JTengarrinha - História de Portugal

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 372

Histria de

Portugal
Jos Tengarrinha (Org.)
Jos Mattoso
Maria Helena da Cruz Coelho
Humberto Baquero Moreno
Antnio Borges Coelho
Antnio Augusto Marques de Almeida
Antnio Manuel Hespanha
Maria do Rosrio Themudo Barata
Nuno Gonalo Freitas Monteiro
Francisco Calazans Falcon
Jos Jobson de Andrade Arruda
Miriam Halpern Pereira
Jaime Reis
Amadeu Carvalho Homem
A. H. de Oliveira Marques
Joo Medina
Lus Reis Torgal
Jos Medeiros Ferreira
Reviso tcnica
Maria Helena Martins Cunha

Copyright 2000 EDUSC

Direitos de pu blicao reservados :


Editora da Un iversidade do Sagrado Corao (EDUSC)
Ru a Irm Arm in da, 10-50
17044-160 Bau ru SP
Tel.: (0xx14) 235-7111
Fax: (0xx14) 235-7219
Hom e page: www.u sc.br
E-m ail: edu sc@u sc.br
Fu n dao Editora da UNESP
Praa da S, 108
01001-900 So Pau lo SP
Tel.: (0xx11) 232-7171
Fax: (0xx11) 232-7172
Hom e page: www.editora.u n esp.br
E-m ail: feu @editora.u n esp.br
Dados In tern acion ais de Catalogao n a Pu blicao (CIP)
(Cm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

H67399
Histria de Portu gal / Jos Mattoso [et
al]; Jos Ten garrin h a, organ izador. -Bau ru , SP : EDUSC ; So Pau lo, SP : UNESP;
Portu gal, PO : In stitu to Cam es, 2000.
371p.; 23cm . -- (Coleo Histria)
>
ISBN UNESP 85-7139-278-0
ISBN EDUSC 85-7460-010-5
1. Portu gal - Histria. I. Mattoso, Jos.
II. Ten garrin h a, Jos. III. Ttu lo. IV. Srie.
CDD 946.9

SUMRIO

Cap tu lo 1
A form ao da n acion alidade
Jos Mattoso

19

Cap tu lo 2
O fin al da Idade Mdia
Maria Helena da Cruz Coelho

45

Cap tu lo 3
O prin cpio da poca Modern a
Humberto Baquero Moreno

57

Cap tu lo 4
Os argon au tas portu gu eses e o seu velo de ou ro (scu los XV-XVI)
Antnio Borges Coelho

77

Cap tu lo 5
Saberes e prticas de cin cia n o Portu gal dos Descobrim en tos
Antnio Augusto Marques de Almeida

87

Cap tu lo 6
Os ben s eclesisticos n a poca Modern a. Ben efcios, padroados e
com en das
Antnio Manuel Hespanha

Cap tu lo 7
105 Portu gal e a Eu ropa n a poca Modern a
Maria do Rosrio Themudo Barata
Cap tu lo 8
127 A con solidao da din astia de Bragan a e o apogeu do Portu gal
barroco: cen tros de poder e trajetrias sociais (1668-1750)
Nuno Gonalo Freitas Monteiro
149

Cap tu lo 9
Pom bal e o Brasil
Francisco Calazans Falcon

167

Cap tu lo 10
O sentido da Colnia. Revisitando a crise do antigo sistema colonial
no Brasil (1780-1830)
Jos Jobson de Andrade Arruda

187

Cap tu lo 11
Contestao rural e revoluo liberal em Portugal
Jos Tengarrinha

217

Cap tu lo 12
Diversidade e crescim en to in du strial
Miriam Halpern Pereira

241

Cap tu lo 13
Cau sas h istricas do atraso econ m ico portu gu s
Jaime Reis

263

Cap tu lo 14
Jacobinos, liberais e democratas na edificao do Portugal
contemporneo
Amadeu Carvalho Homem

283

Cap tu lo 15
Da Monarquia para a repblica
A. H. de Oliveira Marques

297

Cap tu lo 16
A dem ocracia frgil: A Prim eira Rep blica Portu gu esa (1910-1926)
Joo Medina

313

Cap tu lo 17
O Estado Novo. Facism o, Salazarism o e Eu ropa
Lus Reis Torgal

339

Cap tu lo 18
Aps o 25 de Abril
Jos Medeiros Ferreira

369

Autores

captu lo 1

A FORMA O
D A N A CION A LID A D E
Jos Mattoso*

A N TECED EN TES
Ao con trrio do qu e ten taram dem on strar as dou trin as n acion alistas dos an os 30 a 60, baseadas, de resto, em con ceitos positivistas e rom n ticos m u ito an teriores, n o possvel en con trar vestgios coeren tes de u m a
n acion alidade portu gu esa an tes da fu n dao do Estado. Aqu ilo qu e o precedeu e qu e tem algu m a coisa a ver com o fen m en o n acion al redu z-se a
u m a persisten te ecloso de pequ en as form aes polticas ten den cialm en te
au ton m icas n a faixa ociden tal da Pen n su la Ibrica (em paralelo, de resto, com form aes an logas n ou tras regies pen in su lares), qu e se verificaram desde a pr-h istria at o scu lo XII, m as qu e se caracterizam tam bm
pelo seu carter descon tn u o e efm ero. As dim en ses dos respectivos territrios eram n orm alm en te redu zidas, pois n o ch egavam n u n ca a abran ger reas equ ivalen tes a n en h u m a das an tigas provn cias rom an as. An tes
da dom in ao rom an a, o pan oram a predom in an te o da gran de fragm en tao territorial, ocasion alm en te com pen sada por coligaes con ju n tu rais;
du ran te ela, a organ izao adm in istrativa (qu e se deve con siderar de tipo
colon ial) n o ch egou a absorver por com pleto as divises tn icas, qu e reapareceram sob a form a de pequ en os poten tados locais desde qu e se esboroou o con trole m u n icipal, m ilitar e fiscal exercido pelos seu s rgos at o
fim do Im prio.
Com o eviden te, as su cessivas cam adas de povos germ n icos qu e
depois ocu param o ociden te da Pen n su la tam bm n o ch egaram a u n ificar o territrio por eles dom in ado; lim itaram -se a fazer reverter para seu
ben efcio as im posies m ilitares e fiscais qu e an teriorm en te eram exigidas
pelas au toridades rom an as. Pode-se dizer aproxim adam en te o m esm o da
ocu pao m u u lm an a, qu e, de resto, foi m u ito efm era a n orte do Dou ro,
e qu e foi con stan tem en te en trecortada por revoltas region ais e locais, algu m as das qu ais m an tiveram certos territrios com o in depen den tes du ran te dezen as de an os. A su a expresso con creta m ais eviden te foram os
rein os taifas do Ociden te qu e m an tiveram a su a au ton om ia du ran te a
m aior parte do scu lo XI. En tretan to, a n orte do Mon dego, en tre os scu los VIII e XI, a ocu pao astu rian a e depois leon esa tam bm estava lon ge
de con segu ir a in teira fidelidade n o s dos poten tados locais com o tam -

Jos Mattoso

bm dos prprios represen tan tes da m on arqu ia; todos eles se com portavam freq en tem en te com o sen h ores in depen den tes.
O territrio portu gu s pde, portan to, com parar-se a u m puzzle
con stitu do por u m n m ero con sidervel de peas qu e se foram associan do en tre si de vrias m an eiras, sem qu e os poderes su periores qu e a exerciam a au toridade tivessem sobre elas gran de in flu n cia. A su a prin cipal
estratgia con sistia em m an ter a dom in ao, pactu an do de form as variveis com os poderes region ais e locais, exploran do as su as divises, ou
qu an do era possvel, exterm in an do revoltas dem asiado osten sivas. A esta
estratgia ope-se, eviden tem en te, a dos poderes in feriores qu e ora exploram a via da revolta aberta, ora a do pacto con dicion ado com os poderes
rgios; ora se aliam com os parceiros do m esm o n vel, ora os com batem ,
recorren do para isso, se n ecessrio, ao apoio dos delegados rgios, n u m
jogo in stvel, ditado por circu n stn cias ocasion ais.
O prim eiro fato qu e se pode relacion ar com a fu tu ra n acion alidade
portu gu esa , por isso m esm o, aqu ele em qu e se verifica a associao de
dois an tigos con dados perten cen tes cada u m deles a u m a provn cia rom an a diferen te: o con dado de Portu cale, situ ado n a an tiga provn cia da Galcia, e o de Coim bra, n a an tiga provn cia da Lu sitn ia. Form aram o qu e
en to se ch am ou o Con dado Portu calen se (o qu e pressu pu n h a a h egem on ia do con dado do Norte sobre o do Su l), en tregu e pelo rei Afon so VI
de Leo e Castela ao con de Hen riqu e de Borgon h a, com o dote de casam en to de su a filh a ilegtim a D. Teresa n o an o de 1096.

CON D IES PA RA O SUCESSO POLTICO D A


PRIMEIRA FORMA O N A CION A L

Uma grande parte do sucesso poltico deste acontecimento resulta de


um antecedente regional: a formao de poderes senhoriais de mbito local.
De fato, durante o sculo XI certas linhagens concretamente as da Maia,
Sousa, Ribadouro, Bragana, Baio e outras menos conhecidas tiraram
partido da sua capacidade militar para alargarem o mbito dos seus territrios, desvincularem-se da autoridade dos condes de Portucale (descendentes
de Vmara Peres), ligarem-se aos soberanos castelhano-leoneses da dinastia
navarra (entre 1037 e 1091) e transmitirem os seus poderes numa linha
nica dentro da mesma famlia. Foram essas linhagens que prestavam fidelidade coroa castelhano-leonesa e, depois, a transferiram para o seu representante, o conde D. Henrique. Foram elas que asseguraram, portanto, um
suporte social autoridade semi-independente do conde.
Nada disso, porm , teria sido su ficien te para origin ar u m processo
de efetiva au ton om ia poltica se n o se tivesse pou co tem po depois dado

A FORMAO DA NACIONALIDADE

u m m ovim en to m ais am plo qu e criou con dies favorveis ecloso de


verdadeiros rein os de m bito in ferior ao rein o castelh an o-leon s, igu alm en te apoiados por gru pos aristocrticos region ais. Ten do eles adqu irido
m aior fora e in depen dn cia, em virtu de do am bien te de crise da m on arqu ia e da recepo de n ovos m odelos m on rqu icos vin dos de alm -Piren eu s (qu e se verificou desde a m orte de Afon so VI em 1108 at coroao de Afon so VII em 1126), o seu apoio aos n ovos rein os foi essen cial
para a su a con solidao.
De fato, as alteraes provocadas n os rein os cristos, depois da gran de expan so territorial da segu n da m etade do scu lo XI cu sta do territrio islm ico, levaram a gran des rem odelaes in tern as. Os elem en tos da
aristocracia, qu e tin h am podido m an ter as su as lin h agen s por via su cessria n ica, ao can alizarem para a gu erra fron teiria todos os filh os qu e n o
su cediam n a ch efia, com earam a organ izar-se em tron cos verticais im agem da casa real, o qu e perm itia s m ais poderosas fam lias m an terem in tactos atravs de vrias geraes os seu s poderes locais solidam en te apoiados em dom n ios fu n dirios. Mas os filh os segu n dos qu e en riqu eciam n a
gu erra e os cavaleiros fran cos ou de ou tras regies qu e acu diam fron teira preten diam tam bm alcan ar poderes prprios, com pran do terras de
pequ en os proprietrios ou ten tan do criar, por su a vez, u m a au toridade sen h orial apoiada em foras m ilitares.
Esses m ovim en tos associam -se en to a agru pam en tos region ais. Em
torn o de D. Urraca, su cessora de Afon so VI, re n em -se en tre si e opem se u n s aos ou tros os n obres castelh an os, leon eses, aragon eses e galegos,
qu e se apiam altern adam en te n os m em bros da fam lia real desavin dos
en tre si. A aristocracia n obre, resolvidos os seu s problem as in tern os, ao absorver ou assim ilar as foras extern as de origem fran ca, sai reforada da
crise in tern a da m on arqu ia. Em coligaes qu e j podem os ch am ar n acion ais (de Castelh an os, Leon eses, Aragon eses ou Galegos), a n obreza en saia
form as de solidariedade e organ iza a su a estru tu ra in tern a; esboa form as
de relacion am en to com os cavaleiros, qu er pela con cesso ou recon h ecim en to de poderes qu er pela vassalagem .
Mas aqu eles con ju n tos de n obres qu e, depois de se terem reorgan izado socialm en te, prossegu em a lu ta con tra o Isl qu e assegu ram ao seu
fu tu ro pas (ch am em os-lh e assim ) u m a trajetria m ais segu ra. Assim , a
Galiza n o ch ega a destacar-se de Leo, porqu e a su a n obreza s participa
n a gu erra extern a qu an do se associa portu gu esa ou castelh an a; Leo
vai perden do terren o face a Castela, m an ten do com ela u m a u n io precria, qu e viria a desfazer-se en tre 1157 e 1230, m as jogan do sem pre u m papel secu n drio n a lu ta an tiislm ica; Portu gal, Castela e Arago, pelo con trrio, m an ten do u m protagon ism o con stan te n a m esm a gu erra, n o cessam de se desen volver com o m on arqu ias in depen den tes.

Jos Mattoso

A situ ao de gu erra assegu ra, portan to, u m papel fu n dam en tal


tan to n obreza, qu e ten dia a m on opolizar as fu n es m ilitares, com o s
m on arqu ias sob as qu ais ela se agru pa region alm en te e qu e assu m em sem pre a ch efia e a coorden ao das gran des operaes gu erreiras. Con stitu em -se assim blocos fron teirios qu e assegu ram a eficcia das operaes.
A associao en tre u m a classe social com fortes apoios fu n dirios, com poderes prprios e in teressada n a gu erra, e os reis qu e a apoiam assegu ra aos
diversos rein os pen in su lares u m trajeto poltico du radou ro.

P ORTUGA L E A GA LIZA
At 1128 verifica-se u m a srie de acon tecim en tos polticos qu e parecem ligar os destin os de Portu gal aos da Galiza. O prin cipal a form ao
de u m rein o in depen den te com Garcia I (1065-1071), qu e apesar da su a
posterior apropriao pelo rei de Leo e Castela se m an teve n om in alm en te separado destes en qu an to o m esm o rei Garcia esteve preso, at su a
m orte em 1091, e qu e con tin u ou sob a form a de u m con dado en tregu e a
Raim u n do at 1096. A participao de algu n s m em bros da aristocracia galega n o com bate ao Isl e a su a fixao em territrio portu gu s reforam
esta aproxim ao. A separao de Portu gal e Galiza, con cretizada sob a
form a de dois con dados in depen den tes u m do ou tro, com a redu o da
au toridade de Raim u n do apen as Galiza e a con cesso de Portu gal a Hen riqu e, vem criar u m h iato n esta poltica. Este h iato, porm , estava j laten te, n o plan o eclesistico, por cau sa da rivalidade en tre as ss de Braga e de
Com postela, desde a restau rao da prim eira em 1070. Verifica-se, assim ,
u m a situ ao caracterizada pela presen a de dois m ovim en tos con traditrios, u m qu e ten de a m an ter a u n io com a Galiza, ou tro qu e apon ta j
para a separao. Note-se qu e o prim eiro adm itia du as solu es, con form e
se viesse a resolver por m eio da h egem on ia da Galiza ou da h egem on ia de
Portu gal. Note-se tam bm qu e Hen riqu e com bateu pela segu n da destas
solu es, pois esperava restau rar em seu favor o an tigo rein o da Galiza e
de Portu gal, com o con sta do acordo assin ado com seu paren te Raim u n do,
con h ecido sob o n om e de pacto su cessrio. A m orte de Raim u n do em
1107 s podia ter acen tu ado tais objetivos. provvel qu e a rain h a D.
Teresa tivesse m an tido a m esm a idia depois da m orte de Hen riqu e
(1112), e qu e isso expliqu e as su as ligaes a Pedro Froilaz de Trava e aos
seu s filh os, dado o papel daqu ele com o tu tor do h erdeiro do tron o, Afon so Raim u n des (fu tu ro Afon so VII).
Este propsito, porm , veio a fracassar em virtu de da con ju gao de
du as sries de acon tecim en tos con vergen tes: por u m lado, o fato de tan to
D. Urraca com o seu filh o Afon so VII terem lu tado den odadam en te pela
m an u ten o da u n idade da m on arqu ia castelh an o-leon esa, com o persis-

10

A FORMAO DA NACIONALIDADE

ten te apoio de Diego Gelm rez, arcebispo de Com postela, qu e via n essa solu o o m elh or apoio para as su as am bies de prelado da n ica s apostlica do Ociden te alm da de Rom a, e qu e preten dia ser a m aior au toridade espiritu al de toda a Pen n su la; por ou tro lado, pelo fato de os bares
portu calen ses e o arcebispo de Braga terem percebido qu e a u n io de Portu gal e da Galiza sob a h egem on ia galega os m an teria fatalm en te n u m a situ ao de in ferioridade e de depen dn cia; para estes, portan to, era prefervel m an ter Portu gal com o u m con dado su jeito diretam en te ao rei de
Leo e Castela do qu e restau rar o rein o da Galiza e Portu gal, ain da qu e sob
a au toridade de D. Teresa (sobretu do se ela ficasse a dever a su a realeza
efetiva aos Travas). Foi essa a solu o qu e de fato se torn ou possvel a partir da batalh a de S. Mam ede (1128), por m eio da qu al os bares portu calen ses, com o apoio do arcebispo de Braga, depois de terem obtido o apoio
ativo de Afon so Hen riqu es, expu lsaram do con dado Fern o Peres de Trava e a rain h a D. Teresa.
Con tu do, dada a im portn cia da gu erra extern a n o processo de form ao das u n idades territoriais n acion ais da Pen n su la, o qu e provavelm en te assegu rou a efetiva du rabilidade da au ton om ia portu gu esa, reivin dicada em S. Mam ede, n o foi tan to a opo qu e a n obreza portu calen se
tom ou em favor de Afon so Hen riqu es, ou m elh or, con tra o dom n io qu er
de Gelm rez, qu er dos Travas, m as o fato de a essa opo se ter segu ido,
n u m a seq n cia irreversvel, a n ecessidade de assu m irem o prin cipal papel da gu erra an tiislm ica, relegan do para segu n do plan o a atu ao da
aristocracia galega. verdade, porm , qu e n o o fizeram diretam en te, sob
a direo e com u m a participao in ten sa das lin h agen s n orten h as, m as
sob a direo de Afon so Hen riqu es, a partir do m om en to em qu e ele, apen as trs an os depois de S. Mam ede, se fixou em Coim bra e passou a tom ar
u m papel extrem am en te ativo n a Recon qu ista.

O ESPA O VITA L
Preen ch ida a con dio qu e perm itiu a u m gru po social os bares
portu calen ses e o m ais im portan te dos bispos desem pen h ar u m papel ativo de prim eiro plan o n a poltica pen in su lar, m an tido o seu protagon ism o
devida gu erra extern a, n em por isso se podia con siderar garan tida a in depen dn cia de Portu gu al. provavel qu e ela n o se tivesse podido m an ter se n o se apoiasse n u m territrio dotado de recu rsos econ m icos su ficien tes para a su portar. O qu e, portan to, a assegu rou n a fase segu in te foi
a apropriao de n ovos espaos cu jos recu rsos eram com plem en tares dos
do n cleo in icial, e qu e este teve capacidade para dom in ar por in term dio
de u m qu adro h u m an o su jeito aos seu s in teresses. Ou seja, con cretam en te, o qu e, n u m a segu n da fase, con solidou a capacidade au ton m ica de

11

Jos Mattoso

Portu gu al foi a con qu ista de Lisboa e de San tarm e a posse dos seu s respectivos alfozes. Este fato trou xe con sigo a possibilidade de colocar n a vigiln cia e adm in istrao dos n ovos territrios paren tes da n obreza n orten h a qu e eram afastados da partilh a h ereditria n as terras de origem para
n o am eaarem a base m aterial do poder fam iliar, ou su bordin ados seu s
qu e n o podiam prosperar den tro dos seu s dom n ios sen h oriais. Assim se
perm itia e propiciava a expan so da classe dom in an te sem qu e ela fosse
afetada por u m a crise de crescim en to, dada a exigu idade do territrio em
qu e ela exercia os seu s poderes o En tre-Dou ro-e-Min h o.
Essa possibilidade, qu e assegu rava u m a certa u n idade ao con ju n to,
sob a orien tao poltica de u m gran de ch efe m ilitar, n a pessoa de Afon so
Hen riqu es, perm itia tam bm en con trar a form a de absorver ou tros exceden tes dem ogrficos de En tre-Dou ro-e-Min h o, qu e du ran te os scu los XI
e XII n o cessaram de au m en tar. Os cam pon eses dali, dem asiado apertados n u m a rea fertil m as redu zida, procu ravam n ovas terras para poderem
su bsistir. A atrao das cidades m u u lm an as en volvidas por u m a au ra de
prosperidade e de riqu eza fabu losa orien tou boa parte destes exceden tes,
prim eiro para as expedies de com bate, depois para a fixao n as cidades,
logo a segu ir para a ocu pao do hinterland estrem en h o, qu e a an terior situ ao de gu erra tin h a m an tido at en to bastan te despovoado.
O aflu xo ao litoral portu gu s e s cidades prxim as dele de u m a popu lao qu e em boa parte reprodu zia as estru tu ras im plan tadas n o En treDou ro-e-Min h o, e qu e, portan to, ao m esm o tem po, expan dia e fortalecia
o n cleo in icial, garan tia-lh e, assim , a viabilidade de su bsistn cia e de au ton om ia. Ocu pava as cidades do Ociden te atln tico e, com elas, o dom n io
das vastas reas econ m icas qu e elas con trolavam . Organ izava o seu con ju n to (Porto, Gu im ares, Braga, Coim bra, Lisboa, San tarm , vora) n u m a
rede de trocas com plem en tares cu jas poten cialidades exerciam sobre os
seu s diversos elem en tos u m papel de estm u lo, tan to pelas possibilidades
de escoam en to da produ o, com o pela capacidade de abastecim en to. As
cidades, por su a vez, ao con cen trarem a popu lao, levavam ao desen volvim en to das reas circu n dan tes, an teriorm en te preju dicadas pela gu erra
qu ase con tn u a, para poderem assegu rar o seu prprio abastecim en to em
produ tos alim en tares e em m atrias prim as. Por ou tro lado, a m esm a con cen trao popu lacion al obrigava a desen volver a produ o artesan al, para
com ela se poderem pagar os produ tos vin dos do cam po. Um a parte do artesan ato destin a-se ao apoio das atividades m ilitares, visto qu e as cidades
da lin h a do Tejo e a de vora con tin u aram am eaadas pelas in cu rses m u u lm an as at 1217. A con tin u ao da gu erra para su l e sobretu do a con qu ista de Badajoz pelos leon eses em 1229 ou 1230 (depois da fru strada in vestida de Afon so Hen riqu es em 1169), qu e destru iu o prin cipal cen tro
m ilitar alm ada da fron teira ociden tal, tiveram com o resu ltado a segu ran a das cidades do litoral atln tico. Um a vez con segu ida esta e ocu pado

12

A FORMAO DA NACIONALIDADE

tam bm o Alen tejo e o Algarve (1249), com a con seq en te pacificao dos
m ares devido destru io dos prin cipais plos da pirataria sarracen a, ficava aberto o com rcio in tern acion al direto, por via m artim a, sem ter de se
recorrer m ediao castelh an a.
Certos au tores (sobretu do Torqu ato Soares) ch am aram a aten o
para o fato de assim se ter recon stitu do u m con ju n to qu e coin cidia aproxim adam en te com trs an tigos con ven tos ju rdicos da poca rom an a
(Bracara, Scalabis e Pax Ju lia Braga, San tarm e Beja). A diferen a prin cipal con sistia em qu e eles estavam su bordin ados a provn cias diferen tes e
qu e s sob adm in istrao portu gu esa qu e os seu s territrios passaram a
form ar u m con ju n to qu e n o estava su bordin ado a n en h u m plo poltico
n em econ m ico extern o.

CEN TRA LIZA O POLTICA

Com o eviden te, esse con ju n to de fatos n o explica por si s a in depen dn cia n acion al. Esta n o existiria sem u m poder poltico qu e coorden asse os in teresses de u m determ in ado gru po region al com o poten cial
econ m ico de u m a regio su ficien tem en te diversificada, com o a qu e acabei de descrever. J vim os os an teden tes da solu o poltica qu e acabou
por con solidar a separao en tre o Con dado Portu calen se e a Galiza. Alu dim os tam bm ao fato de em 1131 Afon so Hen riqu es se ter fixado em
Coim bra e ter assu m ido o com an do ativo da gu erra extern a, com o apoio,
em bora n o n ecessariam en te com a participao ativa direta, dos ch efes
das lin h agen s n orten h as. As n ecessidades da gu erra levaram , porm ,
Afon so Hen riqu es a en cabear tam bm ou tras foras, as dos con celh os,
qu e con stitu am , por assim dizer, a fon te abastecedora dos efetivos de
m assa e a m elh or garan tia da defesa fon teiria em caso de in vaso. Essas
com u n idades n o n obres, m as com verdadeira au ton om ia local, qu e tin h am criado as su as estru tu ras pecu liares n u m a espcie de terra de n in gu m en tre as du as fron teiras, a crist e a m u u lm an a, alian do-se ora
com u m lado ora com ou tro, qu e tin h am feito da pilh agem m odo de vida,
aceitaram a au toridade rgia com o form a de garan tir u m a parte da su a
au ton om ia face crescen te in vaso sen h orial dos bares de En tre-Dou ro-e-Min h o. Ceden do u m a parte das su as prerrogativas ao rei n as reas
m ilitar, da ju stia e do fisco, evitavam a su bm isso aos poderes sen h oriais
dos n obres e da Igreja. Podiam n egociar com o rei o recon h ecim en to de
im portan tes privilgios e prom etiam a colaborao dos seu s exrcitos n a
lu ta an tiislm ica. A ch efia m ilitar do rei trou xe con sigo, portan to, a associao dos con celh os e da n obreza sen h orial. Essas com u n idades, ten den cialm en te opostas u m as s ou tras, podiam assim m an ter as su as posies
sob a proteo do rei e evitar lu tas estreis en tre si. A form ao de u m a

13

Jos Mattoso

u n idade poltica possibilitou tam bm a in tegrao das cidades organ izadas em con celh os n o espao n acion al, sem os su jeitar aos sen h orios particu lares (excetu an do, at o scu lo XIV, as cidades do Porto e de Braga) e,
desde Afon so III (1248-1279), a su a su bordin ao poltica econ m ica
orien tada pela coroa.
At 1211 pode-se dizer qu e o rei n o im pediu a con solidao dos
poderes sen h oriais n o Norte, n em sequ er a su a expan so n o Cen tro e Su l
do Pas (sobretu do de sen h orios eclesisticos), e qu e tam bm n o in terveio
n a adm in istrao in tern a dos con celh os. Lim itou -se a dirigir as operaes
m ilitares com os recu rsos qu e os con celh os e os sen h ores lh e forn eciam e
sobretu do com as tropas qu e podia recru tar com os ren dim en tos dos dom n ios rgios. Ele prprio se con siderava com o u m sen h or. S algu n s
m em bros da c ria rgia, im bu dos das idias ju rdicas in spiradas n o Direito Rom an o, atribu am -lh e, desde a dcada de 1190, au toridade de verdadeiro rei, e n o apen as de primus inter pares. Para isso con tribu iu , por u m
lado, a con cepo, j an tiga, da realeza com o au toridade respon svel pela
m an u ten o da ju stia e da paz, acim a da qu e os sen h ores e os con celh os
podiam assegu rar, e o verdadeiro carism a de gu erreiro qu e os eclesisticos
recon h eciam em Afon so Hen riqu es, e qu e seu filh o San ch o I procu rou
tam bm m erecer.
Apesar disso, n o se pode dizer qu e h ou vesse verdadeiram en te u m
Estado portu gu s at a m orte de San ch o I. O seu verdadeiro fu n dador,
com o organ ism o poltico capaz de assegu rar u m a adm in istrao im pessoal
e u m a au toridade a qu e m esm o os poderes sen h oriais tin h am de se su jeitar, in depen den tem en te de com prom issos recprocos de vassalidade, foi
Afon so II (1211-1223). Este, ten tan do, certam en te, pr em prtica as
idias do ch an celer Ju lio, qu e in iciara as su as fu n es j em tem po de
Afon so Hen riqu es, e qu e criara u m a verdadeira pliade de ju ristas com o
seu s au xiliares, e, por ou tro lado, in flu en ciado pelo prprio processo da
cen tralizao da c ria rom an a, qu e tam bm in spirou Frederico II n o govern o da Siclia, com eou o seu rein ado pela prom u lgao de u m corpo de
leis. Depois ocu pou -se em m on tar u m a verdadeira adm in istrao poltica
do territrio e em organ izar as fin an as da coroa com base n a econ om ia
citadin a. De form a ru dim en tar, sem d vida, m as qu e tin h a j em em brio,
as fu n es estatais, adian tava-se, assim , m aioria das m on arqu ias feu dais
do Ociden te eu ropeu .
Apesar das violen tas oposies qu e tal poltica su scitou da parte da
n obreza sen h orial, e de vrios m em bros do alto clero, m as con tan do com
u m pequ en o gru po de vassalos fiis, Afon so II m an teve a m esm a orien tao at ao fim da vida. As cises qu e se segu iram n o seio da n obreza con du ziram , depois, du ran te o rein ado de San ch o II (1223-1248), cu ja fraqu eza e in deciso con trastam fortem en te com a firm eza da seu pai, a u m a
verdadeira an arqu ia social agravada pela crise da prpria n obreza. Esta,

14

A FORMAO DA NACIONALIDADE

su jeita a u m rpido crescim en to n u m rico, dificilm en te podia assegu rar a


todos os seu s m em bros, m esm o de con dio in ferior, o exerccio dos direitos sen h oriais; a h esitao en tre a partilh a h ereditria e a in feriorizao su cessria dos filh os segu n dos provocava o exacerbam en to e a violn cia dos
m en os favorecidos, a con stitu io de ban dos e o assalto aos in defesos.
con ten so da expan so sen h orial en tre 1211 e 1223, segu iu -se o seu desen freado crescim en to en tre 1223 e 1245, e ao m esm o tem po a pertu rbao social e a an arqu ia, sobretu do n as regies de regim e sen h orial (o Norte), acaban do por a segu ran a do clero e dos seu s ben s. Assim se decidiu
u m a coligao de bispos e de n obres para solicitar ao papa In ocn cio IV a
su bstitu io de San ch o II por seu irm o Afon so III. Depois de u m a gu erra
civil bastan te violen ta, Afon so III acabou por triu n far. O seu an tecessor
m orreu n o exlio em 1248.
Depois do ensaio singularmente precoce de Afonso II, foi, de fato, a
persistncia e a habilidade poltica de Afonso III (1248-1279) o que garantiu a efetiva supremacia e a independncia da realeza, assim como a montagem emprica, mas conseqente, dos orgos estatais. Passou a administrar
rigorosamente os domnios da coroa, criou um corpo legislativo, constituiu
uma nobreza de corte fiel e submissa, enfraqueceu a nobreza senhorial,
montou um aparelho judicial capaz de assegurar a justia sob o controle dos
meirinhos-mores, mesmo contra os senhores (nobres ou eclesisticos),
acumulou rendimentos suficientes para garantir a sua independncia econmica face a outros poderes, cerceou os excessivos privilgios do clero e
conseguiu influenciar a escolha dos bispos. A sua obra foi depois continuada por seu filho Dinis (1279-1325), que criou os corregedores para aperfeioarem o sistema judicial, organizou o notariado, formou um corpo de escrives rgios junto dos concelhos, controlou as eleies dos magistrados
municipais, recrutou um corpo regular de besteiros fornecidos pelos concelhos, cerceou os privilgios senhoriais, imps a noo de uma justia rgia
capaz de perseguir os crimes mesmo nos territrios imunes etc.
Assim , a m on tagem de u m aparelh o estatal capaz de exercer u m a
in flu n cia efetiva e verdadeiram en te u n ificadora sobre todo o Pas, tiran do o an teceden te efm ero de Afon so II, data efetivam en ta da segu n da m etade do scu lo XIII. At essa altu ra, h avia relaes en tre as diversas com u n idades qu e se su jeitavam au toridade do m esm o rei, h avia tam bm m ovim en tos de tropas e de popu laes qu e abarcavam todo o territrio n acion al, m as o Pas era con stitu do por u m con ju n to de u n idades com u m a
con sidervel dose de in depen dn cia, ligadas en tre si por vn cu los tn u es,
e, com o con ju n to, destitu do de laos verdadeiram en te coeren tes.

15

Jos Mattoso

CON SCIN CIA N A CION A L


A delimitao poltica e econmica um elemento objetivo que distingue de todas as outras a comunidade humana nela inserida. Para esta comunidade constituir uma Nao ainda preciso que os seus membros adquiram a conscincia de formar uma coletividade tal que da resultem direitos e deveres iguais para todos, e cujos caracteres eles assumam como expresso da sua prpria identidade. Esta conscincia forma-se por um processo lento, que no envolve simultaneamente todos os sujeitos. Comea
por eclodir em minorias capazes de conceber intelectualmente em que consiste propriamente a Nao; depois esta idia vai se propagando lentamente a outros grupos, at atingir a maioria dos habitantes do Pas. Em Portugal nota-se primeiro nos membros da chancelaria condal e rgia, depois nos
clrigos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a seguir noutros membros
da corte e em funcionrios da administrao que se apresentam como delegados do rei em todos os pontos do Pas, mais tarde nos restantes membros do clero e das ordens militares e nas oligarquias dos concelhos.
As guerras com Castela e a Revoluo de 1383-1385, ao trazerem
tropas estrangeiras a Portugal, evidenciam a diferena entre os Portugueses
e os outros, isto , aqueles que falavam outra lngua, tinham outros costumes e se comportavam como inimigos. Cem anos depois, a expanso ultramarina coloca muitos portugueses em face de gente ainda mais estranha
perante a qual eles se apresentam como irmanados pela vassalagem a um
mesmo rei, sejam minhotos, alentejanos ou beires. A sujeio Espanha,
no sculo seguinte, faz refletir sobre o que ser portugus e o que estar
sujeito a uma administrao no portuguesa, pela mesma poca em que se
pode ler nos Os lusadas a epopia mitificada de um povo capaz de chegar
aos confins do mundo. E assim sucessivamente, at s exaltadas manifestaes populares contra a Inglaterra por ocasio do Ultimatum de 1890, s comemoraes nacionais dos vrios centenrios que fazem refletir nos feitos
hericos de outrora, s revolues cuja vitria se atribui participao popular, propaganda ideolgica nacionalista dos anos 30 a 60. Tudo isso vai
consolidando e difundindo o conceito de Nao. preciso no esquecer,
porm, que s os cidados capazes de ler podiam conhecer Os lusadas, e
que s os que tinham feito o ensino primrio podiam compreender o que
era a histria ptria e saber os direitos dos cidados. Ora a populao analfabeta s em pleno sculo XX deixa de constituir mais da metade do povo
portugus. preciso, portanto, esperar at uma poca bem recente para poder admitir uma efetiva difuso da conscincia nacional em todas as camadas da populao, e em todos os pontos do seu territrio.

16

A FORMAO DA NACIONALIDADE

B IBLIOGRA FIA
DAVID, P. tudes historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe sicle. Lisboa: Bertran d, 1947.
ERDMANN, C. O papado e Portugal no primeiro sculo da histria portuguesa.
Coim bra, 1935.
FEIGE, P. Die Anfnge des portugiesischen Knigtum und seiner Landeskirche. Spanischen Forschungen der Grresgeselschaft. 1978. v.29, p.85-436.
HERCULANO, A. Histria de Portugal desde o comeo da monarquia at ao fim
do reinado de Afonso III. Pref. e n otas crticas de J. Mattoso. Lisboa: Bertran d, 1980-1981. 4v.
LIVERMORE, H. The Origins of Spain and Portugal. Lon don : G. Allen , 1971.
LPEZ ALSINA, F. La ciudad de Santiago de Compostela en la Alta Edad Media.
San tiago de Com postela: Ayu n tam ien to, 1988.
MATTOSO, J. Ricos-homens, infanes e cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos sculos XI e XII. 2.ed. Lisboa: Gu im ares, 1985.
___. Identificao de um Pas. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325).
5. ed. Lisboa: Estam pa, 1996.
___. 1096-1325. In : ___. (Dir.) Histria de Portugal. Lisboa: Estam pa, 1997.
v. II, p.13-259.
SOARES, T. de S. Reflexes sobre a origem e a formao de Portugal. Coim bra:
Facu ldade de Letras, 1962.
___. Contribuio para o estudo das origens do povo portugus. S da Ban deira,
1970.
VONES, L. Die Historia Compostelana und die Kirchenpolitik des Nordwesthispanischen Raumes, 1070-1130. Vien a: Bh lau Verlag, 1980.

17

captu lo 2

O FIN A L D A ID A D E MD IA
Maria Helen a da Cru z Coelh o*

O fu tu ro D. Joo II con h ecia o govern o. Porqu e fora regen te em


1463, qu an do seu pai segu ira n a cam pan h a de Marrocos, em 1475, qu an do o m on arca dem an dara Castela, e ain da em 1476-1477, qu an do esforadam en te Afon so V ru m ara Fran a n a bu sca de apoios extern os.
O fu tu ro D. Joo II con h ecia o pas. Porqu e com o prn cipe e regen te vira crescer o poderio dos gran des sen h ores qu e seu pai acu m u lara de ben esses em terras, direitos e ju risdies. Porqu e ou vira as vozes
qu e se ergu iam em Cortes. Qu er as da aristocracia da m ercan cia, qu e clam avam liberdades de com rcio e fiscais e a n o-con corrn cia de estran geiros, qu er as da terraten n cia qu e pu gn avam por m o-de-obra, salrios baixos e defesas das cu ltu ras, ou ain da as da criao de gado qu e rogavam por fartas pastagen s e bon s m ercados. Para, todas elas, em u n sson o, ou vir reclam ar con tra os poderes e opresses dos gran des, 1 con tra
o desregram en to da corte, con tra os abu sos e prepotn cias dos oficiais
rgios qu e qu eriam im por o seu poder n a localidade, livre de peias, e in terven ien te n os vrios aspectos do tecido socioecon m ico. E seria m ais
aten tado n o qu e via, e n o pelo qu e escu tava, qu e o prin cpe con h eceria as qu eixas do povo laborioso qu e am an h ava a terra, qu e in tern am en te com erciava ou produ zia artefatos.
O fu tu ro D. Joo II con h ecia, en fim , a poltica extern a. Percorrida
por equ ilbrios vrios, por en tre m ares e con tin en tes. Con scien te estava
da correlao de foras castelh an as, ten do m esm o acorrido ao seu pai em
Toro, e sabia qu e o n osso fortalecim en to n o Atln tico era a pedra de toqu e do xadrez in tern acion al, fosse n a poltica de ocu pao m arroqu in a
e n a con qu ista de Arzila acom pan h ara o seu progen itor fosse n a explorao da costa african a, cu ja direo assu m ira desde 1474, lideran do, exclu sivam en te, os tratos african os.
Qu an do, em 28 de agosto de 1481, sobe ao tron o, tin h a u m projeto poltico, tin h a von tade de coloc-lo em prtica e sabia com o agir. Pron tam en te e pragm aticam en te.
De im ediato ao saim en to do sen h or seu pai, n o m osteiro da Batalh a, con vocou Cortes para vora. Qu e abrem a 12 de n ovem bro, com
toda a pom pa e solen idade da en tron izao do poder real, oferecida em
espetcu lo.2 Com n ovo e detalh ado cerim on ial distribu em -se os lu gares

19

Maria Helena da Cruz Coelho

do rei e da corte rgia, do clero, da n obreza e dos procu radores dos con celh os, qu e sim bolizavam as h ierarqu ias, n a su a dign idade e h on ra, de
u m a sociedade h ierarqu izada, n u m corpo h arm on ioso, dirigido por u m
cabea, qu e o govern ava, e con stitu do por u m tron co e ps qu e o su sten tavam . A palavra, em discu rso oficial, d form a in telectiva ao qu e se v e
sen te. Para logo em segu ida se passar ao sim blico e de discu rsivo ao.
De u m poder m ediatizado pela represen tao, qu e a vista e o ou vido percebem , a u m poder em exerccio qu e atin ge a von tade e o corao.
Ao seu rei e sen h or a fam lia real e os gran des tm de prestar m en agem e ju rar obedin cia pelas graas e ben s dele recebidos e os procu radores das cidades e vilas ju rar lealdade e servio.3 Ato h abitu al de ju ram en to de fidelidade ao n ovo m on arca se n o fora o n ovo ritu al de palavras e gestos. Qu e n o agradou aos sen h ores. Em especial, e por todos,
com o o m ais poderoso, ao du qu e de Bragan a.4
Talvez n o assim aos procu radores dos con celh os qu e, con h ecen do
por certo j o perfil do n ovo m on arca, e aproveitan do-se da con ju n tu ra
favorvel do in cio de u m ou tro rein ado, pediram , m etdica e program adam en te, reform as n a ju stia, n a fazen da e n a defesa. Qu eriam ver dim in u dos os poderes ju risdicion ais dos sen h ores e elim in adas as opresses
qu e in fligiam aos povos, com o n o m en os preten diam rgos rgios com
fu n es rigorosam en te defin idas e oficiais com peten tes e zelosos, n u n ca
n o-cu m pridores ou abu sadores. Desejavam ver m oderao n a con cesso
de ten as, m oradias e assen tam en tos aos vassalos, criados e m oradores n a
corte, deven do estes ser socialm en te com patveis com essa m esm a corte
e n ela servir con ven ien tem en te. Esperavam ver a defesa eficazm en te assu m ida pelos qu e tin h am especificam en te tal m isso, por ela receben do
ben efcios. Mas pelo con trrio, n o qu eriam recru tadores m ilitares qu e
sobrecarregassem os povos. Alm ejavam n a persecu o dos seu s in teresses, qu e eram os dos m aiores en tre o povo, liberdades com erciais, afastam en to de con corren tes estran geiros ou ju deu s, dom n io dos m esteirais,
boas oportu n idades n a agricu ltu ra e criao de gado.
De tu do isso se agravam n u m lon go rol de 172 captu los gerais, obten do em 46,5% deles resposta favorvel do m on arca.5 Mas a lista acresceu -se ain da de m ais 140 captu los especiais, visan do sobrem an eira os
problem as da adm in istrao, poltica e econ om ia locais, qu e lograram alcan ar do m on arca u m a percen tagem de 53,6% de respostas afirm ativas.6
Decorridos u n s escassos 7 m eses7 e j os povos estavam de n ovo
sen do ch am ados a Cortes, agora para San tarm .8 Desta vez, a fim de con tribu rem para a rem isso das dvidas de seu pai, deven do ser cobrado u m
pedido de 50 m ilh es. No parecem ter com parecido s m esm as o clero e
a n obreza, con h ecen do-se apen as a presen a de doze con celh os. No en tan to s de on ze possu m os captu los especiais, abran gen do o pas de n orte a su l, com o se eviden cia pelo m apa, e n en h u n s gerais.

20

O FINAL DA IDADE MDIA

1 CORTES D E VORA D E 1490

CON CELHOS COM CA PTULOS ESPECIA IS

Barcelos (2)

Bragana (7)

Braga (1)
Guimares (1)

Miranda do
Douro (2)

Lamego (3)
Aveiro (6)
Guarda (2)
Coimbra (6)

Torres Vedras (5)


Coruche (1)

Elvas (4)
Estremoz (3)

Olivena (4)

Setbal (2)

Silves (3)
Lagos (8)

50 km

21

Maria Helena da Cruz Coelho

Do Entre Douro e Minho tiveram assento Ponte de Lima e Guimares. Da Beira, Pinhel e Viseu. Do Alentejo, Monforte, Olivena, Vila Viosa e Serpa. Do Algarve, Loul, Faro e Silves. Ao todo so apresentados trinta agravos, conhecendo-se a resposta apenas para 22.9 Quem mais pediu foram, respectivamente, Vila Viosa com oito captulos, e Loul com sete.
As principais queixas visam ao econmico. Depois certos estratos sociais, com destaque maior para os senhores, e em seguida a administrao
central e muito escassamente a local, o que o grfico permite visualizar.10

2 CORTES D E SA N TA RM D E 1482
CA PTULOS ESPECIA IS

Natureza dos requerimentos

Total

Administrao central

23,3

Administrao local

6,7

Social

30,0

Econmico

12

40,0

Total geral

30

100,0

A m aior parte dos con celh os h avia estado n as Cortes qu e h pou co tin h am ch egado ao fim .11 A, em captu los gerais e especiais, tin h am
sido postos os m ais prem en tes problem as qu e sem pre, aproveitan do a
con ju n tu ra n ova da abertu ra de u m rein ado, se apresen tam ou retom am .
Para resolver, agora, to-s algu m as qu estes bem m ais especficas.
Ain da e sem pre u m a crtica aos oficiais rgios. Fosse o alcaide das
sacas qu e, atravs dos requ eredores e escrives qu e colocava para escreverem o ou ro e a prata trazidos pelos m ercadores estran geiros, os afastava
dos n ossos portos, com o referem Faro (1) e Silves (1). Fosse o con tador,
qu e em Lou l (5) n o qu eria deixar os vizin h os trazerem ben s de m ou ros,
e em Pon te de Lim a (1) preten dia dispor de u m a casa para se aposen tar.
Mais gen ericam en te, Lou l (2) qu eixava-se do gran de n m ero de h om en s
da escrita qu e h avia n a correio, tan tas vezes para favorecer criados dos
sen h ores. Por su a vez Pin h el (1) e Viseu (1), em agravos exatamen te igu ais,
on de se ou via com n itidez a voz das aristocracias locais, in vectivaram con tra o corregedor qu e obrigava os fidalgos, cavaleiros e escu deiros de lin h agem e os vassalos e cidados h on rados a irem at a forca ou pelou rin h o,
on de a ju stia se h avia de fazer, ch am ados por prego, igu alan do-os em
todo com h o dito com u m e n o lh es gu ardan do os privilgios.

22

O FINAL DA IDADE MDIA

Esgrim iam estes n obres e grados com o argu m en to de qu e pois diferem ciadam en te h am de servir vossa sen h oria n as gu erras n o qu e a elles pertem cee em seu s graos razoada cou sa seria serem diferem ciados dos m en ores. E porqu e a D. Joo II n o in teressa u m a sociedade su bvertida, m as
ordeiram en te h ierarqu izada, de pron to, defere tal pedido.
Seria, tam bm , esta m esm a elite qu e estava m u ito aten ta aos desm an dos sen h oriais, desejan do v-los corrigidos. Qu eixas con tra a fidalgu ia se ergu em pela voz sobretu do de Lou l, m as tam bm de Pon te de
Lim a, Gu im ares e Serpa.
Lou l (1), em expressivo e desassom brado artigo, acu sa D. Afon so
V de t-los lan ado em cativeiro, porqu e dera a vila em sen h orio. E m ais
esclarece qu e se an tes eram do du qu e de Bragan a, agora j os seu s fidalgos diziam qu e a vila era de su a h eran a o qu e, sen h or, m u ito sen tim os
serm os de sen h or e agora serm os dos servidores. Pron tos estariam para
ou tra terra rgia em qu e vivessem , se n o esperassem ser libertos da su jeio por D. Joo, a qu em ch am am n osso Messias. Mas a esperan a teria sido algo fru strada, qu an do o m on arca adia a resposta para as cartas.
Mais especificam en te, acu sava ain da esta vila Nu n o Barreto, a qu em
Afon so V dera as dzim as do pescado do Porto de Farrobilh as, bem com o
u m alvar qu e lh e ou torgava poderes de dar terras e ch os a qu em a qu isesse fazer casas, sobrepon do-se assim costu m eira alada dos ju zes
com o sesm eiros, o qu e cau sava dios. Ain da, e de n ovo, o rei adia a resposta para obter in form aes do con tador. E tam bm este con celh o (1),
coin cidin do n o seu qu erer com o de Gu im ares (1), qu e apela para o
cu m prim en to do estipu lado n as Cortes de 1481-1482, reclam an do qu e os
corregedores e ou vidores dos sen h ores s estivessem n os cargos por 3
an os. E aqu i o assen tim en to rgio claro, precisan do m esm o o qu e deixara exposto n os captu los gerais, j qu e, sem elh an a dos seu s corregedores, tam bm estes deviam estar n o cargo apen as por u m trin io, e orden an do qu e tal se assen tasse n os captu los gerais.
Por su a vez Pon te de Lim a qu eria ver corroborada u m a sen ten a do
corregedor, a qu al, cu m prin do u m a ordem rgia qu e deferia u m pedido
con celh io, m an dara devassar todos os cou tos, u m a vez qu e n o tem po
dado aos seu s possiden tes, estes n o h aviam m ostrado o respectivo privilgio. Aceita-se D. Joo, ain da qu e ressalve a possibilidade da apresen tao de razes por qu em se sen tisse lesado. Serpa, por su a vez, especifica
qu e os fidalgos tm terras defesas, sob determ in adas pen as, on de apascen ta o gado. Logo, se esse m esm o gado en trasse n as terras defesas do
con celh o, deveria pagar idn ticas pen as. D. Joo II, n a su a resposta, parece ir m ais lon ge. Apelan do para captu los j determ in ados em Cortes,
in terdita aos qu e tin h am cou tadas a pastagem n as terras con celh ias, especifican do ain da qu e estas eram cou tadas do m esm o m odo qu e as deles.

23

Maria Helena da Cruz Coelho

Mas alm da con flitu osidade com os sen h ores, h avia a con flitu osidade com ou tros protagon istas dos poderes con celh ios.
Vila Viosa (5 e 6), qu e se diz sobrecarregada de h om en s privilegiados, qu eria qu e os cristos n ovos n o fossem isen tos de servir du ran te 20
an os, com o o m an arca m an dara, in sin u an do at qu e m u itos, falsam en te,
h aviam -se con vertido. Da m esm a m an eira, espin gardeiros e besteiros ou
ou tros privilegiados, qu an do eram citados pelos ju zes, por crim es ou dvidas, exim iam -se de respon der, alegan do qu e s o deviam fazer peran te
o an adel-m or, espin gardeiro-m or ou m on teiro-m or, o qu e os deixava im pu n es, j qu e era trabalh oso ch egar a to distan tes ju lgadores. Descon h ecen do-se as respostas aos pedidos deste con celh o, n ada sabem os sobre as
determ in aes joan in as. Con h ecem o-las, porm , para Oliven a. E cu riosam en te a voz qu e pu gn a por este con celh o, tal com o a qu e represen tou
o an terior de Vila Viosa, n o parece ser dem asiado afeita s elites govern ativas. Assim , m u ito sin tom aticam en te, Oliven a afirm a ter com o m aior
riqu eza as su as vin h as e olivais. Mas n esses ben s sofrem dan os dos gados,
porqu e os alcaides, gran de e pequ en o, e os qu e an dam n os pelou ros ou
detm os ofcios, tm parte n as carn iarias da vila, qu er de cristos qu er
de ju deu s. E, com o dizem , fazem im pu n em en te todo o m al, tan to por serem prin cipais, com o pela presso qu e advm do cargo e ofcio qu e desem pen h am . Roga, en to, por u m a ordem rgia in terditan do a tais h om en s a carn iaria, pois, m esm o as m u ltas j decretadas pelo con de de Oliven a 12 com esse fim n o eram respeitadas. Aspectos a salien tar. Estes lavradores das vin h as e oliviais pareciam ter o apoio do seu sen h or, con tra
as exorbitn cias das elites dirigen tes. E tiveram tam bm o ben eplcito rgio, qu e pu n ia os prevaricadores com 20 cru zados, sem elh an a do qu e
se passava em Estrem oz.
Os dem ais artigos apresen tados visam a aspectos da adm in istrao
local ou da econ om ia con celh ia.
Faro (1 e 2) qu er ter alcaide de seu foro e alm otacaria n o pescado,
segu n do os seu s u sos, o qu e o m on arca con firm a. Mon forte (1) e Vila Viosa (3) lu tam pelo respeito do seu privilgio de isen o de portagem .
Lou l (2) est m u ito preocu pada com o in vestim en to qu e fez n o
Porto de Farrobilh as, pois seu s m oradores, apesar de se abastecerem n a
vila, o qu e at faz su bir os preos, n o lh e trazem n en h u m pescado, an tes o exportam todo para Castela, o qu e n o parece ju sto, fican do decidido qu e u m a parte ru m asse a Lou l. Igu alm en te tem iam (3) por ou vir dizer qu e o soberan o desse u m esteiro do porto, on de arrecadavam os n avios, para se con stru rem azen h as, o qu e D. Joo II m an da averigu ar.
Se a defesa do m ar a preocu pao dos algarvios, a defesa da terra ocu pa Oliven a e Vila Viosa. A prim eira terra fron teiria, tem acrescido problem as. O abastecim en to de len h a e m adeira ao con celh o esta-

24

O FINAL DA IDADE MDIA

va depen den te de Castela, qu e assim ditava as leis e con dies qu e lh e


eram m ais favorveis. Mas com o tem po, por in im izades e feridas das
gu erras passadas, deixaram de en viar, pelo qu e o con celh o rogava o privilgio de se poder abastecer em Ju rom en h a, Alan droal e Teren a, e poder trazer len h a e m adeira pelos portos de Odian a, sem pagar portagem .
D. Joo II com preen de a situ ao e defere o pedido. Mas, com o seu
tim bre, dou trin a. Pon do a tn ica qu e j esboara n o deferim en to a
Pon te de Lim a sobre os cou tos n a bilateralidade. Assim Oliven a servir-se-ia das m atas e ch arn ecas p blicas com o os m oradores daqu eles
lu gares, os qu ais, reciprocam en te, vizin h aram aos espaos p blicos de
Oliven a, n o qu e tivessem n ecessidade. Por su a vez n as terras privadas
com prariam a len h a e m adeira, de acordo com a von tade dos seu s don os. Porm , com o tam bm seu u so, pe a deciso experin cia, e assim ela ser vlida por 3 an os. Ain da Oliven a, dividida en tre os proven tos das vin h as e olivais e os do gado, faz de n ovo ou vir a voz dos lavradores. Qu e reclam avam con tra as qu eim adas qu e os ovelh eiros faziam n aqu eles ben s, pedin do o aoitam en to por tal crim e. O crim e m erece castigo, sabe-o D. Joo II. Mas n o aqu ele, n a assu n o do n orm ativo da ju stia rgia. Os ru s seriam presos e pagariam de cadeia 4.000
reais, m etade para as obras do m u ro e m etade para qu em os acu sasse.
Mas, para qu e n in gu m pecasse por ign orn cia, esta ordem devia ser
apregoada n o con celh o. Rem ata, n o en tan to, deixan do m argem a qu e
im perasse alm desta, segu n do o direito ou orden aes, algu m a ou tra
pen a qu e n o fosse de din h eiro.
J vim os qu e em Vila Viosa igu alm en te se digladiavam terraten en tes e criadores de gado. Mas este con celh o de tu do se qu eixa. No
qu er qu e en tre vin h o de fora n o con celh o, con corren cian do o dos vizin h os (8); n o qu er pagar cu stos to elevados n a barca de Ju rom en h a (7);
deseja acabar com o tribu to con celh io da sisa velh a para in cen tivar o com rcio (4); n o qu e ser obrigado a plan tar am oreiras (2). E tu do isto,
para alm dos agravos a qu e j alu dim os. Pressen te-se u m a econ om ia
con celh ia dividida en tre os lu cros das tradicion ais cu ltu ras m editerrn icas
da vin h a e oliveira e os da criao do gado, on de, alm disso, as tran saes com erciais se preten dem ver din am izadas.
Expostos esses assu n tos locais n as Cortes de San tarm de 1482,
qu e obtiveram , n o seu con ju n to, u m total de 56,7% de respostas favorveis do soberan o, com o o grfico o dem on stra, os povos assistiram , com o
espectadores, ao agir do seu rei.
Viram ou sou beram do en forcam en to do 3. Du qu e de Bragan a em
ju n h o de 1483.13 Mais teriam sabido qu e, n o an o segu in te, o prprio m on arca m atara o du qu e de Viseu e m an dara execu tar m u itos dos seu s sequ azes. E qu e, ain da em 1485, gran des m em bros da fidalgu ia eram presos, m ortos ou se exilavam . Toda a su cesso das n otcias, m ais ou m en os

25

Maria Helena da Cruz Coelho

3 TIPOS D E RESPOSTA S

CORTES DE SANTARM DE 1482 CAPTULOS ESPECIAIS

reais sobre con spiraes, im pression ariam o povo. E n o m en os o deixariam tem en te ao seu rei e sen h or, estas atu aes firm es e decididas de D.
Joo II. Qu e tam bm lh es con viriam . Atacan do o poder sen h orial, estava o m on arca fazen do dim in u ir as presses com qu e os sen h ores, por via
de regra, sobrecarregavam os povos. E estes cada vez m ais con fiariam
n u m soberan o qu e se im pu n h a e ou sava fazer fren te a qu em n o lh e obedecesse ou ju rasse fidelidade, por m ais poderoso qu e fosse. Cada vez m ais
os povos reforariam a im agem do Messias, qu e Lou l j propalara em
1482. su a proteo se en com en davam e do seu poder e m an do n o du vidavam . Na lin gu agem das form as rever-se-iam n essa sim bolizao do
m on arca n u m pelican o, a cu jas asas sabiam poder acolh er-se com o filh os.
No m en os en ten deriam a su a von tade, expressa por palavras, n a divisa
qu e para si tom aria por su a ley e por su a grey.
A projeo dos feitos de alm -m ar au reolavam sem pre e m ais a su a
pessoa. En tre 1481-1482 con stru a-se a fortaleza de So Jorge da Min a
qu e dava cobertu ra ao com rcio african o, assim vigiado e protegido m ilitarm en te. As viagen s de Diogo Co em 1482 e 1484 faziam avan ar o dom n io portu gu s, qu e orgu lh osam en te se assin alava com padres, at ao
Zaire e Serra Parda. Em 1488 Bartolom eu Dias, dobran do o con tin en te
african o, o Cabo da Boa Esperan a, oferecia ao m on arca a certeza de qu e
o cam in h o para a n dia n o era u m a qu im era m as u m a realidade. Os s ditos ou viriam , doravan te, o seu sen h or in titu lar-se rei de Portu gal e dos
Algarves, daqu m e dalm m ar em frica e sen h or de Gu in . E n esse
dom n io de frica, D. Joo II reiterava ain da n u m a poltica m arroqu in a,
reforan do o povoam en to das su as praas, e gan h an do a obedin cia dos
m ou ros de Azam or, em bora m en os bem -su cedidas fossem as expedies
a An af em 1487-1489, visan do con stru o da fortaleza da Graciosa,
m u ito se in vestiu e pou co se con segu iu .

26

O FINAL DA IDADE MDIA

Certo qu e, qu an do se abrem Cortes em vora, n o m s de m aro


de 1490, n a seq n cia das n egociaes abertas em 1488 para o casam en to do in fan te h erdeiro, D. Joo II era u m rei obedecido in tern am en te e
prestigiado n o exterior. Por isso acalen tou o son h o de, atravs do m atrim n io do seu filh o Afon so com Isabel, filh a dos Reis Catlicos, u n ir n u m a
paz du radou ra os rein os de Portu gal e Castela.
u m m on arca repleto de esperan a pelos fru tos qu e a poltica u ltram arin a lh e prom etia e pelo casam en to projetado para o seu filh o com
qu e vo lidar os povos n as Cortes de vora de 1490.14 E o soberan o pedelh es qu e se associem ao seu qu erer, su sten tan to as festas de casam en to do
seu prin cpe, com o qu e en ten dessem , pela su a gen erosidade e com preen so. Sem exigir, an tes con fian do, o soberan o recebe dos procu radores das cidades e vilas o com prom etim en to de con tribu rem com 100.000
cru zados. Um clim a de abertu ra ao dilogo se in stalara. E assim vem os
D. Joo II deferir total, parcial ou con dicion alm en te qu ase 60% dos agravos gerais qu e lh e foram apresen tados, para s in deferir cerca de 30% , o
qu e o grfico dem on stra.15

4 TIPOS D E RESPOSTA S

CORTES D E VORA D E 1490 CA PTULOS GERA IS

O m aior n m ero de pedidos destin a-se a precisar a eleio e as


com petn cias ou a m origerar abu sos dos oficiais rgios, sejam da ju stia
desem bargadores, corregedores, m eirin h os da correio, oficiais da correio, ju zes de fora, ju zes dos resdu os e rfos16 , m ilitares an adel
dos besteiros17 fiscais siseiros das carn es, alm otac-m or, alcaides das
sacas e portageiros18 , ou da escrita escrives e tabelies.19 E, cu riosam en te, todo os pedidos foram con tem plados com deferim en tos totais ou
em parte e algu n s sob con dies.20 Certas qu estes de n dole ju rdica ou
ju dicial se lh e ju n taram , procu ran do os povos aliviar os gravam es da
com plexidade ju dicial, m ostran do-se o m on arca aqu i m ais reservado, n o
qu eren do in ovar,21 in deferin do 22 ou sen do evasivo.23

27

Maria Helena da Cruz Coelho

A segu n da m aior fatia de pedidos diz respeito ao social. Mas de assin alar qu e se calaram qu ase por com pleto as vozes con tra as opresses da
fidalgu ia. Mu ito provavelm en te porqu e, su prim idos os gran des sen h ores, a
n obreza qu e ficara n o tin h a a m esm a capacidade gen eralizada de su bju gar
os h om en s, para alm das atitu des rgias recom en darem a con ten o.
E com u m a n obreza assim con trolada o m on arca podia de n ovo
agraci-la. De n otar, qu e n o cedeu aos pedidos do Terceiro Estado n o
sen tido de serem lim itados os dotes de casam en tos e arras da fidalgu ia
(21),24 n em tam pou co in terdio da su a pou sada em vilas e lu gares qu e
n o lh es perten cessem (24).
Mais firm e se m ostra con tra as preten ses das elites locais qu e qu eriam dom in ar h om en s, afastar con corren tes e govern ar sem in terfern cias. Ou , se qu iserm os colocar a qu esto sob ou tro n gu lo, D. Joo II arvora-se em defen sor dos qu e realm en te trabalh am e aspiram a m elh ores
con dies de vida.
No perm ite qu e se obrigu em os filh os dos lavradores a segu irem
as profisses dos pais, in terditan do-lh es ou tro m odo de vida, com o, por
exem plo, o artesan ato (29).25 Adia a deciso do afastam en to dos m esteirais da cm ara de Lisboa ou a restrio de os colocar apen as com o colh eiros e sem voz (12). No proibe o ofcio de alfeloeiro (37).26
Em con trapartida n ega o privilgio de cavaleiros, cidados, n obres
h om en s e escu deiros, com m ais de 50 an os, poderem an dar em bestas
m u ares a vigiarem as su as fazen das e a tratarem dos seu s n egcios (42).
E m esm o os pedidos sobre os ju deu s, qu e iam n o sen tido de lh es restrin gir as su as liberdades, in terditan do-lh es ofcios e arren dam en tos (16),27
obrigan do-os a citar os cristos peran te os ju zes ordin rios (32) e con ceden do plen a liberdade aos seu s escravos (46) con vertidos ao cristian ism o,28 recebem to-s deferim en tos parciais ou con dicion ais.
Tam bm parco n as regalias con cedidas a adm in istrao local, logo
s au ton om ias dos espaos con celh ios em qu e esta aristocracia se m ovia.
Atitu de alis con sen tn ea com toda a su a atu ao cen tralizadora, em especial n a fase fin al do seu govern o.29 S parcialm en te defere a in terven o dos con celh os da n om eao dos m am posteiros dos cativos (9) ou n a
eleio dos cou dis e ju zes dos rfos (35). E recu sa, por com pleto, o pedido a fim de qu e o m on arca n o passasse cartas rgias de recom en dao
para oficiais dos con celh os (25) 30 ou de qu e o errio con celh io n o su portasse as despesas das obras n as prises (26). Com o, n o qu e ao fisco diz respeito, n o an u i abolio das dzim as das sen ten as (44), n o aceita m odificaes n os con tribu in tes dos 10 reais de Ceu ta (34) e s sob certas
con dies con sen te qu e a tera seja u tilizada para as obras dos m u ros
(36). E se a este con ju n to de preten ses sociais e adm in istrativas
fru stradas por parte da gen te n obre da govern an a ju n tarm os algu n s ou -

28

O FINAL DA IDADE MDIA

tros in deferim en tos em n vel econ m ico, com pleta-se o sen tido do qu erer de u m m on arca qu e desejava ter todos os poderes e poderosos su jeitos ao seu con trole e qu e os pequ en os o vissem com o seu defen sor e protetor.31 Ten taram os criadores de gado fu gir fiscalizao das au toridades
rgias, o qu e lh es perm itiria u m com rcio lcito ou ilcito de an im ais m ais
ren tvel. Foi-lh es n egado.32 Ten taram os com ercian tes elim in ar os m on oplios das exportaes, m orm en te de cortia (18).33 Receberam u m a evasiva. Qu iseram ain da retorn ar aos pesos e m edidas an tigas (33). O pedido foi in deferido. O sim rgio era dado com critrios. Nu n ca a con descen dn cia devia in terferir n os plan os gerais do rei ou do rein o.
Dessas m esm as Cortes possu m os u m total de 60 captu los especiais
proven ien tes dos in teresses de 17 con celh os.34 Portan to o dobro dos agravos especiais apresen tados n as an teriores Cortes de 1482. O lon go espaam en to desta reu n io, em relao an terior, assim o ju stificaria.
Com gran de gen erosidade o m on arca defere totalm en te 66,7% dos
pedidos, o qu e, ju n tan do-lh es aqu eles a qu e an u i ain da qu e em parte ou
sob con dies, perfaz o su bstan cial m on tan te de 86,6% , com o o grfico o
atesta. In defere expressam en te apen as 4 captu los e adia ou tros tan tos. Alcan ada a paz in tern a, acrescen tan do o prestgio e o proveito de u m Portu gal qu e crescia em frica e son h ada a con certao ibrica, D. Joo II
via-se in clin ado a favorecer os povos.

5 TIPOS D E RESPOSTA S

CORTES D E VORA D E 1490 CA PTULOS ESPECIA IS

Os captu los qu e visam aos problem as econ m icos dos con celh os
predom in am , para depois se lh es segu irem os qu e dizem respeito adm in istrao cen tral e ao social e, por fim , se apresen tarem os relativos ao fisco e adm in istrao local, o qu e o qu adro m elh or especifica.
A crtica aos oficiais rgios n o apresen ta n ovidades em relao ao
qu e sem pre se reclam ava em Cortes u m a atu ao das au toridades den -

29

Maria Helena da Cruz Coelho

6 CORTES D E VORA D E 1490


CA PTULOS ESPECIA IS

Natureza dos requerimentos

Total

Administrao central

13

21,7

Administrao local

11,7

Social

12

20,0

Econmico

19

31,7

Fiscal

13,3

Militar

1,6

Total geral

60

100,0

tro das su as m argen s de com petn cias. Todavia verifica-se qu e se os execu tores da ju stia corregedores35 e ju zes das sisas36 con tin u avam a ser
visados, agora so-n os m axim am en te os oficiais do fisco, em especial os
alm oxarifes. Este, em Lagos (3), fazia casas n a ribeira e n o deixava espao para os da vila carregarem m ercadorias, bem com o fretava todas as caravelas para irem bu scar trigo em Aores e lev-lo para a frica, deixan do os vizin h os sem n en h u m a para, em seu proveito, se abastecerem de
trigo (5); en qu an to em Aveiro (1) tirava a cadeia para alfn dega,37 e em
Silves (2) vivia fora da sede do alm oxarifado, o qu e o devia fazer perder
o cargo. Tam bm os oficiais dos pan os delgados qu eriam sisar os aveiren ses (5), m esm o n os pan os qu e retiravam para u so de su as casas.38 E os oficiais rgios de Set bal (2) faziam estran h os con lu ios. Depois de aos alm ocreves terem sido con tadas as sardin h as e pescados pelos oficiais da ribeira, e carregados os an im ais, qu an do iam pagar a sisa, certos oficiais, a pedido dos ren deiros ju deu s, qu eriam qu e eles declarassem , com ju ram en to sobre os Evan gelh os, o n m ero de m ilh eiros de sardin h as qu e levavam . Ora eles n o sabiam o qu e levavam , salvo o qu e lh es fora dito pelos
con tadores, n em lh es parecia ju sto fazer ju ram en to, estan do os Evan gelh os n as m os dos in fiis, pedin do portan to o respeito pelo costu m e.
Um a rede bu rocrtica m ais atu an te sobre a cobran a de direitos rgios, m orm en te a qu e provin h a das tran saes com erciais, deixava m en os liberdade de m an obra aos com ercian tes ou at os pression ava. Apertava-se o cerco da fiscalidade estatal. E a fazen da n o qu eria ver escapar
os proven tos de qu alqu er atividade. Assim se qu eixava Coim bra (2) de
qu e o m on teiro da m ata do Boto n o os deixava a m atar pom bos, ex-

30

O FINAL DA IDADE MDIA

pon do Lagos (4) qu e os oficiais rgios qu eriam pen alizar os qu e traziam


sesm arias por aproveitar, ju stifican do-se os povos com as gu erras, fom es
e pestes para o n o ter feito, ju stificao aceita pelo m on arca.
Alm das au toridades delegadas do rei, ou tro poder extern o am eaava pon tu alm en te certas cidades, vilas e lu gares, o dos sen h ores. Em captu los especiais, sin tom aticam en te, as qu eixas con tra a fidalgu ia au m en tam face aos gerais. Depois das m ortes e persegu ies dos gran des estabilizara-se o qu adro da n obreza.39 Algu n s filh os segu n dos das fam lias tradicion ais receberam cargos e ben efcios de D. Joo II,40 ou tros de u m a n obreza m dia e baixa sedim en taram as su as posies n a clien telagem e fidelidade ao n ovo m on arca.41 A n atu ral ten dn cia para os n obres esten derem abu sivam en te os seu s ten tcu los de poder e in flu n cia em n vel local ten de a m an ifestar-se. Ain da qu e, diga-se, exageradam en te.
A m em ria dos atos do du qu e de Bragan a ain da perdu rava. Bragan a (5) expu n h a qu e o du qu e m an dara tom ar o din h eiro dos rfos,
com prom eten do-se o m on arca a devolv-lo, se ele os h avia sacado com
alvar rgio.
Lagos (1) acu sava lvaro de Atade, qu e em doao rgia recebera
a casa do sal por 12.000 reais, de n o a abastecer de sal. Com o au m en to
da pesca, m u itos iam bu scar sal em Castela, o qu e ficava m u ito caro, pedin do o con celh o para o explorarem a partir de m arin h as da zon a, o qu e,
sob certas con dies, lh e ser con cedido.42 Reclam ava ain da (7) con tra o
privilgio real con cedido ao com en dador de Aljezu r de aposen tadoria n a
vila, para ele e su a com itiva, por 3 m eses ao an o, pedin do qu e ele alu gasse as casas e pagasse as rou pas e com ida. Todavia D. Joo II in defere o pedido, reiteran do o privilgio por 3 an os, talvez o tem po do ben efcio. J
n o caso de Torres Vedras (4), vila de rain h as, qu e se dizia lesada pelas
obras do m osteiro do Varatojo e pela estadia de vrios m em bros da fam lia real, rogan do qu e as aposen tadorias fossem pagas, D. Joo com prom ete-se a n o dar alvars de aposen tadoria para a vila du ran te 5 an os.
Agravo m ais gen rico expe ain da Lagos (2) con tra a m an obra de
algu n s m oradores se fazerem vizin h os da vila do In fan te, bu scan do, assim
o crem os, a proteo dos h erdeiros desta casa, por este m eio se isen tan do
dos en cargos con celh ios, m as tam bm dos rgios. E aqu i o con celh o alu de
expressam en te ordem de D. Joo II para cada u m fazer qu atro alqu eires
de biscoito para abastecer a arm ada qu e segu iu para a frica n a m isso de
con stru ir a fortaleza da Graciosa, ten do-se aqu eles escu sado, bem com o se
n egaram a con tribu ir para a taxa con celh ia qu e iria su bsidiar os trabalh os
de vin da de gu a doce vila e a con stru o de u m a gafaria, poo e postigos. Mu ito claram en te o soberan o afirm a qu e s adm ite privilegiados a
qu em ele ten h a agraciado, a tu do com pelin do os referidos.
Ain da u m a acu sao expressa faz Silves (3) con tra Diogo Nu n es
qu e devia ter o proven to das dzim as reais e oprim ia n a su a cobran a, de

31

Maria Helena da Cruz Coelho

tal m odo qu e os povos diziam ser isto pior qu e pagar as sisas em dobro.
Por su a vez Lam ego (3) verbera con tra o con de de Marialva 43 qu e tin h a
os direitos reais da cidade e n o respeitava as n orm as foraleiras da arrecadao da portagem , apelan do D. Joo II ao cu m prim en to do direito
con su etu din rio. Arrecadar o m xim o, qu an do os direitos reais lh es eram
doados, torn ava-se u m im perativo dos sen h ores, o qu e explicava todos
estes abu sos.
Nu m qu adro m ais geral, Barcelos (1) d con ta de ban dos de fidalgos qu e erravam pela vila fazen do arru aa e aterrorizan do as pessoas.
Precisa D. Joo II qu e os fidalgos m oradores n a vila e term o n o se podem lan ar fora, m as aos dem ais restrin ge a estadia n a vila a 5 dias.
Qu an do a fidalgu ia desem pen h ava altos cargos, com o em Estrem oz
(3), n a pessoa do seu alcaide-m or qu e era con de,44 en to os perigos tradu zem -se em in terfern cia n a adm in istrao con celh ia. Assim , qu an do
h avia fu gas da priso, o ju iz por certo ju iz de fora 45 , por ordem do alcaide, m an dava os vereadores tom ar a ch ave da cadeia e gu ardar os presos. Logo os h om en s bon s, vexados e obrigados, n egavam -se ao exerccio
de tais cargos. Era tam bm u m abu so sobre a priso do con celh o, a afron ta qu e a Gu arda (2) adu zia con tra o seu bispo, qu e a u tilizava em vez da
su a prpria, n ico agravo con tra a clerezia n estas Cortes.46
A vida in tern a dos con celh os, do seu aparelh o govern ativo s su as
fin an as, m edidas econ m icas ou problem as sociais, em erge tam bm em
vrios agravos.
O con celh o de Silves (1) requ er a liberdade de eleger em cm ara
corretores, os qu ais lh e garan tiam u m m elh or con trole de com pra e ven da de m ercadorias, o qu e o soberan o con sen te at ao n m ero de qu atro.
Em Extrem oz (2) ser a voz da elite govern ativa qu e se ergu e para con den ar o m odo de atu ar de dois aposen tadores eleitos pelo povo qu e
atroam toda a terra, pedin do logo qu e se escolh esse, por eleio, u m do
povo e ou tro escu deiro, talvez assim se am oldan do m elh or o cargo s clivagen s sociais existen tes. Mais alto se ergu em as m esm a vozes (1) con tra
a sayoria de serem 12 h om en s dos m esteres a receberem as teras para
os m u ros e as coim as dos gados. Nu m a qu alqu er con ju n tu ra favorvel, h aviam os m esteres con segu ido estas cobran as, qu e perpetu avam , fazen dose eleger em su as casas e rodan do en tre si sapateiros, teceles e ou tros ofcios, n o qu e, com o bem sabem os, reprodu ziam as estratgias de poder das
elites. So ain da acu sados de n o desem pen h arem os seu s m esteres depois
de serem eleitos, alm de, h 18 an os, n o darem con ta do din h eiro arrecadado, n em terem feito obras. Mas o seu rein ado parece estar ch egan do ao fim . O m on arca acede ao pedido dos govern an tes de Extrem oz. Determ in a qu e os cobradores fossem apen as dois, eleitos em cm ara pelos
ju zes e oficiais, e s deviam correr a terra por m an dado dos oficiais e estan do presen te u m tabelio qu e tu do an otasse. provvel qu e h ou vesse

32

O FINAL DA IDADE MDIA

de fato u m abu so. Mas o m aior seria, sem d vida, os m ecn icos terem con segu ido lu gares n o aparelh o govern ativo, e sobrem an eira de cobran a,
n u m a poca em qu e por todas as Cortes se atravessavam as vozes das elites dirigen tes con tra a in trom isso dos m esteres n a govern an a.
Ou tros gru pos sociais in terferiam com a adm in istrao con celh ia.
Assim , em Torres Vedras (1), u n s qu an tos qu e se qu eriam privilegiados
besteiros da cm ara e do con to, m oedeiros e ain da ju gadeiros e caseiros
do clero ou fidalgu ia escu savam -se dos en cargos con celh ios, n o qu e o
m on arca n o con sen te. Aqu i advogava-se com privilgios. Nou tros casos
com distn cia. Os h om en s do term o, qu e viam n os oficiais da su a sede
apen as dom in n cias e n o esperavam h aver por eles defen didos os seu s
in teresses n as m ais altas in stn cias, n egavam -se a con tribu ir para as fin tas qu e os con celh os lan avam a fim de cu stearem os procu radores s
Cortes. Assim o declarava Braga (1), en u m eran do os term os qu e desejava ver com pelidos, e Lam ego (1), qu e preten dia esten der este en cargo
m esm o a todo o alm oxarifado, ou , pelo m en os, aos con celh os du as lgu as
em redor, dos qu ais se sen tia cabea. E daqu i ressaltam claram en te as prepon dern cias de algu n s con celh os m ais poderosos em face de ou tros qu e
gravitavam n a su a rbita, com o o jogo de in flu n cias e presses dos h om en s da cidade sobre os do term o.
E peran te esta real situ ao vivida, por vezes h acordos, ou tras vezes en gan os. Com os h om en s do term o o con celh o de Bragan a h avia feito u m pacto (3) n o serviam n os en cargos con celh ios, rem in do essa
obrigao com o pagam en to de 4 alqu eires de cen teio an u ais. Mas eram
tam bm esses m esm os h om en s (6), talvez com u m certo poder econ m ico, qu e se con lu iavam com algu n s am igos e n as su as casas citadin as ven diam as m ercadorias para n o pagar sisa, isen o de qu e s deviam desfru tar os qu e tin h am casa prpria n a cidade.
Todos qu eriam fru ir das liberdades con celh ias, pou cos desejavam ,
todavia, su portar as obras com u n s e as fin an as locais, bu scan do escu sas,
com o j vim os n o caso particu lar das despesas extraordin rias dos procu radores s Cortes. Alm de qu e a in terseo en tre fin an as in tern as e fiscalizao estava sem pre presen te.
Justamente o concelho de Bragana (3), que recebia dos homens do
termo os quatro alqueires de centeio, que os isentava dos encargos, acusava o juiz dos resduos de lhe querer levar a tera desse po para as obras, o
que no lhe parecia justo e o monarca assim o corrobora porque no se
tratava de uma renda permanente de concelho. Tambm Guimares (1),
com a escassa renda de 4.000 reais, que, como dizia, gastava toda na festa
do Corpo de Deus, pusera um imposto de 1 ceitil por canada, no vinho atabernado da vila e termo, rogando ao monarca que, dos 10.000 ou
12.000 reais que estimavam poder arrecadar, no pagasse o tero, pois j tinha de dar 2.000 reais para o relego, no que tambm D. Joo II concorda.

33

Maria Helena da Cruz Coelho

A tera era pesado tribu to a solver coroa. No pou cas vezes se ergu e, en to, a voz dos con celh os para rogar ao soberan o qu e a m esm a fiqu e n o con celh o para servir s obras com u n s. Nestas Cortes pediram -n o
Aveiro (4), Coru ch e (1), Set bal (1) e Torres Vedras (2). D. Joo II defere caso a caso, talvez com con h ecim en to das situ aes con cretas. Con cede isen o por 5 an os a Aveiro e Coru ch e e n ega-a aos ou tros dois con celh os. Igu alm en te du ra para os vizin h os era a con tribu io para os pedidos, sobretu do porqu e a su a cobran a dava m otivo m u itas vezes a excessos. Logo o con celh o de Bragan a (7) qu er ser declarado com o pago dos
8.000 reais da su a parte n o pedido dos 50 m ilh es. Por su a vez Aveiro (6)
diz h aver u m saldo, n a an terior percepo do pedido de 40 m ilh es qu e
agora desejava ver descon tado n a cobran a deste.
Um govern o con celh io aten to devia zelar pelo qu e se arrecadava e se
pagava. Igu alm en te devia ser din m ico n a defesa dos in teresses econ m icos
prprios, pen h or da riqu eza local. Con form e os con textos, ou vim os en to pedidos qu e ten tam valorizar o com rcio, a criao de gado ou a agricu ltu ra.
No qu e s tran saes diz respeito n o se qu eriam perder, em prim eiro lu gar, as liberdades foraleiras e depois os tribu tos legais qu e sobre as
m esm as im pen diam e algu n s, frau du len tam en te, procu ravam lu dibriar.
Fosse ven den do fora da cidade com o fazia u n s qu an tos qu e com erciavam
sal e pescado pelos term os de Aveiro (2), fosse trazen do os ben s para a sede
do con celh o, a fim de se aproveitar das isen es a praticadas, com o agiam
os de Bragan a. Desejavam os con celh os ter lu gares de ven da cativos e privilegiados. Barcelos (2) qu eria u m m ercado m en sal, on de os do term o fossem obrigados a ir com erciar. Lam ego (2) pedia a isen o da sisa por 15
dias para a su a feira. A am bos os pedidos acede o m on arca.
E para qu e o com rcio in tern o fosse u m a realidade, era preciso h aver produ tos. Qu e deviam ser im portados qu an do faltavam . Qu e se qu eriam defen didos com prioridades de ven da. Por isso Lagos (6) deseja alcan ar e con segu e-o a liberdade de ir bu scar trigo ao Norte da frica,
a Mazago e Casa do Cavaleiro, on de ele barato, pois, com o argu m en ta, se os catelh an os assim o faziam , m ais lh e parecia razovel qu e tam bm
eles o pu dessem ir bu scar. Com o n o qu eriam qu e os pescadores da vila
ven dessem toda a sardin h a aos castelh an os (8), o qu e estes faziam at a
u m preo m ais barato,47 m as an tes exigiam qu e a trou xessem vila por
esse m esm o preo, para depois servir de m oeda de troca com os alm ocreves qu e at a acarretavam o trigo.
Prioridade de ven da, sem con corrn cia, se requ eria para o vin h o
qu e devia abu n dar e, n o sen do de boa qu alidade, podia azedar an tes de
dar qu aisqu er lu cros. Coim bra (1) preten de qu e lh e respeitem os 4 m eses
m aio, ju n h o, ju lh o e agosto em qu e os vizin h os tin h am direito ven da. E tam bm este con celh o, de u m a artificiosa m an eira, pede a defesa do

34

O FINAL DA IDADE MDIA

com rcio do azeite, a su a ou tra riqu eza. Qu eria m an ter as su as m edidas


prprias, m aiores qu e as dos dem ais con celh os, o qu e n o in cen tivava os
vizin h os a com pr-lo n o exterior. Ou tros con celh os acu savam a con corrn cia do vin h o de fora, qu e essen cialm en te era com prado pelos estalajadeiros, tan to em Bragan a (4), com o n a Gu arda (1), qu e se viram severam en te acu sados.
Mas a defesa da agricu ltu ra tin h a ou tras fren tes, sen do a prin cipal o con flito com a caa e criao de gado. Coim bra (3) pede assim a
in terdio da caa s codorn as, n os m ilh os. Bragan a (2), porqu e terra de lavras, preten de ter u m a rea cou tada on de, sem dan os, possa
criar os bois, porqu e n a in dissolu bilidade do bin m io an im al-terra, de
n en h u m pode prescin dir. Mas a rivalidade gado-agricu ltu ra por vezes
difcil de gerir. Assim em Elvas, qu e apresen ta qu atro captu los a fim de
m origerar os abu sos qu e os an im ais faziam n as vin h as e olivais, sen tin do-se o peso dos criadores, m ais ricos e poderosos, em face dos agricu ltores. Ou , sejam os cau telosos, estava o discu rso a ser proferido por lavradores qu e en egreciam o qu adro? A seu lado se coloca, porm , o m on arca, deferin do todos os pedidos. E eram precisam en te esses criadores
qu e n o desejavam ver an u alm en te o seu gado arrolado pelo alcaide das
sacas, com o o clam ava Miran da do Dou ro (2). Expu n h a qu e, em tal circu n stn cia, n o se en trava em lin h a de con ta com aqu ele qu e m orria ou
o lobo com ia, m as n o escon dia qu e tam bm podia ser ven dido a passadores, em bora para tal pedisse pen as. No foi o m on arca sen svel aos
argu m en tos e in deferiu o pedido.
Castela era, para as terras fron teirias, ora u m a am eaa, ora u m a
oportu n idade. Nada m elh or, n estes lu gares afron tados, do qu e a bilateralidade n o agir. Logo expe Oliven a (2) qu e os castelh an os deviam poder
levar para a su a terra m etade do trigo qu e aqu i cu ltivavam , j qu e o m esm o era facu ltado aos portu gu eses qu e trabalh avam , em Castela, o qu e D.
Joo II perm ite por 3 an os.
Fin alm en te, em dois captu los, os con celh os fazem eco das su as
preocu paes com a sa de p blica. Coim bra (4) qu eria ver todos os seu s
h ospitais n u m s, at para evitar qu e s cu stas dele m ais se su portassem
os provedores qu e os pobres. Tal pedido estava em perfeita con son n cia
com a poltica rgia, pron tifican do-se D. Joo II a escrever ao bispo para
qu e se cu m prisse. Oliven a (4) tin h a ou tro problem a u m ju deu gafo,
qu e era siseiro, an dava por en tre os cristos cobran do a sisa. Qu ase poderam os dizer dois m ales n u m s h om em . Mas para a difu so da doen a, pelo con tgio, qu e o con celh o apela para o afastar. E o soberan o corrobora-o, n u m a resposta lm pida e direta se h e gafo n om h por qu e
an de n em estee n a villa com versan do com os saaos, a qu e esta en firm edade h e ou dyosa.

35

Maria Helena da Cruz Coelho

No jogo do pedir e do dar, j lu gar com u m afirm ar-se qu e pesam


os argu m en tos. Expostas ficaram j m u itas das razes qu e in vocaram os
povos ou das fu n dam en taes qu e aliceraram a resposta rgia.
Mas vale a pen a ain da realar algu n s porm en ores. Pon do em evidn cia, n o pedir, Coim bra, aqu ele con celh o qu e esgrim e m ais sistem aticam en te com u m filosofia argu m en tativa. Se pu gn a por ver respeitada
u m a su a liberdade expe qu e as m ercees feitas sem o feito n am aproveitam .48 Se qu er acesso caa n u m a m ata, lem bra qu e cada an n o (ela)
pasa e vem pera soportam en to e m an tym en to da dicta cydade e com arca; todavia se a deseja im pedir em terras de lavou ra, logo adu z qu e as
n ovidades e fru itos per qu e se toda a gen te govern a e m an tem , a prin cypall h e a do pam qu e h e de con servar e n am de destru ir.49 E, fin alm en te, se alm ejava ver respeitadas as su as m edidas de azeite, recordava qu e
as cidades e villas de vosos reyn os dam tygam en te u sarom an tre sy fazer
postu ras e vereaaom e m edidas segu n do sen tyam qu e era m ais proveito
da terra e bem com m u m a seu viver.50
Um a boa argu m en tao n o deixaria por certo in sen svel o ju lgador. Coim bra tu do viu deferido, at m esm o o can den te problem a das m edidas, ain da qu e as requ eridas n o fossem de po ou vin h o, sobre as qu ais
o m on arca j legislara em captu los gerais.
A destacar, por fim , u m argu m en to de crtica in tern a, por parte do
con celh o de Miran da do Dou ro. Crtica a u m a elite dirigen te ou , m ais gen ericam en te, a expresso de u m a cu lpabilidade coletiva. Assim , qu an do
refere qu e o corregedor n o respeita os h om iziados, pren den do-os, diz
qu e ele assim age, por u m lado porqu e eles so pobres e n o en ten dem
n em sabem requ erer o seu direito, m as por ou tro por o con celh o ser froxo e doer lh e pou co o m all alh eo pera escu sar estes yn n ocen tes.51 Pedir e obter u m cou to de h om iziados privilegiados, com o o de Freixo de
Espada Cin ta, para a terra m elh or se povoar.
D. Joo II, com o dissem os, deferiu qu ase 90% dos captu los especiais da Cortes de 1490. Mas sobrem an eira n orteou -se por u m a poltica
n as su as decises. D provas eviden tes de qu e segu e u m program a govern ativo. As Cortes servem -lh e para o dar a con h ecer aos povos em discu rso e em ato. Sem perder a oportu n idade de, n este con tato direto com o
Terceiro Estado, poder ser tam bm o sen h or da graa, do privilgio, favorecen do u m a parte qu alqu er qu e, pela razo ou corao, lh e parecesse
m erecer o ben efcio.
Na gen eralidade as su as respostas so u m espelh o de clareza, objetividade e sen satez. Exige o respeito pelas orden aes do rein o e pelos captu los gerais j resolvidos em Cortes. Em algu n s casos defere tem porariam en te, com o qu e pon do prova, tan to a su a deciso com o o com portam en to dos povos. A experin cia parece j ser a m adre de todas as cou sas. Ch ega, em algu n s casos, a dar m ais do qu e o pedido.

36

O FINAL DA IDADE MDIA

Pon tu alizem os.


Merece-lh e a fiscalidade u m a particu lar aten o deliberativa, cn scio de qu e n o pode lesar o errio rgio n em to pou co agravar dem asiado os seu s s ditos. Vejam os o caso especfico das teras.
Torres Vedras diz ser u m con celh o de pou ca ren da, pedin do en to
a tera para fazer peran te seu s en cargos. No o pode o m on arca aceitar
porqu e a tera se n am deve dar a n yn gu em por ser cou sa de bem com m u m . Mas, sen h or da graa e cabea qu e dirige o corpo social do rein o,
acrescen ta se h ou ver algu m a ou tra ren da com qu e possa aju dar, pron tificar-se- a faz-lo, e porven tu ra o con celh o abrisse as vrzeas poderia
da colh er ren das, qu e desde j se com prom etia a n o on erar com a tera. Parece-n os, de todo, com pleta esta resposta em n om e de u m a lei geral, n ega; a bem do local, prom ete e in cen tiva, m as de u m a form a m u ito precisa, garan te de u m a con cretizao.
Sabe qu e D. Joo II n ecessita dos pedidos. Mas n o descon h ece qu e
essas rem essas so fardo qu e agrava o j difcil cotidian o dos povos. Assim , n u m a pon derada deciso, con sen te qu e Aveiro n o se lan asse em
obras n o an o de 1490, com o lh e h avia orden ado o corregedor, para se refazer do con tribu to qu e coroa tin h a de versar.
Tal com o j o pressen tim os para os captu los gerais, tam bm n estes
especiais parece estar ao lado dos estratos sociais qu e m ais n ecessitam de
apoio. Agora, sobrem an eira, os lavradores dian te dos criadores de gado,
com o referim os. E para su sten tar u m Portu gal m odern o, aberto a vian dan tes e m ercadores, sabia qu e eram im prescin dveis as estalagen s, pelas
qu ais sem pre pu gn aram os m ais esclarecidos govern an tes, a saber o regen te D. Pedro. Logo, qu an do os con celh os se ergu em em clam ores con tra os estalajadeiros, D. Joo II afirm a qu e n o so de vedar as estalagen s, m as apen as os abu sos dos estalajadeiros, en u m eran do-os u m a u m
para os con den ar.52 De n ovo o sen tido do particu lar n o o faz perder a viso am pla do bem geral.
No qu er ver com etidos erros por ign orn cia ou a coberto da ign orn cia. Qu eixan do-se Bragan a dos exageros dos requ eredores de Ceu tas,
m an da qu e se cu m pra o regim en to an tigo e qu e os oficiais o leiam para
n o poderem ser en gan ados, exigin do das partes plen a con scin cia dos
fatos.53 As cobran as so para se cu m prirem , m as n o para se u ltrapassarem , tan tas vezes em proveito dos prprios cobradores.
Fin alm en te ch ega a con ceder m ais qu e o requ erido. Gu im ares
qu eria isen o da tera para certo im posto con celh io qu e estava lan an do n ovam en te. Essa graa dada a ele e ain da a ren da do verde e ou tras
sem elh an tes, se as h ou vesse.
D. Joo II n o ter desilu dido os seu s con celh os. Se a poltica joan in a se delin eou sem com prom issos sociais,54 segu n do u m plan o pessoal
do m on arca, ela serviu os in teresses do Terceiro Estado.

37

Maria Helena da Cruz Coelho

A presso da fidalgu ia sobre os povos aliviou -se. A gu erra en tre


Portu gal e Castela acabara, abran dan do o ju go frreo dos pedidos. A m an u ten o das praas m arroqu in as e a expan so pela costa african a exigiam sacrifcios de pessoas e de din h eiro, m as ofereciam m ais postos de
abastecim en to e au m en tavam os locais e produ tos para o com rcio. A
bu rgu esia con h ecia n ovos e prom issores n egcios. O ren ovado din am ism o econ m ico de Portu gal prom etia m elh ores con dies de vida. Todos a
bu scariam . Assim os m esteirais ou filh os de lavradores, a qu em o m on arca n o n ega essa ascen so.
D. Joo II recu sava-se ao livre arbtrio e ao favorecim en to de u n s
qu an tos. A lei e a grei por qu e se pau tava serviam os in teresses do Terceiro Estado. Aps o du ro perodo de govern o do African o, os con celh os esperavam o Messias. Crem os poder afirm ar qu e, pelo m en os du ran te algu m tem po do rein ado de D. Joo II, os con celh os acreditaram qu e o
Messias, a u m tem po poderoso e protetor, h avia ch egado.

38

O FINAL DA IDADE MDIA

N OTA S
1. Leia-se, sobre este tem a, a sn tese de COELHO, M. H. da C. O peso dos privilegiados em
Portu gal. In : CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTRIA, EL TRATADO DE TORDESILLAS Y SU POCA, I, 1995, Madrid. p.291-314.
2. Estas Cortes foram j largam en te estu dadas, pelo qu e para algu n s estu dos m ais atu alizados rem etem os o leitor, n eles se en con tran do, alis, refern cia bibliografia an terior. Assim ,
e segu in do u m a ordem cron olgica, veja-se a prim eira parte, da respon sabilidade da prim eira au tora, do artigo de GOMES, A. A. A., COSTA, R. As Cortes de 1481-1482: u m a abordagem prelim in ar. Estudos Medievais Porto, 1983-1984, p.151-79, em qu e se aborda o con te do dos captu los gerais e as respectivas deliberaes rgias. Con su lte-se depois a obra m ais
com pleta sobre captu los gerais de Cortes de SOUSA, A. de, 1990. 2v., qu e n o prim eiro volu m e, en tre as pgin as 420-6, refere-se aos aspectos form ais das m esm as, para n o segu n do
volu m e, en tre as pgin as 445-87, dar-n os o resu m o dos seu s 172 captu los e o teor das respostas do m on arca. Fin alm en te tam bm MENDONA, M. D. Joo II: um percurso humano e
poltico nas origens da modernidade em Portugal. Lisboa: Estam pa, 1991. p.195-249, estu da as
prelim in ares da con vocao e abertu ra destas Cortes, bem com o an alisa os assu n tos dos captu los gerais e respostas do m on arca. O n osso estu do in dicar, basicam en te, sobre os captu los especiais das Cortes de 1482, n icos qu e n os ch egaram , e at agora n o estu dados, e
as Cortes da vora 1490, qu er n os seu s captu los gerais, qu er n os especiais, estes ltim os
tam bm n o an alisados at o m om en to.
3. Veja-se em CHAVES, . L. de. Livro de Apontamentos (1438-1489). Cdice 443 da Coleco
Pom balin a da B. N. L., in trodu o e tran scrio de SALGADO, A. M., SALGADO, A. J. Lisboa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda, 1984; o discu rso de LUCENA, V. F. de. A form a das
m en agen s, a plan ta das Cortes e o in stru m en to das Cortes, n as folh as 10 v., 40v.-51.
4. PINA, R. de Ch ron ica del-rei Dom Joo II. In :___. Crnicas de Rui de Pina. Porto: Lello &
Irm o-Editores, 1977. cap.V. (In trodu o e reviso de Alm eida, M. L. de).
5. Estes valores foram calcu lados a partir da obra de Arm in do de Sou sa.
6. O estu do desen volvido do con te do destes captu los especiais, dos gru pos sociais e pessoas n eles visados, bem com o das respostas rgias com preen de a Segu n da parte, da respon sabilidade da segu n da au tora, do artigo citado de ANDRADE, A. A., GOMES, R. C. As Cortes de 1481-1482: u m a abordagem prelim in ar. p.181-212.
7. Cortes com eadas em n ovem bro e term in adas an tes do Natal desse m esm o an o de 1482
(Arm in do de Sou sa, op. cit., p.426-29).
8. SOUSA, A. de, op. cit., p.426-29, refere-se aos aspectos form ais de reu n io destas Cortes,
bem com o o faz MENDONA, M., op. cit., p.249-53, m as n en h u m dos referidos au tores se
debru a sobre a an lise dos captu los especiais.
9. Discrim in an do, so: 3 captu los de Faro (TT Odian a, liv. 2, f. 270); 1 de Gu im ares (TTAlm Dou ro, liv. 4, f. 241); 7 de Lou l (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 23, f. 106-7; Odian a, liv.
2, f. 50-50v); 1 de Mon forte (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 23, f. 20); 4 de Oliven a (TT Odian a, liv. 2, f. 192-4); 1 de Pin h el (TT Beira, liv. 1, f. 158v-159); 2 de Pon te de LIMA (tt
Alm Dou ro, liv. 3, f. 140v-141); 1 de Serpa (TT Odian a, liv. 2, f. 192); 1 de Silves (TT
Odian a, liv. 2, f. 297v-298); 8 de Vila Viosa, de qu e n o se con h ecem as respostas rgias
(TT Corpo Cron olgico, parte II, m . 1, doc. 40); 1 de Viseu (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 25,
f. 38v). Doravan te dispen sar-n os-em os de citar as cotas dos docu m en tos, m as iden tificarem os os artigos pelo con celh o e seu n m ero de ordem .
10. Ten h a-se em con ta qu e u tilizan do n os trabalh os de ou tros au tores para as Cortes de Evora de 1481-1482 e para os captu los gerais das de vora de 1490 pode h aver algu m defasam en to n a an lise da n atu reza dos artigos, bem com o n a classificao das respostas rgias,
en tre a classificao a apresen tada e a n ossa.
11. S n o estiveram Mon forte, Oliven a, Pin h el, Serpa e Vila Viosa.

39

Maria Helena da Cruz Coelho

12. Por certo Rodrigo Afon so de Melo, casado com D. Isabel de Men eses, con de de Oliven a desde 1476 e falecido em 1487 (FREIRE, A. B. Brases da Sala de Sintra. 2.ed. Coim bra:
Im pren sa da Un iversidade, 1930. liv. III, p.324-25).
13. Sobre a form ao da Casa de Bragan a e a dim en so do seu real poder em terras, direitos, ju risdies e h om en s, leia-se o estu do de CUNHA, M. S. da Linhagem, Parentesco e Poder.
A casa de Bragan a (1384-1483). Lisboa: Fu n dao da Casa de Bragan a, 1990.
14. SOUSA, A. de, op. cit., v.I, p.429-30, resu m e os aspectos form ais da con vocao destas
Cortes, para n o volu m e segu n do, a pgin as 488-99, n os forn ece o resu m o dos seu s captu los gerais e respostas rgias, por aqu i ten do n s qu an tificado estas, n a elaborao do grfico. No en tan to, para u m a an lise qu alitativa m ais porm en orizada, con su ltam os com o fon te, ain da qu e secu n dria, os cdices 694 e 696 dos Man u scritos de Joo Pedro Ribeiro, qu e
se en con tram n a Seco de Man u scritos da Biblioteca Geral da Un iversidade de Coim bra.
Os m esm os captu los gerais destas Cortes foram estu dados por MENDONA, M., op. cit.,
p.412-35, n as su as tem ticas e respostas rgias, bem com o n as con tin u idades ou diferen as
em relao s de 1481-1482.
15. O n m ero exato de deferim en tos (totais, parciais ou con dicion ais) de 59,6% , de in deferim en tos 29,80 % e de evasivas, adiam en tos ou n o in ovaes de 10,6% .
16. Sobre estes ver agravos 4, 7, 10, 23, 30, 31, n u m erao do volu m e segu n do a obra citada obra de Arm in do de Sou sa.
17. Agravo 8.
18. Agravos 2,11,27,39.
19. Agravos 15 e 47.
20. apen as evasivo n o captu lo 30 sobre a m an u ten o dos desem bargadores e su as obrigaes.
21. Assim n o caso da alada do direito de asilo das igrejas (17).
22. In defere u m pedido de habeas corpus, en qu an to du rassem as in qu iries devassas (45).
23. Resposta evasiva recebe a preten so de se pu n irem os alm oxarifes e ren deiros do rei pela
ven da dos ben s desses ren deiros abaixo do seu valor, e n o os com pradores dos m esm os.
24. Expu n h am os povos qu e, por essa razo, os fidalgos tin h am as su as filh as com h om em
n om seu igu al ou coloc-las com o freiras. Pedem qu e os dotes fossem 1.000 cru zados de
ou ro e as arras 1/ 3 e qu em o n o fizessem perdesse tu do para ou tros filh os, irm os ou paren tes m ais ch egados qu e assim casasse, segu n do se fazia em Floren a, Sien a e por toda a
Itlia. Mas D. Joo II respon de qu e lh es agradece a boa von tade com qu e se m overom a
esto apon tar peroo qu e n om h e cou sa em qu e possa dar determ in aom (BGUC Col. De
Man u scritos de Joo Pedro Ribeiro, cd. 696, p.148-249).
25. Pediam isto para os lavradores, sob pen a de aoites e degredo para as ilh as, e perda dos
ben s dos oficiais m ecn icos qu e os en sin assem . A resposta rgia , porm , do segu in te teor:
n om pedem beem , pois o officio da lavoira h e dign o de favorizar e n om pera agravar vista
a n ecessidade delles n o regn o, e com o se n om pode tolh er a cada h u u m de trabalh ar por
m ais valler e de trabalh ar por isso. Logo, o m on arca desejava lavradores qu e gostassem do
seu trabalh o, e qu e n o se sen tissem m an ietados qu an to aos seu s filh os (BGUC Col. De
Man u scritos de Joo Pedro Ribeiro, cd. 696, p.259-61).
26. De fato, as Ordenaes Afonsinas liv. 5, tt. 101, in terditavam tal profisso aos h om en s, sob
pen a de priso e aoites em p blico. Aqu i os povos alegavam qu e eles faziam o m el caro, e
qu e, ao v-los, os m en in os ch oravam , pression an do os pais com pra de alfloa, alm de
qu e ain da en sin avam m au s vcios de cartas e dados. O m on arca n o probe a profisso m as
exige qu e n om jogu em dados (BGUC Col. De Man u scritos Joo Pedro Ribeiro, cd. 696,
p. 270-1).
27. D. Joo II perm ite qu e sejam ren deiros das sisas, a qu al tirada por cristos ain da seria
pior, in terditan do-lh es, todavia, serem ren deiros dos m estrados ou igrejas, e de desem pen h arem ofcios ou serem feitores (BGUC Col. De Man u scritos de Joo Pedro Ribeiro, cd.
696, p.242-4).

40

O FINAL DA IDADE MDIA

28. Mas, n este caso, os ju deu s tin h am o con lu io de algu n s cristos qu e lh es com pravam os
escravos con vertidos. Ora D. Joo II in terdita aos ju deu s a com pra de m ou ros e m ou ras da
Gu in , m as deixa-os possu ir escravos bran cos. E se algu m escravo se fizesse cristo ficava
forro, e n en h u m cristo poderia dizer qu e era seu (BGUC Col. De Man u scritos de Joo Pedro Ribeiro, cd. 696, p.279-81).
29. Assim qu is con trolar a eleio para os oficiais con celh ios, desejan do ver e in terferir n a
pau ta dos elegveis, sobretu do n as prin cipais cidades, com o Lisboa e vora (MENDONA,
M., op. cit., p.314-18). No abdicou de n om ear dezessete ju zes de fora e de dar corregedores s com arcas do rein o (op. cit., p.365-73). E alm disso deu provim en to a u m n m ero assaz con sidervel de ou tros oficiais de ju stia ju zes e escrives das sisas e ju zes e escrives
dos rfos , da fazen da em especial oficiais da alfn dega (alm oxarife, escrivo, ju zes, porteiros, requ eredores, m edidores, h om en s) , ou da adm in istrao local sobrem an eira tabelies, procu radores do n m ero, escrives da cm ara, da alm otaaria e de alcaidaria, cou dis e seu s escrives (op. cit., p.319-65).
30. , alis, m u ito esclarecedora, a resposta de D. Joo II: elle escreve aos con celh os por os
offcios sobre boas pessoas e qu e en ten de qu e som pera elles perten cen tes, e qu e h e beem
do povoo, e n om per ou tro respeito; e qu e qu an do virem qu e as pessoas por qu e escrepveu
n om som taes qu e pera ello sejam perten cen tes qu e lh o escrepvam , e qu e ter sobre isso a
m an eira qu e seja razom ; porqu e dos seu s povoos e Regn o elle teem o m aior cu idado
(BGUC Col. De Man u scritos de Joo Pedro Ribeiro, cd. 696, p.254-55).
31. Mas tam bm estes deviam agir den tro da legalidade. E por isso aceita o pedido de qu e o
m oleiro deve receber o gro e dar a farin h a a peso (38).
32. No qu eriam qu e os gados fossem cou tados pelos alcaides das sacas e gu ardas fiscais do
con traban do para Castela (19); n o qu eriam in form ar os ren deiros das sisas das deslocaes
para pastagen s, n em pagar a portagem (20). O m on arca respon de em sn tese: n om pedem
bem , porqu e se assy n om se fizese averia m aior m in goa de carn es n o regn o do qu e h e
prom ete m esm o fazer orden aes m aes apertadas aceerca dello (BGUC Col. De Man u scrito Joo Pedro Ribeiro, cd. 696, p.246-8). No lh es ain da con sen tido criar gado m u ar
n o En tre Dou ro e Min h o, u tilizan do gu as galegas (43). O m on arca apen as con sen te qu e
n o levem din h eiro das bestas qu e vo a Castela bu scar carga (22).
33. Pedira o m on arca o m on oplio da exportao, por 5 an os para carregar cobre de Fran a, Flan dres e In glaterra. E porqu e rogo do rey m an dado h e, aceitou -o o povo. Acabados
os 5 an os, o m on arca dera o trau to a Du arte Bran do, con tra o qu e agora os con celh os se
in su rgiam . Mas respon de o m on arca: con sirada esta cau sa beem h e m aes dam pn o qu e proveyto de seu povoo an dar solta e fora de h a m ao porqu e h u u n s tolh em o proveito dos
ou tros (BUGC Col. De Man u scritos de Joo Pedro Ribeiro, cd. 696, p.245-6), alegan do
qu e o desequ ilbrio de riqu eza en tre os m ercadores con du ziria, in evitavelm en te ao m on oplio de u n s qu an tos.
34. So eles 6 captu los especiais de Aveiro (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 16, fl. 16v-19); 2 de
Barcelos (TT Ch an c. D. Man u el, liv. 9, fl. 33); 1 de Braga (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 13,
fl. 118; Alm Dou ro, liv. 3, fls. 93v-94); 7 de Bragan a (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 16, fls.
131-132); 6 de Coim bra (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 13, fl. 127-127v); 1 de Coru ch e (TT
Ch an c. D. Joo II, liv. 9, fl. 50; Odian a, liv. 2, fl. 53); 4 de Elvas (AM Perg. 66); 3 de Estrem oz (TT Odian a, liv. 2, fl. 59-59v); 2 da Gu arda (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 16, fls.
26v-27); 1 de Gu im ares (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 11, fl. 24-24v; Alm Dou ro, liv. 3, fl.
85-85v); 8 de Lagos (TT Odian a, liv. 2, fls. 60-62); 3 de Lam ego (TT Ch an c. D. Joo II,
liv. 16, fl. 22-22v); 2 de Miran da do Dou ro (TT Ch an c. D. Joo II, liv. 16, fl. 23; Alm Dou ro, liv. 3, fls. 96v-97); 4 de Oliven a (TT Ch an c. De D. Joo II, liv. 16, fl. 69-69v); 2 de Set bal (TT Ch an c. De D. Joo II, liv. 9, fl. 117-117v; Odian a, liv. 2, fl. 55-55v); 3 de Silves
(TT Ch an c. D. Joo II, liv. 9, fls. 39v-40); 5 de Torres Vedras (TT Ch an c. D. Joo II, liv.
13, fl. 144-144v). Em relao aos con celh os qu e apresen taram captu los especiais n estas
Cortes de 1490, in ven tariados por Arm in do de Sou sa, ob. cit., vol. III, p. 13, diga-se qu e
qu an to ao Cartaxo (TT Ch an c. De D. Joo II, liv. 21, fl. 172) se trata de u m a carta de D.
Joo II, respon den do a agravos qu e o con celh o de San tarm fazia ao Cartaxo, m as datada

41

Maria Helena da Cruz Coelho

de San tarm , 28 de ju n h o de 1487, portan to n o destas Cortes. Igu alm en te o Porto (AHM
Livro Gran de, fl. 196) apresen ta u m a carta de privilgios, datada da vora de 1 de ju n h o
de 1490, qu e, em bora seja da poca das Cortes, m ais parece, pelo seu form u lrio, obtida fora
delas. (Aqu i deixam os u m agradecim en to recon h ecido ao Diretor do Arqu ivo Histrico, Dr.
Man u el Real, qu e n os en viou , com o pedim os, a reprodu o deste docu m en to). No en tram os em lin h a de con ta com Tavira, pois ten do n s requ erido ao Arqu ivo Mu n icipal a folh a
97, do cdice Reform a dos Tom os, n o obtivem os resposta, n o se n os oferecen do a possibilidade de a n os deslocarm os para an alisar essa fon te, fican do este caso em aberto.
35. Aveiro (3) qu eixa-se qu e o corregedor m an dara fazer u m a n ova casa de au din cias e relao, bem com o ch afariz e caladas. O con celh o pede tem po para fazer as obras e o rei con cede-lh e prazo de u m an o. Em Miran da (1) o corregedor pren dia os h om iziados do con celh o e colocava-se n a priso, n o respeitan do o cou to da vila.
36. Acu sa Torres Vedras (5) o en to ju iz das sisas de pou co saber, e de com eter m u itos erros, pedin do ou tro m ais idn eo. O m on arca exige qu e se qu eixassem dele por carta e depois
ele fosse ou vido.
37. Sobre este pedido o m on arca adia a resposta, pedin do in form aes.
38. Oliven a (1) qu eria ain da qu e o alcaide das sisas fosse de fora e provido de 3 em 3 an os.
39. E, segu n do o parecer de MARQUES, A. H. de O. Histria de Portugal. Das origens ao Renascimento. 9.ed. Lisboa: Palas Editores, 1982. v.I, p.363-4: a poltica de D. Joo II con sistiu em
bu scar o apoio, n o da classe popu lar, m as an tes das fileiras in feriores da n obreza. Ao m esm o tem po, prom oveu m u itos legistas e fu n cion rios p blicos a cargos de relevo at a reservados s cam adas altas da aristocracia.
40. Para os cargos de ju iz de fora, corregedor, tabelio e ch an celer da provn cia e com arca,
D. Joo II n om eou h om en s da su a con fian a, sain do algu n s da corte, m as perten cen do a u m
escalo social baixo, com destaqu e para os escu deiros, qu e tan to seriam oriu n dos da n obreza com o do povo, com o o atesta o trabalh o de Man u ela Men don a, Os h om en s de D. Joo
II, sep. de Estudos em Homenagem a Jorge Borges de Macedo, Lisboa, INICT, 1994, p.173-5.
41. Aten te-se qu e D. Joo II privilegiou com isen es, m ais de cem ben eficiados da n obreza m dia e in ferior cavaleiros, escu deiros, vassalos e h om en s fidalgos. Eram algu n s deles
filh os segu n do de gran des fam lias, even tu alm en te bastardos, portan to dos seu s ram os m en os favorecidos. Eram ou tros cavaleiros e escu deiros em form ao e algu n s qu an tos h om en s
do povo. Gen te qu e tu do esperava do m on arca, dan do-lh e em troca a su a in teira lealdade
(MENDONA, M., op. cit., p.176-85).
42. O m on arca m an dara a lvaro de Atade prover a casa de sal. Em caso n egativo os vizin h os poderiam explorar as m arin h as, pagan do-lh e os 12.000 reais.
43. Dever ser D. Fran cisco Cou tin h o, 4. Con de de Marialva. Era filh o de Gon alo Cou tin h o,
2. Con de de Marialva e su cedeu n o ttu lo, por m orte de seu irm o, D. Joo Cou tin h o, 3. Con de de Marialva. (Veja-se FREIRE, A. B. Brases da Sala de Sintra. 2.ed., livro. III, p.310.)
44. Por certo D. San ch o de Noron h a, 3. Con de de Odem ira. Era sobrin h o do rei e filh o do
con de de Faro, ttu lo qu e tam bm u sou , e n eto do 1. Con de de Odem ira. Obteve a con firm ao da alcaidaria-m or de Estrem oz, a 23 de m aio de 1509 (FREIRE, A. B., op. cit., liv. III,
p.345).
45. Ma M., op. cit., 1991, p.367, afirm a qu e em 1487 fora n om eado u m ju iz de fora para
Estrem oz.
46. Na realidade a qu eixa qu ase se poderia voltar con tra o m on arca. D. Joo II dera ao bispo da Gu arda o privilgio de gu ardar os seu s presos n as prises do con celh o. Mas o con celh o, talvez torn ean do a m elin drosa qu esto, apen as acu sa o bispo por ter requ erido tal privilgio, qu e n en h u m ou tro prelado possu a, ten do-o feito apen as para su bju gar a cidade,
u m a vez qu e o alju be e cadeias episcopais eram bem m elh ores qu e as con celh ias. Em to
delicada con ten da o m on arca sen ten cia salom on icam en te. Por u m an o gu arda-se o alvar,
decorrido este deixa-se de gu ardar.
47. Refere-se qu e ven diam aos castelh an os a 10, 15 ou 20 reais e a eles a 80 e 100 reais.

42

O FINAL DA IDADE MDIA

48. Captu lo especial de Coim bra (1) s Cortes de 1490.


49. Captu los especiais de Coim bra (2 e 3) s m esm as Cortes.
50. Nas referidas Cortes, cap. 5.
51. Captu lo especial de Miran da (1) s Cortes de 1490.
52. Com o exem plos, os captu los especiais de Bragan a (4) e da Gu arda (1) s Cortes de
1490.
53. Captu lo especial de Bragan a (1) s Cortes de 1490.
54. Esta parece ser a opin io de MAGALHES, J. R. Os rgios protagon istas do poder.
D. Joo II. In : MATTOSO, J. (Dir.) Histria de Portugal. v. III, No alvorecer da Modernidade,
(Coord.). Joaqu im Rom ero Magalh es Lisboa: Estam pa, 1993, p.318, qu e afirm a em D.
Joo II n o en con tram os u m a dem on strao de bu sca de apoios em gru pos sociais con tra
ou tros ou o desejo de m u dar ou su bverter a h ierarqu ia social preexisten te, m as apen as o
desejo de obedin cia e acatam en to da au toridade rgia.

43

Maria Helena da Cruz Coelho

B IBLIOGRA FIA
ANDRADE, A. A., GOMES, R. C. As Cortes de 1481-1482: u m a abordagem prelim in ar. Estudos Medievais (Porto), 1983-1984.
COELHO, M. H. da C. O peso dos privilegiados em Portu gal. In : CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTRIA, EL TRATADO DE TORDESILLAS Y SU POCA, I. Madrid, 1995.
CUNHA, M. S. da Linhagem, parentesco e poder. A casa de Bragan a (13841483). Lisboa: Fu n dao da Casa de Bragan a, 1990.
MATTOSO, J. (Dir.). Histria de Portugal. v.III, No alvorecer da Modernidade,
coord. de Joaqu im Rom ero Magalh es. Lisboa: Editorial Estam pa,
1993. (ver observao n a ltim a n ota)
MARQUES, A. H. de O. Histria de Portugal. Das origen s ao Ren ascim en to. 13.ed. Lisboa: Editorial Presen a, 1997. v.I.
MENDONA, M. D. Joo II: u m percu rso h u m an o e poltico n as origen s
da m odern idade em Portu gal. Lisboa: Estam pa, 1991.
SOUSA, A. de As Cortes medievais portuguesas (1385-1490). Porto: INIC,
1990. 2.v.

44

captu lo 3

O PRINCPIO DA POCA MODERNA


Hu m berto Baqu ero Moren o*

A aclamao de D. Joo I nas cortes de Coimbra de 1385 em lugar


de reduzir a autoridade da coroa, veio pelo contrrio aumentar o seu prestgio. Assim, a interrupo da continuidade dinstica pela via legtima no
impediu que por falecimento do monarca a coroa fosse transmitida ao filho
varo primognito, ou, na sua falta, ao mais prximo parente por linha colateral legtima. Foi alis o que aconteceu por falecimento de D. Joo II, em
que a transmisso do poder se realizou em benefcio de seu cunhado e primo direito, o duque de Viseu D. Manuel, filho do infante D. Fernando e
neto do rei D. Duarte.
A doutrina tradicional sustentada por diversos juristas estabelecia o
princpio de que o mestre de Avis tinha sido eleito rei de Portugal nas mencionadas cortes, partindo do princpio que ao povo pertencia esse direito de
escolha quando o trono se encontrasse vago por qualquer motivo de fora
maior. Coube pela primeira vez a Alfredo Pimenta, sustentar a teoria que
as cortes de Coimbra no elegeram D. Joo I, mas antes pelo contrrio terse-iam limitado a confirmar um direito sucessrio.1
Esta questo, contudo, no se apresenta to lquida. Contrariamente a esta posio temos que o auto de aclamao fala expressamente na eleio, tendo os representantes concelhios declarado que o trono se encontrava vago. Por seu turno sabe-se que D. Joo I considerava que no recebera a coroa iure successiones, mas fora designado ex-novo.2
Em conformidade com o pensamento poltico medieval a monarquia
era uma instituio de direito divino, embora os tericos se dividissem quanto ao modo como os reis recebiam o poder. Segundo uns os monarcas adquiriam a potestade diretamente de Deus. Outros como lvaro Pais, no de
Planctus Ecclesie opinam a doutrina da mediao do povo. Ainda existem defensores de que o papa transmite o poder temporal aos reis, o que se traduzia no conceito de supremacia do poder espiritual sobre o temporal.3
A autoridade outorgada aos monarcas assentava em smbolos cuja
aplicao remontava ao estado visigtico desde o governo de Leovigildo.
Estas insgnias que na sua maioria eram de origem imperial romana haviam
adquirido um carter religioso. Consistiam esses smbolos na coroa, na espada, no cetro, no manto de prpura e no trono. A cerimnia de consagra-

47

Humberto Baquero Moreno

o e coroao dos reis castelhano-leoneses efetuava-se publicamente em


alguma catedral duma cidade importante. Era um bispo quem ungia e coroava o monarca, embora Afonso XI se tenha coroado a si mesmo, coroando de imediato a rainha. A uno e a coroao no tinham carter obrigatrio, tendo sido Joo I o derradeiro monarca castelhano que se coroou
com toda a solenidade em1379. A partir de ento o monarca passou a ser
aclamado ao grito de Castilla, Castilla por el Rey. Ao mesmo tempo levantava-se o pendo real.4
No existe qualquer notcia de que no reino de Arago os reis tivessem sido ungidos e coroados anteriormente ao sculo XIII. Foi Pedro II
quem em Roma no ano de 1304 foi coroado pelo papa Inocncio III. Nessa cerimnia o rei aragons prestou homenagem ao chefe supremo da igreja e obteve a sua autorizao para que no futuro os reis de Arago passassem a ser coroados em Zaragoza. Sucedeu que Pedro III se coroou pelas
suas prprias mos nessa cidade, iniciando uma prtica que passou a ser
habitual em todos os reinados.5
Em Portugal no se praticava a coroao, que consistia na uno pelos prelados, com bno ritual e entrega solene dos atributos da realeza em
cerimnia litrgica. Tanto quanto se sabe, o que nos leva a deixar de lado
outras hipteses, a primeira tentativa no sentido de introduzir a prtica da
coroao, ficou se devendo ao infante D. Pedro, o qual solicitou ao papa o
direito uno e colocao da coroa a favor dos monarcas portugueses.
Para esse efeito, o papa Martinho V pela bula Uenit ad presentiam nostram,
concedeu essa graa em 16 de maio de 1428. Contudo a referida merc
nunca chegou a ser utilizada. A prtica que sempre foi utilizada consistia na
aclamao ou proclamao pblica do monarca, que aps a homenagem
que lhe era prestada pelos sditos assistia a um ato religioso revestido de
insgnias. Nesse cerimonial o rei jurava sobre os Evangelhos respeitar os direitos do povo e os privilgios de que usufruam os sditos do reino. Esta
atitude implicava da sua parte a aceitao da lei moral e religiosa e a observncia dos usos e costumes tradicionais.6
Na seqncia do pedido formulado pelo infante D. Pedro ao papa, seu
irmo, o rei D. Duarte insistiu no propsito. Encarregou os seus embaixadores Doutor Vasco Fernandes de Lucena e Diogo Afonso Mangancha para que
no Conclio da Basilia requeressem ao papa o privilgio da uno e da coroao. As dificuldades surgidas na curia levaram o papa Eugnio IV, pela
bula Sedes Apostlica de 23 de outubro de 1436, a no conceder aos reis de
Portugal o direito coroao em termos semelhantes aos que se praticavam
na corte inglesa. Assim, os reis de Portugal nunca foram coroados.7
No cerim on ial portu gu s observava-se apen as o levan tam en to, con form e se depreen de do rito de elevao do rei D. Joo II. Ju n to da cadeira real en con trava-se u m a cadeira pequ en a coberta de seda e com u m a alm ofada do m esm o tecido, em qu e estava colocado u m m issal. Caberia ao

48

O PRINCPIO DA POCA MODERNA

n ovo rei ju rar sobre esse livro, on de apu n h a as su as m os, o qu al procedia de im ediato ao ju ram en to, prom eten do com a graa de Deos vos reger e govern ar bem e diretam en te e vos m in istrar in teiram en te ju stia
qu an to a h u m an a fraqu eza perm ite, e de vos gu ardar vossos privilegios,
graas e m eres, liberdades e fraqu ezas qu e vos foro dadas e ou torgu adas
por ElRej m eu sen h or e padre cu ja alm a Deu s aja e por ou tros Reis passados seu s predecessores.8
Aps o juramento efetuado pelos fidalgos presentes cerimnia,
pertencia ao alferes desfraldar a bandeira e proclamar real, real, per o muito alto e muito poderoso El-Rej Dom Joo, nosso senhor. Outro dos juramentos seria efetuado pelos procuradores de Lisboa em representao de
todos os outros delegados dos concelhos do reino. Ao retirar-se para a sua
cmara o rei vestia um manto e usava um capelo preto de luto, que decorridos 6 meses passava a ser substitudo por uma loba frizada, conforme fizera o rei D. Duarte depois do falecimento de D. Joo I.9
Em Portugal os reis usufruam duma autoridade incontestada que se
pautava por uma extrema firmeza. Por mais duma vez o rei D. Pedro I emprega a expresso, no protocolo de algumas das suas cartas, de nossa certa cincia e poder absoluto. Seu filho D. Fernando utiliza por vezes, em
suas cartas, a frmula o estado real que temos por Deus nos dado para
reger os nossos reinos. A escolha de D. Joo I pela vontade popular no
obsta a que este monarca de acordo com a tradio dos seus antecessores,
utilize de nossa prpria autoridade e livre vontade e de nosso poder absoluto, expresso que ir ser igualmente utilizada pelos seus sucessores.
Em conformidade com o seu poder absoluto o rei era a representao da lei viva. Uma carta de D. Dinis de 1317 reserva para a coroa o exerccio das funes de justia maior, o que alis vir a ser de novo reafirmado pelo rei D. Fernando nas cortes de Leiria de 1372. Sabe-se porm que o
papel do monarca no se limita de acordo com a doutrina consignada pelo
livro das Sete Partidas de Afonso X, o Sbio, que tanta influncia teve entre ns, ao poder judicial. De igual modo lhe pertencia o poder executivo,
conjuntamente com a chefia do exrcito e a cunhagem da moeda.10
Sabe-se que pelo menos desde o sculo XIII ningum pe em causa
a autoridade absoluta do monarca, a qual tinha como modelo remoto o direito imperial romano. Deste modo no existia qualquer restrio que limitasse o poder do rei, o qual se exercia atravs dos mecanismos adequados.
Um dos primeiros instrumentos relativos ao desembargo rgio ficou-se devendo ao rei D. Pedro I e remonta a 1361. No desempenho do seu governo, o monarca era auxiliado por um concelho consultivo que a partir do sculo XIV passou a ter a designao de concelho de el-rei.11
So mltiplas as dificuldades que obstam a uma correta articulao
entre o Estado e os seus dependentes. Em muitos aspectos o carter abso-

49

Humberto Baquero Moreno

luto da monarquia afigura-se mais propriamente terico do que real. Podese mesmo considerar ter havido uma disfuno no que respeita a uma efetiva centralizao. Este fato deve-se sobretudo ao deficiente estabelecimento dos canais de circulao existentes entre as esferas do poder e os setores
da sociedade que dependiam da sua autoridade.
Esta carncia permite afirmar que a existncia do absolutismo no
corresponde ao centralismo, o que se deve a um conjunto de fatores restritivos que condicionam este sistema. Entre eles cumpre destacar uma srie
de inconvenientes resultantes duma deficiente rede vial que dificultava o
acesso do monarca e do corregedor da corte e certas reas do territrio, sobretudo em determinadas pocas do ano em que a circulao se tornava
impraticvel. A acrescentar s limitaes que incidem sobre as reas de interveno direta do monarca, deparamos com a realidade que o funcionalismo ao servio da coroa se apresenta extremamente reduzido na medida
em que a coroa no dispunha das verbas indispensveis manuteno desses rgos do executivo.
Daqui se depreende que o nosso sistema poltico funciona apenas reduzido a um mnimo de funcionrios que se situam em duas categorias
fundamentais: juzes e exatores fiscais. exceo destes funcionrios encarregados da cobrana de impostos e de misses de vigilncia, tudo o resto depende dos rgos locais que gozam duma aprecivel autonomia. Um
conflito latente dever ser devidamente assinalado. A presso senhorial, na
generalidade das vezes contrria aos interesses de coroa, produz os seus
efeitos sobre os municpios, os quais procuram a todo o transe conservarem
o seu estatuto de realengos, ficando desobrigados da pertena a um senhorio nobre ou sob a jurisdio direta de algum fidalgo.12
A manifesta carncia de rgos intermdios obriga a coroa a uma
cuidadosa regulamentao da vida judicial, materializando nas Ordenaes
do reino as obrigaes e os deveres que recaam sobre os juzes ordinrios
e sobre os corregedores. Estes funcionrios, cujo primeiro regimento remonta a 1332, no reinado de D. Afonso IV, tm um papel muito importante na administrao local e na regularizao das suas relaes com o poder
senhorial, cumprindo-lhes a observncia na aplicao das normas legais e
no bom vereamento dos concelhos. O rei D. Pedro I procede atualizao do regimento dos corregedores, incumbindo-os de designar os homens
elegveis para o desempenho das funes de juzes das terras. Acentua-se
em particular uma interferncia do poder central sobre o poder local, que
atinge o seu paroxismo quando em plena crise o rei D. Fernando, no desentendimento que mantm com os seus sditos, nomeia, revelia das
normas em vigor, regedores ou vereadores por el-rei.13
Na generalidade a nobreza identificava-se com os servidores de armas, que com os seus pequenos exrcitos se encontravam ao servio da co-

50

O PRINCPIO DA POCA MODERNA

roa. Apenas com a constituio das grandes casas senhoriais no decurso do


sculo XV, que se formam os grandes exrcitos particulares. Uma estimativa que nos foi possvel estabelecer aponta para que a casa do infante D.
Pedro possua ao seu servio 1.200 cavaleiros e 2.300 pees, enquanto a de
seu meio-irmo, D. Afonso, dispunha de 1.700 cavaleiros e 2.000 pees.
Sem contar com a cavalaria, as foras militares de que dispunha o rico-homem Nuno Martins da Silveira, cifravam-se em 250 escudeiros e 400 besteiros e homens que combatiam a p.14
Como regra todo o nobre possua um patrimnio fundirio, sobre o
qual possua jurisdio e cobrava rendas e impostos. Dependiam da sua autoridade um nmero varivel de cavaleiros, escudeiros, besteiros e pees,
estando-lhe subordinados por vnculos pessoais os criados, os quais haviam
sido educados e preparados para o uso das armas nas suas casas. As tentativas para a instituio de vassalos, que esporadicamente surgem nos primrdios do reinado de D. Joo I, sero energicamente combatidas pela realeza que apenas admitia a existncia de vassalos da coroa. No se pode, portanto, falar em vassalos de fidalgos, mas apenas do rei.15
Em relao ao patrimnio da nobreza deve-se sublinhar que uma
parte pertencia herana familiar ou a compra, mas a outra pertencia coroa que lhe fizera concesso de juro e herdade, com ressalva da correio e
das aladas, com transmisso aos seus herdeiros, mas implicando confirmao sempre que se iniciava um novo reinado. Outra parte desses bens pertencentes coroa encontrava-se em regime de prstamo, com carter precrio, embora sua modalidade se tornasse menos freqente nos derradeiros
sculos medievais. Havia nobres que no possuam quaisquer bens fundirios, correspondendo na sua insero a grupos destitudos dos mais elementares recursos materiais.16
A designao dos nobres como alcaides dos castelos no pressupunha que os mesmos lhes passassem a pertencer. Como detentores desse benefcio cumpria-lhes exercer o cargo mediante um juramento que consistia numa homenagem de obedincia e de vassalagem ao monarca ou noutras circunstncias ao mestre da ordem militar em que se situassem esses
castelos, cuja dependncia mesmo assim obedecia em ltima instncia
prpria coroa.17
Rompendo com uma tradio que permitia aos senhores a aplicao
de justia sem qualquer restrio, o rei D. Dinis, atravs da j mencionada
lei de 1317, fazia doutrina ao determinar que pertencia ao monarca tomar
conhecimento e julgar todas as apelaes que lhe fossem dirigidas. Todos os
fidalgos que praticassem obstruo justia rgia poderiam ser sancionados
com a privao da jurisdio. Paulatinamente a concesso do direito apenas
se aplicava s questes cveis, reservando coroa a apreciao dos casos de
crime e a conseqente interveno com ressalva da correio e das aladas.18

51

Humberto Baquero Moreno

A lei de 1372 apenas consignava aos nobres o acesso jurisdio cvel, sendo da competncia dos juzes da coroa o exame dos processos-crime. Em ltima instncia haveria sempre a possibilidade de recorrerem para
a justia do rei na sua qualidade de rgo supremo de jurisdio e avaliao dos pleitos em julgado.19
Com a crise de 1383-1385 assiste-se a um avultado nmero de doaes levadas a efeito pelo Mestre de Avis, que ao confiscar os haveres dos
que haviam seguido essencialmente o partido de Castela quis assim recompens-los pela dedicao sua causa. A situao apenas retomou a sua normalidade a partir de 1388, altura em que o nmero de doaes se coloca
no mesmo nvel dos anos anteriores revoluo.20
Naturalmente que ultrapassada a primeira fase revolucionria do seu
governo, em que o rei teve de realizar inmeras doaes passou-se seguidamente, a um conjunto de medidas de cunho restritivo que visava em
particular reaver o maior nmero possvel de bens, acautelando-se deste
modo os interesses da coroa. Essa medida aparece claramente consignada
numa doao feita em 15 de maio de 1393 a favor de Diogo Lopes Pacheco. O fundamento dessa doutrina exprime-se no princpio de que os bens
da coroa so inalienveis e que a sua doao pressupunha determinados
condicionalismos no respeitante sua transmisso.21
Trs normas aparecem consignadas nesta doutrina. A indivisibilidade
tendente a evitar a diviso do patrimnio adquirido da coroa pelos diversos
filhos. A primogenitura em que os bens doados apenas podem ser transmitidos ao filho mais velho legtimo e masculinidade, em que so exlcudas as
filhas, exceto em caso de merc especial. Paulo de Mera diz-nos que o princpio de excluso das mulheres apenas surge consignado numa carta de 8 de
junho de 1417, mas tal normativa j se encontra expressa numa carta de 27
de julho de 1398 concedida em benefcio de Diogo Lopes de Sousa.22
Numa doao de 24 de janeiro de 1429 D. Joo I excetua um fidalgo da aplicao da Lei Mental utilizando as palavras posto que nos tenhamos feita e hordenada uma lei em nossa vontade, medida que apenas viria a ser concretizada por seu filho D. Duarte em 30 de junho de 1434. Ao
ser promulgada muitos foram os que reagiram quanto sua aplicabilidade,
mas depararam com a obstinada resistncia do Infante D. Pedro que apenas abriu mo em 1442 relativamente ao cavaleiro da sua casa Ferno Gomes de Gois. D. Duarte dera alis o exemplo ao excetuar, por carta de 10
de setembro de 1434, a sua aplicao casa de Bragana.23
Com a derrota do in fan te D. Pedro em Alfarrobeira, D. Afon so V
cedeu em face da n obreza em relao a esta m atria. Tan to qu an to m e foi
possvel apu rar verificam -se qu in ze casos de exceo ao cu m prim en to da
Lei Men tal. Su cede com D. Fran cisco Cou tin h o, D. San ch o de Noron h a,
D. Hen riqu e de Men eses, com o in fan te D. Fern an do, seu irm o, em be-

52

O PRINCPIO DA POCA MODERNA

n efcio de seu s filh os D. Du arte e D. Man u el (fu tu ro rei de Portu gal) e


com Pero de Gois. Abran gidos so ain da os cavaleiros fidalgos Joo Rodrigu es de Sou sa, Ru i de Sou sa, Ru i Pereira, Joo Alvares da Cu n h a, Diogo Lopes de Azevedo, Diogo Lopes Lobo, Joo Rodrigu es de S, Leon el de
Lim a e Diogo de Sam paio.
Em relao aos quadros superiores da nobreza observa-se que os ricoshomens, alm da linhagem de que eram detentores, distinguiam-se pelos avultados bens que possuiam e pelos importantes cargos que detinham na administrao pblica. O monarca podia fazer ricos-homens, o que j no acontecia
com os infanes, grau da nobreza inferior ao dos ricos-homens, mas superior
no respeitante linhagem. No decorrer do sculo XIV o rico-homem j no
aparece associado ao exerccio de um cargo pblico.
Se examinarmos a documentao do sculo XIV, com destaque para a
Pragmtica de 1340 e para as cortes de Santarm de 1331,24 aparece-nos com
profuso esta categoria social, a qual domina a hierarquia nobilirquica da poca. Sintomtico, contudo, que j na legislao de 1374 desaparece por completo surgindo como correlativo o termo de vassalo da coroa, outras vezes designado por vassalo maior.25
Com efeito, o rico-homem transforma-se no sculo XV num vassalo do
rei que recebe da coroa uma contia, a qual se encontra registrada no livro das
moradias, e fica obrigado a servir coroa mediante um certo nmero de lanas. Este vassalo podia no ser fidalgo, alcanando a categoria em recompensa
dos seus servios ou mesmo por simples compra. Por essa via entravam na nobreza homens possuidores de riqueza que se dedicavam ao comrcio e constituam a burguesia e mesmo, s vezes, simples artfices, o que originava o protesto dos representantes dos concelhos nas cortes, tal como sucedeu com enorme veemncia na queixa apresentada ao rei D. Afonso V, nas cortes de Lisboa
de 1455.26
Embora a qu esto da su bverso das categorias sociais se tivesse verificado n o rein ado de D. Joo I com a elevao de simples pees a cavaleiros,
aps a revolu o de 1383, o problema avolu mou -se sobretu do a partir de Alfarrobeira, em 1449, facilitado pela permissividade do mon arca e pela premen te n ecessidade de alargar os qu adros da n obreza qu e se destin avam s fu tu ras
campan h as marroqu in as. Da o clamor popu lar, ou particu larmen te das oligarqu ias u rban as, qu an do se in su rgiam, de acordo com as su as palavras, con tra o
fato de pou co tempo acca vosa alteza a rogu o e requ erimen to dalgu mas pessoas a vos aceptos ter feito de pequ en as con tas assy como alfaiates e apateiros e barbeiros, lau radores e ou tras pessoas qu e eram obrigadas a pagar pedidos, ju gadas, oytau os e per os preu ilegios, escu sam os dictos emcarregos e
aalem de per ello seerem releu ados sam taaes pessoas qu e fazem vergoma aos
n osos u assalos qu e o sam per lin h agem perlomgada, criaom n osa de n osso
jrmao e tijos. De modo a combater este estado de coisas solicitavam ao rei

53

Humberto Baquero Moreno

qu e pon h a tall h orden ama qu e taaes pessoas n om filh e por u asalos salu o per
lin h agem for ou ser filh o ou n eto de u asallo segu mdo j per ElRey u osso padre em seu tempo foy orden ado.27
Por seu turno os infanes eram possuidores de linhagem, no ultrapassando em meados do sculo XIV a centena de estirpes, sendo uma nobreza arraigada s reas rurais, onde apesar de ocuparem cargos inferiores aos dos vassalos e serem proprietrios de latinfndios de menor amplitude, desfrutavam
de grande influncia local. Muitos deles chegaram a ocupar funes de maior
importncia. Problema, contudo, ainda mal esclarecido na nossa historiografia,
consiste em saber se a maior parte destas estirpes se teriam extinguido em meados do sculo XIV, o que em caso conclusivo se dever atribuir a uma decadncia biolgica relacionada com fatores endogmicos, resultantes de cruzamentos
observados entre elementos pertencentes mesma famlia. Desta situao verificar-se-ia uma diminuio da natalidade e simultaneamente uma elavada
taxa de mortalidade infantil e juvenil, tal como se observa no reino de Castela.
Este estado de coisas tanto afetou os infanes, que desaparecem por completo dando origem aos cavaleiros-fidalgos, como igualmente aos ricos-homens, o
que certamente contribuiu para a constituio de uma nova nobreza.28
A cavalaria como grau da nobreza representava uma categoria transitria. O monarca podia armar cavaleiros, mas no podia fazer fidalgos. Apenas se
atingia a categoria de cavaleiro-fidalgo ao fim de trs geraes. Muitos dos cavaleiros que nos aparecem a partir da segunda metade do sculo XIV eram provenientes da cavalaria-vil, conhecidos genericamente pela designao de herdadores. Eram possuidores de bens fundirios nas zonas rurais, no se conhecendo na maioria dos casos como funcionava os mecanismos desta transio.29
Em consonncia com a tradio o cavaleiro era armado nessa categoria
pelo monarca, podendo contudo este ato reduzir-se a um simples formulrio
administrativo. Em conformidade com as leis do reino um cavaleiro era obrigado a possuir cavalo, perdendo essa condio no caso de no ter meios para proceder reposio da montada, cabendo-lhe a obrigao de participar na guerra acompanhado por um determinado nmero de lanas recrutados nas suas
terras e combatendo sobre as suas ordens diretas.30
A legislao em vigor estatua que pera cavalleiros fossem escolheitos hom e s de boa linhagem, que se guardassem de fazer cousa, perque podessem cair
em vergona, e que estes fossem escolheitos de boos lugares o que significava
gentileza. Ora esta gentileza vem em tres maneiras; a hua per linhagem; a segunda per saber; a terceira per bondade e custumes e manhas, e como quer que
estes, que a ganham per sabedoria, ou bondade, som per direito chamados nobres
e gentys, muito mais ho sam aquelles, que ham per linhagem antigamente, e fazem boa vida, porque lhes vem de longe assy como per herana....31
Ainda dentro da nobreza cabe mencionar uma categoria de acesso
cavalaria constituda pelos escudeiros. Este grupo social a partir do sculo

54

O PRINCPIO DA POCA MODERNA

XIV acusa uma acentuada tendncia no sentido da sua prpria cristalizao.


