Bachelard Peaagogia Da Razão-Pedagogia Da Imaginação

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(© 2004, Baitora Vozes Lida. Rua Fret Lufs, 100 2689-900 Petxépolis, RJ Internet: http://www. vozes.com be Brasil ios os diretos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser rodusida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletiénico ou mectnico,incluindo fotocspia e gravagio) ou arquivada om ‘qualquer sistema ou banco de dados som permiss4o escrita da Edita, altoragao o org. lterdria: Augusto Angelo Zanatta ISBN 05,926,2926-1 Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Barbosa, Elyana ‘Bachelard pedagogia da-rasto, pedaosia da stinaginagio / Elyana Barbosa, Marly Buledo. — Petropolis, RJ: ‘Vozes, 2004. bes ¥ pel Bibliografa. 1, Bachelard, Gaston, 1884-1962 Critica e interpretagao 2, Criatwdade 5. sofia francesa 4, maging (atcol 5. Racionalismo I. Bulcdo, Marly. I. Titulo. “ a 03-5102 cpp-192 1. Filosofia francesa 192 21 Filésofos franceses 192 Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda, SumArio APRESENTAGAO DA COLEGAO, 7 INTRODUGAO, 11 1. Vida e obra pontuada de instantes, 17 1. Vida e obra: rupturas e descontinuidades, 17 2. Contexto cultural: critica as filosofias do imobilismo, 20 2, Racionalismo aplicado e imaginagéo criadora, 28 1, Racionalismo aplicado e materialismo racional, 28, 2, Arealidade cientifica, 35 3. A imaginagéo: sonho e devansio, 40 4. A fenomenologia da imaginagao, 45 1. Educagag como formagao e reforma, 50 2. Uma pedagogia intersubjetiva: racionalismo docente/discente, 57 3, Poética, imaginagao e instante, 63 4, Imaginagao, verticalidade e formagao, 67 3 PEDAGOGIA DA RAZAO DIALOGICA E DA IMAGINACAO CRIADORA 1. Educagdo como formacao e reforma lo tema da educagao nao ter sido tratado de Pe e direta por ‘Bachelard, épossivel, a nosso} ver, retirar de suas obras contribuigoes | importantes par apedagogia que Jevariam a constituigao de um novo mcg delo de escola e de aprendizagem. oa eed “4 ‘Michel Fabre quando diz, em seu livro Bachelard fue” teur', que, da obra bachelardiana, emana a proposta © fundar uma antropologia escolar baseada numa met sica do espirito. O tema da educagao esta presente na obra bachelar- diana através da nogao de formagao, termo constante 7 todos os seus textos. Acreditamos que educagao para Ba- chelard implica fundamentalmente na formagao do sulell to, A nogao de formacéo, segundo o filésofo, 6 muito mais completa e abrangente do que a de educacio, pois 7 a traz no seu bojo as conotagées que esta tiltima aprese! _ 1. Fabre, Michel. Bachelar Educateur. Paris: PUF, 1998, p. 2. 50 e que sao oriundas da tradigao que nos leva a compreen- der o conhecimento como ato de repetir e de memorizar idéias. Bachelard, ao contrério, exalta a criagao e a inven- 40, mostrando que o ato de conhecer nao se reduz a re- peticao monétona e constante de verdades absolutas e imutaveis que, uma vez alcangadas, se solidificam, anco- rando-se no porto seguro da meméria. Para Bachelard, co- nhecer 6 se aventurar no reino do novo e do abrupto, é estabelecer novas verdades através da negagao do saber anterior e da retificagao de conceitos e idéias que anteri- ormente nos pareciam sélidos. A problematica da formagao em Bachelard se desen- volve a partir dos dois eixos distintos presentes em sua obra, considerados como opostos e contraditérios: 0 eixo da razaio e o da imaginagao. Estes eixos, apesar de opos- tos, so complementares, néo comprometendo a unidade da obra, pois todos os dois especificamente ontogénicos ultrapassam e renovam 0 mundo, substituindo-o respec- tivamente por uma surracionalidade e por uma surreali- dade. Dessa forma, contribuem para o desenvolvimento pleno do espfrito humano. Vamos, pois, procurar mostrar neste capitulo as contribuigées pedagégicas inerentes as duas vertentes bachelardianas, apontando de que forma caminhos do racionalismo e da pottica levam a forma- 40 plena do individuo. O tema da formagao, presente em varios momentos da reflexdo bachelardiana, tem, portanto, como preocu- pagdo principal pensar em que consiste a formagéo do su- Jeito no seu esforgo de produgéo de conceitos ou no seu esforgo de vivenciar obras posticas, ou seja, no seu esfor- Go de azo e de imaginagao. A leitura das obras bache- lordianas deixa claro que 0 processo objetivo de génese (lo conceito ou da imagem é sempre referido ao subjetivo. Dai o sentido de formagao. Por outro lado, no se pode pensar a educagao como aventura de um sujeito cuja ra- sho ou imaginagao nao teriam objeto e permaneceriam vagando em um vazio didatico. Desta forma, em