Rui Pinto Duarte - Locação Financeira PDF
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Maio 2010
Introduo
Entre 1981 e 2001, escrevi vrios textos sobre locao financeira que, na sua
maioria, compilei no livro Escritos sobre Leasing e Factoring. Nenhum desses textos
foi elaborado com fins didcticos e, por isso, nunca os pude usar como base directa
das exposies orais com esse cariz que fui sendo chamado a fazer.
As pginas que seguem so, pois, a reduo a escrito (com as alteraes que isso
acarreta relativamente ao primitivo discurso oral) do essencial das (anti-)preleces
sobre locao financeira que fiz em cursos de ps-graduao em Direito Comercial da
Universidade
Catlica
Portuguesa
coordenados
pelo
homenageado
com
A verdade, porm, que a figura que a lei portuguesa regula sob o nome locao
financeira no abarca tudo quanto na linguagem internacional dos negcios cabe sob
o nome leasing.
Coisa semelhante acontece de resto em vrios outros pases, como est espelhado
em a lei-modelo do Unidroit sobre leasing (de 2008) se chamar na verso em lngua
inglesa Unidroit Model Law on Leasing e na verso em lngua francesa Loi type
dUnidroit sur la location et la location-financement4.
O diploma em causa teve por objecto a regulao das sociedades de locao financeira.
Seguiu-se-lhe, alguns dias depois, o Dec.-Lei 171/79, de 6 de Junho, que estabeleceu o regime
do contrato de locao financeira. O primeiro vigorou at ao Dec.-Lei 103/86, de 19 de Maio, e
o segundo at ao Dec.-Lei 149/95, de 24 de Junho, como melhor explicaremos no n. 2 deste
texto.
2
A categoria legal das instituies parabancrias existiu entre o Dec.-Lei 46.302, de 27 de Abril
de 1965, e o Dec.-Lei 298/92, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime Geral das
Instituies de Crdito e das Sociedades Financeiras (adiante RGICSF). Era definida como
abrangendo as instituies que no sendo instituies de crdito, nem exercendo funes
auxiliares de crdito, exerciam alguma funo de crdito ou qualquer actividade que pudesse
afectar de forma especial o funcionamento dos mercados monetrio e financeiro. Depois de tal
definio, o Dec.-Lei 46.302 apresentava o seguinte elenco exemplificativo dos tipos de
instituies em causa: sociedades gestoras de fundos, sociedades financeiras e de
investimentos, sociedades de financiamento de vendas a prazo e sociedades de cobrana de
crditos, nomeadamente as de factoring.
3
Sinonmia essa que o legislador tambm expressou no prembulo do diploma em causa.
Para fixar a noo de leasing, tal como ela usada no mundo dos negcios, podemos
usar o International Accouting Standard (IAS) 17, relativo aos Leases. A se lem as
seguintes definies:
-
A lease is an agreement whereby the lesser conveys to the lessee in return for
a payment or series of payments the right to use an asset for an agreed period
of time;
A finance lease is a lease that transferred substantially all the risks and
rewards incidental to ownership of an asset. Title may or may not eventually be
transferred;
V. Uniform Law Review Revue de Droit Uniforme, NS, Vol. XIV, 2009-3, pp. 648 e ss.
A actual definio legal de locao financeira a de contrato pelo qual uma das
partes se obriga, mediante retribuio, a ceder outra o gozo temporrio de uma
coisa, mvel ou imvel, adquirida ou construda por indicao desta, e que o locatrio
pode comprar, decorrido o perodo acordado, por um preo nele determinado ou
determinvel mediante simples aplicao dos critrios nele fixados (art. 1. do Dec.Lei 149/95, de 24 de Junho). No essencial, tal definio igual do acima referido
primeiro diploma que definiu o tipo contratual em causa (art. 2., n. 2, do Dec.-Lei
135/79, de 18 de Maio7).
Regime Geral das Instituies de Crdito e das Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec.Lei 298/92, de 31 de Dezembro, entretanto objecto de mltiplas alteraes
Assinale-se, a outro tempo, que aquilo a que alguns autores chamam a tripla opo
(i.e., o locatrio, no final do contrato, poder escolher entre adquirir o bem, renovar a
locao e pr fim ao contrato - devolvendo o bem ao locador) no , face nossa lei,
caracterstica do contrato, j que o locatrio no pode impor unilateralmente a sua
renovao.
De tudo isto resulta a interdio da actividade da locao financeira aos sujeitos que
no sejam bancos, sociedades de locao financeira e IFIC e a inexistncia de um
regime especfico para aquela parte do leasing que extravasa a locao financeira10.
A medida a de que a coisa foi mediatamente (no primeiro contrato) fornecida por um
terceiro.
9
Sendo duvidoso que tais opes meream ser qualificadas como locao financeira como
adiante melhor veremos.
10
A pergunta que aqui ter cabimento , pois, se tal regime se justificaria. A resposta ser
positiva ou negativa consoante consideremos ou no que todos os contratos a que na
linguagem econmica e na prtica negocial atribuda a denominao de leasing, excluindo
precisamente os que reentrem na definio de locao financeira, caem nos tipos negociais
pr-existentes ao leasing ou que, e pelo menos, para eles as normas pr-existentes contm j
solues adequadas.
regra contabilstica que determina que ele a considere como integrada no seu activo
imobilizado11.
Para alm disso, a propriedade econmica do locatrio financeiro manifesta-se em
vrias outras regras, como as seguintes (s quais voltaremos adiante):
11
12
V. adiante, n.-----------------.
Foi em 1979 que foram publicadas as primeiras leis portuguesas sobre leasing
financeiro: em 18 de Maio, o Dec.-Lei 135/79 sobre as sociedades de locao
financeira, e, em 6 de Junho, o Dec.-Lei 171/79 sobre o contrato de locao financeira.
13
Essa dimenso real das posies de locador e locatrio financeiros no se manifesta apenas
pelo lado externo das mesmas (caso em que seria de lhes reconhecer dimenso absoluta,
mas no necessariamente real), mas tambm no seu lado interno - ou seja, nos poderes que
incluem.