Anteriormente os escudeiros representavam uma categoria transitria de
acesso cavalaria, mas a partir da crise da segunda metade do sculo XIV
constituem um estamento pertencente nobreza inferior. Na maioria dos casos est vedado a eles o acesso ao grau da nobreza fidalga. Os homens que
integram esta estrutura situam-se na base da nobreza e a circunstncia de se
inserirem nesta categoria no significa necessariamente que alguma vez ascendam ao estatuto de fidalguia.32
Conforme observa Oliveira Marques, os escudeiros formavam um grupo de homens muito numeroso nos incios do sculo XV. A ordenao do exrcito estabelecida no reinado de D. Joo I fixava em 2.360 o nmero mximo de
escudeiros de uma lana, o que na prtica deveria corresponder a um quantitativo significativamente superior.33
Para finalizar esta tentativa de globalizao da sociedade portuguesa em
ordens ou em categorias sociais, cumpre fazer uma breve referncia ao clero. Este tal como a nobreza formava uma estrutura privilegiada da sociedade,
embora o grau de heterogeneidade em relao ao seu estatuto econmico fosse acentuadamente diferenciado. Dum modo genrico o clero dividia-se em
duas categorias principais: o clero secular e o regular. Encontravam-se ambos
subordinados hierarquia.
Enquanto o clero secular era formado por bispos, cnegos, procos,
abades e clrigos, o regular tambm se encontrava subordinado a uma hierarquia prpria. Mas sobretudo no que toca a privilgios devemos distinguir
o alto clero constitudo pelos abades, bispos, cnegos e outras categorias
afins, os quais eram possuidores de foro privativo, iseno de impostos e de
servio militar, embora voluntariamente pudessem participar na guerra, direito de asilo e outras regalias. Nitidamente inferiores eram as condies em
que se encontrava o clero rural, o qual estava subordinado aos patronos das
igrejas possuidores de comendas e autoridade episcopal, vivendo das rendas que aqueles lhes deixavam, pelo que ser de presumir com inmeras
dificuldades para sobreviver no dia-a-dia.
Tema abrangente pela sua natureza apenas pudemos optar por algumas
linhas cujos contornos nos permitem apresentar um esboo sumrio das grandes catergorias da sociedade, a qual a par duma aparente unidade apresentava
fraturas e antinomias cujo equilbrio se apresentava instvel e gerador de assimetrias.

55

Humberto Baquero Moreno

N OTA S
1. Idade Mdia. Problemas e Solues. Lisboa: p.265 ss.
2. Sobre esta matria veja-se CAETANO, M. As cortes de 1385. Revista Portuguesa de Histria
(Coimbra), tomo V, v.II, p.5 ss., 1951. Merecem ponderao as consideraes formuladas a
este respeito por ALBUQUERQUE, M. de. O poder poltico no renascimento portugus. Lisboa,
1968. p.23-4.
3. Vejam-se a propsito destas questes as pertinentes consideraes de VALDEAVELLANO,
L., em Histrias de las instituciones espaolas. Madrid, 1970. p.417.
4. Ibidem, p.430-1.
5. MARTIN, B. P. La coronacion de los reyes de Aragon, (1204-1410). Valencia, 1975. p.21 ss.
6. BRSIO, A. O problema da sagrao dos monarcas portugueses. (separatas) Anais da Academia
Portuguesa da Histria. v.12, 2. srie, Lisboa, 1962.
7. Ibidem, p.34.
8. Pombalina. Biblioteca Nacional de Lisboa (B. N. L.), cod. 443. Publicado por Martim Albuquerque, op. cit., p.405-8.
9. Ibidem.
10. Afonso X, o Sbio, 2. partida, com glosas em castelhano de Alonso Diaz de Montalvo, Sevilha, s.n., 1491.
11. D. Pedro I. Chancelarias Rgias. Lisboa: INIC, 1984. doc. 574, p.260-2.
12. Abordei esta questo volta das pretenses nobilirquicas sobre a posse das localidades
realengas no meu Estado. O poder real e as autarquias locais no trnsito da Idade Mdia para
a Idade Moderna. Revista da Universidade de Coimbra. Coimbra, v.30, p.369 ss., 1983.
13. MORENO, H. B. A batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histrico. Loureno
Marques, 1973. p.349, 420 e 964.
14. BARROS, H. G. Histria da Administrao Pblica em Portugal nos sculos XII a XV. Lisboa,
1945. v.II, p.377.
15. MARQUES, A. H. de O. Portugal na crise dos sculos XIV e XV. Lisboa, 1986. p.237-8.
16. Sobre esta questo veja-se o meu artigo Alcaidarias dos castelos durante a regncia do infante D. Pedro. Revista de Histria, p.282 ss., 1982.
17. Livro de Leis e Posturas, Lisboa, 1971, p.187-8.
18. HESPANHA, A. M. Histria das Instituies. pocas Medieval e Moderna. Coimbra, 1982.
p.282 ss.
19. VIEGAS, V.1383 e os documentos joaninos. Lisboa, 1989. v.III.
20. MERA, P. de Gense da Lei Mental. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, v. X, p.7-8,
1910.
21. MORENO, H. B. Tenses sociais em Portugal na Idade Mdia. Porto, 1975. p.159.
22. Monumenta Henricina. Coimbra, 1963. doc.24, v.V, p.54-65.
23. Elementos colhidos no meu livro sobre A Batalha de Alfarrobeira.
24. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357). Lisboa: INIC, 1982. p.125 ss.
A mencionada Pragmtica de 1340 aparece publicada neste livro p.101 ss.
25. Ordenaoens do Senhor Rey D. Affonso V. Coimbra, 1972. livro IV, ttulo XXVI, p.116 e s.
26. A. N./T. T., Mao 2, de Cortes, n.14, fls. 14v-15.
27. Ibidem.
28. Ibidem.
29. Em relao cavalaria veja-se o artigo de MARQUES A. H. de O. Cavalaria. In: Dicionrio
de Histria de Portugal. Lisboa: 1963. v.I, p.540-2.

56

O PRINCPIO DA POCA MODERNA

30. Ordenaens do Senhor Rey D. Affonso V, livro 1, ttulo LXIII, p.360 ss.
31. Ibidem, p.363-4.
32. BARROS, H. da G. Histria da administrao pblica em Portugal nos sculos XII a XV. Lisboa:
s. d. p.374 ss.
33. MARQUES, A. H. de O, op.cit., v.II, p.249.

57

captu lo 4

OS A RGON A UTA S PORTUGUESES


E O SEU VELO D E OURO
(SCULOS XV-XVI)
An tn io Borges Coelh o*

N AVEGA O, COMRCIO E CON QUISTA


No discu rso h istrico, aqu ilo qu e design am os e explicam os com o
acon tecido escapa-se pelas m alh as da teia explicativa, escon de-se por trs
de cada palavra, a da poca, qu e n o com porta exatam en te os sign ificados de h oje, e as de h oje, ain da qu e com o m esm o som , qu e som am n ovos con te dos aos con te dos de ou trora. Para n os aproxim arm os dos velh os con ceitos tem os qu e ilu m in ar e ven cer a resistn cia das palavras, vividas em tem pos diferen tes, e com palavras an tigas e n ovas lan ar de
n ovo a teia qu e pren da as relaes dos acon tecim en tos.
Em su bstn cia, o passado apreen dido com con ceitos qu e h oje recu peram os e n ovam en te fabricam os. Estes n ovos con ceitos perm item ligar logicam en te o passado ao presen te e a su a legitim idade provm da localizao in evitvel n o atu al do falan te ou escreven te. S qu e este n o
pode retirar da m esa de jogo do discu rso as cartas legadas pelo passado
com as su as figu ras e sen tido.
Vem esta fala a propsito do m ovim en to social, protagon izado pelos
eu ropeu s, in iciado n o scu lo XV pelos portu gu eses, segu idos pelos ou tros
ibricos, e voltado para a explorao dos vrios con tin en tes. Este m ovim en to tem recebido diferen tes design aes. Assim , en qu an to o rei D. Man u el de Portu gal, com o sabido, se in titu lava rei de Portu gal e dos Algarves daqu m e dalm m ar em frica, sen h or da Gu in , da n avegao, com rcio e con qu ista de Etipia, Arbia, Prsia e n dia, os vocbu los qu e
n este scu lo passaram a design ar esse prodigioso m ovim en to coletivo foram descobrim en tos, expan so, evan gelizao, im prio, en con tro de civilizaes, dialtica do ou tro e do m esm o, civilizar, esclavagism o, colon ialism o, con stru o de n ovas n aes e pases, tem po da descoberta do n u e das
vergon h as, passagem do particu lar ao u n iversal, qu e sei eu , ou , ten do em
con ta o objeto, alm -m ar, u ltram ar, n osso m ar, coln ias ou , colocan don os n o n vel dos im pu lsos, esprito de cru zada, fom e do ou ro e das riqu ezas, estratgia plan etria an tim u u lm an a e an titu rca, m orrer pela f.

59

Antnio Borges Coelho

A palavra in vaso, u sada corren tem en te a propsito da expan so


dos povos asiticos in vaso dos brbaros, dos rabes, dos m on gis e dos
tu rcos ou en to in vases fran cesas, n u n ca foi u sada n a prim eira expan so eu ropia. E se n os scu los XV e sobretu do XVI n o faltaram in vases
n o sen tido de en tradas violen tas com ocu pao de territrio, n a verdade,
o estabelecim en to dos portu gu eses n o Orien te n o en volveu a ocu pao
em m assa de territrios e das su as gen tes.
A lista dos vocbu los n o est fech ada. E n a su a escolh a, perfilam se os rostos da diferen a, a espada e o pu n h al do com bate ideolgico. Por
exem plo, os evan gelizadores estrem ecem qu an do ou vem falar n a fom e
do ou ro e das riqu ezas ou porven tu ra n a descoberta do n u e das vergon h as. Pelo seu lado, o colon izador e o colon izado en treolh am -se descon fiados por trs das palavras. O colon izador n o se rev, em geral, n o colon ialism o e faz orelh as m ou cas ao esclavagism o e o ex-colon izado tem
averso ao term o descobrim en tos. Escon ju ram -se as con tradies sociais,
m as en altece-se a dialtica do ou tro e do m esm o. O term o civilizar u m
resto m erc do caixote do lixo da Histria m as qu e algu n s gostariam de
ver recu perado. A expresso en con tro de cu ltu ras, en con tro real, perm ite aplacar as con scin cias sen sveis, m as o en con tro en volveu sem pre
con fron to e tam bm destru io de cu ltu ras.
Du ran te algu n s scu los, os territrios extra-eu ropeu s dom in ados
pelos portu gu eses foram design ados com o Con qu istas. Joo de Barros
u sou freq en tem en te a expresso Descobrim en tos e Con qu istas. Os ttu los do rei D. Man u el, atrs evocados, in dicam a in ten o e u m a prtica
poltica, com ercial e m ilitar em bora a realidade u ltrapasse o ditado das
ban deiras. A in ten o aparece de rosto descoberto m as os escreven tes ju stificam -n a desde logo pela m isso divin a de dilatar a f, m esm o qu an do
ela recu sada de arm as n a m o.
An tes da segu n da viagem de Vasco da Gam a, h ou ve pareceres de
m u ita d vida sobre se seria proveitosa u m a con qu ista to rem ota e de
tan tos perigos. E aos qu e adu ziam o argu m en to ideolgico de propagao
da f, respon diam os con traven tores: com o se podia esperar qu e os povos
asiticos aceitassem a n ossa dou trin a, ain da qu e catlica fosse, por ser
com m o arm ada e n o por boca de apstolos, m as de h om en s su jeitos
m ais a seu s particu lares proveitos qu e salvao daqu ele povo gen tio?1
Na expan so portu gu esa h ou ve de tu do u m pou co: descobrim en tos, em absolu to, e n o apen as para os eu ropeu s, de n ovas terras, n ovos
m ares, n ovas estrelas, com o diria Pedro Nu n es, e viagen s de descobrim en to; evan gelizao com m o arm ada e tam bm com m artrio e n ovos
m todos lin g sticos; tran sfega e troca de riqu ezas, de idias, de tcn icas,
de an im ais e de plan tas; gu erra e paz arm ada com violn cia extrem a de
todas as partes; fom e de h on ra; coragem para alm do qu e pode a fora

60

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

h u m an a; altru sm o, sacrifcio; an tropofagia n o lim ite e recu sa dela; troca


de idias, de cerim n ias, de vocbu los; con fron to de cu ltu ras.
En qu an to a Eu ropa m ergu lh ava em in term in veis gu erras de poder
sob ban deiras religiosas, o qu e fazia correr en to os portu gu eses? A fom e
do ou ro e das riqu ezas, o ch eiro da can ela, a fam a, o m edo com as su as
correias de obedin cia, a n sia de poder, a f em Deu s, essen cial para escon ju rar os dem n ios e a m orte e para o perdo dos h orrorosos pecados,
o esprito de aven tu ra, o desejo de ir m ais alm , o apelo do descon h ecido.
Tu do isso e m u ito m ais im pu lsion ou a corrida. Mas se qu iserm os
tom ar o velo de oiro dos n ovos argon au tas terem os qu e dou rar a talh a,
adoar o a car, ilu m in ar o dorso dos escravos ou a beleza das escravas,
espirrar com a pim en ta e as especiarias, fazer cin tilar as pedras preciosas.
As cren as, a coragem e o m edo con stitu am o ser, a prpria arm adu ra
dos su jeitos m as eviden tem en te cercavam e pen etravam as coisas, con den avam e absolviam as aes.
No possvel desatar os n s, todos os fios esto ligados. Mas sem
as estradas qu e o com rcio e o din h eiro abriam , sem as descobertas n a
con stru o n aval e n a arte de n avegar, sem a riqu eza acu m u lada para pagar os n avios, as m ercadorias, as arm as, os m an tim en tos, o soldo, qu e faria o desejo e a von tade? Fazia-se ao m ar m as n o n avegava e a f sossobrava n as prim eiras braadas.
Tom ei o ditado: Navegao, Com rcio e Con qu ista. a ban deira m an u elin a. Hou ve n avegao, fan tstica, gu iada pelos in stru m en tos qu e m ediam o Sol e as estrelas. Hou ve com rcio, desigu al, com m on oplios e su cu len tas presas. Hou ve con qu istas, n u n ca con clu das, de cidades, de territrios.
Por qu e n o escolh er o term o Descobrim en tos? Para n o tom ar a
parte pelo todo. E a palavra Expan so? operacion al, u m vocbu lo con tin en te, vaso, u ten slio qu e pode tran sportar sem afetar sign ificativam en te os diferen tes con te dos.

CA RAVELA S E FA LCES
A expan so portu gu esa dos scu los XV a XVIII, a tal do com rcio e
das con qu istas, com descoberta de cam in h os m artim os, desce da terra
para o m ar e olh a depois do m ar para a terra. Um olh ar espan tado e in ocen te: n em estim am n en h u m a cou sa cobrir n em m ostrar as vergon h as
e tm n isto tan ta in ocn cia com o tm em m ostrar o rosto, escrevia Pero
Vaz de Cam in h a. Um olh ar de m ilh afre: Sen h or, os velu dos de Meca e
gu as rosadas dos caixes, qu e aqu i te trazem , dizia u m m agn ate de Ben gala rou bam os portu gu eses pelo m ar, tom an do os peregrin os qu e vo
para a san ta casa de Meca; e so ladres m u i su btis, qu e en tram n as terras

61

Antnio Borges Coelho

com m ercadorias a ven der e com prar, e ddivas de am izades, an dam espian do as terras e gen tes, e depois com gen te arm ada as vo tom ar, m atan do e qu eim an do, e fazen do tais m ales qu e ficam sen h ores das terras.2
A expan so grega teve u m su porte m artim o e de algu m m odo a
rom an a. Martim a a expan so dos n orm an dos. Mas n a expan so eu ropia, in iciada com os portu gu eses n o scu lo XV, a qu e abre os m ares do
u n iverso, os n avios so o vecu lo, a casa, a fortaleza, o tem plo, a oficin a,
a ten da e o arm azm das m ercadorias e da plvora, o tron co dos escravos, o porta-n avios, o caixo.
Os portu gu eses n o se deslocam com o h orda n em se organ izam
com o legio. No desfraldar das velas, os seu s n avios lem bram aves de rapin a prestes a cair sobre a presa. Qu an do os azen egu es viram os prim eiros n avios portu gu eses, ju lgaram , n o dizer de Cadam osto, qu e eram en orm es pssaros de asas bran cas; ou tros diziam qu e eram fan tasm as qu e pela
n oite n avegavam 100 m ilh as e m ais. Os olh os pin tados n a proa eram verdadeiros, viam e gu iavam os n avios n a n oite e n o dia do Ocean o.
A expan so portu gu esa en volveu m ilh ares de n avios de com rcio
e de gu erra. Saram da Ribeira de Lisboa, da Ou tra Ban da, do Porto, do
Algarve, de Coch im , de Goa, de Malaca, do Salvador. A su a con stitu io
e form as desigu ais ficaram assin aladas n a galeria dos n om es: barca, barin el, batel, bergan tim , caravela, caravelo, carraca, catu r, esqu ife, fu sta,
gal, galeaa, galeo, galeota, ju n co, n au , patach o, taforeia, u rca, zavra
A caravela, n avio de vela latin a e pequ en o calado, con stitu iu a
em barcao por exceln cia da explorao e descoberta do Atln tico. E
tam bm o n avio rpido prprio para levar e trazer in form aes. En qu an to u m a n au da carreira da n dia dem orava cerca de 6 m eses n a viagem
de ida, em 1516 a caravela de Diogo de Un h os gastou m en os de 6 m eses
n a ida e n o regresso. A caravela serviu tam bm com o n avio de gu erra.
Com boiava as pesadas n au s da n dia e da Am rica n a fase fin al da viagem ru m o costa portu gu esa. Um a caravela da n dia, n a prim eira m etade do scu lo XVI, podia dispor de 21 tripu lan tes, assim distribu dos segu n do a ordem dos ven cim en tos: o capito, o bom bardeiro, o m estre e
piloto, o carpin teiro, o calafate, o escrivo, o barbeiro, o tan oeiro e os
dois h om en s do capito, os qu atro m arin h eiros e os sete gru m etes. O
bom bardeiro u ltrapassava o ven cim en to do piloto m arcan do bem o papel essen cial da artilh aria. 3
A n au , n avio de carga arm ado, passou dos 120 ton is da n au S. Gabriel de Vasco da Gam a para 450 e at m il ton is do fin al do scu lo XVI.
No seu bojo carregaram os portu gu eses para Ociden te m u itas riqu ezas da
n dia. O valor da carga podia atin gir os 3 m ilh es de cru zados ou ro. A n au
Flor de la Mar em qu e D. Fran cisco de Alm eida com bateu n a batalh a de
Diu h averia de m orrer sepu ltan do con sigo n as gu as de Sam atra as gu losas riqu ezas colh idas por Afon so de Albu qu erqu e n a tom ada de Malaca.

62

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

O galeo era u m vaso de gu erra tam bm u sado em tran sporte


com o o galeo gran de S. Joo qu e n au fragou prxim o do Cabo da Boa
Esperan a. Mais com prido, de m en or calado e portan to m ais veloz qu e a
n au , dispu n h a de u m tem vel poder de fogo. Por exem plo, o galeo S. Din is, de trezen tos ton is, con stru do n a n dia pelo govern ador Diogo Lopes
Sequ eira (1518-1521), com portava 71 peas de artilh aria, a saber 21 cam elos debaixo da pon te, 12 por ban da, 2 por popa, 4 n a tolda, 2 sobre o
perpau e 4 n a pon te e ain da 9 fales e 20 beros, en qu an to em 1525 Coch im dispu n h a de 286 peas de artilh aria, Goa de 188, Malaca de 1666.4
A expan so m artim a dos portu gu eses e eu ropeu s prom oveu em
todos os m ares com bates e ferozes gu erras m artim as. Os seu s n avios levaram aos pon tos m ais distan tes do globo o espan toso ribom bar da artilh aria. Esta tom ava form as vrias, adaptadas aos diferen tes fin s. Os pedreiros lan avam balas de pedra para bater obstcu los a cu rtas distn cias;
em batalh as n avais ou de stio, os can h es atiravam balas de ferro fu n dido de in ten so poder perfu ran te; e as colu brin as, de tu bo com prido, batiam objetivos a m aiores distn cias. Peas de arte em bron ze, sem eadoras
da m orte, receberam n om es estran h os com o se os n om es au m en tassem a
carga da plvora e do medo: selvagem, camelo, camelete (pedreiros); gu ia,
serpe, espera, m eia-espera (can h es); aspre, sagre, m oiran a, falco, falcon ete, esm eril; e beros ou falces m ais pequ en os.5

O S N AVEGA N TES
O grosso da popu lao das n au s da Carreira da n dia era con stitu da por m arean tes e m ilitares e tam bm por pequ en os n cleos de m ercadores profission ais e de religiosos. Os m ilitares podiam virar m arin h eiros
e os m arin h eiros soldados bem com o os m ercadores e os clrigos. Nos n avios de m en or ton elagem qu e cru zavam o Atln tico eram pou cos os m ilitares, m ais os passageiros.
No faltaram m en in os n a apren dizagem da vida com o An tn io
Correia, filh o do feitor Aires Correia, assassin ado em Calecu t. So raras as
m u lh eres. Na terceira viagem de Vasco da Gam a em barcaram algu m as s
escon didas. Lu s de Cam es, n u m a das su as cartas, con vida as m u lh eres
de vida fcil a ten tarem n a n dia a su a sorte. E h avia sem pre as rfs delrei exportadas para os vrios pon tos do im prio.
Nas viagen s de regresso n o faltavam as escravas. Sen h oras, pou cas m as algu m as. D. Leon or, m u lh er de Man u el de Sou sa Sep lveda,
n au fraga n o Cabo da Boa Esperan a. E qu an do os n egros lh e tiraram a
rou pa por fora, cobriu -se com os lon gos cabelos e a areia da cova qu e
abriu para en terrar viva a n u dez.

63

Antnio Borges Coelho

O capito do n avio assu m ia o com an do su prem o da com u n idade


n avegan te e do corpo m ilitar. Mas o respon svel pela n avegao era o
piloto, assessorado pelo m estre n a direo da equ ipagem . O piloto era
n o s o respon svel m xim o pela segu ran a do n avio, o tcn ico qu e
m edia, n u m a m an obra com plexa, o seu avan o dirio, com o o in vestigador em prico con tin u am en te registan do os aciden tes e acon tecim en tos qu e fu giam n orm a. As su as observaes podiam ser discu tidas em
terra por cien tistas com o Pedro Nu n es. Ou tras vezes eram os cien tistas
qu e se faziam ao m ar com o Jos Vizin h o, Du arte Pach eco ou o fu tu ro
vice-rei D. Joo de Castro.
O corpo militar atuava no mar e na terra mas a sua base e retaguarda estava no mar. As espadas e lanas dos capites e escudeiros continuavam a rasgar as carnes e a aparar os golpes mas, na milcia martima e de
desembarque, incorporavam-se em ritmo crescente corpos especializados
no manuseio das armas de fogo. Os besteiros, numerosos nos primeiros
anos, so ultrapassados pelos espingardeiros e o pequeno corpo de bombardeiros. Os ferreiros, os calafates, os tanoeiros constituam tropas auxiliares
que a todo o momento podiam integrar a primeira linha de combate.
Na arm ada qu e em 1525 patru lh ou a costa do Malabar teriam en trado 2.181 h om en s assim distribu dos: h om en s do m ar 451; h om en s de
arm as 1.254; trom betas 18; ferreiros portu gu eses 30; carpin teiros portu gu eses da Ribeira 23; calafates portu gu eses 36; tan oeiros 15; espin gardeiros de n m ero 204; bom bardeiros 150.6
Pou co depois, em 1531, n a ilh a de Bom baim , o govern ador Nu n o
da Cu n h a fez alarde da arm ada qu e se dirigia a Baaim e a Diu , a m aior
qu e se ju n tou n a n dia. Con taram -se 400 velas, en tre elas 5 ju n cos, 8
n au s do rein o, 14 galees, 2 galeaas, 12 gals reais, 16 galeotas e m ais
228 em barcaes a vela e rem o bergan tin s, fu stas e catu res, sem con tar
as n au s, zam bu cos e cotias de tabern eiros da gen te da terra. Os com baten tes som avam m ais de 3.560 h om en s de arm as portu gu eses a qu e se
ju n tavam 2 m il com baten tes m alabares e can arin s de Goa e 8 m il escravos de peleja. Os espin gardeiros su biam a m ais de 3 m il. Aos com baten tes ju n tavam -se os h om en s do m ar, avaliados em m ais de 1.450 portu gu eses com pilotos e m estres e 4 m il m arin h eiros da terra rem eiros, fora
os m arean tes dos ju n cos qu e passavam de 800. Som an do as m u lh eres casadas e solteiras e a gen te qu e ia com su as m ercadorias e m an tim en tos a
ven der passavam de 30 m il alm as.7
Ao lado dos homens de espada e lana, protegidos por armadura de malha e ao, com as armas transportadas por escravos guerreiros, perfilavam-se os
homens da artilharia, espingardeiros e bombardeiros. Os espingardeiros ganhavam importncia crescente. Por outro lado, milhares de combatentes malabares morriam lutando sob a bandeira do rei de Portugal. E tambm os escravos.

64

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

Na batalh a de Diu , D. Fran cisco de Alm eida esforou os valen tes


escravos qu e aju dam seu s sen h ores pelejan do. E prom eteu -lh es qu e se
m orressem n o com bate seriam pagos a seu s don os a 50 cru zados; se ficassem vivos e obtivessem n esse an o a alforria, obteriam as liberdades
de escu deiros; se ficassem aleijados e n o pu dessem servir, seriam pagos
com o os m ortos; se ain da pu dessem servir, valeriam 20 cru zados para
os seu s don os. 8
Tam bm n a arm ada, atrs referida, para Baaim e Diu , o govern ador Nu n o da Cu n h a orden ou aos capites qu e, qu an do desem barcassem
para o com bate, qu em tivesse escravo h om em qu e o levasse con sigo, para
desem barc-lo e aju d-lo a levar su as arm as e seu alm oo, e para qu e, se
o ferissem , o aju dassem a lev-lo e a cu r-lo.9
A m orte era u m a visita diria. Man u el de Lim a escrevia em 1533
ao rei qu e j lh e tin h am m orrido qu in ze criados de seu pai. Gen te com e
sem n om e ia ao en con tro da fortu n a e com a salvao e perdio das alm as e em todo o lado en con trava a m orte: o bispo Pero Sardin h a m orto
e devorado pelos n dios ju n to do rio Cu ru ripe; D. Fran cisco de Alm eida
n o Cabo da Boa Esperan a; o m arech al Fern an do Cou tin h o n o palcio do
Sam orim ; Jern im o de Lim a n a segu n da con qu ista de Goa. Jern im o
m orreu esvado em san gu e en costado a u m m u ro da cidade. E in citava o
irm o Joo de Lim a qu e viera em seu socorro: Adian te, sen h or irm o,
n o tem po de deter qu e eu em m eu lu gar fico.10

B A SES E FORTA LEZA S


Os n avios dos argon au tas portu gu eses n ecessitavam de bases, an seavam por terra. Para tratar das feridas, para satisfazer a fom e fsica e sexu al, para ren ovar os n avios e os abastecim en tos, para firm ar os ps e reclin ar a cabea sem o balan o das on das e a am eaa de corte pelas espadas in im igas, para ligar o pon to de ch egada ao pon to de partida.
A expan so portu gu esa avan ava m arcan do n o espao as bases e as
fortalezas: Ceu ta, Alccer, Tn ger, Arzila, Madeira, Aores, Can rias, Argu im , Cabo Verde n o Mediterrn eo Atln tico; Axm , S. Jorge da Min a, S.
Tom , Lu an da, Fern an do de Noron h a, Pern am bu co, Salvador n o Atln tico Cen tral e Su l; Moam biqu e, Qu loa, Socotor, Coch im , Goa, Can an or,
Ch a l, Orm u z, Baaim , Diu , Ceilo, Malaca, Tern ate, Macau e tan tas ou tras n os m ares orien tais.
Se ilu m in arm os o espao pela coorden ada tem po, n u m prim eiro
m om en to, n o design ado perodo h en riqu in o, assistim os con qu ista do
qu e Pierre Ch au n u ch am ou Mediterrn eo Atln tico balizado pelos seu s
arqu iplagos. Nu m segu n do perodo, qu e se dilata at o fin al do scu lo

65

Antnio Borges Coelho

XV, as caravelas e ou tros n avios prossegu em a con qu ista do Atln tico


Cen tral e Su l, con qu ista do m ar qu e a terra era s lu gar do trato e do salto dos escravos, atin gem a face am erican a do Atln tico e su lcam as prim eiras gu as do n dico. Na prim eira m etade do scu lo XVI, lan am os prim eiros fu n dam en tos do Brasil, su lcam trovejan do as gu as do n dico,
alargam -se aos m ares da sia e da Ocean ia.
Algu m as destas bases, as das ilh as atln ticas, a im en sido do Brasil
torn am -se terras de colon izao, de liberdade e ref gio para os eu ropeu s
qu e as dem an davam e pu rgatrio de m u latos e in fern o de n egros, u san do as palavras de Fran cisco Man u el de Melo. Qu an to ao im prio asitico,
u m colar de cidades da beira-m ar, com terra firm e s em Baaim , Goa
e du ran te algu m tem po boa parte de Ceilo.
Mu itas das fortalezas esto ain da h oje m arcadas n o terren o. Em
Ceu ta, Tn ger, Arzila, n a espan tosa Mazago. Safim era rodeada por 75
torres pelo serto e m ais oito pelo m ar. Em S. Jorge da Min a, levaram -se
as pedras aparelh adas de Lisboa. Foi s m on tar a fortaleza ao abrigo das
espin gardas. Na fortaleza de Malaca, Fran cisco de Albu qu erqu e u sou pedras de can taria retiradas da m esqu ita gran de e das m esqu itas pequ en as
e as pedras tu m u lares dos m u u lm an os. Os alicerces da torre de m en agem tin h am vin te ps de largo e os alicerces da fortaleza, assen te n a roch a viva, doze ps. Nos can tos, ergu eram -se torres qu adradas qu e corriam
n o an dar do m u ro. A torre de m en agem m edia, at o prim eiro sobrado,
vin te ps, at o segu n do, qu in ze, at o terceiro, doze e at o ltim o sobrado, oito ps. Assen te n as pedras das cren as m u u lm an as, a torre de
m en agem ficava sobre a praia e podia varejar com a artilh aria o ou teiro
qu e lh e ficava defron te.11

FUN D A MEN TOS E MOD ELOS


Desde cedo, pescadores e m arin h eiros dos n avios m ercan tes portu gu eses dom in aram a su a plataform a m artim a. E a prim eira in iciativa n o
Atln tico em direo ao su l su rgiu em 1340 com a expedio lu so-castelh an a-italian a s Can rias de qu e o escritor Boccaccio n os deixou u m im pressivo testem u n h o.
Mas o arran qu e da expan so portu gu esa ocorre com a con qu ista de
Ceu ta em 1415. Aparen tem en te o im pu lso ain da o da Recon qu ista m as
as diferen as esto vista. A con qu ista de Ceu ta en volve a m obilizao
de u m a frota eu ropia e, para l do exrcito dos n obres, o en tu siasm o de
u m exrcito dos con celh os, em particu lar do de Lisboa e do Porto e a participao, su a cu sta, de algu n s m ercadores italian os e in gleses.

66

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

Depois, a m an u ten o da praa e a n ecessidade de prover a su a defesa prom overam desde logo a criao de u m a direo poltico-m ilitar em
solo n acion al, voltada para o m ar e qu e a todo o m om en to m obilizava os
recu rsos m artim os. Com o passar do tem po, esta direo con solida-se
com o a cabea organ izadora e cen tralizadora de fru tu osas operaes corsrias n o Estreito de Gibraltar e tam bm da redescoberta das ilh as atln ticas e do seu povoam en to, de n ovas con qu istas em Marrocos e de viagen s
de corso e descobrim en to n a costa african a para l do Cabo Bojador.
En tretan to, ao lon go do scu lo XV, foram -se defin in do os m odelos
qu e a expan so portu gu esa iria desen volver n os scu los XVI e XVII.
O prim eiro m odelo en con trou n a con qu ista e con servao de Ceu ta e das ou tras praas m arroqu in as as lin h as defin idoras. prim eira vista
parece in serir-se, com o dissem os, n os velh os passos da Recon qu ista: con qu ista de terras, de h om en s e de riqu ezas. Mas a n ovidade est n o papel
crescen te do territrio m artim o. O socorro e a proteo das praas con qu istadas esto n o m ar. E o m ar defen dido pelas fortalezas. A ten tativa
de con qu ista das Can rias e as prim eiras viagen s de assalto s costas para
l do Bojador so ain da operaes de gu erra, de con qu ista e de saqu e.
O segu n do cam in h o rasga-se com a colon izao da Madeira e dos
Aores. In icialm en te esta colon izao assen tou em terra livre com o s
en cargo da dzim a a Deu s e organ izada n a pequ en a explorao cam pon esa ou n a m dia com trabalh o assalariado dos braceiros e a in trodu o do
trabalh o escravo.
O terceiro cam in h o defin iu -se com o estabelecim en to da feitoria e
castelo de Argu im e da feitoria e castelo de S. Jorge da Min a. Protegidas
por fortalezas, ergu idas em ilh as ou cabos facilm en te defen sveis por
qu em dom in ava o m ar, as feitorias assu m iam o exclu sivo do trato. Mais
tarde n a n dia este m odelo dar lu gar a u m a rede de alfn degas, protegidas por cidades e fortalezas, qu e san gram u m a parte sign ificativa do com rcio m artim o asitico.

R ESERVA D O MUN D O A D ESCOBRIR


Do pon to de vista diplom tico e poltico, o prin cipal acon tecim en to do scu lo XV, n o qu e se refere expan so portu gu esa, o estabelecim en to da prim eira reserva do m u n do descoberto e por descobrir, reserva
afeta em exclu sivo aos portu gu eses pela bu la Romanus Pontifex, de 8 de jan eiro de 1455, e alargada aos ibricos pelo Tratado de Tordesilh as de 1494.
Na citada bu la, o papa Nicolau V fu n dam en ta a atribu io aos portu gu eses da reserva da n avegao para l dos Cabos No e Bojador, protegen do-a com os raios eclesisticos, alegan do os gran des trabalh os, pre-

67

Antnio Borges Coelho

ju zos e despesas do In fan te D. Hen riqu e e do rei de Portu gal. Havia 25


an os qu e en viavam n avios ligeiros, a qu e ch am am caravelas, com gen tes desses rein os e provn cias m artim as a dem an dar as ban das m eridion ais e o polo an trtico. Mu itos gu in u s e ou tros n egros, tom ados por fora e algu n s tam bm por troca de m ercadorias n oproibidas, foram levados para os ditos rein os on de em gran de n m ero foram con vertidos f
catlica.
A reserva de n avegar, con qu istar, com erciar in stitu da em regim e
de m on oplio h en riqu in o-rgio. Tal exclu sivo n o sign ificava qu e s os
n avios do in fan te ou do rei pu dessem n avegar e com erciar n essas paragen s. No essen cial, o m on oplio garan tia a cobran a do qu in to das m ercadorias pela Ordem de Cristo, de qu e o in fan te era o govern ador, e reservava a n avegao e o com rcio para essa rea do globo para aqu eles a
qu em , m edian te con trapartidas m ateriais, fosse dada licen a, em prim eiro lu gar aos escu deiros e m ercadores ligados casa sen h orial h en riqu in a.
No fin al da vida, em 26 de dezem bro de 1457, o In fan te D. Hen riqu e re n e em Tom ar o cabido da Ordem de Cristo e faz o balan o, escrito n a prim eira pessoa, dos prim rdios da expan so m artim a:
Os trabalhos dos homens principalmente devem ser por servio de Nosso Senhor Deus e assim de seu Senhor porque hajam de receber galardo de glria (e)
em este mundo honra e estado.
Quem estabelece o que servio do Senhor so os senhores deste mundo e
so eles que neste mundo distribuem glria, honra e estado.
E prossegu e:
E sendo certo como, desde a memria dos homens, se no havia alguma
notcia na Cristandade dos mares, terras e gentes que eram alm do Cabo de No
contra o meio dia, me fundei de inquirir e saber parte, de muitos anos passados
para c, do que era desde o dito Cabo No em diante, no sem grandes meus trabalhos e infindas despesas, especialmente dos direitos e rendas cuja governana assim tenho, mandando per os ditos anos muitos navios e caravelas com meus criados e servidores, os quais, por graa de Deus, passando o dito Cabo de No avante
e fazendo grandes guerras, alguns recebendo morte e outros postos em grandes perigos, prouve a Nosso Senhor me dar certa informao e sabedoria daquelas partes desde o dito Cabo de No at passante toda a terra de Berberia e Nbio e assim
mesmo per terra de Guinea bem trezentas lguas, de onde at agora, assim no comeo por guerra como depois por maneira de trauto de mercadoria e resgates,
vindo Cristandade mui gram nmero de infiis cativos, do qual, dando grandes
louvores a Nosso Senhor, a mor parte so tornados sua santa f. E est bem aparelhado para muitos mais virem e serem feitos cristos, alm das mercadorias, ouro

68

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

e outras muitas coisas que de l vm e se cada dia descobrem muito proveitosas a


estes reinos e a toda a Cristandade.12
O In fan te D. Hen riqu e van gloria-se de ser o prim eiro com in fin dos
trabalh os e despesas a in dagar dos m ares, terras e gen tes qu e viviam alm
do Cabo No. Mas o seu pon to de refern cia o da Cristan dade ociden tal. A Cristan dade n o tin h a n otcia das n ovas terras e agora tirava proveito das ricas m ercadorias. Com m orte e perigo dos seu s servidores, as
caravelas portu gu esas, por gu erra e depois tam bm por trato de m ercadorias, avan ara bem 300 lgu as por terras de Gu in , con firm an do o
avan o dos n avios portu gu eses at a Serra Leoa. O prin cipal ren dim en to
da gu erra e do trato provin h a dos escravos, equ iparados ao ou ro e ou tras
m ercadorias proveitosas. Os in fiis ficavam com os corpos cativos m as
os seu s don os tratavam -lh es da alm a.

O S REIS EMPRES RIOS


Os 40 an os dos govern os dos reis D. Joo II e D. Man u el (14811521) cobrem m om en tos extrem am en te fecu n dos n a h istria da Hu m an idade. o tem po das gran des viagen s e descobertas m artim as: a de Bartolom eu Dias qu e, n a tbu a das n au s, sem com bate com os h om en s m as
to s com os elem en tos, verificou a ligao do Atln tico e do n dico; a
viagem de Cristvo Colom bo qu e ligou perm an en tem en te a Eu ropa,
vida de ou ro e prata, a u m n ovo con tin en te, a Am rica; a de Vasco da
Gam a qu e du radou ram en te u n iu pelos ocean os e pelas n au s da pim en ta
o Ociden te ao Orien te; a viagem de Pedro lvares Cabral qu e ligou Lisboa e a Eu ropa ao Atln tico Su l; a viagem de Fern o de Magalh es qu e,
pela prim eira vez, circu n avegou a Terra.
As descobertas m artim as, o devassar das estradas lqu idas dos m ares e dos rios torn avam a Terra fin ita, destapavam -lh e o corpo todo, revelavam aos eu ropeu s n ovos povos, n ovos clim as, n ovos cu ltos, n ovas tcn icas, n ovas plan tas, n ovos an im ais, n ovas estrelas e m u ito ou ro, prata,
pedras preciosas, pim en ta e can ela, txteis, porcelan as da Ch in a.
Em 1472, os m on oplios estabelecidos n a costa ociden tal african a
eram os do resgate do castelo de Argu im , o das pescarias do Cabo Bran co, o da costa african a fron teira ilh a de San tiago, o do resgate do ou ro
e dos escravos em S. Jorge da Min a e ain da o arren dam en to do com rcio
da m alagu eta. As Casas qu e cen tralizavam esse com rcio, a de Argu im e
da Min a, in icialm en te sediadas em Lagos, so tran sferidas por D. Joo II
para Lisboa qu e se torn a a din am izadora prin cipal das n avegaes, com rcio e con qu istas. o tem po do prim eiro ciclo do ou ro e dos escravos,

69

Antnio Borges Coelho

n a expresso do h istoriador L cio de Azevedo. A caa ao escravo far desaparecer com o a popu lao das Ilh as Can rias. Os ch oros e gritos dos escravos n egros e m ou ros, separados das m u lh eres e dos filh os n o partir dos
lotes, eram abafados pela f qu e se ju stificava com a salvao das alm as.
Mas com a abertu ra da Rota do Cabo am plia-se extraordin ariam en te
a tran sfega de riqu ezas e m ercadorias m edian te o com rcio desigu al e a
oportu n idade das presas. D. Joo II fora o rei da m oeda dos ju stos de ou ro,
m as D. Man u el o rei da pim en ta e dos portu gu eses de ou ro en qu an to
D. Joo III, n o dizer do poeta Lu s de Cam es, tu do pde e tu do teve.
Com as n avegaes, crescem as receitas do Estado e as dos particu lares e desen volvem -se as foras produ tivas. Os cereais torn am -se u m dos
m aiores n egcios do scu lo. E radica-se u m a agricu ltu ra especializada da
vin h a, do azeite, voltada para m ercados crescen tes; su rgem ou tros produ tos agrcolas, algu n s deles proven ien tes das n ovas exploraes assen tes
n o trabalh o escravo. o caso do a car. In ten sifica-se o m ovim en to plan etrio das plan tas e dos an im ais.
O ou ro da costa ociden tal african a ch ega a Lisboa pelas caravelas
qu e ligam esta cidade ao castelo de S. Jorge da Min a. O a car da Madeira e de S. Tom circu la n os m ercados eu ropeu s. Riqu ezas con siderveis,
proven ien tes, du ran te a gu erra com ercial m artim a, do assalto a cidades
com o Qu loa, Mom baa, Goa, Malaca, e a con tin u idade do com rcio da
pim en ta e das drogas en ton tecem os dirigen tes portu gu eses. Segu n do
Joo de Barros, n a Rota do Cabo, os lu cros com erciais atin giam cin co,
vin te, cin q en ta vezes o valor do capital in vestido.
Uma nau da ndia custava em 1506 com a carga cerca de 8 contos de
ris. Quando chegava ao Malabar, esses 8 contos passavam milagrosamente a 20. Mas esta mesma nau, quando regressava a Lisboa, tinha a sua carga avaliada em 100 contos de ris. Em termos nominais, uma nau da ndia
valia m ais n o regresso qu e as receitas do Estado n o tem po de
D. Afonso V. Tambm a alfndega de Lisboa que, no incio do sculo XVI,
rendia volta de 9 contos, nos anos 1680, o seu rendimento subia para 115.
A expan so portu gu esa tem fom e de cobre, u sado n a artilh aria, n as
m oedas e n os sin os das n ovas e velh as igrejas; de ferro para as ferram en tas e as arm as; de estopa, de breu , de pregadu ra, de corda. Desen volvem se n ovas tecn ologias e ferram en tas especializadas. E se u m a retagu arda
eu ropia forn ece trigo, produ tos in du striais, capitais, registam -se avan os
sign ificativos n a produ o in tern a portu gu esa, particu larm en te em setores de pon ta. A in d stria txtil desen volve-se n a Beira in terior, n o Alto
Alen tejo e n a periferia de Lisboa em bora fiqu e m u ito aqu m do m elh or
da in d stria txtil eu ropia e asitica. Mas o prin cipal avan o registra-se
n a con stru o n aval, n a produ o in du strial do biscoito e n o fabrico das
arm as. Portu gal con stru a n avios e fabricava arm as em solo n acion al e

70

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

n os prin cipais pon tos do globo on de se estabelecia. So con h ecidas as


con seq n cias polticas e m ilitares, provocadas pelos portu gu eses, ao in trodu zirem n o Japo as espin gardas e ou tras arm as de fogo.
A m u ltiplicao da produ o in tern a n u m a prim eira fase da expan so pode sen tir-se n a leitu ra dos forais m an u elin os. Mas se tivssem os
d vidas sobre o desen volvim en to das foras produ tivas, pelo m en os em
algu n s setores de pon ta, bastaria lem brar as form idveis esqu adras, con stru das em Portu gal, qu e dem an daram os m ares depois da abertu ra da
Rota do Cabo. S n os prim eiros 5 an os decorridos sobre a prim eira viagem de Vasco da Gam a, ru m aram a Orien te m ais de sessen ta n avios poderosam en te equ ipados e artilh ados.
Nos prim eiros an os do scu lo XVI, os portu gu eses ven ceram n o
m ar a gu erra com ercial m artim a con tra os m ou ros, h scu los in stalados
n o terren o, e in stau raram n o n dico u m a paz arm ada, periodicam en te
violada. Essa gu erra n o desalojou os m u u lm an os n em tam pou co destron ou os reis orien tais, com a exceo m aior do rei de Malaca. Abriu foi
o m ar aos seu s n avios, aos seu s n egcios e ao seu poder. Qu e o Estado da
n dia com a su a capital poltica e cu ltu ral em Goa e a capital da pim en ta
em Coch im assen tava essen cialm en te n u m a rede de alfn degas qu e se
alim en tavam do com rcio do n dico e do com rcio qu e dem an dava o estreito de Malaca. Ao lon go de 20.000 km de costa, de Lisboa ao Extrem o
Orien te, passan do pela Am rica do Su l, esten diam -se as cidades, as feitorias, as fortalezas. u m Im prio qu e n o avan a pela terra aden tro, a n o
ser n a breve ten tativa de con qu ista de Ceilo e n a im en sa colon izao do
con tin en te brasileiro.
Com o cabea deste im prio m artim o, Lisboa tran sform ava-se
n u m a das gran des m etrpoles do plan eta, son ora e m u lticolor, reu n in do
gen tes de todos os con tin en tes e atrain do, pelas excelen tes oportu n idades
de m u ltiplicar a riqu eza, algu n s dos prin cipais m ercadores eu ropeu s. O
seu poder assen tava n a rede de cidades atln ticas, am erican as, african as
e asiticas, a qu e se ligava pelo lon go m ar, n as foras m ilitares m artim as
de in terven o, n a artilh aria e n as n au s. Para su sten tar todo este esforo
m ilitar ao servio da n avegao, da con qu ista e do com rcio, Lisboa m obilizava os h om en s e os produ tos do pas in terior e in tegrava n o seu m u n do largos m ilh ares de h om en s de frica, da Am rica e sobretu do da sia.
No faltaram capitais eu ropeu s, italian os e alem es com o n o faltaram capitais portu gu eses, em boa parte cristos-n ovos, e capitais dos m oradores de Goa e de Coch im . Tam bm algu n s fidalgos in vestiram . Desde as
prim eiras viagen s. Afon so de Albu qu erqu e e seu prim o Fran cisco de Albu qu erqu e arm aram cada u m a su a n au n a qu in ta viagem para a n dia.
Mas o rei era o m aior em presrio, o m aior em pregador, o m aior in vestidor e o distribu idor das riqu ezas do im prio. Na Rota do Cabo, o
Estado qu e arrisca e su porta os cu stos. Se se perdem n avios e a carga da

71

Antnio Borges Coelho

pim en ta, a perda prin cipal do rei pois os m ercadores eu ropeu s e portu gu eses tm os seu s lotes assegu rados n a Casa da n dia. Se h ou ver pou ca
pim en ta, os preos sobem e com a su bida o gan h o; se h ou ver m u ita, os
preos descem m as m an tm u m a m argem de lu cro. E o Estado qu e su porta o gasto com as fortalezas, as gu erras, os fu n cion rios e os soldados.
Por ou tro lado, con stitu a u m forn ecedor e u m clien te previlegiado dos
m ercadores e ban qu eiros.
No Brasil, os particu lares desem pen h aram u m papel decisivo.
Du arte Coelh o in vestiu em Pern am bu co capitais adqu iridos n a zon a de
Malaca e n os m ares da Ch in a. Fern an do de Noron h a e ou tros cristosn ovos m u ltiplicaram o seu capital com o com rcio em exclu sivo do pau brasil e a exportao em gran de escala de escravos n egros para a Am rica Espan h ola e o Brasil. Joo de Barros e o tesou reiro-m or Fern o lvares de An drade organ izaram , arrastados em boa m edida pela febre do
ou ro am erican o, a m aior esqu adra privada algu m a vez levan tada em Portu gal e qu e sossobrou n as gu as do Maran h o.
Mas o Estado portu gu s, ain da m u ito preso ao servio e a ban deiras ideolgicas, n o est preparado e respon de m al s n ovas tarefas. O rei
m ercador m as n o tem as m an h as do m ercador. Escolh e os altos fu n cion rios da fazen da pela lim peza de san gu e, pelas letras can n icas e teolgicas e n o favorece os m ercadores profission ais ligados ao com rcio in tern acion al. A Casa da n dia era u m a en orm e em presa estatal de im portao e exportao m as, segu n do o m ercador ban qu eiro Du arte Gom es
Solis, n o tin h a sequ er u m livro de caixa.
O rei pagava os servios em salrios m as tam bm com qu in taladas,
a atribu io de capitan ias e de m ercs boca das alfn degas. O n m ero
das capitan ias era lim itado e em 1533, por exem plo, algu n s capites agradecem desden h osam en te ao rei a prom essa de ocu parem capitan ias dali
a 10 ou 15 an os. E capites e fu n cion rios rou bavam os povos e o rei e
rou bavam com pran do os soldos dos soldados. An tn io da Silveira, qu e
en riqu ecera n a capitan ia de Orm u z, pedia ao rei m ais u m an o porqu e
precisava de se desen dividar.13
A n dia era u m a vin h a qu e se vin dim ava de 3 em 3 an os, escrevia
ou tro correspon den te do rei em 1533. Na verdade, o capito de Orm u z,
por exem plo, recebia de orden ado 600.000 ris an u ais. Mas, ao cabo de 3
an os, se fosse de s con scin cia, poderia retirar forros 20.000 000 ou
24.000.000 de ris, m ais de dez vezes o respectivo orden ado. E se qu isesse alargar a con scin cia, tin h a m u itas e gran des ocasies para retirar
m u ito m aior qu an tidade de din h eiro.14
Os h om en s am avam o din h eiro qu ase sobre todas as coisas m as o
Estado m ercador m an tin h a de qu aren ten a os m ercadores profission ais,
diariam en te am eaados n a vida e n a fazen da. Por ou tro lado, as ban dei-

72

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

ras ibricas, qu e on du lavam por u m a m on arqu ia u n iversal catlica, con su m iam boa parte da riqu eza. E vejam s. No scu lo XVI veio m ais prata
e ou ro das Am ricas do qu e a qu e tiveram todos os reis de Espan h a desde o tem po do rei Pelgio. Apesar disso, Carlos V qu ebrou em 1554, Filipe II em 1560, 1575, 1596 at qu e se acabou o crdito e n o h m em ria de u m cerro to rico em prata com o o de Potosi. Em su m a, o crdito
e as foras da con tratao sobrepu n h am -se ao poder das arm as.15

MEN TE MOVE-SE

A expan so eu ropia repercu tiu -se profu n dam en te n as m en talidades e n a ideologia. Mu davam -se os tem pos e as von tades, atropelavam -se os cdigos da m oral, m u davam -se as idias, m u dava-se a prpria m u dan a.
Os livros im pressos con stitu em u m a boa am ostragem da propagan da e do u n iverso m en tal das elites. No scu lo XVI pu blicaram -se em
Portu gal cerca de 1.904 ttu los. Os livros de dou trin a e relativos organ izao da Igreja som avam 651. Ju n tan do-lh es os livros de m oral e os qu e
serviam de m aterial para as au las, m ajoritariam en te de Direito Can n ico,
o n m ero su bia a 1.099. As pu blicaes relacion adas com os servios do
Estado e as de dou trin a civil ron davam os 278. A literatu ra som ava 139
ttu los, as biografias, h agiografias e oraes f n ebres 98, os livros de filosofia-teologia ficavam pelos 38, os de astron om ia, m atem tica com o repositrio dos tem pos 31, os relatrios de viagen s 23, os livros de qu estes
m dicas 18 e os relativos s artes e tcn icas 14.16
O peso da Igreja n o m u n do do livro esm agador e con trasta com
a escassez das obras n o terren o cien tfico e tcn ico. Na aridez dou trin ria
sobressaem n a literatu ra as obras m aiores de Cam es e Gil Vicen te e u m
tratado cien tfico de en orm e relevn cia terica, os Colquios dos Simples e
das Drogas de Garcia da Orta, pu blicados pela im pren sa de Goa.
A febre da riqu eza con som ia largos estratos da sociedade. Todos os
dias arriscavam a vida n o s pela sobrevivn cia m as pela bu sca de riqu ezas; todos os dias se exercitavam os diferen tes m odos da arte de fu rtar. O
din h eiro m edrava sobre o servio, com o escrevia ao rei D. Joo III, em
1533, o vigrio-geral da n dia: os qu e an dam a gan h ar din h eiro tm -n o e
levam m u ito boa vida e depois pedem as m ercs; e os qu e servem so pobres e pobres vivem . Tu do se com prava e ven dia at os cargos p blicos,
as viagen s, os soldos, os corpos.
A Igreja est m u ito preocu pada com a ortodoxia e com a riqu eza e
o poder dos m ercadores portu gu eses. No seu Tratado do Cmbio, o jesu ta
Fern o Rebelo defen de qu e n ada se receba, por pou co qu e seja, con ta

73

Antnio Borges Coelho

de em prstim o ou de dem ora em pagar, pois im plica o pecado m ortal da


u su ra. O pecado m an ch ava a prtica diria dos m ercadores e ban qu eiros
de qu e o rei era o prim eiro clien te.
O alto clero e os fidalgos preten diam reservar para si a direo da
sociedade e m esm o os qu e provin h am da esfera do din h eiro tin h am de
vestir o h bito de Cristo ou adqu irir as h on ras de fidalgo. No en tan to, os
poderosos do din h eiro ridicu larizavam a fidalgu ia dizen do qu e para obtla bastava u m a assin atu ra do rei. Algu n s com paravam van tajosam en te o
seu poder com o dos ou tros Estados.
Os h om en s qu e escreveram da n obreza em qu atro partes a repartiram . Os m ais ch egados pessoa e casa real. Os qu e m ilitam n a gu erra.
Os h om en s letrados e m ais cien tes. E os h om en s ricos. E se h ou verem de
dizer a verdade, todas as trs qu alidades de h om en s, com o n o sejam ricos em seu s n egcios, n o so estados segu ros n em letras segu ras; e pior
com fian as. E os m ercadores ricos em todas as partes do m u n do so estim ados porqu e so os m ais teis para a rep blica.17
Milh ares de portu gu eses em barcados n as n au s corriam por su a
con ta com o corsrios os m ares orien tais e desertavam colocan do-se ao
servio de reis m ou ros, in du s e ou tros orien tais, assu m in do cren as qu e
n egavam a gu a do batism o sem a secar da m en te. Por ou tro lado, pelas
portas de Goa, Coch im , Diu , Orm u z, Ceilo, Malaca, o Orien te en trava n o
vestu rio, n a cozin h a, n as idias, n o espetcu lo dos poder. In sin u ava-se
m esm o n o m ais profu n do do territrio eu ropeu .
Gil Vicen te apelava ao com bate con tra a osten tao. Mas, n a n dia
e em Lisboa, os qu e se tin h am em boa con ta j n o qu eriam an dar a p.
Fran cisco de Alm eida e Afon so de Albu qu erqu e n o h esitavam em m eter
m os con stru o das fortalezas ou a rem en dar o taboado dos n avios.
Mas olh em os o govern ador Nu n o da Cu n h a a desem barcar em Baaim n o
an o de 1531. Neste ritu al de poder, ju n tam -se a Eu ropa e a sia.
O govern ador ia arm ado em u m cossolete bran co dou rado por partes, e
seu gorjal de m alh a, e fralda, e em cim a u m a coira de cetim crem esim
com m u itos cortes, e n a cin ta u m a rica espada, e n a cabea u m gran de
ch apu de gu edelh a verm elh a, e n ele u m a gran de m edalh a de ou ro e pedraria m u i rica, e n ela u m a plu m a bran ca com argen taria de ou ro, e u m
rico colar de om bros de rocais esm altado, e calas in teiras, cortadas, forradas de crem esim , e sapatos fran ceses crem esin s com fitas en carn adas e
grossas pon tas de ou ro, e u m basto de pau dou rado n a m o esqu erda,
posto n o qu adril, qu e com tu do parecia form oso capito; e a cavalo em
u m a faca bran ca, com gu arn io de velu do preto fran jada de ou ro; e ju n to dele dois pagen s bem arm ados, qu e lh e levavam su a lan a, adarga, ca-

74

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

pacete, com o cu m pria; e dian te dele su a ban deira real de dam asco bran co e cru z de Cristo atrocelada de ou ro. 18

Nos prim eiros tem pos, o esprito da cavalaria perpassa em diferen tes episdios e relatos. Na con qu ista fracassada de Adem , Garcia de Sou sa escala a u m alto cu belo da m u ralh a e acaba por ficar cercado. Afon so
de Albu qu erqu e grita-lh e qu e desa e se salve pelas cordas qu e estavam
su spen sas do m u ro. Garcia de Sou sa respon deu : Sen h or, n o sou eu h om em para descer sen o com o su bi. E pois m e n o podeis valer se n o com
u m a corda, valh a-m e Deu s com seu favor qu e em lu gar estou para isso.19
Mas a n ova m en talidade explode n a Peregrinao de Fern o Men des Pin to e n ou tros passos n arrados pelos cron istas. Con su m ada a con qu ista de Baaim , Nu n o da Cu n h a sen tou -se sob u m a alpen drada dos
m ou ros receben do os lou vores da vitria. Algu n s com baten tes pediram lh e qu e os arm asse cavaleiros. E logo a m u rm u rao e a zom baria se espalh aram pelo arraial. Aqu eles pediam cavalaria n o pela exceln cia e o
perigo dos atos praticados m as para acrescen tam en to das m oradias. E
ch am avam -lh es cavaleiros de cru zado porqu e davam u m cru zado s
trom betas e ch aram elas qu e n o ato lh es tan giam .20
Um a ltim a n ota. A Reform a avan ava n o cen tro e n orte da Eu ropa m as em Portu gal n o teve base popu lar de apoio. A religio ju daica tin h a razes m u ito fu n das. E depois da con verso forada, a in fidelidade
h ebraica lavrava em su rdin a e atin gia m esm o cam adas de cristos-velh os.
E se algu m as idias dos reform ados com o a recu sa do cu lto dos san tos e
das im agen s, a n egao da con fisso con cordavam com as cren as ju daicas, os ju deu s de corao ou os qu e assu m iram as velh as cren as n as terras de exlio con tin u aram fiis ao Deu s n ico.
Por ou tro lado, para com preen der o n o alastram en to em Portu gal
da Reform a, tem os tam bm de ter em con ta a su a posio perifrica e a
alian a en tre o Papado e as m on arqu ias ibricas. As bu las pon tifcias garan tiam e sacralizavam a partilh a en tre os h ispn icos do m u n do recm descoberto. E en qu an to algu n s telogos, en tre eles o cristo-n ovo Diogo
Paiva de An drade, redefin iam a dou trin a da Igreja n o Con clio de Tren to,
ou tros, com o Joo de Barros, assu m iam a idia ju daica de povo eleito, en carn ada agora n o povo portu gu s. Deu s, em cu jo poder esto todos os
rein os e estados da terra ... tem olh o n aqu eles qu e vertem seu san gu e por
con fisso da su a f.
A partir de 1630, a In qu isio vigiava e reprim ia as idias con sideradas h erticas en qu an to a Un iversidade e os telogos defin iam o qu e era
para ter e crer. O espetcu lo catlico da f alim en tava-se em boa m edida
com os restos das cren as e o din h eiro dos cristos-n ovos. E o viver com
u m p n as cren as e cerim n ias catlicas e ou tro n o en con tro das idias

75

Antnio Borges Coelho

e dos ritos ju daicos, arrastou algu n s cristos-n ovos para o ceticism o e o


atesm o en qu an to Uriel da Costa proclam ava qu e o m elh or de todas as religies estava n a lei n atu ral. O seu Exemplo de Vida Humana m ostra-n os
com o abria cam in h o o desm o m odern o.

76

OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SCULOS XV-XVI)

N OTA S
1. JOO DE BARROS. sia. Dcada I. Lisboa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda, 1974.
p.214.
2. CORREIA, G. Lendas da ndia. Porto: Lello & Irm o, 1975. v.III, p.479.
3. FELNER, L. Subsdios para a Histria da ndia Portuguesa. Lisboa: Im pren sa Nacion al, 1868.
p.9.
4. Ibidem , p.26.
5. VARELA RUBIM, N. Artilh aria Naval dos Descobrim en tos. In : Dicionrio de Histria dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Crcu lo de Leitores, 1994. v.I, p.92.
6. FELNER, L., op. cit., p.9.
7. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.392.
8. Ibidem , v.I, p.936.
9. Ibidem , v.III, p.394.
10. JOO DE BARROS, Dcada II, p.232.
11. CORREIA, G., op. cit., v.II, p.251.
12. MARQUES, S. Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Ju n ta de In vestigaes Cien tficas do
Ultram ar, 1944. v.I, p.544.
13. AS GAVETAS DA TORRE DO TOMBO, Lisboa: Ju n ta de In vestigaes Cien tficas do Ultram ar, 1974. v.X, p.180.
14. LIVRO DAS FORTALEZAS. Lisboa: Centro de Estudos Histricos Ultramarinos, 1960. p.33.
15. GOMES SOLIS, D. Alegacion en favor de la Compaia de la India Oriental. Lisboa, 1955. p.58.
16. MACEDO, J. B. de Os lusadas e a Histria. Lisboa: Editorial Verbo, 1979. p. 50.
17. SOLIS, D. G. Discursos sobre los comercios de las dos Indias. Lisboa, 1943. p.100.
18. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.468.
19. JOO DE BARROS. Dcada II. p.351.
20. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.472 .

77

captu lo 5

SA BERES E PR TICA S D E CIN CIA


N O PORTUGA L D OS
D ESCOBRIMEN TOS
An tn io Au gu sto Marqu es de Alm eida*

A origem e o desen volvim en to das idias cien tficas qu e circu lavam


em Portu gal n o tem po dos Descobrim en tos tm alim en tado pgin as m u ito in teressan tes de h istoriografia e revelado excelen tes abordagen s qu e
n o raram en te resvalaram para a polm ica. O qu e n o adm ira, porqu e
esta discu sso trava-se n u m territrio com arm adilh as, on de a an acron ia
se im plan ta com arm as e bagagen s. Por este tem po a form ao dos con ceitos dem asiado frgil e a su a capacidade sem n tica perm an ece ain da pou co esclarecida. Em prim eiro lu gar a atitu de cien tfica ain da n o existe, e a
prpria palavra cin cia, existin do, n o tin h a o sen tido qu e h oje lh e atribu m os. Depois, perm an ece com o ten tao, qu an tas vezes assu m ida pelos
h istoriadores, a idia de qu e a progresso n o Atln tico e n a costa african a
resu ltou de u m ou vrios plan os estratgicos, o m ais clebre dos qu ais seria o plan o das n dias atribu do ao In fan te D. Hen riqu e.
Natu ralm en te com o reao a estas leitu ras existe n a h istoriografia
portu gu esa u m a tradio qu e n ega os n ovos saberes cien tficos organ izados sob a form a de projeto, o qu e levou j Vitorin o Magalh es Godin h o a
lem brar qu e os h om en s do Qu atrocen tos, e o m esm o se diria dos do scu lo segu in te, n o foram cien tistas; n em tam pou co os Descobrim en tos foram , pelo m en os n este dom n io, objeto de in vestigao ou sistem atizao
cien tfica, tal qu al h oje as podem os con ceber. Para Lu s de Albu qu erqu e
sem elh an te afirm ao con stitu iria u m an acron ism o absu rdo e por isso a
com bateu ten azm en te, em bora as teses qu e defen dem a existn cia da Escola de Sagres se en con trem de tal m an eira en raizadas qu e ain da n o foram ban idas, apesar de serem isso m esm o absu rdas e an acrn icas.
E no entanto, a sociedade portuguesa da segunda metade de Quatrocentos em diante passava por profundas transformaes culturais, cujos resultados no tardariam a provocar frutos. Em particular, de finais do sculo XV em diante, a criao do conhecimento novo transforma-se em sntese inovadora, s possvel pelo surgimento histrico de uma nova mentalidade. Moderna, sem dvida, e que s emergiu por fora das transformaes
operadas nas estruturas sociais e pela emerso de grupos que repartem entre si a melhor parte do aparelho produtivo em acelerado crescimento.

79

Antnio Augusto Marques de Almeida

A in ovao dos saberes n u m a sociedade com este perfil n o foi do


dom n io da epistme. Foi em prim eiro lu gar pon to de ch egada das qu estes
do cotidian o qu e h m u ito se en con travam sem resposta e, talvez por isso,
se acan ton ou em torn o do con h ecim en to em prico. A in ovao ocorreu
por etapas su cessivas dos saberes, e so form as de con h ecim en to pr-cien tfico, sobretu do qu an do se tem presen te (e com o seria possvel ign or-la?)
qu e a form ao da cin cia m odern a foi in iciada n o bero de ou ro do scu lo XVII eu ropeu , e qu e, por esta altu ra, ain da n o se en con travam dispon veis os u ten slios m en tais qu e torn ariam possvel a su a ecloso.
Este estdio pr-cientfico assume primacial importncia porque, con stitu in do-se com o sn tese crtica de legados tradicion ais, eviden cia o alargam en to da com preen so do m u n do real e prepara o h om em eu ropeu para
as descobertas cien tficas adven ien tes.
Por razes h istricas qu e caracaterizam a sociedade portu gu esa desta poca, a con stru o da cin cia em Portu gal apega-se lio tradicion al,
de tal m an eira forte e vin cu lativa, qu e obscu rece a in ovao m esm o con tra toda a evidn cia. So tem pos de con h ecim en to pr-cien tfico qu e prean u n ciam o alargam en to dos h orizon tes da com preen so do m u n do real,
m as sem u ltrapassar os qu adros im postos pela form u lao do olh ar em prico. Por isso m esm o, Lu s de Albu qu erqu e salien tava qu e s a experin cia do m ar fora origem do con h ecim en to dos portu gu eses.
An tes dele, dissera-o j Alberto Veiga-Sim es n os an os trin ta e, desde en to, a h istoriografia n o parou de o repetir. E, de fato, o m ar com o
espao de origin alidade da cu ltu ra cien tfica portu gu esa algo de sign ificativo da form ao da con scin cia social da com u n idade e do seu Leben welt. Um a tkhn adm iravelm en te u sada com o u ten slio para a passagem
do dado ao resu ltado, n u m tem po em qu e a descoberta de n ovas terras im plicou u m esforo desm edido de com preen so fen om en olgica e a reorgan izao do espao geogrfico exigiu profu n das m u dan as n as estru tu ras
m en tais dos eu ropeu s. O clcu lo das dim en ses terrestres, con soan te a tradio ptolom aica, progressivam en te su bstitu do por propostas aju stadas
s n ovas con cepes do real; os arcasm os e os erros so corrigidos, n o
sem qu e, por u m a razo ou por ou tra, o espan to se su ceda in credu lidade. O progresso dos saberes e, m ais tarde, a tran sform ao da in form ao
em con h ecim en to, ficou a dever-se ao xito do saber procu rar e aju star a
solu o. Provavelm en te, m ais a isso do qu e in form ao recepcion ada
m as, eviden tem en te, tam bm a ela...
A origem do conhecimento cientfico que serviu de pano de fundo
aos Descobrimentos provm de uma fonte comum a quase toda a cultura
europia. De fato, Escola de Tradutores de Toledo que, entre meados do
sculo XII e todo o sculo seguinte, se deve a formulao de algumas das
snteses do conhecimento antigo e indo-rabe de que os portugueses se ser-

80

SABERES E PRTICAS DE CINCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

viram. Assegurando a traduo dos textos rabes para latim e a sua consequente difuso, realizou, de uma maneira nica na histria da cultura europia, a passagem transcultural dos discursos cientficos da Antiguidade.
Esta fu n o de pon te en tre cu ltu ras aproxim ou Ptolom eu , Aristteles, Eu clides, Bocio, en tre ou tros e de to diferen tes origen s cu ltu rais
com o se v, da cu ltu ra crist, e perm itiu qu e n ela ocu passem por m u ito
tem po papel determ in an te.
A par da difu so levada a cabo pelos tradu tores de Toledo, ain da se
n o con h ece bem , em bora se adivin h e de prim eira im portn cia, o papel
das com u n idades sefarditas n a difu so da in form ao cien tfica da An tigu idade e in do-rabe. Mas, apesar de tu do, j sabem os m ais sobre a ao
exercida por elas n as tran sfern cias cu ltu rais da Escola de Tradu tores de
Toledo. Mas n o s; at fin ais do scu lo XV cabe-lh es parte sign ificativa n o
processo de difu so e m esm o de criao do saber em Portu gal em torn o da
n u tica e da cartografia e, por isso m esm o, papel de relevo n a form ao
das n ovas atitu des face ao con h ecim en to. Jos Vizin h o, Zacu to, Jcom e de
Maiorca, Cresqu es so estrelas de u m cu im perecvel.
O scu lo XV portu gu s foi tribu trio de todas estas fon tes, pois con h eceu in ten sa circu lao das su as idias, m as deve ter-se presen te qu e
este scu lo u m tem po m u ito especial n a con solidao da com u n idade
portu gu esa, qu er do pon to de vista da vida m aterial, qu er n os aspectos das
form aes m en tais e das m atrizes cu ltu rais qu e viriam a iden tificar a cu ltu ra en to em gestao. Sem d vida o aparecim en to da tipografia veio
acelerar de m ltiplas m an eiras essa circu lao, irritan tem en te restritiva,
n o tem po em qu e o su porte da in form ao era m an u scrito. O u so crescen te das lin gu agen s romance veio alargar, por seu lado, o u n iverso da recepo, acen tu an do a im plan tao das idias cien tficas n a tessitu ra social, e
pon do o con h ecim en to cien tfico ao servio dos gru pos sociais dom in an tes. No perodo pr-gu tem bergu ian o, circu lavam n a Pen n su la, e n atu ralm en te em Portu gal, verses latin as e at m esm o em vu lgar de Estrabo,
Pln io, Dioscrides, Pom pn io Mela, Eu clides, Bocio, Avicen a, Galen o,
Regiom on tan o, Sacrobosco e Abrao Zacu to, a par dos textos h ebraicos e
rabes de Ibn Ezra, Azarqu iel, Ibn Safar, Alfragan o (Ru dim en ta Astron om ica) e Messah ala. A Im ago Mu n di do Cardeal Pierre D'Ailly (c.-1410) circu lou em m an u scrito at ser editada em Lovain a en tre 1480 e 1483. m as
so pou co segu ras as provas de ter sido con h ecida em Portu gal, em bora
seja elevada a probabilidade de ter circu lado en tre n s.
J h m ais certezas qu an to verso latin a do Tratado da Esfera de
Sacrobosco, qu e corria a Eu ropa desde a segu n da m etade do scu lo XIII e
qu e circu lou n o Portu gal qu atrocen tista, con form e opin io de Lu s de Albu qu erqu e. Tam bm os estu dos de A. Moreira de S, segu n do in form ao
do m esm o au tor, com provam a circu lao de vrias obras de m atem tica

81

Antnio Augusto Marques de Almeida

e de astron om ia, em poca an terior fu n dao do Estu do Geral de Lisboa.


Um a Sphera Mundij de au tor n o m en cion ado, aparece rastreado n o testam en to de Mestre Gil, de Leiria, com data de 1257.
Gu y Beau jou an in ven tariou n o acervo qu e perten ceu livraria do
Colgio Viejo de San Bartolom eo, de Salam an ca, en tre ou tros, o Tratado da
Esfera de Sacrobosco e u m com en trio redigido por Roberto An gls; o Tratado do Quadrante deste ltim o; o Tratado do Astrolbio de Massah ala e ain da o Tratado do Quadrante Novo de Profatio.
O u so dos textos da Escola de Toledo e a circu lao das vrias cpias de
Eu clides, Alfragan o, a Theorica planetarum, os Libros del Saber de Astronomia, as
Tabuas alfonsies, baseadas fu n dam en talm en te n as de Azarqu iel, a par da im portn cia de Afon so X, foram esteios im portan tes da criao de u m a prtica
de saberes do scu lo XV e n a con solidao da cu ltu ra cien tfica portu gu esa.
No qu e prtica da m atem tica con cern e, o clim a m en tal era acan h ado, n o obstan te o esforo exigido pelas tarefas da n avegao e pelo
au m en to da com plexidade do trato com ercial. Adm itia-se, pois, o estu do das qu estes teis n avegao e, n este captu lo, o m ais im portan te
eram os con h ecim en tos de Cosm ografia, em qu e dom in avam a Teoria
dos Plan etas de Pu erbqu io, a par dos Elem en tos de Eu clides e da tradio de Sacrobosco. Alm disso, a h eran a de Bocio e a astrologia ju diciria predom in avam . Parece at ter sido esta ltim a a razo m ais forte
qu e ter levado o In fan te D. Hen riqu e a in teressar-se pela difu so dos estu dos de Aritm tica, in clu in do, com o se sabe, o estu do do Qu adriviu m
n a Un iversidade de Lisboa.
As dificu ldades de recepo qu e m u itas vezes desvirtu aram as idias
qu e restrin giram a su a circu lao e an u laram a su a eficcia in ovadora,
con stitu em apen as u m a das faces, e talvez n em se trate da m ais im portan te, das ten tativas dos gru pos sociais fazerem reverter a seu favor o poder
social qu e a in ovao cien tfica sem pre com porta. E a partir dos estu dos de
Joaqu im Barradas de Carvalh o sabem os com qu e xito esse desiderato foi
prossegu ido pelos estam en tos su periores da sociedade portu gu esa.1
Por volta de 1330, com o u so da n u m erao rabe, com eara em
Portu gal u m a len ta revolu o, ch am ada de aritm etizao do real, qu e viria a ter im portan tes reflexos n o desen volvim en to das m en talidades protom odern as. Tratan do-se de estru tu ras m en tais m arcadam en te an alticas
assu m iram , desde o in cio, u m protagon ism o qu e n o deixou pedra sobre
pedra o qu e restava das h eran as m edievais; estes saberes passaram do estdio de pou co m ais ou m en os, a u m a ou tra situ ao de saber, con h ecida
com o sen do o da preciso, com o lem brava Lu cien Febvre.
Fin alm en te, o rigor e a preciso organ izaram os n ovos olh ares sobre
o Mu n do, en qu an to a recepo desta in form ao se estru tu rava volta
dos m odelos paradigm ticos, os m ais im portan tes dos qu ais, e do pon to de

82

SABERES E PRTICAS DE CINCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

vista da su a aplicabilidade n a cu ltu ra portu gu esa qu atrocen tista, so o aristotlico, o eu clidian o, o ptolom aico e o boecian o. En tre os scu los XI e XII
segu ir-se-ia o paradigm a rabe e de m eados do scu lo XIII em dian te, e
caldeado com este ltim o, viria acrescen tar-lh e o m editerrn ico. Os qu atro prim eiros paradigm as com portam -se com o agen tes de tradio e de
con tin u idade cien tfica, in capazes de correspon der s solicitaes im postas
pelos n ovos din am ism os econ m icos e sociais; en qu an to os dois ltim os (o
rabe e o m editerrn ico) assu m em a fu n o in ovadora, qu an tas vezes
beira de u m a ru ptu ra qu e foi sen do adiada at eclodir a partir de fin ais do
scu lo XV. Estes n ovos paradigm as m atizam as n ovas idias e vo firm arse com o agen tes im prescin dveis das tran sform aes qu e esto em vias de
ocorrer n a cu ltu ra portu gu esa.
Mas tu do, ou qu ase tu do, se joga n o progressivo en fraqu ecim en to
do paradigm a aristotlico, fato qu e arrastou os ou tros paradigm as de resistn cia e facilitou a im plan tao dos n ovos m odelos in terpretativos. Com o
avan o para o scu lo XVI, e s portas da poca Modern a, toda a m edievalidade se afu n da, in exoravelm en te; a viso de Nicolau de Cu sa j n o in teiram en te con sen tn ea com a organ izao aristotlica. Freq en tem en te a
fora da in ovao rom peu barreiras, com o n o caso dos escritos de Du arte
Pach eco Pereira dos qu ais h n otcia de qu e em fin s de qu in h en tos u m a
cpia teria circu lado por Espan h a. Algo de sem elh an te, m as em m ais larga escala, ocorreu n a segu n da m etade do scu lo XVI com os Colquios de
Garcia de Orta qu e foram , ain da qu e em circu n stn cias pou co favorveis,
tradu zidos para latim e vertidos para italian o, fran cs e in gls, ten do tam bm con h ecido vasta circu lao em Espan h a. Mas toda a in ovao feita
de restos, e a prtica da cin cia in ova com os restos qu e sobraram de ou tros saberes e de ou tras prticas. Os h om en s tam bm n o podem rejeitar
as su as razes, as su as leitu ras, esqu ecer o qu e em tem pos das su as vidas
apren deram . Coprn ico perm an ece m u ito m ais agarrado m edievalidade
do qu e ao pen sam en to m odern o qu e, sem d vida, aju dou a con stru ir. Por
isso foram precisos Keppler e Galileu para qu e a m odern idade da su a obra
viesse ao de cim a e desem pen h asse o papel cim eiro de agen te tran sform ador das vises do m u n do.
O len to processo da m odern izao estava, pois, em m arch a e o jogo
din m ico da oposio-in ovao ia recru descer n o vrtice dos paradigm as
baseados em Coprn ico, Kepler e Galileu , os qu ais, com m aior ou m en or
eficcia, serviriam de pean h a m on u m en talidade cartesian a e n ewton ian a qu e se lh es segu iria.
No por acaso qu e, pelo m en os n a aritm etizao de u m a certa realidade, o papel in ovador foi con du zido pelos paradigm as rabico e m editerrn ico, pois foram os m atem ticos rabes, desde o scu lo XII, e os m a-

83

Antnio Augusto Marques de Almeida

tem ticos italian os, desde o trecen to e du ran te as du as cen t rias segu in tes, qu e in ovaram a aritm tica. E sabem os com o isso foi im portan te pelas
fu n das con seq n cias qu e as leitu ras dos seu s trabalh os viriam a ter n a
form ao das m en talidades do h om em m odern o.
No foi in diferen te ao desen volvim en to deste processo a espan tosa
capacidade qu e a aritm tica con tm em si prpria, com o u ten silagem de
leitu ra de m u ltivariadas in ter-relaes qu e povoavam o cotidian o dos in divdu os, dos gru pos sociais, desde tem pos im em oriais do viver em sociedade. E ain da m ais: se tiverm os em lin h a de con ta o au m en to da com plexidade provocada pela teia destas n u m erosas in ter-relaes, n o m om en to
da irru po do capitalism o m ercan til, en con tram os talvez, o prin cpio da
explicao do papel fu n dam en tal desem pen h ado pela aritm tica n o processo bsico da m odern idade qu e a aritm etizao do real. A Aritm tica
assu m iu -se com o u m a u ten silagem de leitu ra da realidade e correspon deu , de form a cabal, s n ecessidades e s sen sibilidades em ergen tes das
n ovas m en talidades, tam bm elas a despon tar, m ergu lh an do razes n a
con ta, peso e m edida.2 Nestas circu n stn cias n o de estran h ar qu e viesse a tran sform ar-se n u m u ten slio de dom n io e n u m in stru m en to de poder, ao servio de gru pos profission ais ou con frarias de in teresses com o os
estu dos de Joaqu im Barradas de Carvalh o com provam para o Portu gal
qu atrocen tista e a h istria das com u n as italian as to exem plarm en te docu m en ta para a gen eralidade da Eu ropa do Su l.
E, todavia, este processo bem fam iliar aos h istoriadores: em toda
a h istria do pen sam en to cien tfico n o se con h ece u m n ico caso de n ascim en to espon tn eo da in ovao e os seu s legados, com o idias sociais qu e
so, difu n dem -se sob a form a de paradigm as, tran sform an do-se em h eran as, cu ja recepo sofre aju stam en tos cu ltu rais, m odelados pelas n ecessidades prticas. Em bora a velocidade de circu lao das idias cien tficas seja
desigu al de poca para poca, e at den tro da m esm a con ju n tu ra sofra desvios acen tu ados, torn a-se m u ito difcil segu ir a su a trajetria e saber, a
cada m om en to, de on de e para on de elas vo.
Tem sido afirm ado, vezes sem con ta, qu e a form ao do m u n do m odern o foi m arcada pela descon tin u idade, com h iatos e ru ptu ras, algu m as
at de difcil en ten dim en to. Sem d vida a h istria da circu lao das idias
cien tficas apresen ta u m desen volvim en to descon tn u o qu e n o su rpreen de o h istoriador por dem ais afeito s assim etrias do desevolvim en to dos
discu rsos cien tficos e sobretu do aos u sos qu e deles se fizeram . Mas im porta ter presen te qu e o scu lo XV assistiu a algu m as das m ais im portan tes
tran sform aes das m en talidades e, de en tre estas, a passagem do con h ecim en to im ediato ao m ediato n o foi, certam en te, a m en or.
Qu ais fossem essas idias cien tficas e os din am ism os qu e as tran sform aram , ign oram o-los em gran de parte. Todavia, as n ovas atitu des
an u n ciam m u dan as profu n das face apreen so da realidade. "Eu n o te-

84

SABERES E PRTICAS DE CINCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

n h o dio sen o aos errores; n em ten h o am or sen o verdade" proclam a Orta qu e, em ou tro passo dos Colquios afirm a: "Eu trabalh ei de o saber e sou be-o. Errar dizer o qu e n o ". Nou tra passagem : "No m e con tradigam textos de au tores aqu ilo qu e eu vi com os m eu s olh os". Nesta atitu de radica-se u m a n ova viso do m u n do, e por ela, qu e an tes de m ais
n ada tradu z u m a m u dan a de m en talidade, passa a in ovao, se n o toda,
pelo m en os aprecivel parte dela.
tem po de regressarm os ao Mar, e ao con vvio de Veiga Sim es e
de Lu s de Albu qu erqu e. Ao Mar qu e foi, segu n do su as vozes, o espao de
on de tu do partiu e a fon te prim eva do n osso con h ecim en to e da n ossa
agregao com u n itria. Este tipo de con h ecim en to, qu e con du ziu do con h ecim en to em prico, desen volveu -se n a prtica das n avegaes. No dealbar dos descobrim en tos o con h ecim en to tradicion al form ado por u m a
con flu n cia de saberes, m u itas vezes an tagn icos, con traditrios sem pre,
m as qu e form am u m a h istria in telectu al, feita de idias e de sen sibilidades coletivas qu e defin em u m a viso do m u n do. Viso essa qu e gan h a sen tido en qu an to estru tu ra m en tal socialm en te aceita, n o seio da qu al se form am as represen taes do m u n do n atu ral e do m u n do das relaes dos
h om en s. Mais do qu e a viso, a con scin cia dessa m esm a viso qu e, sen do in delevelm en te m arcada pelo tem po, d h istoricidade con scin cia,
pois a n oo de h istoricidade im plica a con scin cia h istrica da h istria. E
volta da con scin cia h istrica qu e se organ izam os con ju n tos m ltiplos
da viso do m u n do. E foi n o m bito deste Leben welt qu e se criaram as form as de pen sar e de im agin ar o Mu n do, to caractersticas da cu ltu ra portu gu esa n a au rora dos tem pos m odern os. E este estar n o Mu n do e pen sar
n ele foi o receptcu lo de idias, de livros, de escritas, de textos qu e vieram
de fora e qu e foram lidos, refletidos, acim a de tu do experien ciados por esta
cu ltu ra n ica do Mar e dos lon ges vistos dos cestos das gveas.
Um a ltim a palavra para a form ao da lin gu agem cien tfica u m a
ou tra qu esto in teressan te, e n ela tiveram papel de relevo os textos de au tores estran geiros qu e en tre n s circu laram . Estes textos estiveram n a origem do lxico cien tfico da ln gu a portu gu esa. Difcil com eo pois, com o
se sabe, estes discu rsos n o prim avam pela objetividade sem n tica. Em
prim eiro lu gar u m a exign cia deste tipo era n u la, e depois a con ceptu alizao dos term os ain da n o se tin h a im posto com o u ten silagem n ecessria estru tu rao da discu rsividade cien tfica. E todavia estam os n u m m om en to de viragem em qu e as ln gu as vern cu las, aju dadas pela im pren sa
tipogrfica, com eam a veicu lar a in form ao dos saberes e, por toda a
parte, vo rasgan do o casu lo do latim . Mas, com o todos os elem en tos de
resistn cia in eren tes ao processo de tran sform ao, tam bm ele se acan ton a e persiste com o form a privilegiada de tran sm isso dos saberes n as esfe-

85

Antnio Augusto Marques de Almeida

ras cu ltas da sociedade, particu larm en te n os dom n ios in stitu cion ais, qu er
da Igreja qu er do Estado, este ltim o acabado de su rgir n a cen a in ter-relacion al dos h om en s.3
O aparecimento de tradues das obras que corriam impressas em latim ou em lnguas estrangeiras para a lngua portuguesa teria sido da maior
utilidade, e em muito teriam ajudado formao da linguagem cientfica;
mas por razes bem conhecidas, tal no aconteceu. E no h dvida que os
escritos importantes desde a dobragem do milnio, e depois os textos dos
tradutores de Toledo corriam, como vimos, em Portugal. Esta circulao
bem conhecida. Veja-se um caso exemplar, na primeira metade do sculo
XVI: a verso latina de Sacrobosco, j conhecida no ltimo quartel de quatrocentos, e que prestou excelentes servios pelos variados comentrios que
suscitou e pelas inmeras leituras que se adivinham. Esta verso era, portanto, anterior edio dos Guias nuticos quinhentistas, at que em 1537
Pedro Nunes publicou o seu Tratado da Esfera.4 Deve-se tambm ao seu labor a traduo na mesma altura da Terica do Sol e da Lua, de Puerbquio e
do livro primeiro da Geografia de Ptolomeu. Igual sorte no teve um outro
texto importante, os Elementos de Euclides, apesar de terem exercido influncia hegemnica durante todo este perodo, pois a verso portuguesa
s viria a ser publicada em 1768, para uso dos alunos do Colgio dos Nobres e em traduo de Giovani Angelo Bruneli.5
Mesm o n o plan o da form ao das lin gu agen s m ais h erm ticas, ou
tidas com o tal, caso da Aritm tica ou da Matem tica, m u ito distan te ain da das propostas con ven cion adas de Vieta, as in dicaes algortm icas eram
descritas, o qu e torn ava os sistem as operatrios fran cam en te in operan tes.
No adm ira pois qu e o lxico u sado por Gaspar Nicols siga m u ito de perto o de Paccioli, sen do in desm en tvel a leitu ra qu e fez da obra do fran ciscan o. A Summa de Arithmetica era con h ecida em Portu gal e m u ito divu lgada como atestam, ain da h oje, os exemplares dispon veis da edio de 1494,
existen tes n as bibliotecas portu gu esas.
Tambm aqui, na fixao de um quadro semntico, Pedro Nunes desempenhou papel de relevo, no s pela sua traduo de textos antigos na
verdade em grande parte tratava-se at de uma reescrita desses textos mas
igualmente pelo esforo de atribuio semntica, pelo menos no domnio
da matemtica. Pedro Nunes conhecia porque os lera Luca Paccioli,
Tartaglia e Cardano. Cita-os e comenta-os mas no era o nico, pois j antes dele o frade italiano merecera leitura atenta a um outro autor, Gaspar
Nicols, que publicara em Lisboa e em 1519 uma Practica darismetica que
contm abundantes referncias a Paccioli. Mas as leituras de Pedro Nunes
so mais extensas e profundas. Nada do que era importante no discurso do
frade italiano foi desprezado, particularmente o uso da regla da cosa, ou
seja, das propostas algbricas. A seu tempo, e a propsito dos atrasos veri-

86

SABERES E PRTICAS DE CINCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

ficados nos estudos de lgebra em Portugal, face ao uso persistente das solues aritmticas para a soluo dos problemas, Pedro Nunes seria inclemente na formulao do seu juzo, atribuindo a Paccioli, justamente pela
sua grande difuso, a responsabilidade desse fato. Mas no me parece assistir-lhe razo; o atraso existia, mas devia-se a outros fatores, e diferentes
eram as razes que contriburam para que tal atraso se verificasse. E digase que tal situao nem era especfica de Portugal, pois por toda a Europa
a situao tinha algo de semelhante. Talvez a chave da explicao possa encontrar-se nas dificuldades surgidas no plano da recepo dos textos italianos e, conseqentemente, na formao do lxico cientfico quinhentista,
esse sim, considervel, mas ainda no irremediavelmente atrasado.
Para os h om en s do qu atrocen tos fin issecu lar o m u n do estava a m u dar com u m a evidn cia n u n ca vista e ao m esm o tem po a au toridade dos
An tigos com eava a ser posta em cau sa com o an tes n u n ca acon tecera. E
n o en tan to, o h orizon te con tin u ava cerrado; a Terra j n o era ptolom aica m as ain da n o era ou tra coisa e o Cu escon dia, por detrs do vu da
astrologia ju diciria, m u itos dos seu s segredos. Qu an do se pem os ps
n u m a terra qu e, afin al, n en h u m m apa n em n en h u m saber con sagrado au torizava estar ali, a perplexidade (su pon h o ser esta a palavra exata) torn ase com pan h eira de todos os dias. No foi preciso m u ito para o copo da in qu ietao tran sbordar. O h om em qu e in terroga o m u n do e ten ta in terpret-lo, n u m tem po an terior galxia cartesian a, con fin ado com o estava
m atriz da su a prpria experin cia, con stitu i-se prision eiro de si prprio. A
libertao das an tigas servides, qu e su jeitaram os saberes e os agrilh oaram au toridade dos An tigos, foi dolorosa e a resposta aos desafios do viver cotidian o foi con solidada com o con h ecim en to em prico. A circu lao
do livro im presso viera, en tretan to, acelerar a tran sfern cia dos n ovos saberes qu e, in felizm en te, n u n ca se elevaram , en tre n s, ao dom n io da form u lao terica. E poderia ter sido de ou tra m an eira?
A essa altu ra, o m u n do j se alterara decisivam en te; literalm en te, j
era ou tro. Os paradigm as qu e fizeram a m edievalidade resistiam ain da n o
casu lo do m gico-an im ism o qu e viria a caracterizar algu m as das fases do
Ren ascim en to. Mas os seu s dias estavam con tados. Os rseos dedos da Razo clareavam j a n oite m edieval.

87

Antnio Augusto Marques de Almeida

N OTA S
1. Cf. CARVALHO, J. B. de. A m en talidade, o tem po e os gru pos sociais. (Um exem plo portu gu s da poca das Descobertas: Gom es Ean es de Zu rara e Valen tim Fern an des). Revista de
Histria, So Pau lo, an o IV, p.37-68, ju l.-set., 1953.
2. MARQUES DE ALMEIDA, A. A. Aritmtica como descrio do real (1519-1679). Con tribu tos
para a form ao da m en talidade m odern a em Portu gal. Lisboa: Im pren sa Nacion al Casa da
Moeda, 1994.
3. Sobre este assu n to, leia-se CARVALHO, R. de O u so da ln gu a latin a n a redao dos textos cien tficos portu gu eses. In : Memrias da Academia das Cincias de Lisboa (Classe de Letras). Lisboa: Academ ia das Cin cias de Lisboa, 1988. t.XXIX, p.309-37.
4. ALBUQUERQUE, L. de Sobre u m m an u scrito qu atrocen tista do Tratado da Esfera de Sacrobosco. Revista da Faculdade de Cincias da Universidade de Coimbra. Coim bra, t.XXVIII,
p.142-76, 1959.
5. Segu iu -se logo ou tra edio em 1774. Este texto foi tradu zido desde o scu lo XVI para as
ln gu as eu ropias: italian a em 1543; alem em 1562; fran cesa em 1564; e a verso in glesa
em 1570.

88

captu lo 6

OS BEN S ECLESI STICOS N A


POCA MOD ERN A . BEN EFCIOS,
PA D ROA D OS E COMEN D A S
An tn io Man u el Hespan h a*
Nen h u m h istoriador ign ora a im portn cia qu e tin h am , n a sociedade m odern a, os ben s eclesisticos, in clu in do aqu i tan to os ben s im veis,
com o coisas m ais im ateriais com o ben efcios e preben das. No apen as por
se tratar de u m a m ole im en sa de recu rsos, com o pelo fato de se en con trarem distribu dos, sob m ltiplas form as, por toda a sociedade.
Mesm o n a poca, o regim e dos ben s eclesisticos era m u ito com plicado. Isso explica tan to qu an to a apetn cia por eles e os con flitos qu e isso
provocava a qu an tidade de litgios existen tes acerca deles e, portan to, a
abu n dn cia e com plexidade da dou trin a ju rdica sobre o assu n to.
O regim e dos ben efcios, dos padroados e das com en das era dos
m ais discu tidos n o foro, pois dizia respeito a in stitu ies cen trais de redistribu io dos ren dim en tos da Igreja.
No texto qu e se segu e, procu rarei sistem atizar e esclarecer esse regim e, ilu stran do-o com algu n s casos extrados de colees de ju rispru dn cia da poca.

B EN EFCIOS, PA D ROA D OS E COMEN D A S.

REGIME IN STITUCION A L

De acordo com a tradio qu e corre n a poca m odern a, o sistem a


ben eficial teria sido in trodu zido n a alta Idade Mdia. Nos tem pos prim itivos, os eclesisticos (tal com o os pobres) teriam sido su sten tados diretam en te pelos fiis. No scu lo V, o Papa S. Sim plcio (an o 467) teria dividido os ben s eclesisticos em qu atro m assas: u m a destin ada aos bispos, ou tra aos clrigos, ou tra aos pobres e ou tra, fin alm en te, s despesas de cu lto
(fbrica da Igreja). A partir da, os clrigos com eam a ser su sten tados
pela atribu io, em prin cpio pelos bispos, de ben s da Igreja, de cu jos ren dim en tos possam viver decen tem en te. Esta atribu io teria sido feita ou
qu ase cotidian am en te de alim en tos, m edida das n ecessidades con cretas
do clrigo (annonnae, praebendae, de praebeo, apresen tar; esta design ao
era atribu da aos alim en tos dados aos soldados1), ou por con cesses precrias de ben s, a qu e se passou a ch am ar benefcio.2

89

Antnio Manuel Hespanha

A origem do m odelo do ben efcio est n o direito rom an o tardio, qu e


u tilizava a design ao para referir a atribu io de ben s qu elas qu e se distin gu iam n a gu erra, qu er com o prm io qu er com o in cen tivo para feitos
fu tu ros (cf. C. 11, 59). In teressan te , n este m om en to, destacar o carter
gratu ito e ben evolen te do ben efcio, o qu e o distin gu ia de qu alqu er pagam en to m ercen rio (beneficium est benevola actio gaudium vel honorem tribuens
capienti, Sen eca, De benef., 1).3 Isto fazia com qu e o ben eficiado ficasse ligado ao con ceden te por u m a relao de gratido e fidelidade qu e lh e vedava, n om eadam en te, a prtica de atos qu e en volvessem desrespeito, com o
con trariar a palavra ju rada do con ceden te ou depor con tra ele (Am aral,
1610, Ben eficiu m , n . 54).
Mas, apesar desta com pon en te de precariedade e liberalidade da
con cesso, a ten dn cia teria sido a de en ten der progressivam en te esta atribu io de ren dim en tos com o u m direito patrim on ial do tipo do u su fru to,
doravan te in tegrado perpetu am en te n o patrim n io do ben eficiado e, assim , por ele dispon vel com o coisa patrim on ial.
Nos fin ais da poca m odern a, qu an do j m u ito forte a reao da
opin io p blica con tra esta progressiva patrim on ializao das ren das dos
eclesisticos, a dou trin a in sistir n o carter por assim dizer p blico da obrigao de su sten tar os clrigos. Su sten tao essa qu e, n o poden do j com petir diretam en te com u n idade, com o n os tem pos prim itivos, deveria estar a cargo do soberan o.4
Seja com o for, an tes de o ilu m in ism o e, m ais tarde, o liberalism o terem re-im agin ado u m sistem a n ovo de retribu io dos eclesisticos, o su sten to destes estava baseado n esta con cesso qu ase patrim on ial de ren das,
a qu e se ch am ou ben efcio.
De acordo com u m a defin io com u m , o ben efcio u m direito perptu o, atribu do por u m a au toridade eclesistica, de receber fru tos de certos ben s da Igreja, em virtu de de u m m in istrio (ou ofcio) sagrado, ao
qu al foram con sign ados ou an exados.
A perpetu idade do ben efcio reside n o fato de, tan to a con cesso dos
ofcio com o a dos ben efcios ser feita sem qu alqu er lim itao tem poral e
de form a firm e, n o poden do ser retirada arbitrariam en te. Por isso qu e
as con cesses tem porrias (v.g., en qu an to n o se der o provim en to defin itivo com o n as vigararias, qu e so adm in istraes tem porais de ben efcios,
ou en qu an to o ofcio carecer de certa proteo, com o n as comendas) n o
so, rigorosam en te, ben efcios. Com o n o o so os ofcios livrem en te reassu m veis pelos con ceden tes (com o os ofcios dos regu lares de orden s m on sticas, tam bm ch am ados manuais ou obedenciais, ju stam en te porqu e
est n a m o do con ceden te d-los ou tir-los livrem en te, ou os ofcios m eram en te delegados, com o os dos legados papais).5
A dou trin a da poca apresen tava dos ben efcios diversas classificaes, algu m as delas pren h es de con seq n cias in stitu cion ais.

90

OS BENS ECLESISTICOS NA POCA MODERNA. BENEFCIOS, PADROADOS E COMENDAS

Os ben efcios podiam ser eletivos, providos por eleio can n ica, ou
colativos, providos por sim ples doao ou colao. Maiores (com o os de
papa, arcebispos, bispos, abades) ou m en ores (os restan tes). Cu rados, se
in clu am a cu ra de alm as (adm in istrar sacram en tos e difu n dir a palavra de
Deu s, exercer a ju risdio espiritu al), ou n o cu rados, se n o a in clu am (o
qu e se presu m ia). Regu lares, atribu dos a m em bros de u m a ordem ou regra m on stica, obrigan do a u m a m ais estrita obedin cia ao su perior e livrem en te depen den tes, qu an to s fu n es e qu an to ao perodo de con cesso, do arbtrio deste,6 secu lares, se atribu dos a clrigos regu lares, n o su jeitos a regra e m ilitan do n o scu lo (o qu e se presu m ia). Fam iliares, se o
seu provim en to tem qu e se verificar n o seio de certa fam lia, ou n o fam iliares, n o caso con trrio.7
O provim en to dos ben efcios era levado a cabo, n as m ais im portan tes dign idades eclesisticas (ecclesiae viduae: bispos e abades de orden s), por
eleio can n ica, i.e., respeitadas as n orm as do direito can n ico, n om eadam en te qu an to form a de efetu ar a eleio e qu an to aos requ isitos do
eleito 8), a efetu ar den tro dos trs m eses segu in tes vacatu ra. A eleio podia ser su bstitu da por u m a escolh a (compromissum) por u m gru po m ais
restrito de eleitores (com prom issrios) ou pela n om eao pelo titu lar do
poder secu lar, com o acon tecia, para os bispos, em Portu gal. Devia ser con firm ada pelo titu lar do direito de n om ear o ofcio.
Nos restan tes ofcios, o provim en to era feito por n om eao (ou colao), por via de regra, episcopal. Apesar de o Papa ser, com o vigrio de Cristo, o titu lar n atu ral do provim en to dos ofcios da Igreja, os bispos teriam adqu irido, com o decu rso do tem po, u m a expectativa ju rdica (fundata intentio) de os poder con ceder, em bora isto n o preju dicasse os direitos papais
(Fragoso, 1642, II, 655, n . 2/ 5). Da qu e, em bora ordin ariam en te cou besse
aos bispos a con cesso dos ofcios, este direito estava lim itado pelos direitos
cu m u lativos de colao qu e com petiam ao Papa. Assim , este era titu lar de
u m a reserva geral qu e lh e perm itia prover os ben efcios qu e vagassem em
certos m eses (m eses m pares) ou qu e vagassem n a c ria.9 Para alm de
even tu ais reservas especiais, n o caso de certos ben efcios (Gm ein eiri, X., X.,
1835, II, 127).10 Alm de qu e o papa, com o vigrio de Cristo e u san do de
seu poder absolu to, podia prover qu alqu er ben efcio, em qu alqu er circu n stn cia e m s, com o tam bm podia privar dele o ben eficiado.11
Por ou tro lado, o direito de provim en to dos bispos podia estar ain da lim itado por direitos de apresen tao (i.e., de proposta de n om es) qu e
com petissem aos even tu ais patron os do ben efcio, n os term os do direito de
padroado (v. infra).
O direito de padroado 12 qu e com petia a qu em tivesse fu n dado ou
dotado su bstan cialm en te u m a igreja (jus patronatus est jus honorificum, onerosum, & utile, alicui competens in ecclesia, pro eo, quo de diocesani consensu eccle-

91

Antnio Manuel Hespanha

siam contraxit, fundavit vel donavit, Am aral, 1610, n . 1) in clu a, en tre ou tras coisas o direito de apresen tar pessoa idn ea para u m ben efcio vago.
Em bora a prtica an terior fosse diferen te e m ais perm issiva, o Con clio de Tren to procu rou restrin gir o direito de padroado, lim itan do a su a
con cesso aos casos de fu n dao ou dotao su bstan cial de u m a igreja ou
capela. Em todo o caso, con tin u a a adm itir-se, em bora relu tan tem en te,
qu e o papa, u san do do seu poder absolu to (i.e., su perior ao direito), pu desse con ceder padroados (de vi potestatis de camera) a qu em n o tivesse
fu n dado igrejas (Gm ein eiri, X., 1835, p.139). Sim u ltan eam en te, estabelecem -se con dies m ais rigorosas para a prova do direito de padroado, exigin do docu m en to au tn tico ou posse im em orial, com n ica ressalva dos
padroados im periais ou rgios, para os qu ais se con tin u avam a adm itir todas as provas adm itidas em direito.13
Alm do direito de apresen tao, o direito de padroado in clu a, desde logo, o direito de pedir alim en tos, por fora das ren das do ben efcio, n o
caso de pobreza; m as a avaliao da su a pobreza depen dia da qu alidade
do patron o. Em bora o Con clio de Tren to (scu lo XXII, de reform at., cap.
u lt.) ten h a n a seq n cia de determ in aes can n icas an teriores (cf. Decr.
Greg. IX, cap. extirpandae, III, 5, 30) proibido term in an tem en te os patron os de se in trom eteram n a percepo dos fru tos do ben efcio, a dou trin a
segu e adm itin do, m esm o n os fin ais do scu lo XVIII, qu e os patron os podem receber censos nos limites da igreja fundada (cf. Gmeineiri, X., 1835, II,
p.138, 160). No plan o sim blico, os patron os tm direito a lu gares de
destaqu e n a igreja, n o coro e n as procisses (ibidem .).
Estes direitos obrigam o patron o cu ra, in speo e defesa da igreja,
para qu e esta n o seja preju dicada n os seu s direitos. Em sn tese, costu m ava recitar-se o segu in te brocardo:
Patronos debetur honos, onus, utilitasque;
Praesentet, praesit, defendat, alatur egenus
(Deve-se ao patron o a h on ra, o n u s e a u tilidade; Apresen te, presida, defen da e seja alim en tado n a m isria).
Neste brocardo, destacam-se as caractersticas fundamentais do sistema de direitos e deveres includos no padroado. Ou seja, o seu carter honorfico, oneroso e utilitrio. Honorfico, pois encerra certas honras, como
a de apresentar o titular do benefcio (normalmente o reitor ou capelo da
Igreja), a de ter a precedncia nos atos de culto (como as procisses, os ofcios, a beno etc.), a de ter direito a preces, a cadeira especial na Igreja ou
no coro, a ter sepultura em lugar de destaque, etc. (Osrio, 1736, res. I, n.
7-11). Oneroso, porque sobre o patrono recai o nus de defender a igreja
ou capela do seu padroado e de impedir que os seus bens se dilapidem (n.
12). Utilitrio, pois o patrono, sua mulher e famlia tm direito a ser socorridos pelos rendimentos da Igreja se carem na misria (n. 14).
Os padroados podiam com petir a m u itas en tidades. Desde com u n idades paroqu iais ou poderosos locais a en tidades eclesisticas (com o ss ou

92

OS BENS ECLESISTICOS NA POCA MODERNA. BENEFCIOS, PADROADOS E COMENDAS

cabidos). A distin o en tre padroados leigos e eclesisticos era a m ais im portan te, decorren do da origem dos ren dim en tos com os qu ais se tin h a
con stru do ou dotado da igreja ou da von tade do in stitu idor leigo n o sen tido de ser padroeiro o prprio abade da igreja (Cabedo, 1602, n . 11) e era
relevan te de diversos pon tos de vista. No apen as qu an do aos prazos de
apresen tao (6 m eses n os eclesisticos; 4 m eses n os leigos; em am bos os
casos, sob pen a de devolu o ao su perior, se n o exercido a tem po), m as
tam bm n o m odo de fazer a apresen tao. Nos eclesisticos, o con cu rso
en tre os con corren tes era de regra, estan do dispen sado n os leigos. Estes ltim os, por su a vez, tin h am regras m en os estritas qu an to idon eidade do
apresen tado (n o tin h am qu e abrir con cu rso, bastava escolh er dign o, m as
n o o m ais dign o) e qu an to su a design ao con creta, pois, an tes da con firm ao do apresen tado, podiam m u dar a escolh a (Decr. Greg. IX, III, 38,
24 e 29; Gm ein eiri, X., 1835, II, p.140, 163).
Os padroados tran sm itiam -se, desde logo, por su cesso. Neste plan o, n o se afastam do direito su cessrio n orm al, n o exigin do, design adam en te, m ascu lin idade ou progen itu ra. So in clu sivam en te divisveis,
qu an to aos direitos de percepo de ren das. Natu ralm en te qu e a apresen tao, em si m esm a, in divisvel. Mas, sen do vrios os h erdeiros titu lares
do direito de padroado, eles podiam com bin ar en tre si u m a form a de gerir o direito de apresen tar (por exem plo, por eleio en tre os co-titu lares
ou , o qu e era m ais freq en te, pelo exerccio altern ado) (Gm ein eiri, X.,
1835, II, p.145, 177). Algu n s, podem ser gen tilcios ou fam iliares, n o
poden do sair de certa fam lia (Am aral, 1610, n ota p.695 col. 1). O patron o pode doar o padroado igreja de qu e patron o qu e, assim , fica padroeira de si m esm a (Am aral, 1610, n . 30).
Para os que consideravam que o padroado era algo de meramente
temporal, este podia mesmo ser vendido, sem perigo de simonia.14 Outros
exigiam que o patronato estivesse anexo a uma universalidade de bens de
natureza temporal, para poder ser assim transacionado; porque em si mesmo, considerado como prerrogativa de apresentar ofcio eclesistico ou de
obter honras numa igreja, seria um direito espiritual (Amaral, 1610, n. 5).
No sen tido de m an ter os ofcios e ben efcios livres para serem con cedidos, n o m om en to da vacatu ra, estava proibida a prom essa de con cesso de ofcios n o vagos (cartas de expectativas). O Con clio de Tren to (sess.
24, de reform., cap. 19) ain da su blin h ou esta proibio, n o m bito de u m a
poltica de am pliao da liberdade de colao qu e in clu a tam bm a in trodu o de restries aos direitos de padroado (v. infra).
O sistem a ben eficial baseava-se, com o se viu , n a con ju n o en tre
u m ofcio ou fu n o eclesistica, com a correspon den te atribu io de poderes ou ju risdies, e u m ben efcio ou ren da.
No plan o dos poderes con feridos pelos ben efcios, por vezes eles
correspon diam a u m a certa prim azia ou preem in n cia ju risdicion al, n o-

93

Antnio Manuel Hespanha

m eadam en te n os atos lit rgicos ou capitu lares ("n o coro ou n o captu lo");
falava-se, n estes casos, de u m a dignidade. Em con trapartida, se esta prim azia era m eram en te h on orfica, n o com portan do qu alqu er ju risdio (i.e.,
n o se u n in do a qu alqu er ofcio, com o u m lu gar h on orfico n o coro, procisses ou su frgios), falava-se de u m a sim ples pessoa (personatus). No caso
de esta prim azia se lim itar percepo de u m ren dim en to, falava-se de
u m a prebenda ou conezia.15 Fin alm en te, se os poderes con feridos fossem de
m era adm in istrao, sem ju risdio ou dign idade, com o n o caso dos sacristes ou porteiros, cu stdios, tratava-se de u m mero ofcio.
Neste m odelo adm in istrativo, ao desem pen h o de u m a fu n o correspon dia sem pre a percepo de u m a ren da, de u m "ben efcio". Na verdade, os ofcios eclesisticos n u n ca so con feridos sem ren das (sem titulum [ou cau sa de possu ir]). A razo seria tan to a ju stia ( ju sto qu e
qu em vive para o altar, viva tambm do altar, Vallensis, 1632, l. 3, tt. 5,
1, n. 5) com o a n ecessidade de evitar qu e su rjam clrigos vagos e acfalos (Teles, 1693, p.116, n . 13).16 Apesar de paradoxal com a lgica in icial do in stitu to, a situ ao in versa de existirem ben efcios sem a correspon den te fu n o podia verificar-se, n om eadam en te por se ter en tretan to
extin to, perm an ecen do a titu laridade dos ren dim en tos. Assim , ofcio e benefcio passam a con stitu ir sin n im os, design an do a m esm a coisa, em bora
sob perspectivas diferen tes. Mas, n o m u n do sem n tico da adm in istrao
eclesistica, a design ao de ben efcio (qu e rem ete para u m a perspectiva
patrim on ial) su plan ta fran cam en te a de ofcio (qu e rem ete para u m a
perspectiva fu n cion al ou m in isterial), em bora a lgica in stitu cion al h esite en tre u m a e ou tra viso.
Por u m lado, a ligao essen cial do ben efcio a u m a fu n o su bjacen te, a u m ministerium, de n atu reza espiritu al, tin h a com o con seq n cia
a obrigatoriedade da residn cia n o lu gar do ben efcio, a fim de poder desem pen h ar presen cialm en te as in eren tes fu n es, n om eadam en te as qu e
revestissem u m carter de u rgn cia, com o a adm in istrao da con fisso
ou da extrem a u n o.17 Da qu e n in gu m pu desse ter m ais do qu e u m ben efcio, pelo m en os se estes fossem en tre si in com patveis.18 Por ou tro
lado, o fato de algu m as das fu n es su bjacen tes serem essen cialm en te espiritu ais levava in capacidade dos leigos para serem titu lares de certos
ben efcios an exos a este tipo de fu n es (Gm ein eiri, X., 1835, II, 92,
66).19 Ain da n esta perspectiva, os ren dim en tos do ben efcio deviam servir
sem pre a fu n o su bjacen te. Assim , en ten dia-se os ben eficiados aplicar ao
seu m n u s os fru tos do ben efcio; e qu e, m esm o os ren dim en tos su prflu os, deveriam ser con su m idos em gastos piedosos (Gm ein eiri, X., 1835,
II, p.164). Tam bm os rditos dos ben efcios vagos deveriam perm an ecer
con sign ados ao ben efcio, sen do en tregu es ao su cessor ou gastos em ben efcio deste; de m odo a qu e os bispos n o se pu dessem apropriar deles

94

OS BENS ECLESISTICOS NA POCA MODERNA. BENEFCIOS, PADROADOS E COMENDAS

para gastos gerais da Igreja (Gm ein eiri, X., 1835, II, p.174). Em bora esta
perspectiva in teressasse tam bm , m esm o de u m a ptica pu ram en te patrim on ial aos fu tu ros ben eficiados.
Mas a conseqncia talvez mais notvel da lgica ministerial diz respeito aos critrios de seleo dos beneficiados. Aqui, muito presente a
idia de que o beneficiado no um mero arrecadador de rendas, mas uma
pessoa que, tendo que desempenhar um ministrio, tem que ter as qualidades requeridas para tal. Essas qualidades (morais, intelectuais, fsicas e de
idade 20) estavam fixadas pelo direito cannico e enfaticamente sublinhadas
pelo Conclio de Trento (sess. 24, c. 12) (cf. Amaral, 1610, v. Beneficium,
n. 9). Mas, para alm do cumprimento de requisitos absolutos, havia ainda
que ponderar os mritos relativos dos potenciais candidatos. Nos ofcios
eclesisticos mais importantes como os bispos e superiores de ordens religiosas isto obriga a que o provimento se faa mediante concurso, constando de um exame formal, devendo ser aprovado o melhor (dignior). No
plano dos princpios, isto impediria segundo alguns, mas no todos a
concesso de benefcios por preferncias pessoais, clientelares ou familiares.21 Nos benefcios inferiores exigncia era menor, havendo quem embora contra a letra dos decretos de Trento (sess. 24, c. 18) dispensasse o
concurso formal, nomeadamente nos benefcios que fossem apresentados
por patronos laicos,22 mas, de qualquer modo, exigia-se que o apresentado
fosse digno (embora no o mais digno), em termos de virtude (mais do que
em termos de nascimento.23 Em todo o caso, o princpio de que o ofcio
eclesistico tinha uma natureza espiritual, devendo ser exercido pelo mais
digno e meritrio, e de que a concesso do correspondente benefcio era
um ato gratuito e liberal faia com que qualquer motivao interesseira ou
qualquer pacto acerca da concesso fossem arguveis de simonia (i.e., o pecado que consistia na venda de funo espiritual). Pelo que os critrios objetivos do mrito sempre foram muito mais exigidos na colao dos benefcios eclesisticos do que na concesso dos ofcios ou mercs da repblica.
Em con trapartida, u m a viso patrim on ialista do ben efcio ten de a
con sider-lo com o u m a m era ren da, sem elh an te a tan tas ou tras, gravan do sobre certos ben s, existen tes n o m u n do m edieval e m odern o. E, da,
qu e se con cebesse a existn cia de ben efcios sem ofcio su bjacen te (preben das ou con ezias) ou a ven da de ben efcios (en ten didos com o m eros rditos tem porais, Vallen sis, 1632, l. 3, tt. 5, 1, n . 5) sem perigo de sim on ia. Adm itida a ven da (ou a troca), aceitava-se tam bm a ren n cia a favor de ou trem , em bora au torizada pelo colator. En ten den do-se m esm o
qu e este n o podia con ceder o ben efcio a ou trem (Am aral, 1610, v. Ben eficiu m , n . 46). Tais ren n cias eram m u itos vu lgares.
Nu m a lgica pu ram en te patrim on ial, tam bm se en ten dia qu e o
con ceden te do ben efcio pu desse reservar para si u m a poro do ren di-

95

Antnio Manuel Hespanha

m en to, a ttu lo de pen so. Isto foi frequ en te at ao Con clio de Tren to, o
qu al, segu in do a lgica espiritu alista, proibiu estas pen ses, a n o ser qu e
ficassem votadas a fin s tam bm espiritu ais (com o, v.g., a reparao da igreja do padroado) (Gm ein eiri, X., X., 1835, II, 172 s.). Mas, m esm o depois,
n o s se adm ite qu e o fu n dador de u m a igreja reserve u m a pen so sobre
os ben s doados (Am aral, 1610, Pen sio, n . 6), com o se m an tm -se a prtica de, em certos ben efcios, se exigir, n o m om en to da con firm ao, o pagam en to de u m a som a equ ivalen te m etade do ren dim en to an u al (meia
anata). Da qu e, peran te a gen eralidade da prtica, a dou trin a prefira fixar
lim ites s pen ses, estabelecen do a regra de qu e estas n o deviam ser de
tal m odo graves qu e o ben eficirio n o se pu desse su sten tar com odam en te, observan do os preceitos de u m a vida h on esta e da h ospitalidade; em
geral, a pen so n o deveria exceder a tera parte dos fru tos do ben efcio
(Am aral, 1610, Pen sio, n . 8-9).
Um a form a especial de atribu io de ben efcios era a com en da. Em
rigor, n o se tratava de u m a con cesso de ben efcio, m as apen as da su a
en com en dao (ou en trega com o qu e em depsito) 24 tem porria a algu m , qu e o deve proteger e cu rar, en tregan do-o, qu an do isso lh e for pedido, ao con ceden te, e pon do os fru tos disposio do ben efcio (Vallen sis, 1632, p.462).
O alem o Ju stu s Hen n in g Boeh m er 25 descreve assim a origem da
in stitu io: Nos tem pos prim itivos n o era possvel pr logo fren te das
igrejas u m pastor idn eo; en tretan to, para evitar todos os in cm odos qu e
n orm alm en te n ascem da an arqu ia, costu m ava-se en com en dar e com eter
a igreja vaga a algu m probo qu e, com o tu tor ou procu rador, se en carregasse de boa-f dos atos a ela relativos. Este n o era pastor da igreja e s
era n om eado por certo tem po (sec. 8, cap. 2, n . 25). E prossegu e, dan do
con ta das crticas qu e os protestan tes dirigiam a todas estas form as de
tran sfern cia para leigos das fu n es e ren das da Igreja, pou co a pou co,
esta in stitu io degen erou em rapin a, verifican do-se u m a reao con tra
ela obrigan do-se os bispos a, n o prazo de u m an o, proverem as igrejas
ou a su bstitu ir o com en dador Mas h oje estas com en das (ou beneficia
commendatae) ju stificam -se m ais pelos rditos qu e do do qu e pelo bem da
cu ra de alm as (sec. 8, cap. 2, n . 25-27).
Solorzan o Pereira,26 qu e trata lon gam en te da in stitu io da encomienda, pela qu al se distribu ram aos colon izadores as terras das Am ricas,
defin e ain da a com en da com o o recebim en to de algu m a coisa em gu arda
ou depsito, am paro e proteo (Pereira, 1972, III, 1,1). Mas tam bm j
lh e acrescen ta a ou tra dim en so patrim on ial, m ais prxim a da realidade
prtica da poca, ao defin i-la com o o direito de perceber os tribu tos dos
n dios, con ferido por m erc (III, 3, 2 ss.). Na verdade, com o refere, estas
n om eaes n o davam n em con feriam ttu lo algu m ao qu e servia o ben efcio, s o con stitu in do com o seu depositrio, gu ardador ou adm in istra-

96

OS BENS ECLESISTICOS NA POCA MODERNA. BENEFCIOS, PADROADOS E COMENDAS

dor por certo tem po e por cau sa de eviden te u tilidade da Igreja; m as com
a facu ldade de qu e pu desse gozar e dispor dos fru tos, com o se fosse u m ben eficiado (Gm ein eiri, IV, cap. 15, 5 ss.).
Em Portu gal,27 a com en da defin ida com o u m ben efcio de coisa
im vel, retida a propriedade n o con ceden te, de m odo a qu e o u su fru to
passe para o aceitan te em virtu de da fidelidade deste (Carvalh o, 1693, II,
p.10, n . 7). Discu tia-se a su a n atu reza ben eficial, sen do dom in an te a opin io de qu e n o se tratava de ben efcios eclesisticos, j qu e o m n u s qu e
estava su bjacen te percepo de fru tos n ada tin h a de espiritu al, con sistin do n a obrigao de fazer a gu erra aos in fiis (Carvalh o, 1693, I, en . 2, n .
18 ss.). Era aos procos das igrejas da com en da qu e com petiam todas as
fu n es espiritu ais, para o qu e lh es era atribu da u m a certa pen so (ou
cota) extrada dos fru tos e ren dim en tos da com en da, de qu e os com en dadores eram m eros adm in istradores (Ibidem , n . 22).
Estavam atribu dos em com en das os ben efcios, ju risdies e ren das
das orden s m ilitares. Com a in tegrao dos m estrados das Orden s n a Coroa, esta torn a-se padroeira destas com en das.28 O rei, com o m estre, apresen ta a com en da (qu e n o u m ben efcio) e o com en dador apresen ta u m
vigrio perptu o ou reitor qu e prov os ben efcios.29 A, os com en dadores
repartiam com os cu ras (ou vigrios perptu os) os rditos eclesisticos, de
acordo com os disposto n a carta de con cesso (Osrio, 1736, p.90, n . 2).
Freq en tem en te, os com en dadores tin h am os fru tos das igrejas e os vigrios as su as pores (Am aral, 1610, v. Ben eficiu m , n . 11).
Em Espan h a, foi este, alm disso, o sistem a de distribu io das terras das Am ricas pelos colon os. O com en dador foi origin ariam en te u m en carregado tem porrio da adm in istrao de u m territrio, com a percepo
dos respectivos tribu tos e as ju risdies espiritu al e secu lar correspon den tes, en qu an to esta n o se provessem defin itivam en te os respectivos ofcios.
Mas esta idia de precariedade foi se obliteran do progressivam en te.

O CA SO D O CURATO D E SA N TA MA RIA D E VOUZELA ,


D A ORD EM D E MA LTA

O ben efcio cu rado de San ta Maria de Vou zela vagou por m orte em
ou tu bro de 1663 [m s do papa]. Matias de Ara jo Bah ia, obteve-o por
con cu rso do Ordin rio. No en tan to, o Bailio de Lea, da Ordem de S. Joo
de Jeru salm , qu e tin h a direito de padroado n o m esm o ben efcio, apresen tou Man u el de Sou sa. Este foi ch am ado a ju zo [pelo Procu rador da
Mitra] para apresen tar as cartas apostlicas [i.e., de n om eao pon tifcia],
ten do o ju iz [delegado do Tribu n al da Nu n ciatu ra] revogado a su a posse
do ofcio, j in icada [por faltarem ao possu idor as cartas pon tifcias de n om eao, assu m in do, portan to, a com petn cia papal para a n om eao]. O

97

Antnio Manuel Hespanha

Sen ado da Relao [de Braga], por via de recu rso a ele dirigido pela Mesa
da Ordem [por n o recon h ecer a existn cia de u m a reserva pon tifcia n este ofcio], declarou in ju stas as sen ten as do dito ju iz [dan do razo ao recu rso do apresen tado pelo Bailio].30
Toda a qu esto est em saber se a apresen tao deste ben efcio est
reservada San ta S, n os seu s m eses, ou se esta reserva n u n ca vale, por
se tratar de u m ben efcio de Ordem Militar (Ibidem , n . 32).
Esta qu esto liga-se n atu reza do ofcio con exo com o ben efcio,
pois era claro qu e os ofcios regu lares, m an u ais31 ou am ovveis n o estavam reservados (n . 32). Discu tvel era, porm , se isto valia tam bm para
os ofcios perptu os da Ordem . Segu n do u m a opin io, a Ordem podia
apresen tar, sem reserva pon tifcia, ben efcios m an u ais, relacion ados com o
m n u s especfico da Ordem , e am ovveis ad nutum. Mas j n o gozava dessa isen o n o qu e respeita aos ben efcios perptu os (n . 35-6). A opin io de
Pegas , con tu do, diferen te e oposta (cf. n . 156, p.210).32
A sen ten a fin al do ju iz n o recu rso para ela in terposto da sen ten a
da Relao Arqu iepiscopal de Braga foi a segu in te:
"O ben efcio da Igreja de San ta Maria de Sou zelas vagou em ou tu bro, qu e u m dos m eses reservados [ San ta S]; o provim en to dele perten ce S Apostlica, pela regra oitava da Ch an celaria [Apostlica].
Qu an to m ais qu e desde o an o de 1566, est a Mitra daqu ele Arcebispado
de posse de pr em con cu rso o dito ben efcio, sem em bargo dos privilgios
qu e por parte daqu ela religio [de Malta] se alegam , pois [estes] falam n os
ben efcios regu lares e m an u ais, com o so as preceptorias e vigararias u n idas s com en das, n as qu ais a Religio tem dzim os e ren das e se costu m am
dar aos clrigos de h bito dela . Nada do qu e tem [do qu e ocorre] n o
ben efcio da con ten da, pois se n o m ostra qu e em tem po algu m fosse servido por clrigos regu lares, an tes por secu lares do h bito de S. Pedro, n em
m en os ser u n ido s com en das, n em qu e a Religio ten h a n ele fru tos .
Nem obstam as clu su las, e derrogaes dos ditos privilgios [i.e., dos privilgios de In ocn cia VIII relativos aos ben efcios das Orden s], pois a dita
regra oitava tira e su spen de com exu beran tssim as clu su las e derrogaes
os efeitos de todos e qu aisqu er privilgios, de sorte qu e n o ten h am lu gar,
n em vigor con tra a reserva geral dos ben efcios [a favor da c ria] n os oito
m eses reservados . Ju lgam os e declaram os o ttu lo qu e o apresen tado
pela Ven eran do Bailio tem n o dito ben efcio por ilegtim o e n o can n ico,
e n o perten cer por esta razo Religio o direito de apresen tar n o dito
ben efcio, e m an dam os qu e sejam con servados em su a posse a San ta S
Apostlica, e o Sen h or Arcebispo de o proverem por con cu rso n a form a da
dita regra oitava e do Sagrado Con clio Triden tin o , Lisboa, 27.02.1677."
(Ibidem , n . 29).
A tese qu e faz ven cim en to , portan to, a de qu e o ben efcio cu rado
da Igreja era do padroado com preen dido n u m a com en da da Ordem de

98

OS BENS ECLESISTICOS NA POCA MODERNA. BENEFCIOS, PADROADOS E COMENDAS

Malta, mas funcionalmente autnomo dela, j que visava cura de almas e


no a misso de proteo e administrao que competia ao comendador. E
no, conseqentemente, um ofcio regular ou manual, parte integrante da
mesma comenda, relativo s funes que o comendador devia desempenhar.
Em todo o caso, a opin io dom in an te era a de qu e, depois da u n io
das Orden s Coroa, os reis de Portu gal ficaram com o direito de, com o patron os, apresen tar os ben efcios e as com en das qu e se com preen dem n as
coisas eclesisticas das orden s (priorados, com en das, ben efcios e capelan ias), (Ibidem , n . 71). Pelo qu e, em virtu de deste padroado rgio, estes ben efcios ficariam isen tos de reserva pon tifcia (Ibidem , n . 72, 125-30, 151).
Tan to m ais qu e os ben s qu e so u n idos coroa (com o os m estrados das orden s), gan h ariam a n atu reza de ben s da coroa, pois esta seria m ais forte
do qu e a su a an terior n atu reza (n . 118, p.203).33
O caso d a Co m e n d a d e San ta Maria d e Pe re iro
Em bargos de Diogo Soares [n eto de Diogo Soares] e Joo Alvares
Soares e Migu el Soares e Vascon celos a u m alvar de D. Afon so VI qu e
dava a com en da de San ta Maria de Pereiro ao Marqu s de Cascais.
Mostra-se pelos em bargan tes con tra o em bargado ter El Rei de Espan h a, ain da qu e catlico, in ju sto possu idor deste Rein o, n o tem po qu e o
govern ava, feito m erc a Diogo Soares da Com en da de San ta Maria de Pereiro em 4 vidas m ais, efectivas e de livre n om eao, alm da su a [alv.
14.11.1636] . Defen de-se o em bargado [Marqu s de Cascais, gen ro do
Marqu s de Marialva], dizen do qu e o Marqu s de Marialva fora com en dador da sobredita com en da, por m erc do Sen h or Rei D. Afon so VI, o
qu al lh e con cedeu em du as vidas m ais, e dan do-a depois em dote ao em bargado, qu e por m erc do dito Sen h or fora su b-rogado n a m esm a vida do
Marqu s seu sogro .34
Descrio do caso. Diogo Soares, Secretrio do Con celh o de Portu gal
em Madrid, con stitu i u m morgado com os ben s qu e tem da Coroa e Orden s,
in clu in do a comen da de San ta Maria de Pereiro (cf. p.134, n . 270). Nomeia
n as qu atro vidas qu e tem n esta comen da Lu cas Soares, qu e in stitu ra como
admin istrador do morgado e seu s su cessores de acordo com o pacto de in stitu io do mesmo morgado e, depois das qu atro vidas, os su cessores destes segu n do a Lei Men tal (p.134, n . 270). Depois da Restau rao, Diogo Soares fica
em Espan h a. A comen da dada, por D. Afon so VI, ao Marqu s de Marialva,
qu e a d de dote a seu gen ro, o Marqu s de Cascais. Depois da paz de 1668,
cu jas con dies estipu lavam o retorn o dos ben s con fiscados ou perdidos por
cau sa da gu erra aos seu s an teriores titu lares, os h erdeiros de Diogo Soares
qu e, n o en tan to, se dispu tam en tre si acerca de qu em tem o melh or ttu lo de
h erdeiro reclamam do Marqu s de Cascais a comen da de San ta Maria.
A prim eira deciso (Dou tor Jern im o Vaz Vieira, Ju iz dos Cavaleiros [?], 8.7.1680, p.119) favorvel a Diogo Soares, cu ja posio patrocin ada por Pegas.

