressuscitaro somente as crianas que fizeram o bem antes de morrerem, seguir-se-ia que as
que no tiveram tempo de fazer o bem ou o mal ressuscitaro entre os mpios, de modo que a necessidade salvfica do
batismo seria nulificada em relao alma, ou atribuda somente ressurreio do corpo (algo que acontecer
independente do batismo). A novitas, estranheza, da concluso tambm incomoda Agostinho, pois daria vazo a um
novo tipo de dualismo maniqueu (cf. Aug. Pecc. Mer. 2,59; Gen. ad litt. 10,11; Serm. 176,2). Para o bispo, todos os
homens ressuscitaro em corpo no final dos tempos, os que receberam o batismo e os que no, e os que fizeram o bem
seja tendo recebido o batismo, seja no.
86 A sentena de Cipriano de Cartago (v. supra Aug. Ep. 82, n. 95) aparece em sua Ep. 64, destinada a seu discpulo
Fido, passagem que citamos por extenso: quantum vero ad causam infantium pertinet, quos dixisti intra secundum vel
tertium diem quam nati sint constitutos baptizari non oportere et considerandam esse Legem circumcisionis antiquae,
ut intra octavum diem eum qui natus est baptizandum et sanctificandum non putares, longe aliud in concilio nostro
visum est. in hoc enim quod tu putabas esse faciendum nemo consensit, sed universi potius iudicavimus nulli hominum
nato misericordiam Dei et gratiam denegandam. nam cum Dominus in evangelio suo dicat, filius hominis non venit
animas hominum perdere sed salvare (Lc 9:56) quantum in nobis est, si fieri potest, nulla anima perdenda est; mas, no
que diz respeito ao problema dos recm-nascidos, os quais, tu afirmaste, no convm batizar entre o segundo e o
terceiro dia a partir do nascimento, e a quem devemos considerar a lei da antiga circunciso (de modo que, tu pensas, a
criana que nasceu no deve ser batizada e santificada entre os seus oito primeiros dias): a soluo para isso nos parece
completamente outra. Ora, ningum chegou a um consenso nessa atitude, que tu pensavas necessrio tomar, mas ns
julgamos, antes, e universalmente, que a misericrdia de Deus e a Graa no devem ser denegadas a nenhum dos
homens que nasce. J que o Senhor diz em seu Evangelho; porque o Filho do homem no veio para destruir as almas
dos homens, mas para salv-las, nenhuma alma deve ser perdida, na medida em que trabalhamos nisso, e na medida do
possvel (cf. Cip. Ep. 64,2 apud Bayard (1945) vol. I,I p. 213-216). Agostinho retoma a mesma passagem de Cipriano
noutras obras (cf. Aug. de Pecc. Mer. 3,10) e utiliza as obras de seu ascendente em diversas outras ocasies (e.g. Aug.
de Pecc. Mer. 3,10-11; Nupt. et concup. 2,51; C. Pelag. 4,23-24; C. Iulian. 1,6; 2,18; 3,31; C. Iulian. op. imperf. 1,50;
2,164; 61,21; Ep. 180,5; Serm. 194,19). V. Frst (2002) p. 388, n. 660.
87 Novamente, Rom 7:25.
88 Passagens que atestam a condenao das almas sem batismo esto em Job 14:4 e 1 Cor 15:21; Rm 5:12;14;18;25.

)450
Aug. ep. 166 de origine...

89Zac 12:1 e Ps 33:15 <32:15>. Jernimo havia usado essas duas passagens, assim como Jo 5:17, como testemunhos da
hiptese do criacionismo, no auge da polmica origenista (cf. Hier. C. Ioh. 2,6-8). Para Agostinho, estas passagens
podem ser interpretadas de outra maneira e no so suficientes para fundamentar a teoria do nunc operatur. V. Frst
(2002) p. 391, n. 667.
90 Ps 51:10 <51,12>.
91 A comparao com a recriao e a reforma da alma ao abraar a f crist. Segundo Agostinho, as duas
passagens utilizadas anteriormente por Jernimo podem ser interpretadas como testemunhos do renascimento da alma
possibilitado pelo batismo, e no necessariamente indcios de uma teoria criacionista (cf. Aug. Quant. anim. 75; Gen. ad
litt. 10,6; Ep. 190,17). V. Frst (2002) p. 392, n. 668.
92 Ecc 12:7.
93Em seu comentrio sobre a Igreja, commentarium in Ecclesiam [PL 23,1009-1116c], Jernimo utilizara esta passagem
tambm contra a teoria traducionista da origem da alma, em vista de defender o criacionismo (cf. Hier. in Eccles.
12,6-8). Agostinho mostra que a mesma passagem pode ser interpretada como testemunho de uma teoria baseada tanto
no traducionismo quanto na , segundo a qual a alma partilharia da mesma substncia de Deus (cf. Aug. Gen.
ad litt. 10,9; Ep. 143,7-11; 190,15-17); tal era, inclusive, a a hiptese defendida pelos pelagianos (cf. Aug. Ep. 202A,
14). V. Frst (2002) p. 392, n. 669.
94No est claro a quais homens se refere o pronome isti. Fry (2010) p. 353, n. 108 supe ser uma referncia aos
defensores do traducionismo, mas sabe-se que Agostinho acaba por defender esta hiptese no final da vida.
95 Agostinho tem dois alvos neste penltimo pargrafo, tanto a hiptese do pr-existencialismo de tradio pitagrica,
quanto o dolorismo das correntes ascticas dos maniqueus e dos priscilianistas, ambas as quais pregavam que as almas
reencarnavam e herdavam pecados de vidas passadas. Essa crena ainda era vvida na poca do autor, tendo entrado no
cristianismo atravs de Orgenes; o bispo de Hipona visa atacar, portanto, tambm o origenismo, que no era dolorista
mas consistia numa outra forma de pr-existencialismo, aliada teoria do effluxio. V. Frst (2002) p. 63, n. 172.
96A mesma imagem bblica dos pusilli cum magnis, oprimidos com os poderosos (cf. Ps 115:13 e Ap 11:18; 13:16;
19:5.18; 20:12), aparece noutras obras de Agostinho, quais Pecc. Mer. 1,54; Grat. Christ. et pecc. orig. 2,45; Nupt. et
concup. 1,22; 2,24; C. Iulian. 2,34; Persev. 30; C. Iulian op. imperf. 1,115; 6,23; Ep. 186,3; 190,3;22; 191,1; 207; Serm.
115,4; 165,9; 183,12; 294,4. V. Frst (2002) p. 394, n. 674.
97Aluso Lc 16:22-23; e desejava alimentar-se com as migalhas que caam da mesa do rico; e os prprios ces
vinham lamber-lhe as chagas. E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abrao; e
morreu tambm o rico, e foi sepultado.
98 Aluso a Rom 5:12; v. supra Aug. Ep. 166, n. 78.
99 Cf. Mt 7:7-8 e Lc 11:9-10.
100 Jo 16:12.
101Outro jogo de palavras, aqui com indigner/indignum/indignior, semelhante variao com concordia empregada
anteriormente em Aug. Ep. 73,8 (v. supra Aug. Ep. 73, n. 38). A chamada indignatio tambm pode ser interpretada
como uma indireta a Jernimo, rememorando os ferres da indiginao (v. supra Aug. Ep. 73, n. 28).
102Cf. Aug. Nat. et grat. 4,4-5, haec igitur Christi gratia, sine qua nec infantes nec aetate grandes salvi fieri possunt,
non meritis redditur, sed gratis datur, propter quod gratia nominatur [...] qui ergo inde per gratiam liberantur, non vasa
meritorum suorum, sed vasa misericordiae nominantur. cuius misericordiae nisi illius, qui Christum Iesum misit in hunc
mundum peccatores salvos facere, quos praescivit et praedestinavit et vocavit et iustificavit et glorificavit?, logo, esta
Graa de Cristo, sem a qual nem as crianas e nem os adultos podem se salvar, ela no dada em retribuio aos
mritos, mas de graa; por isso que chamada Graa [...] logo, aqueles que so liberados pela Graa so chamados de
vasos da misericrdia, no de vasos dos prprios mritos. A qual misericrdia seno na Dele, que enviou Deus a este
mundo para fazer com que os pecadores fossem salvos, Ele nos prescreveu e predestinou e chamou e justificou e
glorificou? V. Rist (1994) p. 133-135 e 266-283.

)451
18

Agostinho Ep. 167 / Jernimo Ep. 132


De sententia Iacobi apostoli liber
<Tratado sobre a concluso do apstolo Tiago>
[415]

Como argumentamos na introduo da carta anterior, Aug. Ep. 166, a questo sobre a origem da alma do

homem inadvertidamente se relaciona a duas outras discusses: uma sobre a substancialidade da alma, se ela partilha da

mesma pureza do divino ou no; e outra do ministrio do batismo aos recm-nascidos. Agostinho conclura que, sendo a

alma feita de uma substncia distinta daquela de Deus, ela falha, sendo a ela impossvel no pecar. Como, ento,

atingir a redeno? A saber, a liberdade dos pecados um estado que atingiremos somente na vida espiritual, aps a

Ressurreio. Como aliar essa viso pessimista de natureza humana, dbil e essencialmente dependente da divina

providncia, com a salvao? A resposta, diz o autor, a Graa de Cristo que intercede por ns. Ela comea a atuar no

momento do batismo, atravs do qual expurga o Pecado Original de Ado. Mas pode a Graa curar todo e qualquer

pecado? Por um acaso os pecados teriam o mesmo peso, como os pelagianos acreditavam, e a nica possibilidade de se

ver livre dos graves seria se ver livre de todos? esta a questo que Agostinho tratar nesse tratado, intitulado De

sententia Iacobi apostoli, sobre a concluso do apstolo Tiago, texto que foi enviado a Jernimo em forma de carta,

Aug. Ep. 167, em conjunto com o texto Aug. Ep. 166 anterior, entre os anos de 412 e 415, e tambm por intermdio de

Paulo Orsio1; trata-se, portanto, de uma segunda parte de uma nica obra2 , que foi escrita no mesmo contexto da

polmica pelagiana. A ausncia de salutatio e a estrutura distinta da arquitetura tridica de uma carta indicam que esse

texto no pertence propriamente ao gnero epistolar.

Agostinho comea o tratado retomando afirmaes que fizera em Aug. Ep. 166. No texto anterior De origine

animae hominis, o bispo afirmara que a alma j nasce com o pecado herdado de Ado, do qual ela se liberta atravs do

batismo. No entanto, mesmo aps batizada, o autor procurou mostrar que impossvel que a alma viva completamente

pura. Aos olhos de Agostinho, uma avaliao de que o homem estaria totalmente livre para no pecar to-logo recebesse

o batismo superestima o poder do livre arbtrio, ao mesmo tempo em que subestima o poder da Graa. Nenhum homem

subsiste sem a ajuda de Deus: vivemos no mundo como invlidos, mesmo ao seguirmos o caminho de Cristo, pois nossa

alma distinta da Sua. H ento uma questo que, mais urgente e mais sria, precisa ser resolvida, intimamente

relacionada com a busca pela origem da alma humana (cf. Aug. Ep. 167,1).

Agostinho questiona se crvel a existncia de uma unidade dos pecados, possvel reflexo de uma unidade das

virtudes, coisa que os estoicos e demais filsofos pagos acreditavam existir. Se os pecados tm todo o mesmo peso,

)452
como conseguir a salvao, j que no podemos deixar de pecar, seja nos atos falhos do pensamento ou s pequenas

aes que nos passam despercebidas? Para trabalhar essa hiptese, o bispo de Hipona concentra-se em uma passagem

da carta do apstolo Tiago, que diz, sobre a Lei judaica, que qualquer que guardar toda a Lei, e tropear em um s

ponto, tornar-se- culpado de todos (Jac 2:10). nesta concluso de Tiago que se esconde a soluo do problema, e

em uma anlise dela que Agostinho constri toda a sua argumentao (cf. Aug. Ep. 167,2-4).

Na narratio, o tratado se divide em trs demonstraes (em latim probationes) distintas. Primeiro, a teoria da

paridade, da unidade e da antonmia perfeita entre os vcios e as virtudes (cf. Aug. Ep. 167,5-10). Agostinho mostra que,

ao contrrio do que pensavam os pagos mais radicais (os quais encontram pares entre os ascetas cristos do sculo

quinto, de modo que devemos entender pelagiano e maniqueu toda vez que o bispo se refere moralmente aos

estoicos), no pode haver uma unidade entre as virtudes, assim como no existem antonmias unvocas entre vcios e

virtudes. Agostinho emprega as qualidades da fortitudo, a coragem ou segurana de si, da prudentia, a prudncia, da

iustitia, a justia, e da temperantia, o comedimento para ilustrar seu argumento, e expe, usando de um mtodo

chamado de differentia verborum (a comparao, fundamentada na gramtica e na etimologia, de antnimos e

sinnimos), que h virtudes que no encontram vcios contrrios, e que qualidades e defeitos podem coexistir uns com

os outros.

Um exemplo concreto dessa hiptese se apresenta nas caractersticas do conjurador Lcio Catilina, figura dos

tempos da Repblica, o qual o historiador Salstio descrevera como um homem dotado de coragem (em latim

fortitudo), mas que era, ao mesmo tempo, imprudente, malicioso e injusto, logo no era virtuoso. Para Agostinho, a

fortitudo de Catilina descambou para a duritia, a ridigez. Neste personagem, encontramos virtudes coexistindo com

vcios, que no se anulam entre si, e tambm virtudes que descambam em vcios pela falta ou pelo excesso, realidade

que ilustra o absurdo de se estabelecer uma unidade ou inseparabilidade de virtudes ou de vcios, assim como de se

qualificar vcios e virtudes em absoluto. Catilina serve de prova de que a existncia de uma virtude em um homem no

suficiente para que nele existam todas as virtudes, assim como possvel que um homem tenha uma virtude, no caso

dele a fortitudo, e que ainda assim no seja virtuoso. O homem apresenta uma estrutura moral mais complexa, que

permite a coexistncia de diferentes vcios e virtudes.

Segue-se uma segunda probatio: tendo admitido que absurdo adotar a teoria estoica da unidade e paridade

dos vcios para explicar os pecados segundo a doutrina crist, devemos questionar qual o nico ponto em que no

podemos pecar, sobre o qual fala Tiago (cf. Aug. Ep. 167,11-15). Qual, afinal, o limite do pecado, se este no

absoluto? A opinio estoica de que a sabedoria, a nica virtude, um dom de tudo ou nada, como se ela devesse ser

negada a quem no a possui por completo, deve ser refutada. Essa hiptese no est de acordo com o que dizem as

Sagradas Escrituras. O cristianismo, como o sustentaram os apstolos, uma doutrina de progresso moral, de cura

gradual do pecado queles que buscam seguir os ensinamentos de Cristo. Segundo a interpretao que Agostinho d

pregao apostlica, a conquista da virtude se d de maneira semelhante fbula da caverna, que Plato narrara na

Repblica: gradualmente, como os olhos se acostumam luz, assim que se conquista a virtude e, atravs dela, intui-se

)453
a verdade. Ainda que saibamos que a verdadeira sapientia, para usar o termo estoico, s pode ser atingida na vida

espiritual, a f nos leva a busc-la e intu-la ainda nessa vida, tomando o caminho de aperfeioamento espiritual e

obedecendo a Deus, e assim conseguimos conduzir uma vida com um pouco de virtude. O que , ao fim e ao cabo, a

virtude? Ela essa mesma busca pela sabedoria (sapientia, em latim), que a piedade (pietas), algo que os gregos

chamaram de ; ou melhor, ela a , o que os latinos deram o nome de religio; no entanto, e para

concluir, a virtus suprema, a nica verdadeira, na realidade a caritas ou o amor, a dos gregos, que, segundo o

apstolo Paulo, tambm o fim da Lei (cf. Rom 13:10 e Mt 22:40)3.

Por fim, a terceira probatio. Aps concluir que o ponto no qual no podemos tropear a caritas, resta-nos

perguntar como fazer para preserv-lo e cultiv-lo, uma vez que no podemos t-lo em plenitude nessa vida. O amor s

existe quando seguimos de maneira sincera, e pela retido da f, os ensinamentos de Cristo, mediados pelos cuidados da

Igreja (cf. Aug. Ep. 16-19). A f sem amor vazia; o amor sem f cego. A faculdade que coordena essas categorias a

Graa. No Velho Testamento, foram os comandos da Lei, entre os quais os dez mandamentos, que serviram de regra

para a vida crist. Ainda que a Lei tenha se tornado obsoleta com a vinda de Cristo, o ponto central da Lei no deixou

de existir, mas realizou-se em Cristo: o amor o nico princpio inviolvel da Lei. Afinal, Cristo , ele prprio, a

realizao da profecia, o fim da Lei; Ele o amor. Se atentarmos contra o amor, isto , se desobedecermos a Cristo, se

tropearmos neste nico ponto, tornar-nos-emos culpados de todos os pontos da Lei. Assim devemos interpretar as

palavras de Tiago, que a corrupo do amor o pecado mas grave. H, portanto, uma equivalncia de pecados, mas no

uma paridade ou uma unidade, como pensavam os estoicos: quem pecar mais ou cometer pecados mais graves, mais

esvaziado estar do amor e tambm de Deus; inversamente, quem menos pecar, ou cometer pecados menos graves, mais

cheio estar do amor e tambm de Deus. Assim, a concluso de Tiago no uma condenao dos pecadores, mas uma

admonio para a boa conduta crist, pois a misericrdia de Deus abundante, como o prprio apstolo diz a seguir:

porque o juzo ser sem misericrdia sobre aquele que no fez misericrdia; e a misericrdia transborda o juzo (Jac

2:13). Em suma, embora seja impossvel deixar de pecar, a maneira como encaramos o pecado e como conduzimos

nossa vida em relao a ele as obras ou aes que Tiago fala em sua carta, as quais so imprescindveis f

que nos possibilitam a redeno. O prprio apstolo nos mostrou o remdio pelo qual podemos curar nossos pecados

mais leves: a misericrdia, que existe tanto no ministrio do amor quanto no arrependimento sincero de nossos erros,

possibilitando que a Graa de Deus interceda por ns. Conclui-se o texto nos pargrafos seguintes, nos quais Agostinho

tece consideraes gerais sobre o que foi anteriormente argumentado e faz elogios a Jernimo (cf. Aug. Ep. 167,20-21).

Como Aug. Ep. 166, esta carta no encontra aspecto ou situao entre as tipologias de Pseudo-Demtrio ou

Pseudo-Libnio, pois ela estruturada tal qual um tratado de filosofia.

1 Hennings (1994) p. 46-47 e Fry (2010) p. 357-358.


2 Cf. Aug. Retract. 2,45.
3 Conforme Agostinho j havia discutido em Aug. Ep. 82,20.

)454
Aug. ep. 167 de sententia...

1. Quod ad te scripsi, honorande mihi in Christo frater Hieronyme, quaerens de anima humana,
si nascentibus singulis novae singulae nunc usque fiunt, ubi peccati vinculum contrahant, quod
per sacramentum gratiae Christi, etiam in infantibus recenter natis non dubitamus esse
solvendum, cum in non parvum volumen procederet, nolui ulla alia onerare quaestione: sed
quod urget acrius, multo minus est neglegendum. Proinde quaeso, et per Dominum obsecro, ut
exponas mihi, quod multis existimo profuturum: aut si iam vel abs te, vel ab alio aliquo
expositum habes, dirigas nobis, quomodo accipiendum sit, quod in epistula Iacobi apostoli
scriptum est: Quicumque enim totam Legem servaverit, offendat autem in uno, factus est
omnium reus. Quae res talis ac tanta est, ut quod hinc tibi non iam olim scripsi, multum me
poeniteat.
2. De agenda namque praesenti vita, quomodo ad vitam perveniamus aeternam, non de
praeterita perscrutanda, quam penitus demersit oblivio, sicut est illud quod de anima
quaerendum putavi, haec vertitur quaestio. Eleganter autem dictum esse narratur, quod huic rei
satis apte convenit. Cum quidam ruisset in puteum, ubi aqua tanta erat, ut eum magis exciperet,
ne moreretur, quam suffocaret, ne loqueretur; accessit alius, et eo viso miserans ait: Quomodo
huc cecidisti? At ille: Obsecro, inquit, cogita quomodo hinc me liberes, non quomodo huc
ceciderim, quaere. Ita quoniam fatemur, et fide catholica tenemus, de reatu peccati tamquam de
puteo etiam parvuli infantis animam Christi gratia liberandam, satis est ei quod modum quo
salva fiat novimus, etiam si numquam quomodo in malum illud devenerit, noverimus. Sed ideo
putavi esse quaerendum, ne forte ex illis opinionibus incarnationis animae aliquam teneamus
incautius, quae liberandam prorsus animam parvuli contradicat, negans eam esse in isto malo.
Hoc igitur firmissime retento, quod anima parvuli de reatu peccati liberanda est, nec alio modo
liberanda, nisi gratia Dei per Iesum Christum Dominum nostrum; si possumus etiam ipsius mali
causam et originem nosse, vaniloquis, non disputatoribus, sed litigatoribus paratius
instructiusque resistimus; si autem non possumus, non quia latet miseriae principium, ideo
pigrescere misericordiae debet officium. Adversus eos autem qui sibi videntur scire quod
nesciunt, hoc tutiores sumus, quod hanc ignorantiam nostram non ignoramus. Aliud est enim
quod nescire malum est, aliud quod sciri vel non potest, vel non opus est, vel ad vitam quam
quaerimus indifferens est. Hoc vero quod de litteris apostoli Iacobi nunc requiro, in hac ipsa qua
vivimus, et ut semper vivamus Deo placere studemus, actione versatur.

)455
Aug. ep. 167 de sententia...
3. Quomodo igitur intellegendum est, obsecro te: Quicumque totam Legem servaverit,
offendat autem in uno, factus est omnium reus? Itane qui furtum fecerit, immo vero qui dixerit
diviti: Sede hic, pauperi autem: Tu sta illic, et homicidii, et adulterii, et sacrilegii reus est?
Quod si non est, quomodo qui in uno offendat, factus est omnium reus? An illud quod dixi de
divite et paupere, ad ista non pertinet, quorum si quis in uno offenderit, fiet omnium reus? Sed
recolendum est, unde venerit illa sententia, et quae illam superiora pepererint, quibusque
connexa dependeat. Fratres mei, nolite, inquit, in personarum acceptione habere fidem
Domini nostri Iesu Christi gloriae. Etenim si introierit in conventum vestrum vir annulum
aureum habens in veste candida, introierit autem et pauper in sordido habitu, et intendatis in
eum qui indutus est veste praeclara, et dicatis: Tu sede hic bene; pauperi autem dicatis: Tu sta
illic, aut, Sede sub scabello pedum meorum: nonne iudicatis apud vosmet ipsos, et facti estis
iudices cogitationum iniquarum? Audite, fratres mei dilectissimi: nonne Deus elegit pauperes in
hoc mundo, divites in fide, et haeredes regni quod repromisit Deus diligentibus se? Vos autem
exhonorastis pauperem, propter illum scilicet, cui dictum est: Tu sta illic; cum habenti
annulum aureum dictum esset: Tu sede hic bene. Ac deinde sequitur, eandem ipsam
sententiam latius versans, et explicans: Nonne, inquit, divites per potentiam opprimunt vos,
et trahunt ad iudicia? Nonne ipsi blasphemant bonum nomen, quod invocatum est super vos? Si
quidem Legem perficitis regalem, secundum Scripturam: Diliges proximum tuum sicut te
ipsum, bene facitis. Si autem personas accipitis, peccatum operamini, redarguti a Lege quasi
transgressores. Videte quemadmodum transgressores Legis appellat, qui dicunt diviti: Sede
hic, et pauperi: Sta illic. Vnde ne putarent contemptibile esse peccatum, in hac una re Legem
transgredi, secutus adiunxit: Quicumque autem totam Legem servaverit, offendat autem in uno,
factus est omnium reus. Qui enim dixit: Non moechaberis, dixit et: Non occides. Quod si
non occides, moecharis autem, factus es transgressor Legis; propter id quod dixerat, redarguti a
Lege, quasi transgressores. Quae cum ita sint, consequens videtur (nisi alio modo
intellegendum ostendatur) ut qui dixerit diviti: Sede hic, et pauperi: Sta illic, huic honorem
ampliorem quam illi deferens, et idololatres, et blasphemus, et adulter, et homicida, et ne (quod
longum est) cuncta commemorem, reus omnium criminum iudicandus sit. Offendens quippe in
uno, factus est omnium reus.
4. At enim qui unam virtutem habet, omnes habet, et qui unam non habet, nullam habet? Hoc
si verum est, confirmatur ista sententia. Sed ego eam exponi volo, non confirmari, quae per
seipsam est apud nos omnibus philosophorum auctoritatibus firmior. Et illud quidem de
virtutibus et vitiis si veraciter dicitur, non est consequens, ut propter hoc omnia peccata sint
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Aug. ep. 167 de sententia...
paria. Nam illud de inseparabilitate virtutum, etsi forsitan fallor, tamen si verum memini, quod
vix memini, omnibus philosophis placuit, qui easdem virtutes, agendae vitae necessarias esse
dixerunt. Hoc autem de parilitate peccatorum soli Stoici ausi sunt disputare contra omnem
sensum generis humani; quam eorum vanitatem in Ioviniano illo qui in hac sententia Stoicus
erat, in aucupandis autem et defensitandis voluptatibus Epicureus, de Scripturis sanctis
dilucidissime convicisti. In qua tua suavissima, et praeclarissima disputatione satis evidenter
apparuit, non placuisse auctoribus nostris, vel ipsi potius quae per eos locuta est, veritati, omnia
paria esse peccata. Quomodo autem fieri possit, ut etiam si hoc de virtutibus verum est, non
tamen ideo cogamur fateri aequalitatem omnium peccatorum, quantum possum, adiuvante
Domino aperire conabor. Quod si effecero, approbabis; ubi vero causae defuero, tu supplebis.
5. Certe hinc persuadent, qui unam virtutem habuerit, habere omnes, et omnes deesse cui una
defuerit; quod prudentia, nec ignava, nec iniusta, nec intemperans potest esse; nam si aliquid
horum fuerit, prudentia non erit. Porro si prudentia tunc erit, si et fortis, et iusta, et temperans
sit, profecto ubi fuerit, secum habet ceteras. Sic et fortitudo imprudens esse non potest, vel
intemperans, vel iniusta; sic temperantia necesse est ut prudens, fortis, et iusta sit; sic iustitia
non est, si non sit prudens, fortis, et temperans. Ita ubi est una vera aliqua earum, et aliae
similiter sunt; ubi autem aliae desunt, vera illa non est, etiam si aliquo modo similis esse
videatur.
6. Sunt enim, ut scis, quaedam vitia virtutibus aperta discretione contraria, ut imprudentia
prudentiae. Sunt autem quaedam tantum quia vitia sunt, ideo contraria, quadam tamen specie
fallaci similia, ut eidem prudentiae non imprudentia, sed astutia. Nunc enim eam dico astutiam,
quae usitatius in malitiosis intellegi et vocari solet; non sicut nostra loqui Scriptura consuevit,
quae saepe astutiam in bono ponit, unde est: Astuti ut serpentes; et illud: Vt et innocentibus
det astutiam. Quamquam et apud illos Romanae linguae disertissimus dixerit: Neque illi
tamen ad cavendum dolus, aut astutia deerant, astutiam ponens in bono; sed apud illos
rarissimum, apud nostros frequentissimum est. Itemque in partibus temperantiae, apertissime
contraria est effusio parcimoniae. Ea vero quae tenacitas etiam vulgo dici solet, vitium quidem
est, tamen parcimoniae simile, non natura, sed fallacissima specie. Item dissimilitudine
manifesta contraria est iniustitia iustitiae. Solet autem quasi imitari iustitiam vindicandi libido,
sed vitium est. Ignavia fortitudini perspicue contraria est; duritia vero distat natura, fallit
similitudine. Constantia pars quaedam virtutis est; ab hac inconstantia longe abhorret, et indubie
contrasistit; pertinacia vero constantia dici affectat, et non est, quia illa est virtus, hoc vitium.

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7. Vt ergo non iterum eadem commemorare necesse sit, exempli gratia ponamus aliquid, unde
possint cetera intellegi. Catilina, ut de illo scripserunt qui nosse potuerunt, frigus, sitim, famem
ferre poterat, eratque patiens inediae, algoris, vigiliae, supra quam cuiquam credibile est, ac
per hoc, suis et sibi magna praeditus fortitudine videbatur. Sed haec fortitudo prudens non erat,
mala enim pro bonis eligebat; temperans non erat, corruptelis enim turpissimis foedabatur; iusta
non erat, nam contra patriam coniuraverat. Et ideo nec fortitudo erat, sed duritia sibi, ut stultos
falleret, nomen fortitudinis imponebat; nam si fortitudo esset, non vitium, sed virtus esset. Si
autem virtus esset, a ceteris virtutibus tamquam inseparabilibus comitibus numquam
relinqueretur.
8. Quapropter cum quaeritur etiam de vitiis utrum ipsa similiter et omnia sint, ubi unum erit;
aut nulla sint, ubi unum non erit; laboriosum est id ostendere, propterea quia uni virtuti duo vitia
opponi solent, et quod aperte contrarium est, et quod specie similitudinis adumbratur. Vnde illa
Catilinae, quia fortitudo non erat, quae secum virtutes alias non habebat, facilius videbatur.
Quod vero ignavia fuerit, ubi exercitatio quaslibet gravissimas molestias perpetiendi atque
tolerandi, supra quam cuiquam credibile est, fuit, aegre persuaderi potest. Sed forte acutius
intuentibus ignavia apparet ipsa duritia, quia laborem bonorum studiorum, quibus vera
adquiritur fortitudo, neglexerat. Verum tamen quia sunt audaces qui timidi non sunt, et rursus
timidi quibus abest audacia, cum sit utrumque vitium, quoniam qui vera virtute fortis est, nec
temere audet, nec inconsulte timet, cogimur fateri vitia plura esse virtutibus.
9. Vnde aliquando vitium vitio tollitur, ut amore laudis amor pecuniae. Aliquando unum cedit,
ut plura succedant, velut qui ebriosus fuerit, si modicum biberit, et tenacitatem et ambitionem
didicerit. Possunt itaque vitia etiam cedere vitiis succedentibus, non virtutibus, et ideo plura
sunt. Virtus vero quo una ingressa fuerit, quoniam secum ceteras ducit, profecto vitia cedent
omnia quaecumque inerant. Non enim omnia inerant, sed aliquando totidem, aliquando plura
paucioribus, vel pauciora pluribus succedebant.
10. Haec utrum ita se habeant, diligentius inquirendum est. Non enim et ista divina sententia est,
qua dicitur: Qui unam virtutem habuerit, omnes habet; eique nulla inest, cui una defuerit, sed
hominibus hoc visum est, multum quidem ingeniosis, studiosis, sed tamen hominibus. Ego vero
nescio quemadmodum dicam. Non dico virum, a quo denominata dicitur virtus, sed etiam
mulierem quae viro suo servat tori fidem, si hoc faciat propter praeceptum et promissum Dei,
eique primitus sit fidelis, non habere pudicitiam, aut eam nullam vel parvam esse virtutem; sic
et maritum qui hoc idem servat uxori; et tamen sunt plurimi tales, quorum sine aliquo peccato
esse neminem dixerim, et utique illud qualecumque peccatum ex aliquo vitio venit. Vnde
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pudicitia coniugalis in viris feminisque religiosis, cum procul dubio virtus sit (non enim aut
nihil aut vitium est), non tamen secum habet omnes virtutes. Nam si omnes ibi essent, nullum
esset vitium; si nullum vitium, nullum omnino peccatum; quis autem sine aliquo peccato? Quis
ergo sine aliquo vitio, id est fomite quodam vel quasi radice peccati, cum clamet qui supra
pectus Domini recumbebat: Si dixerimus quia peccatum non habemus, nos ipsos decipimus, et
veritas in nobis non est? Neque hoc apud te diutius agendum est, sed propter alios qui haec
forte legerint, dico. Nam tu quidem in eodem ipso opere splendido contra Iovinianum, etiam hoc
de Scripturis sanctis diligenter probasti; ubi etiam ex hac ipsa epistula, cuius verba sunt, quorum
nunc intellectum requirimus, posuisti quod scriptum est: In multis enim offendimus omnes.
Non enim ait offenditis, sed offendimus, cum Christi loqueretur apostolus, et cum hoc loco
dicat: Quicumque autem totam Legem servaverit, offendat autem in uno, factus est omnium
reus. Ibi non in uno, sed in multis, nec quosdam, sed omnes dixit offendere.
11. Absit autem ut quisquam fidelis existimet tot millia servorum Christi, qui veraciter dicunt se
habere peccatum, ne seipsos decipiant, et veritas in eis non sit, nullam habere virtutem, cum
virtus magna sit sapientia. Dixit autem homimi: Ecce pietas est sapientia. Absit autem ut
dicamus tot ac tantos fideles et pios homines Dei non habere pietatem, quam Graeci vel
,vel expressius et plenius vocant: quid autem est pietas, nisi Dei cultus? Et
unde ille colitur, nisi caritate? Caritas enim de corde puro et conscientia bona et fide non ficta,
magna et vera virtus est, quia ipsa est et finis praecepti. Merito dicta est fortis, sicut mors, sive
quia nemo eam vincit, sicut mortem; sive quia in hac vita usque ad mortem est mensura
caritatis, sicut Dominus ait: Maiorem hac caritatem nemo habet, quam ut animam suam ponat
quis pro amicis suis; sive potius, quia sicut mors animam avellit a sensibus carnis, sic caritas a
concupiscentiis carnalibus. Huic subservit scientia, cum est utilis; nam sine illa inflat. Quod
vero illa aedificando impleverit, nihil ibi ista inane quod inflet inveniet. Vtilem porro scientiam
definiendo monstravit, ubi cum dixisset: Ecce pietas est sapientia, continuo subiunxit:
Abstinere vero a malis, scientia est. Cur ergo non dicimus, qui hanc virtutem habet, habere
omnes, cum plenitudo Legis sit caritas? An quanto magis est in homine, tanto magis est virtute
praeditus: quanto autem minus, tanto minus inest virtus, quia ipsa est virtus; et quanto minus
inest virtus, tanto magis est vitium? Vbi ergo illa plena et perfecta erit, nihil ex vitio remanebit.
12. Proinde mihi videntur Stoici ideo falli, quia proficientem hominem in sapientia nolunt
omnino habere sapientiam; sed tunc habere, cum in ea fuerit omnino perfectus; non quia illum
provectum negant, sed nisi ex profundo quodam emergendo repente emicet in auras sapientiae
liberas, nulla ex parte esse sapientem. Sicut enim nihil interest ad hominem praefocandum,
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utrum aquam stadiis multis super se habeat altam, aut unum palmum, aut digitum, sic illos qui
tendunt ad sapientiam, proficere quidem dicunt, tamquam ab imo gurgitis surgentes in aerem;
sed nisi totam stultitiam, velut opprimentem aquam, proficiendo velut emergendo evaserint, non
habere virtutem, nec esse sapientes. Vbi autem evaserint, mox habere totam, nec quicquam
stultitiae remanere, unde omnino ullum peccatum possit existere.
13. Haec similitudo ubi stultitia velut aqua, et sapientia velut aer ponitur, ut animus a
praefocatione stultitiae, tamquam emergens in sapientiam repente respiret, non mihi videtur
satis accommodata nostrarum Scripturarum auctoritati; sed illa potius, ut vitium vel stultitia
tenebris, luci autem virtus vel sapientia comparetur, quantum ista similia de corporalibus ad
intellegibilia duci possunt. Non itaque sicut de aquis in aerem surgens, ubi earum summum
transierit, repente quantum sufficit inspiratur, sed sicut de tenebris in lucem procedens, paulatim
progrediendo illuminatur. Quod donec plenissime fiat, iam eum tamen dicimus, tamquam de
abditissima spelunca egredientem, vicinia lucis afflatum, tanto magis, quanto magis propinquat
egressui: ut illud quod in eo lucet, sit utique ex lumine quo progreditur; illud autem quod adhuc
obscurum est, sit ex tenebris unde egreditur. Itaque et non iustificabitur in conspectu Dei omnis
vivens, et tamen iustus ex fide vivit. Et induti sunt sancti iustitia, alius magis, alius minus: et
nemo hic vivit sine peccato, et hoc alius magis, alius minus; optimus autem est, qui minimum.
14. Sed quid ago? Tamquam oblitus, cui loquor, doctori similis factus sum, cum proposuerim
quid abs te discere velim? Sed quia de peccatorum parilitate, unde in id quod agebam incidit
quaestio, examinandam tibi sententiam meam promere statueram, iam eam tandem aliquando
concludam. Quia etsi verum est, eum qui habet unam, omnes habere virtutes, eum qui unam non
habet, nullam habere, nec sic peccata sunt paria, quia ubi virtus nulla est, nihil quidem rectum
est, nec tamen ideo non est pravo pravius, distortoque distortius. Si autem (quod puto esse
verius, sacrisque litteris congruentius) ita sunt animae intentiones ut corporis membra non quod
videantur locis, sed quod sentiantur affectibus, et aliud illuminatur amplius, aliud minus, aliud
omnino caret lumine, et tenebroso inumbratur obstaculo, profecto ita ut quisque illustratione
piae caritatis affectus est, in alio actu magis, in alio minus, in alio nihil; sic potest dici habere
aliam, aliam non habere, aliam magis, minusve habere virtutem. Nam et maior est in isto
caritas, quam in illo recte possumus dicere, et aliqua in isto, nulla in illo quantum pertinet ad
caritatem quae pietas est, et in ipso uno homine quod maiorem habeat pudicitiam quam
patientiam, et maiorem hodie quam heri, si proficit, et adhuc non habeat continentiam, et habeat
non parvam misericordiam.