Bache- lard, nao tem sentido pensar o processo de construgao @ produgao de conceitos ou o vivenciar de obras estéticas sem se referir 4s mudangas que tais processos provocam nao s6 no sujeito, mas também no objeto. ‘Nesse sentido, acreditamos que o processo de forma- Ao cientifica ou postica apresenta, em Bachelard, duas fa~ ces, uma objetiva, na qual se dé a criagéo de um mundo ou de uma surrealidade, e outra subjetiva, que vai se referir as transformagées sofridas pelo sujeito ao longo do processo cognoscente e da emergéncia das imagens posticas. Em L'idéalisme discursif, Bachelard mostra de que forma 0 exercicio do racionalismo pode contribuir para a formagao do individuo. Descreve a oscilagao que vai da produgao de conceitos e, conseqiientemente, da concre- tizagao desses conceitos numa realidade objetiva, as mu- dangas que se dao no sujeito ao longo do exercicio de pensar. Bachelard emprega, pois, o termo formagao num sentido bem amplo que abrange, aomesmo tempo, traba- Iho do objetoe trabalho do sujeito. Para que se possacom- preender 0 verdadeiro sentido de formagao "é ‘énecessario refletir sobre um ritmo oscilatério de objetivacao © subjo- tivagao", 0 que nos faz concluir que nao ha, no pensa- mento bachelardiano, produgao de saber e construgao de objetos sem que haja concomitantemente desenvolvi- mento e formagao do sujeito. Para que se possa compreender 0 verdadeiro signifi- cado de formagao nas obras bachelardianas 6 necessé- rio retomar sua critica ao cogito cartesiano. Contestando Descartes, Bachelard mostra que é impossivel nos apre- endermos como sujeito puro e distinto. O sujeito s6 se ma- nifesta através de um trabalho, de um trabalho complex 2,Bachelard, Gaston, Lidéalism discursif. In: 1d. Beudes, Pris JV 1970, p88 ? que constitui, de um lado, aretificagao do saber apreen {> anteriormente, a polémica das idéias que antes pare- ciam sélidas, e, de outro lado, um trabalho no intuito de hlastar as intuigdes primeiras do sujeito que de imediato so impéem no ato de pensar e que constituem obstaculos ‘stemologicos. Para exorcizar os obstaculos episte- molégicos faz-se necessaria uma psicandlise do conhe- cimento objetivo, pois, conforme mostra Bachelard, estes obstéculos so nocivos ao desenvolvimento do saber, im- podindo a trajetéria de progresso da razaoe ainstauragao No novo saber. Pode-se dizer, entao, que toda objetivacdo procede da eliminagao dos obstaculos que sao, em tltima instancia, erros subjetivos. Através da critica ao cogito cartesiano, Bachelard mos- tra que nenhuma idéia traz de imediato a marca de sua ob- ‘ividade. O conhecimento nao parte de uma certeza pri- meira, como queria Descartes, mas, a0 contrario, tem seu ponto de partida numa polémica, ou seja, comega sempre por um didlogo, pela troca de argumentos e pelanegagao 1 vetificagao do saber anterior, para em seguida alcangar hovas verdades. Nesse sentido, a objetividade alcangada hunea é definitiva, sendo necessério reconquisté-la cons- intemente, pois psicologicamente a objetividade esté empre em perigo, o que denota que 0 conhecimento é es- oncialmente uma atividade dindmica de recomego e de organizagao constante de idéias. Pode-se concluir dai algo muito importante para o proceso de formagao e de aprendizagem. Conforme mos- tra Bachelard, a atividade mais essencial do sujeito, du- rante 0 processo de formagao, é a de se enganar. Nesse pentido, nés nos educamos através do mecanismo de hfastar os obstaculos que se interpdem em nosso cami- nho durante 0 ato cognoscente, nés nos educamos atra- vos da perda de nossas ilusées, nés nos educamos através do ato consciente de afastar os erros. Para Bachelard, nao hd verdade primeira, como queria Descartes, mas, ape- distinto porque desenganado. A sensagao plena de que icangou uma verdade sé é sentida quando o espirito tem onsciéncia de seu devir espiritual, compreendendo pela derrota do que foi uma certeza primeira que é capaz de ovas conquistas no plano do conhecimento. Da epistemologia bachelardiana resulta, pois, um novo estatuto de sujeito. Nao se pode mais falar de um sujei- to puro e distinto, imediatamente dado a si mesmo numa certeza de si que seria, ndo sé garantia da verdade, como, ambém, se imporia como alguém que domina seu saber. ara Bachelard nao ha sujeito originalmente constituido, -m sujeito originalmente constituinte. A fungao do sujei- » € a de se enganar, de se retificar e, portanto, de ir se formando ao longo de um esforgo inerente ao processo le conhecimento. O sujeito em Bachelard é, pois, fruto de 1m trabalho e sua formagao implica no trabalho penoso je rentincias. nas, erros