99

Antnio Manuel Hespanha

As qu estes in ciden tais qu e se levan tam so:


(a) A da legitimidade da concesso feita a Diogo Soares por um rei tirano.
(b) A do alcan ce da rein tegrao dos ben s n os seu s origin rios titu lares estabelecida pelo Tratado de Paz de 1668.
(c) A da legitim idade da con stitu io de u m m orgado com ben s da
coroa ou das orden s. As qu estes qu e aqu i se levan tavam eram : (i) a da
com patibilizao do carter vin cu lado (n a descen dn cia do in stitu idor) dos
ben s do m orgado com o carter precrio da con cesso dos ben s da coroa e
(ii) a da even tu al con tradio en tre as regras de su cesso de ben s da coroa
estabelecida pela Lei Men tal e as con tidas n o ttu lo de in stitu io do m orgado. Qu an to prim eira qu esto, a sada era exigir a au torizao de con stitu io de m orgado por parte do rei ou m estre, qu e valeria com o con firm ao prvia das su cesses fu tu ras e dispen sa das n orm as su cessrias da
Lei Men tal (p.147, n . 332).35
Mas a qu esto prin cipal, pelo m en os do pon to de vista qu e aqu i
m ais in teressa a de saber se u m a com en da pode ser con cedida por m ais
do qu e u m a vida, j qu e isso equ ivaleria con cesso de cartas de expectativa, proibidas n os ofcios e ben efcios eclesisticos (m as n o n os ofcios secu lares, de qu e se davam alvars de lem bran a) (cf. p.131, n . 292-312). Se
triu n fasse este pon to de vista, logo a prim eira vida a m ais seria ilegtim a,
fican do a com en da vaga e poden do ser con cedida de n ovo a ou trem . Se
n o triu n fasse, a su cesso das n om eaes feita por Diogo Soares seria vlida, de m odo qu e a com en da n o estaria vaga n o m om en to da su a con cesso ao Marqu s de Marialva. E, com o a con cesso de ben efcios n o vagos n u la, n u la seria esta ltim a doao. A posio qu e faz ven cim en to
a de qu e as com en das n o so ben efcios eclesisticos, pelo qu e n o se lh es
aplica a regra da proibio de expectativas, qu e alis era corren te con ceder
em Portugal, justamente sob esta forma de concesso em vidas (n. 294-312).
A ju stificao avan ada para o carter n o-ben eficial das com en das a de
qu e os com en dadores se lim itam a perceber fru tos separados do ben efcio,
n o sen do por isso ben eficiados, m as adm in istradores ou depositrios do
ben efcio (os com en dadores s gozam dos fru tos tem porais, qu e se separam dos ben efcios n elas in clu das, os qu ais so govern ados por clrigos, a
qu em som en te com pete o ttu lo espiritu al, n . 295).36
A sen ten a defin itiva dada a favor do Marqu s de Cascais (p.146),
com o fu n dam en to de qu e os Sen h ores Reis destes Rein os com o Mestres
das Orden s n o podem validam en te dar vidas n as Com en das, n em expectativas a elas, por se regu larem n a opin io de direito por ben efcios eclesisticos, n os qu ais so proibidas e reprovadas as expectativas e fu tu ras su cesses pelos Sagrados Cn on es, em qu e o Mestre n o pode dispen sar por
ser Prelado in ferior ao Su m o Pon tfice (p.146, n . 331).

100

OS BENS ECLESISTICOS NA POCA MODERNA. BENEFCIOS, PADROADOS E COMENDAS

CA SO D A COMEN D A D E SOUSA ,
D A ORD EM D E SA N TIA GO 37
Com o se refere n o privilgio papal [o padroado da Igreja de Sou sa]
era do Mosteiro de S. Migu el, da Ordem de S. Ben to, e em vida do dito
Joo de Sou sa, foi tran sform ada em com en da de S. Tiago, de m odo qu e
depois da morte deste voltasse Ordem de S. Bento e ao dito mosteiro .
E depois disto, por con stitu io de Xisto IV, foi determ in ado qu e, depois da
m orte de D. Joo de Sou sa, D. Afon so V obtivesse a dita preceptoria ou com en da [agora perpetu am en te in corporada n a Ordem de San tiago], sen do
con cedido a este rei qu e ficasse aos seu s su cessores e dos ou tros reis apresen tar para a dita com en da pessoa idn ea 38 ... E assim , [an tes qu e a com en da fosse in corporada n os ben s da coroa], o rei doou este padroado e
direito de apresen tao para a dita com en da ao dito Joo de Sou sa e seu s
h erdeiros em perptu o,39 doao con firm ada por In ocn cio VIII, o qu al,
por cau tela, reservou perpetu am en te para o Mestre o direito de padroado
e apresen tao de pessoa idn ea para a dita preceptoria,40 (n . 5).41A Com en da de Sou sa era, portan to, u m a Com en da da Ordem de San tiago, em
direito de propriedade, por privilgio dos Papas, com a terra e toda a ju risdio tem poral e algu n s ou tros ben s (n . 4).42 Os reis de Portu gal tin h am o
padroado da com en da, poden do apresen tar com en dador, o qu al, en qu an to patron o da Igreja de Sou sa, apresen taria os seu s ben efcios, salva reserva cu m u lativa do Mestre de San tiago. Um a vez doada a com en da a D.
Joo de Sou sa, este ficou su b-rogado n os direitos do rei doador. Com a in corporao do Mestrado de San tiago n a Coroa, o rei passa a gozar da reserva cu m u lativa qu e com petia ao Mestre. H, portan to, qu e distin gu ir
aqu i: (i) o direito de apresen tao do com en dador, qu e com pete a Joo de
Sou sa e seu s su cessores; (ii) o direito em in en te do Mestre (rei) de n om ear
com en dador n a falta ou dilao da apresen tao; (iii) o direito de apresen tao dos ben efcios da Igreja de Sou sa, de qu e era titu lar o com en dador.43
A prim eira qu esto qu e su rge refere-se devolu o su cessria. En qu an to u n s dos litigan tes preten diam qu e a devolu o se fazia por lin h a
prim ogen itu ral, com o n os ben s da coroa, ou tros defen diam a devolu o
su cessria com u m , com o n os padroados e, ou tros, fin alm en te, a in existn cia de devolu o su cessria, com o n os ben efcios. Tu do depen dia, en to,
da n atu reza qu e prevalecesse n o objeto da con cesso (bem da coroa, padroado, ben efcio). Ora n este caso, existem trs dign idades distin tas: a de
patron o da com en da, n a titu laridade da fam lia dos Sou sas, em qu e se su cede por via su cessria; a dign idade de com en dador, em qu e se in vestido por apresen tao do patron o, con firm ada pelo Mestre (rei); os ben efcios do padroado da com en da, em qu e se provido por apresen tao do

101

Antnio Manuel Hespanha

com en dador. De qu alqu er m odo, com o a com en da foi doada a Joo de


Sou sa an tes da su a in corporao n os ben s da coroa (n este caso, n o padroado real), tran sferia-se por direito h ereditrio com u m e n o por prim ogen itu ra, com o os ben s da coroa, deven do m an ter-se n os h erdeiros at qu e
estes faltassem de todo ou dela fossem privados por delito; s en to retorn an do Ordem (Ibidem , n . 2-3).44
Eis u m a das opin ies:
Neste processo [sobre a Com en da de Sou sa] n o se litiga sobre ben s da
coroa, n em de tal qu alidade qu e se h aja de su ceder n eles, e devolver-se a
su cesso ... com o em ben s vin cu lados, m as trata-se de u m a com en da, qu e
se deve repu tar por ben efcio eclesistico, e n a qu al se n o pode en trar
sem os legtim os e can n icos ttu los de apresen tao do padroeiro, e con firm ao do m estre da Ordem , a qu e a dita com en da perten ce do qu e
se con ven ce in evitavelm en te n o poder en trar n esta com en da qu em n o
for apresen tado pelos su cessores de Joo de Sou sa o Rom an isco, e con firm ado pelo m estre da Ordem , porqu e isto im porta ao direito de padroado
e o declaram expressam en te as palavras da con cesso. Mostra-se qu e n esta form a se foram su ceden do os com en dadores qu e h ou ve depois do dito
Joo de Sou sa, com o se v de seis n om eaes, e apresen taes: a prim eira de An dr Freire [com en dador], n om eado por seu pai Joo Freire [patron o da com en da], e con firm ado por El Rei com o Mestre; a segu n da de
Joo de Sou sa [com en dador], apresen tado por falecim en to de Man u el
Freire [com en dador an terior] por D. Mcia de Sou sa, e D. Gu iom ar de
Sou sa, padroeiras [da com en da] ; a terceira, de Man u el Freire [com en dador], apresen tado por D. Fran cisca de Sou sa [padroeira] ; a qu arta,
de Joo Freire [com en dador], coadju tor de seu pai Man u el Freire [com en dador an terior], con firm ada pelo Su m o Pon tfice, 45 a qu in ta por Man u el de Sou sa [com en dador], apresen tado por D. Fran cisca, D. Ceclia, filh as e h erdeiras de Joo de Sou sa [padroeiras] . O au tor, Alexan dre de
Sou sa [com en dador], apresen tado por D. Fran cisca e D. Ursu la, religiosas
do m osteiro de Jesu s de Aveiro, com o padroeiras e descen den tes do prim eiro dito adqu iren te Joo de Sou sa, e m ais prxim as u m grau n o paren tesco com o ltim o possu idor Diogo Freire [do direito de padroado sobre
a com en da] qu e o opoen te Con de de Miran da ... As religiosas n o so ilegtim as e, con form e o direito, capazes de apresen tar, sem qu e lh e obste a
disposio da Lei Men tal, qu e dispem qu e os padroados da coroa an dem
em u m a s pessoa, e n o filh o varo m ascu lin o, porqu e com o fica con siderado este padroado n o da coroa, e foi dado an tes de se in corporar
n ela, e ficou sen do h ereditrio, e podem su ceder n ele as fm eas, e se divide o direito de apresen tao por todos os paren tes, qu e esto em igu al
grau 46 ... O qu e visto com o m ais qu e dos au tos con sta, om itin do ou tros
fu n dam en tos m en os su bstan ciais, revogam a sen ten a em bargada, e ju lgam a apresen tao feita n a pessoa do au tor Alexan dre de Sou sa por legtim a e bem feita, e qu e se lh e deve a con firm ao da com en da de qu e
se trata, e su as perten as ... Lisboa, 19.08.1653.

102

OS BENS ECLESISTICOS NA POCA MODERNA. BENEFCIOS, PADROADOS E COMENDAS

N OTA S
1. Em sen tido estrito, a praebenda ou canonica portio aqu ela parte qu e se tom a da m assa dos
ben s e proven tos dos eclesisticos e se d a cada u m com o arte su a (Vallen sis, 1632, p.442,
n . 1); m as qu e, em bora se preste pelos ben s da Igreja, n o se presta em razo do ofcio divin o, m as em razo de trabalh o tem poral.
2. A primeira referncia no C. I. C. reporta-se ao Conclio de Mogncia (813) (Decr. Greg., III, 48, 1).
3. TELES, M. G. De praeben dis et dign itatibu s. In : Commentaria perpetua in singulos textus quinque librorum decretalium. Lu gdu n i, 1693. v.III, tt. V, n . 12.
4. GMEINEIRI, X., 1835. II, 90, 62 ss.
5. GMEINEIRI, X., 1835, II, 92, 66; VALLENSIS, 1632, III, 5, 1, n . 7.
6. De fato, os ofcios m on acais (ou m an u ais) so dados e revogados ad nutum ( discrio); o
con te do das su as atribu ies tam bm depen de em absolu to do con ceden te (Fragoso, 1641,
1652. II, 854, 12).
7. Sobre este tem a, v., v.g., BARBOSA, 1632, cap. IV; VALLENSIS, 1632, III, 5, 2, p.444; m ais
recen tes, GMEINEIRI, X., X., X., 1835, II, 93, 69 ss.; Carn eiro, 1869, 121 ss.
8. Sobre as eleies e os requisitos dos eleitos, v. GMEINEIRI, X., X., X., 1835, II, 104, 88 ss.
9. Dado qu e esta reserva preju dicava os direitos dos patron os, h avia qu em restrin gisse fortem en te o m bito da reserva pon tifcia, n o a adm itin do n os ben efcios em padroado leigo, n os
obtidos on erosam en te, n os ben efcios das orden s m ilitares(cf. Pegas, 1669, XI, ad 2,35, c. 117,
149 ss.). Alm qu e a reserva pon tficia n o existia n os ben efcios regu lares ou m an u ais das
orden s (cf. Pegas, 1669, XI, ad 2,35, c. 117, n . 35-6).
10. Nos ben efcios de padroado eclesistico, a San ta S gozava de 8 m eses de reserva, fican do aos padroeiros apen as os m eses de m aro, ju n h o, setem bro e dezem bro (Con c. Triden tin i, sess. 24, cap. 18).
11. VALLENSIS, 1632, III, 7, 2, p.451 ss.
12. Decretu m , II p., C. XVI, Q. VII, c. 33: O m osteiro ou oratrio in stitu do can on icam en te
n o deve ser tirado do dom n io do in stitu idor con tra a su a von tade, deven do-se perm itir-lh e
qu e o en com en de ao presbtero qu e qu iser para a celebrao dos ofcios sagrados, com o con sen tim en to do bispo da diocese. Cf. tam bm Decretais, III, 38 (De iu re patron atu s). Sobre
o padroado, ver Osrio, 1736; AMARAL, 1740, ver. Ju s patron atu s; Cabedo, 1603; FRAGOSO, 1642, II, 689, 7; VALLENSIS, 1632, ad III, 38; Gm ein eiri, 1835, II, 136 ss.
13. Conclio de Trento, "Padroado", sess. 25, cap. 9: "Assim com o n o ju sto preju dicar os legtim os direitos de padroado e violar as pias von tades dos fiis qu an to su a in stitu io, tam bm n o de perm itir qu e, debaixo desta aparn cia, se coloqu em os ben efcios da Igreja em
servido, o qu e m u itos fazem de form a im p dica. Assim , para qu e se observe em tu do u m
equ ilbrio devido, o San to Sn odo recon h ece com o ttu lo do padroado a fu n dao ou a doao qu e se dem on stre provada por docu m en to au tn tico e ou tras provas requ iridas por direito; ou tam bm por m ltiplas apresen taes por tem po an tiqu ssim o qu e exceda a m em ria dos h om en s ou de ou tro m odo equ ivalen te, segu n do a disposio do direito. No en tan to,
n aqu elas pessoas, com u n idades ou u n iversidades n as qu ais aqu ele direito as m ais das vezes
costu m a ser obtido sobretu do por u su rpao, exige-se u m a prova m ais plen a e exata com o
ttu lo verdadeiro. Nem a posse im em orial lh es valer sen o qu an do, alm de ou tras coisas
n ecessrias, se provarem apresen taes, con tin u adas, e pelo espao n o in ferior a cin q en ta
an os, e sortidas de efeito. Todos os restan tes padroados n os ben efcios, tan to secu lares, com o
regu lares, ou paroqu iais, ou dign idades, ou qu aisqu er ou tros ben efcios, em catedral, ou igreja colegiada, ou privilgios con cedidos, tan to com efeito de padroado com o qu alqu er ou tro
direito de n om ear, eleger ou apresen tar para qu an do vagu em , so totalm en te revogados,
sen do tida com o n u la qu alqu er posse deles, exceto os padroados sobre igrejas, catredrais e
ou tros qu e perten am ao im perador ou aos reis ou possu idores de rein os, bem com o ou tras
en tidades su blim es e prn cipes su prem os qu e ten h am n os seu s dom n ios direitos im periais;

103

Antnio Manuel Hespanha

assim com o os con cedidos em favor de estu dos gerais. Assim , os ben efcios so con cedidos
com o livres pelos seu s colatores, ten do as provises destes plen o efeito.
14. Tal a opin io de Gm ein eiri, X., 1835, II, p.144, 173.
15. Falava-se de pen so ou poro a respeito de u m a prestao peridica im posta sobre o
ren dim en to de certo ben efcio pelo titu lar da su a colao (i.e., por aqu ele a qu em com pete
prover esse ben efcio) a favor de u m a pessoa eclesistica ou leiga (cf. Lobo, 1825, 21 ss.). As
pen ses podiam ser im postas pelo papa, pelos bispos, pelos gro-m estres das orden s m ilitares e pelos reis (com o gro-m estres ou padroeiros). V. AMARAL, 1740, ver Pen sio, n . 2 ss.
16. Se o bispo orden ar clrigos sem titu lu m tem qu e lh es prestar alim en tos dos seu s ben s, Teles, 1693, p.118.
17. AMARAL, 1740, v. Ben eficiu m , n . 9. Este u m dos gran de tem as do Con clio de Tren to em m atria ben eficial: cortar os abu sos de ben eficiados au sen tes (cf. obrigaes do ben eficiado: residn cia assdu a, Gm ein eiri, X., X., 1835, II, 156 200; Tren to: sess. 23, cap.1). No
en tan to, a prtica con tin u ou a ser bastan te perm issiva, adm itin do, n om eadam en te, a falta de
residn cia n os ben efcios sem cu ra de alm as (AMARAL, 1740, Ben eficiu m , n . 63).
18. AMARAL, 1740, ver Ben ficiu m , n . 17.
19. J n o caso das sim ples preben das (v. supra), n o m ilita esta razo, pelo qu e podem ser au feridas por leigos.
20. O ben efcio cu rado exige 25 an os e ordem clerical; os ou tros exigem pelo m en os 14 an os
(Tren to, sess., 23, c. 6 de reform at). Sobre os requ isitos pessoais para ter ben efcios, v. FRAGOSO, 1642, II, p.663, 2, n . 4 ss.
21. Cf. AMARAL, 1740, ver Ben eficiu m , n . 8. Em con trapartida, Baptista Fragoso (FRAGOSO, 1642, II, p.663, 2, n . 4-5.) defen de qu e o bispo pode con ceder oficios a seu s con san g n eos idn eos, desde qu e o n o faa com escn dalo; apen as n o lh es pode con ceder os
ofcios ren u n ciados em su as m os por ou trem , n . 2.
22. No padroado real portu gu s, a apresen tao precedia exam e e in form ao, n orm alm en te tirada pelo deo da capela real (Cabedo, 1602, c. 19, p.69, n . 1.
23. Discu te a qu esto de se n os ofcios secu lares ou eclesisticos so de preferir os n obres, Teles, 1693, p.167, n . 4 (n o so de preferir os n obres pois n o a n obreza do n ascim en to m as
das virtu des e da vida h on esta qu e torn am o servidor grato e idn eo para Deu s; para o govern o da Igreja devem ser eleitos n o os n obres pela carn e m as os h u m ildes e pobres, n . 4).;
apoia-se em S. Tom s, De regim. principum., lib. 4, cap.15.
24. Commendare depositar, l. com m en dare, D. 50, 16.
25. Ius parochiale ad fundamenta genuina ius ecclesiasticum protestantium, Hallae, 1721.
26. PEREIRA, J. S. Politica indiana. Madrid: Bib. de au tores espa oles, 1972.
27. Sobre o regim e das com en das, em Portu gal, ver Carvalh o, 1693.
28. Ver lista das com en das de Cristo do padroado da coroa (as cin q en ta com en das do padroado), em Cabedo, 1602, cap.18, p.66, n . 1.
29. Cabedo, 1602, cap.18, n . 2-5; Ben to Cardoso Osrio diz qu e os reitores das igrejas do
padroado real, n as qu ais foram con stitu das com en das, con tin u am a apresen tar os cu ras e dem ais ben efcios, com o an tes (Osrio, 1736, p.91, n . 1; p.106, n . 4). Ver diplom a sobre a repartio das apresen taes dos ben efcios das com en das e seu s ren dim en tos en tre com en dadores e reitores em Osrio, 1736, p.93. l
30. PEGAS, M. . Commentaria ad Ordinationes, XI, ad 2,35, c. 117, n . 31.
31. A manualitas con siste n a obedin cia devida pelos regu lares (n . 34).
32. Para u m ou tro con flito deste tipo en tre a Ordem de Avis e o Arcebispo de vora, cf. ibidem , n . 102.
33. Em todo o caso, existe, n ou tros con textos, a opin io exatam en te con trria, de qu e os
ben s da coroa, qu an do doados Igreja, perderiam a su a prim eira n atu reza.

104

OS BENS ECLESISTICOS NA POCA MODERNA. BENEFCIOS, PADROADOS E COMENDAS

34. PEGAS, M. A. Tractatus de exclusione, inclusione, successione & erectione maioratus. Ulyssipon e,
1685. v.I, p.116 ss.
35. Nos ben s da coroa, se o Prn cipe os con cede para u m m orgado, ficam vin cu lados e regu lam -se pelas vocaes do m orgado (cf. IV, ad I, 50, gl. 1, p.192, n . 12 ss.). Ou se a doao
foi feita a algu m e seu s filh os, fora da lei m en tal em perptu o, pode fazer-se u m vn cu lo de
tais ben s, PEGAS, ibidem , p.151.
36. A qu esto da n atu reza ben eficial ou no das comendas objeto de larga controvrsia nos
finais do sculo XVII, conforme se pode ver em Carvalho, 1693, enucl. 2 e 5. O autor inclinava-se para a opinio negativa, fundado principalmente (i) no fato de que os comendadores
no tinham qualquer mnus espiritual e (ii) na existncis de um costume inveterado de atribuir expectativas das comendas (ver exs. em Carvalho, 1693, I, p.357 ss.). Mas, em contrapartida, existiam tambm determinaes explcitas em contrrio, quer em diplomas papais, quer
em decises da Mesa da Conscincia e Ordens (v.g., em 8.9.1574: nula toda a promessa de
comenda, ainda que seja com a declarao, que haver efeito, sendo hbil a pessoa a quem se
prometeu, e assim nula a tena em defeito de comenda (Carvalho, 1693, en. 2, n. 4.)
37. PEGAS, M. ., 1669-1703. XI, ad 2,35, c. 117, n . 1 ss.
38. Ou seja, o rei e su cessores ficaram com o direito de padroado, com direito a apresen tar o
com en dador.
39. Qu e, assim , ficaram patron os da com en da.
40. Trata-se de u m a reserva cu m u lativa e n o privativa, poden do o Mestre de San tiago prover a com en da n a falta ou dilao da apresen tao do patron o (cf. n . 5).
41. con sta qu e sen do com en dador do Mosteiro e Igreja de Sou sa, Joo de Sou sa, a qu e
ch am aro o Rom an isco, em su a vida som en te, a fez o Su m m o Pon tfice com en da in perptu u m e con cedeu o direito de padorado dela ao sen h or rei D. Afon so V, para ele e para seu s
su cessores, e o m esm o sen h or, an tes qu e este padroado se in corporasse n a Coroa, o tran sferio e fez doao dele ao dito Joo de Sou sa, para ele e seu s h erdeiros e su cessores, ju re h ereditrio, assim com o pelo Papa lh e fora con cedido, orden an do qu e os Sen h ores Reis seu s su cessores lh e n am pu zessem a isso d vida, porqu an to dem itia de si an tes de ser patrim n io
real, e se in corporar n a Coroa.
42. Na qu al n o s h dzim os, qu e foram da Igreja, m as ben s prprios, e aqu ella villa, e ju risdio, qu e os Sen h ores Reis deste Rein o de seu patrim n io secu lar, e da Coroa lh e doaram ", p.211, col 1.
43. Note-se qu e, n as comen das, o papa no goza da reserva pontifcia. De fato, as comendas
e benefcios das Ordens no costumam devolver-se ao ordinrio, nem ao Papa, mesmo que os
benefcios vaguem na Cria; existe uma bula e privilgio de Inocncio VIII, segundo o qual
no se aceitam provises apostlicas para o provimento das comendas, pelo que a sua proviso nunca fica reservada ao Pontfice, mas sim ao Mestre e patrono, PEGAS, ibidem, n.21.
44. Segundo uma outra opinio, constante do processo, "estes bens, por uma vez que foram doados Igreja, perdero a natureza de bens da Coroa, e no ficam sujeitos Lei Mental", n. 160,
p.212, col 1.
45. Trata-se, aparen tem en te, de u m a colao abu siva e con flitu al com a an terior, pois n o se
verifica a apresen tao pelo patron o, alm de qu e o papa n o dispu n h a de reserva n os ben efcios das Orden s Militares.
46. Usan do dele ou por votos, ou por tu rn o.

105

Antnio Manuel Hespanha

B IBLIOGRA FIA .
AMARAL, A. C. do. Liber utilissimus judicibus et advocatis. Con im bricae,
1740. 2 v.
BERNHARD, J. et al. L'poqu e de la rform e et du con cile de Tren te. In :
GAUDEMET, J., LE BRAS, G. Histoire du droit et des institutions de l' Eglise en Occident. Paris: Cu jas, 1990. t.XIV, p.346-77.
CABEDO, J. de. De patronatibus ecclesiarum regiae coronae Lusitaniae. Ulyssipon e, 1603.
CARVALHO, L. P. de. Enucleationes ordinum militarium. Ulyssipone, 1693.
FRAGOSO, B. Regimen reipublicae christianae. Collon ia Allobrogu m , 16411652. 3 v.
GMEINEIRI, X., X., X. Institutiones iuris ecclesiastici. Con im bricae, 1835.
MENDO, A. De ordinibus militaribus, disquisitiones canonicae. Lu gdu n i. 1668.
NORONHA, C. de. Allegao de direito em favor da exempo das Ordens militares, e cavalleiros dellas. Lisboa, 1641.
OSRIO, B. C. Praxis de patronatu regio, & saeculari. Ulysipon e, 1726.
PEGAS, M. A. Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae. Ulyssipon e,
1669-1703. t.12 + 2.
TELES, M. G. De praeben dis et dign itatibu s. In : ___. Commentaria perpetua
in singulos textus quinque librorum decretalium. Lu gdu n i, 1693. v.III, tt.V,
p.115 ss.
VALLENSIS, A. (del Vau lx, An drea) Paratitla sive summaria et methodica explicatio decretalium. Lovaii, 1632 (m axim e, l. 3, tt. 5, 1 [De praeben dis et dign itatibu s]).

106

captu lo 7

PORTUGA L E A EUROPA N A
POCA MOD ERN A
Maria do Rosrio Th em u do Barata*
Para se desen volver este tem a dever-se- aten der, n ecessariam en te,
pela prpria evolu o h istrica portu gu esa e pela em ergn cia con com itan te da gran de n ao brasileira, a u m terceiro term o: o m u n do u ltram arin o.
Desta relao, n o a dois m as a trs, ir se tratar a segu ir, con scien tes de
toda a respon sabilidade de u m passado e de toda a expectativa de u m presen te n o qu al, descon h ecidos pela m aior parte dos crcu los de opin io os
verdadeiros con torn os do Tratado de Mastrich t, sobre as m tu as relaes
Portu gal Brasil perpassa o receio da secu n darizao dos laos qu e in trn seca e in dissociavelm en te os ligam . Ecos de m al fu n dadas in terpretaes,
de fu gazes deslu m bram en tos por realidades com as qu ais, con trariam en te
ao qu e possa parecer, Portu gal n u n ca deixou de estar fam iliarizado, escolh en do m u ito em bora vias altern ativas; seq elas de u m en ten dim en to direcion ado da Histria para o terceiro m iln io, privilegian do u m a ten dn cia poltica m ajoritria e com o tal apresen tada com o triu n fan te; in terrogao n acion al sobre o destin o h istrico aps u m a revolu o poltica qu e
preten deu resolver ao m esm o tem po u m a qu esto de regim e e u m a presen a h istrica em n vel m u n dial: todos estes elem en tos in flu em n a in terpretao h istrica dos tem pos passados e, m u ito n itidam en te, n o cam po
do estu do das relaes extern as, in tern acion ais e diplom ticas. Ju lgam -se
estas, tam bm , em paralelo com os ju lgam en tos eu ropeu s da poltica in tern acion al desde a Gu erra de 1939-1945, e essa avaliao vai, por vezes,
n o paralelo qu e estabelece, dem asiado lon ge, procu ran do sim ilitu des on de
elas n o existem , n ovidades on de h a con stn cia e, freq en tem en te, n o
aceitan do o en riqu ecim en to de perspectivas con ju n tas e in terdisciplin ares
qu e n o falseiem n em obliterem os fatos h istricos. Com paixo ou sem
ela volta-se Histria, m as m u itas vezes h istria-tribu n al, to desacon selh ada pelos n om es qu e se im pem en tre os h istoriadores, com o Marc
Bloch ou Lu cien Febvre. Mais se eviden cia qu e, com todo o rigor m etodolgico dos n ovos recu rsos in terdisciplin ares postos ao servio da in terpretao h istrica, o con h ecim en to dos fatos h istricos e ser in dispen svel
e in su bstitu vel. E isto n o pu ro h istoricism o, a m en os qu e seja a perm an n cia do cern e de verdade qu e o h istoricism o en cerra.
E volta a ser preciso en carar a Histria de Portu gal n o con ju n to das
coorden adas polticas, cu ltu rais, religiosas e n o esqu ecer as geogrficas.

107

Maria do Rosrio Themudo Barata

No an o (1997) em qu e a cu ltu ra portu gu esa deixa de con tar en tre os vivos com Orlan do Ribeiro, pertin en te con tin u a a su a reflexo m etodolgica sobre as relaes de Portu gal com o Mediterrn eo e com o Atln tico,
desde sem pre e n o s desde o delin ear da expan so u ltram arin a qu atrocen tista. E com esta reflexo do ilu stre m estre, ou tra de ou tro m estre n o
m en os ilu stre Jorge Borges de Macedo, falecido em 1996, se vem en tretecer: a do con dicion alism o geogrfico, estratgico, cu ltu ral portu gu s de
du as fron teiras igu alm en te presen tes n a Histria de Portu gal, a terra e o
m ar, a Hispn ia e o Atln tico 1. Creio qu e am bas as posies so a ch ave da
explicao das relaes de Portu gal com a Eu ropa n os tem pos m odern os,
com o procu rarei explicitar de segu ida.
Estas observaes so motivadas pelo que a opinio comum transmite de interrogaes e a que, de uma forma ou de outra, a historiografia portuguesa tem vindo a responder, numa produo historiogrfica variada e
questionadora do sentido global da histria portuguesa. Tal preocupao
patente nas obras sobre o sculo XX, as Repblicas, Salazar, Marcelo Caetano, a participao de Portugal nos conflitos internacionais, o processo de
emancipao dos territrios sob soberania de Portugal, as campanhas militares nos territrios do Ultramar, a Revoluo de 25 de abril de 1974, mas
tal atitude tambm explica terem surgido novas Histrias de Portugal, em
que se citam as de Joaquim Verssimo Serro, Joo Medina, Joel Serro e
Oliveira Marques, Jos Mattoso. Tempo de dvidas e de mudanas para
Portugal este ltimo quartel do sculo XX, a perspectiva histrica traz a segurana de uma seqncia de vida para uma nao e um estado e a esperana inconformista num futuro no previamente decidido.
Em term os do estu do das relaes in tern acion ais, h h oje a n ecessidade de reavaliar o in teresse sem pre m an tido por Portu gal qu an to s relaes in tern acion ais, evidn cia qu e n o deve ser su bstitu da pela afirm ao de isolacion ism o com qu e se qu er cen su rar o regim e con tra o qu al se
pron u n ciou a Revolu o do 25 de abril de 1974. E n essa rein sero do
tem a das relaes in tern acion ais de Portu gal, n o s m as tam bm com a
Eu ropa, h qu e recolocar a dicotom ia qu e caracterizou a h istria portu gu esa n os tem pos m odern os, ou seja, a presen a con stan te de atlan tism o
e de eu ropesm o, n o con traditrias, e qu e, n o decorrer da h istria, a poltica extern a portu gu esa avaliou e in tegrou n u m a con tin u idade de ao
de estado soberan o.
Tu do so m otivos qu e explicam o in teresse e a n ecessidade de se debater a realidade docu m en tada pela Histria, qu an to aos tem as das relaes in tern acion ais de Portu gal. Tem a tratado com o particu lar pelas obras
e au tores qu e referim os, o seu tratam en to global teve a servi-las, em obras
especializadas, a aten o de diplom atas e professores u n iversitrios de m rito. Cou be a precedn cia a Edu ardo Brazo, gran de sen h or da diplom acia

108

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

portu gu esa qu e ps a su a excepcion al experin cia n este cam po ao servio


da h istria das relaes diplom ticas de Portu gal n a poca m odern a, com
n fase para as gran des cortes da Eu ropa on de avu lta a San ta S. Diplom ata e Professor, escreven do para en sin o u n iversitrio e para a form ao de
especialistas, Jos Calvet de Magalh es, por su a vez, in sistiu n a n ecessidade de esclarecer, diferen cialm en te, relaes extern as e h istria diplom tica e verificar a m etodologia especfica da ltim a. Professor de Direito, Pedro Su arez Martin ez deu -n os u m a viso de seq n cia n a su a Histria Diplom tica de Portu gal. Professor de Histria de in igu alvel procu ra terica
e expositiva n o dom n io da h istria diplom tica com o cam po de relao
das n ecessidades do m eio, das foras econ m icas e sociais e das opes polticas e cu ltu rais n u m a avaliao estratgica, Jorge Borges de Macedo
apresen tou , aps o seu en sin o u n iversitrio e n os in stitu tos de altos estu dos m ilitares e diplom ticos, a su a Histria diplomtica portuguesa. Constantes e linhas de fora. Estudo de geopoltica. Para a poca con tem porn ea, An tn io Jos Telo tem tratado, com acu idade, por seu lado, a caracterizao
de u m cam po de atu aes m al con h ecidas e freq en tem en te m al exploradas. A par da tem tica geral, o in teresse pelo Atln tico Su l e pelo desen volvim en to do Brasil , m an ifestam en te, u m dos gran des tem as do m agistrio de Joaqu im Verssim o Serro, de Lu s Ferran d de Alm eida e de Eu gn io Fran cisco dos San tos.2
Desde os prim rdios do tem po m odern o, Portu gal m an ifestou -se
com o u m a das n aes qu e m ais cedo deu form a a u m Estado, sn tese de
u m rei e de u m rein o, com in stitu ies, territrio, cu ltu ra e au ton om ia
econ m ica, perfilan do-se n o arepago das n aes crists com o con stan te
aliada do papado, recon h ecen do a m atriz crist e latin a da su a tradio h istrica, caldeada com as vrias cu ltu ras e etn ias qu e en riqu eceram o seu
con vvio em tem pos m edievais (su eva, goda, h ebraica, m u u lm an a). Experim en tan do e extrain do da experin cia u m a atitu de poltica de acau telam en to peran te a existn cia estru tu ral de du as fron teiras de equ ivalen te
im portn cia, a terrestre e a m artim a, o fim dos tem pos m edievais em Portu gal e o in cio das diretrizes m odern as afirm am -se n a 2. din astia, de
D. Joo I a D. Joo II, com ean do, n esta m esm a altu ra, aqu ilo a qu e Jorge Borges de Macedo ch am ou de exportao de estado, ou seja, a exportao, para reas civilizacion ais extra-eu ropias, dos m odelos de organ izao poltica, social, econ m ica, cu ltu ral e religiosa j experim en tados n a
Eu ropa, n o sen tido de con tribu ir para u m a relao global dos vrios con textos evolu tivos escala m u n dial(3).3 Tal m ovim en to coexistiu com a
afirmao da mais an tiga alian a portu gu esa com a In glaterra n o Tratado
de Win dsor de 1386 e n o casam en to do rei de Portu gal com a filh a do Du qu e de Len castre, com o estreitam en to dos vn cu los fam iliares e de cooperao cu ltu ral e econ m ica com o Gro Du cado da Borgon h a, com o casa-

109

Maria do Rosrio Themudo Barata

m en to da In fan ta D. Isabel, filh a de D Joo I e de D. Filipa de Lan castre,


com o Du qu e Filipe o Bom , sen do os pais de Carlos, o Tem errio, com as
alian as fam iliares e relaes polticas de ou tros prn cipes de Avis com a
realeza e a gran de n obreza de Arago e Hu n gria, a qu e se vm ju n tar laos com as cortes italian as e m ais tarde com o prprio Im prio Alem o (casam en to de D. Leon or irm de D. Afon so V com o Im perador Frederico
III), en qu an to, con com itan tem en te, se verificava o casam en to de vrias
in fan tas portu gu esas com os reis de Castela.
Mas j ou tra direo de desen volvim en to tom ava a vida portu gu esa: com Ceu ta, em 1415, com eava a con qu ista de terras african as, com
Gon alves Zarco, em 1419, e com Tristo Vaz Teixeira e Bartolom eu Perestrelo, com Porto San to e Madeira, com eava o povoam en to das Ilh as
do Atln tico. A Ordem de Cristo, sob a direo do In fan te D. Hen riqu e,
tom ava a diretriz da expan so portu gu esa, liderada pela coroa a partir de
D. Joo II. A costa african a era recon h ecida e freq en tada, perm itin do,
aps dobrar o Cabo Adam astor por Bartolom eu Dias n o com eo do an o
de 1488, o su cesso da viagem de Vasco da Gam a at a n dia em 1498.
Dois an os depois era a oficializao do con h ecim en to das Terras de Vera
Cru z, o Brasil.
Fatos qu e pressu pem a afirm ao de u m Estado para serem possveis e para serem aceitos j em n vel in tern acion al, dada a con corrn cia de
idn tico m ovim en to, de Castela para as Can rias e de Castela e Arago n o
Norte de frica, e do con com itan te in teresse de viajan tes italian os e do
Norte da Eu ropa, eles coexistem com a presen a portu gu esa n os assu n tos
eu ropeu s. Pois so con com itan tes o fortalecim en to dos laos econ m icos
e cu ltu rais com a Flan dres e com o Norte e Cen tro da Eu ropa, atravs das
feitorias de Bru ges e An tu rpia, bem com o a presen a n o Mediterrn eo
em con ju n to com os m ercadores aragon eses, catales e italian os, o jogo
poltico de equ ilbrio das potn cias italian as da Paz de Loddi e as ten tativas polticas de afirm ao do Papado de Nicolau V e de Pio II, com o apelo cru zada e liga con tra o Tu rco, a qu e D. Afon so V preten de respon der. O rei de Portu gal, gorada a cru zada, in vestir n as cam pan h as african as, m as fica registrada a su a atitu de n o debate dos tem as qu e in teressavam os vrios rein os eu ropeu s. Con h ece-se, da m esm a form a, a im portn cia qu e assu m iu a presen a dos legados portu gu eses n os con clios do scu lo XV, bem com o n as u n iversidades eu ropias.
Com o provas sign ificativas desta avaliao podem apon tar-se, para
a segu n da m etade do scu lo XV, dois tratados fu n dam en tais: o de Alcovas-Toledo (1479/ 80) e o de Tordesilh as (1494). Negociados n o m bito pen in su lar, para resolver, o prim eiro deles, o con ten cioso en tre as casas rein an tes de Portu gal e Castela, sobre os problem as dos acordos de pescas, da
posse das Can rias e de u m a dem arcao de reas de expan so m artim a

110

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

pelos paralelos, dem on stran do a m aior preocu pao pelos territrios african os e m editerrn icos; celebrado, o segu n do, com o o cu lm in ar da m tu a
avaliao en tre D. Joo II e os Reis Catlicos Fern an do e Isabel, de Arago
e Castela, e propon do a diviso do globo terrestre em dois h em isfrios dem arcados por u m m eridian o a 370 lgu as das ilh as de Cabo Verde para a
parte do Poen te. Este tratado provava a im portn cia de qu e o Atln tico se
revestia para os poderes pen in su lares n o fin al do scu lo XV, talvez m ais do
qu e u m a viso m u n dial, qu e poder su rgir com o forada se se aten der
preocu pao fu n dam en tal expressa n os prprios tratados qu an to vigiln cia do acesso aos portos pen in su lares e a Lisboa, prim eiro porto de en trada n as viagen s de regresso e se se lem brar o debate qu e m an ifesta as d vidas qu an to form a de dem arcar o m eridian o n as reas do Pacfico. Mas
a form u lao das prprias d vidas tem a van tagem de datar, de m u ito
cedo, o in teresse pelo con h ecim en to geogrfico da Terra, qu e acom pan h a
toda a fase das n avegaes portu gu esas m edievais e m odern as.
Em com parao, a atitu de dos ou tros Estados eu ropeu s em term os
de relaes extern as n a Eu ropa eviden cia ou tras direes e ou tras precedn cias, se bem qu e con tem porn eos. Com eava, em 1498, o avan o do
rei de Fran a con qu ista do rein o de Npoles, prim eiro passo para as
Gu erras de Itlia, qu e ocu pam as vrias potn cias eu ropias, em vrias fases e com vrios protagonistas, que s se solucionaro no tempo de Filipe II
de Espan h a, provada a in eficcia da Liga Perptu a dos Estados Italian os 30
an os an tes, com a aceitao da Fran a de Hen riqu e II, n a ten tativa de debelar o avan o do Tu rco Otom an o e de con segu ir a su a con ten o n o Mediterrn eo Orien tal e qu an do am bos os reis coin cidiam n a von tade de su ster o avan o da reform a protestan te. Peran te estes in teresses gerais da Eu ropa, a aten o pelo Atln tico tin h a, n o fin al do scu lo XV e n o prin cpio
do scu lo XVI, em Portu gal e em Espan h a os prim eiros defen sores, o qu e
n o qu er dizer qu e h ou vesse desin teresse pelo qu e se passava n a Eu ropa.
E a prova m ais clara o debate con ju n to dos tem as do ren ascim en to cu ltu ral e artstico e dos tem as da expan so, a qu e a produ o da im pren sa se
dedica con com itan tem en te.
Mas retom em os as con sideraes acerca dos acordos in tern acion ais
n o com eo da Modern idade, ou seja, n o tem po de D. Joo II e dos Reis Catlicos. A este tem po segu e-se o rein ado de D. Man u el I. o tem po da
vice-realeza da n dia, dos prim eiros bispados u ltram arin os, do prestgio da
Casa da n dia e da Feitoria de An tu rpia. o tem po das relaes de Portu gal com o Im prio de Maxim ilian o, das em baixadas de au scu ltao e
aproxim ao dos dois im prios, con tin en tal e m artim o, propon en tes am bos de u m a icon ologia de triu n fo poltico, u m o Sacro Im prio Rom an o
Germ n ico, o ou tro o do sen h orio da con qu ista, n avegao e com rcio da
Etipia, Arbia, Prsia e da n dia. Expoen tes cu ltu rais de dim en so eu ro-

111

Maria do Rosrio Themudo Barata

pia, Dam io de Gis, Erasm o,Tom s Moru s e Albrech t Du rer so prova da


con vergn cia dos seu s in teresses.
Tal posio a n vel extern o n a Eu ropa acom pan h ada por u m processo de in stitu cion alizao e desen volvim en to in tern o em Portu gal, qu e
h aver in teresse em recordar em traos m u ito gerais. Defin ido o esqu em a
cen tral das in stitu ies e a orden ao dos gru pos sociais n as Ordenaes,
dele decorre ou com ele se relacion a a orgn ica das ou tras in stitu ies e
das relaes dos gru pos sociais. Corte e poder cen tral, os Gran des Tribu n ais, a Fazen da, as n ovas leis da gu erra, a reform a dos forais, a Casa da
n dia, a Mesa da Con scin cia, a In qu isio, os diversos Regim en tos qu e
acom pan h am a expan so u ltram arin a, o m ecen ato artstico e a expresso
de u m estilo porven tu ra portu gu s design ado por Man u elin o, u m a cu ltu ra h u m an stica e de experin cia, eis u m con ju n to de fatores qu e n o se
com padece com qu alqu er avaliao desvalorizan te em relao Eu ropa.
No en tan to, h u m a perda de poder efetivo n o fin al da Din astia de Avis,
u m a qu esto in stitu cion al de regim e absolu to de m on arqu ia h ereditria e
de situ ao estratgica. Portu gal vai perder a capacidade de optar peran te
a diversidade do jogo de alian as n a Eu ropa, vai perder a m an u ten o da
vigiln cia poltica e diplom tica e at, segu n do Jorge Borges de Macedo,
vai perder a posio de sign ificado especial peran te a San ta S. Para isso
con tribu ir o fato de am bas as fron teiras, terrestre e m artim a, serem dom in adas pelo m esm o poder, o de Espan h a. Tu do isto foi tradu zido e levou
perda da In depen dn cia em 1580. A partir daqu i, tam bm , o in terlocu tor dos in teresses m ajoritrios da expan so u ltram arin a peran te a Eu ropa
passava a ser o rei de Espan h a.
Como se explica este sentido de evoluo aps o reinado de D. Manuel I?
Tin h am su cedido diversos tem pos e diversos protagon istas. Por m orte dos
Reis Catlicos e do Im perador Alem o, tom ara corpo o Im prio de Carlos
V, con tin en tal e m artim o. Com o n ovo poten tado o rein o de Portu gal celebrara o Tratado de Saragoa de 1529 qu e teve por fim esclarecer a dem arcao do m eridian o orien tal e a qu esto das Molu cas, n u m a altu ra
em qu e o Im perador tom ava parte n as gu erras de Itlia e os seu s exrcitos saqu eavam Rom a. No en tan to, Carlos V ser coroado pelo Papa, sen do o ltim o im perador a s-lo. Em relao ao equ ilbrio pen in su lar, os casam en tos de Carlos V com D. Isabel irm do rei portu gu s e o casam en to
de D. Joo III com a irm m ais n ova do Im perador, D. Catarin a de u stria, reforavam as possibilidades de u m dia se verificar a u n io de poderes, a u n io n a Pen n su la Ibrica peran te a Eu ropa, qu e arrastaria, con seq en tem en te, a u n ificao da in flu n cia expan sion ista n os territrios de
alm -m ar. Mas, peran te os problem as su rgidos n os vrios territrios de
seu dom n io, aberta a gu erra com os protestan tes, reacesa a lu ta con tra o
Tu rco, m an tidas as divergn cias polticas com a Fran a, n o h , ao tem -

112

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

po, celebrao de u m acordo in tern acion al qu e vin cu le, n a Eu ropa, a


apreciao poltica de am bas as dim en ses, a dim en so con tin en tal e a
dim en so m artim a. En qu an to os assu n tos da expan so eram debatidos
en tre Portu gal e Espan h a, n a poltica eu ropia in tern a o equ ilbrio era
procu rado por u m a poltica de alian as e diplom acia fam iliar pelo im perador, qu e, n o obstan te, con siderar ter de abdicar e dividir o seu vasto
Im prio, diviso qu e leva a efeito em 1555 e em 1556 e qu e afasta os territrios alem es dos territrios da expan so, con fiados a seu filh o Filipe II
de Espan h a, ju n tam en te com Npoles, Milo, o Fran co Con dado e os Pases Baixos. A diversidade de in teresses pela expan so u ltram arin a, por
parte dos vrios rein os eu ropeu s, con trapu n h a-se posio m ajoritria de
Filipe II e o prim eiro e m ais im portan te con flito exprim e-se n a revolta das
Provn cias Flam en gas.
Man ifestan do a oposio qu e se gen eralizava n a Eu ropa h egem on ia
de Filipe II de Espan h a, 3 an os depois da partilh a do Im prio, em 1559, Isabel I de In glaterra e a Fran a apoiaro os Pases Baixos. Hen riqu e IV recon h ecer, em 1609, a separao das Provn cias Un idas n a Un io de Utrequ e.
E em breve se desen h a o su rto da expan so u ltram arin a h olan desa.
Para trs ficavam os con flitos da coroa portu gu esa com algu n s rein os eu ropeu s n o qu e respeitava a expan so atln tica, casu stica de qu e foi
expresso o Tribu n al de Presas de Bayon n e, prim eiro tribu n al in tern acion al para qu estes de direito m artim o en tre gran des Estados n a poca m odern a n a Eu ropa, in stitu do en tre as coroas de D. Joo III e de Fran cisco I
de Fran a, e qu e veio a en cerrar com u m passivo de volu m osos processos
solvidos en tre as du as cortes s com o decorrer dos tem pos. A con testao
eu ropia ao m are clau su m pen in su lar esboava-se para n o m ais se calar, in sistin do a In glaterra n a n ecessidade de dem on strao do exerccio
efetivo de dom n io para o recon h ecim en to in tern acion al da posse.4
Entretanto, os interesses europeus e os interesses ultramarinos sero
representados conjuntamente, pela primeira vez, em sentido amplo, no
Tratado de Cateau-Cambrsis, de 3 de abril de1559. Tratado internacional
que ps termo ao conjunto de interesses em luta nas chamadas Guerras de
Itlia, Cambrsis marcou uma etapa na definio do equilbrio europeu no
comeo da segunda metade do sculo XVI. Nele se tratou da partilha de influncias na Itlia e na Flandres, nas rotas que ligavam a Europa Ocidental
Itlia e ao Mediterrneo. A a Espanha conseguiu, da Frana, o corte da
ajuda ao Turco Otomano e o mesmo empenho na luta contra os protestantes. No tratado esteve representada a maioria das potncias europias, da
que as coroas peninsulares pretendessem obter, concomitantemente, a
aceitao, pelos vrios reinos europeus, dos termos da partilha dos territrios da expanso ultramarina feita entre Portugal e Espanha, para que se
afastassem os motivos de luta martima, ao mesmo tempo que se solucio-

113

Maria do Rosrio Themudo Barata

nava o conflito continental na Europa. Tema de prestgio para o rei de Espanha Filipe II e a Casa de Sabia, num tempo em que a representao portuguesa enfraquecia politicamente porque se estava em regncia na menoridade de D. Sebastio (D. Joo III morrera em 1557 deixando um rei de 3
anos apenas), as negociaes foram conduzidas pela diplomacia espanhola
e com o trunfo do fato da vitria espanhola na Batalha de S. Quentino com
a presena do prprio rei. Apesar de os representantes da corte portuguesa, ou seus mandatrios, estarem presentes nas conversaes, os interesses
espanhis na rpida obteno da paz na Europa ditaram, como explicou Filipe II regente de Portugal, sua tia D. Catarina de ustria, que no se insistisse na incluso do assunto da capitulao sobre os territrios da expanso e sobre o exclusivo da sua freqentao no articulado do tratado, para
no prejudicar, com isso, a negociao dos termos da paz geral. No entanto, teria sido reconhecido, verbalmente, o direito de Portugal e de Espanha,
tendo a Frana tomado o compromisso de no se dirigir aos territrios de
descobrimento e ocupao pelos peninsulares, desenhando-se, na seqncia, para a Frana, uma reserva para a prpria expanso, nos territrios de
latitude norte no continente americano.5
No aspecto m artim o, a vitria qu e se celebrar, pou cos an os depois,
a da arm ada crist com an dada por D. Joo de u stria, em Lepan to em
1571. Era, n o en tan to, u m a vitria n o Mediterrn eo.
Relaes in diretas com a Eu ropa, n o pon to de vista da represen tao poltica portu gu esa? Se h certo recu o n a m en oridade de D. Sebastio
qu e correspon de aos prim eiros an os de govern o de Filipe II, este preju zo
ser com pen sado pelo reatar de laos diplom ticos diretos com as vrias
potn cias eu ropias por D. Sebastio, qu an do tom a posse efetiva do poder
em 1568. A ele se deve n ova poltica n o Atln tico Su l, a abertu ra do percu rso m artim o do Atln tico livre in iciativa dos seu s vassalos, o in teresse por An gola, pela Min a, pelas Ilh as e pelo Brasil, o in cen tivo evan gelizao, agora con fiada prioritariam en te Com pan h ia de Jesu s. n o seu
tem po recon qu istado o Rio de Jan eiro e os fran ceses so afastados da Baa
de Gu an abara; con tin u am -se as relaes com o Im prio Alem o, cu jos com ercian tes en caram o com rcio com o Orien te por rota portu gu esa em
n ovos term os. Ren ovam -se as relaes diplom ticas diretas com a In glaterra, en qu an to a corte portu gu esa qu ereria aproxim ar as cortes de Lisboa
e de Paris, propon do-se, para isso, o casam en to de D. Sebastio com a filh a de Catarin a de Mdicis. As relaes de Portu gal e da San ta S, n o tem po do pon tificado de Pio V, eram au spiciosas.
Alccer Qu ibir em 1578 e a crise din stica qu e se m an ifestou com a
m orte do rei e de gran de parte da n obreza, o im passe criado ao fu n cion am en to das in stitu ies du ran te o breve rein ado do Cardeal-Rei, a su a m orte, o avan o de u m partido a favor de Filipe II de Espan h a, a reserva da
Casa de Bragan a e a derrota m ilitar e poltica do Prior do Crato explicam

114

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

a solu o por u m a m on arqu ia du al aceita n as Cortes de Tom ar qu e, se declarava garan tir a separao in stitu cion al do rein o de Portu gal, n o garan tia a posse e exerccio dos poderes soberan os da realeza em separado, pois
qu er de Espan h a qu er de Portu gal eles seriam exercidos por Filipe II.
Acordo qu e pareceria van tajoso n o dom n io u ltram arin o por ser
u m a form a de lu tar con tra a pirataria n os m ares, acordo qu e fortaleceria
a m on arqu ia catlica e qu e parecia u m a garan tia peran te a Eu ropa dividida pela gu erra religiosa, a faln cia de tais objetivos torn a-se u m fato
m edida qu e os con flitos con tra Filipe II se acen tu am e se desen rola a
Gu erra do Trin ta An os. Iden tificados pelos estran geiros os in teresses de
Portu gal com os de Espan h a, os portu gu eses tm de procu rar estabelecer, n o dom n io privado, a teia de relaes econ m icas, sociais e cu ltu rais tradicion ais com o Norte da Eu ropa, ao m esm o tem po qu e lu tam
con tra ou tros eu ropeu s con corren tes n as regies portu gu esas do dom n io u ltram arin o. O dom n io filipin o coin cide com a form ao das Com pan h ias das n dias h olan desa e in glesa, com a su a posio con corren cial
n o n dico, com problem as em An gola, com a fixao h olan desa n o Brasil. En du recida a poltica in tern a espan h ola n os rein ados de Filipe III e
Filipe IV, torn a-se cada vez m ais con scien te a von tade de restabelecer a
in depen dn cia poltica e o fu n cion am en to portu gu s das in stitu ies do
rein o de Portu gal. A Restau rao da In depen dn cia de Portu gal e o m ovim en to do 1. de dezem bro de 1640 tm , assim , u m du plo e in dissocivel sen tido: o do restabelecim en to do fu n cion am en to das in stitu ies do
rein o de Portu gal de form a prpria e in depen den te e o da garan tia do recon h ecim en to e da participao de Portu gal n a poltica in tern acion al
com o rein o soberan o. Am bos os sen tidos esto in dissociados do destin o
dos territrios portu gu eses de alm -m ar. 6
Estes so os objetivos fu n dam en tais para a poltica portu gu esa n os
scu los XVII e XVIII, n u m a Eu ropa em qu e declin a o poder de Espan h a, e
qu e se m an ifesta o prestgio da m on arqu ia fran cesa de Lu s XIV e se prepara a h egem on ia m artim a da In glaterra. Mas tam bm se torn ava eviden te a com petio pelo Atln tico en tre a Fran a, a Holan da e a In glaterra,
qu e dita o acau telam en to, por parte de Portu gal, da situ ao n os seu s territrios atln ticos, o esforo pela libertao do Brasil e de An gola e o com bate peran te o ataqu e dos h olan deses e in gleses n o n dico. o tem po da
organ izao dos com bios de acom pan h am en to s frotas m ercan tes, da
discu sso das van tagen s e in con ven ien tes das com pan h ias de com rcio, da
gen eralizao da discu sso em torn o das m edidas m ercan tilistas para lu tar
con tra a con corrn cia estran geira. bem certo qu e o scu lo XVII o da
atlan tizao das aten es, com o vin cou Jorge Borges de Macedo.
No plano interno, na Europa, a par dos complexos problemas que se
exprimiram em revoltas ou revolues, assistia-se profissionalizao da
guerra, renovao do armamento, ao aumento do poder de tiro, ao au-

115

Maria do Rosrio Themudo Barata

mento do nmero de contingentes militares e da sua disciplina, importncia das fortificaes, enquanto, a Leste, continuava o combate contra os
Turcos, em que a ustria consegue resultados importantes que vincam a
sua preeminncia na poltica europia. Mais a Norte, novo debate poltico
e militar se desenhava, para o controle do Bltico. E nos fins do sculo XVII
parecia vitoriosa a tentativa da Unio Bourbon por parte da potncia mais
continental (a Frana) com a potncia mais martima (a Espanha) no coroamento das expectativas de Lus XIV desde a Paz dos Pireneus.
Creio qu e seria ch egada a altu ra de relem brar as posies cien tficas in vocadas ao prin cpio, para esboar u m a in terpretao de con ju n to
da ao diplom tica de Portu gal n os scu los clssicos do ancien-rgime: as
teses de Orlan do Ribeiro e Jorge Borges de Macedo con firm am -se pelo
qu e dado com preen der da atitu de dos respon sveis portu gu eses n a su a
defin io de n eu tralidade n a poca m odern a. A n eu tralidade n o m ais
do qu e a l cida observao de qu e a Portu gal in teressa n o h ostilizar a
Espan h a, e as su as aliadas con tin en tais, ao m esm o tem po qu e se aproxim a da In glaterra, qu e n o pode ter com o in im iga n as qu estes u ltram arin as. As relaes de Portu gal com a Fran a, com as zon as flam en gas e
h olan desas, do Mar do Norte e Bltico, do Im prio Alem o, do Im prio
Ru sso e com os sen h orios italian os sero avaliadas de acordo com a bipolarizao dos in teresses fu n dam en tais. Im pon dervel estar sem pre a
aproxim ao San ta S. Su bjacen tes, s vezes con traditrias, as opes
cu ltu rais. Mas com o fio con du tor ou in terpretao m ais geral, creio qu e
o sen tido das opes seria o esboado: o sen tido problem tico em qu e as
opes foram tom adas, a razo de atitu des pon deradas qu e n o se devem
apresen tar com o m eras h esitaes ou com o pu ro resu ltado dos jogos de
in flu n cia. Assim poderam os recon stitu ir a realidade dos debates de qu e
tem os con h ecim en to e descrever a poltica com o o resu ltado do acaso, da
n ecessidade e da arg cia.
A partir de 1640 Portu gal recu pera a In depen dn cia n o dom n io
in tern o e n o dom n io extern o. Poderem os dizer qu e, se as in stitu ies in tern as da m on arqu ia se reforam n o rein ado de D. Joo IV, em se tratan do da corte, tribu n ais su periores, levan tam en to dos gru pos m ilitares para
a gu erra con tin en tal e para a in depen dn cia dos territrios u ltram arin os
com a criao do Con celh o de Gu erra e do Con celh o Ultram arin o, com pan h ias de com rcio, vitalizao da ln gu a e da cu ltu ra, reafirm ao do
papel das u n iversidade e das gran des in stitu ies religiosas, bem com o
dos cam in h os de u m a arte n acion al, n o rejeitan do a m odern izao qu e
poderia ter in trodu zido o govern o filipin o, a recu perao da represen tao extern a do Estado soberan o foi m ais difcil. A Espan h a protestou peran te as potn cias eu ropias o carter de rebelio con tra o rei qu e, n a su a
perspectiva, represen tava a Restau rao de 1640, levan do ao n o recon h ecim en to do rei de Portu gal pelo prprio papa. A posio espan h ola

116

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

explica qu e, n os Tratados de Westeflia de 1648, em qu e se tratou de n egociar e acordar a situ ao eu ropia aps a Gu erra dos Trin ta An os, se debateu o destin o do Im prio Alem o, se vin cou o su cesso das estratgias
su eca e fran cesa, e em qu e tom aram parte todas as potn cias eu ropias
salvo a In glaterra, o Tsar e o Tu rco, Portu gal n o tivesse possibilidade de
creditar agen tes reu n io das potn cias catlicas, em Mu n ster, ten do-lh e
apen as sido facu ltado figu rar n o squ ito da Fran a em Mu n ster e ten do a
Su cia viabilizado o acesso reu n io protestan te em Osn abru ck. Portu gal
con segu iu acordos com a Fran a e com a Holan da em 1641. Mas os agen tes diplom ticos portu gu eses eram persegu idos e atacados, sen do m u itas
as dificu ldades postas su a ao. No en tan to, a Holan da acordava a paz
com a Espan h a em 1648. Portu gal e a Espan h a s acordaro a paz 20 an os
depois, n o Tratado de Madri, aps a paz celebrada en tre a Fran a e a Espan h a, n os Piren eu s, em 1659. Pelo qu e Portu gal voltava-se, de n ovo,
para a In glaterra, n o tem po de Crom well e, depois, com o restau rado rei
Carlos II Stu art. A alian a de Portu gal com a In glaterra fortalecia-se com
o casam en to da filh a do rei restau rador, D. Catarin a de Bragan a, com o
rei in gls. Com o cau o ou dote iam du as praas m artim as qu e vo ter
especial im portn cia n o Im prio m artim o britn ico: Tn ger e Bom bam .
Mas tem de se lem brar qu e foi a In glaterra, e n o a Fran a, a m ediadora
do Tratado de Paz en tre Espan h a e Portu gal.7
O reforo do regime, a estabilizao do regime interno continuava o
seu curso, aps a morte de D. Joo IV, na regncia de D. Lusa de Gusmo,
no trgico reinado de D. Afonso VI, sustido pelo escrivo da puridade Conde
de Castelo Melhor, perante as crises de corte, a guerra com Espanha e o no
reconhecimento da monarquia portuguesa pela Santa S, talvez, segundo
Joaquim Verssimo Serro, o mais difcil caso a resolver nas relaes internacionais, pelas graves conseqncias que acarretava a sua no-soluo
tanto em nvel interno como externo, com a excomunho da pessoa do rei
e o no-provimento de cargos eclesisticos nos territrios portugueses na
Europa e no Ultramar. Na corte portuguesa de D. Pedro II exprimiam-se
opinies divergentes, favorveis umas aproximao com a Inglaterra, outras ao estreitamento das relaes com a Frana. Mas o certo que, feita a
paz, conselheiros, elementos do clero e do povo teriam instado D. Pedro a
no tomar parte nas guerras europias. Reforava-se o desejo de neutralidade e concomitantemente refaziam-se laos polticos com as potncias europias. Aps o casamento do rei com D. Maria Francisca Isabel de Sabia,
polarizadora da aproximao com a Frana de Lus XIV, D. Pedro, vivo e
sem filho varo, realizava o seu segundo casamento no Imprio Alemo.
Em relao ao papado, s aps a paz de 1668, entre Portugal e Espanha, o
papa Clemente IX promulga um breve prometendo resolver a questo portuguesa que s ser normalizada a partir de 1670.8

117

Maria do Rosrio Themudo Barata

Poderem os apresen tar u m a viso de sn tese de u m scu lo qu e foi


design ado, por u m gran de especialista do scu lo XVII, com o o tem po do
Atln tico e do Brasil: refiro-m e a Frdric Mau ro e su a periodizao
1570-1670. No de estran h ar qu e, n a gu erra do fin al do scu lo XVII, e
aps u m a aproxim ao da Fran a, Portu gal ir se aliar u stria e s potn cias m artim as, In glaterra e Holan da, a vrios prin cipados alem es,
Din am arca e Sabia. Tem os de in sistir em qu e, em term os de con tin en talidade, a relao de Portu gal com o Im prio n o era n ovidade n em
deixar de ser u m a lin h a con stan te pois qu e, ao casam en to de D. Pedro
com D. Maria Sofia de Neu bu rgo, filh a do Con de Palatin o do Ren o, segu e-se o de seu filh o, D. Joo V, com D. Maria An a de u stria, irm do
Arqu idu qu e Carlos preten den te ao tron o espan h ol e qu e ser o Im perador Carlos III. Estas relaes com o Im prio tero u m am plo sign ificado
poltico, cu ltu ral e econ m ico: basta lem brar, com o exem plo, o qu e represen tou a experin cia da corte au straca para Sebastio Jos de Carvalh o e Melo, o fu tu ro Marqu s de Pom bal, o clebre m in istro de D. Jos I.
A im portn cia das relaes de Portu gal com o Im prio Alem o m an tm se apesar de e at porqu e, ten do o can didato au straco sido ch am ado a su ceder n o tron o im perial, foi o can didato Bou rbon qu em veio, fin alm en te,
a ocu par o tron o de Espan h a.
En tretan to, ficara provado qu e a gu erra n o se podia fazer, in distin tam en te, n a Eu ropa, sem con seq n cias n os territrios da expan so.
Os tratados de Ryswick, qu e de certa form a tin h am sido o corolrio da
oposio da Eu ropa h egem on ia da Fran a, j o tin h am dem on strado,
in serin do n o seu articu lado clu su las respeitan tes a zon as de in flu n cia
n o Ultram ar. Passa-se o m esm o com os tratados fin ais da Gu erra da Su cesso de Espan h a: os tratados de Utrech t (1713) e de Rastadt (1715) redefin em a situ ao in tern acion al, n a Eu ropa, n a sia e n a Am rica. No
Ultram ar, on de os con flitos se tin h am esten dido Costa da Acdia, zon a
do Rio de Jan eiro, a Holan da perdia os direitos qu e detivera n os territrios da Baa de Hu dson ; Lon dres ficava com os con tratos de provim en to
de escravos a Espan h a, gan h ava a Acdia, qu e vai ser ch am ada Nova Esccia, os territrios de Port Royal e An polis, Hu dson , Terra Nova, S. Cristvo n as An tilh as. Gan h ava, tam bm , Gibraltar e Min orca n o Mediterrn eo. A In glaterra exigia qu e a Fran a destru sse a fortificao de Du n qu erqu e e in den izava a Fran a cu sta da Holan da, dan do-lh e a an tiga
Ilh a Mau rcia, rebatizada Ile de Fran ce. E acordos do m esm o sen tido eram
n egociados n o n dico.
Na Eu ropa, a u stria reobtin h a territrios n os Pases Baixos e n a
Itlia, territrios qu e tin h am perten cido ao Im perador Carlos V ( e obtm n os cu sta da Holan da e da Espan h a), voltan do a su rgir, qu er n o Atln tico qu er n o Mediterrn eo, com o potn cia m artim a. Sabia obtin h a para

118

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

seu Du qu e o ttu lo de Rei do Piem on te e da Siclia. E o Bran debu rgo obtin h a, igu alm en te, o ttu lo de rei, con stitu in do-se, assim , o em brio do Rein o da Pr ssia. Portu gal vin cara, en tretan to, os laos polticos e n o s econ m icos com a In glaterra n o Tratado de Meth u en de 1703 e acordava, n o
Brasil (em qu e a Fran a m an tin h a in teresses n o Maran h o) o aju stam en to da fron teira com a Gu ian a Fran cesa, n o territrio da foz do Am azon as,
bem com o com a Espan h a n o Rio da Prata. A colaborao de Portu gal n a
poltica da Gran de Alian a, posta de lado a h iptese de apoio ao partido
Bou rbon , defen dida, n o obstan te, com o altern ativa, n a corte de D. Pedro
II, m otivava a aproxim ao dos in teresses de Portu gal com os in teresses
in gleses, au stracos e h olan deses. E n esta opo de alian a tin h a pesado,
n o s a von tade de afastam en to da alian a Fran a-Espan h a, m as tam bm
a procu ra de garan tia para os in teresses u ltram arin os.
Esta a leitu ra do sen tido das n egociaes, n a con ju n tu ra da Gu erra da Su cesso de Espan h a, em qu e Jorge Borges de Macedo in clu i a in terpretao do Tratado de Meth u en . Nele tin h a-se prom etido a Portu gal a
cedn cia de algu m as praas espan h olas, com o Badajoz, Albu qu erqu e, Valn cia de Alcn tara, e Tu i, La Gu ardia, Baion a da Galiza e Vigo, alm da
Coln ia do Sacram en to. Os portu gu eses tin h am avan ado em 1706 tomando vrias praas espanholas. Mas nesse mesmo ano morria D. Pedro II
de Portu gal, m orria o Im perador e o can didato Habsbu rgo ao tron o espan h ol regressava s terras alem s e receberia o Im prio. Nos Tratados de
Utrech t e Rastadt Portu gal pediu a con stitu io de u m a zon a de fron teira
com praas de garan tia en tre Portu gal e Espan h a. Seria a Barreira sem elh an te qu e fora pedida pela Holan da em relao Fran a. Mas n o o
con segu iu . Obteve, isso sim , a Coln ia do Sacram en to.
In tern acion alm en te, os acordos de Utrech t e Rastadt sign ificavam ,
tam bm , a adm isso de n ovos prin cpios n o direito in tern acion al: a In glaterra fazia aceitar a n ova su cesso n a coroa in glesa da Din astia Han over,
con firm ada n a Declarao dos Direitos de 1689, segu n do a qu al o n ovo rei
n o o era por direito divin o, m as por ju ram en to peran te o parlam en to.
Qu ase qu e con com itan tem en te, n o Im prio, o Im perador Carlos VI regu lava a su cesso dos territrios au stracos por su cesso catlica, n a su a filh a
m ais velh a, Maria Teresa, pela Pragm tica San o de 1713. O Direito In tern o ren ovava-se, com o con seq n cia, tam bm , dos con flitos in tern acion ais. E an u n ciava-se o con flito u ltram arin o do scu lo XVIII: a rivalidade
en tre a Fran a e a In glaterra, en qu an to prossegu iam as pen dn cias en tre
Portu gal e a Espan h a sobre a regio Platin a e os lim ites m eridion ais do
Brasil, qu e prossegu em m esm o depois do Tratado de Madri de 1750.
En tretan to, o reforo das relaes de Portu gal com Rom a e a plen a
afirm ao do absolu tism o, n a su a feio patern alista, coin cide com o rein ado de D. Joo V, o Magn fico. Con siderada com o poca u rea do absolu tism o em Portu gal, teria correspon dido a u m a viso im perial qu e ps ao

119

Maria do Rosrio Themudo Barata

servio da ao m ecen tica n as artes e n a cu ltu ra os in gressos das riqu ezas u ltram arin as em qu e largam en te con tribu iu o ou ro do Brasil, a partir
de 1697. O rei de Portu gal desen volve u m a poltica de prestgio in tern acion al possibilitada pelo fortalecim en to in stitu cion al e cu ltu ral e pelo
apoio m aterial. As em baixadas portu gu esas ju n to da corte rom an a retomam importncia semelhante que revestira as do tempo de D. Manuel I:
a com prov-lo o fato de o Papa Ben to XIV, solvidas as dificu ldades das relaes com a coroa portu gu esa n a 4. din astia, ter con ferido a D. Joo V o
ttu lo de Fidelssim o, em 1748. Era, segu n do Jorge Borges de Macedo, a
Paridade Diplom tica en fim recon qu istada. No dom n io in tern o, a cidade
de Lisboa progredia com o m ercado de in teresse in tern acion al: o trfico
u ltram arin o, as m an u fatu ras, as con stru es u rban as, as academ ias, o esplen dor artstico do barroco joan in o referen ciam u m rein ado lon go e
prspero qu e s en trar em decln io com a doen a do rei. O an o de 1750
ser o in cio de u m a n ova poca.
O an o de 1750 ser, tambm, u m n ovo marco n as relaes in tern acionais, potencializando tendncias que eram anteriores. A neutralidade
reassumida no reinado do Magnfico como a melhor defesa balanada das
duas constantes da poltica portuguesa (a poltica continental e a martima)
surgira num novo contexto porque correspondera a um poder realmente
assumido, com capacidades e recursos tanto interna como externamente.
Compreende-se, assim, que a Frana tivesse evidenciado desconfiana em
relao neutralidade portuguesa, opondo-se a que Portugal estivesse presente nas negociaes entre a Frana e a Espanha que decorreram no Congresso de Cambrai de 1721 a 1722, considerando Portugal, sobretudo, como aliado da Inglaterra, cuja hegemonia martima temia. Era o tempo do
jogo diplomtico da Frana no reinado de Lus XV. Mas a Frana, pelo temor da Inglaterra, aproxima-se desta, afastando-se da Espanha, recusando
o casamento de Lus XV com D. Maria Ana Vitria, e preferindo o casamento do seu rei com a filha do rei da Polnia. Voltar, mais tarde, a reaproximar-se da Espanha. Na altura, porfiava em lutar contra a ustria e contra
os seus interesses continentais, levantando problemas sucesso no Imprio de Maria Teresa, acabando, no entanto, por reconhecer que os interesses continentais a levariam a aliar-se ustria para vencer a Inglaterra que,
por seu lado, contava no continente com outra aliada, a Prssia.
Du ran te o seu rein ado, D. Joo V dem on strou , m ais u m a vez, a
von tade de m an ter a n eu tralidade n as qu estes eu ropias, rebaten do
Lu s Ferran d de Alm eida as in terpretaes qu e con sidera apressadas do
Con de de Carn axide, segu n do o qu al D. Joo V voltara costas Eu ropa.
Haveria, sim , a m arcada prefern cia do rei pela dim en so atln tica e u ltram arin a, e n o con tin en tal, sen do Ferran d de Alm eida e Jorge Borges

120

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

de Macedo con cordes em su blin h ar o crescen te papel estratgico e econ m ico do Ocean o e das terras am erican as n o scu lo XVIII. Ou tro aspecto em qu e tam bm in siste Ferran d de Alm eida: D. Joo V qu ereria con ciliar esta poltica de n eu tralidade com a fidelidade In glaterra, torn an do este ltim o pon to u m a con dio in dispen svel para o tratado de n eu tralidade com a Espan h a. Nesta estratgia, a am izada fran cesa equ ilibraria o excesso de in flu n cia in glesa.
In tern acion alm en te, n a Eu ropa, afirm ava-se o m ovim en to con tin en tal de defesa con tra a In glaterra, qu e vai levar alian a en tre a u stria e a Fran a e ao an tibritn ica. O ch an celer au straco Kau n itz im pu lsion a a alian a com a Fran a para com bater a Pr ssia. Em Espan h a, o
m in istro Carvajal am bicion a aproxim ar-se de Portu gal e da In glaterra, ten tan do recu perar Gibraltar. A Espan h a tin h a a con vico qu e cedera peran te Portu gal n o Tratado de Madri de 1750, qu an to aos lim ites do Brasil e esperava, com a aproxim ao, u m gesto de boa von tade da parte in glesa,
com o diz Borges de Macedo. Peran te esta poltica desen h ava-se ou tra con trria, n a corte de Madri, expressa, en tre ou tros m in istros, por La En se ada, qu e preferia claram en te a alian a com a Fran a. E dava-se o caso de
tan to a Fran a com o a Espan h a qu ererem captar as relaes de Portu gal
para fortalecer as respectivas posies m artim as.
Ao m esm o tem po, n a Fran a, tan to qu an to n a u stria, n a Espan h a
e em Portu gal, n os an os 50 do scu lo XVIII, debatia-se a n ecessidade de reform u lar o regim e. E n esta problem tica se in sere a qu esto essen cial da
im portn cia das reform as de estado n os regim es absolu tos eu ropeu s dos
m eados do scu lo XVIII, realizadas n a u stria e em Portu gal e qu e n o tero sido con segu idas em Fran a, aceleran do-se a os an teceden tes e as m otivaes da Revolu o Fran cesa.
D-se, en to, o qu e a h istoriografia con sagrou com o a Revolu o
Diplom tica do scu lo XVIII, n o con ju n to de revolu es setecen tistas a
qu e perten ce a Revolu o In du strial e a acim a referida: o Tratado de Versailles de 1756 con sagra a alian a en tre a Fran a e a u stria (as du as potn cias con tin en tais tradicion ais opositoras n a poca m odern a) a qu e se
ju n tam , n o segu n do Tratado de Versailles, a R ssia e a Su cia. Peran te estas potn cias u n em -se a In glaterra e a Pr ssia, n os Tratados de Westm in ster.
Era o com eo da Gu erra dos Sete An os, con tra o Im prio Ultram arin o in gls.
Nesta con ju n tu ra tem a m xim a im portn cia o ch am am en to de
Portu gal. A n eu tralidade, n o tem po de D. Joo V, sign ificara in depen dn cia e garan tia do Atln tico. Mas tin h a-se efetu ado o casam en to de D. Jos,
fu tu ro rei de Portu gal com D. Maria An a Vitria in fan ta de Espan h a, bem
com o o da in fan ta portu gu esa D. Brbara com o fu tu ro rei de Espan h a Fern an do VI. Desses casam en tos esperava-se, en tre ou tras, a garan tia da

121

Maria do Rosrio Themudo Barata

gran deza do Brasil, recon h ecida n o Tratado de Madri de 1750. Os in gleses


atacavam os barcos fran ceses n as costas portu gu esas e a Fran a pedia satisfaes. A poltica espan h ola regressava alian a com a Fran a. Form ava-se o Pacto de Fam lia, em 1761, e Carlos III de Espan h a era-lh e claram en te favorvel. Tal fato con tin h a a obrigao de declarar a gu erra In glaterra. A Espan h a pression a Portu gal a en trar n o Pacto, am eaan do com
u m a in vaso qu e se d, efetivam en te, ao tem po em qu e est em Portu gal
o gran de estratega m ilitar Con de de Lippe. Tal ataqu e s ser su spen so
porqu e a gu erra geral term in a pelo Tratado de Paris de 3 de fevereiro de
1763. Na n egociao do tratado est presen te u m delegado portu gu s,
Martin h o de Melo e Castro. Torn a-se claro qu e Portu gal est n o cen tro de
todas as gu erras pelos in teresses estratgicos n a Eu ropa e n o Ultram ar.
O poder de Estado, em Portugal, fortalecia-se ao encontro das necessidades de defesa, no tempo de D. Jos I e do Marqus de Pombal. Ameaadas as relaes com a Santa S pela luta interna contra o poder da Igreja, as relaes so cortadas em 1760, pelas razes do poder iluminista. Mas
anos depois, na seqncia do apelo das monarquias iluminadas contra o
Papado, o Papa extingue a Companhia de Jesus, em 1773. Perante a derrota da Inglaterra que significa a Revoluo Americana (mais uma revoluo
a juntar tipologia das revolues do sculo XVIII, modelo de revoluo
atlntica?), com a vitria dos americanos em Saratoga em 1777 e o Tratado com a Frana em 1778, perfila-se a Neutralidade Armada, em 1782, posio de reserva da Rssia, Sucia, Dinamarca e a que adere Portugal. No
ano seguinte, em 1783, no Tratado de Versailles, d-se o reconhecimento
internacional da Independncia dos Estados Unidos da Amrica.
Mais u m a vez se ren ovam as presses sobre Portu gal n o qu e diz respeito en trada n a poltica do Pacto de Fam lia e aos territrios u ltram arin os, con texto em qu e os Tratados de San to Ildefon so de 1777 e do Pardo
de 1778, en tre Portu gal e a Espan h a, con stitu em dim in u io dos territrios do Brasil. No diferen do en tre a In glaterra e a Am rica, Portu gal qu er
m an ter a n eu tralidade, com o m an ifestou em 1780, resistin do presso espan h ola e fran cesa, n o se declaran do con tra a su a tradicion al aliada.
Na opin io p blica portu gu esa o carter revolu cion rio da Revolu o Fran cesa ficava clarificado. Portu gal procu ra estabelecer u m a u n idade
de ao com a Espan h a e oferece-se, por essa razo, com o m ediador en tre
a Espan h a e a In glaterra. Portu gal defen de a h iptese de u m a alian a en tre a In glaterra, a Espan h a e Portu gal: u m a proposta de an tecipao segu n do a leitu ra poltica da con ju n tu ra e qu e preten dia en globar, n u m plan o estratgico com u m , as du as potn cias qu e Portu gal n o podia ign orar
e qu e in teressava m over, n u m a coligao con tra a Revolu o Fran cesa.
Era a form a de acau telar, con com itan tem en te, os in teresses con tin en tais e

122

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

os in teresses m artim os. Mas este projeto foi im possibilitado pela adeso da
Espan h a aos ideais da Revolu o Fran cesa e lu ta con tra a In glaterra. As
potn cias con tin en tais, a breve trech o, declaram o Bloqu eio Con tin en tal
In glaterra. A in vaso de Portu gal ficava, desde en to, em in en te.
Nesta seq n cia, a opo de D. Joo, prn cipe regen te em n om e de
su a m e a rain h a D. Maria I, de em barcar com toda a corte e ru m ar em direo ao Brasil, efetivan do u m plan o apresen tado e discu tido peran te as
dificu ldades polticas portu gu esas desde, pelo m en os, a Restau rao de
1640, teve o plen o sen tido da defesa da soberan ia, correspon deu a u m a
opo respon svel preparada com an terioridade e prova, u m a vez m ais, a
im portn cia qu e o rein o de Portu gal atribu iu dim en so m artim a do seu
viver coletivo, n a Idade Modern a, dim en so m artim a qu e se desen volveu
oferecen do n ovas form as de viabilizar u m a von tade de in depen dn cia e de
m an ter a capacidade de escolh a do prprio regim e in tern o, peran te a presso con tin en tal.
Eis, em sn tese, o qu e se pode con clu ir da avaliao do m odo com o
Portu gal se relacion ou com a Eu ropa n a Idade Modern a.

123

Maria do Rosrio Themudo Barata

N OTA S
1. RIBEIRO, O., 1967.
MACEDO, J. B. de, s.d.
CORTESO, J., 1940.
2. Esta refern cia aos professores qu e, n as Un iversidades de Lisboa, Coim bra e do Porto, h
m u ito, se tm em pen h ado n o desen volvim en to dos estu dos h istricos sobre o Brasil, vem ao
en con tro da preocu pao de Jos Ten garrin h a de procu rar com preen der, n o h orizon te tem poral de seq n cia, a poltica portu gu esa, in clu in do as relaes extern as. Ver. TENGARRINHA, J. La historiografa portuguesa en los ltimos veinte aos. TENGARRINHA, J.; DE LA TORRE, H.; INDJI, T.; VOLOSIUK, O.; ALMODVAR, C., 1997.
3. MACEDO, J. B. de Th e Portu gu ese m odel of State Exportation . BLOCKMANS, W., MACEDO, J. B. de, GENET, J. P., 1996 .
4. BARATA, M. do R. T., 1971, p.122-31. ALBUQUERQUE, R. de, 1972.
5. ALBUQUERQUE, R, de. As regncias na menoridade de D. Sebastio. Elem en tos para u m a h istria estru tu ral, v. I-II,Tem as Portu gu eses, Im pren sa n acion al Casa da Moeda, 1992. v.I, p.221
e ss. Neste tratado, en tre Filipe II de Espan h a e Hen riqu e II de Fran a, so m en cion adas com o
en tidades n ele com preen didas a In glaterra, qu e estabelecera tratados prvios, o Im prio, os
sen h orios flam en gos, borgon h eses, Sabia (com particu lar relevn cia) e os sen h orios italian os. MOUSNIER, R., 1967. p.432.; ZELLER, G., 1963. p.38-9.
6. o tem po da ao de Joo Fern an des Vieira, em Pern am bu co, das du as batalh as dos Gu ararapes, de 1648 e 1649, da Restau rao de An gola, com Salvador Correia de S, em 1648,
da capitu lao dos h olan deses em 1654. SERRO, J. V., 1994.
7. Aqu i lem braram os as opin ies de Edu ardo Brazo sobre a perm an n cia do in teresse da
alian a en tre Portu gal e a In glaterra, apesar da aproxim ao da Fran a, da Restau rao de
1640 at Paz dos Pirin eu s, qu e sign ifica j o aban don o desta ten dn cia. Westeflia represen ta o in teresse das n egociaes para os pequ en os Estados, segu n do Jorge Borges de Macedo: a n egociao, m ais do qu e a gu erra o qu e in teressa a Portu gal. MACEDO, J. B. de, s.d.
8. A este respeito dever-se- lem brar a ao do dom in ican o, bispo e secretrio de Estado de
D. Pedro II, D. Fr. Man u el Pereira, Provin cial da Ordem , o 1 Bispo n om eado para o Rio de
Jan eiro, para on de n o ch egou a partir ten do-lh e sido pedida a con tin u ao dos servios n a
corte, on de foi o secretrio de Estado de el-rei de 1680 at su a m orte ocorrida em 1688. VALLE, T. L. M. do, 1994.

124

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

B IBLIOGRA FIA
ALBUQUERQUE, R. de. As Represlias. Estu do de Histria do Direito Portu gu s (scu los XV e XVI). Coim bra: Atln tida, 1972. v.I.
ALMEIDA, L. F. de. A Colnia do Sacramento na poca da Sucesso de Espanha.
Coim bra, 1973.
___. Alexandre de Gusmo, o Brasil e o Tratado de Madrid (1735-1750). In : (AUTOR?) Histria Moderna e Contempornea. Coim bra: In stitu to Nacion al de
In vestigao Cien tfica, Cen tro de Histria da Sociedade e da Cu ltu ra,
Un iversidade de Coim bra, 1990. v.5.
BARATA, M. do R. T. Rui Fernandes de Almada, diplomata portugus do sculo
XVI. Lisboa: In stitu to para a Alta Cu ltu ra, Cen tro de Estu dos Historicos
an exo Facu ldade de Letras de Lisboa, 1971.
___. As regn cias n a m en oridade de D. Sebastio. Elem en tos para u m a
h istria estru tu ral. In : Temas Portugueses. Lisboa: Im pren sa n acion al Casa da Moeda, 1992. v.I e II.
___. 1580 e o processo poltico portu gu s. In : VENTURA M. da G. M.
(Coord.) A Unio Ibrica e o Mundo Atlntico. Lisboa: Edies Colibri,
1997. p.47-64.
BLY, L., BRENGER, J, A. CORVISIER Guerre et paix dans lEurope du
XVIIe sicle. 2.ed. Paris: SEDES,1991. 2v.
BLOCKMANS, W., MACEDO, J. B de, GENET, -J. P. The Heritage of the PreIndustrial European State, The origins of the modern state in Europe, 13th to
18th century. Secon d Plen ary Con feren ce, Arqu ivos n acion ais Torre do
Tom bo. Lisboa: Diviso de Pu blicaes, 1996.
BRAZO, E. Histria Diplomtica de Portugal. 1934. 2v.
___. D. Joo V e a Santa S. As Relaes Diplomticas de Portugal com o Governo Pontifcio de 1706 a 1750. Coimbra: Coimbra Editores, 1937.
___. Relaes Externas de Portugal no reinado de D. Joo V. Porto. 1938. 2 v.
___. Relance de Histria Diplomtica de Portugal. Porto. 1940.
___. A Diplomacia Portuguesa nos sculos XVII e XVIII. v. I (1640-1700), Lisboa,
1979; v. II, Lisboa, 1980.
CAETANO, M. Portugal e a internacionalizao dos problemas africanos (Histria du m a Batalh a: da Liberdade dos Mares s Naes Un idas). 4.ed. revista. e am pliada Lisboa: tica, 1971.

125

Maria do Rosrio Themudo Barata

CORTESO, J. Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses. A Geografia e a


Econ om ia da Restau rao. Lisboa: 1940.
ELLIOTT, J. H., MOUSNIER, R., RAEFF, M., SMITT, J. W., STONE, L. Revoluciones y rebeliones de la Europa Moderna (Cinco estudios sobre sus precondiciones y precipitantes). Verso original inglesa, The Johns Hopkins
Press, 1970. Traduo espanhola. Madrid: Alianza Editorial, 1972.
FONSECA, L. A. da O Tratado de Tordesilhas e a diplomacia luso-castelhana no
sculo XV, estu do de (...). leitu ra de Maria Cristin a Cu n h a, obra com o
apoio cien tfico e cu ltu ral da Com isso Nacion al para as com em oraes
dos Descobrimen tos Portu gu eses, Programa Nacion al de Edies, Qu in to Cen ten rio (1492-1992). Lisboa: Edies In apa, 1991.
MACEDO, J. B. de Tratado de Meth u en . 1. ed. In : SERRO, (Dir.) J. Dicionrio de Histria de Portugal. In iciativas Editoriais, 1975. p.284-91. v.4.
___. Portu gal: u m destin o h istrico. In : PRIMEIRAS JORNADAS ACADMICAS DE HISTRIA DA ESPANHA E DE PORTUGAL, 25-27 de m aio
de 1988, Academ ia Portu gu esa da Histria. Lisboa, 1990.
___. A poltica atln tica de D. Joo II e o Mediterrn eo. CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA POCA. D. Joo II e a
poltica quatrocentista. v.I. Actas... Porto: Un iversidade do Porto, Com isso Nacion al para as com em oraes dos Descobrim en tos Portu gu eses,
1989, p.387-403.
___. Histria Diplomtica Portuguesa. Con stan tes e lin h as de fora. Estu do de
geopoltica. Lisboa: In stitu to de Defesa Nacion al, s.d.
MAGALHES, J. C. de. A diplomacia pura. Ven da Nova: Bertran d, 1995.
(Coleo En saios e Docu m en tos).
MARTINEZ, P. S. Histria Diplomtica de Portugal. Lisboa: Verbo, 1986.
MATTOSO, J.(Dir.) Histria de Portugal. Lisboa: Estam pa, 1993-1994. 8 v.
MAURO, F. Le Portugal et lAtlantique au XVIIe sicle.1570-1670. tu de con om iqu e. Paris: cole Pratiqu e des Hau tes tu des, SEVPEN, 1960.
___. Lconomie europenne et lAtlantique sud aux XVIIe et XVIIIe sicles (Brsil
et Portugal). V COLQUIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LUSOBRASILEIROS, Coim bra, 1965.
MEDINA, J. (Dir.) Histria de Portugal dos tempos pr-histricos aos nossos dias.
Ediclu be, 1993. 15v.

126

PORTUGAL E A EUROPA NA POCA MODERNA

MENDONA, M. As Relaes Externas de Portugal nos finais da Idade Mdia,


Lisboa: Colibri, 1994.
MORENO, H. B. A Diplomacia na Histria de Portugal. Um gran de diplom ata portu gu s do scu lo XV: o Dou tor Joo Fern an des da Silveira. In :
COLQUIO, ACADEMIA PORTUGUESA DA HISTRIA. Actas... Lisboa: 1990. p.93-103.
MOUSNIER, R. Le XVIe et XVIIe sicles. La gran de m u tation in tellectu elle de lh u m an it, lavn em en t de la scien ce m odern e et lexpan sion de
lEu rope. 4.ed. In : Crou zet, A. (Dir.) Histoire Gnrale des Civilisations. Paris, 1967.
PRESTAGE, E. As Relaes Diplomticas de Portugal com a Frana, Inglaterra e
Holanda de 1640 a 1668. Coim bra, 1928.
RIBEIRO, O. Portugal, o Mediterrneo e o Atlntico. (1.ed. 1945), 3.ed. Lisboa,
1967.
SANTOS, E. F. dos O Oratrio no Norte de Portugal (1673-1834). Porto, 1977. 3t.
SERRO, J.V. O Rio de Janeiro no sculo XVI. I, Estu do Histrico, II Docu m en tos dos Arqu ivos Portu gu eses, ed. Com isso Nacion al das Com em oraes do IV Cen ten rio do Rio de Jan eiro, Lisboa, 1965.
___. Histria de Portugal. Lisboa: Verbo, 1971-1997. XIII v.
___. O tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Estu dos Histricos. Lisboa: Colibri Histria, 1994.
SERRO, J., OLIVEIRA MARQUES, A. H. de (Dir.) Nova Histria de Portugal. Lisboa, 1987. 5 v.
TELO, A. J. B. Portugal na Segunda Guerra (1941-1945). Lisboa: Vega, 1991.
Iv. (Coleo Docu m en ta Histrica).
___. Os Aores e o contrlo do Atlntico. Porto: Edies Asa, 1993.
___. Economia e Imprio no Portugal Contemporneo. Lisboa: Edies Cosmos, 1994.
___. Portugal e a Nato. O reen con tro da tradio atln tica. Lisboa: Edies
Cosm os, 1996.
TENGARRINHA, J., DE LA TORRE, H., INDJI, T., VOLOSIUK, O., ALMODVAR, C. La Historia en el 96. Madrid: Celso Almu in a, Marcial Pon s, 1997.
Tratado (El) de Tordesillas y su poca. Con greso In tern acion al de Historia. Sociedad V Cen ten ario del Tratado de Tordesillas, 1995. IIIv.
VALLE, T. L. M. do. D. Fr. Manuel Pereira, Bispo e Secretrio de Estado. Poder
Eclesistico, Poder Poltico e Mecen ato Artstico n a segu n da m etade do
scu lo XVII. Lisboa: E. G., 1994.

127

Maria do Rosrio Themudo Barata

ZELLER, G. Les temps modernes. Histoire des relation s in tern ation ales.
Pierre RENOUVIN, I. (Dir.). De Christophe Colomb Cromwell. Paris,
1963. II; De Louis XIV 1783. Paris, 1955.

128

captu lo 8

A CON SOLID A O D A D IN A STIA


D E BRA GA N A E O A POGEU D O
PORTUGA L BA RROCO: CEN TROS
D E POD ER E TRA JETRIA S
SOCIA IS (1668-1750)
Nu n o Gon alo Freitas Mon teiro*

A S LEITURA S RECEN TES D O PORTUGA L RESTA URA D O


Em detrim en to de u m a leitu ra n acion alista do fen m en o, a h istoriografia recen te, sobretu do An tn io Hespan h a, 1 em certa m edida, in spirado em Fern an do Bou za, 2 tem acen tu ado n as su as in terpretaes da
Restau rao de 1640, n om eadam en te qu an to aos seu s m beis e s su as
etapas in iciais, a dim en so de restau rao con stitu cion al. Defen de-se, assim , a idia de qu e n o seu despoletar pesou prim acialm en te a in ten o
de defen der as in stitu ies tradicion ais do rein o, atacadas pelo reform ism o da poltica do Con de-Du qu e de Olivares (rein ado de Filipe III de Portu gal (IV de Espan h a), 1621-1640) qu e ps em cau sa o estatu to do rein o recon h ecido n as Cortes de Tom ar de 1581. Cu riosam en te, redescobriu u m a orien tao j an tes apon tada por au tores de in spirao in tegralista, em particu lar por Gasto de Melo Matos, qu e n os prim eiros m om en tos da Restau rao situ avam u m ressu rgim en to do pen sam en to poltico tradicion al an ti-absolu tista. 3 A in discu tvel revitalizao das in stitu ies tradicion ais n aqu ele con texto, bem in diciada pela freq n cia
com qu e en to se reu n iram Cortes (1641, 1642, 1646 e 1653), n o pode
fazer esqu ecer, n o en tan to, a len ta evolu o das form as polticas n u m
sen tido aparen tem en te con traposto. De fato, passada a con ju n tu ra de
gu erra e de in ten sa dispu ta poltica faccion al, associada a episdios to
em blem ticos com o o da ascen so e qu eda do valido Castelo Melh or, os
m odelos polticos qu e vo triu n far parecem afastar-se n otoriam en te do
plu ralism o corporativo aparen tem en te prevalecen te n os an os im ediatam en te posteriores en tron izao dos Bragan a.
Con tra u m a im agem de con tin u idade, procu ra-se aqu i su gerir qu e
a Restau rao represen tou u m a efetiva viragem . Na verdade, os seu s efeitos a m dio e lon go prazo, design adam en te qu an do a n ova din astia se estabilizou em 1668 (paz defin itiva com Espan h a), foram relevan tes, corres-

129

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

pon den do a u m a n ova con figu rao dos cen tros de poder, qu e se tradu ziu
em diversos m ecan ism os de estru tu rao das elites sociais. A prim eira in ten o deste texto ser, precisam en te, dar con ta dessas m u taes. Sim u ltan eam en te, procu rar-se- iden tificar a evolu o das con ju n tu ras e das
form as de exerccio do poder n o cen tro poltico da m on arqu ia, articu lan do-as com as dim en ses an tes referidas. A an lise poltica m ais detalh ada
abran ger a etapa com preen dida en tre 1668 e o adven to do pom balism o
em m eados de 1700.
A propsito do perodo con siderado (grosso m odo o qu e term in a
com a m orte de D. Joo V), tem -se falado do Portu gal Barroco. Neste particu lar, im porta recordar, apesar das m u itas reservas qu e se lh e podem colocar, o qu adro particu larm en te en ftico da organ izao social e estilo de
vida do Portu gal Barroco traado por Jaim e Corteso,4 on de o casticism o
e a cristalizao social so tn icas dom in an tes.

D . PED RO II REGEN TE E REI (1668-1706):

A CON SOLID A O D A D IN A STIA D E BRA GA N A 5


O perodo em an lise foi atravessado por profu n das descon tin u idades polticas. De fato, sem en trar sequ er em lin h a de con ta com as
Cortes qu e se reu n iram ain da qu atro vezes (1668, 1673, 1679 e 1697),
a regn cia e rein ado de D. Pedro II caracterizar-se-o por u m m odelo de
fu n cion am en to da adm in istrao cen tral qu e se prolon gar ain da pelos
prim eiros an os do rein ado de D. Joo V, m as qu e con trasta radicalm en te com o qu e foi adotado desde, pelo m en os, 1720, qu an do o rei passou
a despach ar com os seu s su cessivos secretrios de Estado, em larga m edida m argem dos con celh os, ou m elh or, do Con celh o de Estado, qu e
parece ter con stitu do o rgo cen tral da adm in istrao em todo o perodo an terior.
Ao con trrio dos ciclos polticos an teceden tes, a regn cia e o rein ado de D. Pedro II (1648-1706) n o foram objeto de in vestigao h istoriogrfica recen te. Deste perodo ain da relativam en te obscu ro, apesar
da profu so de fon tes n arrativas de excepcion al qu alidade legadas pela
prpria poca, 6 a posteridade reteve, sobretu do, a deposio do irm o do
regen te e o u lterior casam en to deste com a cu n h ada (1668) D. Maria
Fran cisca Isabel de Sabia (1646-1683), depois de u m escan daloso processo de an u lao do m atrim n io, baseado em testem u n h os sobre a su a
n o con su m ao. 7 J n este scu lo, veio a valorizar-se a atu ao em m atria de proteo in d stria do 3. Con de da Ericeira (1632-1690), vedor
da Fazen da en tre 1675 e 1690. Im agen s difu sas, portan to, as qu ais n o
parecem su ficien tes para esboar u m a caracterizao poltica do ltim o

130

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

tero do Portu gal seiscen tista. Existem , n o en tan to, algu m as vias cu ja
explorao poder perm itir u m a leitu ra poltica m ais in tegrada de u m
perodo a vrios ttu los relevan te.
Um a delas a iden tificao da esfera do poltico n o con texto con siderado. Tem-se destacado, em algumas contribuies recentes, que a atu ao da adm in istrao cen tral n o An tigo Regim e se en con trava lim itada a
esferas bem restritas, e, alm disso, im pregn ada por u m a cu ltu ra poltica
voltada sobretu do para con servao. Mesm o em m atrias de graa as decises seriam dom in adas pelo paradigm a ju risdicion alista,8 de acordo com
o qu al o fim ltim o do bom govern o a ju stia, en ten dida com o dar
a cada u m o seu lu gar. No en tan to, as fon tes n arrativas da poca perm item iden tificar com clareza a existn cia de u m a esfera bem defin ida da poltica, da dispu ta poltica e da deciso poltica. De form a abreviada, essa esfera pode resu m ir-se aos segu in tes tpicos: n om eao de pessoas para os
cargos e ofcios su periores, rem u n erao de servios (m ercs), deciso fin al sobre con ten das ju diciais especialm en te relevan tes, poltica tribu tria
e alin h am en tos polticos extern os (in clu in do a gu erra), para alm , n a con ju n tu ra estu dada, do problem a especfico dos cristos-n ovos. A todas estas
dim en ses dever-se ia acrescen tar m ais u m a: a form a e o qu adro in stitu cion al on de tin h am lu gar os despach os rgios. Fora das reas referidas, n o
h avia lu gar para polticas sistem ticas e con tin u adas. Era u m a esfera lim itada, m as qu e correspon dia aos restritos recu rsos, dim en so e com petn cias da adm in istrao cen tral.
Na perspectiva referida, o ciclo poltico in iciado com os episdios tu m u ltu osos do afastam en to do valido Castelo Melh or (1667) e da deposio de D. Afon so VI possu i algu m as caractersticas de con ju n to qu e claram en te o diferen ciam . Em prim eiro lu gar, abre-se u m a con ju n tu ra de acalm ia blica, com o estabelecim en to da paz defin itiva com Espan h a (1668),
qu e viria a ser in terrom pida precisam en te pou cos an os an tes da m orte de
D. Pedro (1703). De resto, n esta altu ra qu e se estabilizam os alin h am en tos polticos extern os da din astia. Em segu ida, a dispu ta poltica, em bora
sem pre presen te, deixa de revestir a dim en so fortem en te polarizada qu e
assu m ira n a fase an terior. No s a lu ta faccion al parece m ais aten u ada,
exclu in do agora a elim in ao daqu eles qu e a perdem , com o o papel arbitral da figu ra real su rge com u m a preem in n cia in dispu tada. Decisiva a
con solidao da din astia, con segu ida n o apen as atravs da paz extern a e
da reposio do dom n io sobre as su as possesses colon iais,9 m as tam bm
por via dos vrias disposies qu e assegu ram a defin io dos m ecan ism os
de su cesso coroa, qu e adian te se referiro. Por fim a poltica de m ercs
sofre u m a in flexo de extrem a im portn cia, bem in diciada pelo fato de o
n m ero de ttu los criados en tre 1670 e 1700 correspon der a m en os da m etade dos con cedidos n os 30 an os an teriores. O qu e sign ifica, com o adian -

131

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

te se ver, qu e a elite aristocrtica do regim e brigatin o, bem com o m u itas


das prin cipais com pon en te da sociedade de Corte, se cristalizam precisam en te du ran te a regn cia e rein ado de D. Pedro II.
Em sn tese, abre-se u m ciclo qu e , a diversos n veis, de estabilidade poltica in tern a e extern a. Um a estabilidade qu e n em as dificu ldades fin an ceiras, s defin itivam en te debeladas com o au ge do Brasil n o in cio do
scu lo XVIII, n em as pertu rbaes geradas pela atu ao do San to Ofcio,
con segu iro pertu rbar. De resto, esta n ova con ju n tu ra coin cide n a adm in istrao cen tral com o retorn o a u m m odelo bem defin ido de tom ada das
decises polticas. esta a segu n da ch ave qu e se pode propor para a com preen so deste perodo.
Sobre essa m atria, foi precisam en te o discu rso oficial pom balin o,
em pen h ado en tre ou tras coisas em reabilitar Castelo Melh or, a produ zir
u m a das raras im agen s fortes da con ju n tu ra aqu i estu dada, em bora pou cas vezes com en tada. Na celebrrim a Deduo cronolgica e analtica, diz-se
a propsito da atu ao dos jesu tas n a deposio de D. Afon so VI e n a regn cia e rein ado de D. Pedro II (1667-1706): ... depois de h averem acabado de destru ir a Mon arqu ia, passaram logo a su prim ir a Dem ocracia, e
a redu zir todo o Govern o de Portu gal, e seu s Dom in ios a h u m a aparen te
Aristocracia; a qu al n o ten do ou tra Ju rispru dn cia, e ou tra Moral, qu e
n o fossem as dos m esm os Regu lares ... veio a redu zir-se em su m a ao dispotism o do absolu to Sindrio Jesutico.10 Mas tam bm n a con su lta do Desem bargo do Pao qu e precedeu o Alvar de 5 de ou tu bro de 1768 con tra
as casas pu ritan as, acu sadas de exclu rem as ou tras das su as alian as m atrim on iais por as con siderarem con tam in adas por san gu e in fecto: Assim
arru in aram os ditos Pu ritan os o tron o desta Mon arqu ia; assim levan taram
sobre as Ru n as dela a faan h osa Aristocracia qu e du rou todo o Reyn ado
de Sen h or Dom Pedro II; e ain da por m u itos an os do Govern o do Sen h or
Rey Dom Joo V com ou tros estragos dos Cabedais, das foras, e da Repu tao desta Coroa, e dos Vassalos dela, qu e ain da se esto fazen do presen tes aos olh os dos qu e h oje vivem os.11 Em sn tese, retom an do as categorias de polticas do pen sam en to clssico, o discu rso pom balin o iden tificava a regn cia e o rein ado de D. Pedro II e parte do de D. Joo V com o u m
perodo de govern o aristocrtico.
As fon tes da h istria poltica do perodo parecem , em geral, corroborar essas im agen s. Depois do afastam en to do govern o do valido Castelo Melh or, rein stau ra-se o govern o dos con celh os (tribu n ais) cu jo cen tro o Con celh o de Estado on de se preparam todas as decises sobre m atrias politicam en te im portan tes, tan to as dom sticas, com o as relativas
ao estran geiro,12 pois n o existe prim eiro m in istro em Portu gal: aos
Con selh eiros de Estado qu e se ch am a m in istros.13 Essa cen tralidade poltica m an teve-se at ao rein ado joan in o (a ltim a n om eao de con se-

132

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

lh eiros parece ter sido em 1704 14). No Con celh o de Estado, n este rein ado,15com o n os an teceden tes,16 qu ase s tm lu gar os Gran des e filh os eclesisticos de Gran des. De resto, m on opolizan do as presidn cia dos tribu n ais, a prin cipal aristocracia do regim e ter tido n este perodo u m papel
de lideran a poltica direta praticam en te in dispu tado.17 Alis, apesar do
estatu to social de Castelo Melh or, o afastam en to do valido su scitou em
Portu gal, tal com o em Espan h a pela m esm a altu ra,18 a adeso de larga
m aioria dos m em bros da prim eira n obreza: saiu de su a casa o In fan te,
com tu do qu an to h avia de ttu los e sen h ores n a Corte e en trou n o
Pao, on de n esta ocasio se en con travam 1.400 h om en s, a flor da n obreza da Corte.19 An os depois, a Gu erra da Su cesso de Espan h a (17031713) represen taria para Portu gal, de acordo com todas as fon tes con h ecidas, a expresso paradigm tica e, provavelm en te, derradeira, de u m a
Gu erra aristocrtica, on de os fidalgos levan tavam h om en s e os Gran des
dispu tavam m ais ou m en os tu m u ltu osam en te todos os com an dos m ilitares e, tam bm , as m ercs correspon den tes.
Os con flitos en tre faces da Corte n este perodo, com o de resto n o
scu lo su bseq en te, parecem ter sido determ in ados, em larga m edida, pela
prioridade con ferida aos alin h am en tos polticos extern os. Den tro desses
parm etros, Castelo Melh or represen taria o partido in gls e o seu afastam en to o m om en tn eo triu n fo do partido fran cs. Ao con trrio do qu e
algu m as vezes se tem su gerido e do qu e in sin u avam os correspon den tes
diplom ticos fran ceses, n o existiria propriam en te u m gru po estvel defen sor da in tegrao em Espan h a, iden tificado com os sequ azes do valido
de D. Afon so VI, n em u m a correspon dn cia perm an en te en tre m odelos de
regim e poltico e alin h am en tos extern os.20 De resto, o partido fran cs,
apesar dos seu s slidos apoios, seria su cessivam en te derrotado em 1668,
com o estabelecim en to da paz, qu e procu rou adiar, e em 1687, qu an do
D. Pedro II se casou pela segu n da vez com a prin cesa Maria Sofia de Neu bou rg, filh a do eleitor palatin o do Ren o, e n o com u m a prin cesa fran cesa. Apesar das presses con trapostas, pode se dizer qu e de form a con sisten te prevaleceu at a Gu erra da Su cesso de Espan h a u m a prioridade
atln tica, apoiada n a estabilidade das relaes com a In glaterra, e u m relativo distan ciam en to em relao aos con flitos n a Eu ropa, on de o rein o
obtivera j o seu plen o recon h ecim en to.21
de fato para o Atln tico e para o Brasil qu e se dirigem , de form a
prioritria as aten es da poltica portu gu esa n este perodo. As ten tativas
de m in orar os efeitos dos tratados com erciais ps-Restau rao dar-se-o
in icialm en te n u m a con ju n tu ra m arcada ain da pela qu ebra n a econ om ia
au careira. Som en te em m eados de 1690, n a derradeira dcada do rein ado, a descoberta do ou ro brasileiro se com bin ar com u m a rpida expan so econ m ica da coln ia, qu e atin gir as su as expresses m ais espectacu -

133

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

lares j du ran te o lon go rein ado joan in o. O exito da Restau rao n a gran de coln ia da Am rica do Su l e o seu u lterior in crem en to con stitu iro u m a
base fu n dam en tal para a con solidao da din astia brigan tin a.22
Num perodo caracterizado pelo restabelecimento de antigas formas
de governo e pela escassa produo legislativa e inovao tributria, pode
parecer surpreendente que tenha surgido uma das primeiras tentativas de
fomento industrial, protagonizada pelo 3. Conde de Ericeira e teorizada, ao
que parece, por Duarte Ribeiro de Macedo. Trata-se, de fato, de uma iniciativa tipicamente mercantilista, que responde a uma conjuntura de desequilbrio da balana comercial e das finanas da monarquia e que se esgota
quando essa conjuntura ultrapassada. Leis anti-sumpturias, pragmticas,
lanamento de fbricas e importao de mo-de-obra qualificada so, afinal, os ingredientes caractersticos desse tipo de intervenes. Em todo o
caso, a fundao de fbricas de tecidos no Fundo, na Covilh, e em Portalegre lanariam sementes de uma implantao industrial duradoura.23
Mas os ritm os da vida poltica seriam , em larga m edida, balizados
pelo problem a sem pre decisivo de garan tir a con tin u idade da coroa do rein o, at porqu e as opes sobre a m atria con dicion avam as alian as extern as. As cortes de 1668 foram con vocadas para a deposio de D. Afon so,
repu tado in capaz, acaban do o In fan te D. Pedro por se proclam ar regen te,
e n o rei, com o algu n s preten deram . As de 1673-1674 para ju rar com o
presu n tiva h erdeira a filh a n ascida do seu casam en to com a cu n h ada,
D. Isabel Lu sa. As de 1679 para derrogar as ch am adas atas das Cortes de
Lam ego qu e coibiam o casam en to da jovem su cessora com u m prn cipe
estran geiro. As de 1697-1698, u m a vez m ais, para derrogar aqu ela qu e era
repu tada a lei fu n dam en tal do rein o, perm itin do a su cesso de u m filh o
de irm o de rei sem n ecessidade de con vocar n ovas Cortes. Con sagravam ,
assim , a su cesso do Prn cipe D. Joo, prim ogn ito do segu n do casam en to de D. Pedro II, n elas, aclam ado, de resto, com o h erdeiro. As Cortes reu n iam -se, desta form a, para n o terem de ser de fu tu ro con vocadas. Com
efeito, as retificaes con stitu cion ais qu e in trodu ziram vieram a dispen sar,
du ran te m ais de u m scu lo, a su a reu n io.
Pelo que se conhece, at as ltimas Cortes convocadas no deixou de
se exercer o direito de petio.24 De resto, questes como as do perdo aos
cristos-novos transformaram algumas destas reunies, como as de 16731674, em momentos de turbulncia poltica, tanto mais que at a sua morte (1683) se sucederam as conspiraes (1672) ou os simples rumores favorveis ao retorno de D. Afonso VI. No entanto, a verdade que o pluralismo da iniciativa poltica dos diversos corpos se foi restringindo cada vez
mais. O fim do sculo distingue-se j fortemente, nessa matria, da relativa efervescncia, por exemplo, das Cortes de 1641. Gradualmente, vo sendo cada vez menos as instituies que se exprimem publicamente.

134

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

De fato, poder-se ia afirm ar, com algu m arrojo, qu e ao n vel da legitim ao da realeza, a Corte ten de a su bstitu ir-se s Cortes. Nu m a an lise detalh ada do cerim on ial, fcil apreen der com o au tos de aclam ao se
con fu n dem j com as ltim as Cortes. As Cortes de 1697-1698 foram , sobretu do, o ju ram en to do prn cipe su cessor, e o seu ritu al con fu n dia-se com
o qu e teve lu gar, u m a dcada depois, aqu an do do levan tam en to, e ju ram en to do prprio com o rei, bem com o com os dos su bseq en tes m on arcas portu gu eses. Em todos esses atos, pon tificava a prim eira n obreza e
os prin cipais dign itrios civis e eclesisticos da m on arqu ia.25

O REIN A D O D E D . JO O V (1706-1750): O A POGEU


D O PORTUGA L BA RROCO

Em con traste com o preceden te, o rein ado de D. Joo V, ain da m ais
lon go do qu e o de seu pai, ficou registrado em ton alidades fortes e carregadas por su cessivas geraes de h istoriadores, escritores e pu blicistas qu e
sobre ele recorren tem en te escreveram . Os efeitos do Tratado de Meth u en
(1703), o ou ro de Brasil, Mafra, as cam pan h as pela elevao ju n to de San ta S, e, en fim , a prpria im agem do rei beato e l brico, n as palavras
m ordazes de Oliveira Martin s, so apen as algu n s dos tpicos em torn o dos
qu ais se con stru ram as im agen s pstu m as do perodo joan in o. J n o scu lo XX, discu rsos polticos divergen tes viriam a con trapor polm ica e reiteradam en te a im agem de D. Joo V (1689-1750) e da su a poca do
Marqu s de Pom bal e do seu con su lado.
O rein ado do ou ro prin cipiou sob o sign o da Gu erra e da escassez.
A participao de Portu gal n a Gu erra da Su cesso de Espan h a ficou assin alada por u m a oscilao in icial, qu e fez com se qu e se passasse do apoio
ao preten den te fran cs para a alian a com o can didato au straco, apoiado
pela In glaterra. n o qu adro deste n ovo alin h am en to qu e assin ado o Tratado de Meth u en com a In glaterra (1703) e qu e, depois da aclam ao form al do jovem m on arca (1707), se celebra o seu casam en to com u m a prin cesa au straca, D. Marian a de u stria (1708). Qu alqu er qu e seja o balan o fin al qu e se faa dos tratados de Utrequ e (1713) e de Rastadt (1714), o
rescaldo do en volvim en to de Portu gal n este gran de con flito eu ropeu parece ter sido a con solidao da opo atln tica e da alian a com a In glaterra, a potn cia m artim a dom in an te.
Na verdade, os m ais espetacu lares in vestim en tos diplom ticos do
rein ado, desde logo pelo fau sto das en tradas dos en viados diplom ticos, tiveram lu gar n o cen rio con tin en tal da Eu ropa, apesar das pertu rbaes
qu e freq en tem en te assin alaram as relaes de Portu gal com essas potn cias. Com a Fran a, on de se en viaram fau stosas em baixadas, as relaes

135

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

diplom ticas estiveram in terrom pidas en tre 1722 e 1730. Com a Espan h a,
apesar dos casam en tos cru zados de 1728 do Prn cipe D. Jos com D. Maria An a Vitria e de D. Fern an do de Espan h a com a in fan ta portu gu esa D.
Maria Brbara, ch egou a ser declarado o estado de gu erra em 1735-36 e a
ser solicitado o au xlio britn ico, s se con sagran do a paz defin itivam en te
em 1737. De resto, as relaes com o poderoso vizin h o ibrico, sem pre
m arcadas pelo tem or da in tegrao, foram em larga m edida determ in adas
du ran te este perodo pelos problem as decorren tes das possesses colon iais
da Am rica do Su l, adian te referidos. No en tan to, n a Eu ropa o gran de in vestim en to joan in o em m atria diplom tica foi a con qu ista da paridade de
tratam en to com as ou tras gran des potn cias catlicas n o seu relacion am en to com a San ta S, sem elh an a do qu e ocorria an tes de 1580. Um
processo caro, m oroso e arrastado n o tem po, qu e n o exclu iu , sequ er, a
ru ptu ra das relaes diplom ticas en tre 1728 e 1732, e qu e certam en te sobrestim ava a cen tralidade poltica do Papado. Mas qu e, em term os gerais,
alcan ou os objetivos visados. Se o padroado n o Orien te n o foi plen am en te recon qu istado, a atribu io da dign idade de igreja e baslica patriarcal em qu e se em pen h ou com xito o Marqu s de Fon tes (1716) e, m ais
tarde, a atribu io da dign idade cardin alcia ao Patriarca de Lisboa Ociden tal (1737), o recon h ecim en to do direito de apresen tao dos bispos pelo
m on arca portu gu s (1740) e a atribu io a este do ttu lo de Rei Fidelssim o (1748) con sagraram o triu n fo de u m dos m ais sistem ticos in vestim en tos diplom ticos da h istria portu gu esa.26
A gran de prioridade, porm , foi sem pre o Brasil, a defesa das su as
rotas e a defin io e proteo das su as fron teiras. Em bora os feitos portu gu eses n o Orien te fossem celebrados com in u ltrapassveis en cm ios e
para l se en cam in h assem com o vice-reis algu n s dos m ais destacados fidalgos do rein o j n a dcada 1740 (Marqu eses do Lou rial, de Castelo
Novo/ Alorn a e de Tvora), a verdade qu e desde 1736 (vice-rein ado do
1 Con de de San dom il) qu e a presen a portu gu esa n a n dia en trara n u m a
fase de irreversvel decln io. O Brasil, pelo con trrio, registrava u m m om en to de gran de prosperidade econ m ica e de aprecivel crescim en to dem ogrfico, n ele se an coran do, em larga m edida, o equ ilbrio fin an ceiro da
m on arqu ia. Com o afirm ava o velh o Du qu e de Cadaval em 1715, do Brazil depen de h oje absolu tam en te m u ita parte da con servao de Portu gal.27 As relaes com a Espan h a foram , de resto, sem pre con dicion adas
pelo problem a da defin io das fron teiras do Brasil, sobretu do com a regio do atu al Uru gu ai. O Tratado de Madri de 1750, ao qu al se costu m a associar o n om e do seu prin cipal n egociador portu gu s Alexan dre Gu sm o,28
forn eceu u m a solu o provisria qu esto, pois qu edava por solu cion ar o
problem a dos territrios sob a tu tela da Com pan h ia de Jesu s. A solu o fin al s se viria a con h ecer j n o perodo pom balin o.

136

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

Um a ou tra dim en so essen cial do lon go rein ado joan in o foi a cen tralidade qu e veio a assu m ir a Corte e as relaes n o seu in terior. Se, com o
adian te se su blin h ar, a defin itiva fixao de toda a alta n obreza n a Corte/ Lisboa u m dos resu ltados visveis da Restau rao, qu e to fortem en te
con trastam com o in cio do scu lo XVII, se a cristalizao da elite do regim e se detecta claram en te j n o rein ado de D. Pedro II, cou be ao perodo
joan in o reform u lar os ritu ais da Corte, redefin ir a su a h ierarqu ia de precedn cias e afirm -la com u m a visibilidade sem preceden tes prxim os. Algu n s dos prin cipais con flitos qu e tm lu gar n o prim eira fase do rein ado decorrem den tro do u n iverso cu rial e resu ltam precisam en te da m odificao
dos estatu tos n o seu in terior, e n o da su a com posio. Resu ltado direto
da elevao da capela real a patriarcal (1716), a qu esto de precedn cias
en tre os cn egos da Patriarcal e os Con des apen as o m ais con h ecido dos
n u m erosos en fren tam en tos qu e en to se registram , e qu e ch egaram a in clu ir u m a ao con ju gada das dam as do pao. A clebre lei dos tratam en tos de 1739 testem u n h a de form a con clu den te o esforo de reclassificao
desse u n iverso fortem en te h ierarqu izado qu e en to tem lu gar. Mas os vrios episdios de con fron to en tre os m agistrados reais e os Gran des, dos
qu ais resu ltaram vrios degredos de aristocratas, o m ais con h ecido dos
qu ais teve lu gar em 1728, m as qu e teve ain da vrios su cedn eos at o in cio do rein ado de D. Jos,29 m ostram com o esse claro esforo de im posio
da disciplin a n a vida da Corte se n o pode dissociar da afirm ao da su prem acia rgia. E, n o en tan to, a n om eao dos prin cipais ofcios e a poltica
de m ercs, cada vez m ais con fin adas a esse u n iverso social, in stitu cion al e
sim bolicam en te restrito, n o deixaram de con tin u ar a revestir u m a aprecivel m argem de n egociao.30
Aspecto essen cial da Corte joan in a foi a afirm ao da su a in dispu tada cen tralidade cu ltu ral. Expresso em blem tica deste perodo, Mafra foi
apen as a tradu o m ais visvel du m con tn u o in vestim en to cu ltu ral e artstico,31 qu e se con su bstan ciou n a im portao sistem tica de n u m erosos
artistas e m sicos italian os, bem com o n a en com en da direta de trabalh os. 32
O au ge da cu ltu ra barroca em Portu gal expressar-se- tam bm , n o s n as
diversas academ ias literrias, cu ja expan so vem de trs, m as ain da n a
fu n dao da Real Academ ia da Histria, em 1722. A im presso, peridica
e ou tra, con h ecer tam bm du ran te o perodo joan in o u m a aprecivel expan so, geralm en te su bestim ada. A dim en so de represen tao espetacu lar do poder real tem sido m u itas vezes destacada com o u m a das m arcas
sin gu lares do perodo joan in o.33 Mas n o deve fazer esqu ecer o olh ar freq en tem en te crtico expresso, n o s por viajan tes do Norte qu e visitavam
a Pen n su la catlica, m as ain da em escritos de portu gu eses. Regressado das
cortes fran cesa e espan h ola, o jovem 4 Con de de Assu m ar n o deixava de
se ch ocar com a parcim n ia da corte portu gu esa j n o fin al do rein ado joa-

137

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

n in o: n o h divertim en tos n em sociedade; depois de ter con h ecido Elrei de Fran a e o de Castela assim o qu e presen tem en te rein a com o o an teceden te de qu em recebi m il h on ras coisa n en h u m a m e fez tan ta espcie
n a n ossa terra com o a au steridade do(s) n ossos Prn cipes, m as isso atribu o
eu pequ en ez do rein o.34
De fato, algu m as das expresses m ais n otrias de crtica sociedade
portu gu esa joan in a foram produ zidas por m em bros da elite poltica com
experin cia de ou tros cen rios in tern acion ais, aos qu ais a posteridade veio
a dar, algu m as vezes, a design ao polm ica de estran geirados.35 No en tan to, ser difcil en con trar u m pen sam en to articu lado e sistem tico ou
parm etros con ceptu ais com u n s em person agen s com o o clebre diplom ata D. Lu s da Cu n h a 36 ou o Alexan dre Gu sm o. Alm disso, parece im possvel dem on strar qu e estes au tores, dos qu ais se con h ecem escassos e dispersos escritos, form assem u m a corren te de opin io com expresso poltica faccion al. A in discu tvel m odern izao cu ltu ral deste perodo n os dom n ios artstico e arqu itetn ico, s m u ito lim itadam en te existiu n ou tros terren os, em obras com o da Martin h o de Men don a de Pin a Proen a e Lu s
An tn io Vern ey. De resto, as propostas de in ovao tm qu ase sem pre lu gar n o in terior da restrita elite poltica, com o se disse, e recorren do s form as de expresso caractersticas deste perodo.
Em nvel de administrao central, com efeito, o reinado de D. Joo V
represen tou u m a gran de m u tao silen ciosa.37 At cerca de 1723, a idia
de reu n ir as Cortes parece ain da sobreviver, m as depois vai cain do gradu alm en te n o esqu ecim en to. O Con celh o de Estado, an tes o cen tro da deciso poltica, parece ter deixado de se reu n ir desde os an os vin te.38 Assistido pelo Secretrio de Estado Diogo de Men don a Corte Real, o rei despach a geralm en te depois de con vocar ju n tas com u m a com posio varivel. Na seq n cia da m orte de Diogo de Men don a (1736), tem lu gar a reform a das Secretarias de Estado, sen do por in ern cia os trs secretrios
m em bros do Con celh o de Estado.39 No en tan to, est-se ain da lon ge da
con stitu io de au tn ticas secretarias (os fu tu ros m in istrios), processo
qu e s ter lu gar m u ito m ais tarde. At su a m orte (1747), o rei despach a
frequ en tem en te com o Secretrio de Estado do Rein o, Cardeal da Mota,
em bora n em m esm o isso con stitu a regra in varivel. Sem qu e n en h u m deles tivesse o ttu lo de m in istro assisten te ao despach o, ou tros person agen s,
com o o Cardeal e In qu isidor-Mor D. Nu n o da Cu n h a, Frei Gaspar da En carn ao ou o sim ples secretrio particu lar Alexan dre Gu sm o podiam assistir o m on arca n as su as decises. E, de fato, a docu m en tao con h ecida
su gere qu e, qu an do n o estava en ferm o, o m on arca se em pen h ava pessoalm en te de qu ase todos os assu n tos qu e su biam a despach o, con h ecen do-os com su rpreen den te porm en or.40 De resto, h ten ses n o in terior da
elite poltica e religiosa da poca qu e m arcam a ltim a fase do rein ado joa-

138

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

n in o, design adam en te as su scitadas pelo problem a do m ovim en to religioso dos ch am ados jacobeu s,41 cu jas im plicaes polticas ain da so m al con h ecidas.
Este in equ voco decln io do govern o dos con celh os e tribu n ais
com bin ou -se, tam bm , com u m in discu tvel reforo da adm in istrao perifrica da coroa.42 No en tan to, esses n ovos in stru m en tos n o so ain da poten ciados. A produ o legislativa do rein ado foi redu zida e m u ito localizada n o tem po. A n om eao de ofcios e a rem u n erao dos servios, para
alm da poltica exterior, con tin u aram a absorver a m aior parcela das
aten es do cen tro poltico do rein o. As reform as sistem ticas estavam
ain da para vir. De resto, n os ltim os an os do rein ado, a m orte do cardeal
da Mota e a doen a do m on arca parecem ter paralisado, em larga m edida,
a adm in istrao cen tral e reacen dido a lu ta de faces, peran te o apagam en to da figu ra do m on arca.