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15. Et ut generaliter breviterque complectar quam de virtute habeam notionem, quod ad recte
vivendum attinet, virtus est caritas qua id quod diligendum est diligitur. Haec in aliis maior, in
aliis minor, in aliis nulla est: plenissima vero quae iam non possit augeri, quamdiu hic homo
vivit, in nemine; quamdiu autem augeri potest, profecto illud quod minus est quam debet, ex
vitio est. Ex quo vitio non est iustus in terra, qui faciat bonum, et non peccet; ex quo vitio
non iustificabitur in conspectu Dei omnis vivens; propter quod vitium si dixerimus quod
peccatum non habemus, nosmetipsos seducimus, et veritas in nobis non est; propter quod
etiam, quantumlibet profecerimus, necessarium est nobis dicere: Dimitte nobis debita nostra,
cum iam omnia in baptismo dicta, facta, cogitata dimissa sint. Videt itaque, qui recte videt, ubi
et quando et unde speranda sit illa perfectio, cui non sit quod adici possit. Si autem praecepta
non essent, non utique esset ubi se homo certius inspiceret et videret unde averteretur, quo
conaretur, quare gratularetur, quid precaretur. Magna est ergo utilitas praeceptorum, si libero
arbitrio tantum detur, ut gratia Dei amplius honoretur.
16. Quae si ita se habent, unde fit omnium reus, si in uno offendat, qui totam Legem servaverit?
An forte, quia plenitudo Legis caritas est, qua Deus proximusque diligitur, in quibus
praeceptis caritatis tota Lex pendet et prophetae, merito fit reus omnium, qui contra illam
facit, in qua pendent omnia? Nemo autem peccat, nisi adversus illam faciendo, quia non
adulterabis, non homicidium facies, non furaberis, non concupisces, et si quod est aliud
mandatum, in hoc sermone recapitulatur, in eo quod est: diliges proximum tuum tamquam
teipsum. Dilectio proximi malum non operatur. Plenitudo autem Legis, caritas. Nemo autem
diligit proximum, nisi diligens Deum, ut hoc quantum potest proximo impendat, quem diligit
tamquam se ipsum, ut et ille diligat Deum, quem si ipse non diligit, nec se, nec proximum
diligit. Ac per hoc qui totam Legem servaverit, si in uno offenderit, fit omnium reus; quia contra
caritatem facit, unde tota Lex pendet. Reus itaque fit omnium, faciendo contra eam, in qua
pendent omnia.
17. Cur ergo non dicantur paria peccata? An forte quia magis facit contra caritatem, qui gravius
peccat, minus, qui levius? Et hoc ipso admittit magis et minus, fit quidem omnium reus, sed
gravius peccans, vel in pluribus peccans, magis reus; levius autem vel in paucioribus peccans,
minus reus; tanto maiore scilicet reatu, quanto amplius, tanto minore, quanto minus peccaverit;
tamen etiam si in uno offenderit, reus omnium est, quia contra eam facit, in qua pendent omnia?
Quae si vera sunt, eo modo et illud absolvitur, quod ait homo etiam apostolicae gratiae: In
multis enim offendimus omnes. Offendimus enim, sed unus gravius, unus levius. Quanto
quisque magis minusve peccaverit, tanto in peccato committendo maior, quanto in diligendo
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Deo et proximo minor. Et rursus, tanto minor in peccati perpetratione, quanto maior in Dei et
proximi dilectione. Tanto itaque plenior iniquitatis, quanto inanior caritatis. Et tunc perfecti
sumus in caritate, quando nihil restat ex infirmitate.
18. Nec sane quantum arbitror putandum est leve esse peccatum in personarum acceptione,
habere fidem Domini nostri Iesu Christi, si illam distantiam sedendi ac standi ad honores
ecclesiasticos referamus. Quis enim ferat eligi divitem ad sedem honoris Ecclesiae, contempto
paupere instructiore atque sanctiore? Si autem de quotidianis consessibus loquitur, quis non hic
peccat, si tamen peccat, nisi cum apud seipsum intus ita iudicat, ut ei tanto melior, quanto ditior
illo esse videatur? Hoc enim videtur significasse cum dicit: Nonne iudicatis apud vosmet ipsos,
et facti estis iudices cogitationum iniquarum?
19. Lex itaque libertatis, Lex caritatis est, de qua dicit: Si tamen Legem perficitis regalem
secundum Scripturas: Diliges proximum tuum sicut teipsum, bene facitis. Si autem personas
accipitis, peccatum operamini, redarguti a Lege tamquam transgressores. Et post illam
sententiam ad intellegendum difficillimam, de qua satis dixi quod dicendum putavi, eandem
Legem libertatis commemorans: Sic loquimini, inquit, et sic facite, sicut per Legem libertatis
incipientes iudicari. Et quoniam quid paulo ante dixerit, novit: quoniam in multis offendimus
omnes, suggerit dominicam tamquam quotidianam quotidianis, etsi levioribus, tamen
vulneribus medicinam: Iudicium enim, inquit, sine misericordia illi qui non facit
misericordiam. Hinc enim et Dominus: Dimittite, inquit, et dimittetur vobis; date, et dabitur
vobis. Superexultat autem misericordia iudicio; non dictum est, Vincit misericordia
iudicium, non enim est adversa iudicio, sed superexultat, quia plures per misericordiam
colliguntur, sed qui misericordiam praestiterunt. Beati enim misericordes, quia ipsis
miserebitur Deus.
20. Et hoc utique iustum est, ut dimittatur eis, quia dimiserunt, et detur eis, quia dederunt. Inest
quippe Deo et misericordia iudicanti, et iudicium miseranti, propter quod ei dicitur:
Misericordiam et iudicium cantabo tibi, Domine. Nam quisquis velut nimium iustus, iudicium
sine misericordia, quasi securus expectat, iram iustissimam provocat, quam timens ille dixit:
Ne intres in iudicium cum servo tuo. Vnde dicitur populo contumaci: Quid vultis mecum
iudicio contendere? Cum enim rex iustus sederit in throno, quis gloriabitur castum se habere
cor? aut quis gloriabitur mundum se esse a peccato? Quae igitur spes est, nisi superexultet
misericordia iudicio? Sed erga illos qui misericordiam fecerunt, veraciter dicendo: Dimitte
nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus, et sine murmuratione dando, hilarem enim
datorem diligit Deus. Denique sanctus Iacobus iam ex isto loco de misericordiae operibus
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loquitur, ut quos vehementer illa sententia terruerat, consoletur, cum admonet quomodo etiam
peccata quotidiana, sine quibus hic non vivitur, quotidianis remediis expientur, ne homo qui
cum in uno offenderit, fiat omnium reus, in multis offendendo, quia in multis offendimus
omnes magnum aggerem reatus sui, minutatim collectum, ad tribunal tanti iudicis pervehat, et
eam quam non fecit misericordiam non inveniat; sed potius dimittendo atque donando mereatur
sibi dimitti peccata, reddique promissa.
21. Multa dixi quibus tibi taedium fortassis inferrem, qui haec quae tamen approbas, non
expectas discere, quod ea docere consuesti. Si quid autem est in eis, quantum ad res ipsas
pertinet (nam quali eloquio explicata sint, non nimis curo), si quid ergo in eis est, quod
eruditionem offendat tuam, quaeso ut rescribendo admoneas, et me corrigere non graveris.
Infelix est enim qui non tantos et tam sanctos tuorum studiorum labores et digne honorat, et de
his Domino Deo nostro, cuius munere talis es, gratias agit. Vnde cum libentius debeam a
quolibet discere quod inutiliter ignoro, quam promptius quoslibet docere quod scio, quanto
iustius hoc abs te caritatis debitum flagito, cuius doctrina in nomine et adiutorio Domini tantum
in Latina lingua ecclesiasticae litterae adiutae sunt, quantum numquam antea potuerunt!
Maxime tamen istam sententiam: Quicumque totam Legem servaverit, offendat autem in uno,
factus est omnium reus: si quo alio modo exponi melius posse novit dilectio tua, per Dominum
obsecro ut nobiscum communicare digneris.

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1. O que te escrevi, irmo Jernimo, a quem eu devo honrar em nome de Cristo,


quando eu investigava sobre a alma humana se almas novas e individuais so criadas
at hoje para cada indivduo que nasce, e de onde estas contraem as correntes do pecado
que, no duvidamos, so certamente quebradas atravs do sacramento da Graa de
Cristo, e at nos bebs recm-nascidos , visto que o assunto se alongou num volume
um pouco grande, eu no quis sobrecarreg-lo com nenhum outro problema1. Mas urge
uma questo, mais sria, que no pode, ou melhor, que no deve ser ignorada. Por
conseguinte, procuro e imploro, em nome do Senhor, que me expliques algo que, estimo,
ser til a muitos, ou, se j o tens explicado seja por ti, seja por algum outro, que nos
conduza ao modo correto de compreender uma passagem que est na carta do apstolo
Tiago: qualquer que guardar toda a Lei, e tropear em um s ponto, tornar-se- culpado
de todos2 . Essa questo to importante, e to vital a ponto de me causar enorme
desconforto por no ter te escrito anteriormente alguma coisa sobre ela.
2. sobre a vida que se vive agora, ou seja, sobre a maneira como chegaremos vida
eterna, e no sobre a investigao da vida anterior, a qual afundou completamente no
esquecimento semelhante ao que pensei ser necessrio questionar sobre a alma
que se trata essa questo. Aqui, conta-se uma divertida anedota, bastante adequada e
conveniente, sobre esse assunto: quando um homem caiu num poo onde havia tanta
gua, de modo que foi preciso lhe tirar de l para que no morresse (pois ele se afogaria,
se tentasse falar), um transeunte passou e, tendo-o visto, disse condodo: como tu caste
a? a quem o homem respondeu: rapaz, pergunta como tu vais me tirar daqui, e no
como eu ca! Assim, j que ns confessamos, e sustentamos pela f catlica que at a
alma do recm-nascido ser, pela Graa de Cristo, libertada do crime do pecado como se
de um poo, suficiente sabermos a maneira atravs da qual a alma ser salva, ainda que
talvez nunca saibamos como ela caiu neste mal. Mas, pensei que era preciso outrossim
investigar essa questo, para que ns no sustentemos, como se fssemos incautos,
qualquer opinio sobre a encarnao da alma que possa vir a contradizer at a
necessidade de se libertar a alma do beb, como se fosse necessrio negar que a alma se
encontra neste mal. Portanto, sustento com muita firmeza que a alma do recm-nascido
deve ser libertada do crime do pecado, e que ela no pode ser libertada de nenhum outro
modo seno pela Graa de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor3 ; se conseguirmos,
ainda, conhecer a razo e a origem do mesmo mal, estaremos bastante preparados e
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Aug. ep. 167 de sententia...
instrudos para resistir s objees vazias, no as de contestao, mas as de acusao4;
se, porm, no conseguirmos conhec-la, no porque a origem de nossa misria jaz
oculta que nosso dever com a misericrdia deve ento esmorecer. Diferente, porm,
daqueles que julgam saber o que no sabem, estamos mais seguros, pois no ignoramos
essa nossa ignorncia5 . Ora, uma coisa o que ruim no saber, e outra o que ou no
se pode saber, ou que no necessrio saber, ou que irrelevante para a vida que
buscamos. Mas aquela outra questo, que agora tomo sobre a carta de Tiago, na verdade,
ela diz respeito vivncia dessa mesma vida em que vivemos agora, e na qual nos
aplicamos para agradar a Deus, para que sempre nela vivamos.
3. Logo, eu te imploro: de que maneira devemos compreender que qualquer que
guardar toda a Lei, e tropear em um s ponto, tornar-se- culpado de todos? Ento se
trata do mesmo pecado cometer um roubo, ou melhor, dizer a um homem rico: assenta-
te tu aqui, ao passo que a um pobre: tu, fica a em p, e cometer um assassinato, um
adultrio, um sacrilgio? Mas se no for assim, como quem tropeou em um s ponto,
tornar-se- culpado de todos? Talvez o que eu falei sobre o homem rico e o pobre no
diz respeito a essas faltas de que, se algum deles tropear em algum ponto, tornar-se-
culpado de todos? Mas preciso retomar de onde veio essa concluso, digo, as palavras
anteriores que lhe deram origem, e de quais outras ela intrinsecamente depende. Meus
irmos, no tenhais a f de Nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glria, em acepo de
pessoas. Porque, se no vosso ajuntamento entrar algum homem com anel de ouro no
dedo, com trajes preciosos, e entrar tambm algum pobre com srdido traje, e atentardes
para o que traz o traje precioso, e disserdes: assenta-te tu aqui num lugar de honra, e
disserdes ao pobre: tu, fica a em p, ou assenta-te abaixo do meu estrado, porventura
no fizestes distino entre vs mesmos, e no vos fizestes juzes de maus pensamentos?
Ouvi, meus amados irmos: porventura no escolheu Deus os pobres deste mundo para
serem ricos na f, e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam? Mas vs
desonrastes o pobre6 , a saber, por causa do que lhe foi dito: tu, fica a em p, ao passo
que se disse ao homem com anel de ouro no dedo: assenta-te aqui num lugar de honra.
E ele <Tiago> ento continua, ampliando e desenvolvendo essa mesma concluso:
porventura no vos oprimem os ricos, e no vos arrastam aos tribunais? Porventura no
blasfemam eles o bom nome que sobre vs foi invocado? Todavia, se cumprirdes,
conforme a Escritura, a Lei real, amars a teu prximo como a ti mesmo, bem fazeis.
Mas, se fazeis acepo de pessoas, cometeis pecado, e sois redarguidos pela Lei como
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transgressores7. Observai de que maneira ele chama transgressores da Lei aqueles
que dizem a um homem rico: assenta-te tu aqui, e a um pobre: tu, fica a em p. Por
isso, para que no considerassem insignificante a transgresso da Lei nesse ponto, ele
adiciona a seguir: qualquer que guardar toda a Lei, e tropear em um s ponto, tornar-
se- culpado de todos. Porque aquele que disse, no cometers adultrio, tambm
disse, no matars. Se tu pois no cometeres adultrio, mas matares, estars feito
transgressor da Lei8, por causa do que ele afirmara: sois redarguidos pela Lei como
transgressores. Seja como for, parece lgico deduzir (a no ser que isso se deva
compreender de outra maneira, evidentemente) que quem disser a um homem rico:
assenta-te tu aqui, e a um pobre: tu, fica a em p, dando uma honra maior quele
que a esse, ele o mesmo que um idlatra, um blasfemo, um adltero, um assassino
deixo de mencionar o resto; a lista longa e deve ser ento julgado como culpado de
todos os crimes. Afinal, ao tropear em um s ponto, ele se tornou culpado de todos.
4. Ora, quem tem uma nica virtude ento tem todas, e quem no tem uma nica, no tem
nenhuma9? Se isto for verdade, confirmamos esta concluso. Porm, eu quero que seja
explicada, no confirmada, essa que , por si mesma, e entre ns, uma ideia bastante
fundamentada na autoridade de todos os filsofos10. Claro, se o que se diz sobre as
virtudes e os vcios tambm verdico, no por isso que lgico deduzir que todos os
pecados so tambm parelhos11 . Pois, acerca da inseparabilidade das virtudes, se no me
engano (e se me lembro bem de algo que mal me lembro), todos os filsofos
concordaram com esta teoria, os quais afirmaram que essas mesmas virtudes so
necessrias para viver a vida. Sobre a paridade dos pecados, porm, somente os estoicos
ousaram disputar a favor dela (e contra todo o senso comum do homem12 ); um desbarato
deles que tu condenaste, sobre as Santas Escrituras e de maneira assaz cristalina, naquele
Joviniano13 , ele que era um estoico nesta concluso, mas um epicurista ao tomar e
continuar a defender os prazeres14 . Disso, por meio de tua muitssimo deleitosa e
ilustrssima arguio, ficou suficientemente evidente que no foram nossos autores, ou
melhor, no foi ela mesma, a verdade, que falou atravs dos filsofos, que concordaram
que todos os pecados so parelhos15 . Como pode ocorrer, porm, de ainda que essa
concluso possa ser verdadeira quanto s virtudes no sermos levados a concluir, no
entanto, uma igualdade entre todos os pecados, eu tentarei elucidar essa questo, na
medida do possvel, com a ajuda do Senhor. Se eu atingir meu objetivo, tu o aprovars;
onde eu no estiver a altura da empresa, tu a complementars16.
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5. Certamente a partir da que eles buscam convencer que quem tiver uma nica virtude
tem todas, e a quem faltar uma nica, faltaro todas, j que a prudncia no pode ser
insegura, nem injusta, nem descomedida; se ela for alguma dessas coisas, no ser
prudncia. Mais, se ela for de fato prudncia, e se ela for segura, justa e comedida,
claro que ela trar consigo, onde quer que existir, outras virtudes. Assim, a segurana
tambm no pode ser imprudente, ou descomedida, ou injusta; assim, necessrio que o
comedimento tambm seja prudente, seguro e justo; assim, no existe justia, se ela no
for prudente, segura e comedida17. Desse modo, sempre que uma nica dessas virtudes
for verdadeira, as outras tambm o sero, de maneira similar; mas, sempre que as outras
faltarem, a primeira no ser verdadeira, ainda que parea de algum modo similar
verdade.
6. Ora, h alguns vcios que so, como tu sabes, abertamente contrrios s virtudes por
definio, como a imprudncia prudncia. H outros que so vcios, porm, no por
serem contrrios, mas devido a um certo tipo de engano de aparncias, como a astcia, e
no a imprudncia, em relao mesma prudncia. Ora, eu chamo de astcia o que
familarmente costumamos perceber e apontar nas pessoas maliciosas, no do modo
como as nossas Escrituras costumam empregar o termo, as quais com frequncia julgam
que ela um bem; da astutos como serpentes e para que ele d aos simples,
astcia18. Muito embora, at o mais eloquente entre os escritores romanos afirmou que
nem lhe faltava sagacidade ou astcia para escapar dos perigos19, julgando que a
astcia era um bem; mas esta ocorrncia rarssima entre eles, ao passo que ela j
muito frequente entre ns. Assim, entre as partes do comedimento, a mais abertamente
contrria o excesso parcimnia. Esta, por sua vez a qual se costuma chamar
popularmente tambm de mesquinharia , um vcio, ainda que seja similar da
parcimnia no por sua natureza, mas por um engano enorme das aparncias. Outrossim,
pela dissimilaridade que a injustia evidentemente contrria justia; o desejo de
vingana, porm, costuma atuar s vezes de justia, mas trata-se aqui de um vcio. Fica
evidente que a insegurana contrria segurana, mas a rigidez engana pela
dissimilaridade, j que esta se distancia daquela por natureza. A consistncia uma parte
especfica da virtude; a inconsistncia tem completa averso a esta e indubitavelmente se
lhe ope; j a obstinao se arroga o nome de consistncia, mas ela no isso; a
consistncia uma virtude, a obstinao um vcio20.

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7. Logo, para que no seja necessrio mencionar novamente os mesmos vcios,
citemos, a ttulo de exemplo, uma passagem da qual se possa deduzir o resto. Catilina
assim escreveram sobre ele aqueles que puderam conhec-lo podia suportar o frio, a
sede e a fome, e era resistente inanio, invernia, insnia, mais que qualquer um
podia acreditar21 , e por isso parecia, aos seus soldados e a si, detentor de grande
segurana. Mas sua segurana no era prudente (pois ele preferia os males aos bens),
no era comedida (pois ele era manchado pela inconfidncia mais torpe), no era justa
(pois ele tramava contra a ptria); portanto, no era segurana, mas uma rigidez sua,
qual ele dava o nome de segurana para enganar os tolos. Ora, se ela fosse segurana,
no seria um vcio, mas uma virtude; no entanto, se fosse uma virtude, ele nunca teria
sido abandonado pelas outras virtudes, como se estas fossem companheiras inseparveis
daquela.
8. Por essa razo, quando perguntamos, ainda sobre os vcios, se h, onde houver um
nico vcio, tanto os mesmos quanto todos de maneira similar, ou se no h nenhum
onde no houver um nico, trabalhoso esclarecer esse assunto pois costumamos opor
dois vcios a uma nica virtude tanto o vcio que lhe abertamente contrrio, quanto
aquele que se coloca contra ele s escuras, mediante uma semelhana aparente. Da a
qualidade de Catilina: que ela no era a segurana, j que no trazia consigo outras
virtudes, eis algo que se v muito facilmente; mas que se tratava de insegurana algo em
que existiu o hbito de tolerar quaisquer das mais graves intempries, e o de resistir
mais do que qualquer um podia acreditar, eis algo que dificilmente se pode afirmar.
Mas talvez a prpria rigidez se apresente como insegurana se a observarmos mais de
perto, visto que ela desprezara o exerccio das prticas boas, pelas quais se adquire a
verdadeira segurana. Todavia, j que audaciosos so aqueles que no so apreensivos, e
que, alternadamente, apreensivos so aqueles desprovidos de audcia, e uma vez que
ambas essas coisas so vcios pois quem seguro pela verdadeira virtude no audaz
com apreenso, nem tampouco apreensivo sem razo somos levados a concluir que
h mais vcios que virtudes.
9. A partir da, um vcio s vezes substitudo por outro, como o amor pelo dinheiro
substitui o amor pela glria, e s vezes um nico vcio cede para que muitos o sucedam,
como o caso de um bbado: se ele comeasse a beber com comedimento, seria por
mesquinharia e ambio, diria eu. Do mesmo modo, h vcios que podem dar lugar a
vcios sucessivos, e no a virtudes, e a so muitos. Mas a virtude, na verdade, onde uma
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conseguir entrar, j que ela leva outras consigo, a de fato todos os vcios, quaisquer que
estiverem l, cedero a ela; ora, assim no estavam todos os vcios l, mas estavam por
vezes alguns, e por vezes muitos vcios sucederam a poucos, ou poucos a muitos.
10. Devemos investigar com mais cuidado se as coisas realmente acontecem dessa
maneira. Ora, tambm no divina a concluso em que se afirma: quem tiver uma
virtude ter todas, e no tem nenhuma quem no tiver uma nica22, mas foi em geral
assim que julgaram os homens de talento, de erudio, de criatividade homens, muito
embora. Eu, no entanto, no sei como concluir a questo. No falo do homem por
quem, dizem, a virtude recebeu seu nome23 mas sim da mulher, que reserva a seu
marido a fidelidade do matrimnio; se ela assim o faz somente devido ao preceito e
promessa de Deus, e for fiel principalmente por causa disso, eu diria que ela no tem
castidade ou que sua virtude nada, ou pouca; o mesmo para o marido que fiel a sua
esposa pela mesma razo; h ainda muitssimos casos desse tipo, nenhum dos quais,
diria, est isento de pecado (e devemos concluir que tal pecado, seja qual for, tem sua
origem em determinado vcio). Ainda que, portanto, a castidade conjugal seja, longe de
dvidas, uma virtude entre os homens e mulheres religiosos (ora, a castidade no pode
ser nada ou ser um vcio), ela no carrega consigo todas as virtudes. Se todas as virtudes
estivessem nela, no poderia existir um nico vcio; se nenhum vcio, nenhum pecado;
mas quem, no entanto, isento de pecados? Logo, quem isento de vcios, isto , de
qualquer muleta, ou de algo como a raiz do pecado, uma vez que aquele que estava
reclinado no seio do Senhor clama que se dissermos que no temos pecado, enganamo-
nos a ns mesmos, e no h verdade em ns24 ? No preciso demorar contigo nesta
questo, mas falo em vista daqueles que podem vir a ler esta carta. Alis, foi bem tu que,
naquela mesma obra esplndida contra Joviniano25 , provaste diligentemente, e sobre as
Sagradas Escrituras, essa concluso; obra em que, ainda, e a partir dessa mesma carta de
Tiago o sentido de suas palavras que procuramos agora tu citaste o que est
escrito: porque todos tropeamos em muitas coisas26. Ora, ele no diz aqui,
tropeais, mas tropeamos, e como apstolo de Cristo que ele fala, e assim que
diz nessa passagem que qualquer que guardar toda a Lei, e tropear em um s ponto,
tornar-se- culpado de todos. Ele afirmou, aqui, que no em um nico ponto mas em
muitos, e no alguns dentre ns, mas todos, que tropeamos27.
11. Mas Deus me livre de que qualquer fiel venha a pensar que tantos milhares de servos
de Cristo que dizem verdadeiramente partilharem do pecado (do contrrio estariam se
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Aug. ep. 167 de sententia...
enganando, e neles no haveria verdade) no possuem uma nica virtude, uma vez
que a sabedoria uma grande virtude. Disse porm ao homem: eis que a piedade a
sabedoria28; e Deus me livre de afirmarmos que tantos e to importantes homens de
Deus, fiis e obedientes, no tm piedade, aquilo que os gregos chamam de ou,
mais expressiva e propriamente, 29 afinal, o que a piedade seno o culto a
Deus? E de onde o cultivamos, seno atravs do amor? Ora, o amor de corao puro, de
boa inteno e na f no fingida, eis uma grande e verdadeira virtude, j que o amor a
prpria virtude e o fim do preceito divino30 . Merecidamente dizem que ele seguro
como a morte, seja porque, como a morte, ningum o vence, seja porque nesta vida a
medida do amor vai at a morte, como diz o Senhor: ningum tem maior amor do que
este, de dar algum a sua vida pelos seus amigos31, seja porque, melhor dizendo, assim
como a morte afasta a alma dos sentidos da carne, o amor afasta a alma dos desejos
carnais. Ao amor serve a inteligncia, quando til; sem aquele, esta incha32. Mas, de tudo
que ele tiver preenchido ao construir, disso nada ela encontrar vazio para poder inchar.
Mais, Deus demonstrou que a inteligncia, ao defini-la, til, numa passagem em que
disse: eis que a piedade a sabedoria, e adicionou em seguida: e apartar-se do mal a
inteligncia33. Por que, ento, no afirmamos que quem tem essa virtude tem todas, j
que o amor a plenitude da Lei? Quanto mais ele existir no homem, tanto mais o
homem detentor da virtude; quanto menos, porm, tanto menos h virtude, porque o
amor a prpria virtude; e quanto menos houver virtude, tanto mais h vcio. Logo,
onde o amor estiver pleno e completo, nada sobrar de vcio.
12. por isso que os estoicos me parecem estar portanto enganados, j que no
admitem, de jeito nenhum, que o homem, ao buscar a sabedoria, detenha algo de
sabedoria, mas afirmam que o homem a detm somente quando dela estiver em perfeita
posse no porque eles negam toda evoluo, mas porque afirmam que o homem no
ser sbio em parte alguma caso ele no saltar ao ar livre da sabedoria, emergindo de
repente de profundezas quaisquer. Ou seja, da mesma maneira que para um homem
afogar-se no interessa se a gua o cobre por muitos estdios, por uma palma, ou por um
dedo34 sequer, assim eles afirmam, de fato, que o homem que busca a sabedoria est
evoluindo, como se estivesse ressurgindo no ar, vindo das profundezas do mar; eles
tambm afirmam, porm, que nenhum homem detm a virtude, e tampouco sbio, se
antes no se esvaziar de toda a tolice (como uma gua que lhes sufoca); e l onde o

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homem se esvaziar, ele logo ter a sabedoria por completo e nada lhe restar de tolice,
to completamente que nenhum pecado poder a persistir35.
13. Essa similitude, onde se coloca a tolice como a gua e a sabedoria como o ar; onde o
esprito recupera o flego de repente do afogamento da tolice, como se estivesse
emergindo na sabedoria; ela no me parece suficientemente adequada autoridade de
nossas Escrituras antes, h para elas uma outra similitude, em que se compara o vcio
ou a tolice s trevas, e a luz, no caso, virtude ou sabedoria (na medida em que tal
comparao pode ser estabelecida entre elementos concretos e elementos abstratos36 ).
Deste modo, no como se o homem estivesse ressurgindo da gua ao ar, onde a
superfcie do mar seria deixada para trs de repente assim que se respirasse um pouco;
mas como se ele estivesse atravessando das trevas luz, aos poucos e
progressivamente, que o homem iluminado. No entanto, at que a luz se manifeste
plenamente, afirmamos que, da mesma maneira que um sopro de ar tanto mais aflui das
profundezas de uma caverna quanto mais se aproxima da vizinhaa da luz, assim que o
homem se aproxima da sada para que o que nele ilumina venha das duas luzes s quais
ele se dirige, e o que ainda lhe obscuro seja deixado nas trevas de onde ele sai37 .
Igualmente, vista de Deus no se achar justo nenhum vivente38, mas tambm o
justo viver pela f39. At os santos so tambm revestidos de justia (uns com mais,
outros com menos), mas ningum vive nesta terra sem pecado (uns com mais, outros
com menos); o melhor, porm, pecar o mnimo possvel40 .
14. O que estou fazendo, afinal? Como se eu tivesse me esquecido a quem falo, fiz-me
similar a um professor, pois busquei expor o que queria aprender de ti. Mas, j que eu
decidi apresentar minha opinio sobre a paridade dos pecados (da qual descende o
problema que venho tratando at ento), a fim de que tu a pudesses examinar, eu a
concluirei de uma vez por todas: embora seja verdadeiro que um homem, tendo uma
nica virtude, tenha todas, e que um outro homem, no tendo uma nica, no tenha
nenhuma, no assim que os pecados so parelhos, pois onde no h uma nica virtude,
no h absolutamente nada de correto, mas no por isso que h algo como mais feio
que o feio, e mais disforme que o disforme. No entanto, se coisa que, acredito,
mais verdadeira e mais congruente literatura crist as tenses da alma41 so como os
membros do corpo (no porque so observveis em pontos precisos, mas porque as
sentimos atravs das sensaes), e j que um objeto ora se ilumina com maior, ora com
menor brilho, e ora carece totalmente de luz e mergulha-se na completa escurido por
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um bloqueio que impede a luz, assim, de fato, cada um afetado pela iluminao do
amor pio um pouco mais por um ato qualquer, um pouco menos por um outro ato, ou
nada por um terceiro; assim, pode-se afirmar que um homem tem ora uma virtude, e no
uma outra, e tambm que tem mais ou menos de uma determinada virtude. Podemos
dizer corretamente, ento, que o amor maior neste indivduo que num outro, e que
h algo de amor em um, mas nada num outro, no que diz respeito ao amor que a
piedade; e que neste mesmo homem h uma castidade maior que a pacincia, que ela
maior hoje que ontem (se ele progrediu), e tambm que ele ainda no tem obedincia,
mas que tem uma boa quantia de misericrdia.
15. Enfim, para amarrar, com breves palavras e de modo geral, a noo que tenho de
virtude, no que diz respeito ao modo correto de viver: a virtude o amor pelo qual se
ama o que deve ser amado42. Ela maior em alguns, menor em outros, em alguns ela
no existe, mas a virtude mais plena, aquela que j no pode crescer, no existe em
nenhum homem enquanto este vive nesta terra; enquanto, porm, ela puder crescer,
certamente tudo o que menor do que deveria ser surgir a partir do vcio. a partir do
vcio que no h homem justo sobre a terra, que faa o bem, e nunca pecar43; a
partir do vcio que vista de Deus no se achar justo nenhum vivente44; por causa
do vcio que se dissermos que no temos pecado, enganamo-nos a ns mesmos, e no
h verdade em ns45 ; por causa dele, ainda, que ns precisamos dizer, independente
do nosso progresso, perdoai-nos as nossas ofensas46, ainda que todas as nossas
palavras, aes e pensamentos tenham sido perdoados no batismo. Igualmente, somente
enxerga corretamente o homem que enxerga onde, quando e de que lugar devemos
esperar aquela perfeio que no carece de qualquer acrscimo. Se, porm, no
houvessem preceitos, certamente no haveria um lugar a que o homem pudesse aspirar
com segurana, e ele no poderia enxergar de onde deve se afastar, para onde deve se
inclinar, por que gratificar, o que pedir em suas preces. Logo, a utilidade dos preceitos
enorme, se ao livre arbtrio for concedido to-somente que por ele se honre ainda mais
amplamente a Graa de Deus47 .
16. Se isto assim acontece, de onde o homem, que obedece tudo da Lei, se torna culpado
de todos os pontos, se tropear em um nico? Seria porque o cumprimento da Lei o
amor, pelo qual se adora a Deus e ao prximo, nos preceitos de cujo amor dependem
toda Lei e os profetas48, que aquele que age contra o amor, no qual tudo depende, se
torna merecidamente culpado de todos os pontos? Ningum peca, porm, se no ao agir
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Aug. ep. 167 de sententia...
contra o amor, j que no adulterars, no cometers assassnio, no roubars, no
cobiars, e se h qualquer outro mandamento, ele se resume quele imperativo, a
saber: amars a teu prximo como a ti mesmo. O amor no faz mal ao prximo. De
sorte que o cumprimento da Lei o amor49. Ningum, porm, ama ao prximo se no
ama a Deus, na medida em que um homem depende de seu prximo, a quem ele ama
como ama a si mesmo, e como ele tambm ama a Deus, a quem, se ele no amar, no
chega a amar nem a si nem ao prximo50. E, no caso deste homem, que obedece tudo da
Lei, se ele tropear em um nico ponto, tornar-se- culpado de todos, pois ter agido
contra o amor, do qual depende toda a Lei. Assim, ele se torna culpado de todos os
pontos ao agir contra a virtude da qual tudo depende.
17. Por que, ento, no afirmamos que os pecados so parelhos? Seria porque age mais
contra o amor o homem que comete pecados mais graves, ao passo que age menos o
homem que comete pecados mais leves, e que, por isso mesmo, o homem se
compromete mais ou menos (no que se torna certamente culpado de todos os pontos,
mas mais culpado ao cometer pecados mais graves ou mais pecados, ou menos culpado
ao cometer pecados menos graves ou menos pecados), mas que, a saber, sua culpa ser
to maior quanto mais ele pecar, e to menor quanto menos ele pecar, mesmo que ele
tenha tropeado em um nico ponto, e assim se tornado culpado de todos, j que ele
estaria agindo contra a virtude da qual tudo depende? Se isto for verdade, torna-se
compreensvel, desse mesmo modo, e ainda, o que diz aquele homem tambm inspirado
pela graa apostlica, que todos tropeamos em muitas coisas51. Ora, ns tropeamos,
uns com mais gravidade, outros com mais leveza, quanto mais ou menos algum
cometer pecados; e quanto mais ele estiver no pecado ao pecar, tanto menos ele estar
amando a Deus e ao prximo, e, inversamente, quanto menos ele estiver na reproduo
dos pecados, tanto maior ser o amor a Deus e ao prximo; quo mais cheio, assim, ele
estiver de iniquidade, to mais vazio ele estar de amor; ele estar, ento, totalmente
completo no amor quando nada lhe restar de fraqueza.
18. Claro, no se deve pensar, na minha opinio, que se trata de um pecado leve
sustentarmos a f em Nosso Senhor Jesus Cristo ao fazer acepo de pessoas, se
considerarmos a diferena que existe entre sentar-se e estar em p no tocante
hierarquia eclesistica52 . Ora, que pessoa, afinal, toleraria que um homem rico fosse
eleito ao cargo mais alto da Igreja revelia de um homem pobre mais preparado e
abenoado? Mas, se o apstolo Tiago estiver falando de situaes do dia-a-dia, que
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Aug. ep. 167 de sententia...
homem nelas no peca? E se ele pecar por ter julgado s e mentalmente, dentro de si,
que um homem lhe parece melhor se for mais rico? Afinal, isso que ele aparentemente
quis dizer ao perguntar: porventura no fizestes distino entre vs mesmos, e no vos
fizestes juzes de maus pensamentos53 ?
19. Igualmente, a Lei da liberdade a Lei do amor, sobre a qual ele afirma: todavia, se
cumprirdes, conforme a Escritura, a Lei real, amars a teu prximo como a ti mesmo,
bem fazeis. Mas, se fazeis acepo de pessoas, cometeis pecado e sois redarguidos pela
Lei como transgressores. E, aps sua concluso, bastante difcil de se compreender (e
sobre a qual falei o que julguei suficientemente necessrio falar), ele, ao mencionar a
mesma Lei da liberdade, afirma: assim falai, e assim procedei, como a ponto de ser
julgados pela Lei da liberdade. E, visto que tinha em mente o que ele <Tiago>54
acabara de dizer, e visto que todos tropeamos em muitas coisas, ele sugere um
remdio do Senhor para aplicar diariamente nas feridas dirias (ainda que nas mais
leves), porque o juzo ser sem misericrdia sobre aquele que no fez misericrdia55.
Ora, da tambm disse o Senhor: soltai, e soltar-vos-o; dai, e ser-vos- dado; a
misericrdia transborda o juzo56 ; no foi dito que a misericrdia vence o juzo (ora,
ela no se coloca contra o juzo), mas que ela transborda, j que muitos se encontram
conectados pela misericrdia (mas somente aqueles que a ofereceram). Bem-
aventurados os misericordiosos, porque Deus ter misericrdia deles57.
20. E certamente justo que eles sejam perdoados, pois eles perdoaram, e que o perdo
lhes seja dado, pois o deram. De fato, existe em Deus tanto a misericrdia ao julgar
quanto o juzo ao ter misericrdia, por causa do que se diz a Ele: cantarei a misericrdia
e o juzo a ti, Senhor58 ; pois qualquer pessoa que espera o juzo sem a misericrdia
(como se fosse demasiadamente justa, e como se assim estivesse segura), esta provoca a
mais justa ira, a qual, ao tem-la, diz Ele: no entres em juzo com o teu servo59. Disso
se diz a um povo obstinado: por que contendeis comigo no juzo60? Ora, quando o rei
se assentar no trono do juzo, quem se arrogar possuir um corao casto? Ou quem se
arrogar estar limpo do pecado61 ? Que esperana h, ento, a no ser aquela em que a
misericrdia transborda o juzo, mas que devida aos homens que realizaram a
misericrdia verdadeiramente, ao dizer: perdoai-nos as nossas ofensas, assim como ns
perdoamos62 , dando a misericrdia sem recriminao? Ora, Deus ama ao que d com
alegria63 . Em concluso, o santo Tiago j est, nesta passagem, falando sobre as obras
da misericrdia para acalmar aqueles que haviam se assustado com sua concluso,
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Aug. ep. 167 de sententia...
aconselhando-lhes de que maneira eles tambm podem expiar, com remdios dirios,
seus pecados do dia-a-dia, sem os quais no se vive nesta terra: para que um homem,
que tropear em um nico ponto, no se torne culpado de todos; para que, ainda que um
homem tropece em muitos (j que todos tropeamos em muitas coisas), ele no tenha
de transportar a pilha de sua culpa enorme, edificada pedacinho por pedacinho, ao
tribunal do Grande Juiz; enfim, no para que ele encontre uma misericrdia que no
realizou, mas para que ele merea, por ter perdoado e dado, que suas ofensas sejam
perdoadas e que o prometido lhe seja entregue.
21. Eu falei demais, e talvez tenha com isso te entediado; tu, ainda que aproves o que
digo, no esperes aprender, j que ests acostumado a ensinar. Se, no entanto, h algo
aqui que diga respeito ao contedo dos prprios problemas (pois no me preocupo muito
com o estilo pelo qual as questes foram elucidadas); se, enfim, h algo aqui que ofenda
a tua erudio, peo que me aconselhes em uma resposta e no consideres um fardo me
corrigir. Ora, infeliz aquele que no louva, com dignidade, os teus estudos esforados,
tantos e to abenoados, e que no os agradece ao Senhor Nosso Deus, de quem tu s
imensa ddiva! Por isso, uma vez que eu deveria aprender de boa vontade, e de qualquer
pessoa, o que (de modo irrelevante?) desconheo (e muito mais do que ensinar a
qualquer pessoa o que sei), quo mais justo ainda permanecer em enorme dvida para
com tua caridade, por meio de cuja instruo, em nome e com a ajuda do Senhor, a
literatura crist em lngua latina64 foi auxiliada imensamente como nunca antes foi
possvel! Muito embora, aquela concluso, de que qualquer que guardar toda a Lei, e
tropear em um s ponto, tornar-se- culpado de todos, se o teu amor sabe de que modo
podemos explic-la melhor, eu imploro, pelo Senhor, que tu tenhas a dignidade em
partilh-lo conosco.