14
Sobre a enfiteuse, v. RUI PINTO DUARTE, Curso de Direitos Reais, 2. ed., Cascais, Princpia,
2007, pp. 209 e ss.
15
Sobre isso, v. RUI PINTO DUARTE, A Regulao pelo RGICSF das Anteriormente Chamadas
Instituies Parabancrias, in Revista da Banca, n. 25, Janeiro/Maro 1993, pp. 55 e ss.
10
locao financeira16;
- Dec.-Lei 29/93, de 12 de Fevereiro, diferindo para 1.1.94 o incio da vigncia
do regime de contabilizao das operaes de locao financeira constante
do POC de 1989;
- Dec.-Lei 420/93, de 28 de Dezembro, introduzindo alteraes ao Cdigo do
IRC motivadas pela entrada em vigor do novo regime de contabilizao da
locao financeira;
- Portaria 95/94, de 9 de Fevereiro, sobre o capital social mnimo das
instituies de crdito e das sociedades financeiras (mantendo para as
sociedades de locao financeira os valores anteriores);
- Dec.-Reg. 16/94, de 12 de Julho, dando nova redaco ao art. 14 do Dec.Reg. 2/90 (de modo a as reintegraes de bens objecto de locao financeira
passarem a ser custos dos locatrios);
- Dec.-Lei 72/95, de 15 de Abril, sobre as sociedades de locao financeira
(revogatrio do Dec.-Lei 103/86, de 19 de Maio);
- Dec.-Lei 149/95, de 24 de Junho, sobre o contrato de locao financeira
(revogatrio do Dec.-Lei 171/79, de 6 de Junho);
- Dec.-Lei 265/97, de 2 de Outubro, alterando parcialmente o Dec.-Lei 149/95,
de 24 de Junho, e revogando o Dec.-Lei 10/91, de 9 de Janeiro;
- Dec.-Lei 285/2001, de 3 de Novembro, alterando parcialmente o Dec.-Lei
72/95, de 15 de Abril e o Dec.-Lei 149/95, de 24 de Junho;
- Dec.-Lei 186/2002, de 21 de Agosto, criando as IFIC e permitindo-lhes a
prtica da locao financeira;
- Dec.-Lei 30/2008, de 25 de Fevereiro, alterando parcialmente o Dec.-Lei
149/95, de 24 de Junho.
Para um sumrio da discusso que precedeu essa abertura v. o Livro Branco sobre o
Sistema Financeiro, 1992, vol. I, Relatrio Principal, Ministrio das Finanas, Maio 1991, pp.
68 e ss.
11
17
12
3.1.
Full-pay-out leasing (formule de lamortissement intgral, 1 DMModell) versus non-full-pay-out leasing (formule de la valeur
rsiduelle, Restwertmodell)
Para cabal compreenso da nossa figura, temos de comear por uma diviso de
natureza econmico-financeira: a que ope o full-payout leasing (formule de
lamortissement intgral, 1 DM-Modell) ao non-full-pay-out leasing (formule de la valeur
rsiduelle, Restwertmodell)
Como as palavras indicam, a diferena entre as duas figuras est em que no full-payout leasing as rendas so calculadas de modo a compreender todos os custos do
locador (e o seu lucro), ao passo que no non-full-pay-out leasing as rendas (incluindo
obviamente o lucro do locador) s parcialmente cobrem aqueles custos, sendo o
reembolso da parte restante assegurado pelo valor do bem, recuperado ou vendido a
final (por valor significativo).
13
3.2.
18
Como o caso dos citados BREALEY E MYERS nas seguintes palavras: Some leases are
short-term and cancelable during the contract period at the option of the lessee: these are
generally known as operating leases. Others extend over most of the estimated economic life of
the asset and cannot be canceled or can be canceled only if the lessor is reimbursed for any
losses: These are called capital, financial, or full-payout leases (ob. cit., p. 654).
19
Os antes referidos Avisos de 19 de Novembro de 1982 e de 28 de Junho de 1983
determinavam que o valor residual a que se refere o n. 3 do artigo 10 do Dec.-Lei 171/79
no poder ser fixado em menos de 2% e em mais de 6% do valor do contrato.
14
Com a eliminao dessa regra e tambm por fora da dessolenizao dos negcios
relativos a imveis, a importncia da natureza mobiliria ou imobiliria da locao
financeira resume-se hoje a:
- No caso da locao financeira imobiliria, a lei exigir o reconhecimento
presencial das assinaturas ou a sua efectuao na presena de funcionrio
dos servios de registo (art. 3., n. 2, do Dec.-Lei 149/95 na redaco do
Dec.-Lei 30/2008);
- No caso da locao financeira imobiliria, a lei exigir a certificao pela
entidade que efectue o reconhecimento ou pelo funcionrio dos servios de
registo da existncia de licena de utilizao ou de construo do imvel (art.
3., n. 3, do Dec.-Lei 149/95 na redaco do Dec.-Lei 30/2008);
- No caso da locao financeira respeitante a bens mveis sujeitos a registo,
a lei exigir que os signatrios indiquem o nmero, a data e a entidade
emitente do documento de identidade relevante (art. 3., n. 4 do Dec.-Lei
149/95 na redaco do Dec.-Lei 30/2008);
- O prazo contratual supletivo ser de 18 meses no caso da locao financeira
mobiliria e de 7 anos no caso da locao financeira imobiliria.
Para alm disso, h a notar que a natureza imvel da coisa locada leva a admitir que o
locador possa no ser proprietrio, mas apenas superficirio. O prprio Dec.-Lei
149/95 se refere a essa possibilidade, ao estabelecer que, quando o locador
construa, em regime de direito de superfcie, sobre terreno do locatrio, este direito
presume-se perptuo, sem prejuzo da faculdade de aquisio pelo proprietrio do
solo, nos termos gerais (art. 2., n. 2)20.
20
15
3.3.
Lease-back21
21
Sobre o lease-back, alm das as obras gerais sobre leasing, v. DIOGO PAREDES, LEITE DE
Pela instruo anexa circular n. 145 (Srie A), de 20/5/1986 (Folha S 1503.II.1/01)
V. RUI PINTO DUARTE, Escritos sobre Leasing e Factoring, Cascais, Princpia, 2001, pp. 49 e
ss. e 180.