CORTE, A RESID N CIA D A PRIN CIPA L N OBREZA E


A CON CEN TRA O D A S HON RA S E D ISTIN ES
No vam os aqu i discu tir todas as possveis dim en ses da corte,43 m as
apen as u m a. Trata-se de u m a qu esto qu e perm ite estabelecer u m a distin o clara e in equ voca, n o apen as en tre a con figu rao social da sociedade de corte joan in a e o m odelo plu ral im ediatam en te an teceden te, m as
tam bm en tre aqu ela e todas as con figu raes cu rais preceden tes. Para a
discu sso deste tem a, h qu e recu ar n o tem po. Tem os assim de rem on tar
at o in cio do scu lo XVII. Um tem po a qu e corren tem en te se associa,
porven tu ra com con sidervel exagero, u m a im agem qu e se vai pedir literalm en te em prestada ao ttu lo de u m dos textos m ais fam osos qu e en to
viu a lu z: Corte n a Aldeia de Fran cisco Rodrigu es Lobo.44 Fato in discu tvel qu e a m aior parte dos prxim os an tecessores das casas dos Gran des
brigan tin os n o residiam regu larm en te em Lisboa n o alvorecer de seiscen tos.45 No in cio do scu lo XVII o padro de residn cia dos titu lares e sen h ores de terras/ fu tu ros titu lares portu gu eses pau tava-se pela disperso: algu n s residiam em Lisboa, ou tros em vora, m u itos n as sedes dos seu s estados. Nos ltim os tem pos da m on arqu ia du al, a poltica deliberada de
Madri con segu iu atrair para aqu ela cidade parte sign ificativa da prim eira
n obreza do rein o, qu e por altu ras de 1640 a residia.46 Ao todo cerca de
m etade dos titu lares e gran de n m ero de sen h ores de terras e com en dadores en con travam -se en to fora de Portu gal, em Madri ou em ou tros territrios ao servio dos u strias.47 Mas, se recu arm os para perodos an teriores a 1580, qu an do h avia rei n atu ral, o pan oram a n o seria radicalm en te diferen te: basta recordar qu e o prin cipal sen h or do rein o (e u m dos m ais

139

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

importantes da pennsula, pelas suas rendas, jurisdies e apresentao de


ofcios), o Duque de Bragana, nunca residiu permanentemente em Lisboa,
mas sim em Vila Viosa, de onde s se deslocava em momentos bem determinados. De fato, durante todo o perodo das dinastias de Avis e dos ustrias, a casa de Bragana manteve sempre a sua prpria Corte e uma dimenso territorial notvel. Como detalhadamente foi estudado em recente
trabalho,48 no s preservou essa corte alentejana com um ritual e espaos
de representao prprios, como ento se dizia, maneira da casa real,
mas centenas de criados, incluindo muitas dezenas de fidalgos (alguns feitos pela prpria casa), aos quais distribua mais de quatro dezenas de comendas, uma administrao significativamente organizada, e uma imensa
rede provincial de clientes, pois confirmava pouco menos de um quinto das
cmaras do pas e apresentava mais de 3 mil oficiais, entre civis e eclesisticos. A casa de Bragana, s por si, permite afirmar que em Portugal at
1640 existiu sempre um sistema de cortes e no o monoplio curial da
realeza. A gradual construo da capital e o progressivo reconhecimento
de Lisboa como cabea do reino ao longo do sculo XVI,49 no nos pode
fazer esquecer aquilo que sempre esteve fora.
Ora, n o fim do terceiro qu artel de seiscen tos a m u dan a absolu tam en te radical: todos os titu lares, bem com o a m aioria dos sen h ores de terras e com en dadores, deviam residir em Lisboa. Qu an do tal n o acon tecia, o
fato era registrado com estran h eza: ao 2. Con de de Un h o, qu e tin h a prolon gado a su a residn cia n os Ch aves (San tarm ), viven do retirado da
Corte, ch am aram -lh e El Prin cipe de los Mon tes.50 A partir do m om en to
em qu e se con solidou a elite aristocrtica da n ova din astia, por altu ras da regn cia pedrista, os Gran des (con des, m arqu eses e du qu es) passaram ser design ados por expresses com o a prim eira gran deza da Corte, cabea do
gru po m ais vasto con stitu do pela prim eira n obreza da Corte, e essa iden tificao fu n dam en tal m an teve-se at o fin al do An tigo Regim e.
De resto, pelo m en os desde a segu n da m etade do scu lo XVII qu e
se foi desen h an do u m a fron teira social in equ voca en tre a n obreza de Corte e a fidalgu ia da provn cia. Nesta ltim a se com preen diam , por vezes, casas qu e se repu tavam m u ito an tigas e em tem pos aliadas com as qu e vieram a ser elevadas Gran deza n o scu lo XVII, m as qu e, pelo fato de se n o
h averem in tegrado n a Corte, tin h am m ergu lh ado n a relativa obscu ridade
da vida provin cial. O divrcio social en tre u m as e ou tras foi-se cavan do
cada vez m ais ao lon go dos scu los XVII e XVIII. Fech adssim as oligarqu ias
locais, acan ton adas n as vereaes cam arrias, com o a de Braga 51 n o con segu iam levar o zelo com qu e defen diam os seu s predicados con tra os in tru sos locais at ao pon to de se con segu irem aliar com os Gran des do rein o. A en dogam ia m atrim on ial con stitu a, alis, u m a das m arcas fu n dam en tais da prim eira n obreza da corte.52

140

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

A m u tao an tes descrita teve efeitos decisivos n a con figu rao das
elites sociais e n o bloqu eam en to das vias de acesso s diversas distin es su periores, ofcios e ren das con cedidas pela m on arqu ia.53 Um a breve im agem
de con ju n to do acesso a algu m as das prin cipais doaes rgias (ttu los e com en das) perm ite-n os situ ar com preciso os m arcos prin cipais da evolu o
verificada. A qu al, recorde-se bem , se reporta ao topo da h ierarqu ia in stitu cion al e social, e n o su a base, on de a evolu o poder ter sido diferen te.54
Com ecem os pela titu lao. O m om en to fu n dam en tal da con stitu io defin itiva da elite titu lar da poca m odern a situ a-se n as ltim as dcadas da m on arqu ia du al (1580-1640), ao lon go das qu ais se criaram cerca
de qu atro dezen as de casas titu lares. O n m ero total de casas en to atin gido, passan do de cerca de du as dezen as para m ais de m eia cen ten a, m an ter-se- praticam en te estvel at a ltim a dcada do scu lo XVIII, apesar
de cerca de 40% das casas portu gu esas terem desaparecido com a Restau rao. De fato, foram rapidam en te su bstitu das, e a freq n cia da con cesso an u al de ttu los en to alcan ada s voltou a ser u ltrapassada (largam en te) du ran te a regn cia do prn cipe D. Joo (1792-1816) e seu posterior rein ado. A n otvel estabilidade alcan ada n os cerca de 130 an os posteriores ao fim da Gu erra da Restau rao (1668) n o tem paralelo em n en h u m ou tro perodo da h istria portu gu esa, e raras vezes ter sido igu alada por ou tras aristocracias eu ropias. Du ran te m ais de u m scu lo criaram se e extin gu iram -se pou qu ssim as casas. Acresce qu e o n cleo cen tral do
gru po se m an teve extrem am en te estvel. No pon to m xim o da su a cristalizao, em 1750 (an o da m orte de D. Joo V e da en trada de Pom bal para
o govern o), das 50 casas titu lares existen tes em Portu gal, 34 tin h am sido
elevadas h m ais de 100 an os e 7 vin h am desde o scu lo XV. Passado u m
perodo de m u dan a de din astia, de gu erra e de agitao poltica, delim itara-se a elite aristocrtica do n ovo regim e. As vias para o acesso Gran deza foram -se torn an do cada vez m ais estreitas. E as doaes rgias foram se con cen tran do cada vez m ais n essa elite restrita.55
Um bom in dicador da evolu o verificada n os forn ecido pelas com en das das trs orden s m ilitares in corporadas n a Coroa (Avis, Cristo e
San tiago). Neste caso, possvel con fron tar du as situ aes in tervaladas de
qu ase scu lo e m eio (1611 e 1755), qu e perm item detectar m ais claram en te as m u dan as operadas. Apesar de as fon tes con su ltadas para o efeito
apresen tarem im en sas lacu n as, as gran des lin h as de evolu o ficam claram en te esboadas. Nos prim rdios do scu lo XVII os com en dadores das orden s m ilitares eram u m a categoria social n u m erosa, qu e abran gia m ais de
qu atro cen ten as de in divdu os e casas, em bora os pou cos titu lares absorvessem j u m a avu ltada parcela do ren dim en to agregado das com en das
com adm in istrador. Scu lo e m eio m ais tarde (1755) o n m ero de com en dadores viu -se redu zido a bem m en os de m etade, e as 50 casas titu lares
existen tes absorviam j cerca de dois teros do ren dim en to con ju n to. A

141

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

distribu io dos ren dim en tos das com en das forn ece-n os, assim , u m retrato im pression an te da evolu o do topo da pirm ide n obilirqu ica: desde o
in cio do scu lo XVII, o gru po sofre u m a espetacu lar dim in u io da su a dim en so, passan do as casas titu lares an tigas (qu ase todas com Gran deza) a
absorver a m aior parte desses ren dim en tos.
No lon go perodo de en cerram en to de m ais de u m scu lo qu e se
segu iu abertu ra da prim eira m etade de seiscen tos, os vice-rein ados n a
n dia ou n o Brasil con stitu ram u m a das raras vias de acesso Gran deza,
pois n a fase m ais restritiva (1671-1760), da qu al aqu i n os ocu pam os, cerca de m etade dos ttu los foram criados em rem u n erao daqu eles servios.
Sim plesm en te, com o a totalidade dos n om eados n aqu ele perodo eram
Gran des ou n ascidos n a prim eira n obreza, a abertu ra restrin giu -se a esse
crcu lo bem restrito. De fato, os vice-rein ados n a n dia con figu ram -se at
o perodo pom balin o com o o ofcio de m aior preem in n cia sim blica e
m ais estreitam en te iden tificado com a Gran deza, m an ten do at en to u m a
au ra de h eroicidade m ilitar n ica, decorren te, n o apen as da m em ria dos
feitos passados, m as ain da da atu alidade blica qu e rodeava o seu exerccio, celebrada alis com en cm ios sem preceden tes em m eados de setecen tos. No en tan to, ao con trrio do qu e se verificou n o scu lo XVI, qu an do a
m aioria dos vice-reis tin h a lon ga experin cia n a n dia, apen as 4 dos 21 n om eados en tre 1651 e 1765, tin h am estado an tes n o Orien te. O vice-rein ado in dian o j n o servia de cu m e a u m a carreira ascen sion al n as vrias
praas in dian as, aberta a soldados da fortu n a, m as sobretu do de tradu o do valim en to n a corte dos seu s deten tores, m u itos dos qu ais n em sequ er possu am qu alqu er experin cia colon ial.56 Na verdade, eviden cian do
a crescen te aristocratizao do cargo, a m aior parte dos vice-reis era primognitos e, como se disse, praticamente todos nascidos em casas da prim eira n obreza do rein o. O pen oso exerccio do cargo serviu sobretu do para
acrescen tar as casas com as rem u n eraes a qu e dava direito, m u itas vezes du ram en te n egociadas an tes da partida.
A con cen trao de ofcios n as casas da prim eira n obreza esten dia-se tam bm aos eclesisticos, design adam en te, s carreiras qu e forn eciam s in stitu ies as su as prin cipais figu ras eclesisticas: bispos das dioceses m ais im portan tes, cardeais, m in istros assisten tes ao despach o, en fim , qu ase todas as m ais preem in en tes dign idades eclesisticas e ofcios secu lares desem pen h ados por eclesisticos. Na verdade, at ao seu irreversvel decln io n a segu n da m etade de setecen tos,57 as carreiras eclesisticas
dos filh os dos Gran des n o passaram majoritariamen te pelo in gresso n u ma
ordem regu lar, caracterstica qu e se acen tu ou n a passagem do scu lo XVII
para o XVIII. A elevao da S de Lisboa a Patriarcal (1716) e a m agn fica
dotao qu e recebeu de D. Joo V con tribu ram para qu e, ao lon go do scu lo, a m aioria dos eclesisticos a term in asse os seu s dias. Era o destin o

142

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

n orm al e desejvel, por on de passaram qu ase todos os secu lares, m esm o


aqu eles qu e faleceram n o exerccio de u m a dign idade eclesistica m ais elevada, ou os qu e an tes fizeram u m vasto priplo por ou tras dign idades eclesisticas (arcediagos de algu m a parqu ia, Su m ilh eres da Cortin a, D. Prior
da Colegiada de Gu im ares etc.). De fato, a m aior parte dos Prin cipais da
Patriarcal n os fin ais do rein ado joan in o eram filh os ou irm os de Gran des
e n o con ju n to da qu ase cen ten a de dign itrios, os secu n dogn itos da prim eira n obreza estavam em m aioria. A Ordem de Malta foi sem pre u m a
opo m in oritria (m as su ficien te para h aver dois gro-m estres portu gu eses precisam en te n o perodo estu dado), e m u ito especial (era a n ica ordem efetivam en te religiosa-m ilitar 58).
Qu an to ao topo da h ierarqu ia eclesistica, a an lise do estatu to de
n ascim en to dos bispos e arcebispos portu gu eses en tre 1500 e 1820, perm ite avaliar os n veis de prom oo social abertos pelas respectivas carreiras.
Reportar-n os-em os apen as s dioceses e arqu idioceses do Con tin en te portu gu s, distin gu in do en tre as m ais prestigiadas (Lisboa, Braga, vora, Porto e Coim bra) e as restan tes. Su blin h e-se, de resto, qu e a coroa portu gu esa teve, desde o in cio de Qu in h en tos, u m a sign ificativa in terven o n a escolh a dos prelados, em bora n em sem pre da m esm a form a.59 Nas dioceses
prin cipais, a m aioria dos bispos era, desde h m u ito, recru tada n a prin cipal n obreza do rein o (bastardos reais, filh os de Gran des ou de sen h ores de
terras), m as essa dim en so foi se acen tu an do cada vez m ais at ao in tervalo 1700-1760, qu an do a qu ase totalidade dos bispos a ela perten cia, sen do a m aioria filh os de Gran des do rein o. Som en te n o perodo segu in te
(1761-1820) se verifica u m a espetacu lar in verso dessa ten dn cia, en con tran do-se os bispos n ascidos fora da prin cipal n obreza do rein o, pela prim eira vez, em m aioria. Nas dioceses de m en or preem in n cia, a percen tagem das referidas categorias m en os im portan te do qu e n as an teriores,
m as ten de a su bir sem pre at 1700. A qu ebra n este caso d-se m ais cedo,
pois j visvel n o perodo 1701-1760.
Para alm dos gran des ren dim en tos de qu e se ben eficiavam , e qu e
freq en tem en te deram lu gar a avu ltadas h eran as em ben s patrim on iais a
favor dos seu s paren tes, os bispos portu gu eses tin h am ain da u m a ou tra
form a de capitalizar em favor do acrescen tam en to daqu eles o desem pen h o
dos seu s ofcios: a doao dos seu s servios, depois rem u n erados pela m on arqu ia em ren das e distin es. No en tan to, o pou co qu e sabem os sobre
este m ecan ism o su gere qu e serviu sobretu do e de form a sistem tica para
acu m u lar cada vez m ais h on ras e proven tos n as gran des casas aristocrticas, ou seja, para as acrescen tar. Foi por esse m eio, por exem plo, qu e a
casa dos Con des de Avin tes ascen deu ao Marqu esado de Lavradio, a dos
Con des de Vale de Reis ao Marqu esado de Lou l, e qu e a dos Du qu es de
Lafes acrescen tou m ais trs com en das ao seu vasto patrim n io.60 Pelo

143

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

con trrio, so pou co n u m erosos os casos con h ecidos de rpida m obilidade


social assim desen cadeada.
Os in dicadores apon tados refletem , de form a m u ito prxim a, as
etapas de recon figu rao, cristalizao e crep scu lo da aristocracia de corte da din astia brigan tin a. Origin ada n u m processo de in ten sa com petio
e decorren te seleo en tre as casas fidalgas fu n dadas m ajoritariam en te n os
scu los XV e XVI, a aristocracia cu rial lu sitan a ten de a cristalizar-se algu m as dcadas depois da Restau rao de 1640. No perodo su bseq en te, m on opoliza virtu alm en te as prin cipais doaes da coroa e os m ais destacados
ofcios da m on arqu ia, n estes se in clu in do os m ais apetecidos ben efcios
eclesisticos para os seu s secu n dogn itos.
Com o an tes se disse, esta cristalizao aristocrtica dos ofcios su periores da m on arqu ia tin h a u m a expresso paradigm tica n os rgos
cen trais da adm in istrao, design adam en te, n os diversos con celh os e tribunais, quase sempre presididos por Grandes, e, em particular, nos Con celh os
de estado. Na n om eao de 1704 com o em todo o perodo an teceden te, o
Con celh o de Estado era con stitu do qu ase s por Gran des leigos e por
Gran des eclesisticos, seu s irm os ou tios. O seu u lterior esvaziam en to sign ificou , assim , o trn sito do cen tro de deciso poltica para ou tros atores.
No en tan to, a verdade qu e n en h u m dos prin cipais m in istros e con selh eiros joan in os fu n dou u m a casa aristocrtica ou se ligou por alian as prim eira aristocracia, apesar de algu n s terem recebido com en das. O pacto
con stitu cion al da din astia, qu e pressu pu n h a a preservao con tra ven tos e
m ars das casas aristocrticas qu e tin h am con tribu do para a su a con solidao, n o foi, assim violado.
De fato, n o in terior da con figu rao social an tes defin ida, a posio
das velh as casas dos Gran des n o era assegu rada apen as pela relao in stitu da en tre servios e m ercs, m as tam bm pelo lu gar con stitu cion al qu e
se recon h ecia s casas an tigas da n obreza e n ecessidade de as preservar.
Neste, com o em ou tros terren os, o Portu gal Barroco pode ser apresen tado
com o u m perodo de excepcion al cristalizao social em torn o da Corte e
das elites aristocrticas qu e n ela pon tificavam desde m eados de seiscen tos.
Esta caracterstica do Portu gal Restau rado veio, afin al, acen tu ar os
efeitos de u m a das h eran as h istricas m ais im portan tes da m on arqu ia
portu gu esa m odern a qu e era a escassa im portn cia dos corpos polticos in term dios e da su a qu ase n u la expresso territorial. No se trata apen as da
in existn cia de in stn cias au trqu icas region ais o qu e m arca a sin gu laridade portu gu esa. possvel esten der essa caracterizao ao con ju n to dos
corpos in term dios, qu er dizer, totalidade dos corpos qu e escala do
rein o se situ avam en tre o cen tro e a escala (m icro) local.61 Con stru in do-se
atravs da recon qu ista e n o por via da u n io din stica, Portu gal n o con stitu a u m a m on arqu ia com psita, n em in tegrava com u n idades poltico-

144

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

in stitu cion ais preexisten tes. No existiam qu aisqu er direitos region ais,
n em in stitu ies prprias de provn cias (cristalizadas, por exem plo, an tes
da su a u n io), n em sequ er com u n idades lin g sticas acen tu adam en te diversificadas. Nas prprias ilh as atln ticas a m u n cipalizao do espao poltico local coarctou o su rgim en to de in stn cias au tn om as region ais.
Depois da Restau rao, pois an tes o rein o de Portu gal era de certa form a u m corpo den tro da m on arqu ia du al, a coroa portu gu esa n u n ca
teve de se defron tar com corpos dotados de forte en tidade e com expresso territorial, ao con trrio de ou tras m on arqu ias eu ropias. As in stitu ies com iden tidade in stitu cion al relevan te (a com ear pelos tribu n ais
cen trais) n o s se localizavam qu ase todas em Lisboa, com o eram abran gidas em larga m edida pelas teias da sociedade de Corte, diagn stico qu e
se aplica at a in stitu ies qu e tiveram algu m protagon ism o poltico, com o
a cm ara da capital ou o respectivo ju iz do povo.62 O con trapon to do
cen tro eram os poderes locais e sobretu do m u n icipais. Aspecto qu e divergia fortem en te do qu e se passava em Fran a, em Espan h a e n a gen eralidade das m on arqu ias eu ropias da poca.
Passada a con ju n tu ra im ediatam en te u lterior Restau rao, o
plu ralism o poltico e in stitu cion al parece dim in u ir claram en te n o Portu gal
Barroco. A polarizao en tre a Corte e as provn cias adqu ire, em todos os
terren os, u m a dim en so sem preceden tes.

145

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

N OTA S
1. Cf., en tre ou tros, HESPANHA., 1989. Cf. tam bm A "Restau rao" portu gu esa n os captu los das cortes de 1641. Penlope. Fazer e desfazer a Histria, n .9-10, 1993; tam bm o texto clssico de TORGAL, L. R. Ideologia poltica e teoria do Estado na Restaurao. Coim bra, 1981-1982.
2.v.
2. BOUZAS ALVAREZ, F., 1987., cf. tam bm SCHAUB, J.-F., 1994. p.223 ss.
3. Cf., en tre m u itos ou tros texto, G. M. Matos, O sign ificado poltico da Restau rao, 4.
CONGRESSO DA ASSOCIAO PORTUGUESA PARA O PROGRESSO DAS CINCIAS. Porto, 1943, p.355-63.
4. Cf. CORTESO, J., 1984. parte I, t.I.
5. Cf. as du as aln eas qu e se segu em tiveram com o pon to de partida a reelaborao de captu los origin alm en te redigidos para a edio de 1998 de HESPANHA, A. M., 1998.
6. E em boa parte im pressas, com o As Mon stru osidades, A Catstrofe... e a An ticatstrofe,
a Gazeta em form a de Carta de Joo Soares da Silva, e, m ais recen tem en te, as fabu losas "Mem rias Histricas" do 1. Con de de Povolide, en tre m u itas ou tras. Sem falar das m an u scritas
(cf. sobre o assu n to, MATOS, G. de M. Notcia de alguns memorialistas portugueses do princpio do
sculo XVIII. Nao Portuguesa, 1929. v.I, 1936 v.X.
7. Cf. BAIO, A. Causas de nulidade do matrimnio entre a rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboya e o rei D. Afonso VI. Coim bra, 1925
8. Sobre o assu n to cf. diversos trabalh os de HESPANHA, A., 1988, e ain da SUBTIL, J., 1998.
9. Cf. en tre ou tros, BOXER, C. Salvador de S and the Stugle for Brazil and Angola, 1602-1686.
Lon dres, 1952. e CABRAL DE MELO, E. Olinda Restaurada: Gu erra e A car n o Nordeste,
1630-1654. So Pau lo, 1975.
10. II vol., p.461.
11. Biblioteca Nacion al de Lisboa, FG, 6937, fl. 8-14, ou 649, 3.
12 . Tradu o do relatrio pu blicado em SERRO, J. V. Uma relao do reino de Portugal em
1684. Coim bra, 1960. p.31, qu e con stitu i u m a m agn fica fon te de in form ao.
13. Ibidem , p.25.
14. Cf. CONDE DE TOVAR., 1961.
15. Cf., en tre ou tros, SERRO, J. V., op. cit., p.31, e SILVA, J. S. da, Gazeta em forma de carta
(1701-1716). Lisboa, 1933. p.86.
16. Cf. PRESTAGE, E., 1919. p.17 (de en tre os 33 n om eados n o rein ado joan in o, 22 eram
Gran des leigos).
17. Veja-se a esse respeito as con su ltas do todo poderoso 1. Du qu e de Cadaval n o in cio do
scu lo XVIII, Biblioteca Nacion al de Lisboa, F. G. 749.
18. Apesar das diferen as, o paralelism o com Espan h a, n a seq n cia do afastam en to de Valen zu ela, bvio; cf., sobre o assu n to, Valien te, F. T. Los validos em la m on arqu a espa ola
del siglo XVII. Madrid, 1982, e, sobretu do, ALVREZ-OSSORIO, A. El favor real: liberalidad
del prn cipe y jerarqu ia de la rep blica (1665-1700). In : CONTININSIO, C., MOZZARELLI C.
(Ed.). Repubblica e virt. Pen siero politico Mon arqu ia Cattolica. Rom a, 1995.
19. SILVA, J. S. da Monstruosidades do tempo e da fortuna (1662-166). Porto, 1938. p.36. v.I.
20. Cf. as teses, bem docu m en tadas, de Matos, G. de M., 1940. v.VII, e 1944. v.VIII.
21. Sobre o con ju n to destes tem as, cf. MACEDO, J. B. de, s.d.(a). p.193-9 e p.211-20.
22. dem asiado vasta a bibliografia sobre o assu n to para se poder aqu i citar; cf. sn teses recen tes de MAURO, F. O Imprio luso-brasileiro (1620-1750) de, SERRO, J.; OLIVEIRA MARQUES, A. H. Nova Histria da Expanso Portuguesa. Lisboa, 1991. v.VII. e BETHENCOURT, F.,
CHAUDURI, K. (Dir.) Histria da Expanso Portuguesa. Lisboa, 1998. v.2 e 3.

146

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

23. Cf. MACEDO, J. B de, 1982, p.22. s. e, apesar das lim itaes e deficien te tradu o, HANSON, C., 1986, p.161 ss.
24. Cf., sobre o con ju n to destes tem as, CARDIM, P. O qu adro con stitu cion al (). As Cortes.
In : HESPANHA, A. (Dir.) O Antigo Regime (1620-1870). p.132 s, e tam bm CARDIM, P., 1998.
25. Cf. Cortes de Lisboa dos annos de 1697 e 1698. Congresso da Nobreza, Lisboa, 1824, e Auto do levantamento, e juramento, que os Grandes, Titulos Seculares, Ecclesiasticos, e mais pessoas, que se acharo presentes, fizero ao muito alto, e muito poderoso senhor El Rey D. Joo V... Lisboa, 1750. Um a
su gesto clara n o sen tido proposto se pode depreen der con fron tan do as ch am adas m em rias h istricas (Portugal, Lisboa e a Corte no reinado de D. Pedro II e D. Joo V Memrias Histricas de Tristo da Cunha de Atade 1. Conde de Povolide (in t. de A. V. Saldan h a in t. e Carm en
M. Radu let), Lisboa, 1990, p.136-7) com as im propriam en te ditas m em rias n tim as
(A.N.T.T., Casa de Povolide, 19-A, tom . I, fl.113) do 1. Con de de Povolide.
26. Cf., en tre ou tros, BRAZO, E., 1938.
27. Citado em SERRO, J. V., 1982, p.247.
28. Cf. CORTESO, J., 1984.
29. Cf. A ultima condessa de Atouguia. Memorias autobiograficas. Pon tevedra, 1916. p.10.
30. Cf. a n otvel correspon dn cia de D. Joo V pu blicada em BAIO, A., 1945.
31. Cf. PIMENTEL, A. F., 1992.
32. O tem a tem sido objeto de u m a vastssim a bibliografia recen te. Cf., en tre m u itos ou tros
ttu los, CARVALHO, A. de, D. Joo V e a Arte do seu tempo. Mafera, 1962; 2v. PEREIRA, J. F.
(Dir.) Dicionrio da Arte Barroca em Portugal. Lisboa, 1989, e MAGNIFICO J. V. A Pintura em
Portugal no tempo de D. Joo V, 1706-1750. Lisboa, IPPAR, 1994.
33. Cf. BEBIANO, R., 1987.
34. A. N. T. T., Casa Fron teira e Alorn a, m aos n .s 118 e 122. A correspon dn cia do jovem
Con de de Assu m ar en con tra-se em vias de pu blicao.
35. Cf. u m a crtica en ftica do con ceito em MACEDO, J. B. de, s.d.(a)
36. Cf. CLUNY , I., 1996.
37. Sobre o con ju n to destas m atrias, cf. o texto fu n dam en tal de ALMEIDA, L. F, 1995.
38. Cf. Portugal, Lisboa e a Corte , p.372.
39. Cf. MERA, P., 1965.
40. Cf. BAIO, A., op. cit.
41. Cf. SILVA, A. P. da A questo do sigilismo em Portugal no sculo XVIII. Braga, 1964.
42. Cf. MONTEIRO, N. G. Con celh os e com u n idades. In : MATTOSO, J. (Dir.) Histria de Portugal. Lisboa, 1998. v.IV.
43. Cf. HESPANHA, A. M. La Corte. In : La gracia del derecho. Econ om ia de la cu ltu ra en la
Edad Modern a. Madri: 1993. p.93.
44. Cf. Corte na aldeia e noites de Inverno (1616), Lisboa, 1945.
45. Cf. Biblioteca Nacional de Lisboa. Fu n do Geral, cdice 7641, fl. 52 ss. Na m edida em qu e se
m en cion am os Con des de Ficalh o (castelh an os), ttu lo de 1599, m as n o os posteriores, a dita
relao ter sido elaborada por volta de 1600.
46. Cf., en tre ou tros, OLIVEIRA, A. de Poder e oposio poltica em Portugal no perodo filipino
(1580-1640). Lisboa, 1990. Sobretu do p.234-5, e BOUZA LVAREZ, F. La n obleza portu gu esa
y la corte m adrile a h acia 1630-1640. Nobles y lu ch a poltica en el Portu gal de Olivares, Colqu io: LA RUPTURE LUSO-CASTILLANE DE 1640, Maio de 1992, Paris: Cen tre dEtu des
Portu gaises (EHESS). (exem plar policopiado)
47. Cf. DRIA, A. A. (n ota D) In : CONDE DE ERICEIRA. Histria de Portugal Restaurado. Porto: n ova ed., s.d. p.488-9.
48. Cf. SOARES DA CUNHA, M. As redes clientelares da Casa de Bragana (1560-1640). vora,
1997. Dissertao (Dou torado) (Mim egr.).

147

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

49. Cf. Magalh es J. R. No alvorecer da m odern idade (1480-1640). In : MATTOSO J. de (Dir.)


Histria de Portugal. Lisboa, 1993. p.50-9. v.3.
50. Cf. SAMPAIO, L. T. de Estudos Histricos. Lisboa, 1984. p.74. (com base n as Monstruosidades...)
51. CAPELA, J. V. O Municpio de Braga de 1750 a 1834. O govern o e a adm in istrao econ m ica e fin an ceira. Braga, 1991.
52. Cf. MONTEIRO, N. G. Casam en to, celibato e reprodu o social: a aristocracia portu gu esa n os scu los XVII e XVIII. Anlise Social, v.XXVIII, n .123-124, p.921-50,1993.
53. De resto, com exceo dos sen h orios eclesisticos, j n o h du ran te a din astia de Bragan a in stitu ies sen h oriais dotadas de gran de au ton om ia; a casa do In fan tado acabou por
n o se con stitu ir com o tal, apesar dos seu s propsitos in iciais (cf. LOURENO, M. P. A Casa e
o Estado do Infantado, 1654-1706. Lisboa: JNICT, 1995. p.25ss.).
54. Cf., por exem plo, MONTEIRO, N. G. Elites locais e m obilidade social em Portu gal n os fin ais do An tigo Regim e. Anlise Social, n .141, p.335-68, 1997.
55. Cf., sobre o con ju n to destes tem as, MONTEIRO, N. G., 1998. Parte I, cap.3. Sobre as casas qu e perm an eceram do ou tro lado do con flito, cf. BOUZA LVAREZ, F., 1994.
56. No scu lo XVIII, u m Gran de do rein o ou su cessor de casa da prim eira n obreza s podia partir para o Orien te com o govern ador ou vice-rei, n u n ca n u m a arm ada ou para com an dar u m a sim ples praa; cf. Mafalda Soares da Cu n h a e Nu n o G. Mon teiro, Vice-reis, govern adores e con selh eiros de govern o do Estado da n dia (1505-1834). Recru tam en to e caracterizao social. Penlope. Fazer e desfazer a histria, n .15, p.91-120, 1995.
57. Cf. MONTEIRO, N. G., op. cit.
58. No restem d vidas qu e a Ordem de Malta era a n ica em qu e o estado dos seu s professos h e o de verdadeiro Religioso. MELLO FREIRE, P. J. de Dissertao historico-juridica sobre os direitos e jurisdico do Gro-Prior do Crato... Lisboa, 1829. p.6.
59. As in form aes sobre o bispos foram obtidas recorren do a u m a m u ltiplicidade de fon tes,
n o m bito do projeto Optim a Pares (ICS-PRAXIS XXI), estan do a execu o a cargo de Lu sa Fran a Lu zio.
60. Cf. MONTEIRO, N. G., op. cit.
61. Cf., sobre este tem a, MONTEIRO, N. G. Poder local e corpos in term dios: especificidades
do Portu gal m odern o n u m a perspectiva h istrica com parada. In : ESPINHA DA SILVEIRA, L.
(coord.) Poder Central, Poder Regional, Poder Local. Uma perspectiva histrica. Lisboa: Cosm os,
1997. p.47-61.
62. Cf. a recen tes sn tese BERNSTEIN, H. The lord mayor of Lisbon. The Portuguese Tribune of the
People and His 24 Guilds. Boston , 1989.

148

A CONSOLIDAO DA DINASTIA DE BRAGANA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

B IBLIOGRA FIA
ALMEIDA, L. F. de Pginas dispersas. Estu dos de h istria m odern a de Portu gal. Coim bra, 1995.
BAIO, A. D. Joo V. Su bsdios para h istria do seu rein ado. Porto, 1945.
BEBIANO, R. D. Joo V, poder e espetculo. Lisboa, 1987.
BOUZA LVAREZ, F. Portugal en la Monarqua Hispnica (1580-1640). Felipe
II, las Cortes de Tom ar y la gn esis del Portu gal Catlico. Madrid: Un iversidad Com plu ten se, 1987.
____. En tre dos Rein os, u n a patria rebelde. Fidalgos portu gu eses en la Mon arqu a Hispn ica despu s de 1640. Estudis, n .20, 1994.
BRAZO, E. Relaes externas de Portugal: rein ado de D. Joo V. Lisboa,
1938. 2 v.
CARDIM, P. Cortes e cultura poltica no Portugal do Antigo Regime. Lisboa,
1998.
CLUNY, I. D. Lu s da Cu n h a e a idia de diplom acia em Portu gal. Lisboa,
1996. Dissertao (Mestrado) (Mim egr.).
CORTESO, J. Alexandre de Gusmo e o Tratado de Madri. 2.ed. Lisboa, 1984.
4 v.
HANSON, C. A. Economia e sociedade no Portugal Barroco. Lisboa, 1986.
HESPANHA, A. M. Da "iu stitia" a "disciplin a". Textos, poder e poltica pen al n o An tigo Regim e. Anurio de historia del derecho, 1988.
___. Justia e administrao entre o Antigo Regime e a Revoluo. HISPANIA, en tre Derech os Proprios y Derech os Nacion ales. Milo: Giu ffr, 1990.
___. O govern o dos u strias e a m odern izao da con stitu io poltica
portu gu esa. Penlope. Fazer e desfazer a Histria, n .12, 1989.
___. (Coord.) O Antigo Regime (1620-1807). In : MATTOSO, J. (Dir.) Histria
de Portugal. Lisboa, 1998. v.IV.
MACEDO, J. B. de Estrangeirados, um conceito a rever. Lisboa, s.d.
___. Histria diplomtica portuguesa. Con stan tes e lin h as de fora. Estu do de
geopoltica., Lisboa, s.d.
___. Problemas de histria da indstria portuguesa no sculo XVIII. 2.ed. Lisboa, 1982.
MATOS, G. de M. O sen tido poltico da crise poltica de 1667. Anais da Academia Portuguesa de Histria, 1 srie, v.VIII, Lisboa, 1944.

149

Nuno Gonalo Freitas Monteiro

Macedo, J. B. Um processo poltico n o scu lo XVII. Congresso do Mundo Portugus, v.VII, Lisboa, 1940.
MERA, P. Da minha gaveta. Os secretrios de Estado n o An tigo Regim en .
Lisboa, 1965. (sep. do Boletim da Facu ldade de Direito, v.40.)
MONTEIRO, N. G. O crepsculo dos Grandes. A casa e o patrim n io da aristocracia em Portu gal (1750-1832). Lisboa, 1998.
PIMENTEL, A. F. Arquitetura e poder. O real edifcio de Mafra. Coim bra,
1992.
PRESTAGE, E. O concelho de Estado de D. Joo IV e D. Luiza de Gusmo. (sep.
do Arquivo Historico Portugus) IX, 1919.
SCHAUB, J.-F., La crise Hispan iqu e de 1640. Le m odle des "rvolu tion s
priph riqu es" en qu estion (n ote critiqu e). Annales. Histoire, Sciences Sociales, n .1, 1994.
SERRO, J. V. Histria de Portugal (1640-1750). 2. ed. Lisboa, 1982. v.IV.
SUBTIL, J. Govern o e adm in istrao. In : Mattoso de J. (Dir.) Histria de
Portugal. Lisboa: Estam pa, 1998. v.IV.
CONDE DE TOVAR. O Arqu ivo do Con celh o de Estado. Anais da Academia
Portuguesa de Histria, 2 srie, v.II, 1961.

150

captu lo 9

POMBA L E O BRA SIL


Fran cisco Calazan s Falcon *

O tema deste ensaio um tanto breve, como convm ao gnero, tem


como pano de fundo uma poca da histria luso-brasileira particularmente trabalhada pela historiografia. Entre a idia de uma realidade histrica inerente prpria poca e a do seu carter historiograficamente
construdo, situam-se as hesitaes do historiador as quais so tambm suas
opes terico-metodolgicas. Com efeito, se no podemos mais acreditar
numa reconstituio positivista da poca pombalina em relao seqncia cronolgica dos acontecimentos que a identificam, tampouco poderamos pretender perspectiv-la como poca no sentido historista,
isto , nica e incomparvel. Convm portanto esclarecer que nossa referncia a uma poca Pombalina representa apenas uma espcie de expediente a fim de justificar um certo recorte cronolgico no interior de cujos
limites se tenta identificar algumas manifestaes mais ou menos especficas do ponto de vista do que elas significam efetivamente, em termos de
continuidade ou ruptura, quer em relao ao que antecede a data-limite
de 1750, quer ao que se passa aps 1777.
Foi de acordo com tais premissas que tentamos, muitos anos atrs,1
escrever uma histria da poca Pombalina, a partir de sua representao
como mercantilista e ilustrada; inscrevendo-a no contexto geral da modernidade europia e, em particular, da ibrica 2. As circunstncias de ento
no permitiram abranger, no nosso texto, a outra face dessa poca a brasileira. De l para c temos tentado, em ocasies e de modos diversos, realizar o estudo dessa face brasileira do reformismo ilustrado. A par das conhecidas e inevitveis dificuldades inerentes prpria pesquisa, defrontamo-mos com problemas de carter historiogrfico bastante reais, pois, o
nosso objeto de anlise tambm o objeto construdo por toda uma historiografia que cristalizou uma tradio acerca dos modos de ver e interpretar tal objeto.
Ao analisarmos a face brasileira das reformas pombalina temos em
vista, preliminarmente, o dilogo com uma historiografia que, de uma maneira geral, e salvo, claro, as honrosas excees de sempre, possui como
caractersticas: 1 o inventrio descritivo-narrativo, mais ou menos pormenorizado, dos textos legais e regimentais produzidos em Lisboa, nos

151

Francisco Calazans Falcon

quais se consubstanciam as reformas a serem aplicadas Colnia; 2 a interpretao do sentido de tais prticas reformistas segundo o ponto de vista da retrica das autoridades da Metrpole presente nos respectivos discursos; 3 o freqente desprezo pelas especificifidades da colnia, a situao
colonial, a pluralidade dos espaos e a diversidade dos tempos; 4 O silncio, quase total e insistente, a respeito da recepo das reformas no
ambiente colonial, isto , suas leiturase as prticas da decorrentes, quer
dos prprios agentes da administrao lusitana, quer dos grupos, ou segmentos sociais, que, na falta de um termo mais preciso, denominamos as
elites coloniais.3

COLN IA , SEUS ESPA OS E TEMPOS

O Imprio Portugus, no sculo XVIII, compreende os territrios


metropolitanos e os domnios ultramarinos, uma rea semi-perifrica que
constitui um dos vrios subsistemas do Sistema Mundial Moderno, capitalista e europeu 4. No interior desse subsistema destaca-se o espao lusoatlntico, por sua riqueza e dinamismo econmicos, envolvendo as relaes
de Portugal com a Amrica portuguesa e as feitorias situadas no litoral africano. As articulaes das diversas reas desse espao constituem o essencial
da estrutura e dinmica do Antigo Sistema Colonial.5
O primeiro dado a ser levado em conta neste caso a prpria condio colonial e tudo que significa concretamente em termos da necessria distino entre colonizadores, colonos e colonizados, categorias estas que
podem assim ser descritas: colonizadores todos aqueles elementos ligados
esfera administrativa (leigos e eclesisticos) e tambm, e sobretudo, os comerciantes, negociantes de grosso-trato, ou homens de negcio; colonos (resultantes do desdobramento do colonizador em colono) os proprietrios
coloniais da mo-de-obra, da terra, dos meios de trabalho; colonizados todos os demais segmentos da populao ndios, negros, brancos pobres,
mestios.6 Como iremos ver mais adiante, as elites coloniais correspondem a subdivises da categoria colonos, da ser possvel distinguir-se entre
elites proprietrias, mercantis e letradas.7 a partir destas categorias e das
especifidades existenciais do viver em colnia que propomos a anlise das
reformas ilustradas do perodo pombalino.
Espaos e tempos coloniais em contnua mutao o que se percebe por
exemplo , entre a Histria da Amrica Portuguesa, de Rocha Pita 8 e a
Corografia Braslica, do Pe. Aires de Casal9 ou, ainda, entre Antonil10 e
Azeredo Coutinho.11 Contornos geopolticos, bases demogrficas, atividades
econmicas, composio social, referenciais poltico-administrativos, educao, cultura, tudo praticamente muda entre os momentos que aquelas
obras buscam apreender.

152

POMBAL E O BRASIL

Com ecem os pelo espao, ou espaos. O espao de Pita uma Amrica lusa constituda por dois Estados o do Brasil e o do Maranho e
Gro-Par. O Brasil de Antonil, apesar de mais amplo, concentra-se de
fato nas plantaes e engenhos de acar e nas catas aurferas e diamantferas das Minas Gerais. O espao, em Azeredo Coutinho, o de um
Vice-Reino que tenta dar conta dos mltiplos problemas de correntes da
prpria dialtica da totalidade, entrevista da metrpole, e da diversidade,
imposta pelas mltiplas realidades regionais que se encontram na raiz da
pluralizao do Brasil em Brasis. Mesmo Aires de Casal, cujo Brasil ,
j ento, o do Reino Unido, no consegue evitar a presena do peso das diversidades de toda ordem que relativizam a cada passo uma unidade desejada mas problemtica.
Se admitirmos que as variaes terminolgicas denotam oscilaes
nas prprias maneiras de apreender o espao colonial como um todo, talvez seja possvel compreender tambm a importncia que podem ter, para
a anlise do reformismo ilustrado, as estruturas administrativas coloniais
e a chamada dupla-mutao colonial, na primeira metade de Setecentos.
As estruturas administrativas, compreendendo-se a instituies e
pessoas, subdividiam-se em dois subsistemas, em funo de dois critrios: o
funcional e o geopoltico. O critrio funcional fixava esferas ou setores distintos: governo civil e militar, justia, fazenda e religio. O critrio espacial
reconhecia trs instncias hierarquizadas: geral, ou superior; regional, ou
intermediria; local ou inferior, ou seja, o Governo Geral, as capitanias, e
as cidades e vilas. Apesar da Coroa tender a prestigiar em cada nvel o governo civil e militar, os agentes pertencentes s diferentes funes entendiam-se, com freqncia, apenas com os seus iguais do mesmo setor, na
Colnia e/ou na Metrpole, ignorando, no raro, as autoridades civis e militares de sua prpria instncia. Divergncias e disputas entre rgos e
agentes coloniais a propsito de questes administrativas, muitas vezes com
caractersticas pessoais, constituem assim, no por acaso, fenmeno normal do cotidiano da Colnia.12
A denominada dupla mutao13 indica duas sries de transformaes que transformaram radicalmente a fisionomia da Colnia: a mutao
espacial e a econmica e demogrfica. Resultou a primeira da rpida e gigantesca expanso do territrio colonial, sobretudo no centro-sul e centrooeste; a segunda mutao tem a ver com descobrimento e rpida expanso
das reas de minerao de ouro e diamantes e o intenso deslocamento de
populaes, de dentro e de fora da Colnia, para estas reas. A mutao
espacial exigiu gastos cada vez maiores da Coroa com a defesa e o povoamento dos novos territrios, sobretudo nas regies prximas a territrios
castelhanos, alm, claro, de complicadas negociaes diplomticas e conflitos blicos que iro estender-se por todo o Setecentos.

153

Francisco Calazans Falcon

A mutao econmica e demogrfica, alm de promover o deslocamento do eixo econmico e administrativo da Colnia das reas nordestinas para as do sudeste, exigiu providncias rpidas e dispendiosas. Fez-se
necessrio estabelecer, a toque de caixa, rgos e agentes da Coroa junto aos novos ncleos de povoamento e extrao mineral, a comear pela
criao de diversas vilas, a fim de estabelecer a lei e a ordem, condio indispensvel fiscalizao da produo extrativa, do comrcio e do acesso a
minas de homens, animais e mercadorias. Somente assim seria possvel
garantir-se a cobrana e arrecadao dos quintos devidos Coroa e dos
direitos sobre operaes mercantis e passagens para as minas direitos de
entrada e de sada. Acima de tudo isto estava a inteno de coibir as sadas ilegais do ouro.14
Em face das mltiplas demandas resultantes dessas duas mutaes,
como que imprensada entre as sucessivas ordens e instrues da Metrpole, e a crnica insuficincia de meios materiais e humanos, os agentes da
administrao colonial empenharam-se, quando muito, em realizar o que
lhes parecia ser o possvel. Esta contradio tradicional, inerente administrao colonial escassez de meios em comparao com a ambio dos fins
ser um elemento decisivo na avaliao das reformas pombalinas do
ponto de vista de sua efetiva implementao no (s) espao (s) colonial (is).
Passem os agora, aos tem pos. A refern cia aos tem pos (plu ral) u m a
form a qu e aqu i u tilizam os para su blin h ar du as orden s de qu estes: as diferen as en tre os tem pos da Metrpole e os da Coln ia; a n o-h om ologia, n a
Coln ia, en tre o tem po da econ om ia e o tem po poltico-adm in istrativo.
Com relao Metrpole, a tradio historiogrfica por muito tempo
habituou-se ao recorte dinstico que distingue os tempos joaninos dos josefinos e estes dos marianos. Absolutizados em termos de pocas, estes
tempos conferem uma espcie de realidade parte ao perodo pombalino,
cortando-lhe as possveis amarras com a histria que o antecede cria uma
certa viso caricatural do reinado de D. Joo V , e a que se lhe segue por
intermdio da construo mtica de um Viradeira improvvel. A partir de
Jorge de Macedo,15 procedeu-se demolio de tais rupturas, conforme se
evidenciaram duas coisas: as muitas continuidades existentes, em termos
polticos e administrativos, com relao ao antes-1750 e ao ps-1777; a
resistncia do movimento conjuntural da economia em enquadrar-se na
camisa-de-fora da cronologia poltica tradicional,16 especialmente com referncia ao perodo pombalino encarado como um bloco.
Quanto Colnia, tambm nos encontramos em face de duas temporalizaes, conforme se trate de ritmos administrativos ou econmicos.
Os ritmos poltico-administrativos seriam assim descritos: uma reao centralizadora, tpica do incio do reinado de D. Joo V, de 1707 a 1720, como

154

POMBAL E O BRASIL

contraponto poltica pouco eficaz da Coroa, em temos da sua presena na


colnia, nas dcadas finais do sculo XVII; um progressivo enfraquecimento da autoridade rgia na Colnia, entre 1720 e 1750, que propicia o fortalecimento de poderes locais em vrias regies coloniais, a tal ponto que suas
resistncias foram os agentes da Coroa a retrocessos e compromissos, ampliando-se assim a participao, por delegao de poderes, dos colonos
nas administraes locais; a seguir, entre 1750 e 1777, sobre esse quadro de
descentralizao projeta-se a vontade frrea de Pombal no sentido da
centralizao a qual novamente se enfraquece e perde consistncia aps
a queda do poderoso ministro.
Voltaremos a essa questo ao abordarmos a administrao pombalina. Neste passo, no entanto, interessa-nos sublinhar o fato de que os ritmos
econmicos marcam tempos algo distintos dos que acabamos de descrever.
Na primeira metade do Setecentos, o setor agromercantil da economia colonial experimenta freqentes oscilaes entre perodos mais longos de estagnao e crise, em conexo com as variaes da demanda e dos preos
do acar no mercado internacional, e perodos mais curtos, de relativa
prosperidade, sendo certo que, bem antes de 1750, o setor encontrava-se
mais uma vez em crise.
Contrastando com as dificuldades agroexportadoras, o setor minerador expandiu-se rapidamente at a dcada de 1730, quando se observam
os primeiros sinais do provvel esgotamento das minas, se bem que se tratasse ainda de um futuro mais ou menos distante na opinio dos contemporneos. Ao que tudo indica, nas regies de minerao, durante este perodo, que as autoridades coloniais parecem algumas vezes hesitar entre a
imposio rgida e violenta do poder rgio e a prudncia que as aconselha
moderao e cooptao dos poderosos locais, atravs de variados tipos de
compromisso tendentes a garantir o mais essencial: a cobrana e arrecadao dos direitos da Coroa.
lenta recuperao do setor afromercantil na dcada de 1750 e em
parte da de 1760, sucede novo perodo de crise, apenas interrompido pela
Guerra da Amrica, isto , a luta das colnias inglesas da Amrica do Norte contra a metrpole. O setor minerador, aps uma breve recuperao, nos
anos de 1750, mergulha em profunda crise, sobretudo nos anos de 17601770. A queda da arrecadao proveniente da cobrana do quinto abala
as finanas do Estado e compromete a balana comercial de Portugal com
a Inglaterra e outros pases. Os apertos da nova conjuntura, agravados pela
guerra com a Espanha, imprimem novos rumos ao reformismo ilustrado,
na metrpole e na Colnia.17
A partir de 1780-1790, com a rpida expanso e diversificao do setor agroexportador,18 configura-se o clima de euforia19 tpico da fase final
do perodo colonial, durante a qual, em face da crise do sistema,20 os bu-

155

Francisco Calazans Falcon

rocratas de Queluz e os intelectuais (muitos tambm burocratas) da Academia Real das Cincias, de Lisboa, empenham-se em diagnosticar seus fatores e sugerir medidas prticas para reformar e ao mesmo tempo conservar
o prprio sistema.21
Concluindo esta parte, desejamos sublinhar a multiplicidade de espaos e tempos. De espaos: o espao do sistema colonial, o espao geopoltico, os espaos socioeconmicos e poltico administrativos e, ainda, os espaos de sociabilidade, como iremos ver adiante. De tempos: o tempo dos prncipes, os tempos das conjunturas econmicas, os tempos poltico-administrativos e o tempo das idias ilustradas, este tambm ainda por abordar.

O REFORMISMO ILUSTRA D O D A GOVERN A O


POMBA LIN A N O BRA SIL-COLN IA

A fim de no estendermos em demasia este trabalho, vamos aqui enfocar apenas trs tpicos do reformismo: o econmico, o poltico-administrativo, e o cultural-pedaggico.

AS REFORMAS ECONMICAS POMBALINAS


As reformas econmicas pombalinas so provavelmente as mais conhecidas destes trs tpicos, motivo porque iremos apenas sintetiz-las.
Admitido o carter mercantilista das prticas econmicas pombalinas,
interessam-nos aqui aquelas relacionadas, direta ou indiretamente, com o
Brasil. Note-se, no entanto, que tais prticas no se apresentam de forma
sincrnica. So as variaes conjunturais que, em boa parte, determinam
suas oscilaes, inclusive suas vigncias concretas. A presena do sistema
colonial constitui um pressuposto geral, comum a todas essas prticas, o
que significa que, ao lado das questes econmicas, preciso situar as
preocupaes fiscais j que, na realidade, o reformismo pombalino foi
sempre mercantilista e fiscalista. Exemplos disto foram as providncias tomadas, j em 1751, para solucionar os impasses que dificultavam as exportaes de acar e tabaco, a comear pela criao das Casas de Inspeo do
Tabaco e do Acar.
Um captulo parte corresponde, nesse contexto reformista, Junta do Comrcio22, criada em 1755, rgo ao qual competia controlar a sada das frotas, fazer cumprir a proibio dos comissrios volantes irem aos
portos do Brasil, combater os descaminhos e contrabandos, fiscalizar o peso
e qualidade dos rolos do tabaco e das caixas de acar. Assim, todo o trfico ultramarino estava sob a sua alada: a organizao, controle e fomento
do comrcio colonial, inclusive a construo de navios, no Reino e no Brasil, com madeiras da Colnia.

156

POMBAL E O BRASIL

O primeiro campo das prticas mercantilistas pombalinas o do fomento,


produo metropolitana. Nesta rubrica, a insero do Brasil-Colnia dupla, embora indireta: 1. em conseqncia dos privilgios conferidos
Cia. Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro(1756), como o Alvar
de 6 de agosto de 1776 ordenando que o Rio de Janeiro e as provncias do
Sul ficassem abertos ao comrcio exclusivo de vinhos, aguardentes e vinagres da Companhia; 2. a poltica de incentivo as manufaturas, a comear
pelos Estatutos da Fbrica das Sedas (1757), encara sempre o mercado colonial como exclusivo, da terem sido autorizadas no Brasil apenas algumas poucas fbricas que, na verdade, eram usinas de beneficiamento de
certos produtos primrios destinados exportao: arroz, lonas, enxrcias,
madeiras, solas, atanados.23
Como segundo campo das prticas mercantilistas a poltica comercial e colonial
temos o monoplio de exportao, a balana comercial e o pacto colonial.
O instrumento ento utilizado para maximizar os objetivos do monoplio do comrcio colonial defesa contra os concorrentes e fomento
produo no ultramar foram as companhias de comrcio. Tratava-se a de resolver trs questes: o controle monopolstico da circulao, o incentivo s
produes coloniais de interesse comercial e o trfico de escravos. Para o espao colonial brasileiro foram criadas duas companhias: a Companhia Geral do Gro Par e Maranho (1755) e a Companhia Geral de Pernambuco
e Paraba (1759). A historiografia destas companhias24 uma das mais ricas
dentre as dos temas clssicos das prticas pombalinas. Seu principal objetivo era o monoplio mercantil em proveito de seus acionistas metropolitanos, se bem que, nos discursos oficiais, sua criao seja justificada em funo do abandono e atraso (Par e Maranho), e das dificuldades econmicas (Pernambuco e Paraba) das suas respectivas regies de atuao. J bastante conhecidas quanto s suas estruturas e operaes, tais companhias,
apesar da alegao oficial de atendimento solicitao dos respectivos povos, provocaram muitas reaes dos colonos sendo esta provavelmente
a face relativamente menos conhecida da sua atuao.
O monoplio das companhias de comrcio exclua comerciantes locais e estrangeiros. Estes ltimos, alis, constituem uma constante preocupao, dado o empenho da Metrpole em impedir-lhes, ou a seus agentes,
o comrcio direto com a Colnia. Fazem parte desta poltica a reiterao,
em 1760, das medidas contra as fraudes que se vinham verificando com
relao proibio de passarem ao Brasil os comissrios volantes, assim
como as sucessivas reedies das proibies que vedavam o acesso de navios estrangeiros aos portos do Brasil.
O terceiro campo das prticas reformistas (mercantilistas) compreende a
poltica monetria e o fiscalismo. A questo monetria abrangia duas ordens
diferentes de problemas: a arrecadao dos quintos, nas minas do Brasil,

157

Francisco Calazans Falcon

em conexo com providncias contra as fraudes e contrabandos, e o comrcio deficitrio com a Inglaterra, especialmente a partir de 1760, quando o
declnio do afluxo do ouro, conseqncia da queda vertiginosa no rendimento das minas, fez escassear o metal reequilibrador da balana comercial.25 Captulo parte, a extrao e o comrcio dos diamantes das Minas
Gerais constituem uma das faces mais persistentes e curiosas das idias e
prticas pombalinas.26
No mbito do fiscalismo, a principal medida consistiu na criao do
Real Errio, ou Errio Rgio (1761), que abordaremos mais adiante.27
Em resumo, parece razovel afirmar que as reformas econmicas
associaram s prticas mercantilistas, antigas mas permanentes, as preocupaes fiscalistas ditadas, sobretudo, pelas urgncias das finanas do Estado. Do ponto de vista da Colnia, alis, foram provavelmente as medidas
fiscalistas as mais diretamente percebidas pelos colonos. No deve causar
espanto, em conseqncia, o fato de ser a viso de tais reformas ilustradas, a partir das elites coloniais, muito diferente daquilo que nos dizem
as histrias produzidas em funo dos discursos metropolitanos.

AS REFORMAS POMBALINAS NO MBITO CULTURAL E


O SISTEMA EDUCACIONAL DA COLNIA
A histria cultural do Brasil-Colnia est associada, na segunda metade do sculo XVIII, componente ilustrada do reformismo pombalino.
Dentre os muitos elementos constitutivos das reformas esclarecidas do
Estado absolutista, avulta o das relaes entre o poder civil e o eclesistico
as quais, poca de Pombal, cristalizaram-se em torno dos padres da Companhia de Jesus, culminando na sua expulso de Portugal e seus domnios (1759).
No cabem aqui, evidentemente, a anlise da questo jesutica e a
histria particular dos efeitos da expulso dos inacianos naqueles setores da
vida colonial onde sua atuao era mais ou menos decisiva, a comear pelo
educacional.28 Por outro lado, a constelao dos tpicos compreendidos no
impacto das reformas ilustradas de natureza cultural sobre a Colnia excede em muito os efeitos daquela expulso. Mesmo em se tratando do campo especificamente religioso, fundamental a presena atuante da Congregao do Oratrio e de outras ordens, como franciscanos e beneditinos, no
ambiente colonial.29
Tampouco podem ser esquecidas as repercusses, na Colnia, das reformas empreendidas na esfera jurdica,30 alm do que significaram, para os
letrados da Colnia, os efeitos da Ilustrao no plano flilosfico, a comear
pela ruptura com a tradio da Segunda Escolstica em nome de uma
cincia moderna voltada para a experincia e observao e visando inves-

158

POMBAL E O BRASIL

tigar/conhecer uma natureza a colonial de acordo com um certo finalismo pragmtico ou utilitarista.31
Outro campo, imenso por sinal, da cultura colonial que tem a ver
com as reformas ilustradas o da produo literria e artstica, j bastante investigado e analisado e que continua a atrair o interesse dos pesquisadores.32 A governao pombalina tentou constantemente, inclusive a pretexto de patrocin-la, controlar essa produo. Paralelamente, a censura
oficial empenhou-se em cercear a circulao de obras, especialmente estrangeiras, sobretudo as de natureza sediciosa, isto , hostis ao absolutismo ou aos princpios ticos e sociais do Antigo Regime.33
Do ponto de vista historiogrfico, as reformas pedaggicas esto para
a histria cultural da Colnia assim como as companhias de comrcio esto
para sua histria econmica. A partir da dominncia exercida pelos padres
da Companhia de Jesus sobre o sistema educacional da Colnia, at 1759,
a historiografia tende a fixar um marco divisrio, um antes e um aps,
em torno do qual se alinham os crticos e os defensores das reformas. Segundo Laerte Ramos de Carvalho 34 o processo de transformao pedaggica, que teve seu momento decisivo na expulso dos jesutas, insere-se no
bojo do universo de prticas reformistas tendentes secularizao do ensino e do prprio Estado absolutista.
A reforma dos estudos, como uma das dimenses do regalismo, visava laicizar os quadros docentes, reformular a estrutura organizacional do
sistema e o seu funcionamento, tendo como principal objetivo transformar
os currculos e mtodos pedaggicos de acordo com os valores modernos
ou ilustrados.35 A reforma dos Estudos Menores, lanada em 1759, aboliu
as escolas jesuticas e estabeleceu nas Aulas e Estudos das Letras uma Geral Reforma.36 As dificuldades e insucessos desta primeira tentativa conduziram ao relanamento da reforma pela Lei de 6 de novembro de 1772 37,
j agora sob a direo da Real Mesa Censria e contando com os recursos a
serem arrecadados atravs do Subsdio Literrio.
Conhece-se o processo de Implantao da Reforma na Bahia, Rio de
Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais atravs de vrios trabalhos, sobretudo
os de Andrade e Carrato,38 nos quais se percebe as muitas disputas e problemas que acompanharam a implementao das mudanas: a querela das
gramticas e dos textos recomendados, a parca remunerao dos mestres,
a disciplina autoritria e repressiva, a arrecadao deficiente do Subsdio
Literrio e o desvio dos seus recursos, a falta de livros, o difcil recrutamento dos quadros docentes, agravado por muitas delongas e complicaes burocrticas, a marginalizao das zonas rurais, sobretudo, no caso brasileiro,
devido s enormes distncias entre os ncleos povoados.
Para concluir este tpico, conviria ter presentes no s as inevitveis
diferenas entre as reformas aqui consideradas, conforme se trate de Portugal ou do Brasil, como, principalmente, os problemas interpretativos resul-

159

Francisco Calazans Falcon

tantes da transposio acrtica das propostas ilustradas s especificidades


da condio colonial. Referimo-nos, neste caso, compreenso de como
se deu, no Brasil Colnia, a recepo da propostas ilustradas idias e
prticas. A pergunta, no meu entender, continua a ser: as aluses, freqentes na historiografia, presena/existncia/influncia de idias ilustradas
na Colnia referem-se, afinal, a quais idias? 39

POR LTIMO, AS REFORMAS POLTICO-ADMINISTRATIVAS


Tambm neste caso, algumas das reformas consistiram na extenso
Colnia das ramificaes de mudanas operadas na Metrpole. A historiografia atem-se em geral a certas medidas mais ou menos pontuais, como:
transferncia da sede do Governo Geral do Estado do Brasil, de Salvador
para o Rio de Janeiro (1763); a extino do Estado do Gro-Par e Maranho e sua incorporao, como capitania-geral, ao do Brasil (1772); em
aquisio, pela Coroa, das capitanias privadas, paralela criao de novas
capitanias reais, como S. Jos do Rio Negro (1717), Piau (1759) e Rio
Grande de S. Pedro (1760).
Mais significativas, na verdade, so as tendncias poltico-burocrticas pois revelam o empenho em modernizar a administrao, do pontode-vista do funcionamento dos rgos existentes e dos comportamentos
dos agentes da Coroa. Nem sempre, porm, as prticas poltico-administrativas correspondem letra dos textos legais e normativos. Veja-se, por
exemplo, o ttulo de Vice-Rei conferido, a partir de 1763, ao GovernadorGeneral do Mar e Terra do Estado do Brasil. Em tese, o Vice-Rei era a autoridade suprema da Colnia; na prtica, nem a Metrpole, nem as demais
autoridade coloniais, permitiram o exerccio de tal supremacia. Lisboa jamais deixou de fazer ver ao Vice-Rei a necessidade de agir com cautela em
face dos poderes regionais e dos interesses locais. A correspondncia direta
entre Pombal e os capites-generais da capitanias-gerais e mesmo, em alguns casos, com capites-mores, evidencia que o Vice-Rei tinha sua autoridade praticamente restrita Capitania-Geral do Rio de Janeiro e capitanias
subordinadas (Esprito Santo, Santa Catarina e Rio Grande de S. Pedro).
Em 1751, foi instalado o Tribunal da Relao do Rio de Janeiro a fim
de desafogar o antigo Tribunal da Relao da Bahia. Com a instituio do
Real Errio, em Lisboa (1761), foram organizadas as Juntas da Fazenda em
cada uma das capitanias-gerais. Tambm a organizao militar passou por
grandes reformas, ao passo que na esfera da justia e dos governos municipais no se registram mudanas significativas.
O empenho maior da Metrpole eram a racionalidade e a eficincia
administrativas, baseadas no princpio de secularizao e aprimoramento
dos quadros burocrticos. Pretendia-se modernizar a burocracia atravs

160

POMBAL E O BRASIL

de seus agentes: processos e mtodos de formao intelectual e profissional,


recrutamento, limitao do nepotismo e do carter prebendrio e vitalcio
dos ofcios e serventias.40
A simples descrio das providncias tomadas pelo reformismo
pombalismo pode revelar-nos certas tendncias mas pouco nos esclarece
acerca de seus objetivos gerais e dos resultados reais das prprias prticas.
Uma primeira dificuldade a da interpretao dos objetivos. Entre os
discursos metropolitanos, que anunciam e justificam as reformas, e as prticas reais, na Colnia, h com freqncia uma considervel distncia. Se
os discursos correspondem sempre a uma retrica ilustrada, no cotidiano
da Colnia a prtica reformista coloca para o historiador dois tipos de distanciamento: dos agentes poltico-burocrticos e dos objetivos reformistas.
Por ltimo, emerge uma indagao talvez a mais decisiva: como se deu a
recepo de tais reformas pelas elites coloniais?
Em primeiro lugar, os distanciamentos
Admitem os historiadores que os principais objetivos das reformas
Ilustradas, na Colnia, eram a centralizao poltico-administrativa, a afirmao e o fortalecimento do poder real, a racionalizao do aparelho administrativo, e a supresso dos abusos praticados pelos oficiais da Coroa.
Ora, para cada um destes objetivos a historiografia recente vem expondo
seus limites e distores, dada a fora das permanncias e a eficcia das resistncias dos agentes burocrticos e das elites.
A centralizao, por exemplo, deve ser repensada. Opera-se, na realidade, uma centralizao a partir de Lisboa e uma descentralizao na Colnia, ou seja, enquanto se aperta o controle da Metrpole sobre rgos e
agentes da administrao colonial, favorece-se a relativa autonomia das autoridades coloniais entre si, de tal forma que a centralizao ocorre, quando muito, no interior de cada capitania.41
Fortalecer e afirmar o poder real, racionalizar o aparelho administrativo em busca de sua maior eficincia, suprimir os abusos, pressupunha o
respeito s hierarquias e uma estrita obedincia s ordens rgias. Todavia,
na prtica, certas, contradies impunham limites reais a esses objetivos.
Das contradies, uma das mais importantes a da tradio versus inovao. A tradicional poltica metropolitana de manter seus agentes na Colnia em estado de insegurana quase permanente quanto a seus poderes e
atribuies, receiosos de desagradarem aos seus superiores, hesitantes diante de situaes imprevistas ou mal definidas nas suas instrues, assegurou sempre Coroa a posio de mediadora e suprema instncia. O equilbrio do desassossego entre os agentes da Coroa constitua a prpria essncia da tradio a que nos referimos.42
provvel que, em face dessa tradio, as reformas pombalinas tenham representado uma relativa mudana, se bem que em termos um tanto contraditrios: uma vigilncia mais rigorosa sobre rgos e agentes da

161

Francisco Calazans Falcon

administrao colonial, materializada em incessantes recomendaes, advertncias e punies; um esforo para a racionalizao dos procedimentos
administrativos e modernizao dos quadros burocrticos.
No seu conjunto, os resultados ficaram muito aqum dos objetivos. A
justia rgia continuou a ser escassa, demorada e mesmo ausente em vastos
espaos. Poucos juzes-ouvidores, sobrecarregados de tarefas, mal remunerados e sujeitos a presses as mais diversas. Arbitrariedade e venalidade caracterizam, por outro lado, os comportamentos de alguns desses juzes.43
No setor fazendrio, modernizaram-se os procedimentos contbeis
das receitas e despesas,mas no se conseguiu avanar muito na racionalizao das fontes de receita. Os apertos financeiros, crnicos na Colnia,
agravaram-se em decorrncia de freqentes despesas extraordinrias impostas por contingncias blicas e calamidades pblicas. Para os colonos, o
que houve de concreto foi um aumento sensvel da carga tributria conseqente intensificao das presses fiscais.
Apesar das muitas crticas de ento, o sistema dos contratos reais
foi mantido; continuou precria a remunerao dos agentes da administrao pagos pela Coroa, persistindo os tradicionais abusos quando tal remunerao competia aos usurios caso dos ofcios vitalcios.44
Concluindo, pode-se perceber a distncia considervel existente entre o desenho das reformas pombalinas nos discursos oficiais e as realidades da sua implementao. A idia, muito difundida, de um absolutismo s
plenamente concretizado, em clave iluminista, graas a Pombal, no passa de um mito. Finalmente, duas perguntas que somente a prpria pesquisa histrica poder vir a responder: em que sentido, ou at que ponto, as
reformas ilustradas foram como tais percebidas pelos colonos? em que
medida muitas dessas reformas representaram apenas, para os colonos,
mais explorao e tirania?
No gostaramos de terminar este trabalho sem uma rpida referncia a uma questo fundamental por ns j tratada em outros textos45: as atitudes das elites coloniais diante do reformismo ilustrado. A par dos problemas atinentes caracterizao dessas elites do ponto de vista socioeconmico e cultural, importa-nos aqui sobretudo a anlise das relaes
entre elas e os agentes poltico-administrativos. Pensamos que tal anlise
dever colocar em evidncia a dialtica do conflito versus acomodao/cooperao no mbito de tais relaes.46 Com efeito, a partir de trs tpicos ou
temticas a historiografia recente vem evidenciando que a hiptese do
conflito precisa ser devidamente relativizada. 1 atravs do conhecimento mais preciso da burocracia colonial sua estrutura, composio socioprofissional, carter de suas funes, insero dos agentes no meio social
da Colnia; 2 reavaliao da importncia da cidade colonial como espao de sociabilidade, de interao de colonizadores e colonos; 3 o processo de interpenetrao de elites e agentes da Coroa, a partir de for-

162

POMBAL E O BRASIL

mas muito variadas de sociabilidade pautadas, em geral, por consideraes


de prestgio, interesse e favor.
Havia assim, poca do reformismo ilustrado, uma longa e complexa tradio a presidir as relaes entre elites e agentes de Coroa. A recepo das reformas pelas elites projeta-se sobre o pano de fundo dessa tradio incorporando experincias e expectativas geradoras de leituras diferentes, quer dos discursos ilustrados, quer das prticas reformistas na Colnia. Neste ltimo caso, tambm faz sentido tentar perceber melhor as leituras e comportamentos dos prprios agentes da Coroa. Trata-se, em resumo, de leituras e atitudes que variam no tempo e de um segmento social a
outro. Por ora, parece-me arriscado apostar numa espcie de adeso em
bloco s reformas, quer das elites, quer dos agentes da administrao. Nem
sempre as elites coloniais tero reconhecido como positivas muitas das
prticas supostamente esclarecidas; possvel que o inverso seja mais
exato. Tampouco h evidncias que demonstrem a adeso incondicional do
aparelho administrativo a idias e prticas reformistas.
Fica assim, uma derradeira pergunta: as reaes das elites coloniais ao
reformismo ilustrado tenderam a uma espcie de compromisso com as diretrizes da Metrpole ou apressaram o processo de ruptura com a Coroa?

163

Francisco Calazans Falcon

N OTA S
1. FALCON, F. J. C. A poca Pombalina. Poltica Econmica e Monarquia Ilustrada. So Paulo: tica, 1982.
2. Idem. Descobrimentos e Modernidade Ibrica; In: AZEVEDO, Francisca L. N. de & Monteiro,
John M. (Orgs) Razes da Amrica Latina. So Paulo: Expresso e Cultura/EDUSP, 1996, p.105-29.
3. Tentamos avaliar essa historiografia ao final do captulo Portugal y Brasil en el siglo XVIII
las reformas del absolutismo ilustrado y la sociedad colonial, Seccin b, Captulo 10, da Histria General de Amrica Latina, v. IV, a ser brevemente publicado pela UNESCO.
4. WALLERSTEIN, I, 1980, The Modern World System. II Mercantilism and the consulidation of the
european world economy. N. York, Academic Press. Trad. espanhola, Siglo XX, Mxico, 1984. p.
248, 256-7, 265.
5. NOVAIS, Fernando A., 1976. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808).
So Paulo: Hucitec.
6. MATTOS, Ilmar R. de, 1987. O Tempo Saquarema. So Paulo: Hucitec - I. N. L.
7. SANTOS, Afonso C. M. dos. No Rascunho da Nao. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura. 1992.
8. ROCHA PITA, Sebastio da. 1976. Histria da Amrica Portuguesa, desde o ano de 1500... ao
de 1724 . (Lisboa, 1730) 4. ed. So Paulo. Prefcio e notas de P. Calmon. p.237.
9. CASAL, Pe. Aires de, Corografia Braslica (Rio de Janeiro, 1817) So Paulo: Itatiaia. 1976.
10. ANTONIL, Andr Joo (Joo Antnio Andreoni, 1967. Cultura e opulncia do Brasil por suas
drogas e minas (Lisboa, 1711) So Paulo: Cia. Edit. Nac. Introduo e vocabulrio por Alice P.
Canabrava.
11. COUTINHO, J. J. da Cunha Azeredo, 1966. Ensaio Econmico sobre o comrcio de Portugal e suas Colnias (Lisboa, 1794) In: HOLANDA, Srgio B. de (Ed.) Obras Econmicas de
J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. So Paulo: Edit. Nac.
12. SCHWARTZ, S. 1979 Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. Trad. brasileira de Maria H. P.
Martins. So Paulo: Perspectiva.
13. MARTINIRE, Guy. 1991. A implantao das estruturas de Portugal na Amrica In: MAURO F. (Coord.) O Imprio Luso-Brasileiro (1620-1750). Lisboa: Estampa. p.91-261.
14. RUSSELL, Wood. 1987. The Gold Cycle, c. 1690 1750 In: BETHELL, L. (Ed) Colonial Brazil. Cambridge: University Press. p.221-4.
15. MACEDO, J. B. de. A situao econmica no tempo de pombal. Porto: Portuglia. 1959.
16. GODINHO, V. Magalhes. 1968. Finanas pblicas e estrutura do Estado. In: Idem, Ensaios
II, Lisboa: S da Costa, p.25-63.
17. MAXWELL, Kenneth. 1996. Marqus de Pombal. Paradoxo do Iluminismo. Trad. Antnio P. Danieri. Rio de Janeiro; Paz e Terra; MACEDO, J. B. de, 1951, op. cit. ; NOVAIS, F. A., 1976, op. cit.;
18. ARRUDA, Jos J. A. O Brasil no Comrcio Colonial S.Paulo: tica, 1980.
19. ARRUDA, J. J. A. op. cit. 1980.
20. NOVAIS, F. A. op. cit. 1976.
21. MUNTEAL F- , Oswaldo. 1998. Uma Sinfonia para o Novo Mundo. A Academia Real das
Cincias de Lisboa e os caminhos da Ilustrao luso-brasileira na crise do Antigo Sistema Colonial. Rio de Janeiro. Tese de Doutorado, 2v., xerocopiada.
22. FALCON, Francisco J. C. 1982. A poca Pombalina, op. cit., p. 450-5.
23. FALCON, Francisco J. C. 1982. A poca Pombalina, op. cit., p. 468.
24. DIAS, Manuel Nunes, 1970. A Companhia Geral do Gro Par e Maranho (1755-1778),
Belm, Universid. Federal do Par, 2v.; RIBEIRO JR., Jos, 1972. A Companhia Geral do Pernambuco e Paraba. So Paulo, Tese Doutorado Universidade de So Paulo (USP); FALCON,
Francisco J. C, 1982. A poca Pombalina, op. cit. cf. notas s p.470-3.

164

POMBAL E O BRASIL

25. PINTO, V. Noya. O Ouro Brasileiro e o Comrcio Anglo Portugus. So Paulo: Cia Editora. Nac. 1979.
26. FALCON, F. J. C , 1982, op. cit., p.476-7.
27. Idem, op. cit., p. 480-1; Mendona, Marcos C. de, O errio rgio no Brasil. Rio de Janeiro,
Min. da Justia. 1968.
28. FALCON, F. J. C. 1982, op. cit., p. 378-82. Idem, 1992, As reformas pombalinas e a educao no Brasil, In: Estudos Ibero-Americanos. PUC-RS. XVIII, n. 2, p.16-20, 23-4.
29. FALCON, F. J. C. 1992, op. cit. p.8; OGGERO, U. de, 1986, As origens do pensamento filosfico no Brasil. In: Convivium, 1, Rio de Janeiro, p.72 ss.
30. FALCON, F. J. C., 1996. As prticas do reformismo ilustrado pombalino no campo jurdico. In: Revista de Histria das Idias, 18, Coimbra.
31. PAIM, A. 1986. A Filosofia no Brasil. In: Convivium XXV (29) So Paulo; COSTA, J. Cruz,
1956, Contribuio histria das idias no Brasil, Rio de Janeiro, J. Olympio.
32. CNDIDO, A. 1975. Formao da Literatura Brasileira. So Paulo: Itatiaia-EDUSP, 5. ed. 1v.;
Azevedo, F. de, 1943, A Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 3v.
33. FALCON, F. J. C. 1989. Da Ilustrao Revoluo percursos ao longo do espao-tempo
setecentista In: Acervo, IV, n. 1, Rio de Janeiro, Arq. Nac., p. 53-87
34. CARVALHO, Laerte. R. de. 1978. As reformas pombalinas na instruo pblica. So Paulo: Saraiva, p.32-37.
35. Idem, 1978, op. cit., p. 28-30; FALCON, F. J. C. 1982, op. cit., p.432-9.
36. ANDRADE, A. A. B. de. 1978. A reforma pombalina dos estudos secundrios no Brasil. So Paulo: Saraiva-EDUSP. Idem: O Marqus de Pombal e o ensino no Brasil. In: SANTOS, M. Helena C. dos (Coord.), Pombal Revistado. Lisboa: Estampa, I , p.227-24.
37. ANDRADE, A. A. B. de. 1978. op. cit.; CARVALHO, Laerte R., 1978, op. cit.
38. CARRATO, J. Ferreira. 1968. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. So Paulo: Cia
Ed. Nac.-EDUSP; PAIM, A., (Org.), 1982. Pombal e a Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro.
39. FALCON, F. J. C. 1988. Luzes e Revoluo na Colnia. In: Estudos Avanados. II, 2, So Paulo: USP, p.73-85.
40. ALDEN, Dauril. 1987. Late Colonial Brazil, 1750-1808. In: BETHELL, L. (Ed.), op. cit.
p.284-343; Idem, 1968, Royal Government in Colonial Brazil, 1769-1779. Berkeley, Univ. of
Califrnia Press.; Avellar, H. de A. 1970. Histria Administrativa do Brasil, V, 1750-1777, Rio de
Janeiro, DASP.
41. LOBO, Eullia M. L. 1962. Processo Administrativo Ibero-Americano. Rio de Janeiro, Bibl. do
Exrcito, p. 501-504 e 526; Alden, D., 19688, op. cit. p.422-37 e 447.
42. ALDEN, D., 1968, p.471 e nota 101.
43. AVELLAR, H. de A. 1970, op. cit., p.73-4; LEONZO, Nancy, 1986, As Instituies, In: Silva,
M. B. N. da (Coord.) O Imprio Luso Brasileiro, 1750-1822. Lisboa: Estampa; Wehling; A,1986
Administrao Portuguesa no Brasil,- 1777-1808, Hist. Adm. do Brasil, VI, Braslia, Funcep.
44. SILVA, Andre Mansuy D. 1987. Imperial reorganization, 1750 -1808. In: BETHELL, L.
(Ed.), op. cit., p.244-83; BELLOTTO, Helosa L., 1986, O Estado Portugus no Brasil. In: SILVA,
M. B. N. da (Coord.), op. cit. p.261-300; RUSSELL,- Wood, A. J. R., 1987, op. cit., p.207-8
45. FALCON, F. J. C. 1988, op. cit. p.73-85; Idem, 1989, op. cit., p.53-87
46. ALDEM, D. 1987, op. cit.,; Schwartz, S. B. 1979, op. cit.

165

Francisco Calazans Falcon

BIBLIOGRA FIA
ALDEN, D., 1987. Late colonial Brazil, 1750-1808. In: Bethel, L. (Ed.) Colonial Brazil. Cambridge, University Press, 1973. p.284-343. (Org.) Colonial Roots of Modern Brazil. Berkeley, Univ. of California Press. 1968.
Royal Government in Colonial Brazil, 1769-1779. Berkeley and Los
Angeles: Univ. of California Press, 545p.
ARRUDA, J. J. A. O Brasil no comrcio colonial. So Paulo: tica, 1980. 710p.
AVELLAR, H. de A. Histria Administrativa do Brasil, v. V, 1750-1777. Rio
de Janeiro: DASP, 1970. 490p.
BELLOTTO, He. L. O Estado Portugus no Brasil: sistema administrativo e fiscal. In: Silva, Maria B Nizza (Coord.). O imprio luso-brasileiro, 17501822. Lisboa: Estampa, 1986, p.261-300.
BOXER, C. R. The golden age of Brazil (1965-1750). Berkeley: University of
California Press, 1962.
The Portuguese Seaborne Empire, 1415-1825. London: Penguin, 1969. O
Imprio Colonial Portugus, 1415-1825. (Trad. portuguesa de Ins S.
Duarte. Lisboa: Edies 70, 1981.)
CARNAXIDE, Visconde de. O Brasil na administrao pombalina. So Paulo:
Cia. Editora Nacional-MEC, 1979, 2. ed., 313p. (1. ed., 1940.)
CUNHA, Paulo O. C. da S. 1960. Poltica e administrao de 1640 a 1763. In:
Holanda, Srgio Buarque de (Org.). Histria Geral da Civilizao Brasileira, T.1, A poca Colonial, v.2.
DIAS, Maria Odila da S. 1968. Aspectos da ilustrao no Brasil. In: Revista
do Instituto Histrico e Geogrfico do Brasil, 278 (1968), p.105-70
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formao do patronato poltico brasileiro. 2. ed., rev. e aument., 2 v., P. Alegre-So Paulo, Globo/EDUS,
1975. (1958), P, 750p.
FLEUISS, Max. Histria administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1923.
FRAGOSO, J. L. E Florentino, M. O arcaismo como projeto. Mercado Atlntico, Sociedade Agrria e Elite Mercantil no Rio de Janeiro, C. 1790-c.
1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993. 118p.
GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a histria poltica e administrativa do Brasil
(1500-1810). Rio de Janeiro: J. Olympio, 1965. 168p.

166

POMBAL E O BRASIL

GODINHO, Vitorino M. 1970. Portugal and her empire, 1680-1720. In: The
New Cambridge Modern History, VI, p.509-40.
GUEDES, Joo A. Libnio. Histria administrativa do Brasil, v. IV. Rio de Janeiro: DASP, 1962. 196p.
IGLSIAS, Francisco. 1974. Minas e a imposio do Estado no Brasil, In: Revista de Histria, So Paulo, 1 (100), p.257-73.
LEONZO, Nancy. As Instituies. In: Silva, M. B. Nizza da (Coord.). O Imprio Luso-Brasileiro, 1750-1822. Lisboa: Estampa, 1986. p.301-31.
LOBO, Eullia M. L. Processo administrativo ibero-americano. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exrcito Editora, 1962. 570p.
MACEDO, Jorge B. de. A situao econmica no tempo de Pombal. Porto: Portuglia, 1951.
MARTINIRE, Guy. A implantao das estruturas de Portugal na Amrica.
In: Mauro, F. (Coord.). O imprio luso-brasileiro (1620-1750). Lisboa: Estampa, 1991. p.91-261.
MATTOS, Ilmar. R. de. O tempo Saquarema. So Paulo: Hucitec-INL, 1987. 300p.
MATTOSO, Ktia M. de Q. 1987. Conjoncture et socit au Brsil la fin
du XVIIIe. Sicle. In: Cahiers des Amriques Latines, 5 (1970), 33-53.
MAURO, Frederic. Political and economic structures of Empire. In: Bethell,
L.(Ed.) Colonial Brazil. Cambridge: University Press, 1987, p.39-66
MAXWELL, Kenneth R. Conflicts and Conspiracies: Brazil & Portugal, 17501808. Cambridge: University Press, 1963. 289p.
MARQUS DE POMBAL. Paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996.
MENDONA, Marcos C. de. O Marqus de Pombal e o Brasil. So Paulo: Cia
Editora Nacional, 1960. 237p.
O Errio Rgio no Brasil. Rio de Janeiro, Servio de Documentao do Ministrio da Justia, 1968. 212p.
NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (17771808). So Paulo: Hucitec, 1976. 420p.
PINTO, V. Noya. O ouro brasileiro e o comrcio Anglo-Portugus. So Paulo: Cia
Editora Nacional, 1979. 346p.
PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasil Contemporneo. 5. ed. So Paulo:
Brasiliense, 1957. 390p.

167

Francisco Calazans Falcon

RUSSELL, Wood, A. J. R. Fidalgos and philanthropists: the Santa Casa da Misericrdia of Bahia, 1550-1755. Berkeley: University Press, 1968.
,1987. The Gold Cycle, c. 1690-1750. In: Bethell, L. (Ed.), op. cit.
SALGADO, Graa (Coord.). Fiscais e meirinhos. A administrao no Brasil
Colonial. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, 452p.
SANTOS, Afonso C. Marques dos. No rascunho da nao. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, 170p.
SCHWARTZ, Stuart B. 1969. Cities of Empire: Mexico and Bahia in the sixteenth century. In: Journal of Inter-American Studies, 11, 4: 616-37
__________. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. Trad. Brasileira Maria H.
P. Martins. So Paulo: Perspectiva, 1979, 354p. (Sovereignty and Society in Colonial Brazil. Minnesota Press, 1973).
__________. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. So
Paulo: Cia. Das Letras-CNPq,1988.
__________. Plantations and peripheries, c.1580-c.1750. In: Bethell, L.
(Ed.), op. cit.,1987. p.67-144.
SILVA, Andr Mansuy D. Imperial reorganization, 1750-1808. In: Bethell,
L. (Ed.), op. cit., 1987, p.244-83.
SILVA, Maria B. Nizza da. Cultura no Brasil Colnia. Petrpolis: Vozes, 1981.
172p.
A Estrutura Social. In: Silva, Maria B, Nizza da (Coord.). O imprio luso-brasileiro, 1750-1822. Lisboa: Estampa, 1986. p.215-60.
A Cultura. In: Idem, Ibid., 1986. p.443-98.
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravido. Os letrados e a sociedade escravista no Brasil Colonial. Petrpolis: Vozes, 1986.
WEHLING, Arno. Administrao portuguesa no Brasil, de Pombal a D. Joo
(1777-1808). In: Histria administrativa do Brasil, v. 4. Braslia: Funcep,
1986. 245p.

168

captu lo 10

O SENTIDO DA COLNIA.
REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO
SISTEMA COLONIAL NO BRASIL
(1780-1830)
Jos Jobson de An drade Arru da*
A on da descolon izadora qu e varre os pases african os e asiticos n o
ps-Segu n da Gu erra Mu n dial, som en te en con tra paralelo, em term os do
seu im pacto h istrico, n a prim eira escalada do m ovim en to em an cipacion ista das coln ias da poca m odern a, in scritas n o an tigo sistem a colon ial,
e qu e redirecion am o front dos acon tecim en tos, n a passagem do scu lo
XVIII para o XIX. De fato, a em an cipao das an tigas coln ias ibricas, in spiradas n a precedn cia das 13 coln ias in glesas, con stitu em -se n o fato h istrico de m aior relevn cia n esse m om en to e, cu jas repercu sses u ltrapassariam de m u ito os estreitos lim ites cron olgicos de su a in cidn cia.
A ru ptu ra dos liam es en tre a m etrpole portu gu esa e a coln ia brasileira tem sign ificado diverso n a tradio h istrica en cetada, a partir de
en to, pelos dois Im prios. A n atu reza m esm a dessa ru ptu ra, seu sign ificado h istrico especfico, com porta vises diferen ciadas con soan te o n gu lo do observador. As razes de su a ecloso, igu alm en te, percorrem u m
vasto lequ e de en con tros e desen con tros.
Com ear por estas qu estes talvez aju de a com preen der o fu lcro de
n ossa an lise. Pen sa-se u m a coln ia especfica, localizada n a terra brasilis,
su a form a particu lar de in sero h istrica, o sistem a colon ial da poca m odern a e, privilegiadam en te, o m om en to cru cial da ru ptu ra en tre a m etrpole e a coln ia, isto , a crise do Im prio Lu so-Brasileiro, e n o a crise da
Am rica Portu gu esa. Para tan to, torn a-se in dispen svel a rem em orao
das lin h as m estras do regim e colon ial aqu i im plan tado, sem o qu e, os fatos con tin gen tes da tran sform ao seriam in in teligveis, reforan do a perspectiva aciden tal da h istria.
No se trata de qu alqu er coln ia. No u m a coln ia de povoam en to sem elh an a das coln ias in glesas da Am rica do Norte.1 No , prim acialm en te, o espao de realizao da poltica de fom en to do Im prio portu gu s. Trata-se, isso sim , de u m a coln ia de explorao, u n iverso h istrico privilegiado n a produ o de su perlu cros destin ados a alim en tar o crescim en to e o desen volvim en to da m etrpole eu ropia, por m eio da trade
latif n dio-m on ocu ltu ra-escravido ou do regim e de exclu sivo aplicado

169

Jos Jobson de Andrade Arruda

aos n cleos m in eradores. Ser de povoamento ou de explorao n o sign ifica,


contudo, excludncia absoluta. Na colnia de povoamento a explorao se
fazia presente: na de explorao, a presena populacional era inescapvel. A
diferena se explicita na nfase, no elemento que detm a primazia no estabelecimento da explicao e que integra, certamente, outras dimenses.
A Caio Prado Jnior e, sobretudo, Fernando Antnio Novais, deve-se
a fixao dos paradigmas referenciais que conduziram conceituao de um
determinado sistema colonial da poca moderna.2 A relao entre a colnia
(Brasil) e a metrpole (Portugal) realizava-se sob a gide da noo de exclusivo comercial, ou seja, o monoplio do fluxo mercantil reservado unicamente para a metrpole, cuja efetividade tornava imprescindvel a adoo de uma
forte poltica protecionista que exigia, por seu turno, aes de natureza fiscal
e militar para sua plena consecuo. A funo precpua da colnia era, portanto, a de acelerar a acumulao primitiva de capitais, produzir excedentes
por meio da comercializao dos produtos coloniais nos mercados europeus,
lucros estes que beneficiaram diretamente a burguesia mercantil do Reino e
a elite aristocrtica, incrustada no aparelho de Estado. Eram lucros de monoplio. No quaisquer lucros. Expressavam a exclusividade da compra dos
produtos coloniais a preos rebaixados e a certeza de altos-lucros na revenda.
O abastecimento das necessidades coloniais com produtos produzidos na metrpole ou adquiridos nos mercados continentais, igualmente garantidores de
vantagens excepcionais, completavam o circuito.
O m on oplio a ch ave para a com preen so desse fen m en o h istrico. Sem ele, provavelm en te, n en h u m Im prio se teria form ado n os an os
an teriores a 1800, pois sign ificava o direito exclu sivo sobre u m determ in ado produ to, ou sobre o com rcio com u m determ in ado pas; sen do qu e
este direito exclu sivo poderia ser con cedido a pessoas ou com pan h ias.3 No
espao colon ial, o capital m ercan til, an corado n o m on oplio, u ltrapassou
os lim ites da circu lao, aden tran do sin gu larm en te os dom n ios da produ o, garan tin do a realizao m on etria da produ o n o m ercado m u n dial.
Con cretizava-se, por esse m eio, a su bordin ao do processo produ tivo ao
capital m ercan til, atravs da rein stau rao do trabalh o com pu lsrio, especialm en te escravo, projetan do o trfico con dio de elem en to propu lsor
do sistem a, pois a acu m u lao, em fu n o das lim itaes in tern as para a
reprodu o local da m o-de-obra, im pu n h a su a reposio por via do trfico, sobrelevan do seu papel n a reprodu o das relaes sociais.4
A qu esto de fu n do n esse con texto a prpria n atu reza do capital
m ercan til. Nesta fase h istrica do capitalism o, o capital fixo jogava u m papel relativam en te dim in u to n o processo de reprodu o. Com exceo da
terra, u m a parcela pon dervel da riqu eza con sistia em capital circu lan te, o
qu e dem an dava pagam en tos qu ase im ediatos, ao m esm o tem po qu e gera-

170

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

va en orm es dispon ibilidades de capitais para in vestim en tos ren tveis, capazes de aten der exign cia de realizao rpida dos in vestim en tos m ercan tis. Isto explica porqu e os em presrios descon h eciam a especializao,
caracterstica dom in an te en tre os pequ en os n egocian tes, m estres, logistas.
Os gran des n egocian tes atu avam sob os im pu lsos do m om en to, poden do
ser su cessiva ou con com itan tem en te m ercadores, arm adores, fin an cistas,
segu radores, ban qu eiros e, n o lim ite, em presrios agrcolas ou in du striais.
Um a volu bilidade in trn seca presidia o m ovim en to do capital m ercan til:
perdas com a pim en ta eram com pen sadas n o com rcio da coch on ilh a; perdas n os fin an ciam en tos para os Estados eram recu peradas n os em prstim os aos pequ en os agricu ltores; perdas n os fretes das cargas eram com pen sadas com a elevao do segu ro das m ercadorias; perdas n a arm azen agem
poderiam sign ificar avan o n a con stru o n aval.
O capital m ercan til se preservava crian do altern ativas para fu gas rpidas, com pen satrias. Por isso, Brau del afirm ava qu e n o h avia u m ram o
da atividade econ m ica su ficien tem en te rem u n erador, capaz de absorver
toda poten cialidade do capital m ercan til. Da su a m aleabilidade, qu e poderia lev-lo at m esm o a in vestim en tos em terras, m en os por su a ren tabilidade poten cial e m u ito m ais por su a capacidade agregadora em term os de
prestgio social. O extrem o lim ite seriam os deslocam en tos ru m o s atividades de m in erao e in du striais.5
Agilizao do circu ito do capital era a expresso de com an do do capital m ercan til. Fossem m atrias-prim as, m ercadorias, arm azn s, equ ipam en tos, n avios, m oedas. Mas tam bm poderia ser crdito para clien tes e
agen tes, servios de cm bio, operaes ban crias e secu ritrias. Bu scavase estreitar o circu ito m on etrio, elevan do-se os lu cros pela plu ralizao
das ch an ces de in vestim en tos, o qu e o levava a resistir em aden trar a produ o e su bm et-la diretam en te ao seu con trole, preferin do as form as de
su bordin ao in direta, m esm o qu e isso viesse a sign ificar qu e a m aior parcela do capital circu lan te represen tasse gastos com o trabalh o in corporados n a m ercadoria. Em com pen sao, aproxim avam -se os dois plos extrem os do circu ito do capital, pois n o h avia im obilizao em fatores de
produ o, garan tin do-lh e plen a liberdade para tran sladar-se rapidam en te
s m elh ores opes do m ercado.
Isto explica porqu e o capital m ercan til en globa tan to o trabalh o in depen den te do arteso eu ropeu , qu an to o trabalh o com pu lsrio dos escravos n as plan taes tropicais, represen tan do am bos cu stos elevados para o
capital circu lan te, m as qu e deixavam para seu s con troladores im ediatos o
n u s de m an u ten o e reposio do estoqu e. Assim se explica a n atu reza
con servadora do capital m ercan til, e o fato de qu e som en te n o m om en to
em qu e as ch an ces de lu cro rpido pelo giro m ercan til se con traram , o capital m ercan til ten deu a pen etrar a produ o, am plian do a parcela de ca-

171

Jos Jobson de Andrade Arruda

pital fixo im obilizado, com con seq en te perda de versatilidade, qu e sem pre fora su a m arca expressiva. Neste con texto, projeta-se o papel do trfico con dio de elem en to m otor da acu m u lao n o espao colon ial.
Portanto, o essencial reter a subordinao completa do movimento histrico da economia colonial preponderncia do capital mercantil
que, na fase de expanso das economias centrais europias, subordina a
produo na sua forma artesanal e manufatureira, determina o padro e os
limites do processo de acumulao e comanda o ritmo das economias coloniais.6 Estabelece-se uma relao de cumplicidade entre a metrpole e a colnia, articulao vital entre capitalismo e colonizao, cristalizada na funo colonial. Da a inevitabilidade da subordinao da economia e da sociedade colonial. Afinal, a produo colonial no se autodetermina, isto , o
circuito do capital somente se completa fora da colnia, quando as mercadorias de novo se transformam em dinheiro, o dinheiro se transforma em
fatores de produo, especialmente na aquisio de escravos no mercado
externo, no havendo reproduo, na colnia, dessa fora de trabalho. A
mais, a parcela do excedente que se transforma em lucro realiza-se no plano externo, nas mo da burguesia mercantil. As decises polticas essenciais
se do, igualmente, no espao da metrpole, e no da colnia.
Destarte, a com preen so global desse processo h istrico particu lar,
en volve a captao dessa in terao dialtica en tre a con dio colon ial articu lada m etrpole e a form ao social escravista da coln ia, in terao
esta n a qu al o com an do en con tra-se fora do espao colon ial, pois a reprodu o das relaes sociais n o se realiza en dogen am en te. Essa n fase n o
com an do extern o da con dio colon ial n o sign ifica, con tu do, a exclu so
perm an en te e defin itiva da ao dos h om en s colon iais n a bu sca de su a
au todeterm in ao. Ao se delin ear as lin h as-m estras dessa relao, n o se
exclu i a gradativa in teriorizao da coln ia.
A n fase n o setor exportador da econ om ia colon ial n o sign ifica
descon siderar a im portn cia da produ o de su bsistn cia ou do abastecim en to. Os estu diosos, qu e cen tram su a aten o n o setor exportador, o fizeram por vrias razes. Prim eiro porqu e era, efetivam en te, aqu ele qu e
garan tia a prpria con dio colon ial. Segu n do, porqu e a docu m en tao
m ais abu n dan te e acessvel era exatam en te aqu ela referen te ao m ercado
extern o, com o as Balan as de Com rcio, por exem plo, ten do em vista su a
im portn cia estratgica n a sobrevivn cia poltica da coln ia, razo pela
qu al a docu m en tao sobre a produ o in tern a, especificam en te a de su bsistn cia, era rarefeita e precisava ser rastreada em repertrios docu m en tais qu e a ela se referem de m odo oblqu o.
Nestes term os, esgotados os docu m en tos relativos ao setor exportador viria, n ecessariam en te, a fase dos estu dos referen tes produ o destin ada ao m ercado in tern o. Isto seria qu ase n atu ral. O equ voco, est n a form u lao de paradigm as n egativos, qu an do se bu sca ju stificar os n ovos es-

172

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

tu dos, procu ran do reverter a n fase, isto , deslocar a relao prepon deran te do exterior da coln ia para seu in terior. Isto, para n o se falar da sistem tica desqu alificao dos in terlocu tores qu e delin earam o qu adro m ais
geral das explicaes. Da, a ten dn cia radicalizao dos escritos dos adversrios, atribu in do aos m esm os afirm aes qu e n o fizeram , isto , n egar qu alqu er sign ificado produ o in tern a n o processo de con stitu io
h istrica da coln ia.
A busca inaudita de originalidade levou pesquisadores srios a formulaes incautas, a exemplo desta sntese, do que possivelmente significaria o sentido da colonizao outorgada aos autores ditos tradicionais: a
economia colonial no presenciaria a constituio de um mercado interno
suprido por produes locais, a possibilidade de gerar acumulaes endgenas e muito menos teria condies de possuir ritmos econmicos prprios,
desvinculados do mercado internacional e das economias a dominantes.7
Pelo con trrio, au tores com o Fern an do Novais, ao explicar a crise
do sistem a colon ial e a cam in h ada ru m o in depen dn cia, afirm a qu e a razo da ru ptu ra estava n o fato de qu e n o possvel explorar a coln ia
sem desen volv-la.8 Mais explcito im possvel. Diz ser im pen svel a explorao econ m ica das coln ias sem a criao de con dies m n im as, ou
seja, a im plan tao da m qu in a bu rocrtico-adm in istrativa, a criao da
in fra-estru tu ra portu ria, das vias de circu lao, do aparato de defesa in tern a e extern a, da produ o com plem en tar ao setor exportador, represen tado pela su bsistn cia. Em su m a, flagran te a im possibilidade de explorar as riqu ezas colon iais sem desen volver, progressiva e con cretam en te, a coln ia, sem am pliar su as m assas popu lacion ais e, por decorrn cia,
agravar as ten ses, os con flitos e as resistn cias.
A diversificao da produ o colon ial n a Am rica Lu so-Espan h ola
u m atestado dessa assertiva. Na Am rica Hispn ica, n as zon as con sideradas cen trais, por volta de 1600, a popu lao era den sa, com igrejas, m on astrios, com rcio in ten so, h orticu ltu ra e atividades in du striais especializadas. Nas zon as ditas in term edirias, cu ltivavam -se produ tos destin ados
exportao e ao con su m o in tern o, h aven do in d strias especializadas em
m atrias-prim as locais. Nas regies perifricas o com rcio era ain da m ais
r stico, assen tado n a criao de m u ares e cavalares.9 No Brasil, a m aior ou
m en or u tilizao dos escravos n a produ o destin ada ao con su m o estava
estreitam en te vin cu lada s flu tu aes do setor exportador, m as con stitu am atividades n ada desprezveis n o cm pu to global dos valores de u so
realizados n a coln ia.10
Esta con statao n o perm ite, con tu do, in verter a roda da h istria.
Pen sar a econ om ia colon ial, isto , scu los XVI, XVII e prim eira m etade do
scu lo XVIII, su bstan ciam en te, com o defin ida pelo trip: acu m u lao en dgen a, m ercado in tern o e capital m ercan til colon ial residen te, trade esta
qu e articu la u m n ovo sen tido para a colon izao, expressa n a relativa

173

Jos Jobson de Andrade Arruda

au ton om ia do processo de reprodu o da econ om ia... dian te das flu tu aes do m ercado in tern acion al; n os processos de acu m u lao en dgen a
e a reten o da parcela do sobretrabalh o gerado pela agroexportao n o
in terior do espao colon ial; e, fin alm en te, con sideran do-se qu e esse capital residen te, para alm do exceden te apropriado pelo produ tor,11
com eter o pecado do an acron ism o, isto , tran sferir para o n cleo du ro da
coln ia as caractersticas qu e com eam a se form ar n as su as bordas, fin al
do scu lo XVIII e prim eiras dcadas do scu lo XIX, m om en to n o qu al, con sen su alm en te, as estru tu ras colon iais en con tram -se em tran sform ao.
Sobretu do, n o se pode tom ar as feies adqu iridas pela n atu reza da acu m u lao m ercan til, j n os m eados do scu lo XIX, n a rbita de gran des
m ercados u rban os com o o Rio de Jan eiro, para realidades essen cialm en te
diversas postas n o scu lo in iciais da colon izao. Neste con texto, a em an cipao poltica da coln ia n ada sign ificou ?
Em texto recente e com a propriedade usual, Fernando Novais retomou esta questo, explicando aos seus incuriais intrpretes que, ao falar de
explorao colonial pensava nos mecanismos de conjunto que enlaavam o
mundo metropolitano e colonial e, que a nfase na acumulao para fora,
externa, refere-se tendncia dominante no processo de acumulao, no
evidentemente sua exclusividade. Em decorrncia, claro que alguma
poro do excedente devia permanecer (capital residente) na Colnia, do
contrrio no haveria reproduo do sistema. O uso da expresso capital
residente alude quem se destina a rplica e, sem ser tautolgico, mas precisando ser pedaggico, reverbera: No se trata, desde logo, de uma formao social capitalista que se elabora sem acumulao originria; mas com um
nvel baixo dessa acumulao. Nvel baixo no significa estagnado, mas sim
crescente, na medida em que o processo se punha em movimento. O reproche leitura forada que fizeram de seus escritos, se expressa enfaticamente nessa formulao: No cabe, portanto, a increpao de obsesso com relaes externas (porque no estamos falando de nada externo ao sistema),
nem de desprezo pelas articulaes internas, pois estas no so incompatveis com aquelas; trata-se, simplesmente, de enfatizar um ou outro lado, de
acordo com os objetivos da anlise. Nesta mesma linha, os trabalhos recentes e de grande mrito sobre o mercado interno no fim do perodo colonial
no refutam (como seus autores se inclinam a acreditar) de maneira nenhuma aquele esquema que gostam de apodar de tradicional; o crescimento
do mercado interno , pelo contrrio, uma decorrncia do funcionamento
do sistema, ou, se quiserem, a sua dialtica negadora estrutural.12 Mais explcito impossvel. Se as proposies destarte realadas identificam o tradicional, e se isto sinnimo de passadio, de superado, adiro ao tradicional contra o moderno, mas certamente nada eterno.13

174

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

A grande maioria destas questes no passou desapercebida para o


competente brasilianista Stuart B. Schartz em seu estudo crtico Somebodies
and Nobodies em the Body Politic: Mentalities and Social Structures in Colonial
Brazil, publicado na Latin American Research Review (vol. 31, n 1, p. 113-33).
Sua grande inovao argumentar que o mercado interno passou a conduzir a economia como um todo, sobrelevando a natureza interna do
processo de formao do capital, o que tornaria a dependncia externa
menos crucial na formao social do Brasil, gerando uma tenso permanente em sua argumentao que, permanentemente, reconhece a inextricvel articulao entre a economia interna e o comrcio exterior. Exemplo
notvel desta relao o incremento da produo de alimentos no mercado
interno, estimulada pelas exportaes crescentes no vcuo da produo
antilhana desarticulada pela revolta de So Domingos em 1792, aliada
peculiar conjuntura internacional gestada pelas guerras da Revoluo
Francesa e do Imprio Napolenico. A importao crescente de mo-deobra escrava e o salto demogrfico explosivo da populao no Rio de
Janeiro, que cresceu 160% entre 1799 e 1821, atestam os liames entre o
crescimento do mercado interno e a dinmica do setor externo, demonstrando ser um exerccio de contorcionismo ineficaz a tentativa de colocar a
nfase no mercado interno, seguramente, fruto de uma conjuntura
cronolgica mais limitada.
In serido n o elen co daqu eles qu e estu daram prioritariam en te o setor
exportador,14 acabam os por revelar, n o fu n do, u m a sign ificativa diversificao do m ercado in tern o colon ial, especialm en te n a segu n da m etade do
scu lo XVIII, on de se con stata a am pliao da produ o agropecu ria, qu e
passa de 33 para 126 produ tos, den tre os qu ais o ou ro e o a car perdem
a h egem on ia qu e sem pre tiveram . O a car represen ta, n o fin al do scu lo, n o m ais do qu e 35% do total da exportao, respon den do o restan te
da produ o por u m a sign ificativa din am izao da vida econ m ica in tern a da coln ia, com acen tu ada ten dn cia in tern alizao do flu xo de ren da e, at m esm o, o estm u lo ao desen volvim en to da pequ en a in d stria ligada tran sform ao de produ tos agropecu rios. Gradativam en te, a coln ia desgarrava-se da rigidez do pacto colon ial, apresen tan do variedade region al n as relaes de trabalh o, n o tipo de explorao econ m ica, n as form as de propriedade, n os n dices de ren da per capita, n o n vel dos preos,
revelan do in ten sa e crescen te diferen ciao in tern a.15
O aceleram en to das m u dan as n a coln ia acen tu avam a ten dn cia
ao deslocam en to das diretrizes do m on oplio m etropolitan o, apon tan do
para a crise do sistem a colon ial e a con seq en te em an cipao poltica. Tais
m u dan as, con tu do, n o se fazem ao arbtrio da coln ia, e sim n a su a in terseco com o m u n do m etropolitan o. De fato, foi n a segu n da m etade do
scu lo XVIII qu e, sob a gide das reform as pom balin as, a poltica colon ial

175

Jos Jobson de Andrade Arruda

portu gu esa, especialm en te aqu ela direcion ada ao Brasil, passou por alteraes sen sveis, m esm o preservan do as lin h as m estras da poltica m ercan tilista. Sob o im pacto da crise qu e se abatia sobre o Im prio Portu gu s, diretam en te relacion ado retrao da produ o au rfera brasileira, im prim e-se u m a n ova diretriz in flu en ciada pela ilu strao, en qu adrada n o qu e
se con ven cion ou ch am ar o m ercan tilism o ilu strado portu gu s, cu ja
m eta fu n dam en tal era a realizao de abertu ras den tro do sistem a colon ial
m ercan tilista, visan do am en izao do exclu sivo m etropolitan o, estim u lan do-se a produ o da coln ia pela bu sca de in tegrao m ais forte en tre
o m u n do da m etrpole e o da coln ia.
O dilem a dos estadistas portu gu eses era atroz, n a form u lao de
Fern an do Novais. No plan o econ m ico, para con segu ir aproveitar os estm u los da explorao de su a gran de coln ia, Portu gal precisava desen volver-se; m as a explorao da coln ia era con dio para seu desen volvim en to. Im agin ar u m a in tegrao era qu an to se con segu ia propor para su perar esse dilem a in sol vel. Mesm o assim , para con segu ir in tegrar, tin h a de
m odern izar-se, m as, agora n o n vel in tern o, isso levava a u m n ovo dilem a:
m obilizar o pen sam en to crtico para em preen der as reform as, e con t-lo
para qu e n o revelasse a su a face revolu cion ria. O ecletism o terico e o
reform ism o prtico n o con segu iram , pois, su perar as agu das con tradies
por on de se m an ifestava a crise.16
Nou tros term os, a m an ifestao do reform ism o ilu strado n a poltica
colon ial som en te adqu iriria total in teligibilidade, desde qu e fosse in serida
n o qu adro m ais geral da crise do sistem a. E esta crise resu ltava de su a prpria estru tu ra e fu n cion am en to n a m edida em qu e, ao acelerar a acu m u lao de capitais, acelerava-se o processo de acu m u lao m ercan til e a su a
m etam orfose em capitalism o in du strial, especialm en te n a In glaterra, an corada n o cen tro do sistem a. Aqu i, a tran sform ao vital represen tada pela
passagem da m an u fatu ra produ o baseada n a m qu in a-ferram en ta, resu ltava do im pacto do m ercado m u n dial e, sobretu do, do m ercado colon ial. Por essa via, peas fu n dam en tais do an tigo sistem a colon ial, tais com o
m on oplio e escravism o, torn avam -se gradativam en te obstcu los in tran spon veis ao desen volvim en to do capital em escala m u n dial, colocan do em
ch equ e a prpria explorao colon ial assen te n as determ in aes m ais gerais do capital m ercan til.17
As m u dan as estru tu rais n o m ago do sistem a so, por certo, as con dies m ais am plas n a explicao da crise do sistem a colon ial. Desdobram en tos qu ase n atu rais dessa assertiva relem brar a con tradio m aior qu e
a explorao colon ial en gen drava: o crescim en to e o desen volvim en to da
coln ia. No plan o m ais im ediato, o papel das circu n stn cias con ju n tu rais
precisa ser rem etido s tran sform aes estru tu rais, especialm en te, as relaes en tre Fran a e In glaterra. As m u dan as n a con ju n tu ra poltica eu ropia

176

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

n o podem , de per se, serem respon sabilizadas pela crise do sistem a colon ial.
Atribu ir toda cu lpa aos bloqu eios e con tra-bloqu eios, aos bloqu eios terrestres e aos con tra-bloqu eios m artim os, tom ar a n u vem por Ju n o. desprezar o papel desem pen h ado pela coln ia, pelos h om en s qu e a viviam .
Jorge Pedreira, em seu estu do sobre a Estrutura Industrial e Mercado
Colonial, afirm a qu e as vibraes con ju n tu rais em an adas das gu erras qu e
se segu iram s revolu es am erican a e fran cesa con correram para u m a
vasta reorden ao da econ om ia in tern acion al e facu ltaram as con dies
para a in depen dn cia das coln ias qu e as m on arqu ias ibricas possu am n a
Am rica.18 No n egligen cia, certam en te, as relaes en tre os m ovim en tos
estru tu rais, as oscilaes con ju n tu rais e as alteraes poltico-m ilitares.
Mas, coloca n o ostracism o absolu to qu alqu er m an ifestao con creta da coln ia n as m u dan as qu e en to se operavam , espectadora im passvel de seu
prprio destin o.
A idia de u m a certa in rcia colon ial tran sparece, igu alm en te, n os
escritos de Valen tim Alexan dre. A com u n idade de ln gu a, h bitos e religio seriam respon sveis por u m a certa solidariedade en tre brasileiros e
portu gu eses qu e, apesar de rom pida pon tu alm en te com o n o caso dos em boabas, era, n o geral, reforada pela n ecessidade de m an ter a dom in ao
sobre a im en sa m assa escrava. Em decorrn cia, o Estado lu so-brasileiro
fu n cion ava ain da sem ten ses excessivas, tan to n o dom n io econ m ico
qu an to n o poltico ... Nu m am bien te de prosperidade m ercan til gen eralizada, as presses n acion alistas n o Brasil, ain da in cipien tes, n o criam n u n ca qu alqu er am eaa real de ru ptu ra.19 Se assim era, a ru ptu ra do pacto colon ial teria qu e ser explicada, forosam en te, de fora para den tro, a partir
de alterao n o qu adro de foras defin ido pelas relaes polticas e diplom ticas en tre as n aes eu ropias h egem n icas, especialm en te, a Fran a e
a In glaterra, porqu an to, a Portu gal, ficava reservado u m papel igu alm en te passivo, con torcen do-se en tre os plos rivais, esgu eiran do-se sistem aticam en te n a bu sca de u m a n eu tralidade im possvel, m as oportu n am en te
proveitosa, en qu an to du rasse.
n otvel a m in im izao do papel da Coln ia n a bu sca de seu prprio destin o. Reifica-se a viso in cru en ta da trajetria h istrica da Coln ia.
Su blim a-se o papel das n u m erosas m an ifestaes de resistn cia qu e se
agu dizam n a segu n da m etade do scu lo XVIII, especialm en te o papel da
In con fidn cia Min eira, m an ifestao con creta e sin tetizadora dos descon ten tam en tos da popu lao colon ial em relao m etrpole portu gu esa.20
Um raro paradigm a in dicirio.
A recu perao h istrica do papel da Coln ia n a su perao do an tigo sistem a colon ial, im pe a retom ada de su a trajetria n o ltim o tero do
scu lo XVIII. No se pode falar em decadn cia de Portu gal n esse perodo.
Nada qu e lem brasse a retrao m ercan til da prim eira m etade do scu lo

177

Jos Jobson de Andrade Arruda

XVII, qu an do en to se delin eia a gran de crise daqu ele scu lo. Pelo con trrio, apesar das dificu ldades polticas, especialm en te n o qu adro das relaes
diplom ticas, a poltica exterior portu gu esa aproveitava ao m xim o as
possibilidades in scritas n o prin cpio da n eu tralidade. O au ge da produ o
au rfera n o Brasil correspon dera a persisten tes dficits n a balan a com ercial portu gu esa em relao In glaterra. Paradoxalm en te, o colapso n a explorao de m etais, equ ivale ao perodo em qu e a balan a se equ ilibra e,
n os fin ais do scu lo, torn a-se m esm o su peravitria em relao aos in gleses. Um feito h istrico. Com isso tin h a sido possvel?
Um a n ova articu lao n as relaes m etrpole-coln ia. A con tin u idade da poltica pom balin a, o seu carter in tegrado, n o qu al in d stria,
agricu ltu ra e com rcio so objetos da ao govern am en tal, defin in do-se
u m am plo espao de ao das polticas p blicas com elevado grau de u n idade. Con sideran do as m in as riqu ezas fictcias, Pom bal fez do estm u lo
agricu ltu ra o epicen tro de su a ao poltica. Seu s efeitos n o tardaram , expressan do-se n a diversificao agrcola do espao colon ial brasileiro, geran do produ tos para a reexportao do Rein o, alim en tos para a popu lao
m etropolitan a e m atrias-prim as para as m an u fatu ras, en laan do in d stria e agricu ltu ra, tran sform an do a cam in h ada ru m o in du strializao
u m a possibilidade con creta. A criao das com pan h ias de com rcio, cu ja
fin alidade era exatam en te u n ir os espaos agrcola e in du strial, separados
pelo ocean o, fech ava o circu ito da perspectiva econ m ica qu e en to se delin eava para o Im prio Lu so-Brasileiro. Nestes term os, a poltica in du strialista portu gu esa n o foi o fru to passageiro de u m a crise com ercial, com o
ocorrera n o scu lo XVII. Tem u m carter estru tu ral e en orm e poten cial
tran sform ador, seja n a m etrpole, seja n a coln ia.
Esta form u lao, bem o sabem os, con fron ta as explicaes do m estre Victorin o Magalh es Godin h o, para qu em os m ovim en tos in du strialistas se deram n o segu im en to de crises com erciais profu n das e, portan to
de baixa prolon gada de preos, o m esm o acon tecen do com a poltica
pom balin a do terceiro qu artel do scu lo XVIII.21 Godin h o h om ologiza o
discu rso, repon do para o scu lo XVIII a m esm a explicao dada ao scu lo
XVII, n o atin en te s ten tativas falh as de in du strializao, n o qu e im propriam en te acom pan h ado pelos qu e vem n a essn cia da poltica colon ial
portu gu esa o arcaism o por projeto, elevado con dio de n ervo explicativo da con dio colon ial,22 com o se coln ia e m etrpole fossem sin n im os
u n idos por u m m esm o sin al explicativo, in fen so diferen ciao qu e o processo h istrico in stau ra. Isto explica a aproxim ao en tre os revision istas
portu gu eses e seu s segu idores n o Brasil n a rdu a tarefa de ressem an tizao h istrica da Coln ia, da n atu reza m esm a de su a existn cia, das con dies especficas de su a em an cipao. Um privilegiam en to n ada recn dito
da con tin u idade em detrim en to da ru ptu ra, on de tu do so con ju n tu ras,
n ada estru tu ral.

178

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

Com o en ten der o arcaism o com o projeto dian te do pertu bador crescim en to econ m ico, expresso do n ovo e com plexo relacion am en to m etrpole-coln ia. Nele, as coln ias torn am -se m ercados con su m idores das
m ercadorias in du strializadas produ zidas n a m etrpole e forn ecedores de
alim en tos e m atrias-prim as, declin an do gradativam en te a im portn cia
dos produ tos tropicais. n otvel a distn cia en tre este relacion am en to e
aqu ele qu e se delin eara n a fase de m on tagem do sistem a colon ial, e m esm o de su a m atu ridade, isto , n os scu los XVI e XVII. O n ovo m odelo n o
rom pe visceralm en te com o an terior. Refora os liam es en tre a m etrpole
e a coln ia e, de certa form a, an tecipa as ten dn cias qu e seriam dom in an tes n a segu n da m etade do scu lo XIX, n o qu adro do n eocolon ialism o.
pion eiro e precoce. Em erge do m ago do an tigo sistem a colon ial, o qu e
talvez expliqu e os en traves estru tu rais su a rpida e plen a realizao.
Defron tam o-n os com u m a tran sform ao vital. Se a m etrpole avan a crian do fbricas, a coln ia diversifica su a produ o, seu s m ercados se in tegram in tern a e extern am en te. Se as ren das geradas pelo setor exportador
so m en ores, tan to n o Brasil qu an to em Portu gal, com parativam en te ao
au ge da produ o au rfera, com pen sam pela su a distribu io m ais plu ral,
refletida n os n dices de ren da per capita. A con ju n tu ra econ m ica era de
prosperidade. No se pode falar em depresso, em decadn cia. E, em tais
circu n stn cias, en gen dra-se u m en orm e poten cial tran sform ador.
Os prim eiros sin ais den otadores da em ergn cia de u m a n ova con figu rao n as relaes n o m bito do sistem a colon ial aparecem n a segu n da
m etade do scu lo XVII, con secu tivo crise geral.23 Rom pe-se o m on oplio
da produ o au careira, acirra-se a com petio en tre as m etrpoles, in tern acion aliza-se o capital m ercan til, am plia-se o con su m o pela baixa de preos, ao m esm o tem po qu e cresce o m ercado con su m idor colon ial para produ tos m an u fatu rados vin dos das m etrpoles. A m axim izao dos lu cros
pela otim izao dos fatores de produ o, estritam en te regidos pelas leis da
econ om ia de m ercado, su gerem a em ergn cia de u m segu n do sistem a
Atln tico, n a den om in ao Peter Em m er.24 Porm , apesar de seu elevado
grau de especializao, a essn cia desse sistem a produ tivo assen tava-se n o
trip m on ocu ltu ra, latif n dio e escravido. A diferen a essen cial do n ovo
padro de colon izao, criado pelos portu gu eses, estava exatam en te n o
en lace coln ia-m etrpole sob a gide da in du strializao, u m n ovo arran jo pelo qu al, sem abrir m o do m on oplio, firm ava-se u m n ovo tipo de relacion am en to bilateral.
Equ voco falar-se, portan to, em decadn cia ou crise n o sen tido restritivo. Trata-se de u m a crise de crescimento qu e, em Portu gal, tran sform a-se
gradativam en te em crise de retrao, qu e algu n s au tores preferem den om in ar colapso,25 reforan do a sen sao de u m tem po perdido qu e con du z a reificao n ostlgica do m ito da decadn cia. No Brasil, igu alm en te,
a produ o h istoriogrfica dos an os 60 acabou por con solidar a idia de

179

Jos Jobson de Andrade Arruda

qu e u m a profu n da prostrao se abatia sobre a coln ia, n os an os qu e an tecederam a in depen dn cia. Celso Fu rtado refere-se falsa eu foria do fim
da poca colon ial. Virglio Noya Pin to assim en ten de o perodo em seu estu do sobre a con ju n tu ra econ m ica n a poca da In depen dn cia 26. Essas in terpretaes so bem o exem plo de com o as con dies h istricas presen tes, viven ciadas pelos h istoriadores, podem in flu ir em su a percepo do
passado. De fato, n o m om en to em qu e esses escritos eram produ zidos, deparavam o-n os, n o pas, com o im pacto de u m a forte crise do capitalism o
perifrico, crise esta qu e, mutatis mutandis, gu ardava u m a certa sem elh an a com a crise dos prim rdios dos an os oitocen tos. A in telectu alidade brasileira, qu e vivia in ten sa e agu dam en te este perodo, an te-sala dos an os de
exceo qu e se segu iriam , precon izava du as sadas possveis para a crise: o
colapso fin al do capitalism o perifrico brasileiro e a con seq en te im plan tao do regim e socialista; ou , a cam in h ada in exorvel da sociedade brasileira ru m o a estagn ao econ m ica in evitvel.
A aproxim ao im agin ria en tre estes dois m om en tos crticos da
Histria do Brasil, in du ziu iden tificao sim blica en tre o an tigo sistem a
colon ial e o capitalism o perifrico; a altern ativa revolu cion ria com a ru ptu ra do pacto colon ial e o m ovim en to da In depen dn cia; a estagn ao irrem edivel com a situ ao econ m ica e poltica de Portu gal aps a tran sm igrao da fam lia real para o Brasil.
Trs dcadas se passaram . Os acon tecim en tos h istricos vieram a
dem on strar qu e h avia u m a terceira possibilidade in scrita n a in terpretao
da crise do capitalism o perifrico, e qu e se tran sform ara em pon to de refern cia in con scien te para o equ acion am en to da crise do an tigo sistem a
colon ial, isto , a possibilidade de qu e o capitalism o con tin u asse a su a trajetria, am en izado em su as tran sgresses sociais por reform as dem ocrticas ou dem ocratizan tes, reais ou , sim plesm en te, alardeadas.27 Im pen svel
m esm o, n aqu eles an os, era o desaparecim en to total da opo socialista,
pela crise arrasadora qu e sobre ela se abateu n os an os 80/ 90. Por tu do isso,
as pesqu isas qu e apon tavam para o crescim en to econ m ico da coln ia e,
portan to, seu desen volvim en to n o in terior das m alh as do sistem a colon ial,
n o foram devidam en te con tem pladas n as an lises.28
Partin do-se do pressu posto de qu e h avia crescim en to e desen volvim en to real da Coln ia, com o en ten der a ru ptu ra, o resu ltado ocasion al de
con tin gn cias h istricas fortu itas e in apelveis? A trajetria n atu ral con du cen te globalizao atu al propiciada pelos descobrim en tos qu an do coln ias foram criadas e fu tu ras n aes in depen den tes an u n ciadas? O discu rso poltico da elite colon ial era sobretu do an ticolon ial e an tim etropolitan o, o qu e se explica pela n ecessidade fu n dam en tal de preservar a liberdade de com rcio e a au ton om ia con qu istada com a qu ebra do m on oplio, n o con texto da abertu ra dos portos.29 Mas esta m obilizao crtica do

180

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

pen sam en to n o poderia se con stitu ir de u m m om en to para ou tro, de qu e


se depreen de qu e, se falava m ais alto a lin gu agem do m ercado, da liberdade dos m ercados, ela teria qu e ser o fru to da con scin cia de qu e as m igalh as esparsas do m ercado colon ial, aos pou cos, n o processo colon izador,
con stitu ram u m a rede de m alh as irregu lares, m as cu jos laos se apertam
n o decu rso do scu lo XVIII, sobretu do em seu ltim o tero, qu an do os
m ercados region ais com eam a se defin ir.
O serto foi esqu artejado n as picadas dos com boios de an im ais, n o
trn sito de h om en s sequ iosos por pedras preciosas, por m etais. Os n cleos
m in eradores arrastaram os h om en s, o im agin rio, a h istria. A distn cia
dos agru pam en tos u rban os aliviava o con trole e propiciava a revolta. Econ om ias m edocres, qu ase au to-su ficien tes, com o a dos pau listas, davam
vazo s exploses de violn cia, m as atrelam -se ao m ercado das Min as Gerais, via abastecimento oriundo dos campos dos goitacases. Os prprios qu ilom bos, os redu tos de sicrios, in tegram -se aos m ercados prxim os origin an do atividades tem porrias ou perm an en tes. Portan to, laos tn u es, cotidian am en te repetidos, form an do u m a teia relacion al de lon go cu rso. Nos
plos n evrlgicos do sistem a, aqu eles articu lados fortem en te s econ om ias
exportadoras, vicejavam os com ercian tes, to ricos e poderosos qu e deles
se dizia, n o scu lo XVIII, qu e a Espan h a era u m a coln ia de su as coln ias. Por a se en ten de a recorrn cia da presen a de m ercadores colon iais
n os m ovim en tos de resistn cia, em con flito perm an en te com seu s com petidores m etropolitan os.30
No m om en to da crise do sistem a a coln ia brasileira revela u m a
econ om ia ativa, defin ida pela plu ralidade de relaes de trabalh o em su as
vrias regies, pela disparidade dos preos da produ o in tern a de produ tos sim ilares, pela forte ao do con traban do n os portos brasileiros n os
an os an teriores a 1808 qu e, pela m an u ten o dos n dices de exportao e
decln io das im portaes portu gu esas, expe o escan caram en to dos portos
m esm o an tes da abertu ra oficial, revelan do a in exorvel destru io do regim e de exclu sivo, qu e som en te se torn ou exeq vel graas con vivn cia
dos colon os qu e, assim , forjavam seu prprio cam in h o das m alh as do sistem a colon ial.31
A in ten sificao do con traban do n esse perodo cru cial torn a-se em blem tica.32 Sim boliza, de u m lado, a resistn cia colon ial e, de ou tro, a
con cretizao da presso in glesa qu e forava n o sen tido da abertu ra dos
portos do Brasil.33 Os testem u n h os do con tador Mau rcio Jos Teixeira de
Moraes so eloq en tes do desespero qu e se abate sobre as au toridades portu gu esas. Em 1802, n o prlogo da Balan a de Com rcio, afirm ava: qu eira a
sorte qu e n o su ceda o m esm o n os an os fu tu ros pela abu n dn cia de con traban do qu e se in trodu z n a Am rica. Em 1805, voltaria a lam en tar-se:
dim in u tas exportaes procedem in du bitavelm en te do m u ito con traban do, cu ja en trada est fran qu eada n aqu eles portos...; e, se pelo con trrio, as

181

Jos Jobson de Andrade Arruda

im portaes n este Rein o n o tem dim in u do, segu e-se qu e o referido con traban do todo ven dido a troca de m oeda corren te. Um a ao to agressiva teria qu e con tar, certam en te, com o respaldo dos h abitan tes da coln ia e, at m esm o, dos com ercian tes portu gu eses aqu i in stalados. o qu e
se depreen de dos escritos de 1806: a estagn ao do com rcio provm do
ru in oso prin cpio da in trodu o clan destin a das m ercadorias proibidas n este e n aqu ele con tin en te, pela falta de patriotism o de algu n s n egocian tes
qu e, esqu ecidos das leis qu e n os regem , procu ram to som en te os seu s in teresses. A con su m ao da tragdia an u n ciada an os an tes se d em 1807,
qu an do diz: ten h o m u ito pou co a pon derar do estado do n osso com rcio
n o an o passado de 1807, qu e n o seja u m a repetio do qu e disse n os an os
de 1805 e 1806, por ele cam in h ar para su a decadn cia e abatim en to.34
Mesm o qu e se afirm e qu e os respon sveis pela coibio dos descam in h os, com o era o caso do con tador Mau rcio Jos, via de regra exageram em su as avaliaes som brias, n o se pode n egligen ciar a con clu so
bvia de qu e as exportaes portu gu esas para a Coln ia ten deram a zero
e qu e, efetivam en te, os portos brasileiros abriam -se an tes de 1807, tran sform an do o docu m en to de abertu ra dos portos de 1808 n u m a m era form alizao sobre prticas con cretas.
O perodo de 1780-1830 vital para que se possa compreender a trajetria brasileira. Nublado pela experincia vitoriosa do ouro e do caf, remetem a segundo plano a produo de subsistncia, a histria do abastecimento, a dinmica da economia mercantil de subsistncia, a fora da diversificao econmica, que a marca indelvel do perodo e, a partir da qual,
pode-se entender a emergncia de um patamar mnimo de integrao do
Brasil no mercado mundial, ou seja, um mnimo de articulao interna entre as diferentes regies e zonas produtivas brasileiras; a existncia de diferentes relaes de produo e variados padres de acumulao nas regies
brasileiras; a emergncia de um centro dinmico capaz de integrar o conjunto e mesmo se auto-reproduzir, como o caso de Minas Gerais.
O con trapon to com esta experin cia in tegradora an corada em Min as
Gerais, e qu e sobreleva o seu sign ificado h istrico, o exem plo das coln ias
espan h olas da Am rica qu e realizam u m a trajetria in versa, pois o rom pim en to com a m etrpole an u la o n ico vn cu lo de u n idade existen te, expon do e reforan do a plu ralidade dispersiva da region alizao econ m ica.
Revela-se, portan to, n a in tegrao de vrios m ercados region ais
brasileiros em torn o de u m cen tro articu lador, o su rgim en to de u m esboo do m ercado n acion al, em fu n o do qu al arregim en tam -se in teresses
sociais especficos, capazes de m obilizar a ao poltica coletiva ru m o
ru ptu ra e con stitu io do Estado Nacion al. A crise do sistem a colon ial
produ z-se n o in terior do processo colon izador, on de se en gen dra a n ao
e se gesta a n oo de perten cim en to, reforada pela lin gu agem do in teresse com u m do m ercado.

182

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

N OTA S
1. De toda evidn cia, trata-se de u m a coln ia de explorao, de acordo com a tipologia clssica de LEROY-BEAULIEU, P. De la colonisation chez les peuples modernes. Paris, 1902. t.II, p.563
ss, assu m ida por Fern an do An tn io Novais em seu en saio Con sideraes sobre o sen tido da
Colon izao, Revista de Estudos Brasileiros (So Pau lo), v.6, p.55,1969. Fora de cogitao, portan to, en ten d-la com o u m a coln ia de povoam en to, com o o faz ALEXANDRE, V., 1993.
p.810. No se percebe a distin o fu n dam en tal, n este caso, en tre explorar econ om icam en te
para fixar a popu lao (coln ia de povoam en to) e povoar para garan tir a explorao econ m ica (coln ia de explorao). Em dois livros diferen tes: PRADO JNIOR C. 1961a. e PRADO
JNIOR, C., 1961 j ensinava que: Para os fins mercantis que tinha em vista ... era preciso
criar u m povoam en to capaz de abastecer e m an ter as feitorias qu e se fu n dassem , e organ izar
a produ o dos gn eros qu e in teressavam seu com rcio. A idia de povoar surge da e s da.
(grifo n osso).
2. Cf. PRADO JNIOR, C., 1961, especialm en te o captu lo Sen tido da Colon izao, p.13-26.
NOVAIS, F. A. 1979, especialm en te A Colon izao com o sistem a, p.57-72.
3. HAMILTON, E. J. Th e Role of Mon opoly in th e Overseas Expan sion an d Colon ial Trade of
Eu rope Before 1800. The American Economic Review, 1948, v.38, n .2, p.53.
4. NOVAIS, F. A. O Brasil n os Qu adros do An tigo Sistem a Colon ial. In : MOTA C. G. (Org.)
Brasil em Perspectiva. So Pau lo: Difel, 1969. p.47-62.
5. Para Fern an d BRAUDEL, O processo de produ o u m a espcie de m otor de dois tem pos, os capitais circu lan tes so destru dos im ediatam en te para serem reprodu zidos ou m esm o au m en tados, j, a deteriorao do capital fixo u m a doen a econ m ica pern iciosa qu e
n u n ca se in terrom pe. Assim sen do, a estru tu ra econ m ica e tcn ica qu e con den a certos
setores particu larm en te a produ o in du strial e agrcola a u m a pequ en a form ao de capital. Sen do assim , n o de adm irar qu e o capitalism o do passado ten h a sido m ercan til, qu e
ten h a reservado o m elh or do seu esforo e dos seu s in vestim en tos esfera da circu lao. O
resu ltado u m a con tradio flagran te, pois em pases su bdesen volvidos o capital lqu ido, facilm en te acu m u lado n os setores preservados e privilegiados da econ om ia, seja por vezes su perabu n dan te e in capaz de ser in vestido de m odo til em su a totalidade. In stala-se sem pre
u m vigoroso en tesou ram en to. O din h eiro estagn a, apodrece; o capital su bem pregado.
Em certos m om en tos, u ltrapassa a qu an tidade de ben s capitais e de din h eiro qu e su a econ om ia poderia con su m ir. En to ch ega a h ora das com pras de terras pou co ren tveis, a h ora
das m agn ficas casas de cam po con stru das n essa poca, do desen volvim en to m on u m en tal,
das exploses cu ltu rais. Essas econ om ias produ ziam u m a qu an tidade n otvel de capital
bru to, mas em certos setores esse capital bru to derretia como n eve ao sol. BRAUDEL, F.,1996,
p.210-5. Sobre a n atu reza do capital m ercan til, n os term os em qu e aqu i foi delin eado, Cf.
ARRUDA, J. J. de A. Explorao Colon ial e Capital Mercan til. In : SZMRECSNYI T. (Org.)
Histria Econmica do Perodo Colonial. So Pau lo: Hu citec,1996. p.217-23.
6. Cf. MELLO, J. M. C. de, 1982. p.89.
7. FRAGOSO, J. L. R. 1992. p.20.
8. NOVAIS, F. A., 1972. p.23.
9. VAN BATH, S. Econ om ic Diversification in Span ish Am erica Arou n d 1600: Cen tres In term ediate, Zon es an d Periph eries. In : Jahrbuch fr Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft,
1979. p.78.
10. Sobre este tem a ver CARDOSO, C. F. A brech a Cam pon esa n o Sistem a Escravista. In :
Agricultura, Escravido e Capitalismo. Petrpolis: Vozes, 1979.
11. FRAGOSO, J. L. R., op. cit., p.21.
12. Estas reflexes, absolu tam en te n ecessrias, NOVAIS, F., 1997, relegou a u m a n ota de p
de pgin a de seu referido captu lo.

183

Jos Jobson de Andrade Arruda

13. Desdobram en to n atu ral dessas proposies so as in qu ietaes qu e assom am Fern an do


Novais, ao refletir sobre o n ovo sen tido da econ om ia colon ial, qu e lh e provocam in m eras
in terrogaes: Um a qu esto qu e sem pre m e ocorre dian te desses argu m en tos esta: se n o
so estas as caractersticas (extroverso, extern alidade da acu m u lao etc.) fu n dam en tais e
defin idoras de u m a econ om ia colon ial, o qu e, en to, as defin e? Ou ser qu e n o se defin em ?
Ser qu e n ada de essen cial as distin gu e das dem ais form aes econ m icas? No creio qu e
seja esse o objetivo dos revision istas. Ibid.
14. Cf. ARRUDA, J. J. de A., 1980. Passados 25 an os desde qu e esta obra foi escrita, su as con clu ses fu n dam en tais perm an ecem de p. Especialm en te n o qu e tan ge im portn cia decisiva da perda do m ercado brasileiro n a explicao da crise da in d stria portu gu esa. As reavaliaes qu an titativas feitas por Valen tim Alexan dre so m u ito im portan tes por aden sarem os
dados. Mas as con clu ses decisivas m an tm -se: a idia da diversificao, o dficit de Portu gal
peran te a Coln ia, a in ten sidade do con traban do. Certam en te, o avan o da pesqu isa, perm itiu a relativizao dessas con clu ses, m as n o su a in validao. Cf. ALEXANDRE, V.,1993, especialm en te, p.25-89.
15. Note-se qu e a idia de diversificao do m ercado colon ial, da in ten sificao do processo
de acu m u lao in tern a fora por n s apon tado claram en te em 1972, an o de redao de O Brasil no Comrcio Colonial, e retom ado en faticam en te em 1985 n o artigo: A Prtica Econ m ica
Setecen tista n o seu Dim en sion am en to Region al. Revista Brasileira de Histria, v.10, p.123-46,
1985.
16. NOVAIS, F. A., 1979, p.301.
17. Ibidem .
18. PEDREIRA, J., 1994, p.516.
19. ALEXANDRE, V., op. cit., p.811.
20. De toda evidn cia trata-se de u m a viso extern a, m etropolitan a, da h istria colon ial. In crvel qu e h aja epgon os qu e a assu m em e reprodu zem em escritos descaracterizadores de
n ossas trajetria h istrica, foran do n o sen tido de m in im izar a im portn cia dos m ovim en tos
de resistn cia ocorridos n a Coln ia. Exem plo tpico dessa postu ra revision ista con servadora
a afirm ao de Gu ilh erm e Pereira das Neves: parece pou co provvel qu e os m ovim en tos
con testatrios do perodo ten h am a dim en so qu e lh es em prestou u m a h istoriografia n acion alista, sequ iosa de en con trar os an teceden tes da In depen dn cia de 1822 e de estabelecer os
m itos fu n dadores da n ova n ao. Se esta in terpretao atribu da a u m a h istoriografia n acion alista, com o qu alificar a descon stru o do articu lista? Se n o h relao en tre a In depen dn cia e esses m ovim en tos an teriores, o qu e foi a In depen dn cia? Um a ddiva? Um aborto?
Cf. NEVES, G. P. das Do Im prio Lu so-Brasileiro ao Im prio do Brasil. Ler Histria, v.27-28,
p.91,1995.
21. Cf. GODINHO, V. M., 1955, p.208, retom an do-se o tem a n as pgin as 279 ss. Para n ossa
argu m en tao em torn o do tem a, Cf. ARRUDA, J. J. de A. Decadn cia ou crise do Im prio
Lu so-Brasileiro: o n ovo padro de colon izao do scu lo XVIII. In : ACTAS DOS 4. s CURSOS
INTERNACIONAIS DE CASCAIS, 1997.
22. O arcaism o , isto sim , u m verdadeiro projeto social, o qu e explicaria porqu e as ten tativas de in du strializao, ocorridas n os scu lo XVII e XVIII, som en te em m eio a con ju n tu ras
n as qu ais a reprodu o deste tipo de projeto se via am eaado; u m a vez qu e passado o perodo arcaico retom ou com fora total. Cf. FRAGOSO J., FLORENTINO, M., 1993. p.27.
23. Cf. HOBSBAWM, E. Th e Crisis of th e Seven teen th Cen tu ry. In : ASTON, T. (Ed.) Crisis in
Europe 1560-1660. Lon don : Rou tledge e Kegan Pau l, 1965. p.51.
24. Cf. EMMER, P. C. Th e Du tch an d th e Makin g of th e Secon d Atlan tic System . In : SOLOW
B. (Ed.) Slavery and the Rise of the Atlantic System. Cam bridge: Cam bridge Un iversity Press,
1991. p.75-96.
25. Cf. ALEXANDRE, V., op cit.; PEDREIRA, J., op. cit.

