GLUCKMAN. Zululandia Moderna
GLUCKMAN. Zululandia Moderna
GLUCKMAN. Zululandia Moderna
A Histria na anlise
e reconstruo de
processos sociais
ANALISE DE UMA SITUAO SOCIAL
NA ZULULNDIA MODERNA *
Max Gluckman
Introduo
A frica do Sul um Estado nacional habitado por 2.003.512
brancos, 6.597.241 africanos e vrios outros grupos raciais.1 Esta
populao no forma uma comunidade homognea porque o Esta-
do basicamente est constitudo por sua diviso em grupos raciais
de vrios status. Portanto, o sistema social do pas consiste, pre-
dominantemente, de relaes interdependentes em cada grupo e
entre os vrios grupos enquanto grupos raciais.
Neste ensaio, analisarei as relaes entre africanos e brancos
do norte da Zululndia, baseando-me em dados coletados durante
dezesseis meses de pesquisa de campo, realizada entre 1936 e
1938.2 Cerca de 2/5 dos africanos da frica do Sul moram em
reas reservadas, distribudas por todo pas/ Apenas alguns euro-
peus (administradores, tcnicos do governo, missionrios, comer-
ciantes e recrutadores) vivem nestas reservas /Os homens africa-
nos costumam migrar das reservas, por curtos perodos de tempo,
a fim de trabalhar para fazendeiros brancos, industriais ou se
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empregar como criados domsticos. Findo o trabalho, retornam
s suas casas. A comunidade de africanos de cada reserva mantm que os documentei ao invs de adicionar minha descrio
estreitas relaes econmicas, polticas, bem como outros tipos de tudo aquilo que j conhecia previamente sobre a estrutura total
relaes com o restante da comunidade africana branca do pas. da Zululndia moderna. Espero que, dessa forma, a fora do
Por isso, ao explicitar os problemas estruturais em qualquer reser- meu argumento possa ser apreciada melhor.
va, preciso analisar amplamente como e em que profundidade a
reserva est inserida no sistema social do pas, quais relaes
As situaes sociais
dentro da reserva envolvem africanos brancos e como estas rela-
es so afetadas e afetam a estrutura de cada grupo racial.
Em 1938, estava morando no stio (homestead) de Matolana
Pesquisei, no norte da Zululndia, uma seo territorial do
Ndwandwe 5 um conselheiro do regente e representante governa-
sistema social da frica do Sul, especificando suas relaes com
mental. O stio localiza-se a treze milhas da magistratura europia
o sistema enquanto um todo. Acredito, entretanto, que provavel-
e da Vila de Nongoma, e a duas milhas do armazm de Mapopo-
mente o padro dominante da rea pesquisada se assemelhe ao de
ma. No dia 7 de janeiro, acordei ao amanhecer e me preparei para
qualquer outra reserva do pas.3 Deve, alm do mais, apresentar
ir a Nongoma na companhia de Matolana e de meu criado Richard
possveis analogias com outras reas localizadas em Estados hete-
Ntombela, que vive num stio aproximadamente meia milha dis-
rogneos onde, embora vivendo separados, grupos socialmente in- tante da casa do meu anfitrio. Naquele dia, meu plano era com-
feriores (do ponto de vista racial, poltico e econmico) inter-rela-
parecer de manh inaugurao de uma ponte no distrito vizinho
cionam-se com os grupos dominantes. No pretendo neste ensaio
de Mahlabatini e logo aps, tarde,, a um encontro distrital na
desenvolver nenhum estudo comparativo. No entanto, vale a pena
magistratura de Nongoma.
salientar o contexto mais amplo dos problemas sob investigao.
Richard, um cristo que morava com trs irmos pagos, veio
Como forma de iniciar esta anlise, descrevo uma srie de
vestido com suas melhores roupas europias. Ele um "filho"
eventos conforme foram registrados por mim num nico dia. As
para Matolana, pois a me de seu pai era irm do pai de Matolana.
situaes sociais constituem uma grande parte da matria-prima
Richard preparou o vesturio de Matolana para ocasies especiais:
do antroplogo, pois so os eventos que observa. A partir das
uniforme de jaqueta caqui, calas d montaria, botas e polainas
situaes sociais e de suas inter-relaes numa sociedade parti-
de couro.
cular, podem-se abstrair a estrutura social, as relaes sociais, as
Estvamos a ponto de deixar a casa de Matolana, quando
instituies, etc. daquela sociedade. Atravs destas e de novas si-
fomos retardados pela chegada de um policial uniformizado do
tuaes, o antroplogo deve verificar a validade de suas genera-
governo zulu, empurrando a sua bicicleta, e acompanhado por um
lizaes. prisioneiro algemado, um estranho no nosso distrito que estava
Como o meu enfoque dos problemas sociolgicos da frica
sendo acusado de roubar ovelhas em algum outro lugar. O policial
moderna no foi previamente utilizado no estudo do que se con- e o prisioneiro cumprimentaram Matolana e a mim. Respondemos
vencionou chamar "contato cultural", estou apresentando um ma- ao cumprimento do policial, que membro de um ramo colateral
terial de pesquisa detalhado. Desta maneira, poder-se- avaliar da famlia real zulu, com as saudaes dignas de um prncipe
melhor e criticamente a abordagem adotada.4 Escolhi deliberada-
(umtwana). Ento, o policial relatou a Matolana como tinha captu-
mente estes eventos particulares, retirados de meu dirio de cam- rado o prisioneiro com a ajuda de um dos guardas particulares de
po, porque ilustram de forma admirvel o que estou tentando enfa- Matolana. Matolana repreendeu o prisioneiro dizendo que no
tizar neste ensaio. Ppderia, entretanto, ter selecionado igualmente admitiria escrias (izigebengu) no seu distrito. Voltou-se, em se-
inmeros outros eventos ou citado outras ocorrncias do cotidia- guida, para o policial e criticou o governo por esperar que ele e
no da Zululndia moderna. Descreverei os eventos da forma em sua guarda particular ajudassem a capturar pessoas perigosas, sem
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pagar nada por esse servio, nem levar em considerao qualquer dagando cerimoniosamente sobre o estado de sade do outro. Ma-
recompensa aos seus dependentes, caso fossem mortos. Matolana tolana tinha uma srie de reclamaes (pelas quais j era conheci-
frisou ainda que trabalhava muitas horas administrando a lei para do entre os funcionrios qualificados do governo) sobre o exter-
o governo, sem receber salrio; disse, tambm, que era suficiente- mnio dos parasitas de gado. A maioria das reclamaes era tecni-
mente inteligente para deixar de fazer esse trabalho e voltar s camente injustificada. O veterinrio e eu sentamos no banco da
minas, onde costumava ganhar dez libras por ms como capataz. frente do carro, enquanto os trs zulus sentaram atrs.9
O policial foi embora com seu prisioneiro. Em seguida, parti- A cerimonia de inaugurao da ponte tornou-se relevante por
mos em meu carro para Nongoma. Paramos no meio do caminho ser a primeira construda na Zululndia pelo Departamento de
para dar carona a um velho, lder de sua pequena sejta-eist, fun- Assuntos Nativos, aps a implementao dos novos planos de
dada por ele prprio e cuja parquia foi construda em seu stio. desenvolvimento nativo. A ponte foi inaugurada por H.C. Lugg,
Esse velho lder atribui a si o ttulo de supremo na 'sua igreja, mas comissrio chefe dos nativos da Zululndia e de Natal.10 cons-
as pessoas consideram a sua seita, que no reconhecida pelo go- truda sobre o rio Ufflfolosi Negro na direo de Malungwana, no
verno, como sendo parte dos zionistas, uma grande igreja separa- distrito magistratorial de Mahlabatini, numa estrada secundria
tista nativa.'7 O velho lder estava se dirigindo a Nongoma para para o Hospital Ceza da Misso Sueca, algumas milhas acima de
comparecer ao encontro da tarde como um representante do dis- onde a estrada principal Durban-Nongoma atravessa o rio num
trito de Mapopoma. Ele sempre desempenhou esse papel, em parte caminho de concreto. O rio Umfolosi Negro sobe rapidamente seu
devido sua idade e, em parte, por ser o lder de um dos grupos nvel durante1 as chuvas pesadas (s vezes at vinte ps), tornan-
de parentesco local. Embora qualquer um possa comparecer e falar do-se inavegvel. O 'principal objetivo da construo dessa ponte,
nessas reunies, h pessoas que so reconhecidas como represen- nvel baixo (cinco ps), foi o de permitir a comunicao do magis-
tantes pelos pequenos distritos. Nos separamos no hotel, em Non- trado de Mahlabatini com a parte de seu distrito localizada alm
goma. Enquanto os trs zulus foram cozinha para tomar o caf do rio, durante as pequenas subidas do rio. Alm disso, essa ponte
da manh, por minha conta eu resolvi tomar banho, antes do desje-
torna possvel o acesso ao Hospital Ceza, famoso entre os zulus
jum. Ao voltar para o caf da manh, sentei-me mesa com L.W.
por sua especializao em obstetrcia. As mulheres zulus freqen-
Rossiter, veterinrio do governo para os cinco distritos da Zulu-
lndia do Norte.8 Conversamos sobre as condies das estradas e temente viajam at setenta milhas para serem internadas nesse
sobre as vendas de gado pelos nativos locais. Ele tambm estava hospital.
indo inaugurao da ponte e tinha, como eu, um interesse par- Durante nossa viagem, discutimos, em zulu, sobre os vrios
ticular nesse evento, pois a ponte havia sido construda sob a dire- lugares pelos quais passvamos. Dessa conversa, somente anotei
o de J. Lentzner, da equipe de engenharia do Departamento de que o veterinrio do governo perguntou a Matolana qual era a
Assuntos Nativos, um grande amigo e velho colega de escola de lei zulu de punio ao adultrio, pois um de seus funcionrios zulus
ambos. estava sendo processado pela polcia por morar com a esposa de
O veterinrio do governo sugeriu que Matolana, Richard e outro homem, embora at ento ignorasse o fato dela ser casada.
eu viajssemos em seu carro at a ponte, pois estava acompanhado No local onde a estrada bifurca-se para Ceza, o magistrado
por apenas um nativo da sua equipe. Por meu intermdio, ele j de Mahlabatini havia colocado um zulu, vestindo trajes de guer-
havia estabelecido relaes cordiais com Matolana e Richard. Fui reiro, para orientar os visitantes. Na estrada secundria, ultrapas-
cozinha dizer a Matolana e Richard que seguiramos no carro samos o carro do chefe Mshiyeni, regente da Casa Real Zulu, que
do veterinrio, e ali |iquei por uns instantes, conversando com os viajava de sua casa, localizada no distrito de Nongoma, para assis-
dois e com os empregados zulus do hotel. Quando samos ao en- tir inaugurao da ponte. Nossos acompanhantes zulus dirigi-
contro do veterinrio, todos trocaram cumprimentos, cada um in- ram-lhe a saudao real e ns o cumprimentamos. Alm de seu
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chofer, que dirigia seu carro, Mshiyeni tambm estava acompa- do governo; o funcionrio dos nativos da magistratura de Mahla-
nhado por um oficial militar armado, de uniforme aide-de-camp, batini, Gilbert Mkhize; e zulus residentes nas proximidades. ra-
e mais outro auxiliar. mos, ao todo, aproximadamente vinte e quatro europeus e 400
estrada para a magistratura zulus.
estrada para hospital CEZA de Nongoma (22 milhas Arcos de ramagem tinham sido erguidos em cada extremida-
(9 milhas) da blfurcao)
de da ponte. Uma fita esticada passava pelo arco da extremidade
sul da ponte e seria rompida pela passagem do comissrio-chefe
dos Nativos em seu carro. Um guerreiro zulu, em trajes marciais,
A Zula D estava postado sm posio de guarda perto deste arco. O veteri-
E ^ nrio do governo conversou com o guerreiro (um induna " local)
r Ti-r r-i-t*r-i
llllltiWI 7 milhas / ,rio / /
< LLLl.Li.Ll. sobre a desinfeco do gado local. Nessa ocasio, fui apresentado
ao guerreiro para que pudesse lhe falar sobre o meu trabalho e
caminho para a estrada principal
zul
solicitar a sua assistncia.