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Aug. ep. 167 de sententia...
NOTAS

1A referncia, evidentemente, a Aug. Ep. 166. Era costume na Antiguidade abordar um nico assunto em um tratado;
v. aqui Sykrutis (1931) p. 192-193.
2 Jac 2:10.
3 Rom 7:25.
4 O termo latino vaniloquium prprio do latim tardio; trata-se de um discurso vo ou vazio, o mesmo que no latim
clssico se dizia vaniloquentia (cf. Plaut. Rud. 4,1,14; Liv. 34,24,1). O vocbulo surge da juno do adjetivo vanus com
o substantivo do verbo loqui, falar. Agostinho distingue os vaniloquia dos herticos em duas categorias: as
disputatoria, de disputatio, modalidade do discurso tribuncio de contestao (cf. Cic. Or. 1,2,5; Quint. Inst. orat.
3,6,80); e as litigatoria, de lis, que so os discursos de acusao (cf. Cic. De or. 3,28,109 e Att. 16,15,2).
5Em latim, qui sibi videntur scire quod nesciunt [...] ignorantiam nostram non ignoramus. Fry (2010) p. 373, n. 9 nota
que os jogos de palavras, neste caso uma mistura de paronomsia e anttese, tm aqui para Agostinho o mesmo efeito
dos provrbios em Jernimo: trata-se de um ornamento retrico.
6 Jac 2:1-6.
7 Jac 2:6-9.
8 Jac 2:10-11.
9 Esta a definio dada por Ccero em Mur. 61, e em Fin. 4,55, omnes, qui non sint sapientes, aeque miseros esse,
sapientes omnes summe beatos, recte facta omnia aequalia, omnia peccata paria, todos que no so sbios so
igualmente miserveis, e todos os sbios so sumamente felizes; todas as boas aes so iguais, e todos os erros so
parelhos. Trata-se de uma afirmao cara filosofia estoica, conforme comentamos na introduo a essa carta e
abordaremos nas notas seguintes.
10A unidade das virtudes era uma questo que j preocupava Plato, tendo se tornado um dos pontos centrais de uma
das correntes acadmicas, o estoicismo. Agostinho, dado seu conhecimento insuficiente do idioma grego, a conhecera
provavelmente atravs da obra filosfica de Ccero. V. Frst (2002) p. 407, n. 693 e 694.
11O mesmo assunto da paridade dos pecados abordado em Aug. Ep. 104,13-17 e no C. mend. 31; por Jernimo em
Hier. Adv. Iovin. 2,21;31; In Ezech. 3,3,9; Adv. Pelag. 1,20; 2,18
12Embora a unidade dos pecados tenha sido afirmada j por Plato e outras escolas filosficas, somente os estoicos
defenderam que h, tambm, uma unidade entre todos os vcios (aqui, Agostinho emprega pecados); v. Von Arnim
(1904) vol. III, p. 524-543 para testemunhos da filosofia helenstica.
13 Joviniano, v. supra Aug. Ep. 166, n. 33.
14O tratado de Jernimo contra Joviniano, adversus Iovinianum libri duo [PL 23, 205-384] foi publicado ca. 393,
durante uma pequena polmica sobre a relao da virgindade com o matrimnio. Embora Agostinho se refira obra em
geral, ele provavelmente tem em mente o incio do livro, em que Jernimo chama Joviniano de Epicurus
christianiorum, o Epicuro dos cristos (cf. Hier. Adv. Iovin. 1,1).
15 A demonstrao de que os autores cristos discordaram da concluso estoica se encontra em Hier. Adv. Iovin. 2,21-34.
16 Fry (2010) p. 377, n. 20 nota que este pargrafo contm uma propositio (cf. Quint. Inst. orat. 4,4,1-9), colocado
tradicionalmente entre a narratio, a exposio do problema, e a probatio, sua argumentao (cf. Quint. Inst. orat.
2,13,1).
17As virtudes que Agostinho apresenta neste pargrafo ou temperantia, ou prudentia,
ou fortitudo, e ou iustitia; traduzimos por comedimento, prudncia, segurana (ou coragem), e
justia so as quatro virtudes cardeais da Igreja. Segundo a doutrina crist, as quatro se complementam, e uma no
pode existir sem a outra. V. Frst (2002) p. 408, n. 700.
18Cf. Mt 10:16 e Pr 1:4, respectivamente. Na passagem do Evangelho de Mateus, Agostinho usa astuti, ao passo que
Vulgata l prudentes; na segunda, dos Provrbios, tanto a carta quanto a traduo de Jernimo leem astutia. No NTG,
porm, lemos [prudentes] em Mateus, e nos Provrbios, o qual de fato mais prximo de astutia,
menos favorvel que o primeiro termo.
19A passagem citada encontra-se na Guerra de Catilina, do historiador republicano Salstio (cf. Sall. Catil. 26,2). O
exemplo desse personagem ser usado no pargrafo seguinte desta carta.
)476
Aug. ep. 167 de sententia...

20 Todo esse pargrafo fundamenta-se em um gnero especfico de discusso, a controversia verborum (v. supra Aug.
Ep. 166, n. 17), que se deve menos abstrao filosfica que anlise gramatical, pela etimologia e pela antinomnia. A
argumentao segue a tradio escolar dos differentia, partilhada por gramticos e oradores (cf. Cic. Top.
8,10,13,14-16,28-31,71). Ademais, o mesmo exemplo da constantia contra a pertinacia est em Aug. Quant. anim. 51.
V. Frst (2002) p. 410, n. 705; Fry (2010) p. 379, n. 27.
21 Cf. Cic. Catil. 3,16: nihil erat, quod non ipse obiret, occurreret, vigilaret, laboraret; frigus, sitim, famem ferre
poterat, no havia nada que ele no forasse, fosse de encontro, cobiasse, conseguisse; o frio, a sede, a fome, ele
podia suportar tudo. Tambm em Sall. Catil. 5,3: corpus patiens inediae, algoris, vigiliae supra quam cuiquam
credibile est, um corpo resistente inanio, invernia, insnia mais que qualquer um podia acreditar.
22 Esta concluso, em latim sententia, quase uma mxima, sintetiza o credo da filosofia moral do estoicismo. A
formulao dada aqui por Agostinho j clssica, tendo sua origem, entre os latinos, no tratado sobre os deveres de
Ccero (cf. Cic. Off. 2,35).
23O argumento etimolgico fundamenta-se na presena de vir, homem, em virtus, virtude. A explicao correta, e
fora exposta anteriormente j por Varro e Ccero (cf. Varr. Ling. 5,73; Cic. Tusc. 2,43; tambm Aug. Ep. 127,9). V.
Frst (2002) p. 414, n. 713.
24 1 Jo 1:8.
25
O adversus Iovinianum, v. supra Aug. Ep. 167, n. 14. A passagem se encontra em Hier. Adv. Iovin. 2,2, em que o
monge cita a mesma carta de Tiago, como vimos anteriormente.
26 Jac 3:2.
27 Que o homem no pode viver sem pecado e consequentemente no pode ser perfeito na vida terrena so pontos
enfatizados por Agostinho em toda a sua obra de maturidade. Em seu tratado sobre a natureza e a Graa de Cristo, o
bispo afirma que multa enim peccata per superbiam comittuntur, neque omnia superbe fiunt, quae perperam fiunt
certe a nescientibus, certe ab infirmis, certe plerumque a flentibus et gementibus [...], ora, muitos pecados so
cometidos por soberba, mas nem todos, que acontecem sem querer, acontecem de maneira soberba certamente
aqueles cometidos pelos incautos, aqueles pelos enfraquecidos, aqueles amide pelos que choram e lamentam [...] (cf.
Aug. Nat. et grat. 33). Em um sermo ministrado na mesma poca de publicao do livro, 412-414, o bispo de Hipona
analisa dois versculos do Evangelho de Joo, Jo 1:8-9, e conclui que his verbis docuit beatus Ioannes, immo ipse
Dominus Iesus non se tacens per Ioannem, neminem in ista carne, in isto corruptibili corpore, in ista terra, in isto
maligno saeculo, in ista vita tentationibus plena, neminem hic vivere sine peccato [...] sunt autem quidam inflati utres,
spiritu elationis pleni, non magnitudine ingentes, sed superbiae morbo tumentes, ut dicere audeant, inveniri homines
absque peccato, com essas palavras o abenoado Joo, ou melhor, o prprio Senhor Jesus atravs de Joo, sem se
calar, ensina que ningum nesta carne, neste corpo corruptvel, nesta terra, neste mundo maligno, nesta vida cheia de
tentaes, ningum aqui vive sem pecado [...] h, porm, umas pocilgas lotadas, inchadas com o esprito da arrogncia,
grandes no pela magnitude, mas trgidas de soberba doentia, que ousam dizer que possvel encontrar homens sem
pecado (cf. Aug. Serm. 181,1-3).
28Job 28:28. A Vulgata l timor Dei, temor a Deus (, no NTG), ao passo que Agostinho utiliza pietas,
piedade. A sapientia identificada com Cristo; para Agostinho, sapientia fortasse ipsa est vera religio, talvez a
sabedoria , ela mesma, a verdadeira religio (cf. Aug. Ut. cred. 7,14).
29 A , literalmente reverncia correta, o termo grego, de tradio pag, para a reverncia aos deuses ou aos
ancios (cf. P. R. 615c e Smp. 193d); nada mais que a devida a Deus, em grego. A traduo
latina pietas para atestada desde os tempos de Ccero, que a define como iustitia adversus deos, o respeito
devido aos deuses (cf. Cic. N. D. 1,41,115); o Arpinate, no entanto, a limita, noutras obras, ao respeito devido aos pais,
chamando o respeito devido aos deuses de religio (cf. Cic. Part. 22,78; Planc. 33,80; Inv. 2,22,65). Pode-se argumentar
que o uso de pietas no lugar de religio, nesta passagem, vincula-se acepo de Deus como o Pater noster, o Dominus
supremo. , no entanto, se traduz mais comumente como dei cultus, como Agostinho menciona a seguir (a
mesma ideia em Aug. Trin. 12,22; 14,1; Civ. 10,13; Enchir. 2; Spirt. et litt. 18), ou at timor deorum e timor Dei, temor
a Deus (cf. Lucr. 5,1223; Cic. Rep.1,15,24; Hor. S. 2,3,295; Job 28:28). Cf. Blaise p. 233 cultus; p. 254 pietas. V. Frst
(2002) p. 416, n. 718.
30Isto , o amor a Deus, de acordo com Mt 22:36-37 e Lc 10:27. Que o amor o fim da Lei algo que Paulo afirma na
carta aos Romanos (cf. Rom 13:10) e a Timteo (cf. 1 Tim 1:5).
31 Jo 15:13.
32 Cf. 1 Cor 8:1; esta passagem foi empregada anteriormente por Agostinho em Aug. Ep. 73,9.
33 Job 28:28, novamente.
)477
Aug. ep. 167 de sententia...

34De acordo com Fry (2010) p. 385, n. 48, essas medidas provavelmente vieram de um manual grego, j que os
romanos utilizariam milhas, passos e ps. Um stadium mede cerca de 180m; um palmum, 7 cm; e um digitum, 2 cm.
35 Essa demonstrao estoica do absolutismo da virtude foi trabalhada, na literatura latina, anteriormente por Ccero,
que compara os homens que buscam a virtude aos cachorrinhos imersos na gua, no de finibus: ut enim qui demersi sunt
in aqua nihilo magis respirare possunt, si non longe absunt a summo, ut iam iamque possint emergere, quam si etiam
tum essent in profundo, nec catulus ille, qui iam adpropinquat ut videat, plus cernit quam is, qui modo est natus, item
qui processit aliquantum ad virtutis habitum nihilo minus in miseria est quam ille, qui nihil processit, ora, como os
homens que esto imersos na gua no podem respirar nada mais, caso no estiverem longe do topo, para que assim
possam dele emergir de imediato; se eles se encontrarem, no entanto, nas profundezas, nem mesmo um filhote, que se
aproxima para ver, consegue enxergar melhor que aquele que acabou de nascer o mesmo para o homem que progride
um pouco em direo da virtude: ele no deixa de permanecer, na misria, nada menos que aquele que nada
progrediu (cf. Cic. Fin. 3,48).
36Em latim, Agostinho fala de corporalia e intelligibilia, elementos corpreos e inteligveis. A princpio, os termos
se referem s teorias fsicas dos estoicos, que acreditavam que tudo que existia no universo era corpo, isto , corporalis,
at mesmo as ideias abstratas, intelligibilis. Por se tratar de filosofia moral neste tratado, escolhemos adaptar os termos,
que adquirem, no presente pargrafo, significados mais gerais (ou platnicos) de concreto (as trevas, a luz) e
abstrato (as ideias, a alma, as virtudes e os vcios).
37 A aluso, evidentemente, famosa teoria da caverna de Plato (cf. P. R. 514a-518d), que Agostinho compara aqui
iluminao divina no homem, atravs unicamente da qual este pode intuir a verdade e, assim, conhecer a luz: as duas
luzes que iluminam o homem, no caso, so Deus e a luz material; assim, conhecer a Deus como sair da caverna, da
qual aflui o sopro do Esprito Santo, que nos possibilita tanto enxergar a luz do dia quanto conquistar a virtude, isto ,
intuir a verdade, que o amor. Tanto para o filsofo ateniense quanto para o bispo de Hipona, a sabedoria viria aps
adequar, progressiva e gradualmente, o intelecto intuio da verdade, como os olhos se adequam luz aps deixarem
o escuro, e no, como pensavam os estoicos, aps ter deixado toda a tolice de lado, como o homem que consegue
emergir das profundezas do mar (ora, ou isto impossvel, ou levaria a um niilismo tpico dos cnicos). Agostinho
utiliza a mesma situao metafrica em Gen. ad litt. 1,17; 4,23; 11,24; Conf. 13,13. V. Rist (1994) p. 88-90; Nash
(2003) p. 117-118.
38 Ps 142:2 <143:2>.
39 Hab 2:4; Rom 1:17; Gal 3:11; Hbr 10:38.
40A afirmao se d como fechamento do raciocnio de Agostinho, sendo prpria do pensamento cristo. Ela no deixa,
porm, de ecoar certo trecho vindo de uma Stira de Horcio: nam vitiis nemo sine nascitur; optimus ille est, / qui
minimis urgetur, pois sem vcio ningum nasce, mas o melhor / quem comete o mnimo (cf. Hor. S. 3,68-69). Essa
concluso est no corao da polmica pelagiana (cf. Aug. Pecc. Mer. 1,70; 2,10; Ep. 189,8). V. Frst (2002) p.
420-421, n. 723.
41 Em latim, intentio, a tenso volitiva da alma (cf. Aug. Ep. 166,4); v. supra Aug. Ep. 166, n. 17.
42Em latim, a frase se apresenta, de fato, como uma definio: virtus est caritas qua id quod diligendum est diligitur.
Ou seja, a nica virtude real o amor a Deus e a Cristo que, sendo a realizao da Lei, ele mesmo o amor (cf. Rom
13:10). Essa mxima repetida diversas vezes por Agostinho em sua obra, algumas das quais so exploradas por Rist
(1994) p. 148-185, o qual afirma: love is the common essential core of virtues (citao na p. 173).
43 Ecc 7:20 <Ecc 7:21>; cf. 1 Rg 8:46; Ps 14:3; Pr 20:9.
44 Ps 142:2 <143:2>.
45 1 Jo 1:8.
46 Cf. Mt 6:12 e Lc 11:4.
47Esta concluso, semelhante definio de virtude que Agostinho deu no incio desse pargrafo, tambm corre como
uma sentena: magna est ergo utilitas praeceptorum, si libero arbitrio tantum detur, ut gratia Dei amplius honoretur.
Aqui se coloca o corao da noo agostiniana de livre arbtrio: ns temos liberdade de escolher to-somente para
escolher obedecer a Deus, isto , a ns dado o livre arbtrio para que se honre, ainda mais amplamente, a Graa de
Deus, pela qual somos justificados (cf. Aug. Pecc. Mer. 3,23).
48Neste raciocnio, h menes a Jac 2:10 (quem tropea em um nico ponto, tropeou em todos); Rom 13:10 (o amor
o fim da Lei); Dt 6:5, ou Lv 19:18 e Jos 22:5 (amar a Deus como se ama ao prximo); e Mt 22:40 (a Lei e os profetas
dependem do amor).

)478
Aug. ep. 167 de sententia...

49 Ex 20:13-17, Lv 19:18 e Rom 13:9-10, respectivamente.


50 O mesmo raciocnio, de que amar a si e ao prximo depende de amar a Deus, aparece em Aug. mor. 1,48-51.
51 Cf. Jac 3:2.
52 Em latim, honores ecclesiastici; v. supra Aug. Ep. 82, n. 116. A aluso provavelmente cathedra, trono onde o
bispo se sentava durante a missa, enquanto os fiis o escutavam de p; cf. Blaise p. 748 sedes 2.
53 Jac 2:4.
54Alguns editores, entre os quais Goldbacher (1923) vol. III, p. 606, quiseram ler aqui um dixerim, eu disse, mas a
nosso ver a frase refere-se claramente a Tiago. V. Frst (2002) p. 430, n. 731; Fry (2010) p. 391, n. 64.
55 Todo esse pargrafo, at aqui, apoia-se em uma anlise de Jac 2:8-13;3,1-2.
56 Lc 6:37-38 e Jac 2:13, respectivamente.
57 Mt 5:7.
58 Ps 101:1.
59 Ps 143:2.
60 Jer 2:29.
61 Pr 20:8-9.
62 Cf. Mt 6:12 e Lc 11:4.
63 Cf. 2 Cor 9:7. A mesma ideia est presente em Aug. Conf. 9,35; Pecc. Mer. 2,8.
64 Em latim, Latina lingua ecclesiasticae litterae; v. supra Hier. Ep. 112, n. 50.

)479
19

Jernimo Ep. 134 / Agostinho Ep. 172


[416]

Ainda que Jernimo tenha, como vimos, retomado o contato com Agostinho de maneira oblqua j em 412,

atravs da carta Hier. Ep. 126 endereada a Marcelino e Anapsquias, apenas em Hier. Ep. 134 que o monge vai se

dirigir diretamente a seu correspondente desde Hier. Ep. 112 aps um hiato de quinze anos, portanto. Essa presente

e curta missiva, enviada no ano de 416 por meio de Paulo Orsio e em retorno Aug. Ep. 166-1671, se l mais como um

bilhete no qual o Estridonense sinaliza ter recebido os tratados que Agostinho lhe dedicara e onde d notcias de suas

atividades recentes. Jernimo cobre seu interlocutor de elogios, servindo estes de deixa para cham-lo unio de foras

no combate s heresias, em especial ao pelagianismo, a heresia mais perigosa da Igreja2 . Seguindo-se um breve

exrdio e uma narratio igualmente breve, o Estridonense conclui o texto com saudaes.

Quando escreveu essa carta, Jernimo havia acabado de publicar seu dilogo contra os pelagianos, os quais

atacaram seu mosteiro em retaliao3; tambm assolava-o a renovao da polmica origenista contra Joo de Jerusalm,

que fora durante muitos anos o protetor de Rufino. Tais problemas acabam por compor, como o prprio autor infere, um

tempus difficilimum que o impediu de responder os tratados de Agostinho de maneira apropriada. Lembremos tambm

aqui que a sade do autor estava cada vez mais frgil: Jernimo contava ento 85 anos e estava praticamente cego. Seja

como for, a justificativa uma maneira comum de recusar-se a entrar em uma discusso, como aponta Thraede4.

Segundo a diviso de Pseudo-Demtrio, esse texto seria um exemplo da carta de agradecimento5 . Entre as

situaes de Pseudo-Libnio, encontramos a da resposta e a do relato6, razes de escrita da carta. A mensagem

oficiosa e esquiva: Jernimo recusa-se, uma vez mais, a entrar em uma discusso, citando o mesmssimo verso que

citara anos antes, em Hier. Ep. 102,2, para afastar Agostinho (cf. Rom 14:5). Esto presentes os tpicos do , do

, do elogio ao destinatrio, os votos de boa sade, e uma frmula de concluso.

1 Hennings (1994) p. 47-48; Fry (2010) p. 407-408.


2 O pelagianismo serve de pano de fundo de todo o segundo perodo de correspondncia entre os autores, conforme
discutimos em notas e no captulo Agostinho e Jernimo contra Pelgio da introduo.
3 Este evento ser posteriormente mencionada em Hier. Ep. 141.
4 Thraede (1970) p. 138.
5 Cf. Ps.-Dem. 21.
6 Cf. Ps.-Lib. 23;70 e 27;74.

)480
Hier. ep. 134

Domino vere sancto et omni mihi affectione venerabili papae Augustino Hieronymus in
Christo salutem.

1. Virum honorabilem fratrem meum, filium dignationis tuae, Orosium presbyterum, et sui
merito et te iubente suscepi. Sed incidit tempus difficillimum, quando mihi tacere melius fuit
quam loqui: ita ut nostra studia cessarent, et iuxta Appium canina exerceretur facundia. Itaque
duobus libellis tuis, quos meo nomini dedicasti, eruditissimis et omni eloquentiae splendore
fulgentibus, ad tempus respondere non potui; non quo quicquam in illis reprehendendum putem,
sed quia iuxta beatum apostolum: Unusquisque in suo sensu abundet; alius quidem sic, alius
autem sic. Certe quicquid dici potuit et sublimi ingenio de Scripturarum sanctarum hauriri
fontibus, a te positum atque dissertum est. Sed quaeso Reverentiam tuam, parumper patiaris me
tuum laudare ingenium. Nos enim inter nos eruditionis causa disserimus. Ceterum aemuli et
maxime haeretici, si diversas inter nos sententias viderint, de animi calumniabuntur rancore
descendere. Mihi autem decretum est te amare, suspicere, colere, mirari, tuaque dicta quasi mea
defendere (certe et in dialogo, quem nuper edidi, tuae beatitudinis ut dignum fuerat recordatus
sum) magisque demus operam, ut perniciosissima haeresis de ecclesiis auferatur, quae semper
simulat paenitentiam, ut docendi in ecclesiis habeat facultatem, ne si aperta se luce prodiderit,
foras expulsa moriatur.
2. Sanctae ac venerabiles filiae tuae Eustochium et Paula, et genere suo, et exhortatione tua
digne gradiuntur, specialiterque salutant beatitudinem tuam; omnis quoque fraternitas, quae
nobiscum Domino Salvatori servire conatur. Sanctum presbyterum Firmum, anno praeterito ob
rem earum Ravennam, et inde Africam, Siciliamque direximus; quem putamus iam in Africae
partibus commorari. Sanctos tuo adhaerentes lateri, ut meo obsequio salutes, precor. Litteras
quoque meas ad sanctum presbyterum Firmum direxi, quae si ad te venerint, ei dirigere non
graveris. Incolumem te et mei memorem Christus Dominus custodiat, domine vere sancte et
beatissime Papa. Grandem latini sermonis in ista provincia notariorum patimur penuriam; et
idcirco praeceptis tuis parere non possumus, maxime in editione Septuaginta, quae asteriscis
veribusque distincta est. Pleraque enim prioris laboris ob fraudem cuiusdam amisimus.

)481
Hier. ep. 134

Jernimo envia saudaes em nome de Cristo ao padre1 Agostinho, senhor verdadeiramente


santo e venervel com toda minha afeio.

1. Um homem honorvel, meu irmo, filho de tua dignidade, o presbtero Orsio2 ; em favor
dele e em pedido teu, eu o acolhi. Mas houve um perodo muito difcil durante o qual eu preferi
me calar a falar3 , tanto que interrompemos nossos estudos e acabamos por desenvolver, como
diz pio, um estilo canino4 . Foi por isso que no consegui responder a tempo aos teus dois
livrinhos5 , muito eruditos e cintilantes com todo o esplendor da eloquncia, os quais dedicaste
em meu nome; no porque eu julgue que neles h algo a ser repreendido, mas porque, como diz
o abenoado apstolo <Paulo>: cada um conhece bem seu prprio modo de pensar: um de uma
maneira, o outro de outra6. Sim, o que se pde afirmar, e com admirvel talento drenar das
fontes das Escrituras Sagradas, tudo foi colocado e discutido por ti. Mas, peo licena a ti,
permita-me louvar um pouquinho o teu talento. Ora, ns discutimos entre ns com o objetivo de
aprender. De resto, os dissimulados, e sobretudo os herticos, se encontrarem opinies
divergentes entre ns, afirmaro caluniosamente que isso se deve a um rano da alma7. A mim,
porm, me lcito te amar, acolher, cultivar, admirar, defender as tuas opinies como se elas
fossem as minhas (tambm no dilogo8 que acabei de publicar, para que este fosse digno,
certamente me lembrei de tua beatitude) e assim atuemos com mais firmeza para expulsar a
mais perigosa heresia das igrejas9 , aquela que sempre simula a penitncia para ter a licena de
ministrar as heresias, a fim de que no morra desterrada se vier a se revelar na luz do dia.
2. Tuas santas e venerveis filhas Eustquio10 e Paula11 crescem dignamente de acordo com a
sua origem e com a tua exortao; elas enviam saudaes especiais tua beatitude, e assim
tambm toda fraternidade que se esfora em servir conosco o Senhor Salvador. No ano passado,
e por causa delas, ns encaminhamos o santo presbtero Firmo12 a Ravena, e de l para a frica
e para a Siclia; julgamos que ele j deve estar nos arredores da frica. Os santos que se
encontram a teu lado, ns imploramos que lhes envie saudaes em nosso favor. Ainda, eu
encaminhei umas cartas minhas ao santo presbtero Firmo, as quais, se chegaram a ti, no
consideres um fardo encaminh-las a ele13 . Que Cristo te proteja inclume, e lembra-te de mim,
senhor verdadeiramente santo, e muitssimo abenoado padre14! Passamos por uma grande
escassez de copistas15 da lngua latina nesta provncia, e por isso no conseguimos atender as
tuas solicitaes16, sobretudo em relao edio da Septuaginta anotada com asteriscos e
obeliscos17 ; na realidade, perdemos boa parte do trabalho anterior devido ao erro de algum18.
)482
Hier. ep. 134
NOTAS

1 Papa, v. supra Hier. Ep. 102, n. 1.


2 Paulo Orsio, v. supra Aug. Ep. 166, n. 4.
3 Cf. Am 5:13, portanto, o que for prudente guardar silncio naquele tempo, porque o tempo ser mau. Esta sentena
do silncio tpica na epistolografia e traz mente tambm a impossibilidade de escrever cartas de amizade em tempos
turbulentos, como indica Ccero em uma carta (cf. CiC. Ad Fam. 4,13,1). V. Thraede (1970) p. 138.
4 A expresso canina facundia, estilo canino, proverbial, e usada muitas vezes por Jernimo, indicando o perigo
representado por uma mensagem (cf. Hier. C. Lucif. 1; Ep. 119,1; 125,16). Sua origem est em Sall. Fragm. 4,5 (2,37
Maurenbrecher), a saber: canina, ut ait Appius, facundia exercebatur, utilizava, como diz pio, um estilo
canino (tambm em Quint. Inst. orat. 12,9,9; Lac. Inst. 6,18,26); cf. Otto p. 69 canis 3. No sabemos quem seria o
pio a quem se referem Salstio e Jernimo. V. Frst (2002) p. 435, n. 743.
5 Os libelli se referem a Aug. Ep. 166-167.
6Citaes de Rom 14:5 e 1 Cor 7:7, respectivamente. Jernimo havia utilizado as mesmas passagens para afastar
Agostinho h mais de quinze anos, em Hier. Ep. 102,2 (v. supra Hier. Ep. 102, n. 12).
7 No latim, animi rancor, rano da alma, retomando a expresso rancor stomachi usada pela primeira vez em Hier.
Ep. 102,2 (v. supra Hier. Ep. 102, n. 11). O Estridonense utiliza a expresso para qualificar a contenda que se deu entre
ele e Agostinho devido srie de mal-entendidos que marcou o primeiro perodo de sua correspondncia mtua.
8 Trata-se do Dialogus adversus pelagianos [PL 23,491-590a] que Jernimo publicara em 415, sua obra mestra sobre
esta polmica. L, o monge busca traar a afirmao de Pelgio, de que o homem poderia atingir a perfeio, e assim
viver em um estado de liberdade das paixes, a partir dos erros pagos de Orgenes (cf. Hier. Adv. Pelag. 1,28;
2,24-25), alinhando-se a um ponto que Agostinho abordara em Aug. Ep. 167.
9 A meno a Pelgio (ca. 354 - aps 418), monge asceta nascido na Bretanha, pensador bastante famoso entre a
aristocracia romana e africana de sua poca. Este pensador comeou sua pregao por volta de 380, poca em que
publicou comentrios s cartas de Paulo. Tendo se refugiado na Numdia em decorrncia da perseguio visigtica aos
romanos na dcada de 410, Pelgio teria visitado Hipona por volta de 410, ocasio em que conheceu Paulo Orsio (no
provvel, segundo os historiadores, que conhecera ento Agostinho). O pelagianismo consistia numa doutrina de
extremismo asctico, que pregava o individualismo radical e cujo objetivo era atingir a impeccantia, a ausncia de
pecado em vida; a oposio contra Pelgio afirmava, a partir desses objetivos, que o monge subestimava a Graa divina
e representava um perigo hierarquia eclesistica, o que talvez no estivesse longe da verdade. Contra Pelgio,
Agostinho escrever diversos livros, todos publicados entre 414 e 420 (e reunidos no volume 44 da Patrologia Latina).
Para um vis narrativo do papel de Pelgio, o grande rival do Tagastense em sua obra de velhice, na vida do bispo de
Hipona, vide toda a quarta parte da biografia de Brown (2013) p. 285-377 a vitria da doutrina de Agostinho sobre a
de Pelgio est nas p. 354-377. Um recensus da obra de Pelgio est reunido em PL 21,1155-1164c; nenhum dos livros
dele chegou at ns integralmente. Pelgio e pelagianismo, cf. LThK VIII p. 5-9; NDPAC p. 3996-4005. Chadwick
(1967) p. 225-235 d um bom resumo do que foi a polmica pelagiana; tratamos tambm do assunto no segundo
captulo da nossa introduo.
10 Eustquio, v. supra Hier. Ep. 102, n. 9.
11Paula a Jovem (400 - ?), sobrinha de Eustquio, neta da outra Paula que morrera em 400, e que acabou por suceder
sua tia na administrao do mosteiro de Jernimo em ocasio da morte desta, em 419. Paula a Jovem cf. PLRE I p. 675
Paula 2. V. Frst (2002) p. 438 n. 751.
12 Firmo, v. supra Hier. Ep. 115, n. 2. Para presbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.
13 No sabemos quais eram tais cartas, ou se elas se dirigiam a Agostinho.
14Eis uma frmula de concluso na postscriptio, muito comum nas cartas de Jernimo. Ela aparece novamente em Hier.
Ep. 103,2, 115, 141 e 143,2.
15Notarius, v. supra Hier. Ep. 112, n. 43. Jernimo reclama da falta de taqugrafos falantes do latim tambm em Hier.
Ep. 75,4; Agostinho em Aug. Ep. 27*,3. Tal problema parece ter sido generalizado em uma poca conturbada que viu as
migraes brbaras, no incio do sculo V.

)483
Hier. ep. 134

16 Quais solicitaes seriam essas? No podemos nos certificar a qual pedido Jernimo se refere especificamente, ou
quando Agostinho o teria feito. Certo, o bispo de Hipona requisitara amide de Jernimo que lhe enviasse seus livros,
tradues e revises (e.g. Aug. Ep. 28,2; 40,9; 82,34). Se de fato esse atraso que j dura, ento, dez anos, plausvel
acreditar que o pedido teria sido reiterado oralmente por Orsio quando este visitou Jernimo em 415; sobre isso, v.
Kelly (1975) p. 317-321. Frst (2002) p. 73-74 acredita que os livros pedidos por Agostinho de fato eram a tradues de
Jernimo para J e Jonas, a Septuaginta, e a carta Hier. Ep. 57 (o de optimo genere interpretandi).
17Em latim, asterisci e obelisci, os puncta de crtica textual mencionados anteriormente em Aug. Ep. 71,3 e Hier. Ep.
112,19 (v. supra Aug. Ep. 71, n. 10). O verbo latino utilizado aqui por Jernimo distinguere, termo tcnico do
vocabulrio tradutrio, que indica a aposio de sinais diacrticos na correo do texto a fim de marcar as pausas ou
ausncias. Diz Jernimo no prefcio do Pentateuco na Vulgata que [Origen] editioni antiquae translationem
Theodotionis miscuit, asterisco et obelo id est stella et veru opus omne distinguens, [Orgenes] ajuntou a traduo de
Teodocio edio antiga, marcando a obra toda com asteriscos, obeliscos (isto , estrelas) e flechas (cf. Hier. Vulg.
Pent. praef.; tambm Hier. Ep. 57,2). A edio da Septuaginta da qual fala Jernimo neste pargrafo, portanto, a
aquela de Orgenes, a mesma que o monge utilizara para traduzir o livro de J (cf. Hier. Ep. 112,19). V. Arns (2007) p.
60-61; Clemens & Graham (2007) p. 83.
18 No h quaisquer informaes que nos apontem quem seria esse quisdam.