184

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

26. Cf. FURTADO, C., 1963, p.112.; PINTO, V. N. Balan o das Tran sform aes Econ m icas n o
Scu lo XIX. In : Brasil em Perspectiva. So Pau lo: DIFEL, 1969. p.125-46.
27. GOERTZEL, T. apon ta Fern an do Hen riqu e CARDOSO com o u m dos raros in telectu ais capazes de pren u n ciar estas possibilidades. Cf. O Modelo Poltico Brasileiro e Outros Ensaios. So
Pau lo: DIFEL, 1972. p.66.
28. Cf. MAURO, F. A Con ju n tu ra Atln tica e a In depen dn cia do Brasil. In : MOTA, C. G.
(Org.) 1822 Dimenses. So Pau lo: Perspectiva, 1972. p.38-47; MATTOSO, K. de Q. Os Preos
n a Bah ia de 1750 a 1930. In : LHistoire Quantitative du Brsil de 1800 a 1930. Paris: CNRS, 1973.
p.167-82; JOHNSON, H. B. Mon ey an d Prices in Rio de Jan eiro (1720-1860). In : MAURO, F.
(Org.), op. cit., p.39-47.
29. Cf. COSTA, E. V. da, 1969, p.63-124.
30. Cf. BRAUDEL, F., 1996. p.373. v.3.
31. Cf. ARRUDA, J. J. de A Mercado Nacion al e Mu n dial en tre o Estado e a Nao: Brasil, da
Coln ia ao Im prio. In : Estados e Sociedades Ibricas. Realizaes e Conflitos (Sculo XVIII-XX), Actas dos 3s Cu rsos In tern acion ais de Cascais, v.III, p.195-206, Cascais, 1996.
32. However, in m om en ts of crisis, th e aggressive pen etration of forein g com m erce in to th e
colon y cou ld lead to a desin tegration of th e system or th e loss (in depen den ce) of th e colon y.
ARRUDA, J. J. de A. 1991. p.397.
33. Cf. MAXWELL, K. Th e Atlan tic in th e Eigh teen th Cen tu ry: A Sou th ern Perspective on
th e Need to Retu rn to th e Big Pictu re. Transactions of the Royal Historical Society (Lon don ), 6th
series, v.3, p.230, 1993.
34. Prlogo das BALANAS de 1802, 1805, 1806 e 1807. MORAES, M. J. T. de Balana Geral do Commercio do Reyno de Portugal com seus Domnios. Lisboa: In stitu to Nacion al de Estatstica, 1807. Texto atu alizado. Em estu do recen te, Ern st Pijn in g an alisa de form a den sa e pen etran te a relao en tre con traban do e sistem a colon ial. Parte da con statao de qu e o fen m en o do con traban do era parte visceralm en te con stitu tiva do tecido da sociedade colon ial e
m esm o de su a m en talidade. Con stata, a partir da an lise das apreen ses realizadas pelo poder
p blico n o fin al do scu lo XVIII, n o Rio de Jan eiro, a in ten sificao do com rcio ilegal, pois
os altos e baixos das apreen ses m ostram a cau tela qu e se segu e s aes restritivas. De qu alqu er form a, o an o de 1798 expressivam en te distin gu ido pelo salto espetacu lar das apreen ses, defin in do u m m om en to especfico do fortalecim en to da prtica do con traban do n o
Brasil colon ial. Cf. PIJNING, Ern st, Controlling Contraband: Mentality, Economy and Society in
Eighteenth-Century Rio de Janeiro. Tese de dou torado, Joh n s Hopkin s Un iversity, Baltim ore,
Marylan d, 1997, p. 17.

185

Jos Jobson de Andrade Arruda

B IBLIOGRA FIA
ALEXANDRE, V. Os sentidos do Imprio. Qu esto n acion al e qu esto colon ial
n a crise do an tigo regim e portu gu s. Lisboa: Edies Afrotam en to,
1993.
ARRUDA, J. J. de A. Colon ies as Mercan tile In vestim en ts. In : TRACY J. D.
(Ed.) The Political Economy of Merchant Empires. Cam bridge: Cam bridge
Un iversity Press, 1991. p.360-420.
___. O Brasil no Comrcio Colonial. So Pau lo: tica, 1980.
BRAUDEL, F. Os Jogos da Troca. In: ___. Civilizao material, economia e capitalismo. So Paulo: Martins Fontes, 1996. v. 2. Traduo portuguesa.
CARDOSO, C. F. Agricultura, escravido e capitalismo. Petrpolis: Vozes, 1979.
COSTA, E. V. Introduo ao estudo da emancipao poltica do Brasil. In:
MOTA C. G. (Org.) Brasil em Perspectiva. So Paulo: Difel, 1969. p. 63-124.
FRAGOSO, J., FLORENTINO, M. O arcaismo como projeto. Mercado Atln tico, Sociedade Agrria e Elite Mercan til n o Rio de Jan eiro, c.1790c.1840. Rio de Jan eiro: Diadorin , 1993.
FRAGOSO, J. L. R. Homens de grossa aventura: acu m u lao e h ierarqu ia n a
praa m ercan til do Rio de Jan eiro (1790-1830). Rio de Jan eiro: Arqu ivo Nacion al, 1992.
FURTADO, C. Formao econmica do Brasil. Rio de Jan eiro: Fu n do de Cu ltu ra. 5.ed. 1963.
GODINHO, V. M. Prix et Monnaies au Portugal (1750-1850). Paris: Librairie
Arm an d Colin , 1955.
MAURO, F. (org.) LHistoire Quantitative du Brsil de 1800 a 1930. Paris: Edition du CNRS, 1971.
MELLO, J. M. C. O Capitalismo Tardio. So Pau lo: Brasilien se, 1982.
NOVAIS, F. A. As Dim en ses da in depen dn cia. In : MOTA C. G. (Org.)
1822 Dimenses. So Pau lo: Perspectiva, 1972. p.15-26.
____. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. So Paulo: Hucitec, 1979.
____. Con dies da privacidade n a Coln ia. In : ___. (Org.) Histria da Vida
Privada no Brasil. So Pau lo: Com pan h ia das Letras, 1997. v.1, p.14-39.
PEDREIRA, J. Estrutura Industrial e Mercado Colonial, Portugal e Brasil (17801830). Lin da-a-Velh a: Difel, 1994.

186

O SENTIDO DA COLNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

PIJNING, Erst. Controlling Contraband: Mentality, Economy and Society in


Eighteenth-Century Rio de Janeiro. Tese de dou torado, Joh n s Hopkin s
Un iversity, Baltim ore, Marylan d, 1997.
PRADO JNIOR, C. Formao do Brasil Contemporneo (Colnia). 6.ed. So
Pau lo: Brasilien se, 1961.
PRADO JNIOR, C. Histria Econmica do Brasil. 6.ed. So Paulo: Brasiliense, 1961.
SCHWATZ, Stu art B. Somebodies and Nobodies em the Body Politic:
Mentalities and Social Structures in Colonial Brazil. Latin American
Research Review. Vol. 31, n. 1, 1966, p. 113-33.

187

captu lo 11

CONTESTAO RURAL E REVOLUO


LIBERAL EM PORTUGAL
Jos Ten garrin h a*

O A GRICULTOR E A CON TESTA O RURA L ESSES


GRA N D ES A USEN TES D A HISTORIOGRA FIA
PORTUGUESA .

Continuaram a ser predominantes as generalizaes e as redutoras


abstraes da historiografia oitocentista, que se limitara a salientar ou a passividade e apatia das populaes rurais ou o seu apoio ao regime absoluto
e ao miguelismo. No primeiro caso, chegava a admitir-se que essa massa
amorfa e submissa s se alterava, de muito em muito longe, em exploses
desesperadas; mas, reduzidas estas a meras reaes reflexas de estmulos
conjunturais, no se lhes reconhecia qualquer projeto ou alcance nos acontecimentos polticos nem sequer alguma articulao dinmica com o conjunto da sociedade. No segundo caso, imprimia-se um sentido poltico nico movimentao rural em Portugal no final do Antigo Regime e primeiros anos do regime liberal; o que era, obviamente, absurdo.
Assim se ju stificava a m argin alizao do m u n do ru ral e o siln cio
sobre ele.
Tais omisses e distores, respeitando a um domnio que em espaos, em gentes e em produo ocupava uma grande parte da realidade nacional, no deixariam de afetar a compreenso da trajetria do Pas, no seu
conjunto. Foram, todos esses, incentivos para a investigao que conduzi
durante cerca de quinze anos, especialmente dirigida sobre o final do Antigo Regime e os incios do regime liberal.1
Neste artigo refletiremos sobre o perodo que imediatamente antecedeu a Revoluo de 1820, analisando alguns aspectos do protagonismo que
a tiveram as classes rurais, no seu conjunto.

N OVA S D IN MICA S SOCIA IS A PS A S IN VA SES


Aps as Invases Francesas, a movimentao das massas rurais em
Portugal apresentar trs novas principais caractersticas, que a projetam
para um plano qualitativamente superior, designadamente quanto contestao anti-senhorial: o sentido e amplitude da interveno, a sua inser-

189

Jos Tengarrinha

o num quadro legal reformista e as alianas que se estabelecem entre diversos grupos sociais inferiores e mdios no mbito das administraes locais.
Antes de tudo, as convulses que abalaram os campos quando das Invases com um triplo contedo de revolta social, guerra religiosa e luta nacional permitiram que as populaes rurais adquirissem, como nunca,
conscincia do seu poder; e que tais aes se revestissem, tambm, de um
sentido social superior, na medida em que a interveno rebelde, o ato amotinador passa a ser no apenas socialmente justificvel mas at dignificante.
uma verdadeira inverso de valores psicolgicos e morais da sociedade.
Outra diferena fundamental relativamente s movimentaes agrrias anteriores para alm das motivaes e do alargamento quantitativo
da interveno popular reside na substancial alterao das categorias sociais envolvidas, aparecendo agora as camadas mdias ou mdias inferiores
com uma participao na rebeldia social como no se vira at a, pelo menos com essa dimenso. Acabaro elas por ser, nesta fase, os principais motores da movimentao, na sua globalidade. E este fato de grande importncia na histria social portuguesa contempornea ir provocar motivaes polticas que se estendero, em ondas reflexas, por toda a sociedade.
No mais se poder dizer que o povo mido, de um lado, e a gente grada, do outro, em posies irredutveis, nem que a agitao social resulta de
atos irresponsveis de gente rude e ignorante. O tecido social que se envolve na contestao apresenta, agora, maior heterogeneidade.
visvel, alm disso, um maior inconformismo das populaes rurais, mesmo relativamente a situaes que no passado haviam aceito. As
prprias autoridades o reconheciam, com freqncia. Por exemplo, o provedor da comarca de Coimbra, ao intervir no conflito sobre os direitos banais em Penela (1816), admitia que a rebeldia dos agricultores tomara
maiores propores por influncia das modernas opinies e doutrinas dos
pretendidos defensores dos direitos dos povos.2 Ou o prior de Vila Nova de
Monsarros ao testemunhar, em 1814, que os habitantes, tendo comeado
por contestar os excessos cometidos na cobrana dos encargos do foral, acabaram colocando em causa os direitos senhoriais na sua totalidade, tanto
assim que o senhorio, cabido da S de Coimbra, pouco tem arrecadado.3
Emergem, assim, atitudes gerais de contestao que pem em causa, mais
frontalmente, relaes de dependncia e hierarquias tradicionais.
Tal favorece que o sentido poltico passe a impregnar mais a contestao social (tornando menos ntidas as fronteiras entre eles), o que abre
uma nova dimenso no relacionamento entre o social e o poltico.
O eco das lutas da segunda metade do sculo XVIII, solitrias e desesperadas, contra a opresso senhorial e a apropriao individual da terra,
est presente. Mas esta nova qualidade da contestao, ento emergente,
que se projeta na dimenso nacional, poltica e militar dos abalos anteriores e posteriores Revoluo de 1820.

190

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

LIN HA S GERA IS D A CON TESTA O


Nos 2 anos seguintes s Invases era a preocupao de sobrevivncia que dominava o comportamento das camadas sociais mais baixas nos
campos.
Encontravam-se, tambm, muito perturbados os mecanismos de cobrana das tributaes, em especial nas regies mais duramente atingidas
pelas Invases. J quando da primeira invaso, as remessas das contribuies para o governo francs no eram feitas em muito elevado nmero de
casos, instalando situaes de incumprimento que, naturalmente, tinham a
tendncia para se prolongar, mesmo passada a situao de guerra.
Quanto s rendas de particulares, para alm das naturais dificuldades de haver quem se dispusesse a contratar o seu recebimento em tempos
to instveis, levantavam-se muitas dvidas na determinao das bases jurdicas dos direitos e das delimitaes de terras, por terem sido numerosos
os ttulos e tombos queimados nos incndios dos cartrios.
Finda a guerra, foram incontveis os casos de foreiros, enfiteutas, arrendatrios, contratadores da Coroa e de diversas casas (como a de Bragana) que pediram remisso das dvidas ou iseno do pagamento. Perante os
rigores das cobranas por muitos enfiteutas e contratadores de rendas (impondo encargos antigos ou procedendo a novas louvaes, como se viu
amide), os povos lamentavam-se ou protestavam com vivacidade. A Coroa tomou a deciso de isentar do pagamento os que provassem terem sido
saqueados pelos franceses. No foram poucas, tambm, as instituies religiosas que perdoaram os dzimos at 1812.4
Eram golpes profundos na exao da renda senhorial, que ainda
mais a debilitava, e cuja recuperao se tornava particularmente difcil em
virtude da quase generalizada situao de absentesmo dos senhorios laicos,
muitos dos quais acompanhando a Corte no outro lado do Atlntico.
Tais condies, favorveis iseno ou fuga ao pagamento de rendas
e foros, fizeram naturalmente diminuir a necessidade da contestao frontal nos anos imediatamente seguintes guerra.
Alm disso, uma conjuntura to desfavorvel, agravada com as destruies de bens, no deixaria de ter efeitos na retrao da contestao rural
e no carter defensivo que, em tais condies, esta normalmente assume.
Por outro lado, o aparelho administrativo-judicial, mesmo nas instncias superiores, s muito lentamente se recompe, permitindo assim
que a conflitualidade passe, ainda mais do que habitualmente, margem
dos registros judiciais.
Desta maneira, no surpreender que, relativamente aos perodos
imediatamente anteriores, as instncias judiciais superiores registrem menor
nmero de conflitos no quadro rural nos anos imediatamente seguintes s

191

Jos Tengarrinha

Invases. S a partir de 1813, coincidindo com o incio da recuperao agrcola e de uma baixa de preos de longa durao, se reanima a movimentao rural, tendo registrado, a partir da at Revoluo de 1820, trinta movimentos com maior significado e envergadura.

A TERRA
Quanto aos conflitos sobre a terra, no surpreender o relevo que tomam neste decnio se tivermos em conta que a grande falta de gados que
se seguiu s Invases provocou acentuado aumento nos preos da carne e
da l; e que era dominante preocupao do Governo, coincidindo com os
interesses de agricultores ricos das provncias, aproveitar mais intensivamente as terras at a abertas para aumentar a produo agrcola.
A presso sobre a terra fez-se sentir, assim, no duplo aspecto dos pastos e da expanso do individualismo agrrio. Localizam-se tais conflitos,
predominantemente, como sempre, na regio de Castelo Branco, e tambm Guarda e Viseu.
Grandes criadores de gado sobretudo langero, nesses trs distritos
da Beira interior apossavam-se de melhores pastos, quer porque podiam
arremat-los por quantias mais elevadas quer pela influncia que exerciam
sobre os vereadores; tal poder sobre as governanas locais permitia, tambm, que estes criadores, e ainda os de gado vacum, usassem a seu favor os
odiados rendeiros do verde5 e assim pudessem cometer abusos com os rebanhos mesmo em terras cultivadas. Alm disso, proprietrios abastados
vedavam terras suas at a usadas como pastos comuns, sendo certo que,
sem eles, os pequenos agricultores no poderiam manter os seus gados de
lavoura e arranjar estrumes; tais vedaes, levantadas com a justificao de
abandonar o regime de longos pousios para agricultar mais intensivamente a terra, tambm muitas vezes se destinavam a pastos para uso dos gados
prprios ou para aluguel.
Protestos dos povos surgiram, tambm, na seqncia de aforamentos de terras baldias de que se serviam. De pouco valera a Portaria de
13.2.1815 recomendar, expressamente, que no exame dos baldios e terras
incultas se tomasse em conta o interesse que se pode tirar da sua cultura
e pores indispensveis para logradouros dos povos. Os interesses destes,
de fato, no foram em muitos casos devidamente precavidos, pelo que a linha de tenso permanece, muito viva, no mundo rural: de um lado, lavradores ricos, geralmente apoiados por corregedores e provedores, do outro,
pequenos agricultores, freqentemente com o apoio das cmaras, que deixavam assim de beneficiar com o aluguel, para pastos, dessas terras quando livres de culturas. Ao ponto de, em 1818 (Alvar 6-7), o Governo, mais

192

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

do que nunca receoso de agitaes sociais, define que deviam considerarse baldias as courelas no s enquanto os possuidores as no tapassem completamente, mas enquanto no possussem legtimo ttulo para as tapar.
Eram evidentes, neste domnio, as grandes hesitaes dos governantes. Houve locais em que os agricultores ricos tiveram influncia suficiente
para impor as vedaes (sobretudo, na Beira Baixa). Admitiam que, dessa
maneira, as rendas dos concelhos algo diminuam e tambm, com isso, a
tera real; mas defendiam que, resultando dos tapumes utilidade particular e pblica com o aumento da agricultura, a fazenda real acabava por
ser beneficiada com a maior tributao resultante do aumento da riqueza
produzida. Em maior nmero de locais, porm, as tentativas de apropriaes individuais e vedaes de terras comuns desencadearam tais oposies
que no puderam ser concretizadas. Ento, como mesmo depois em regime liberal, a desesperada luta dos agricultores pobres em defesa dos seus
baldios ir levantar obstculos ao avano do individualismo agrrio. Mesmo em perodo revolucionrio, os legisladores vintistas recuaro perante o
problema, sendo este um dos mais expressivos aspectos da sua incapacidade para desenvolver um projeto capitalista nos campos.

PROTECIONISMOS AGRCOLAS
A difcil conjuntura comercial que atravessa Portugal e a Europa nesse segundo decnio do sculo XIX teve enormes repercusses nos nossos
campos, sobretudo pelas dificuldades no escoamento do vinho nacional
para os mercados externos e pela entrada torrencial de gros estrangeiros.
Traduziram-se em grandes movimentos de protesto em vrias partes do
Reino que obrigaram o Governo a tomar medidas.
Na verdade, a exportao do vinho fundamental para a prosperidade do mais amplo setor comercial da agricultura portuguesa, para obter
benefcios alfandegrios e para diminuir o desequilbrio da balana comercial atravessava grandes dificuldades. s que se prendiam com a adversa
conjuntura internacional, somavam-se as resultantes da abertura dos portos do Brasil aos vinhos de todas as naes, com destaque para os franceses
e espanhis e, igualmente, aorianos; e tambm do aumento da entrada
dos vinhos espanhis em Inglaterra e dos favores desta importao dos do
Cabo da Boa Esperana, o que fez diminuir tendencialmente o consumo
dos vinhos portugueses no nosso principal importador. Em 1811, a situao era particularmente grave, com a descida da exportao geral para um
quarto em relao a de 1798 (84.386 pipas em 1798, contra apenas 21.972
em 1811); em 1812, tem a mesma gravidade (ligeira, a subida para 28.168
pipas). Nestes 2 anos, a exportao para o Brasil e domnios ainda relativa-

193

Jos Tengarrinha

mente mais se reduziu (10,4% e 12,7% do total), atingindo os mais baixos


valores (2.279 e 3.590 pipas).6 Em conseqncia, a produo do vinho de
embarque da colheita de 1812, que teria sido de 50.000 pipas, estava em
parte considervel por vender, enquanto a do ramo, de 18 a 20.000 pipas,
fora comprada pela Companhia de Agricultura das Vinhas do Alto Douro,
mas apenas pequena parte tinha sido embarcada.7 A crise tomou dimenses
gravssimas com os aumentos que se verificaram das produes: em 1814,
a colheita foi de boa qualidade e excessiva quantidade e a do ano seguinte,
embora menor que a anterior, era ainda muito abundante e de boa qualidade. A conseqncia imediata foi o barateamento do vinho no mercado
interno, com grandes prejuzos para a lavoura e o comrcio nacionais e s
favorvel aos ingleses. Os stocks aumentavam: no incio de 1816, os lavradores tinham ainda por vender grande parte da produo anterior, em
setembro 70.000 pipas estavam paradas nos armazens do Porto, muito
grandes quantidades acumulavam-se, tambm, nos depsitos britnicos
estimavam os governadores do Reino.8 A partir de 1813 h sinais de tendncia oscilante para a recuperao. Deve-se este fato, fundamentalmente,
retomada do mercado brasileiro, ao passo que o das naes estrangeiras
mostrava constante tendncia para diminuir. Com efeito, enquanto o Brasil absorvera apenas 10,4% do vinho exportado pela Metrpole em 1811,
em 1819 sobe para quase metade (49,5% ). Perante a concorrncia crescente que encontrava no tradicional mercado britnico e o reduzido efeito do
tratado de comrcio com a Rssia (firmado em dezembro de 1798 e sucessivamente prorrogado em junho de 1812 e junho de 1815), era ainda no
Brasil, apesar das dificuldades resultantes da abertura dos portos, que o vinho portugus encontrava perspectivas mais favorveis. Ora tal melhoria
da situao do mercado brasileiro explica-se por legislao favorvel que foi
exarada na seqncia de muito amplos movimentos de protesto dos viticultores. Tal movimentao, em crescendo aps 1814, partiu de algumas das
mais importantes regies vitcolas do Reino, com destaque para o Alto Douro, e teve o apoio da Companhia Geral da Agricultura. Punha como exigncia principal a proibio da entrada dos vinhos estrangeiros no Brasil, pois
s assim se poderia garantir um escoamento certo para o nosso vinho, no
ficando dependente da legislao ou do capricho dos pases para onde atualmente se transportam como se lia na exposio enviada ao Trono. A exigncia era de difcil atendimento, pois colidia com a deciso tomada em
1808 de abrir os portos do Brasil a todas as naes estrangeiras. Mas a presso dos viticultores foi to forte que, vencendo as resistncias do governo
do Rio de Janeiro, levou adoo de medidas favorveis, a culminar aquele que foi um dos pontos de dissdio mais speros entre os governos dos dois
lados do Atlntico.9
Quanto aos cereais, abertas as comportas torrente quando a escassez da produo levantava o espectro da fome, difcil era depois estanc-la,

194

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

pelos interesses comerciais que a ela se ligavam. Os preos baratos dos estrangeiros fizeram parar a venda dos trigos e milhos nacionais. Comparando as entradas no Terreiro Pblico em 1790 e 1812, verifica-se que a de
gro nacional, naquele primeiro ano, foi de 27.748 moios e, no segundo,
de 8.184, em vez da evoluo da entrada do gro estrangeiro que, em 1796,
foi de 66.738 moios e, em 1812, de 268.846.10 Em produto de vendas, vse que, no mesmo Terreiro, e nos anos de 1810 a 1812, as dos gros estrangeiros passaram de 73,5 milhes de cruzados, ao passo que as dos nacionais
no chegaram a 6 milhes. Se quele primeiro produto se juntar o das
quantidades de gros vendidos fora do Terreiro sem pagar a devida comisso e das que entraram e se venderam em diversos pontos do Reino nesses
anos, poder avaliar-se a importncia total da venda dos gros estrangeiros
neste perodo em 112 milhes de cruzados; em grande contraste, pois, com
os anos de 1808 e 1809, em que a importncia dos gros estrangeiros entrados e vendidos no Terreiro alcanou apenas 8 milhes de cruzados e a
dos nacionais passou de 7 milhes.11 Ao longo de todo o decnio, assiste-se
incapacidade do trigo nacional competir com a barateza do estrangeiro,
apesar das providncias dadas pelo Governo para sustentar-lhe o preo. Os
protestos dos produtores de cereais subiram de tom perante a extraordinria importao de gros estrangeiros nos ltimos meses de 1818, continuada no ano seguinte. Ainda em vsperas da Revoluo, no ltimo relatrio
para o Rio de Janeiro, os governadores do Reino alertavam estar a agricultura arruinada pelo baixo preo do gro estrangeiro que tem inundado o
Reino, de que resulta o abandono da cultura que o lavrador no pode continuar sem perda e o conseqente abatimento de todas as rendas que consistem em frutos.12 Do Ribatejo e Alentejo, sobretudo, levantaram-se os
clamores para que se proibisse a entrada dos gros ou, ao menos, fossem os
comerciantes obrigados a incluir nas compras uma parte dos nacionais ou
outra qualquer providncia que facilitasse a venda destes. Foi um movimento de protesto de grande amplitude que obrigou o Governo de Lisboa,
com alguma precipitao, perante o silncio do Rio de Janeiro, a promulgar medidas protecionistas.13

PREOS E SALRIOS
Perante uma to agressiva concorrncia externa e as dificuldades de
coordenao do espao econmico nacional, iriam acentuar-se desequilbrios regionais, aes comerciais especulativas, desajustes entre preos e salrios, gerando tenses de diversas naturezas que eclodiram, por vezes, em
conflitos de considervel envergadura.
Assim, rivalidades entre regies prximas com os mesmos produtos
no raro provocavam confrontos, o que era mais freqente quando se tra-

195

Jos Tengarrinha

tava do vinho, dadas as maiores dificuldades que ento encontrava nos


mercados exteriores; em conseqncia, aqui e alm, levantaram-se barreiras protecionistas concelhias que, em vez de favorecer a formao do mercado nacional, agravavam particularismos locais. Mas tambm o comrcio
local na base de pequenos agricultores e mercadores sofria limitaes, devido a imposies antigas que algumas cmaras retomaram, sem ter em
conta as novas necessidades de maior fluidez das trocas.14
Era o quadro favorvel para as especulaes dos monopolistas: aambarcando cereais e feijo logo a partir do produtor, provocavam elevaes pontuais e
localizadas de preos, sob protestos por vezes muito vivos das populaes.15
Questo que dizia respeito, no fundo, prpria estrutura das sociedades de Antigo Regime, onde obstculos de vrias naturezas (interesses locais descontrolados, protees administrativas), gerando condies propcias formao de monoplios, dificultavam a liberdade de circulao interna e a fluidez e unificao do mercado.
Estando alteradas, desta maneira, as regras do mercado livre, deixava-se maior margem para imposies administrativas reguladoras da relao
entre preos e salrios. As velhas Ordenaes do Reino j o previam (L.1, tt.
66, 32), mas, para evitar desequilbrios, no admitiam que se baixassem os
salrios sem que tambm o fossem os preos. Desta vez, porm, v-se a iniciativa camarria procurar descer apenas os salrios, por presso de poderosos lavradores. na regio do vinho do Ribatejo que esta medida vai provocar maiores conflitos, com destaque para o levantamento e amotinao dos
jornaleiros que, em meados de fevereiro de 1814, chegaram a entrar em
Santarm armados e a confrontar-se com foras militares.16

A PRESSO FISCAL
A situao nacional fortemente condicionada pelas grandes dificuldades financeiras do Tesouro. Nos relatrios enviados pelos governantes de
Lisboa para a Corte no Rio de Janeiro em maio de 1809 mostrava-se que
todas as rendas do Estado no chegavam, ento, a satisfazer sequer as despesas militares.17 As receitas das tributaes ordinrias mostravam um
acentuado decrscimo em todas as rubricas, entre 1801 e 1811.18
Mltiplas causas estavam na origem da insuficincia das receitas.
Umas, diretas resultantes das Invases: dificuldades de cobrana das rendas
rgias em virtude da desorganizao do aparelho de suco fiscal e quebra
geral das atividades econmicas que, conjugada com a escassez de numerrio, se refletia em forte diminuio das trocas internas; outras, ligadas s
trocas externas, que provocavam considervel quebra nos importantes rendimentos das alfndegas: diminuio do comrcio devido abertura dos

196

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

portos do Brasil aos mercadores estrangeiros, agressiva concorrncia internacional e recesso geral europia. Ambas, provocando forte diminuio
dos impostos indiretos, que forneciam ento cerca de 60% das receitas fiscais. Outras, ainda, em conseqncia da fixao da Corte no Rio de Janeiro: deixaram de pertencer a Portugal os rendimentos rgios do Brasil, Ilhas
e domnios na sia e frica, escoavam-se para o Brasil os capitais e as rendas da famlia real e dos nobres, altos funcionrios e capitalistas que a
acompanharam. E, ainda, as que vinham da falta de confiana no Estado,
que se refletia no abaixamento dos valores ou mesmo no arrematao de
contratos rgios. Viam-se os maiores capitalistas e negociantes passar para
fora grande parte dos seus capitais, colocando-os em operaes comerciais
e bancos no estrangeiro (em especial da Inglaterra e Irlanda), apesar de auferirem assim quase metade dos juros que lhes ofereciam os emprstimos
pblicos abertos em Portugal (6% ).19 A que se somava a contnua diminuio, desde o terceiro quartel de setecentos, do envio de remessas de metais
preciosos do Brasil: o produto do quinto do ouro brasileiro, em 1819, no
ia alm de 270.000 cruzados quanto ao de Minas Gerais e no ultrapassava os 90.000 cruzados o das restantes capitanias.
Se tivermos em conta este conjunto to poderoso de causas, num
Reino exausto e com um aparelho fiscal menos eficaz, deveremos admitir
que, apesar da quebra no rendimento global, as recolhas feitas mostram,
como em Espanha, uma presso tributria crescente. Traduzia-se em mais
apertada cobrana das rendas da Coroa, tanto as de natureza senhorial
como as de carter fiscal, quer feita pelos almoxarifados quer pelos contratadores. De 1812 a 1817 assiste-se, mesmo, a uma inverso na tendncia,
com uma considervel subida na receita efetiva do Estado.20 A partir de
1816, porm, eram visveis os sinais de novo agravamento, a receita volta
a cair bruscamente, o endividamento do Estado cresce em ritmo ainda mais
preocupante, entra-se na rampa final para a Revoluo de 1820. Em Portugal, como noutros pases europeus, a Fazenda surge como um dos mais
poderosos inimigos da monarquia absoluta.
Essa maior presso fiscal no poderia deixar de desencadear tenses
e conflitos no mundo rural.
A questo das sisas assume particular relevo, sendo ento a fuga ao
seu pagamento motivo freqente de queixas das autoridades, que a apontavam como uma razo importante na diminuio das receitas do Errio. Entre os movimentos mais significativos neste domnio, assinale-se, logo em
1812, no termo de Lisboa, a amotinao de lavradores e criadores contra o
rendeiro principal das sisas dos gados, que lhes lanara penhoras e procedimentos judiciais por no manifestarem nem pagarem sisa das vacas de criao e lavoura.21 Ou o forte movimento de protesto dos moradores da vila do
Sabugal, em 1815, contra injustias do juiz de fora de Castelo Branco no encabeamento das sisas, lanando importncia superior do patrimnio real.22

197

Jos Tengarrinha

A quebra nos rendimentos alfandegrios era motivo de especial


preocupao, dada a importncia dominante que tinham no conjunto das
receitas do Estado.23 Sendo em razo, sobretudo, das razes atrs expostas
(em que avultavam a conjuntura internacional e a abertura dos portos do
Brasil ao comrcio de todas as naes em 1808), no deixava de sofrer tambm o efeito dos contrabandos, que proliferavam nesses tempos perturbados e de debilitao dos meios de vigilncia do Estado. Entre os vrios conflitos que se deram, nomeadamente na fronteira com a Espanha, atingiu especial gravidade, em 1814, o que ops os funcionrios rgios ao povo de
Quadrazais (concelho de Sabugal), que, armado e em grande nmero, no
s os dominou como enfrentou a fora armada enviada para o submeter.24
A cobrana do subsdio literrio mereceu tambm a maior ateno
do Tesouro, dada a grande diminuio que sofrera.25 Quer por ter sido retomada quer feita com maior rigor, levantou tambm movimentos de protesto com considervel amplitude, como, em 1814, dos vitivinicultores da
regio de Chaves, contra violncias e extorses praticadas na cobrana.26
No apenas sobre as rendas de carter fiscal, mas tambm sobre as de
natureza senhorial da Coroa se faziam sentir nos meios rurais as maiores
presses da cobrana. Em torno das jugadas e dos direitos banais detectamos
as mais fortes linhas de tenso. Entre os conflitos mais significativos assinala-se, em 1813, a amotinao dos lavradores de Soure contra o almoxarifado de Montemor-o-Velho, por este querer considerar jugadeira uma terra
que as populaes e as autoridades locais consideravam sob sua jurisdio e
no da Coroa.27 E, em 1816, o conflito no reguengo de Penela sobre a cobrana de direitos banais, porque os lavradores numa atitude considerada
pelas autoridades de grave rebeldia se recusaram a levar as suas azeitonas aos lagares do reguengo, preferindo mo-las em particulares.28

R EFORMISMO E LUTA A N TI-SEN HORIA L


As agudas dificuldades financeiras que o Reino atravessava, e que levaram o Governo a tomar urgentes medidas, entre as quais a venda dos
bens da Coroa,29 constituam apenas um dos aspectos da grande crise de dimenso nacional.
Era geral o abatimento na agricultura, no comrcio externo, no comrcio interno, na indstria, na falta de capitais. Mas, no menor, a crise
poltica e moral, resultante da ausncia da Corte no Brasil e da descrena
nos destinos nacionais, com grande incidncia nos meios rurais.30 A agitao revolucionria em Espanha, as Cortes de Cdis e a promulgao da
Constituio de 1812 vinham agravar os receios dos governantes portugueses de que, a no serem tomadas medidas urgentes, se caminharia inevitavelmente para a runa da monarquia absoluta.

198

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

Assumem grande significado, assim, as propostas reformistas que


vm do Rio de Janeiro. Elas no tm, porm, nesta conjuntura, qualquer
contedo liberal: apoiadas, ou pelo menos no impedidas, por convictos
antiliberais, visavam introduzir apenas as alteraes necessrias para que a
monarquia tradicional conseguisse sobreviver.31 Encontram, porm, forte
oposio de alguns dos senhorios mais conservadores que se haviam mantido na Metrpole: eclesisticos (como os mosteiros de Alcobaa, Lorvo,
Santa Cruz e outros) e laicos (como, entre outros, o marqus de Marialva),
que influenciavam o Governo de Lisboa. O conflito entre este e o governo
do Rio de Janeiro um dos acontecimentos polticos mais significativos da
dcada que antecedeu a Revoluo liberal.
Sem razo se insiste na ausncia de quaisquer conseqncias em
Portugal desta legislao reformista, que no teria passado de um enunciado de boas intenes, em parte destinada a tentar cobrir os protestos levantados pelo lesivo tratado do comrcio com a Gr-Bretanha de 1810. Em circunstncias mais tranqilas da vida nacional, porventura assim teria sido.
Mas no quando tais reformas se projetam sobre um quadro rural algo tenso, como atrs referimos, em especial aps as Invases. A partir dessas reformas, em grande parte, se ir desenrolar o confronto entre aspiraes libertadoras da opresso senhorial e senhorios mais conservadores.
As primeiras grandes medidas reformistas emanadas do Rio de Janeiro so as Instrues para os governadores do Reino de 2.1.1809 e a Carta
Rgia de 7.3.1810.
Perante o estado das finanas pblicas e o abatimento econmico do
Pas, sugeriam as Instrues a extino das jugadas, teros e quartos, substituindo-os por outras imposies menos pesadas e suprimindo-se algumas medidas de trigo e centeio impostas por certos forais nas provncias do Norte.
No seguimento, a Carta Rgia de 1810 apontava, no respeitante
agricultura, ainda que fugazmente, dois princpios programticos fundamentais: um, o de que as condies de explorao da terra deviam alterarse de tal modo que fossem rendveis os capitais nela aplicados e, assim, novos pudessem ser atrados; outro, o de que a prosperidade da agricultura arrastaria o desenvolvimento da indstria, no que tinha decerto em conta a
exemplar experincia britnica. Para tal, admitia no apenas atenuar, mas
mesmo suprimir os forais, por serem em algumas partes do Reino de um
peso intolervel; bulir pela primeira vez nos dzimos, tentando fix-los, a
fim de que as terras no sofram um gravame intolervel; minorar ou alterar o sistema das jugadas, quartos e teros, com que se podero fazer resgatveis os foros.
A esta formulao no era estranha a corrente reformista dos fins do
sculo XVIII, com destaque para os fisiocratas da Academia Real das
Cincias de Lisboa. Mas no poder deixar de compreender-se, tambm, na
seqncia das presses anti-senhoriais que os agricultores tinham vindo a

199

Jos Tengarrinha

exercer, sobretudo, desde finais do terceiro quartel do sculo XVIII, e da exploso social de 1808. Era a moderada rplica aos ataques frontais ao regime senhorial que percorriam a Europa napolenica e ao programa de mudanas revolucionrias que em Espanha fora formulado no convulsionamento antifrancs das lutas das Invases.
As conseqncias do pequeno programa de intenes que era a
Carta Rgia de 1810 repercutem-se em diversas direes. Por um lado, promove o debate poltico-jurdico, nela procurando apoio algumas posies
mais avanadas,32 por outro, so tomadas na sua seqncia algumas medidas legislativas que, concretamente, limitam certos direitos senhoriais; e
ainda, como se disse, estimula a contestao dos encargos senhoriais.
Peran te os riscos qu e da vin h am , o Govern o de Lisboa levan ta dificu ldades aplicao das reform as. Apesar da m aior abertu ra do prin cipal
Sou sa, predom in am as in flu n cias con servadoras. So m u ito sign ificativas
algu m as das objees qu e os govern an tes levan tam , em especial con tra m odificaes n as im posies dos forais: dificu ldades de u m a tal operao, tan to qu an to s averigu aes n ecessrias com o avaliao das com pen saes
aos sen h orios; os in con ven ien tes das in ovaes; dificu ldade de estabelecer
u m a im posio direta qu e su bstitu sse as extin tas, alegan do qu e os povos receberiam m al n ovas im posies, acostu m ados com o estavam s ju gadas,
teros e qu artos; em bora recon h ecen do qu e a extin o dos direitos dos forais pou co efeito tin h a n o Errio (com o os liberais iriam com provar ao discu tir esta m atria n as Cortes de 1821-1822), m u ito afetariam algu m as com en das, corporaes eclesisticas e in divdu os a qu em perten cem , qu e assim se in disporiam con tra o Govern o; alm de provocar o risco im in en te de u m a su blevao dos povos qu e ou por ign orn cia ou por m alcia recu sariam pagar n o s os direitos su prim idos m as todos os dos forais.33
Assim, a recuada posio do Governo de Lisboa est ainda longe,
mesmo, das propostas da Comisso nomeada para o efeito.34 Apenas admite que, alm dos pequenos encargos dos forais cujo rendimento era as
mais das vezes absorvido pelas despesas da cobrana , deviam ser prontamente extintos os direitos banais, que na prtica j no eram em geral respeitados, e os servios pessoais, mas apenas os que no estivessem convertidos em dinheiro; que s parcialmente se tocasse noutro direito pessoal, as
lutuosas, que a referida Comisso considerava, com aqueles, o nico resto que ainda ficaria de feudalismo; e aconselhando a que no se alterasse
o direito enfitutico, fonte permanente de litgios.35
Razo tinha o Governo, ao recear que a supresso de alguns direitos
acabaria por arrastar contestao de outros. Com efeito, o simples fato de
superiormente se admitirem reformas estimulava as atitudes gerais de rebeldia. Tal concorreu para que, entre os diversos movimentos de protesto
que percorreram os campos portugueses nesse decnio anterior Revolu-

200

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

o liberal, tivessem sido os relacionados com os direitos senhoriais os que


assumiram maior envergadura.
Em causa estiveram, sobretudo, direitos banais e jugadas. E ainda,
com especial significado, os dzimos, que no sendo em rigor um direito senhorial, se insere na lgica do regime. Estes no haviam sido, no passado,
motivo de relevante contestao, em grande parte pelo efeito da argumentao dos membros do clero de que tal matria era do direito divino e estava
fora do alcance do poder temporal. Agora, porm, os dzimos comearam a
ser fortemente postos em causa, para o que contribuiu a Carta Rgia de 1810
ordenando aos governadores que se ocupassem dos meios de os fixar. Logo
muitos, ingnua ou malevolamente, interpretaram como estando extintos,
levantando-se da numerosas contestaes que pontilharam o quadro rural
portugus, embora no tendo chegado s mais altas instncias judiciais.
Mas a medida que iria desencadear maior controvrsia nos meios rurais seria o Alvar de 11.4.1815. Com o fim de incentivar o cultivo das vastas reas de terras no arroteadas, os que o fizessem ficavam isentos de direitos, imposies e dzimos entre 10 e 30 anos (segundo a natureza da terra e as dificuldades e as despesas necessrias). Significava, de fato, uma reforma parcial dos forais, com a sua abolio nas numerosas terras incultas
existentes nos domnios senhoriais. No texto introdutrio desse alvar relacionam-se mesmo tais isenes com a deciso de mandar rever os forais;
mas, apaziguador, chama colao o parecer de outubro de 1814 em que
o Desembargo do Pao defendia que um dos meios de promover a agricultura seria o cultivo de vrios pauis (e no a diminuio dos encargos dos forais) e o parecer do Governo sugerindo, em janeiro de 1815, algumas isenes para tais desbravamentos.36
Mais audaciosa do que aqueles pareceres foi esta, na prtica, a medida mais avanada que se tomou na linha reformadora anterior Revoluo de 1820. Os agricultores viam-se, assim, libertos dos pesados encargos,
a que sempre se haviam oposto, tanto em terras nunca exploradas como
nas recentemente abandonadas. E esta libertao animava-os, ainda, a tentar alargar a iseno de direitos senhoriais a terras de cultivo normal.
A reao senhorial foi, nalguns pontos, spera: acusando agricultores de terem deixado de cultivar terras dos seus domnios apenas para depois as cultivarem livres de encargos, defendiam que s deveriam ser isentas as que nunca houvessem sido cultivadas.
O Trono decidiu pelos agricultores: a iseno abrangia todos os terrenos que, por qualquer razo, estivessem ento incultos (Prov. 12.2.1817).
As relaes agrrias tradicionais eram, assim, nesse decnio anterior
Revoluo de 1820, algo abaladas. A movimentao anti-senhorial, nem
sempre se limitando a questes pontuais, ganhava, aqui e alm, uma dimenso mais global.

201

Jos Tengarrinha

Entre outros casos, vejamos, por exemplo, o movimento dos moradores de Martim Anes (concelho da Guarda), que em 1815 se recusaram
generalizadamente a satisfazer direitos senhoriais impostos pelo mosteiro
de Arouca e seu enfiteuta,37 o dos povos de Santo Andr de Poiares (concelho de Poiares) e de Penacova que, partindo de um protesto contra os excessos na cobrana de imposies senhoriais pela poderosa casa de Cadaval,
em 1815, acabaram por abranger a totalidade dos direitos,38 o dos agricultores de S. Silvestre (concelho de Coimbra) que desenvolveram desde princpios de 1820 uma ao de resistncia contra abusos e excessos na cobrana de direitos senhoriais, sem que fossem apresentados ttulos justificativos,
o que punha em causa a legitimidade dos direitos no seu conjunto.39
Mas a movimentao mais ampla e de maiores repercusses foi a
que se desenrolou nos coutos do mosteiro de Alcobaa.40 Iniciada em 1815,
desenvolveu-se at a Revoluo de 1820 e os seus ecos estenderam-se a
todo o Pas, inclusive s Cortes liberais quando se discutia a reforma dos forais e dos direitos senhoriais.
O movimento desencadeou-se a partir do referido Alvar Rgio de
11.4.1815, que isentava de encargos do foral as terras improdutivas que se
quisesse cultivar. Os agricultores de vrios lugares daqueles coutos passaram
logo nesse ano a pressionar para a execuo da medida. Alegavam ser possuidores de vrias terras de que era senhorio o mosteiro de Alcobaa e que
estavam incultas, abandonadas e desamparadas por falta de braos e de
meios e por serem oneradas com o pagamento de encargos ao mosteiro. Quiseram, pois, passar a cultiv-las com o benefcio da nova iseno, mas foram
impedidos pelos religiosos, que interferiram decididamente. Em face disso, fizeram os agricultores uma exposio ao Trono, em 19 de janeiro de 1816, pedindo que se procedesse a averiguao dos terrenos incultos que poderiam
ser abrangidos pela iseno. Mais de um ano depois (referida Proviso Rgia
de 12 de fevereiro de 1817) avanava-se que na referida iseno deveriam
tambm ser compreendidas as terras dos donatrios que, tendo sido em outro tempo amanhadas, estivessem abandonadas. E, em novembro desse ano,
em vrios locais da comarca de Alcobaa, foram afixados editais avisando os
agricultores de que deviam apresentar at final do ano as suas alegaes para
ficarem isentos do pagamento. Imediatamente eles requereram que o juiz ordinrio procedesse a diligncias nesse sentido, mas pela segunda vez o mosteiro impediu-as, intimidando e ameaando os que as haviam solicitado.
Crescia o nmero de agricultores que se negavam ao pagamento de dzimos,
quartos e oitavos, assumindo o movimento a expresso de uma contestao
global das prestaes exigidas no foral. Em vsperas da Revoluo de 1820,
a confrontao subia de tom, de parte a parte, ganhando especial significado
por se desenrolar nos imensos domnios pertencentes a um dos maiores, ou
porventura o maior senhorio eclesistico do Reino.

202

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

Nestas circunstncias, pode parecer no muito ntida a orientao do


Poder em face do regime senhorial. Sem dvida, ela no to linear como
vimos nos conflitos do sculo XVIII.
Por um lado, o poder central quer confirmar a legitimidade dos direitos de grandes senhorios, abalada aps as Invases. Por outro, comea a
admitir, pela primeira vez, o abandono de alguns tributos e encargos senhoriais: foram os referidos casos, muito significativos, de jugadas, certos encargos dos forais e direitos banais.
Poder-se- falar, sem dvida, numa ao reformista do Trono, a partir do Rio de Janeiro, no domnio dos direitos senhoriais. Encontrou grandes obstculos tanto no Governo de Lisboa, sujeito s presses dos senhorios mais conservadores do Reino, como at nos funcionrios rgios intermdios, corregedores e provedores. Mas era uma ao muito tmida, que tinha na origem no s a conscincia da necessidade de alteraes no regime senhorial para que a agricultura se desenvolvesse como o propsito de
apaziguar tenses sociais que em 1808 se haviam to fortemente manifestado. O espectro da Espanha revolucionria e liberal est sempre presente.
E so esses receios, sobretudo, que permitiro compreender como,
em contraste com tempos no muito longnquos, foram tomadas diversas
medidas que tm visivelmente a finalidade de evitar que certos conflitos redundassem em abalos desestabilizadores da sociedade. Tal o caso, por
exemplo, da questo to controversa da prestao de trabalho gratuito em
obras, as chamadas jeiras (que geralmente serviam os senhorios e poderosos locais), que motivam a Providncia Rgia de 31.1.1817 atenuando esta
obrigao, que ser definitivamente abolida pela legislao liberal (Decr.
20.3.1821); ou a interveno governativa a favor dos jornaleiros na amotinao nos campos de Santarm, condenando a taxao dos salrios; ou em
tantos outros casos de injustias flagrantes e perturbadoras, da responsabilidade de autoridades e poderosos locais.

A LIA N A S EN TRE N OT VEIS LOCA IS E


A GRICULTORES POBRES

A anlise das componentes sociais que intervieram nos movimentos


rurais deste decnio e do complexo jogo das suas solidariedades e hostilidades do-nos alguns indicativos sobre o processo de mudanas que tinha
vindo a verificar-se nos campos portugueses.
No domnio da fiscalidade estadual, sabe-se que o seu peso, proporcionalmente ao conjunto dos encargos que pesavam sobre os agricultores,
era em Portugal muito inferior ao da generalidade dos pases europeus do
Ocidente no final do Antigo Regime. O endurecimento das exaes desencadeiam alguns conflitos, como vimos. Mas, alm de no terem atingido a

203

Jos Tengarrinha

virulncia dos do sculo XVII, ao contrrio destes no mostram extensa solidariedade vertical, desde os nobres aos camponeses pobres. O agravamento pesa em especial sobre as camadas baixas, no apenas porque a sua predominante agricultura de subsistncia no registrara aumento de produtividade e at denunciara generalizado decaimento (e assim era puncionada
uma riqueza em decrscimo) como tambm porque acabavam por ser elas
as principais prejudicadas com as isenes dos privilegiados (no sistema de
encabeamentos, as isenes de uns agravavam outros). Assim, nos protestos das camadas rurais inferiores contra tributaes da Coroa, vislumbra-se,
como no primeiro vintnio da segunda metade do sculo XVIII, o duplo
sentido de uma contestao anti-senhorial e contra uma pequena nobreza
e notveis locais que, legitimamente ou no, gozavam de tais isenes.
Nos conflitos sobre pastos, os pequenos agricultores e criadores tiveram de enfrentar a presso crescente dos criadores de gado que pretendiam
expandir os seus domnios. Aqueles tinham, porm, meios limitados e frgeis para se opor fora destes, pouco mais lhes restando do que o protesto e o apelo ao monarca. Tanto mais que, como se disse, os ricos proprietrios e criadores gozavam freqentemente dos favores das autoridades locais, que lhes cobriam, at, aes arbitrrias e abusivas.
Outras situaes em que era visvel o conluio entre gentes da governana e poderosos locais eram as especulaes sobre preos, que s cmaras cabia evitar em primeiro lugar, e as taxaes de salrios. Como numerosas vezes ocorreu no passado, vimos, por exemplo, a Cmara de Coimbra, em 1814, ceder ao poder dos monopolistas, no tomando medidas
para impedir que estes ocultassem os gneros de primeira necessidade a fim
de provocar escassez e encarecimento deles; e, no mesmo ano, em Santarm, a Cmara atuar ao sabor da vontade dos lavradores de vinhas para que
os salrios fossem taxados a partir de fevereiro; entre muitas outras situaes com menor repercusso.
Assim, o poder administrativo local e o poder de uma burguesia rural
com fora econmica considervel em muitos casos se encontravam estreitamente entrelaados, ao ponto de serem at representados pelas mesmas pessoas.
Diferente, porm, era a posio das administraes locais perante as
vedaes de terras, mesmo quando executadas por poderosos e influentes
proprietrios. Nestes casos, com freqncia, viam-se as cmaras lesadas
por lhes serem retirados espaos que at a arrendavam juntarem-se aos
pequenos agricultores nas mesmas aes de protesto. Desempenhou o quadro institucional aqui, pois, algum papel mediador.
Todas estas linhas conflituais mantm as caractersticas qualitativas essenciais do sculo anterior (variando apenas a intensidade), o que j no acontece
com as de natureza anti-senhorial, que apresentam diferenas considerveis.
Naquelas, predominara a solidariedade horizontal das camadas sociais
mais baixas contra as mais abastadas. Tratava-se de lutas contra a expanso do

204

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

individualismo agrrio e no interior de setores capitalistas com algum avano


no domnio agropecurio, quer de pequenos contra grandes agricultores e
criadores de gado quer de assalariados contra lavradores de vinho e po.
As lutas anti-senhoriais, ao contrrio, desenrolam-se no interior do
prprio sistema dominante. Na segunda metade do sculo XVIII, em Portugal, vimos essas lutas terem como principais ou mesmo exclusivos protagonistas os detentores de pequenas exploraes (abaixo dos 3 a 4 hectares),
que possuam a terra em diversos graus, sem serem dela proprietrios (a
chamada, ento, propriedade imperfeita). Constituam aqueles que costume designar por camponeses. Era a expresso da crise generalizada que
atingia os que trabalhavam terras sujeitas a mais pesadas imposies senhoriais e que se agravou aps a dcada de 1760-1770.41
So idnticas razes estruturais, de resto, que desenham uma cronologia no muito distante em outras regies da Europa. Em vrias partes da
Frana, como na Borgonha, assinalam-se conflitos anti-senhoriais dispersos
e pontuais na primeira metade do sculo XVIII, que se animam a partir de
1750 e se desencadeiam aps 1780;42 na Aquitnia, no fim do sculo XVIII,
os rendimentos estagnam, bloqueado como estava o desenvolvimento agrcola pela falta de inovao nos sistemas de cultura, nas tcnicas e nos instrumentos, devido escassez de investimentos, o que deixava para o agricultor
mais dependente do regime senhorial uma parte menor do que no passado.43
Numa primeira fase da luta anti-senhorial no se v, por isso, terem
esses pequenos agricultores e seareiros significativos apoios acima de si. A
horizontalidade da solidariedade social era, ento, a caracterstica dominante, sendo raras as excees.44
J ao longo do ltimo quartel do sculo XVIII e primeiros anos do
XIX, porm, haviamos assinalado casos de solidariedades verticais nestes
conflitos. Mas no decnio seguinte s Invases que o fenmeno atinge
maior expresso. Na origem, causas de diferentes naturezas.
Antes de tudo, a influncia exercida pelas referidas novas dinmicas
sociais que se seguiram s Invases, em que as camadas inferiores no s
adquiriram legitimidade social para a rebeldia como estiveram ao lado dos
notveis locais na mesma luta nacional, superando assim tradicionais barreiras psicolgicas. Alm disso, a aliana entre eles mostrava tendncia para
se estreitar com a evoluo da situao material dos poderosos locais em
face do domnio senhorial. Nestes, freqente encontrarmos os que, alm
de terem beneficiado do recebimento de terras em enfiteuse (julgo, com
efeito, que seriam enfiteutas na sua maioria), possuam exploraes foreiras adquiridas aos camponeses arruinados, bem como terras prprias destes (como verificamos, extensamente, aps meados do ltimo quartel do
sculo XVIII, em particular no Centro Litoral). Estavam, assim, ligados ao
complexo senhorial pelas vantajosas concesses enfituticas que este lhes
fizera, contra ele na qualidade de foreiros em seus domnios e mais aut-

205

Jos Tengarrinha

nomos pelas terras prprias que tinham vindo a adquirir. Condies materiais e psicolgicas favorveis, pois, ao aumento da sua interveno na luta
anti-senhorial e sua convergncia nessa luta com os camponeses pobres
que sempre a haviam mantido.
Assiste-se, ento, a um fenmeno de grande significado poltico: no
apenas no Centro Litoral como noutras partes do Reino, as cmaras (onde
recuara a influncia dos donatrios e aumentara a dos notveis) passam a
apoiar mais decididamente os agricultores (ricos e pobres) na sua luta contra
os donatrios religiosos. Tal se verificou, sobretudo, a propsito das prestaes raoeiras, nomeando louvados que se opunham aos indicados pelos senhorios ou seus contratadores de rendas para a avaliao das produes.
Esta solidariedade reforou-se quando o referido reformismo de Estado criou condies polticas favorveis contestao dos encargos senhoriais e em tempo e locais em que as confrontaes sobre terras comuns no
atingiam grande expresso. E quando, em 1813, com o incio da longa tendncia para a baixa dos preos, esses notveis locais, produzindo para
mercado, so os mais duramente atingidos, ao contrrio da agricultura de
subsistncia. V-se, ento, as pessoas mais distintas de algumas terras
aliarem-se a pequenos agricultores e at assumirem a sua liderana na oposio s avaliaes das produes para determinao dos quantitativos dos
encargos e na luta pelas isenes estipuladas pelo Alvar Rgio de
11.4.1815. significativo que, nos documentos emanados dos agricultores,
pela primeira vez os donatrios apaream pejorativamente designados
como aristocratas, marcando ntida clivagem com todos os outros que
no beneficiavam dos favores rgios.
Tal aliana social em regies de mais dura conflitualidade senhorial e
a utilizao das cmaras como instrumento poltico dessa aliana no combate ao velho regime so fatos que no podero deixar de ser tomados em
conta para a compreenso das condies que favoreceram o desencadeamento do processo liberal vintista.

IN QUIETA O E IN SEGURA N A N OS CA MPOS


Ser preciso ter em conta, tambm, que esta movimentao nos anos
que imediatamente antecederam a Revoluo liberal se inseria num quadro rural marcado por fortes sinais de instabilidade psicosocial.
Com efeito, nos campos, o fim da guerra no afastara a insegurana,
devido ao aumento da marginalidade e do banditismo. Soldados desmobilizados ou desertores, fardas esfarrapadas, alguns ainda com os fuzis, assolavam estradas e lugares. Queixavam-se os governantes de que os habitantes das terras invadidas ainda durante algum tempo andaram dispersos, desenquadrados das administraes das suas localidades, habituados a uma
vida errante e insubordinada, no acatando leis nem autoridades.45

206

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

Aps as severas m edidas repressivas tom adas qu an to ao Alen tejo


(Port. 26.12.1812), as qu adrilh as passaram a assolar a Estrem adu ra e o
Algarve, com eten do sacrilgios e rou bos de toda a espcie, violan do as
igrejas e os prprios vasos sagrados, sem tem or de Deu s n em do severo
castigo das leis (Port. 6.2.1816).
A partir de 1814, aumentam os sinais de inquietao do esprito pblico. A censura recrudesce sobre os jornais. Em 12 de maro de 1817 ainda antes, pois, de declarada a conspirao de Gomes Freire o intendente
geral da Polcia, Barbosa de Magalhes, enviou uma circular urgente aos
corregedores de todas as comarcas do Reino, pedindo-lhes informaes regulares sobre o estado do esprito pblico.46 Os relatos dos corregedores e
juzes de fora mostravam preocupao poltica sobre o quadro rural, onde
havia indcios de instabilidade psicolgica coletiva, de norte a sul.
As gentes das provncias viviam em sobressalto sob o efeito dos mais
variados boatos: dizia-se estar iminente uma invaso de tropas espanholas
e que o monarca portugus havia cedido o Reino Espanha em troca de
Montevidu, falava-se na morte de 4 mil soldados portugueses em combate no Rio Grande e que, por isso, mais tropa iria de Portugal para o Brasil,
asseverava-se que D. Joo havia sido assassinado, ao passo que outros,
messianicamente, garantiam que estava prestes a chegar ao Tejo...
Entre os fatos que mais forte preocupao e instabilidade provocavam
nas populaes rurais, avultavam os de natureza militar, que nelas tinham
gravosas incidncias. Enquanto se tratara de rechaar o invasor do Pas, o
Exrcito era obviamente indispensvel, no sendo contestada nem a incorporao nas foras regulares nem a colaborao nas foras populares organizadas. Sado o ltimo soldado francs do Reino, porm,j menos compreensvel era a incorporao: as deseres e fugas foram em tal nmero que
o Governo se viu na necessidade de tomar medidas muito severas. Ainda
muito menos aparecia justificvel quando, aps a vitria definitiva sobre Napoleo, a paz voltou Europa e nenhum perigo externo ameaava o Reino.
Assim, a formao de um corpo militar, designado Voluntrios Reais
do Prncipe, para prestar servio no Brasil, e que embarcou em 1815, a
nova expedio enviada no ano seguinte para intervir na guerra do Rio da
Prata, de acordo com o plano de incorporao da Cisplatina no reino do
Brasil, o envio de um corpo de interveno, em 1817, contra a revolta de
Pernambuco, levantaram visvel descontentamento nos campos. Alm das
sadas de grandes somas para sustentar estas campanhas militares em defesa dos interesses do Brasil, ao mesmo tempo que se registrava maior presso tributria em Portugal. Com efeito, a necessidade de mandar anualmente a importncia de 600 contos de ris em metal para manter o corpo
expedicionrio portugus pesava tanto sobre o oramento pblico que, em
junho de 1820, os governadores do Reino informavam a Corte no Rio de
Janeiro da impossibilidade de continuar a faz-lo. Agravava, alm disso, o

207

Jos Tengarrinha

descontentamento no Exrcito, que no aceitava sofrer de vrios meses de


atraso nos pagamentos quando era despendida to grossa quantia numa
causa estranha gente do Reino.
Mas o maior descontentamento nas provncias rebentaria com o plano de recrutamento concebido pelo marechal ingls Beresford (membro da
Junta Governativa do Reino), cuja execuo foi iniciada nos primeiros meses de 1817: aumentava consideravelmente os efetivos militares portugueses
(de linha e milicianos), sendo muito lesivo para as populaes rurais, tanto
mais que, ao contrrio do habitual, no tinha em conta a falta que certos braos faziam sustentao de exploraes agrcolas. De uma atitude surda de
descontentamento passa-se, em alguns meios rurais, a aes frontais. H notcias de protestos mais vivos, por vezes emocionados, e at distrbios, de
maro a princpios de julho, contra o que o povo denominava o plano do
marechal e o envio de expedies para o Brasil: entre outras localidades,
Bragana, Linhares, Vila Real, Lamego, Trancoso e ainda Vila Nova de Ourm, Montemor-o-Novo, vora. Situavam-se, predominantemente, na parte
interior do Reino e em algumas das zonas rurais que mais haviam sofrido
com as Invases. Foi este mais um fator, alm dos j referidos, para provocar
o aumento das deseres e as fugas ao recrutamento, de que resultou ainda
maior agravamento da marginalidade e da criminalidade.47

CON CLUSES
Indaguemos, antes de tudo, da relao entre as tenses e contestao que vimos desenvolverem-se no espao rural portugus aps 1810 e o
desencadeamento da Revoluo de 1820.48
Se adotssemos o critrio, to limitado, e de que tanto se abusou no
passado, de uma simples relao de causa e efeito entre alteraes de preos e mudanas sociais e polticas, poderamos ser tentados a sobrevalorizar
o fato de a Revoluo liberal se inserir numa baixa de longa durao, que
se inicia em princpios do segundo decnio do sculo XIX e s amortece cerca de 1825-1826; de que poderia sair a explicao da apatia das massas
rurais pobres (beneficiadas com o po barato, sem que a sua agricultura de
subsistncia sofresse com isso) e alguma maior agitao dos agricultores
produzindo para mercado, fortemente prejudicados com a conjuntura dos
preos e do comrcio externo e interno.
Quando estudamos os movimentos agrrios a partir do seu interior
e no de simples curvas de ndices econmicos verificamos que eles se
relacionam tanto com dinmicas gerais da sociedade, de que os preos so
uma das expresses, como com fatores prprios da sociedade rural, de diversas naturezas. O que nos coloca a questo de como o mundo rural se insere no conjunto da sociedade.

208

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

O fato de a lgica dos campos no estar visivelmente entrelaada


em intrigas da Corte nem apresentar uma imediata relao com os fatos polticos tem conduzido na historiografia portuguesa a sistemticas incompreenses sobre como se relacionam cidade e campo, mundo poltico e
mundo rural. indispensvel ter em conta os ritmos prprios, as formas e
simblicas especficas da expresso e da vivncia do mundo rural. A reduzida mobilidade social deste no poder confundir-se com marginalidade e
ausncia poltica. A compreenso desse relacionamento s possvel num
nvel meditico mais complexo.
Verificamos que as incidncias do mundo rural na vida pblica portuguesa se foram acentuando ao longo do sculo XVIII. A produo e o comrcio e consumo interno e externo dos gneros agrcolas, os distanciamentos fsicos e psicolgicos, as insuficincias e as virtualidades desse mundo so condicionantes das decises polticas gerais de que os governantes
mostram ter conscincia cada vez mais clara. Traduz-se numa preocupao
que no desperta apenas em momentos de crise mais aguda, mas que passa a ser constante. Traduz-se, tambm, no apenas na adoo de medidas
pontuais quando escasseava o trigo no Reino ou aumentavam as dificuldades externas de colocao do vinho, mas numa tendncia para ver os problemas agrrios na sua globalidade, ainda que com dificuldade de inseri-los
no conjunto da sociedade.
A falncia das inovadoras medidas do marqus de Pombal, quanto
agricultura, resultou, por um lado, de no obedecerem a um consistente
projeto global e no terem levado at s ltimas conseqncias algumas
importantes intenes reformistas (entre as quais, uma ampla desvinculao e maior mobilidade da terra, diminuio considervel dos imensos bens
das corporaes religiosas, maior aproximao do cultivador terra que trabalhava, princpio de eqidade apoiado em Bartolo e no Direito Natural);
e, por outro lado, do fato de ter governado impondo medidas administrativas, de cima, sem ter em conta as novas realidades e dinmicas que tinham
vindo a desenvolver-se no quadro rural, nomeadamente as resultantes do
aumento da mercantilizao da produo agrcola e das conseqentes exigncias de uma maior rentabilidade da terra.
Na segunda metade do ltimo quartel do sculo XVIII, o Trono de
D. Maria I compreendeu que era indispensvel aumentar a sua capacidade
de atendimento da sociedade em geral e, em particular, do mundo rural.
uma alterao muito importante no relacionamento entre o poder rgio e
a sociedade.49 No deixa de derivar da preocupao de descomprimir as tenses que se acumulavam nos campos, tanto mais preocupantes quanto se
conhecia o papel que tinham tido na Revoluo Francesa. Mas havia, tambm, a conscincia da necessidade de que o Trono criasse condies favorveis para uma comunicao mais fluida da base social para o topo da hie-

209

Jos Tengarrinha

rarquia poltico-administrativa, aumentando a sua capacidade de consulta


das realidades e, assim, a sua eficcia. A exemplo, alis, do que j ocorrera
e estava a ocorrer noutros pontos da Europa.
Segu n do o levan tam en to do m ovim en to peticion rio pr-liberal a
que procedemos quanto a algumas comarcas, registramos um acrscimo a partir de 1780-1785, decrscim o en tre 1805-1810 e estacion rio en tre 18101815. Mas o fato m ais m arcan te a su bida espetacu lar registrada aps 1815,
o qu e se relacion ar com o au m en to das expectativas criadas em face das
m edidas reform istas em an adas do Rio de Jan eiro. H, assim , em vsperas da
Revolu o liberal, u m en trelaam en to m ais estreito en tre o cam po e o Poder, m an ifestan do este m aior preocu pao de dar respostas qu ele.50
Respostas n ecessrias e u rgen tes todos recon h eciam em face da
gravssim a crise econ m ica, fin an ceira, poltica e m oral qu e o Rein o atravessava. Mas, com o se viu , foram in decisas e lim itadas, resu ltan tes de u m poder
cen tral bicfalo e con traditrio e de u m Estado m u ito fragilizado; e, por isso,
m ais do qu e n u n ca, receoso de falta de apoio social, procu ran do n o perder
o das su as bases tradicion ais e n o afastar o das cam adas m dias e baixas.
A presso rural ir contribuir para pr em maior evidncia a insuficincia dessas respostas e o bloqueamento do curso reformista e alimentar,
com base concreta, o intenso debate terico poltico-jurdico nos anos imediatamente anteriores Revoluo.
Mostrava-se, assim, a inviabilidade do tmido projeto de reformas a
partir de dentro, mas no a viabilidade de um projeto alternativo gerado
pelo campo. Seria necessria uma formulao global, para que no tinha
condies.
Uma parte considervel dos estratos sociais baixos encontrava-se dividida em conflitos no s particularizados como de sentido contrrio, simultaneamente contra a opresso senhorial e contra o avano do capitalismo nos campos.
certo que nos anos imediatamente anteriores Revoluo e em zonas de mais pesada opresso senhorial, como referimos, se assiste acutilncia poltica de algumas cmaras, em aes anti-senhoriais instigadas ou
at lideradas por notveis locais (nobreza rasa, lavradores abastados, em
geral enfiteutas, em parte identificados com o que se poderia designar de
burguesia rural).
A verdade, porm, que tanto na gesto das terras concelhias como
em vrios outros aspectos, em boa parte do Reino, se v a organizao municipal no defender o interesse geral, mas cometer abusos a favor dos prprios vereadores e ricos proprietrios e criadores a exemplo do que acontecia em Espanha, como Joaquim Costa denunciou, designando-os como
uma plutocracia provincial.51 Por isso, foram os juzes de fora (que presidiam s cmaras) os alvos privilegiados da ira popular em momentos de
maior convulso poltica (1808-1810 e 1820-1823). Desta maneira, no ti-

210

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

nham as cmaras condies para ser um instrumento poltico representativo da generalidade das aspiraes anti-senhoriais.
Por outro lado, estas elites locais no eram agentes de ruptura com
o regime senhorial, relativamente ao qual tinham, de resto, no poucos
pontos de compromisso, em especial no plano das concesses enfituticas.
Impeliam as cmaras defesa dos interesses gerais da comunidade contra
os senhorios, sobretudo, quando reconheciam serem favorveis as condies polticas gerais: assim, em 1815-1820, sob o impulso reformista do Trono, e em 1820-1823, ainda com maior expresso, quando estavam criadas
condies polticas favorveis reforma dos direitos senhoriais e foi alterada por via eletiva a composio de numerosos elencos camarrios, de acordo com a nova legislao liberal.
Tal enquadramento social e institucional imprime presso rural
no um sentido revolucionrio, mas reformista. O que se traduzir no escasso alcance transformador da legislao vintista. Em contraste, pois sobretudo nas zonas onde tinha sido e estava a ser mais intensa a luta antisenhorial , com as expectativas levantadas pela Revoluo liberal e os trabalhos das Cortes, que se anunciava irem acabar com os forais e os dzimos,
o que no aconteceria.
O mundo poltico liberal no alheio a tudo isso. Vrios destacados
dirigentes liberais, quer por razes profissionais (corregedores, juzes ou advogados ligados a pleitos nos meios rurais), quer familiares e pessoais (filhos de agricultores ou eles prprios foreiros e enfiteutas) acompanharam
muito de perto as tenses rurais que antecederam a Revoluo. No surpreende, pois, que o Governo e os deputados liberais se tenham mantido
muito atentos s reaes do campo, sendo falsa a idia generalizada na historiografia portuguesa de que estiveram de costas viradas, como dois mundos que se ignoraram. Da, se compreende o grande esforo que os liberais
fizeram sem comparao com qualquer governo do passado para ultrapassar as seculares distncias, incompreenses e suspeitas entre o mundo
rural e o mundo urbano.
Primeiro, houve que conter as impacincias, com o concelho de se
aguardar a lei de reforma dos forais, que traria grandes benefcios. Ao mesmo tempo, dotavam-se os intermedirios culturais (advogados, burgueses
letrados e clrigos liberais espalhados pelas provncias) com instrumentos
ideolgicos adequados: jornais, livros, editais, folhetos, catecismos, manifestos, proclamaes, circulares quer da iniciativa do Governo e das autoridades militares quer de algumas cmaras.52
Tentando usar a seu favor a influncia clerical junto das populaes
rurais, as Cortes liberais resolveram que os arcebispos e bispos deviam divulgar pastorais incitando os seus diocesanos a aderir e obedecer ao novo
governo, esclarecendo-os de que as reformas no feriam a religio tradicio-

211

Jos Tengarrinha

nal (Res. 26.2.1821), e que os procos esclarecessem nas homilias as vantagens do novo regime e a no conflitualidade de princpios entre a Regenerao e a religio (Decr. 28.2.1821, reforado com a Port. 1.10.1821).53
Mas a operao de propagan da liberal m ais am pla dirigida diretam en te s popu laes dos cam pos desen volveu -se com base n a lei de reform a dos
forais. Logo u m m s aps a prom u lgao desta, u m aviso da In ten dn cia Geral da Polcia (5.7.1822) m an dava qu e ela fosse lida e explicada s popu laes, em qu atro dom in gos segu idos, em todas as cm aras do Rein o.54
Este esforo de propaganda no deixaria de ter efeitos, sobretudo, na
zona compreendida entre o Douro e o Tejo. A lei de reforma dos forais seria, em vrios locais, o ponto de partida para uma contestao global dos direitos senhoriais, indo assim muito alm das suas limitadas formulaes.
Provocaria um recrudescimento da rebeldia onde a opresso senhorial era
mais dura, sobretudo quando baseada em penses raoeiras e dzimos. Seria essa a razo principal da abolio da lei em 1824 (um ano aps a queda
do regime constitucional) e no os efeitos lesivos que dela resultariam para
os senhorios. A abolio vai provocar uma reao de vrios senhorios no
sentido do regresso a imposies ainda mais pesadas. V-se, ento, em diversos locais, as populaes que em 1822 e 1823 haviam contestado o limitado alcance da lei, aps a queda da monarquia constitucional apoiarem-se
na mesma lei para enfrentarem aqueles senhorios. Sem que isso significasse, porm, identificao poltica quer com o regime absoluto quer com o
regime liberal.
Diferente era a situao em outras partes do Reino, nomeadamente
no Minho, regio transmontana e parte da Beira Alta. A, nas zonas onde
predominavam a enfiteuse e a subenfiteuse (sobretudo no Minho e parte
de Trs-os-Montes) eram generalizados os benefcios da estabilidade da
posse da terra quer para os que a trabalhavam quer para os que beneficiavam de foros enfituticos. Eles viam com apreenso a legislao liberal que
desencadeara uma certa confuso entre bens da Coroa e bens patrimoniais,
pois a contestao rural estendeu por vezes as redues enfiteuse particular, numa contaminao pelas penses foraleiras que as Cortes haviam tentado a todo o custo evitar. Nestas regies, a mobilizao das populaes rurais contra o regime liberal foi facilitada, pois, pelos receios sobre a segurana da propriedade. A insegurana dos proprietrios era referida nas Cortes como um fator de desapego ordem constitucional. Dever ter-se em
conta, tambm, a influncia pessoal de grandes senhorios laicos que na regio duriense se encontravam presentes em maior nmero, nos seus domnios: mantinham com as populaes rurais uma relao simultaneamente
de opresso e proteo (alguns tinham mesmo chefiado a luta contra os invasores e defendido os povos), numa atitude que poderamos qualificar
como de duro paternalismo. Alm de que era a, tambm, que a igreja
conservadora exercia maior influncia, como se viu nas lutas de 1808, que

212

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

por isso tiveram um carter dominante de guerra religiosa contra os mpios jacobinos franceses e, agora, contra os liberais portugueses.
A interpretao do comportamento do rural a partir de motivaes
exclusivamente ideolgicas, sem ter em conta a ligao s suas condies
materiais de existncia nem a complexidade da relao que entre esses planos se estabelece, tem conduzido, pois, a uma viso redutora na historiografia portuguesa. A idia de que o projeto do rural se limitava ao absolutismo ou ao miguelismo fazia esquecer o essencial: no se pode identificar a sua contestao social com um modelo ou um projeto poltico.
Nem sequer a afeio de uma parte do campesinato ao miguelismo
se poder confundir com apoio ao regime absoluto e organizao senhorial da sociedade em que este assentava. Tenho defendido que tal afeio,
como fenmeno coletivo bastante generalizado, encontra a sua mais forte
raiz no vazio psicossocial que se gerou nas populaes, sobretudo rurais,
mesmo com alguns tons dramticos, quando da ida da Corte para o Brasil
em dezembro de 1807, aproximao das tropas de Junot. E agravado com
a longa permanncia do outro lado do Atlntico, muito alm da sada das
tropas francesas do territrio nacional. O que fez correr, nas provncias, o
rumor de que o monarca abandonara o Reino, entretanto confiado a uma
Junta Governativa integrada por um general ingls, e estava mesmo disposto a entreg-lo Espanha, em troca de territrios a sul do Brasil (regio cisplatina). Outros tinham o anseio de que tal como no passado, em momentos de crise nacional, se visionara a chegada do rei Sebastio, perdido
na derrota de Alccer-Quibir tambm D. Joo VI estava prestes a chegar
ao Tejo. Este vazio foi agravado com a morte do rei e a crise de sucesso que
se seguiu, considerada afastada a investidura do primognito D. Pedro por
se ter assumido como imperador de um reino independente.
O fundo da questo era que, ao transferir o centro dos sentimentos
de dependncia e solidariedade dos portugueses da ordem pessoal, o rei,
para a ordem impessoal, a ptria, operava-se uma verdadeira revoluo
sentimental: porm, o valor simblico do primeiro diminura (mero primeiro magistrado, que tambm devia obedincia s decises dos que representavam a Nao) sem que a segunda j se impusesse, pois assente num conceito de soberania nacional ainda no suficientemente estruturado, numa
base muito instvel e frgil de organizao jurdica da democracia. Criavase, assim, um vazio de representao de poder e autoridade gerador de forte instabilidade psicossocial, que D. Miguel preencheria. Seria ele a consubstanciar, de algum modo, um projeto unificador, mas socialmente retrgrado e fora do quadro constitucional.55
O fenmeno do apoio de largas massas rurais a D. Miguel est longe
de significar, pois, a sua identificao com o regime absoluto e a opresso
senhorial. Tentar preservar os valores tradicionais como garantia de segu-

213

Jos Tengarrinha

rana e estabilidade no implicava defender o sistema social que os gerava. Eram valores que, na mente do rural, existiam fora de uma organizao social determinada e temporalmente circunscrita, como se fossem de
todos os tempos e lugares.
Estava impedida, assim, a possibilidade de o campesinato desenvolver ao e projeto autnomos no processo transformador da sociedade de
Antigo Regime e desempenhar papel relevante na construo do novo regime. No estava, porm, eliminada a influncia sobre o Poder que a movimentao rural exercia, correspondente a fases do desenvolvimento desta: o mbito local, onde predominava o isolamento das comunidades campesinas, criando dificuldades transmisso; a ressonncia dos alarmes dos
agredidos nas instncias do Poder; e as consonncias desses alarmes com
aqueles que julgavam dispor de solues. Assim, o encaixe do protesto popular agrrio nas estruturas da sociedade e do Poder vai-se alterando, criando diferentes dinmicas que esto presentes quer nas propostas reformistas
pr-liberais quer nos trabalhos das Cortes vintistas. Contribuem para radicalizar as posies de uns, no sentido no da reforma mas da abolio dos
forais (o que s seria feito em 1832), e para atemorizar outros, receosos de
que a abolio dos foros foraleiros arrastasse abolio dos foros enfituticos, provenientes de emprazamentos particulares, de que beneficiavam.
As novas dinmicas da interveno popular aps as Invases, na seqncia das linhas de contestao rural desde o ltimo quartel do sculo
XVIII, do argumentos aos que defendem a necessidade inadivel de reformas e tornam mais ntidas as clivagens no campo liberal, aps a Revoluo.
Mas no se poder dizer que a extino do Antigo Regime e o advento da
sociedade liberal ocorram a culminar um processo opondo irredutivelmente classes feudais e classes burguesas. O processo ser conduzido como
se deduz do que atrs ficou brevemente exposto por um bloco social, dominado por um senhorialismo renovado, em que a burguesia tem um papel subalterno. O percurso ser feito mais pela sucesso de readaptaes
do que de descontinuidades.

214

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

N OTA S
1. ANTT, CF, Consultas, L. 31,f. 67.
2. Manifesto das Contendas do Cabido da S de Coimbra com o Prior e Moradores do Couto de Vila
Nova de Monsarros (Annimo). Lisboa: Impresso Rgia, 1815.
3. Muito abundante documentao sobre este assunto consultamos em ANTT, MJ, vrios maos
(ex. n. 184 e 233) e CF, Consultas, diversos livros (ex. n. 25).
4. Os que arrendavam a cobrana das multas sobre os que punham os seus gados a pastar, irregularmente, em terras que no lhes pertenciam ou em perodos no-autorizados.
5. Balanas Gerais do Comrcio do Reino de Portugal..., elaboradas por Maurcio Teixeira de Morais (INE, AHMOP, e ANTT). Adrien Balbi, Essai Statistique, I, p. 152. NEVES, A. das Memria sobre
os Meios de Melhorar a Indstria Portuguesa... In: Obras Completas. Porto: Afrontamento, s.d. v.4,
p.125. E ALEXANDRE, V. Os Sentidos do Imprio. Questo Nacional e Questo Colonial na Crise do Antigo
Regime Portugus. Porto: Afrontamento, 1993. p.787-92.
6. ANTT, MNE, Cx. 899.
7. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 316, f. 110, conta de 7.1.1815 e f. 125v.-126, conta de
21.2.1815 e L. 317, p.50-1, conta de 16.2.1816 e p.201-5, conta de 17.9.1816.
8. ANTT, CF, Consultas, L. 25, f. 12; MR, Governadores do Reino..., L. 316, f. 110 e L. 317, p.201205, contas, respectivamente, de 7.1.1815 e 17.10.1816.
9. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 315, f. 269-273 v., conta de 15.1.1814.
10. ANTT, MR, M. 356, n.16.
11. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 319, p.452-65, conta de 2.6.1820.
12. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 319, p.126-8.
13. Ver, por exemplo, ANTT, DP Corte..., M. 612, n. 9 e M. 613, n. 1.
14. Ver, por exemplo, o movimento de protesto das populaes da rea de Coimbra, em julho de
1814, que teve considerveis repercusses (ANTT, DP Beira, M. 367, n. 27 768).
15. ANTT, MR, M. 460.
16. Nesse ano, a renda lquida do Estado foi de 5.625.541$694 ris e, s com o Exrcito, os gastos
subiram a 5.971.334$122. Para o conhecimento da situao no Reino e das polticas de Lisboa e do
Rio de Janeiro neste perodo foi fundamental o estudo exaustivo que fizemos da correspondncia
trocada entre o Governo de Lisboa e a Corte no Brasil entre 1808 e 1821: ANTT, MR, Governadores do Reino. Registro de Cartas ao Prncipe Regente (1808 a 1821), LL. 314-321 e Ordens do
Prncipe Regente para os Governadores do Reino (1809 a 1820), LL. 380-383.
17. Globalmente, a mdia anual dessas receitas passou de 9.299.335$185 no trinio de 1801-1803
para 6.444.718$274 ris em 1809-1811, com base em dados de um relatrio redigido em 31.5.1812
e enviado para o Rio de Janeiro (ANTT, Ministrio dos Negcios Estrangeiros, Cx. 894, s.n.).
18. Admitiam ter, assim, a segurana da pontualidade com que lhes pagavam os juros e sem o encargo de tributos Fazenda.
19. Ter resultado da maior eficcia da Secretaria de Estado dos Negcios da Fazenda (cuja competncia e expediente passaram a ser regulados pelo Decreto de 8.10.1812), bem como do perodo de
paz e da recuperao econmica que se vive.
20. ANTT, CF, Consultas, L. 24, f. 70 v.
21. ANTT, DP - Beira, M. 209, n. 13 637.
22. Considerando em conjunto as alfndegas e todos os mais rendimentos dos cofres de correntes,
do trinio de 1801-1803 para o de 1809-1811 h um abaixamento da receita anual mdia de
7.290.954$759 para 5.082.232$852.
23. ANTT, DP Beira, M. 160, n. 11 490.
24. A receita anual mdia, no trinio 1801-1803, fora de 121.605$697, ao passo que no de 1809-

215

Jos Tengarrinha

1811 descera para 30.713$426


(ANTT, MNE, Cx. 894).
25. ANTT, CF, Consultas, L. 26, f. 6.
26. ANTT, CF, Consultas, L. 30, ff. 145 e 188.
27. ANTT, CF, Consultas, L. 31, f. 67.
28.Ver TENGARRINHA, J. Venda dos Bens da Coroa em 1810-1820: os Reflexos de uma Crise Nacional. Anlise Social, v.XXVIII (122), p.607-19. 1993. (3)
29. o que se depreende das informaes, sobre o estado do esprito pblico nas provncias, enviadas regularmente pelos corregedores de todas as comarcas do Reino ao intendente geral da Polcia,
aps circular urgente que este lhes dirigiu em 12 de maro de 1817 (ANTT, MR, M. 461).
30. No se nega a influncia, porventura decisiva, que D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares, ento ministro dos Estrangeiros e da Guerra no Rio de Janeiro e de conhecidas tendncias
anglfilas, teria tido na elaborao destas medidas em 1809 e 1810. Mas a verdade que, aps a
morte deste (janeiro de 1812), sairam do governo do Rio duas outras disposies mais lesivas dos
direitos senhoriais, sendo ento desembargador do Pao e depois ministro do Reino Toms Antnio de Vila-Nova Portugal, colaborador das Memrias Econmicas da Academia Real das Cincias
de Lisboa, mas to exacerbado antiliberal que em 1821, quando da chegada de D. Joo VI a Lisboa,
foi impedido pelo governo liberal de desembarcar.
31. Veja-se, sobretudo, a polmica entre Manuel Fernandes Toms, que seria considerado o patriarca da Revoluo de 1820, e o conservador Manuel de Almeida e Sousa de Lobo.
32. Relatrios secretos dos governadores do Reino para o Rio de Janeiro em 14.5.1810 e 27.3.1811
( ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 314, f. 102 v.-103 e f. 165-170).
33. Trata-se da Comisso para Exame dos Forais e Melhoramentos de Agricultura, criada s em
1812, e de que sairam pareceres que, alguns anos depois, iro informar os deputados vintistas e tambm a comisso encarregada de reformar os forais, aps o termo do primeiro perodo constitucional.
Apesar dos seus escassos efeitos prticos, os resultados dos trabalhos desta comisso tm muito interesse tanto do ponto de vista terico como para o conhecimento dos principais pontos que ento
opunham reformistas e conservadores ( ANTT, DP Corte, Estremadura..., M. 1530, n.16).
34. Relatrio dos governantes de Lisboa para o Rio de Janeiro em 24.8.1813 (ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 315, f. 217-19 v.).
35. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 316, ff. 108 v. ss.
36. ANTT, DP-Beira, M. 512, n. 38 322.
37. ANTT, DP-Beira, M. 372, n. 28 161 e M. 373, n. 28 261.
38. ANTT, DP-Beira, M. 352, n. 26758.
39. ANTT, DP-Corte..., M. 1972, n. 116.
40. Foi um perodo de abastana para os que usufruam de rendas e para os que detinham a terra
em elevado grau, mas de grandes dificuldades para os que estavam sujeitos a rendas e tinham, muitas vezes, ao mesmo tempo, de trabalhar como assalariados noutras terras. Tenha-se em conta que,
na segunda metade do sculo XVIII, a subida das jornas se atrasou muito sobre a dos preos.
41. Cf. LE ROY LADURIE E. Rvoltes et contestations rurales en France de 1675 1788. Annales
E.S.C., jan.-fev. 1974. p.11.
42. Cf. BOUTIER,J. Jacqueries en pays croquant. Les rvoltes paysannes en Aquitaine (Dcembre
1789-Mars 1790). Annales E.S.C., jul-ago. 1979. p.760-86.
43. Duas das excees mais significativas dizem respeito: uma, utilizao de meios de produo
fixos (banalidades), sobretudo as prensas em lagares de azeite e vinho que lavradores abastados
e rendeiros tinham tido meios para construir, facultando-os em melhores condies do que os senhoriais; outra, s restries ao comrcio agrcola, desde as portagens e medidagens ao relego.
44. Relatrio para o Rio de Janeiro em 27.3.1811 (ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 314, f. 165-70).
45. ANTT, MR, M. 461.

216

CONTESTAO RURAL E REVOLUO LIBERAL EM PORTUGAL

46. Informaes recolhidas de um conjunto documental, at agora no estudado, constitudo pelos relatos dos corregadores e juzes de fora ao intendente geral da Polcia sobre o estado do esprito pblico no Reino em 1817 (ANTT, MR, M. 461); alm de pasquins e panfletos e informaes
contidas nos Livros de Secretarias da Intendncia Geral da Polcia, de que utilizei uma parte na minha Histria da Imprensa Peridica Portuguesa, 2. ed., p.69-74 e 82-3.
47. No limitado espao deste artigo, apenas poderamos ficar s portas da Revoluo. O estudo que
fizemos das contestaes e lutas agrrias que se desenvolveram em Portugal nos primeiros anos do
liberalismo no cabia aqui.
48. Manifesta-se tambm, entre outras medidas, pela retomada das audincias rgias semanais ao
povo.
49. Aps a Revoluo liberal, abrem-se condies mais favorveis ao impulso do movimento peticionrio, que, em contraste com o carter organizado dos cahiers de dolances franceses de 1789,
apresenta uma predominante espontaneidade. Este movimento peticionrio do primeiro trinio
constitucional encontra-se na seqncia do anterior. At o formulrio usado ao dirigir-se s Cortes
liberais era idntico ao das antigas peties ao monarca instrudas pelo Desembargo do Pao: Soberano Congresso, Augusto Congresso, Vossa Majestade.
50. Colectivismo Agrrio en Espaa, 1.ed., 1899.
51. Ver, por exemplo, Coleo Geral e Curiosa de Todos os Documentos Oficiais e Histricos Publicados por Ocasio da Regenerao de Portugal desde 24 de agosto, Lisboa, Tip. Rollandiana, 1820;
ANTT, IGP, Correspondncias dos Corregedores das Comarcas; e, entre os vrios livros, DULAC, A.
M. Vozes dos Leais Portugueses. Lisboa: Impresso Rgia, 1820.
52. Sabe-se que muitos foram os procos que assim procederam e tiveram assinalvel influncia no
esclarecimento das populaes rurais. Porm, a maior parte do Reino teria ficado margem da influncia liberal dos clrigos, que foi em decrscimo do sul para o norte, sendo a maior resistncia a
do clero regular.
53. Alm do Algarve (onde foram abrangidas, pelo menos, todas as cmaras a barlavento de Faro),
temos notcias mais expressivas que nos chegaram de sesses efetuadas na regio entre o Douro e
o Tejo, onde as terras foraleiras eram em muito maior nmero e se haviam desenrolado as mais
agrestes lutas anti-senhoriais. Algumas dessas sesses assumiram particular significado: por exemplo, em terras dominadas pela poderosa Ordem de Cristo (comarca de Tomar), nos domnios do no
menos poderoso mosteiro de Alcobaa ou na regio de Feira-Aveiro e da Guarda, onde se localizavam importantes e exigentes donatrios eclesisticos e laicos. A, foram vivamente mostrados os
sentimentos anti-senhoriais das populaes rurais.
54. Desenvolvimento desta idia em TENGARRINHA, J. Da Liberdade Mitificada Liberdade Subvertida. Uma explorao no interior da represso imprensa peridica de 1820 a 1828. Lisboa: Colibri, 1993. p.76-7.
218 Dela saiu o trabalho Movimentos Populares Agrrios em Portugal. 1751-1825. Lisboa: Publicaes
Europa-Amrica, 1994. 2v. Entre as fontes em que me apoiei, em diversos ncleos de vrios arquivos, tiveram maior importncia os tribunais superiores do Desembargo do Pao e do Concelho da
Fazenda, a Intendncia Geral da Polcia e o Ministrio do Reino nos Arquivos Nacionais-Torre do
Tombo.

217

captu lo 12

D IVERSID A D E E CRESCIMEN TO
IN D USTRIA L
Miriam Halpern Pereira*

A sociedade portu gu esa oitocen tista, en tre 1820 e 1890, assen tava
n a atividade agrcola e n o com rcio extern o a ela ligada n u m a proporo
m aior qu e em qu alqu er ou tro perodo da su a h istria, a poca m edieval
excetu ada. Perdida estava a prin cipal base colon ial da econ om ia portu gu esa desde o scu lo XVII, o Brasil, as posseses orien tais eram in sign ifican tes
h m u ito, e as coln ias african as dem orariam a adqu irir papel de relevo.
En tre dois im prios, a econ om ia portu gu esa teve qu e adaptar-se n ova diviso in tern acion al de trabalh o. Algu n s setores da produ o agrcola, com
destaqu e para a vitivin icu ltu ra, adqu iriram prim azia n o com rcio extern o,
em proporo n u n ca an teriorm en te atin gida. A atividade in du strial viu o
seu escoam en to regridir violen tam en te: o Brasil in depen den te com praria
vin h o ou azeite portu gu s, ao lado do espan h ol, m as n o tecidos de lin h o,
algodo, seda ou l. Apen as ch apu s, sapatos, ren das con tin u aram ain da,
em bora em qu an tidade redu zida, a en con trar clien tela do ou tro lado do
Atln tico. A m em ria do m ercado colon ial perdido seria ain da perceptvel
em testem u n h os n orten h os do fin al do scu lo, to forte fora a su a m arca
n a proto-in d stria do n oroeste atln tico.
Ao sair do rescaldo dos an os 1808-1820, a an tiga estru tu ra in du strial en con trava-se destroada, com o os in qu ritos dessa poca o testem u n h am . Len tam en te prin cipia u m a recon verso. Revolu to o tem po das
gran des m an u fatu ras reais, das qu ais pou cas sobreviveriam , vai operar-se
u m a tran sform ao sem gran diosidade, tan to m ais discreta qu an to ser
acom pan h ada n algu m as regies por u m fen m en o de ru ralizao. Um a
recon verso qu e apresen ta traos com u n s com a evolu o n o n orte da Itlia, estu dada por Dewerpe.1 Men or dim en so das u n idades in du striais,
m aior articu lao com o ritm o da atividade agrcola, seria u m a form a de
redu o de cu stos, de m aior flexibilidade e adequ ao s flu tu aes da
procu ra qu e se situ ava a u m n vel in ferior. In ferior em qu an tidade, em
qu alidade. A recon verso, orien tada para o m ercado in tern o, far-se- em
fu n o da procu ra dos estratos da popu lao com m en or poder de com pra. o segm en to do m ercado m en os atin gido pelos artefatos estran geiros. Na regio do Porto, foram os tecidos m ixtos de seda e algodo qu e aju daram a sair da crise len tam en te, n a Covilh foram os baetes. O cresci-

219

Miriam Halpern Pereira

m en to in du strial ser con dicion ado pela con figu rao do m ercado in tern o,
en qu an to n o su rgem oportu n idades de in tegrao n o m ercado in tern acion al. A estru tu ra social do m ercado oferece oportu n idades desigu ais aos
diferen tes setores da in d stria. A elite abastada, o m elh or segm en to do
m ercado n o m u n do an terior "sociedade de con su m o", privilegia a produ o de qu alidade, qu e m esm o n o setor bsico da in d stria, qu e n esta
poca o txtil, ten de a ser de origem estran geira. A m atriz das relaes com erciais extern as delin eada desde o fim da prim eira dcada do scu lo facilitaria esta prefern cia.2
Aprofu n dar a con figu rao qu e a estru tu ra in du strial veio a adqu irir du ran te a segu n da m etade do scu lo XIX n este con texto, foi o n osso
prin cipal objetivo n esta abordagem de algu n s aspectos do crescim en to in du strial. Desen volvim en to in du strial, crescim en to fabril e m ecan izao
tem sido con siderados im plicita ou explicitam en te fen m en os equ ivalen tes. Aqu i qu estion a-se esta iden tificao, m ostran do qu e o crescim en to
in du strial pode ter assu m ido form as diversas, tal com o a h istoriografia tem
vin do a apon tar em relao a ou tros pases.3 A h iptese de qu e se partiu
n esta abordagem sobre as form as do crescim en to in du strial portu gu s oitocen tista assen ta n a idia de u m a possvel diversidade de opes n o esforo dos in du striais portu gu eses n a adaptao n ova diviso in tern acion al
do trabalh o n o scu lo XIX-XX. Essa diversidade, em bora presen te desde o
estu do pion eiro de Arm an do de Castro e n ou tros estu dos sobre a in d stria
oito e n ovecen tista, m erece ser objeto de u m a rein terpretao.

P EQUENA INDSTRIA E FBRICAS: UMA REAVALIAO


Os an os 70 a 80 so geralm en te con siderados com o coin ciden tes
n os pases in du strializados com a predom in n cia das n ovas form as de organ izao e de tecn ologia in du strial, iden tificadas de form a su m ria com a
revolu o in du strial.4 in teressan te averigu ar o pon to da situ ao n esse
m om en to em Portu gal. Tem os a sorte de dispor para esse efeito do in qu rito de 1881. Nen h u m ou tro in qu rito escala n acion al, reu n iu equ ivalen te m assa de in form ao sob a form a de in qu rito in direto e direto. Parece ter h avido particu lar dispon ibilidade dos in qu iridores para percorrem
o pas e das in stitu ies para editarem este vasto m aterial.5 O en qu adram en to tem poral ser alargado, a m on tan te e a ju san te, com base em docu m en tao vria, ou tros estu dos, in qu ritos parciais e estatsticas de com rcio extern o. Privilegiam os dois setores, o algodoeiro e os lan ifcios
pela su a relevn cia n a econ om ia e n o m ercado de trabalh o. Em term os region ais isso sign ificou dar particu lar relevo ao distrito do Porto, Covilh

220

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

e regio serran a da Estrela. Os dois con celh os do Porto e da Covilh ocu pavam u m lu gar m par n o con texto n acion al: a popu lao ativa in du strial
represen tava 42% e 43% em 1890, qu an do em Lisboa atin gia apen as
31% e n acion alm en te era ain da m en or, 19% .
Um dos gran des problem as con ceptu ais com o qu al os in qu iridores
de 1881 se defron taram pren de-se com a gran de variedade de form as de
organ izao qu e caracterizava en to a paisagem in du strial. A classificao
em trs gran des gru pos, fbricas, oficin as e in d stria a dom iclio vai orien tar o con ju n to do in qu rito e m edian te ela pode obter-se u m a viso sistem tica do con ju n to. O problem a qu e a aplicao desta classificao espartilh a a realidade su bjacen te qu al n o se aju sta, con du zin do a agru pam en tos de pou co rigor.
A flu tu ao n a aplicao do con ceito de fbrica e oficin a com prova
as dificu ldades de defin io en con tradas dian te de u m m u n do in du strial
diversificado. Tradu z a in existn cia real de u m a fron teira. Desde lon ga
data qu e esta flu tu ao de vocabu lrio existia, e n ada obrigara ain da a
u m a separao de gu as, de u m pon to de vista ju rdico e fiscal.6 No existiria n ecessariam en te gran de diferen a de dim en so com a in trodu o das
prim eiras m qu in as. o qu e n o caso do Porto explicitam en te ju stificou a
incluso de fbricas de moagem a vapor na categoria de oficinas.7 Pelo contrrio a oficina de fechaduras comuns do mestre Venncio da Silva Cambra
encontra-se mencionada anonimamente entre as sete oficinas de Ramalde,
Bouas: ora, tratava-se de uma pequena fbrica, onde cinqenta homens
trabalhavam a brao, em seis forjas, quarenta a cinqenta tornos de bancada, alm de outros utenslios, enquadrados por uma acentuada diviso do
trabalho.8
O caso de u tilizao m ais in exata da design ao de fbrica, e qu e
n o foi objeto de qu alqu er crtica n a apreciao fin al do in qu rito, o da
Covilh e Gu arda. Todas as u n idades in du striais, in depen den tem en te da
su a estru tu ra e dim en so, foram design adas por fbricas, o qu e in trodu z
u m erro con sidervel qu e n o foi corrigido. Com pren der-se- m elh or m ais
adian te a dificu ldade em efetu ar tal correo.9
No caso das oficin as, a form a globalizan te com o foram descritas n as
visitas locais o con ju n to das oficin as ou in d strias em dom iclio, existen tes em cada con celh o ou localidade, ocasion ou u m a con tagem com o u n idades in du striais de con ju n tos qu e n o tin h am n ecessariam en te articu lao en tre si. A su a desagregao perm ite a reavaliao da parte represen tada pelo trabalh o oficin al n os vrios ram os in du striais.10 Fbricas e oficin as agru pavam aparen tem en te parcelas qu ase idn ticas da m o de obra,
cerca de 23% cada gru po, m as n ote-se qu e elevado n m ero de oficin as
n o in dicaram a m o de obra. Con tu do, a gran de au sen te do in qu rito

221

Miriam Halpern Pereira

a in d stria em dom iclio, s n o Porto ela foi in clu da de form a sign ificativa. Mesm o assim os trabalh adores em dom iclio n o con ju n to do territrio
n acion al som avam 45.095, 49,55% do total, ou seja qu ase igu alavam o
total da m o-de-obra in serida n as fbricas e oficin as. Desse total, 30 m il
eram teceles da cidade do Porto.
Apon tada a dom in n cia das pequ en as u n idades in du striais e do trabalh o m an u al, a qu esto qu e se coloca a da su a in terpretao. Ao lado
de artesos in depen den tes, por vezes bem prsperos e n ada decaden tes,
coexistiam m ltiplas form as de articu lao en tre produ tor e m ercado e de
articu lao en tre fbrica, trabalh o oficin al e em dom iclio. So as partes do
In qu rito referen tes aos distritos do Porto, Castelo Bran co estes dois apen as cobertos pelo in qu rito direto, o m ais fidedign o da Gu arda e algu m as zon as do Norte, qu e m elh or n os in form am a este respeito.

IN D STRIA A LGOD OEIRA

Lin h o e seda foram len tam en te sen do destron ados pelo pan o de algodo, de in cio m esclado com seda. Evolu o m ais m arcada n a Regio
Norte, on de as prim eiras fbricas de fiao fabril de in icativa portu en se se
situ aram n o n a cidade, m as n a regio em redor do Porto, on de o cu sto da
m o-de-obra e da en ergia h idra lica eram fatores favorveis.11 Tin h am
com o fin alidade evitar a im portao de fio in gls. Com o acon teceu n ou tros pases, a m ecan izao da fiao veio ao en con tro da expan so da tecelagem m an u al, em dom iclio e em oficin as. Um crescim en to qu e im pression ou Oliveira Marreca em m eados do scu lo: "A tecelagem do algodo em teares m ovidos pelas foras an im adas tem m ostrado n o Porto u m a
progresso espan tosa". Tradu zira-se pelo au m en to da im portao de fio, s
em trs an os, en tre 1845 e 1848, de 638.703 para 999.706 arrteis.12
Decorridos 30 an os, o fen m en o repete-se. Em 1881, o crescim en to da
tecelagem m an u al em relao situ ao m eio scu lo m ais cedo era en orm e,
passara-se de 2.500 trabalh adores em dom icilio n o txtil portu en se em 1830,
para 30 m il, ou seja u m a alterao de 4,8% para 28,34% da popu lao u rban a.13 N m eros qu e valem com o estim ativa, em bora possam h oje parecer-n os
excessivos, desabitu ados da dim en so do trabalh o m an u al, n a poca n o foram qu estion ados. No caso da in d stria do Porto o papel desem pen h ado pelos teceles cen tral e in trigan te. On de se in tegravam e a qu e estru tu ra in du strial correspon diam os 30 m il teceles em dom iclio n a cidade do Porto,
qu e con stam com o u m a u n idade n os qu adros-sn tese? No foram in clu dos
n as pequ en as in d strias da cidade, m as n a popu lao fabril.14 Na realidade
so teceles qu e trabalh am para fabrican tes do Porto e para u m a fbrica, a fbrica de Asn eiros. S para esta fbrica trabalh avam tarefa 229 teares 126

222

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

n a cidade, 103 n os con celh os lim trofes e oitocen tos teceles com pravam
fio da fbrica, ven den do-lh e depois o tecido, retribu in do parte em din h eiro,
parte em fio. Asn eiros era o prin cipal destin atrio da tecelagem m an u al portu en se, m as de m odo algu m o n ico. Um a dezen a de fabrican tes con trolavam
en tre cem a oitocen tos teares, calcu lan do-se qu e a m dia ron daria os du zen tos teares; ou tros qu atrocen tos a qu in h en tos fabrican tes con trolavam u m a
m dia de qu in ze a vin te teares cada u m . Todos estes fabrican tes eram an tigos
operrios qu e tin h am en riqu ecido, ou seu s filh os, algu n s ter-se-iam m esm o
se torn ado "opu len tos". No total calcu lava-se em 10 m il o n m ero de teares,
o qu e con tan do u m m n im o de trs pessoas por tear alm do tecelo, a m u lh er dobadora ou fian deira, o rapaz qu e en ch e as can elas perfaz 30 m il in divdu os.15 Mais de u m qu arto da popu lao portu en se, 28,34% , trabalh ava
n u m a n ica atividade in du strial, o qu e represen ta u m a forte especializao
da popu lao desta cidade, isto sem con tar a popu lao n ela en volvida n a
rea ru ral en volven te. 16
A estru tu ra em presarial dos fabrican tes era m u ito varivel, se algu n s
n em oficin a prpria possu am , ou tros tin h am pequ en as oficin as de tecelagem , bem m en os im portan tes qu e os teares qu e trabalh avam fora por su a
con ta, ou tros dispu n h am de tin tu rarias an exas, e fin alm en te h avia aqu eles
qu e tin h am pequ en as fbricas em su as prprias casas, in staladas n o fu n do
dos qu in tais. Estes pequ en os em presrios n o eram alh eios tecn ologia do
vapor, dois u tilizavam m otores de vapor para dobar e fiar.
Esta exten sa rede txtil, qu e produ zia baetas, cobertores, cotin s e
riscados tin tos, era muito mais considervel em nmero que as fiaes e tecelagens
a vapor, afirm ava-se n o in qu rito. A ela se deve ain da ju n tar u m con ju n to de pequ en as oficin as qu e produ ziam colch as e toalh as. Situ adas n a rea
u rban a, eram oficin as an exas das h abitaes, on de se reu n ia u m n m ero
varivel de teares, qu e podiam elevar-se a 28. Nas oficin as visitadas os teares eram todos Jacqu ard. Tal com o n as an teriores, qu an do existia u m m otor m ecn ico ele destin ava-se s dobadou ras, torcedeiras ou cardas. O fio
com a grossu ra n ecessria para este tipo de tecido n o era im portado, s
era u tilizado fio n acion al.17
De tu do isto se con clu a em 1881, n a visita s fbricas do distrito do
Porto: "A m an u fatu ra do algodo aparece com o u m a irradiao ou depen dn cia da gran de in d stria. En tre n s a preparao do algodo n asceu capitalista e pau talm en te".18 Estava-se dian te de u m a en orm e m assa de trabalh adores em dom iclio qu e produ ziam pea para fabrican tes ou fbricas. A organ izao da in d stria da tecelagem do algodo, sobretu do n a
rea u rban a do Porto assem elh ava-se das "fbricas coletivas".19 A exten so do trabalh o em dom iclio apresen ta-se com o u m fen m en o qu e n o se
deve opor s criaes fabris, s qu ais pelo con trrio se articu la.
E a este segundo e notvel crescimento da tecelagem manual correspondeu desta vez um verdadeiro boom da fiao mecnica organizada em

223

Miriam Halpern Pereira

fbricas entre 1874 e1880. Na poca, esta criao fabril no ofuscou contudo o significado da extenso do trabalho manual como vimos,20 mas isso curiosamente aconteceu posteriormente na historiografia. Das 44 fbricas algodoeiras existentes em 1881, dezesseis dedicavam-se fiao, nove das
quais lhe associavam a tecelagem.21 No conjunto do pas, as sete fbricas de
fiao e as nove que associam fiao e tecelagem concentram 66% da mo
de obra do setor txtil fabril. Metade deste tipo de fbricas situavam- se no
distrito do Porto, onde se concentrava tambm, como j vimos, a tecelagem
oficinal e domstica. Em grau varivel, todas utilizavam a energia a vapor,
com a exceo de uma unidade de catorze operrios em Belm.22
Destas dezesseis fbricas, dez tin h am m ais de cem operrios, u m a
delas u ltrapassava qu in h en tos. O con traste com as qu in ze fbricas exclu sivam en te dedicadas tecelagem das qu ais seis esto sediadas n o distrito do Porto con sidervel: oito em qu in ze tm m en os de cin q en ta operrios, e ou tras qu atro en tre cin q en ta e cem . Apen as qu atro se servem
em pequ en a escala do vapor. Na tecelagem fabril a pequ en a em presa e o
trabalh o m an u al coin cidiam , com o n a in d stria a dom iclio.
Situ ao diferen te era a da estam paria, con siderada o setor m ais
prspero do txtil, du ran te gran de parte do scu lo at 1881, e con cen trada em Lisboa. Os in du striais deste ram o eram h erdeiros da an tiga fu n o
dos m ercadores de tecidos, com o eles dedicavam -se ao acabam en to de tecidos qu e n o produ ziam : os tecidos, qu e em tem pos idos vin h am da n dia, eram agora de proven in cia in glesa.23A su a m en talidade refletia essa
proxim idade do m eio com ercial.24 Eram treze as u n idades de estam paria,
de dim en so m dia e pequ en a, cin co com qu an tidade de operrios abaixo
de cin q en ta, trs en tre cin q en ta e cem . Mas s trs n o u tilizavam a
en ergia a vapor e o setor era con siderado m u ito bem apetrech ado de u m
pon to de vista tcn ico. Era a estam paria qu e colocava Lisboa ligeiram en te
acim a do Porto n a ocu pao de m o-de-obra fabril txtil (39% e 32% ),
qu e n o con ju n to totalizava apen as 5.517 operrios. Con tu do a in clu so da
m o-de-obra trabalh an do em oficin as e em dom iclio desequ ilibraria m arcadam en te a relao en tre as du as zon as em sen tido in verso. Alm dos 30
m il teceles a dom iclio portu en ses, qu ase todas as oficin as de algodo e lin h o se situ avam n o Porto.25
A produ o txtil destin ada a estratos sociais m dios e popu lares
en volvia alm da regio do Porto, diferen tes plos de produ o n a rea ru ral dos distritos de Braga, Vian a e Aveiro, don de aflu am cotin s e riscados
para abastecer o distrito do Porto, n o fin al dos an os 80.26 Esses tecidos de
baixa qu alidade eram com petitivos e capaz de ven cer a con corrn cia fabril.
Em m eados do scu lo, Oliveira Marreca apon tara-o: "Estes produ tos obscu ros do pobre cu ja produ o se n o regu la pela m edida do capital, privados com o o foram do au xlio dos gran des m otores, e do ben efcio da bara-

224

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

teza qu e estes con ferem a qu alqu er fabricao com todas as con dies
de in ferioridade ven deram -se, ven dem -se a u m preo m ais baixo qu e o
dos produ tos, ou an logos, ou sim ilares qu e saiem das gran des fbricas".27
Decorridos 30 an os, a con corrn cia n o m ercado in tern o da in d stria m an u al portu en se, articu lada ou n o fbrica, apresen tava-se com o tem vel
qu elas fbricas do su l qu e n o dispu n h am do seu apoio. A Com pan h ia de
Torres Novas declarava qu e praticava preos feitos para esm agar essa con corrn cia, m esm o com preju zo.28
A com petitividade deste setor in du strial provin h a em prim eiro lu gar do baixo cu sto da produ o, desta produ o caseira ou em pequ en as
oficin as, levada a cabo por u m a popu lao operria qu e sobrevivia n u m
lim iar de m isria, qu e im pression ou os in qu iridores tan to aqu i com o n ou tras zon as da in d stria txtil. Dispu n h a alm disso de proteo pau tal con siderada su ficien te em 1881: n o se im portavam cotin s e riscados, su bm etidos a direitos proibitivos, os tecidos de plo e os alcoch oados tam pou co,
pois os direitos sobre o peso desin cen tivavam -n o. No im pedia con tu do
con sidervel con corrn cia do con traban do.29 A pequ en a e m dia in d stria
algodoeira vivia n u m equ ilbrio qu e u m a proteo am pla e diversificada ao
setor, solicitada pelas fbricas de fiao e tecelagem rom peria. Seria por
isso desacon selh ada pelos relatores da su bcom isso de in qu rito do Porto,
qu e con sideravam a fbrica m aior perigo para esta con sidervel popu lao
in du strial qu e a con corrn cia estran geira. No fin al da dcada este equ ilbrio parecia ter-se qu ebrado com o aparecim en to de n ovos con corren tes,
tecidos de algodo cardados de origem alem , m u ito leves, pagan do por
isso m en os direitos, riscados e cotin s fran ceses, ben eficiados pelo recen te
tratado, e ain da tecidos espan h is (provavelm en te catales), em bora n o
seja especificado se am bos setores, fabril e pequ en a in d stria, estariam
sen do afetados.30 No in cio do scu lo XX, pelo m en os n a regio de Braga,
depois de u m prim eiro em bate a in d stria m an u al se recu perara e vivia
n u m "relativo desafogo", e isso se devia a "seu s produ tos de con textu ra
sim ples, m as forte, prprios para o gran de con su m o das popu laes ru rais,
poderem con correr em preo com os de fabricao m ecn ica". Tam bm o
geren te de u m a das fbricas "m odern as" de Gu im ares in form ava qu e o
setor m an u al da fbrica produ zia para o abastecim en to de "tecidos para as
classes pobres".31
A segm en tao social do m ercado in tern o fazia-se a dois n veis. A
presen a de m ercadorias estran geiras, qu e m ereciam a prefern cia da elite abastada, era estim u lada pelo m ecan ism o pau tal de direitos em virtu de
do peso e n o ad valorem os tecidos de qu alidade eram leves, pagavam
m en os qu e os tecidos grosseiros. Ou tro fator de prefern cia, m ais su til e
difcil de ven cer, era o poder da m oda. Um a qu esto qu e con vin h a con h ecer era a relao en tre o setor txtil e a in d stria da con feco. Esta podia

225

Miriam Halpern Pereira

con tribu ir para orien tar as prefern cias da clien tela, n u m a poca em qu e
a pu blicidade j tin h a algu m a in cidn cia n o m ercado. Maior in cidn cia tin h a, con tu do, ou tro n vel de segm en tao do m ercado qu e derivava da
prpria estru tu ra da in d stria. As ten tativas de pen etrar n o estrato elevado do m ercado in tern o por parte dos in du striais da fiao e da tecelagem
esbarravam n a privilegiada situ ao da in d stria da estam paria, qu e colocava tecidos de m elh or qu alidade n o m ercado, tecidos im portados qu e
apen as estam pava.
Desde qu e a in d stria algodoeira n o se restrin gisse a ficar con fin ada s qu alidades in feriores de tecidos, en con trava, com o u m dos prin cipais
gargalos de estran gu lam en to, a proteo preferen cial da estam paria, du plam en te favorecida pela con ju gao de elevados direitos sobre os tecidos
tin tos e estam pados e direitos baixos sobre os tecidos lisos, cru s e bran cos.
Estes tipos de tecido con stitu am o essen cial da im portao de tecidos:
77% en tre 1875 e 1879 e con tin u aram a represen tar a parcela m ais con sidervel at ao fin al do scu lo. Lim itava-se assim a diversificao tan to da
fiao como da tecelagem.32 Um mecanismo alfandegrio complexo associava a proteo da estam paria orien tada para o estrato social m ais elevado
do m ercado, qu e agregava u m gru po pequ en o de in du striais, proteo
do setor m an u al da tecelagem de cotin s e riscados para as classes m en os
favorecidas, proteo in direta atravs do peso do txtil. Este m ecan ism o
qu e pen alizava a in ovao n a tecelagem e n a fiao tin h a sen tido con servador. Tin h a tam bm a van tagem , do pon to de vista das relaes com erciais extern as, de n o ter gran de in cidn cia n as im portaes: pou co provvel qu e algu m a vez se tivessem im portado tecidos grosseiros em qu an tidade sign ificativa. As alteraes pau tais do fin al da dcada de 1880 e a
su bseq en te criao de u m m ercado preferen cial n as coln ias african as
abriram u m n ovo can al de escoam en to qu e m elh orou u m pou co a situ ao, apesar de se exportarem essen cialm en te tecidos de baixa qu alidade.33
Len tam en te, o crescim en to da in d stria algodoeira fora-se refletin do n a com posio das en tradas de algodo, ten do au m en tado a parcela do
algodo em ram a n as im portaes globais de algodo e dim in u do em proporo relativa os tecidos, qu e represen tavam 75% deste gru po em 18751879. a partir de 1890-1894 qu e tem lu gar u m a m u dan a qu alitativa, a
qu ota-parte do algodo em ram a im portado passou a ser su perior en trada de tecidos 47% e 43% in ician do-se u m a in verso qu e prossegu ia s
vsperas da Prim eira Gu erra Mu n dial. A parcela de fio im portado ao lon go de 34 an os (1865-1899), m an tm -se qu an titativam en te pou co im portan te, en tre 4% -7% .34 Na origem das qu eixas dos in du striais, estaria o tipo
de fio im portado e o seu preo, n o tan to a qu an tidade. A dom in n cia do
setor txtil vai refletir-se n a m aqu in aria in du strial im portada: en tre 1888
e 1897, 46% destin ava-se a ele, qu ase toda destin ada fiao e tecela-

226

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

gem . Os 54% restan tes correspon dem a parcelas dispersas, n en h u m a represen tan do valor com parvel. Mas os valores absolu tos so relativam en te baixos. E, a produ tividade m esm o n o txtil era m u ito baixa. Com paran do com a situ ao n a In glaterra, su blin h ar-se-ia qu e en qu an to u m operrio podia m an ejar en tre seis e catorze teares n aqu ele pas, em Portu gal u m
operrio n o con segu ia u tilizar m ais de dois ou trs teares sim u ltn eam en te. Form ao tcn ica in su ficien te, m as tam bm graves carn cias alim en tares, para n o referir ou tros fatores com o o alojam en to e a situ ao san itria, estariam n a origem desta discrepn cia.35
Em 1917, m esm o n o txtil, on de 8% das fbricas con cen travam
m ais de m etade da m o de obra, a gran de m aioria das em presas con tin u avam a ser de pequ en a e m dia dim en so: 41% tin h am dez a cin q en ta
operrios, 28% m en os de dez operrios.36 O recu rso ao trabalh o dom iciliar
tam bm con tin u ava a ser m u ito con sidervel, seria estim ado em 20 m il
pessoas, e bem provvel qu e a m aioria estivesse sediada n o Porto.37
O algodo, prim eiro associado seda, depois isolado, foi in vadin do
o m ercado in tern o, su bstitu in do len tam en te o tradicion al lin h o e a seda.
A in d stria n acion al foi evolu in do: a mule-jenny su bstitu iu a roca m ais rpidam en te qu e o tear Jacqu ard, e o tear m ecn ico su bstitu iu o tear m an u al. O crescim en to tom ou diferen tes form as, criaes fabris e tam bm
m u ltiplicao de pequ en as u n idades. No foi diferen te n ou tros pases. Mas
com periodizaes e prin cipalm en te ritm os distin tos. No prprio con texto
da Eu ropa m eridion al, Portu gal distan ciara-se da Espan h a e da Itlia. O
con su m o de algodo em ram a por h abitan te em ton eladas era em 1910 o
segu in te: Portu gal 2,7, Espan h a 3,7, Itlia 5, Gr-Bretan h a 21.38 A situ ao
n o fora m u ito diferen te n os 50 an os an teriores, apen as se delin eara u m a
ligeira m elh oria em relao vizin h a Espan h a. A posio relativa da in d stria txtil n o con texto in tern acion al n o se m odificara, apesar do seu
in discu tvel crescim en to.

O S LA N IFCIOS
A in d stria de lan ifcios teve u m a n otvel expan so aps os an os
40, prin cipalm en te em dois dos cen tros tradicion alm en te m ais im portan tes, a Covilh e os con celh os de Gou veia e Seia, n a zon a da serra da Estrela. A m aioria das em presas existen tes n a Covilh em 1881 tin h a qu atro
dcadas de existn cia, m ais de m etade tin h a alterado pelo m en os a den om in ao da em presa in icial, sin al de forte m obilidade. Apen as oito em presas tin h am sido fu n dadas an tes de1839: u m a datava de 1765, J. Gom es
Barata, ou tra de 1784, J. Men des Veiga, J. Silva Ran ito de 1800, das ou tras con sta s a in dicao su m ria de "an tiga". Em 1881, detin h am a prim azia do m ercado n acion al de lan ifcios.

227

Miriam Halpern Pereira

Regies de proto-in d stria secu lar sofrem u m a con sidervel tran sform ao em 20 an os. No in qu rito de 1839/ 1840, o qu adro geral desan im ava ain da a com isso: os processos eram an tigos, apen as n u m a fbrica se
in trodu zira m qu in as de cardar, fiar e tozar, descon h ecia-se a arte da tin tu raria, o acabam en to dos tecidos era im perfeito. Tam bm em Seia o processo m ecn ico n o se alterara, n o se u savam m qu in as.39 Escreven do
por volta de 1860, Fradesso da Silveira n o con tin h a a su a adm irao pelo
progresso tcn ico: "Qu em en tra n a Covilh , vin do de Coim bra pelas Pedras Lavradas, ou de Castelo Bran co por Alpedrin h a, pasm a ao ver fu n cion ar n as fbricas as m qu in as aperfeioadas de Verviers. Qu e sacrifcios e
esforos, para levar ali os m aqu in ism os pesados e volu m osos, qu e a in d striae de tecidos requ er! Qu e srie de tran sform aes, qu e pertin cia de en saios e ten tativas para passar do m todo aprovado pelo regim en to de 7 de
jan eiro de 1690 para o processo m odern o!" 40.
Nos 18 an os segu in tes a in d stria dos lan ifcios da Covilh e da regio serran a atravessaram u m dos perodos m ais au spiciosos da su a existn cia. A produ o de tecidos da Covilh era em 1878, su perior a toda a
im portao de tecidos de l em Portu gal.41
O equ ipam en to das fbricas alterou -se su bstan cialm en te. O n m ero de fu sos su biu de 13.195 para 22.175, os teares Jacqu ard m an u ais m ais
do triplicaram e os com u n s cresceram . Mas pou cos foram os teares m ecn icos in trodu zidos, as dispon ibilidades en ergticas locais cerceavam o seu
u so e os teares m ecn icos ch egavam a ficar parados por falta de en ergia.
Os lim ites en ergticos eram desde os an os 60 referidos com o a razo do redu zido u so de pises ciln dricos, teares m ecn icos, e da prefern cia dada
s m qu in as belgas, m en os exigen tes em fora m otriz. O parcial estran gu lam en to tecn olgico era u m a con seq n cia do prprio crescim en to. Os recu rsos h idra licos revelavaram -se in su ficien tes para abastecim en to sim u ltn eo da agricu ltu ra e da in d stria du ran te a estiagem , o ritm o de trabalh o in du strial dim in u a e torn ava-se n otu rn o. O cu sto do carvo era proibitivo.42 Nos an os segu in tes, os lim ites dos recu rsos en ergticos e a gran de
dispon ibilidade de m o-de-obra m an tm o padro da evolu o, m as com
algu m as alteraes. Crescim en to m oderado da fiao, m ecn ica, qu e au m en tou ligeiram en te, m as m elh orou em qu alidade e se diversificou com
o fio retorcido m ais do qu e triplicou o n m ero de fu sos das retorcedeiras e a gran de expan so da tecelagem . Neste caso, em bora se ten h a observado a in trodu o de m aior n m ero de teares m ecn icos, a base deste
en orm e crescim en to da tecelagem en tre 1881 e 1890 con tin u ou a assen tar fu n dam en talm en te n a en ergia h idra lica e n a m u ltiplicao do tear
m an u al, qu e o au m en to dem ogrfico viabilizou .
A Covilh torn ou -se u m forte plo de atrao e foi a cidade portu gu esa com m ais in ten so crescim en to n este perodo, e u m dos con celh os
com m aior pon derao da popu lao in du strial, ao lado do Porto.43

228

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

A con figu rao da estru tu ra in du strial tin h a u m cariz especfico,


qu e se en caixava m al n as classificaes existen tes. O con ceito de fbrica
u tilizado n os in qu ritos sobre a Covilh abran ge todo o tipo de u n idades
in du striais, in clu i oficin as e trabalh o em dom iclio. Mas en con tra-se aqu i
u m a design ao especfica, de fbricas com pletas e in com pletas, in existen te n o resto do pas.44
Pou cas eram as fbricas com pletas, qu e praticavam por si todas as
operaes, desde o tratam en to in icial da l at ao acabam en to fin al da fazen da. Em 1839 existiam apen as n a Covilh "qu atro fbricas de m an u fatu ras de pan os qu e pela reu n io de diferen tes oficin as qu e tem em m ovim en to e pela regu laridade qu e n elas se observa podem ser con sideradas
com o tais. Alm destas porm h m u itas oficin as particu lares com diferen tes den om in aes a qu e so destin adas".45 Era u m a paisagem in du strial
qu e se pren dia com a evolu o ocorrida n o segu n do qu artel do scu lo XIX,
qu an do o m odelo da fbrica com pleta fora aban don ada, a organ izao in du strial fragm en tara-se e ru ralizara-se, com o form a de adequ ao con ju n tu ra econ m ica.46 Em 1863, regressava-se len tam en te s fbricas com pletas, o seu n m ero du plicara, existiam oito fbricas com pletas, trs tin h am u m n m ero elevado de operrios, de 211 a 291, ou tras trs de 72 a
101, m as du as s ocu pavam cin q en ta e 27 operrios.47 Em 1881, este tipo
de fbrica m ais do qu e du plica, som am dezessete as fbricas com pletas.
Nalgu n s casos so oficin as qu e j existiam e qu e alargaram a su a atividade, n ou tros so m ercadores-fabrican tes qu e se torn aram proprietrios de
fbricas com pletas, as prprias fbricas j existen tes tam bm tero au m en tado de dim en ses.48
Con tu do, as fbricas com pletas con tin u avam a ser u m a m in oria do
tecido in du strial, on de eram m u ito m ais n u m erosas as pequ en as e m dias
u n idades in du striais: das 27 fbricas com m ais de dez operrios, oito eram
com pletas e dezen ove in com pletas, as restan tes 32 u n idades in com pletas
recen seadas em 1863, eram pequ en as oficin as e de trabalh o a dom iclio. A
isto h avia ain da qu e ju n tar 218 teares dispersos n a vila e em Tortozen do e
Teixoso.49 O tecido in du strial con tin u ava em 1881 dom in ado em n m ero
pela pequ en a e m dia em presa: 66 oficin as tin h am de zero a n ove operrios, 45 tin h am dez a 25 (ver Qu adro 2).
A pon derao das fbricas com pletas e das pequ en as e m dias u n idades in du striais diverge con soan te se olh a para o m ercado de trabalh o ou
para o parqu e tecn olgico. Em 1863, as fbricas com pletas desem pen h avam u m papel decisivo n o m ercado de trabalh o, n elas trabalh avam 68%
da m o-de-obra. Mas a situ ao era diferen te n a distribu io dos u ten slios: apen as 43% dos fu sos estavam sediados n este tipo de em presa, e u m
pou co m en os se con siderarm os s a fiao m ecn ica, j qu e das dezessete
fiaes m an u ais, doze eram da fbrica com pleta An tn io Pessoa Am orim

229

Miriam Halpern Pereira

& Irm o qu e con tin u ava a fu n cion ar n o edifcio da an tiga real fbrica, de
qu e fora ren deiro on de n o h avia fiao m ecn ica.
Um trao m arcan te das m dias e pequ en as em presas de cardar e fiar
em presas com u m n m ero de operrios en tre cin co e 39 era o grau de
m ecan izao con sidervel. Todas praticavam fiao m ecn ica detin h am
57% dos fu sos do parqu e in du strial e apen as du as em dezesseis lh e agregavam fiao m an u al; das 28 cardas con tn u as existen tes n o con celh o,
doze (ou catorze, se se ju n tar du as em presas qu e estavam a m on t-las) situ avam -se n o seu m bito; cin co tin h am perch eas m ecn icas, m ais qu e n as
prin cipais fbricas. Na tecelagem , a situ ao era diferen te: n o h avia teares m ecn icos e os 37 Jacqu ard eram qu ase todos propriedade das fbricas
com pletas, apen as a fbrica (in com pleta) Paiva & Rogeiro de cardar e fiar
qu e tam bm tecia, u tilizava qu atro teares deste tipo. Dos teares m an u ais,
39% estavam n as prin cipais oito fbricas, du as delas con cen travam cada
u m a cin co dezen as, m as a m aioria dos teares m an u ais en con trava-se dispersa, poden do as oficin as reu n ir en tre trs e n ove u ten slios.
A isto h ain da qu e acrescen tar a m alcon h ecida in d stria em dom iclio, era provavelm en te o caso dos 218 teares sediados n a Covilh , Tortozen do, Teixoso e ou tras fregu esias, de qu e n em se in dica o proprietrio
n em o n m ero de braos. Mqu in a a vapor s existia n a fbrica Marqu es
de Paiva e servia para acion ar seis pises ciln dricos, u ten slio de qu e pou cos dispu n h am , sen do ain da dom in an te o u so das m aceiras de pau .50
A con cen trao era em 1881 m en or qu e em 1863 em todos os aspectos: as prin cipais on ze em presas u tilizavam 57,4% da m o-de-obra, u m
pou co m en os qu e em 1863, e apen as 29,3% dos fu sos e 42,2% dos teares
m an u ais com u n s. Das 38 pequ en as em presas, 21 so oficin as de cardar e
fiar qu e tm fiao m ecn ica .51No gru po in diferen ciado de 55 fbricas pequ en as de tecelagem , em bora o trabalh o seja todo m an u al, u tilizavam -se
12 jacqu ard. A m ecan izao da tecelagem len ta e m in oritria, foi sobretu do efetu ada n o m bito das prin cipais on ze em presas, n elas se aplicavam
alm de 78% dos Jacqu ard m an u ais, 84% dos teares m ecn icos. A m ode-obra fem in in a e in fan til estava presen te de form a sign ificativa n as prin cipais fbricas, e n o s n a pequ en a in d stria.52
Mas o que particularmente especfico no tecido industrial covilhanense o carter segmentado da produo, as fbricas incompletas eram oficinas que apenas desempenhavam uma ou duas fases da produo. Existiam
em 1863: quinze fbricas de cardar e fiar, algumas tambm tinham pises e
tesouras de correr; doze estabelecimentos de pises, alguns com tinturaria;
nove tinturarias; quatro de ultimao e de acabamento; uma fbrica de papelo preparada para prensar as fazendas, um laboratrio de cido ntrico.
Acrescente-se os 218 teares instalados em "edifcios exclusivamente destinados tecelagem", e em casas de fabricantes e teceles na Covilh e arredores.53
A segm en tao das fases da produ o em u n idades in du striais diferen ciadas u m a caracterstica do tecido in du strial qu e determ in a u m a m u l-

230

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

tiplicidade de relaes in terfabris de dois tipos: vertical, pela m ediao de


m ercadores-fabrican tes ou produ zin do diretam en te para as fbricas com pletas de form a su pletiva; h orizon tal, en tre pequ en os produ tores.
A relao en tre pequ en os produ tores podia ser direta ou por m eio
de pequ en os fabrican tes. Dispu n h am de u m a rede diferen ciada de abastecim en to de m atria-prim a, m edian te alm ocreves, j as em presas de m aior
dim en so se abasteciam diretam en te n os prin cipais plos de produ o n o
Alen tejo, Beiras e Espan h a.54 Um a parcela do u n iverso dos pequ en os produ tores dispe de algu m a au ton om ia, o kauf-system coexistia com o verlagsystem, em propores qu e se descon h ecem . Um exem plo dessa coexistn cia est paten te n o caso das fbricas com pletas de Alada Men des e Man u el Mou zaco qu e tin h am teceles fora trabalh an do por su a con ta a qu em
forn eciam o fio, e tam bm com pravam fazen das dos pequ en os in du striais.
Os prin cipais com pradores dos pequ en os produ tores eram em qu alqu er
caso as gran des fbricas.55 O tecido in du strial da Covilh apresen tava u m a
estru tu ra segm en tada qu e toda ela tem u m m esm o objetivo, a produ o
de tecidos de l, com o u m a gran de "fbrica coletiva". A popu lao in du strial via-se a si prpria com o parte de u m am plo con ju n to produ tivo.
"Con sideram os a vila da Covilh com o u m a s fbrica dedicada ao fabrico
de lan ifcios", diriam os fabrican tes da Covilh em 1858.56 Esta form a de
organ izao segm en tada era o trao m arcan te de u m a das m ais poderosas
in d strias txteis da poca, a da Filadlfia, com ou tras propores. 57
Na regio serran a, on de os cen tros de lan ifcios tam bm se ben eficiaram da con ju n tu ra favorvel, m u ltiplicaram -se as fbricas, prin cipalm en te em Seia e em Gou veia.(ver Qu adro ). A estru tu ra in du strial assem elh ava-se da Covilh , coexistin do fbricas com pletas com as in com pletas, em m aior n m ero, e u m a rede de trabalh o em dom iclio efetu ado com
freq n cia pela fam lia do fabrican te. Com o n a Covilh , a m ecan izao
abran ge os pequ en os produ tores, qu e em algu n s casos se associavam para
se ben eficiar da m ecan izao em com u m . Tal com o n a Covilh , observase desigu aldade de apetrech am en to en tre a fiao e a tecelagem n esta regio: n otvel ritm o de m ecan izao n a fiao, in teiram en te m ecan izada,
estavam in stalados 18.543 fu sos, 26,5% do total n acion al, ligeiram en te
m ais qu e em Lisboa (16.125 fu sos) en qu an to a tecelagem m ecn ica dava
os prim eiros passos com m eia d zia de teares. Os lim ites en ergticos afetavam esta regio de form a em tu do sim ilar Covilh .
As deficin cias da rede de estradas, de qu e a regio da Covilh sofria,
torn avam-se aqu i mais dramticas, o dorso de mu ar era o n ico tran sporte
u tilizvel em diversos pon tos, e o prprio percu rso pedestre foi imperativo n a
visita a u ma das localidades, ain da em 1881. A vitalidade in du strial desta regio mon tan h osa distan te, con segu ida apesar destas con dies, con stitu iu
u ma descoberta para os in qu iridores, cau sou -lh es su rpresa e admirao.58

231

Miriam Halpern Pereira

Em qu atro dcadas, a regio da Covilh , Gou veia e Seia h aviam adqu irido u m peso determin an te n a produ o n acion al de lan ifcios. Nos distritos de
Castelo Bran co e Gu arda trabalh avam em 1881: 46% da mo-de-obra do
setor, 58% dos fu sos, 58% dos teares man u ais. Era u ma estru tu ra in du strial
cu jo crescimen to assen tara n a pequ en a in d stria e n a articu lao en tre a fiao mecn ica e a tecelagem man u al.
Na segu n da dcada do scu lo XX, o modelo de crescimen to covilh an en se parecia ter en trado em crise: desde 1890, o escoamen to da produ o comeara a ter dificu ldade em en fren tar a con corrn cia estran geira n o mercado in tern o, o n ico de qu e dispu n h a esta in d stria.59 Esta regio con stitu i u m caso
de crescimen to e relativa modern izao do aparelh o produ tivo com base n a
pequ en a e mdia empresa n u ma regio in terior sem estrada de ferro. A carn cia en ergtica viera en travan do a ren ovao tecn olgica desde os an os 60, e a
modern izao dos tran sportes an tes da resolu o do abastecimen to de en ergia
teria efeito desestru tu rador. Qu an do a estrada de ferro ch egou , em 1891, ligan do a Covilh a Man gu alde e capital, parece ter viabilizado mais facilmen te a en trada de tecidos estran geiros do qu e o escoamen to da produ o local.60
Apesar de a empresa h idroeltrica da Sen h ora do Desterro (serra da Estrela)
ter sido a primeira do con tin en te, o desfasamen to en tre a ligao ferroviria e
o forn ecimen to de en ergia eltrica foi dramtico.
Em modelo diverso se organizaram os lanifcios em Lisboa: em 1881, as
oito fbricas do distrito representam por si s 30% da mo-de-obra, 23% dos
fusos, 24% da tecelagem manual, 51% da tecelagem mecnica e 64% dos cavalos-vapor do setor. A grande empresa, o vapor e a mecanizao da tecelagem,
apontavam caminho diverso na capital. Constitua escolha minoritria, contrariamente ao que se poderia concluir de anlise acrtica baseada no uso da designao de fbrica nos inquritos sobre a Covilh e a regio serrana, que poderia sugerir elevada ponderao do trabalho fabril no setor dos lanifcios.61
Os lanifcios portugueses conseguiram ocupar um espao crescente no
mercado nacional. Num primeiro tempo, entre a dcada de 1840 e os anos 80,
foram preenchendo as necessidades do consumo dos estratos mdios e populares, em nvel local e interregional, com maior difuso a norte do Mondego. Diferente seria a franja do mercado atingida pela importao de tecidos estrangeiros.
Contudo, a produo nacional foi tentando a sua sorte tambm a esse nvel.62

CON CLUS O
Na passagem para o sculo XX estava-se bem longe da situao vivida
nos anos 1808-1820. Mas a atividade industrial conservava ainda o seu papel
complementar em relao agricultura, como se idealizara em meados do sculo. "Olhou(o jurado) as fbricas como continuao ou complemento do laboratrio dos campos". Concebiam-se a agricultura e a indstria como os dois

232

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

seios do Estado, parafraseando Oliveira Martins.63 O crescimento de alguns


setores da agricultura na segunda metade do sculo teve um efeito estimulante sobre o setor industrial, e reciprocamente. Nesta conjuntura que se conserva de sentido favorvel em termos genricos at cerca de 1890, deve evocar-se
tambm o papel dos ferrovirios no aumento do mercado interno, neste perodo de construo da rede ferroviria.64
Os dois prin cipais setores da in d stria portu gu esa, os tecidos de algodo
e os lan ifcios desen volveram-se com base em estru tu ras in du striais diferen tes,
mas em ambas, a pequ en a e mdia in d stria, tiveram u ma fu n o domin an te
pelo men os at 1890. Estes setores dispu seram em gran de escala de mo-deobra, a baixo cu sto, e parte da en ergia h idru lica de cu sto qu ase n u lo, fatores
de competitividade qu e lh es permitiu ir pren ch en do segmen tos con siderveis
do mercado in tern o, n omeadamen te com men or poder de compra, e atin gir
porven tu ra progressivamen te estratos mais elevados, qu er diretamen te qu er
talvez median te a pen etrao n o circu ito de abastecimen to da estamparia lisboeta, dedicada ao acabamen to de tecidos essen cialmen te estran geiros. A desigu al proteo n o in terior do setor algodoeiro teve u m sen tido con servador,
n o en corajou a in ovao tecn olgica n o con ju n to. No caso da Covilh , u m
dos fatores de retardamen to tecn olgico foi o tardio in vestimen to n a en ergia
h idroeltrica: as carn cias en ergticas torn aram-se particu larmen te graves
qu an do a estrada de ferro facilitou a con corrn cia extern a.
A forma de crescimen to do setor txtil n o viabilizou a pen etrao em
mercados extern os. Apen as o mercado colon ial viria a permitir aos tecidos de
algodo virar-se para a exportao essen cialmen te de tecidos de baixa qu alidade. A ou tras trs in d strias mais recen tes, igu almen te "labou r in ten sive",
baseadas em matrias-primas n acion ais, o min rio de cobre, a cortia e o peixe, estavam destin ada vocao diferen te: seu crescimen to esteve desde o in cio ligado exportao para o mu n do in du strializado. No caso das du as ltimas, trou xeram n ovos mercados para os proprietrios de mon tados e para os
armadores. Mas a forma de in tegrao n o mercado in tern acion al destes trs
n ovos ramos in du striais determin ou u m con torn o pou co propcio tan to ao
progresso tecn olgico como a efeitos mu ltiplicadores em ou tros setores in du striais.65 Apesar do crescimen to in du strial de 1840 em dian te, Portu gal perman eceu u m pas predomin an temen te agrcola at meados do scu lo XX. Compren de-se qu e fosse ain da possvel ao Estado Novo, at Segu n da Gu erra
Mu n dial, defen der como modelo o equ ilbrio en tre in teresses agrrios e in du striais: este modelo, explicitado freq en tes vezes, estivera su bjacen te poltica
econ mica du ran te gran de parte do scu lo XIX, embora desigu al n a aplicao.