\v ,\\. Enquanto o veterinrio do governo e eu conversvamos com
estrada para Mahlabatini vrios europeus, nossos zulus juntaram-se ao grupo de 'zulus. Mato-
estrada para Mahlabatini
\ \ magistratura e Durban lana foi recebido com o respeito devido a um importante conse-
magistratura
lheiro do regente. Quando o regente chegou, recebeu a saudao
milhas de bifurcao) real e se juntou aos seus sditos, reunindo rapidamente ao seu
redor uma pequena corte de pessoas importantes. O comissrio-
bifurcao para CEZA
chefe dos Nativos foi o prximo a chegar: cumprimentou Mshiyeni
Postpjtinerrio guerreiro \
, .1 e Matolana, e quis saber sobre a artrite de Matolana. Pelo que
pude deduzir, tambm discutiu com eles alguns assuntos zulus.
A ponte est localizada num aluvio, entre margens bem Depois passou a cumprimentar os europeus. A inaugurao foi
ngremes. Quando chegamos, um grande nmero de zulus estava retardada devido ao atraso de Lentzner.
reunido em ambas as margens (em A e B no mapa). Na margem Aproximadamente s 11 e meia da manh, um grupo dos
ao sul, em um dos lados da estrada (no ponto C do mapa), havia zulus que construiu a ponte reuniu-se na extremidade norte da
uma barraca, onde a maioria dos europeus estava concentrada. Os ponte. No usavam trajes marciais completos, mas portavam lan-
europeus haviam sido convidados pelo magistrado local e incluam as e escudos. Quase todos os altos dignitrios zulus trajavam
a equipe administrativa de Mahlabatini, o magistrado, o assistente roupas de montaria europias, embora o rei estivesse usando um
do magistrado e o mensageiro da xorte de Nongoma; o cirurgio terno de passeio. Pessoas comuns trajavam combinaes variadas
do distrito; missionrios e funcionrios do hospital; comercian- de roupas europias e zulus.12 A tropa de guerreiros armados mar-
tes e agentes recrutadores; policiais e tcnicos; e vrios europeus chou atravs da ponte, passando atrs da fita na extremidade sul;
com interesses centrados no distrito, entre eles C. Adams, leiloeiro ali cumprimentaram o comissrio-chefe dos Nativos com a sauda-
nas vendas de gado nos distritos de Nongoma e Hlabisa. Muitos o real zulu, bayete. Depois, voltaram-se para o regente, saudan-
estavam acompanhados por suas esposas. O comissrio chefe dos do-o. Tanto o comissrio-chefe dos Nativos como o regente respon-
Nativos e Lentzner, bem como um representante do Departamento deram saudao levantando o brao direito. Os homens eome-"\
de Estradas da Provncia de Natal, chegou mais tarde. Dentre aram a cantar o ihubo (cano de cl), do cl Butezeli (o cl do
os zulus presentes estavam chefes locais, lderes (headmari) e seus chefe local que o principal conselheiro do regente zulu), mas
representantes; os homens que haviam construdo a ponte; policiais foram silenciados pelo regente. Ento, os procedimentos da inau-t
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gurao se iniciaram com um hino ingls, conduzido por um mis-
O regente considerou seu discurso encerrado e recebeu a saudao
sionrio de misso sueca Ceza, Todos os zulus, inclusive os pagos,
real dos zulus que, seguindo o exemplo dos europeus, haviam
ficaram de p e tiraram seus chapus. aplaudido os outros discursos.
Mister Phipson, o magistrado de Mahlabatini, fez um discurso O comissrio-chefe dos Nativos entrou em seu carro e, prece-
em ingls, traduzido sentena por sentena para o zulu pelo seu
dido por vrios guerreiros em trajes marciais, cantando o ihubo
funcionrio zulu, Mkhize.13 O magistrado deu as boas-vindas a
Butelezi, atravessou a ponte. Foi seguido, sem nenhuma ordem
todos e agradeceu especialmente aos zulus por comparecerem hierrquica, pelos carros de outros europeus e do regente. O regente
inaugurao. Parabenizou os engenheiros e os trabalhadores zulus pediu aos zulus trs vivas (hule, em zulu). Ainda tendo os guer-
pela construo da ponte e ressaltou o valor que esta teria para reiros frente, os carros fizeram o contorno na margem oposta e
o distrito. Em seguida, passou a palavra para o comissrio-chefe
retornaram. No caminho, um funcionrio europeu da magistratura,
dos Nativos, que conhece bem a lngua e os costumes zulus. Este que queria fotograf-los, pediu que parassem. Todos os zulus pre-
falou sobre o grande valor da ponte, primeiro em ingls para os sentes cantaram o ihubo Butelezi.
europeus, depois em zulu para os zulus. O comissrio-chefe dos Nati-
Os europeus entraram na barraca para tomar ch com bolo.
vos salientou que a construo da ponte era apenas um exemplo
Uma missionria serviu o regente fora da barraca. Na barraca, os
do que o governo estava fazendo para desenvolver as reservas
europeus estavam discutindo assuntos zulus e outros mais gerais.
tribais zulus. Aps o comissrio, o representante do Departamento No acompanhei as discusses porque fui margem norte onde
de Estradas da Provncia falou brevemente, ressaltando que em- os zulus estavam reunidos. Os zulus locais haviam presenteado o
bora tivesse sido | pressionado a construir uma, seu Departamento regente com trs cabeas de gado. Na margem norte, numa atmos-
nunca tinha acreditado na resistncia de uma ponte baixa s fera de grande euforia, o regente e seu oficial militar atiraram
cheias do rio Umflori. Continuando seu discurso, cumprimen- nesses trs animais, bem como no animal doado pelo governo. O
tou os engenheiros dos Assuntos Nativos pela implementao da regente pediu a Matolana para selecionar homens, a fim de esfolar
ponte que, mesmo sendo construda a baixo custo, tinha resistido e cortar o gado para distribuio. Depois se dirigiu a um local de
cheia de cinco ps. Anunciou, tambm, que o Departamento da vegetao rasteira nas proximidades (D no mapa) para conversar
Provncia iria construir uma ponte alta na estrada principal.14 com seu povo e tomar cerveja zulu, da qual lhe haviam ofertado
Adams, um velho zulu, foi o prximo a discursar em ingls e em grande, quantidade. O regente enviou quatro potes de.cerveja, car-
zulu, mas no disse nada de relevante. regados por garotas, ao comissrio-chefe dos Nativos. Este bebeu
O ltimo discurso foi o do regente Mshiyeni, em zulu, tradu- de um pote que reservou para si, dizendo as carregadoras para
zido por Mkhize para o ingls, sentena por sentena. Mshiyeni beber dos outros potes e ento distribu-los entre o povo.16 De
agradeceu ao governo pelo trabalho que estava sendo realizado na acordo com a etiqueta zulu, este procedimento o apropriado.
Zululndia. Disse que a ponte possibilitaria a travessia em poca O comissrio-chefe dos Nativos e quase todos os europeus
de cheia e tornaria possvel s suas esposas irem livremente para foram embora. A maioria dos zulus tinha se reunido na margem
o Hospital Ceza ter seus filhos. Apelou ao governo para que no norte, dividindo-se, grosso modo, em trs grupos. Na mata de
se esquecesse da estrada principal, onde tambm era necessrio arbustos (item D no mapa) estava o regente com seus indunas
construir uma ponte, pois l o rio freqentemente impedia a pas- locais, sentados juntos, enquanto mais longe ficaram os plebeus.
sagem. Mshiyeni anunciou ainda que o governo estava dando uma Estavam tomando cerveja e conversavam, enquanto esperavam
cabea de gado ao povo e que o comissrio-chefe dos Nativos
pela carne. Logo acima, da margem do rio (item A do mapa)
havia lhe dito que |everiam, de acordo com o costume zulu,15 estavam alguns grupos de homens cortando rapidamente trs
derramar a blis nos ps da ponte, para dar boa sorte e segurana animais sob a superviso de Matolana; faziam muito barulho,
s crianas quando a atravessassem. Qs zulus riram e aplaudiram. batendo papo em tom alto e rindo. O veterinrio do governo,
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no queria que os plebeus de outras tribos o ouvissem reprimindo
Lentzner e o tcnico de agricultura europia do distrito os esta- os Mandlakazi.18 O magistrado dirigiu a palavra aos Mandlakazi
vam observando. Logo atrs, a uma maior distncia da margem, o num longo discurso, reprovando-os por terem saqueado a proprie-
missionrio sueco havia arregimentado diversos cristos zulus que dade dos Zibebu (umzikaZibebu, isto , a tribo do grande prncipe,
estavam alinhados em filas e cantavam hinos sob sua direo. Entre Zibebu) e por estarem numa situao em que so obrigados a
os cristos enfileirados, observei a presena de alguns pagos. vender seu gado para pagar multas para o tribunal de justia, ao
Lentzner pediu a dois guerreiros para posarem ao seu lado numa invs de alimentar, vestir e educar seus filhos e esposas.19 Entre-
fotografia tirada na sua ponte. Os diferentes grupos continuaram mentes, Mshiyeni, acompanhado por Matolana, entrou e todos os
cantando, batendo papo, conversando e cozinhando at irmos em- Mandlakazi se levantaram para saud-lo, interrompendo o discurso
bora. do magistrado. Mshiyeni se desculpou por estar atrasado e se
Eu tinha passado de grupo em grupo, exceto pelos cristos sentou com os outros chefes.
que cantavam os hinos. Porm, passei a maior parte do tempo con- Aps ter feito suas reprimendas durante um bom tempo, o
versando com Matolana, Matole e o chefe Butalezi, a quem conheci magistrado pediu que o chefe Mandlakazi se pronunciasse sobre a
somente naquele dia. Matolana tinha que ficar para assessorar o questo. O chefe Mandlakazi reprovou seus indunas e os prnci-
regente e por isso combinamos que o regente levaria Matolana pes das sees tribais em conflito, sentando-se depois. Vrios
reunio de Nongma. Partimos com Richard e office-boy do ve- indunas falaram, justificando seus atos e culpando os outros; um
terinrio. A reunio na ponte iria durar ainda o dia todo. deles, um indivduo que, de acordo com os outros zulus, estava
Almoamos, novamente separados dos zulusj em Nongma, e adulando o magistrado para se promover politicamente, fez seu
fomos, o veterinrio do governo e eu, separadamente, reunio discurso elogiando a sabedoria e a bondade do magistrado. Um
na magistratura. Cerca de 200 a 300 zulus estavam presentes. Entre prncipe da linhagem Mandlakazi, que alm de membro de uma
eles, chefes, indunas e plebeus. A reunio comeou um pouco das sees em conflito tambm um policial do governo, reclamou
atrasada, porque Mshiyeni no havia chegado ainda. Finalmente o que a outra seo tribal estava sendo auxiliada nas disputas por
magistrado iniciou a reunio sem a sua presena. Aps uma discus- seus vizinhos, membros da tribo Usuthu que moravam no distrito
so geral sobre assuntos do distrito (leiles de gado, gafanhotos e de Matolana. Finalmente chegou a vez de Mshiyeni falar. Ele inter-
reproduo de touros de qualidade "), os membros de duas das rogou rigorosamente os indunas Mandlakazi, dizendo-lhes que ti-
tribos do distrito foram dispensados da reunio. nham obrigao,de verificar quem iniciou as brigas e prender os
H trs tribos: 1) os Usuthu, a tribo da linhagem real, que culpados, sem permitir que a culpa recasse sobre todos que agora
constituem o squito de clientes pessoais do rei zulu (hoje o re- brigavam. Incitou os Mandlakazi a no destrurem a propriedade
gente). Somente o rei detm jurisdio legal sobre os Usuthu, muito /ds Zibebu afirmando que, se os indunas no pudessem zelar pela
embora quase todas as outras tribos na Zuzulndia acatem sua nao, seria melhor que fossem depostos. Finalmente, repudiou a
autoridade; 2) os Amateni, que constituem uma das tribos reais e acusao de que seu poyo estaria participando das brigas.20 O
que so governados por um dos pais classificatrios do rei; e 3) os magistrado endossou tudo que o regente tinha acabado de falar
Mandlakazi, que so governados por um prncipe de um ramo cola- e encerrou a reunio.
teral da linhagem real, e que se separaram da nao Zulu em guer-
ras civis que se seguiram Guerra Anglo-Zulu de 1879/80.