)484
20

Agostinho Ep. 180


Agostinho a Oceano
[416]

No h equivalente no corpus epistularum de Jernimo para a carta Aug. Ep. 180 endereada a Oceano,

personagem que ento se encontrava em Belm. Os editores modernos, todavia, entre os quais Goldbacher, Frst e Fry,

a incluem, j que a carta faz referncias a assuntos abordados nas cartas trocadas entre nossos autores, tanto a questo

da origem da alma quanto do officiosum mendacium. Assim, essa carta Aug. Ep. 180, um balano que Agostinho faz de

sua correspondncia com Jernimo, no est presente na edio de Labourt; nossa traduo baseada no texto presente

na edio de Fry1 .

Datar esse texto igualmente difcil: Fry a inclui imediatamente aps Aug. Ep. 167, seguindo a ordem da

Patrologia Latina; j Frst a traduz apenas no final, logo aps Hier. Ep. 143. Uma vez que Aug. Ep. 180 faz aluso

discusso de Aug. Ep. 166, possvel concluir que ela foi escrita aps 412/415, provavelmente neste ano, ou talvez

imediatamente um ano aps, em 416; nela tambm lemos que Orsio, provavelmente o mensageiro que a levou at

Oceano, retornara a frica aps ter visitado Jernimo em Belm (cf. Aug. Ep. 180,5), fato que se deu entre os anos de

415 e 416. Nesse intervalo, tanto Orsio quanto Oceano participaram de conclios em Cartago, nos quais se discutiram a

ortodoxia dos ensinamentos de Pelgio. Adotaremos, portanto, a data aproximativa de 416 para o texto, inserindo-o no

debate sobre o pelagianismo2 .

A carta Aug. Ep. 180 uma resposta a trs cartas anteriores de Oceano a Agostinho, nenhuma das quais chegou

at ns. O texto segue uma estrutura tridica, tpica do gnero epistolar: uma praescriptio, onde Agostinho sinaliza que

recebera duas cartas de seu correspondente, menciona uma terceira, e diz que no as respondeu antes pois no teve

tempo; seguida por uma narratio, que se d em trs pargrafos, com trs assuntos diferentes e bem posicionados; e,

enfim, termina com uma postscriptio, que serve de concluso para o que se argumentou anteriormente, e onde o autor se

despede. A carta contm alguns tpicos recorrentes da epistolografia, quais a necessidade de responder, ainda que o

autor no tenha tempo hbil (cf. Aug. Ep. 180,1) e o elogio do destinatrio (cf. Aug. Ep. 180,5).

Detenhamo-nos na narratio, na qual Agostinho corrige Oceano trs vezes, em trs pargrafos: em primeiro

lugar, sobre a questo da origem das almas; em segundo lugar, sobre o officiosum mendacium de Paulo em Gal 2:11-14;

e, por ltimo, sobre o fato de Oceano ter interpretado erroneamente duas passagens, uma do Evangelho de Mateus (Mt

24:36) e outra do Evangelho de Marcos (Mc 13:32), no debate sobre a mentira. Ao longo da carta, pressentimos um

Agostinho que est impaciente com erros bsicos de raciocnio cometidos por Oceano, os quais o bispo corrige em

)485
poucas linhas, dirigindo o destinatrio leitura de outras obras, suas e de outros autores, para sanar suas dvidas. Na

concluso, Agostinho faz meno ao dilogo que Jernimo publicara recentemente contra os pelagianos, assim como a

uma outra obra do Estridonense sobre a ressurreio, mas no podemos precisar que livro seria esse.

Segundo a diviso de Pseudo-Demtrio, essa carta seria um exemplo de resposta3. Entre as situaes de

Pseudo-Libnio, elencamos a da resposta e, especialmente, a da didtica4 . O tom professoral: Agostinho pincela seu

primeiro tpico e, ao entrar no segundo, explica sucintamente o que uma figura de linguagem, qual sua diferena com

a mentira, e porque a passagem de Paulo em Gal 2:11-14 no pode ser interpretada como a primeira, e tampouco como

uma mentira, elencando ento alguns exemplos de tropicae locutiones para ilustrar sua argumentao. Entre elas, esto

algumas copiadas do De oratore de Ccero (cf. Cic. De or. 3,38,155) e uma que ecoa uma imagem das Gergicas de

Virglio (cf. Vir. Georg. 1,75). O emprego desses exemplos nos traz alguns vislumbres do magister Agostinho

lecionando Oceano, como se esse fosse um de seus antigos alunos de retrica, em uma sala de aula na longnqua Milo

que ficara em seu passado.

1 Fry (2010) p. 397-399 apud Goldbacher (1904) vol. III, p. 697-700. Mas curioso que os editores modernos incluam
Aug. Ep. 180 e no Aug. Ep. 169 a Evdio, Aug. Ep. 190 a Optato, e Aug. Ep. 202A ao mesmo, sendo que as ltimas
tambm fazem meno correspondncia de Agostinho com Jernimo.
2 Fry (2010) p. 395-396.
3 Cf. Ps.-Dem. 14.
4 Cf. Ps.-Lib. 23;70 e 31;78.
)486
Aug. ep. 180

Domino merito carissimo et in Christi membris honorando fratri Oceano Augustinus


salutem.

1. Duas accepi simul epistulas dilectionis tuae, quarum in una facis tertiae mentionem et eam
te prius misisse commemoras. Quam accepisse non recolo, immo bene mihi recolere videor
quod non acceperim. De his tamen quas accepi, ago uberes gratias benignitati erga nos tuae,
quibus ut non continuo responderem, in alia atque alia diversarum occupationum tempestate
direptus sum. Vnde nunc stillam vacantis temporis nactus respondere aliquid malui quam ad
tuam sincerissimam caritatem diuturnum habere silentium et fieri taciturnitate quam loquacitate
importunior.
2. De origine animarum quid sanctus Hieronymus sentiat, iam sciebam et haec ipsa quae ex
libro eius in epistula tua posuisti verba iam legeram. Verum non hoc quaestionem molestam
facit, quod movet quosdam, quomodo Deus adulterinis etiam conceptibus iuste animas largiatur,
cum bene viventibus et ad Deum fide ac pietate conversis ne propria quidem quanto minus
parentum possint obesse peccata. Sed merito quaeritur, si verum est novas ex nihilo animas
singulas singulis nascentibus fieri, quomodo tam innumerabiles animae parvulorum, quas Deo
certum est ante rationales annos, antequam quicquam iustum iniustumve sapere vel capere
possint, sine baptismo de corporibus exituras, iuste in damnationem dentur ab illo utique apud
quem non est iniquitas. Non opus est de hac re plura dicere, cum scias quid velim vel potius
quid nolim dicere. Satis existimo sapienti esse quod dixi. Verum tamen si aliquid hinc, quo ista
quaestio solvi queat, vel legisti vel ex ore eius audisti vel tibi ipsi Dominus cogitanti donavit ut
noveris; impartire, obsecro, mihi ut gratias uberiores agam.
3. Illud vero de officioso utilique mendacio quod exemplo Domini de die et hora huius saeculi
finiendi nec Filium scire dicentis putasti esse solvendum, conatu quidem ingenii tui, cum
legerem, delectabar, sed nullo modo mihi videtur tropicam locutionem recte dici posse
mendacium. Non enim mendacium est, cum diem laetum dicimus, quod laetos faciat, aut tristem
lupinum, quod gustantis vultum amaro sapore contristet, sicut Deum scire, cum cognoscentem
hominem facit; hoc enim dictum ad Abraham ipse commemorasti. Nequaquam sunt ista
mendacia, quod etiam ipse facillime advertis. Proinde beatus Hilarius cum obscuram
quaestionem hoc genere tropicae locutionis aperuit, ut intellegeremus in eo se nimirum dixisse
nescientem, in quo alios facit occultando nescientes, non excusavit mendacium, sed mendacium
non esse monstravit non solum in his usitatioribus tropis, verum in illa etiam quae appellatur
)487
Aug. ep. 180
metaphora, quae loquendi consuetudine omnibus nota est. Nam gemmare vites, fluctuare
segetes, florere iuvenes, contendet quispiam esse mendacium, quod in his rebus nec undas nec
lapides nec herbas nec arbores videt, ubi proprie ista verba dicuntur?
4. Porro autem pro tuo ingenio atque eruditione facillime perspicis quantum ab his differat
quod ait Apostolus: Cum viderem quia non recte ingrediuntur ad veritatem Evangelii, dixi
Petro coram omnibus: Si tu, cum sis Iudaeus, gentiliter et non iudaice vivis, quemadmodum
Gentes cogis iudaizare? Nulla est hic tropica obscuritas, verba sunt propria apertae locutionis.
Hoc profecto doctor Gentium, his quos parturiebat donec Christus formaretur in eis, et quibus
sub divina attestatione praedixerat: Quae autem scribo vobis, ecce coram Deo, quia non
mentior, aut verum dixit, aut falsum; si falsum (quod absit) quae sequantur advertis [ . . . ] et
ambo ista exhorrescens admonet veritatis indicium et in apostolo Petro mirabilis humilitatis
exemplum.
5. Sed quid hinc diutius? Quae de hac quaestione inter nos ego et praedictus venerabilis frater
Hieronymus satis litteris egerimus? Et in hoc opere recentissimo, quod sub nomine Critobuli
adversus Pelagium modo edidit, eandem de ista re gesta dictisque apostolicis sententiam tenuit,
quam beatissimi Cypriani etiam nos secuti sumus. Illud potius De origine animarum non propter
partus adulterinos, sed propter innocentium (quod absit) damnationem, quod, opinor, non stulte
quaeritur, si quid a tali ac tanto didicisti viro, quod recte responderi ambigentibus possit, quaeso
nobiscum communicare non abnuas. Ita quippe mihi in epistulis tuis eruditus et suavis
apparuisti, ut operae pretium sit tecum litteris colloqui. Nescio sane quem librum eiusdem
hominis Dei, quem presbyter Orosius attulit, tuaeque Dilectioni describendum dedit, ubi de
resurrectione carnis praeclare disputasse laudatur, iam nobis peto non differas mittere. Ideo
quippe non eum cito poposcimus, quia et describendum et emendandum utique cogitavimus, cui
utrique operi largissimum iam putamus tempus indultum. Memor nostri Deo vivas.

)488
Aug. ep. 180

Agostinho envia saudaes a Oceano1, senhor merecidamente muito querido e irmo digno
de honra nos membros de Cristo2 .

1. Recebi ao mesmo tempo duas cartas3 do teu amor, em uma das quais tu fazes meno a uma
terceira4 e mencionas que a mandaste anteriormente. No me lembro de t-la recebido, ou
melhor, julgo lembrar-me bem de no a ter recebido. Quanto quelas que recebi, porm,
agradeo amplamente a tua bondade para conosco; no pude responder de imediato a elas pois
fui soterrado c e l por uma tempestade dos mais diversos compromissos. Da que agora, tendo
arrumado uma gota5 de tempo livre, achei melhor escrever alguma coisa, do que manter um
silncio interminvel frente a tua mais generosa caridade, e assim me tornar mais inoportuno
pela tacitez do que pela tagarelice.
2. Acerca da origem das almas, eu j conhecia a opinio do santo Jernimo, e j havia lido
tambm esses mesmos trechos do livro dele6 que tu citaste em tua carta. Na verdade, o que torna
a questo problemtica no o que incomoda a alguns, de que modo Deus abre mo7 das almas
de maneira justa at aos filhos dos adlteros (visto que, queles que vivem corretamente e se
dedicam f e piedade em Deus, se no possvel que eles sejam prejudicados pelos prprios
pecados, quo muito menos pelos pecados de seus pais). Mas, pergunta-se com razo se
verdade que almas novas so criadas a partir do nada, individualmente a cada indivduo recm-
nascido de que maneira tantas e inumerveis almas dos bebs as quais, fora decidido por
Deus, viro a perecer dos corpos antes de desenvolverem a razo, e antes que possam discernir
o certo do errado (ou sequer ter noo disso) poderiam ser condenadas de maneira justa por
Ele, em quem certamente no existe injustia. No preciso insistir no assunto, pois tu sabes o
que eu gostaria, ou melhor, o que eu no gostaria de dizer. Estimo que ao bom entender, meia
palavra o bastante8 . Muito embora, se a houver um argumento com que esse problema possa
ser resolvido, seja algum que tu leste, seja algum que escutaste da boca dele <Jernimo>, seja
algum que o prprio Senhor te deu a conhecer atravs da reflexo, partilha-o comigo, eu te
imploro, para que eu te agradea ainda mais amplamente.
3. Agora, aquele assunto sobre a mentira devida e til9, que, pelo exemplo do que afirma o
Senhor ao dizer que nem seu Filho conhece ao certo o dia e a hora do fim deste mundo10, tu
julgaste que a discusso pudesse ser assim resolvida; o esforo da tua inteligncia, de fato,
agradou-me sua leitura, mas no me parece de modo algum que se possa interpretar
corretamente uma mentira como uma figura de linguagem11. Ora, no se trata de uma mentira
)489
Aug. ep. 180
quando dizemos que um dia feliz por trazer felicidade, ou que o tremoo vil pois, de
sabor amargo, faz com que uma pessoa que o come contraia o rosto12, assim como dizemos que
conhecemos a Deus, enquanto Ele que se faz conhecer pelo homem; ora, tu mesmo
mencionaste que isso foi dito a Abrao13 . Tais passagens no so de maneira alguma
mentirosas, algo que mesmo tu percebes com muita facilidade. No mais, o abenoado
Hilrio14 esclareceu esse difcil problema sobre as figuras de linguagem desse tipo: devemos
compreender que Ele declarou (no se admira) ento no saber em uma situao na qual faz
com que os outros no saibam ao esconder algo; Hilrio no dispensou isso como mentira,
mas demonstrou que a mentira aqui no existe, e no apenas nessas figuras mais empregadas,
mas at naquela que chamamos de metfora, universalmente conhecida de todos pelo uso
comum na fala15. Portanto, dizer que a vinha geme, que o canio flutua, que os jovens
florescem16 ser que algum iria defender que mentira, j que no v nem ondas nem
pedras nem plantas nem rvores nessas situaes quando tais palavras so usadas em sentido
literal?
4. Alm do mais, tu percebes com muita facilidade, por tua inteligncia e cultura, o quanto
essas expresses diferem do que diz o apstolo: mas, quando vi que no andavam bem e
direitamente conforme a verdade do Evangelho, disse a Pedro na presena de todos, se tu,
sendo judeu, vives como os gentios, e no como judeu, por que obrigas os gentios a viverem
como judeus?17 Aqui no h nenhuma dificuldade figurativa, so palavras literais de uma
mensagem evidente. Com efeito, isso que o doutor dos gentios pregara queles que ele
regenerava at que Cristo neles se formasse, e sob testemunho divino, que ora, acerca do que
vos escrevo, eis que diante de Deus testifico que no minto18, isso que ele falou ou verdade
ou mentira; se for mentira (Deus nos livre), tu sabes bem o que se seguiria [ . . . ]19 e,
horrorizado em ambas as situaes, ele <Paulo> d uma prova da verdade e um exemplo de
admirvel humildade ao apstolo Pedro.
5. Mas, para que nos alongar mais aqui, sobre esse assunto que eu e o venervel irmo
Jernimo, mencionado acima, discutimos o suficiente em nossas cartas20 ? E tambm em uma
obra recm-publicada, que ele acaba de editar contra Pelgio21 (sob o pseudnimo de
Critbulo22); nela ele conserva a mesma concluso sobre essa situao e sobre a afirmao do
apstolo, uma concluso que ambos tomamos, ainda, do muitssimo abenoado Cipriano23 .
Melhor, a questo acerca da origem das almas, a qual, julgo eu, no nada estpida e no
por causa dos partos das relaes adlteras, mas por causa da condenao (Deus nos livre) dos
inocentes se tu aprendeste com to admirvel e venervel homem qualquer coisa que poderia
)490
Aug. ep. 180
ser respondida com certido queles que ainda tm dvidas, eu peo que no te recuses a
partilhar isso conosco. Enfim, tu me pareceste to estudado e gentil em tuas cartas que vale a
pena dialogar contigo por meio escrito. No sei ao certo qual foi o livro do mesmo homem de
Deus <Jernimo> que o presbtero Orsio levou e deu a teu amor para ser copiado, no qual, diz-
se com louvores, ele teria discutido com grande clareza sobre a ressurreio da carne24 , mas
peo desde j que no demore em envi-lo at ns. Assim, no nos apressamos em pedi-lo, pois
pensamos certamente que era necessrio copi-lo e corrigi-lo; acreditamos que tu j tiveste
tempo bastante longo para dar cabo de ambos os deveres. Lembra-te de ns; vive em Deus25 .

)491
Aug. ep. 180
NOTAS

1 Oceano, v. supra Hier. Ep. 126, n. 23.


2No latim, in Christi membris, nos, ou entre os membros de Cristo. A expresso de organicidade semelhante a in
Christi visceribus, nas vsceras de Cristo (v. supra Aug. Ep. 82, n. 1).
3 Estas duas cartas, que Agostinho menciona ter recebido, no sobreviveram.
4No sobreviveu tambm esta terceira carta; na realidade, nenhuma das cartas que Oceano enviara ao bispo chegou at
ns.
5No latim, stilla vacantis temporis, uma gota de tempo livre. A stilla, diferente da gutta, denotava uma gota densa e
viscosa: gutta imbrium est, stilla olei vel aceti, a gutta de chuva; a stilla, do leo ou azeite (cf. Suet. Fragm. p. 319
27 Roth). O termo era expressivo e comum a quantidades mdias de tempo, tendo por origem a gota dgua gorda que
escorria lentamente da clepsidra, que media o tempo do discurso do orador; cf. Blaise p. 776 gutta.
6Aluso aos livros da Apologia adversus Rufinum, em especial o terceiro (cf. Hier. Adv. Ruf. 3,28); v. supra Hier. Ep.
102, n. 18.
7 O verbo largi de uso recorrente no cristianismo tardio, denotando a atividade de Deus em ceder as almas aos seres
vivos (cf. Aug. Ep. 166,15). Originalmente, largi contrado de largius facere, fazer mais abundante, mas j tem um
sentido atributivo, de ceder, em Ccero: si quis mihi deus largiatur, ut ex hac aetate repuerascam, se algum deus me
concedesse que desta idade eu me tornasse jovem novamente (cf. Cic. Cat. 23,83). Escolhemos um abrir mo, que
entendemos preservar a carga semntica do verbo.
8 Frase semelhante aparecera anteriormente em Aug. Ep. 40,3 (v. supra Aug. Ep. 40, n. 15); a fonte o verso 541 do
Phormion de Terncio. No mais, Agostinho trabalhara o problema da necessidade do batismo para salvar a alma dos
recm-nascidos anteriormente em sua correspondncia com Jernimo, em Aug. Ep. 166,10-15. Devemos entender, aqui,
que a questo permanece em aberto.
9No latim, officiosum utileque mendacium, mentira devida e til. Trata-se do problema do officiosum mendacium de
Paulo em Gal 2:11-14, discutido h mais de uma dcada em cartas trocadas entre Agostinho e Jernimo (v. supra Aug.
Ep. 28, n. 25). A aposio de utile junto com officiosum, porm, parece ser uma interpretao original de Agostinho,
como aponta Fry (2010) p. 403, n. 16 (lembramos que o autor j havia inferido a confluncia dos adjetivos em Aug. Ep.
82,21).
10A passagem refere-se a Mt 24:36 e a Mc 13:32, mas daquele dia e hora ningum sabe, nem os anjos do cu, mas
unicamente meu Pai. Segundo Agostinho, Oceano interpretara essa passagem de maneira que nela Jesus teria, similar a
Paulo em Gal 2:11-14, mentido de maneira devida, a fim de aproximar-se de seus seguidores. O bispo de Hipona
ento demonstra que o que Cristo disse no mentira, e nem tampouco mentira o que diz Paulo.
11 A construo tropica locutio, expresso figurada, ou, mais natural, figura de linguagem, parece ser tardia no
latim. Seu primeiro testemunho como tropica figura em Gell. 13,24,31; a raiz do termo aparece diversas vezes em
Agostinho (cf. Aug. C. mend. 10; Gen. ad. lit. 4,9, aqui tropice loqui, falar de modo figurado). Etimologicamente, a
expresso vem do grego , que implica um deslocamento de sentido de uma palavra qualquer (cf. Quint. Inst.
orat. 8,6,1; 9,1,4-5; 9,2,44).
12 A imagem do tristis lupinus, vil tremoo, emprestada do verso 75 da primeira Gergica de Virglio, aut tenuis
fetus viciae tristisque lupini, a mal cheia ervilhaa, o vil tremoo, verso 94 na traduo de Antnio Feliciano de
Castilho. A imagem precede o poeta mantuano, porm, e j se encontra em Cato o Velho (cf. Cat. R. R. 34,2; tambm
Plin. Nat. 18,14,36). V. Frst (2002) p. 464 n. 836; Fry (2010) p. 404 n. 19.
13Agostinho refere-se ao episdio em que Deus testa a f de Abrao ao lhe pedir para sacrificar seu primognito, Isaac,
em Gen 22.
14 Hilrio de Poitiers, v. supra Hier. Ep. 112, n. 142. Agostinho refere-se aos seus doze livros sobre a Trindade, De
trinitate libri duodecim, em especfico Hil. Trin. 9,62-67; 71-75.
15 Em latim, metaphora, quae loquendi consuetudine omnibus nota est, a metfora, que conhecida de todos pela
tradio da lngua falada. A metfora uma figura de linguagem que transforma o sentido prprio de uma palavra,
transferindo-o a outra, tal qual o seu sentido nas lnguas modernas (cf. Quint. Inst. orat. 8,6,4-5).
16Os exemplos metafricos gemmare vites, fluctuare segetes e florere iuvenes dados por Agostinho so os mesmos de
Ccero no terceiro livro do De oratore (cf. Cic. De or. 3,38).

)492
Aug. ep. 180

17 Gal 2:14.
18 Gal 1:20.
19H uma ruptura aqui nos manuscritos dessa carta, margem de um dos quais segue a anotao de um copista: credo
deficiat hic in textu <nonnihil>, creio faltar no texto algo <de importante>. O editor Goldbacher (1923) vol. III, p.
699 n. 25 toma nota desse elemento; v. tambm Fry (2010) p. 405, n. 26.
20Ou seja, todas as cartas trocadas entre Jernimo e Agostinho que trataram da interpretao de Gal 2:11-14: Aug. Ep.
28; 40; 82 e Hier. Ep. 112, propriamente.
21 Pelgio, v. supra Hier. Ep. 134, n. 9.
22Este pseudnimo, Critbulo, foi dado por Jernimo para Pelgio no dilogo contra os pelagianos (v. supra Hier. Ep.
134, n. 8), obra em que o monge de Belm por sua vez adotou o pseudnimo de tico. tico refere-se talvez ao
correspondente de Ccero, Tito Pompnio (112/109 - 35/32 a. C.), sua correspondncia com o qual foi reunida na
coleo ad Atticum; j Critbulo, grego , era um personagem contemporneo de Plato, figurando em seu
Symposium, e de Xenofonte, presente no Oeconomicus e nos Memorabilia. Ao usar tais alcunhas, Jernimo parece
querer marcar a pureza de sua latinidade contra a helenofilia de um filsofo grego, por extenso tambm pago e
herege, que seria Pelgio. A obra mencionada foi entregue a Agostinho por meio de Paulo Orsio, provavelmente junto
com a carta anterior de Jernimo, Hier. Ep. 134 (cf. Or. Lib. Apol. 4).
23 Cipriano de Cartago, v. supra Aug. Ep. 82, n. 95. A concluso trata da maneira como Pedro se comportou aps ser
corrigido por Paulo, em Gal 2:11-14, consentindo razo legtima que Paulo advogava. A passagem est em uma
carta de Cipriano enviada a seu discpulo Quinto; citamo-la: non est autem de consuetudine praescribendum, sed
ratione vincendum. nam nec Petrus quem primum Dominus elegit et super quem aedificavit ecclesiam suam, cum secum
Paulus de circumcisione postmodum disceptaret, vindicavit sibi aliquid insolenter aut adroganter adsumpsit, ut diceret
se primatum tenere et obtemperari a novellis et posteris sibi potius oportere, nec despexit Paulum quod ecclesiae prius
persecutor fuisset, sed consilium veritatis admisit et rationi legitimae quam Paulus vindicabat facile consensit,
documentum scilicet nobis et concordiae et patientiae tribuens, ut non pertinaciter nostra amemus, sed quae aliquando
a fratribus et collegis nostris utiliter et salubriter suggeruntur, si sint vera et legitima, ista potius nostra ducamus, no
se deve prescrever um problema pela tradio, mas resolv-lo atravs da razo. Pois nem Pedro, o primeiro que o
Senhor escolheu e sobre quem Ele edificou Sua Igreja, quando Paulo discordou dele acerca da circunciso, nem ele
advogou a si algo de modo insolente, ou comportou-se de modo arrogante, como se dissesse que ele era o primognito e
que assim convinha que fosse obedecido por aqueles que eram mais novos, que vieram depois dele, ou sequer
desdenhou ele de Paulo por este ter sido o primeiro perseguidor da Igreja; Pedro antes admitiu o conselho da verdade e
consentiu razo legtima que Paulo advogava, deixando-nos, a saber, uma prova de harmonia e pacincia, que no
tenhamos paixo demasiado tenaz pelas nossas opinies, mas, nas vezes em que nos so sugeridas novas ideias util e
saudavelmente pelos nossos irmos e colegas, se elas so verdicas e legtimas, adotemo-las em detrimento das nossas
prprias (cf. Cip. Ep. 71,3 apud Bayard (1945) vol. II, p. 256-259).
24 Tambm ignoramos qual seria tal livro.
25 Alm de Aug. Ep. 67,3, esta a nica carta de Agostinho onde encontramos uma frmula de concluso.

)493
21, 22, 23 e 24

CARTAS PERDIDAS
Jernimo Ep. D
Agostinho Ep. E
Jernimo Ep. F
Jernimo Ep. G
[416]

Fundamentando-se no testemunho de Agostinho em sua carta Ep. 19*,1, alguns editores modernos1

argumentaram que devemos situar algumas cartas perdidas, trs de Jernimo e uma de Agostinho, duas dessas enviadas

pelo presbtero Inocncio (supostas Hier. Ep. D e Aug. Ep. E, resposta a essa), e mais duas pelos diconos Palatino e

Lzaro, bispo de Aquae Sextiae, a moderna Aix-en-Provence, na Frana (supostas Hier. Ep. F e G). As cartas

provavelmente tratavam da questo pelagiana, assunto da carta Aug. Ep. 19*, e foram trocadas no vero de 416, poca

em que Orsio retornou de Belm a frica.

possvel que uma das cartas levadas por Palatino e Lzaro, Hier. Ep. F ou Hier. Ep. G, seja, na realidade,

Hier. Ep. 134, originalmente confiada ao presbtero Orsio; ou at mesmo Hier. Ep. 141 ou 142, conforme confabula

Hennings2 . Ademais, se concordarmos com este pesquisador, que data Aug. Ep. 19* no ano de 419, possvel que a

carta de Inocncio, Hier. Ep. D, seja na realidade Hier. Ep. 143, a qual certamente foi enviada neste mesmo ano3. A

nosso ver, nenhuma dessas hipteses plausvel, da concluirmos que quatro cartas trocadas pelos autores em seu

segundo perodo de correspondncia esto de fato perdidas.

Recebi, mediante nosso filho, meu conterrneo, o dicono Palatino, uma carta de tua
santidade, ao mesmo tempo em que recebi uma outra, a qual tu tiveste a dignidade de me enviar
pelo bispo Lzaro. Na realidade, eu j as havia recebido, primeiro pelo presbtero Orsio [...]
assim como havia recebido uma outra carta tua enviada pelo presbtero Inocncio [...]
(Aug. Ep. 19*,1)

1 Duval (1987) p. 507-508; Frst (2002) p. 23-24; Fry (2010) p. 415-418.


2 Sobre essa tese, v. Hennings (1994) p. 59;61.
3 Hennings (1994) p. 51-62.
)494
25

AGOSTINHO Ep. 19*


[416]

A carta Aug. Ep. 19*, semelhante a Aug. Ep. 180, tambm no encontra equivalente no corpus epistularum de

Jernimo. A razo de sua ausncia, porm, outra: ela pertence ao conjunto de vinte e nove missivas inditas

encontradas por Johannes Divjak no ano de 1975 em um manuscrito na Bibliothque Municipale de Marseilles, as quais

foram publicadas seis anos depois1. Escritas entre os anos de 414 e 418, este conjunto de cartas interessante na medida

em que ilumina a prpria viso que Agostinho tinha de si como homem pblico, na condio de bispo de Hipona,

enfatizando suas responsabilidades, tarefas, e posio de combate contra as heresias. Nas palavras do professor Peter

Brown, as cartas de Divjak nos mostram um Agostinho muito diferente [...] trata-se do velho bispo, agora forado a

carregar o fardo das preocupaes, como figura pblica e autor de fama internacional, na dcada final de sua vida [...]

engajado nos afazeres quotidianos, aparentemente interminveis, da Igreja Catlica na frica2.

O presente texto, inserido no contexto do pelagianismo como as demais cartas do segundo perodo de

correspondncia entre os autores, nos revela mais detalhes sobre o papel de Agostinho nesta polmica. A carta inicia

com comentrios sobre a correspondncia. Entrando na narratio, entrevemos um Agostinho algo esperanoso quanto ao

fato de Pelgio ter sido inocentado aps um Snodo da Igreja que ocorreu em Dispolis no ano de 415, palavras que se

do em meio a crticas que o bispo faz conduta do herege e a menes s obras tanto dele uma nota de defesa e o

De natura, ou Tratado sobre a natureza quanto suas o Tratado sobre a natureza e Graa de Cristo e de

Jernimo o Dilogo contra os pelagianos contra Pelgio. Agostinho conclui a carta mencionando que ele entrara

em contato com diversas autoridades da Igreja Oriental com o objetivo de expor os perigos do pelagianismo.

A carta Aug. Ep. 19* , dentre os tipos elencados por Pseudo-Demtrio, um exemplo de resposta3 . Entre as

situaes de Pseudo-Libnio, encontramos, uma vez mais, as do relato e da resposta4 ; dado o carter genrico desse

texto, no possvel delimitar nenhuma outra situao. Seja como for, esta carta nos permite localizar tambm ao

menos outras quatro cartas perdidas, citadas ao longo do exrdio, todas as quais supostamente tambm tratavam do

mesmo assunto, a polmica pelagiana5. O estilo aqui bastante simples e corrido, quase programtico: as frases so

curtas e diretas, vo se encaixando com o curso do ditado. Tpicos das cartas de amizade, com a exceo do elogio

Jernimo, esto ausentes. O tom oficioso, bastando ver a nfase de Agostinho em tua sanctitas e tua sinceritas,

apelativos do officium epistulare da Sacristia tetracentista. A frieza do bispo de Hipona nos leva a crer que ele havia

abandonado sua pretenso de firmar uma amizade mais slida com Jernimo.

)495
Por fim, importante comentar que Agostinho, na concluso dessa carta, se mostra especialmente preocupado

com o estado de seu dilogo epistolar com Jernimo, adicionando que escrevera algo manu sua, de prpria letra, a

fim de que o Estridonense reconhecesse a autenticidade da carta. Isso nos traz mente um preceito dado por Caio Jlio

Vtor no De epistulis: observabant veteres karissimis sua manu scribere vel plurimum subscribere, os antigos

costumavam escrever, ou ao menos assinar, de prprio punho a seus amigos mais queridos6 ; a medida to mais

urgente se nos lembrarmos dos tantos malentendidos e atrasos concernentes a Aug. Ep. 40, os quais deixaram Jernimo

irritado uma dcada antes (cf. Hier. Ep. 102,1 e 105,1-2;5).

Frst e Fry situam a carta Aug. Ep. 19* no ano de 4167, no calor da luta contra o pelagianismo, e ns

concordamos com eles. Hennings, por outro lado, a l antes como um balano da polmica pelagiana, argumentando

que a carta dataria do ano de 4198 , uma hiptese que nos faz questionar se o Estridonense estaria, ento, ainda vivo

quando a presente carta chegou a Belm.

Nossa traduo aqui baseada no texto publicado na edio de Carole Fry9 .

1A editio princeps de 1981, intitulada Sancti Aurelii Augustini epistulae ex duobus codicibus nuper in lucem prolatae,
volume 88 do CSEL, p. 91-93. A segunda edio saiu em 1987, com crtica de Y.-M. Duval, intitulada Oeuvres de Saint
Augustin, lettres 1*-29*, j com traduo para o francs. Para comentrios desse conjunto de cartas, v. Berrouard
(1981); Duval (1987) BA 46B p. 507-516.
2Brown (2013) p. 442-447 contextualiza os achados de Divjak (1981) e de Dolbeau (1990), este que descobriu, na
mesma poca e em um manuscrito na Stadtbibliothek em Mainz, sermes inditos de Agostinho.
3 Cf. Dem. 14.
4 Cf. Ps.-Lib. 23;70 e 27;74.
5 Conforme discutimos acima, em Cartas perdidas Hier. Ep. D, Aug. Ep. E, Hier. Ep. F, Hier. Ep. G.
6 Cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27.
7 Frst (1999) p. 181-183.
8 Hennings (1994) p. 52-62.
9 Fry (2010) p. 421-422 apud Divjak (1981) p. 91-93.

)496
Aug. ep. 19*

Domino merito in Christi visceribus honorando sancto fratri et compresbytero Hieronymu


Augustinus in Domino salutem.

1. Accepi per filium nostrum, civem meum, diaconum Palatinum litteras sanctitatis tuae simul
cum alia epistula quam per sanctum episcopum Lazarum dignatus es mittere. Iam vero
acceperam et prius per filium nostrum presbyterum Orosium, ex quo plura cognovi, et ante
paucos dies alias litteras tuas per Innocentium presbyterum missas; per quem iam rescripseram
non solum dilectioni tuae, sed aliis etiam quorum mihi epistulas reddidit et quibusdam qui per
eum mihi nihil scripserant rogans eum ut litterarum mearum exemplaria necessaria quae simul
ei edidi ad tuam perferat sanctitatem; in quibus non tacui quod dicendum putavi de nefario
errore hominum, quo non mediocriter perturbatur ecclesia.
2. Audivi sane iam usque in comitatum pervenisse libros tuos contra eandem pestem nuper
editos eisque innotescentibus multitudinem perversorum qui talia procaciter astruebant multum
coepisse iam minui, quia et ipse Pelagius aperte talia non audet defendere sed se ipsum, quod
illa non sentiat. Nam egit ut etiam ad me perveniret recens eius brevisque defensio, sicut scribit,
contra obiecta Gallorum quorum multa et gravia negat sua, quorumdam vero sensum latebrosa
calliditate permutat. Parum itaque non est adiuvante misericordia Dei, quod ea quae ab infirmis
credi metuimus iam nec ipse audet aperta fronte defendere. Vnde nec ipsum, quia homo est,
desperaverim veraci aliquando paenitentia confessurum in errore impio se fuisse versatum,
Domine merito in Christi visceribus honorande sancte Frater.
3. Nunc ergo occasione Lucae servi Dei perlatoris inventa quem sibi optime cognitum
Palatinus mihi diaconus intimavit eumque ad nos quantocius rediturum esse promisit ac pro illo
mihi fidem fecit, quod ei dubitare non deberem portandas quaslibet litteras tradere, misi per eum
librum eiusdem Pelagii quem mihi dederunt servi Dei Timasius et Iacobus quos per operulam
meam Dominus ab illo liberavit errore. Erant autem auditores eius multumque carissimi. Misi
etiam eum quo ei respondi (hoc enim me impendio rogaverant et hoc eis utile ac salubre esse
praevideram) ad eos sane scripsi non ad Pelagium, illius tamen operi verbisque respondens eius
adhuc tacito nomine, quoniam sicut amicum corrigi cupiebam, quod fateor adhuc cupio, quod
nec tuam sanctitatem ambigo optare.
4. Denique nunc scripsi et ad ipsum quod, nisi fallor, acerbe accepturus est, sed ei postea
fortasse proficiet ad salutem. Scripsi etiam de illo prolixam epistulam episcopis Eulogio et
Ioanni et breviter sancto presbytero Passerioni; quae ita in mandatis dedi ut ad tuam
)497
Aug. ep. 19*
sinceritatem omnia perferantur. Quaecumque autem mihi occasio proxima occurrerit omnium
earumdem epistularum exemplaria manu mea subnotata, quam confido tibi esse notissimam,
tuae germanitati, adiuvante Domino, curabo dirigere ut scias mihique rescribas utrum ad te non
solum cuncta sed etiam integra et vera pervenerint.