233

Miriam Halpern Pereira

1 IN D STRIA A LGOD OEIRA EM 1881

Ramos
industiais

Fiao

Fiao
tecelagem

Tecelagem

Estamparia
tinturaria

Fbricas/total

15

13

44

Lisboa

4(a)

13

20

Porto

Produo/contos

612

968

424

1.381

3.385

Operrios

840

2. 832

916

929

5.517

F. vapor/cv

256

1.062

73

1.152

2.543

F. hidralica/cv

185

335

53

Cv por unidade

63

155

8,4

82

Oficinas (b)

131

15

147

Lisboa, distrito

Porto, distrito

124

15

142

Operrios

1.014

48

1.062

Ind. domiclio
(c)9

Rendas

Total

13

573

23

26

Porto

20

22

Operrios

1.600

30.100

2.300

33.000

Obs. qu adro: Fon te: In q. In d.1881,qu adro n .15. Con sideraram -se fbricas todas as u n idades
com m ais de 10 operrios qu e n o tivessem m en o de oficin a ou in d stria em dom iclio.
a) Um a fbrica agrega u m a seo de tin tu raria; b) As ou tras qu atro oficin as situ avam -se em
Ton dela, distrito de Viseu . No se con h ece o n m ero de operrios de sessen ta oficin as, n em
o valor de produ o de seten ta; c) o in qu rito in dica as localidades em qu e existe em in d stria em dom iclio, m as n o o n m ero de u n idades, n em sem pre in dica o n m ero de trabalh adores. S se con h ece o n m ero de operrios em cin co cen tros de produ o.

234

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

2 IN D STRIA A LGOD OEIRA FA BRIL EM 1881.


D IMEN S O D A S F BRICA S

Operrios

Fiao

Fiao e tecelagem

Tecelagem

Estamparia

10-49

50-100

101-200

201-300

301-500

15

13

+500

Total

3 MECA N IZA O N A TECELA GEM E N A FIA O D E


A LGOD O EM 1881

Distritos

Cardas
ativas

Cardas
inativas

Fusos
ativos

Lisboa

74

24..320

Porto

135

43.509

Fusos
inativos

1.214

Teares
mecnicos

Teares
manuais

711

68

633

11.452

Santarm

17.932

254

192

Leiria

7.806

124

14

Braga

600

211

Total

94.167

1.720

11.996

235

Miriam Halpern Pereira

4 LA N IFCIOS: PRIN CIPA IS CEN TROS EM 1881

Distritos

Fbricas*

Operrios

Fusos

Teares
mecnicos

Teares
manuais

Castelo Branco

73

2.713

22.715

57

802

Guarda

44

1.385

18.543

22

309

Leiria

11

1.000

6.800

40

40

Lisboa

2.661

16.125

182

457

Porto

567

4.600

34

82

Total **

160

8.964

70.007

356

1.911

* No quadro-sntese por tipos de unidades industriais constam 151 fbricas e nove oficinas
(Inq. Ind. 1881, Resumo, p.86-7). No sendo explicitado o critrio de classificao utilizado, e
dado que, como se pode ver pelos quadros anteriores, s nos distritos de Castelo Branco e no
da Guarda, o nmero de oficinas muito mais elevado, no se considerou esta classificao
justificada e manteve-se a classificao do quadro-sntese do setor de lanifcios (ibidem, n.16).
** In clu das as fbricas de Aveiro, Bragan a, Faro, Portalegre, San tarm e Viseu , qu e n o se
explicitam aqu i.

236

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

N OTA S
1. NEVES, J. A. das. Variedades sobre os objetos relativos s artes, com rcio e m an u fatu ras.
In : Obras Completas. v.III, t.I, p.239-70; PEDREIRA, J. Estrutura industrial e comrcio colonial:
Portu gal e Brasil, 1780-1830. cap.II, p.129, 137; NUNO, M. Mercado e privilgios na indstria
portuguesa, 1850-1834, ruralizao na Covilh. p.528-532 (Mim eogr.). DEWERPE, A. L' industrie
aux champs. Essai sur la proto-industrialisation en Italie du Nord (1800-1880), 1985; crtica in teressan te ao m odelo da proto-in du strializao do pon to de vista dem ogrfico, salien tan do qu e n o
caso do n orte de Itlia se caracteriza por u m crescim en to m oderado.
2. PEREIRA, M. H. Atitu des polticas e relaes econ m icas in tern acion ais n a 1. m etade do
scu lo dezan ove em Portu gal. In : Das Revolues liberais ao Estado Novo, 1994
3. RAPHAEL S. Workshop of the world: steam power an d h an d tech n ology in m id - victorian
Britain . In : History Workshop Journal. 1977. v.3, p.18. Um estu do clssico, m u ito bem docu m en tado. Con tm u m qu adro m u ito til da u tilizao da en ergia a vapor por setor in du strial
em 1870. Boa sn tese do caso in gls em BERG, M. La era de las manufacturas, e em JOYCE, P.
Cambridge Social History of Great Britain. v.I. SABEL, C., ZEITLIN, J. Historical altern atives to
m ass produ ction . In : Past in Present, Au gu st 1985. LEQUIN, Y. Les ouvriers de la rgion lyonnaise (1848-1914); COTTEREAU, A. Th e distin ctiven ess of workin g-class cu ltu res in Fran ce,
1848-1890. In : KATZNELSON, ZOLBERG. Working-class formation. SCRANTON, P. Proprietary
Capitalism: th e Textile Man u factu rer at Ph iladelph ia, 1983, in ZEITLIN, J. Les voies m u ltiples
de l'in du strialisation . In : Mouvement Social, 1985. p.133. DEWERPE, A. L' industrie aux champs.
Essai su r la proto-in du strialisation en Italie du Nord (1800-1880), 1985.
4. Au tores acim a citados, n om eadam en te Sam u el, Joyce e Cottereau , op. cit.; LEQUIN, Y. Le
m tier. In : NORIA, P. Lieux de la mmoire, e DEWERPE, A. Le monde du travail en France (18001950).
5. Nem sem pre se pu blicaram os resu ltados in tegrais dos in qu ritos, a docu m en tao do in qu rito tecelagem do Porto de 1898 n u n ca ch egou a ser editado de form a com pleta, para
n o referir os in qu ritos an teriores a 1860.
6. Abu sava-se das palavras fbrica e fabricante n as reparties de fazen da, com o se observava
n o in qu rito, a propsito do An u ario da Direo-Geral das con tribu ies diretas, In q. In d.
1881, II, III, p.57. Acerca da im preciso do con ceito de fbrica n o in cio do scu lo, ver PEDREIRA, J, op. cit., p.178-182.
7. Relatrio da su bcom isso en carregada da visita aos estabelecim en tos in du striais, In qu rito In du strial 1881, II-II, Direto.
8. In qu rito Dir. Visita, II-II, p.35-37
9. Ver n ota 45. H ain da a con siderar as om isses de fbricas, m as em bora n o ten h am sido
in clu das algu m as em presas im portan tes, n o con ju n to essas lacu n as n o alteram sign ificativam en te a pon derao das fbricas n o con ju n to.
10. In qu rito, In trodu o ao Resu m o, p.XXX-V: explica-se esta situ ao e in dica-se qu e
esta correo n o foi efetu ada n os qu adros-sn tese (qu adro sem correo, p.86-7) m as pu blica-se a desagregao das oficin as, o qu e m e perm itiu fazer a correo setor a setor. Feita a
correo, o con ju n to das oficin as passa de 907 para 2.515 u n idades.
11. CORDEIRO, J. L. Indstria e energia na bacia do Ave 1845-1959. Braga, 1993 p.107-10. Dissertao (Mestrado, Mim eogr.).
12. Relatrio Geral do Ju rado in Exposio da Indstria 1849, Sociedade Prom otora da In d stria Nacion al, p.6 atribu do a Oliveira Marreca, m as assin ado con ju n tam en te por Jos Maria
Gran de, Hen riqu e Nu n es Cardoso, Fran zin i, Joo An drade Corvo.
13. In qu rito de 1830, Ju n ta do Com rcio, em SERRO, J. Temas oitocentistas. v.I p.142-5.,
JUSTINO, D. A formao do espao econmico nacional. v.I, p.98.
14. In q. In du str, Dir., Parte II, L.II, relatrio da Com isso Cen tral do Distrito do Porto, qu adros p. 272-5 e p. 279-80.

237

Miriam Halpern Pereira

15. Esta estim ativa n o con diz com os dados do In qu rito In du strial de 1890, m u ito in feriores, IV, p. 486-7, 508-509, 615-619; recorde-se qu e se trata de in qu rito in dreto. J n o Inqurito Tecelagem do Porto, 1898, p.8-9, aceita-se a estim ativa de 10 m il teares, e eleva-se ain da
m ais o clcu lo do n m ero de pessoas correspon den tes, qu atro em m dia por tear, ou seja,
u m total de 40 m il.
No m esm o perodo, com pare-se com Lyon , u m cen tro de forte especializao in du strial e com
organ izao da produ o do tipo de fbrica coletiva: existiam 35 m il teares de seda, m ais do
dobro qu e n o fim do An tigo Regim e, qu an do eram calcu lados em 14 m il (LEQUIN, Y. Les ouvriers de la rgion lyonnaise (1848-1914). v.I, p.65-66, GARDEN, M. Lyon et les lyonnais au XVIII.e
sicle. p.209), parcela ain da pequ en a da expan so da segu n da m etade do scu lo XIX, qu e fora
particu larm en te im portan te n a regio em redor de Lyon , on de o n m ero de teares passou de
60 m il a 120 m il en tre 1850 e 1872.
16. In qu rito de 1889, j referido, p.8-9. PERY, G. refere 277 pequ en as fbricas de tecelagem
de algodo e trs de fiao n o distrito do Porto, em Geografia e estatstica geral de Portugal e colnias, 1875, p.147.
17. In qu rito In d. 1881, visita s fabricas do Porto, p.138 a 151.
18. Op. cit., p.43-44
19. Con ceito u tilizado n a poca por Leplay, retom ado por Yves Lequ in para a in d stria oitocen tista da seda em Lyon e Alain Cottereau em term os m ais gen ricos.
20. Ver n .18.
21. Nesta con tagem , in clu ram -se todas as u n idades com dez ou m ais operrios, critrio qu e
pelo m en os tem a van tagem de ser u n iform e. O n m ero de fbricas portan to su perior ao
in dicado n os qu adros-sn tese do In q. 1881, qu e de trin ta.
22. Cerca de m etade dos fu sos ativos fu n cion avam n o Porto, m as o n m ero de teares m ecn icos era ligeiram en te su perior em Lisboa, on de os teares m an u ais recen seados eram in sign ifican tes, o qu e j sabem os n o ser o caso n o Porto.
23. Acerca dos m ercadores de tecidos e a in d stria da estam paria n o in cio do scu lo XIX, ver:
PEDREIRA, J. Indstria e negcio: a estam paria da regio de Lisboa, 1780-880. A.S. p.112-113,
1991; Estrutura industrial e mercado colonial (1780-1830), 1994. Acerca do con flito de in teresses en tre m ercadores e in du striais deste setor n o m esm o perodo, PEREIRA, M. H. Negociantes, fabricantes e artesos entre velhas e novas instituies, 1992.
24. PEREIRA, M. H. Portugal e a partilha do mercado mundial nos sculos XIX e XX, 1976, reeditado com aditam en tos em Das Revolues liberais ao Estado Novo, 1994. cap.IV, p.159-60.
25. Oficin as de algodo e lin h o (tecelagem , tin tu raria, fitas e passam an aria): distritos de Lisboa -1, Porto - 142, Viseu - 4, em Ton dela. No distrito do Porto, 58 oficin as localizavam -se
n o con celh o do Porto, 51 n o con celh o de Pen afiel, as restan tes disperavam -se por vrios con celh os. Dados extrados do In q. In d. 1881, Resu m o, qu adro 15, e corrigidos pela leitu ra do
in qu rito.
26. Inqurito tecelagem no Porto, 1889, p.7.
27. Relat. do Ju rado, op. cit., p.12-3, situ ao qu e atribu ida in existn cia de ju ro, en qu an to a fbrica paga ju ro pelo crdito, ao qu e se segu e u m a apologia de u m a taxa do ju ro redu zida para a in d stria.
28. In q. In d. 1881, I, p.82. Aban don ado o fabrico de lon as por esta Com pan h ia, em razo da
direitos desfavorveis, h aviam passado a produ zir brin s, passadeiras de ju ta, pan o de lin h o e
toalh as adasm acadas. Neste dom n io a con corrn cia estran geira n o en trava. Mas en con travam a con corrn cia portu en se.
29. Relatrio da su bcom isso do distrito do Porto, In q. In d. 1881. Dir, II, p.151-2
30. Inqurito tecelagem do Porto, 1889, p. 8-9.
31. GIRALDES, M. M. N. Mon ografia sobre a in d stria de lin h o n o distrito de Braga, 1913.
p.106 e 102. In : CORDEIRO, J. L. Indstria e energia no vale do Ave 1845-1959. Braga, 1993.
p.87-8 (Mim eogr.).

238

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

32. Clcu los feitos por m im com base n as estatsticas do com rcio extern o. Acerca de toda
esta com plexa situ ao pau tal, e a in existn cia de su ficen te diferen ciao de direitos, ver a
excelen te m em ria sobre a in d stria do algodo oferecida com isso cen tral do In qu rito de
1881, pelo proprietrio da fbrica de algodo torcido e tin to H. P. Taveira, Porto, In q. In d.
1881, v.I, p.110 e ss., e o depoim en to do diretor da Com pan h ia de Torres Novas, p.86-89. Ver
tb. PEREIRA, M. H. Portu gal e a partilh a do m ercado m u n dial. In : Das Revolues liberais
p.159-160.
33. Filom en a Mn ica m ostra bem os efeitos do "boom " african o e seu s lim ites m edian te a
an lise da evolu o da Real Fbrica de Tom ar, Os teceles de algodo. In : Artesos e operrios,
p.163-4.
34. Estatsticas do com rcio extern o, dados organ izados por m im ; referem -se aqu i valores,
n o qu an tidades.
35. SIMES, O. Escoro dalgu n s aspectos da in d stria fabril portu gu esa. In : BTI, n .83, p.20
ss. Neste en saio Oliveira Sim es forn ece dados acerca da situ ao com parativa da produ tividade e igu alm en te da alim en tao, salrios, con dies de vida do operrio e form ao tcn ica em Portu gal e n ou tros pases eu ropeu s, fatores qu e n o seu con ju n to explicariam a baixa
produ tividade. Dados acerca da produ tividade com parada n a in d stria portu gu esa e eu ropia
on de so relacion ados u n icam en te com a edu cao e a form ao tcn ica em REIS, J. A in du strializao n u m pas de desen volvim en to len to e tardio. In : O atraso econmico portugus:
1850-1930. Acerca da evolu o do con su m o alim en tar, ver, PEREIRA, M. H. Nveis de con su m o e n veis de vida em Portu gal (1874-1922). In : Das Revolues liberais ao Estado Novo,1994
36. Dados do In qu rito In du strial de 1917 em MEDEIROS, F. A sociedade e a economia portuguesa nas origens do salazarismo, 1978. p.75-77. In felizm en te n o foi efetu ada u m a an lise por
ram os in du striais e por zon as, qu e perm ita com parar m ais aprofu n dadam en te com a in form ao de 1881 tratada acim a.
37. PERDIGO, J. A. A in d stria em Portu gal. In : Arquivos da Universidade de Lisboa, 1916.
v.III, p.115.
38. Clcu los efetu ados por m im com base n as estatsticas de Mitch ell, 1978.
39. Relatrio da com isso en carregada de con h ecer o estado da in d stria agrcola, com ercial
e fabril do con celh o da Covilh , 6 de dezem bro de 1839, idem con celh o de Ceia, 18 de Maro de 1840 in Correspondncia do M. Reino com a Cmara dos Pares, seco VI., Cx. 2, A.H.P.
40. SILVEIRA, F. da As fbricas da Covilh, 1863. p.10 e 35. Acrescen taria qu e u m a fbrica, de
Marqu es de Paiva tin h a seis pises ciln dricos m ovidos a vapor. Con su lte-se tam bm PEREIRA, J. M. E. A Covilh e a in d stria dos lan ifcios. Ocidente, n .699, 1897, reeditado em A indstria portuguesa, 1979; baseia-se fu n dam en talm en te em Fradesso da Silveira, m as con tm
algu n s dados teis para a situ ao posterior.
41. In q. In d. 1881. III,p.205
42. Acerca dos recursos energticos: em 1860, SILVEIRA, F., op. cit., p.101-2, 107, 1881,. Nos
meses de vero, os meses da "vela", chegava-se a fazer 6 horas de trabalho noturno. Calculara-se em 1881 que mesmo a estrada de ferro no faria baixar o preo do carvo o suficiente,
e assim aconteceu: ainda em 1933 o preo da tonelada de carvo na Covilh era o quadruplo
do custo em Inglaterra (GALVO, J. A. L. In: I CONGRESSO INDSTRIA PORTUGUESA,
1933. In: CORDEIRO, J. L. op. cit., p.54). Mais flagrante no caso da Covilh, em razo do preo do carvo, os limites dos recursos hidralicos afetavam tambm alguns centros algodoeiros,
como a bacia do Ave, ver CORDEIRO, J. L., op. cit., p.89 e a propsito de cada fbrica. Qui
tambm tenha sido um dos limites da mecanizao da tecelagem nesta regio.
43. N de h abitan tes da cidade da Covilh :
1864
1878
1890
9.022
10.809
17.562
A populao da Covilh (quatro freguesias) aumentou 62,47% entre 1878 e 1890, enquanto Lisboa
nesse perodo apenas aumenta 28,4% . Para a populao industrial, recenseamentos de 1890 e 1911:
concelho da Covilh (maior que a cidade, para a qual no existe esta informao) 43% e 39% .

239

Miriam Halpern Pereira

44. Para torn ar com parvel a con tagem de fbricas aqu i e n o resto do pas, n o m e pareceu
correto con tar s as fbricas com pletas. No algodo tam bm existiam fbricas in com pletas, s
de estam paria, de tecelagem ou de fiao. O m otivo porqu e n o se lh es daria essa design ao pren de-se ao fato de elas n o con stitu rem u m elo de u m a cadeia produ tiva com o aqu i.
Pareceu -m e prefervel m an ter a design ao de origem , qu e correspon de a u m a diferen a de
estru tu ra.
45. In qu rito de 1839/ 1840, op.cit.
46. MADUREIRA, N. Mercado e privilgios na indstria portuguesa, captu lo sobre a Covilh ,
p.498.
47. No total de operrios esto in clu dos os m estres e os escritu rrios, qu e, on de existem , raram en te passam da u n idade.
48. A oficin a de Sebastio Rato de pisoam en to, tesou ra e tin te em 1863, com trs operrios,
tem em 1881 tam bm teares, fiao e oiten ta operrios. A fbrica de Jos Men des Veiga, an tigo m ercador, u m a das m ais an tigas, data de 1784 passa de 92 a qu atrocen tos operrios.
(MADUREIRA, N. op. cit., p.484; SILVEIRA, F. In dagaes, p.112-3, n .30 ; In q. In d. 1881,
p.186, n .6 e 8). Ou tras ligaes parecem possveis, m as seria n ecessrio ter elem en tos com plem en tares; advin h am -se bastan tes m u dan as de n om e, resu ltan tes de provveis agregaes de firm as an teriores.
49. SILVEIRA, F., op. cit., qu adro p.117.
50. Ibidem , m apas 112 e ss.
51. Das restan tes oficin as, dez so tin tu rarias, u m a de apisoar, seis so de tecer.
52. 1881: Total das m u lh eres n a in d stria: 39,4% ,(ligeiram en te m en os qu e em 1863, 41% ).
Nas prin cipais on ze em presas em 1881: 41,5% . O trabalh o fem in in o n a gran de in d stria tin h a tradio an tiga, fora u m exclu sivo da Real Fbrica. (MADUREIRA, N., op. cit., p.501).
Men ores: em 1863, m ascu lin os 315, fem in in os 26; em 1890, m ascu lin os 1.202, fem in in os
272. Ver, tam bm , qu adro 1. Com o j acon tecia an teriorm en te n esta regio, a u tlizao de
m en ores afetava sobretu do a popu lao m ascu lin a, ver MADUREIRA, N., op. cit., p.498.
53. Ibidem , p.88-92. A afirm ao de David Ju stin o de qu e a pequ en a produ o tin h a pou ca
im portn cia sobretu do por se dedicar a fases parcelares da produ o, m ostra a su a in com pren so peran te a organ izao especfica da Covilh . (v.I, p.102) .
54. A form a com o o forn ecim en to da prin cipal m atria-prim a, a l, estava organ izada era ou tro dos problem as graves da in d stria da Covilh e da regio serran a. A in existn cia de forn ecim en to regu lar obrigava a com pras an u ais n as gran des feiras, o qu e im plicava ou u m
gran de em pate de capital ou o recu rso ao crdito com ju ro elevado. SILVEIRA, F., op. cit.,
p.48; In q. In d. 1881, III. Visita ao distrito da Gu arda, p.84-151. O abastecim en to de l era
efetu ado n os prin cipais pon tos de produ o relativam en te prxim os, o Alen tejo, Beiras, Espan h a, m as para os tecidos su periores era in dispen svel com prar l proven ien te da Alem an h a, Au strlia e da Am rica. Silveira, F., op. cit., p.92.
55. Ibidem , p.90-2.
56. Resposta dos fabrican tes da Covilh aos qu esitos propostos pela com isso das Pau tas em
1858. Jorn al da Associao In du strial Portu en se, n .8, p.59, 24 m aro de 1860.
57. SCRANTON, P. Proprietary capitalism : th e textile m an u factu rer at Ph iladelph ia, 1983. In :
ZEITLIN, J. Les voies m u ltiples de l'in du strialisation . In : Mouvement Social, 1985, p.133.
58. Con clu so do relatrio de dois delegados da Com isso Cen tral de In qu rito qu e visitaram
a regio, 1881, In q. In d. v.III, p.172-3 e o con ju n to do relatrio p.88 ss., dos m ais com pletos
de todo in qu rito.Ver tam bm SILVEIRA, F., op. cit.
59. PERDIGO, J. A. A in d stria em Portu gal. In : Arquivos da Universidade de Lisboa, 1916,
v.III, p.117 ss. POINSARD, L. Le Portugal inconnu, 1910. p.209, con sidera a regio decaden te;
porven tu ra u m a viso exagerada.
60. O prin cipal m ercado n a distribu io dos tecidos da Covilh , pelo m en os n os an os 60, era
Man gu alde, on de os prin cipais fabrican tes da Covilh tin h am arm azn s e ali ven diam por
grosso aos com ercian tes do Norte, n a feira do 1 dom in go do m s. SILVEIRA, F., op. cit., p.92.

240

DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

61. Ver Qu adro 3: n o total das 160 fbricas, 117 situ am -se n os distritos de Castelo Bran co e
da Gu arda e a m aioria eram pequ en as e m dias u n idades in du striais.
62. Dados organ izados por m im , com base n as estatsticas do com rcio extern o.
63. Relatrio do Ju rado, 1850, p.29, con cepo qu e se espraia n as p.26-30. MARTINS, O. Fomento rural e emigrao, p.197.
64. Teriam ch egado a 22 m il os trabalh adores n a con stru co das lin h as do Norte e do Leste
en tre 1861 e 1864, dim in u in do posteriorm en te, PINHEIRO, M. Chemins de fer, structure financire de l' Etat et dpendance extrieure. Tese (Dou torado), p.224-5, (Mim eogr.). Acerca do papel
da agricu ltu ra n a segu n da m etade do scu lo XIX, ver o m eu livro Livre cmbio e desenvolvimento econmico: Portu gal n a segu n da m etade do scu lo XIX 2.ed. 1971, 1983.
65. Acerca da in d stria corticeira e con serveira e as su as relaes com o m ercado in tern acion al, ver MIRANDA, S. O crculo vicioso da dependncia (1890-1939),1991. Um a verso diferen te
em REIS, J. A in du strializao n u m pas de desen volvim en to len to e tardio: Portu gal,18701913. In : O atraso econmico portugus 1850-1930.

241

captu lo 13

CA USA S HISTRICA S D O ATRA SO


ECON MICO PORTUGUS
Jaim e Reis*

O atraso econ m ico portu gu s n o lon go prazo, em bora u m tem a


cen tral n a atu alidade, apen as com eou a gan h ar esse foro n a h istoriografia portu gu esa a partir de fin s da dcada de 1960. Para este arran qu e con tribu ram prin cipalm en te trs fatores. O prim eiro e o m ais im portan te foi
o com eo, por essa altu ra, de u m a ren ovao n o estu do da Histria Econ m ica em Portu gal, qu e, se pau tou , alm de ou tros aspectos, pela colocao de qu estes con sideradas relevan tes para a com preen so da sociedade portu gu esa con tem porn ea. Neste con texto, as origen s h istricas da
situ ao atu al da econ om ia n acion al em com parao com ou tras sem elh an tes ou m ais avan adas n o podia deixar de con cen trar as aten es.
Um segu n do fator foi o progresso, en tre vrios ou tros realizados em Portu gal n o con h ecim en to h istrico, ocorrido n o dom n io da qu an tificao,
sobretu do m acroecon m ica, e qu e, graas con stru o, pela prim eira
vez, de sries de preos, salrios, com rcio extern o, m oeda e m esm o do
produ to n acion al, veio torn ar possvel u m estu do srio deste tem a. Em
terceiro lu gar, realce-se a exploso do in teresse em n vel m u n dial pela
qu esto do crescim en to econ m ico n o lon go prazo, u m tem a qu e, du ran te as ltim as dcadas, tem ocu pado n o s h istoriadores e econ om istas
m as as cin cias sociais em geral.
Se bem qu e n ovo por esta ptica, o problem a est lon ge de o ser
n o debate p blico em Portu gal. Pelo m en os desde o scu lo XVI qu e,
du m a form a ou de ou tra, pu blicistas, dou trin adores econ m icos, con selh eiros e m in istros da coroa ou do govern o, periodistas e parlam en tares
se tm in terrogado sobre a decadn cia da Nao, a debilidade dos seu s recu rsos m ateriais, a escassez e pobreza da su a popu lao, a su a fraca capacidade produ tiva, a fragilidade de m eios para en fren tar as am eaas extern as. Com o scu los XIX e XX, porm , tais d vidas parecem ter-se torn ado m ais prem en tes e m ais persisten tes, ao m esm o tem po qu e form u ladas
com m aior clareza an altica e cada vez m ais focadas sobre o atraso in du strial do pas. A isto n o ter sido alh eia a percepo crescen te e, com o verem os, n o in fu n dada, de qu e Portu gal estava efetivam en te fican do m ais
e m ais para trs m edida qu e n a Eu ropa, n a Am rica e m esm o n o resto

243

Jaime Reis

do m u n do, a civilizao in du strial avan ava a passos largos, geran do cada


vez m ais riqu eza e m eios de a reprodu zir.
O estu do atu al desta qu esto n u m a perspectiva de lon go prazo
an tes de m ais u m exerccio em h istria com parada. Dado qu e o con ceito
de atraso econ m ico de su a n atu reza relativo, a su a aplicao apen as
far sen tido atravs do con fron to do caso em apreo com a experin cia
de ou tros pases, su bsistin do apen as a d vida sobre qu ais as econ om ias
qu e devero ser tom adas com o term o de aferio. Em segu n do lu gar, este
estu do tem com o requ isito prim acial u m esforo sign ificativo de qu an tificao retrospectiva da atividade econ m ica n acion al. Sem isto torn a-se
im possvel traar, com rigor, os in dispen sveis paralelos e con trastes en tre os pases em con fron to, qu e faam sobressair as diferen as n o desem pen h o das respectivas econ om ias. Nesta caracterizao, so sobretu do
cen trais con ceitos com o o n vel de ren dim en to per capita e a taxa an u al
de crescim en to do produ to n acion al. Por ltim o, salien te-se qu e a an lise do atraso econ m ico se tem circu n scrito, n a gen eralidade, ao m bito
cron olgico da poca Con tem porn ea. De fato, foi s du ran te os scu los
XIX e XX qu e o crescim en to teve u m carter n ico n a Histria, tan to pela
su a in ten sidade com o pela su a n atu reza su sten tada e pelo seu im pacto
n as estru tu ras socioecon m icas, perm itin do, deste m odo e a despeito de
fortes presses dem ogrficas, atin gir n veis de bem estar e de con su m o in dividu ais in im agin veis n ou tros tem pos. Mas a rapidez do progresso e da
difu so da tecn ologia, a crescen te circu lao in tern acion al do capital e do
trabalh o e a expan so das trocas com erciais, qu e estiveram n a raiz deste
processo, n o afetaram a econ om ia m u n dial de u m a form a h om ogn ea.
Daqu i terem n ascido divergn cias de com portam en to cu jo efeito cu m u lativo, ao fim de decn ios, viria a redu n dar em con trastes m ais ou m en os
acen tu ados en tre n aes com relao respectiva prosperidade e din am ism o econ m ico.
No con texto geogrfico das econ om ias ociden tais a qu e perten ce,
Portu gal tem ocu pado persisten tem en te u m lu gar de traseira ao lon go dos
ltim os 150 an os. Seja a com parao feita com a In glaterra da Revolu o
In du strial, ou com os EUA, a econ om ia lder m u n dial do scu lo XX, ou
ain da com u m con ju n to m ais ou m en os alargado de econ om ias desen volvidas, a resposta sem pre a m esm a. Na prim eira m etade dos oitocen tos,
o pas era dos m ais pobres da Eu ropa, com u m ren dim en to per capita provavelm en te 40% ou m en os do in gls e en tre 50% e 60% do n vel atin gido en to por econ om ias perifricas do Norte da Eu ropa com o a Din am arca ou a Su cia.1 A partir daqu i e at Prim eira Gu erra Mu n dial, a econ om ia portu gu esa cresceria de form a su sten tada, m as a u m ritm o qu e ficou
bastan te aqu m da expan so in tern acion al qu e en tretan to ocorria e o fosso, qu e j existia, foi-se cavan do cada vez m ais fu n do. Os portu gu eses aca-

244

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

bariam por ficar certam en te m ais ricos ao lon go destas dcadas, o acrscim o n o seu ren dim en to real cifrou -se en tre os 40% e os 65% m as,
com o se figu ra, a su a posio relativa tin h a decado acen tu adam en te. Em
1913, o produ to n acion al per capita era cerca de 30% da m dia de u m con ju n to de 19 pases qu e poca se poderiam con siderar avan ados.2
Com os an os 20 deste scu lo in iciava-se u m a in verso n esta ten dn cia e despon tava u m a n ova era. No s m an tin h a-se o crescim en to
Logaritm o natural do PNB pe r capita e m Portugal com o pe rce ntage m do
logaritm o natural PNB pe r capita e m pase s de se nvolvidos (1850-1992)
70
65

Pe rce ntage m

60
55
50
45
40
35
30
1990

1986

1982

1978

1974

1970

1966

1962

1958

1954

1950

1946

1942

1938

1934

1930

1926

1922

1918

1914

1910

1906

1902

1898

1894

1890

1886

1882

1878

1874

1870

1866

1862

1858

1850

1854

25

su sten tado da econ om ia, com o, graas a taxas agora relativam en te m ais
elevadas, cessava o seu decln io relativo e, a partir da dcada de 1930, o
pas en trava n o ram o ascen den te da cu rva em U, n a figu ra, qu e tradu z a
progressiva recu perao em relao s econ om ias qu e n os servem de term o de com parao.3 En tre 1930 e 1939, o produ to n acion al per capita em
Portu gal su bia para 35% da m dia acim a referida; n a dcada de 1950,
elevava-se para 37% ; e n os prin cpios dos an os 70, n a seq n cia dos
An os de Ou ro do ps-gu erra e an tes do prim eiro ch oqu e petrolfero,
atin gia os 54% .4 Con trariam en te perspectiva tradicion al sobre este perodo e qu e ain da en con tra aderen tes, o Estado Novo, lon ge de ter sido
u m tem po de estagn ao, foi u m a das pocas m ais din m icas, em term os
econ m icos, da h istria portu gu esa.5
Peran te com portam en tos de lon go prazo to con trastan tes, n o
su rpreen de qu e tam bm a h istoriografia os ten h a procu rado separar n a
su a bu sca de explicao para os ritm os da econ om ia portu gu esa n o con fron to com as dem ais. No caso do atraso cada vez m ais acen tu ado do scu lo XIX, a n fase tem sido posta n as barreiras, in tern as e extern as, qu e
im pediram qu e os fatores in tern acion ais estim u ladores do crescim en to tivessem tido u m im pacto sem elh an te ao registrado n ou tras econ om ias sim ilarm en te atrasadas e qu e com eavam tam bm en to a crescer em bora

245

Jaime Reis

de form a m ais din m ica. Para o segu n do perodo, do scu lo XX, a qu esto qu e se coloca algo diferen te. Con siste em saber com o e at qu e pon to aqu elas barreiras tero cado e qu e im pu lsos an tigos ou n ovos tero
en tretan to proporcion ado a n otvel elevao n o ritm o de expan so verificado desta vez.
Para u m a prim eira gerao de estu diosos, n os in cios dos an os 70,
o acen to deveria ser posto em trs aspectos do problem a. Um a revolu o
liberal in com pleta, du ran te as prim eiras dcadas do scu lo XIX, e u m desen volvim en to in com pleto do capitalism o, su bseq en tem en te, tero tido
com o con seq n cias u m a estru tu ra agrria, assen tada n u m du alism o m in if n dio/ latif n dio, qu e n o en corajava n em a eficin cia produ tiva, n em
u m a repartio de ren dim en tos m ais equ ilibrada. Por ou tro lado, circu n stn cias polticas im pu n h am ao pas, a partir de 1840, u m livre-cam bism o
qu e expu n h a a su a in cipien te in d stria a u m a feroz con corrn cia extern a e o em pu rrava em sim u ltn eo para u m a especializao agrcola e de
exportao de produ tos prim rios, sobretu do para a In glaterra. Em tais
con dies, faltou ao setor m an u fatu reiro o im pu lso com pen satrio de
u m a procu ra in tern a forte qu e o fizesse crescer e, m odern isan do-se, lh e
possibilitasse com petir in tern acion alm en te, pelo qu e o seu con tribu to
para o crescim en to n o cu m priu aqu ilo qu e seria de esperar dele. agricu ltu ra estava destin ada, a prazo, a estagn ao, dada a con corrn cia cada
vez m ais in ten sa n o m ercado extern o e a in abilidade estru tu ral, em n vel
socioecon m ico e tcn ico, para su perar a su a produ tividade proverbialm en te baixa.6 As dificu ldades su scitadas por esta depen dn cia extern a
con ju gavam -se com u m a h eran a sociocu ltu ral provin da do An tigo Regim e e de qu e resu ltava, por u m lado, u m a sociedade fech ada aos valores
em presariais m odern os e ao esprito racion al e cien tfico e, por ou tro, a
falta de u m a ordem poltica bu rgu esa forte e qu e abraasse o progresso
econ m ico acelerado.7
O debate acerca das cau sas do atraso econ m ico portu gu s n o scu lo XIX con h eceu u m n ovo im pu lso a partir da dcada de 1980, m erc
de u m a srie de trabalh os qu e vieram levan tar d vidas em relao s in terpretaes vigen tes e propor n ovas solu es. Um a destas objees cen trava-se sobre a tese da depen dn cia extern a. Nu m a com parao in tern acion al, Portu gal afin al n o s estava lon ge de ser livre-cam bista an tes,
tin h a u m a das protees alfan degrias m ais altas da Eu ropa com o tin h a
u m a das depen dn cias extern as m ais fracas. En tre as econ om ias pequ en as e m ais atrasadas da poca, a razo das su as exportaes para o produ to n acion al bru to, qu e n os serve para m edir esta dim en so, era dos
m ais baixos.8 Ao m esm o tem po argu m en tava-se qu e, pelo m en os n a su a
dim en so latifu n diria, a estru tu ra agrria n o seria respon svel pelo
atraso tcn ico do setor prim rio, an tes revelava u m a capacidade de adap-

246

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

tao in ovao e s con dies de m ercado perfeitam en te com parvel


com a de ou tras econ om ias con tem porn eas, em algu m as das qu ais, alis,
o progresso da agricu ltu ra estava lon ge de se revelar in com patvel com a
gran de propriedade r stica.9 Por ltim o, qu estion ava-se se o m en or em pen h o da bu rgu esia portu gu esa n o processo de m odern izao resu ltaria
da persistn cia da fora e [da] rigidez da dom in ao aristocrtico-religiosa da sociedade de An tigo Regim e; ou se n o seria an tes fru to da escassez de oportu n idades de in vestim en to ren tvel em setores avan ados qu e
s u m a econ om ia m ais rica e din m ica podia proporcion ar.10
A rein terpretao qu e se propu n h a assen tava em vrios pon tos. Prim eiro qu e tu do, h avia qu e especificar com clareza qu al o term o de com parao para a econ om ia portu gu esa oitocen tista. Em vez da In glaterra, da
Fran a ou da Alem an h a, dem asiado desen volvidas para o efeito, defen diase com o m ais apropriado o recu rso a econ om ias sem elh an tes do pon to de
vista da dim en so, do grau de desen volvim en to in icial e da depen dn cia
extern a. A Escan din via parecia forn ecer u m padro adequ ado n a m edida em qu e era com posta por econ om ias pequ en as e pobres partida, de
base agrria e tam bm elas com u m a acen tu ada depen dn cia em relao
In glaterra. No en tan to, tin h a con segu ido taxas de crescim en to a lon go
prazo n otveis ao lon go de toda a segu n da m etade do scu lo XIX, su gerin do qu e o papel das exportaes, m esm o de produ tos prim rios, podia ser
u m fator im portan te n a din am izao de qu alqu er econ om ia perifrica e
logo da portu gu esa. Don de u m segu n do pon to posto con siderao era o
de saber se em vez de depen dn cia extern a excessiva, o problem a n o teria an tes sido o da su a falta. Um exem plo con trafactu al para testar esta assero su geria qu e o resu ltado de u m a h ipottica in du strializao pela
su bstitu io de im portaes, resu ltan te de u m proibicion ism o extrem o, dificilm en te atin giria o de u m a plau svel expan so das exportaes tradicion ais do pas, pelo qu e a terceira qu esto torn ou -se a de saber por qu e m otivos Portu gal exportou to pou co en tre 1850 e 1913.11
Um destes m otivos era a su a fraca dotao de recu rsos n atu rais. Por
u m lado, faltavam a Portu gal os recu rsos m in erais e florestais qu e perm itissem su sten tar qu er u m a in d stria qu er u m a exportao vigorosa n estas reas, com o su cedeu n a Su cia. Alis, os dois setores exportadores de
m aior su cesso n o perodo as con servas de peixe e a cortia defron tavam lim itaes deste cariz qu e os im pediam de ser m otores do desen volvim en to n acion al. Por ou tro lado, o solo e o clim a eram tu do m en os favorveis in trodu o n o setor agrcola de algu m as das in ovaes tcn icas m ais sign ificativas destes an os, qu e possibilitaram n o Norte da Eu ropa elevados gan h os de produ tividade e u m a forte expan so produ tiva e
das su as exportaes. Pelo con trrio, em Portu gal a especializao agrcola possvel era em cereais, vin h o e azeite, produ tos qu e n estes an os en -

247

Jaime Reis

fren taram u m a procu ra in tern acion al fraca e crescen tes dificu ldades com petitivas n os m ercados extern os. O problem a estava em qu e n em o pas
tin h a van tagen s com parativas n a produ o de carn e, laticn ios e ovos,
qu e eram os gn eros agrcolas tem perados com ercialm en te m ais van tajosos n esta poca, n em a su a agricu ltu ra era capaz de levar a cabo os m elh oram en tos precisos para lh e gran gear u m estatu to verdadeiram en te
com petitivo. Con vm acrescen tar qu e a terra n o s era m com o era
pou ca relativam en te ao n m ero dos qu e a cu ltivavam . Em 1900, h avia 3
h ectares de terra por ativo, en qu an to n a Fran a e n a In glaterra h avia 5,4
e 10 h ectares respectivam en te.
escassez de recu rsos n atu rais som ava-se u m a n o m en os m arcada deficin cia de recu rsos h u m an os. Du ran te a segu n da m etade do scu lo XIX, Portu gal foi u m dos pases eu ropeu s m en os dotados n este aspecto, em virtu de de u m an alfabetism o em prin cpio esm agador, qu e atin gia
qu atro qu in tos da popu lao e logo a vasta m aioria da fora de trabalh o
por volta de 1850; e de u m a taxa de escolarizao baixa dem ais para ven cer esta con dio de atraso social. Em 1911, os iletrados con stitu am ain da 75% dos portu gu eses en qu an to n a Itlia esta proporo era de 46% e
n a Espan h a de 53% , sin al de qu e o problem a, n a su a verten te portu gu esa, n o era sim plesm en te explicvel por fatores cu ltu rais ou religiosos.12
Em bora lon ge de ser m atria pacfica, a relao en tre n vel cu ltu ral
e edu cativo e produ tividade parece su ficien tem en te explcita, m esm o n o
qu e toca ao scu lo passado, para n o cau sar estran h eza qu e as m ais altas
taxas de crescim en to econ m ico n a Eu ropa se ten h am verificado, du ran te o perodo em con siderao, em pases, com o a Din am arca e a Su cia,
com u m a elevada form ao e dotao de capital h u m an o. Nesta lin h a de
raciocn io e em bora carecen do ain da de u m a am pla in vestigao, as in dicaes atu alm en te dispon veis sobre Portu gal apon tam para qu e, qu er n a
in d stria qu er n a agricu ltu ra, este ter sido u m fator sign ificativo para explicar o fraco desem pen h o de am bos os setores, u m a circu n stn cia qu e,
alis, n o passava despercebida dos em presrios con tem porn eos, com o
fator de atraso tecn olgico e de baixa ren tabilidade do trabalh o in du strial.
A fraca qu alificao da m o de obra a todos os n veis do aparelh o
produ tivo n o era, n o en tan to, a n ica razo para qu e a produ tividade da
in d stria portu gu esa fosse geralm en te m etade ou m en os daqu ilo qu e se
registrava n os pases m ais avan ados. Argu m en tava-se qu e con tribu a
igu alm en te para este resu ltado a redu zida dim en so do m ercado qu e esta
servia e qu e im pedia a m u itos setores de poderem gozar das econ om ias
de escala qu e a tecn ologia m odern a possibilitava e a algu n s, m orm en te n a
in d stria pesada, vedava m esm o a su a im plan tao. O problem a radicava-se n u m a popu lao excessivam en te pequ en a e com u m ren dim en to
pessoal de tal form a baixo qu e a procu ra agregada de ben s m an u fatu ra-

248

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

dos n o ch egava para su sten tar, por exem plo, a in stalao de sequ er u m
con versor Bessem er para a produ o de ao. A solu o para con torn ar
esta dificu ldade era am pliar o m ercado pela exportao, m as a baixa produ tividade com parada da in d stria portu gu esa exclu a eviden tem en te
esta possibilidade. Por ou tro lado, a elevada proteo alfan degria de qu e
ela gozava retirava-lh e o in cen tivo para m elh orar as con dies de produ o sob o im pu lso da con corrn cia extern a, e obrigava-a a procu rar ref gio n o m ercado dom stico som en te. Estava assim in stalado u m crcu lo vicioso de qu e parecia difcil sair, u m a vez qu e n o era possvel abater estas barreiras tarifrias sem grave leso para o tecido in du strial existen te
n o pas e os in teresses a ele ligados. Man ten do-as porm o progresso tecn olgico era in adequ ado para u m crescim en to econ m ico m ais veloz.
A dcada de 1990 n o alterou fu n dam en talm en te os term os deste
debate, m as acrescen tou -lh e n ovas dim en ses e perm itiu lev-lo m ais lon ge n ou tras. Um a destas ltim as a qu esto da deficin cia da fu n o em presarial a qu e Helder Fon seca deu u m a n ova profu n didade, estu dan do as
atitu des econ m icas dos gran des lavradores e proprietrios do Alen tejo
du ran te a segu n da m etade do scu lo passado, u m gru po tradicion alm en te
tido por refratrio m u dan a tcn ica e m axim izao do lu cro. Segu n do
este au tor, pelo con trrio, a regio caracterizou -se por u m a gran de adaptabilidade evolu o das con dies de m ercado. As in ovaes foram adaptadas por estes em presrios agrcolas com a celeridade e a exten so qu e
as circu n stn cias econ m icas ditavam e as form as de in vestim en to e de organ izao da produ o den otaram u m a flexibilidade m u ito distan te do
paradigm a da crn ica falta de in iciativa e din am ism o.13
Em bora n o focan do diretam en te a qu esto da terra n a ptica qu e
aqu i n os ocu pa, a qu an tificao cu idadosa dos valores e qu an tidades en volvidos n a ven da dos Ben s Nacion ais, n os an os aps a Gu erra Civil
(1835-1843), veio de n ovo pr con siderao o argu m en to, tam bm tradicion al, segu n do o qu al esse processo teria fru strado a oportu n idade de
u m a reform a econ m ica n ica e com im portan tes con seq n cias para o
desen volvim en to do pas. verdade, sem d vida, com o se tem afirm ado,
qu e esta ven da em n ada con tribu iu para alterar, com o poderia h ipoteticam en te ter feito, a estru tu ra agrria latifu n diria/ m in ifu n diria e assim
poder-se- dizer qu e esta reform a n o aju dou a erradicar certas caractersticas peren es do m u n do ru ral portu gu s. Mas os dados agora dispon veis tam bm perm item con clu ir qu e o valor e a exten so das terras em
qu esto n o eram de ordem tal qu e, m esm o se tivessem sido estru tu radas em propriedades m dia, com u m a u tilizao presu m ivelm en te m ais
eficaz, o im pacto sobre o produ to n acion al pu desse ter sido m ais do qu e
exgu o. Nu m a altu ra em qu e este ltim o seria de cerca de 200 m il con tos, os Ben s Nacion ais ren deram , em h asta p blica, cerca de 8.500 con tos

249

Jaime Reis

e o produto do seu cultivo no deveria portanto exceder os 4 mil contos por


an o, u m qu an titativo qu e ain da qu e du plicado, h ipoteticam en te, pou co
afetaria o estado econ m ico da n ao n o lon go prazo. 14
Tam bm o Estado, u m com pon en te cen tral n as in terpretaes m ais
recu adas qu e assen tavam n a tese da depen dn cia extern a, ressu rge n esta
n ova vaga revision ista, em bora com ou tras vestes. Segu n do u m a das
perspectivas abertas n a presen te dcada, on de o seu papel se revelou pou co propiciador do crescim en to, n o foi n a su a in capacidade para proteger
a in d stria su ficien tem en te da con corrn cia estran geira, qu e, com o vim os, ter sido afin al u m falso problem a. An tes o qu e faltou foi a prom oo, atravs de tratados com erciais adequ ados, das exportaes dos produ tos prim rios ou sem im an u fatu rados em qu e h avia algu m a van tagem
com petitiva, m as qu e em certas in stn cias se viram em dificu ldades com erciais em con seq n cia de discrim in aes sofridas em m ercados qu e
eram im portan tes para a su a expan so.15
Ain da n este cam po, u m segu n do aspecto in ovador deriva do estatu to do Estado com o prin cipal e m aior agen te econ m ico do pas. Com
u m a despesa p blica de cerca de 14% do produ to n acion al e u m papel
prim acial n o m ercado de capitais, de on de dren ava im portan tes recu rsos
fin an ceiros, qu e de ou tro m odo poderiam ter sido orien tados para aplicaes produ tivas, o seu im pacto era n ecessariam en te su bstan cial e o poten cial para retardar o crescim en to sign ificativo. No qu e toca prim eira
destas dim en ses, agora possvel argu m en tar, com base em estu do de
Eu gn ia Mata, qu e u m a gran de parte dos recu rsos assim absorvidos foram realm en te esterilizados e logo perdidos para o crescim en to da econ om ia, n a m edida em qu e, em m dia, apen as 10% da despesa p blica foi
can alizada du ran te as dcadas em apreo para objetivos econ m icos e
m u ito do restan te u tilizado para su sten tar u m a bu rocracia de fraco valor
n este con texto.16 Sobre a segu n da destas dim en ses, apen as possu m os
resu ltados prelim in ares qu e in dicam , n o en tan to, u m efeito n egativo sobre a econ om ia portu gu esa da segu n da m etade dos oitocen tos. A pu n o
sobre o m ercado fin an ceiro resu ltan te das n ecessidades creditcias do Estado teve efetivam en te u m efeito dissu asor sobre o in vestim en to privado,
m as apen as de form a m oderada.17
Na su a verten te ban cria, tem m erecido tam bm algu m a aten o
o possvel papel propu lsor do m ercado de crdito sobretu do em relao
in d stria, u m con ceito de aplicao freq en te aos pases de desen volvim en to tardio, de acordo com os en sin am en tos de Gersch en kron . Du ran te todo este perodo, a ban ca teve u m a evolu o excepcion alm en te rpida e parece ter can alizado u m a parte n o despicien da dos seu s m eios para
algu n s setores in du striais, o qu e prim eira vista deveria ser favorvel ao
crescim en to global. O sistem a ban crio portu gu s caracterizou -se, n o en -

250

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

tan to, por u m a pu lverizao qu e lh e retirou boa parte da possibilidade de


ter econ om ias de escala, sofreu de in stabilidade ocasion ada por u m a excessiva disperso geogrfica e, talvez por a pou pan a n acion al ser to lim itada, n o logrou jam ais atin gir u m a dim en so su ficien te para con segu ir desem pen h ar u m papel de relevo n a m odern izao da econ om ia.
Apesar de estreito, o seu relacion am en to com a in d stria pau tou -se sem pre por u m con servadorism o qu e pode ter tido as su as razes n os problem as apon tados, m as qu e de qu alqu er form a poder ter travado u m a
tran sform ao m ais rpida do setor in du strial, em particu lar de setores
tecn ologicam en te m ais avan ados e por isso m ais caren ciados de fin an ciam en to a lon go prazo.18
Para alm destes aspectos parcelares su rgiram , du ran te a dcada de
1990, trs n ovas abordagen s qu e, em con traste, preferiram en carar de
form a global o problem a do atraso econ m ico portu gu s do scu lo XIX.
Nu m a delas, ORou rke & William son m ostraram qu e, n o caso de Portu gal, dois fatores tin h am sido igu al e especialm en te im portan tes em determ in ar o ritm o de crescim en to atin gido en tre 1870 e 1913: a escolarizao
e a em igrao. Esta dedu o, baseada n u m a an lise econ om trica das diferen as en tre sete pases da periferia eu ropia n o qu e respeita con vergn cia dos respectivos ren dim en tos per capita em relao aos EUA e In glaterra, con clu a tam bm qu e a abertu ra ao com rcio extern o, o in flu xo
de capitais estran geiros e o progresso tecn olgico apen as tin h am tido u m
im pacto residu al.19 Segu n do estes au tores, o m ecan ism o cau sal era sim ples. A rarefao da m o-de-obra associada em igrao, assim com o a
elevao da razo trabalh o/ capital e trabalh o/ terra, teriam en gen drado a
elevao geral da produ tividade e do n vel salarial qu e caracterizaram o
perodo e de qu e resu ltou su cessivam en te a progresso do ren dim en to per
capita dos portu gu eses. O im pacto disto seria aproxim adam en te 50% do
au m en to total registrado n esta ltim a varivel du ran te estes decn ios, caben do ou tro tan to form ao de capital h u m an o, u m efeito discu tido an teriorm en te e assim agora con firm ado e qu an tificado.
Vrios aspectos deste estu do m erecem realce pelo seu carter in ovador. a prim eira vez qu e, n o caso de Portu gal, para alm de se qu an tificar
o fen m en o do crescim en to em si se faz o m esm o para os seu s fatores explicativos, o qu e tem o m rito de, m ais do qu e sim plesm en te iden tific-los,
perm itir orden -los con form e a im portn cia relativa. Em segu n do lu gar,
em vez de se partir de u m a an lise das con dies especificam en te portu gu esas, ch ega-se a estas partin do, pelo con trrio, de u m m odelo de m bito
global em qu e Portu gal apen as u m a pea do pu zzle. Por ltim o, d-se
destaqu e a u m aspecto da realidade socioecon m ica oitocen tista portu gu esa cu ja im portn cia tem sido sem pre am plam en te recon h ecida, m as cu jo
papel n o processo qu e ora n os ocu pa n o tem sido at aqu i form u lado com

251

Jaime Reis

a clareza de qu e agora passam os a dispor.20 No obstan te, ficam ain da em


aberto algu m as qu estes. Um a delas o con tribu to adicion al para o ren dim en to n acion al represen tado pelo valor im en so das rem essas en viadas pelos em igran tes para a ptria e qu e carece de ser in clu do aqu i e m elh or
qu an tificado, sen do provvel qu e n este caso a em igrao gan h asse ain da
m aior relevo com o fator explicativo. Por ou tro lado, poder-se-ia dedu zir do
m odelo qu e, n ou tras circu n stn cias, favorveis a u m a em igrao ain da
m aior, o crescim en to teria sido m ais rpido, perm itin do u m a recu perao
do atraso econ m ico portu gu s? Se a resposta for positiva, ou tra d vida
su scitada, ou seja, ficam por saber as razes qu e im pediram a taxa em igratria de ser m ais elevada, u m a possibilidade verossm il, n a m edida em qu e,
em todas as dcadas con sideradas, ou tros pases sofreram perdas m aiores
de popu lao do qu e Portu gal por este m otivo.21
Se bem qu e focan do u m perodo relativam en te cu rto (1910-1926),
o estu do de K. Sch wartzm an sobre a Prim eira Rep blica Portu gu esa oferece u m pon to de vista qu e exten svel a toda a segu n da m etade do scu lo XIX e bastan te diverso do an terior. Para esta au tora, foram fu n dam en talm en te du as as razes do atraso econ m ico portu gu s. Ao abrigo de
u m a m atriz de in spirao wallerstein ian a, a prim eira era o estatu to
sem iperifrico do pas, fortem en te in ibitrio do desen volvim en to de
econ om ias deste tipo. A segu n da, decorren te desta, era a profu n da desarticu lao de u m a econ om ia qu e se dividia em qu atro setores fu n dam en tais. A debilidade dos laos en tre eles era tal qu e qu an do u m deles lograva u m com portam en to din m ico por exem plo, o agroexportador a repercu sso disto sobre os dem ais era tn u e e o efeito global dim in u to.22 Em bora atraen te, existem problem as de con sistn cia com os fatos h istricos
qu e colocam algu m as reticn cias a esta in terpretao. Por u m lado, esto
por con stru ir in dicadores fiveis de salrios e lu cros em n vel setorial qu e
perm itam ju stificar o carter desarticu lado atribu do econ om ia portu gu esa. Por ou tro, essa desarticu lao n o u m dado absolu to, m as sim in trin secam en te relativo e s faz sen tido qu an do apreciada em perspectiva
com parada e n a su a evolu o ao lon go do tem po. David Ju stin o, qu e se
ocu pou exten sivam en te desta ltim a tarefa, forn ece-n os u m a ach ega ao
con clu ir qu e j n o prin cpio do scu lo XX estava em gran de parte con clu do o processo de in tegrao do m ercado n acion al, o qu e retira fora ao
argu m en to da desarticu lao, m as qu e esta con tin u ava n o en tan to in flu en cian do n egativam en te o crescim en to da econ om ia.23 Em qu e m edida
e se n u m grau m aior do qu e n as restan tes pequ en as econ om ias da periferia da Eu ropa, eis o qu e con tin u a a carecer de aprofu n dam en to.
A terceira destas trs perspectivas globais n ovas pe em cau sa u m a
aqu isio im portan te da an lise qu e se desen volveu du ran te a dcada de
1980. Trata-se da n oo de qu e a evolu o das exportaes portu gu esas

252

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

ten h a sido cru cialm en te afetada qu er pela dotao de recu rsos n atu rais
qu er pela con figu rao da procu ra in tern acion al, am bas an teriorm en te
alegadas com o barreiras de m on ta ao crescim en to econ m ico. A segu n da
qu e a relao cau sal en tre exportaes e produ to n acion al, se existiu ,
ten h a tido a direco qu e lh e tem sido atribu da, an tes parecen do qu e
o n vel do produ to qu e determ in a a capacidade para exportar e n o o
con trrio. Em con seq n cia, segu n do Pedro Lain s, em Portu gal era o
atraso econ m ico e social qu e travava a exportao, u m a situ ao qu e s
podia ser su perada atravs de u m processo dem orado de len ta evolu o
qu e pases com o os escan din avos tin h am j con segu ido levar a cabo an tes de m eados dos oitocen tos.24 Este en ten dim en to vai ao en con tro de
u m a corren te n a literatu ra in tern acion al qu e afirm a qu e, n o lon go prazo,
existem gru pos de pases com ren dim en to per capita baixo m as sem elh an te e qu e ten dem a aproxim ar-se en tre si, m as raram en te dos qu e con stitu em o gru po dos pases com ren dim en to m ais elevado e tam bm sem elh an te en tre si. Visto deste m odo, Portu gal perten ceria a u m clu be de
con vergn cia eu ropeu de ren dim en to baixo e por isso a teve de perm an ecer du ran te estas dcadas sem con segu ir u ltrapassar os bloqu eios a u m
crescim en to m ais rpido.25 Esta abordagem represen ta u m avan o in discu tvel m as su scita dificu ldades. A m ais salien te reside, por su a vez, n a
au sn cia, de explicao adequ ada para o atraso portu gu s n a poca qu e
an tecede o perodo em apreo, para on de rem etida agora a ch ave do
problem a. Em segu n do lu gar, a au sn cia de u m a an lise qu e elu cide por
qu e m eios qu e algu n s pases con segu iram escapar perten a ao clu be
dos m ais pobres e in gressar n o das econ om ias m ais din m icas porqu e
m ais ricas deixa u m a rea de in certeza n a com preen so do fen m en o.
Esta in certeza im portan te n o s para a com preen so do problem a do atraso econ m ico oitocen tista, m as tam bm para explicar a recu perao qu e, em con traste, a econ om ia portu gu esa logrou efetu ar n o decorrer do scu lo XX. A in terrogao qu e aqu i se coloca se, depois de
u m a lon ga e len ta evolu o n o scu lo XIX, Portu gal ter atin gido fin alm en te, aps a Prim eira Gu erra Mu n dial, o patam ar de riqu eza m in m a
para poder fazer parte do gru po das n aes avan adas e con vergen tes.
Ou , em lu gar disso, se tero su rgido fatores im pu lsion adores do crescim en to an tes au sen tes a alterar radicalm en te a situ ao passada? Metodologicam en te, su rgem com isto du as qu estes. A prim eira a de iden tificar, com o fizem os at aqu i, u m m odelo in terpretativo qu e in tegre satisfatoriam en te a evolu o do caso portu gu s em si e em perspectiva com parada. A segu n da a de assegu rar a coern cia desse qu adro com a in terpretao qu e se preten deu dar para o atraso verificado n o decu rso do scu lo XIX. Assim , se h ou ver circu n stn cias qu e an tes obstacu lizaram u m

253

Jaime Reis

m elh or desem pen h o, estas devem ser recon sideradas para se apu rar se,
n o scu lo atu al, deixaram de existir, de atu ar, ou se por qu alqu er m otivo
passaram a ter u m efeito diverso do an terior. Da m esm a form a, se n ovos
fatores em ergem a im pelir m ais fortem en te o crescim en to a partir das dcadas de 1920 ou 1930, a su a in existn cia n a poca preceden te deve ser
assin alada e explicada.26 Tal com o fizem os para o prim eiro su bperodo
aqu i con siderado, ser a dim en so estru tu ral, de lon go prazo, de qu e n os
vam os ocu par, e n o a dim en so con ju n tu ral, de cu rto prazo da h istria
econ m ica portu gu esa.
O com portam en to da econ om ia n acion al n o scu lo XX da ptica
qu e estam os an alisan do tem m erecido m en os aten o dos h istoriadores
do qu e acon teceu n o caso do scu lo XIX. As dim en ses polticas associadas em ergn cia e lon gevidade do Estado Novo e a relevn cia deste para
a m ais recen te viven cia dem ocrtica do pas so in du bitavelm en te razes
sobejas para isto. No obstan te, o volu m e de in vestigao j dispon vel sobre este captu lo de h istria econ m ica forn ece pistas abu n dan tes e eviden te qu e, m esm o se m u itas qu estes restam por esclarecer, as lin h as gerais de u m qu adro an altico adequ ado s n ecessidades j se en con tram
traadas.
Do pon to de vista do crescim en to, a gran de viragem para a econ om ia portu gu esa data do fim da segu n da gu erra m u n dial. No perodo en tre as gu erras assistiu -se in terru po do processo de atraso secu lar qu e
tem os con siderado at aqu i (ver figu ra) e m esm o a u m a pequ en a m elh oria da posio portu gesa relativa n este dom n io. Estru tu ralm en te, n o se
tin h am ain da verificado, porm , as gran des alteraes qu e assin alaram os
an os 1945-1973, qu e so aqu eles em qu e disparou a expan so da econ om ia a u m a taxa m dia an u al de 5,6% a preos con stan tes e teve lu gar, pela prim eira vez n a h istria do pas u m a sign ificativa recu perao
relativam en te s econ om ias desen volvidas. sobre esta ltim a experin cia qu e con cen tram os portan to a n ossa aten o.
O aspecto porven tu ra m ais salien te desta poca a con verso de
Portu gal n u m pas in du strial, cu jo setor secu n drio n o s su perou fin alm en te o prim rio com o, com u m a taxa de crescim en to an u al de 10,7%
ao an o, passou a determ in ar a evolu o global da econ om ia.27 Um a elevao im portan te da produ tividade in du strial perm itiu qu e a exportao
de m an u fatu ras dom in asse o setor extern o, com 64% das ven das n o exterior, en qu an to a agricu ltu ra, o esteio tradicion al das exportaes, se lim itava agora a 10% desse flu xo. Os ram os da in d stria previam en te m ais
im portan tes os txteis, o calado e a alim en tao m an tiveram u m papel relevan te n esta evolu o, m as perderam o seu lu gar preem in en te
para u m con ju n to se setores m odern os, m ais avan ados tecn ologicam en te e m ais capital in ten sivos o ao, a m etalu rgia, a qu m ica, o m aterial

254

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

eltrico e de tran sportes, o papel e o petrleo. A este fen m en o esteve ligado o aparecim en to de sete gran des gru pos econ m icos em qu e se com bin avam as atividades fin an ceiras com os in teresses colon iais e in du striais
e qu e lograram ocu par posies predom in an tes n as reas m ais din m icas
do tecido produ tivo e con dicion ar a poltica econ m ica.28 A esta n otvel
expan so tam bm n o podia ser alh eio u m au m en to sign ificativo do grau
de abertu ra da econ om ia, qu e se tradu ziu por trs facetas prin cipais. Au m en taram as exportaes e as im portaes a ritm os ain da m aiores do qu e
o do produ to n acion al. Recom eou a em igrao, cu jo cau dal era praticam en te n u lo desde 1930 e qu e agora, n o seu au ge (1970), atin giu u m a
taxa de 21 por m il h abitan tes.29 Assistiu -se, du ran te os an os 1960, a u m
in flu xo de capitais e de tecn ologia estran geira, graas liberalizao de
u m a legislao an teriorm en te con trria a tais m ovim en tos e m aior
atrao exercida pelas oportu n idades agora oferecidas pela econ om ia portu gu esa sobre os in vestidores in tern acion ais.
Segu n do recen tes an lises baseadas n a tcn ica do growth accounting,
este rpido crescim en to da econ om ia portu gu esa deveu -se em gran de
parte (70% ) ao au m en to dos seu s fatores produ tivos trabalh o, capital e
capital h u m an o m as tam bm , em bora em m en or grau (30% ) a u m a sign ificativa elevao da produ tividade n a u tilizao destes fatores.30 Para
obterm os u m a viso adequ ada das cau sas qu e estiveram por detrs de u m
e do ou tro tipo de in flu n cia so cin co as reas de an lise para qu e precisam os de aten tar.
Um a das tran sform aes m ais im portan tes da sociedade portu gu esa, n esta ptica, foi o en orm e in vestim en to feito du ran te este scu lo em
m atria edu cativa. Em bora largam en te criticada e criticvel por n o ter
ido m ais alm , n o se pode n egar qu e foi con sidervel e de gran de im pacto econ m ico o acrscim o n a dotao de capital h u m an o qu e daqu i resu ltou . No caso paradigm tico da alfabetizao, passou -se de u m n vel de
75% de an alfabetos n a popu lao, em 1900, para 40% , em 1940, e 25% ,
em 1970. Se forem tom ados em con siderao ao m esm o tem po o en sin o
in term edirio e o u n iversitrio o progresso ain da m ais im pression an te,
se bem qu e tardio em relao n orm a eu ropia con tem porn ea. O n dice de Harrison e Meyers, qu e reflete con ju n tam en te todos estas in stn cias, elevou -se de u m valor de 0,4 em 1900 para 1,3 em 1940, atin gin do
3,9 em 1960.31 Qu an to ao efeito disto, as opin ies so u n n im es. A qu alificao crescen te da m o-de-obra a todos os n veis con tribu iu sobrem an eira para a elevao da produ tividade e do produ to n acion al. Um estu do de m bito in tern acion al dem on strou , para o caso de Portu gal, qu e a
taxa de retorn o sobre o dispen dido com a edu cao n o an o de 1977 foi
de 10% , u m a in dicao razovel do qu e se ter podido obter n as dcadas
preceden tes.32 Por ou tro lado, a forte correlao detectada para o lon go

255

Jaime Reis

prazo en tre a form ao de capital h u m an o e o m ovim en to do produ to n acion al tem a su a con trapartida n o resu ltado m ais recen te do growth accounting segu n do o qu al este fator foi respon svel por u m qu arto do crescim en to econ m ico total en tre 1951 e 1973.33
A crescen te abertu ra ao exterior du ran te estas dcadas tem sido
igu alm en te recon h ecida n o geral com o u m a das cau sas prin cipais do din am ism o en to verificado. Ter sido ela o m eio pelo qu al a econ m ia portu gu esa foi con tagiada pela gran de expan so econ m ica in tern acion al
destes an os, exportan do e im portan do cada vez m ais e su jeitan do-se a
u m a m obilidade do trabalh o, do capital e da tecn ologia qu e s lh e podiam
ser ben ficos. Apesar de u m regim e com u m a in clin ao de raiz para o
protecion ism o e a au tarqu ia econ m ica, pela n ecessidade das coisas, as
polticas segu idas n o ps-gu erra pelo Estado Novo foram n o sen tido oposto, da liberalizao e da ligao s organ izaes in tern acion ais, cu lm in an do com o tratado de adeso de Portu gal Associao Eu ropia de Com rcio Livre, em 1959. Em qu e m edida isso aju dou a econ om ia a crescer
algo qu e est, porm , ain da por resolver. A opin io geral qu e este ter
u m fator cru cial de tran sform ao. Na in d stria, os setores exportadores
j referidos tero se ben eficiado, sem d vida, com o m ais fcil acesso aos
gran des m ercados eu ropeu s e com isso tero recebido u m im portan te estm u lo para sim u ltan eam en te expan dir e au m en tar su a eficin cia. Um
exam e m ais aten to su gere, n o en tan to, qu e n a su a m aior parte a econ om ia con tin u ou refu giada atrs de barreiras alfan degrias qu e, apesar de
n om in alm en te em qu eda, se m an tin h am , em term os efetivos, qu ase to
altas em 1970 com o 20 ou 30 an os atrs. Os setores in du striais n o exportadores e a m aior parte da agricu ltu ra e dos servios n o experim en taram o desafio da con corrn cia extern a, pelo qu e m u itas em presas ben eficiaram con tin u am en te de n veis de proteo elevados e pu deram sobreviver em fu n o do m ercado in tern o, com efeitos qu e n o tero sido
positivos para a produ tividade geral.34
A im portn cia qu e a form ao de capital fixo teve em todo este
processo, tradu zida por u m con tribu to de cerca de 50% para o crescim en to global da econ om ia e n u m erosas refern cias n a literatu ra, obriga-n os
a pon derar sobre as circu n stn cias qu e torn aram possvel u m au m en to
to acen tu ado e in u sitado deste fator produ tivo. No existem dados qu e
proporcion em u m a com parao com pocas an teriores. Tu do leva a crer,
porm , qu e n este dom n io deva ter h avido u m a alterao profu n da n o
com portam en to dos agen tes econ m icos graas qu al os recu rsos fin an ceiros m obilizados para este fim cresceram em 600% en tre 1950 e 1973.
O elem en to m ais im portan te n este en orm e esforo foi in du bitavelm en te
a pou pan a das fam lias portu gu esas, qu e se elevou de u m a form a n otvel ao lon go do perodo, at atin gir u m m xim o de 30% do ren dim en to

256

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

dispon vel, em 1972, partin do de u m valor de 10% n o im ediato ps-gu erra. Qu ais as razes de u m fen m en o to su rpreen den te u m tem a de
m om en to praticam en te ign oto e qu e, pela su a im portn cia n a in terpretao destes An os de Ou ro da econ om ia portu gu esa, carece de in vestigao. A elevao progressiva do ren dim en to per capita ser u m a parte bvia da explicao para este au m en to n o esforo de pou pan a. Ou tra de
n o m en or sign ificado ser a atu ao do sistem a ban crio, cu ja expan so
e tran sform ao estru tu ral du ran te estes an os lh e facu ltou u m a capacidade m u ito acrescida n o s para captar recu rsos de tal m on ta, m as tam bm
para con segu ir recicl-los em larga m edida para o in vestim en to das em presas e dar-lh es por con segu in te u m fim produ tivo.35
Mais fcil de explicar a segu n da fon te m ais relevan te, con stitu da
pela pou pan a das em presas, as qu ais pela reten o de parte dos seu s lu cros con segu iram fin an ciar u m a frao su bstan cial da su a form ao de capital fixo. Em bora u m a h iptese ain da por testar rigorosam en te, opin io
de vrios au tores qu e as con dies de m on oplio ou de oligoplio de qu e
n o pou cas gozaram som bra da regu lam en tao oficial ter torn ado
possvel lu cros su ficien tem en te elevados para isso assim com o o estm u lo para agir n esse sen tido. Em con trapartida, o papel do Estado e dos in vestidores estran geiros n a form ao de capital talvez n o ten h a tido u m
im pacto com en su rvel com o in teresse de qu e tem sido alvo por algu n s
au tores. No prim eiro caso, in egvel o au m en to dos in vestim en tos estatais ao lon go deste scu lo e tam bm o fato de estes se orien tarem cada vez
m ais para as in fra-estru tu ras in dispen sveis ao crescim en to, com o os
tran sportes, as com u n icaes e a en ergia, para alm de u m com pon en te
n o desprezvel de apoio ao in vestim en to in du strial e edu cao. E a partir de 1953, su cessivos Plan os de Fom en to govern am en tais vieram disciplin ar e even tu alm en te con ferir m aior eficin cia a este esforo. Ao lado
do privado, o in vestim en to p blico n u n ca deixou de ter u m lu gar secu n drio cerca de 10% a 15% do total at m eados da dcada de 1960, altu ra em qu e ascen deu aos 30% .36 De igu al m odo, o in vestim en to estran geiro tem recebido bastan te aten o, m as o seu im pacto restrin giu -se essen cialm en te aos an os 60 e 70 e aos escassos, m as im portan tes setores in du striais em qu e se con cen trou . Assim , m esm o du ran te a poca da liberalizao por via legislativa da en trada destes capitais, o seu volu m e n u n ca excedeu os 4% do produ to n acion al, n u m m om en to em qu e o total da
form ao bru ta de capital n u n ca estava abaixo dos 20% desta varivel.37
Paralelam en te a ou tros m ovim en tos sem elh an tes em todo o su l da
Eu ropa, o su rto em igratrio recom eado logo depois da segu n da gu erra
m u n dial tem sido iden tificado com o o fator qu e m ais decisivam en te in flu en ciou a situ ao econ m ica global em Portu gal.38 Para a econ om ia
foram vrias as con seq n cias qu e advieram de u m xodo qu e com eou

257

Jaime Reis

por ser da ordem dos 1,7 por m il h abitan tes, at 1950, e qu e n o seu au ge,
por volta de 1970, correspon dia a u m a taxa de 21 por m il. Por u m lado,
a estagn ao popu lacion al resu ltan te possibilitou u m processo de crescim en to m arcadam en te capital in ten sivo e absorvedor de n ova tecn ologia,
u m a forte dim in u io da m o-de-obra agrcola sem o aparecim en to de
u m desem prego in du strial pertu rbador e au m en to da produ o qu e n o
se dissiparam por u m a base dem ogrfica em rpida expan so, com o su cedeu n ou tros casos con tem porn eos de desen volvim en to econ m ico.39
Por ou tro, gerou -se u m con sidervel e crescen te cau dal de rem essas para
o pas n atal, captado e can alizado m ajoritariam en te pelo setor ban crio
portu gu s e cu jo efeito foi assin alvel em du as reas cru ciais para a tran sform ao da econ om ia. A prim eira era a do com rcio extern o, em qu e a
expan so das im portaes de equ ipam en tos e m atrias-prim as n orm alm en te associada a processos de in du strializao rpida n o con du ziu a
u m estran gu lam en to graas s abu n dan tes divisas assim obtidas e reforadas pelas receitas do tu rism o en to em fu lgu ran te ascen so. A segu n da
foi o con tribu to prestado por estas rem essas para o con su m o e particu larm en te para a econ om ia das fam lias, qu e viram o seu ren dim en to au m en tar em virtu de disso, em m dia, de 3,5% du ran te os an os 1960-1965 e de
7,7% em 1966-1973, u m valor qu e con trasta fortem en te com os 2% obtidos da m esm a origem n o prin cpio do scu lo, ou tra poca de gran de
em igrao, m as de fraco crescim en to econ m ico.
O qu in to e ltim o dos tpicos essen ciais para a h istria da recu perao da econ om ia portu gu esa aps 1945 de todos o m ais com plicado e
difcil de avaliar. Trata-se da vasta e com plexa teia regu latria qu e o Estado Novo com eou a tecer desde o seu in cio, n os an os 30 e m an teve essen cialm en te at o fim , em parte com o u m a srie de respostas pragm ticas a problem as con ju n tu rais qu e iam su rgin do, e, em parte, com o resu ltado de u m a forte descon fian a ideolgica em relao aos m ecan ism os de
m ercado. Em con seq n cia e sob a capa de u m m u ito apregoado estado
corporativo, estabeleceram -se circu itos com erciais obrigatrios para
gran de n m ero de produ tos, fixaram -se preos e salrios n u m largo m bito produ tivo e com ercial e regu lou -se a im portao por via adm in istrativa. No dom n io in du strial em particu lar im plem en tou -se u m a poltica
altam en te in terven cion ista, o con dicion am en to in du strial, qu e con feria
s au toridades poderes discricion rios para licen ciar a criao de n ovos
estabelecim en tos, a reabertu ra e a expan so dos j existen tes e at a su bstitu io dos respectivos m aqu in ism os. Os objetivos, oficialm en te, eram
diversos corrigir os excessos de capacidade produ tiva, fom en tar econ om ias de escala, im pu lsion ar a m odern izao tecn olgica, dim in u ir a depen dn cia extern a em bora n a prtica o acen to ten h a estado em travar
a con corrn cia, lim itan do a en trada de n ovos produ tores ou de processos

258

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

n ovos n os diferen tes setores.40


Em algu n s aspectos, a in terven o do Estado n a econ om ia poder
ter sido ben fica. Alm de en corajadora do in vestim en to ao facilitar, por
m eio de prticas restritivas, com o j vim os, a realizao de lu cros elevados e in cen tivar a su a aplicao produ tiva, o con dicion am en to in du strial foi u m in stru m en to essen cial para a im plan tao de algu n s dos setores m ais m odern os da in d stria portu gu esa, qu e sem a garan tia de u m
m on oplio ou oligoplio e a proteo do seu m ercado provavelm en te n o
teriam su rgido. Globalm en te, n o en tan to, os ju zos so n egativos.41 As distores qu e os m ercados de produ tos e de fatores de produ o sofreram
foram trem en dos, m u itos in teresses in stalados pu deram sobreviver sem
excessivas preocu paes de con corrn cia e logo de eficin cia, perderam se os gan h os poten ciais de u m a m aior especializao e n eu tralizaram -se
in iciativas n ovas e a in trodu o de m elh ores tecn ologias. O paradoxo desta situ ao a coexistn cia deste vasto e n ocivo en qu adram en to regu latrio com u m dos perodos m ais brilh an tes para a econ om ia portu gu esa
e a qu esto qu e ela provoca saber qu an to do poten cial de crescim en to
se perdeu em virtu de de todas estas distores e alocaes m en os eficazes. Teria sido possvel, com u m a organ izao econ m ica m ais liberal, fazer ain da m elh or do qu e o j n otvel desem pen h o con segu ido du ran te a
m aior parte do scu lo XX?
As in vestigaes sobre este e a m aioria dos tem as restan tes qu e se
rastrearam e an alisaram n este texto esto ain da em fase de todo in cipien te. Na qu esto do atraso econ m ico portu gu s n o lon go prazo con tin u am
a ser m ais n u m erosas as lacu n as e os pon tos obscu ros do qu e as reas com
respostas claras. No en tan to, o progresso feito du ran te os trs ltim os decn ios tem sido con sidervel e en corajador de n ovos esforos. Assim , de
esperar qu e den tro de m ais u m a dcada dispon h am os de u m a com preen so m u ito su perior atu al de u m problem a qu e cen tral n a h istria econ m ica portu gu esa con tem porn ea.

259

Jaime Reis

N OTA S
1. REIS, J. How Poor Was th e Eu ropean Periph ery before 1850? In : XVII ENCONTRO DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE HISTRIA ECONMICA E SOCIAL, 1997, Pon ta Delgada.
2. No existe con sen so qu an to expresso qu an titativa exata desta evolu o. Ver: NUNES,
A. B., MATA, E., VALRIO, N., 1989; LAINS, P., REIS, J., 1991; LAINS, P., 1995. JUSTINO,
D. A evolu o do Produ to Nacion al Bru to em Portu gal, 1850-1919 Algu m as Estim ativas
Provisrias. Anlise Social, p.451-611,1987.
3. TORTELLA, G., 1994, iden tificou com o Mediterrn ica esta cu rva em U represen tativa
do rcio en tre o produ to n acion al per capita e u m a m dia da m esm a varivel em vrios pases avan ados, u m a vez qu e ela esteve presen te em sim u ltn eo n o s em Portu gal com o
n a Itlia e n a Espan h a.
4. Estes dados, ain da n o pu blicados, so tirados do trabalh o de L. AMARAL Is the Theory of
Convergence Useful for the Study of Growth in Portugal in the Postwar Period? Floren a, 1997. (Mim eogr.).
5. Ver, por exem plo, BIRMINGHAM, D. A Concise History of Portugal. Cam bridge: Cam bridge Un iversity Press, 1993.
6. PEREIRA, M. H., 1983. Para u m a reafirm ao recen te destas idias, ver, MIRANDA, S.
de. Portugal: o crculo vicioso da dependncia (1890-1939). Lisboa: Teorem a, 1991.
7. GODINHO, V. M., 1975.
8. Ver JUSTINO, D., 1988-1989. Ver tam bm LAINS, P. Exportaes Portu gu esas, 18501913: a tese da depen dn cia revisitada. Anlise Social, p.381-419, 1986.
9. Ver REIS, J. Latif n dio e progresso tcn ico: a difu so da debu lh a m ecn ica n o Alen tejo,
1860-1930. Anlise Social, p.371-443, 1982.
10. Sobre este argu m en to, ver FONSECA, H. A., REIS, J. Jos Maria Eu gn io de Alm eida,
u m capitalista da regen erao. Anlise Social, p.865-904, 1987. A citao de SERRO, J.,
MARTINS, G. Da indstria: do An tigo Regim e ao capitalism o. Lisboa: Horizon te, 1978. p.32.
11. REIS, J., 1993.
12. Ibidem .
13. FONSECA, H. A., 1996.
14. Dados obtidos por SILVA, A. M. da. Desamortizao e venda dos bens nacionais em Portugal
na primeira metade do sculo XIX. Coim bra: Facu ldade de Letras, 1989. Ver o argu m en to em
REIS, J., 1992.
15. LAINS, P.,1995.
16. MATA, E., 1990.
17. ESTEVES, R. P. O Crowdin g-Ou t em Portu gal, 1879-1910. In : XVII ENCONTRO DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE HISTRIA ECONMICA E SOCIAL, 1997, Pon ta Delgada.
18. REIS, J., 1991.
19. OROURKE, K., WILLIAMSON, J. G. , 1997.
20. So vrios e excelen tes os estu dos sobre o tem a da em igrao portu gu esa. Ver PEREIRA, M. H. A poltica portuguesa de emigrao, 1850-1930. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981. BAGANHA, M. Portuguese Emigration to the United States, 1820-1930. Nova York: Garlan d, 1990.
LEITE, J. C. Portu gal an d Em igration , 1855-1914. Tese (Dou toram en to) Un iversidade de
Colu m bia, 1993. ALVES, J., 1994.
21. Um prin cpio de discu sso sobre este tem a en con tra-se em HATTON, T. J., WILLIAMSON J. G. Late Com ers to Mass Em igration . Th e Latin Experien ce. In :___. Migration in the
International Labour Market, 1850-1939. Lon don : Rou tledge, 1994.
22. SCHWARTZMAN, K., 1989.

260

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

23. A fomao do espao econmico nacional, con clu so.


24. A economia portuguesa no sculo XIX.
25. LONG, J. B. de. Produ ctivity Growth , Con vergen ce an d Welfare: A Com m en t. American
Economic Review, p.1138-54, 1988.
26. REIS, J., 1992.
27. A in form ao estatstica relativam en te abu n dan te para este perodo e pode ser con su ltada em NEVES, J. C. das, 1994. PINHEIRO, M. et a1., 1997. BATISTA, D. et al., 1998.
28. RIBEIRO, J. M. F. et al. Gran de in d stria, ban ca e gru pos fin an ceiros. Anlise Social,
p.945-1018, 1987.
29. BAGANHA, M. I. B., 1994.
30. NEVES., J. C. das,1994. p.72-90; AMARAL, L., op. cit., 1997.
31. Ver REIS, J., 1992. Texto em qu e explicitada a con stru o deste n dice.
32. Citado por Neves, J. C. das, 1994, p.136.
33. Ver, respectivam en te, Nu n es, A. B., Edu cation an d Econ om ic Growth in Portu gal: A
Sim ple Regression Approach . Estudos de Economia, p.181-205, 1993, e AMARAL, L., op. cit.,
1997.
34. CONFRARIA, J. Desenvolvimento econmico e poltica industrial. A economia portuguesa no processo de integrao europia. Lisboa: Un iversidade Catlica Portu gu esa, 1995. p.80.
35. Sobre a h istria ban cria dos an os 50 existe u m estu do valioso, m as por en qu an to pou co se sabe sobre o perodo segu in te. Ver SRGIO, A., 1995.
36. Sobre os Plan os de Fom en to, ver o artigo respectivo em ROSAS, F. & BRITO, J. M. B. de,
1996.
37. MATOS, L. S. de. Investimentos estrangeiros em Portugal. Lisboa: Seara Nova, 1973.
38. LOPES, J. S., 1996, p.236.
39. LAINS, P. O Estado e a in du strializao em Portu gal, 1945-1990. Anlise Social, p.943,
1994.
40. CONFRARIA, J., 1992.
41. NEVES, J. C. das, 1994, p.66. BRITO, J. M. de, 1989; LOPES, J. S., 1996; CONFRARIA,
J. Desenvolvimento econmico e poltica industrial. cap. IV p.21 e 185.

261

Jaime Reis

B IBLIOGRA FIA
ALVES, J. Os brasileiros. Em igrao e retorn o n o Porto oitocen tista. Porto:
s.n ., 1994.
BAGANHA, M. I. B. As corren tes em igratrias portu gu esas n o scu lo XX
e o seu im pacto n a econ om ia n acion al. Anlise Social, p.959-80, 1994.
BATISTA, D. et al. Portugals National Product, 1910-1958. Lisboa: Ban co de
Portu gal, 1998.
BRITO, J. M. B. de. A industrializao portuguesa no ps-guerra (1948-1965):
O condicionamento industrial. Lisboa: Dom Qu ixote, 1989.
CONFRARIA, J. Condicionamento industrial. Uma anlise econmica. Lisboa:
Direco Geral da In d stria, 1992.
FONSECA, H. A. O Alentejo no sculo XIX. Econ om ia e Atitu des Econ m icas. Lisboa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda, 1996. p.437.
GODINHO, V. M. A estrutura da antiga sociedade portuguesa. 2.ed. Lisboa:
Arcdia, 1975.
JUSTINO, D. A formao do espao econmico nacional. Portugal, 1810-1913.
Lisboa: Vega, 1988-1989. 2 v.
LAINS, P. A economia portuguesa no sculo XIX. Crescimento econmico e comrcio externo, 1851-1913. Lisboa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda,
1995.
LAINS, P. A., REIS, J. Portu gu ese Econ om ic Growth , 1833-1985: Som e
Dou bts. Journal of European Economic History, p.441-53, 1991.
LEITE, J. C. Portugal and Emigration, 1855-1914. Colu m bia, 1993. Tese
(Dou torado) Un iversidade de Colu m bia.
LOPES, J. S. A econ om ia portu gu esa desde 1960. In : BARRETO, A. (Org.)
A situao social em Portugal, 1960-1995. Lisboa: In stitu to de Cin cias
Sociais, 1996.
MATA, E. As finanas pblicas portuguesas da regenerao Primeira Guerra
Mundial. Lisboa: Ban co de Portu gal, 1990.
NEVES, J. C. das. The Portuguese Economy: A Pictu re in Figu res. XIX an d
XX Cen tu ries with Lon g Term Series. Lisbon : Un iversidade Catlica
Portu gu esa, 1994.
NUNES, A. B., MATA, E., VALRIO, N. Portu gu ese Econ om ic Growth ,
1833-1985. Journal of European Economic History, p.291-330, 1989.

262

CAUSAS HISTRICAS DO ATRASO ECONMICO PORTUGUS

PEREIRA, M. H. Livre cmbio e desenvolvimento econmico. Portu gal n a segu n da m etade do scu lo XIX. 2.ed. Lisboa: S da Costa, 1983.
PEREIRA, M. H., HALPERN, M. A poltica portuguesa de emigrao, 18501930. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981.
PINHEIRO, M. et al. Sries longas para a economia portuguesa. Ps II Gu erra
Mu n dial. Lisboa: Ban co de Portu gal, 1997.
OROURKE, K., WILLIAMSON, J. G. Arou n d Eu ropean Periph ery, 18701913: Globalization , Sch oolin g an d Growth . European Review of
Economic History, p. 153-90, 1977.
REIS, J. Os ban cos portu gu eses, 1850-1913. In : CONFERNCIA INTERNACIONAL DE HISTRIA DAS EMPRESAS. Actas... Niteri: Un iversidade Federal do Rio de Jan eiro, 1991.
___. Th e Historical Roots of th e Modern Portu gu ese Econ om y: Th e First
Cen tu ry of Growth , 1850s to 1950s. In : HERR, R. (Org.) The New Portugal: Dem ocracy an d Eu rope. Berkeley: IAS, 1992.
___. O atraso econmico portugus em perspectiva histrica: Estu dos sobre a
econ om ia portu gu esa n a segu n da m etade do scu lo XIX. Lisboa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda, 1993.
ROSAS, F., BRITO, J. M. B. de. Dicionrio de Histria do Estado Novo. Lisboa: Crcu lo de Leitores, 1996.
SCHWARTZMAN, K. The Social Origins of Democratic Collapse. Th e First Portu gu ese Repu blic in th e Global Econ om y. Lawren ce: Un iversity of
Kan sas Press, 1989.
SRGIO, A. O sistema bancrio e a expanso da economia portuguesa (19471959). Lisboa: Ban co de Portu gal, 1995.
TORTELLA, G. Pattern s of Econ om ic Retardation an d Recovery in Sou th Western Eu rope in th e Nin eteen th an d Twen tieth Cen tu ries. Economic
History Review, p.1-21, 1994.

263

captu lo 14

JACOBINOS, LIBERAIS E
DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO
PORTUGAL CONTEMPORNEO
Am adeu Carvalh o Hom em *

D E COMO UM REINO DERIVA PROCURA RESGATAR-SE


As trs in vases fran cesas qu e assolaram Portu gal en tre 1807 e
1810 foram a resposta en con trada por Napoleo Bon aparte para im por
aos govern an tes portu gu eses a obedin cia in tim ao do bloqu eio con tin en tal, a cu jas con seq n cias eles se tin h am procu rado fu rtar, recorren do a m an obras dilatrias. Logo qu e o exrcito de Ju n ot, n a prim eira
in vaso, ch egou s portas de Lisboa, a fam lia real, os n obres m ais represen tativos e as altas dign idades eclesisticas em barcaram apressadam en te
para o Brasil. Sob a in stigao da In glaterra, abriram -se sem reservas os
portos brasileiros ao com rcio in tern acion al, o qu e represen tou a qu ebra
do sistem a do pacto colon ial e o correspon den te decln io da h egem on ia
m etropolitan a. No plan o cu ltu ral e ideolgico, a ocu pao m ilitar in crem en tou a difu so das idias fran cesas, qu e j n o decu rso do rein ado de
D. Maria I tin h am sido objeto de cerrada persegu io por parte da realeza. O exrcito portu gu s, com pletam en te desorgan izado, n o poderia
opor qu alqu er resistn cia ao avan o das tropas fran cesas. Assim , foi solicitado Gr-Bretan h a o n ecessrio apoio blico, o qu al se tradu ziu pelo
en vio de con tin gen tes m ilitares e de algu n s oficiais de en qu adram en to.
En tre estes, destacou -se especialm en te a figu ra de William Carr Beresford,
cu jo ascen den te n a govern ao perdu rou m u ito para alm do perodo
con creto das in vases.
O aprofu n dam en to da crise econ m ica, com bin an do-se com a in su portvel h egem on ia do estran geiro Beresford e com o desejo, u n iversalm en te partilh ado pelos portu gu eses, de ver regressar a corte, alim en tar
u m u n iverso de preven es e descon ten tam en tos, pron tos a m an ifestar-se
n o m om en to m ais oportu n o. A ch am ada con spirao de Gom es Freire de
An drade, ocorrida em 1817 e pu n ida com o en forcam en to dos im plicados,
prefigu ra j o m ovim en to revolu cion rio de 24 de Agosto de 1820, qu e in icia em Portu gal o com plexo processo da afirm ao do liberalism o. A revolu o vin tista foi preparada n o m bito do Sin drio portu en se, con clave

265

Amadeu Carvalho Homem

secreto ch efiado por Man u el Fern an des Tom s. A form ao ju rdica do


ch efe do Sin drio con du ziu -o a estu dar o travejam en to con stitu cion al de
algu m as rep blicas da Am rica do Su l e a n u trir especial adm irao pela
person alidade em blem tica de Sim o Bolvar. Fern an des Tom s com eou
por cooptar ou tros colegas ju ristas, com o Ferreira Borges e Silva Carvalh o,
com qu em se dedicou ao estu do da decaden te situ ao in tern a do pas.
Logo con clu ram , porm , qu e deveriam passar de an lises acadm icas a
form as m ais decisivas de in terven o. O Sin drio abriu -se en to a person alidades m ilitares igu alm en te descon ten tes e en cam in h ou -se decididam en te para a atividade con spiratria. Porm , n o era com pleto o acordo
en tre ju ristas e m ilitares. Aqu eles opin avam qu e a im posio do regresso da
Corte ao rein o deveria ser com plem en tada com profu n das tran sform aes,
de teor liberal, a serem in trodu zidas n o fu tu ro orden am en to ju rdico-con stitu cion al; para os m ilitares, con tu do, a revolu o esgotar-se-ia com o cu m prim en to da obrigao de retorn o por parte de D. Joo VI e dos seu s fam iliares. Man obran do h abilm en te, Man u el Fern an des Tom s con segu ir im prim ir revolu o, desen cadeada n o Porto em 24 de agosto e secu n dada
em Lisboa em 15 de setem bro de 1820, u m sign ificado liberal e con stitu cion alista bem eviden te. Eleito u m Soberan o Con gresso Con stitu in te e redigidas as bases da fu tu ra con stitu io, parecia estar escon ju rado, n o essen cial, o risco da m an u ten o do An tigo Regim e.
D. Joo VI regressou a Portu gal acom pan h ado por su a m u lh er, a
rain h a D. Carlota Joaqu in a, e pelo seu filh o, o in fan te D. Migu el. Deixara n o Brasil, exercen do u m a regn cia em seu n om e, o seu ou tro filh o
m ais velh o, D. Pedro. Os regressados adotaro atitu des m u ito diferen tes
qu an to im posio revolu cion ria do ju ram en to das bases con stitu cion ais. D. Joo VI, con trafeito m as tem eroso, su bm ete-se ao im perativo dos
revoltosos. Pelo con trrio, D. Carlota Joaqu in a e D. Migu el n egam -se a
faz-lo, con stitu in do-se ch efes de fila da reao an tiliberal e in cen tivan do algu n s expoen tes do alto clero e da n obreza a adotarem posies igu alm en te rebeldes. A en trada em vigor da Con stitu io de 1822, a declarao u n ilateral da in depen dn cia do Brasil e o falecim en to de Fern an des
Tom s so acon tecim en tos cron ologicam en te prxim os. O legitim ism o
jogar a su a cartada sediciosa por m eio dos golpes da Vilafran cada
(1823) e da Abrilada (1824), am bos execu tados por D. Migu el, m as en corajados pela rain h a su a m e. O pron u n ciam en to de Vila Fran ca su spen de a vign cia da Con stitu io; por seu tu rn o, o golpe de abril obriga D.
Joo VI a im por ao seu filh o a expu lso do Rein o, sob o pretexto de u m a
vilegiatu ra por pases eu ropeu s, para alegadam en te com pletar a su a ilu strao. Com o falecim en to do m on arca rein an te in stala-se viru len tam en te a discu sso dos direitos su cessrios. A corren te legitim ista advoga qu e
o tron o seja en tregu e a D. Migu el, aten den do ao fato de os direitos de pri-

266

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

m ogen itu ra terem cadu cado a partir do m om en to da en tron izao de D.


Pedro com o im perador do Brasil; a corren te liberal bate-se pela observn cia das praxes tradicion ais da su cesso, as qu ais im plicavam a en trega da
coroa ao filh o m ais velh o, su gerin do vagam en te a con federao de Portu gal e do Brasil. O perigo da gu erra civil, de cu ja im in n cia n in gu m du vidava, pareceu afastado qu an do D. Pedro abdicou do tron o portu gu s a
favor da su a filh a D. Maria da Glria, desde qu e D. Migu el aceitasse desposar a in fan ta su a sobrin h a, fu tu ra rain h a de Portu gal, e se pron tificasse a observar o articu lado de u m a Carta Con stitu cion al, ou torgada pelo
en to im perador do Brasil.
Este arrazoado factu al perm ite-n os con textu alizar a origem con stitu cion al bicfala do n osso liberalism o, qu e se n os an tolh a com o u m a das
ch aves fu n dam en tais para a com preen so da con tem poran eidade portu gu esa. Com efeito, a Con stitu io de 1822 ir in au gu rar u m a tradio de
radicalism o, do m esm o m odo qu e a Carta Con stitu cion al de 1826 ser recon h ecida com o o diplom a em qu e se iro rever os liberais con servadores. Do pon to de vista da su a gn ese, a prim eira reveste o cariz de u m a
im posio revolu cion ria, u n ilateralm en te im posta ao soberan o. A segu n da, ao con trrio, resu lta de u m ato de m u n ificn cia rgia qu e desde
logo lh e dim in u i o sign ificado tran sform ador. En qu an to a Con stitu io
con sagra abertam en te o prin cpio da soberan ia n acion al, a Carta recon h ece n a figu ra do rei o depositrio e o garan te do travejam en to do Estado.
O diplom a de 1822 prev u m a diviso tripartida de poderes e, redu zin do
o m on arca su a sim ples expresso sim blica, sin gu lariza a Cm ara dos
Depu tados com o o eixo decisivo da vida poltica. A Carta Con stitu cion al
de 1826 con fere ao poder m oderador, iden tificado com a potestade realen ga, u m a fu n o arbitral e cen sria sobre os restan tes poderes, qu e assim lh e ficam su bm etidos. En qu an to o poder legislativo se en con tra exclu sivam en te com etido, n os term os da Con stitu io de 1822, represen tao dos depu tados eleitos, esse m esm o poder partilh a-se, n o caso da
Carta Con stitu cion al de 1826, en tre a Cm ara dos Depu tados e a Cm ara dos Pares, sen do esta ltim a de n om eao rgia. En qu an to, n os term os
da Con stitu io, o m on arca dispe de u m sim ples direito de veto su spen sivo em relao s in iciativas legislativas, este veto con verte-se em absolu to n o clau su lado da Carta. Fin alm en te, a filosofia do diplom a vin tista
afasta-se do su frgio cen sitrio previsto n o texto con stitu cion al de 1826 e
defin e u m m odelo de participao poltica qu e n o se en con tra su bm etido am plitu de do patrim n io dos votan tes poten ciais. Estas n otrias diferen as situ am a Con stitu io de 1822 n o terren o qu e perm itir a desen volu o do civilism o in dividu alista, o qu al se perfila n os an tpodas da su bm isso dos s ditos soberan ia real.

267

Amadeu Carvalho Homem

CA MIN HO D A MOD ERN IZA O POSSVEL

O perodo qu e se escoa en tre a im posio de D. Migu el com o rei


absolu to (1828) e a vitria liberal, alcan ada aps u m in certo in terregn o
de gu erra civil e con sagrada pela Con ven o de vora-Mon te (1834) n o
favoreceu a explicitao da clivagem prefigu rada n os dois textos con stitu cion ais, u m a vez qu e vin tistas e cartistas in tegravam por igu al, para os sequ azes do absolu tism o m igu elista, a pestilen ta cfila de pedreiros livres
qu e u rgia esm agar in distin tam en te. As discordn cias qu e se m an ifestaram n o cam po liberal du ran te as lu tas civis en tre Palm ela e Saldan h a,
por exem plo tradu zem fu n dam en talm en te u m a dispu ta de cau dilh os
em bu sca de h egem on ias pessoais e n o so o corolrio de in con ciliveis
propostas ideolgico-polticas. certo qu e o com an do m ilitar e estratgico do con tra-ataqu e liberal com petiu a D. Pedro, o dador da Carta
Con stitu cion al, aps este ter sido forado a abdicar do tron o im perial brasileiro. Mas a u n idade das h ostes liberais n o foi pertu rbada por esse fato, j qu e o tem or de u m a even tu al vitria absolu tista fu n cion ou com o o
cim en to agregador das du as sen sibilidades, as qu ais s m ais tarde dispu tariam en tre si a prim azia. Se o triu n fo liberal sign ificou a vitria da corren te cartista, n o m en os certo qu e a m em ria da Con stitu io de 1822
n o perm itir qu e esse cartism o se estabilize em defin itivo. At 1851, o
liberalism o radical pertu rbar, a espaos, a tn ica con servadora do liberalism o in stalado, por m eio da ecloso de su rtos revolu cion rios peridicos.
O an acron ism o das estru tu ras econ m icas e sociais e a literal in existn cia em Portu gal de relaes capitalistas de produ o, distribu io e
con su m o obrigavam a profu n das m odificaes ju rdicas, a fim de qu e se
pu dessem pu lverizar as peias qu e tipificavam o An tigo Regim e. O prin cpio da liberdade n egocial pressu pu n h a u m a isonomia ou igu aldade peran te a lei qu e n o era con tem plada pelas form aes econ m icas tradicion ais. A obra legislativa de Mou zin h o da Silveira, depois aprofu n dada e
prossegu ida por Joaqu im An tn io de Agu iar, dar com bate aos m ecan ism os tradicion ais de con cen trao e im obilizao da riqu eza. E com o esta
residia basicam en te n a fixao e im obilizao do patrim n io fu n dirio, as
m edidas de Mou zin h o visaram libertao da terra, at a vin cu lada a
m orgadios aristocrticos ou a terraten n cias detidas por orden s religiosas.
certo qu e esta poltica desam ortizadora n o erradicou de u m a vez por
todas a con cen trao fu n diria, n em extin gu iu totalm en te os dispositivos
qu e lh e serviram de su porte. Os vn cu los do m orgadio, por exem plo, su bsistiram para l da prpria Con ven o de vora-Mon te. Mas Mou zin h o
da Silveira in au gu rou u m a ten dn cia libertadora qu e atin gir o seu au ge,
j depois de alcan ada a vitria liberal, com a in corporao n o dom n io
p blico, n os Prprios Nacion ais, do vasto patrim n io aristocrtico-abso-

268

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

lu tista e clerical e com a su a su bseq en te ven da em h asta p blica. Esta


tran sfern cia de propriedade, origin an do a criao de u m a n ova casta de
terraten en tes diretam en te ben eficiados pela tran sform ao social em cu rso, garan tiu m on arqu ia con stitu cion al a reserva de apoios qu e lh e era
im prescin dvel para o seu recon h ecim en to e u lterior sobrevivn cia.
O prim eiro con fron to qu e ocorreu , aps a vitria liberal, en tre a
sen sibilidade n eovin tista de teor radicalizan te e a sen sibilidade cartista,
doravan te iden tificada com os m ais diretos ben eficirios da m on arqu ia
con stitu cion al in stalada, foi o da revolu o de setem bro de 1836. Os seu s
prin cipais m en tores, Man u el da Silva Passos e Jos da Silva Passos, su bordin avam -se a u m a eviden te in spirao de ten dn cia dem ocrtica. No
obstan te o azedu m e da Corte, tradu zida n o qu alificativo com qu e a era
tratado Man u el Passos o rei Passos do qu e se tratava era de cercar
o tron o de in stitu ies repu blican as. Mas este radicalism o revolu cion rio s vin gou episodicam en te qu an do plasm ou n a Con stitu io de 1838 a
eq idistn cia en tre o vin tism o e o cartism o. Apesar disso, o setem brism o
foi apodado de dem aggico e os seu s ch efes apon tados com o agitadores
das tu rbas in scien tes. Iron icam en te, cou be a u m dem agogo de cepa, An tn io Bern ardo da Costa Cabral, a m isso de su focar, com o aplau so do
Pao, a breve experin cia dos govern os setem bristas. Mais do qu e o retorn o con stitu cion alidade cartista, o cabralism o assu m ir o sign ificado de
u m a prtica ven al, m an iqu esta e person alista n o desem pen h o do poder.
As persegu ies aos adversrios polticos, as grosseiras violaes das praxes eleitorais, o alastram en to do favoritism o e da corru po e a proteo
descom edida dispen sada por D. Maria II ao seu valido determ in aram qu e
o cabralism o tivesse perm an ecido com o u m a m em ria pou co edifican te
da h istria con tem porn ea portu gu esa. Recon h ea-se, con tu do, o seu largo lequ e de in iciativas de fom en to e as realizaes m ateriais qu e en to foram levadas prtica.
O excessivo rigor das pesadas cargas tribu trias a qu e Costa Cabral
teve de recorrer exacerbaram os protestos popu lares. E estes recru desceram ain da m ais qu an do a m en talidade religiosa popu lar se viu atacada
por u m a legislao qu e preten dia in stitu cion alizar os en terram en tos em
cem itrios, qu ebran do a tradio das in u m aes n o solo sagrado dos tem plos. Ocorrem en to os m otin s plebeu s da Maria da Fonte (1846), con globan do n u m a vasta fren te de con testao in dividu alidades setem bristas,
elem en tos do clero u ltram on tan o e de setores afeitos ao absolu tism o m igu elista. Dada a su a flu idez ideolgica, parece ser im possvel filiar este
protesto n o veio do n eovin tism o. Porm , j u m a van gu arda liberal, con otada com o radicalism o, qu e criar n o an o segu in te u m a rede de ju n tas polticas locais in cen tivadoras da su blevao da Patulia. Este m ovim en to revolu cion rio vir a ser travado m edian te o pedido de au xlio de

269

Amadeu Carvalho Homem

D. Maria II a potn cias estran geiras, ao qu al se segu iu u m a in terven o


m ilitar qu e fru strou defin itivam en te as in ten es dos pata ao lu.
A con figu rao social do liberalism o portu gu s apresen ta-n os u m
rem an escen te de recorrn cias h istricas qu e ilu dem os pressu postos de
m odern izao e de ru ptu ra qu e seria legtim o esperar. Pesava sobre o pas
u m a forma mentis e u m trilh o de h bitos com portam en tais qu e s a in teriorizao de valores bu rgu eses avan ados, solidam en te firm ados n a livre
in iciativa em presarial, poderiam tran sform ar. Mas essa m odificao de
con te dos de con scin cia e de prticas de ao n o foi alcan ada. certo
qu e a com pra de ben s n acion ais pela n ova bu rgu esia ascen den te poderia teoricam en te forn ecer-lh e os m eios m ateriais adequ ados profu n da
reform u lao da realidade social. Con tu do, este n ovo estrato h egem n ico estabilizar o seu qu erer em con cordn cia com m odelos cadu cos. Em
term os su bstan ciais, as von tades de afirm ao in dividu al n o diferiam
m u ito das qu e se h aviam expressado n a sociedade pr-liberal. A n ova
bu rgu esia liberal aspirava n obilitao, m an tin h a u m ideal de riqu eza
predom in an tem en te cen trado n os ben s fu n dirios, especu lava im produ tivam en te, am arrava-se o m elh or qu e podia aos n ich os da adm in istrao
p blica e con servava sob su speita o valor da in iciativa in dividu al, j en to decididam en te vitoriosa n as paragen s eu ropias m ais desen volvidas.
O qu e o liberalism o sign ificou , n o exterior, de libertao de foras produ tivas, cristalizou , em Portu gal, n o m odesto cadin h o de u m a sim ples tran sfern cia de ttu lo de propriedade. Desta m an eira, a triu n fan te sociedade
liberal sedim en tou -se ao redor de n obilitados bu rgu eses, n a m aior parte
dos casos de fresca data, os qu ais am bicion aram para si e para os seu s descen den tes u m n ich o segu ro e garan tido n o exrcito dos servidores do Estado. Alh eios a qu alqu er tradio de in iciativa econ m ica particu lar e
m olecu larm en te refratrios ao risco dos n egcios, estes u su fru tu rios do
con servadorism o cartista procu raram as posies m ais con fortveis n o
pequ en o m u n do da adm in istrao p blica. Fizeram -se caciqu es e n otveis locais em razo de su a com provada in capacidade de se fazerem em presrios capitalistas de vistas largas.
Em 1851, com a revolu o da Regen erao, in iciou -se em Portu gal
a experin cia do capitalism o possvel. Mas este pou co se assem elh ar aos
su rtos de desen volvim en to econ m ico in du strial levados a cabo pela Eu ropa tran spiren aica. A dim en so predom in an tem en te ru ralista da econ om ia
portu gu esa, associada a toda a sorte de atavism os e recorrn cias m en tais,
torn aram in evitvel o protagon ism o estatal qu an do se tratou de im prim ir
din am ism o ao m ercado in tern o. bom qu e se diga qu e este m ercado m al
se esboava por altu ras de 1851. Por isso qu e a revolu o regen eradora
de Rodrigo da Fon seca Magalh es e de Saldan h a esgotar a su a eficcia n a
criao de in fra-estru tu ras m ateriais, n o se abalan an do a ou tras ou sadias.

270

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

O in trprete m ais qu alificado do program a da Regen erao foi Fon tes Pereira de Melo. O fon tism o tradu ziu -se, portan to, n u m a poltica de m elh oram en tos m ateriais ou de obras p blicas. Estas foram qu ase exclu sivam en te su portadas pelos cofres oficiais, em razo da in existn cia de u m a
bu rgu esia forte e em preen dedora. Mas com o o errio p blico era an m ico,
teve qu e recorrer por sistem a ao crdito extern o. Foi com libras esterlin as
pedidas de em prstim o praa de Lon dres qu e se su priu a rarefao dos
m eios creditcios n acion ais. Assim , a obra de fom en to liberal origin ou o
crescim en to in con trolvel da dvida p blica e o desequ ilbrio crn ico da balan a de pagam en tos. O servio da dvida, aliado presso dos credores extern os, ditar os gravosos term os da poltica tribu tria levada a efeito pelos
su cessivos govern os regen eradores. A correlao qu e forosam en te se estabeleceu en tre o volu m e dos em prstim os e a carga in tern a dos im postos
explica a prxim a ecloso de crises sociais, qu e vitim aro sobretu do os estratos popu lacion ais de ren dim en tos m ais dbeis. A filosofia de tribu tao
dos govern os regen eradores segu iu os trilh os da ortodoxia liberal, u m a vez
qu e recorreu gam a dos im postos in diretos, in ciden tes sobre o con su m o,
e evitou on erar os ren dim en tos gerados pelos capitais privados. Ficou para
a h istria o ju zo em itido por Fon tes Pereira de Melo, qu an do o con fron taram com as reclam aes dos setores sociais m ais fragilizados pelo agravam en to tribu trio: O povo pode e deve pagar m ais.
A partir de 1851, o Partido Regen erador aam barcou os lu gares de
represen tao poltica e redu ziu a tradio n eovin tista e setem brista a
com parsas m en ores da realidade rotativa. Nu m a prim eira fase dessa prtica rotativa, a oposio ao con servadorism o cartista ser debilm en te desem pen h ada pelo Partido Histrico do Marqu s de Lou l. Mas era u m to
fraco con traste en tre am bos qu e em 1865 foi possvel organ izar u m gabin ete de fu so, n o qu al regen eradores e h istricos con vivem placidam en te. A con testao ao fu sion ism o partir de u m setor de partidrios
h istricos qu e, clam an do por reform as, con sideraram esp ria e an tin atu ral a coligao fu sion ista qu e n asceu deste diverso m odo de ver a patru lh a partidria do Reform ism o.
A revolu o espan h ola de 1868 e o dram a san gren to da Com u n a
de Paris de 1871 viro a ser os in spiradores diretos de altern ativas exteriores lgica da m on arqu ia, m edian te a u lterior fu n dao dos partidos
repu blican o e socialista. Den tro do cam po m on rqu ico, porm , foi a in egvel prim azia do Partido Regen erador qu e forou u n ificao das foras
qu e lh e eram opon en tes. O Pacto da Gran ja de 1876 u n iu os reform istas de D. An tn io Alves Martin s, bispo de Viseu , e os h istricos ch efiados por An selm o Braam cam p, fazen do n ascer o Partido Progressista e
in au gu ran do o ch am ado segu n do rotativism o. O com prom isso da
Gran ja apresen tava as m elh ores poten cialidades para qu e o n ovo partido

271

Amadeu Carvalho Homem

pu desse vir a in terpretar os an seios do liberalism o radical, u m a vez qu e o


seu program a ou sava situ ar-se n a lin h a de con tin u idade h istrica qu e en carecia os n om es de u m Man u el Fern an des Tom s, de u m Man u el Passos
ou de u m Joaqu im An tn io de Agu iar. Mas o desen can to provocado pela
su a govern ao, qu an do alcan ou o poder, sin gu larizou o repu blican ism o
com o a n ica fora ideolgica su scetvel de recolh er o legado da tradio
vin tista, setem brista e patu lia.

B REVE N OTA SOBRE A

PROPOSTA REPUBLICA N A

Acan ton ado defen sivam en te n u m pequ en o n m ero de cen tros m ilitan tes, n u m ericam en te rarefeitos, sediados em Lisboa, n o Porto e em
Coim bra, o repu blican ism o do decn io de 70 apresen ta-n os du as corren tes program ticas: a do federalism o (Tefilo Braga, Carrilh o Videira, Teixeira Bastos, Silva Lisboa etc.) e a do u n itarism o dem ocrtico (Jos Elias
Garcia, Bern ardin o Pin h eiro, Gilberto Rola etc.). En qu an to perdu raram
as su gestes revolu cion rias vin das da Fran a e sobretu do de Espan h a, o
federalism o portu gu s desen volveu a su a propagan da em efm eros rgos da im pren sa peridica (O Rebate, A Repblica Federal). Na lin h a das
dou trin as de Pi y Margall, de Em lio Castellar, de Eu gn e Varlin e qu ejan dos, os federalistas bateram -se pela descon cen trao das riqu ezas privadas, pela ch efia colegial da fu tu ra federao repu blican a, pelo m an dato
im perativo dos represen tan tes parlam en tares e pela descen tralizao adm in istrativa e territorial. Com o esm agam en to da Com u n a de Paris e o
alu im en to da rep blica espan h ola de 1873, o federalism o en tra em retrocesso e tran sfere a h egem on ia para a corren te u n itria. Esta prescin de da
tn ica socializan te glosada pelo federalism o, alijan do tam bm os tem as da
ch efia coletiva do Estado, do m an dato im perativo e da descen tralizao.
O seu eixo referen cial passar a ser o da dign ificao e am pliao do su frgio, ten den cialm en te dirigido su a u n iversalizao. A par disto, preten de-se tam bm racion alizar o sistem a econ m ico vigen te e reforar a
cidadan ia, com a con sagrao dos direitos, liberdades e garan tias in dividu ais, tidos com o falseados n a in terpretao restritiva do con stitu cion alism o m on rqu ico. A n ovidade trazida pelo repu blican ism o ao liberalism o portu gu s oitocen tista ser a de lh e aditar a n ota dem ocrtica con su bstan ciada n a reclam ao do su frgio u n iversal. A ideologia repu blican a n o preten deu m u dar a n atu reza econ m ica do liberalism o. Con ten tou -se em precon izar qu e a ortodoxia cen sitria do sistem a evolu sse politicam en te n u m sen tido dem oliberal. isto qu e explica a vocao eleitoralista da prim eira propagan da repu blican a. Os cen tros do repu blican ism o u n itrio apresen tavam -se com o verdadeiras escolas de civism o eleito-

272

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

ral, in sistin do n o aspecto pedaggico da propagan da a ser realizada. Con victos da su a expresso m in oritria e u rban a, os repu blican os desta gerao preten deram en sin ar aos seu s destin atrios os ru dim en tares valores e
as bsicas n oes da su a cren a m atricial. Fizeram -n o cien tes da esm agadora expresso do an alfabetism o popu lar, o qu al atin gia porcen tagen s escan dalosas n os m eios ru rais. Era u m ideal dem opdico qu e se en con trava sem pre presen te n os com cios, n as con fern cias proferidas em associaes popu lares, n os folh etos de divu lgao e at n os prstitos com em orativos com o o qu e se realizou , por exem plo, n a festividade do tricen ten rio de Cam es, celebrado em 1880. A in ten o de difu n dir s m assas
ign aras ru dim en tos de cu ltu ra poltico-social su ficien tem en te acessveis,
deu origem a broch u ras redigidas em lin gu agem in gn u a. Esto n este
caso a Cartilha do Povo, de Jos Falco, e o Catecismo Republicano para uso
do Povo, de au toria de Carrilh o Videira e de Teixeira Bastos. Um a ou tra razo, de n dole filosfica, con feria a este su rto propagan dstico a su a n ota
de pedagogism o pacfico. Referim o-n os relevn cia assu m ida pelo positivism o n a m en talidade dos ch efes repu blican os dos decn ios de 70 e de
80. Tan to Au gu sto Com te com o Em lio Littr propu n h am u m a filosofia de
desen volvim en to h istrico regido pela fam osa lei dos trs estados. A h u m an idade tran sitaria de u m in icial estado m en tal teolgico para u m defin itivo estado m en tal positivo ou cien tfico, por m eio da m ediao provisria de u m estado m en tal m etafsico. O term o fin al da evolu o con fu n diase, em term os polticos, com o adven to da rep blica. Im perava assim , n o
evolver h istrico, u m determ in ism o rgido, o qu al postu lava a n ecessidade in trn seca do triu n fo dem ocrtico. Assim se en ten de qu e esta gerao
repu blican a, em balada pela can tata positivista, qu e lh e reforava a credu lidade n a in evitabilidade do resu ltado fin al, se ten h a fixado n as frm u las
da propagan da ordeira, pacfica, pedaggica e evolu cion ista. Do qu e se tratava, afin al, era de elevar a sociedade n scia altu ra do esclarecim en to sociolgico. Um a vez qu e esta em presa tivesse sido realizada, a Rep blica
su rgiria fatalm en te, qu al fru to am adu recido e pron to a ser colh ido.

O SONHO IMPOSSVEL

DE UM NOVO BRASIL NA FRICA:


O ULTIMATO INGLS DE 1890 E OS SEUS EFEITOS
A bon an a em qu e vogava o Partido Regen erador com eou a ser
pertu rbada pelo efeito de con ten ciosos colon iais m an tidos com a Gr Bretan h a. As preten ses in glesas ilh a de Bolam a e baa de Lou ren o Marqu es foram resolvidas a favor de Portu gal, respectivam en te em 1870 e
1875, por sen ten as arbitrais proferidas pelos presiden tes Ulisses Gran t,
dos Estados Un idos da Am rica, e Mac-Mah on , da Fran a. Mas as crises

273

Amadeu Carvalho Homem

de sobreprodu o in du strial com qu e a Eu ropa desen volvida se debateu


a partir de m eados do scu lo acicataram projetos de colon izao sistem tica das plagas african as, ten do em vista a obten o de m ercados altern ativos para o escoam en to dos stocks paralisados. A Eu ropa m ercan til prestara especial aten o s deam bu laes realizadas por David Livigston e en tre 1840 e 1873 ao lon go do Zam beze e n as regies do Niassa e do Tan gan ica. As descobertas das jazidas de diam an tes de Kim berley, em 1867,
e das m in as de ou ro do Tran svaal, em 1885, torn aram im parvel o m ovim en to de corrida frica e despertaram in su speitadas vocaes colon ialistas. Alcan ado o protetorado da Tu n sia, a Fran a procu rava trazer
su a rbita de in flu n cia o cen tro equ atorial african o. O rei Leopoldo II da
Blgica, acolitado pelo jorn alista am erican o Stan ley, procu rou in stitu cion alizar o Estado-Livre do Con go. O ch an celer alem o Bism arck con cedeu
cobertu ra a associaes colon iais fin an ciadas por capitais privados, procu ran do firm ar-se n o su doeste african o, n a frica orien tal, n o Togo e n os
Cam ares. A In glaterra con segu ira libertar-se da parceria fran cesa n o protetorado do Egito e in stalara-se n a coln ia do Cabo. O n egocian te e aven tu reiro Cecil Rh odes, qu e fu n cion ava com o u m verdadeiro agen te da Rain h a Vitria, pression ou a ch an celaria britn ica para a m aterializao do
plan o de con stru o de u m a via frrea qu e pu desse u n ir o Cabo ao Cairo, oferecen do ao m ercan tilism o in gls o tu tan o das riqu ezas e m atriasprim as do con tin en te n egro. Era previsvel, portan to, a ecloso de con flitos in tern acion ais, gerados por preten ses colon ialistas con corren tes. No
tratado lu so-britn ico de Lou ren o Marqu es, firm ado em 1879, a In glaterra era leon in am en te favorecida por u m a paridade con dom in ial qu e jam ais ela pu dera alcan ar pela arbitragen s. A reao n acion alista aos term os do con vn io foi protagon izada em Portu gal pela opin io repu blican a, sobretu do pela criao dos jorn ais O Sculo e O Trinta. Assim , os in cios
dos an os 80 acrescen taro aos m otes con ven cion ais da argu m en tao
an tim on rqu ica o tem a, torn ado proverbial, da in c ria e da in com petn cia do govern am en talism o rgio relativam en te m an u ten o e desen volvim en to do patrim n io colon ial portu gu s.
As potn cias colon iais proem in en tes procedero defin io de n ovos critrios de apropriao colon ialista n o decorrer da Con fern cia de
Berlim (fin s de 1884 in cios de 1885), realizada com o patrocn io de Bism arck. Se at en to h avia vigorado o prin cpio da prioridade da descoberta e a vaga n oo das zon as de in flu n cia, a partir de agora ir exigir-se
u m a efetiva ocu pao territorial. Era u m a exign cia in com portvel para
a an em ia fin an ceira do Estado portu gu s, visto qu e a fatu ra dos m elh oram en tos m ateriais regen eradores se apresen tava cada vez m ais pesada.
Por ou tro lado, o perodo qu e m ediou en tre os protestos su scitados pelo
tratado de Lou ren o Marqu es e o m om en to em qu e en cerrou a con fern -

274

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

cia de Berlim sin gu larizou -se por avolu m adas restries s liberdades p blicas fu n dam en tais. So disso exem plo as persegu ies m ovidas im pren sa pela portaria de 12 de ou tu bro de 1881 e a fru la persecu tria protagon izada em 1884 por Lopo Vaz, au tor da lei das rolh as. Esta acen tu ao do au toritarism o receber in cen tivos com o falecim en to do rei D.
Lu s e com a su bseq en te en tron izao de D. Carlos. En qu an to o prim eiro observou cu idadosam en te os lim ites do seu papel con stitu cion al, o segu n do qu is in tervir ativam en te n a poltica, correspon den do ao pedido
qu e lh e era dirigido por m u itas in dividu alidades sim patizan tes do cesarism o germ n ico. No gru po in telectu al e gastron m ico dos Vencidos da Vida,
prxim o de D. Carlos, form ado por algu m as das glrias literrias do pas
(Oliveira Martin s, Gu erra Ju n qu eiro, Ram alh o Ortigo, Ea de Qu eirs)
e por aristocratas perten cen tes prim eira n obreza do Rein o (Con de de Ficalh o, Con de de Sabu gosa, Bern ardo Correia de Melo, Lu s Pin to de Soveral, Carlos Lobo de vila), eram freq en tes as in vectivas con tra a situ ao rotativa e con tra o parlam en tarism o. S u m a factvel proxim idade
desses pon tos de vista perm item com preen der a cobertu ra qu e D. Carlos
dispen sou aos m odos de govern ao extrapartidria por on de se en veredou aps o Ultim ato in gls de 1890 e a gabin etes apostados em fazer vin gar processos ditatoriais. Este agravam en to das con dies da in terven o
cvica prepara u m a profu n da in flexo n o estilo da propagan da repu blican a. A u m a gerao de pedagogos dou trin rios, cren tes n as virtu alidades
do evolu cion ism o poltico e n a eficcia dos m eios pacficos de difu so do
seu iderio, su ceder u m a ou tra, m ais jovem , m ais in sofrida e m en os
iden tificada com o determ in ism o teleolgico do positivism o.
Peran te a legislao in tern acion al con sagrada n o Ato Fin al da Con fern cia de Berlim , algu n s govern an tes portu gu eses, com o Jos Vicen te
Barbosa de Bocage, Man u el Pin h eiro Ch agas e An tn io En es, abraaram a
idia de Portu gal poder vir a estabelecer n a zon a m eridion al african a u m
eixo de expan so en tre An gola e Moam biqu e, su scetvel de brin dar o pas
com u m a zon a de soberan ia sem solu o de con tin u idade. Un ir-se-ia o
ociden te an golan o ao orien te m oam bican o. Sabia-se, porm , qu e a realizao do projeto portu gu s im olava a expectativa britn ica e o son h o qu e
Cecil Rh odes atiara com os con cilibu los servidores da Rain h a Vitria. A
delim itao territorial das preten ses portu gu esas con stava de dois con vn ios n egociados em 1885 com a Fran a e a Alem an h a. Os m apas an exos aos tratados, coloridos a rosa, pu n h am o Zam beze a correr in teiram en te em reas de soberan ia portu gu esa. En tre 1884 e 1889, a Sociedade de
Geografia patrocin ou vrias exploraes dirigidas s zon as sertan ejas n evrlgicas para a con su m ao do porten toso objetivo. A irritao britn ica
foi su bin do de tom m edida qu e a estratgia portu gu esa preten dia con solidar posies n a fron teira leste de Moam biqu e, en tre o Lim popo e o

275

Amadeu Carvalho Homem

Zam beze. Com efeito, a am bio portu gu esa de criar n a frica u m n ovo
Brasil colidia com o plan o da estrada de ferro tran safrican a qu e os in gleses
alm ejavam con stru ir en tre o Cabo e o Cairo. De tu do isto resu ltou o u ltim ato qu e Salisbu ry fez en tregar ao govern o portu gu s em 11 de jan eiro
de 1890. Nele se in tim ava Portu gal a retirar im ediatam en te todas as su as
foras m ilitares das regies em litgio. A im plcita am eaa de u tilizao de
m eios blicos con feriu in tim ativa a fora do in apelvel.
Os in trpretes do iderio dem oliberal au feriram das van tagen s con seq en tes gravidade deste m om en to h istrico. qu e os su cessivos govern os, para ten tarem con trariar a vozearia an n im a das ru as e a m ar
dos protestos, en du receram flagran tem en te os seu s m eios de ao. O recu rso a elen cos m in isteriais extrapartidrios e a ditadu ras adm in istrativas
foi determ in an te para a ten tativa de in stitu cion alizao de agrem iaes
in depen den tes qu e pu dessem salvagu ardar a tradio valorativa do radicalism o liberal e restau rar o abalado prestgio da n ao. Tan to a Liga Liberal, ch efiada por Au gu sto Fu sch in i e dirigida sobretu do ao elem en to m ilitar, com o a Liga Patritica do Norte, presidida por An tero de Qu en tal, obedeceram ao propsito de in stalar assem blias con su ltivas de reflexo,
m argem da lgica partidria rotativa, n as qu ais se pu dessem debater solu es de resgate fu tu ro. Foram ten tativas bem in ten cion adas, m as fin alm en te abortadas. Con tu do, a crise do u ltim ato por em relevo u m a n ova
gerao repu blican a de propagan distas ativos, em fran ca dissidn cia
com os m todos pu ram en te eleitoralistas, verbalistas e pacficos at en to
em voga. Su rgiu u m jorn alism o de com bate, sobretu do iden tificado com
crcu los estu dan tis in vu lgarm en te au dazes. O rgo da Academ ia repu blican a lisbon en se, A Ptria, revelou os n om es de Higin o de Sou sa, Brito Cam ach o e Joo de Men eses; o estu dan te de m edicin a Edu ardo de Sou sa
pu blicou n o Porto a folh a O Rebate; em Coim bra im prim iu -se O Ultimatum,
qu e estam pou os agrestes artigos de An tn io Jos de Alm eida e de Afon so Costa. Mas n o foram apen as os estu dan tes qu e se m ovim en taram . O
jorn alista Joo Ch agas, con qu istado para a cau sa repu blican a pelo ch oqu e
patritico do u ltim ato, in cen diou as pgin as dos peridicos A Repblica e
A Repblica Portuguesa, am bos su rgidos n o Porto. O segu n do destes rgos
de im pren sa passou a exarar n u m erosos depoim en tos de m ilitares de baixa paten te, clam an do por u m a exem plar desafron ta qu e restau rasse os
brios feridos do exrcito portu gu s.
Foi esta a an tecm ara da revolta portu en se de 31 de jan eiro de 1891,
ten tativa in gn u a e rom n tica em qu e em barcaram em otivam en te os trs
oficiais a qu e se redu ziu o Estado-Maior dos su blevados (Alferes Malh eiro,
Ten en te Coelh o e Capito Leito) e u m a pequ en a m u ltido de praas de
pr, cabos e sargen tos. Agu en taram -se 8 h oras n a con ten da, an tes de serem obrigados a capitu lar peran te as foras fiis m on arqu ia. A revolta fi-

276

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

liava-se flagran tem en te n a m em ria do vin tism o. A prova m ais irrefu tvel
desta filiao en con tra-se n o fato de terem sido fielm en te repetidos pelos
su blevados os itin errios e os cerim on iais da distan te m as recorren te e
obsidian te revolu o de 24 de agosto de 1820! Qu e u m tal atavism o de
postu ras se desen cadeie assim , to sim bolicam en te, a tam an h a distn cia
tem poral, bem a prova do veio em qu e m ergu lh am as razes do repu blican ism o portu gu s. Na su a pan plia ideolgica en con tram os a reivin dicao de u m liberalism o expu rgado da m cu la cartista, a reclam ao de u m
con stitu cion alism o defen sor dos foros da soberan ia n acion al e a exign cia
de u m parlam en tarism o sem o aaim o do veto real e do pariato.
A dou trin a do en gran decim en to do poder real acabou por sedu zir os ch efes dos partidos m on rqu icos m ais represen tativos n u m m om en to em qu e a m orte j ceifara vu ltos com o o de An selm o Braam cam p
e Fon tes Pereira de Melo, defen sores de u m cartism o m ais respeitador do
con vvio plu ral. Tan to a ch efia regen eradora, en tregu e a Hin tze Ribeiro,
com o a progressista, n as m os de Jos Lu cian o de Castro, se m ostraram
perm eveis a apelos e ten taes liberticidas. Esta n ota especialm en te visvel n o perodo qu e m edeia en tre 1893 e 1897. A ditadu ra en cetada por
Hin tze Ribeiro e Joo Fran co em fin s de de 1893, in au gu ra u m lon go perodo de com presso poltica e de vigiln cia social. Su prim e-se o pariato
eletivo, im possibilita-se a represen tao das m in orias, fu n da-se u m Ju zo
de In stru o Crim in al com en orm es e discricion rios poderes, pu blica-se
legislao fortem en te lesiva das garan tias fu n dam en tais com o a tristem en te fam osa lei an tian arqu ista de fevereiro de 1896, qu e os repu blican os apelidaram de lei celerada e qu erela-se por razes pu eris o jorn alism o oposicion ista. No cam po dem ocrtico lavrava a desorien tao. Um
setor repu blican o m ais m oderado ch egou a firm ar com o Partido Progressista u m a coligao liberal, sob a vivssim a discordn cia de correligion rios opositores a tal pacto. A su baltern izao a qu e ficaram con den adas as
oposies, dim in u das por u m a legislao eleitoral cerceadora dos seu s direitos de represen tao, determ in ou o seu aban don o su m rio das u rn as
n o ato eleitoral de n ovem bro de 1895, ao qu al s se apresen taram can didatos regen eradores. A Cm ara dos Depu tados viu -se redu zida a u m a situ ao m on opartidria, sen do forada a sim u lar debates parlam en tares
de pu ra circu n stn cia. Qu an do, em fevereiro de 1897, Jos Lu cian o de
Castro arredou fin alm en te a situ ao regen eradora, os repu blican os objetores da coligao liberal con firm aram as su as pretritas descon fian as. Man tiveram -se, n o essen cial, todos os aparelh os repressivos h erdados da govern ao an terior. Por isso, o Partido Repu blican o ir persistir
n a su a postu ra de absten cion ism o eleitoral, s vin do a regressar ao su frgio em fin s de 1899. Alis, a su a desarticu lao era to preocu pan te qu e
An tn io Jos de Alm eida, n u m artigo su rgido em fin s de 1903 n o jorn al

277

Amadeu Carvalho Homem

O Mundo, de Lisboa, falava n a n ecessidade de fazer desde o prin cpio a


obra de organ izao.