Os Mandlakazi foram requisitados a permanecer na reunio,
pois o magistrado queria discutir as brigas entre faces que esta- Anlise da situao social
vam ocorrendo entreiduas das sees tribais. O chefe Amateni e
Apresentei acima uma amostra tpica dos meus dados de
seu chefe induna foram autorizados a permanecer na reunio pesquisa de campo. Estes consistem de vrios eventos que, embo-
(Mshiyeni, o chefe Usuthu, ainda no estava l), mas o magistrado
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r ocorridos em diferentes partes da Zululndia do Norte e envol- por sete pesquisadores de campo. Malinowski ataca Shapera e
vendo diferentes grupos de pessoas, foram interligados pela minha Fortes por adotarem uma abordagem similar quela que me foi
presena e participao como observador. Atravs destas situaes, imposta pelo meu material de pesquisa.23 Na segunda parte deste
e de seu contraste com outras situaes no descritas, tentarei ensaio, examinarei a validade desta abordagem para o estudo da
delinear a estrutura social da Zululndia moderna. Denomino estes mudana social na frica; aqui, quero somente salientar que a
eventos de situaes sociais, pois procuro analis-los em suas re- existncia de uma nica comunidade branco-africana na Zululndia
laes com outras situaes no sistema social da Zululndia. deve necessariamente ser o ponto de partida, da minha anlise.
Todos os eventos que envolvem ou afetam seres humanos Os eventos ocorridos na ponte Malungwana que foi plane-
so sociais, desde a chuva ou terremoto at o nascimento e a morte, jada por engenheiros europeus e construda por trabalhadores zu-
o ato de comer e defecar, etc. Se as cerimnias morturias so lus, que seria usada por um magistrado europeu governando os
executadas para um indivduo, esse indivduo est socialmente zulus e por mulheres zulus indo a um hospital europeu, que foi
morto; a iniciao transforma socialmente um jovem em um inaugurada por funcionrios europeus e pelo regente zulu numa
homem, qualquer que seja sua idade cronolgica. Os eventos envol- cerimnia que incluiu no somente europeus e zulus, mas tambm
vendo seres humanos so estudados por muitas cincias. Assim, o aes historicamente derivadas das culturas europia e zulu
o ato de comer objeto de anlise fisiolgica, psicolgica e sociol- devem ser relacionados a um sistema no qual, pelo menos uma
gica. O ato de comer uma atividade fisiolgica, quando analisa- parte, consiste de relaes zulu-europias. Essas relaes podem
do em relao defecao, circulao sangnea, etc. uma situa- ser estudadas enquanto normas sociais, como pode ser demons-
o psicolgica, em relao personalidade de um homem. trado pela maneira em que zulus e brancos adaptam, sem coero,
uma situao sociolgica, em relao aos sistemas de produo e seu comportamento uns aos outros. Por isso posso empregar os
distribuio da comunidade, aos seus agrupamentos sociais, aos termos Zululndia e zululandeses para abranger brancos e zulus
seus tabus e valores religiosos. Quando se estuda um evento como conjuntamente, enquanto o termo zulu designa africanos somente.
parte do campo da Sociologia, conveniente trat-lo como uma Seria possvel enunciar inmeros motivos e interesses dife-
situao social. Portanto, uma situao social o comportamento,, rentes que causaram a presena de vrias pessoas inaugurao
em algumas ocasies, de indivduos como membros de uma comu- da ponte. O magistrado local e sua equipe compareceram por dever
nidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras profissional e organizaram a cerimnia porque estavam orgulhosos
ocasies. Desta forma, a anlise revela o sistema de relaes subja- de dar ao distrito a contribuio valiosa da construo da ponte.
cente entre a estrutura social da comunidade, as partes da estru- De acordo com seu discurso, o comissrio-chefe dos Nativos con-
tura social, o meio ambiente fsico e a vida fisiolgica dos mem- cordou em inaugurar a ponte para demonstrar seu interesse pessoal
bros da comunidade.21 e dar relevncia aos planos de desenvolvimento assumidos pelo
Inicialmente, devo salientar-que a situao principal estava Departamento de Assuntos Nativos. Uma consulta ao rol de euro-
se configurando pela primeira vez de uma forma particular na peus presentes cerimnia mostra que aqueles do distrito de
Zululndia.22 O fato dos zulus e dos europeus poderem cooperar Mahlabatini que compareceram inaugurao tinham interesse
na inaugurao da ponte mostra que formam conjuntamente uma governamental, ou pessoal, pelo distrito ou pela cerimnia. Alm
nica comunidade com modos especficos de comportamento. So- do mais, qualquer evento constitui uma recreao na montona
mente a partir desta perspectiva pode-se comear a entender o vida dos europeus numa reserva. A maioria dos europeus sente
comportamento dos indivduos da forma em que os descrevi. tambm obrigao em comparecer a esses eventos. Essas duas lti-
Apesar de parecer desnecessrio, quero enfatizar este tipo de abor- mas razes poderiam ser atribudas aos visitantes de Nongoma. O
dagem porque foi recentemente criticada por Malinowski em sua veterinrio do governo e eu fomos atrados inaugurao devido
introduo aos ensaios tericos sobre "cultura de contato" escritos a laos de amizade e tambm pelo nosso trabalho. Podia observar-se
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que vrios europeus levaram suas esposas, o que somente alguns ter sido organizada por um representante do governo com formao
poucos zulus cristos (como Mshiyeni) fariam em situaes simi- cultural europia, vivendo em contato ntimo com a cultura zulu.
lares.24 Entretanto, o magistrado somente teve o poder de fazer o que fez
Entre os zulus, o regente, honrado por ter sido convidado (o como representante do governo e foi o governo que construiu a pon-
que no teria sido "necessrio), veio, sem dvida alguma, para te. Na Zululndia, alm do regente, somente o governo pode promo-
mostrar seu prestgio e para reencontrar alguns de seus sditos que ver um evento de importncia pblica para zulus e europeus. Por
ele raramente v. O escrivo zulu e a polcia governamental com- isso, podemos dizer que foi o poder organiztrio do governo no
pareceram a servio; o chefe Matole e os indunas locais vieram distrito que deu uma fOfriia estrutural particular aos inmeros ele-
por se tratar de um evento importante no seu distrito. Os trabalha- mentos presentes na inaugurao d ponte. Da mesma forma, o
dores zulus, que tinham construdo a ponte, sentiam-se especialmen- poder governamental tambm deu forma estrutural reunio em
te honrados. Provavelmente muitos dos zulus presentes foram at Nongoma. Por outro lado, quando Mshiyeni promoveu um encontro
l atrados pela festa, pela excitao e pela presena do regente.2S de 6.000 zulus na cidade de Vryheid para analisar os debates da
Vimos que vinda de Matolana e Richard inaugurao da primeira reunio do Conselho Nativo Representativo da Nao,
ponte foi motivada pelas relaes incomuns que mantinham comi- apesar de funcionrios europeus, policiais e espectadores estarem
go. Com exceo do grupo do regente, eles eram, juntamente com presentes, e os assuntos discutidos dizerem respeito principalmente
o zulu que acompanhava o veterinrio do governo, os nicos zulus s relaes zulu-europias, foram o poder e o capricho pessoal do re-
a viajarem de uma certa distncia para comparecer cerimnia. gente, dentro do padro herdado da cultura zulu, que orientaram o
Para os zulus, a inaugurao da ponte era um evento mais local do encontro. Isto , o poder poltico tanto do governo quanto do rei
que para <os europeus. Esta uma indicao da existncia de maior zulu constituem hoje foras organizatrias importantes. Mas ~po-
mobilidade e comunicao entre os europeus, cujos grupos disper- lcia europia estava presente na reunio do regente para ajudar a
sos em reservas tribais tm um forte senso comunitrio. Enquanto manter a ordem, embora isto no tenha sido necessrio. Na reali-
a maioria dos europeus de Nongoma sabia da inaugurao, alguns dade, durante a inaugurao da ponte, o regente (como freqente-
zulus de Nongoma sequer sabiam da existncia da ponte- mente faz em ocasies semelhantes) roubou a celebrao dos euro-
O magistrado local desejava exibir o trmino das obras da peus e organizou uma festa prpria.
ponte. Por isso convidou europeus e zulus influentes e solicitou o O magistrado planejou a cerimnia, teve o poder para organi-
compareeimento dos zulus locais em um dia especificamente esta- z-la dentro dos limites de certas tradies sociais e pde fazer
belecido. Dessa maneira o magistrado focalizou todos os seus inte- inovaes de acordo com as condies locais. Mas, obviamente, a
resses na cerimnia. Foi tambm o magistrado local quem deter- diviso das pessoas em grupos e muitas das aes no foram
minou a forma da cerimnia de acordo com a tradio de cerim- planejadas. A configurao subsidiria e no planejada dos eventos
nias similares em comunidades europias. Entretanto, acrescentou do dia tomou forma em conformidade com a estrutura da socie-
elementos zulus, onde fosse possvel, para tornar plausvel a par- dade zululandesa moderna. Muitos dos incidentes que registrei
ticipao dos zulus 6,^ provavelmente, tambm para dar um toque ocorreram espontaneamente e ao acaso, como, por exemplo, o ve-
de cor e brilho celebrao (por exemplo, no lugar de um policial terinrio do governo discutindo com o induna, postado em guarda
comum, colocou um guerreiro zulu em trajes marciais para indicar junto ponte, sobre banhos parasiticidas d gado; ou o missionrio
o caminho). De forma similar, aps um hino ter sido cantado, o organizando o coral dos hinos. Entretanto, estes incidentes se en-
comissrio-chefe dos Nativos sugeriu que a ponte fosse abenoada caixam facilmente num padro geral, da mesma maneira em que
maneira zulu. Po|tanto, a caracterstica principal da cerimnia situaes semelhantes envolvendo indivduos se amoldam em ceri-
em si (guerreiros zulus marchando atravs da ponte, hinos, discur- mnias funerrias ou de casamento. Portanto, a parte mais signi-
sos, rompimento da fita, chs, etc.) foi determinada pelo fato de ficativa das situaes do dia as configuraes e as inter-relaes
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de certos grupos sociais, personalidades e elementos culturais parasiticida do gado, como na existncia de uma igreja separa-
solidificou um pouco mais a estrutura social e as instituies da tista zulu.