23
16
Para isso, teve papel relevante a Lei 39-B/94, de 27 de Dezembro, que introduziu no
Cdigo do IRC um preceito (o n. 2 do art. 24-A, a que corresponde actualmente o n.
2 do art. 25) destinado a regular alguns aspectos fiscais do lease-back embora sem
utilizar a expresso.
As dvidas que ainda pudessem existir foram dissipadas pelo Dec.-Lei 149/95, ao
desvincular a locao financeira da finalidade de financiar investimentos, que lhe era
assinalada nos primeiros diplomas legais.
3.4.
A principal nota a fazer sobre a locao financeira para consumo a de que a mesma
abrangida pelo regime do crdito ao consumo, estando, pois, submetida s regras
24
V. o citado livro Escritos sobre Leasing e Factoring, maxime pp. 19 a 22 (com referncia ao
hire-purchase ingls).
25
Sobre o reconhecimento pelas leis e pela doutrina da difuso do leasing para consumo, v.
LEONOR AGUILAR RUIZ , La Proteccin Legal del Consumidor de Crdito, Valencia, Tirant lo
Blanch, 2001, pp. 257 e ss.
26
17
3.5.
27
Como de resto j sucedia com o Dec.-Lei 359/91, de 21 de Setembro (v. os seus artigos 1.,
2., n. 1 alnea a) e 3., alnea a)).
30
Sobre a questo, v. FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Do Regime Jurdico do Crdito ao
s
Consumo, in Scientia Iuridica, n 286/288, tomo XLIX, Julho/Dezembro 2000, pp. 375 e ss.,
em especial pp. 409 e ss., e Manual da Locao Financeira, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 151
e ss.
18
Prova de que assim est em que a natureza e o contedo dos direitos do locador e
do locatrio sobre a coisa locada , em larga medida, um problema de direitos reais - e
no de direito contratual - e, por isso, est, normalmente, subtrado influncia da
vontade das partes.
19
adopo
generalizada
da
Conveno
de
Otava
sobre
locao
financeira
4. Os sujeitos do contrato
32
Sobre essa conveno, v. RUI PINTO DUARTE, Escritos sobre Leasing e Factoring, cit., pp 111
e ss.
33
Sobre a figura do consrcio, mormente aquela que o Dec.-Lei 231/81 regula sob tal nome, v.,
na doutrina, LUS BIGOTTE CHORO, A Propsito das Societates e do Consrcio, in Estudos
em Homenagem ao Prof. Doutor Ral Ventura, vol. I, FDUL/Coimbra Editora, 2003, ANTNIO
MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Comercial, vol. I, Coimbra, Almedina, 2001 (pp. 450 e
ss.), ABLIO MANUEL DE ALMEIDA MORGADO, Regime Jurdico-Tributrio do Consrcio, da
Associao em Participao e da Associao Quota. Estudo Preparatrio do Decreto-Lei n.
3/97, de 8 de Janeiro, in Cincia e Tcnica Fiscal, n. 385, Janeiro-Maro 1997, ALBERTO
AMORIM PEREIRA, O Contrato de Joint Venture Conceito e Prtica, in ROA, ano 48, III,
Lisboa, Dezembro 1988, MANUEL ANTNIO PITA, Contrato de Consrcio, in Revista de Direito
20
No ser demais frisar, no entanto, que o locador quem contrata com o fornecedor,
embora segundo instrues do locatrio, e que, no pensamento subjacente nossa
lei, bem como na nossa prtica, o faz pessoalmente, ou seja, sem que o locatrio o
represente, como muitas vezes sucede noutros pases.
21
(art.13 do Dec.-Lei 149/95). Nos pases em que a lei omissa a tal respeito, a
prtica contratual que revela a normal atribuio pelo locador ao locatrio do direito de
demandar judicialmente o fornecedor, para o exerccio dos direitos que normalmente
competiriam ao locador. Alis, foi sobretudo este facto que levou os autores a tentar
levantar uma construo jurdica que enquadrasse as relaes entre locatrio e
fornecedor, o mesmo dizer, que desse forma jurdica ao carcter tripartido
(triangular) da relao fctica.
Tal tentativa foi sobretudo levada a cabo por autores franceses e antes de mais por El
Mokhtar Bey35, que lhe dedicou parte relevante do livro que escreveu sobre leasing 36.
A figura para que recorrentemente se apelou foi a do mandato.
Repare-se que autores houve que, tambm recorrendo figura do mandato, o fizeram
com um sentido exactamente oposto, j que sustentaram que o mandante seria o
locatrio, sendo mandatrio o locador38. Alis, esta outra formulao da teoria do
mandato precedeu aquela. Por outro lado, no foi Bey o primeiro a formular, nos seus
35
22
termos gerais, aquela primeira posio, mas sim Champaud, que a sustentou na
sequncia de crtica segunda posio referida.
23
Deve, no entanto, levar-se em conta que toda esta problemtica radica num quadro
distinto do traado na lei portuguesa. No que toca ao chamado mandato inicial (para a
compra da coisa), e tambm no que toca ao chamado mandato acessrio, o que
impressionava a Bey era o desequilbrio das situaes do locador e do locatrio a
favor deste. Une partie agit, une autre subi43. Na descrio e viso de Bey, este
negociaria com o fornecedor sem interveno daquele, ficando, porm, o locador
obrigado, por virtude do contrato de locao, a entregar a coisa em estado de permitir
42
24
o seu gozo pleno pelo locatrio. Por outro lado, no que toca ao mandato para o
locatrio estar em juzo demandando o fornecedor (mandat dester), a necessidade a
que se procurava dar resposta era a da possibilidade de o locatrio demandar
directamente o fornecedor, mantendo o locador alheio s questes levantadas em
torno das qualidades da coisa, j que este se limita a uma funo financeira. Foi por
isso que Rodire44, que no aceitou a posio de Bey, chamou a ateno para a
possibilidade de o locatrio poder demandar o fornecedor, lanando mo da action
oblique (aco subrogatria).