CRISE D O ROTATIVISMO MON RQUICO E O


A D VEN TO D A REPBLICA
A braos com esta profu n da crise, os repu blican os n o pu deram aproveitar-se das irreversveis m u taes qu e iro fragm en tar o cam po m on rqu ico. Desde 1876 qu e o rotativism o en tre regen eradores e progressistas se praticava, estabilizan do o m odelo poltico. Mas o reverso desta estabilizao con sistia n a descaracterizao profu n da dos dois partidos qu e en tre si dividiam o
poder. Na prtica, qu ase n ada diferen ciava u m m in istrio regen erador de u m
m in istrio progressista. Mas se ou tras form aes m on rqu icas pu dessem
em ergir, a tradio rotativa teria de fazer variar o seu estilo de expresso, de
m odo a con ceder algu m espao de m an obra a n ovos com parsas. No Partido
Regen erador ferm en tava u m a dissen o, an u n ciadora de u m a ru ptu ra. Dotado de u m a person alidade en rgica e am biciosa, Joo Fran co con solidar, en tre 1901 e 1903, a ciso qu e se adivin h ava. Levan do atrs de si u m a pequ en a
falan ge de depu tados regen eradores rebeldes, ir fu n dar o Partido Regen erador Liberal, em aberto con fron to com Hin tze Ribeiro. Com o m ote do seu
fracion ism o, en fatizar o efeito perverso do rotativism o n a tran sparn cia da
vida p blica e o lu dbrio revezadam en te in trodu zido por regen eradores e
progressistas n a con du o adm in istrativa do rein o. Um a idn tica ciso ir
ocorrer n o in terior do Partido Progressista. Jos de Alpoim , qu e desem pen h ara o cargo de m in istro da Ju stia n u m gabin ete de 1904 presidido por Jos Lu cian o de Castro, tam bm se afasta das fileiras do seu partido de origem , viabilizan do n o an o segu in te o pequ en o agru pam en to da Dissidn cia Progressista.
Os dios in testin os qu e se geraram a partir destes atos objetivos de rebelio,
con su bstan ciados em violen tos tu m u ltos n a Cm ara dos Depu tados e n a im pren sa, aceleraram o descrdito das in stitu ies com a opin io p blica.
O episdio m ais salien te do desm an telam en to do sistem a rotativo
rem on ta alian a estabelecida en tre Jos Lu cian o de Castro, lder progressista, e Joo Fran co, ch efe dos regen eradores-liberais, u n idos n u m a
con cen trao liberal qu e preten dia apear do poder Hin tze Ribeiro, prim eira figu ra do Partido Regen erador. Em m aio de 1906, Hin tze sofre a
afron ta de ser ren dido pelo ch efe dos regen eradores-liberais, com o ativo
patrocn io de Lu cian o de Castro. Este vexam e era a retaliao dos favores
eleitorais com qu e o govern o de Hin tze cu m u lara a Dissidn cia Progressista en qu an to estivera n o poder. Com o se verifica, a ocorrn cia das cises m on rqu icas in trodu zira n o jogo poltico os m ais graves fatores de
in stabilidade. En qu an to o Partido Regen erador se servia de Alpoim para

278

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

desfeitear os progressistas, estes in stru m en talizavam Joo Fran co para irritar os regen eradores. Arriscada tavolagem era esta, em qu e os dois ch efes dos m aiores partidos se serviam de in terposies odiosas para se deprim irem m u tu am en te... Faltou aos gran des partidos m on rqu icos clarividn cia bastan te para m argin alizarem as patru lh as dissiden tes, as qu ais,
caso tivessem sido aban don adas ao seu prprio valim en to, se teriam de
con form ar com a su a fatal su baltern idade.
A form ao do gabin ete m in isterial fran qu ista, em m aio de 1906,
era com patvel com as regras con stitu cion ais, u m a vez qu e a in clu so de
in dividu alidades do Partido Progressista con feria ao m in istrio o su porte
de legitim idade qu e lh e era in dispen svel. Joo Fran co m an ifestara a in ten o de govern ar in glesa, ou seja, sob a vigiln cia do Parlam en to, e
retratara-se pu blicam en te do seu passado poltico ditatorial. Porm , tu do
se com plicou qu an do foi levada discu sso da Cm ara dos Depu tados a
ch am ada qu esto dos adian tam en tos. Tratava-se de regu lar os dbitos
da Coroa para com o Errio p blico, em ergen tes de verbas en tregu es por
diversos m in istros da Fazen da realeza, para cobertu ra de gastos excepcion ais e qu e excediam , con seq en tem en te, as cifras con stan tes da lista
civil qu e legalm en te eram atribu veis Casa Real. O debate parlam en tar
desta m atria am otin ou as oposies an tifran qu istas e forn eceu aos depu tados repu blican os (An tn io Jos de Alm eida, Afon so Costa, Alexan dre
Braga e Joo de Men eses) o desejado pretexto para a exau torao da m on arqu ia. agitao dos setores polticos correspon deu a in tran q ilidade
de segm en tos sociais relevan tes. A partir de m aro de 1907, a Un iversidade de Coim bra con vu lsion ou -se com u m a greve acadm ica, acaban do
por ser en cerrada pelo govern o. Joo Fran co ten tou persu adir Jos Lu cian o de Castro a aprofu n dar a con cen trao liberal, atravs do recu rso a
u m a rem odelao m in isterial valorizada pela en trada n o gabin ete de algu n s dos n om es m ais son an tes do progressism o. Mas o ch efe do Partido
Progressista fu rtou -se a este desiderato. A con cen trao liberal esgotara-se. Regressar-se-ia ao rotativism o? n esta con ju n tu ra qu e se revela
com clareza o desgn io de D. Carlos. Em vez de em pu rrar Joo Fran co
para a dem isso, o m on arca in citou o seu valido a exercer a ditadu ra. Ao
decreto qu e en cerrou o parlam en to, em 10 de m aio de 1907, su cederam se ou tros diplom as lim itativos dos direitos e garan tias in dividu ais. Todas
as oposies se u n ificaram in form alm en te. Era com o se de u m lado existisse a barricada com u m de Joo Fran co e de D. Carlos, e do ou tro su rgisse u m a vasta fren te, en globan do todo o pas poltico. O processo en con trado para resolver a qu esto dos adian tam en tos levan tou larga celeu m a. Os setores crticos acu savam o govern o de ter avaliado com excessos
de parcim n ia as dvidas reais. Abateu -se sobre Fran co u m ven daval de
cen su ras, sen do este apresen tado pelo jorn al Correio da Noite, ligado aos

279

Amadeu Carvalho Homem

h om en s de Jos Lu cian o, com o u m ven al m an datrio do locu pletam en to


din stico. Talvez por isto, n o foi con tem porizadora a en trevista qu e D.
Carlos con cedeu , em 13 de n ovem bro, a Joseph Galtier, redator do jorn al
fran cs Le Temps. O rei ju stificava a vigen te ditadu ra, declaran do, alis
com verdade, qu e ou tros polticos, an tecessores do fran qu ism o, lh e tin h am igu alm en te solicitado poderes ditatoriais. Um a das su as afirm aes
foi especialm en te desastrada: aqu ela em qu e D. Carlos derivava a su a atu al con fian a n o ch efe do govern o das garan tias de carter qu e ele lh e
oferecia. Deste m odo, o rei parecia im olar toda a classe poltica estran h a
ao fran qu ism o, du vidan do qu e ela fosse portadora das tais garan tias de
carter qu e exorn ariam o seu ditador privativo. Estas declaraes tiveram u m efeito devastador en tre certos u licos, at en to fiis ao tron o. As
defeces qu e logo foram con h ecidas abran geram person alidades relevan tssim as. Au gu sto Jos da Cu n h a, an tigo m in istro da Coroa e ex-preceptor de D. Carlos, An selm o Braam cam p Freire, Par do Rein o, e Fau stin o de S Nogu eira, descen den te do Marqu s de S da Ban deira, con sideraram -se divorciados do credo m on rqu ico.
Foi sob os rigores do fran qu ism o qu e o m ovim en to dem ocrtico se
reorgan izou . Mas agora esta reorgan izao n o se en cam in h ou para a difu so pedaggica e pacfica do seu iderio. O ativism o revolu cion rio da
gerao do Ultim ato n o preten deu segu ir os processos in ofen sivos da
m era dou trin ao. A con spirao revolu cion ria obedeceu a u m a
arqu itetu ra sediciosa qu e com bin ou u m plan o de relativa visibilidade com
u m ou tro de m aior opacidade. Preten dem os com isto dizer qu e do m esm o m odo qu e o Partido Repu blican o coorden ava a ao do protesto p blico, trabalh an do em com u m com ou tras organ izaes cvicas, toleradas
pela exgu a legalidade vigen te com o, por exem plo, a Liga Liberal, de
Migu el Bom barda , tam bm n o desprezava o con tribu to de ou tras organ izaes secretas ou clan destin as. Era o caso da Maon aria e da Carbon ria Portu gu esa. Se a prim eira gozava de larga tradio, a Carbon ria,
espcie de brao arm ado m an ico, n ascera do em pen h o de Artu r Du arte da Lu z Alm eida, o qu al com eara por fu n dar u m a Maon aria Acadm ica qu e posteriorm en te viria a perder o seu carter exclu sivam en te estu dan til.
Em 28 de jan eiro de 1908 abortou em Lisboa o m ovim en to revolu cion rio qu e os repu blican os e os dissiden tes de Alpoim h aviam forjado. Segu n do Jos Relvas, foi este even to qu e alu cin ou Joo Fran co e o
despen h ou n a fase deliran te do seu con su lado. Com efeito, a resposta
en con trada para a gravidade dos acon tecim en tos con sistiu n a preparao
do decreto de 31 de jan eiro, san cion ado por D. Carlos em Vila Viosa. O
decreto con figu rava u m a au tn tica declarao de gu erra para todos os
opositores do fran qu ism o. Nele se previa a facu ldade govern am en tal de
expu lsar do Rein o ou fazer tran sportar para u m a provn cia u ltram ari-

280

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

n a, em n om e dos in teresses gerais da n ao, todos aqu eles qu e fossem


in diciados pela au toridade ju dicial. Ficavam tam bm su spen sas as im u n idades parlam en tares dos qu e se m an ifestassem con tra a segu ran a do
Estado ou se apresen tassem com o in im igos da sociedade. No dia segu in te, 1. de fevereiro de 1908, ao regressar a Lisboa n a com pan h ia da
su a fam lia, D. Carlos su cu m biu n u m a esqu in a do Terreiro do Pao, sob
os disparos dos regicidas Man u el dos Reis Bu ia e Alfredo Lu s da Costa.
O prn cipe real D. Lu s Filipe foi a ou tra vtim a da san h a assassin a.
A preparao do revolu cion arism o carbon rio acelerou n otoriam en te n o perodo su bseq en te ao regicdio. A Alta Ven da, rgo deliberativo da organ izao, passou a in clu ir com o ch efes as person alidades
de Mach ado San tos e de An tn io Maria da Silva. A palavra de ordem do
triu n virato dirigen te ia n o sen tido de serem aliciadas as bases da h ierarqu ia castren se por repu blican os qu e pu dessem in sin u ar-se n os qu artis
da gu arn io de Lisboa. Mas n em todos os repu blican os advogavam a solu o revolu cion ria im ediata. O jorn al O Mundo, acolh en do as orien taes de Bern ardin o Mach ado e Afon so Costa, passou a exprim ir, aps o
regicdio, opin ies de gran de m oderao. Fazia-lh e fren te o gru po do jorn al A Luta , arregim en tan do Brito Cam ach o, Jos Relvas, Malva do Vale,
In ocn cio Cam ach o e Jos Barbosa. Um dos m ais ativos pregoeiros do revolu cion arism o im ediato era Joo Ch agas, o qu al con vertera os fasccu los
das su as Cartas Polticas em libelos in cen dirios.
O tron o era agora ocu pado por D. Man u el II. In experien te, m u ito
in flu en ciado por su a m e, algo perm evel aos avan os do u ltram on tan ism o, o jovem rei teve ain da con tra ele o com pleto desm an telam en to do
cam po m on rqu ico. Com efeito, a crise lavrava n o in terior dos partidos
tradicion ais da realeza. A agrem iao dos progressistas ressen tia-se pela
debilidade de m an do de Jos Lu cian o de Castro, j m u ito alqu ebrado pela
idade avan ada e pela doen a. O Partido Regen erador, por seu tu rn o,
m ergu lh ou n u m a verdadeira orgia dissolu tria. O falecim en to de Hin tze
Ribeiro, em agosto de 1907, tran sform ara a lu ta pela su cesso n u m circo
de dispu tas sem freio. Em bora J lio de Vilh en a tivesse con segu ido o
triu n fo da su a can didatu ra, tal h egem on ia n u n ca foi acatada por ou tros
n otveis. A in stabilidade govern ativa foi o corolrio n ecessrio deste
con tu rbado pan o de fu n do. Ten h am os presen te qu e en tre fevereiro de
1908 e ou tu bro de 1910 se su cederam , em estado perm an en te de pertu rbao e fragilidade, os gabin etes de Ferreira do Am aral, Cam pos Henriques, Sebastio Teles, Wenceslau de Lima, Veiga Beiro e Teixeira de Sousa. Neste agitado cenrio, foram completamente ignorados os apelos de Jlio de Vilhena e do prprio D. Manuel II para que se reconstrussem os partidos histricos.
O congresso republicano que se reuniu em Setbal entre 23 e 25 de
abril de 1909 ditou a vitria tangencial da faco revolucionria. A Carbo-

281

Amadeu Carvalho Homem

nria no seu conjunto e as figuras individuais de Jos Relvas, Inocncio Camacho, Jos Barbosa, Antnio Jos de Almeida e Joo Chagas rejubilaram
com o revs sofrido por Afonso Costa e Bernardino Machado, paladinos da
tendncia moderada. Afonso Costa, contudo, aceitou sem azedume os resultados do congresso, no se furtando, sequer, a integrar um comit revolucionrio civil, na companhia de Joo Chagas e Antnio Jos de Almeida.
Organizou-se um comit revolucionrio militar sob o comando do almirante Cndido dos Reis. E do mesmo modo que a Carbonria prosseguiu a todo
o vapor a sua tarefa de seduo s baixas patentes militares, assim o almirante tratou de aliciar, por seu turno, individualidades militares de mais alta
hierarquia. Em 30 de janeiro de 1910 realizou-se na capital uma reunio
republicana com os correligionrios mais prestigiosos de todo o pas para
ponderar sobre a viabilidade de promover no espao nacional uma forte
agitao. Os que defendiam a imediata passagem ao sobrelevavam a
militncia dos mais reticentes. Alm do proselitismo revolucionrio que
Joo Chagas continuava a desenvolver nas Cartas Polticas, tambm Antnio
Jos de Almeida, na recm-criada revista Alma Nacional, manifestava e difundia os mesmos pontos de vista. O congresso republicano de abril de
1910, convocado para o Porto, selou o pacto entre a Carbonria e o restante associativismo democrtico no clandestino, fazendo aprovar uma moo de solidariedade para com as associaes polticas secretas que cooperavam na obra revolucionria. O Partido Republicano ir obter nas eleies
de 28 de agosto de 1910 a maior vitria jamais alcanada por ele, com os
seus catorze deputados eleitos. Os resultados das urnas no demoveram,
contudo, os adeptos da metodologia revolucionria. Como sabido, foi de
armas na mo, no decurso da madrugada de 4 para 5 de outubro, que Machado Santos fez singrar a repblica, resistindo nas barricadas da Rotunda
aos augrios pessimistas que ditaram o suicdio de Cndido dos Reis. Joo
Chagas vaticinara que se o novo regime pudesse implantar-se em Lisboa,
pelo veredito da violncia, os novos poderes seriam decretados pelo telgrafo, pacificamente, para o resto do pas. Foi isso que se verificou. Portugal
era ainda uma Grei centralista. Se tal constituiu e constitui uma das
suas maiores fraquezas ou, pelo contrrio, o segredo da sua perenidade, tal
questo matria para desenvolvimentos que ultrapassam os limites deste
trabalho.

282

JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAO DO PORTUGAL CONTEMPORNEO

B IBLIOGRA FIA
ALEXANDRE, V. Origens do colonialismo portugus moderno (1822-1890). Lisboa, 1979.
ALMEIDA, P. T. de. Eleies e caciquismo no Portugal oitocentista (1868-1890).
Lisboa, 1991.
CABRAL, M. V. O desenvolvimento do capitalismo em Portugal no sculo XIX.
3.ed. Lisboa, 1981.
CATROGA, F. A im portn cia do positivism o n a con solidao da ideologia
repu blican a em Portu gal. (Coim bra), Biblos v.53. p.285-327, 1977.
HOMEM, A. C. A propaganda republicana. 1870-1910. Coim bra, 1990.
MACEDO, J. B. de. O bloqueio continental. Economia e guerra peninsular.
2. ed. Lisboa, 1990.
MARQUES, A. H. de O. A Primeira Repblica portuguesa. Algu n s aspectos
estru tu rais. 2.ed. Lisboa , 1975.
MEDINA, J. Oh! A Repblica !... . Estu dos sobre o repu blican ism o e a Prim eira Rep blica portu gu esa. Lisboa, 1990.
PEREIRA, M. H. Das revolues liberais ao Estado Novo. Lisboa, 1994.
SERRO, J. Da Regenerao Repblica. Lisboa, 1990.
TEIXEIRA, N. S. O Ultimatum ingls. A poltica extern a e a poltica in tern a
n o Portu gal de 1890. Lisboa, 1990.
TENGARRINHA, J. M. Da liberdade mitificada liberdade subvertida. Um a
explorao n o in terior da represso im pren sa peridica de 1820 a
1828. Lisboa, 1993.
TORGAL, L. R. A contra-revoluo durante o perodo vintista. Notas para u m a
in vestigao. Coim bra, 1978.

283

captu lo 15

DA MONARQUIA PARA A REPBLICA


A. H. de Oliveira Marqu es*

Pela sua grande variedade, a histria do primeiro tero do sculo XX


oferece diversas possibilidades de periodizao. A mais freqente autonomiza a Primeira Repblica, situando-a entre as datas de 5 de outubro de
1910 e 28 de maio de 1926. As caractersticas polticas presidem, assim,
delimitao do perodo.
Poder-se-ia argumentar que a Primeira Repblica esteve longe de ser
homognea, subdividindo-se, por sua vez, em dois perodos de democracia
parlamentar (1910-1917; 1919-1926), separados por um terceiro, de autocracia, que de democrtico s tinha o nome (1917-1919). E que houve porventura mais semelhanas entre algumas fases da Ditadura que se seguiu ao 28
de maio de 1926 e certos momentos da Primeira Repblica do que entre esta
e o Sidonismo institucionalizado de 1918. E ponderar-se-ia ainda que, mesmo
em termos polticos, e abstraindo da figura do rei, a Repblica parlamentar esteve mais prxima da Monarquia de 1908-1910 do que esta da Ditadura franquista, cujo paralelo se encontraria antes no Dezembrismo de Sidnio Pais.
Na verdade, e dadas as sucessivas experincias polticas ocorridas no
Portugal de ento, ou se tende a cair num atomismo periodista, tentando
homogeneizar as muitas pequenas fases que o caracterizaram ou, pelo contrrio, se prefere uma nica poca de conjunto, situada entre os perodos de
grande estabilidade que foram a Regenerao oitocentista e o Estado Novo
novecentista. Esta poca de conjunto iniciar-se-ia com os primeiros anos do
sculo XX quando os fermentos de mudana se introduziram definitivamente e terminaria com a definio de Estado Novo e com a adoo definitiva de um Estado autoritrio e antiliberal, por volta de 1930. Ao longo de
trinta atribulados anos sucederam-se, por vezes vertiginosamente, uma Monarquia constitucional assente num desprestigiado rotativismo partidrio
(1900-1906), uma Monarquia constitucional renovada (1906-1907), uma
Monarquia desptica e autoritria (1907-1908), uma nova Monarquia constitucional assente na multiplicidade dos partidos e na sua instabilidade conseqente (1908-1910), uma Ditadura republicana visando um Estado parlamentar (1910-1911), uma Repblica democrtica parlamentar (19111915), uma Ditadura militar visando a correo das instituies (1915), uma

285

A. H. de Oliveira Marques

segunda Repblica democrtica parlamentar caracterizada pelo predomnio


de um partido (1915-1917), um Regime presidencialista autocrtico (19171918), uma restaurao da Monarquia (em parte do pas; 1919), uma Terceira Repblica democrtica parlamentar assente na multiplicidade de partidos e na instabilidade sua conseqente (1919-1926), uma Ditadura militar
indecisa visando a correo das instituies (1926-1928) e, por fim, uma Ditadura sabendo j o que queria e para onde ia (1928 e seguintes).
Variedade e instabilidade caracterizam tambm, naturalmente, as estruturas polticas e as ideologias polticas. Multiplicaram-se os partidos polticos e os grupos de presso, acentuando-se a diversificao ideolgica. Na
organizao de cada grupo, tambm se esteve longe de um modelo nico.
Partidos de massas e partidos de quadros disputaram entre si poder e influncia. Sucederam-se as eleies autrquicas, legislativas e presidenciais.
O nmero de governos atingiu o mximo em toda a histria portuguesa do
passado e do futuro. A classe poltica alargou-se e democratizou-se. Nunca,
como ento, o acesso ao poder foi to fcil e a queda desse mesmo poder
to rpida e definitiva. No admira que a atividade legislativa de todo o perodo se mostrasse tambm intensa, variada e instvel. Se o corpo de leis
edificado foi imponente e vlido, j a efetividade dessas mesmas leis e o seu
impate na sociedade se revelaram muito menores. De uma maneira geral,
a legislao do primeiro tero do sculo XX, at durante a Monarquia, distanciava-se muito, na vanguarda que a definia, das reais possibilidades de
Portugal para a absorver e frutificar. Era uma legislao esclarecida e ideal,
feita por gente bem-pensante e apostada na modernizao rpida do pas,
mas inadequada s suas condies de base. Os homens do tempo acreditavam na ao direta, de cima para baixo, como arma eficaz para corrigir e
remodelar a sociedade em que se integravam.
Mas a verdade que a toda essa variedade e instabilidade dos meios
e dos agentes polticos correspondiam estruturas econmicas e sociais arcaicas, cuja solidez s pouco foi abalada e s pouco podia ser abalada. A organizao da propriedade, por exemplo, reconhecida por todos como imprpria para o desenvolvimento da agricultura, dificilmente podia ser tocada
sem uma dinmica revolucionria que de todo faltava. Os pequenos proprietrios recusavam-se ao emparcelamento, ao passo que os latifundirios
rejeitavam in limine qualquer reforma que lhes amputasse a terra.
Na economia, por seu turno, continuava a insistir-se nos produtos
tradicionais os cereais, o vinho, o azeite, a cortia com tcnicas ultrapassadas e com formas de comercializao j de h muito exploradas. No era
fcil, por seu turno, conseguir uma modificao de mercados externos. E
todo o comrcio com o estrangeiro girava em torno das relaes com a GrBretanha e das facilidades, at de transporte, que aquele pas proporcionava. O peso esmagador da Gr-Bretanha na vida portuguesa no se limita-

286

DA MONARQUIA PARA A REPBLICA

va, evidentemente, ao comrcio externo nem economia em geral. Por via


deles condicionava toda a poltica externa e, s vezes, at a interna subordinando-a aos seus desejos, interesses e objetivos. Era impensvel trilhar um caminho independente, afastado da aliana e da proteo britnicas, que assim se revelavam um pesado fator de estabilidade na diplomacia
de Portugal.
certo que se tentou, e com alguns resultados, a via da industrializao. As conservas de peixe atestam-no. Mas a estrada a percorrer era longa e trinta anos no chegavam para conseguir, por meio dela, uma maior
independncia econmica. Alis, tanto a agricultura como a indstria se
debatiam com a inadequao da rede de transportes internos, imperfeita,
incompleta e facilmente deteriorvel. Por seu turno, o comrcio interno
continuava a assentar numa multiplicidade de formas tradicionais pouco
desenvolvidas, privilegiando a pequena loja, os mercados e as feiras.
Malgrado a renovao causada pela guerra, esses modelos persistiram,
freando grandes concentraes de capital e grandes complexos comerciais.
Assim, o pequeno comerciante e o pequeno industrial, ao lado do
pequeno proprietrio, controlavam ou, pelo menos, dominavam numericamente o espao econmico da poca. Rotineiros e timoratos, constituam
uma fora conservadora, flutuante em simpatias polticas, pronta a apoiar
quem quer que lhe proporcionasse pequenos aumentos de lucro mas tambm quem quer que lhe garantisse segurana e tranqilidade. Os prprios
proletrios, quer rurais quer urbanos, em aumento constante, partilhavam
desse conservantismo de base j que, na sua maioria, detinham alguma coisa de seu. Com poucas excees, o movimento operrio portugus mostrou-se sempre tmido e pouco vanguardista, contentando-se com pequenos avanos no nvel de vida e nas condies de trabalho. Quase todos os
grupos sociais, alis, sofreram duramente com as conseqncias da guerra,
vendo reduzido, durante muitos anos, o seu poder de compra.
Enquadrando estas foras, existia uma Igreja ultramontana, composta por uma maioria de sacerdotes e de congregacionistas dos dois sexos,
pouco instrudos e pouco esclarecidos. O seu peso na sociedade era muito
grande, embora variasse com os grupos sociais e com as regies do pas. A
Igreja receava o aumento da descristianizao em curso, que atribua ao
avano do republicanismo e da Maonaria. Por isso lutou com todas as foras e por todos os meios contra o regime implantado em 1910, temendo
que a sua influncia entre as massas pudesse diminuir.
Conservadoras ainda se mostravam grande parte das Foras Armadas, nomeadamente o Exrcito, onde coexistiam o recruta analfabeto
oriundo dos meios rurais e o oficial orgulhoso, cnscio dos seus privilgios
de casta e da sua misso defensora e redentora. Temperado pelas campanhas da frica e pela participao na Primeira Guerra, o oficial do Exrcito

287

A. H. de Oliveira Marques

viu na arena poltica um campo onde se julgava com o dever de intervir, a


fim de salvar a Ptria. A seu lado encontrou outros corpos militarizados,
como a Guarda Nacional Republicana, porventura mais radicalizada mas
no menos interessada em cumprir a sua misso de interveno.
Outra fora conservadora eram as colnias. A sua manuteno indivisvel e a sua valorizao a todos os nveis constituam um pesado lastro,
travando um desenvolvimento mais acelerado da Metrpole. Das colnias
saam tambm benefcios, certo. Por via delas Portugal continuava a fazer
alguma figura e a ter alguma relevncia nesse conserto de naes ambiciosas e pouco escrupulosas que definiam a poca. As colnias serviam de escudo contra o imperialismo absorcionista da Espanha e de moeda de troca
para obter a proteo da Inglaterra. Mas foram as colnias que, em grande
parte, motivaram a interveno na guerra, com as conseqncias trgicas
que da resultaram para todo o pas.
Com tempo, o Portugal republicano conseguiria talvez minorar a
defasagem entre foras progressivas e bases conservadoras, esbater assimetrias e fazer vingar a legislao mais avanada. Mas esse tempo no lhe foi
concedido. A quatro anos de existncia, a ecloso da Primeira Guerra e os
seus resultados puseram fim prtico a projetos e a empreendimentos grandiosos, reduzindo a obra governativa difcil gesto do cotidiano. A Repblica deixou de se distinguir da Monarquia e de representar uma alternativa de progresso e de bem-estar. Os Messias passaram a ser outros.
Embora um esboo de ideologia republicana se pudesse fazer remontar a 1820, foi s nos meados do sculo XIX que o republicanismo surgiu como
doutrina expressa com clareza e repercusso popular. O seu iderio pde assim cristalizar no Manifesto e Programa de 1891, elaborado pouco antes da revolta republicana de 31 de janeiro desse ano, e que persistiria at proclamao da Repblica. Nele se fundiam os princpios das geraes de 48, 65-70 e
90. Foi seu autor o grande historiador e filsofo positivista Tefilo Braga (este
Manifesto foi publicado muitas vezes. Veja-se, por exemplo, o texto apenso ao
Boletim do Partido Republicano Portugus, Lisboa, p., 463-70, 1912.
O Manifesto e Programa, posteriormente chamado ora Manifesto ora
Programa, abria com uma introduo de carter histrico e ideolgico. Descrevia os acontecimentos do ano decorrido desde o Ultimatum (1890), sintetizando nele a falncia do regime monrquico-constitucional da Carta, a
exautorao dos partidos rotativos e a crise, na expectativa de uma tremenda catstrofe nacional, e a que um e os outros haviam arrastado a Nao. Separava, conseqentemente, esta da Monarquia, que se mantinha
apenas pela indiferena geral. E apontava para a necessidade de a Nao
ter um partido seu, que pugne pela sua dignidade e independncia, tirando da civilizao moderna as bases de uma nova reorganizao poltica.
Esse partido era o Partido Republicano Portugus, identificado assim como

288

DA MONARQUIA PARA A REPBLICA

partido nacional (e, portanto, nico), de vanguarda, e cientificamente programado. O Partido Republicano desenvolver-se-ia na razo direta do desalento pblico e da propaganda do moderno saber, trazido na fecunda corrente europia. E, mais adiante, definia-se Repblica como uma nacionalidade exercendo por si mesmo a prpria soberania, intervindo no exerccio normal das suas funes e magistratura. Monarquia e monrquicos
relegavam-se, pois, para o campo do obscurantismo, do passado pr-cientfico, do quase absolutismo, do no-europeu, do antinacional. No se tratava de uma opo pluralista, mas de uma dicotomia entre progressismo e
reacionarismo. A introduo do Manifesto e Programa encerrava-se por uma
evocao das grandes geraes do passado as de 1384, 1640, 1820 e 1834
e por um apelo obra gloriosa da reorganizao de Portugal.
O texto continuava com a definio de liberdade e de igualdade em
termos polticos e com um primeiro pargrafo dedicado Organizao
dos Poderes do Estado. Nele apontava para os trs poderes tradicionais, o
legislativo, o executivo e o judicial, rejeitando conseqentemente o poder
moderador da Carta Constitucional e perfilhando as bases da Constituio
de 1822. O poder legislativo seria exercido, em nvel municipal, pelas federaes de municpios legislando em assemblias provinciais e, em nvel nacional, pela federao de provncias legislando numa assemblia nacional.
De dez em dez anos funcionaria uma Constituinte destinada reviso peridica da Constituio e reforma da codificao. O poder executivo dividir-se-ia em trs superministrios, o da Segurana Pblica (Exrcito e Marinha de Guerra, Interior, Justia e Negcios Estrangeiros), o da Educao
Pblica (Educao, Cultura e Assistncia) e o da Economia Pblica (Agricultura, Comrcio, Indstria, Marinha Mercante, Comunicaes, Obras Pblicas e Finanas). No poder judicial existiriam juzes de conciliao, preparao, arbitragem e reviso, juzes cveis (singular, coletivo e especial),
criminais, policiais e administrativos.
A segunda parte, ou pargrafo, do Manifesto e Programa continha as
chamadas liberdades essenciais, as liberdades polticas e as liberdades
civis. Nas primeiras incluam-se, alm das tradicionais liberdade de conscincia, liberdade de imprensa e liberdade de discusso, certas aspiraes
muito caras aos republicanos, tais como a igualdade entre todos os cultos,
a abolio do juramento religioso, o registro civil obrigatrio, o ensino elementar secular e a secularizao dos cemitrios, alm de outras bastante
originais, como a diviso do professorado em docente e examinante, a
educao progressiva da mulher, a abolio dos graus e da freqncia obrigatria no ensino superior e a harmonizao e simplificao dos vrios
cdigos. Nas liberdades polticas entravam, como novidades, o sufrgio universal, a autonomia municipal e a descentralizao (e administrao civil)
das colnias, a abolio dos monoplios particulares, a abolio do corpo di-

289

A. H. de Oliveira Marques

plomtico e a transformao do corpo consular numa magistratura para as


relaes internacionais e, por fim, a abolio do servio militar obrigatrio
(com o Exrcito reduzido a quadros e milcias), alm das tradicionais liberdades de associao, reunio e representao, liberdade de trabalho e indstria, autonomia da Nao etc. Finalmente, no mbito das liberdades civis, entravam a extino das derradeiras formas senhoriais de propriedade
(foros, laudmios, lutuosas etc.), a obrigatoriedade do cultivo da terra sob
pena de expropriao, a reforma do crdito, um novo sistema de regulamentao do trabalho de menores, o fomento do cooperativismo a todos os
nveis, a no concorrncia do Estado com as indstrias particulares, a criao de colnias penais agrcolas, a extino de loterias e dos jogos de azar,
a reviso pautal, a abolio dos direitos de consumo, a criao de tribunais
arbitrais de classe para conflitos sociais, o estabelecimento de bolsas de trabalho, o reconhecimento da dvida pblica com o resgate da externa e regularizando a interna como meio de capitalizao dos pequenos possuidores, etc. (a este programa convir aditar o Manifesto dos emigrados da revoluo de 31.1.1891, por acentuar e precisar melhor alguns dos pontos referidos na Introduo ao programa republicano Manifesto dos Emigrados
de 31 de Janeiro, prefcio e notas de Alexandre Cabral, Lisboa, 1974).
Importa, todavia, acentuar que muito republicano jamais lera o programa ou os manifestos do seu partido. Sobre a futura Repblica, no tinha
idias definidas. Ser republicano, por 1890, 1900 e 1910, queria dizer ser
contra a Monarquia, contra a Igreja e os Jesutas, contra a corrupo poltica e os partidos monrquicos. Mas a favor de qu? As respostas mostravam-se vagas e variadas. Subsistia, como objetivo preciso, a descentralizao. Mas, quanto ao resto, a tendncia geral era antes para se conceder
palavra Repblica algo de carismtico e mstico, e para acreditar que bastaria a sua proclamao para libertar o pas de toda a injustia e de todos os
males. Eu, meu senhor, dizia no tribunal um dos soldados implicados na
revolta de 31 de janeiro de 1891, no sei o que a Repblica, mas no
pode deixar de ser uma coisa santa. Nunca na igreja senti um calafrio assim. E, com as mudanas inevitveis que uma maior instruo implicaria,
a idia era a mesma entre os camponeses, os operrios, os pequenos e os
mdios burgueses, sem distino de classe.
importante acentuar este aspecto para compreender as desiluses
e as contradies dos republicanos quando, por fim, triunfaram, em 1910.
Na verdade, o republicanismo veio a findar tambm como uma espcie de
utopia, que implicava um regime perfeito do povo para o povo, baseado
em completa igualdade, liberdade e justia democrtica. O iderio republicano, na sua ltima fase, mostrava pouca diferena do de 1820 (ou seja,
o da Revoluo Francesa), que a Monarquia Constitucional tentara interpretar e aplicar de uma forma pragmtica. Este fato esvaziou a Repblica

290

DA MONARQUIA PARA A REPBLICA

de muitas realizaes prticas (que haviam cimentado e institucionalizado


a monarquia liberal), reduzindo-a, em grande parte, a um aperfeioamento difcil ou impossvel de frmulas j experimentadas.
Seria, no entanto, errado supor que o republicanismo estagnou com
a proclamao da Repblica. Se a ideologia de base sofreu poucas ou nenhumas mudanas, a verdade que se instituiu uma poltica de governo
que foi evoluindo medida que a realidade abria os olhos aos republicanos
e lhes mostrava a necessidade de objetivos mais determinados.
Trs grandes questes caracterizaram o perodo 1900-1930, individualizando-o de certa maneira e concedendo-lhe unidade: a questo do regime, a questo religiosa e a questo colonial. Nenhuma delas, fato, foi
especfica do primeiro tero da centria, quer por derivar de pocas anteriores quer por prosseguir em pocas subseqentes. Mas a somatria das
trs, a sua inter-relacionao e a elevao de qualquer delas a base da existncia de Portugal independente s nessa poca puderam ser encontrados.
A questo do regime foi porventura a mais especfica do seu tempo
e a que mais diferenciou o pas em termos internacionais. verdade que a
mudana de instituies sacudira a Frana e a Espanha na dcada de 1870.
Uma gerao depois, todavia, no representava problema grave nem agitava a opinio pblica de qualquer dos dois pases. Embora o Partido Republicano estivesse bem representado no Parlamento de Madri e a Repblica
tivesse at sido proclamada em algumas cidades catals durante a revolta
de outubro de 1908, a Monarquia espanhola assentava ainda em fundamentos slidos e eram sobretudo as questes autonomistas que davam fora ao republicanismo espanhol de ento. Noutros Estados da Europa, a
questo do regime achava-se ancilarmente ligada mudana das bases da
prpria sociedade, essa sim, considerada prioritria. Era o que sucedia na
Alemanha com o forte Partido Social-Democrata, de ideologia marxista e,
de uma maneira geral, nos pases mais evoludos, com movimentos socialistas afins. Na prpria Espanha, o Partido Socialista tinha uma importante
votao popular em nvel de municpios, estando representado no Parlamento desde 1910.
Ora, em Portugal, e embora o republicanismo se apresentasse, em
muitos casos, colorido de socialismo (quer utpico quer cientfico), a
questo poltica sobrelevava claramente a questo social. Entendia-se que
a mudana de funcionamento da sociedade seria inoperante sem a mudana prvia das instituies polticas definidoras do Estado. No se aceitava
uma subverso social de baixo para cima, arrastando consigo o prprio
regime ou tornando-o secundrio. Acreditava-se, sim, que as alteraes sociais se fariam de cima para baixo por ao legislativa e que, para tal, havia que mudar primeiramente o regime poltico. Era, no fundo, o resultado da fraqueza da classe operria portuguesa em face da fora e da politi-

291

A. H. de Oliveira Marques

zao da pequena e mdia burguesias urbanas, receosas de revolues


profundas que abalassem o direito de propriedade e o conjunto de direitos
civis e polticos pouco a pouco conseguidos a partir de 1820.
Um rei popular e poltico hbil, como outrora o haviam sido D. Lus
e D. Pedro V, poderia ter arredado ou, pelo menos, minorado, o perigo republicano. Mas, exceo da rainha-me Maria Pia, a famlia real portuguesa, na primeira dcada do sculo XX, era tudo menos popular. O rei D.
Carlos, inteligente e culto, artista e homem de cincia, orgulhoso, desprezava os seus conterrneos, viajava muito, ausentando-se tempo demais no
estrangeiro, onde se divertia e gastava o que a opinio pblica julgava excessivo. Conheciam-se e eram mal vistas pela sociedade hipocritamente puritana do tempo as suas aventuras galantes em Paris, as suas amantes notrias, as suas fracas qualidades de pai de famlia. E entendia-se, numa poca em que o desprestgio dos partidos monrquicos e dos seus chefes polticos atingira o ponto mximo, que o rei no prestava suficiente ateno
aos negcios pblicos e que no escolhia para governar os homens mais
qualificados, entregando o poder a ministros corruptos e corruptores, cuja
obra conduziria, em ltima anlise, perda da independncia. A rainha D.
Amlia, malgrado a sua constante ao caritativa e filantrpica, era tida
como beata e dcil instrumento do clero secular e regular, nomeadamente da Companhia de Jesus. Acusavam-na de constituir um mau exemplo
para os prncipes seus filhos, educados sob uma tutela clerical tida por excessiva e nefasta. Tambm a achavam gastadora e pouco simptica, muito
dada a validos e favoritas, no se lhe perdoando as ms relaes notrias
com a rainha-me D. Maria Pia, a filha de Vtor Manuel.
A questo religiosa tinha paralelo em outros pases, nomeadamente
na Frana, na Itlia, na Blgica e, dcadas atrs, na Alemanha. Em Portugal, contudo, e dada a sua ligao ntima com a questo do regime, assumia aspectos muito prprios e diferenciados. O anticlericalismo era timbre
da opinio pblica mais esclarecida e vanguardista. Entendia-se que, sem
extirpar a ao do clero na vida individual e coletiva, no valia a pena empreender medidas revolucionrias de reforma da sociedade. Como dizia o
estadista Afonso Costa, em discurso de 16 de outubro de 1911, avaliando a
obra j ento realizada pelo Novo Regime: ela [a Repblica] desceu at s
razes do mal, e arrancou-as, expulsando os Jesutas, dispersando as congregaes e aconselhando o padre, desde o tonsurado bispo at ao humilde cura da aldeia, a resignar-se com o estabelecido ou a lutar contra princpios que o governo tinha combatido e estava disposto a esmagar. Combater e destruir o clericalismo, portanto, era to indispensvel como derrubar
o regime. Igreja e Monarquia identificavam-se e mutuamente sustentavam-se. E, tal como a famlia real em relao ao regime, assim tambm o
clero portugus no inco do sculo no ajudava a uma dignificao da Igreja nem a uma atitude simptica da opinio pblica para com ela.

292

DA MONARQUIA PARA A REPBLICA

A questo colonial, especificamente portuguesa na sua forma de receio e desconfiana em face das demais potncias com patrimnio ultramarino e de corrida contra o tempo para o aproveitar e valorizar, esteve intimamente ligada questo do regime. Foi um dos grandes motivos do descrdito da Monarquia, da proclamao da Repblica e da interveno de
Portugal na guerra. E, embora apaziguada e relegada a segundo plano aps
1919, continuou a desempenhar papel de relevo na poltica, na economia e
na sociedade portuguesas no decnio seguinte. O patrimnio colonial era
considerado malgrado algumas opinies em contrrio inalienvel e indestrutvel. A lusitanizao dos territrios possudos na frica e sia tinhase por evidente, pensando-se pouco em hipteses de independncia brasileira. Alm disso, e como j foi dito atrs, as colnias permitiam a Portugal manter ainda alguma figura no conserto internacional.
A questo da dvida pblica externa foi outro quebra-cabeas de ento, como alis de toda a histria portuguesa. O pas, pouco produtivo e em
vias de desenvolvimento, exigira sempre gastos avultados. Parte deles, alis,
respeitara a guerras civis e a questes polticas diversas. Pedia-se ento dinheiro emprestado ao estrangeiro. Pagava-se mal, com sucessivos atrasos e
moratrias. Os credores protestavam e ameaavam. Recorria-se a expedientes, a converses foradas, a manobras financeiras sempre insatisfatrias para os interesses nacionais. Em maro de 1900, o tribunal arbitral de
Berna, a quem Portugal recorrera numa dessas questes com os credores
estrangeiros a questo da estrada de ferro de Loureno Marques , proferiu sentena altamente desfavorvel ao pas. Foi necessrio pagar 3 mil contos aos governos britnico e norte-americano. Em 1902 resolveu-se outra
questo de dvida pblica externa, sendo aprovado um convnio que levantou tempestade nas tribunas e na imprensa.
A atribulada histria da Primeira Repblica Portuguesa passou por
trs grandes fases. Na primeira, de 1910 a 1917 a Repblica forte , o
novo regime justificou-se e aguentou-se merc de uma atitude agressiva
e pouco contemporizadora, tanto no interior como no exterior. Na segunda, de 1917 a 1919, dominado pelas foras de direita e subjugado pelas conseqncias desastrosas da guerra, tentou enveredar por caminho diferente,
que se revelou ento impossvel. Finalmente, na terceira, de 1919 a 1926
a Repblica fraca , aceitou compromisso atrs de compromisso, abandonando, na prtica, os princpios revolucionrios de 1910 e renovando toda
uma poltica de hesitaes e incoerncias que caracterizara os finais da Monarquia. Vtima sobretudo do conflito mundial, cujos efeitos comeou a
sentir logo em 1914, a Primeira Repblica Portuguesa foi, de certa maneira, um regime sem sorte, que os acontecimentos internacionais impediram
de se fortalecer e cristalizar (veja-se o paralelo com a Segunda Repblica
Espanhola, qual faltou, igualmente, o tempo indispensvel para deitar

293

A. H. de Oliveira Marques

razes). Foi tambm um regime excepcional na Europa do seu tempo, vanguardista na contestao e, em muitos casos, na subverso que propunha,
o que tornava difcil a sua consolidao num perodo curto. E foi, por fim,
um regime apoiado sobretudo nas massas urbanas e flutuando ao sabor da
instabilidade social que elas atravessaram entre 1910 e 1926. Em qualquer
destes aspectos, a Primeira Repblica contrastou flagrantemente com o regime que lhe sucedeu, o qual, em perfeita sintonia com os movimentos autoritrios e fascistas da Europa, solidariamente ancorado nas massas rurais
e conservadoras, e dispondo de suficiente tempo de paz para se estabilizar,
pde aguentar-se durante dezenas de anos.
A poltica agressiva da Repblica forte dirigiu-se, no plano interno,
em primeiro lugar contra a Igreja, reconhecida como o baluarte mais perigoso do conservantismo e do reacionarismo. Dirigiu-se igualmente contra
os monrquicos, contra a oligarquia financeira e econmica, contra o anarco-sindicalismo e a organizao operria em geral, contra o caciquismo rural tradicional etc. No plano externo, e obviamente mitigada pelos melindres diplomticos e pelos perigos de isolamento internacional, dirigiu-se
contra a Espanha e, conjunturalmente, contra a Alemanha, numa tentativa para minorar a hegemonia espanhola na Pennsula e para assegurar o
futuro desanuviado do patrimnio colonial. Neste sentido, e tambm para
sacudir o peso protetor da Inglaterra, adotou, desde os primeiros dias do
conflito de 1914-1918, uma poltica belicista e intervencionista, ao lado dos
Aliados, a contrastar com a neutralidade do pas vizinho.
A Repblica surgiu e triunfou em Portugal ao abrigo de dois mitos:
o da ptria decadente, beira do abismo, conduzida pela Monarquia
ruina e desonra, e o da possibilidade do seu ressurgimento com novas
instituies, iniciado pela gerao de 1890 e desde essa data. A decadncia
da ptria dever-se-ia sobretudo a mltiplos fatores morais, todos eles incorporados na Monarquia: o jesuitismo, a corrupo moral, o servilismo, os
preconceitos e os privilgios das castas e outros conceitos mais ou menos
vagos, difundidos e partilhados pela opinio pblica. Por isso se aspirava a
uma repblica pura, imenso e grande ideal, perfilhado por homens instrudos e politicamente responsveis como um Afonso Costa ou um Paulo
Falco. Mas rejeitava-se que fosse apenas uma corrente filosfica a determinante do iderio republicano. Para muitos, a Repblica era a conseqncia lgica e fatal da prpria evoluo histrica portuguesa, caracterizada por instituies e costumes fundamentalmente democrticos.
A monarquia constitucional, estabelecida depois da revoluo liberal
de 1820 e estabilizada a partir dos meados do sculo, seguira os padres comuns maioria dos Estados europeus da poca. O rei reinava mas no governava, ainda que as suas funes em Portugal estivessem acrescidas do
chamado poder moderador que lhe dava certos direitos intervenientes,
como o de dissolver as Cmaras quando necessrio.

294

DA MONARQUIA PARA A REPBLICA

Durante a Monarquia, a representao parlamentar era em grande


parte uma farsa. Tal como acontecida na Espanha, embora o regime fosse
teoricamente constitucional, continuava na prtica uma monarquia absoluta, que confiava o poder aos partidos; e os partidos, manipulando habilmente o maquinismo poltico, impunham esse poder a um povo ignorante
e indiferente na sua maioria. Luis Araquistain viu muito bem este problema, salientando que o poder no emanava do povo para os partidos e destes para a Coroa, mas sim da Coroa para os partidos e destes para as organizaes locais de caciques. O povo votava por quem era mandado ou por
quem mais lhe pagasse os votos. Os partidos no passavam de agrupamentos heterogneos, em torno de chefes. As suas ideologias eram vagas e pouco se diferenciavam umas das outras. Embora os Regeneradores fossem um
pouco mais conservadores e os Progressistas um pouco mais radicais, seria
absurdo tentar classific-los como Direita ou Esquerda. Ambos eram profundamente conservadores e ambos se compunham de elementos oriundos
dos mesmos grupos sociais e com interesses semelhantes. O Partido Republicano parecia, primeira vista, completamente diferente. Apresentava
um programa de ao radical, contava com gente mais dinmica, mais nova
e mais consciente dos interesses do pas. Apelava para as massas, prometendo-lhes melhoria de nvel de vida. Clamava contra a corrupo poltica,
contra o reacionarismo clerical e contra a nobreza. No entanto, como vimos, o Partido Republicano definia-se muito mais pelo que no era do que
pelo que era. Era contra a Monarquia, contra a Igreja, contra a corrupo,
contra os grupos oligrquicos. Mas o seu programa mostrava-se muito vago
na afirmao de realidades positivas. E no podia ser de outro modo, dada
a filiao heterognea dos seus membros. Se o grosso se compunha de representantes da classe mdia, no faltavam proletrios e at camponeses,
de interesses contraditrios com os daquela; e mesmo aristocratas idealistas
ou despeitados militavam nas suas fileiras. Era uma espcie de Frente Popular, formidvel e eficiente na luta contra a situao que estava; mas inepto para operar logo que conquistasse o poder e presa de lutas intestinas que
o levariam desagregao. O mais que se poderia afirmar do Partido Republicano era o seu carter fundamentalmente urbano: mas ainda aqui as excees se mostravam numerosas.
Feita a revoluo de 1910, conquistado o poder pela fora, o Partido
Republicano desagregou-se rapidamente, e a instabilidade poltica prosseguiu. Os elementos mais conservadores abriram ciso, agrupando-se em
torno de duas personalidades dominantes, uma mais popular e demagoga,
a outra mais intelectual e autenticamente crtica. O grosso do partido manteve a unidade, sob a chefia do mais hbil e dotado dos estadistas da Repblica, Afonso Costa. Compunham-no sobretudo as massas da pequena burguesia, com muitos proletrios tambm. No entanto, os vcios herdados

295

A. H. de Oliveira Marques

mantiveram-se. Os partidos da Repblica, ainda que mais definidos ideologicamente, nunca conseguiram eximir-se ao prestgio do chefe e ao autoritarismo do cacique. Quando o chefe morria, fraquejava ou se retirava da
vida poltica, o partido declinava, abria ciso, extinguia-se muitas vezes.
Depois de 1919, a tendncia para a especializao ideolgica acentuou-se. Na ala esquerda formaram-se alguns partidos ou associaes polticas interessadas pela estruturao programtica e pela relativa coerncia
de atitudes; sirvam de exemplos o Partido Comunista (1919), o grupo Seara Nova (1921) e a Esquerda Democrtica (1925), alm de uma maior afirmao parlamentar e prtica do velho Partido Socialista. Na ala direita, o
movimento era menos perceptvel: grupos como o dos Catlicos, ou o dos
Monrquicos, mostravam-se to heterogneos como o antigo Partido Republicano. O nico agrupamento coeso era o do Integralismo Lusitano, datando j de antes da guerra, e que iria fornecer a essncia da ideologia do
Corporativismo portugus depois de 1930.
No obstante esta tendncia poltica, o grosso do eleitorado continuava firmemente sob a alada dos partidos tradicionais, detentores de um
maquinismo complexo e de um savoir-faire que escapava ainda (ou por
vontade) aos novos. Era o Partido Democrtico (nome por que era geralmente conhecido o P R P), era o Partido Nacionalista (resultado final e herdeiro da fuso de Evolucionistas com Unionistas) que geralmente governavam sozinhos ou combinados, e que ganhavam as eleies.
A revoluo de 28 de maio de 1926, que ps fim Repblica Democrtica, foi, superficialmente, uma rebelio de todos os partidos contra a supremacia do Partido Democrtico, enquistado no poder. Analisada em profundidade, contudo, foi muito mais do que isso: foi um autntico movimento de reao antiurbana, a resposta da maioria conservadora das
provncias maioria radical das cidades-capitais. semelhana da revoluo republicana de 1910, o 28 de maio foi uma coligao de elementos heterogneos, definida antes pelo que no queria do que pelo que queria. Ao
contrrio dela, foi um movimento majoritrio da estabilizao, que triunfou, porque soube utilizar as camadas inertes, subjacentes, da populao, as
interpretou no seu conservadorismo e as representou na defesa dos chamados valores tradicionais: a Religio, o Exrcito, a Nao, a Famlia, a Ordem,
a Terra. semelhana do que aconteceu com os vrios movimentos conservadores ocorridos por toda a Europa pela mesma poca, a situao poltica portuguesa oriunda do 28 de maio foi provavelmente apoiada pela
maioria da Nao.
A Repblica evolua logicamente para um radicalismo de feio socialista ou socializante. Reforma agrria, aumento de tributao sobre os
possidentes, nacionalizaes, desenvolvimento da assistncia social, melhoria do nvel de vida das classes populares, contavam-se entre os assuntos

296

DA MONARQUIA PARA A REPBLICA

em discusso e inseriam-se na agenda dos partidos, quando no se achavam j em vias de efetivao. Era o resultado bvio da gradual industrializao do pas e da lenta alfabetizao das massas.
Mas esta evoluo, se parecia excessivamente demorada a uns os
intelectuais, os operrios , afigurava-se espantosamente rpida a outros
os proprietrios rurais, os capitalistas, parte da classe mdia, a Igreja. De
uma maneira geral, todos estavam descontentes. De uma maneira geral, todos se uniam contra o status quo. De uma maneira geral, todos aplaudiram
o golpe, muitos porque foram incapazes de o compreender, muitos porque
julgaram poder aproveitar-se dele. Como sucedera em 1910, com a Monarquia, a Repblica Democrtica caa agora por falta de defensores.
O movimento produziu-se. Desencadeara-o o exrcito as altas e
mdias patentes, cujo poder de compra estava reduzido metade do que
fora em 1910. Apoiaram-no: o alto e mdio funcionalismo pblico, por
idnticas razes; os bancos, o alto comrcio e a grande indstria, agravados
pela crise econmica e financeira, aterrorizados pelo surto do socialismo; o
clero, decadente pela progressiva descristianizao, ansioso por recuperar a
influncia perdida; parte da classe mdia das cidades, descontente com a
crise econmica, saturada de instabilidade poltica e de ameaas revolucionrias; parte da intelligentzia, desiludida com o decair dos ideais republicanos, atrada pela novidade do Integralismo. Como grande pano de fundo, a
Nao agrria, a Nao conservadora, a Nao feminina.
Depois de uma natural instabilidade poltica durante os trs ou quatro primeiros anos semeada de revolues, de golpes de Estado e de ministrios o Novo Regime consolidou-se por volta de 1931. Smbolo dessa consolidao foi a entrega da chefia governamental a Salazar (1932) que,
na realidade, dominava j desde 1928.

297

captu lo 16

A D EMOCRA CIA FR GIL:


A PRIMEIRA REPBLICA
PORTUGUESA (1910-1926)
um regime dbil e catico que acabou por comprometer a
sorte da democracia em Portugal.
Joo Medin a*
As revolues so o imprevisto; em nenhum pas como este, o imprevisto, se no
impossvel que represente a sorte grande, provvel que seja um bilhete que
saiu branco uma desiluso e um prejuzo.
Baslio Teles, As ditaduras (1911; reed. de artigos pu blicados em 1907).

O mais grave erro da Repblica foi o de no ter sabido realizar-se.


Joo Chagas, A ltima crise (1915).

O D ESMORON A R D A REA LEZA E A CON QUISTA


D O POD ER PELOS REPUBLICA N OS (1980-1910)

O desm oron am en to da m on arqu ia con stitu cion al coin cide com o


fin al do rein ado de D. Lu s (falecido em ou tu bro de 1889), o qu e levaria
Oliveira Martin s, artista sen svel aos pren n cios do dram a n acion al qu e
se m u ltiplicavam n o fin al daqu ela dcada, a resu m ir o tran se escreven do
qu e, ao fech ar-se o ata de rgio, se dera o sin al para o in cio da tragdia,
soltan do lu gu brem en te as f rias da desgraa Eu m n ides, qu e pairavam
en qu an to a roda de u m a fortu n a falaz ia acu m u lan do, em voltas su cessivas, as cau sas da ru n a prxim a (artigo de 1892, in clu do n o volu m e II
de Poltica e Histria, de O. Martin s). Lin gu agem som bria, m esm o f n ebre,
m as qu e de fato correspon dia fielm en te ao acu m u lar de catstrofes qu e
se abateriam sobre o n osso pas n o in cio do rein ado de D. Carlos: Ultimatum in gls de 11.1.1890, crise econ m ico-fin an ceira de 1891-1892, revolta repu blican a n o Porto (31.1.1981), gu erras colon iais em Moam biqu e
... Eram de fato, com o escrevia ain da Martin s n o m esm o texto, os estrem ees du m j lon go terrem oto cu jo fim n o vim os ain da...

299

Joo Medina

DESAGREGAO DO ROTATIVISMO
Politicam en te, a Regen erao baseava-se n o rotativism o, ou seja,
n a altern n cia pacfica, n o poder, das du as alas do liberalism o m on rqu ico, e qu e seriam , depois do pacto da Gran ja (fu so de h istricos e reform istas n o Partido Progressista, o partido patu lia, em 1876), os sem pitern os Regen eradores, liderados pelo etern o Fon tes (qu e h avia de falecer
em 1887), e os Progressistas, n a prtica con du zin do am bos as m esm a polticas e revelan do os m esm os vcios, m as in capazes de caberem n a m esm a m esa oram en tal. Eles n o esto divididos, eles cabem n os m esm os
prin cpios on de eles n o cabem n a m esm a sala de jan tar!, satiriza o
pan fletrio repu blican o Joo Ch agas (Posta restante, 1906). A lei eleitoral,
de base cen sitria, e a perverso sistem tica do su frgio torn avam alis o
voto u m a farsa qu e foi tem a obrigatrio de qu an tos caricatu ristas, jorn alistas e at rom an cistas trataram desse tem a,1 den u n cian do, com ju sta
pertin cia, ao lon go de toda a segu n da m etade do scu lo XIX e n a prim eira dcada da cen t ria segu in te, a m en tira eleitoral, as m ais diversas form as de caciqu ism o e a con stan te desvirtu ao do voto livre n o Portu gal con stitu cion al, ten do sido tam bm tpico in varivel da propagan da
repu blican a n a crtica aos m ales da realeza liberal. Os partidos n o passavam de pequ en os gru pos fixados em Lisboa. Com a su a clien tela certa e
os seu s caciqu es n a provn cia ou in flu en tes qu e serviam s su as
clien telas pagas o con sabio carn eiro com batatas das ch apeladas eleitorais, fabrican do as m aiorias n ecessrias para qu em fora ch am ado a form ar govern o. De fato, as eleies saam dos govern os e n o estes daqu elas: a Coroa n om eava u m m in istro, este form ava o seu gabin ete en tre os
seu s am igos e m aiorias do partido, dissolvia o parlam en to e preparava a
m aioria parlam en tar in dispen svel para govern ar com ela. Qu an do j n o
lograva m an ter-se n o poder, cabia ao rei n om ear ou tro prim eiro-m in istro, qu e repetia o processo. As m u dan as freq en tes de gabin etes e a dificu ldade em assegu rar govern os de legislatu ra torn avam qu ase im possvel m an ter u m a poltica estvel e coeren te por m u ito tem po.
As qu ezlias in tern as dos partidos m on rqu icos ir-se-iam agravan do n o fin al do scu lo XIX, dan do origem a dissidn cias qu e afetaram tan to progressistas (os Dissiden tes de Alpoim su rgiram em 1905) com o Regen eradores (dos qu ais se h avia de separar Joo Fran co ao criar o Cen tro
Regen erador Liberal em 1901); pela m esm a altu ra ten tou -se ain da a criao du m Partido Nacion alista, fortem en te en feu dado ao catolicism o retrgrado, liderado por u m dissiden te regen erador, Jacin to Cn dito da Silva. O partido legitim ista, o Migu elism o m an ter-se-ia todavia arredado
da vida parlam en tar. O operariado, u m a vez desfeitas j n a dcada de
1880 as ilu ses dos h om en s qu e tin h am fu n dado em 1875 o Partido So-

300

A DEMOCRACIA FRGIL: A PRIMEIRA REPBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

cialista, viu -se depressa sem u m rgo partidrio do Repu blican ism o, qu e
garan tiam aos trabalh adores qu e a fu tu ra Rep blica seria social. Qu an to aos repu blican os, esses n o logravam sair dos m in scu los redis a qu e
os tin h am con den ado as leis eleitorais feitas para favorecer a m aqu in aria
partidria da m on arqu ia, o qu e seria agravado com diplom as verdadeiram en te escan dalosos; u m deles, da lavra de Hin tze, ficou m esm o design ado por ign bil porcaria (lei eleitoral de 1901) ... por fim , n ota-se qu e o
partido h egem n ico por exceln cia, ao lon go de todo o n osso sistem a parlam en tar m on rqu ico, o Regen erador qu e por essa razo m ais tem po
ocu pou o poder en tre 1851 e 1910 , sofreria, alm da referida ciso fran qu ista, u m en orm e en fraqu ecim en to in tern o por via das capelas agru padas em torn o de lderes qu e n o se en ten diam , en tre eles (Teixeira de
Sou sa, J lio Vilh en a, Veiga Beiro, Cam pos Hen riqu es etc.). Assim , arredado do jogo parlam en tar a altern ativa in stitu cion al do repu blican ism o e
en tran do em fragm en tao os partidos rotativistas, crescen do en tre algu m as faces dissiden tes a ten tao ditatorial ou cesarista de qu e o Fran qu ism o foi a expresso m ais agressiva e calam itosa (J. Vilh en a, n u m artigo de 20.X.1907, n o Popular, profetizara qu e aqu ela ditadu ra term in aria
fatalm en te por u m crim e ou u m a revolu o, acaban do alis por am bos,
pois ao Regicdio 1.II.1908 se h avia de su ceder, dois an os volvidos, a
revolu o do 5 de ou tu bro... ), o Liberalism o oitocen tista torn ara-se, sobretu do depois da prim eira experin cia ditatorial de Fran co (feita de parceria com Hin tze Ribeiro, 1895-1897), u m sim ples cen rio pin tado, u m
m ero acervo de prin cpios em qu e n in gu m j acreditava.

DO TERREMOTO AO DIES IRAE


O en dividam en to extern o, a em igrao crescen te, a estagn ao
econ m ica in tern a, o predom n io da bu rgu esia m ercan til e fin an ceira,
ban cria, a depen dn cia extern a em vrios setores, desde o tecn olgico
aos dem ais, o erro de u m a opo livre cam bista n u m pas on de a produ o fabril era fru ste, o defeitu oso fu n cion am en to do sistem a liberal
parlam en tar, todos estes problem as se agravaram de m odo dram tico n os
com eos da dcada de1890, sobretu do n a gravssim a crise de 1891-1892,
gerada pelas flu tu aes cam biais n a Am rica do Su l, com o n efasto reflexo n a rem essa das pou pan as dos em igran tes, sem esqu ecer a sim u ltn ea
trepidao in tern a trazida pelo Ultimatum in gls de jan eiro de 1890, m om en to de verdadeira h u m ilh ao coletiva n acion al qu e h avia de despertar para a ao u m in cipen te Partido Repu blican o, su rgin do n aqu ele perodo de an g stia e clera com o u m a espcie de Sebastian ism o verm elh o
qu e tran sform ava a idia da Rep blica n u m m ito de tipo m essin ico ela

301

Joo Medina

era, ao m esm o tem po, D. Sebastio e a Virgem Maria qu al se reza pela


salvao , com o alis o su speitaram , com bastan te apreen so, as figu ras
m ais l cidas do cl an tim on rqu ico (Baslio Teles, v.g.).
O dficit do tesou ro, j de si m u itssim o preocu pan te, fazia pairar n o
com eo da dcada de 1890 o espectro m u ito real da ban carrota; a esta som ava-se, com a crise colon ial de qu e resu ltara a afron ta do Ultimatum in gls, o perigo da perda do n osso im prio african o, esse terceiro im prio
cu ja preservao patritica se torn ara u m m ito n acion al de in calcu lveis
con seq n cias: a du pla derrocada do sistem a regen erador (ou seja, por
u m lado, o desm oron am en to do liberalism o en qu an to tal, e, por ou tro, a
am eaa da ban carrota com plicada com a am eaa das perda do im prio
african o em proveito da n ossa Fiel Aliada agu dizaria a m en talidade
m essin ica lu sa, despertan do em algu n s setores polticos e cu ltu rais a m itologia do en direita e o ditador ou salvador capaz, ao m esm o tem po, de
an iqu ilar o crescen te perigo repu blican o e, por ou tro, de ven cer os dois
dem n ios m ais in stan tes, a ban carrota e a am eaa im perial vin da da GrBretan h a. Destes pn icos e aspiraes saiu verdadeiram en te o fim do sistem a liberal, desacreditado n a poltica e n a vida prtica efetiva dos portu gu eses, torn an do afin al sin n im o de bu rlas eleitorais n a adm in istrao,
com padrios gritan tes e in c ria econ m ico-fin an ceira.
Em m eados da dcada de 1890, com algu m as retu m ban tes vitrias
m ilitares african as (gerao de An tn io En es, vitrias m ilitares em Moam biqu e, de 1895 em dian te), o son h o du m regim e au toritrio e reden tor vai crescen do em torn o do n ovo rei, D. Carlos, apostado em desm an telar o velh o sistem a m on rqu ico-con stitu cion al em proveito de en direitas ou m essias qu e estabelecessem en tre n s u m cesarism o, qu er civil,
qu er m ilitar, capaz de ven cer a crise, ou seja, san ear as fin an as, expu lsar
os partidos do sistem a, qu ebrar a espin h a ao repu blican ism o qu e am eaara tu do su bverter desde 1891 com a falh ada revolta portu en se. Mou zin h o
de Albu qu erqu e, o apoteoticam en te aclam ado h eri african ista, foi u m
desses h om en s providen ciais em qu e o Pao pen sou para estabelecer a alm ejada ditadu ra en direitadora, m as foi afin al o civil e ju rista Joo Fran co
(1855-1929) qu e, em 1906 acabaria por ten tar a (alis catastrfica) experin cia do dito en gradecim en to do poder rgio ou cesarism o m on rqu ico
de qu e o trn sfu ga Oliveira Martin s fora o m ais resolu to pregoeiro ideolgico e at prtico , qu e se h avia de saldar com o assassin ato do prprio
m on arca qu e patrocin ara essa to afron tosa ten tativa de se afastar dos parm etros do liberalism o estabelecido en tre n s desde 1834. Caberia en to
aos repu blican os lu sos, depois do triu n fo da revolu o de 1910, ten tar restau rar ou recom ear o liberalism o em Portu gal.

302

A DEMOCRACIA FRGIL: A PRIMEIRA REPBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

SEGUN D A EXPERIN CIA LIBERA L


A REPBLICA D EMOLIBERA L (1910-1926)
A REVOLUO LISBOETA
A crise colon ial fora explorada pelos Repu blican os, cu ja prim eira
ten tativa de tom ada do poder, a im pacien te e desastrada revolta portu en se em 1891 era, com o o su blin h aria Baslio Teles n u m a obra clebre (Do
Ultimatum ao 31 de Janeiro, 1905), o desfech o lgico daqu ele dia [qu e] valeu scu los, o do Ultimatum in gls de 11.I.1990. O tron o dos Bragan as
era apon tado com o o fau tor de todas as desgraas n acion ais, poetas dem aggicos com o Ju n qu eiro ou Edo Metzn er celebravam em verso o dio
an tibrigan tin o, apelan do sem rebu os ao assassin ato com o qu e ritu al do
m on arca, ao qu al se deitavam todas as cu lpas, o loiro e sibarita D. Carlos,
qu e de fato acabaria varado, assim com o o Prn cipe real, por dois exaltados, Alfredo Costa e Man u el Bu ica, n o Terreiro do Pao (1.11.1908).
Com esse crim e caa a in feliz experin cia ditatorial de Joo Fran co
e acelerava-se n os setores repu blican os m ais in trpidos a idia de con fiar
a u m a associao secreta con spirativa, de in spirao e m odelo m an ico,
a Carbon ria portu gu esa criada em fin s de oitocen tos e liderada en to
por u m triu n virato a qu e perten ciam Mach ado San tos, Lu z de Alm eida e
An tn io Maria da Silva, u m oficial de m arin h a, u m bibliotecrio e u m en gen h eiro civil, respectivam en te , a tarefa de pr a revolu o n a ru a,
derru ban do pelas arm as a realeza, o qu e se decidiu por fim n o con gresso
de Set bal (abril de 1909) do PRP (Partido Repu blican o Portu gu s),
abrin do assim a via revolta arm ada, j qu e as eleies n u n ca seriam m todo vivel para ascen der ao poder.
Graas a u m form idvel trabalh o de sapa e de proselitism o por todo
o pas, trein o n o m an ejo de arm as e sobretu do de bom bas, in filtran do os
seu s bon s prim os n as Foras Arm adas, m orm en te n a Marin h a, com
seu s basties con spirativos solidam en te im plan tados em bairros operrios
ribeirin h os de Lisboa, a Carbon ria, ou m aon aria florestal, preparou a
revolu o repu blican a sem n u n ca ver os seu s m an ejos su bversores abortados pela vigiln cia policial, an tes logran do m obilizar algu n s m ilh ares de
h om en s e sobretu do h erosm os bastan tes para, n o m eio du m a con fu sa e
a todos os pon tos de vista catica revolta civil e m ilitar, aps dois dias de
lu ta, do 4 ao 5 de ou tu bro de 1910, deitar abaixo de u m a m on arqu ia m u ltissecu lar, foran do o jovem D. Man u el II (n ascido em 1889, n o an o m esm o em qu e, n o Brasil, triu n fara a Rep blica) a fu gir para a In glaterra,
on de alis viveria assistido pela galan te colaborao dos h om en s do n ovo
regim e, qu e tin h am previam en te solicitado ao Foreign Office a au torizao

303

Joo Medina

para m u dar de regim e e as con dies em qu e o fariam , com o esperado


respeito pela pessoa e pelos ben s do prprio rei ...
O n ovo regim e fora o resu ltado de dcadas de propagan da m essin ica, on de, a par de arden tes son h os de reden o n acion al, se m istu ravam prom essas dem aggicas de bacalh au a pataco ou , pelo m en os, de
u m a m elh oria da con dio e do passadio das classes popu lares e da m dia e pequ en a bu rgu esia qu e n a prom etida Rep blica tin h am con fiado os
seu s m ais fu n dos an seios de em en da dos m ales ptrios, agravados com a
crise gen eralizada dos an os 90 e os sobressaltos colon iais sem esqu ecer os
clam orosos escn dalos dos adian tam en tos qu e tin h am degradado por
com pleto a im agem da fam lia real.

RECOMEAR O LIBERALISMO
De fato, tom ada a revolu o n o seu m ais fu n do an seio e sign ificado, 1910 foi an tes de m ais a terceira ten tativa de estabelecer en tre n s o
Estado bu rgu s liberal, aps os ten tam es pom balin os e a revolu o de
1820-1834, e de m odelar u m a sociedade realm en te bu rgu esa, de in stalar
em Portu gal a (at ali falh ada) civilizao bu rgu esa. O qu e sign ificava qu e
se tin h am de fato gorado os propsitos sem elh an tes in ten tados sobretu do pela revolu o liberocapitalista do prim eiro m odelo liberal, aqu ele qu e
se en saiara en tre 1820 e 1851. Agora ia ten tar-se u m remake do liberalism o qu e se fru stara e fora ren egado pelos seu s prprios filh os desde os
an os 90, ten tan do de n ovo ergu er u m a sociedade, u m Estado, u m a cu ltu ra e u m a sociedade realm en te bu rgu eses sobre os escom bros do fiasco
da an terior ten tativa com prom etida por D. Carlos e Joo Fran co, para s
citar as cabeas visveis do im en so processo de desm an telam en to e in u m ao dos ideais vin tistas, m in deleiros e regen eradores. O Estado e a sociedade, a econ om ia e a cu ltu ra ressen tiam -se ain da, altu ra do 5 de ou tu bro, do arcasm o de An tigo Regim e qu e perdu rara apesar da desam ortizao das propriedades, do en cerram en to das orden s religiosas, da extin o do m orgadio, da laicizao do en sin o e da vida em geral, e de
qu an tas reform as ju rdicas, fiscais, adm in istrativas, fu n dirias da Silveira,
tin h am en saiado para im plan tar en tre n s o regim e represen tativo com an dado pela bu rgu esia, segu n do valores bu rgu eses.
Con tu do, com o se disse, Portu gal n o se m odern izara a fu n do, an tes acabar, n a fase da crise n oven tista, por ter sau dades do an tigam en te
au toritarista e clerical, em su m a m igu elista, de qu e o fran qu ism o, com
os seu s m todos bru tais, fora u m a varian te atu alizada. Um dos m elh ores
e m ais l cidos crticos repu blican os do cesarism o fran qu ista, Joo Ch agas,
debru an do-se sobre as qu erelas em torn o do clero e do ressu rgir de u m

304

A DEMOCRACIA FRGIL: A PRIMEIRA REPBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

sen tim en to clerical n o Pao e n a classe poltica dirigen te, observara n as


su as Cartas polticas u m dos m aiores m on u m en tos da prosa dou trin al e
pan fletria portu gu esa , qu e algu n s fen m en os do rein ado fin al da m on arqu ia, o de D. Man u el II, com provavam qu e se ren egaram as origen s
voltairian as e racion alistas do n osso liberalism o, acrescen tan do:
o Portu gal dos scu los XVII e XVIII, o Portu gal absolu tista, edu cado pelos frades e pelos jesu tas, com o m esm o fu n do tn ico e a m esm a m en talidade. u m Portu gal de torvos in qu isidores, de grotescos ch ech s, de capites-m ores, de beatas, de peraltas, de scias, de vates de eirado e de ratos de sacristia, trescalan do ao fartu m dos tem pos om in osos. Esse Portu gal
reviveu com a crise fin al da din astia. Era u m sedim en to social, u m depsito com o o qu e existe n o fu n do de garrafas. A sociedade agitou -se. Ele
veio acim a e tu rvou -a. O qu e restou de extin to, de m orto n a alm a portu gu esa adqu iriu vida, adqu iriu m ovim en to, en trou em atividade. (Cartas polticas, 2 srie, 21.IV.1909).

Em ou tras palavras, o tal sedim en to do An tigo Regim e sobreviveria s ten tativas su perficiais de liberalizao e m odern izao, resistira
in clu m e s reform as e aos ten tam es de in du strializao capitalista, voltava su perfcie da sociedade com a crise de 1890 a prpria gerao de
90 exaltara esses valores passadistas e retrgrados (v. g., A. Nobre e Alberto de Oliveira) , e fazia agora bloco com os esforos de en direitas,
com o Joo Fran co, a fim de arrasar de vez todo o edifcio liberal. A tal
oligarqu ia fin an ceira tem perada por fices con stitu cion ais (O. Martin s) dava lu gar aos ven cidos de 1834, de regresso ao poder, don de afin al,
n u n ca tin h am sido com pleta e estru tu ralm en te afastados. A Rep blica
era, destarte, a ten tativa de recom ear o liberalism o, alis em parm etros
econ m icos e sociais qu e n o divergiam de todo os m oldes vin tistas qu e
o seu im agin rio tan to aperfeioara, cu ltu an do h om en s com o Jos Estevo, Passos Man u el, Mou zin h o da Silveira e ou tros gran des prceres do
esprito liberal e reform ista de oitocen tos.

A VERGONHA DA ADESIVAGEM
A Rep blica ten tou , pois, a reform a radical, o regresso ao pu ro liberalism o. F-lo a vrios n veis, pren den do-se desde logo com a reform a
dos sm bolos e da m en talidade: a ban deira, o escu do, a topon m ia, a ortografia, as in stitu ies do en sin o (por exem plo, criaram -se as Facu ldades
de Letras e Direito, em 1911 e 1913, respectivam en te), os feriados, os
form u lrios oficiais ( o afran cesado Sa de e Fratern idade! su bstitu iu a
frm u la de en cerram en to dos ofcios da m on arqu ia, qu e era Deu s gu arde V. Exa!), as n ovas estam pilh as postais, a criao de u m cu lto cvico

305

Joo Medina

popu lar e n acion al em torn o do m ito de Cam es etc. Nu m a Eu ropa con servadora e predom in an tem en te m on rqu ica, a isolada Rep blica lu sa
s h avia m ais du as, a h elvtica e a fran cesa posta de qu aren ten a pela
fiel aliada e m alvista pela Espan h a de Afon so XIII, qu e n o h esitaria em
dar gu arida aos m on rqu icos portu gu eses ou talassas, com o eram en to design ados ali h om izados com in tu itos de organ izarem as in cu rses
arm adas con tra o n ovo regim e (o qu e fariam em 1911 e 1912) h esitava en tre o certo radicalism o extrem o n os propsitos e u m a pru den te n ecessidade de se con solidar an tes de pr em prtica as su as reform as.
Estas tin h am m u ito a ver com os escn dalos de corru po, com padrio e sobretu do com os adiam en tos qu e a fam lia real se h abitu ara a
pedir ao errio p blico, con fu n din do-o com o errio rgio, com m an ifesto preju zo do prim eiro, casos qu e tin h am de fato m an ch ado a repu tao
tan to da din astia com o do pessoal poltico dirigen te, sen do im pu tada a
Fran co a m an eira atrabiliria com o liqu idara esse caso, em plen a ditadu ra, e forn ecen do con tas m an ipu ladas de m olde a darem essas dvidas
com o saldadas. Em pen h ado em m oralizar e in iciar vida n ova, o n ovo regim e com eou portan to por qu erelar o an tigo dotador Fran co, qu e acabaria alis ilibado, prim eira das m u itas desilu ses e falh an os do projetado Dies Irae repu blican o qu e, com o o con fessaria de n ovo Joo Ch agas,
era m ais u m idlio do qu e o prom etido dia do castigo.
O fenmeno da adesivagem, um dos mais impressionantes e curiosos m ovim en tos sociais e polticos da n ossa classe poltica n os tem pos m odern os, com plicaria ain da m ais os ru bros propsitos de barrela, castigo,
em en da e cau trico qu e se tin h am desde sem pre associado idia de in stau rao en tre n s du m regim e de barrete frgido, ou seja, h on esto, reto,
fratern o, igu alitrio e livre, abn egadam en te devotado regen erao da
vida portu gu esa; os aderen tes ou adesivos eram aqu eles qu e, ten do
servido Mon arqu ia em lu gares de destaqu e ou m esm o em fu n es m an ifestam en te repressivas (gu arda m u n icipal, polcia, exrcito), se passavam para o n ovo regim e, m u dan do de cam isa, lbaro e con vices com
u m a fu lm in an te rapidez, su scitan do assim a in dign ao com preen svel
dos pou cos m on rqu icos qu e se m an tin h am fiis ban deira azu l e bran ca, assim com o dos velh os repu blican os h istricos, qu e viam en trar de
roldo n os arraiais da Rep blica aqu eles m esm os qu e, ain da on tem , os
persegu iam , descrim in avam , espadeiravam ou espin gardeavam .
O fen m en o da adesivagem , cu ja am plido im pression ou e desgostou as alm as retas e fez as delcias dos gazetilh eiros e caricatu ristas,
su scitan do m esm o u m a revista satrica ch am ada O Adesivo (1911), alim en taria at o fin al da Rep blica os protestos, a irritao, a clera ou a
sim ples m ofa de qu em via deste m odo im oral o tem plo do n ovo regim e
assaltado por clien telas fam licas e deson estas, raceosas de perderam po-

306

A DEMOCRACIA FRGIL: A PRIMEIRA REPBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

sies, em pregos, preben das ou sin ecu ras. Foram pou qu ssim os os qu e,
com o Paiva Cou ceiro ou Parati, se n egaram a aderir a n ova ban deira
verde-ru bra e se m an tiveram fielm en te in tran sigen tes n o seu am or pelo
an tigo regim e cado. Figu ras m in isteriais, da m agistradu ra, da diplom acia,
do exrcito, da polcia, do clero, da u n iversidade, do fu n cion alism o p blico ou in telectu ais fam osos celebrizaram -se pela su a adesivagem qu e
iam do rbido Pe. Matos (qu e com eara por fu gir para Espan h a, don de
m an daria a su a en vergon h ada declarao de adeso Rep blica), a polticos com o Jos Maria de Alpoim , Teixeira de Sou sa, Ferreira do Am aral,
Cerveira de Albu qu erqu e, Leote do Rego, Norton de Matos, ou escritores
com o Hen riqu e Lopes de Men don a, Abel Botelh o, J lio Dan tas etc. O
m oderan tism o prtico e a au sn cia de au tn tico Dies Irae repu blican o
derivam em larga m edida deste fen m en o de adesivagem qu e m u ito
degradou as gran des esperan as de verdadeira reform a e em en da dos m ales n acion ais depositadas n o adven to do n ovo regim e. Se, com o dizia u m
jorn al sin dicalista lisboeta, a realeza m orrera pu lh am en te (A Sementeira,
n . 26, ou tu bro de 1910), a verdade qu e a im acu lada im agem da esperan osa Rep blica, m u lh er virgin al, aparecia desde as prim eira h oras
con spu rcada pelo lodo dos adesivos, qu e se lh e colavam ao corpo com o
san gu essu gas, com o alis o explicava u m desen h o do Suplemento Ilustrado
(27.XI.1910, des. De A. Moraes): Percebo, m en in os ... Aderem , com o as
san gu essu gas!

A BALBRDIA SANGUINOLENTA
A fragilidade da ordem p blica, o desen ten dim en to perm an en te
dos prin cipais lderes polticos do n ovo regim e (A. Costa, B. Cam ach o e
A. J. Alm eida, dirigen tes, respectivam en te, dos Dem ocrticos, Un ion istas
e Evolu cion istas), a in stabilidade poltica tradu zida em govern os efm eros cu ja du rao n o excederia os trs m eses, a geral in capacidade de preparar e execu tar reform as de fu n do decepcion ariam assim os qu e tin h am
esperado da rep blica u m a gran de barrela, e qu e agora, m u itas vezes dolorosam en te m agoados (Baslio Teles, Mach ado San tos, Sam paio Bru n o,
Cu n h a e Costa etc.), ora se abstin h am de participar do n ovo estado de
coisas, ora se afastavam en ojados ou at m u davam de cam po; as cizn ias
perm an en tes, a in capacidade de u n ir em torn o de u m n cleo cen tral e
fu n dam en tal de reform as os esforos dos n ovos dirigen tes e das n ovas
foras partidrias, a con stan te in stabilidade govern am en tal, o agravar dos
velh os problem as de sem pre, n o cam po econ m ico e fin an ceiro, as qu erelas da sociedade civil e, agora, n ovos con flitos qu e se agu ariam de
m odo exasperan te n om eadam en te com a Igreja catlica fragilizaram

307

Joo Medina

a Rep blica, torn aram -n a an m ica, in capaz, paralizada por in decises, revoltas, bern ardas castren ses, sobressaltos, era a balb rdia san gu in olen ta prevista u m a vez por Ea de Qu eirs , e erros fu n estos.
Destes, u m dos m ais graves talvez ten h a sido a declarao de gu erra, lan ada n os prim eiros dias e depois extrem ada por Afon so Costa com
a su a lei de Separao das Igrejas (u m plu ral in ju stificado...) e do estado
(20.IV.1911), verdadeiro arete lan ado con tra os catlicos, o clero e tu do
o qu e em Portu gal, para o m elh or e para o pior, represen tava a vivn cia
da religio tradicion al. Esta gu erra cu staria im en so Rep blica, n a m edida em qu e, som ada a ou tros con flitos n o m en os can den tes, redu ziria
cada vez m ais o cam po dos qu e apoiavam o Novo Regim e: os 16 an os qu e
m edeiam en tre a revolu o de 1910 e o golpe castren se de Braga em 1926
so a crn ica m on ton a, fren tica, qu ase sem pre san gu in olen ta, de desilu ses con stan tes e desvarios in fin dveis, em ritm o cada vez m aior, crn ica du m a progressiva degradao do ideal, da f e da esperan a n u m regim e qu e fora, con tu do, proclam ado, sau dado e apoiado com u m a u n an im idade en tu sistica e qu ase m essin ica, qu e raram en te se ter con h ecido n ou tras pocas da n ossa Histria de oito scu los. Os assassin atos da
Noite San gren ta (19.X.1921) a n oite in fam e, com o lh e ch am ou
Rau l Bran do , du ran te a qu al tom bam fu n dadores da Rep blica com o
Mach ado San tos, An tn io Gran go e Carlos da Maia, leva ao clm ax esta
dan sa m acabra qu e s term in aria de vez cin co an os depois.
Ao n m ero dos in im igos da Rep blica con vm acrescen tar o operariado, depressa desilu dido com os preten sos in tu itos sociais do n ovo regime Oh! A Repblica!... , gemeria a revista Terra Livre (n. 11, 24.IV.1913),
desen gan ada da u tilidade de ter trocado u m m on arca por u m Presiden te
da Rep blica , qu e n o tardaria alis em fazer m an ifestaes con tra as
greves e em disparar sobre u m cortejo de m u lh eres qu e pediam au m en to de salrio, em Set bal (m aro de 1911), ao m esm o tem po qu e a lei
bu rla de Brito Cam ach o sobre a greve, com o lock-out igu alm en te garan tido, levaria os sin dicalistas e as m assas trabalh adoras em geral a in iciarem u m con ten cioso com a rep blica, qu e teria m om en tos dram ticos em
1912 (declarao do estado de stio em Lisboa, prises em m assa de sin dicalistas, m etidos em pores de n avios su rtos n o Tejo, en cerram en to da
Un io Operria Nacion al, deportaes de sin dicalistas para presdios alen tejan os...), 1913 (en cerram en to da Casa Sin dical, represso violen ta con tra os an arqu istas, expu lso de Pin to Qu artim para o Brasil), 1917,
1918 etc.
Este divrcio en tre operariado e rep blica n u n ca m ais seria san ado, em bora aqu i e alm , m u ito pon tu alm en te com o du ran te a revolta
m on rqu ica de Mon san to (jan eiro de 1919), trabalh adores pegassem em
arm as con tra sedies talassas, para defen der u m regim e qu e, afin al, lh es

308

A DEMOCRACIA FRGIL: A PRIMEIRA REPBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

pagava sem pre com tiros, assaltos Casa Sin dical, deportaes, prises arbitrrias e leis an ti-sociais.
Ou tro setor qu e depressa se afastaria da rep blica foi o exrcito,
cu jo con ten cioso de algu m m odo com eara n o prprio dia da revolu o
de ou tu bro de 1910: im plan tado pelas ram as. O regim e n u n ca lograria,
porm , reform ar e dem ocratizar o exrcito de m olde a tran sform -lo n o
seu brao arm ado, preferin do criar a Gu arda Repu blican a com o fora pretorian a, alis in clin ada a segu ir o seu prprio cam in h o. A en trada n a
gu erra, em 1916 m as desde 1914 qu e com batam os em An gola con tra
as tropas alem s , u m dos erros m ais obstin adam en te levados adian te
pela Rep blica, com o libi da defesa das coln ias cu ja partilh a a Alem an h a e a In glaterra tin h am projetado em 1898 e depois em 1913 ,
acarretou dram as su plem en tares para as Foras Arm adas, m an dadas m orrer sem glria n a Flan dres ou n as epopias m alditas dos sertes african os, prim eiro em An gola, depois em Moam biqu e. Destes trau m as derivaria u m con stan te m al estar n as fileiras, en tre as qu ais cresceria alis a
idia de qu e delas devia partir precisam en te a derru bada do regim e qu e,
n ascido das arm as, com elas h avia de perecer.
Nu n ca as ten do con segu ido con trolar, a Rep blica m orreria logicam en te degolada pelas du rin dan as. In capaz de criar u m exrcito realm en te repu blican o, de m odelo h elvtico com o son h ara a propagan da dos
apstolos repu blican os, in capaz de o dotar de ch efes de con fian a, ideologicam en te en qu adrados n a m en talidade triu n fan te em 1910, a Prim eira
Rep blica lim itara-se afin al a abalar a velh a in stitu io m ilitar com h u m ilh aes e tarefas in glrias, de qu e a n ossa in terven o n a gu erra de 19141918 foi o episdio m ais calam itoso.

A REPUBLICA PROPE-SE ACABAR COM O CATOLICISMO


A h ostilidade religio, m an ifestada logo n os prim eiros dias da revolu o por u m a en xu rrada de diplom as qu e retom avam m edidas pom balin as e liberais para expu lsar as orden s religiosas e laicizar a vida do
pas, con h eceria desde 20 de abril de 1911, com a j referida lei da Separao, u m passo m ais a fim de criar n a sociedade portu gu esa u m fosso
im en so en tre catlicos e repu blican os, em vez de se lim itar a proceder
m u tu am en te van tajosa m era separao dos foros estatal e religioso. Afon so Costa, Min istro da Ju stia e u m dos idelogos e estrategos fu n dam en tais da Primeira Repblica, anunciou numa reunio manica, a 21.III.1911
lei qu e doravan te seria sign ificativam en te design ada pelos seu s defen sores com o a In tan gvel ... , qu e esta iria elim in ar com pletam en te o catolicism o em du as geraes. Estava criado u m casu s belli m ortal para o

309

Joo Medina

prprio regim e qu e assim , acin tosa e fron talm en te, desafiava a m ilen ar
in stitu io con fession al, to fu n dam en te en raizada n a m en talidade e n os
costu m es portu gu eses. Se as ch am adas aparies de Ftim a ocorreram
em 1917, em plen o govern o (o terceiro e ltim o) de Afon so Costa, tal fato n ada tem de casu al: o m ilagrism o ou m essian ism o du m pas com o o
n osso reagia deste m odo, pelo cu lto m arin ico e pelo recu rso ao m ilagre,
em plen a gu erra, a rbida h ostilizao afron tosam en te decretada pelo
dito poltico beiro, esse Costa Cabral da Rep blica, com o lh e ch am ou
Carlos Malh eiro Dias (Zona de Tufes, 1912; repetiu -o Roch a Martin s n Os
Fantoches, 1 srie, 20.I.1914).
Qu an do Sidn io Pais, fortem en te apoiado por todos os setores h ostis ao gu errism o e ao seu partido (o Partido Dem ocrtico de Afon so Costa), desde os operrios aristocracia, passan do pelo clero, tom a o poder
(dezem bro de 1917), u m a das su as prim eiras m edidas seria a de pr fim s
disposies qu e, desde 1910, os m in istros da Ju stia do Novo Regim e tin h am vin do a decretar con tra todos os bispos, a pon to de, j em 1912, doze
prelados estarem su spen sos, destru dos ou desterrados (m edidas tom adas
por apen as dois m in istros da referida pasta, A. Costa e An tn io Macieira).
Sidn io pu n h a assim fim irritan te qu esto (com o lh e ch am aria,
m ais tarde, Salazar), dan do os passos diplom ticos n ecessrios para reatar
relaes com a San ta S, e com ean do por dar ele m esm o o exem plo do
n ovo esprito de relacion am en to Igreja/ Estado, ao ser o prim eiro Presiden te da Rep blica portu gu esa a en trar n u m tem plo catlico para ali assistir a u m a cerim n ia em m em ria dos n ossos soldados tom bados n a
gu erra. Praticam en te liqu idado en to o con ten cioso Rep blica/ Igreja, restabelecidas as relaes en tre a Rep blica portu gu esa e o Vatican o (teve
papel de relevo n estas n egociaes o n osso fu tu ro prm io Nobel da Medicin a, Egas Mon iz, en to Min istro de Sidn io Pais), a fase ps-sidon ista
(1918-1926) a qu e se ch am ou a n ova Rep blica Velh a (j qu e o sidon ism o ou dezem brism o fora design ado por Rep blica Nova) j n o con h eceria as en orm es dificu ldades qu e tin h am pau tado as relaes Igreja/ Estado. Mas n o deixaria esse con ten cioso de acicatar o m ovim en to
poltico catlico, qu e desde o fim da Prim eira Gu erra Mu n dial decide afirm ar-se au ton om am en te n o cam po partidrio, estim u lado n esse sen tido
pelos Papas Ben to XV e Pio XI, caben do a Salazar papel de relevo n esta
estratgia dem ocrata crist.

A QUEDA DA PRIMEIRA REPBLICA


As dificu ldades do Novo Regim e tam bm tin h am sido n otveis n os
ou tros dom n ios, com o n o cam po econ m ico e fin an ceiro. A in flao, sobretu do desde a en trada de Portu gal n a gu erra, reforara o afastam en to

310

A DEMOCRACIA FRGIL: A PRIMEIRA REPBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

crescen te das classes m dias u rban as em relao a u m regim e n o qu al tin h am depositado to fu n das esperan as. O aparecim en to, em 1914, de
u m a n ova ideologia m on rqu ica e ao ressu rgir do sen tim en to afeito realeza, reclam an do-se ain da por cim a do velh o m igu elism o tem perado com
con tribu tos fran ceses da Action Franaise o In tegralism o Lu sitan o dava
ao cam po con servador an ti-repu blican o u m dos pilares m ais agressivos e
atu an tes da con tra-revolu o, aqu ele qu e m ais pesaria n o derru be da
Prim eira Rep blica, de par com o con servador sidon ista e u m a ou ou tra
su gesto ditatorialista prpria do esprito do tem po, esses an os 20 to prolifcos em m odelos cau dilh istas.
O exrcito aparecia n atu ralm en te, aos olh os destes gru pos e setores ideolgicos, com o a fora ideal, o in stru m en to providen cial destin ado
a cortar o n grdio da rep blica dem oliberal, catica e desgovern ada, o
m on oplio in con testvel do sistem a eleitoral e partidrio n as m os do
afon sism o, ou seja, do Partido Dem ocrtico, a faco h egem n ica do velh o Partido Repu blican o Portu gu s. O sidon ism o fora j u m exem plo de
com o podiam federar-se e triu n far todos os cls e m eios qu e se opu n h am
a este predom n io afon sista, dem oliberal, an ticlerical e dem aggico este
ltim o gru po era geralm en te sin tetizado n a expresso alis apropriada de
dem agogia. O cu lto da ditadu ra e o lou vor da espada com o solu o torn aram -se com u n s, ao m esm o tem po qu e proliferavam as ten tativas de
derru be do regim e parlam en tar, o qu e seria fin alm en te con segu ido du ran te o segu n do m an dato do catastrfico Bern adin o Mach ado n a Presidn cia da Rep blica, em m aio de 1926. O Exrcito estava fin alm en te n o
poder, os m ilitares iriam procu rar estabelecer u m a ditadu ra, e s faltava
o ditador o qu e levaria pelo m en os dois an os a ach ar, depois de se apresen tarem algu n s can didatos can h estros ao cargo (Gom es da Costa, Sin el
de Cordes, Joo de Alm eida, Filom en o da Cm ara, Vicen te de Freitas).
Paradoxalm en te ou , m u ito ao in vs, com bastan te lgica e, de algu m m odo, sim bolicam en te tam bm , a lideran a resu ltan te do golpe de
espadas de 1926 acabaria por ser con fin ada a u m civil alis de cepa clerical, j qu e o Min istro das Fin an as fin alm en te ch am ado pelos m ilitares
em 1928, aps algu n s m eses de catastrfica con du ta da n au do Estado,
An tn io de Oliveira Salazar (n ascido em 1889, n o m esm o an o em qu e
Ch arlot, Heidegger e Hitler vieram ao m u n do) freq en tara o sem in rio
e recebera m esm o orden s m en ores, m as optara afin al pela carreira acadm ica, en tran do em Coim bra pou co depois da revolu o repu blican a ter
eclodido. Em su m a, as du rin dan as en gen draram u m ditador glacial vin do
do cam po catlico, ch am ado com o m ero tcn ico fin an ceiro, com o se
tratasse apen as de con sertar u m a cadeira estragada e n o de fu n dar u m
n ovo tipo de tron o para o poder, de govern ao e de ditadu ra. Qu e u m
an tigo dirigen te das h ostes catlicas, reagru padas depois da gu erra sem

311

Joo Medina

qu artel qu e a Prim eira Rep blica m overa Igreja portu gu esa e com an dadas por este estratego e teorizador form ado n o C. A. D. C. de Coim bra acabasse por ser o ditador esperado pela ditadu ra in iciada em 1926 era, ao fim
e ao cabo, u m ju ste retou r des ch oses: o regim e im plan tado em 1910
persegu ira a Igreja e ten tara esm ag-la, caben do agora, m u ito n atu ralm en te portan to, a u m dos prin cipais dirigen tes catlicos form ados n esses
an os de ch u m bo e h u m ilh ao assen h orear-se do Estado, desterrar a dem ocracia e govern ar com m o de ferro u m pas on de os m ilitares degolada
a rep blica, tin h am procu rado qu em fosse capaz de segu rar o tim o do govern o, e m an t-lo fixo n u m a direo certa e ordeira. E este sabia o qu e
qu eria e para on de ia, com o o disse com sibilin o lacon ism o n u m discu rso
de 1930

312

A DEMOCRACIA FRGIL: A PRIMEIRA REPBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

N OTA S
1. Lem brem os algu n s n om es de escritores e an alistas polticos e ttu los de jorn ais ou pan fletos n os qu ais a crtica bu rla do su frgio do con stitu cion alism o m on rqu ico foi con stan te e particu larm en te agu da: Rafael Bordalo Pin h eiro n os sem in rios satricos An tn io
Maria (du as sries: 1879-1884 e 1891-1898) e Pontos nos ii (1885-1889), o pan fleto A Lanterna, J lio Din is n a Morgadinha dos Canaviais (1868), Ea e Ram alh o Ortigo n as Farpas
(desde 1871 em dian te), Gu ilh erm e de Azevedo e Gu erra Ju n qu eiro n a pea satrica Viagem,
Pin to em O Sr. Deputado (1882), o rom an cista repu blican o Teixeira de Qu eirs em Sastico
Nogueira (1883), o m on rqu ico Con de de Ficalh o em Uma eleio perdida (1888), o poltico
m on rqu ico dissiden te Au gu sto Fu sch in i n o seu exam e crtico da Regen erao in titu lado O
presente e o futuro de Portugal, etc.

313

Joo Medina

B IBLIOGRA FIA
OBRAS GERAIS
MEDINA, J. (Dir.) Histria de Portugal dos tempos pr-histricos aos nosso dias.
15v. Alfragide: Ediclu be, 1993.
___. Histria de Portugal Contemporneo poltico e in stitu cion al. Lisboa:
Un iversidade Aberta, 1994.

OBRAS ESPECFICAS
HOMEM, A. C. A idia republicana em Portugal. O con tribu to de Tefilo
Braga. Coim bra: Livraria Min erva, 1989.
___. A Propaganda republicana (1870-1910). Coim bra: s.n ., 1990.
MEDINA, J. Oh! a Repblica!... Estu dos sobre o repu blican ism o e a Prim eira Rep blica portu gu esa. Lisboa: INIC, 1990.
TELO, A. J. Decadncia e queda da Primeira Repblica portuguesa. Lisboa: A
Regra do Jogo, 1980, 1984. 2 v.

314

captu lo 17

O ESTA D O N OVO.
FA SCISMO, SA LA ZA RISMO E EUROPA
Lu s Reis Torgal*

O PROBLEMA D A S FON TES


Poderam os com ear por falar das dificu ldades em an alisar este e
ou tros tem as sem qu e se con h ea profu n dam en te os arqu ivos do Estado
Novo, n om eadam en te, para o caso presen te, o Arqu ivo do Min istrio dos
Negcios Estran geiros, e os esplios pessoais de Salazar, de qu e saiu o respectivo catlogo.1 No in sistirem os, todavia, exageradam en te n esta dificu ldade, porqu e, pese em bora a im portn cia dessas fon tes, ou tras, im pressas, n o so de m en or relevn cia para con h ecer esta problem tica,
qu e vam os abordar m an eira de en saio.
Com efeito, a qu esto qu e n os preocu pa , fu n dam en talm en te, de
ordem ideolgica e cu ltu ral. Isto , o qu e desejam os estu dar a posio
p blica de Salazar e dos salazaristas (salazaristas estru tu rais ou de con ju n tu ra) relativam en te qu esto da Eu ropa,2 qu e, ao con trrio do qu e se
possa pen sar, m u ito debatida n o tem po, de tal form a qu e se en con tram
verdadeiros n cleos bibliogrficos especializados n as n ossas bibliotecas.3
Ora, tratan do-se de u m a tem tica desse tipo, pode dizer-se qu e os textos
pu blicados n os do u m a im agem su ficien tem en te esclarecedora das posies do regim e, qu e n o seriam por certo essen cialm en te con trariadas em
atitu des privadas ou n a prtica diplom tica. Alis, estas qu estes da poltica extern a do Estado Novo so as qu e se en con tram , ain da assim , m elh or docu m en tadas e estu dadas, qu er pelos h istoriadores e in telectu ais
do regim e,4 qu er m esm o pelos n ovos h istoriadores e politlogos do Salazarism o, qu e sobre o tem a escreveram livros ou algu n s artigos de in teresse. Neste particu lar, devem destacar-se os estu dos sobre a Gu erra Civil da
Espan h a 5 ou sobre a Segu n da Gu erra Mu n dial,6 en carados n u m a perspectiva poltica, diplom tica e econ m ica. Mas, con tin u ava por qu estion ar,
de u m a m an eira global, a posio assu m ida peran te a qu esto da Eu ropa,
problem a de gran de oportu n idade, qu e vam os abordar, portan to, m an eira de en saio, n u m a lin h a poltica ideolgico-cu ltu ral.7

315

Lus Reis Torgal

FA SCISMO E SA LA ZA RISMO
Ao su bin titu larm os este texto Salazarism o, Fascism o e Eu ropa,
n o preten dem os repor u m a velh a polm ica qu e se desen volveu em dois
plan os com plem en tares: por assim dizer, de fora para den tro e de den tro
para fora. Expliqu em os m elh or: n o desejam os voltar a discu tir a qu esto
ou as qu estes de saber se ou n o legtim o falar de Fascism o com o u m
con ceito fu n dam en tal para caracterizar regim es qu e, apesar de diferen tes,
so com u n s em pon tos essen ciais e qu e con stitu em sistem as prprios de
u m a poca, e, por ou tro lado, de qu estion ar sobre o problem a da legitim idade de con siderar o Estado Novo portu gu s u m a form a de Fascism o.8
O qu e desejam os foi sim , pela ju n o dos trs con ceitos, abarcar m elh or
toda a profu n didade e latitu de do problem a em debate. Qu er dizer, segu n do pen sam os n o seria possvel en ten der a qu esto do posicion am en to do
Salazarism o peran te a Eu ropa, se n o n os in terrogssem os sobre as su as
relaes com os fascism os (con ceito qu e con sideram os poder con tin u ar
a u tilizar) e tam bm acrescen tam os com ou tros con ceitos e realidades
polticas bsicas, tais com o dem ocracia e com u n ism o.
A dem arcao das origin alidades do Estado Novo parte de afirm aes in sisten tes do prprio Salazar, m an ifestadas n o prin cpio do seu con su lado e qu e se prolon gam du ran te o a su a govern ao.
Logo n a en trevista dada a An tn io Ferro, em 1932, afirm ou , falan do
da ditadu ra m ilitar portu gu esa: A n ossa ditadu ra aproxim a-se, eviden tem en te, da ditadu ra fascista n o reforo da au toridade, n a gu erra declarada a
certos prin cpios da dem ocracia, n o seu carter acen tu adam en te n acion alista, n as su as preocu paes de ordem social. Afasta-se, n os seu s processos de
ren ovao. A ditadu ra fascista ten de para u m cesarism o pago, para u m Estado Novo qu e n o con h ece lim itaes de ordem ju rdica ou m oral, qu e
m arch a para o seu fim , sem en con trar em baraos ou obstcu los.9
Portan to, Salazar qu e adm irava Mu ssolin i, a pon to de ter a su a fotografia n a m esa de trabalh o 10 e de ter preparado u m a su a foto com dedicatria en dereada ao Duce11 qu is salien tar o carter prprio do sistem a,
con sideran do a ain da existen te ditadu ra, sada do 28 de m aio, em bora a
dar o passo decisivo para o n ovo regim e, com o u m a form a de au toritarism o m oral, ao passo qu e en ten dia o fascism o com o u m a ditadu ra am oral, m aqu iavlica. In clu sivam en te, para distin gu ir bem os dois regim es, argu m en tou com a clebre afirm ao de Mu ssolin i, cau sa de algu m as con fu ses sobre a caracterizao dos regim es au toritrios da Eu ropa
do tem po: O fascism o u m produ to tpico italian o com o o bolch evism o
u m produ to ru sso. Nem u m n em ou tro podem tran splan tar-se e viver
fora da su a n atu ral origem .12
E apen as para dar m ais u m exem plo, em bora este m en os claro n o
con fron to com o fascism o, m as m ais rico em ou tros aspectos, vejam os o

316

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

qu e disse Salazar n o 1. Con gresso da Un io Nacion al, em 26 de m aio de


1934: Sem d vida se en con tram , por esse m u n do, sistem as polticos com
os qu ais tem sem elh an as, pon tos de con tacto, o n acion alism o portu gu s
alis qu ase s restritos idia corporativa. Mas n o processo de realizao e sobretu do n a con cepo do Estado e n a organ izao do apoio poltico e civil do Govern o so bem m arcadas as diferen as. Um dia se recon h ecer ser Portu gal dirigido por sistem a origin al, prprio da su a h istria
e da su a geografia, qu e to diversas so de todas as ou tras, e desejvam os
se com preen desse bem n o term os posto de lado os erros e vcios do falso liberalism o e da falsa dem ocracia para abraarm os ou tros qu e podem
ser ain da m aiores, m as an tes para reorgan izar e fortalecer o pas com os
prin cpios da au toridade, de ordem , de tradio n acion al, con ciliados com
aqu elas verdades etern as qu e so, felizm en te, patrim n io da h u m an idade e apan gio da civilizao crist.13
O m esm o tipo de argu m en tos en con tram os em au tores salazaristas
e tam bm , cu riosam en te, n os n acion alistas estran geiros, especialm en te
fran ceses, qu e elegeram Portu gal para cam po dos seu s ideais e das su as
experin cias polticas.14 Em relao ao prim eiro caso, tom em os com o
exem plo o h istoriador e idelogo do regim e, se bem qu e origin rio das
corren tes m on rqu icas in tegralistas, Joo Am eal. Nu m pequ en o livro de
1938, Construo do Novo Estado, aps elogiar o regim e fascista, com o u m
dos sistem as do qu e ch am a a Revolu o n ecessria,15 fala do m odelo
portu gu s, con stru do n a base da Revolu o Nacion al do 28 de m aio e n o
plan o de Salazar: ... o Estado Novo Corporativo ergu eu -se pou co a pou co, n a su a arqu itetu ra firm e, h arm on iosa, logicam en te adequ ada ao n osso tem peram en to e s n ossas n ecessidades.16 E Gon zagu e de Reyn old
qu e n u m livro sobre a crise da Eu ropa, de 1935, lou vara tam bm o Fascism o,17 con siderou , n u m a obra sobre Portu gal do an o segu in te, n a qu al,
apesar de tecer algu m as crticas realidade ain da existen te n o n osso pas,
elogiou a experin cia portu gu esa, qu e Portu gal n o poderia im itar as experin cias estran geiras, m esm o o Fascism o: Et m m e lim itation , la copie
du fascism e n e serait san s dan ger din fodation la politiqu e italien n e.
Car tou t rgim e im port de ltran ger est u n e su bm ission ltran ger.18
Mas esta origin alidade afirm ada e reafirm ada n o exclu a a idia ou
a esperan a n u m a revolu o n ecessria para em pregar a expresso de
Am eal qu e se deveria passar, com as su as nuances prprias, u m pou co
por todo o m u n do. No poderem os esqu ecer qu e Salazar e os salazaristas,
para alm de an ticom u n istas sistem ticos, foram tam bm sistem aticam en te an tiliberais e an tidem ocratas. Qu an tos exem plos poderam os u tilizar para com provar esta prem issa! Basta por isso s recordar a con stan te lu ta de Salazar con tra aqu eles qu e pejorativam en te apelidavam o seu
sistem a de ditadu ra, aos qu ais con trapu n h a a idia de qu e a ditadu ra,

317

Lus Reis Torgal

ou o au toritarism o, era em si m esm o u m regim e, em bora em processo de


aperfeioam en to e de tran sform ao. Foi isso exatam en te o qu e afirm ou ,
logo em 1934, n o 1. Con gresso da Un io Nacion al, repetin do as palavras
qu e dissera a u m crtico fran cs: As ditadu ras n o m e parecem ser h oje
parn teses du m regim e, m as elas prprias u m regim e, sen o perfeitam en te con stitu do, u m regim e em form ao. Tero perdido o seu tem po os qu e
voltarem atrs, assim com o talvez tam bm o percam os qu e n elas su pu serem en con trar a su m a sabedoria poltica.19 Em m aio de 1940, n u m discu rso n a Assem blia Nacion al, dir explicitam en te, com o o disse, de form a m ais ou m en os expressa, n ou tras ocasies: ... n s qu e n os afirm am os
por u m lado an ticom u n istas e por ou tro an tidem ocratas e an tiliberais, au toritrios e in terven cion istas....20 E afirm aes deste tipo con tin u aro a
ser expressas m ais tarde, por exem plo em 1958,21 ou depois, em m om en to de revivescn cia do sistem a e das su as form as repressivas.
A verdade qu e, ain da qu e pu desse m u ito tran sitoriam en te ter feito
crer qu e o regim e se poderia abrir a eleies livres, Salazar afirm ou -se sem pre con tra a dem ocracia, m esm o n o an o de 1945, com o term o da gu erra.
Criticou os erros dos sistem as au toritaristas da Alem an h a e da Itlia, con den ou o seu totalitarism o, 22 m as n u n ca aceitou os sistem as dem ocrticos,
m u ito especialm en te em Portu gal (tin h a sem pre presen te o qu e con siderava
a balb rdia san gu in olen ta da experin cia da Prim eira Rep blica), 23 e m esm o n ou tros pases, em bora adm ita qu e em algu n s os seu s preju zos sejam
m en ores. 24 Qu an do m u ito procu rou provar, em estratgia de fim de gu erra,
qu e o sistem a corporativo con stitu a, do pon to de vista social e n o poltico,
a verdadeira dem ocracia: Eu n o qu ero forar con clu ses afirm ava, n u m
discu rso proferido n a Assem blia Nacion al em m aio de 1945 m as, se a dem ocracia pode ter, alm do seu sign ificado poltico, sign ificado social, en to
os verdadeiros dem ocratas som os n s. 25 claro qu e depois da gu erra, Salazar ter com eado a descrer n a revolu o n ecessria, isto , a ter algu m as
d vidas sobre o processo de desaparecim en to das dem ocracias e da su a su bstitu io por sistem as au toritrios; n o en tan to, peran te o n ovo descon certo
da Eu ropa do ps-gu erra, con tin u ou a afirm ar qu e as dem ocracias passavam
por u m a crise dolorosa 26 e a n ecessidade de Estados fortes27 para fazer fren te
ao perigo com u n ista.
No seria possvel en ten der a posio de Salazar peran te a Eu ropa e
a poltica m u n dial sem partirm os deste pon to fu n dam en tal. este seu
an tidem ocratism o sistem tico, este in tern acion alism o au toritrio, qu e,
em con ju gao com ou tros fatores con ju n tu rais e n acion ais, vo explicar
o seu eu ropesm o e, ao m esm o tem po, o seu an tieu ropesm o.

318

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

N A CION A LISMO E EUROPESMO


Qu an do em abril de 1948 se celebraram os 20 an os da en trada de
Salazar para o govern o, in titu lou -se a pu blicao, editada pela Un io Nacion al, dos discu rsos en to proferidos, Um grande portugus e um grande europeu: Salazar. Esta du pla im agem , n acion al e eu ropia, vai servir de pretexto para refletirm os sobre a qu esto do Salazarism o e a Eu ropa. Para
m elh or en ten derm os essa situ ao, deverem os n otar qu e, para Salazar e
para toda u m a vasta e m u ltifacetada lin h a de pen sam en to eu ropesta de
sen tido tradicion al, Eu ropa n o sign ificava propriam en te u m con tin en te, n em u m a estru tu ra econ m ica e m u ito m en os u m a estru tu ra poltica su pran acion al, m as u m patrim n io cu ltu ral, m arcado pelo Cristian ism o, por valores ticos e ju rdicos assen tes n a tradio. Da partir-se para
u m con ceito m ais geral, qu e tem , con tu do, com o base, a Eu ropa o con ceito de Ociden te. Portan to, a Eu ropa para esta corren te, de qu e participaram as vrias lin h as n acion alistas, n o con tradizia u m a forte afirm ao de n acion alidade, m as qu eria sign ificar qu e a idia eu ropia u ltrapassava a Eu ropa e tin h a qu e ver com o patrim n io am erican o e african o, de con stru o essen cialm en te eu ropia.
Assim , este m ovim en to, n o tem po en tre as du as gu erras e, sobretu do, com a vitria com u n ista n a R ssia e o avizin h ar da Segu n da Gu erra Mu n dial, tem a idia de qu e a Eu ropa, ou , m ais vastam en te o Ociden te, est em crise de m orte, s poden do ergu er-se com a con stru o de
u m a Nova Eu ropa. Era essa a idia, com as su as varian tes, do Nacion alSin dicalism o, do Fascism o e tam bm dos n acion alism os e au toritarism os
de todos os m atizes.
Desta form a, a Alem an h a em gu erra, n a su a fase vitoriosa, con stitu a u m a Internationale Rechskammer, u m a Cm ara Ju rdica In tern acion al
a cu ja reu n io, cu riosam en te, assistiu Cabral Mon cada, com a aqu iescn cia de Salazar, qu e se m an tin h a n a expectativa, con form e n os con ta
aqu ele professor de Coim bra n as su as im pression an tes Memrias,28 Cm ara essa qu e preten dia reestru tu rar a Eu ropa e o Mu n do de acordo com
prin cpios de u m a n ova ordem . Na Itlia an tes da gu erra falava-se de
u m Pan fascism o, de u m a In tern acion al Fascista, da con cepo de
u m a Nova Eu ropa29 apropriao abu siva das idias revolu cion rias do
carbon rio Mazzin i, de m eados do scu lo XIX30 , prom oven do o Istituto
Nazionale di Cultura Fascista, em plen a gu erra, u m con gresso sobre o tem a
Idea dellEuropa,31 qu e procu rava sen sibilizar a opin io para u m a con cepo de Eu ropa feita n a base de valores fascistas (lato sensu).32 En tretan to, os in telectu ais de direita, falavam da decadn cia do Ociden te
(para em pregar as palavras de Spen gler) ou da Eu ropa, procu ran do criar
u m cordo san itrio con tra o com u n ism o, e tam bm con tra o liberalis-

319

Lus Reis Torgal

m o e a dem ocracia, e ch am an do a aten o para a u rgn cia de u m a revolu o n ecessria, feita n a base de valores tradicion ais ren ovados. Apen as para exem plificar com u m a obra de gran de im pacto em Portu gal, recordem os o livro do su o Gon zagu e de Reyn old, LEurope tragique (1935).
Joo Am eal, com a obra de 1938 Construo do Novo Estado, ou com as su as
reflexes de 1945, A Europa e os seus fantasmas,33 so bem o exem plo tpico deste gn ero de pen sam en to, prim eiro n u m a fase ain da in depen den te, de tipo m on rqu ico e fascista (en tre aspas) e depois n u m a perspectiva de regim e, de con torn os ideolgicos m ais vagos. No con texto da
gu erra, tam bm o tradicion alista m on rqu ico Edu ardo Freitas da Costa,
n o seu Testamento da Europa, esperava o ren ascer da Eu ropa das ru n as,
sen do Portu gal o arau to dessa n ova m en sagem de civilizao.34 Era, em
certo sen tido, a idia de Qu in to Im prio qu e ressu rgia. E ain da a prpria polm ica de Silva Dias35 con tra Abel Salazar 36 dos an os 40, aqu ele defen den do u m a idia catlica de Eu ropa, em oposio a u m a vaga e con fu sa con cepo de n ova Eu ropa assen te em valores dem ocrticos, reveladora de idn tico esprito.
Mas claro qu e as idias de Salazar, em bora in tegran do-se n este
vasto m ovim en to, tm a su a origin alidade, resu ltan te de fatores reais da
poltica e da razo do Estado. Vam os an alis-las de segu ida, de u m
m odo sistem tico e orden ado, para u m a m elh or com preen so das vrias
qu estes qu e su pe. An tes de m ais ch am em os, todavia, a aten o para o
fato de, apesar do seu carter idn tico por toda a su a lon ga vida poltica
parafrasean do a afirm ao de u m jorn alista belga, Salazar con siderou se u m h om em qu e jam ais se en gan ou 37 h aver n o seu pen sam en to alteraes de tom e de expresso em razo das con ju n tu ras diferen tes de
Portu gal, da Eu ropa e do Mu n do. De qu alqu er form a, em bora salien tan do sem pre a posio pessoal e p blica de Salazar, com o presiden te do
Con celh o e poltico in con testado do sistem a qu e fu n dou , an alisarem os,
m ais latam en te, a idia de Eu ropa do Salazarism o, isto , do m ovim en to qu e brotan do de Salazar teve os seu s in trpretes, qu e ain da h oje fazem
ecoar, em bora de m odo tn u e e in con seq en te a su a voz.

S A LA ZA R, SA LA ZA RISMO E EUROPA
As idias do Salazarism o sobre a Eu ropa su pem ou tm su bjacen te as segu in tes qu estes e posies:

ANTICOMUNISMO, ANTILIBERALISMO E ANTIDEMOCRATISMO


Con form e j foi dito e provado, o Salazarism o, com o os ou tros fascism os, m an ifesta em prim eira lin h a um sistemtico anticomunismo e um

320

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

no menos sistemtico antiliberalismo e antidemocratismo. Este prin cpio explica, em parte, com o tam bm afirm am os e vam os ain da m elh or esclarecer,
a posio do Salazarism o qu an to Eu ropa.
Por u m lado, Salazar e os salazaristas n o adm itiam qu e, de qu alqu er form a, os pases com u n istas, n om eadam en te a R ssia, pu dessem participar da aven tu ra eu ropia. Tal com o Gon zagu e de Reyn old, a R ssia
com u n ista aparecia-lh es com o u m a an ti-Eu ropa.38 Este an ticom u n ism o
obsessivo at certo pon to explicvel, ten do presen te a ditadu ra estalin ista con dicion ou toda a poltica extern a portu gu esa. De on de a posio
pron ta de Portu gal a favor dos n acion alistas espan h is, com o objetivo
de evitar o qu e se con siderava im in en te, isto , o perigo da con cretizao
do plan o com u n ista de con stitu ir n a Pen n su la as rep blicas soviticas
ibricas.39 Da qu e Salazar e os seu s idelogos tivessem en ten dido a posio germ n ica com o fron teiro do Ociden te, com preen den do, de form a
m ais ou m en os explcita, a posio de Hitler, e, depois da derrota da Alem an h a, tivessem defen dido a n ecessidade da su a recon stitu io.
Pela su a im portn cia e sign ificado este pon to m erece-n os u m pou co m ais de aten o.
Na verdade algu n s pen sadores m ais ou m en os prxim os de Salazar
en ten deram explicitam en te o papel da Alem an h a n azi, revelan do a su a
sim patia por Hitler. Ain da em 38, aqu ele qu e h averia de ser o h istorigrafo do regim e, Joo Am eal, afirm ava: Hitler, pela su a reao vigorosa e
triu n fal, sou be levan tar a barreira m ais eficaz barreira in tran spon vel
m arch a para oeste da epidem ia m arxista. Ttu lo de glria su ficien te para
lh e ren der a ju sta gratido de todos os povos do Ociden te em perigo.40 E
o ten en te Jos Gon alves An drade person alidade m u ito pou co im portan te, m as cu jas idias so sign ificativas com o fen m en o de m en talidade
ch egou a tran screver, n u m a obra de elogio de Salazar, u m a carta qu e
ter en viado ao Fhrer, con vidan do-o a colaborar ativam en te n a organ izao de u m a Liga In tern acion al con tra o com u n ism o.41
Salazar n u n ca ter tido especial sim patia por Hitler e pelo n azism o,
ao con trrio do qu e se passou com Mu ssolin i, por ele con siderado u m
gn io poltico,42 e com o fascism o, em bora com o vim os sem pre ten h a afirm ado qu e era u m sistem a s aceitvel n a Itlia; n o en tan to, as
parcas afirm aes p blicas sobre a Alem an h a e, sobretu do, as su as en trelin h as e os seu s siln cios provam com o con siderava fu n dam en tal o seu
papel n o con texto da Eu ropa. Com efeito, em bora se tivesse esforado por
explicar qu e a n eu tralidade portu gu esa n a gu erra fora, n o seu dizer, u m a
n eu tralidade colaboran te,43 colaboran te com os Aliados o qu e n a realidade acon teceu depois de 1942-1943 eviden te a su a com preen so
pela qu esto alem . Assim su cedeu qu an do, n u m im portan te discu rso
proferido n a Em issora Nacion al, em 27 de ou tu bro de 1938, criticou o

321

Lus Reis Torgal

Tratado de Versalh es pela situ ao de m en oridade qu e atribu ra Alem an h a,44 elogiou o Tratado de Mu n iqu e, qu e n o seu dizer se n o origin ou u m a n ova Eu ropa, ao m en os criou as perspectivas de u m a Eu ropa m u ito diferen te,45 e ch am ou a aten o para o papel da Itlia e da
Alem an h a n o apoio Espan h a n acion alista com o objetivo de ergu er
barreiras in vaso com u n ista.46 A R ssia era sem pre o prim eiro objetivo da su a lu ta. Da o seu m edo em qu e ela tivesse u m papel in terven ien te n a gu erra, qu e criasse u m a situ ao de alian a com pases am igos. Por
isso, n u m discu rso de 39 afirm ar tam bm qu e jam ais a R ssia poderia
aju dar o Ociden te n o restabelecim en to da paz, parecen do in clu sivam en te com preen der, ou pelo m en os n o criticar com veem n cia, a in vaso
pela Alem an h a da Poln ia qu e h om en ageia pelo seu h erico sacrifcio
e pelo seu patriotism o para au m en tar a fren te an tibolch evista.47 E, em
1940, n u m discu rso qu e j referim os, m an ifestar-se- an ticom u n ista,
m as igu alm en te an tidem ocrata e an tiliberal.48
Salien tam os ou tra vez este ltim o pon to, porqu e ele ser fu n dam en tal para en ten derm os a posio do salazarism o, depois da gu erra, an te a Eu ropa com u n itria em form ao. Efetivam en te, Salazar e os salazaristas viam com m goa qu e o ps-gu erra trou xe a vitria das dem ocracias,49 o qu e im plicava, segu n do o seu m odo de ver ten do em con ta a
su a idia de qu e as dem ocracias estavam em crise e qu e a su a esperan a
apon tava para a afirm ao dos Estados fortes e de cu n h o n acion alista ,
u m n tido retrocesso. So elu cidativas estas palavras de Salazar proferidas
em ou tu bro de 1945, em qu e fala do ven to da dem ocracia e da gravidade das con tradies e dos equ vocos em qu e a Eu ropa se debate: Para
m im creio qu e o pen sam en to poltico eu ropeu , n o sen tido da reviso objetiva, lu z da razo e da experin cia, dos prin cpios qu e devem reger a
organ izao e o govern o das n aes, acu sa u m n tido recu o, isto , u m retrocesso.50 Mas, m ais do qu e o perigo da dem ocracia, Salazar receava
sobretu do o perigo com u n ista qu e ressu rgia com esses ven tos e qu e
perm itia a in trom isso dos com u n istas n os Estados dem ocrticos. Afin al a
Eu ropa batera-se e arru in ara-se para se opor n ova ordem germ n ica,
m as so palavras textu ais de Salazar, ditas em 1946 sobre as su as ru n as ain da fu m egan tes qu e se v alastrar a n ova ordem com u n ista.51 O
m edo con stan te do com u n ism o e da R ssia sovitica persegu iu sem pre Salazar, n o possibilitan do ou tra lgica poltica. Dir in sisten tem en te, de resto, qu e a R ssia tem u m a m stica e u m a estratgia expan sion ista,52 ao passo qu e a Eu ropa se m an tin h a em con stan tes h esitaes. E igu al crtica acabar por fazer aos Estados Un idos, j em m om en to de con flito com os
am erican os.53 A Alem an h a ocu para sem pre u m lu gar estratgico n a Eu ropa fora desde tem pos passados o seu fron teiro , pelo qu e era n ecessrio n o a deixar an iqu ilar, dado qu e o perigo n o vin h a da e sim do Les-

322

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

te.54 Ser, de resto, com am argu ra qu e criticar, j em 1960, a capitu lao


in con dicion al do III Reich e a su a diviso, qu ebran do, assim a barreira
qu ase in tran spon vel con tra a presso eslava.55
Mas a lgica an tidem ocrtica de Salazar n o lh e perm itiu tam bm
verificar qu e se estava a procu rar aos pou cos a form ao de u m a Eu ropa
com u n itria, dem ocrtica, e igu alm en te con trria ao com u n ism o de sistem a. Aden au er, ch an celer da Alem an h a Federal, qu e Salazar elogiou
n esse an o de 1958 56 do Tratado de Rom a, era u m dos obreiros dessa Eu ropa, qu e, com o verem os, o estadista portu gu s por vrias vezes con testou , por razes estratgicas e de prin cpio.