Zululndia contempornea. A .ciso existente entre os dois grupos raciais em si o fator
Os presentes cerimnia dividiam-se em dois grupos raciais: de sua maior integrao em apenas uma comunidade. Eles no se
os zulus e os europeus. As relaes diretas entre estes dois grupos separam em grupos de status similar: os europeus so dominantes.
eram predominantemente marcadas por separao e reserva. En- Os zulus no podiam entrar nas reservas dos grupos brancos
quanto grupos, reuniram-se em lugares diferentes, sendo imposs- exceto pedindo permisso, como no caso dos criados domsticos
vel para eles confrontarem-se em condies de igualdade. Embora encarregados de servir ch. Entretanto, os europeus podiam movi-
eu estivesse vivendo na propriedade de Matolana e tivesse grande mentar-se mais ou menos livremente entre os zulus, observando-os
intimidade com a sua famlia, tivemos que nos separar para nossas e fotografando-os, apesar de poucos terem feito isso. Mesmo a
refeies, no ambiente cultural do hotel de Nongoma. No poderia xcara de ch oferecida ao regente, como tributo sua realeza,
comer na cozinha com os zulus, tanto quanto eles no poderiam foi-lhe servida fora da barraca dos europeus. A posio dominante
comer comigo no restaurante do hotel. A separao transparece dos europeus transparece em qualquer situao em que indivduos
atravs de todos os padres de comportamento zulu-europeu. En- dos dois grupos renem-se devido a um interesse em comum,
tretanto, uma separao socialmente reforada e aceita pode repre- abandonando a separao, como, por exemplo, na discusso verifi-
sentar uma forma indireta de associao, na realidade uma coope- cada entre o veterinrio do governo e os dois indumas sobre os
rao, mesmo quando levada ao extremo do esquivamento, como banhos parasiticidas de gado, ou no fato do regente chamar qual-
quer europeu que encontra, mesmo aqueles que no ocupam/posi-
testemunha o comrcio clandestino na frica Ocidental em tempos
o governamental, de nkosi (chefe), nkosana (chefe menor, se
antigos. Esta separao envolve mais do que a diferenciao axio- jovem) ou numzana (homem importante).
maticamente presente em todas as relaes sociais. Pretos e brancos Os dois grupos diferenciam-se em suas inter-relaes na estru-
so duas categorias que no devem se misturar, como o caso das tura social da comunidade da frica do Sul, da qual a Zululndia
castas na ndia ou as categorias de homens e mulheres em muitas constitui uma parte. Atravs dessas inter-relaes, podem-se delinear
comunidades. Por outro lado, embora em suas relaes sociais um separao, conflito e cooperao em modos de comportamento so-
filho seja distinto de seu pai, tambm se tornar um pai. Na Zu- cialmente definidos. Alm disso, os dois grupos tambm se dife-
lulndia, um africano nunca poder transformar-se num branco.2e renciam em relao a cor, raa, lngua, crenas, conhecimento,
Para os brancos, a manuteno desta separao um valor domi- tradies e posses materiais. No tocante cooperao entre os dois
nante que transparece na poltica da assim chamada "segregao" grupos, estas diferenas so permeadas por hbitos de comunica-
e "desenvolvimento paralelo", termos esses que apresentam uma o. Esses dois tipos de problemas envolvidos esto intimamente
falta de contedo como tentarei Demonstrar na anlise que se inter-relacionados, mas podem ser tratados separadamente, at certo
segue. ponto.
Apesar dos zulus e europeus estarem organizados em dois O funcionamento da estrutura social da Zululndia pode ser
grupos na ponte, seu comparecimento ao evento implica esta- observado nas atividades polticas, ecolgicas, etc. Politicamente,
rem unidos na celebrao de um assunto de interesse comum. fica claro que o poder dominante est investido no governo do
Mesmo assim, o comportamento de um grupo em relao ao outro grupo branco, sob o qual os chefes so, num de seus papis sociais,
desajeitado, o mesmo no ocorrendo no interior de cada grupo funcionrios subordinados. O governo detm a autoridade supre-
racial. De fato, as relaes entre os grupos so muito freqen- ma da fora, da penalidade e do aprisionamento. Assim, pode para-
temente marcadas por hostilidade e conflito, o que, de certa forma, lisar os conflitos entre faces na tribo de Mandlakasi, muito em-
transparece tanto nas reclamaes de Matolana contra o banho bora o magistrado, que representa o governo, tente manter a paz
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atravs de funcionrios zulus que lhe so subordinados. Apesar
das efusivas boas-vindas dadas por Mandlakazi a Mshiyeni indi- neste tipo de empreendimento governamental, no o fazem to
carem que a superioridade social de Mshiyeni reconhecida, foi facilmente quanto na organizao judicial e administrativa.
o poder do governo que o habilitou a interferir nos assuntos inter- Embora os chefes pudessem ter simpatizado com a faco em
nos de uma tribo que havia se desligado da sua linhagem real conflito dos Mandlakazi de uma forma que o magistrado com-
zulu. '28 preenderia, concordavam com o magistrado que a paz numa tribo
Atualmente, o governo o agente dominante em todos os deve ser valorizada. Mas Matolana tinha uma srie de reclama-
assuntos polticos. Embora um chefe nomeie seus indunas, havia es sem fundamento cientfico contra os banhos parasiticidas, os
comentrios de que um induna estava procurando lisongear o quais avaliava num idioma cultural diferente daquele do veterin-
magistrado com a finalidade de conseguir poder poltico. Os zulus rio do governo.29 Apesar de os zulus terem acolhido favoravelmen-
que ocupam posies governamentais constituem uma parte im- te a construo da ponte e de Mshiyeni ter agradecido, em nome
portante da mquina judicial e administrativa do governo. Tm de seu povo, por tudo que o governo estava fazendo em prol dos
como dever, em relao ao governo, manter a ordem, auxiliar a zulus, em muitas ocasies o povo julga que seus chefes tm o dever
poltica governamental, assumir causas jurdicas, ajudar nos banhos de manter oposio aos projetos governamentais.30
parasiticidas de gado e muitos outros assuntos de rotina. Entretan-
to, no tm direito algum de julgar causas criminais importantes, Os zulus e europeus esto igualmente interligados no que se
sendo que somente o governo pode perseguir malfeitores (como, refere ao aspecto econmico mais amplo da vida da Zululndia.
por exemplo, os ladres de ovelhas) de um distrito a outro. Contu- Eu havia salientado que os criados domsticos eram admitidos na
do, como resultado da diviso existente entre os dois grupos ra- barraca dos europeus e 'que a ponte foi planejada por europeus, mas
ciais, h uma diferena nas relaes do povo zulu com os adminis- construda pelos zulus. O recrutador de trabalhadores da Rand Gold
tradores governamentais europeus zulus. Tanto o comissrio-chefe Minas estava presente inaugurao da ponte; Estes fatos so indi-
dos Nativos como o regente receberam a saudao real dos guer- cativos do papel que africanos da Zululndia, bem como africanos
reiros mas, enquanto o comissrio-chefe dos Nativos recebeu trs de outras reas, desempenham como trabalhadores no-qualifiados
vivas, a presena do regente e do chefe local motivou a entoao nas atividades econmicas da frica do Sul. Estavam presentes
de canes tribais zulus. O comissrio-chefe dos Nativos conversou tambm inaugurao da ponte zulus que trabalham como poli-
com os zulus importantes que conhecia. Enviaram-lhe cerveja zulu, ciais do governo e um escrivo zulu. Os zulus dependem do dinheiro
mas preferiu tomar ch com o grupo branco. O regente sentou-se que recebem dos europeus pelo seu trabalho, para pagar seus impos-
com os zulus, tomou cerveja e conversou com eles, at muito tos (que custearam a construo da ponte e os salrios de tcnicos
depois dos europeus terem se dispersado. O governo forneceu uma governamentais) e para comprar produtos vendidos por comercian-
cabea de gado ao povo e o regente fui presenteado pelo povo tes europeus ou, ainda, para negociar gado com os europeus, atravs
com trs cabeas de gado e cerveja, que o prprio regente distribuiu das vendas de gado promovidas pelo governo, cujo leiloeiro havia
entre os presentes. comparecido inaugurao da ponte. Os zulus dependem, em
O governo no tem somente funes judiciais e administrati- grande parte da sua subsistncia, da lavoura que o governo est
vas,, desempenhando tambm parte importante nas atividades am- tentando melhorar atravs de seus tcnicos em agricultura.
bientais. Mesmo nas informaes precedentes, vimos que o governo
construiu a ponte, que foi paga com os impostos coletados entre Esta integrao econmica da Zululndia no sistema indus-
os zulus; emprega cirurgies distritais, tcnicos agrcolas e enge- trial e agrcola da frica do Sul domina a estrutura social. O
nheiros; organiza os banhos parasiticidas e vendas de gado; e fluxo de trabalhadores inclui praticamente todos os zulus fisi-
constri estradas. Mesmo quando chefes indunas participam camente capacitados. Em qualquer poca, aproximadamente 1/3
dos homens do distrito de Nongoma est ausente, trabalhando
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longe da reserva. So organizados, por seus empregadores, em Uma .tarefa importante do governo manter e controlar o
grupos de trabalho similares aos que existem em todos os pases fluxo de mo-de-obra para satisfazer, se possvel, as necessidades
industriais. Parentes e membros de uma mesma tribo tendem a de mo-de-obra dos brancos. Alm disso, tenta evitar que o fluxo
trabalhar e morar juntos nos acampamentos ou locaes munici- de mo-de-obra resulte na fixao de grande nmero de africanos
pais.31 Alguns empregadores, como no caso das Minas Rand, nas cidades. O trabalhador migrante zulu deixa sua,famlia nas
agrupam deliberadamente seus trabalhadores de acordo com sua reservas, para as quais depois retorna. Isto inevitavelmente envol-
identidade tribal. Entretanto, nos locais de trabalho, os zulus ve o governo numa srie de contradies, das quais luta para
encontram-se, lado a lado, com os bantus de toda a frica do escapar. Nas reservas, a tarefa bsica do governo , manter a lei e
Sul. Apesar de sua nacionalidade zulu envolv-los em conflito a ordem, tendo, secundariamente (desde 1931-32), comeado a
com membros de outras tribos, chegam a participar de agrupa- desenvolver as reservas. O governo foi forado a implementar as
mentos cuja base mais ampla que a nao zulu. Raramente reservas, devido ao estado precrio em que se encontravam em
esto sob a autoridade dos seus chefes, ^embora as Minas Rand conseqncia da m agricultura e da excessiva alocao em terras
e os acampamentos Durban empreguem simultaneamente prnci- inadequadas. Isso se deve, em parte, ao fluxo de mo-de-obra que
pes zulus como induna e policiais. Os chefes visitam seu squito proporciona dinheiro aos zulus para compensar as deficincias
de clientes na cidade para coletar dinheiro e conversar. Significati- tcnicas existentes nas reservas, sendo possvel que a demanda
vamente, mesmo as demonstraes de lealdade ao rei zulu em reu- dessa mo-de-obra possa, em ltima instncia, tornar sem efeito
nies urbanas tm sido marcadas por alguns indcios de hostili- o plano desenvolvimentista. <
dade. Apesar dos chefes zulus imporem-se enquanto tais em No posso analisar aqui mais detalhadamente estas importan-
suas visitas, no tm, nos locais de trabalho, qualquer status tes questes. Como evidncia de que o desenvolvimento secun-
legal sobre os indivduos: as autoridades legais so os magistra- drio, ao fluxo de mo-de-obra e s demandas nacionais, cito o
dos brancos, os supervisores de locao, a polcia, os adminis- caso das Minas Rand, que desejam tomar a iniciativa de desen-
tradores e empregadores. So somente os administradores bran- volver o Transkei, onde o empobrecimento das reservas tem debi-
cos que mantm a ordem e controlam as condies de trabalho, litado a sade da populao em um de seus maiores reservatrios
implementando contratos, promulgando leis, etc. O chefe zulu de mo-de-obra. Em segundo lugar, o magistrado de Nongoma
deu incio aos leiles, atravs dos quais os zulus podiam vender
pode protestar oralmente, no mais que isso. Mesmo nas reservas,
suas cabeas de gado nas feiras livres. As vendas fizeram muito
onde zulus vivem de agricultura de subsistncia, e embora o grupo sucesso, sendo que em um ano, aproximadamente, 10 mil cabeas
branco governe atravs de organizaes zulus, aqueles que traba- de gado foram vendidas por 27 mil libras. Em 1937, houve
lham para europeus acabam subordinando-se, atravs desta rela- escassez de mo-de-obra africana na frica do Sul e, como os
o particular, diretamente aos administradores brancos. O chefe empreendimentos agrcolas europeus foram afetados, uma comis-
zulu no tem a palavra em assuntos que envolvam membros de so governamental foi nomeada para investigar a situao. Cartas
sua tribo e europeus. O governo e a Corporao de Recrutamento publicadas nos jornais de Natal atriburam a escassez de mo-
de Nativos das Minas Rand agem atravs dos chefes a fim de de-obra ao fato dos zulus terem permanecido em suas casas ven-
que as reivindicaes dos zulus sejam expressas, e, ocasionalmen- dendo gado, ao invs de sarem para trabalhar (na realidade, as
te,, paream ser atendidas por seu intermdio. Os chefes constan- vendas de gado eram realizadas somente em trs distritos).