De acordo com o art. 2. do Dec.-Lei 149/95, a locao financeira tem como objecto
quaisquer bens susceptveis de serem dados em locao.
43
25
O regime vigente, apesar de tudo, deixa margem para dvidas, nomeadamente quanto
possibilidade de a locao financeira incidir sobre coisas incorpreas (incluindo
direitos). No profundo estudo que dedicou locao financeira de aces46, Margarida
Costa Andrade sustentou, com argumentos fortes, a admissibilidade da mesma
soluo essa que julgamos extensvel generalidade das coisas incorpreas.
7. A forma do contrato
Como j vimos, de acordo com o art. 3., n. 1, do Dec.-Lei 149/95, todos os contratos
de locao financeira, qualquer que seja o seu objecto, podem ser celebrados por
documento particular. No caso de imveis, as assinaturas das partes devem ser
presencialmente reconhecidas ou efectuadas na presena de funcionrios dos
servios do registo, no momento da apresentao do pedido de registo (art. 3., n. 2).
entidade que efectue o reconhecimento ou ao funcionrio do registo perante o qual
as assinaturas sejam feitas compete certificar a existncia de licena de utilizao ou
de construo do imvel (mesmo art. 3., n. 3). No caso de mveis sujeitos a registo,
as assinaturas das partes devem ser acompanhadas da indicao, feita por elas, do
46
26
A sujeio a registo da locao financeira foi determinada logo no Dec.-Lei 171/79 (art.
9., n. 1) e foi depois regulada pelo Cdigo do Registo Predial e nos diplomas sobre
registo automvel.
No respeitante a automveis, os preceitos relevantes so o art. 5., alnea d), do Dec.Lei 54/75, de 12 de Abril (na redaco do Dec.-Lei 461/82, de 26 de Novembro), e os
arts. 18, n. 5, 42, n. 5, e 60 do Dec.-Lei 55/75, de 12 de Fevereiro, na redaco do
Decreto 130/82, de 27 de Novembro.
27
Por ltimo, h a referir que o n. 2 do art. 17 do Dec.-Lei 149/95, introduzido pelo Dec.Lei 30/2008, possibilita que o cancelamento do registo com fundamento na resoluo
do contrato por incumprimento seja feito com base na mera prova da comunicao da
resoluo outra parte regime este que nos parece francamente criticvel, como
explicaremos quando abordarmos a providncia cautelar de entrega do bem locado (j
que tal cancelamento ocorre normalmente a pedido do locador e constitui pressuposto
de tal providncia).
9. O prazo contratual
10. As rendas
28
Por outro lado, a natureza econmica das rendas da locao financeira leva a que elas
juridicamente estejam muito mais perto das prestaes de uma dvida (no sentido do
47
A variabilidade pode ser funo da desigualdade do valor de capital de cada renda (rendas
progressivas ou regressivas) e, no caso de as rendas integrarem tambm juros, da indexao
destes.
29
art. 781 do Cdigo Civil) do que das rendas da locao comum. O locatrio financeiro,
sobretudo no full-pay-out leasing, reembolsa uma nica dvida de capital no
remunera a sucessiva utilizao do bem.
Estas reflexes sero determinantes para a resoluo dos problemas levantados pelas
clusulas
de
vencimento
antecipado
das
rendas
vincendas
em
caso
de
Quanto ao preo de aquisio, a nica regra que a lei actualmente estabelece a que
sempre resultaria das regras gerais: a exigncia da sua determinao ou
determinabilidade (parte final do art. 1. do Dec.-Lei 149/95).
Como j vimos, porm, nem sempre foi assim. O primeiro regime da locao financeira
estabelecia que o preo de aquisio devia corresponder ao presumvel valor residual
do bem locado no fim do prazo do contrato (art. 10, n. 3 do Dec.-Lei 171/79) e a
verso primitiva do Dec.-Lei 149/95 determinava que, at o Banco de Portugal
estabelecer outros limites, o valor residual no podia ser inferior a 2% nem
relativamente aos bens mveis superior a 25% (art. 4., n.s 2 e 3 revogado pelo
Dec.-Lei 285/2001).
30
Por fora do contrato de locao financeira, o locatrio tem o direito de adquirir o bem
locado, findo o contrato, pelo preo estipulado (art. 10, n. 2, alnea f) do Dec.-lei
149/95) ou, vistas as coisas pelo prisma do locador, este tem a obrigao de vender
o bem ao locatrio, caso este queira, findo o contrato (art. 9., n. 1, alnea c) do
Dec.-lei 149/95).
A primeira das disposies citadas compatvel quer com a ideia de que o contrato de
locao financeira contm uma promessa unilateral de venda, quer com a ideia de que
contm uma proposta de venda, nos termos que ocorrem no chamado contrato de
opo48. A segunda das disposies aponta, embora de modo no decisivo, no
primeiro dos sentidos. A nossa opinio de que dentro do quadro da lei ambas as
construes so possveis (sobretudo quando o objecto do contrato um bem mvel)
e que s face a cada contrato possvel determinar se o esquema contratual
escolhido foi um ou outro.
48
Sobre o qual se podem ver, por exemplo, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 4. ed.,
Coimbra, Almedina, 2008, pp. 135, 163 e 164, ----------------------------------------
31
necessariamente o bem como futuro, j que nos parece sempre aplicvel o art. 467,
n. 2, do Cdigo Comercial49.
A lei impe ao locatrio uma extensa lista de obrigaes. Ei-las por uma ordem algo
diferente da do n. 1 do art. 10 do Dec.-Lei 149/95:
Esta ltima circunstncia preclude qualquer discusso sobre se a nulidade cominada para a
venda de bens alheios na legislao civil se estende ao contrato-promessa dessa venda e
32
sobre o referido no texto no sentido de que, qualquer que seja a redaco do clausulado do
contrato de locao financeira, haver necessariamente a considerao da coisa como futura.
50
Sobre essa obrigao, v. URBANO DIAS, Propriedade Horizontal: Despesas Inerentes ao Uso
e Conservao, no Caso de Locao Financeira, in O Direito, ano 141, 2009, V, pp. 1033 e
ss.