A IMAGEM DE ORIGINALIDADE DE PORTUGAL NA EUROPA


Ou tra qu esto fu n dam en tal para en ten der a posio do salazarism o relativam en te Eu ropa diz respeito realidade e im agem de Portu gal com o u m pas sui generis.
No seu in cio o Estado Novo foi apresen tado com o u m regim e de
rein tegrao de Portu gal n a realidade eu ropia, depois da vergon h osa situ ao da dvida p blica e da balb rdia san gu in olen ta em qu e caiu a
I Rep blica. No en tan to, m edida qu e as con vu lses eu ropias se iam dilatan do com o avizin h ar da gu erra e qu e as n aes dem ocrticas iam tom an do posies con tra as ditadu ras, Portu gal ia-se sen tin do m ais isolado, sobretu do porqu e n o qu eria, por u m lado, aban don ar a tradicion al
Alian a In glesa e, por ou tro, receava u m a ligao dem asiado com prom etedora com os Estados fascistas, para qu e n atu ralm en te iam as sim patias
polticas do salazarism o. E a situ ao torn ava-se m ais com plexa porqu e com eavam a ecoar os prim eiros ru m ores an ticolon ialistas n a Eu ropa.
Salazar foi, assim , crian do a idia de qu e Portu gal possu a o seu
prprio esprito, o qu e explica, distn cia, a su a fam osa expresso orgu lh osam en te ss,57 de gran de im pacto n os an os 60, qu an do a poltica
m u n dial se voltou praticam en te toda con tra as posies assu m idas pelo
n osso pas. O prim eiro passo n esse sen tido dado n o tem po da gu erra,
qu an do Salazar afirm a a n eu tralidade portu gu esa. Essa atitu de estratgica em qu e provavelm en te estiveram in teressadas as potn cias aliadas,
m ais do qu e as do Eixo foi afin al pon to de partida, em bora n o dom n io
ideolgico as origen s deste processo sejam an teriores, dado qu e se radicam n o prin cpio logo afirm ado por Salazar n o in cio da su a govern ao
e corroborado pelos seu s partidrios e sim patizan tes estran geiros (especialm en te da Action Franaise) de qu e Portu gal con stitu a u m caso parte
n o con texto dos estados au toritrios da Eu ropa.
Em 1937, qu an do as con vu lses eu ropias se agu dizavam , j Salazar, n u m discu rso proferido n a sala dos Passos Perdidos da Assem blia
Nacion al, m an ifestava a in depen dn cia portu gu esa n o con texto das rivali-

323

Lus Reis Torgal

dades em con fron to e con siderava qu e se arriscava n a batalh a a prpria


civilizao do ociden te.58 E, alm disso, defen dia-se das gran des crticas
qu e se com eavam a se avolu m ar con tra o seu regim e, vin das da Eu ropa
dem ocrtica. Dirigin do-se aos oficiais de terra e do m ar, reu n idos para celebrar o m alogro do aten tado qu e lh e tin h a sido dirigido dias an tes, proclam ava: Vs sabeis qu e este regim e a qu e ain da h oje ch am am ditadu ra,
e agora carregado com o apodo de fascista, bran do com o os n ossos costu m es, m odesto com o a prpria vida da Nao, am igo do trabalh o e do
povo. No h agitao su perficial ou profu n da, n em divises das classes,
n em dios irreprim veis n a gran de m assa, irm an ada h oje n a aspirao su prem a do en gran decim en to n acion al.59 (p. 302) Esta idia de paraso
perdido, n o m eio de u m a Eu ropa em delrio, ser obviam en te fortalecida
n o con texto da gu erra. Poderam os apresen tar vrias fon tes com provatrias. Mas citem os apen as algu m as qu e tiveram com certeza gran de im pacto n acion al.
*Recordem os, assim , n o dom n io do cin em a,60 o film e de gran de
au din cia O ptio das cantigas, de 1941, realizado por Fran cisco Ribeiro, irm o de An tn io Lopes Ribeiro, u m dos m ais im portan tes cin eastas do regim e, qu e de resto foi o produ tor e o au tor dos dilogos. Ele retrata as pequ en as qu ezlias de u m pacato e alegre ptio lisboeta, afastado das gran des batalh as qu e abalavam o Mu n do. Explicitam en te, u m dos figu ran tes
prin cipais, Narciso (Vasco San tan a), n o m eio de u m a cm ica lu ta em qu e
redu n daram os festejos de San to An tn io, gu arda as crian cin h as n u m palan qu e qu e tem por cim a escrita a palavra Salazar. E o realizador foi ao
pon to de gracejar com a gu erra, im itan do os soldados em lu ta e a Cru z
Verm elh a em ao, en qu an to o san gren to con flito fazia m ilh es de m ortos. Um an o an tes, em 1940, realizava-se a Exposio do Mu n do Portu gu s. Era assim qu e o jorn al O Sculo com en tava a Sala Portu gal: o pavilh o da n ossa paz in tern a, do n osso labor, da n ossa von tade de viver;
a apoteose da n ossa f coletiva, a disciplin a do n osso esprito. a n ossa
h ospitalidade aberta com o zon a de ref gio e de paz aos estran geiros; a
fidelidade ao n osso destin o.61 O volu m e IV (pu blicado em 1956) dos Anais
da Revoluo Nacional, obra dirigida por Joo Am eal, in titu lava-se O
Mu n do em Gu erra. Portu gal em Paz, sen do o captu lo IV dedicado ao
tem a Um a zon a de paz n o m eio da gu erra. Alis qu an do a gu erra term in ou foi organ izada u m a m an ifestao a Salazar para agradecer ao Presiden te do Con celh o o fato de ter salvo Portu gal do gran de cataclism o. In tern am en te Salazar tirava os seu s dividen dos e preparava-se para o gran de con fron to poltico.
No con texto do ps-gu erra, Portu gal procu rava in tegrar-se n a com u n idade in tern acion al. Foi essa a prpria expresso u sada por Salazar,
ao m esm o tem po qu e ten tava iden tificar-se, n a m edida do possvel, com

324

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

a lu ta da dem ocracia con tra o n azism o, isto , con tra o Estado totalitrio. Esta in tegrao tin h a os seu s cu stos tericos e prticos e, assim ,
com o j dissem os, Salazar teve tam bm de salien tar qu e essa afirm ao e
essa lu ta n o en volviam o ataqu e a form as diversas de organ izao do
Poder, qu eren do com isto exclu ir Portu gal da acu sao de Estado fascista. Ao con trrio, n u m verdadeiro jogo de cin tu ra, preten deu m ostrar qu e,
em term os de alcan ce social, os verdadeiros dem ocratas ram os
n s. n u m discu rso n otvel proferido n a Assm bleia Nacion al em 18
de m aio de 1945 qu e deparam os com este raciocn io de circu n stn cia,62
de qu e ain da se ou vem ecos n a lgica de algu n s salazaristas, qu e con tin u am a acreditar n a eficcia do Estado corporativo. Mas n esse m esm o
discu rso, Salazar volta a exclu ir o pas da aceitao do parlam en tarism o e
das solu es federalistas da Eu ropa, ao m esm o tem po qu e salien ta o papel especial de Portu gal n a recon stitu io do Ociden te.63
A posio do Estado Novo portu gu s procu rava, pois, afirm ar-se e
m an ter-se n u m a situ ao sui generis, s aceitan do pactu ar o m n im o in dispen svel com os ven tos da Histria. qu e Salazar con tin u ava a afirm ar, agora em razo da vitria das dem ocracias e do avan ar do perigo
com u n ista, qu e a Eu ropa e o Mu n do estavam em crise m oral acelerada
O Mu n do est ch eio de idias falsas e palavras vs, proclam ava ele,64 de
qu e era n ecessrio salvar o pas. Portu gal esteve n a Sociedade das Naes
(SDN), propu n h a-se en trar n a ONU, m as isso n o alteraria su bstan cialm en te a su a lin h a de ru m o. E a lin h a da su a poltica extern a seria de tipo
atln tico. Den tro ou fora das Naes Un idas, a n ossa poltica extern a n o
tem sen o de segu ir, ao lado dos tradicion ais im perativos h istricos e geogrficos, as claras in dicaes do ltim o con flito. O cen tro de gravidade da
poltica eu ropia sen o da poltica m u n dial, deslocou -se m ais ain da
para oeste e situ ou n o prim eiro plan o o Atln tico, com os estados qu e o
rodeiam . Em recon h ec-lo n o deixam os de ser eu ropeu s; o qu e dam os
m ais largo sen tido ao Ociden te.65
Est aqu i traado, n este texto fu n dam en tal de u m seu discu rso de
1946, o perfil da su a con cepo de Eu ropa, qu e depois an alisarem os
com u m pou co m ais de cu idado. Por en qu an to preocu pem o-n os com as
qu estes qu e a explicam . Um a das m ais im portan tes ser a realidade prpria de Portu gal com o u m pas colon izador e qu e teim ava em con tin u ar
a ju stificar essa posio. Se essa situ ao teve de levar Salazar a alterar
n os an os 50 a estru tu ra ju rdico-poltica do Estado s desta form a lh e
foi perm itido en trar em 1955 n a ONU, pelas m os dos Estados Un idos e
da Gr-Bretan h a o certo qu e ela con stitu iu o gran de problem a portu gu s e a cau sa do aban don o do apoio dos pases Aliados, bem com o, a certo prazo, o m otivo da qu eda do regim e.
Salazar, m edida qu e se esforava por m an ter a im agem paradisaca de Portu gal ain da em 1951, falan do das su bverses do Mu n do, n a

325

Lus Reis Torgal

m aior parte catastrficas, referia-se n ossa situ ao privilegiada,66 lu tava con tra as posies an ticolon ialistas, qu e iam crescen do n o con texto in tern acion al. Com efeito, se n a frica, m erc da descolon izao qu e se in icia n o ps-gu erra, se verificavam os prim eiros m ovim en tos con tra as posies portu gu esas n o con tin en te, vai ser in icialm en te a Un io In dian a a
m ovim en tar-se con tra a presen a portu gu esa n o Estado da n dia e a criar
o prim eiro gran de con ten cioso colon ial portu gu s. As presses su rgiram n os fin ais dos an os 40 67 e disseram respeito a qu estes do Padroado,
m as foi n os an os 50 qu e se efetu ou a ao sistem tica de Nh eru , qu e cu lm in aria com a in vaso dos territrios in dian os de colon izao portu gu esa. Peran te este com bate aceso e peran te a falta de apoios, in clu sive da
su a aliada In glaterra, Salazar qu eixa-se por vrias vezes de a Eu ropa se
sen tir en vergon h ada do seu passado colon izador.68
Mas o dram a de Salazar au m en ta ain da qu an do verifica qu e o
fen m en o da descolon izao e da au todeterm in ao im parvel. Para
alm , com o dissem os, de se ter alterado o estatu to das coln ias portu gu esas, qu e passaram a ser apelidadas de Provn cias Ultram arin as, defen de o
direito da colon izao por parte de Portu gal e da Eu ropa. Ain da em 1957
afirm ava: Ns crem os qu e h raas, decaden tes ou atrasadas, com o se
qu eira, em relao s qu ais perfilh am os o dever de ch am -las civilizao...69 Em 1960, em en trevista a Le Figaro, in sistia qu e a palavra coln ia
n o seu m ais pu ro sign ificado con tin u ava a ser respeitvel70 e su blin h ava, dian te da im in n cia da descolon izao e da lu ta pela in depen dn cia
dos territrios da frica: Se tem os ju zo, n o separem os as coletividades
african as dos seu s gu ias secu lares qu e pou co a pou co, e n o com o torren te devastadora, lh es vo tran sm itin do a su a civilizao.71
A gu erra colon ial african a ia com ear e Salazar ia fican do cada vez
m ais isolado. A ONU tom ar posies con tra Portu gal e a favor da au todeterm in ao dos territrios colon izados e os EUA, govern ados por Ken n edy, votaro a favor dessas m oes.72 Os discu rsos de Salazar passaro a
versar predom in an tem en te os problem as u ltram arin os e afirm ar a clebre e j referida posio de orgu lh osam en te ss, qu e con stitu iu o ch avo da ltim a fase do seu con su lado.

EUROPESMO E ANTIEUROPESMO
A ideologia salazarista em relao Eu ropa e ao Mu n do m an tevese essen cialm en te con stan te. S se alteraram as su as con dicion an tes. Vejam os, pois, agora, com o corolrio desta an lise, a idia aparen tem en te
con traditria de Salazar dian te da realidade eu ropia e en ten dam os porqu e n ele se con ju gam , logicam en te alis, u m eu ropesm o e u m
an tieu ropesm o. An tes, porm , para u m a m elh or com preen so do as-

326

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

su n to, esbocem os, em lin h as gerais, as corren tes eu ropestas qu e se perfilam , sobretu do, n o ps-gu erra.
O projeto eu ropesta velh o, com o se sabe, sen do com u m dizer-se
qu e, de u m a form a pr-m odern a, rem on ta a Pierre Du bois (qu e m orreu
cerca de 1321). As in ten es desse projeto ou desses projetos esto ligadas a con cepes diversas e de variado tipo, desde a idia de u n idade crist, ten do com o base poltica de h egem on ia sacerdotal ou im perial,
idia de paz e de solidariedade en tre os povos, ou a desgn ios m ais con cretos de m an u ten o de u m a ordem con servadora, ou de idias de in tern acion alism o liberal, dem ocrtico ou socialista, ou at a pragm ticos
plan os de organ izao econ m ica. Depois da Prim eira Gran de Gu erra,
m as em especial depois da Segu n da, esses projetos en tram n u m a ordem
de in iciativas m ais direta, n o s n u m a m era con cepo eu ropesta m as
m esm o m u n dial. Foi n esse con texto qu e su rgiu a SDN em 1919-1920, e
em 1945 a ONU, e qu e apareceu , s em 1957, com o Tratado de Rom a,
a Com u n idade Econ m ica Eu ropia (CEE), precedida em 1947 da criao
do BENELUX, em 1949 do Con celh o da Eu ropa e em 1951 da Com u n idade Eu ropia do Carvo e do Ao (CECA), para falar apen as em algu m as etapas fu n dam en tais.
No en tan to, para u m m elh or en ten dim en to das lin h as em con fron to, sem o qu e n o ser fcil en ten der com u m a certa exatido as posies
do Salazarim o, parece-n os ain da im portan te falar das ten dn cias qu e se
esboavam n o cam po das idias e das realizaes. Pode dizer-se, em prim eiro lu gar, qu e se desen h am plan os apen as con cretizados n o cam po das
ideologias m ilitan tes. Um deles, assu m ido pela esqu erda socialista in depen den te, qu e criara n o ps-gu erra o Movim en to para os Estados Socialistas da Eu ropa, pen sava n a possibilidade de alterar a face eu ropia capitalista, n u m a perspectiva poltica, cu ltu ral e socioecon m ica socialista,
fora, n o en tan to, do sistem a de in flu n cias sovitico. Em 1947 tran sform a-se n o Movim en to Socialista Eu ropeu , perden do, segu n do algu n s dos
seu s in iciais organ izadores e depois dissiden tes, adeptos de u m esqu erdism o radical, o seu idealism o de prin cpio, e in tegran do-se n u m certo
pragm atism o eu ropeu .73 Ou tra lin h a, diam etralm en te oposta a esta,
con stitu a a extrem a direita n acion alista e catlica, qu e n o propen dia
para u m projeto con creto e su pran acion al de Eu ropa, em bora estabelecesse algu m as pon tes com os projetos pragm ticos e im perialistas do n azism o e do fascism o italian o. Acim a de tu do, pen sava tam bm n u m a alterao da face da Eu ropa, m as in vocan do a experin cia da cristan dade
m edieval e as idias revivalistas rom n ticas n u m a perspectiva corporativa, au toritria e catlica. Nou tro sen tido, em con fron to direto com o n azi-fascism o, en con trava-se o com u n ism o sovitico, qu e, m ais do qu e u m
plan o eu ropeu , tin h a objetivos in tern acion alistas de poder proletrio e
projetos con cretos de expan so n a Eu ropa e n o Mu n do.

327

Lus Reis Torgal

Mas as lin h as eu ropestas e in tern acion ais qu e realm en te acabaram


por se in stitu cion alizar depois da gu erra n o foram estas. Foi sim , por u m
lado, u m a corren te eu ropesta prtica, de tipo econ m ico, m as tam bm
de ten dn cias polticas, defen dida por dem ocratas-cristos, liberais e socialistas m oderados. A Eu ropa dos Seis (Alem an h a, Fran a, Itlia, Holan da, Blgica e Lu xem bu rgo), qu e lh e deu in cio, m arca a afirm ao de
u m a Eu ropa cen tro-ociden tal. Por ou tro lado, diferen tes lin h as com u n itrias afirm avam -se n ou tros qu adran tes geogrficos e n ou tras reas de
Poder. o caso da OECE (Organ izao Eu ropia de Cooperao Econ m ica), qu e su rgia em 1948 n o con texto do Plan o Marsh all (1947), isto ,
do plan o de apoio dos EUA Eu ropa destru da pela gu erra. Trata-se, pois,
de u m a con cepo eu ropia atln tica sob lideran a am erican a qu e acabou por desaparecer com a criao da OCDE (Organ izao de Cooperao
e de Desen volvim en to Econ m ico), criada em 1960 e qu e abarca 24 pases, da Eu ropa (algu n s da CEE), da Am rica (os EUA e o Can ad) e da
Ocean ia (Au strlia e Nova Zeln dia). En tretan to, para a defesa do Atln tico con tra o perigo com u n ista ao qu al respon der n o Leste o Pacto
de Varsvia , organ izava-se jogo em 1949, com a presen a dom in an te
dos EUA e com algu n s pases da fu tu ra Com u n idade Eu ropia, a OTAN
ou NATO (Organ izao do Tratado do Atln tico Norte). No plan o econ m ico, de algu m a form a com o con trapon to a u m a con cepo de com rcio fech ado da CEE, su rgia em 1960 n a Eu ropa a EFTA (Eu ropean Free
Trade Association ). Associao Eu ropia de Com rcio Livre).
n o seio desta rede com plexa de organ izaes, on de se cru zam
con cepes polticas e econ m icas diferen tes, qu e vam os en con trar, em
parte, o Estado Novo portu gu s.
Nu m discu rso de 1949, proferido n a Sala das Sesses da Assem blia
Nacion al, n o qu al se pron u n ciou sobre a adeso de Portu gal ao Pacto do
Atln tico, Salazar sin tetizou a su a opin io sobre a Eu ropa. Assim , depois
de afirm ar qu e Portu gal n o poderia ser acu sado de precon ceitos raciais,
disse: No , porm , precon ceito racial a verificao de u m fato h istrico qu al a m arcada su perioridade do eu ropeu , n a tarefa civilizadora, en tre todos os povos da Terra. Desta Eu ropa gerada n a dor das in vases, sacrificada em gu erras in testin as, cu rtida n o trabalh o in san o, revolvida a
cada passo, por avalan ch es de idias e revolu es qu e se assem elh am a
fu riosos tem porais, descobridora, viageira, m ission ria, m e das n aes,
desta Eu ropa sim u ltan eam en te trgica e gloriosa ain da h oje se pode asseverar qu e m an tm o prim ado da cin cia e das artes, u tiliza n o m ais alto
grau os segredos da tcn ica, con serva o in stin to de afin ar as in stitu ies e
de su blim ar a cu ltu ra e deten tora de in com parvel experin cia poltica.
No esqu eam os o qu e se deve a ou tros em criao artstica, esplen dor literrio, su tileza de filosofias aqu i e alm criadas e desen volvidas; m as s

328

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

da Eu ropa se pode afirm ar qu e criou , sob in spirao crist, valores u n iversais, gen erosam en te, gratu itam en te, postos ao dipor do Mu n do, n a
su a n sia de tran splan tar civilizao. Cada u m de n s deveria sen tir o orgu lh o de se afirm ar eu ropeu . E con tin u ou n ou tro sen tido: Seria, n o en tan to, desrazovel fech ar os olh os crise da Eu ropa n o presen te m om en to; devastada, em pobrecida, dividida, m oralm en te desfeita, corroda pelo
desn im o, a braos com u m a perigosa desorien tao m en tal e o claro declin ar das virtu des em qu e se form ou , m u itos pergu n tam se n o so estes
sin tom as da decadn cia e se esta n o ser defin itiva: finis Europae.74
Com o se v, u m a Eu ropa trgica qu e Salazar n os apresen ta
lEurope tragique (Gon zagu e de Reyn old), a Eu ropa e os seu s fan tasm as (Joo Am eal) , m as tam bm u m a Eu ropa gloriosa. Na verdade,
o seu eu ropesm o tem sobretu do este sen tido vago, qu ase diram os rom n tico, espiritu al, este sen tido de Eu ropa com o patrim n io cu ltu ral.
Mas n o s. Com o homo politicus, Salazar viu tam bm a qu esto em term os estratgicos. Da a adeso de Portu gal ao Pacto do Atln tico. qu e
para ele com o procu ram os provar h dois prin cpios essen ciais qu e esto n a base da su a poltica extern a e n a su a idia de Eu ropa e de Mu n do:
o seu an ticom u n ism o sistem tico, em ligao com u m tam bm sistem tico an tiliberalism o e an tidem ocratism o, e a im agem da origin alidade de
Portu gal, ten do em con ta a su a ao prpria de civilizador de vastas regies, em particu lar da frica. Esta ltim a posio ju stificava em parte o
afastam en to do pas em relao aos con flitos da Eu ropa: Sem pre qu e o
fizem os afirm ava n esse m esm o discu rso livrem en te ou com pelidos
por ou tros e pelas circu n stn cias, distram o-n os das n ossas tarefas u ltram arin as, e sem lu cros, an tes com graves dan os e perdas de vidas e fazen da, voltam os para a Ptria, se s vezes com glria, sem pre desilu didos das
n ossas in terven es.75 Os dois prin cpios con ju n tam en te explicavam , por
su a vez, u m a con cepo de Eu ropa alargada, de tipo atln tico, n a base de
u m a ao fu n dam en tal dos Estados Un idos, com o potn cia m essin ica:
A Eu ropa n o pode sem o au xlio am erican o salvar n esta h ora o qu e resta do seu patrim n io m oral e da su a liberdade.76
Afin al o qu e defen deu Salazar n o foi u m a Eu ropa com u n itria, de
tipo con tin en tal e m u ito m en os de tipo federalista. Desde m u ito cedo
pelo m en os em 1936 qu e o vem os a criticar o qu e con sidera a fan tasia dos Estados Un idos da Eu ropa,77 assim com o, pou cos m eses aps o
Tratado de Rom a, o en con tram os den u n cian do a Eu ropa dos Seis e o
Mercado Com u m , con sideran do qu e qu ebrava o sistem a de relaes dos
pases qu e con stitu am a OECE e repu tava-a u m a organ izao preju dicial
em n om e do com rcio livre (recorde-se qu e em 1960 Portu gal in tegrarse- n a OCDE e aderir EFTA).78

329

Lus Reis Torgal

A Eu ropa , para Salazar, o cen tro n evrlgico do m u n do. Mas n o


a en ten de som en te n u m a perspectiva estritam en te eu ropia, e sim
n u m a perspectiva eu ro-am erican a 79 e eu ro-african a. Se, por u m lado, os
EUA salvaro os valores da Eu ropa o cen tro de gravidade da poltica
m u n dial (segu n do dizia) n o n em pode j ser eu ropeu , m as qu an do
m u ito eu ro-am erican o , a Eu ropa tam bm n o pode viver sem a frica, qu e o seu com plem en to n atu ral, com o por diversas vezes dir, an tes e depois dos con flitos da descolon izao.80 Portan to, a Eu ropa s con segu ir refazer os seu s valores se m an tiver a su a posio civilizadora n a
frica, se se opu ser term in an tem en te ao com u n ism o sovitico e se con segu ir, assim , fazer reviver o seu esprito secu lar. Nesta m edida, se a Am rica tem u m papel poltico im portan te n esta tarefa, u m pas pequ en o, m as
h istoricam en te sign ificativo com o Portu gal, n o desem pen h ar u m a fu n o m en os relevan te: con tribu io qu e o portu gu s deu para o alargam en to do espao su jeito in flu n cia eu ropia, a expan so qu e ele prprio realizou da civilizao ociden tal e a ao qu e n o m esm o sen tido con tin u a a desen volver n os territrios su jeitos su a soberan ia fazem deste
pequ en o pas u m obreiro n o despicien do da tarefa coletiva da Eu ropa.81
Eis, pois, por qu e Salazar u m eu ropesta e u m n o eu ropesta.
Mas o certo qu e foi a su a posio eu ropia qu e saiu derrotada n a batalh a estratgica da Eu ropa e do m u n do. A lu ta an ticolon ial gen eralizada e
o aban don o dos EUA, e da prpria Eu ropa, em relao poltica portu gu esa eu ro-african a, bem com o as n ovas estratgias cada vez m ais toleran tes, apesar da gu erra fria para fazer fren te ao com u n ism o sovitico,
acabaram por arrastar o Portu gal salazarista para u m a posio solitria. Da
qu e Portu gal s voltar Eu ropa, a ou tra Eu ropa, aps o 25 de Abril,
depois de en trar n a via dem ocrtica. Por isso, possvel ain da h oje en con trar vozes de resson n cia salazarista qu e criticam a in tegrao eu ropia,
em bora su rjam tam bm vrias posies, igu alm en te crticas, com ou tras
origen s ideolgicas, por vezes diam etralm en te diferen tes.

V OZES SA LA ZA RISTA S SOBRE A EUROPA


Os n acion alistas fran ceses qu e n a Fran a perderam a batalh a das
idias en ten deram Portu gal com o o bastio do Ociden te (le bastion
avan de lOccident, com o disse Hen ri Massis, au tor da obra Dfense de
lOccident.82 Jacqu es Plon card dAssac, qu e, desem pen h an do u m papel de
in telectu al orgn ico n o Estado Novo, foi o m ais salazaristas desses fran ceses, ao estabelecer u m dicion rio poltico de Salazar, realou n a palavra Eu ropa exatam en te essa posio de Salazar con tra a com u n idade
eu ropia e essa ou tra idia de Eu ropa com o patrim n io estru tu rado
n u m a Eu ro-afro-am rica.83

330

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

Matos Gom es, u m m on rqu ico qu e dedicou em 1953 u m a obra


Poltica Extern a de Salazar, acen tou , com sim patia, apesar da seren idade objetiva qu e dizia m an ifestar n esse estu do, exatam en te os aspectos
com qu e caracterizam os o pen sam en to de Salazar sobre a Eu ropa. Isto ,
procu rou desen h ar as su as con cepes n a base da idia de qu e Salazar
qu e jam ais se en gan ou , teve sem pre presen te o perigo com u n ista, a
com preen so pela Alem an h a, con sideran do o germ an o com o o fron teiro
da Eu ropa em face do eslavo in vasor, a m aldita h eran a das dem ocracias. Da qu e ch egasse a u m eu ropesm o toleran te e com preen sivo, toleran te de todos os sistem as polticos, exceo do com u n ism o, e repu diasse as u topias eu ropestas de base dem ocrtica.84 Sin tetizan do, afirm ava:
Portu gal defen de o seu eu ropesm o e, com ele, a su a fidelidade Verdade, Hon ra, Ju stia, Legitim idade do Direito, ao Bem -Com u m dos Hom en s e das Naes. Mas repele com apru m o a in sdia do bolch evism o.85
Mas foi Joo Am eal o idelogo e o h istoriador do regim e qu e m ais
se dedicou an lise e reflexo sobre a realidade eu ropia. Para alm de
livros tericos, direta ou in diretam en te, sobre o tem a, lecion ou n o In stitu to Su perior de Cin cias Sociais e Poltica Ultram arin a u m cu rso acerca
da idia de Eu ropa e pu blicou u m a Histria da Eu ropa.
O seu texto de 1945 A Europa e os seus fantasmas reprodu z ele qu e
acreditava, veem en tem en te, an tes da gu erra, n a con stru o de u m Novo
Estado as velh as teses caras ao pen sam en to n acion alista em crise, crise qu e n o o leva a crer com igu al en tu siasm o em solu es con cretas de
m u dan a, m as apen as em vagas idias rom n ticas. Os fan tasm as da Eu ropa eram a h eresia liberal, o com u n ism o, o am erican ism o (a ditadu ra da m qu in a)... A Idade Nova teria de assen tar n a Histria, n o Nacion alism o (n o bom n acion alism o, fu n dam en tado n o catolicism o) e n o
Novo Estado, corporativo, m u n icipalista, qu e tem com o clu la a Fam lia. Sob o sign o de So Tom s n esta vaga esperan a de teoria poltica
catlica term in a o seu livro de pessim ism o e de esperan a. Na in trodu o
dissera: No estam os, de fato, em plen a atm osfera de tragdia? sem elh an a de Electra, n o sofre a Eu ropa o assalto da ron da dos fan tasm as
dos seu s fan tasm as qu e a afogam e estran gu lam com desm edidos braos de som bra? Mas os fan tasm as podero ser ven cidos, dissolvidos se a
Eu ropa se pu ser n ovam en te em m arch a para on de se descerram as gran des claridades, de acordo com as bases profu n das da civilizao do ociden te e com as lies e os apelos dos n ovos tem pos; se a Eu ropa voltar a ser
aqu ilo qu e foi n o seu perodo u reo: cristan dade, u n ida con tra as h eresias, fiel lei de Deu s e s leis da n atu reza h u m an a....86
Nas su as lies sobre a Idia de Europa n o so su bstan cialm en te diferen tes as esperan as de Am eal, ain da qu e as idias corram com preocu paes didticas m ais objetivas e ain da qu e ten h a com o con dim en tos os

331

Lus Reis Torgal

novos condicionalismos dos anos 60. L temos, por um lado, a recusa de


qualquer esquema de soberania supranacional e, por outro, a idia, ainda
subsistente, de que os Estados Unidos deveriam ajudar a no morrer a civilizao ocidental.87 Em 1969, falando do Ocidente, est subjacente a luta
travada por Portugal no Ultramar: O Ultramar Portugus ser fator determinante do projeto do futuro Portugal nos quadros do Ocidente futuro!.88
Mas o m ais in teressan te em Joo Am eal qu e ele foi o au tor da
n ica Histria da Europa at agora pu blicada em Portu gal por u m portu gu s.89 Obviam en te u m a h istria m arcada pelas gran des lin h as da ideologia in tegralista e salazarista, u m a h istria qu e con siderou com o h eresias os m ovim en tos revolu cion rios qu e vo da Revolu o Fran cesa e do
liberalism o, ou m esm o do Ren ascim en to e do Ilu m in ism o, ao com u n ism o e dem ocracia. Mas acim a de tu do trata-se de u m a h istria vista sob
o n gu lo portu gu s. Um dos objetivos con siste em m ostrar o con tribu to
qu e Portu gal deu Civilizao Ociden tal. A tem os o n acion alism o portu gu s n a base do ociden talism o.90
Um ou tro caso dign o de n ota o Pau lo de Pitta e Cu n h a, docen te
da Facu ldade de Direito de Lisboa, qu e esboou sobre os problem as da
Eu ropa algu m as reflexes de cu n h o cien tfico, con dicion adas pelas
idias salazaristas dos an os 60. Nu m bem docu m en tado estu do acerca do
Movim en to Eu ropeu , n o qu al apresen tou os textos fu n dam en tais da
com u n idade eu ropia, e das etapas qu e a precederam , qu estion ou sobre
as dificu ldades em articu lar a soberan ia dos Estados e as in stitu ies su pran acion ais da CEE Tam bm a sim patia de Pitta e Cu n h a se dirigia para
a idia de u m a com u n idade eu ro-am erican a, qu e, n o en tan to, os processos de descolon izao preju dicariam .91
Poderam os discu tir agora se o m arcelism o trou xe algo s con cepes portu gu esas de Eu ropa 92 ou m esm o se algu n s m in istros m ais de Salazar, com o Adrian o Moreira com o m in istro e depois com o professor ,
abriram j a qu esto a ou tras perspectivas.93 Fosse com o fosse, o certo
qu e a poltica portu gu esa n o se alterou su bstan cialm en te. Apesar de afirm aes de cooperao e da m aior abertu ra ao m ercado in tern acion al,
aban don an do, assim , aos pou cos o m ercado n ico eu ropeu , m an tivem o-n os essen cialm en te em idn tica atitu de de solido poltica n o espao
eu ropeu e m u n dial.
Ain da recen tem en te se ou viram ecos das teses salazaristas... No
por acaso qu e Silva Cu n h a, qu e foi m in istro de Salazar n os an os 60, em
1980 falava de u m a Eu ropa en fraqu ecida, de Portu gal desde sem pre in teressado n as organ izaes eu ropias, aceitan do a n ova in tegrao s
com o u m desafio crise agn ica do pas u m pas sem Ultram ar, de qu e
ele prprio fora Min istro.94 E tam bm n o por acaso qu e Ka lza de Arriaga, qu e perten ceu ao govern o de extrem a direita portu gu esa, m an tin h a a idia em palavras dirigidas ao jorn al Expresso, n o con texto do de-

332

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

bate sobre o tratado de Maastrich t, qu e apon tou para a organ izao da


Un io Eu ropia qu e Portu gal com eteu u m erro ao en trar para a CE,
porqu e a n ossa com u n idade n atu ral tem a ver com a In glaterra e a Am rica do Norte e os an tigos territrios u ltram arin os.95

333

Lus Reis Torgal

N OTA S
1. GARCIA, M. M. Arquivo de Salazar. Inventrio e ndices. Lisboa: Estam pa, 1991.
2. Este texto qu e agora pu blicam os u m a refu n dio e atu alizao do artigo Salazarism o,
Fascism o e Eu ropa. Vrtice, p.41-52, jan .-fev., 1993; n ova edio: O Estu do da Histria. Boletim da Associao de Professores de Histria (Lisboa), II srie, n .12-13-14-15, p.111-34, 19901993. No con texto da m esm a tem tica e retom an do, em boa parte, idias desse artigo, pu blicam os tam bm : Salazarism o, Alem an h a e Eu ropa. Discu rsos Polticos e Cu ltu rais. Revista
de Histria das Ideias, n .16. Do Estado Novo ao 25 de Abril, 1994, p.73-104; pu blicado tam bm em SANTOS, M. L. dos, KNEFELKAMP, U., HANENBERG, P. (Org.) Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (Portugal e a Alemanha a caminho da Europa. Cen tau ru s-Verlagsgesellsch aft, Pfaffen weiler, 1995. p.193-219, e em TELO, A. J. (Coord.) O fim da Segunda Guerra Mundial e os novos rumos da Europa. Lisboa: Cosm os, 1996. p.241-262.
3. Na BGUC o Fu n do Pedro de Mou ra e S tem u m a excelen te coleo de obras sobre a
Eu ropa. Relativam en te bibliografia sobre a Eu ropa em Portu gal n o scu lo XX, ver LANDUYT, A. (Org., Ed.) Europa Unita e Didactica Integrata. Storiografie e Bibliografie e Confronto / A
United Europa and Integrated Didactics. Historiographies and Bibliographies Compared / Europe
Unie et Didactique Intgre. Historiographies et Bibliographies Compares. Sien a: Protagon Editori
Toscan i, 1995. - Portu gal e a In tegrao Eu ropia / Portu gal an d th e Eu ropean In tegration
(Lu s Reis Torgal e Maria Man u ela Tavares Ribeiro), p.130-139 e seleo bibliogrfica in tegrada.
4. Ver AMEAL, J. (Dir.) Dez anos de poltica externa. 10 v., Lisboa: Im pren sa Nacion al, Anais da
Revoluo Nacional, particu larm en te v.V, Barcelos, Com p. Editora do Min h o, 1956; TEIXEIRA, L. Neutralidade colaborante. Lisboa, 1945 (Prm io Afon so de Bragan a, do Secretariado
Nacion al de In form ao); CASTRO, A. de Subsidios para a histria da poltica externa portuguesa durante a guerra. Lisboa: Livraria Bertran d, s.d.; GOMES, M. Poltica Externa. Edies Alm ,
1953 e NOGUEIRA, F. Histria de Portu gal, II su plem en to. 1933-1974. In : BARCELOS (Ed.)
Histria de Portugal. Porto: Civilizao, 1981 e Salazar, especialm en te v. III e IV.
5. OLIVEIRA, C. Salazar e a Guerra Civil de Espanha. Lisboa: O Jorn al, 1987.; LOFF, M. Salazarismo e Franquismo na poca de Hittler (1936-1942). Porto: Cam po das Letras, 1996, e RODRGUEZ, A. P. El Estado Novo de Oliveira Salazar y La Guerra Civil Espaola: In form acin , Pren sa
y Propagan da (1936-1939). Madri, 1997. Tese (Dou torado) Un iversidade Com plu ten se de
Madrid, (Policopiada).
6. TELO, A. J. Portugal na Segunda Guerra Mundial. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1987;
___. Propaganda e guerra secreta, 1939-1945. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1990; ___. Portugal na Segunda Guerra (1941-1945). Lisboa: Veja, 1991. 2v.; ROSAS, F. O Salazarismo e a
aliana luso-britnica. Lisboa: Fragm en tos, 1998; ___. Portugal entre a Paz e a Guerra. Lisboa:
Estam pa, 1990; CARRILHO, M., et al. Portugal na Segunda Guerra Mundial. Con tribu tos para
u m a Reavaliao. Lisboa: Dom Qu ixote, 1989; ANDRADE, L. V. de. Neutralidade colaborante.
O Caso de Portu gal n a Segu n da Gu erra Mu n dial. Lisboa: Pon ta Delgada, 1993. ROLLO, F.
Portugal e o Plano Marshall. Lisboa: Estam pa, 1994.
7. Note-se, todavia, qu e esta qu esto tem sido por vezes abordada, em algu m as obras gerais
sobre o Salzarism o. Por exem plo, C. OLIVEIRA apresen tou sobre ela algu m as reflexes n o
seu livro Salazar e o seu tempo. Lisboa: O Jorn al, 1991. Sobretu do cap. III.
8. Pode-se en con trar u m levan tam en to do problem a n a obra de PINTO, A. C. O salazarismo
e o fascismo europeu. Problem as de In terpretao n as Cin cias Sociais. Lisboa: Estam pa, 1992.
En tre ou tros, e destacam os aqu i o recen te en saio de SCHIR, L. B. de. A experincia fascista
em Itlia e em Portugal. Lisboa: Edies Un iversitrias Lu sfon as, 1997, poderem os dizer qu e
n s prprios participam os n este debate com u m artigo, pu blicado n o Brasil e qu e em breve
ter u m a edio refu n dida em Espan h a: Estado Novo em Portu gal: En saio de Reflexo sobre o seu Sign ificado. Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre), PUCRS, n .1, v.XXIII, p.3-32,
ju n . 1997.

334

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

9. FERRO, A. Salazar. O h om em e a su a obra. Lisboa: Em presa Nacion al de Pu blicidade,


1933. p.74.
10. Veja-se a su a reprodu o em Vrtice, n .13, p.87, abr. 1989.
11. En con tram os essa fotografia n o arqu ivo particu lar de u m descen den te de Salazar. Ver
su a reprodu o em ALVES, C. T. A biblioteca e o arqu ivo de Salazar. Notas para u m Catlogo. Revista de Histria das Ideias (Coimbra), n .17, p.281, 1995.
12. FERRO, A., op. cit., p.74.
13. O Estado Novo Portu gu s n a evolu o poltica eu ropia. (Discu rso proferido n a sesso
in au gu ral do 1. Con gresso da Un io Nacion al, n a Sala Portu gal da Sociedade de Geografia
de Lisboa, em 28 de m aio de 1934). Discursos (Coimbra), Coim bra Editora, v.I, p.334-5, 1935.
14. Sobre as relaes do Salazarism o com os n acion alistas fran ceses, ver MEDINA, J. Salazar em Frana. Lisboa: tica, 1977.
15. Construo do Novo Estado. Porto: Tavares Martin s, 1938. p.21 ss.
16. Ibidem ., p.29.
17. Ltat fasciste est u n m agn ifiqu e oeu vre arch itectu rale. Sa con tem plation , son tu de,
provoqu en t u n plaisir esth tiqu e. Cest la seu le con stru ction politiqu e, parm i tou tes celles
qu on a leves ou bau ch es depu is la gu erre, qu i soit h arm on ieu se dan s sa n ou veau t
(LEurope Tragique. Paris: Spes, 1935. p.292-3).
18. Portugal. Paris: Spes, 1936. p.326.
19. O discu rso est em Op. cit., p.346.
20. Discu rso proferido n a Assem blia Nacion al, em 26 de m aio de 1940, du ran te a sesso
em qu e a Cm ara aprovou a Con cordata e o Acordo Mission rio, assin ados n o Vatican o em
7 de m aio an terior. Discursos (Coimbra), Coim bra Editora v.III, p.236. s.d.
21. Pan orm ica da poltica m u n dial, en trevista con cedida ao jorn al Le Figaro e ali pu blicado em 2-3 de setem bro de 1958, Discursos(Coimbra), v.VI, Coim bra Editora, 1967. p.40-1.
Ali afirm ou : Se a dem ocracia con siste n o n ivelam en to pela base e n a recu sa de adm itir as
desigu aldades n atu rais; se a dem ocracia con siste em acreditar qu e o Poder en con tra a su a
origem n a m assa e qu e o Govern o deve ser obra da m assa e n o do escol, en to efetivam en te, eu con sidero a dem ocracia u m a fico. No creio n o su frgio u n iversal, porqu e o voto
in dividu al n o tem em con ta a diferen ciao h u m an a. Os h om en s, n a m in h a opin io, devem ser igu ais peran te a lei, m as con sidero perigoso atribu ir a todos os m esm os direitos polticos. Se o liberalism o con siste em con stru ir toda a sociedade sobre as liberdades in dividu ais, en to eu con sidero m en tira o liberalism o. No creio n a liberdade, m as n as liberdades.
A liberdade qu e n o se in clin a peran te o in teresse n acion al ch am a-se an arqu ia e destru ir
a n ao.
22. Portu gal, a gu erra e a paz, discu rso proferido em sesso da Assem blia Nacion al de 18
de m aio de1945, em Discursos, v.IV, p.114-5, e Misria e m edo, caractersticas do m u n do
atu al, discu rso proferido n u m a sala da biblioteca da Assem blia Nacion al, em 25 de setem bro de 1947, ibidem , p.300.
23. Por exem plo, Votar u m gran de dever, discu rso proferido n u m a das salas da biblioteca da Assem blia Nacion al em 7 de ou tu bro de 1945, Discursos, v.IV, p.187-8; Relevn cia do
fator poltico e a solu o portu gu esa, discu rso proferido n a sesso in au gu ral da I Con fern cia da Un io Nacion al, em 9 de n ovem bro de 1946, n o Liceu D. Filipa de Len castre, ibidem ,
p.261; Atm osfera Mu n dial e os Problem as Nacion ais, discu rso proferido em 1. de n ovem bro de 1957 ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.416-7.
24. Por exem plo, en trevista ao jorn al m exican o Excelsior, pu blicado em 9 de abril de 1960,
Entrevistas, Coim bra: Coim bra Editora, 1967, p.7.
25. Discu rso citado, Portu gal, a gu erra e a paz, Discursos, IV, p.119-20.
26. Govern o e Poltica, discu rso proferido n a posse da n ova com isso execu tiva da Un io
Nacion al, em sesso realizada n u m a sala da biblioteca da Assem blia Nacion al, em 4 de m aro de 1947, Discursos, IV, p.269.

335

Lus Reis Torgal

27. Ibidem , p.268.


28. MONCADA, L. C. Memrias ao longo de uma vida. Lisboa: Verbo, 1992. p.194 ss.
29. Registrem os algu m as obras caractersticas deste m ovim en to de idias; GRAVELLI, A. Difesa dellEuropa e funzione antieuropea del Fascismo. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1932; ___. Europa
com noi. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1933; ___. Panfascismo. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1935; ___. Verso lInternazionale fascista. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1932; NARDELLI, M. Fascismo, idea universale. Tren to: Editrice Tren tin o, 1936; ___. Nuova civilt per Nuova Europa. Rom a: Un ion e Editoriale dItlia, 1942; WINSCHUH, J. Costruzione della Nuova Europa. Firen ze: Cya, 1941.
30. Por exem plo, LODOLINI, A. La vita di Mazzini narrata ai Giovani Fascisti. Firen ze: Bem porad, 1929; ROSSI, R. Mazzini e il Facismo. Livorn o: Massim a Casa, 1931.
31. Istitu to Nazion ale di Cu ltu ra Fascista. Primo convegno nazionale dei gruppi scientifici. Rom a,
23-26 n ovem bre 1942, XXI, II tem a Idea dellEuropa, Rom a, s. e., 1943.
32. Esses con gressos j vin h am se realizan do an tes. Gon zagu e de Reyn old fala-n os n a su a
presen a em u m qu e se efetu ou n a Academ ia Real de Itlia em Novem bro de 1932 (LEurope Tragique, p.393). As atas desse con gresso foram pu blicadas: Reale Accadem ia dItalia. Fon dazion e A. Atti dei convegni. Convegno di scienze morali e storiche 14-20 novembre 1932, XI. Tem a:
Europa, Rom a: Reale Accadem ia dItalia, 1933.
33. A europa e os seus fantasmas. Porto: Tavares Martin s, 1945.
34. Testamento da Europa. Lisboa: Livraria Clssica Editora, 1942.
35. O problema da Europa. Lisboa: Edies Gam a, 1945.
36. A crise da Europa. Lisboa: Cosm os, 1942.
37. La Lanterne, 16.4.1952, citado em : GOMES, M., Poltica externa de Salazar. Lisboa: Edies,
Alm , 1953. p.264.
38. LEurope tragique, op. cit., p.398.
39. Por exem plo, A Em baixada da Coln ia Portu gu esa n o Brasil e a n ossa poltica extern a, discu rso proferido n o Gabin ete do Presiden te do Con celh o em 15 de abril de 1937, peran te os com ission ados pela Coln ia Portu gu esa do Brasil para cu m prim en tar o Govern o,
Discursos, II, p.279.
40. Construo do Novo Estado, op. cit., p.34.
41. Doutor Oliveira Salazar. O seu tem po e a su a obra. Porto: Editora Edu cao Nacion al,
1937, en tre as p.10 e 11.
42. Preocu pao da paz e preocu pao da vida, discu rso proferido n a Em issora Nacion al,
n o en cerram en to da cam pan h a eleitoral para a n ova Assem blia Nacion al, em 27 de ou tu bro de 1938, Discursos, II, p.105. Salazar pron u n ciava-se n o con texto da con fern cia de Mu n iqu e (29 de setem bro de 1938), n a qu al a Alem an h a reforou as su as posies n a Eu ropa,
ocu pan do os Su detas, adian do-se, assim , o gran de con flito. Salazar elogia Ch am berlain , a
qu em n o seu dizer o Ch efe do Govern o italian o deve ter dado a colaborao decisiva do
seu gn io poltico.
43. Essa tese, qu e Salazar expen deu , foi con cretam en te exposta e ju stificada por TEIXEIRA
L. Portugal e a guerra. Neu tralidade colaboran te. Lisboa, 1945.
44. Discu rso in lugar cit., p. 107.
45. Ibidem, p.110.
46. Ibidem, p.112.
47. Eu ropa em gu erra. Repercu sso n os problem as n acion ais, discu rso proferido n a Assem blia Nacion al, em 9 de ou tu bro de 1939, du ran te a sesso em qu e a Cm ara se con gratu lou pela viagem do Ch efe do Estado frica portu gu esa, Discursos, III, p.185.
48. Problem as poltico-religiosos da Nao Portu gu esa e do seu Im prio, discu rso proferido n a Assem blia Nacion al em 25 de m aio de 1940, Discursos, III, p.236.

336

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

49. Exposio sobre a poltica in tern a e extern a, n otas taqu igrficas de u m discu rso dirigido s n ovas com isses da Un io Nacion al, n u m a sala de biblioteca da Assem blia Nacion al, em 18 de agosto de 1945, Discursos, IV; p.142.
50. Votar u m gran de dever, discu rso proferido n u m a das salas da biblioteca da Assem bleia Nacion al em 7 de ou tu bro de 1945, Discursos, IV, p.175.
51. Relevn cia do fator poltico..., discu rso j citado, Discursos, IV, p.254.
52. Ibidem , p.255 ss.
53. A Posio Portu gu esa em face da Eu ropa, da Am rica e da frica, discu rso proferido
n a sede da Assem blia Nacion al em 23 de m aio de 1959, Discursos, VI, p.67.
54. Misria e m edo..., discu rso citado (25.11.1947), Discursos, IV, p.289 ss.
55. Pan oram a da poltica m u n dial, en trevista cit. (Le Figaro, 2-3.9.1958), Discursos, VI, p. 6.
56. Ibidem , p.3 ss.
57. Cf. Erros e fracassos da era poltica, discu rso proferido n a posse da Com isso Execu tiva da Un io Nacion al, em 18 de fevereiro de 1965, Discursos, v.VI, p.368.
58. Portu gal, a Alian a In glesa e a Gu erra de Espan h a, discu rso proferido n a sala dos Passos Perdidos da Assem blia Nacion al, em 6 de ju lh o de 1937, ao agradecer aos oficiais de
terra e m ar as h om en agen s qu e lh e prestaram pelo m alogro do aten tado de qu e foi alvo n o
dia 4, Discursos, v.II, p.304.
59. Ibidem, p.302.
60. Em especial sobre os film es Revoluo de Maio (1937) e Feitio do Imprio (1940), de An tn io Lopes Ribeiro, ver o n osso artigo Cin em a e Propagan da n o Estado Novo. A con verso
dos Descren tes. Revista de Histria das Ideias (Coimbra), n .18, p.277-337, 1996.
61. O Sculo, 2.8.1940.
62. Portu gal, a gu erra e a paz, discu rso cit., Discursos, v.IV, passim , n om eadam en te p.106,
114, 119-120.
63. Ibidem , p.110 ss. Ver tam bm Exposio sobre poltica extern a, n otas sobre u m discu rso cit. (18.8.1945), p.142 ss., e Votar u m gran de dever, discu rso cit. (7.10.1945),
p.169 ss.
64. Ideias falsas e palavras vs (Reflexes sobre o ltim o ato eleitoral), discu rso proferido
n a reu n io das com isses dirigen tes da Un io Nacion al, realizada em 23 de fevereiro de
1946, n u m a sala da biblioteca da Assem blia Nacion al, Discursos, v.IV, p.213.
65. Ibidem , p.211-12.
66. In depen dn cia da poltica n acion al su as con dies, discu rso proferido n a sesso
in au gu ral do III Con gresso da Un io Nacion al, em Coim bra, a 22 de n ovem bro de 1951, Discursos, v.V, p.51 ss.
67. Qu estes de poltica in tern a, discu rso proferido n u m a das salas da biblioteca da Assem blia Nacion al, dirigido aos Govern adores Civis, s com isses distritais da Un io Nacion al e aos can didatos a depu tados, em 20 de ou tu bro de 1949, Discursos, v.IV, p.449 ss.
68. Goa e u n io in dian a (Aspectos econ m ico, poltico e m oral), discu rso proferido em 12
de abril de 1954, ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.189.
69. A atm osfera m u n dial e os problem as n acion ais, discu rso proferido em 1. de n ovem bro de 1957, ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.427.
70. En trevista cit., Discursos, v.VI, p.11.
71. Ibidem , p.27.
72. O u ltram ar portu gu s e a ONU, discu rso proferido n a sesso extraordin ria da Assem blia Nacion al, em 30 de ju n h o de 1961, Discursos, v.VI, p.128 ss. Ver sobre os con flitos en tre Salazar e Ken n edy, ANTUNES, J. F. Kennedy e Salazar. O leo e a raposa. Lisboa: Difu so
Cu ltu ral, 1991.

337

Lus Reis Torgal

73. Ver sobre este tem a BOURDET, C. A farsa da Europa. Paris: Segh ers, 1977.
74. Portu gal n o pacto do Atln tico, discu rso proferido n a sala de sesses da Assem blia
Nacion al, em 25 de ju lh o de 1949, Discursos, v.IV, p.419-20.
75. Ibidem , p.412.
76. Ibidem , p.420.
77. In depen dn cia da poltica n acion al, discu rso proferido n u m a das salas de So Ben to,
em 21 de fevereiro de 1936, Discursos, v.II, p.117.
78. A atm osfera m u n dial e os problem as n acion ais, discu rso proferido em 1. de n ovem bro de 1957 aos m icrofon es da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.439.
79. Ver o n osso artigo, qu e retom a algu m as con sideraes aqu i expostas, Salazarism o, Eu ropa e Am rica. Revista Portuguesa de Histria (Coimbra), tom o XXXI, p.615-34. Facu ldade de
Letras.
80. Cf. Por exem plo, Preparao n acion al para o ps-gu erra, discu rso proferiso n a sesso
de abertu ra do II Con gresso da Un io Nacion al, em 25 de m aio de 1944, n o Liceu D. Filipa
de Len castre, Discursos, v.IV, p.61, Apon tam en tos sobre a situ ao in tern acion al, discu rso
proferido n a Sociedade de Geografia, em 30 de m aio de 1956, n a sesso de abertu ra do Con gresso da Un io Nacion al, ibidem, v.V, p.371 ss., A posio portu gu esa em face da Eu ropa,
da Am rica e da frica, discu rso proferido n a sede da Un io Nacion al em 23 de m aio de
1959, idem, p.64 ss.
81. Portu gal com o elem en to de estabilidade n a Civilizao Ociden tal, palavras de Salazar
pu blicadas n o Journal de Genve n o n m ero de 13 de ou tu bro de 1953, dedicado a Portu gal,
Discursos, v.V, p.157 e passim .
82. No volu m e Dfense de lOccident, qu e o au tor ofereceu Biblioteca Geral da Un iversidade de Coim bra, pode ler-se este passo, qu e foi depois tran scrito n o op scu lo (coletn ea extrada da obra Les ides restent) Occidente ou Oriente? No lim iar da Hora Trgica. Coim bra: Casa
do Castelo, 1949: La civilisation ne vivra que dans la mesure ou nous voudrons, ou nous en ferons
une ide-matresse, ide-chef cest ce le Portugal a compris et qui en fait le bastion avanc de la dfense de lOccident.
83. DASSAC, J. P. Dictionnaire politique de Salazar. Lisboa: S. N. I., 1964. p.135 ss.
84. Cf. GOMES, M. Poltica externa de Salazar. Lisboa: Edies Alm , 1953. cap.XI, p.261 ss.
85. Ibidem , p.271.
86. Op. cit., p.XIV.
87. Ideia de Europa. Cu rso Professado n os An os Lectivos de 1965-1966 e 1966-1967. Lisboa:
In stitu to Su perior de Cin cias Sociais e Poltica Ultram arin a, 1967. Ver sobretu do p.165 ss.
88. O Ocidente e Portugal Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, ju lh o-setem bro, 1969, p.195.
89. Note-se todavia, qu e, n o con texto da n ova situ ao eu ropia, o didata da Histria, A. S.
RODRIGUES, colaborou n u m a obra con ju n ta: Histria da Europa. Escrito por doze h istoriadores eu ropeu s. Coim bra: Min erva, 1992, tradu o da obra pu blicada em Paris: Hach ette,
1992.
90. Ver Histria da Europa. Porto: Tavares Martin s, 1961, 1964, 1969. 3v. (2.ed, Lisboa: Verbo, 1982-1984, 5v.). Cf. Prefcio da 1.ed., p.XVII.
91. O movimento poltico europeu e as instituies supranacionais, Lisboa, Separata do Boletim do
Ministrio da Justia, 1963, em particu lar p.152-53.

338

O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

92. Ver, por exem plo, a coletn ea do pen sam en to de CAETANO, M. Eu ropa. In : ZORRO, A.
M. (Com p.) Princpios e definies. Lisboa: Pan oram a, 1969. (Textos de 1936 a 1967). Ali, sobretu do n o ttu lo Eu ropa (p.67-69), verifica-se qu e Marcello, apesar de m an ter as su as
descon fian as em relao aos Estados Un idos da Eu ropa e de con ceber a Eu ropa essen cialm en te com o u m a cu ltu ra, fala com certa n fase da cooperao eu ropia e parece perceber a dificu ldade de pases pequ en os com o Portu gal em su bsistirem isolados. Procu ravase a abertu ra, em gran de parte desm en tida pelas realidades. No en tan to, recorde-se o papel de algu n s m em bros m ais liberais do govern o m arcelista, com o, por exem plo, Rogrio
Martin s, qu e tiveram , n o dom n io terico e prtico (vide, de su a au toria, Caminho de pas
novo. Lisboa, 1970), u m papel im portan te n essa abertu ra. Esta qu esto, m eram en te esboada, precisa de ser profu n dam en te an alisada em vrias perspectivas, o qu e est fora das
n ossas in ten es de m om en to.
93. Ver Espao Europeu, Discu rso proferido pelo Min istro do Ultram ar [...], em 5 de n ovem bro de 1962, n a sesso solen e in au gu ral do Cen tro Portu gu s de Estu dos Eu ropeu s, Lisboa,
Agn cia-Geral do Ultram ar, 1962, e A Europa em formao, Lisboa, Separata do Boletim da
Sociedade de Geografia, 1974. No discu rso referido, Moreira m ostra a su a desilu so peran te a ONU e defen de, n u m a altu ra em qu e se in au gu rava em Lisboa o Cen tro Portu gu s de
Estu dos Eu ropeu s, o reforo da Eu ropa, qu e precisa de en con trar o seu esprito e de salvar a ou tra m etade. No segu n do estu do, m ais pen sado e pen sado n ou tra poca, fala do
equ voco da NATO, qu e n o foi u m a in stitu io de dilogo en tre a Eu ropa e URSS, m as sim
dos EUA, o n ico in terlocu tor, e a URSS E fala da velh a idia de a Pen n su la con stitu ir u m
espao Atln tico-Su l.
94. Cf. A idia de Europa. Razes histricas. evoluo. Concretizao atual. Portugal e a Europa, Gu im ares, Separata da Revista de Guimares, 1982. Silva Cu n h a apresen ta-se n este op scu lo
com o Professor da Un iversidade Livre do Porto.
95. Expresso Revista, v.6, n .6, p.12, 1992.

339

captu lo 18

APS O 25 DE ABRIL
Jos Medeiros Ferreira*

Eduardo Loureno, no Labirinto da saudade, dedica algumas das melhores pginas da sua reflexo atitude dos portugueses perante a descolonizao.
Nesse ensaio de psicanlise mtica do destino portugus, Eduardo
Loureno salienta Pelo imprio devimos outros, mas de to singular maneira que na hora em que fomos amputados fora (mas ns vivemos a
amputao como voluntria) dessa componente imperial da nossa imagem, tudo pareceu passar-se como se jamais tivssemos tido essa fagimerada existncia imperial e em nada nos afetasse o regresso aos estreitos e
morenos muros de pequena casa lusitana.
Eduardo Loureno escrevia assim entre o vero de 1997 e a primavera de 1978, entre S. Pedro em Portugal e Vence na Frana. Hoje a imagem imperial no estar to ausente do imaginrio de alguns como parecia naquele momento. Mas ento como detectou o mesmo filsofo: Num
dos momentos de maior transcendncia da histria nacional, os Portugueses estiveram ausentes de si mesmos....1
Essa ausncia durou pelo menos um ano e meio, exatamente o
tempo necessrio para se operar a alienao da soberania portuguesa nos
territrios sob administrao colonial com a conhecida singularidade aplicada a Macau, e a exceo constituda pelo caso de Timor.
A questo africana estava no centro dos problemas nacionais a serem
resolvidas e estivera certamente na origem da sublevao das Foras Armadas. Como afirmou transparentemente o ento general Costa Gomes:
O que tornou inevitvel a revolta do 25 de Abril foi a necessidade de resolver o problema da guerra em frica. As reivindicaes dos oficiais do Quadro Permanente foram quase na totalidade satisfeitas... o problema colonial
era, no s o mais importante, como aquele que os oficiais conheciam melhor, tendo certamente chegado concluso de que s poderia ser solucionado depois de derrubar o regime ento existente.2

A grande clivagem entre os oficiais do MFA e o General Spnola situou-se exatamente no rumo a dar descolonizao e esteve presente na

341

Jos Medeiros Ferreira

elaborao e na apresentao do programa do movimento das Foras Armadas, tendo o general Spnola conseguido suprimir da verso original a
referncia ao direito das colnias autodeterminao.
A visita a Lisboa do secretrio-geral da ONU, Kurt Waldheim, de 2 a
4 de agosto de 1974, foi um marco importante nas presses internacionais
para que a descolonizao portuguesa se fizesse o mais rapidamente possvel, sem que isso viesse a significar um maior empenho das Naes Unidas
nas conversaes entre as partes.
Nos contactos que o secretrio-geral da ONU manteve com os responsveis portugueses foi explicada a posio das Naes Unidas quanto
questo dos territrios sob administrao colonial, assim como a atitude da
Organizao de Unidade Africana (OUA) sobre o reconhecimento dos movimentos de independncia como os representantes desses territrios.3
As conversaes entre Kurt Waldheim e as autoridades portuguesas
deram mesmo lugar a um comunicado conjunto Portugal-ONU em que se
explicita o entendimento da ONU e da OUA sobre essa matria assim como
o comprometimento de Portugal a respeitar as pertinentes solues da ONU
e a reconhecer o direito autodeterminao e independncia de todos os
territrios ultramarinos sob a sua administrao, posio j consagrada
constitucionalmente com a publicao de Lei 7/74 de 26 de julho.
Alis s a publicao dessa lei ter permitido a visita do SecretrioGeral da ONU naquela altura.
As relaes entre Portugal e a ONU durante o processo de descolonizao no foram depois to intensas conforme deixara antever esse encontro. Notar-se- at uma dbil presena da ONU no processo de descolonizao em causa.
A nomeao do professor Veiga Simo para chefe da Misso Portuguesa junto da ONU inscrevia-se no entanto no propsito de criar
responsabilidades aos Movimentos de Libertao no s perante as autoridades portu gu esas com o, tam bm , peran te en tidades in tern acion ais
idneas que, co-responsabilizando-se no processo serviriam de foras moderadoras aos setores extremistas.4
Tal poltica teria sido frontalmente contrariada pela Comisso Coordenadora do MFA e pelo general Costa Gomes, que consideravam aquela
estratgia como abertura interferncia da ONU no processo de descolonizao e, conseqentemente, desprestigiante para o pas. A nica via, diziam, era a das negociaes diretas com os Movimentos de Libertao.5
O MFA ir ter, de qualquer maneira, um papel decisivo na definio
dos interiocutores para as negociaes de trgua, cessar-fogo, paz e transferncia de soberania. Neste particular as condies militares nos teatros de
guerra tiveram uma enorme influncia e foram os responsveis pelo MFA
na Guin, em Moambique e em Angola que pressionaram Lisboa a legiti-

342

APS O 25 DE ABRIL

mar as conversaes locais por meio de negociaes com os movimentos


independentistas que tinham de fato expresso militar.
Insista-se neste ponto. Os militares portugueses privilegiaram como
interlocutores necessrios para o cessar-fogos os movimentos que tinham
expresso armada nos territrios em guerra. Como esses movimentos no
desligaram a questo do cessar-fogo da questo do acesso independncia,
as transferncias de soberania fizeram-se por meio daqueles movimentos.
No por eles aparecerem envolvidos em ideologias esquerdistas mas por
terem adotado a via do combate militar para impr a autodeterminao.
A questo do cessar-fogo s dizia respeito aos territrios da Guin, de
Moambique e de Angola. O que acontecer nas outras colnias, nomeadamente em Timor j de outra natureza e no entra neste ciclo inicial do
cessar-fogo. As preferncias posteriores em Angola e Timor no vero de
1975 no so da mesma natureza interpretativa do ciclo do cessar-fogo do
ltimo semestre do ano de 1974. O princpio de que a paz se negociava entre quem estava em guerra apareceu com toda a naturalidade aos oficiais
que estavam na Guin, em Moambique e em Angola. Nas zonas de combate os militares tomaram a iniciativa de estabelecer conversaes para se
alcanar trguas imediatas. Alm disso pressionaram a fim de que as autoridades portuguesas evoluissem para posies mais conformes com as realidades militares e mais consensuais em termos internacionais. O membro
da Comisso Coordenadora da MFA, e Ministro dos Governos Provisrios,
Melo Antunes, ser a expresso poltica dessa confluncia de critrios.
S mais tarde se poder detectar a preferncia poltica por certos movimentos de independncia sobretudo nos casos de Angola e Timor. Mas
quer na Guin quer em Moambique foi a situao militar que ditou o
comportamento dos oficiais do MFA, dos militares em geral, e tambm dos
negociadores governamentais.

GUIN-BISSAU
A descolonizao da Guin apresentava-se como a de mais difcil negociao poltica, j porque o PAIGC declarara unilateralmente a independncia da Guin-Bissau em 24 de setembro de 1973 em Madina de Bo e
o fato fora reconhecido por 82 pases membros da ONU, j porque o PAIGC
pretendia ver tambm reconhecido o direito independncia para o arquiplago de Cabo Verde.
Essas condies so apresentadas logo na primeira reunio entre as delegaes do governo portugus e do PAIGC em Londres, a 25 de maio de 1974.
A particularidade de o general Spnola ter sido Governador-Geral da
Guin no teria ajudado a rapidez das tomadas de deciso sobre essas matrias.

343

Jos Medeiros Ferreira

A apreciaco de Mrio Soares sobre o envolvimento de Spnola no


processo de descolonizao da Guin no foi muito positiva na altura:
Indiscutivelmente, a sua atuao no beneficiou em nada o processo. Pelo
contrrio: a sua intransigncia, a sua incapacidade de avaliar corretamente a
situao, impedem-nos de assinar em Londres um acordo com o PAIGC em
melhores condies do que aquele que ns tivemos finalmente de assinar
trs meses mais tarde, em Argel.6

As reunies de 25 de maio e de 13 de junho entre o PAIGC e a delegao portuguesa, presidida por Mrio Soares na sua qualidade de MNE,
so inconclusivas. S depois da tomada de deciso do MFA na Guin, numa
assemblia realizada em 1 de julho, se consegue cortar o n grdio da
questo, ou seja, passar da fase da discusso sobre a natureza da descolonizao (se com consulta eleitoral, se com um maior ou menor perodo transitrio) fase da transferncia do poder.
Nessa moo, aprovada pelo MFA da Guin, numa reunio com delegaes de base de todas as unidades militares, no qual participaram cerca
de oitocentos militares, considera-se que a ideologia do PAIGC tem uma
grande adeso popular e domina o panorama poltico da Guin; que os grupos polticos surgidos naquele territrio aps o 25 de Abril careciam de legitimidade e de representatividade apenas tendo servido para envenenar
o ambiente poltico da Guin; que o reconhecimento internacional do
PAIGC um fato to forte que o nmero de pases que reconhecem a repblica da Guin-Bissau j superior ao daqueles que mantm relaes diplomticas com Portugal; que a Resoluo n. 03061 da Assemblia Geral
da ONU de 9 de setembro de 1973 torna ilegal a presena de tropas portuguesas; que o PAIGC o nico agrupamento poltico cuja ideologia e programa asseguram a conivncia e a igualdade de direitos de todas as etnias
da Guin e o respeito pelos legtimos interesses dos europeus radicados, e
assim por diante.
Como corolrio de todos esses considerandos que revelam uma
grande ateno quer a situao militar quer a situao internacional, essa
reunio deliberou:
1. Repudiar qualquer soluo local e unilateral que no fosse aceita
pelo governo central de Portugal;
2. Exigir que o governo portugus reconhecesse imediatamente e
sem equvocos a Repblica da Guin-Bissau e o direito autodeterminao e independncia dos povos de Cabo Verde;
3. Exigir que fossem imediatamente reatadas as negociaes com o
PAIGC, no para negociar o direito independncia, mas to s os mecanismos conducentes transferncia dos poderes.7
Em sntese, nessa reunio de cerca de oitocentos militares, em 1 de
julho de 1974, reconhece-se a legitimidade exclusiva do PAIGC como re-

344

APS O 25 DE ABRIL

presentante do povo da Guin e exige-se o recomeo das negociaes entre as autoridades de Lisboa e aquele movimento de independncia, conversaes que haviam sido interrompidas por deciso do Presidente da repblica Antnio Spnola.
Semanas mais tarde, nas matas do Cantanhez, uma delegao de militares portugueses, chefiada pelo governador da Guin Carlos Fabio, e
uma delegao do PAIGC, chefiada por Jos Arajo, concordam num cessar-fogo em todo o territrio da Guin.
O acordo de Argel, assinado em 26 de agosto de 1974 e ratificado
pelo presidente Spnola em 29 do mesmo ms, reconhecia dois dados de fato: a Repblica da Guin-Bissau e o cessar-fogo, j estabelecido no interior
da Guin.

CABO VERDE
O acordo assinado em 26 de agosto de 1974 entre o Governo Portugus e o PAIGC continha, alm dos preceitos destinados transferncia de
soberania da Guin, o reconhecimento do direito do povo do arquiplago
de Cabo Verde autodeterminao e independncia. As negociaes para
esse efeito seriam, no entanto, separadas das conversaes sobre a Guin
depois daquele acordo.
Dos nove artigos do Acordo entre o Governo Portugus e o PAIGC,
dois so dedicados a Cabo Verde.
essa sem dvida uma das decises mais discutveis do processo de
descolonizao dado que a unidade pretendida pelo PAIGC entre a Guin e
Cabo Verde acabou por no se verificar. Mas no menos verdade que a
Assemblia Geral da ONU havia reconhecido na sua Resoluo A/2918
(XXVII) de 14 de novembro de 1972 o dito PAIGC como representante
nico e autntico do povo da Guin e Cabo Verde.
Enquanto a descolonizao da Guin era obviamente inevitvel em
1974, j a independncia concedida ao arquiplago de Cabo Verde foi um
ato voluntrio do poder em Portugal e tem, pois, uma interpretao mais
vasta radicando nas causas da descolonizao, que no se resumem s necessidades dos militares e presso das Foras Armadas para o efeito.
O processo de transferncia de soberania de Portugal para a Repblica de Cabo Verde teve as suas especificidades. Assim no h qualquer acordo publicado, como os de Alger, Lusaca ou Alvor realizados para a GuinBissau, Moambique ou Angola respectivamente, embora tivesse havido
um documento formalizado em 19 de dezembro de 1974 no qual se previa
a eleio de uma assemblia constituinte em Cabo Verde que decidiria sobre o futuro poltico do territrio.
No plano jurdico existiu, sim, o Estatuto Orgnico de Cabo Verde
para o perodo de transio que terminaria em 5 de julho de 1975 (Lei n.
13/74 de 17 de dezembro).

345

Jos Medeiros Ferreira

Nesse Estatuto so definidos os rgos polticos de transio: um alto


comissrio, nomeado pelo presidente da Repblica, a quem competia representar a soberania portuguesa e era o comandante-chefe das Foras Armadas no arquiplago; um Governo de Transio, composto pelo Alto Comissrio enquanto Primeiro Ministro e mais cinco ministros, trs nomeados pelo PAIGC e dois pelo presidente da Repblica Portuguesa. Esse governo teria em acumulao os poderes legislativo e executivo mas o seu fim
principal era o de conduzir o territrio independncia por meio de eleio, por sufrgio direto e universal, prevista para 30 de junho de 1975, de
uma Assemblia Constituinte, prevista para a mesma data, dotada de plenos poderes soberanos para decidir sobre o futuro de Cabo Verde e sobre o
seu regime poltico. Logo a 5 de julho, essa Assemblia declara a independncia da Repblica de Cabo Verde. No se caracteriza a nova repblica
como Popular como o faro a Guin, Moambique e Angola.
No deixa de ser significativo saber-se que as operaes de preparao dessas eleies culminaram com um recenseamento robusto tendo-se
registrado cerca de 120 mil cidados cabo-verdeanos. Apresentou-se apenas uma lista com os nomes de 56 candidatos a deputados sob a forte influncia poltica e militar do PAIGC.
Logo depois das independncias da Guin e de Cabo Verde foi evidente que ambos os territrios queriam aparecer como Estados na sociedade internacional. Tanto assim que, quer Bissau, quer a Praia, tm a sua prpria representao diplomtica no exterior, a comear por Lisboa. A unidade poltica dos dois territrios no estava na ordem do dia. Mas ambos haviam prestado servios recprocos para o acesso independncia um do outro: os militantes cabo-verdianos do PAIGC lutando poltica e militarmente
na Guin e ajudando a criar uma situao militar nesse territrio que levaria as autoridades colonialistas a encararem a a prpria derrota. Pelo seu
lado, o PAIGC s aceita o cessar-fogo na Guin se o princpio da independncia tambm for estendido ao arquiplago de Cabo-Verde.
Prestados esses servios mtuos, cada qual seguiria o seu caminho
depois da independncia.
A facilidade com que o Governo Portugus, nesse vero de 1974, ir
aceitar o acesso independncia dos arquiplagos de Cabo Verde e So
Tom e Prncipe, onde no havia luta armada, d a idia que as autoridades de Lisboa pretendem resolver de uma vez por todas a questo dos territrios ultramarinos, vistos doravante como possveis sorvedouros das finanas metropolitanas por meio dos chamados Planos de Fomento, e como
passveis de virem a constituir, no futuro, focos de tenses polticas ao retardador. Assim, ao mito do Portugal Uno e Indivisvel do Minho a Timor,
ope-se a metodologia da descolonizao uniforme. a forma que a metrpole europia encontra de se libertar de uma vez por todas da lgica ultramarina. o centro que dispensa a periferia.

346

APS O 25 DE ABRIL

A descolonizao assim concebida no se destina apenas a ceder nos


territrios onde a situao militar m. Ela estende a sua compreenso a
todas as parcelas que possam pesar no futuro sobre a lgica da liberdade de
ao de Lisboa. Da a acelerao dos processos em Cabo Verde, S. Tom e
Timor.

S . TOM E PRNCIPE
Se a luta armada na Guin-Bissau teve conseqncias sobre o acesso independncia do arquiplago de Cabo Verde, onde o PAIGC no tivera expresso militar, a independncia de Cabo Verde, por sua vez, vai constituir um paradigma para a transferncia de soberania noutro arquiplago:
o de S. Tom e Prncipe.
Em S. Tom e Prncipe a represso colonial havia sido brutal no passado mesmo sem luta armada por parte dos emancipalistas. Quando em
1960 fundado o Comit de Libertao de S. Tom e Prncipe (CLSTP), ainda est bem viva na memria de todos o massacre de Batep ocorrido em
fevereiro de 1953 em que teriam sido mortos mais de mil so tomenses por
se recusarem a trabalhar nas roas de cacau.
O ambiente local no pois muito propcio defesa da manuteno
da soberania portuguesa por parte da populao de S. Tom e Prncipe.
Pelo seu lado a ONU havia reconhecido desde 1962 o CLSTP como
nico e legtimo representante do povo do arquiplago. Quando surge o 25
de Abril os seus principais dirigentes estavam exilados na Repblica do Gabo onde, em 1972, haviam alargado o conceito de Comit de Libertao
para o de Movimento de Libertao.
No caso da descolonizao de S. Tom tambm tem particular relevncia o papel da visita a Portugal do secretrio-geral da ONU, Kurt Waldheim, em agosto de 1974 e das repetidas reunies de militares em servio
no territrio. Assim numa reunio realizada em S. Tom, a 12 de outubro
de 1974, os oficiais dos trs ramos das Foras Armadas declararam o MLSTP
como nico interlocutor para as negociaes que se avizinham.
Essas negociaes principiam no ms seguinte em Argel, tendo sido
assinado um Protocolo de Acordo entre o Governo portugus e o MLSTP
em 26 de novembro. Nesse acordo, o Governo portugus reconhecia o
MLSTP como representante legtimo do povo daquele arquiplago. semelhana dos casos anteriores, os rgos polticos para o perodo de transio
eram um alto-comissrio e um Governo de Transio com competncias legislativa e executiva.
Embora oficialmente se trate de um Protocolo de Acordo,8 este diploma est mais aperfeioado nos seus termos e no articulado jurdico geral do
que os anteriores acordos similares: so dezessete os seus artigos em que,

347

Jos Medeiros Ferreira

para alm dos rgos polticos de transio, est prevista a constituio de


um Banco Central em S. Tom com o ativo e o passivo do Departamento
de S. Tom e Prncipe do Banco Nacional Ultramarino. A eleio da assemblia representativa do povo de S. Tom e Prncipe conformada com os
princpios da Declarao Universal dos Direitos do Homem. Nota-se nesse
protocolo um apuramento das clusulas da descolonizao como resultado
dos anteriores acordos celebrados por Portugal na matria, nomeadamente
o Acordo de Lusaca entre Portugal e a Frelimo.
A principal tarefa dos rgos de transio era a de prepararem as
condies para a eleio de uma Assemblia Constituinte. Mas nem em S.
Tom o processo de transio foi isento de peripcias. No interior do prprio governo no se entenderam os membros da Associao Cvica com os
membros do MLSTP, e tambm entre o governo e o alto-comissrio portugus (Pires Veloso) haver uma prova de fora, em maro de 1975, sobre a
dissoluo do contigente militar indgena que o MLSTP pretendia ver constitudo em milcia popular antes das eleies, tendo o alto-comissrio conseguido impr o acordado na Arglia sobre essa matria. Com um corpo
eleitoral de cerca de 21 mil membros, procedeu-se eleio da Assemblia
Constituinte que, em 12 de julho de 1975, proclamava a independncia da
Repblica de S. Tom e Prncipe.
S. Tom e Prncipe um dos primeiros territrios independentes a
encetar uma poltica de aproximao a Portugal pro meio assinatura de vrios acordos de cooperao em domnios muito diversos.

M OAMBIQUE
As presses para Portugal clarificar a sua posio quanto descolonizao eram tambm muito fortes no plano internacional. As dvidas sobre o comportamento do Estado portugus na matria eram tantas que at
os governos da Zmbia e da Tanznia procuram no vero de 1974 o separatista branco Jorge Jardim para avaliarem as possibilidades de independncia mais claras para Moambique de imediato.
Entre junho e julho de 1974, ou seja nos dois meses de maior indefinio sobre o rumo a dar questo ultramarina, vrias entidades procuram Jorge Jardim, encarando este como algum que, sua maneira, pretendia a transferncia da soberania de Portugal para Moambique.
Lisboa est pois, na mira de todos.
H aqui um conjunto de circunstncias que concorrem para que os
poderes africanos se auscultem mutuamente perante o que julgam ainda
ser a tentativa de protelamento da descolonizao por parte do novo poder
poltico instaurado em Portugal.

348

APS O 25 DE ABRIL

Ora, esse novo poder poltico em Portugal atravessava ento, e precisamente por causa da natureza da descolonizao, uma verdadeira crise que s
terminaria com a queda do 1 Governo Provisrio prisidido pelo professor Palma Carlos e a formao de um 2 Governo Provisrio chefiado por um militar,
o coronel Vasco Gonalves. Mais exatamente era o aparecimento do MFA como
agente poltico determinante. Como j havia concludo Jorge Jardim o centro
de deciso mais vlido residia no MFA e fiquei de lhes fazer chegar as nossas
recomendaes. 9
O centro principal de deciso era o MFA no s em Portugal como ainda em Moambique e nos outros territrios ultramarinos.
Em Moambique o papel dos militares no pra de crescer nesse perodo. Deste modo o MFA de Moambique envia, a 22 de julho de 1974, uma
mensagem para a Comisso Coordenadora do Movimento em Lisboa recomendando o reconhecimento imediato da Frelimo como legtimo representante do
povo moambicano e do direito desse povo independncia.
Essa reunio realizou-se em Nampula tendo as comisses regionais do
MFA de Cabo Delgado e de Tete anunciado a que davam um prazo at o fim do
ms de julho para se encontrar um acordo global de cessar-fogo com a Frelimo;
caso contrrio as tropas estacionadas nos referidos distritos imporiam um cessarfogo unilateral. Mais, o pessoal dos helicpteros negava-se a fazer os reabastecimentos das tropas terrestres depois daquele prazo.10
Em Moambique, como alis na Guin, a seleo do interlocutor
para as negociaes sobre a transferncia de soberania foi claramente ditada pela existncia de um movimento que lutara militarmente contra a presena do colonialismo portugus. A Frelimo foi esse movimento para Moambique. Esse entendimento entre as Foras Armadas portuguesas e a
Frelimo deitar por terra a procura de outras vias como as procuradas por
Jorge Jardim e por Joana Simio.
O percurso desde o 25 de Abril at ao Acordo de Lusaca de 7 de setembro foi muito acidentado no interior de Moambique, com o aparecimento de
vrios movimentos que tentavam tirar Frelimo pelo menos o exclusivismo de
representatividade poltica no territrio. Apareceu assim o Grupo Unido de Moambique (GUMO) que viria a dissolver-se em fins de junho de 74 em razo de
sua conhecida proximidade ao governo colonial anterior. Mas tambm surgem
outros agrupamentos que proclamam propsitos semelhantes como o Movimento Federalista de Moambique ou a Frente Independente de Convergncia Ocidental (FICO). Ou os que querem concorrer no terreno prprio Frelimo como o Movimento de Libertao de Moambique (MOLIMO).
Com efeito, logo nos princpios de junho, comeam em Lusaca encontros exploratrios nos quais participam o ministro portugus dos Negcios Estrangeiros Mrio Soares e Samora Machel, presidente da Frelimo, embora sem
resultados conclusivos. Reabrem as hostilidades na Zambzia e seguem-se as
peripcias relatadas por Antnio Spnola no seu livro Pas sem rumo.

349

Jos Medeiros Ferreira

Finalmente o MFA, dentro do princpio de que a paz se faz entre


quem est em guerra, decide pelo lado portugus que as negociaes devem fazer-se e dar resultados rpidos.
O Acordo entre Estado Portugus e a Frelimo, celebrado em Lusaca
em 7 de setembro de 1974, muito claro nos seus objetivos. Trata-se de um
acordo conducente independncia de Moambique, embora o seu ponto n 1 proponha a transferncia progressiva dos poderes que o Estado
detinha. J o ponto n 2 decide que A independncia completa de Moambique ser solenemente proclamada em 25 de junho de 1975, dia do aniversrio da Fundao Frelimo.11
O Acordo de Lusaca estabelece os rgos de governo transitrio e oficializa o cessar-fogo j assegurado na prtica entre as partes militares.
Os rgos do governo transitrio foram constitudos por um AltoComissrio, de nomeao do presidente da Repblica Portuguesa, por um
Governo de Transio nomeado por acordo entre a Frente de Libertao de
Moambique e o Estado Portugus, e por uma Comisso Militar Mista nomeada tambm por acordo entre o Estado Portugus e a Frente de Libertao de Moambique (art. 3.).
Do ponto de vista financeiro tm particular importncia os artigos 14
e 16 que tratavam da responsabilizao por parte da Frelimo dos compromissos assumidos pelo Estado Portugus em nome de Moambique desde
que tenham sido assumidos no efetivo interesse deste territrio, e de constituio em Moambique de um Banco Central que teriam funes de banco emissor sendo para o efeito necessrio transferir para aquele Banco, as
atribuies, o ativo e o passivo do Departamento de Moambique do Banco Nacional Ultramarino, respectivamente.
Enquanto em 7 de setembro de 1974 se celebra em Lusaca o Acordo entre o Estado Portugus e a Frente de Libertao de Moambique para
a transferncia de soberania, em Loureno Marques assiste-se insurreio
de foras contrrias ao processo de descolonizao, prontamente dominadas pelos oficiais do MFA. Este episdio ir marcar as relaes futuras entre militares e entre o MFA e a Frelimo.
Da por diante fica entendido que o processo de descolonizao em
Moambique ir levar a um grande xodo de portugueses radicados naquele territrio apesar do artigo 15. do Acordo de Lusaca.
O general Spnola, insuspeito de qualquer simpatia pelo Acordo de
Lusaca no deixou de reconhecer que apesar de tudo, muito dependeria
da forma como o Acordo fosse posto em execuo, no s no campo imediato correspondente ao perodo do Governo de Transio, como depois da
independncia.
Ora, o Acordo de Lusaca aparece assinado pelo lado da Frelimo apenas por Samora Machel, enquanto pelo lado portugus figuram oito nomes

350

APS O 25 DE ABRIL

representativos do Governo Provisrio, do MFA e do Concelho de Estado,


pondo-se assim a Frelimo a coberto de qualquer mudana de responsveis
em Lisboa que invalidasse o Acordo.
Mas at independncia, em 25 de setembro de 1975, Samora Machel manteve-se fora do territrio de Moambique permanecendo afastado dos compromissos estabelecidos durante o perodo de transio.12
Permanecer afastado dos compromissos estabelecidos durante o perodo de transio no era de molde a criar um clima de confiana entre os
portugueses estabelecidos e residentes em Moambique: um fator a mais
no desencadeamento do amplo fenmeno dos retornados que marcar a
descolonizao de Moambique e de Angola assim como a caracterizao
social de Portugal aps a independncia das colnias. O que se analisar
mais adiante.
Alm do fenmeno do regeresso a Portugal de milhares de residentes em Moambique (o Censo Geral da Populao de 1981 cifrou-os em
164.065), a descolonizao desse territrio traria grandes conseqncias financeiras derivadas dos compromissos anteriores do Estado Portugus referentes constituio da barragem de Cabora-Bassa.
Com efeito, os credores do Consrcio, criado por decreto-lei n
49225 de 4 de setembro de 1969, exigiram que a dvida da hidroeltrica de
Cabora-Bassa fosse assumida sob a forma de dvida direta pelo Estado portugus, o que teve como conseqncia o aumento muito significativo da dvida direta do Estado.

A NGOLA
O processo de descolonizao de Angola foi o mais complexo e aquele que mais conseqncias internas e internacionais teve.
Foi o mais complexo, porque do ponto de vista militar a situao no
era alarmante embora se mantivessem cerca de 65 mil homens em armas
do lado portugus. Por outro lado, o entendimento entre os movimentos de
independncia no se apresentava pelas realidades tnicas e pelas rivalidades polticas em que se baseavam: FNLA, UNITA e MPLA eram movimentos
armados rivais. No territrio angolano o elemento branco era significativo e
tinha expectativas de poder desempenhar um papel poltico relevante. Finalmente, a diviso entre os movimentos de libertao veio dar azo a uma
internacionalizao dos conflitos internos que muito perturbou o acesso
independncia de Angola e o perodo subseqente, aumentando a rivalidade entre a URSS e os Estados Unidos na frica negra.
O processo de descolonizao de Angola foi tambm aquele que maiores preocupaes provocou em Portugal. Angola estivera sempre no centro

351

Jos Medeiros Ferreira

das polticas ultramarinas de Lisboa, e era, em ltima instncia o que motivara a construo da doutrina do Espao Econmico Portugus em 1961.
Ora, mais do que a situao militar no territrio angolano em 1974,
o que funcionava mesmo mal, em relao de articulao entre Portugal e
Angola, era o desequilbrio comercial agravado pelo desequilbrio da balana de pagamentos portuguesa. O problema dos atrasados apenas veio dar
uma expresso financeira a essa negativa relao.
Logo em outubro de 1963 Angola foi obrigada a recorrer ao crdito
automtico do Fundo Monetrio da Zona Escudo, e em novembro desse
mesmo ano esgotara j os limites mximos do crdito a que tinha direito,
tendo a partir de ento comeado a acumulao de atrasados, ou seja, de
pagamentos devidos metrpole e no liquidados.
A partir de 1964, os atrasados cresceram irreversivelmente.
A credibilidade do sistema foi seriamente posta em causa quando o volume
de atrasados se tornou insustentvel, na ordem dos 9 milhes de contos, em
1971.13

Essa crescente dificuldade nos pagamentos de Angola metrpole


levou os industriais portugueses a investirem diretamente na produo em
Angola, contribuindo assim para uma drenagem de capitais de Portugal
para Angola, ao arrepio da industrializao da metrpole.
Acresce que, como esse desequilbrio na balana de pagamentos se
devera falta de proteo aduaneira no territrio angolano, as autoridades
provinciais vo conseguir introduzir em fins de 1971 certas medidas restritivas s importaes de bens e servios metropolitanos (decreto 478/71
de 8 de novembro). O decreto considerava que toda a soluo realista do
problema seria em bases restritivas.
A grande novidade destas medidas residia na generalizao do registro prvio para as importaes de mercadorias que passa a ser extensivo
s compras na Metrpole.14
Estas medidas restritivas so agravadas por um despacho do Governo
Geral de Angola de 17 de janeiro de 1972 que insere disposies sobre a concesso de licenas de importao de bens de equipamento, limitando-o nos
casos em que a respectiva aquisio no beneficie de financiamentos externos ou de condies de pagamento diferido, assegurado pelo fornecedor.
Deste protecionismo angolano resultou uma acelerao da tendncia centrfuga perante a Metrpole: no sendo a principal fornecedora de
bens de equipamento, matrias-primas e produtos intermedirios necessrios industrializao de Angola, a poltica de licenciamento na importao
veio, por um lado, reforar o papel do estrangeiro nas importaes angolanas, e, por outro, dar novo mbito produo domstica essencialmente
dirigida sua procura interna.15

352

APS O 25 DE ABRIL

O que precipitou a descolonizao de Angola foi assim mais da ordem das razes econmicas do que motivaes militares.
certo que a situao militar no teatro de operaes de Angola no
era to grave como o que se vivia em Moambique e na Guin. Mas, mesmo assim, o volume dos efetivos militares em Angola no decrescia. Pelo
contrrio, exigia cada vez mais tropas mobilizadas.
Se antes dos acontecimentos de maro de 1961 o efetivo em Angola
era de apenas 1.500 soldados metropolitanos, j no fim desse ano estacionam 28.477 homens. Esse nmero no deixar de subir, com a nica exceo do ano de 1972. Assim, o efetivo total das tropas era, em 1973, de
65.592 homens, sendo 27.819 de recrutamento local e 37.773 mobilizados
de Portugal.16
Mas se a guerra no colocava qualquer questo urgente como em
Moambique ou na Guin, o simples fato de haver no territrio mais de 60
mil homens em armas atribua ao elemento militar uma posio determinante para o futuro daquele territrio. E na medida em que eram os oficiais
da metrpole que controlavam o dispositivo militar, principalmente naquele territrio, era necessrio contar com ele no perodo em que a descolonizao se ia decidir.
Foi o caso de Angola onde, numa reunio realizada em Luanda em
18 de setembro de 1974, cerca de quinhentos oficiais se pronunciaram no
intuito de a descolonizao ser protagonizada por aqueles movimentos que
haviam adquirido uma legitimidade revolucionria pelo fato de terem lutado contra o regime colonialista:
Foi na noite de 18 de setembro que se reuniram no salo nobre do Palcio
do Governo cerca de 500 oficiais dos trs ramos das foras armadas que vieram a aprovar uma moo por 427 votos a favor, 7 contra e 48 abstenes.
Considerava o seu texto, no essencial a necessidade de respeitar o j proclamado princpio do direito autodeterminao e independncia dos povos
colonizados.17

Esta reunio de militares em Luanda efetuou-se no preciso momento em que em Lisboa o general Spnola pretendia chamar a si o caso especial de Angola.
Exatamente trs dias antes efetuara-se na Ilha do Sal um encontro
entre o presidente portugus e o presidente Zairense, Mobutu. Nesse encontro de 15 de setembro teriam sido tratados temas como os de Cabinda,
possveis contactos com Holden Roberto para efeitos de cessar-fogo no norte de Angola, e o comportamento dos ex-gerdarmes catangueses refugiados
naquela provncia.
A entrevista entre Spnola e Mobutu, realizada na ilha do Sal em cabo
Verde em 14 de Setembro de 1974, foi interpretada na frica como um con-

353

Jos Medeiros Ferreira

vite para que a FNLA avanasse sobre Angola, onde entretanto uma sua coluna militar havia sido feita prisioneira na regio de Toto pelo exrcito portugus. E a declarao feita por Spnola, em 22 de setembro, de que assumiria pessoalmente a responsabilidade da descolonizao de Angola ter sido
acolhida pelo elemento branco a residente, pela FNLA e pela Unita.18
O ltimo ato poltico ligado descolonizao do general Spnola
como presidente da Repblica foi exatamente a realizao de uma reunio
com vrios elementos da Provncia de Angola, realizada no Ministrio de
Coordenao Interterritorial em 25 de setembro a que tambm assistiu o
ministro Almeida Santos.
Mais do que todo o resto foi a descolonizao que dividiu Spnola e
o MFA. Essa diviso iniciara-se com a supresso j referida na alnea c do
ponto 8 do Programa do MFA, na noite de 25 para 26 de abril, e ir aprofundar-se na reunio da Manuteno Militar em 13 de junho para culminar na demisso do primeiro presidente da Junta de Salvao Nacional em
30 de setembro. Spnola no se entendia com ningum quer sobre a Guin, quer sobre Moambique, quer sobre Angola. Nem interna nem externamente, a sua poltica encontrava apoios que a viabilizassem.
Os acontecimentos do 28 de setembro de 1974, se desencadeados
por razes atinentes evoluo poltica interna portuguesa, acabaram por
ter incidncia sobretudo na questo da descolonizao de Angola.
O impacto destes acontecimentos em Angola no foi porm abrupto. A FNLA continuou a sua penetrao no interior do norte de Angola depois do 28 de setembro e, aps conversaes com dirigentes do MFA em
Kinshasa, aceitou um cessar-fogo com o exrcito portugus que entrou em
vigor em 15 de outubro.
No era porm o primeiro movimento guerrilheiro a faz-lo. J em
14 de junho de 1974 a Unita, pelo prprio Jonas Savimbi, havia aceito formalmente a suspenso das hostilidades num encontro com representantes
das Foras Armadas portuguesas (tenente-coronel Passos Ramos, Major Pezarat Correia, capito Moreira Dias) na Zona Militar Leste, numa regio do
rio Lungue-Bungo controlada por foras da Unita.19
A partir da a Unita pde desenvolver atividade poltica naquela parte do territrio angolano.
Por sua vez, o MPLA, por meio de Agostinho Neto, assinou um cessar-fogo, em 21 de outubro, com uma delegao portuguesa presidida pelo
comodoro Leonel Cardoso, e composta pelo major Emlio da Silva, brigadeiro Ferreira de Macedo e major Pezarat Correia. Foi na Chana do Lunhamege, no Leste, perto da fronteira com a Zmbia.
A partir da o MPLA vai encetar uma estratgia de implantao poltica do poder popular, organizado em nvel de bairro e de empresa e da

354

APS O 25 DE ABRIL

ocupao de municpios. Depois vai estender as suas atividades aos centros


urbanos nas reas habitacionais dos Quimbundos e dos Bacongos.
Em Kinshasa, a 12 de outubro, autoridades portuguesas tm uma
reunio com o presidente do Zaire, Mobutu, e com o presidente do FNLA,
Holden Roberto, e chegam a um acordo sobre a cessao das hostilidades a
partir do dia 15 de outubro.
Em 28 de outubro uma delegao presidida pelo almirante Rosa
Coutinho encontra-se perto da cidade do Luso (atual Luena) com uma delegao da Unita presidida por Jonas Savimbi. A Unita passa a desenvolver
a sua atividade em vrias cidades incluindo Lobito e Benguela. Em novembro a Unita marca presena em Luanda.
O principal, no entanto, passava por um entendimento entre os trs
movimentos de libertao, FNLA, MPLA e Unita, pois esses movimentos
apareciam como rivais.
A cimeira de Alvor no Algarve foi precedida de um encontro entre
os trs movimentos FNLA, MPLA e Unita, realizado em Mombaa entre 3
e 5 de janeiro de 1975. Concordam em negociar com Portugal na base de
uma plataforma da qual constatavam, como pontos fundamentais, a excluso de qualquer outra organizao angolana na fase de conversaes e
transferncia de soberania, a necessidade de um perodo de transio, o
princpio da manuteno da integridade territorial de Angola, nela incluindo explicitamente o enclave de Cabinda em que foras da FLEC pretendiam
a separao de Luanda, e ainda critrios bastante abrangentes para uma futura lei de nacionalidade de cidados angolanos.
S ento a Unita foi reconhecida pela Organizao de Unidade Africana como movimento de libertao de Angola. Para isso contribura decisivamente a ao portuguesa, conduzida pelos responsveis governamentais,
militares e do MFA de Angola, ao reconhecerem Unita o mesmo estatuto
e legitimidade dos outros dois movimentos, como alis lhe era devido em
face da situao militar objetiva que vigorava em 25 de Abril de 1974.20
O acordo de Alvor entre o Estado Portugus e os trs movimentos
nacionalistas angolanos, assinado em 15 de janeiro de 1975, teve por base
a plataforma de compromisso alcanada dez dias antes em Mombaa pelos
representantes de Angola.
O acordo de Alvor apenas teve um comeo de execuo: Portugal
nomeou o general da Fora Area Silva Cardoso para alto-comissrio em
Angola e a 31 de janeiro tomou posse o Governo de Transio. Depois s
houve dificuldades no seu cumprimento.
Discutem-se muito as causas do fracasso do acordo de Alvor e quase
se sepultou a primeira e mais viva das evidncias: o desentendimento entre os trs movimentos de libertao co-signatrios do dito Acordo.
Chegou-se a considerar que a prpria radicalizao poltica e social em
Portugal entre o 11 de maro de 1975 e o 25 de novembro desse ano se de-

355

Jos Medeiros Ferreira

via a uma estratgia que visava promover a independncia de Angola por


meio do MPLA como forma de expandir a influncia sovitica na frica.
Estava-se em pleno perodo de conflito Leste/Oeste em que os principais protagonistas eram os EUA e a URSS, mas nem tudo o que verosmil verdadeiro.
A competio no nvel poltico, de janeiro a maio, ainda pde ser
considerada uma campanha eleitoral num sentido muito amplo. Cada movimento tentava mobilizar a seu favor a maior parte da populao, inclusive a populao branca, tendo vista as eleies para a futura assemblia
constituinte, mas tambm tendo em conta outros possveis cenrios, como
os do confronto violento.
Por outro lado e contrariamente ao estipulado no acordo de Alvor,
somente parcelas muito pequenas das Foras Armadas dos trs movimentos foram transferidas para as Foras Armadas Integradas que no conseguiram fazer muito mais do que organizar patrulhas mistas, sobretudo na
cidade de Luanda.
Cada movimento manteve as suas Foras separadas. Calcula-se que
a FNLA tivesse, por altura do acordo de Alvor, cerca de 25 mil soldados; o
MPLA perto de 6 mil assim como a Unita.21
A internacionalizao do conflito angolano em meados de 1975 teve
uma caracterstica curiosa que foi a vontade manifesta das partes em afastar Portugal da conduo do processo poltico no perodo de transio para
a independncia.
Assim, entre 16 de 21 de junho de 1975, vo reunir-se em Nakuru,
no Qunia, os presidentes dos trs movimentos signatrios do Acordo de
Alvor na ausncia de qualquer representante portugus o que contrariava
o esprito do artigo58 do acordo de Alvor, segundo o qual Quaisquer questes que surjam na interpretao e na aplicao do presente acordo e que
no possam ser solucionadas nos termos do artigo 27 sero resolvidas por
via negociada entre o Governo Portugus e os movimentos de libertao.
Ora, as concluses da cimeira de Nakuru omitem qualquer referncia ao papel de Portugal no perodo de transio e incluem mesmo disposies que contrariavam o acordo de Alvor como a medida preconizada de se
constituir um Exrcito Nacional angolano dada a ineficcia at aqui verificada nas Foras Militares Mistas.
As concluses da cimeira de Nakuru so porm mais interessantes de
um ponto de vista histrico por reconhecerem j ento a introduo pelos
Movimentos de Libertao de grandes quantidades de armamento.
Quem primeiro recebeu ajuda externa em Angola capaz de destroar o laborioso acordo de Alvor tem sido uma discusso prxima do debate sobre quem nasceu antes se a galinha ou o ovo.22
Fontes norte-americanas variadas indicam que a FNLA recebeu 300
mil dlares da CIA, no incio do ano de 1975, via Zaire,23 e depois teria usufrudo de ajudas em armamento, homens e outros recursos logsticos.

356

APS O 25 DE ABRIL

As mesmas fontes indicam que a partir de abril de 1975 o MPLA comeou a receber armamento pesado da Rssia e de outros pases da Europa de Leste que eram transportados em barcos iugoslavos at Brazaville e
depois encaminhados para Angola. Desde o momento em que o MPLA passou a dominar a cidade e o porto de Luanda, esse armamento passou tambm a entrar por a.
John Stockwell que foi um dos responsveis pela ao da CIA em
Angola, nessa altura, revelou mais tarde uma cronologia dos diferentes
apoios externos aos movimentos angolanos:24
em maio de 1974, a China envia um carregamento de 450 toneladas de armas para a FNLA e 112 conselheiros militares;
em julho de 1974, a CIA inicia o financiamento do FNLA de Holden Roberto;
em fins de 1874, os soviticos comearam a enviar armas para o
MPLA, e vo intensificar essas remessas de armamento a partir de maro
de 1975;
em julho de 1975, os EUA enviam armas para Angola e uma ajuda de 14 milhes de dlares aprovada para apoiar a FNLA e a Unita;
Em 9 de julho de 1975, o MPLA lanou a segunda batalha de Luanda.25 Por meio de uma ao combinada das suas foras regulares, as FAPLA
(Foras Armadas populares de Libertao de Angola), e da milcia da capital angolana. O conflito angolano entra, ento, numa fase de internacionalizao cada vez mais acentuada: a FNLA e a Unita recebem ajudas dos
EUA, Zaire e frica do Sul; do MPLA dos soviticos, pases da Europa de
Leste, Cuba e Congo-Brazza.
Em 22 de agosto de 1975 tendo em conta a evoluo da situao em
Angola para um autntico estado de guerra, o V Governo Provisrio, o ltimo presidido pelo general Vasco Gonalves, declara suspensa a vigncia
do acordo de Alvor no respeitante aos orgos de Governo de Angola (decreto-lei n. 458- a/75).
Portugal no conseguira impedir a internacionalizao do conflito
angolano. No ms de outubro essa internacionalizao do conflito em Angola deixa de ser caracterizada apenas pela ajuda efetiva de tropas estrangeiras em territrio angolano: uma coluna, constituda majoritamente por
tropas regulares sul-africanas, entrou em Angola proveniente do ento sudoeste africano em meados desse ms. Altamente mvel, dispondo de
uma logstica slida, e equipada num nvel tcnico superior ao que os trs
movimentos haviam alcanado naquela altura, esta coluna varreu literalmente o MPLA do seu caminho. No incio de novembro, chegou cidade
de Lobito, permitindo assim que a Unita e os seus aliados reocupassem todo
o territrio a oeste e a sul do Huambo que haviam anteriormente perdido.

357

Jos Medeiros Ferreira

Ao mesmo tempo a FNLA lanou uma nova ofensiva ao norte, e conseguiu


chegar at periferia de Luanda....26
Em data no determinada, mas possivelmente a partir de outubro de
1975, comeou a chegar pessoal cubano e mais material de guerra sovitico para apoiar o MPLA.
Cerca de 15 mil homens passaram a constituir o exrcito regular
afeto ao MPLA, dotado de carros de combate soviticos T-34 e T-54, de peas de artilharia e de msseis, e ainda de avies Mig-21.
As autoridades dos Estados Unidos estavam divididas quanto ao tipo
de apoio a fornecer aos movimentos tidos como mais pr-ocidentais como
o FNLA e a Unita: sobretudo o Congresso manisfestava-se reticente em
continuar a apoiar as operaes secretas da CIA, enquanto Kissinger havia
adotado a postura de ver os acontecimentos de Angola do prisma do conflito Leste/Oeste j um pouco tarde e perante opinies contraditrias dos
seus conselheiros.27
A atitude das autoridades portuguesas, pelo seu lado, acabou por favorecer objetivamente a estratgia do MPLA, embora o fato de este movimento se ter conseguido impor em Luanda tenha sido determinante para
aquela posio. O prprio fato de Luanda ser a capital poltica e administrativa e de possuir um porto e um aeroporto internacionais ajudou a essa
convergncia final.
Mesmo o fenmeno de retorno da populao branca por uma ponte area cujo terminal era Luanda favoreceu essa coexistncia com o poder
do MPLA na capital, e at levou a ameaas em relao aos outros movimentos. Assim a FNLA ter sido avisada que as autoridades militares portuguesas reagiriam com todos os meios sua disposio caso alguma Fora
desse movimento pretendesse ocupar Luanda antes do dia da independncia, data limite para o funcionamento da ponte area sob responsabilidade
portuguesa.
E, com efeito, tanto o alto-comissrio almirante Leonel Cardoso
como o restante pessoal portugus deixaram Luanda no dia 11 de novembro de 1975, transferindo a soberania para o Estado de Angola e no tendo reconhecido qualquer governo pois na altura declararam-se dois: um,
sediado em Luanda, tomou o nome de Governo da Repblica Popular de
Angola e era uma emanao do MPLA; outro, sediado no Huambo (Nova
Lisboa), apoiado pela FNLA e pela Unita, proclamou a Repblica Democrtica de Angola, de efmera durao.
O governo portugus resolveu no reconhecer nenhum dos governos,
o que era alis a posio da OUA naquela emergncia, e assim se manteve
at 22 de fevereiro de 1976, quando o VI Governo Provisrio, muito pressionado pelo presidente da Repblica Costa Gomes e pelo ministro dos Negcios
Estrangeiros Melo Antunes, resolveu reconhecer o governo do MPLA em
Luanda. Como se escrevia num documento doutrinal a esse propsito:

358

APS O 25 DE ABRIL

O reconhecimento da Repblica Popular de Angola a nica forma de garantir os direitos e expectativas dos refugiados e de assegurar as negociaes
relativas ao contencioso existente entre os dois Estados, derivado da situao colonial, decorram de maneira mais favorvel aos interesses nacionais.28

Alm disso o MPLA havia dado provas de pretender e de defender a


integridade territorial de Angola (como no caso de Cabinda e que coadjuvaram a resposta dos militares portugueses FLEC em vrias ocasies).
Por muito tempo se julgou que a posio portuguesa, na ocasio,
fora ditada por pretensas afinidades ideolgicas, mas como se ver mais
adiante, a propsito das conseqncias da descolonizao, essa explicao
no d conta dos mltiplos aspectos em que o acesso independncia de
Angola se processou.

O S CASOS DA NDIA, TIMOR E MACAU


Foram atpicos, no processo geral da descolonizao sada do movimento histrico do 25 de Abril, trs casos diferentes de cessao de soberania portuguesa nos territrios da ndia, de Timor e de Macau.
O caso mais difcil de analisar o de Timor por no ser claro o que
se passou naquela ilha no vero de 1975 e por suscitar as maiores polmicas sobre as atitudes das autoridades portuguesas.
Por causa de Timor, o Estado portugus cortou relaes diplomticas
com a Indonsia, em dezembro de 1975, no seguimento da invaso de Timor-Leste por tropas daquele pas. Ficou assim incompleto o processo de
descolonizao daquele territrio.

CONSEQNCIAS INTERNACIONAIS
Lisboa, desde a dcada de 1960, mais do que capital de um imprio
colonial, estava subjugada por este, gastando na defesa diplomtica e militar da manuteno da soberania poltica o melhor do seu tempo, fazenda e
energia.
Mas, se prestarmos ateno quer ao programa do MFA quer s teses
federalistas do general Spnola, mesmo depois do 25 de Abril, muitas e diversas foras nacionais apostaram na continuao de uma poltica integrada entre Lisboa, Bissau, Praia, Maputo e Luanda. O que diferia, e era o essencial, era o peso relativo atribudo s capitais referidas: Spnola tentando
libertar Lisboa do beco em que a haviam introduzido Salazar e Caetano e
querendo dar-lhe papel determinante na conduo da nova comunidade
federativa; Melo Antunes desejando a emergncia de um eixo tropical no-

359

Jos Medeiros Ferreira

alinhado constitudo pela dupla Luanda-Maputo em que Lisboa se deveria


apoiar. Vasco Gonalves aceitando teses pr-soviticas de uma descolonizao da qual resultaria o enquadramento de Lisboa numa teia tecida de
Moscou a Havana passando por Maputo e Luanda.
Embora sem se confundirem, essas diferentes posies tinham em comum
uma viso pessimista sobre a integrao mais acelerada de Portugal na CEE.
De uma forma geral, a descolonizao portuguesa foi encarada com
simpatia pela comunidade internacional sem que tivesse notado um movimento de positiva solidariedade para com este pas em transe to revolucionrio. O auxlio prestado na ponte area entre Angola e Portugal se beneficiou as pessoas que queriam partir tambm ajudou a desertificar frica
do elemento branco, e poderia ter introduzido na metrpole elementos de
pertubao social e poltica que, ao fim e ao cabo, no se produziram.
Pode-se concluir do testemunho do general Spnola um certo alheamento do ento presidente Richard Nixon dos EUA diante dos problemas
decorrentes, para Portugal, do processo de descolonizao e a fraca importncia que atribua a Portugal na transio para a independncia dos territrios africanos. Diferente parece ter sido a atitude de Moscou que ter empregado esforos, tambm em Lisboa, no sentido de o acesso independncia
das colnias portuguesas se fazer num sentido que lhe fosse mais favorvel.
Com efeito, no seguimento do estabelecimento de algumas zonas de
influncia sovitica na frica, primeiro na Somlia, depois na Etipia e fundamentalmente na repblica do Congo-Brazzaville, Moscou vai-se interessar mais empenhadamente na descolonizao portuguesa. Essa penetrao
foi facilitada pelos apoios que a URSS havia dado aos movimentos de libertao durante a luta armada contra o colonialismo portugus, apoio tanto
mais fcil quanto Moscou no tinha sequer relaes diplomticas com Portugal nem havia efetuado investimento na zona, o que sempre dificultava
a liberdade de manobra de outras potncias diante de Lisboa.
Alis um dos argumentos com que os responsveis pela poltica colonialista portuguesa procuravam sensibilizar os governos dos pases ocidentais aliados consistia em afirmar que caso Portugal sasse da frica seriam os soviticos que tomariam o seu lugar.
Assim, desde 1960 que a diplomacia britnica considerava inevitvel um aumento da influncia comunista em certas reas da frica, mas
no considerava que essa presena pudesse criar razes na medida em que
nas antigas potncias coloniais se fomentassem laos comuns com os novos
pases independentes baseados na lngua, na educao, na cultura, nas prticas administrativas e no comrcio. Era o que recomendava tranquilamente o funcionrio do Foreign Office que preparava, no vero de 1960, umas
conversaes quadripartidas sobre a frica entre Portugal, Blgica, Frana
e reino Unido, que alis foram adiadas por desinteresse dos trs ltimos pases. Era j o isolamento de fato para Portugal na questo africana.

360

APS O 25 DE ABRIL

Ora, aps a descolonizao de 1975, uma das primeiras questes que


se colocaram aos novos responsveis portugueses foi a de compreender
qual a natureza de penetrao russa em frica.
Portugal alis no era virgem na gesto de confrontos entre potncias continentais na frica Austral
Quando a Alemanha bismarquiana e sobretudo ps-bismarquiana
revelou algum interesse pela penetrao na frica, logo houve quem, em
Portugal, festejasse o aparecimento ultramarino da potncia continental e
se quisesse apoiar nela. Barros Gomes simboliza essa tendncia. Porm a
natureza da expanso alem na frica revelou-se adventcia e verificou-se
precria. Seria assim a natureza da influncia russa nas ex-colnias portuguesas como o previra desde 1960 a diplomacia britnica?
Houve quem afirmasse que o comportamento revolucionrio do PCP
em 1974-1975 se devera a esses apetites soviticos pela frica de expresso
portuguesa, apresentando-se como fato a merecer reflexo a forma como,
conseguida a independncia de Angola em 11 de novembro de 1975, quando em Luanda se estabelecera um governo do MPLA movimento cujas ligaes com Moscou eram conhecidas, logo a 25 de novembro de 1975 o
PCP se entrega em Lisboa s delcias da democracia parlamentar que antes
repudiara com veemncia e alguma brutalidade.
Esta tese foi veiculada sobretudo nos meios da produo terica estratgica mais tradicional, nomeadamente entre os estrategos da ditadura salazarista e os estrategos oficiais dos pases ocidentais: residia na importncia
geoestratgica em atribuir frica Austral a perspectiva de uma generalizao do conflito Leste/Oeste. Para os portugueses essa importncia era decisiva (controle da rota do Cabo, acesso a matrias-primas fundamentais)
pelo que os russos sempre dariam prioridade a uma operao de cerco Europa Ocidental via frica, enquanto os pensadores aliados mantinham as
posies que haviam determinado a articulao de misses da Aliana
Atlntica em certas reas localizadas da Europa Central, do Mediterrneo e
do Atlntico Norte.
Foi necessrio deixar correr algum tempo para se verificar que o interesse russo no ultrapassava facilmente o grau de aproveitamento de alguns alvos
de oportunidade para empregar um conceito desses meios de pensamento estratgico, conceito que significa no ser a que se exerce o esforo principal.
No sendo do interesse portugus acentuar a emergncia de uma
grande potncia hegemnica na regio da frica Austral, a poltica externa
portuguesa orientou-se empiricamente para os seguintes objetivos naquela
regio depois da descolonizao:
acentuar a influncia russa mas sem pretender elimin-la, dado as
circunstncias no permitirem a Moscou o estabelecimento de uma hegemonia duradoura;

361

Jos Medeiros Ferreira

promover solues que reduzissem as probabilidades de conflitos


armados na rea;
manter a sua margem de manobra entre diversas entidades ou estados interessados direta ou indiretamente na regio, de modo a no facilitar o aparecimento de uma potncia regional hegemnica;
facilitar acordos entre a RP de Moambique e a Repblica da frica
do Sul de forma a permitir a venda e a cobrana de energia eltrica fornecida
pelo funcionamento da barragem de Cabora Bassa, cuja construo e manuteno onerava pesadamente o servio de dvida externa do Estado Portugus;
apoiar a integridade territorial dos novos Estados assim como o estabelecimento da lngua portuguesa como lngua oficial;
promover uma poltica de cooperao com os PALOP em nvel bilateral ou multilateral;
O princpio da dcada de 1980, com a vitria do presidente republicano Ronald Regan nos Estados Unidos, vai presenciar um aumento da violncia armada na frica Austral, que passar a ter uma leitura mais direta
pelas grelhas de interpretao do conflito Leste/Oeste, sobretudo em Angola. Mas entre 1975 e 1980 a ao dos Estados Unidos no foi determinante
na evoluo da frica Austral, embora o fato de haver tropas cubanas em
Angola tivesse sempre constitudo um fato que pesou nas relaes entre
Washington e Luanda a ponto de as no estabelecerem diplomaticamente.
Um dado extremamente importante foi o fato de todas as ex-colnias portuguesas se terem determinado a aderir Conveno de Lom II
que regia a cooperao Norte/Sul entre a Comunidade Europia e o conjunto de pases da frica, Carabas e Pacfico (ACP), a maior parte dos quais
fora colnia de um dos Estados membros da CEE, criando assim um espao econmico entre a CEE e muitos pases africanos, entre os quais todos
os PALOP.

A SPECTOS POLTICOS
O Estado portugus teve que definir uma poltica imediata em relao frica depois das transferncias de soberania, tantos eram os problemas a resolver: retorno de nacionais, segurana dos portugueses que pretendiam continuar nos territrios agora independentes, interesses econmicos e financeiros a defender para no onerar ainda mais o povo portugus com as seqelas da organizao e da guerra, diversificao dos mercados tradicionais de abastecimento em caf, acar, algodo, petrleo etc.
Tratava-se, pois, de definir qual o lugar que as relaes com frica ocupariam na estrutura das relaes internacionais de Portugal sem colnias.

362

APS O 25 DE ABRIL

A primeira preocupao foi a de estabelecer acordos de cooperao


entre Portugal e as ex-colnias, geralmente negociados durante o processo
de acesso independncia daqueles territrios.
Assim, a 22 de junho de 1975, assinado em Lisboa um Acordo de
Cooperao cientifca e tcnica entre Portugal e a Repblica da Guin-Bissau. Em 5 de julho, concludo, na cidade da Praia, um Acordo Geral de
Cooperao e Amizade com a repblica de S. Tom e Prncipe que acedia
naquele mesmo dia independncia.
A Repblica Popular de Moambique, cuja independncia fora proclamada em 25 de setembro, assina, a 2 de outubro, um Acordo de Cooperao com Portugal.
Em relao a Angola, o processo de normalizao diplomtica foi
mais complexo e moroso. Assistiu-se primeiro s dificuldades portuguesas
na definio de um critrio para o reconhecimento do governo angolano
logo depois da independncia, reconhecimento esse que aconteceu em fevereiro de 1976, ou seja, trs meses depois da passagem formal dos poderes em Luanda. Em maio daquele ano era a Repblica Popular de Angola
que rompia as relaes diplomticas, para s reatar em outubro, depois de
um encontro entre os Ministros dos Negcios Estrangeiros dos dois pases
em Cabo Verde. Mesmo assim demoram os angolanos a enviar um embaixador-residente para Lisboa, enquanto o Governo Portugus apia a entrada da Repblica Popular de Angola nas Naes Unidas, o que ocorre durante a 31 Assemblia Geral daquela organizao em 1976.
S com o encontro entre o general Eanes e Agostinho Neto, em maio
de 1978, ocorrido em Bissau, se enceta um perodo de maior colaborao
entre os dois Estados, formalizada no Acordo Geral de Cooperao e Amizade datado daquele ano.
O Estado portugus teve ainda que criar rapidamente novos departamentos e instrumentos polticos e diplomticos para essas novas relaes.
Criou-se assim, em 4 de setembro de 1975, na orgnica do IV Governo Provisrio, o Ministrio da Cooperao que seria extinto em julho de
1976 com o advento do 1 Governo Constitucional. No 1 Governo Constitucional, o MNE dota-se de um Gabinete Coordenador para a Cooperao
que vigorou at ao estabelecimento, em 1980, num governo da Aliana Democrtica, de uma Direo-Geral para a Cooperao. Por outro lado, elaboram-se vrios estatutos para o Instituto Portugus para a Cooperao, uma
espcie de holding dos interesses econmicos e financeiros portugueses
na frica.
Como j referido, Portugal passou a ser um pas doador em relao
cooperao internacional, novidade absoluta para o Estado portugus.
A cooperao, depois da independncia das colnias, foi, pois, uma
novidade como vertente das aes externas do Estado portugus. Em ter-

363

Jos Medeiros Ferreira

mos internacionais est consagrado que a cooperao se destina a apoiar o


desenvolvimento dos Estados, centrado no homem e na cultura de cada
povo, tendo por objetivo promover e acelerar esse desenvolvimento nos
domnios econmico, cultural e social, aprofundando e diversificando as relaes entre Estados beneficiados e doadores num esprito de solidariedade
e interesse mtuo, segundo a Conveno de Lom que liga os pases da Comunidade Europia ao conjunto dos pases menos desenvolvidos da frica, Carabas e Pacfico (ACP).
Ponto importante o que determina que o apoio do estado doador
s ser concedido a pedido do estado beneficirio que ter todo o direito de
determinar as suas opes polticas, sociais, econmicas e culturais.
Embora dedicando escassas verbas governamentais para o efeito, a
cooperao entre Portugal e os PALOP caracterizou o novo tipo de relaes
entre as partes e permitiu manter o contato necessrio de estado a estado
durante o delicado perodo imediatamente posterior descolonizao. E
nem sempre foram fceis as relaes polticas entre Portugal e os novos pases de expresso portuguesa.
Desde logo as relaes polticas foram mais estreitas com Cabo Verde e Guin-Bissau, seguindo-se depois S. Tom e Prncipe. Nenhuma dificuldade houve no incio das relaes diplomticas e mesmo na cooperao
militar foi rpido o entendimento com as Foras Armadas portuguesas, nomeadamente nos domnios da balizagem de costas, faris, apetrechamento
e dragagem de portos, treino de pessoal etc. A Repblica da Guin-Bissau
pedir o apoio portugus para a demarcao dos limites das suas guas territoriais num difirendo que a ops Guin-Conakry.
E quando, em outubro de 1978, Portugal formalizou a sua candidatura a membro no permanente do Concelho de Segurana, esses pases
apoiaram a sua candidatura contra a de Malta.
Um ponto de encontro na poltica externa de Portugal e das ex-colnias foi a promoo e a maior visibilidade da lngua portuguesa na cena
internacional. De fato, enquanto no foram independentes aqueles territrios, eram dois os Estados que falavam portugus. Depois do acesso independncia dos territrios africanos, passaram a sete os Estados de lngua
oficial portuguesa presentes em trs continentes: Europa, Amrica do Sul e
frica. Estavam criadas as condies polticas para a promoo do portugus como lngua internacional.

CONCLUSO
Embora o desencadeador do movimento do 25 de Abril se deva, em
primeiro lugar, necessidade de resolver a questo colonial, esta efetivamen-

364

APS O 25 DE ABRIL

te s domina a cena poltica portuguesa at os primeiros meses de 1975. Se


houver que utilizar um acontecimento histrico como marco, pode-se erigir
a cimeira de Alvor em 15 de janeiro de 1975. A partir da, e contrariando
muitas opinies sobre a influncia determinante do processo de transferncia de soberania de Portugal para Angola no curso do poder poltico em Lisboa , o centro das preocupaes dos portugueses tornou-se mesmo o Portugal europeu. Para a opinio pblica, nessa altura, o papel de Portugal na
descolonizao esgotava-se nos diplomas que formalizavam o tempo e o
modo de transferncia de soberania. De certa maneira, raramente a metrpole foi to egocntrica como durante o processo de descolonizao.
A evoluo do poder poltico em Portugal determinada essencialmente pela descolonizao entre o 25 de Abril de 1974 e 28 de setembro
inclusive. J os acontecimentos cristalizados por volta do 11 de maro de
1975 tm um forte componente portugus e europeu.
Mas se essa interpretao genericamente correta, e s ela permitiu
que a esta altura se apresentasse a descolonizao sada do 25 de Abril
como uma descolonizao exemplar, isso no significa que as conseqncias da descolonizao no tenham afetado a sociedade portuguesa durante muito mais tempo e de forma muito profunda, durvel e variada.
As conseqncias imediatas foram de ordem militar, social e econmica.
Em 1990 as relaes pblicas do Estado-Maior-General das Foras
Armadas revelaram agncia noticiosa Lusa os seus nmeros oficiais sobre
as baixas sofridas durante as campanhas de frica, entre 1961 e 1975.
Segundo Manuel Carlos Freire, daquela agncia, o nmero total de
vtimas fatais durante a guerra na frica foi de 8.831. O maior nmero de
mortos pertenceu ao Exrcito (8.290) seguindo-se a Fora Area (346) e a
Marinha (195).
Relativamente ao nmero de feridos, as estimativas apontam para
cerca de 30 mil, sendo o exrcito mais atingido, com mais de 25 mil feridos.
Dos totais anuais de vtimas fatais verifica-se que 1973 foi o ano em
que as Foras Armadas tiveram maior nmero de mortos (Exrcito, 856;
FAP, 27; Marinha, 40). A presso sobre os militares que, entre 1961 e 1974,
estiveram mobilizados na frica ter sido de 117 mil efetivos.
Assim, calcula-se que o nmero total aproximado de militares que
participaram nos trs principais teatros de operaes na frica (Guin, Angola e Moambique) ter sido de 1.368.900 (um milho, trezentos e sessenta e oito mil e novecentos indivduos).
Tendo sido a guerra colonial conduzida pelas Foras Armadas da Metrpole, os colonos radicados na frica s tiveram duas solues aps a deciso de descolonizar. Ou se colocavam sob a proteo dos partidos africanos ou preferiam regressar metrpole, vista esta como Me Ptria para
dar a certas expresses consagradas o seu verdadeiro sentido.

365

Jos Medeiros Ferreira

O resultado de todas essas realidades e contigncias foi o fenmeno


social do retorno de cerca de meio milhar de residentes nos territrios africanos para Portugal, num concentrado perodo de tempo pouco superior a
um ano. O fenmeno do retorno feriu tanto a sensibilidade contempornea
dos portugueses que o seu nmero se encontra quantificado por rgos oficiais do Estado.
O Recenseamento de 1981, por perguntar a residncia dos inquiridos em 31 de dezembro de 1973, apurou a existncia, em Portugal, de
505.078 cidados que regressaram de frica depois daquela data.
Que conseqncias teve esse retorno sobre a geografia humana do
territrio metropolitano?
Segundo dados elaborados pelo Instituto Nacional de Estatstica, no
censo de 1981, o total de retornados ter sido de 505.078, sendo 309.058
provenientes de Angola e 164.065 de Moambique, de fato as duas colnias de povoamento. Dos valores obtidos pelo Recenseamento Geral da
Populao de 1981 ressaltam os seguintes indicadores: quase dois teros dos
retornados vieram de Angola e os retornados, nascidos em Portugal, eram
originrios majoritariamente das reas urbano-industriais de Lisboa e do
Porto (cerca de 23% ) e das regies deprimidas do norte e centro interiores
do pas (34% ).
O impacto demogrfico do fenmeno do retorno da frica, entre
1974 e 1976, pode ser quantitativamente medido pelo Recenseamento Geral da populao, ocorrido em maro de 1981, quando todo, Portugal se estabilizava depois do perodo revolucionrio.
A populao total de Portugal ficou cifrada em 9.833.014 (nove milhes, oitocentos e trinta e trs mil e catorze indivduos), sendo 505.078
(quinhentos e cinco mil setenta e oito) considerados retornados.
Mas no foram s os expatriados que regressaram num lapso de
tempo intenso e condensado. Tambm os dispositivos dos acordos de transferncia de soberania no foram muito favorveis a uma diluio no tempo do retorno das tropas.
Do ponto de vista econmico quando se verificou a descolonizao
j a efmera quimera poltica do mercado comum portugus estava destruda e nenhum responsvel em Lisboa, ou em qualquer outro lado, ousava
retomar esse objetivo criado pela presso doutrinria, presente no Decretolei 44.016 de 8 de novembro de 1961, que institua uma zona de comrcio
livre entre Portugal e o Ultramar.
As trocas comerciais entre Portugal e os territrios ultramarinos no
ultrapassaram os 13% do total da balana comercial da metrpole em
1973, com esta j pesadamente envolvida no intercmbio com os pases europeus da EFTA e da CEE. E o problema financeiro que os atrasados das
colnias representavam no era de molde a encorajar o aumento das ex-

366

APS O 25 DE ABRIL

portaes para a frica portuguesa. Esses territrios vo alis implementar


medidas protecionistas nos incios dos anos 70.
Essa reduo das trocas comerciais entre Portugal e as suas colnias
mais realava a desproporo existente com o aumento constante das despesas militares devidas ao esforo de guerra na frica.
Assim, e observando a evoluo das despesas militares em relao ao
total das despesas pblicas, em porcentagem, verificamos que, durante a
dcada de 1960, elas passam de cerca de 25% , no incio da dcada, para
cerca de 40% no fim. At 1974 essa porcentagem no nunca inferior a
35% , para, entre 1974 e 1980, decar abaixo dos 10% e se situar volta dos
6,5% em 1985. Em relao ao PIB, a porcentagem das despesas militares
passa de 6,85, em 1974, para 2,44% em 1985.29
Do ponto de vista comercial, a principal conseqncia da descolonizao foi a diminuio drstica das exportaes dos territrios descolonizados
para Portugal, que caram para valores percentuais abaixo de 1% .
Quanto s exportaes de Portugal para os PALOP, a evoluo depois
das independncias, se bem que irregular, demonstra uma amplitude situada entre os 5% do total das exportaes portuguesas em valor (1982) e o
teto dos 10% .
Esse desequilbrio na balana comercial entre Portugal e os PALOP, obrigou o Estado portugus a conceder linhas de crdito exportao para as mercadorias com destino a esse grupo de pases, durante o perodo em anlise.
Portugal ocupa na balana comercial com os PALOP um lugar mais
importante como fornecedor do que como comprador. A importncia dos
PALOP na balana comercial portuguesa muito menor do que a de Portugal na balana comercial daqueles pases.
Mas Portugal como pas exportador sentiu menos os efeitos da descolonizao. A balana comercial entre Portugal e os antigos pases da zona
escudo manteve-se excedentria desde 1976, sendo a taxa de cobertura favorvel a Portugal.
Angola, por exemplo, continuou como o quarto cliente portugus aps o
Reino Unido, a RFA e a Frana at entrada de Portugal na Comunidade Europia.
No que se refere s exportaes, Portugal ocupava o segundo lugar
entre os fornecedores de Moambique no quadro dos pases da OCDE e o
quinto em geral, e contribua com 5,8% do total das importaes moambicanas entre 1976 e 1980. No perodo quinquenal seguinte, 1980-1985, as
exportaes portuguesas representavam 7,6% das importaes do Estado
moambicano, mantendo o segundo lugar como fornecedor depois da Repblica Federal da Alemanha. Na dcada de 1980 o saldo da balana comercial acumulado em favor de Portugal nas suas transaes com Moambique foi superior a 31 milhes de contos.
De uma maneira geral, Portugal aparece como parceiro comercial
muito importante para os PALOPs em todo este perodo, sobretudo como

367

Jos Medeiros Ferreira

fornecedor j que como cliente a sua posio desceu depois da descolonizao. Algum j chamou ciclo comercial a este perodo posterior s independncias.
Os interesses econmicos de Portugal nas colnias no se resumiam,
no entanto, aos seus aspectos comerciais. A vertente investimento tinha
um significado tal que, por altura da visita a Lisboa do secretrio-geral da
ONU, Kurt Waldhein, no vero de 1974, foram os investimentos privados
portugueses, efetuados em Angola e em Moambique, estimados em 190
milhes de contos e em 150 milhes de contos respectivamente, em documentos preparados para conversaes entre as autoridades portuguesas e o
secretrio-geral da ONU.
Pode-se mesmo interpretar as nacionalizaes, nomeadamente as
dos Bancos, efetuadas em Portugal a partir de maro de 1975, como uma
medida capaz de facilitar um certo tipo de descolonizao, e colocar do lado
portugus, como interlocutor dos novos Estados, no uma multido de interesses privados, mas o prprio Estado portugus. As relaes econmicas
entre Portugal e esse conjunto de pases tornaram-se assim, no perodo posterior descolonizao, eminentemente polticas, tanto mais que s nacionalizaes efetuadas pelos governos em Lisboa se seguiram as nacionalizaes operadas pelos governos na frica. Por causa dessas nacionalizaes,
efetuadas tanto em Portugal como nos novos pases africanos, as questes
econmicas situaram-se freqentemente no nvel das relaes polticas entre os Estados.

368

APS O 25 DE ABRIL

N OTA S
1. LOURENO, E., 1978, p.47.
2. GOMES, C. 1979, p.17.
3. No caso de Angola s mais tarde a OUA reconhecer tambm a UNITA como movimento
de independncia.
4. SPNOLA, A., 1978, p.270.
5. Ibidem, p.271.
6. SOARES, M., 1976. p.36.
7. Moo aprovada pelo MFA da Guin. Reunio de 1. de julho de 1974 (Documento datilografado de quatro pginas, consultado no Centro de Documentao sobre o 25 de Abril. Universidade de Coimbra).
8. DG, n. 293, 3 supl., 1. srie de 17.12.1974.
9. JARDIM, J., 1976, p.278.
10. SPNOLA, A., op. cit., p.437-438.
11. DG, n. 210, 2. supl., 1. srie de 9 de setembro de 1974.
12. Mozambique a Country Study, Federal Research Division. 3. ed. Washington: Library of
Congress, 1985. p.58
13. NETO, A. M., 1991.
14. FERREIRA, M. E., 1990, p.131.
15. Ibidem, p.139
16. Estado Maior do Exrcito, Resenha Histrico-Militar das Campanhas de frica (19611974). Lisboa, v. 1, 1988, p.260-261.
17. HEIMER, F. W., 1980, p.93.
18. Ibidem, 1980, p.63.
19. CORREIA, P. P., 1991, p.98.
20. Ibidem, p.105-106.
21. HEIMER, F. W., op. cit., p.76.
22. KISSINGER, W. I. A biography. London, Boston: Faber and Faber, 1992.
23. BELL, C. The diplomacy of detente. The Kissinger Era. London: M. Robertson, 1877. p.173.
24. Ver STOCKELL, J. A CIA contra Angola. Lisboa: Ulmeiro, 1979.
25. HEIMER, F. W., op. cit., p.81.
26. Ibidem, p.84.
27. ISAACSON, op. cit., p.673-685.
28. Memorando de 3 pginas, datilografado, arquivado no Centro de Documentao de 25 de
Abril, Universidade de Coimbra.
29. Cf. Ministrio da Defesa Nacional, Livro branco da defesa nacional, MDN, 1986, p.150-1.

369

Jos Medeiros Ferreira

B IBLIOGRA FIA
AA.VV., A descolonizao portuguesa aproxim ao a u m estu do. Lisboa:
In stitu to Dem ocracia e Liberdade, 1979 e 1982. 2v.
___. Os retornados u m estu do sociogrfico. Lisboa: Cadern os IED, 1984.
___. Portugal PALOP. As relaes econ m icas e fin an ceiras. Coord. Adelin o Torres. Lisboa: Esch er, 1991.
CORREIA, P. P. Portu gal n a h ora da descolon izao. In : REIS A. (Dir.) Portugal comtemporneo. Lisboa: Alfa, 1992. v.6, p.117-70.
___. Descolonizao de Angola a jia da coroa do im prio portu gu s. Lisboa: Editorial In qu rito, 1991.
FERREIRA, J. M. Portu gal em tran se. In : Histria de Portugal. Lisboa: Estam pa, 1994. v.VIII,
FERREIRA, M. E. AngolaPortugal Do espao econ m ico portu gu s s
relaes ps-colon iais. Lisboa: Esch er, 1990.
GOMES, C. Sobre Portugal Dilogos com Alexan dre Man u el. Lisboa: A
Regra do Jogo, 1979.
JARDIM, J. Moambique Terraqueimada. Lisboa: In terven o, 1976.
HEIMER, F. W. O processo de descolonizao em Angola. 1974-1976. Lisboa: A
Regra do Jogo, 1980.
LOURENO, E. O labirinto da saudade. Psican lise m tica do destin o portu gu s. Lisboa: D. Qu ixote, 1978.
MYAMOTO, S., GONALVES, W. S. A poltica externa brasileira e o regime
militar: 1964-1984. So Pau lo: Prim eira Verso, Un iversidade de Cam pin as, 1991.
NETO, A. M. Industrializao em Angola Reflexo sobre a experin cia de
adm in istrao portu gu esa 1961-1975. Lisboa: Esch er, 1991.
PIRES, M. L. Descolonizao de Timor. Misso im possvel? Lisboa: D. Qu ixote, 1991.
SOARES, M. Democratizao e descolonizao. Dez m eses n o Govern o Provisrio. Lisboa: D. Qu ixote, 1975.
___. Portugal, que revoluo? Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1976.
SPNOLA, A. Pas sem rumo. Lisboa: Scire, 1978.

370

A UTORES
Jos Mattoso
*Professor da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa desde 1977. Diretor do Instituto
dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo entre 1996 e 1998.

Maria He le n a d a Cru z Co e lh o
*Professora Catedrtica da Facu ldade de Letras da
Un iversidade de Coimbra.

Hum berto Baquero Moreno


*Professor Catedrtico da Faculdade de Letras do Porto. ViceReitor da Universidade Portucalense.

A n t n io Bo rge s Co e lh o
*Professor aposen tado da Facu ldade de Letras de Lisboa.

A n t n io A u gu sto Marqu e s d e A lm e id a
*Professor Catedrtico da Un iversidade de Lisboa.

A n t n io Man u e l He sp an h a
Pesqu isador do In stitu to de Cin cias Sociais da Un iversidade de Lisboa. Professor da Facu ldade de Direito das
Un iversidades Nova de Lisboa e de Macau .

Maria do Rosrio Them udo Barata


Professora Catedrtica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

N u n o Go n alo Fre itas Mo n te iro


Pesqu isador do In stitu to de Cin cias Sociais da Un iversidade de Lisboa e Professor con vidado n o In stitu to
Su perior de Cin cias do Trabalh o e da Em presa.

Francisco Calazans Falcon


Professor Associado do Departam en to de Histria da
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

Jo s Jo bso n d e A n d rad e A rru d a


Professor Titu lar do Departam en to de Histria da USP e
do In stitu to de Econ om ia da UNICAMP.

372

Jos Te ngarrinha
Professor da Universidade de Lisboa.

Miriam Halp e rn Pe re ira


Professora Catedrtica de Histria Modern a e Con tem porn ea do In stitu to Su perior de Cin cias do Trabalh o e
da Em presa em Lisboa, Diretora da revista Ler Histria.

Jaim e Re is
Professor Catedrtico do In stitu to Un iversitrio Eu ropeu
de Floren a.

A m ad e u Carvalh o Ho m e m
Professor Associado da Un iversidade de Coim bra.

A. H. de Olive ira Marque s


Professor Catedrtico da Universidade de Lisboa.

373

Jo o Me d in a
Professor Catedrtico da Facu ldade de Letras da Un iversidade de Lisboa.

Lu s Re is To rgal
Professor Catedrtico da Facu ldade de Letras da Un iversidade de Coim bra, m em bro do In stitu to de Histria e
Teoria das Idias.

Jo s Me d e iro s Fe rre ira


Professor da Un iversidade Nova Lisboa.

374

375

So bre o Livro
Formato: 16x23 cm
Mancha: 27x43 paicas
Tipologia: Meriden Rom an 10 (texto),
Meriden Rom an 12 (ttu los)

Equ ip e d e re alizao
Coordenadora Executiva
Lu zia Bian ch i
Reviso Tcnica
Maria Helen a Martin s Cu n h a
Produo Grfica
Edson Fran cisco dos San tos
Preparao e Reviso de Texto
Joo Edu ardo Pedroso de Oliveira
Carlos Valero
Catalogao
Valria Maria Cam pan eri
Projeto Grfico e Criao da Capa
Cssia Letcia Carrara Dom ician o
Diagramao e Capa
Ren ato Valderram as

376

Você também pode gostar