temente reivindicam melhor tratamento e salrios mais altos para O magistrado, que estava orgulhoso com o sucesso de suas
os trabalhadores zulas;ao mesmo tempo, esto sempre (Mshiyeni, vendas, aparentemente julgou que as mesmas estavam ameaadas,
em particular) incitando os homens de sua tribo a sarem para pois em seu depoimento Comisso frisou repetidamente que
trabalhar. as vendas de gado de modo algum tinham afetado o fluxo de
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mo-de-obra. Entretanto um velho zulu, reclamando para mim distintas daquelas que demandam lealdade tribal. As duas formas
dos salrios. baixos, disse: "um dia vamos dar uma lio na Cor- provavelmente entraro em conflito e o resultado depender da
porao de Recrutamento. Vamos ficar em casa, vendendo nosso reao dos chefes s organizaes sindicalistas. Atualmente, estas
gado, sem sair para trabalhar". Devido falta de espao, deixarei duas formas de agrupamento desenvolvem-se sob condies dife-
de examinar as outras contradies da estrutura da frica do Sul rentes.35
a partir da forma em que emergem na Zululndia. Mais adiante examinarei como a oposio zulu ao domnio
Os chefes zulus tm pouca influncia poltica nos aspectos europeu est expressa em organizaes religiosas. Toda esta oposi-
econmicos fundamentais da vida da Zululndia. No esto pre- o atravs de chefes, igrejas e sindicatos de trabalhadores
sentes para controlar a vida comunitria nos locais de trabalho, no efetiva e no momento redunda principalmente em
onde proliferam dormitrios para trabalhadores, grupos sociais satisfao psicolgica, pois a severidade da dominao europia
e sindicatos que possibilitam a associao dos zulus com bantus est aumentando.36 Por isso a oposio ocasionalmente irrompe
de outras tribos e naes, e at mesmo de outros Estados bran- em revoltas e ataques polcia e funcionrios,3'7 os quais so
cos. No examinarei estas situaes em detalhe, pois coletei pou- energicamente reprimidos. Estes eventos provocam reao violenta
cos dados a respeito. do grupo branco e, sem fundamento aparente mas semelhana
Quanto aos sindicatos, h em Durban 750 africanos que per- do pensamento moderno de feitiaria e sem base em qualquer
tencem a quatro diferentes sindicatos, estimando-se que aproxi- investigao, a acusao imediata das partes envolvidas atribu-
madamente 75% tm seus lares nas reservas. Em Johannesburg, da propaganda comunista.
h 16.400 africanos sindicalizados, 50% dos quais so das reser- A ascendncia poltica e econmica dos europeus sobre os
vas,33 segundo estimativas da Secretaria do Comit Conjunto zulus, como^ capitalistas e trabalhadores qualificados de um lado
dos Sindicatos Africanos. Os ndices so irrisrios em relao ao e camponeses e trabalhadores no-qualificados de outro, pode ser
nmero total de trabalhadores africanos. Em um encontro que em alguns aspectos comparada com outros pases. Em todos estes
contou com a presena de aproximadamente 6 mil zulus em pases, a estrutura pode ser analisada em termos similares de di-
Durban, alm do regente, prncipes, chefes, missionrios e pro- ferenciao e cooperao entre grupos econmicos e polticos. Na
fessores, um organizador industrial africano tambm discursou Zululndia, a estrutura tem adicionalmente caractersticas distin-
num palanque como um dos lderes da nao, sendo bastante aplau- tivas que, no todo, acentuam a separao dos dois grupos e difi-
dido. Os sindicatos africanos esto negociando para obter melhores cultam sua cooperao. A diferenciao entre os dois grupos em
condies para os trabalhadores, mas no tm ainda fora pol- relao a atividades polticas e ecolgicas, feita flagrantemente
tica efetiva. Entretanto, a oposio africana dominao euro- com base em critrios de raa e cor,38 coincide com outras dife-
pia, liderada por capitalistas e trabalhadores qualificados, est renas acima detalhadas. Ao descrever a situao, no esbocei
comeando a se expressar em termos industriais. H, no entanto, estas diferenas com particular ateno e no pretendo aprofun-
pouca cooperao entre sindicalizados africanos e brancos.34 dar-me aqui nestes detalhes.
Esta forma de agrupamentos nos locais de trabalho tem Podemos notar que os dois grupos falam lnguas diferentes.
uma base completamente diferente da dos grupos tribais, que O conhecimento da lngua de cada grupo pelos membros do outro
confere lealdade aos chefes. Entretanto, no parece estar radical grupo possibilita a comunicao entre ambos os grupos, sendo
mente em conflito com esta lealdade, mesmo quando depende da a posio do intrprete uma instituio social que ultrapassa a
oposio aos brancos. As vidas dos trabalhadores migrantes zulus barreira da lngua. Na inaugurao da ponte, ambos os recursos
esto nitidamente divididas, sendo que as organizaes s quais possibilitaram a cooperao dos dois grupos. Dentro de sua esfe-
se associam nas cidades, juntamente com outros bantus, negros, ra isolada, cada grupo usa sua prpria lngua, embora palavras
indus e mesmo trabalhadores brancos, funcionam em situaes da outra lngua sejam comumente usadas. O pidgin zulu-ingls-
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afrikaans 3 " desenvolveu-se como outro modo alternativo de co- cos zulus tambm possuem alguns bens que so comuns entre os
municao. europeus, como carros, rifles e boas casas. Nas reservas, os zulus
Os dois grupos tm, no geral, modos de vida, costumes e
possuem mais terras e gado que os europeus que l residem, mas,
crenas diferentes. Todos os europeus das reservas tm atividades
por toda a nao, a distribuio diferenciada de terra entre africa-
especializadas; os zulus, apesar de tambm trabalharem para os
nos e europeus tem um efeito importante nas suas relaes. No
europeus, so camponeses no-especializados com permisso de
tenho espao para discutir a riqueza relativa de zulus e europeus e
praticarem agricultura somente nas reas que lhes so reservadas.
difcil comput-la; os salrios nos centros de mo-de-obra, onde
L, os zulus vivem sob um tipo de organizao social e por valo-
res e costumes que so diferentes daqueles do grupo europeu, praticamente cada zulu um trabalhador assalariado, so bem mais
embora sejam afetados em todos os aspectos pela sua presena. baixos para africanos do que para brancos. Nas reservas da Zulu-
Entretanto, mesmo onde as diferenas entre zulus e europeus so lndia do Norte (mas no em algumas reservas do sul ou em pro-
marcantes, eles adaptam seus comportamentos em modos social- priedades agrcolas europias), a maioria dos zulus tem terra e gado
mente determinados, quando se associam uns aos outros. Assim, suficiente para suas necessidades imediatas, sendo que alguns deles
funcionrios europeus freqentemente fazem um . esforo deli- tm grandes rebanhos. Seu padro de vida notadamente mais
berado para satisfazer os grupos zulus, como se viu no uso de baixo do que o dos europeus nas reservas. Nos dois grupos existe
guerreiros zulus e no derramamento de blis na inaugurao da tambm uma distribuio diferenciada de bens enbe os indiv-
ponte. Alm do mais, em situaes de associao h um modo duos. Como a separao em grupos raciais representa, para o
regular de reao de cada grupo em relao a certas prticas grupo branco, padres de vida ideais, e como muitos brancos
costumeiras do outro, mesmo quando os dois avaliam essas pr- esto abaixo enquanto africanos esto ascendendo acima destes
ticas diferentemente. Zulus pagos permaneceram de p e tiraram padres, isto tem efeitos importantes nas relaes entre africanos
o chapu durante a entoao dos hinos em ingls, tendo tambm e brancos.41 O desejo dos zulus por bens materiais dos europeus
aplaudido os discursos adotando costumes europeus. O comissrio- e a necessidade dos europeus do trabalho zulu, bem como a
chefe dos Nativos aceitou a cerveja que lhe foi presenteada como riqueza obtida por este trabalho, estabelecem interesses fortes e
um chefe zulu aceitaria, mas permaneceu separado do grupo zulu interdependentes entre os dois grupos. , tambm, uma fonte
como um chefe zulu no poderia ter agido. Entretanto, ainda latente de seus conflitos. No grupo zulu, os polgamos que pre-
subsiste um campo amplo de costumes zulus que muito raramente cisam de muita terra, homens com grandes rebanhos de gado,
aparecem nas suas relaes com os europeus, exceto o fato de que homens que desejam ardentemente a riqueza europia, e outros,
todas as relaes entre os zulus transparecem para o governo, em constituem diferentes grupos de interesse. Por isso, a posse de
termos de leis e administrao.40 O grupo europeu tambm tem sua bens materiais diferentes entre os dois grupos dificulta a diferen-
cultura distinta, aliada s culturas dos pases europeus ocidentais,
ciao baseada em critrio racial.
porm completamente marcada por suas relaes com os afri-
canos. Deve-se acrescentar que as relaes entre indivduos zulus e
Existe tambm a base material da diferenciao e coopera- europeus variam de inmeros modos en termos de norma social
o entre zulus e europeus. Na situao descrita, a cooperao geral, apesar de serem sempre afetadas por essa norma. Existem
est centrada na ponte e no rio a ser cruzado, sendo a mesma relaes impessoais e pessoais entre zulus e europeus. As relaes
geralmente determinada pela mtua explorao, mesmo que dife- do comissrio-chefe dos Nativos com seus milhares de sditos
renciada e separada, dos recursos naturais. Os bens materiais dos zulus impessoal, mas com Mshiyeni e. Matolana, sua relao
indivduos que pertencem aos grupos diferem amplamente, tanto tambm pessoal. Onde quer que zulus e europeus, se agrupem,
em quantidade como em qualidade e tcnicas de uso. Alguns pou- acabam desenvolvendo relaes pessoais de diferentes tipos, ainda
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tratarem seus empregados zulus. Indepentemente desta reputao
que sempre afetadas pelo padro tpico de comportamento. Eu,
ser justificada ou no, os zulus so sempre capazes de citar casos
como antroplogo, estava em condies de me tornar um amigo
individuais de maus-tratos para reafirmar a crena social. Se apenas
ntimo dos zulus, de uma forma que os outros europeus no
um dos fazendeiros tratar bem seus empregados zulus, sua ati-
conseguiriam. E fiz isto devido a um tipo especial de relao
tude no afetar a imagem que os outros zulus tm dele, ou a
social reconhecido como tal pelas duas raas. Mesmo assim nunca
imagem que seus empregados zulus tm dos outros fazendeiros.