33
Apesar de o regime legal da locao financeira ser muito completo, a vida d azo a
que nos contratos surjam muitas clusulas sobre aspectos no previstos na lei. Vale a
pena comentar algumas dessas clusulas (a que no ttulo chammos, de modo algo
impreciso, mas que cremos impressivo, praeter legem).
15.1.
Regra essa que, ao contrrio do que parece resultar de muita literatura, no uma regra
jurdica no verdadeiro sentido da expresso, mas sim um corolrio econmico do contedo do
direito de propriedade (tomado este em sentido amplo).
34
15.2.
52
35
foi negada em vrias decises dos nossos Tribunais53, como de resto, sucede tambm
noutros pases54.
Para se compreender a estipulao em jogo, h que ter em conta que, como vimos, o
leasing financeiro -
V. Ac. STJ de 17.11.94 (BMJ 441, pg. 274), Ac. STJ de 5.7.94 (BMJ 439, pg. 516 e
CJSTJ, Ano II, tomo II, 1994, pg. 170, repetido no Ano II, tomo III, 1994, pg.41), Ac. Rel. de
Lisboa de 24.6.93 (BMJ 428, pg. 662), Ac. Rel. de Coimbra de 23.11.93 (CJ, ano XVIII, tomo
V, 1993, pg.38), Ac. STJ de 7.3.91 (BMJ 405, pg. 465), Ac. Rel. de Lisboa de 27.2.92 (CJ
Ano XVII, tomo I, 1992, pg. 172), Ac. Rel. de Lisboa de 13.3.90 (CJ Ano XV, tomo II, 1990,
pg. 129).
54
V. GRAF VON W ESTPHALEN, Der Leasingvertrag, 2 ed., Colnia, Verlag Dr. Otto Schmidt,
1984, pp. 404 e segs., MICHAEL MARTINEK, Moderne Vertragstypen, vol. I, Leasing und
Factoring, Munique, C.H. Beck, 1991, pp. 214 e ss., e MARIO GIOVANOLI, Le Crdit-Bail (leasing)
en Europe: Dveloppement et Nature Juridique, cit., pp. 249 e ss.
36
37
entender aplicvel ao mtuo o art. 781 do Cdigo Civil, segundo o qual, quando a
obrigao pode ser liquidada em duas ou mais prestaes, a falta de realizao de
uma delas importa o vencimento de todas. O mesmo dizer que as clusulas que
conferem aos locadores financeiros o direito a, em caso de incumprimento pelo
locatrio,
exigir
antecipadamente
as
rendas
vincendas
so
funcionalmente
55
V. o respectivo art. 13., n. 2, in RUI PINTO DUARTE, Escritos sobre Leasing e Factoring, cit.,
p. 127.
38
exigncia antecipada dos juros incorporados nas rendas. Na medida em que a parcela
dos juros seja parte muito significativa do valor das rendas, a exigncia antecipada das
mesmas pelo seu valor nominal leva a desequilbrios favorveis aos locadores.
Resulta, pois, evidente que a Conveno referida legitima clusulas como as aqui
discutidas. E essa legitimao nada tem a ver com a vigncia da mesma Conveno,
mas apenas com a circunstncia de o seu texto exprimir a communis opinio sobre a
matria em causa. To comum essa opinio que foi apoiada mesmo pelos
representantes daqueles pases (encabeados pela Frana) cujas doutrina e
56
Desde que se pense que a clusula penal no tem necessariamente uma funo
indemnizatria, podendo ter, apenas, uma funo de compulso ao cumprimento (sobre tal
questo, v. por todos, ANTNIO PINTO MONTEIRO, Clusula Penal e Indemnizao, Coimbra,
Almedina, 1990, maxime pp. 647 e ss.).
39
A colocao de problemas feita nesses arestos induzida pelos textos das clusulas
contratuais cujo sentido e validade discutem. Na verdade, pelo menos algumas dessas
clusulas dizem que, em caso de incumprimento pelo locatrio financeiro, o locador
pode resolver o contrato e optar, de seguida, ou pela exigncia da devoluo do bem
locado e de um montante indemnizatrio ou pela exigncia antecipada das rendas
57
Cfr. os dois volumes com as actas da Conferncia de Otava de 1988 publicados pelo Unidroit
sob o ttulo (na verso inglesa) Diplomatic Conference for the Adoption of the Draft Unidroit
Conventions on International Factoring and International Financial Leasing.
58
Como se escreveu no acrdo da Rel. de Lisboa de 27.2.92 e como se interrogou na parte
final do acrdo do STJ de 5.7.94 (referidos na nota ----)
59
E muito menos ser lcita a cumulao da previso das obrigaes de restituir o bem e de
pagar as rendas vincendas, como parece ter sido frequente noutro pas (v. obras citadas na
nota ----).
40
15.3.
Como
escrevemos
antes,
os
contratos
de
locao
financeira
prevem
60
V. Ac. STJ de 7.3.91 e Ac. Rel. de Lisboa de 24.6.93 (citados na nota ----)
41
Por vezes, surgem vozes no sentido de que tais clusulas so excessivas e, portanto,
susceptveis de reduo, nos termos do art. 812 do Cdigo Civil61.
No , porm, vivel fazer um tal juzo com carcter geral. S perante cada situao
de resoluo possvel apurar se a clusula manifestamente excessiva. Dos direitos
que a resoluo gera para o locador pode resultar lucro ou prejuzo - relativamente ao
que se verificaria se o locatrio cumprisse. Depende do valor do capital em dvida
data da resoluo e do valor pelo qual o locador aliene a terceiros o bem objecto da
locao financeira (ou, se se preferir, do valor de mercado desse bem). Se este valor
for maior do que aquele, todo o montante da clusula penal um sobrelucro, que
poder ser considerado manifestamente excessivo. Se esse segundo valor for menor
do que o primeiro, o montante da clusula penal destinar-se- primacialmente a
compensar o prejuzo, podendo at nem ser suficiente para isso (sobretudo quando a
resoluo tenha lugar num momento em que o capital em dvida seja elevado e o bem
pouco valha no mercado de segunda mo).
15.4.