)498
Aug. ep. 19*

Agostinho envia saudaes em nome do Senhor ao compresbtero1 Jernimo, senhor


merecidamente digno de honra nas vsceras de Cristo2 e irmo santo.

1. Recebi, mediante nosso filho, o dicono Palatino3, meu conterrneo, uma carta de tua
santidade, ao mesmo tempo em que recebi uma outra, a qual tu tiveste a dignidade de me enviar
pelo bispo Lzaro4. Na realidade, eu j as havia recebido primeiro por nosso filho, o presbtero
Orsio5 (atravs do qual eu me informei de mais coisas), assim como, j h alguns dias, uma
outra enviada pelo presbtero Inocncio6 ; atravs dele eu j reescrevi no s a teu amor7, mas
tambm a outras pessoas (cujas cartas8 ele me trouxe), atravs de algumas das quais (que nada
haviam me escrito por intermdio dele) eu pedia que ele fizesse chegar tua santidade as cpias
necessrias dessas minhas cartas que eu lhe havia ento editado; nelas, eu no deixei de dizer o
que julguei necessrio sobre o erro nefasto daqueles homens9 , com o qual no por pouco que a
Igreja se incomoda.
2. Ouvi dizer, ainda, que chegaram corte10 livros teus11 , recentemente publicados, contra a
mesma peste e que, graas circulao dos mesmos, a multido de homens perversos que
tramavam descaradamente tais coisas comeou a diminuir muito, pois o prprio Pelgio12 no
ousa mais as defender abertamente, mas antes busca defender a si mesmo, alegando que no
mais pensa daquela maneira. Ele at fez com que me chegasse seu breve e tambm recente
discurso de defesa13 (assim ele o chama) contra as objees dos gauleses, muitas das quais,
inclusive as mais graves, ele nega serem suas; de algumas ele at chega a mudar o sentido por
meio de uma artimanha furtiva14. Igualmente, no pouco o que acontece com o auxlio da
misericrdia de Deus, pois ideias que, temamos, poderiam ser tomadas pelos mais crdulos,
nem o prprio Pelgio continua a defend-las de peito aberto. A partir da, eu no quero perder
as esperanas que ele mesmo afinal, ele humano venha a confessar, um dia, na
verdadeira penitncia, que sustentou uma falta pecaminosa, senhor merecidamente digno de
honra nos membros de Cristo, irmo santo.
3. Agora, ento, tendo encontrado uma oportunidade em Lucas15 , servo de Deus e portador de
cartas foi o dicono Palatino (ele o conhece muito bem) que o introduziu a mim e prometeu-
me que ele voltaria at ns o quanto antes, e, em defesa deste, garantiu-me que eu no deveria
hesitar em lhe entregar quaisquer cartas para serem transportadas , mandei por ele o livro16 do
mesmo Pelgio, o qual me foi dado por Timsio e Tiago17 , servos de Deus; o Senhor livrou-lhes,
atravs de uma obrinha minha18, daquele erro. Eles eram, porm, seus espectadores19, e muito
)499
Aug. ep. 19*
queridos. Mandei tambm esse livro20 em que eu o refutei afinal, eles haviam me pedido para
cuidar disso, e eu previra que isso lhes seria til e saudvel; evidente tambm que foi a eles que
escrevi e no a Pelgio, respondendo, porm, obra e s afirmaes deste, mas ainda mantendo
o seu nome em silncio, pois desejava que ele fosse corrigido como um amigo (algo que,
confesso, ainda desejo, e no duvido ser essa tambm a vontade da tua santidade)21.
4. Por fim, a ele eu agora escrevi alguma coisa22 que, salvo engano, ele <Pelgio> tambm vai
receber de m vontade, mas que talvez lhe ser til para a salvao no futuro. Escrevi, ainda,
uma longa carta23 sobre ele aos bispos Eulgio24 e Joo25 , e brevemente ao santo presbtero
Passerio26; dei ordens expressas que todas elas chegassem at a tua santidade. Enfim, qualquer
oportunidade prxima que me ocorrer de cuidar para que todas cpias de minhas cartas sejam
assinadas com minha letra27 (que, confio, te imediatamente reconhecvel), atentarei em
encaminh-las, com a ajuda do Senhor, tua irmandade, para que saibas e me respondas se elas
te chegaram no apenas em totalidade, mas, ainda, completas e verdadeiras.

)500
Aug. ep. 19*
NOTAS

1 Compresbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.


2 No latim, in Christi visceribus, nas vsceras de Cristo; v. supra Aug. Ep. 82, n. 1.
3 Palatino, dicono em Hipona, conterrneo de Agostinho. Palatino foi o destinatrio da carta Aug. Ep. 218, mas dele
nada mais se sabe. Palatino, cf. PCBE 1-3 p. 808-809 Palatinus 3, p. 809; v. Frst (2002) p. 23 n. 25. Para o cargo de
diaconus, Hier. Ep. 102, n. 2.
4 Trata-se provavelmente de Lzaro (? - 441), bispo de Aix, antiga cidade de Aquae Sextiae, que chefiou, ao lado de
Hero de Arles (? - ca. 417), o Snodo de Dispolis em 415, no qual Pelgio foi inocentado (cf. Aug. Gest. Pelag. 2,62);
v. Brown (2013) p. 358-364. Lzaro de Aix, v. Frst (2002) p. 23 n. 26. Para o cargo de episcopus, v. supra Aug. Ep. 28,
n. 6.
5 Paulo Orsio, v. supra Aug. Ep. 166, n. 4. Orsio havia trazido a carta Hier. Ep. 134 a Agostinho.
6Inocncio era um mensageiro que levava cartas entre a frica, o Oriente e Roma; a ele foram confiadas as cartas Hier.
Ep. D e Aug. Ep. E, hoje perdidas, e Hier. Ep. 143 a Agostinho e Alpio, Hier. Ep. 152 a Riprio e Hier. Ep. 154 ao papa
Bonifcio I. Inocncio, cf. PCBE 1 p. 604-605 Innocentius 9. V. Frst (2002) p. 23, n. 24.
7Segundo os pesquisadores modernos, todas as cartas mencionadas por Agostinho, as quais Hier. Ep. D, F e G e Aug.
Ep. E no exrdio esto perdidas (mas possvel que uma delas fosse Hier. Ep. 134).
8Estas cartas tambm esto perdidas, a no ser que Agostinho se refira carta Aug. Ep. 179 enviada aos bispos Joo de
Jerusalm e Eulgio de Cesareia, conforme confabula Frst (2002) p. 79, n. 244.
9 No latim, nefarius error hominum, referncia aos pelagianos (v. supra Hier. Ep. 134, n. 9).
10O vocbulo latino comitatus refere-se a um grupo que se rene em um cenculo ou segue uma comitiva. Na poca de
Agostinho, o termo aparece no raro como comitatus imperii, a corte romana, que ento se encontrava em Ravena (esse
sentido poltico j se encontra em Tac. H. 2,65). Traduzimos como corte, de acordo com as opes de Frst (2002) p.
445, que o traduz como Kaiserhof, e Fry (2010) p. 424, n. 16, que o verte para Cour; porm, no sabemos se o
comitatus referir-se-ia antes ao cenculo que acompanhava Agostinho em Hipona, ou prpria corte imperial em
Ravena, como acredita Fry.
11 Trata-se do dilogo contra os pelagianos, v. supra Hier. Ep. 134, n. 8.
12 Pelgio, v. supra Hier. Ep. 134, n. 9. O pargrafo alude ao Snodo de Dispolis em 415, presidido por Lzaro e Hero;
v. infra Hier. Ep. 143, n. 15.
13Esta defensio, discurso de defesa, cujo ttulo na realidade chartula defensionis, nota de defesa a chartula,
diminutivo de charta, indica primeiro que o documento era nico, provavelmente uma folha s; alm disso, chartula era
um termo que indicava folhinha ou rascunho" na Antiguidade Tardia figurava um Pelgio retratando-se das
acusaes dos bispos gauleses, ou seja, de Hero de Arles e Lzaro de Aix, mencionados anteriormente. O livro no
sobreviveu, mas dele h meno aqui e em Aug. Ep. 179,7 e Gest. Pelag. 57. V. Frst (2002) p. 444, n. 776; para a
chartula, v. Arns (2007) p. 22-24.
14 Em latim, latebrosa calliditas. Originalmente, latebrosus aquilo que escondido do pblico por no ter boa
reputao; trata-se de um adjetivo usado amide como adjunto de prostbulos (cf. Plaut. Bacch. 3,3,26; Cic. Sest.
59,126; Liv. 21,54; Amm. 14,2,2). Calliditas vem de callidus, um espertalho ou malandro, isto , uma pessoa ou,
por derivao, uma coisa ardilosa (cf. Plaut. Bacch. 4,4,4; Ter. And. 3,4,10; Cic. Clu. 65,183; Liv. 38,44,1). A expresso
tem significado inegavelmente negativo, da nossa traduo por artimanha furtiva.
15 Este Lucas foi encarregado de levar Aug. Ep. 19* a Jernimo e tambm, alguns anos atrs, Aug. Ep. 179 a Joo de
Jerusalm e Eulgio de Cesareia, e nada mais sabemos sobre sua vida. Talvez ele tenha sido o mensageiro de Aug. Ep.
177 ao papa Inocncio e Aug. Ep. 178 a Hilrio. Duval (1987) BA 46B, p. 511-512 acredita que Lucas tambm teria
levado a Jernimo os livros que Agostinho menciona a seguir. Lucas, cf. PCBE 1 p. 645 Lucas; v. Frst (2002) p. 73, n.
223. A seguir, o portador de cartas traduo para perlator [litterarum] algo prximo do nosso carteiro; o termo
sinonmico de baiulus litterarum (v. supra Hier. Ep. 103, n. 6).
16 Provvel meno ao tratado sobre a natureza, De natura, escrito em 412-414 por Pelgio. Este livro no chegou
integralmente at ns.

)501
Aug. ep. 19*

17Timsio e Tiago eram seguidores de Pelgio. A eles, Agostinho dedicou seu De natura et gratia ad Timasium et
Iacobum contra Pelagium. Timsio e Tiago haviam se correspondido anteriormente com o bispo em Aug. Ep. 168, carta
em que agradeceram a dedicatria do tratado (cf. Aug. Gest. Pelag.48; Ep. 177,6). Timsio e Tiago, cf. PCBE 1 p. 1112
Timasius 2 e p. 576 Iacobus 2. V. Frst (2002) p. 446, n. 784.
18A operula mea, obrinha minha, refere-se ao tratado sobre a natureza e a graa a Timsio e Tiago, De natura et
gratia ad Timasium et Iacobum contra Pelagium [PL 44,247-290], no qual Agostinho refutava as concluses de Pelgio
no De natura.
19 O termo latino auditor; v. supra Hier. Ep. 126, n. 22.
20 Isto , o De natura et gratia.
21Cf. Aug. Retract. 2,33;42. Frst (2002) p. 446-447, n. 786 indica que Agostinho abandonara esta inteno, passando a
atacar abertamente Pelgio em obras posteriores, a partir do terceiro livro do De peccatorum meritis meritis et
remissione et de baptismo parvolurum [PL 44,109-200] (cf. Aug. Pecc. Mer. 3,1;5;6;18).
22 No podemos saber ao certo o que seria esse quod, alguma coisa. Agostinho talvez tivesse encaminhado Aug. Ep.
175, 176 177 a Pelgio, as quais o Tagastense escrevera ao papa Inocncio I (? - 417) em ocasio do Snodo de
Dispolis de 415 Duval (1966) BA 46B, p. 512-515 argumenta em favor disso. provvel que se trate dos dois
livros sobre a Graa de Cristo e sobre o Pecado Original contra Pelgio e Celestino, de Gratia Christi et de Peccato
Originali contra Pelagium et Caelestinum libri duo [PL 44,359-410], publicado no ano de 418. Frst (2002) p. 447, n.
787 nota a possibilidade de ter-se tratado de uma carta a Pelgio, semelhante a Aug. Ep. 146 enviada em 410 ao monge
breto, e que estaria perdida.
23 Trata-se muito provavelmente de Aug. Ep. 179 (apud Baxter (1930) p. 306-323), carta enviada aps o Snodo de
Dispolis a Joo de Jerusalm, bispo que protegia Pelgio. Divjak (1981) p. LXII supe ser outra carta; Frst (1999) p.
211-212 d a possibilidade de serem duas cartas, uma a Eulgio e outra a Joo. Seja como for, possvel que Agostinho
tenha enviado o texto mencionado a Jernimo a fim de que este a traduziesse para o grego, pois nela ele havia dito: per
interpretem audis litteras meas, tu escutas minhas palavras atravs de um intrprete (cf. Aug. Ep. 179,5).
24Eulgio (fl. sec. IV - V d. C.), bispo de Cesareia, dirigiu, ao lado de Lzaro de Aix e Hero de Arles, o conclio de
Diosplis em 415 (cf. Aug. Gest. Pelag. 9; C. Iulian. 1,19,32). V. Frst (2002) p. 448, n. 788.
25Joo II (ca. 356 - 417), bispo de Jerusalm, havia protegido Pelgio no Snodo de Dispolis; a ele Agostinho apelou,
na carta Aug. Ep. 179, a reconsiderar tal deciso. A morte de Joo de Jerusalm em 417 abriu caminho para a
condenao final do monge breto em 418, no XVI Conclio de Cartago, sob o comando do papa Zsimo (? - 418).
Anos antes, Jernimo havia tido uma contenda com Joo e seu protegido Rufino, em idos da dcada de 390, devido
questes relevantes obra de Orgenes; v. Kelly (1975) p. 195-209 e Brown (2013) p. 357-358. Joo de Jerusalm, cf.
LThK V p. 918-919; NDPAC p. 2240-2241. V. Frst (2002) p. 448, n. 789.
26 Talvez Passerio, o Anacoreta (fl. sec. IV - V d.C.), um monge taumaturgo do Egito, muito famoso na poca de
Agostinho. possvel que Joo de Jerusalm, um dos chefes do bispado do Oriente, o conhecesse. Todavia, o mais
plausvel que seja outro Passerio, que por sua vez havia ajudado Paulo Orsio quanto este esteve no Oriente (cf. Or.
Lib. Apol. 6,1; 7,6). V. Frst (2002) p. 449, n. 790. Se Agostinho lhe enviou uma carta em especfico, esta no chegou
at ns.
27No latim, manu mea subnotata exemplaria, cpias assinadas de mo prpria, ou com a prpria letra. Trata-se de
uma referncia subscriptio (v. supra Aug. Ep. 40, n. 2). No fortuita a afirmao de Agostinho: aps a srie de mal-
entendidos que marcou o primeiro perodo de sua correspondncia com Jernimo (cf. Hier. Ep. 102,1), o bispo de
Hipona tomar providncias para que todas as cartas que enviar ao monge de Belm sejam autenticadas, e cheguem
antes a ele.

)502
26

Jernimo Ep. 141 / Agostinho Ep. 195


[418]

A breve carta Hier. Ep. 141 condensa, em um nico pargrafo, um exrdio e uma concluso, sendo desprovida

de narrationes quaisquer. Trata-se de uma carta de louvor1 na listagem de Pseudo-Demtrio, tipo que encontra situao

paralela2 em Pseudo-Libnio. Os editores acreditam que esse bilhete foi enviado a Agostinho assim que Jernimo soube

da condenao de Pelgio e Celstio por meio da Epistula tractatoria do papa Zsimo, promulgada em 418, aps o XVI

Conclio de Cartago que ocorreu no mesmo ano3. A ela, ainda seguiria em anexo um outro bilhete, a carta Hier. Ep. 142,

que poderia bem servir como uma narratio adicionada posteriormente a Hier. Ep. 141, talvez s pressas e s vezes de

subscriptio; a traduo desta outra carta est adiante em nosso trabalho.

O presente texto um bilhetinho de louvor a um Agostinho que, nas palavras de Jernimo, celebrado no

mundo inteiro como aquele que fundou novamente a f catlica, imagem se assemelha quela que o historiador

Suetnio atribuiu a Augusto; mais que um segundo Rmulo, porm, Agostinho surge como um segundo apstolo

Paulo, consagrando sua estatura na histria do cristianismo aps derrotar o pelagianismo e assim abrir caminho para a

fundatissima fides, a f de fundamento mais slido, se estabelecer como o cristianismo ocidental.

Jernimo no menciona o mensageiro dessa carta.

1 Cf. Ps.-Dem. 10.


2 Cf. Ps.-Lib. 30;77.
3 Hennings (1994) p. 49; Frst (2002) p. 452-453, n. 803; Fry (2010) p. 437-438.
)503
Hier. ep. 141

Domino sancto ac beatissimo papae Augustino Hieronymus.

1. Omni quidem tempore beatitudinem tuam, eo quo decet honore, veneratus sum, et
habitantem in te dilexi Dominum Salvatorem: sed nunc, si fieri potest, cumulo aliquid addimus
et plena complemus, ut absque tui nominis mentione ne unam quidem horam praeterire
patiamur; qui contra flantes ventos ardore fidei perstitisti, maluistique, quantum in te fuit, solus
liberari de Sodomis, quam cum pereuntibus commorari. Scit quid dicam prudentia tua. Macte
virtute, in orbe celebraris. Catholici te conditorem antiquae rursum fidei venerantur atque
suscipiunt, et (quod signum maioris gloriae est) omnes haeretici detestantur et me pari
persequuntur odio, ut quos gladiis nequeunt, voto interficiant. Incolumem et mei memorem te
Christi Domini clementia tueatur, domine venerande et beatissime papa.

)504
Hier. ep. 141

Jernimo ao padre1 Agostinho, senhor santo e muitssimo abenoado.

1. Em todo e todo o tempo eu venerei tua beatitude com a devida honra, e amei o Senhor
salvador que habita em ti, mas, agora, se nos for possvel, somamos algo ao monte, e enchemos
o que pleno; no vamos deixar passar um nico momento sem a meno de teu nome: tu, que
contra violentas ventanias2, e no ardor na f, aguentaste firme, e preferiste com o mximo de
tuas foras livrar-te sozinho de Sodoma a permanecer com os que pereciam3 . Tua prudncia
sabe o que quero dizer. Alegra-te, tu s celebrado no mundo inteiro! Os cristos fiis4 te
veneram e te admiram como o refundador da antiga f5 e (o que sinal de glria ainda maior)
todos os hereges te detestam e te perseguem como a mim com tanto dio que, embora no
consigam te matar com a espada, fazem-no pela vontade6 . Que a serenidade de Cristo te proteja
inclume, e lembra-te de mim, senhor digno de venerao, e muitssimo abenoado padre7!

)505
Hier. ep. 141
NOTAS

1 Papa, v. supra Hier. Ep. 102, n. 1.


2 A imagem dos flantes venti semelhante aos venti contrarii de Hier. Ep. 138, enviada a Riprio no ano de 417, e faz
referncia polmica pelagiana. V. Frst (2002) p. 450, n. 792; Fry (2010) p. 434, n. 8.
3Aluso ao captulo 19 do livro do Gnesis, em que L alertado por dois anjos a fugir de Sodoma com sua famlia.
Citamos uma passagem: e aconteceu que, tirando-os fora, disse, escapa-te por tua vida; no olhes para trs de ti, e no
pares em toda esta campina; escapa l para o monte, para que no pereas. (cf. Gen 19:17).
4 O adjetivo em latim catholicus, v. supra Aug. Ep. 40, n. 37.
5 Em latim, conditor antiquae rursum fidei. Ao utilizar o adjetivo antiquus, Jernimo teria em mente tanto a velha
fascinao dos romanos com um passado idealizado e fantsmico, portador do brio e virtude de um Augusto (cf. Suet.
Aug. 5-7), e da pureza de um Cincinato (cf. Liv. 3,12;19;26), quanto a austeridade e retido das primeiras comunidades
crists, recuperadas, aos olhos do Estridonense, pela vitria de Agostinho contra as heresias. A comparao faz elogio,
enfim, conquista da ortodoxia catlica representada pela doutrina agostiniana contra sua principal rival na poca, o
pelagianismo. V. Fry (2010) p. 434, n 11.
6 Frst (2002) p. 451, n. 793 aponta que esta passagem faz provvel meno a uma investida de seguidores de Pelgio
contra Jernimo em 416, ocasio na qual seu mosteiro foi incendiado. Agostinho recorda esse ataque dos pelagianos no
relatrio sobre as atividades de Pelgio, De gestiis Pelagii (cf. Aug. Gest. Pelag. 66); Jernimo tambm menciona o
evento em duas cartas, uma endereada a Riprio (cf. Hier. Ep. 138) e outra a Donato (cf. Hier. Ep. 154,2); v. Kelly
(1975) p. 321-323.
7 Mais uma frmula de concluso, igual a Hier. Ep. 103,2, 115, 134,2 e 143,2.

)506
27

Jernimo Ep. 142 / Agostinho Ep. 123


[418]

Carente de salutatio, exrdio e tambm de concluso, a a carta Hier. Ep. 142 uma breve narratio, s vezes de

um simples bilhete enviado a Agostinho e possivelmente anexado carta Hier. Ep. 141 anterior (ou talvez como uma

continuao desta, adicionada posteriormente como uma subscriptio)1. Alguns manuscritos intitulam a presente carta

como ad ipsum, ao mesmo, adio que provavelmente foi feita por um copista. Os dados que temos no so

suficientes para concluir se ela se trata de uma carta em separado da anterior ou no, portanto. Todavia, o fato de esta

coda apresentar votos de boa sade (tpico que costuma vir nas conclusiones) poderia servir de argumento a favor de

que Hier. Ep. 141 e 142 so uma nica carta que acabou separada na tradio manuscrita.

Como na carta Hier. Ep. 141, a ocasio da missiva a condenao do pelagianismo no XVI Conclio de

Cartago em 418. Em Hier. Ep. 142, porm, vemos que a excomunho parece no ter intimidado os seguidores de

Pelgio: aparentemente, o herege ainda encontrava adeptos em Jerusalm, segundo indica uma metfora usada por

Jernimo. Alm disso, a meno que o autor faz ao Egito provavelmente tem relao com a fuga de Pelgio para essa

provncia, na qual o monge breto acabou se instalando sob a proteo de Cirilo (ca. 376 - 444), patriarca de

Alexandria, at sua morte. Devemos ento dat-la da primavera de 418, aps Pelgio ser expulso de Roma2 .

O presente texto no apresenta elementos suficientes para caracteriz-lo segundo um tipo epistolar de Pseudo-

Demtrio. O mais prximo seria aquele da carta alegrica3, cujo significado seria compreendido apenas pelo

destinatrio ou por um grupo seleto de pessoas. Encontrar paralelos entre as situaes de Pseudo-Libnio tambm

difcil, sendo a mais prxima a do enigma4, ou a de um simples relato, aqui metaforizado numa imagem bblica.

Ademais, a mensagem nos traz mente um preceito dado por Jlio Vtor: as cartas podem ser obscuras a um pblico ao

qual ela no se destina5. Assim, Agostinho talvez a teria compreendido de imediato, mas ns no temos essa sorte.

1Como defende De Bruyne (1932) p. 245: mon avis il faut suivre les manuscrits jusquau bout: 123 nest autre chose
quun postscriptum de 195; Fry (2010) p. 441, n. 2. Para a viso oposta, Goldbacher (1923) vol. II, p. 745 e vol. IV, p.
215-216 app. crit. No mais, Hennings (1994), p. 49-50 e Frst (2002) p. 24 esto convictos de que se tratavam de duas
cartas distintas.
2 Ora, caso contrrio a imagem da fuga para o Egito no faria sentido, no nosso entender. Posicionamo-nos assim a
favor de Fry (2010) p. 437-438 e contra Hennings (1994) p. 49-50 e Frst (2002) p. 452-453, n. 803, ambos os quais
acreditam que a referncia ao conclio de Jerusalm, antes da condenao final de Pelgio.
3 Cf. Ps.-Dem. 15.
4 Cf. Ps.-Lib. 41.
5 Cf. Iul. Vit. Ars rhetorica 27.

)507
Hier. ep. 142

1. Multi utroque claudicant pede, et ne fractis quidem cervicibus inclinantur, habentes affectum
erroris pristini, cum praedicandi eandem non habeant libertatem. Sancti fratres, qui cum nostra
sunt parvitate, praecipue sanctae ac venerabiles filiae tuae, suppliciter te salutant. Fratres tuos,
dominum meum Alypium, et dominum meum Evodium, ut meo nomine salutes, precor coronam
tuam. Capta Hierusalem tenetur a Nabuchodonosor, nec Ieremiae vult audire consilia: quin
potius Aegyptum desiderat, ut moriatur in Taphnes, et ibi servitute pereat sempiterna.

)508
Hier. ep. 142

1. Muitos mancam dos dois ps1 e, embora seus pescoos j estejam quebrados2 , enforcam-se
obstinadamente no vcio de um erro caduco, pois no tm a liberdade de pregar. Os irmos
santos que esto ao lado de nossa pequenez, principalmente tuas santas e venerveis filhas3, te
mandam saudaes e splicas. Ao teus irmos, ao meu querido senhor Alpio4 e ao meu querido
senhor Evdio5, peo tua coroa6 que lhes d saudaes em meu nome. Jerusalm capturada
sitiada por Nabucodonosor, e no quer escutar as advertncias de Jeremias; prefere seno ansiar
pelo Egito, para morrer em Tafnes, e l perecer na escravido eterna7 .

)509
Hier. ep. 142
NOTAS

1Jernimo havia usado a mesma imagem do claudicans utroque pede no tratado que dedicou a Pamquio contra Joo
de Jerusalm, em latim contra Ioannem Hierosolytitanum ad Pammachium liber unus [PL 23,355-396a]. A origem
dessa expresso, porm, no se d imediatamente. Fry (2010) p. 441, n. 3 menciona, atravs da Bblia de Jerusalm, a
imagem de Israel danando ora para Jav, ora para Baal (cf. 1 Reg 18:21), mas acha que ela no suficiente,
adicionando que o mancar dos dois ps seria antes uma ironia frente teimosia dos pelagianos. Kelly (1975) p.
325-326 acredita que a referncia a Prulio, que substituiu Joo II no bispado de Jerusalm e mostrava-se ambguo
quanto ao pelagianismo.
2 A imagem, cr Fry (2010) p. 441, n. 3, semelhante do verso 98 da primeira stira de Prsio, quidnam igitur
tenerum et laxa cervice legendum?, algo ento mole a ler, coa nuca relaxada? (cf. Pers. 1,98).
3 Muito provavelmente as santas filhas das quais fala Jernimo so Eustquio e Paula a Jovem; v. supra Hier. Ep. 102,
n. 9 e Hier. Ep. 134, n. 11.
4 Alpio, ento j bispo de Tagaste, v. supra Aug. Ep. 28, n. 5.
5Evdio (ca. 358 - ca. 424), antigo agens in rebus, um membro da polcia secreta romana. Embora fosse conterrneo de
Agostinho, este o conhecera apenas em Milo, aps seu retorno de Cassiciacum, em finais da dcada de 380 (cf. Aug.
Conf. 9,8,17 e 9,12,31). Evdio foi posteriormente nomeado bispo de Uzala, na Tunsia, cargo que chefiou at sua
morte. Seu papel na vida de Agostinho narrado por Brown (2013) p. 120-124, 196, 270 e 404. Evdio de Uzala, cf.
PCBE 1 p. 371 Evodius 1; PLRE 1 p. 366-373 Evodius 1; LThk III p. 1069; NDPAC p. 1891.
6O apelativo corona tua pertence ao vocabulrio do martirismo. Originalmente, tratava-se de uma distino militar
pag; aqui, ela distingue o mrtir que se sacrifica em nome da ptria crist. Seu significado primeiro j havia j diludo
na poca de Agostinho e Jernimo: os cristos j falam, desde os tempos de Cipriano, da corona fidei, coroa da f (cf.
Cipr. Ep. 58,603). Cf. Blaise p. 224 corona; v. Fry (2010) p. 442, n. 6.
7 A concluso desta carta faz referncia aos captulos 42-43 do livro do profeta Jeremias, passagem em que este tenta
dissuadir os habitantes de Jerusalm de fugir para o Egito (cf. Jer 42:15-16), onde morreriam espada, de fome e de
peste (cf. Jer 42:22). O povo de Israel, a despeito do que disse o profeta (cf. Jer 43:2-3), acabou por entrar em Tafnes e
l foi massacrado e aprisonado por Nabucodonosor (cf. Jer 43:7-13), dando incio ao longo perodo do cativeiro da
Babilnia. Alguns pesquisadores, quais Lietzmann (1930) p. 290 e OConnell (1979) p. 361, acreditam que a imagem
diz respeito ao saque de Alarico em Roma, atrasando a datao da carta para 410 e assim preferindo o ordo epistularum
agostiniano, no qual Hier. Ep. 142 equivale a Aug. Ep. 123. O mais provvel que a imagem faa aluso fuga de
Pelgio para o Egito, como argumentamos na introduo a esse texto.

)510
28 e 29

CARTAS PERDIDAS
Jernimo scripta
Agostinho (e Alpio) Ep. I
[418]

A existncia de duas cartas perdidas, supostamente enviadas no ano de 418 uma por Jernimo a Agostinho, e

outra por Agostinho a Jernimo, atestada no incio de Hier. Ep. 1431 . A meno a Aniano de Celeda infere uma delas,

Aug. Ep. I, em que Agostinho e Alpio teriam pedido explicaes a Jernimo sobre esse seguidor de Pelgio; por sua

vez, a afirmao de que Inocncio, presbtero residente em Belm e colega de Jernimo, no quisera levar os escritos do

Estridonense a frica no ano anterior pode ser referncia suposta Hier. scripta; ou quem sabe s cartas imediatamente

anteriores de Jernimo, Hier. Ep. 141 e 142; ou at a Hier. Ep. 143, uma nica mensagem cujo exrdio poderia ter sido

reescrito apenas na ocasio de seu envio; ou mesmo a outras obras quaisquer: consideremos sua existncia meramente

hiptetica, portanto..

O santo presbtero Inocncio, que portador destas palavras, no ano passado, e como se
no pretendesse voltar de maneira alguma a frica, no levou consigo meus escritos para vossa
dignidade [...] Agradeo, porm, a Deus, que aconteceu que vs enfim vencestes nosso silncio com
vossas cartas [...]
Agora, quanto a perguntares, por outro lado, se respondi aos livros de Aniano, pseudo-
dicono de Celeda [...]
(Hier. Ep. 143,1-2)

1 Hennings (1994) p. 50-51; Frst (2002) p. 25; Fry (2010) p. 443, 445.

)511
30

Jernimo Ep. 143 / Agostinho Ep. 202


Jernimo a Agostinho e Alpio
[419]

A carta Hier. Ep. 143 foi confiada ao presbtero Inocncio, que ento havia chegado de Alexandria1 , para ser

levada at Hipona. No presente texto Jernimo uma vez mais aborda o problema do pelagianismo, desta vez em meno

a dois seguidores do monge breto: Celstio, mencionado no exrdio, e Aniano de Celeda, mencionado na narratio.

Ainda que Pelgio tivesse sido condenado no XVI Conclio de Cartago em 418, sua doutrina ainda encontrava adeptos

pelo mundo romano, fato que faz o Estridonense advertir seu interlocutor a no superestimar sua atuao contra os

herticos. Jernimo acaba por concluir sua ltima missiva a Agostinho (e a Alpio, em conjunto) com os votos de boa

sade, como preceitua o officium epistulare. A meno morte de Eustquio, que se deu no incio de 419, nos permite

datar essa carta neste mesmo ano2 .

Segundo Pseudo-Demtrio, essa carta seria um exemplo da resposta3; encontramos a mesma situao em

Pseudo-Libnio4 . H, ainda, uma imagem retirada da poesia clssica: atolar-se no mesmo lamaal, do Phormio de

Terncio. Tpicos, esto presentes o desejo pelo destinatrio, a meno ao mensageiro, o elogio dos correspondentes e

os votos de boa sade.

A carta Hier. Ep. 143 serve como um eplogo tanto da correspondncia mtua entre Jernimo e Agostinho

quanto da atuao do velho monge contra os pelagianos. Jernimo, que sempre tivera a sade frgil, viria a morrer

meses depois, aos 88 anos, concluindo uma vida dedicada s polmicas e batalha contra os herticos, mas que havia

retrado ao silncio nos finais da dcada de 380 e incio de 390; um silncio que, o autor parece confessar, foi enfim

vencido, aps muita resistncia de sua parte, pelas cartas de Agostinho.

1 Frst (1999) p. 186.


2 Hennings (1994) p. 51-52; Fry (2010) p. 447-448. possvel que Hier. Ep. 143 seja a carta perdida Hier. Ep. D
(tambm levada por Inocncio), se aceitarmos a datao que Hennings prope para Aug. Ep. 19*, em 419.
3 Cf. Ps.-Dem. 14.
4 Cf. Ps.-Lib. 23;70.
)512
Hier. ep. 143

Dominis vere sanctis atque omni affectione ac iure venerandis Alypio et Augustino episcopis
Hieronymus in Christo salutem.

1. Sanctus Innocentius presbyter, qui huius sermonis est portitor, anno praeterito, quasi
nequaquam in Africam reversurus, mea ad dignationem vestram scripta non sumpsit. Tamen
Deo gratias agimus, quod ita evenit, ut nostrum silentium vestris epistulis vinceretis. Mihi enim
omnis occasio gratissima est, per quam scribo vestrae reverentiae; testem invocans Deum, quod
si posset fieri, assumptis alis columbae, vestris amplexibus implicarer; semper quidem pro
merito virtutum vestrarum, sed nunc maxime, quia cooperatoribus et auctoribus vobis, haeresis
Caelestiana iugulata est, quae ita infecit corda multorum, ut, cum superatos damnatosque esse se
sentiant, tamen venena mentium non omittant, et, quod solum possunt, nos oderint, per quos
putant se libertatem docendi haereseos perdidisse.
2. Quod autem quaeritis, utrum rescripserim contra libros Anniani, pseudodiaconi Celedensis,
qui copiosissime pascitur, ut alienae blasphemiae verba frivola subministret, sciatis me ipsos
libros in schedulis missos a sancto fratre Eusebio presbytero suscepisse, non ante multum
temporis; et exinde vel ingruentibus morbis, vel dormitione sanctae et venerabilis filiae vestrae
Eustochii, ita doluisse, ut propemodum contemnendos putarem. In eodem enim luto haesitat, et
exceptis verbis tinnulis atque emendicatis, nihil aliud loquitur. Tamen multum egimus, ut dum
epistulae meae respondere conatur, apertius se proderet, et blasphemias omnibus patefaceret.
Quicquid enim in illa miserabili Synodo Diospolitana dixisse se denegat, in hoc opere
profitetur; nec grande est ineptissimis naeniis respondere. Si autem Dominus vitam tribuerit, et
notariorum habuerimus copiam, paucis lucubratiunculis respondebimus; non ut convincamus
haeresim emortuam sed ut imperitiam atque blasphemiam nostris sermonibus confutemus.
Meliusque hoc faceret sanctitas tua; ne compellamur contra haereticum nostra laudare. Sancti
filii communes, Albina, Pinianus et Melania plurimum vos salutant. Has litterulas de sancta
Bethlehem, sancto presbytero Innocentio tradidi perferendas. Neptis vestra Paula miserabiliter
deprecatur, ut memores eius sitis, et multum vos salutat. Incolumes vos et memores mei, Christi
Domini nostri tueatur clementia, domini vere sancti atque omnium affectione venerabiles patres.

)513
Hier. ep. 143

Jernimo envia saudaes em nome de Cristo aos bispos Alpio1 e Agostinho, senhores
verdadeiramente santos e louvveis com toda afeio e justia.