pude ultrapassar completamente a distncia social entre ns
Mesmo se a maioria dos fazendeiros tratasse bem seus empregados
existente. zulus, os zulus no poderiam generalizar a partir de suas prprias
Dentro de ambientes sociais especiais, europeus e zulus tm
experincias. E como o bom tratamento rapidamente esquecido
relaes amigveis, como acontece em misses, centros de treina-
e a opresso sempre lembrada, a crena social permanecer, mes-
mento de professores, conferncias conjuntas bantu-europias, etc. mo que inmeros fazendeiros tratem bem seus empregados. Simi-
Nesse caso, cordialidade e cooperao so a norma social, afeta-
larmente, uma mera sugesto de um zulu ter feito investidas sexuais
das pela norma mais ampla de separao social. Em outras rela-
sobre uma garota europia foi o suficiente para provocar violenta
es sociais entre administradores governamentais e seus s-
animosidade entre muitos brancos em relao aos zulus, na base
sditos, e empregadores brancos e empregados africanos, tcnicos
de que todos os africanos tinham desejos sexuais por mulheres
governamentais e seus assistentes as relaes pessoais desen-
brancas. Na realidade, durante muitos anos nada parecido havia
volvem-se de modo a facilitar ou exacerbar as relaes entre os ocorrido na Zululndia.
dois grupos raciais. Como exemplo do primeiro tipo de relaes
(cordialidade e cooperao), cito a maneira com que o veterinrio Passo agora a considerar uma relao particular entre os
zulus e os europeus, que tambm constitui uma diviso social
do governo preocupou-se em ajudar seu auxiliar africano, pedindo
dentro do grupo africano, a diviso entre pagos e cristos. Du-
esclarecimentos sobre a lei zulu referente ao adultrio. O veterin-
rante o canto dos hinos, sob a direo do missionrio, essa ciso
rio informou-se sobre o assunto com Matolana porque tinha es-
era marcante, apesar dos pagos juntarem-se aos cristos e os
tabelecido, por meu intermdio, relaes mais prximas e mais
cordiais com meus amigos zulus do que com outros zulus. Alguns cristos aos pagos. Todos os cristos usam somente roupas euro-
empregadores brancos tratam bem seus criados zulus, respeitando- pias enquanto, com exceo das autoridades polticas importan-
os como seres humanos; outros os tratam somente como empre- tes, poucos pagos o fazem. Mas os pagos tiraram seus chapus
gados, enquanto outros, ainda, praguejam e espancam42 seus durante o hino europeu e os cristos cantaram o > ihubo. Ambos
empregados constantemente. Embora seja ilegal na frica do Sul comeram e beberam com o regente. Ambos estavam presentes
e seja socialmente desaprovado pelos dois grupos, brancos mantm reunio de Nongoma. Isso porque a ciso no absoluta. Observei,
relaes sexuais com zulus. alm do mais, que enquanto meu criado Richard cristo, Ma-
tolana pago; Richard, tanto quanto seus irmos pagos, com
Estas relaes pessoais, que dependem em parte de ambien-
quem vive, deve tratar Matolana como um pai. Cristos e pagos
tes sociais especficos na organizao social e em parte de dife-
saudaram o regente. O regente, que cristo, tomou providncias
renas individuais, constituem s vezes grupos diferentes na estru-
para que a blis fosse derramada na ponte. Acima de tudo, cristos
tura social. So, freqentemente, variaes de normas sociais e
tm efeitos importantes sobre estas mesmas normas que, por sua e pagos no podiam misturar-se aos europeus.
vez, sempre afetam essas relaes. Posso observar que cada grupo A ciso entre cristos e pagos est entremeada por laos de
escolhe prestar ateno exatamente s aes do outro grupo que parentesco, cor, aliana poltica e cultura. O grupo de zulus
so totalmente fora de proporo, por serem as que melhor se cristos est associado em certas situaes e sob certos critrios
ajustam aos seus valores. Por exemplo, os fazendeiros europeus ao grupo de europeus, opondo-se ao grupo de pagos. Entre-
que residem nas proximidades das reservas tm a fama de mal- tanto, sob outros critrios e em outras situaes, parte do
253
252
grupo zulu como um todo, em oposio ao grupo europeu como entre os zulus que transpassam. em certas situaes, a separao
um todo. Dentro de sua composio enquanto grupo cristo, conta dos interesses dos africanos e dos brancos, enfatizando, porm,
tambm com a participao do missionrio branco. Este perma- suas diferenas.
neceu com os europeus at que se dispersassem. Somente aban- Outras divises que apareceram dentro do grupo zulu du-
donou sua filiao ao grupo branco e juntou-se ao grupo zulu rante o dia, embora afetadas pelas relaes africano-brancas, tm
para organizar o canto dos hinos, cristalizando, dessa forma, a tradio de continuidade na organizao social da Zululndia,
diviso social dos zulus em cristos e pagos, Esta filiao dos anterior ocupao britnica. Os zulus dividiam-se em tribos que
zulus cristos aos dois grupos raciais cria uma certa tenso entre mais tarde foram divididas em sees tribais e distritos adminis-
cristos e zulus pagos, que resolvida apenas parcialmente pelos trativos. Nesta nova organizao poltica, h uma hierarquia defi-
laos que mantm em comum. Esta tenso reflete-se na existncia nida de prncipes do cl real zulu e de plebeus, de regente e
da seita,separatista zulu,crist, cujo lder levei a Nongoma. Esta chefe induna da nao, chefe Mandlakazi, alm de outros chefes
seita, que uma dentre muitas outras, aceita alguns dogmas e indunas. Alguns destes grupos polticos e administradores so
crenas do cristianismo com base em crenas de bruxaria, porm unidades no sistema de dominao do governo europeu, conforme
protesta contra o controle europeu sobre as igrejas zulus e, por ficou demonstrado quando, na reunio em Nongoma, o magis-
isto, no est ligada aos europeus, como as outras igrejas que so trado interferiu nas relaes locais. Ainda assim, embora sejam
controladas pelos europeus. parte do sistema governamental, so tambm grupos com base
Outras relaes entre os zulus e os europeus, acima discuti- tradicional, o que atualmente lhes confere uma importncia em
das, podem tambm ser consideradas como constituindo divises relao aos zulus que no somente administrativa.
sociais dentro do grupo africano, mesmo que no sejam to for- Apesar do regente no ter sido oficialmente reconhecido pelo
malizadas quanto a diviso existente entre cristos e pagos. governo como chefe da nao Zulu, todos os zulus respeitam a
Eu mencionei o efeito da diferenciao da riqueza. Poderamos sua supremacia.44 parcialmente atravs de sua organizao po-
classificar os zulus entre aqueles que trabalham e aqueles que ltica que os zulus tm reagido dominao europia, pois as
no trabalham para os europeus mas, como quase todos os zulus autoridades polticas zulus recebem lealdade de seus sditos, no
fisicamente capacitados o fazem durante uma, parte do ano, to- somente como burocratas do governo ou devido a sentimentalrsmo
mariam parte, em diferentes perodos, de grupos diferentes. Entre- e conservadorismo, mas tambm porque parte da tenso poltica
tanto, se o critrio da classificao estabelecer que devemos sepa- contra o governo expressa nessa lealdade.45 Na vida social da
rar os zulus que so empregados permanentemente pelo governo Zululndia moderna, esta organizao poltica importante, pois
(funcionrios burocrticos, tcnicos assistentes africanos, policiais determina os agrupamentos nos casamentos, os crculos de amigos
e mesmo indunas e chefes), temos um grupo cujo trabalho e inte- nas cidades, os pactos de aliana em conflitos entre faces e as
resses coincidem com os do governo, enquanto que os dos outros rodas de cerveja. Alm do mais, as casas dos chefes e indunas so
zulus freqentemente no coincidem. A mesma observao se tanto um centro da vida comunitria como de administrao. Esta
aplica queles zulus que desejam vender seu gado, que esto diviso em tribos cria uma fonte de dissenso dentro do grupo
ansiosos para melhorar sua agricultura ou ir para escolas e hos- zulu, pois as tribos so hostis entre si. Alm disso, os zulus sentem
pitais. Pode-se tambm notar que estes so geralmente cristos. sua comunidade como uma nao, tanto em relao a outras na-
A diviso, baseada nestes critrios, torna-se flagrante nas reunies es Bantu quanto em relao aos europeus. Entretanto, deve-se
magistratoriais onde os cristos esto mais dispostos que os pagos salientar que os zulus esto cada vez mais unindo-se a outros Bantu,
a apoiar o magistrado, ^o que constitui uma fonte de conflitos em um nico grupo africano.
entre cristos e pagosf Portanto, a associao de certos zulus Finalmente, deve-se observar que os zulus, tanto quanto outros
com europeus, bem como com seus valores e crenas, cria grupos bantus, expressam em certas ocasies forte lealdade iao governo,
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como nesta e na ltima guerra. Dentro de um distrito, um admi- Estes grupos de stios agnaticamente relacionados, de muitos
nistrador governamental, que popular, pode ganhar a amizade e cls diferentes, distribuem-se por todo o pas; esto relacionados a
a lealdade dos zulus, porque para eles importante e agradvel grupos similares de seu prprio cl, atravs de laos agnticos, e a
t-lo no cargo. Mas ainda no entendo a lealdade dos zuls ao go- outros grupos, atravs de laos de matrimnio e afinidade. Mesmo
verno: , em parte, resultado da dependncia do chefe zulu ao onde no existem laos de parentesco entre vizinhos, as relaes
governo, e, em parte, porque expressam seus fortes sentimentos so geralmente baseadas em termos amigveis de cooperao.
guerreiros em tempo de guerra. Grande parte da vida de uni zulu dispendida nesses agrupa-
O ltimo conjunto de agrupamentos a ser mencionado aque- mentos de parentes e vizinhos. Se possvel, um zulu associasse s
le constitudo por stios habitados por um grupo de agnatas com mesmas pessoas nas cidades, como nas reservas. Os agrupamentos
suas esposas e filhos. O stio de Matolana comportava, na poca, de parentes constituem particularmente fortes unidades cooperati-
o prprio Matolana, trs esposas, um filho de vinte e um anos de vas, seus membros ajudando-se mutuamente e dependendo uns dos
idade que ficou noivo quando trabalhava em Johannesburg (depois outros. Possuem terras em proximidade umas das outras, arreba-
que se casou passou a morar l com sua esposa e filho), quatro nham seu gado conjuntamente, dividem as atividades agrcolas,
outros filhos cujas idades variavam entre dez e vinte anos, dos freqentemente trabalham juntos em reas europias, e ajudam-se
quais os dois mais jovens so cristos, e mais trs filhas. Uma irm em conflitos e em outras atividades. Esto sujeitos s suas prprias
classificatria de Matolana tambm l pousava freqentemente, tenses, tenses essas que explodem em brigas e culminam em
tendo ali se casado, apesar de sua prpria residncia ser em outro processos judiciais e acusaes de bruxaria, resultando s vezes na
lugar. Um de seus filhos, com doze anos, arrebanhava o gado para diviso dos stios e de seus grupos de residncia. Entretanto, nos
o marido de uma das outras irms de Matolana, num stio que grupos onde existem fortes ligaes sentimentais, as tenses cau-
distava aproximadamente uma milha. Perto do stio de Matolana, sadas por conflitos de filiao a outras divises no grupo zulu so
localizavam-se os stios de dois de seus irmos; um era irmo por parcialmente resolvidas.