61
V.________________
42
43
Vale ainda a pena lembrar que a mera cesso de crditos pelo locador que ser a
operao mais vulgar que a cesso da posio contratual no depende do
consentimento do locatrio, por fora do estabelecido no art. 577, n. 1 do Cdigo
Civil.
17.1.
44
17.2.
O CIRE
17.3.
Sobre tal artigo do Cdigo de Processo Civil, v. JOS LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO
MENDES, Cdigo de Processo Civil Anotado, vol. 3., Coimbra Editora, 2003, pp. 461 e ss., e
JOS LEBRE DE FREITAS, A Aco Executiva depois da Reforma da Reforma, 5. ed., Coimbra,
Coimbra Editora, pp. 252 e ss.
63
Como chega FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Manual de Locao Financeira, cit., pp. 103 e
104.
45
financeiro determinaria a extino do contrato, sem que nada fosse transmitido aos
seus sucessores (o que determinaria uma expropriao em favor do locador financeiro
que nada justifica e que repugna ao sistema). O sentido til dessas (infelizes) palavras
da lei h-de ser o de que no so vlidas quaisquer clusulas que condicionem a
transmisso sucessria na hiptese em causa sem prejuzo do disposto no referido
n. 3 do mesmo artigo.
64
46
Nos termos do art. 17, n. 1, do Dec.-Lei 145/95, o contrato de locao financeira pode
ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no
incumprimento das obrigaes da outra parte, no sendo aplicveis as normas
especiais, constantes de lei civil, relativas locao.
A resoluo da locao financeira pode ter lugar sempre que, havendo inexecuo da
obrigao de uma das partes, a outra perca o interesse na prestao (ou
automaticamente ou aps a marcao de prazo), alm de poder ter lugar nas
hipteses contratualmente previstas.
Para alm destes fundamentos, deste modo genericamente enunciados, a lei prev
ainda mais duas hipteses em que o locador tem direito resoluo do contrato. So
elas, nos termos do art. 18 do Dec.-Lei 145/95, a dissoluo ou liquidao do locatrio,
quando este seja uma sociedade, e a de verificao dos fundamentos de declarao
de falncia do locatrio. Abordaremos os problemas levantados pela segunda no
nmero relativo insolvncia do locatrio.
O Dec.-Lei 149/95, na sua verso primitiva, introduziu na nossa ordem jurdica uma
providncia cautelar destinada a tutelar interesses do locador financeiro, consistente
na possibilidade de este, em caso de o contrato cessar, pelo decurso do prazo sem ter
sido exercido o direito de compra ou por resoluo, e o locatrio no proceder
restituio do bem, requerer a entrega imediata do mesmo e o cancelamento do
respectivo registo, quando o bem a ele estivesse sujeito.
47
Retomando uma proposta constante do projecto que esteve na base do Dec.-Lei 149/95 (e
que, na altura, critiquei), mas que a redaco primitiva deste no acolheu (v. Escritos sobre
Leasing e Factoring, cit., p. 184).
48
Tal regra merece duas notas. A primeira para sublinhar que ela se aproxima do
constante do regime processual civil experimental (art. 16 do Dec.-Lei 108/2006, de 8
de Junho) e tambm, ainda que menos fortemente, do previsto para o processo
administrativo (art. 121 do Cdigo do Processo nos Tribunais Administrativos) 66. A
segunda para apontar o aparente ilogismo e a deciso de fundo s poder ser proferida
quando a providncia tenha sido decretada no tambm quando ela tenha sido
indeferida.
49
tenha sido declarada quer no o tenha sido (se a mera verificao dos fundamentos
fcticos da insolvncia do locatrio d ao locador o direito a resolver o contrato,
tambm em caso de declarao de insolvncia, por maioria de razo, o locador
financeiro ter tal direito)69.
Quando essa regra foi introduzida na nossa lei (pelo art. 27 do Dec.-Lei 171/79, de 6
de Junho), vigorava uma regra aplicvel generalidade dos contratos bilaterais do
falido, segundo a qual a declarao de falncia no importava a sua resoluo,
podendo o administrador da falncia optar por os cumprir ou por recusar o seu
cumprimento, consoante o mais conveniente para a massa falida (art. 1197 do Cdigo
de Processo Civil).
No pode, pois, haver dvida que a inteno da lei foi dar ao locador financeiro um
poder muito maior do que o conferido generalidade das contrapartes dos falidos.
A verdade que a conciliao desse preceito com as regras do CIRE no fcil70.
Pode ser sustentada a opinio de que o direito resoluo do locador financeiro se
altera em caso de declarao de insolvncia ou at a de que o art. 18 do Dec.-Lei
149/95, de 24 de Junho, foi tacitamente revogado.
Tais interpretaes passam por entender que o n. 3 do art. 104 do CIRE, que se
refere insolvncia do comprador com reserva de propriedade e do locatrio no caso
de o contrato de locao conter a clusula de que a coisa locada se tornar
propriedade do locatrio depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas, abrange a
insolvncia do locatrio financeiro semelhana do que acontece com o n. 1 de tal
artigo, que regula primacialmente a insolvncia do vendedor com reserva de
68
50
No creio que tais interpretaes sejam de subscrever. Sou de opinio que o art. 18
do Dec.-Lei 149/95, de 24 de Junho, se mantm plenamente em vigor e que os arts.
104 e 102 do CIRE no afectam o direito do locador financeiro consagrado em tal
artigo. Nesse sentido vo no apenas a inexistncia de revogao expressa, como o
facto de o regime em causa no representar luz do CIRE um favorecimento do
locador financeiro em relao generalidade das contrapartes do locatrio financeiro
maior do que j representava quando foi introduzido na nossa ordem jurdica.
51
Responsabilidade do produtor
73
52
A dvida que a relocao financeira poderia levantar afim da levantada pelo leaseback: em que medida o facto de a operao no ser triangular preclude a sua
submisso ao regime da locao financeira. Atendendo resposta que demos
questo a propsito do lease-back evidente que tambm aqui entendemos que a
operao enquadrvel no regime da locao financeira. No podemos, porm,
deixar de sublinhar que quando a relocao seja feita a um terceiro se podem levantar
problemas quanto aplicabilidade daquelas normas cuja razo de ser est em o
fornecedor do bem ser outrem que no o locador, nomeadamente da que dispe que o
locador no responde pelos vcios da coisa locada (art. 12 do Dec.-Lei 149/95) e da
que atribui ao locatrio, quando disso seja caso, todos os direitos relativos ao bem
locado ou resultantes do contrato de compra e venda ou de empreitada (art.13 do
Dec.-Lei 149/95).