1. O santo presbtero Inocncio2 , que portador destas palavras, no ano passado, como se no
pretendesse voltar de maneira alguma a frica, no levou consigo meus escritos3 para vossa
dignidade. Agradeo a Deus, porm, que aconteceu de vs terdes enfim vencido o nosso silncio
com vossas cartas4 . Afinal, considero preciosssima toda ocasio em que escrevo a vossa
reverncia, tendo Deus como testemunho; se fosse possvel, eu criaria as asas de um pombo e
me jogaria em vossos braos5 , sem dvidas sempre em honra s vossas virtudes, mas sobretudo
agora que, graas a vossa cooperao e atuao, a heresia de Celstio6 foi degolada, essa que
infectou to gravemente os coraes de tantos; que, ainda que se apercebam dominados e
condenados, eles no escondem o veneno de sua conscincia e, s o que podem, continuam a
nos odiar; por nossa causa que eles julgam ter perdido a liberdade para pregar suas heresias.
2. Agora, quanto a perguntardes7 se respondi os livros de Aniano8, pseudo-dicono de Celeda,
homem que se empanturra de modo a dar palavras frvolas blasfmia de um outro: sabei que
eu recebi tais livros em folhas soltas9, no faz muito tempo, enviados por um irmo santo, o
presbtero Eusbio 10, e que ento, primeiro por ter adoecido continuamente11, depois em
decorrncia do falecimento da vossa santa e venervel filha, Eustquio12, fiquei to debilitado
que quase acabei por consider-los como de menor importncia. Ora, ele se atola no mesmo
lamaal13 e, exceto por algumas palavras estridentes e mendicantes, nada diz de novo. J ns
agimos com veemncia, para que ao tentar responder a minha carta14 ele assim desse as caras e
escancarasse essas blasfmias a todos. Ora, o que quer que negue ter dito naquele infeliz snodo
em Dispolis 15, ele torna manifesto nesta obra; no grande coisa responder a esses
choramingos desajeitados 16. Mas se o Senhor nos oferecer energia suficiente, e tivermos o
bastante de taqugrafos, responderemos no curso de poucas madrugadas, no para condenarmos
uma heresia j defunta, mas para afastarmos, atravs de nossas discusses, a ignorncia e a
blasfmia. E to melhor faria a tua santidade; no sejamos levados a louvar nossa atuao contra
o hertico17. Os filhos santos e leigos Albina, Piniano, e Melnia18 vos enviam calorosas
saudaes. Confiei essa cartinha para vos ser entregue diretamente da santa Belm pelo santo
presbtero Inocncio. Vossa neta Paula19 reza condoda para lembrar-vos dela e vos sada
calorosamente. Que a serenidade de Cristo Nosso Senhor vos proteja inclumes e lembrai-vos
de mim, senhores verdadeiramente santos, padres venerveis na afeio do mundo todo.
)514
Hier. ep. 143
NOTAS

1 Alpio, v. supra Aug. Ep. 28, n. 5. Para o cargo de episcopus, v. supra Aug. Ep. 28, n. 6. a primeira e nica carta,
alis, em que Jernimo se dirigir a Agostinho como bispo na salutatio; o monge j o chamara de bispo anteriormente,
porm, na narratio de Hier. Ep. 126,1.
2 Inocncio, v. supra Aug. Ep. 19*, n. 6. Para o cargo de presbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.
3 Provvel meno a uma carta perdida, Hier. scripta.
4 Provvel meno a uma carta perdida, Aug. Ep. I, que, como bem indica Fry (2010) p. 452, n. 8, est no plural por ter
sido supostamente autorada por Agostinho e Alpio. Levantamos a hiptese, porm, de que o vestrae epistulae pode ser
to-somente uma aluso ao conjunto de cartas enviado por Agostinho a Jernimo.
5 Cf. Ps 55:6 <55:7>, assim eu disse: Oh! quem me dera asas como de pomba! Ento voaria, e estaria em descanso.
O voo para abraar o correspondente que est distante, variante do desejo pela presena fsica do destinatrio (o ),
um tpico conhecido na epistolografia antiga (cf. Hier. Ep. 71,1 e Aug. Ep. 124,1); sobre isso, v. Thraede (1972).
6Celstio (fl. sec. IV - V d. C.), jurista da aristocracia romana, fora um discpulo de Pelgio condenado no XVI
Conclio de Cartago em 418, ocasio em que foi forado ao exlio (cf. Hier. Ep. 133,5; Aug. Grat. Chr. 2,13; Gest.
Pelag. 11,23; Ep. 157,3; 175,1; 176,3; 201,2). Perdemos seu trao aps 430, ano em que Agostinho morreu. Celstio, cf.
PLRE II p. 247 Caelestius; NDPAC p. 974-976. V. Frst (2002) p. 25, n. 31 e Brown (2013) p. 344-346 e 360-362.
7 Provvel meno a uma carta perdida, Aug. Ep. I.
8Aniano (? - 419), natural de Celeda (cidade provavelmente na regio onde hoje fica Veneza, na Itlia), foi tradutor das
homilias de Joo Crisstomo para o latim, e de uma refutao de Hier. Ep. 133. O contexto da carta o nico indcio de
sua relao com o pelagianismo. Na realidade, Aniano aparentemente fora inocentado no Snodo de Dispolis em 415,
mas no h provas de que ele estivera presencialmente no evento. Aniano de Celeda, cf. PCBE I p. 141-142 Annianus;
NDPAC p. 311; v. Frst (2002) p. 26, n. 34. Para diaconus o pseudodiaconus nada mais que uma ironia v. supra
Hier. Ep. 102, n. 2.
9 Jernimo afirma ter recebido os livros de Aniano em schedulae, folhas soltas. A schedula, que deu no ingls
schedule e na nossa cdula, era um pedao de papel em que se faziam rascunhos, geralmente usado como suporte
das notas estenogrficas do taqugrafo. Tratam-se, portanto, de cpias feitas s pressas e antes da publicao dos livros,
o que nos possibilita suspeitar ter havido espies de Jernimo no cenculo de Aniano. A etimologia do termo schedula
est no grego ou , originalmente um pedao de papiro (cf. Cic. Att. 1,20,7; Fam. 15,16,1; Is. Etym. 6,14,8).
Arns (2007) p. 24, a iniciar com uma citao de G. Bardy, menciona que as schedae ou schedulae so uma espcie de
rascunho; estas palavras designam o estado do manuscrito antes de sua transcrio definitiva [...] as schedulae recebem
a transcrio das notas do taqugrafo, e sero corrigidas antes de constiturem o manuscrito definitivo. No mais, no
sabemos que livro era esse de que fala Jernimo; Frst (1999) p. 209-210 d algumas hipteses.
10Eusbio de Cremona (? - ca. 420), correspondente de Jernimo, provavelmente um espio infiltrado no grupo de
Aniano. A Eusbio o Estridonense dedicou seus seis livros (inacabados) de comentrios ao profeta Jeremias,
Commentariorum in Ieremiam prophetam libri sex [PL 24,679-900c], e os quatro dos comentrios ao Evangelho de
Mateus, Commentariorum in Evangelium Matthaei libri quattuor [PL 26, 15-218d]. O presbtero Eusbio fora tambm
personagem importante na controvrsia origenista e na rixa de Jernimo com Rufino nos finais da dcada de 390 (cf.
Hier. Adv. Ruf. 3,4;20;33). Para um vis narrativo do papel desse personagem na vida de Jernimo, v. Kelly, p. 227-258.
Eusbio de Cremona, cf. LThK III p. 1010; NDPAC p. 1853-1854. V. Frst (2002) p. 456, n. 185.
11Jernimo sempre fora de sade frgil, mas seu estado piorou consideravelmente nos ltimos anos, a ler pelas suas
queixas em suas ltimas cartas; v. Kelly (1975) p. 324-332.
12 A morte de Eustquio (v. supra Hier. Ep. 102, n. 9) no fim de 418 ou incio de 419 foi a grande tragdia dos anos
finais de Jernimo (cf. Hier. Ep. 151,2; 154,2), a qual narrada por Kelly (1975) p. 328-329.
13 A expresso in eodem luto haesitare, atolar-se no mesmo lamaal, vem do verso 780 do Phormio de Terncio, quid
fiet? in eodem luto haesitas; vorsuram solves / Geta, que ser? ts preso no mesmo lodo, Geta, / sai da! Ela tpica,
como indica Otto p. 201-202 lutum 3
14Meno carta Hier. Ep. 133 enviada a Ctesifo, na qual o monge de Belm menciona o envolvimento de Aniano no
Snodo de Dispolis em 415 (apud Labourt (1963) vol. VIII, p. 48-68). A resposta de Aniano a Jernimo no
sobreviveu.

)515
Hier. ep. 143

15 Dispolis, de fundao grega, ficava na Lida, atual Lod, na regio prxima a Tel-Aviv, na Judeia. Frst (2002) p. 458,
n. 820 e Fry (2010) p. 454, n. 23 chamam a ateno para a ausncia de provas da participao de Aniano neste Snodo,
que ocorreu no ano de 415 em ocasio da polmica pelagiana, e no qual o prprio monge da Bretanha participara (e fora
inocentado). Tanto Pelgio quanto Aniano foram posteriormente condenados no ano de 418, durante o XVI Conclio de
Cartago. Snodo de Dispolis, cf. NDPAC p. 1447-1448. XVI Conclio de Cartago, cf. NDPAC p. 887-888. Ainda sobre
o Snodo, v. Chadwick (1967) p. 229-231.
16No latim, ineptissimae naeniae, nnias desajeitadas ou ineptas. A , latinizado naenia, era originalmente um
canto fnebre, subgnero da poesia elegaca em que se cantavam as glrias e honras dos homens, em ocasio de seus
funerais (cf. Cic. Leg. 2,24,62); dela vem nosso verbo ninar. O termo j era de uso popular e algo irnico desde a
poca clssica, como em Horcio, que usa puerorum nenia, choro de criana (cf. Hor. Ep. 1,1,62); perdida a sua
especificidade, optamos por um simples choramingo.
17Provvel meno s cartas que Agostinho trocara com Eulgio, Joo (cf. Aug. Ep. 179) e Passerio (v. supra Aug. Ep.
19*, n. 22-24). O hertico, no caso, Pelgio, de quem Aniano era discpulo.
18Albina (ca. 385 - ca. 431), Melnia, a Jovem (ca. 380/383 - ca. 439) e Valrio Severo Piniano (? - 432) pertenciam,
como Paula e Eustquio (v. supra Hier. Ep. 102, n. 9), aos ilustres e ricos membros da nobreza romana que haviam
acompanhado Jernimo em sua mudana para Belm; eram dele protetores e discpulos. Melnia, a Jovem, era filha de
Albina, que por sua vez esposa de Valrio Piniano, este da tradicional famlia dos Severos. O pai de Melnia, a Jovem
era o senador Publcola, filho de Melnia, a Velha (ca. 340 - ca. 408), a qual foi uma importante protetora de Rufino.
Refugiados de Roma aps o saque de Alarico em 410, a famlia havia viajado com Agostinho na Numdia e Paulino de
Nola na Campnia, tendo enfim se instalado no ano de 417 em Belm, junto com o velho Jernimo; v. Kelly (1975) p.
327-328 e Brown (2013) p. 340-353. Agostinho lhes enviou diversas cartas, das quais Aug. Ep. 124-126. Albina, cf.
PLRE I p. 33 Albina 2; PCBE I p. 74-77 Albina 2; NDPAC p. 177-178. Melnia, PLRE I p. 593 Melania 2; PCBE I p.
1483-1490 Melania 2; NDPAC p. 3187-3188. Piniano, cf. PLRE I p. 702 Valerius Pinianus 2; PCBE I p. 1798-1802
Valerius Pinianus 2; NDPAC p. 4095-4096.
19 Paula, a Jovem, v. supra Hier. Ep. 134, n. 11.

)516
31

Agostinho Ep. 202A / Jernimo Ep. 144


Agostinho a Optato
[419]

As edies antigas da correspondncia entre Jernimo e Agostinho, na esteira dos recensus estabelecidos na

Patrologia Latina, incluam, aps Hier. Ep. 143, uma outra carta, Aug. Ep. 202A (Hier. Ep. 144 inter hieronyminianas),

enviada no ano de 4191 a Optato, bispo de Milevis (atual Mila, na Arglia), na qual o bispo de Hipona aborda

novamente a questo sobre a origem da alma do homem, guisa de um sumrio do que o autor havia discutido com o

monge de Belm h anos. Uma vez que Aug. Ep. 202A includa por Labourt nos volumes da Correspondance,

decidimos tambm incluir uma traduo dessa carta2.

A presente mensagem responde tanto a uma carta anterior que Optato enviara a Agostinho, quanto a outra que

o bispo de Milevis havia enviado aos irmos em Cesareia, ambas as quais esto hoje perdidas e so mencionadas, ao

lado de um excerto considervel de Hier. Ep. 134, no exrdio (cf. Aug. Ep. 202A,1-3). Dado que o assunto que nelas se

encerrava era o mesmo, a saber, as missivas versavam sobre a origem da alma do homem, o bispo de Milevis julgou que

seria bom buscar a ajuda de Agostinho para solucionar este problema mas este confessa ainda no o ter resolvido (cf.

Aug. Ep. 202A,4-6). Sendo assim, o bispo de Hipona vai agora se preocupar em mostrar como a questo deve ser

resolvida, isto , em expor uma metodologia exegtica, e no em instituir uma soluo definitiva para um problema cuja

soluo ele ainda no encontrou, de modo que esta, independente de qual for, esteja afinada f de fundamento mais

slido e no abra portas para nenhuma heresia, sobretudo a do pelagianismo.

A discusso vai ento se concentrar em duas hipteses da origem da alma: a do traducionismo e a do

criacionismo. O bispo de Hipona, diferente da nfase que dera ao criacionismo em Aug. Ep. 166 (onde buscou os

testemunhos bblicos que sustentassem o criacionismo), trilhar agora um caminho conciliatrio entre as duas teorias,

buscando demonstrar que a hiptese de que as almas descendem da nica alma de Ado, seja ou no por reproduo,

no entra necessariamente em conflito com a verdade da hiptese do nunc operator, de que Deus , foi, e ser sempre o

criador das almas. A argumentao que se segue, fundamentada em comentrios a passagens da carta de Optato, ocupa o

texto at a sua concluso (cf. Aug. Ep. 202A,7-19).

Pargrafo a pargrafo, Agostinho retoma argumentos que j havia empregado em Aug. Ep. 166, refinando-os:

no errado afirmar que as almas so, ao mesmo tempo, criadas por Deus e reproduzidas por nossos pais, pois as almas

so necessariamente criadas a partir de algum lugar no do nada, nem de Deus, mas, crvel propor, que a partir da

alma de Ado; assim, plausvel concluir que as almas so, ao mesmo tempo, criadas por Deus e ao mesmo tempo se

)517
reproduzem, como os corpos, por meio de nosso pais. No entanto, preciso certamente refutar o traducionismo como os

hereges pensam que ele funciona: que, por as almas, por se reproduzirem como os corpos, ento elas no so criaturas

de Deus, com exceo da alma de Ado. O que Optato acreditara ser um nico problema, na realidade, se divide em

duas questes distintas: a primeira, se Deus o criador de todas as almas (o que absolutamente correto) ou se alguma

alma surge sem que ele a faa (o que um erro completo); a segunda, se Deus faz as almas por reproduo, por meio de

nossos pais (o que plausvel), ou no. O problema central est portanto no prprio mtodo de investigao, isto ,

fundamentalmente em questionar a origem das almas, pois talvez Deus no queira que tomemos conhecimento disso;

talvez o problema deve permanecer para sempre um mistrio. Confessar ignorncia nisso no entregar-se impiedade,

ou falta de zelo. A questo permanece em aberto e, se quisermos investig-la, devemos antes de tudo estabelecer as

certezas que temos sobre ela, a partir dos testemunhos das Sagradas Escrituras3.

No fim da carta, Agostinho redireciona Optato para as obras suas e de Jernimo, e adverte-o para no cair na

heresia pelagiana: que ele no venha a concluir, ao refletir ou discutir sobre a origem das almas, que elas, quaisquer que

sejam, no trazem, a partir de Ado, o Pecado Original intrnseco em sua prpria gerao, o qual deve ser absolvido em

sua regenerao hiptese aventada por Pelgio e, mais recentemente (embora Agostinho no o mencione), Juliano de

Eclano (cf. Aug. Ep. 202A,20). Dessa forma, este texto tambm est circunscrito no contexto da polmica pelagiana, a

qual de fato domina toda a obra do bispo de Hipona em sua velhice.

A estrutura e o estilo dessa carta so programticos. Embora contenha vinte pargrafos, a maioria dos quais

parecem frios e sutis, no parecer de Labourt4 , conseguimos l-la rapidamente: a argumentao e o vocabulrio so

pedestres e repetitivos; quanto a este, salvo um ou outro jogo de palavras (com dubium, em Aug. Ep. 202A,15), pouco

h dos artifcios retricos de que Agostinho abusava em suas cartas a Jernimo. No h quaisquer citaes de autores

latinos clssicos ou de doutrinas filosficas gregas, presentes at em Aug. Ep. 166 e 167, onde o bispo de Hipona citara

Salstio e trabalhara a doutrina estoica. Esto praticamente ausentes tambm tpicos das cartas de amizade.

Consideremo-na, portanto, como uma carta de resposta5 comum na tipologia de Pseudo-Demtrio. Entre as situaes

elencadas por Pseudo-Libnio, podemos elencar a da resposta, do relato, assim como a da didtica6.

Agostinho no diz expressamente qual foi o mensageiro que levou esta carta Aug. Ep. 202A a Optato, mas

provvel que tenha sido o mesmo Saturnino que trouxe a carta anterior de Optato ao bispo.

Por fim, um adendo sobre o assunto. Afirmamos no incio desta introduo que o objetivo do bispo de Hipona

na presente carta apresentar um mtodo de investigao que se fundamente nos princpios da exegese bblica e atravs

do qual seja possvel, por meio do raciocnio, e apoiado na anlise de testemunhos das Sagradas Escrituras, conciliar as

hipteses do traducionismo e do criacionismo, para assim refutar a hiptese pelagianista sobre a origem da alma

humana. Ora, parece-nos claro o porqu de o bispo de Hipona buscar essa aliana: trata-se de resolver um problema que

j o afligia h muito, e que se encontra tanto no cerne de sua obra de velhice quanto no corao da polmica contra

Pelgio; falamos da teoria do Pecado Original, a culpa que todas as almas herdam da alma de Ado. Os pelagianos,

firmando-se em uma espcie de criacionismo vinculado teoria do effluxio, pregavam que a alma, ao mesmo tempo em

)518
que era uma criatura de Deus, partilhava da Sua substncia; s assim, diziam, poder-se-ia explicar sua imortalidade.

Aps ter demonstrado em Aug. Ep. 166 que a imortalidade da alma se d por uma modalidade prpria, e no de todas as

modalidades (caso da imortalidade de Deus), Agostinho agora argumenta que a alma de fato uma criatura divina que

imortal (pois no pode se desligar totalmente de Deus), mas que em certa medida tambm mortal (pois pode se afastar

de Deus). Assim, devemos afirmar que a alma uma criatura de Deus que, entretanto, tem uma natureza prpria e

distinta da substncia divina. Deus cria as almas, mas Ele precisa cri-las a partir de algum lugar, o qual pode muito

bem ser a alma de Ado, de onde as almas seguintes herdaram, herdam, e herdaro o pecado da desobedincia at o

Juzo; assim, uma maneira bastante lgica de explicar essa herana pelo traducionismo: que as almas de certa maneira

se reproduzem a partir da alma de Ado, seja como os corpos pelas relaes sexuais ou no.

1 esta a data aproximativa dada na Patrologia Latina, visto que esta carta includa logo aps Hier. Ep. 143 e que,
pelo que interpretamos do que Agostinho nela diz, Jernimo, que viria a morrer em 420, estava ainda vivo quando ela
foi escrita (ou o bispo de Hipona ainda no tomara nota do falecimento de seu correspondente). Sabe-se ainda que
Agostinho, que se mostrava relutante em enviar Aug. Ep. 166 a Optato, acabara por publicar este texto, junto com Aug.
Ep. 167, aps a morte do Estridonense (cf. Aug. Retract. 2,45).
2 Agostinho havia, h anos, enviado outra carta a Optato, na qual tratava do mesmo assunto desta Ep. 202A, a origem da
alma do homem: trata-se de Aug. Ep. 190, escrita em 418, antes mesmo de Jernimo lhe enviar Hier. Ep. 143. A carta
Aug. Ep. 190 [PL 33,857a-866], no entanto, no figura na edio de Labourt, nem na epistolografia de Jernimo na
Patrologia Latina, e por essas duas razes decidimos no traduzi-la.
3Agostinho nunca chegara a uma soluo final sobre a origem da alma do homem, questo premente em sua obra de
velhice (cf. Aug. Ep. 143,11; 190,2; 202,18; 23A*,3; anim. 1,16. 2,21; c. Iul. op imperf. 4,104; Retract. 2,56).
4 Cf. Labourt (1963) vol. VIII, p. 107.
5 Cf. Ps.-Dem. 14.
6 Cf. Ps.-Lib. 31;78.
)519
Aug. ep. 202A

Domino beatissimo sinceriterque carissimo et desiderantissimo fratri et coepiscopo Optato


Augustinus in Domino salutem.

1. Per religiosum presbyterum Saturninum tuae venerationis litteras sumpsi hoc a me magno
studio, quod nondum habeo, flagitantis. Sed cur hoc feceris causam mihi aperuisti, quod scilicet
credas de hac re mihi consulenti iam fuisse responsum. Vtinam ita esset! Absit ut te, cuius
expectationem avidissimam noverim, huius muneris communicatione fraudarem. Sed si quid
credis, frater carissime, quinque ferme anni ecce evoluti sunt, ex quo in Orientem misi librum
non praesumptionis sed consultationis meae, et adhuc rescripta non merui, quibus mihi
enodaretur haec quaestio in qua me cupis ad te certam ferre sententiam. Vtrumque ergo
misissem, si utrumque haberem.
2. Hoc autem quod habeo, sine altero, quod nondum habeo, cuiquam debere me iam mittere,
vel edere non videtur, ne ille, qui mihi fortasse, ut desidero, responsurus est, interrogationem
meam disceptatione operosissima elaboratam, sine sua responsione, quae adhuc desperanda non
est, per manus hominum notitiamque diffundi iure succenseat, idque iactantius quam utilius
fecisse me iudicet, quasi ego potuerim quaerere, quod ille non potuerit enodare, cum forsitan
possit, idque dum faciat, expectandum sit. Magis enim scio quod aliis occupatur, quae minime
differenda sunt, plurisque pendenda.
3. Quod ut tua quoque sanctitas noverit, attende paulisper, quod mihi alio anno per latorem per
quem scripseram remeantem scripserit; nam hoc ex eius epistula in istam transtuli: Incidit,
inquit, tempus difficillimum, quando mihi tacere melius fuit quam loqui; ita ut nostra studia
cessarent et, iuxta Appium, canina exerceretur facundia. Itaque duobus libellis tuis, quos nomini
meo dedicasti, eruditissimis et omni eloquentiae splendore fulgentibus, ad tempus respondere
non potui, non quod quicquam in illis reprehendendum putem, sed quia iuxta beatum
apostolum: Unusquisque in suo sensu abundat; alius quidem sic, alius autem sic. Certe
quicquid dici potuit, et sublimi ingenio de Scripturarum sanctarum hauriri fontibus, a te positum
atque dissertum est. Sed quaeso reverentiam tuam, parumper patiaris me tuum laudare
ingenium. Nos enim inter nos eruditionis causa disserimus. Ceterum aemuli, et maxime
haeretici, si diversas inter nos sententias viderint, de animi calumniabuntur rancore descendere.
Mihi autem decretum est te amare, suscipere, colere, mirari, tuaque dicta quasi mea defendere
(certe et in dialogo, quem nuper edidi, beatitudinis tuae, ut dignum fuerat, recordatus sum).
Magisque demus operam, ut perniciosissima haeresis de ecclesiis auferatur, quae semper
)520
Aug. ep. 202A
simulat paenitentiam ut docendi in ecclesiis habeat facultatem, ne si aperta se luce prodiderit,
foras expulsa moriatur.
4. Cernis nempe, venerande frater, haec mei carissimi verba. inquisitioni meae reddita, non
eam negasse responsionem, sed excusasse de tempore, quod in alia magis urgentia curam
cogeretur impendere. Vides etiam quam benevolum animum erga me gerat, quidve commoneat,
ne scilicet quod inter nos, salva utique caritate ac sinceritate amicitiae, eruditionis causa
facimus, calumnientur aemuli et maxime haeretici de animi rancore descendere. Proinde si
utrumque opus nostrum, et ubi ego inquisivi, et ubi ipse ad inquisita responderit, homines
legerint, quia etiam oportet ut, si eadem quaestio secundum eius sententiam sufficienter fuerit
explicata, me instructum esse gratias agam, non parvus erit fructus, cum hoc exierit in notitiam
plurimorum, ut minores nostri non solum sciant, quid de hac re sentire debeant, quae inter nos
diligenti disceptatione discussa est, verum etiam discant exemplo nostro, Deo miserante atque
propitio, quemadmodum inter carissimos fratres, ita non desit alterna inquisitionis gratia
disputatio, ut tamen maneat inviolata dilectio.
5. Si autem scriptum meum, ubi res obscurissima tantummodo legitur inquisita, sine illius
rescripto, ubi forsitan apparebit inventum, emanarit, latius pergat, perveniat etiam ad illos, qui
comparantes, ut ait apostolus, semetipsos sibimetipsis, non intellegunt, quo animo a nobis
fiat, quod ipsi eo animo facere nesciunt, et voluntatem meam erga honorandum pro suis
ingentibus meritis dilectissimum amicum, non sicut eam vident (quando nec vident) sed sicut
eis libitum est, et sicut odio suo dictante suspicantur, exponent; quod profecto, quantum in nobis
est, cavere debemus.
6. At si forte, quod per nos innotescere nolumus, etiam invitis nobis, eis quibus nolumus
innotuerit, quid restabit, nisi aequo animo habere Domini voluntatem? Neque enim hoc scribere
ad quemquam deberem, quod semper latere voluissem. Nam si (quod absit) aliquo vel casu, vel
necessitate numquam ille rescripserit, procul dubio nostra consultatio, quam ad eum misimus,
quandoque manifestabitur. Nec inutilis legentibus erit, quia etsi non illa invenient quae
requirunt, invenient certe, quemadmodum sint inquirenda, nec temere affirmanda quae nesciunt;
et secundum ea quae ibi legerint, consulere etiam ipsi, quos poterint, studiosa caritate, non
discordiosa contentione curabunt; donec aut id quod volunt reperiant, aut ipsa inquisitione
aciem mentis exerceant, ut ulterius inquirendum non esse cognoscant. Nunc tamen, quamdiu
iam consulti amici nondum est desperanda responsio, edendam non esse consultationem
nostram, quantum quidem in nobis est, puto quod persuaserim dilectioni tuae; quamquam et ipse
non eam solam poposceris, sed adiunctam etiam eius quem consului, responsionem tibi
)521
Aug. ep. 202A
desideraveris mitti; quod utique facerem, si haberem. Si autem ut verbis tuae sanctitatis utar,
quae in tua epistola posuisti, sapientiae meae lucidam demonstrationem, quam mihi pro merito,
(ut scribis) vitae meae auctor lucis attribuit, non ipsam dicis consultationem, et inquisitionem
meam, sed mihi iam eius rei, quam quaesivi, provenisse inventionem putas, et ipsam potius
poscis ut mittam; facerem, si ita esset ut putas. Ego enim adhuc, fateor, non inveni
quemadmodum anima et peccatum ex Adam trahat (unde dubitare fas non est), et ipsa ex Adam
non trahatur, quod mihi diligentius inquirendum, quam inconsultius asserendum est.
7. Habent litterae tuae: nescio quot senes, et a doctis sacerdotibus institutos viros, quos ad
tuae modicitatis intellegentiam, assertionemque veritate plenissimam revocare non poteras"; nec
tamen exprimis quaenam sit assertio tua veritate plenissima, ad quam senes, et a doctis
sacerdotibus institutos viros revocare non poteras. Si enim hoc tenebant, vel tenent hi senes,
quod a doctis sacerdotibus acceperunt, quomodo tibi rustica, et minus instructa clericorum turba
molestias generaverat in his rebus, in quibus a doctis sacerdotibus fuerat instituta? Si autem
senes isti, vel turba clericorum ab eo, quod a doctis sacerdotibus acceperat, sua pravitate
deviabat, illorum potius auctoritate fuerat corrigenda, et a tumultu contentiosissimo
comprimenda. Sed rursus cum dicis: te novellum rudemque doctorem, tantorum ac talium
episcoporum traditiones timuisse corrumpere, et convertere homines in meliorem partem ob
defunctorum iniuriam formidasse, quid das intellegi, nisi quod illi, quos corrigere cupiebas,
doctorum atque magnorum iam defunctorum episcoporum traditiones nolendo deserere,
novello rudique doctori acquiescere recusabant? Qua in re de illis interim taceo, tuam vero
assertionem, quam dicis esse veritate plenissimam, vehementer scire desidero; non ipsam
dico sententiam, sed eius assertionem.
8. Improbari enim abs te eos, qui affirmant, omnes animas hominum ex illa una, quae
protoplasto data est, per generationum successionem propagari atque traduci, sufficienter
quidem in nostram notitiam protulisti; sed qua ratione, quibusve divinarum Scripturarum
testimoniis id falsum esse monstraveris, quia tuae litterae non continent, quid ignoramus.
Deinde quid ipse pro isto, quod improbas, teneas, legenti mihi epistolam tuam, et quam fratribus
antea Caesariensibus, et quam mihi nuperrime direxisti, non evidenter apparet, nisi quod video
te credere, sicut scribis: Deum fecisse homines, et facere, et facturum esse; neque aliquid esse
in coelis aut in terra, quod non ipso constiterit et constet auctore. Hoc sane ita verum est, ut
dubitare hinc nullus debeat. Sed adhuc te oportet exprimere unde faciat animas Deus, quas
negas ex propagine fieri, utrum aliunde? Et si ita est, quidnam illud sit, an omnino de nihilo?
Nam illud Origenis et Priscilliani, vel si qui alii tale aliquid sentiunt: quod pro meritis vitae
)522
Aug. ep. 202A
prioris terrena atque mortalia contrudantur an corpora, absit ut sentias; huic quippe opinioni
prorsus apostolica contradicit auctoritas dicens, Esau et Iacob, antequam nati fuissent, nihil
operatos boni seu mali. Igitur non ex toto, sed ex parte, nobis est tua de hac re nota sententia;
assertio vero eius, id est unde doceatur verum esse quod sentis, nos penitus latet.
9. Propterea petiveram prioribus litteris meis, ut libellum fidei, quem te scripsisse
commemoras, eique nescio quem presbyterum fallaciter subscripsisse conquereris, mihi mittere
dignareris (quod etiam nunc peto), et quid testimoniorum divinorum huic quaestioni reserandae
adhibere potuisti. Dicis enim in epistula ad Caesarienses placuisse vobis, ut omnem veritatis ad
probationem, etiam iudices cognoscerent saeculares, quibus ex communi deprecatione
residentibus, et ad fidem universa rimantibus, id Divinitas (ut scribis) misericordiae suae
infusione largita est, ut maiorem affirmationem pro suis sensibus assertionemque proferrent,
quam vestra circa eos mediocritas cum ingentium testimoniorum auctoritatibus retentabat. Has
ergo testimoniorum ingentium auctoritates ingenti studio scire desidero.
10. Solam quippe unam causam videris secutus, qua contradictores tuos refelleres, quod scilicet
negarent esse opus Dei animas nostras. Quod si sentiunt, merito eorum sententia iudicatur esse
damnanda. Nam hoc si de ipsis corporibus dicerent, procul dubio fuerant emendandi vel
detestandi. Quis enim Christianus neget opera Dei esse corpora singulorum quorumque
nascentium? Nec tamen ea propterea negamus a parentibus gigni, quia fatemur divinitus fingi.
Quando ergo dicitur sic etiam animarum nostrarum incorporea quaedam sui generis semina, et a
parentibus trahi, et tamen ex eis animas Dei opere fieri, ad hoc refutandum non humana
coniectura, sed divina Scriptura testis adhibenda est. Nam de sanctis libris canonicae auctoritatis
potuit nobis testimoniorum suppetere copia, qua probatur Deus animas facere; sed testimoniis
talibus hi redarguuntur, qui opera Dei esse singulas quasque animas in hominibus nascentibus
negant; non hi qui hoc fatentur, et tamen eas, sicut corpora, Deo quidem operante, formari, sed
ex parentum propagatione, contendunt. Ad hos refellendos tibi divina testimonia certa
quaerenda sunt; aut si iam invenisti, nobis, qui nondum invenimus, cum impensissime, quantum
possumus, inquiramus, mutua dilectione mittenda.
11. Tua quippe consultatio brevis atque postrema in litteris quas ad fratres Caesarienses misisti,
ita se habet: Exoro, inquis, ut me filium vestrum atque discipulum et ad haec mysteria nuper
proximeque Deo iuvante venientem, qua debetis et dignum est, et qua prudentes respondere
convenit sacerdotes, informatione doceatis: utrum magis illa sit tenenda sententia, quae animam
dicit esse de traduce, et per occultam quamdam originem ordinemque secretum in omne
hominum genus ceteras animas ex Adae protoplasti transfusione defluere; an potius ea, quam
)523
Aug. ep. 202A
omnes fratres vestri, et sacerdotes hic positi retinent et affirmant, eligenda definitio
credulitasque retinenda, quae Deum auctorem universarum rerum, hominumque cunctorum et
fuisse, et esse, et futurum esse testatur et credit. Horum igitur duorum quae consulens
proposuisti, vis ut eligatur, tibique respondeatur alterutrum, quod fieri deberet ab scientibus, si
essent inter se duo ista contraria, ut altero electo consequenter esset alterum respuendum.
12. Nunc autem, si quispiam non alterum e duobus his eligat, sed utrumque verum esse
respondeat, id est in omne hominum genus ceteras animas ex Adae protoplasti transfusione
defluere, et nihilominus Deum auctorem universarum rerum, hominumque cunctorum et fuisse,
et esse, et futurum esse credat et dicat, quid huic contradicendum esse censes? Numquidnam
dicturi sumus: si ex parentibus animae propagantur, non est Deus auctor omnium rerum, quia
non facit animas? Respondebitur enim, si hoc dixerimus: ergo quia corpora ex parentibus
propagantur, non est Deus auctor omnium rerum, si propter hoc dicendus est non facere
corpora. Quis autem neget auctorem humanorum omnium corporum Deum, sed illius dicat
solius, quod de terra primitus finxit, aut certe etiam coniugis ipsius, quia et ipsam de latere eius
ipse formavit, non autem etiam ceterorum, quia ex illis cetera hominum corpora defluxisse
negare non possumus?
13. Ac per hoc, si, adversus quos tibi est in hac quaestione conflictus, sic asseverant animarum
ex illius unius derivatione propaginem, ut eas iam Deum negent facere, atque formare, insta eis
redarguendis, convincendis, corrigendis, quantum Domino adiuvante potueris. Si autem initia
quaedam ex illo uno, et deinceps a parentibus attrahi, et tamen singulas in hominibus singulis
affirmant ab auctore omnium rerum Deo creari atque formari, quid eis respondeatur, inquire de
Scripturis maxime sanctis, quod non sit ambiguum, nec aliter possit intellegi; aut si iam
invenisti, ut superius postulavi, dirige et nobis. Quod si te adhuc sicut me latet, insta quidem
omnibus viribus eos confutare, qui dicunt animas non ex opere divino (quod eos dixisti in
epistula tua prima inter secretiores fabulas murmurasse, deinde propter hanc sententiam stultam
atque impiam a tuo consortio et ecclesiae servitio recessisse), atque adversus eos omnibus
modis defende, et tuere, quod in eadem epistula posuisti: Deum fecisse animas, et facere, et
facturum esse; neque aliquid esse in coelis aut in terra, quod non ipso constiterit aut constet
auctore. Hoc enim de omni omnino genere creaturae verissime, atque rectissime creditur,
dicitur, defenditur, comprobatur. Deus enim auctor universarum rerum hominumque cunctorum
et fuit, et est, et futurus est, quod in extrema tua ad coepiscopos nostros provinciae Caesariensis
consultatione posuisti, atque ut id potius eligerent, exemplo omnium fratrum et consacerdotum,
qui sunt apud vos, atque id retinent, quodammodo hortatus es.
)524
Aug. ep. 202A
14. Sed alia quaestio est, ubi quaeritur, utrum omnium animarum et corporum auctor,
effectorque Deus sit, quod veritas habet, an aliquid naturarum exoriatur, quod ipse non faciat,
quae opinio prorsus erroris est; alia vero ubi quaeritur, utrum Deus animas humanas ex
propagine, an sine propagine faciat, quas tamen ab illo fieri dubitare fas non est. In qua
quaestione sobrium te esse ac vigilantem volo; nec sic animarum propaginem destruas, ut
haeresim Pelagianam incautus incurras. Nam si humanorum corporum, quorum propagatio est
omnibus nota, dicimus tamen Deum, vereque dicimus, non illius tantum primi hominis,
coniugumve primorum, sed omnium ex illis propagatorum esse creatorem, puto facile intellegi
eos, qui animarum defendunt propaginem, non ex hoc nos habere velle destruere, quando Deus
animas facit, cum et corpora facit, quae de propagine fieri negare non possumus; sed alia
documenta esse quaerenda, quibus hi, qui sentiunt propagari animas, repellantur, si eos errare
veritas loquitur; de qua re illi magis fuerant, si fieri posset, interrogandi, propter quorum
iniuriam defunctorum, sicut scribis in epistula, quam mihi posteriorem misisti: in meliorem
partem convertere homines formidabas. Hos enim defunctos, tales tantosque et tam doctos
episcopos fuisse dixisti, ut eorum traditiones timeres doctor novellus rudisque corrumpere
velle. Itaque si scire possem, tales ac tanti et tam docti viri istam de animarum propagatione
sententiam, quibus vel testimoniis asserebant [. . .] quam tamen in litteris ad Caesarienses datis,
illorum auctoritatem nequaquam respiciens, inventionem novam et inauditum dogma esse
dixisti, cum profecto, etsi error est, novum tamen eum non esse noverimus, sed vetustum, et
antiquum.
15. Quando autem nos aliquae causae in aliqua quaestione non immerito dubitare compellunt,
non etiam hinc dubitare debemus, utrum dubitare debeamus. De dubiis quippe rebus sine
dubitatione dubitandum est. Vides, quemadmodum apostolus de se ipso dubitare non dubitet,
utrum in corpore, an extra corpus raptus sit in tertium coelum; sive hoc, sive illud, nescio,
Deus scit. Cur ergo mihi, quamdiu nescio, dubitare non liceat, utrum anima mea in istam vitam
ex propagine, an sine propagine venerit, cum ea utrolibet modo a summo et vero Deo factam
esse non dubitem? Cur mihi non sit fas dicere: Scio animam meam ex opere Dei subsistere, et
prorsus opus Dei esse, sive ex propagine, sicut corpus, sive extra propaginem, sicut illa quae
primo homini data est, nescio, Deus scit? Vtrum horum vis ut confirmem? Possem, si nossem.
Quod si ipse nosti, en habes me cupidiorem discere quod nescio, quam docere quod scio. Si
autem nescis sicut ego, ora sicut et ego, ut sive per quemlibet servum suum, sive per se ipsum
magister ille nos doceat, qui dixit discipulis suis: Ne velitis dici ab hominibus Rabbi; unus est