parte da me e o outro, por parte de um av comum. O meio- Embora muitos pagos se oponham e sejam hostis ao cristianis-
irmo deste ltimo (por parte de pai) era considerado parte do mo, afirmando que essa religio est abalando a cultura e a integri-
mesmo umdeni (grupo de parentesco local), embora residisse em dade zulu, no discriminam entre seus parentes cristos e pagos. H
territrio vizinho pertencente tribo Amateni. O stio de Richard fortes laos na vida familiar, capazes de superar a clivagem entre
ficava prximo ao de Matolana. Richard e sua esposa eram os cristos e pagos, entre homens progressistas que adotam costumes
nicos cristos que l residiam, sendo o lder do stio seu irmo europeus e aqueles que no os adotam. Por outro lado, o efeito dos
mais velho, abaixo do qual estava outro irmo, depois Richard e novos costumes est se fazendo sentir cada vez mais, especialmente
ento o irmo mais novo. Todos eram filhos de uma mesma me, nestes grupos, sendo que os laos de parentesco esto se enfraque-
que tambm morava com eles. Todos os irmos eram casados, cada cendo. Por isso, quando tratarmos dos problemas referentes mu-
um dos dois mais velhos tinha duas mulheres e todos tinham filhos. dana social, veremos que o grupo europeu influencia marcadamen-
Este stio foi recentemente mudado, sendo que Richard construiu te o comportamento destes grupos zulus, atravs dos cristos que
moram com seus parentes pagos e os jovens que moram com seus
a sua moradia um pouco distncia das de seus irmos porque parentes mais velhos.
queria uma cabana mais permanente. Perto deste stio Ntombela ha- Podem-se, igualmente, delinear divises sociais dentro do gru-
via quatro outros stios Ntombela (Ntombela o sobrenome de um po branco e examinar sua relao com a principal organizao em
cl), alm do stio de um homem cuja me era uma Ntombela. dois grupos raciais. Tal estudo no faz, a priori, parte do escopo de
Ela havia se casado longe dali, mas deixou seu marido para morar minha investigao, mas este tipo de informao levado em con-
no distrito de seu pai. siderao desde que seja relevante s relaes zulu-brancas ou
256 257
estrutura interna do grupo zulu. J me referi s relaes entre Tentei delinear o funcionamento da estrutura social da Zulu-
funcionrios do governo, missionrios, comerciantes, empregadores, lndia, em termos das relaes entre grupos, tendo indicado algu-
tcnicos especializados, de um lado, e zulus do outro. Aqui quero mas das complexidades que permeiam essas relaes, j que uma
indicar alguns problemas que surgem, quando consideramos as pessoa pode pertencer a inmeros grupos que esto s vezes em
relaes entre esses europeus. Uma anlise dos, valores, interesses oposio entre si ou unidos contra outro grupo. Como muitas rela-
e motivos que influenciam em diferentes perodos os europeus es e interesses podem interseccionar-se em uma pessoa, exem-
como indivduos mostraria que, de acordo com a situao, pode- plificarei brevemente o que ocorre no comportamento dos indiv-
riam fazer parte, exatamente como os zulus, de agrupamentps di- duos. J fiz algumas sugestes a respeito, ao analisar o grupo cris-
ferentes na estrutura social da Zululndia. Vimos que o missionrio to: vimos que o missionrio branco juntou-se por algum tempo
at uniu-se temporariamente ao grupo zulu, abandonando o grupo aos zulus aps os outros brancos terem se dispersado e que Richard
branco. O encontro harmonioso na inaugurao da ponte uma era influenciado por seus laos de parentesco com pagos e por
caracterstica das relaes entre zulus e brancos no territrio das modos de comportamento comuns a cristos e pagos. H outros
reservas. Entretanto, isto no ocorreria facilmente nas fazendas exemplos. Matolana saudou um policial do governo como um prn-
europias ou nas cidades, onde os conflitos entre os grupos so cipe zulu, logo aps passou a fazer reclamaes sobre o mau tra-
maiores. tamento que o governo lhe dispensava, muito embora ele prprio
Enfatizei que os funcionrios governamentais fazem um esfor- fosse um representante governamental. Matolana ajudou a prender
o deliberado para satisfazer os zulus e devo salientar que isto um ladro para o governo; em prol de seu povo, protestou ao ve-
tambm mais comum nas reservas. Embora funcionrios sejam terinrio do governo sobre o banho parasiticida; ficou exultado
obrigados a implementar as decises do governo branco, muitos com a possibilidade de ajudar e trabalhar para o regente; ponderou
deles tornam-se pessoalmente ligados ao povo zulu durante a ro- que seria mais lucrativo abandonar sua posio poltica junto ao
tina da administrao. Como eles prezam seu trabalho, desejam governo e ao regente para trabalhar para si prprio. Na reunio
que seus distritos progridam e esto interessados no bem-estar dos de Nongoma, um policial do governo, que tambm um prncipe
habitantes, tomam ocasionalmente, o partido dos zulus contra q Mandlakazi, reclamou contra a ajuda dos Usuthu do distrito de
grupo branco, cuja dominao representam. Controlam, em nome Matolana faco em conflito com sua faco tribal, embora ele
do governo, as relaes dos comerciantes, recrutadores e empre- prprio tenha agido como um policial do governo em uma briga
gadores com os zulus, freqentemente a favor dos interesses dos entre essas mesmas faces. Na ponte, funcionrios auxiliares e
zulus. Assim, s vezes, quando afetados em seus interesses, estes policiais zulus do governo uniram-se ao grupo dos zulus, perma-
outros grupos de europeus se opem ao trabalho da administrao.
necendo isolados dos brancos, a quem tm o dever de ajudar a
Mais freqentemente, seus interesses vis--vis entram em conflito, governar o pas.
tanto quanto entre os grupos constitudos de acordo com cada
tipo de empreendimento europeu. Contudo, unem-se como um Os grupos principais de brancos e zulus esto divididos em
todo contra o grupo africano, quando agem'como membros do grupos subsidirios, formalizados e no formalizados, sendo que,
grupo branco em oposio ao grupo africano. Alguns missionrios de acordo com os interesses, valores e motivos que determinam
freqentemente tomam o partido dos zulus contra a explorao seu comportamento em situaes diferentes, o indivduo modifi-
dos brancos, mas deve-se acrescentar que esto, ao mesmo tempo, ca sua participao nesses grupos. Apesar de eu ter realizado a
influenciando os zulus a tornarem-se mais dispostos a aceitarem os minha anlise atravs de agrupamentos, uma outra anlise, em
valores europeus e conseqentemente sua dominao, muito embora termos de como valores e crenas determinam o comportamento
a barreira racial posa forar muitos a se tornarem hostis. dos indivduos, chegaria a concluses similares. Como socilogo,
estou interessado em estudar as relaes dos grupos formados por
258 259
estes interesses e valores, bem como os conflitos causados pela entre ps dois grupos raciais determina o carter de sua cooperao.
participao de um indivduo em diferentes grupos. Interesses, crenas, valores, tipos de empreendimentos e varia-
Para resumir a situao na ponte, pode-se dizer que o com- es de poder aquisitivo diferenciam grupos menores dentro de
portamento dos grupos e indivduos presentes expressava o fato cada grupo racial. H uma concordncia entre alguns destes grupos
da ponte, que era o centro de seus interesses, t-los unido numa que transpassa as fronteiras de cor, interligando os grupos raciais
cerimnia comum. Como resultado de seu interesse comum, agi- atravs da associao de alguns de seus membros numa identidade
ram segundo os costumes de cooperao e comunicao, apesar de interesses temporria. Entretanto, o equilbrio entre estes gru-
dos dois grupos raciais estarem divididos de acordo com o pa- pos afetado pelas relaes raciais de conflito e cooperao, de
dro da estrutura social. Igualmente, a celebrao uniu os parti- modo que cada um destes grupos une os grupos raciais por um
cipantes dentre cada grupo racial, apesar deles terem se separado lado, enfatizando, por outro, sua oposio. As mudanas de par-
de acordo com as relaes sociais existentes no interior do grupo. ticipao nos grupos em situaes diferentes revela o funciona-
Nesta situao de cooperao, o poder do governo e a base cultu- mento da estrutura, pois a participao de um indivduo em um
ral dos seus representantes organizam as aes dos grupos e indi- grupo particular em uma situao particular determinada pelos
vduos dentro de um padro que exclui o conflito. Grupos me- motivos e valores que o influenciam nesta situao. Os indivduos
nores separam-se com base em interesses comuns e, se isso for podem, assim, assumir vidas coerentes atravs da seleo situa-
apenas devido localizao espacial (exemplo: cristos e pagos), cional de uma miscelnea de valores contraditrios, crenas desen-
no entram em conflito um com outro.46 Nesta situao todas contradas, interesses e tcnicas variadas.47
estas reunies grupais, incluindo a concentrao geral na ponte, As contradies transformam-se em conflitos na medida em
so harmoniosas devido ponte ser o fator central, constituindo- que a freqncia e importncia relativas das diferentes situaes
se em uma fonte de satisfao para todas as pessoas presentes. aumentam no funcionamento das organizaes. As situaes que
Atravs da comparao desta situao com inmeras outras envolvem relaes entre africanos e brancos esto rapidamente
situaes, seremos capazes de delinear o equilbrio da estrutura tornando-se as dominantes, sendo que um nmero cada vez menor
social da Zululndia em um certo perodo do tempo. Por equil- de zulus est se comportando como membro do grupo africano
brio, entendo as relaes interdependentes entre partes diferentes em oposio ao grupo branco. Estas situaes, por sua vez, afetam
da estrutura social de uma comunidade em um perodo particular. as relaes entre os africanos.
Devo acrescentar, como sendo de fundamental importncia para Assim, as influncias de valores e grupos diferentes produ-
esta anlise, que a hegemonia do grupo branco (que no apareceu zem fortes conflitos na personalidade do indivduo zulu e na
na minha anlise) o fator social principal na manuteno deste estrutura social da Zululndia. Estes conflitos fazem parte da
equilbrio. estrutura social, cujo equilbrio atual est marcado por aquilo que
Tentei _ mostrar que, no perodo atual, a estrutura social da costumamos normalmente chamar de desajustamentos. Os pr-
Zululndia pode ser analisada como uma unidade funcional, em prios conflitos, contradies e diferenas entre e dentre grupos
equilbrio temporrio. Vimos que a existncia de dois grupos de zulus e brancos, alm dos fatores que ultrapassam estas diferenas,
cor em cooperao dentro de um nica comunidade constitui a constituem a estrutura da comunidade zulu-branca da Zululndia.48
forma predominante dessa estrutura. Esses dois grupos esto di- So exatamente estes conflitos imanentes no interior da estru-
ferenciados por um grande nmero'de caractersticas que os leva tura da Zululndia que iro desencadear seu futuro desenvolvi-
a se oporem e at mesmo a serem hostis entre si. O grupo branco mento. Atravs da definio precisa desses conflitos em minha
domina o grupo zulu em todas as atividades nas quais cooperam, anlise do equilbrio temporrio, espero poder relacionar meu
sendo que, embora afete todas as instituies sociais, esta domina- estudo seccional comparativo ao meu estudo de mudana social.
o somente se expressa em algumas delas. A oposio desigual Portanto, sugiro que, para estudar a mudana social na frica
261
260
do Sul, o socilogo deve analisar o equilbrio da comunidade Notas
africana-branca em diferentes perodos de tempo e mostrar como
sucessivos equilbrios esto relacionados entre si. Na segunda par-
te deste ensaio espero examinar mais profundamente este processo
de desenvolvimento na Zululndia. Analisarei a alterao e o
ajustamento da estabilidade dos grupos (a mudana no equilbrio)
envolvidos, durante os ltimos 120 anos, na constituio da comu-
nidade da Zululndia em grupos raciais de culturas relativamente
diferentes.