53
A nossa lei criou a locao financeira como uma pura actividade de crdito. A prtica,
porm, mormente no sector automvel, tem suscitado a possibilidade de os locadores
financeiros combinarem os seus servios financeiros com servios no financeiros. O
art. 1.-A do Dec.-Lei 72/95, introduzido pelo Dec.-Lei 285/2001, estabelece que
encontra-se vedada s sociedades de locao financeira a prestao dos servios
complementares da actividade de locao operacional, nomeadamente a manuteno
e a assistncia tcnica dos bens locados, podendo, no entanto, contratar a prestao
desses servios por terceira entidade (sublinhado meu).
26. Natureza jurdica da locao financeira74
Porque o leasing financeiro nasceu num pas de instituies e quadros jurdicos bem
diversos e comeou a ser utilizado na prtica negocial dos pases da Europa
Continental antes que os respectivos legisladores o tivessem tomado como seu
objecto, os juristas ligados prtica negocial destes pases, primeiro, e a doutrina e a
jurisprudncia dos mesmos, depois, procuraram formalizar e qualificar tal contrato de
modo a minimizar o efeito de rejeio que tal tipo de transplantao sempre provoca75.
Alis, nalguns desses pases o contrato permanece inominado e, em quase todos,
atpico.
74
54
Naquele que muitas vezes citado como um dos primeiros artigos europeus sobre a
nossa figura, Le leasing, de Jean-Pierre Gaulier76, o Autor, confrontado com a
necessidade de a considerar ou como uma compra e venda a prestaes ou como
uma locao-venda ou ainda como uma locao, decidiu-se por esta soluo dizendo
que le contrat de leasing est donc plutt un contrat de louage assorti titre acessoire
dune promesse de vente, alors que les oprations de location-vente et de vente
crdit se caractrisent essentielment par lopration de vente terminale77.
76
55
79
56
85
Aquele Autor, dizendo que la riconduzione al tipo consente una risposta non in termini
alternativi di apparteneza o non apparteneza, ma in termini di apparteneza maggiore o
minore, decide-se pela aproximao venda a prestaes, com base no
desconhecimento da coisa que o locador tem e nas clusulas que fazem correr pelo
locatrio o risco de perda ou deteriorao88 e ainda naquelas que pem a seu cargo
todas as despesas com a coisa relacionadas. Procura tambm apoio ao artigo 1526 do
Codice Civile (que manda aplicar o disposto em matria de resoluo do contrato por
incumprimento do comprador a prestaes nel caso in cui il contratto sia configurato
come locazione, e sia convenuto che, al termine di esso la propriet della cosa sia
acquista al conduttore per effeto del pagamento dei canoni pattuiti) e frisa que tal
83
O 1061 do B.G.B. diz que o usufruto constitudo a favor de uma pessoa colectiva se
extingue com esta.
84
Ob. cit., pg. cit.
85
Ob. cit., pg. 20.
86
Contratto di leasing e controllo delle condizione generali di contratto, in Rivista del
diritto commerciale, 1973, pg. 329 e segs. (alis, este Autor voltou ao tema na sua adiante
citada obra Il Tipo Contrattuale, pgs. 154 e segs., mas no modificou nem acrescentou
substancialmente a sua posio).
87
Ult. ob. cit., pgs. 251 e seguintes.
88
No Direito italiano (art. 1523 do Codice Civile) o risco, na compra e venda a prestaes com
reserva da propriedade, corre por conta do adquirente.
57
89
58
Na Repblica Federal Alem a tese do contrato atpico foi defendida, entre outros, por
Larenz, que, no entanto, afirmou expressamente que o leasing financeiro substitui a
compra na funo econmica92. Ainda na Doutrina alem, outra posio que nos
surge, e esta sem paralelo na de outros pases, a de considerar o leasing financeiro
como uma compra de um direito de natureza obrigacional (a uma utilizao da coisa
limitada no tempo93).
Regressando Doutrina italiana, temos que tambm Gargiullo94 fala de um contrato
atpico, com uma causa e caractersticas objectivas e subjectivas prprias nas quais
confluiriam elementos do mtuo, da venda e da locao.
Para este Autor, o leasing financeiro no seria reconduzvel ao mtuo porque a isso se
oporia a ausncia da obrigao de restituir coisa fungvel; no o seria tambm
90
59
Poder-se-ia alongar ainda mais esta exposio das posies face natureza jurdica
do contrato de locao financeira. Mas parece-nos que j ficaram alinhados os
principais argumentos e qualificaes expendidos na Doutrina estrangeira. Caber
agora apreci-los.
94
Ver BUONOCORE, ob. cit., pp. 6 e ss., e GASTONE COTTINO, Diritto Commerciale, Pdua, 1978,
vol. II, pgs. 37 e ss.
95
Ver obras e locais citados na nota anterior.
96
Ob. cit., pp. 374 e ss.
60
Tudo isto nos obriga a, ainda que muito brevemente, tentar dilucidar tais questes
metodolgicas com especial referncia ao problema que queremos tratar99.
A dogmtica jurdica buscou nas cincias sociais, que por sua vez o tinham feito nas
cincias da natureza, o mtodo de pensamento que recorre noo de tipo100. Max
Weber, a quem atribuda a paternidade da introduo de tal mtodo na sociologia,
justificou-o dizendo que resulta absurdo conferir s snteses do pensamento histrico
uma definio segundo o esquema genus proximum, differentia specifica101 e isto
porque o exame atento dos elementos conceituais da exposio histrica mostra que o
97
Ver KARL LARENZ, Metodologia da Cincia do Direito, Lisboa, 1978, pp. 542 e ss.