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enim magister vester Christus. Si tamen scit expedire nobis, ut etiam talia noverimus, qui novit
non solum quid doceat, verum etiam quid nobis discere expediat.
16. Nam confiteor dilectioni tuae cupiditatem meam; cupio quidem et hoc scire, quod quaeris;
sed multo magis cuperem scire, si fieri posset, quando praesentetur desideratus omnibus
gentibus, et quando regnum sanctorum futurum sit, quam unde in hanc terram venire coeperim.
Et tamen illud, cum ab illo, qui scit omnia, discipuli sui, nostri apostoli, quaererent, responsum
acceperunt: Non est vestrum scire tempora, quae Pater posuit in sua potestate. Quid si et hoc
scit non esse nostrum scire, qui profecto scit, quid nobis sit utile scire? Et illud quidem per illum
scio, non esse nostri scire tempora quae Pater posuit in sua potestate; utrum autem originem
animarum, quam nondum scio, nostrum sit scire, id est pertineat ad nos id scire, ne hoc quidem
scio. Nam si saltem hoc scirem, quod nostrum non sit id scire, non solum affirmare, quamdiu
nescio, verum etiam quaerere iam desisterem. Nunc autem, quamvis tam sit obscurum atque
profundum, ut plus illic docendi caveam temeritatem, quam discendi habeam cupiditatem,
tamen etiam hoc volo scire, si possum. Et licet multo amplius sit necessarium, quod ait ille
sanctus: Notum mihi fac, Domine, finem meum (non enim ait: initium meum), utinam
tamen nec initium meum, quod ad istam quaestionem attinet, me lateret!
17. Verum de ipso quoque initio meo ingratus doctori meo non sum, quod animam humanam
spiritum esse, non corpus, eamque rationabilem, vel intellectualem scio, nec eam Dei esse
naturam, sed potius creaturam aliquatenus mortalem, in quantum in deterius commutari, et a
vita Dei, cuius participatione beata fit, alienari potest; et aliquatenus immortalem, quoniam
sensum, quo ei post hanc vitam vel bene, vel male sit, amittere non potest. Scio etiam, non eam
pro actibus ante carnem gestis includi in carne meruisse, sed nec ideo esse in homine sine sorde
peccati, etsi unius diei, sicut scriptum est, fuerit vita eius super terram. Ac per hoc scio ex Adam
per seriem generationis sine peccato neminem nasci, unde et parvulis necessarium est per
gratiam regenerationis in Christo renasci. Haec tam multa, nec parva, de initio vel origine
animarum nostrarum, in quibus plura sunt ad eam scientiam pertinentia, quae fide constant, et
didicisse me gratulor, et nosse confirmo. Quapropter, si nescio in origine animarum, utrum illas
Deus hominibus ex propagine, an sine propagine faciat, quas tamen ab ipso fieri non ambigo,
scire quidem et hoc magis eligo, quam nescire; sed quamdiu non possum, melius hinc dubito,
quam velut certum confirmare aliquid audeo, quod illi rei sit forte contrarium, de qua dubitare
non debeo.
18. Tu itaque, mi frater bone, quoniam consulis me, et vis unum horum definiam: utrum animae
ceterae ex illo uno homine, sicut corpora per propaginem, an sine propagine, sicut illius unius a
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Creatore, singulis singulae fiant (ab ipso enim fieri sive sic, sive sic non negamus), patere, ut
etiam ipse consulam, quomodo inde anima peccatum originaliter trahat, unde originaliter ipsa
non trahitur? Omnes enim animas ex Adam trahere originale peccatum similiter non negamus,
ne in Pelagianam haeresim detestabilem irruamus. Si hoc, quod ego interrogo, nec tu scis, sine
me patienter utrumque nescire, et quod tu interrogas, et quod ego. Si autem iam scis quod
interrogo, cum hoc etiam me docueris, tunc et illud, quod vis ut respondeam, nihil ibi iam
metuens, respondebo. Peto ergo ne succenseas, quia non potui confirmare quod quaeris, sed
potui demonstrare quid quaeras; quod cum inveneris, confirmare non dubites quod quaerebas.
19. Et hoc quidem sanctitati tuae scribendum existimavi, qui propaginem animarum iam quasi
certus improbandam putas. Ceterum si illis, qui hanc asserunt, rescribendum fuisset, fortassis
ostenderem, quemadmodum id, quod se nosse arbitrantur, ignorent, et ne hoc asserere auderent,
quanta ratione formidare deberent.
20. Sane in rescripto amici quod huic epistulae inserui, ne te forte moveat, quod duos libros a
me missos commemoravit, quibus respondere vacuum sibi tempus non fuisse respondit. Vnus
est de hac quaestione, non ambo; in alio autem illud ab illo consulendo et pertractando quaesivi.
Quod vero admonet et hortatur, ut magis demus operam, ut perniciosissima haeresis de
ecclesiis auferatur, illam ipsam Pelagianam haeresim dicit, quam cautissime ut devites,
quantum possum, frater, admoneo cum de animarum origine sive cogitas, sive iam disputas, ne
tibi subrepat esse credendum, ullam prorsus animam, nisi unius mediatoris, non ex Adam
trahere originale peccatum generatione devinctum, regeneratione solvendum.

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Agostinho envia saudaes em nome do Senhor ao colega de bispado Optato1 , senhor


muitssimo abenoado, e irmo sinceramente muitssimo querido e muitssimo desejado.

1. Foi pelo fiel presbtero Saturnino2 que recebi as cartas de tua venerao, nas quais tu pedias
a mim, com muita nfase e insistncia, uma coisa que ainda no possuo. Mas, tu me revelaste o
motivo por que agistes assim: que, a saber, tu acreditas que de minha parte eu j tivesse uma
resposta sobre esse assunto. Que fosse assim! Longe de eu sei que tua expectativa enorme
querer te frustrar ao te lembrar disso. Mas, se acreditas em mim, irmo querido, eis que se
passaram quase cinco anos desde que enviei ao Oriente meu livro3 (no em presuno, mas em
consulta), e at hoje no mereci quaisquer respostas com que poderamos desatar os ns desse
problema para o qual tu desejas que eu te d uma soluo final. Eu mesmo te enviaria as duas
coisas, se as duas tivesse.
2. O livro4 , porm, que eu tenho, sem o outro que ainda no tenho, no julgo que j devo
envi-lo a quem quer que seja, ou sequer public-lo, a fim de que ele <Jernimo>, que talvez
vir a responder (assim espero), no suspeite, com direito, que a minha interrogao, elaborada
aps trabalhosas discusses, encontra-se difusa pelas mos e bocas dos homens sem a sua
resposta, da qual no se deve, ainda, perder as esperanas; que ele no julgue que eu agi mais
por ostentao que por aplicao, como se eu mesmo pudesse solucionar algo cujos ns ele no
conseguiu desatar; e, j que ele possa talvez conseguir, devemos esperar at que ele o faa. Ora,
eu sobretudo sei que ele se ocupa de outras coisas, que no admitem atraso e que so mais
urgentes.
3. Para que a tua santidade tambm se inteire disso, presta um pouco de ateno no que ele me
escreveu noutro ano, por meio do mensageiro por quem eu havia escrito a carta revinda5 , pois
eu copiei tal passagem da carta dele nesta aqui. Ele diz: houve um perodo muito difcil durante
o qual eu preferi me calar a falar, tanto que interrompemos nossos estudos e acabamos por
desenvolver, como diz pio, um estilo canino. Foi por isso que no consegui responder a
tempo aos teus dois livrinhos, muito eruditos e cintilantes com todo o esplendor da eloquncia,
os quais dedicaste em meu nome; no porque eu julgue que neles h algo a ser repreendido, mas
porque, como diz o abenoado apstolo <Paulo>: cada um conhece bem seu prprio modo de
pensar: um de uma maneira, o outro de outra. Sim, o que se pde afirmar, e com admirvel
talento drenar das fontes das Escrituras Sagradas, tudo foi colocado e discutido por ti. Mas, peo
licena a ti, permita-me louvar um pouquinho o teu talento. Ora, ns discutimos entre ns com o
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objetivo de aprender. De resto, os dissimulados, e sobretudo os herticos, se encontrarem
opinies divergentes entre ns, afirmaro caluniosamente que isso se deve a um rano da alma.
A mim, porm, me lcito te amar, acolher, cultivar, admirar, defender as tuas opinies como se
elas fossem as minhas (tambm no dilogo que acabei de publicar, para que este fosse digno,
certamente me lembrei de tua beatitude) e assim atuemos com mais firmeza para expulsar a
mais perigosa heresia das igrejas, aquela que sempre simula a penitncia para ter a licena de
ministrar as heresias, a fim de que no morra desterrada se vier a se revelar na luz do dia6.
4. Certo, tu vs a, irmo honorvel, que as palavras do meu amigo muito querido, em resposta
minha interrogao, no foram uma recusa por uma mensagem, mas sim uma desculpa pela
falta de tempo, j que ele precisava dedicar zelo a assuntos de maior urgncia. Vs ainda quo
bondosa a afeio que ele me apresenta, e o que ele me aconselha, para que, no caso de
discutirmos entre ns questes intelectuais (e certamente na presena da caridade e da
sinceridade da amizade), nossos rivais, sobretudo os herticos, no venham a afirmar
caluniosamente que isso se deve a um rano da alma7 . Por conseguinte, se ambas as nossas
obras, tanto aquela em que coloquei a questo, como aquela em que eu mesmo a respondi8 , se
os homens vierem a l-las pois convm que eu o agradea por ter me instrudo, se esse
problema for suficientemente explicado segundo a soluo dele , no ser pouca a nossa
retribuio quando isso vier cincia da maioria, para que nossos seguidores no s saibam o
que devem pensar sobre esse assunto (que foi abordado por ns aps meticulosa discusso),
como certamente tambm aprendam, com o nosso exemplo e com a misericrdia e a prontido
de Deus, de que maneira se possvel, entre irmos mais queridos, conduzir discusses
espordicas a fim de esclarecer questes (com que o amor permanea entretanto inviolado).
5. Mas se, quanto a meu texto onde se l to-somente uma interrogao sobre um tema
muito obscuro veio tona sem a resposta dele da qual apareceria talvez uma soluo ;
caso ele tnha sido espalhado e chegou at aqueles que se comparam consigo mesmos9, como
diz o apstolo <Paulo> ; se eles no compreenderem com qual disposio de nimo ns assim
fazemos o que eles no sabem fazer com a mesma disposio de nimo, ou sequer conseguem
ver (se que veem) a minha boa-vontade a esse meu amigo muito amado como de fato ela ,
mas como lhes convm, e assim a exibiro conduzidos por seu dio e tramoias; com efeito,
devemos tomar o mximo de cuidado possvel nessa situao.
6. Assim, se algo que no queremos que seja conhecido por nossa ao por acaso vier ao
conhecimento tambm daqueles que no queremos que a conheam, mesmo contra a nossa
vontade, o que nos restar seno aceitar com calma a vontade de Deus10 ? Ora, eu no deveria ter
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escrito a ningum qualquer coisa que eu quisesse manter sempre escondida11. Ento, se (Deus
me livre!) ele nunca vier a reescrever, seja por um acaso, seja por uma circunstncia, longe de
dvidas que a nossa consulta, essa que enviamos a ele, ser algum dia publicada12. E ela no
deixar de ser til aos que a lerem, j que, ainda que no encontrem l as respostas que
procuram, certamente encontraro de que maneira as perguntas devem ser feitas, e descobriro
que no eles devem afirmar impulsivamente o que no sabem; ainda, de acordo com o que
lerem l, eles prprios, fundamentados no zelo da caridade, e no na rivalidade conflituosa,
tambm cuidaro de consultar homens que possam explic-los, seja at encontrarem o que
desejam, seja por exercerem a argcia da inteligncia atravs da prpria busca, para que saibam
que no se deve ir alm dela. Mas agora, j que no devemos ainda perder as esperanas de uma
resposta desse amigo j consultado, nosso parecer no deve ser editado; acredito que disso eu
convenci o teu amor, na medida em que me foi possvel; embora tu mesmo pareas no somente
pedir meu texto, mas tambm desejar que te seja enviada, em anexo, a resposta dele que eu
consultei (o que eu certamente faria, se os tivesse). Mas se tu para usar as mesmas palavras
da tua santidade, as quais que colocaste em tua carta, que a luminosa demonstrao de minha
sabedoria, a qual o feitor da luz deu-me em retribuio (assim escreves) da minha vida no
falas propriamente em um parecer ou interrogao minha, mas pareces pensar que eu j
encontrei uma soluo desse assunto que eu questionei, e pedes novamente para que eu o envie:
eu o faria, se fosse assim como pensas. Ora, eu mesmo, confesso, at ento no descobri de que
maneira a alma herdaria o pecado de Ado (coisa de que no correto duvidar) mas no viria,
ela mesma, de Ado; eis um tema que devo pesquisar mais detalhadamente, em vez de sustentar
o que penso sem reflexo.
7. Tua carta menciona no sei quantos homens experientes e instrudos por sacerdotes eruditos13
que no conseguiste chamar ao conhecimento de tua moderao e a uma afirmao cheia de
verdade; tu no deixas claro, porm, qual seria essa afirmao cheia de verdade, qual no
conseguiste chamar homens experientes e instrudos por sacerdotes eruditos. Ora, se estes
homens experientes tinham ou ainda tm o que aprenderam com os sacerdotes eruditos, de
que modo um bando rstico e muito pouco instrudo de clrigos te causaria incmodo nesse
assunto, no qual ele fora instrudo por sacerdotes eruditos? Se, porm, estes velhos, ou se o
bando de clrigos desviaram, deliberadamente e por malcia, daquilo que aprenderam dos
sacerdotes eruditos, a mais valia corrigir-lhes com a autoridade dos sacerdotes, e assim refre-
los desse tumulto excessivamente problemtico. Mas, uma vez mais, quando tu dizes que,
professor novio e inexperiente, tu temeste perverter as tradies desses bispos, tantos e to
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eminentes, e receaste converter os homens para a melhor parte, com medo de ofender a
memria dos mortos, o que deixas a entender seno que esses que tu desejavas corrigir no
queriam, eles mesmos, abandonar as tradies dos telogos e dos grandes bispos j mortos, e
que se recusavam a consentir com um professor novio e inexperiente? Nesse caso, eu me
calo, por ora, sobre eles, mas desejo muito conhecer qual essa tua afirmao que afirmas ser
cheia de verdade; no falo da tua concluso propriamente, mas da afirmao que ela traz.
8. Ora, que tu reprovas aqueles que afirmam que todas as almas dos homens so reproduzidas e
transmitidas, por sucessivas geraes, a partir daquela nica que foi dada ao protoplasto
<Ado>, isto tu certamente trouxeste ao nosso conhecimento de maneira suficiente; mas por
qual razo, ou atravs de quais testemunhos dos escritos divinos tu mostraste que essa tese
falsa, isso ns, j que no consta em tua carta, no sabemos. Continuando, o que tu sustentas no
lugar do que desaprovas, mesmo ao ler tanto a carta que mandaste aos irmos em Cesareia14
quanto essa que acabas de me mandar15, isso no me parece claro, a no ser que te vejo
acreditar, como escreves, que Deus fez, e faz, e far os homens, e no h nada no cu e na terra
que no seja obra Sua e Nele consiste, coisa que to perfeitamente verdadeira que ningum
deve dela duvidar. Mas ainda preciso que tu digas abertamente de onde Deus cria as almas, as
quais tu negas serem criadas por reproduo de outro lugar, ento? E, se assim o for, que
lugar esse? Ou absolutamente do nada? essa a opinio de Orgenes e Prisciliano16 . Ou se
quaisquer outros pensam algo parecido, que, devido aos mritos de uma vida passada, as almas
so confinadas em corpos terrenos e mortais (Deus te livre de pensares isso)? De fato, a
autoridade apostlica contradiz essa opinio em absoluto, ao afirmar que Esa e Jac no
fizeram nada de bom ou de mal antes de nascerem17 . Portanto, tua concluso sobre esse assunto
nos conhecida no em sua totalidade, mas parcialmente; quanto afirmao que ela traz, isto
, de onde se aprende que verdadeiro o que pensas, essa nos escapa completamente.
9. por essa razo que eu havia te pedido, em minha carta anterior, que tivesses a dignidade de me
enviar esse livreto da f18 que mencionas teres escrito (e de que, tu reclamas, no sei qual
presbtero falsificou sua assinatura19 ); reitero agora meu pedido por ele, e tambm por aquilo
que tu conseguiste abstrair dos testemunhos divinos para solucionar esse problema. Ora, tu
afirmas na carta aos irmos em Cesareia que vs decidistes que at os juzes seculares20
pudessem conhecer a afirmao total da verdade; a eles, fundamentados nas splicas da
comunidade, e afinados a tudo que diz respeito a f, a Divindade (assim escreves) concedeu,
pela infuso de sua misericrdia, que proferissem, em virtude de suas opinies, uma afirmao e
uma assero maiores que aquela que vossa mediocridade sustentava acerca deles, e sobre as
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autoridades dos grandes textos. Logo, so essas autoridades dos grandes textos que desejo,
com grande vontade, conhecer.
10. De fato, tu pareces ter seguido um nico argumento para afastar aqueles que te contradizem: a
saber, que eles negariam que nossas almas so obra de Deus. Se isso o que pensam, justo e
merecido que a concluso deles seja condenada, pois mesmo se dissessem isso sobre os corpos,
longe de dvidas que eles deveriam ser corrigidos ou odiados. Ora, qual cristo negar que so
obras de Deus os corpos de cada um dos recm-nascidos? No por isso, porm, que negamos
que eles so gerados por seus pais, j que confessamos que isso acontece por intermdio divino.
Logo, quando se afirma, uma vez mais, que alguns grmens incorpreos e sui generis21 de
nossas almas so descendentes de nossos pais, e mesmo assim as almas so feitas a partir deles
por obra de Deus, para refutar essa tese devemos nos ater no s conjecturas humanas, mas ao
testemunho da divina escritura, pois a partir dos livros santos de autoridade cannica22 que vos
possvel produzir um sem-nmero de testemunhos para provar que Deus cria as almas; e
com esses mesmos testemunhos que refutamos aqueles que negam que cada alma individual, a
cada homem recm-nascido, seja obra de Deus, e no outros que professam uma doutrina na
qual pretendem que as almas de fato sejam, como os corpos, criadas por obra de Deus, mas que
descendem de nossos pais. Para refut-los, tu deves procurar os testemunhos divinos adequados
ou, se j os encontraste, envi-los no amor mtuo a ns, que ainda no os encontramos, mesmo
os tendo procurado com o mximo de dedicao possvel.
11. De fato, em tua breve consulta, concluso da carta que enviaste aos irmos em Cesareia,
consta o seguinte: eu te conclamo a me ensinares e me instrures, na condio de vosso filho e
discpulo, de algum que se aproxima desses mistrios, com a ajuda de Deus, como vs deveis,
como digno, e como convm responder aos sagazes sacerdotes: devemos nos ater concluso
de que a alma existe por transmisso e, em virtude de uma origem desconhecida e oculta, e de
uma ordem secreta a toda a espcie humana, que as almas restantes jorram, por transfuso, a
partir da alma de Ado, o protoplasto23 ? Ou, talvez, devemos escolher antes a definio, e nos
ater crena, a qual todos os vossos irmos e os sacerdotes aqui citados retm e afirmam,
testificam, e acreditam, de que Deus foi, , e ser o criador de todas as coisas e de todos os
homens24? Entre essas duas opes que propuseste ao me inquirir, portanto, queres que uma
seja escolhida, e que a outra te seja esclarecida, algo que deveria ser feito por especialistas (se
ambas fossem contrrias entre si), de modo que, ao escolher uma, a outra seja
consequentemente descartada.

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12. Mas agora, se uma pessoa qualquer no quiser escolher uma dessas duas, mas responder que
ambas so verdadeiras, isto , que em toda a espcie humana as almas jorram, por transfuso,
a partir da alma de Ado, o protoplasto e, apesar disso, que possvel acreditar e afirmar
que Deus tambm foi, , e ser o criador de todas as coisas e de todos os homens, que
argumento achas que devemos lhe opor? Por um acaso diramos que, se as almas se reproduzem
a partir de nossos pais, ento Deus no o criador de todas as coisas, j que ele no faz as
almas? Ora, a isso responderemos, caso assim se argumente: logo, j que os corpos se
reproduzem a partir de nossos pais, no Deus o criador de todas as coisas, se por causa disso
se deve afirmar que ele no faz os corpos. Quem, porm, diria que Deus no o criador de
todos os corpos humanos, mas que Ele criador apenas do corpo daquele homem <Ado> que
modelara no princpio, a partir do barro, e que tambm criador de sua prpria esposa <Eva>,
j que Ele mesmo a formou tambm a partir da costela dele, mas que Ele no , muito embora, o
criador dos outros corpos, j que no podemos negar que os corpos restantes dos homens
jorraram a partir daqueles dois?
13. E por isso que, se aqueles homens, contra os quais tu entrastes em conflito neste problema,
asseveram que a reproduo das almas se d por derivao da alma daquele nico homem, com
o objetivo de negarem que Deus que as faz e forma, ento insiste em lhes redarguir, os
convencer, os corrigir o mximo que puder, com a ajuda do Senhor. Agora, se for de um certo
incio a partir daquele nico homem, e que em seguida que elas descendem pelos pais se
assim, no entanto, que eles afirmam que almas individuais so criadas e formadas
individualmente por Deus aos homens, Ele que o criador de todas as coisas, procura sobretudo
nas Escrituras santas uma resposta que possa lhes servir de confronto; que ela no seja ambgua
e no possa ser interpretada de outra maneira25 , ou, se j a encontraste, manda-nos ento, como
te requisitei acima. Mas, se isso te escapa, como at ento escapa a mim, ainda assim insiste,
com todas as foras, em refutar aqueles homens que afirmam que as almas no so obras de
Deus esses que, tu disseste em tua carta, primeiro cochicharam estranhezas meio ocultas
entre si, e ento, por causa de uma concluso estpida e mpia, se afastaram da tua companhia e
do compromisso com a Igreja e, contra eles, defende (e protege) de todos os modos o que
mencionaste na mesma carta, que Deus fez, e faz, e far os homens, e no h nada no cu e na
terra que no seja obra Sua e Nele consiste. Ora, isto absolutamente verdadeiro em respeito a
toda espcie de criatura e, com absoluta retido, nisso se acredita, isso se afirma, isso se
defende, isso se comprova. Ora, Deus foi, , e ser o criador de todas as coisas no universo, e de
todos os homens, algo que mencionaste no fim da tua consulta aos nossos colegas de bispado da
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provncia de Cesareia; de alguma maneira tu os incentivaste a escolher antes esta soluo, a
exemplo de todos os irmos e consacerdotes que moram contigo e a corroboram.
14. Mas uma coisa perguntar-se se Deus o criador e realizador de todas as almas e corpos ( o
que diz a verdade), ou se qualquer coisa na natureza surge sem que Ele a faa (opinio que um
erro completo); e outra perguntar-se, porm, se Deus faz as almas por reproduo ou sem
reproduo (que elas so feitas por Ele, porm, no permitido duvidar). Neste problema quero
que estejas vigilante e atento; no derrubes a teoria da reproduo das almas para assim tombar,
incauto, na heresia pelagiana26 . Pois se afirmamos que Deus (e afirmamos verdadeiramente) o
criador dos corpos humanos, cuja reproduo todos conhecem e no somente o criador dos
corpos daquele primeiro homem e do primeiro casal, mas de todos os corpos propagados a partir
deles acredito que podemos facilmente compreender que aqueles homens, que defendem a
teoria da reproduo das almas, no querem, a partir desse argumento, nos enganar e derrubar o
fato que, quando Deus faz as almas, Ele tambm faz os corpos (os quais, no podemos negar,
so feitos por reproduo); mas devemos procurar outras provas com as quais possamos repelir
aqueles outros que acreditam que as almas se reproduzem, se a verdade diz que eles erram; seria
necessrio interrog-los acerca deste assunto, se fosse possvel; eles que, por causa de sua
ousadia ante os mortos, como escreves na carta que tu me enviaste depois, tu temias converter
para a melhor parte. Ora, tu mencionaste que esses falecidos foram tantos e to eminentes,
bispos to instrudos que tu, professor novio e inexperiente, temias perverter
voluntariamente suas tradies. Igualmente, se eu pudesse conhecer com quais testemunhos,
afinal, esses tantos homens, e to instrudos afinal asseveram que essa concluso sobre a
reproduo das almas [. . .]27 a qual, porm, tu afirmaste, na carta dada aos irmos em Cesareia
de maneira nenhuma levando em considerao sua autoridade que se tratava de uma
teoria nova e de um dogma indito, ao passo que ns sabemos, certamente (e mesmo se for um
erro), que no se trata entretanto de algo novo, mas de algo batido, e muito velho28 .
15. Quando, porm, outras razes nos levam a duvidar, sem que seja desmerecido, de um
determinado problema, ento no devemos duvidar, aqui, se devemos duvidar. De fato, devemos
duvidar sem dvidas dos fatos duvidosos29 ; tu vs como o apstolo <Paulo> no tem dvidas de
duvidar de si mesmo, se ele foi no corpo, se fora do corpo arrebatado ao terceiro cu; se uma
coisa ou outra, no sei; Deus o sabe30 . Por que, ento, no me seria conveniente duvidar, a
mim, enquanto no sei se a minha alma veio a esta vida por reproduo, ou sem reproduo, j
que eu no duvidaria que ela foi feita, de uma ou outra maneira, pelo Deus supremo e
verdadeiro? Por que no me seria correto afirmar: sei que minha alma existe por obra de Deus,
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e portanto obra de Deus; se por reproduo (como o corpo), ou se sem reproduo (como
aquela que foi dada ao primeiro homem), isso Deus sabe? Qual desses problemas queres que
eu solucione? Eu conseguiria, se soubesse! Se tu mesmo o sabes, a tu me tens mais desejoso de
aprender o que no sei, que ensinar o que sei31. Se tu, porm, no o sabes como eu, reza
tambm, como eu, para que Ele, nosso professor, nos ensine mediante algum servo seu ou Ele
mesmo, que disse a seus discpulos: no queirais ser chamados Rabi, porque um s o vosso
professor, a saber, o Cristo32 ; somente se, porm, Ele souber que nos urgente que
conheamos tambm tais coisas, Ele que conhece no s o que nos ensina, mas tambm o que
nos urge aprender.
16. Pois eu confesso a teu amor a minha vontade: com efeito, desejo, eu tambm, conhecer o que
procuras; mas eu desejaria muito mais saber, se fosse possvel, quando se apresentar o
desejado de todas as naes33 e quando se realizar o reino dos santos, que conhecer de onde
eu surgi para vir a esta terra. Isso, no entanto, quando os seus discpulos, os nossos apstolos,
lhe perguntaram, a Ele que tudo sabe, eles receberam como resposta: no vos pertence saber os
tempos ou as estaes que o Pai estabeleceu pelo seu prprio poder34. Agora, se Ele tambm
sabe que no nos pertence saber isso, Ele que certamente o sabe, de que nos seria til sab-lo?
Com efeito, isso eu sei por meio Dele, que no nos pertence saber os tempos ou as estaes
que o Pai estabeleceu pelo seu prprio poder; se, porm, nos pertence conhecer a origem das
almas, a qual ainda desconheo, isto , se que nos pertence conhec-la nem mesmo isso eu
sei! Se eu ao menos soubesse que no nos cabe conhec-la, eu no s desistiria de afirmar o que
eu ainda no sei, mas deixaria tambm totalmente de procur-la. Agora, embora o assunto seja
por demais obscuro e profundo, de modo que eu fique mais no temor de ensin-lo do que no
desejo de aprend-lo, ainda assim quero conhec-lo, se possvel. E, bem, ainda que me seja
muito mais necessrio o que diz aquele homem santo: faze-me conhecer, Senhor, o meu
fim35 (note que ele no diz o meu incio), quisera eu que nem meu incio, sobre o qual diz
respeito esse problema, me ficasse escondido!
17. Mas no sou ingrato, em relao tambm ao meu incio, ao meu professor <Cristo>; eu sei que a
alma humana espiritual e no corprea; que racional ou intelectual; e que ela no da
mesma natureza de Deus, mas antes uma criatura at certo ponto mortal na medida em que
ela pode transformar-se em algo pior, e alienar-se da vida em Deus, em cuja participao ela se
torna abenoada e tambm at certo ponto imortal36, j que ela no pode perder a sensao
de que, aps esta vida, lhe cair o bem ou o mal. Sei tambm que a alma no mereceu ser
enclausurada na carne em razo de aes realizadas antes de encarnar, mas que no por isso
)535
Aug. ep. 202A
que ela reside no homem sem a imundcie do pecado (e mesmo se, como est escrito, sua vida
tenha sido um nico dia sobre a terra37). E com isso eu sei que, a partir de Ado, e na esteira das
geraes seguintes, ningum nasce sem pecado, da que tambm necessrio que as crianas
renasam em Cristo atravs da Graa da regenerao. So esses tantos, e no so poucos, os
fatos sobre o incio ou origem de nossas almas, diversos dos quais dizem respeito quela
percepo38 que se fundamenta na f, que me alegro de ter aprendido e digo com segurana que
sei. Por causa disso, e em relao ao problema sobre a origem das almas, se eu no sei se Deus
as faz aos homens por reproduo ou sem reproduo, eu no tenho dvidas, porm, que elas
so feitas por Ele mesmo, e de fato um desejo meu saber mais disso que permanecer na
ignorncia; mas enquanto no posso, melhor que eu permanea em dvida neste ponto, que
ousar dizer com segurana algo que poderia talvez entrar em confronto com qualquer coisa da
qual no devo, talvez, duvidar39 .
18. Igualmente tu, meu bom irmo, visto que me consultas, e queres que eu defina um desses dois
pontos: se as almas restantes so feitas a partir daquele nico homem, como os corpos, por
reproduo; ou se elas so feitas sem reproduo, como a alma daquele mesmo homem,
individualmente a cada indivduo, e pelo Criador (ora, no negamos, de um modo ou de outro,
que elas so feitas por Ele); aceita que eu, tambm, te consulte: de que maneira a alma traz
originalmente o pecado de um lugar de onde ela mesma no originalmente trazida40 ? Ora, no
negamos que todas as almas trazem, a partir de Ado e de maneira similar, o Pecado Original,
para assim no incorrermos na detestvel heresia pelagiana. Se nem tu sabes isso que eu
questiono, tenha a pacincia de me permitires no saber algo que tanto tu, quanto eu tambm,
questionamos. Mas se tu j sabes o que questiono, ento eu responderei, quando tu ento me
ensinares aquilo que queres que eu responda, j sem apreenso alguma a. Logo, peo que no te
irrites por eu no ter conseguido dizer com segurana o que procuras (mas consegui demonstrar
o que deves procurar); assim, quando o encontrares, no ters dvidas de afirmar com segurana
o que procuravas.
19. Eis que estimei que devia escrever tambm a tua santidade, tu que ests quase certo de que a
doutrina da reproduo das almas deve ser reprovada. De resto, se fosse preciso responder
queles que a asseveram, eu mostraria talvez de que maneira eles desconhecem o que julgam
conhecer, e por quo grande razo deveriam temer para quem no ousem assever-lo.
20. Certo, na resposta de meu amigo <Jernimo> que anexei nesta carta, que no te incomode o fato
de ele ter mencionado dois livros enviados por mim, sobre os quais ele respondeu que no teve
tempo livre para respond-los. Um deles, e no ambos, aborda essa questo41 ; no outro, porm,
)536
Aug. ep. 202A
eu lhe coloquei um outro assunto, ao consultar-lhe e expor-lhe. Mas ele, verdade, me
aconselha e incentiva que prestemos mais ateno em expulsar a mais perigosa heresia das
igrejas42; ele se refere prpria heresia pelagiana, a qual, a fim de a evitares o mais
cautelosamente possvel, eu te aconselho, na medida em que posso, e como um irmo que, ao
decidires refletir ou j discutir sobre a origem das almas: no te venhas subrepticiamente
a crena de que qualquer alma, qualquer uma que seja (com exceo da alma do nico
Mediador), no traz, a partir de Ado, o Pecado Original intrnseco em sua prpria criao, o
qual deve ser absolvido em sua regenerao.

)537
Aug. ep. 202A
NOTAS

1Optato (fl. sec. IV d. C.), bispo de Milevis (atual Mila, na Arglia), teve papel importante durante a polmica donatista
na frica; v. Brown (2013) p. 207-221. Optato de Milevis, cf. Hier. Vir. ill. 110; LThK VII p. 1076-1077. Para
episcopus, v. supra Aug. Ep. 28, n. 6.
2No sabemos quem era Saturnino, a no ser que fora o baiulus que entregou tanto a carta, perdida, de Optato para
Agostinho, quanto, provavelmente, esta carta 202A de Agostinho a Optato. Para presbyter, v. supra Aug. Ep. 28, n. 1.
3 Este liber, usado no singular, certamente referncia Aug. Ep. 166, um dos duo libri que compe, com Aug. Ep.
167, o opus que Agostinho dedicara a Jernimo (cf. Aug. Ep. 169,13; 190,20; Retract. 2,45). Deve-se compreender que
Optato havia pedido especificamente esse texto a Agostinho, j que a presente carta, Aug. Ep. 202A, trata tambm sobre
a origem da alma.
4 A saber, Aug. Ep. 166.
5 O outro portador, nesse caso, Paulo Orsio (v. supra Aug. Ep. 166, n. 4), e a carta mencionada Hier. Ep. 134.
6 Em Hier. Ep. 134,1.
7 Animi rancor, v. supra Hier. Ep. 102, n. 11.
8 Ou seja, as cartas Aug. Ep. 166 e 167.
9 2 Cor 10:12.
10 A referncia certamente aos pelagianos, que sero mencionados nos pargrafos seguintes; v. supra Hier. Ep. 134, n.
9.
11A acepo de que escrever j , de certa maneira, querer que o texto seja publicado uma impresso que Agostinho
partilha com Jernimo: dic, oro te, celandas schedulas scripseras an prodendas? si ut celares, cur scripsisti? si ut
proderes, cur celebas?, diz, eu te pergunto, tu escreveras as pginas para serem escondidas ou publicadas? Se para
esconderes, escreveste por qu? Se para publicares, escondias por qu? (cf. Hier. Ep. 1,1; 3,34).
12 E de fato Aug. Ep. 166 foi publicada aps a morte de Jernimo, conforme Agostinho explicita em Aug. Retract. 2,45.
13Uma vez que a carta de Optato no sobreviveu, impossvel delimitar precisamente quais eram esses senes et a
doctis sacerdotibus instituti viri.
14No claro em qual Cesareia viviam os presbteros a quem Optato havia dirigido sua carta, dado que havia diversas
cidades com esse nome na Antiguidade Tardia, maiormente nas regies do Oriente: havia Cesareias na Turquia, na
Anatlia, na Judeia, e na Capadcia. Os monges de Saint Maur indicam que se tratava de uma Cesareia na Mauritnia,
mencionada por Plnio o Velho (cf. Plin. Nat. 1,5,2).
15 No sobreviveu nenhuma das cartas mencionadas aqui.
16 Orgenes (v. supra Aug. Ep. 28, n. 12), como Jernimo indicou em uma carta anterior, acreditava que a alma era
criada do nada [ex nihilo]; Prisciliano (v. supra Hier. Ep. 126, n. 12), embora aparea ao lado de Orgenes nesta
sentena, fora arrolado na mesma carta entre os partidrios da , a teoria de que a alma era um jorro de Deus
(cf. Hier. Ep. 126,1).
17 Cf. Rom 9:1 e Hbr 11:20.
18 Trata-se de um tratado que Optato teria autorado sobre a f crist, de fide, o qual se perdeu.
19 Para a subscriptio, v. supra Aug. Ep. 40, n. 2.
20Devemos inferir que os iudices saeculares so os filsofos pagos, mas com uma conotao menos negativa que um
philosophus ou graecus pudesse carregar; v. supra Aug. Ep. 82, n. 41.
21 Trata-se da mesma expresso em latim, animarum nostrarum incorporea quaedam sui generis semina, alguns
grmens incorpreos e de prprio tipo de nossas almas. Labourt (1963) vol. VIII, p. 105 a preserva; a locuo sui
generis tambm cabvel em portugus. No h necessidade de traduzi-la.
22 Canonica auctoritas, v. supra Aug. Ep. 28, n. 13.