1
767.984 euro-asiticos/euro-africanos (de cor); 219.928 asiticos. Cifras
de acordo com o censo de 1936, Relatrio Preliminar U.G. 50/1936.
3
Financiado pelo Ministrio Nacional de Educao e Pesquisa Social do
Departamento de Educao da Unio (Fundo Carnegie), ao qual agra-
deo pela verba. Trabalhei nos distritos de Nongoma, Mahlabatini,
Hlabisa, Ulombo, Ingwavuma, Ngotshe e Vryheid (vide o mapa da
frica do Sul). O dr. A. W. Hoernl supervisionou e estimulou meu
trabalho de tal modo que nem consigo agradecer adequadamente.
3
Posso assinalar aqui que as pesquisas da sra. Hilda Kuper na Swazi-
lndia, o territrio vizinho que est sob proteo britnica, mostram
muitas dessas similaridades. Reconheo com gratido minha dvida para
com a sra. Kuper, com quem discuti em detalhes os nossos resultados.
No posso indicar aqui, em detalhe, o muito que devo a ela. O sr.
Godfrey Wilson, A. W. Hoerl e o professor Shapera criticaram o
primeiro rascunho deste meu ensaio.
4
A tcnica, claro, tem sido amplamente empregada por outros antro-
plogos: vide abaixo.
3
Ele o representante do rei zulu no subdistrito de Kwadabazi (Mapo-
poma). O rei era, ento, legalmente, o nico chefe da pequena tribo
Usuthu. A posio do representante reconhecida pelo governo, sendo
que ele pode julgar casos civis. Suas decises, depois de registradas
na magistratura, sero reforadas pela Corte Mensageira do Governo,
se necessrio. Ele um dos conselheiros mais importantes do rei.
" Nomeados por Matolana com a aprovao do magistrado e do rei zulu.
Eles recebem uma pequena parte dos impostos da corte.
7
Encontrada na Zululndia, Natal, Swazilndia e outros lugares do pas.
8
Ele funcionrio do Departamento de Agricultura e no do de Assun-
tos Nativos, e independente dos funcionrios do Assuntos Nativos.
262 263
23
9
O veterinrio, que representa o governo, nasceu na Swazilndia. Ele Methods of Study of Culture Contact in frica (Londres: Editora da
fala um zlu rpido e melhor ainda a lngua franca, com forte ten.- Universidade de Oxford, 1938), Memorando XV do Instituto Interna-
dncia pronncia Swazi. cional de Lnguas e Culturas Africanas, passim. Acredito qpe a falta de
10
Em. relao ao seu status, vide P. H. Rogers, Native Administration in percepo da importncia terica deste ponto enfraqueceu, ou mesmo
South frica. Johannesburg: Editora da Universidade de Witwatersrand, distorceu, alguns estudos recentes de mudana social na frica, embora
1933. Na posio de chefe do Departamento de Assuntos Nativos na certamente todos os especialistas tenham reconhecido muitos dos fatos
Zululndia e Natal, ele subordinado Secretaria de Assuntos Nativos [Vide, por exemplo, M. Hunter, Reaction to Conquest (Londres:
para o pas. Abaixo dele, na hierarquia, esto os comissrios nativos Editora da Universidade de Oxford, 1936), sobre os Pondo na frica
(que so tambm magistrados) de cada um dos distritos em que Natal do Sul; L. Mair, An African People in the Twentietfy Century (Lon-
e a Zululndia esto divididos. dres: Routledge, 1934), sobre os Ganda; C. K. Meek, Law and Autho-
rity in a Nigerian Tribe (Londres: Editora da Universidade de Oxford.
" Isto , um funcionrio poltico menor. Uso o termo como empregado
1937), sobre os Ibo]. surpreendente que os antroplogos apresentem
na legislao governamental. Essa palavra est sendo aceita na frica
uma falha que no poderia ocorrer com os historiadores (por exemplo,
do Sul e pode ser encontrada no Dicionrio Ingls de Oxford.
W. M. Macmillan e J. S. Marais), economistas (por exemplo, S. H.
12 Os cristos usam roupa europia completa. Os pagos geralmente usam Frankel), psiclogos (por exemplo, I. D. Macrone) ou mesmo algumas
camisas e s vezes casacos sobre cintos de pele (ibeshu = cinto de comisses governamentais (por exemplo, a Comisso Econmica Ativa
pele, pago). e Grfica do Governo da Unio, Pretria, 1922/1932). Possivelmente
13
No posso reproduzir em detalhe este discurso ou qualquer outro, j porque, ao contrrio do que dizem, os antroplogos no se livraram
que no pude fazer anotaes detalhadas dos mesmos. Aqui menciono da tendncia arqueolgica. Entretanto, em algum outro ponto da mesma
apenas os pontos relevantes. introduo, Malinowski mesmo aponta o absurdo que no adotar o
" As estradas principais e suas pontes so conservadas pela provncia; ponto de vista que ele teoricamente critica: "Gostaria de encontrar o
as estradas secundrias em territrios nativos so conservadas pelo De- etngrafo que conseguisse isolar as partes componentes de um africano
partamento de Assuntos Nativos do pas. ocidentalizado" (loc. cit., p. 22).
15 24
Mshiyeni cristo. As nicas mulheres zulus presentes eram da vizinhana, porm a
16
Observei do outro lado do rio. esposa de Mshiyeni freqentemente o acompanha a celebraes simi-
17
Estas reunies acontecem pelo menos uma vez por trimestre e todos lares. Nunca soube de um chefe pago que levasse sua esposa a reu-
os assuntos relacionados ao distrito so discutidos pelos funcionrios, nies pblicas.
25
chefes e o povo. So tambm convocadas reunies extraordinrias quan- No pesquisei estas questes com o necessrio cuidado.
do necessrio. 26
Houve, e possivelmente ainda h, casos de homens brancos "virando
18
Ele me confidenciou isso parte. nativos". Quando isto ocorre, no podem mais se misturar ao grupo
19
O desentendimento era sobre alguma ofensa banal. branco.
20 27
Mais tarde ele proibiu seu povo de comparecer aos casamentos dos Uso este termo para abranger todas as atividades diretamente relacio-
Mandlakazi, onde as lutas tinham comeado. Baixou tambm uma lei nadas ao meio ambiente agricultura, minerao, etc. ou fisio-
segundo a qual ningum deveria danar com lanas, para que no logia do povo sade, morte, etc. Como foi colocado acima, todos
houvesse feridos se alguma briga eclodisse. estes recursos e eventos so socializados.
21 28
Vide M. Fortes, "Communal Fishing and Fishing Magic in the Northern Pode-se notar que foi a posio do governo britnico na poltica zulu
Territories of the Gold Coast", Journal of the Royal Anthropological em 1878/88 que viabilizou a independncia dos Mandlakazi da Casa
Institute, vol. LXVII, 1937, pp. 131 e ss., e, especialmente, E. E. Evans- Real.
29
Pritchard, Witchcraft, Magic and Oracles among the Azande (Oxford: Do mesmo modo, nem todos os fazendeiros europeus valorizam as ne-
Editora Claredon, 1937); e The Nuer (Oxford: Editora Claredon, 1940). cessidades cientficas como os tcnicos. ,N
30
Tambm B. Malinowski, Argonauts of the Western Pacific (Londres: Vide meu artigo sobre os zulus em African Political Systems, editado
Routledge, 1922), sobre o significado sociolgico de situaes sociais. por Evans-Pritchard & Fortes (Londres: Editora da Universidade de
22
Entretanto, similar | inauguraes de pontes, etc. em regies euro- Oxford, 1940).
31
pias e inaugurao de escolas e demonstraes agrcolas na Zulu- Sobre isso, vide R. E. Philips, The Baniu in the City (Lovedale Press,
lndia. 1938, passim.
264 265
32
Embora servios de sade, veterinria e alguns outros tenham comeado 46
Devo, porm, notar aqui que durante a entoao do hino o missio-
muito cedo. nrio reclamou do barulho vindo dos homens que cortavam as reses
33
Nmeros fornecidos gentilmente pelo sr. Lynn Saffery, secretrio do e da conversa um tanto quanto alta entre o veterinrio representando
Instituto de Relaes Raciais, Johannesburg, que por sua vez recebeu-os o governo, Lentzner, o funcionrio agrcola e eu.
dos organizadores dos sindicatos trabalhistas africanos. No posso dizer 47
Vide Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic among the Azan-
quantos so zulus, mas provavelmente a maior parte dos homens de de, op. cit.
Durban so filiados nao Zulu. 48
34 Acredito que Iconflito" e "superao do conflito" (fisso e fuso)/ de-
Vide Phillips, pp. cit., captulo I. vam ser dois aspectos do mesmo processo social e que estejam pre-
35
O mesmo argumento se aplica a outros agrupamentos urbanos. Acerca sentes em todas as relaes sociais/Cf. as teorias do materialismo
desta questo das relaes entre a reserva e as organizaes urbanas, histrico e a teoria de Freud sobre' a ambivalncia nas relaes estu-
devo muito a uma carta estimulante do dr. Jack Simons, cujas pes- dadas pela psicologia. Que eu saiba, Evans-Pritchard foi o primeiro
quisas em reas urbanas parecem t-lo levado a um ponto de vista antroplogo a desenvolver este tema em seus artigos e em seu livro
similar ao que cheguei ao pesquisar o final do fluxo de mo-de-obra. The Nuer (Oxford: Claredon Press, 1940). Vide tambm seus artigos
36
Vide J. S. Marais, "The Imposition and Nature of European Control", e de Fortes em African Political Systems, op. cit. Cf. esta abordagem
Bantu-speaking Tribes of South frica, (ed.) Shapera (Londres: Rout- ao mal-ajustamento numa comunidade africana moderna com Methods
ledge, 1937). of Study of Culture Contact, de Malinowski, op. cit., pp. 13-15.
37
Por exemplo, em Vereeninging, em 1937, quando vrios guardas civis
foram mortos. Zulus se amotinaram em Durban em 1930.
38
quase desnecessrio notar que o termo "raa" usado num sentido
totalmente no-cientfico na frica do Sul. H muitos escritos e pro-
nunciamentos pseudo-cientficos sobre raa (vide, por exemplo, G. M.
Heaton-Nicholls, The Native Problem in South frica, publicado pela
Seo Etnolgica do Departamento de Assuntos Nativos. Cf. }. Huxley,
A. C. Haddon & A. M. Carr-Saunders, We Europeans, Harmondsworth:
Penguin Books, 1935). Uso o termo para indicar a base de agrupamen-
tos sociais, no a demarcao cientfica das raas.
39
Uma linguagem que, numa explicao breve, usa principalmente pala-
vras e razes zulus com sintaxe e gramtica inglesas.
40
bvio que estes costumes zulus como existem hoje so muito dife-
rentes daqueles de cem anos atrs, devido ao contato com os europeus
e sucessivos desenvolvimentos internos. Estamos aqui negligenciando os
processos de mudana que produziram os costumes atuais.
41
A esposa de um abastado europeu, comentando sobre um europeu que
andou setenta milhas para obter um trabalho temporrio no distrito
de Nongoma, disse-me: "Quando eu penso em todos estes zulus com
seu gado, terras e cerveja...". Ela no pde terminar sua frase. Vide
o Relatrio da Comisso Carnegie, The Poor White Problem in South
frica, em 5 vpls. (Stellenbosch: Pr Ecclesia Drukkery, 1932).
42
Legalmente permitido pela Lei do Patronato e Servido.
43
O zulu, ao ser acusado de crimen injuria, foi absolvido pela Corte
sem nenhuma evidncia de culpa.
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Desde ento ele foi nolneado Chefe Social da nao zulu pelo governo.
45
Vide meu artigo sobre os zulus em African Political Systems, citado
acima.
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