(___________________________). Sobre a tipicidade nos contratos, ver GIORGIO DE NOVA, Il
Tipo Contrattuale, Pdua, 1974, e MARIA DEL CARMEN GETE-ALONSO Y CALERA, Estructura y
Funcion del Tipo Contractual, Barcelona, 1979.---------------------------------------.
98
Ver OLIVEIRA ASCENSO, A Tipicidade dos Direitos Reais, Lisboa, 1968, pg. 23.
99
Procurei aprofundar as questes metodolgicas aqui tratadas no livro Tipicidade e
Atipicidade dos Contratos (Coimbra, Almedina, 2000).
100
LARENZ, lt. ob. cit., p. 521, e ARNOLD KOLLER, Grundfragen einer Typuslehre im
Gesellschaftsrecht, Freiburg, 1967, pp. 11 e ss.
101
Sobre la Teoria de las Ciencias Sociales, Barcelona, 1977, pg. 64.
61
Apesar de o prprio Weber ter dito que o mtodo de definio genus proximum,
differentia specifica permaneceria aplicvel s disciplinas dogmticas, que trabalham
com silogismos104, o facto que a reaco da cincia jurdica contra a metodologia
conceitualista acarretou o recurso ao pensamento tipolgico, com particularidades
segundo os vrios ramos do Direito e, mesmo, com diversos sentidos.
Entre as vrias aplicaes de tal mtodo de pensamento ressalta, para o que aqui nos
interessa, o entendimento da relao do facto jurdico com a norma como uma relao
de coordenao ao tipo e no como uma relao de submisso ao conceito. Os
elementos constitutivos das descries normativas no formariam sries fechadas, no
sentido de que o tipo previsto s pudesse ocorrer quando todos os seus elementos
estivessem presentes no caso concreto, como sucede quando se entende tais
descries como conceitos.
Ora, aquele entendimento tem as suas prprias limitaes no real (normativo); que,
as mais das vezes, a norma define os factos a que se quer aplicvel de tal modo que
ser ir contra a vontade expressa do legislador aplic-la quando algum ou alguns de
tais elementos no estejam presentes. E isto sucede no apenas naqueles ramos do
102
103
104
62
Direito em que o princpio da tipicidade mais tem sido acentuado (ainda que com
sentidos, por vezes, diversos, o Direito Penal, os Direitos Reais e o Direito Fiscal),
como em todos os campos. Assim, tambm no Direito dos Contratos a lei fecha
frequentemente os tipos.
Isto no impede que se fale e se deva falar das descries legais dos contratos como
tipos. Na verdade, elas no podem ser entendidas como um sistema de conceitos
abstractos e isto j pela sua prpria articulao, j pela sua gnese105, sendo, alis,
estes aspectos indissociveis. A relao que h entre a compra e venda e a locao,
por um lado, e o conceito de contrato, por outro, no semelhante que existe entre
este conceito e os de negcio jurdico e negcio unilateral. Na elaborao conceitual
que presidiu ao Cdigo Civil portugus, a subdiviso conceitual pra em contrato,
saltando-se daqui para os contratos em especial. Ora, estes, subsumindo-se sem
dvida ao conceito de contrato, no esto separados entre si de tal forma que se
excluam mutuamente. Alm disso, as suas noes no foram obtidas pela adio ao
gnero de uma diferena especfica, antes foram recolhidas da realidade, dos tipos
existentes na vida jurdica.
Convergente com o que fica dito parece ser a observao de Orlando de Carvalho 106
de que a tipificao no Direito dos Contratos o efeito da estereotipao na vida
quotidiana dos negcios. talvez por isso mesmo, porque essa estereotipao
apenas tendencial, face liberdade e fluidez do trfego jurdico nesta matria, que
os tipos fechados utilizados pela lei fracassam frequentemente em matria de Direito
dos Contratos e que podemos dizer, com Larenz107, que o aplicador do Direito se v
continuamente na necessidade de retroceder desses tipos fechados para aplicar
elementos de uns e de outros aos tipos abertos da vida jurdica.
105
Cfr. HANS CHAMARTZ, Zur Geschichte und Konstruktion der Vertragstypen im Schuldrecht,
Frankfurt, 1968, reimpresso do original de Viena, 1937, p. 357.
106
Direito das Coisas, Coimbra, 1977, p. 246.
107
Ob. cit., p. 549.
63
Aqueles que defendem que o leasing financeiro nada mais que uma locao tm por
si a indiscutibilidade da subsuno da figura definio segundo a qual aquela a
concesso temporria do gozo de uma coisa mediante retribuio. Para sustentarem a
no subsuno compra e venda tm tambm por si, indubitavelmente, o facto de o
efeito translativo da propriedade ser to somente possvel, no ser um elemento
necessrio, estar dependente de um acto de vontade do locatrio, rectius, de um novo
contrato. Ora, se admitirmos que a transferncia da propriedade o elemento
64
Ver INOCNCIO GALVO TELLES, Lies sobre Arrendamento, Lisboa, 1945/6, pg. 39, FLUME,
ob. cit., loc. cit., BIANCA, ob. cit., pgs. 1 e segs., e DOMENICO RUBINO, La Compravendita Milo,
1971 (Trattato di Diritto Civile e Commerciali diretto dai ANTONIO CICU e FRANCESCO MESSINEO,
vol. XXIII), pgs. 75 e segs..
109
Ver o art. 936 do Cdigo Civil.
110
Sobre a locao-venda e a locao, no Direito portugus, ver PINTO LOUREIRO, Tratado da
Locao, Coimbra, 1946, vol. I, pg. 181 e HUMBERTO PELGIO, Venda a Prestaes, Lisboa,
1941, pgs. 20 e segs.
65
66
67
Assim sendo, somos levados a afirmar que o ncleo do contrato de locao financeira
corresponde, no direito portugus, essncia de uma locao, pese embora o facto
de algumas, no poucas, das normas especiais sobre a locao financeira
contrariarem o regime geral da locao. A esta parte do contrato de locao financeira
acresce uma outra consistente num contrato-promessa unilateral sobre a coisa locada
ou num pacto de opo113. Qualificar a relao entre estas duas componentes do
contrato como unio de contratos ou contrato misto uma deciso quase arbitrria,
que depende do que se pense sobre tais conceitos114.
68
69