)538
Aug. ep. 202A

23Parece tratar-se de uma confuso que Optato faz de duas hipteses, a do traducionismo e a da ; v. supra
Hier. Ep. 126, n. 9.
24 Trata-se da hiptese do criacionismo; v. supra a introduo a Aug. Ep. 166, p. 380-386.
25 Agostinho continua firme em sua busca da interpretao unvoca das Escrituras, mesma temtica que havia explorado
em Aug. Ep. 28; 40; 71 e 82. Afirmao semelhante, neste contexto da origem da alma do homem, est em Aug. Anim.
et orig. 2,14,19-20.
26Os pelagianos, ao refutar a hiptese do traducionismo, acabaram por se vincular a um tipo de criacionismo no qual a
alma, semelhante hiptese da , partilhava da mesma substncia de Deus e no herdava o Pecado Original.
27 Goldbacher (1923) vol. IV, p. 316 assinala aqui uma lacuna, aps o verbo adserebant, cujo sujeito tanti et tam docti
viri (o complemento de scire, no caso, no istam sententiam mas quibus vel testimoniis). Labourt (1963) vol. VIII, p.
109 preenche o texto com um esse falsam, que falsa, uma soluo que nos parece algo apressada, portanto no a
adotamos.
28De fato, a teoria do traducionismo fora sustentada pelo primognito da literatura crist latina, Tertuliano, assim como
por Irineu de Lyon, Apolinrio de Laodiceia e a maioria dos telogos ocidentais, conforme Jernimo sinalizara em sua
carta a Marcelino e Anapsquias (cf. Hier. Ep. 126,1).
29 Em latim, de dubiis quippe rebus sine dubitatione dubitandum est. Vimos anteriormente, nas variaes com
concordia, indignatio e ignorantia, que Agostinho afeito do jogo de palavras, abusando desse recurso lingustico,
assim como do raciocnio sinuoso que estica as regras gramaticais ao seu mximo de elasticidade.
30 2 Cor 12:2-3.
31 O mesmo em Aug. Ep. 148,4; 157,41; 166,1; Gen. ad litt. 12,18,39.
32 Mt 23:8; a mesma passagem fora citada anteriormente em Aug. Ep. 166,9.
33Variante para Agg 2:8, quando praesentatur desideratus omnibus gentibus. A Vulgata l venient thesauri cunctarum
gentium; viro coisas preciosas de todas as naes na ACF, que por sua vez traduz o grego
da Septuaginta.
34 Act 1:7.
35 Ps 39:4 <38:5>. O sanctus David, suposto autor dos Salmos.
36 Cf. Aug. Ep. 166,2-3; Anim. et orig. 4,4,5; C. Prisc. 1,1; C. Max. 12,2.
37 Cf. Job 14:4-5
38 Scientia, v. supra Aug. Ep. 73, n. 31.
39
Esta afirmao semelhante a Aug. Serm. 27,4, melior est ergo fidelis ignorantia quam temeraria scientia, logo,
melhor a ignorncia da f que o conhecimento pela afobao.
40 Eis uma das grandes questes da obra de velhice de Agostinho: como a alma herda o Pecado Original. O bispo de
Hipona nunca conseguiu dar uma soluo satisfatria a esse problema, ainda que tenha se aliado a um traducionismo
mais brando, que estivesse de acordo com o criacionismo, para explicar a origem das almas. Como demonstramos na
introduo a essa carta, parece ser o objetivo do bispo justamente aliar essas duas hipteses.
41 A saber, Aug. Ep. 166.
42 Em Hier. Ep. 134,1; trata-se da heresia pelagiana.

)539
APNDICE

Agostinho Retract. 2,45


[ca. 427-430]

Escrito entre 427 e 430, os dois livros das revises, em latim retractationum libri duo, ficaram incompletos
devido polmica contra Juliano de Eclano, que estourara na poca e levara Agostinho a refutar este autor s pressas.
Sabemos disso pois o bispo de Hipona, em carta enviada a Quodvultdeus, datada de 428, afirma que pretendia ainda
revisar seu conjunto de cartas e homilias, ofcio que no conseguiu finalizar. Eis a passagem:

agebam vero rem plurimum necessariam: nam retractabam opuscula mea; et si quid in eis me offenderet, vel alios offendere
posset, partim reprehendendo, partim defendendo quod legi deberet et posset, operabar. et duo volumina iam absolveram,
retractatis omnibus libris meis, quorum numerum nesciebam: eosque ducentos triginta duos esse cognovi. restabant
epistulae, deinde tractatus populares, quos Graeci vocant. et plurimas iam epistolarum legeram, sed adhuc nihil
inde dictaveram, cum me etiam isti Iuliani libri occupare coeperunt, quorum nunc quarto respondere coepi. quando ergo id
explicavero, quintoque respondero, si tres non supervenerint, dispono (si Deus voluerit) et quod poscis incipere, simul agens
utrumque, et hoc scilicet, et illud de retractatione opusculorum meorum, nocturnis et diurnis temporibus in singula
distributis.

Eu havia iniciado ento trabalho profundamente necessrio: coloquei-me a revisar minhas obras; se nelas houvesse
qualquer coisa que me incomodasse, ou que pudesse incomodar a outros, eu l trabalhava, em partes corrigindo, noutras
partes esclarecendo o que fosse preciso, ou possvel, entender. Eu j havia concludo dois volumes, tendo revisado todos os
meus livros, cuja quantidade eu desconhecia (contei duzentos e trinta e um entre eles). Restavam minhas cartas, e ento os
tratados populares, que os gregos chamam de . Enfim, eu j havia lido muitas das cartas, mas at ento nada ditara
acerca delas, quando esses livros de Juliano [de Eclano] passaram a me ocupar, dos quais comecei, agora, a responder o
quarto. Logo, quando eu o terminar, responderei o quinto; se trs no forem demais, disponho-me (se Deus quiser) a iniciar
o que pedes, trabalhando nas duas coisas ao mesmo tempo, tanto isso que acabei de dizer quanto a empresa de revisar
minhas obras, dedicando-lhes inteiramente dia e noite.
(cf. Aug. Ep. 224,2)

O velho bispo veio a falecer pouco depois, no ano de 431, aos 77 anos. Os pesquisadores acreditam que a
publicao desta obra foi pstuma, e levada a cabo por Possdio, o bigrafo do autor.
Neste trecho do segundo livro, Agostinho menciona Aug. Ep. 166-167 o tratado sobre a origem da alma do
homem, De origine animae hominis, e o tratado sobre a concluso do apstolo Tiago, De sententia Iacobi apostoli,
ambos dedicados a Jernimo como duo libri, dois livros, ou dois tratados, que compem uma nica obra, opus, a
qual ele no queria publicar sem a resposta de seu correspondente, mas o fez assim que soube de sua morte.
Aqui, a traduo baseada no texto presente na edio de Carole Fry1 .

1 Texto em Fry (2010) p. 457-462 apud Mtzenbecher (1984) p. 126-127.

)540
Aug. retract. 2,45

Ad Hieronymum presbyterum libri duo, unus de origine animae et alius de sententia Iacobi.
Scripsi etiam duos libros ad presbyterum Hieronymum sedentem in Bethleem, unum de
origine animae hominis, alterum de sententia apostoli Iacobi, ubi ait: Quicumque totam Legem
servaverit, offendat autem in uno factus est omnium reus, de utroque consulens eum. Sed in illo
priore quaestionem quam proposui ipse non solvi, in posteriore autem quid mihi de illa solvenda
videretur ipse non tacui, sed utrum hoc adnueret etiam ille consului. Rescripsit autem laudans
eandem consultationem meam, sibi tamen ad respondendum otium non esse respondit. Ego vero
quousque esset in corpore hos libros edere nolui ne forte responderet aliquando, et cum ipsa
responsione eius potius ederentur. Illo autem defuncto, ad hoc edidi priorem ut qui legit admoneatur
aut non quaerere omnino quomodo detur anima nascentibus, aut certe de re obscurissima eam
solutionem quaestionis huius admittere, quae contraria non sit apertissimis rebus, quas de originali
peccato fides catholica novit in parvulis, nisi regenerentur in Christo, sine dubitatione damnandis,
posteriorem vero ad hoc ut quaestionis de qua ibi agitur, etiam quae nobis visa est solutio ipsa
noscatur.
Hoc opus sic incipit: Deum nostrum qui nos vocavit...

)541
Aug. retract. 2,45

Ao presbtero Jernimo, dois livros; um sobre a origem da alma [Aug. Ep. 166], e outro
sobre a concluso de Tiago [Aug. Ep. 167].
Escrevi, ainda, dois livros ao presbtero Jernimo, que ento morava em Belm, um sobre a
origem da alma do homem, e o outro sobre a concluso de Tiago ao dizer: porque qualquer que
guardar toda a lei, e tropear em um s ponto, tornar-se- culpado de todos1; sobre ambas as
questes eu pedia seu parecer. Eu no consegui, porm, resolver o problema que propus no primeiro
livro, mas no deixei de dizer o que julguei pertinente para resolver o do segundo; todavia, eu
consultei se ele mesmo assim concordava com minha soluo. Ele, por sua vez, elogiou minha
solicitao ao me reescrever, mas respondeu que no tinha tempo livre para respond-la2 . Na
realidade, eu no quis editar os livros mencionados enquanto ele estava ainda vivo, na esperana de
que ele viria a me responder um dia, para assim edit-los, de preferncia, com sua resposta3. Agora,
tendo ele morrido4, editei o primeiro livro para advertir o leitor de que ele ou evite questionar, em
absoluto, de que maneira se d a alma aos recm-nascidos5 , ou evite admitir, neste assunto to
obscuro, qualquer soluo para o problema que seja contrria aos fatos mais evidentes que a f
catlica conhece com certeza sobre o Pecado Original nos bebs (que, se no renascerem em Cristo,
sem dvidas sero condenados6); quanto ao segundo livro, editei-o para que nele fosse conhecida a
soluo que ento julgvamos correta sobre o problema que l se coloca.
Essa obra7 comea assim: A Nosso Deus que nos chamou...

)542
Aug. retract. 2,45
NOTAS

1 Jac 2:10.
2 Cf. Hier. Ep. 134,1.
3 Cf. Aug. Ep. 169,13; 190,21; 202A,2;5.
4Jernimo morreu entre 419 e 420; v. supra captulo 2, n. 80 para uma discusso da data de nascimento e morte do
autor.
5 Cf. Aug. Ep. 166,3.
6 Cf. Aug. Ep. 166,28.
7 Hoc opus sic incipit, em latim. O uso do singular indcio de que Agostinho considerava ambas Aug. Ep. 166 e 167,
duo libri, como uma nica obra, uma vez que terminavam em uma mesma questo dogmtica, a saber, a necessidade do
batismo para a salvao. O bispo de Hipona havia se referido aos textos como libri anteriormente em uma carta enviada
a Evdio (cf. Aug. Ep. 169,13) e em duas enviadas a Optato, bispo de Milevis (cf. Aug. Ep. 190,20 e 202A,1). V. Frst
(2002) p. 471, n. 861.

)543
POSFCIO
Jernimo vs. Agostinho

, ;

.
Rom 10:18

)544
)545
)546
CONCORDATA EPISTVLARVM

Primeiro perodo [394/395 - 405]


PL Migne Goldbacher Hilberg Daur Labourt Frst Fry
Hier. + Aug. (CSEL) (CSEL) (CSEL)

Aug. 28 22,565a-568b 34/1, 54 vol. I vol. III vol. I -


<Hier. 56> 33,111b-114a p. 103-113 p. 496-503 p. 92-97 p. 49-55 p. 96-113 p. 27-47

Aug. salut.
<?> - - - - -
vol. I -
p. 112-115 p. 49-50
Hier. B
<?>
Aug. 40 22,647c-651a 34/2, 54 vol. I vol. III vol. I -
33,151b-156a p. 69-81 p. 666-674 p. 159-165 p. 181-188 p. 118-135 p. 51-74
<Hier. 67>
Aug. 67 22,829a-830f 34,2, 55 vol. II vol. V vol. I -
<Hier. 101> 33,236a-237a p. 237-239 p. 232-234 p. 27-28 p. 92-93 p. 134-139 p. 75-82

Hier. 102 22,830g-831b 34/2, 55 vol. II vol. V vol. I -


<Aug. 68> 33,237a-238b p. 240-243 p. 234-236 p. 29-31 p. 93-95 p. 138-145 p. 83-92

Hier. 103 22,831c-832b 34/2, 55 vol. I vol. V vol. I -


<Aug. 39> 33,154a p. 67-68 p. 237-238 p. 158 p. 95-96 p. 114-117 p. 93-99

Aug. 71 22,832c-834e 34/2, 55 vol. II vol. V vol. I -


<Hier. 104> 33,241a-243a p. 248-255 p. 238-242 p. 36-39 p. 96-100 p. 158-167 p. 101-113

Aug. C - - - - - vol. I -
p. 146-147 p. 115
<?>
Hier. 105 22,834f-837a 34/2, 55 vol. II vol. V vol. I -
33,243a-245a p. 255-262 p. 242-246 p. 40-43 p. 100-103 p. 146-157 p. 117-129
<Aug. 72>
Aug. 73 22,909c-915d 34/2, 55 vol. II vol. VI vol. I -
<Hier. 110> 33,245a-250a p. 263-278 p. 356-366 p. 44-52 p. 8-17 p. 230-253 p. 131-154

Aug. 74 22,915e-916f 34/2, 55 vol. II vol. Vi vol. I -


<Hier. 111> 33,250a-251a p. 279 p. 366-367 p. 53 p. 17-18 p. 254-255 p. 155-160

Hier. 112 22,916f-931a 34/2, 55 vol. II vol. VI vol. I -


<Aug. 75> 33,251a-263a p. 280-324 p. 367-393 p. 54-76 p. 18-43 p. 168-231 p. 161-217

Hier. 115 22,935c-935d 34/2, 55 vol. II vol. Vi vol. I -


<Aug. 81> 33,275a p. 350-351 p. 396-397 p. 96 p. 45-46 p. 256-259 p. 219-225

Aug. 82 22,936d-953a 34/2, 55 vol. II vol. VI vol. II -


33,275b-291a p. 351-387 p. 396-422 p. 97-122 p. 46-75 p. 260-335 p. 227-289
<Hier. 116>

)547
Segundo perodo [412 - 419]
PL Migne Goldbacher Hilberg Daur Labourt Frst Fry
Hier. + Aug. (CSEL) (CSEL) (CSEL)

Hier. 126 22,1085b-1087a 34/3 56/1 - vol. VII vol. II -


<Aug. 165> 33,718a-720a p. 541-545 p. 142-145 p. 134-136 p. 336-343 p. 291-302

Aug. 166 22,1124e-1138c 34/3 56/1 - vol. VIII vol. II -


<Hier. 131> 33,,720a-733a p. 545-585 p. 202-225 p. 8-32 p. 342-399 p. 303-355

Aug. 167 22,1138d-1147a 34/3 56/1 - vol. VIII vol. II -


33,733a-741a p. 586-609 p. 225-241 p. 32-48 p. 398-435 p. 357-393
<Hier. 132>
Hier. 134 22,1161a-1162g 34/3 56/1 - vol. VIII vol. II -
33,752a-753 p. 363-639 p. 261-263 p. 69-70 p. 434-441 p. 407-414
<Aug. 172>
Aug. 180 - 34/3 - - - vol. II -
<-> 33,778a-779 p. 697-700 p. 460-469 p. 395-406

Hier. D
<?>
- - - - -
Aug. E
<?> vol. II -
p. 440-443 p. 415-418
Hier. F
<?>
Hier. G
<?>
Aug. 19* Sem correspondente nas edies anteriores s de Frst e Fry, a Ep. 19* de Agostinho foi
descoberta e publicada pela primeira vez em 1981, por Johannes Divjak. vol. II -
<-> <cf. Divjak (1981), CSEL 88, 91-93> p. 442-449 p. 419-427

Hier. 141 22,1179c-1180d 34/4 56/1 - vol. VIII vol. II -


<Aug. 195> 33,891a p. 214-216 p. 290-291 p. 96-97 p. 448-451 p. 429-435

Hier. 142 22,1180e-1181a 34/4 56/1 - vol. VIII vol. II -


<Aug. 123> 33,472a p. 745-746 p. 291-292 p. 97 p. 450-453 p. 437-442

Hier. scrip.
<?> - - - - -
vol. II -
p. 452-455 p. 443-446
Aug. I
<?>
Hier. 143 22,1181a-1182f 34/4 56/1 - vol. VIII vol. II -
33,928a-929 p. 299-301 p. 292-294 p. 98-99 p. 454-459 p. 447-455
<Aug. 202>
Aug. 202A 22,1182g-1192 34/4 56/1 - vol. VIII - -
< Hier. 144> 33,929a-938a p. 302-318 p. 294-308 p. 99-113

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Corrept. de correptione et gratia, PL 44.
Divers. quaest. de diversis quaestionibus ad Simplicianum, PL 40.
Doctr. Christ. de doctrina christiana, PL 34.
Duab. anim. de duabus animabus contra Manichaeos, PL 42.
De mend. de mendacio, PL 40.
De Serm. Dom. in Monte de sermone Domini in monte secundum Matthaeum, PL 34.
Enchir. enchiridion vel ad Laurentium de fide, spe et caritate, PL 40.
Ep. epistulae, PL 33.
Gen. ad litt. de Genesi ad litteram, PL 34.
Gen. ad litt. imperf. de Genesi ad litteram imperfectus, PL 34.
Gen. c. Man. de Genesi contra Manachaios, PL 34.
Gest. Pelag. de gestis Pelagii, PL 44.
Grat. Christ. de gratia Christi et de peccato originali contra Pelagium, PL 44.
Haer. de haeresibus ad Quodvultdeum, PL 42.
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Lib. Arb. de liberto arbitrio, PL 32.
Immort. de immortalitate animae, PL 32.
Mag. de magistro, PL 32.
Mor. Eccl. de moribus ecclesiae catholicae, PL 32.
Music. de musica, PL 32.
Nat. bon. de natura boni adversus manichaeos, PL 40.
Nat. et grat. de natura et gratia ad Timasium et Iacobum contra Pelagium, PL 44.
Nupt. et concup. de nuptiis et concupiscentia ad Valerium, PL 44.
Op. monach. de opere monachorum, PL 40.
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Pecc. Mer. de peccatorum meritis et remissione et de baptismo parvulorum ad Marcellinum, PL 44.
Per. iust. de perfectione iustitae hominis contra Caelestii Pelagiani definitiones, PL 44.
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Bacch. Bacchae In Comoediae tomus I, ed. W. M. Linsday (Oxford: OCT, 1922).
Mil. Miles Gloriosus In Comoediae tomus I, ed. W. M. Linsday (Oxford: OCT, 1922).
Pers. Persa In Comoediae tomus II, ed. W. M. Lindsay (Oxford: OCT, 1922).
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Herc. Fur. Hercules Furens In Tragoediae, ed. O. Zwierlein (Oxford: OCT, 1986).

SIDNIO Apolinrio.
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Aug. Augustus In De vita Caesarum, ed. M. Ihm (Leipzig: Teubner, 1908).
Caes. Caesar In De vita Caesarum, ed. M. Ihm (Leipzig: Teubner, 1908).
Calig. Gaius Caligula In De vita Caesarum, ed. M. Ihm (Leipzig: Teubner, 1908).
Claud. Claudius In De vita Caesarum, ed. M. Ihm (Leipzig: Teubner, 1908).
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Pho. Phormio In Comoediae, ed. W. M. Lindsay (Oxford: OCT, 1926).

TERTULIANO.
Adv. Herm. adversus Hermogenes, PL 2.
Adv. Marc. adversus Marcionem, PL 2.
Anim. de anima, PL 2.
Apol. apologeticus adversus gentes pro christianos, PL 1.
Carn. de carne Christi, PL 2.
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VARRO.
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VELEIO Patrculo.
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* Bblia Sagrada baseada no Texto Recebido, traduzida por Joo Ferreira de Almeida e corrigida fiel pela Sociedade
Bblia Trinitariana do Brasil <ACF>. Disponvel on-line em https://www.bibliaonline.com.br/acf.
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POSFCIO
Conflitos de geraes

Agostinho, o bispo de tabarro vermelho ricamente adornado em ouro, acompanhado do cajado e


do saturno, como nas representaes do pintor veneziano Giovanni Bellini, por vezes at provido da
barba rala e austera do homem romano, o eminente defensor da Graa de Cristo, a aurola sobrevoando
sua plcida testa, arauto do Pecado Original e da Predestinao, aquele que hoje nos aparece como um
pensador medieval e intelectualizado, afeito ao pensamento abstrato e aos tomos de filosofia, um
precursor de Toms de Aquino; Jernimo, o vetusto patrono dos tradutores, suas vestes adornadas como
as de um cardeal ou presbtero, ou um monge nu e esqulido, de roupas rotas e pobres, apertando uma
pedra contra o peito, aquele que em sua infinda misericrdia e coragem tirou o espinho da pata do leo,
por vezes debruando as longas e desgrenhadas barbas grisalhas, cheias de gravitas, sobre volumes,
pergaminhos, e cdices, textos, textos, textos interminveis, como na tela do milans Caravaggio, esse
exegeta paciente e tcito, eruditssimo.
Foi-nos difcil acreditar, sob o peso da tradio, que tanto o monge quanto o bispo usavam antes
a toga, e no o manto; que Aurlio Agostinho era argelino, talvez prximo de como retratado no filme
de Rossellini1 ; que Eusbio Jernimo, esloveno tendo nascido, alis, na mesma cidade em que nasceu
Slavoj iek, Liubliana foi um polemista temido no Ocidente e Oriente afora, um moralista que
circulava vontade entre a nobreza romana, muito distante da voz que clama no deserto da Palestina;
que ambos foram ento homens altamente controvertidos, tendo vivido em um tempo no qual a Igreja se
firmava como instituio em meio ao Imprio, tendo sentido no corao mais profundo a
incompatibilidade entre o mos maiorum da literatura pag e os valores cristos. Encontrar uma maneira
de unir estas duas coisas foi o grande projeto que ocupou os nossos autores, entre tantos outros que
viveram na Antiguidade Tardia.
Quo mais desafiador foi ter concludo haver tamanha inimizade nas cartas trocadas entre eles. A
figurao de uma relao de personagens centrais do pensamento cristo como rancorosa salta aos
olhos. Como o pai da doutrina crist poderia discutir com um irmo da mesma f, e ainda mais o grande
tradutor das Escrituras para o latim, atravs de farpas e repreenses? Acompanhar a histria dessa
relao turbulenta, na qual Jernimo nunca mostrou interesse real em se corresponder com Agostinho,
fez com que nos espantssemos ao descobrir em sua correspondncia homens muito diferentes dos
santos que aquela tradio nos legou.
Os estudiosos antigos procuraram mitigar a relao turbulenta que surgiu entre Jernimo e
Agostinho, se no pelo efeito da tradio, ento por aquele das palavras. A correspondncia que
estudamos no passaria, para alguns crticos, de um teatro artificial prprio das polmicas crists, de um
exerccio no campo de batalha das Escrituras. De fato, h diversos elementos genricos que o
civilismo exige que se encerrem nas cartas, seja devido s prerrogativas do gnero epistolar helenstico,
seja devido propriamente epistolografia como os cristos a conduzem, estes que trouxeram
modificaes importantes a fim de construir, por meio de cartas, uma identidade que pudesse distingui-
los de seus antecessores pagos. Com efeito, esses pesquisadores estiveram corretos em apontar que o

)571
conflito entre Jernimo e Agostinho emerge atravs da manipulao de elementos do gnero epistolar;
mas preciso ir alm. Uma anlise de gnero no basta para explicar as ricas questes que se encerram
na correspondncia que Agostinho travou com Jernimo. Essa pesquisa teve, em parte, o objetivo de
dissipar uma leitura teologizante e filologizante no raro excludente dessa relao epistolar,
problematizando-a ao confront-la com a historiografia. Um de nossos alvos foi devolver as cartas que
eles trocaram entre si a sua contemporaneidade, fazendo com que elas se presentificassem a nossos
olhos e se tornassem, novamente, as palavras de Aurlio Agostinho, de incio o ex-professor de retrica
e jovem presbtero, homem contemplativo e ambicioso que viera de uma famlia de recursos mdicos de
Tagaste, posteriormente bispo de Hipona, pregador controvertido em todo o Ocidente, o campeo da
doutrina catlica contra o donatismo e o pelagianismo, ainda que sempre, em vida, duramente criticado
por seus pares; e as de Eusbio Jernimo, o monge recluso de Belm, autor de larga e antiga fama, o
erudito cujo conhecimento enciclopdico era admirado (mas no incontestado) na mesma proporo em
que sua verve satrica e polmica era temida. Agimos em vista de unir no s matria e elocuo, como
tambm a autorrepresentao e prtica discursiva de cada autor em nossos estudos das cartas.
Jernimo e Agostinho permanecem difceis de serem interpretados, e, justamente por terem sido
escritores to ricos e versteis (e mesmo contraditrios), entraram para o cnone, tornando-se por sua
correspondncia modelares para a epistolografia crist que se seguiu. As cartas trocadas entre nossos
autores gozavam de larga fama j na Antiguidade. certo que seletas tenham sido publicadas ainda em
vida dos autores, quais os epitaphia do monge e os libri do bispo. Paulo Orsio, o presbtero hispnico
que foi companheiro de Agostinho, personagem que havamos encontrado em missivas da dcada de
410, alude a discusses travadas entre os autores, nelas encontrando as colunas e fundamentos da
Igreja catlica2. sabido que Cassiodoro (ca. 485 - 585), o secretrio do imperador Teodorico e
fundador da Vivarium, esse homem erudito com o esprito livresco de Jernimo, tinha algumas delas em
sua biblioteca. Alcuno (735 - 804) interpretou a discusso sobre a origem da alma de acordo com seus
prprios objetivos3 . Algumas foram traduzidas para o grego por Prcoro Cidones (? - 1370), um dos
grandes estudiosos da obra de Aristteles4 ; muitas foram copiadas ao longo da Idade Mdia5 .
Flagramos Pedro, o Venervel (1092 - 1156) pedindo cpias delas para Giges I (1083 - 1137)6 ;
elas foram comentadas por Hugo de So Vtor (1096 - 1141)7, Pedro Lombardo (1100 - 1160)8, Toms
de Aquino9 (1225 - 1274); muito provavelmente tambm as percorreram Anselmo de Canturia (1033 -
1109), Pedro Abelardo (1079 - 1142) e Roger Bacon (1214 - 1292). Francisco Petrarca (1304 - 1374),
vido leitor dos antigos, tomara nota de diversos elementos que ele considerava tpico nelas, como
louvar um irmo no Senhor10 . Lutero (1483 - 1546) tambm percorreu as cartas, ainda que as tenha
julgado com a severidade prpria de seu nimo reformista11 . Erasmo (1466 - 1536) foi um autor
imensamente influenciado pelo estilo contundente e combativo de Jernimo; o telogo de Roterd
inclusive editou a epistolografia do monge em volumes publicados no incio do sculo XVI, em
Basileia12. A editio princeps das cartas de Jernimo impressas estava disponvel desde 1470, publicada
por uma casa de Roma; a de Agostinho, desde 1493, preparada por Johannes de Amerbach13 ; talvez
tenha sido esta a lida por Francisco de Sales (1567 - 1622)14 .

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No entanto, foi apenas no sculo XVIII que o corpus da correspondncia tomou forma
definitiva, atravs de edies tanto das cartas completas do monge de Belm, preparadas por Domenico
Vallarsi, primeiro em volumes publicados entre 1734 a 1742, e ento entre 1766 e 1772; quanto das do
bispo de Hipona, edio preparada pelos monges beneditinos de Saint Maur em 1768; ambas foram
afixadas por Migne na coleo da Patrologia Latina no ano de 1864. Tais colees foram cruciais para
que primeiro Marcellinus Molkenbuhr (1796), e ento Bindesbll (1825), Mhler (1839) e Overbeck
(1877), inaugurassem os estudos analticos de correspondncia entre os dois15. Foi nessa linha
acadmica que seguiram, cada qual a sua maneira, Wikenhauser (1910), Dorsch (1911), Schade (1911),
passando pelos grandes De Bruyne (1932), Labourt (1963), Courcelle (1969), at chegarmos em Divjak
(1981), Duval (1987), Hennings (1994), Frst (1999). E eis que estamos ns, aqui, assentados
humildemente, devemos confessar, no ombro desses autores, e esforando-nos para devolver um sopro
de vida a essas cartas. Este foi nosso princpio e fim ao traduzi-las, ao estud-las e, enfim, ao l-las.
Uma palavra final quanto a nossa interpretao. Ao longo de nosso trabalho, apontamos, tendo
por fundamento os estudos recentes de Ebbeler (2007; 2009; 2012), que a rixa entre Jernimo e
Agostinho se deve fundamentalmente a um conflito de geraes. Neste sentido, tomamos a liberdade de
levantar uma comparao com figuras contemporneas. A ns, Agostinho parece ter procurado Jernimo
em princpio por uma motivao intelectual, no menos vaidosa, tanto em busca da erudio do monge,
porque este sabia mais sobre a literatura crist do que qualquer outro, quanto em busca de fama s
custas de ofender homens ilustres16, em vista de projetar a voz da Igreja Africana a sua voz no
mundo eclesistico. Esta dupla motivao nos traz mente a relao que o poeta norte-americano Ezra
Pound travou com o lrico irlands W. B. Yeats (vinte anos mais velho que Pound), cuja reputao como
poeta j era firmemente consolidada quando o jovem escritor o procurou no longnquo ano de 1913,
pela primeira vez17.
Mas no s com relao idade que esse encontro entre o jovem Pound e o velho Yeats nos faz
a lembrana daquele entre o jovem Agostinho e o velho Jernimo. Tanto o monge de Belm quanto o
bispo de Hipona parecem ter tido noo de serem personagens transitrios em um mundo em transio:
Agostinho e Jernimo representaram a ponte entre o paganismo do mundo antigo e o cristianismo do
mundo medieval, como aqueles poetas foram a ponte do beletrismo vitoriano para as vanguardas
modernistas. E, assim como a histria da influncia da poesia de Yeats e de Pound confunde-se em
grande parte com a histria da poesia de lngua inglesa desde ento, a histria da influncia do debate
travado por Agostinho e Jernimo se transforma na histria do pensamento cristo daquele tempo at os
dias de hoje18.

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NOTAS

1 O filme Agostino dIppona, dirigido pelo diretor italiano Roberto Rossellini no ano de 1972.
2 Cf. Or. lib. apol. 1,4. V. Labourt (1963) vol. I, p. XLVI-XLVIII para as primeiras edies das cartas de Jernimo.
3 No De ratione animae, obra presente na edio de J. J. M. Curry para Alcuno (Ithaca: Cornell University, 1966).
4 Segundo comenta Frst (1999) p. 242.
5 V. Goldbacher (1923) vol. V, p. XI-LXXX para os manuscritos medievais das cartas de Agostinho; Labourt (1963) vol.
I, p. LXI-LXVII para os das de Jernimo.
6 Diz Pedro, o Venervel a Giges em uma de suas cartas: mittite et vos nobis si placet maius volumen epistularum sancti
patris Augustini: quod in ipso paene initio continet epistulas eiusdem ad sanctum Hieronymum, et sancti Hieronymi ad
ipsum, enviai tambm a ns, por favor, um volume maior das cartas do santo padre Agostinho, um que contenha j no
comecinho as cartas dele ao santo Jernimo, e as deste a Agostinho (cf. Petr. Ven. Ep. 24 [PL 189,106]).
7 Na Collectanea in epistulam Pauli ad Galatas, 2:14 [PL 175,556] de Hugo de So Vtor.
8 Nas Quaestiones et decisiones in epistulam Pauli ad Galatas [PL 192,110-114] de Pedro Lombardo.
9Toms de Aquino, sobre a contenda de Gal 2:11-14 na Super epistolas sancti Pauli lectura, diz: sciendum est autem
quod occasionem istorum verborum, non parva controversia est orta inter Hyeronimum et Augustinum, sabe-se,
porm, que uma controvrsia no negligencivel entre Jernimo e Agostinho surgiu em ocasio dessas palavras, citado
de Hennings (1994) p. 11, n. 1.
10certe nedum ab alio laudari verum: et gloriari licet, sed in Domino. Quotiens Augustinus Ieronimum laudat, quotiens
Ieronimus Augustinum et sanctissimum ac beatissimum papam vocat?, claro que permitido ser louvado por outro;
glorificado at, mas no Senhor. Quantas vezes Agostinho louva Jernimo, e quantas vezes Jernimo chama Agostinho
de padre muitssimo santo e abenoado? (cf. Petrarca Rerum senilium 16,9,4) no volume IV da edio de J.-Y.
Boriaud & P. Laurens (Paris: Les Belles Lettres, 2013), p. 110-111.
11Diz Lutero: iam quanti errores in omnium patrum scriptis inventi sunt! Quoties sibi ipsis pugnant! Quoties invicem
dissensiunt! Quis est, qui non saepius in scripturas torserit? Quoties Augustinus solum disputat, nihil diffinit!
Hieronymus in commentariis fere nihil asserit [...], enfim, quantos erros so encontrados nos escritos de todos os pais
da Igreja! Quantas vezes eles entram em contradio! Quantas vezes eles discordam um do outro! Qual deles no se
confunde todo, com frequncia, nas Escrituras? Quantas vezes Agostinho discute uma nica coisa, e no define nada!
Jernimo quase que nada diz de conclusivo em seus comentrios [...], em Assertio omnium articulorum M. Lutheri per
bullam Leonis X novissimus damnatorum; citado de Hennings (1994) p. 11, n. 1. No entanto, Lutero mostra-se
favorvel posio de Agostinho em seu comentrio carta de Paulo aos Glatas publicado em 1519, onde h uma
passagem citada em Frst (1999) p. 243.
12 Labourt (1963) vol. I, p. LI: rasme de Rotterdam aborda, lun des premiers, avec une relle vaillance et ce qui
tonnera peut-tre quelques lecteurs un sens catholique du meilleur aloi, la rude tche dtablir un texte des Lettres
de saint Jrme conforme aux lois de la saine critique. V. Frst (1999) p. 245 para uma breve discusses sobre a
relao de Erasmo com Jernimo.
13
Para estas e demais edies impressas das cartas de Jernimo e de Agostinho publicadas ao longo dos sculos XVI e
XVII, v. Baxter (1930) p. XIV-XV e Wright (1933) p. XIV-XVI.
14Segundo passagem citada por Frst (1999) p. 244 a partir das Oeuvres, dition complte par le soin des Religieuses
de la Visitation du premier Monastre dAnnecy 10, de 1898, p. 110-111.
15Frst (1999) p. 245-246 discute brevemente o nascimento desse campo da patrstica a partir de Marcellinus
Molkenbuhr, frade franciscano que viveu na Alemanha de 1741 a 1825.
16 Conforme Jernimo havia inferido em Hier. Ep. 102,2.
17 Diz Pound em uma entrevista para o peridico Paris Review, dada no final de sua vida: no, I went to London
because I thought Yeats knew more about poetry than anybody else [...] (disponvel em http://www.theparisreview.org/
interviews/4598/the-art-of-poetry-no-5-ezra-pound).
18Baxter (1930) p. XLI: rich and complex and powerful, [Augustines] mind had gathered up all that was best in the
past, and the story of his influence is the story of Christian thought from his own day till now.

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Impresso na L&M Copiadora, no Departamento de Histria da FFLCH - USP em Fevereiro de 2016.

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