primeiros que funcionam como aceleradores da razo, impulsionando-a, num processo dinamico, para a construgao de um novo saber, mais abrangente e mais verdadeiro que o anterior. Pode-se, entao, depreender do que foi dito que o erro tem, em Bachelard, um sentido po- sitivo no processo de aquisigao do saber, um sentido posi- tivo ndo s6 no que diz respeito a conquista da objetividade do conhecimento, como também no que se refere & forma~ 0 do sujeito, pois estes dois processos sao correlatos no pensamento bachelardiano. Em Bachelard, 0 erro deixa de ser, portanto, algo negativo, deixa de ser um acidente que deve ser extirpado da histéria das ciéncias e se constitui na mola propulsora da aprendizagem que leva a elabora- ao de novas idéias. Bachelard propée, pois, um paradoxo epistemolégi- co como base da cultura: a objetividade sera mais clara quando conquistada através da superacao de erros sub- jetivos, 0 que significa que o sujeito s6 evolui quando, num trabalho ativo, afasta as ilusées primeiras, para, num processo de retificagao constante e de desconstru- go do saber e de si mesmo, ir se elevando espiritual: mente, enquanto sujeito do conhecimento e conseqiien: temente enquanto homem. ‘Assim, para Bachelard, a consciéncia da eliminaga dos erros subjetivos constitui um processo de formacao de educacao permanente. Quanto mais complexo for set erro e quanto mais dificil for a tarefa de afasté-lo, m: rica ser a experiéncia do sujeito. Conforme diz Bach¢ lard, “a primeira e a mais essencigl das fungées da ati dade do sujeito 6 a de se enganar"’. Se a experiénciam: rica 6 a consciéncia dos erros retificados, a formagao sujeito implica primordialmente na desconstrugao do s} jeito e na constituigao de um novo eu, desta vez claro O conhecimento é, assim, 0 resultado de um trabalho tivo, de um trabalho ativo no que diz respeito ao objeto, mo também no que diz respeito ao sujeito. Diante do ob- jeto, o sujeito elimina as impressées esponténeas, advin- desse primeiro contato e que impedem a construgao iva. Apreendendo-se numa polémica, algumas vezes srior, como exercicio de pensar, o sujeito vai eliminando fs ilusdes primeiras, alcangando, assim, um saber coeren- to © racional num processo dinémico de objetivagao per- jnanente, ao mesmo tempo em que consegue, num proces- ascendente, ir se elevando como ser espiritual. A filosofia de Bachelard 6, pois, uma filosofia do tra- patho. Conforme afirma Canguilhem em seu artigo Gas- n Bachelard et les philosophes, o trabalho constitui valor ximordial na obra bachelardiana. Se, de um lado, 0 co- hocimento do objeto implica em um esforgo arduo de re- 1agao e de negagdo da sensagao imediata, de outro, a xmagao do sujeito requer trabalho constante de comba- ds ilusées solidificadas num eu que deve agora ser re- ee 3. Bachelard, Gaston. L'idéalisme... Op. cit. p. 88. 54 55 feito. NAohé, pois, conhecimento passivo, contemplativo, que se faga por uma simples apreensao do objeto. O ati de conhecer implica, de um lado, em transformagao d objeto, em retificagao de idéias, em construgao de fe émenos, o que faz da ciéncia fundamentalmente “fenomenotécnica”. De outro lado, implica no refazer-s constante e ininterrupto do sujeito que se retifica, afast do obstaculos e ilusdes primeiras para alcangar em se. guida a objetividade. Conforme mostra muito be: Fabre, “o pensamento bachelardiano 6 0 esforgo para integrar o trabalho ao lazer e resgatar, assim, a nogao gr ga de ‘scholé, na idéia de formagao permanente"*. Afirmar que, em Bachelard, educagéo deve ser co: preendida como formagao nao é o bastante. Torna-se nk cessario mostrar qual 0 sentido que o termo “formagao! adquire na obra bachelardiana. Em Bachelard, formagai deve ser compreendida fundamentalmente como refor do sujeito. Em L’engagement rationaliste mostra que nat se deve confundir a aco decisiva da razao com o recurs monétono as certezas armazenadas na meméria, poil embora seja comum acreditar que sé é objetivo e racion: ‘0 que se repete com freqtiéncia, isso nao é verdade. P: Bachelard, “a azo nao é uma tradigao”, mas, sim, at vidade constante de inovagéo e de invengao de nov: idéias. O verdadeiro método, diz ele, é a imprudéncia qi nos leva a rejeigao e retificagao do saber do passado @ criagao progressiva de novas teorias. Com 0 objetivo expressar a dimensao da aventura do espirito que se r nova e se refaz, caminhando na diregao do novo e do turo, Bachelard defende a tese de que s6 ha formag: quando ha retificagao do saber anterior, quando ha ne go das intuigdes primeiras, ou seja, quando ha desco1 trugao e reforma do sujeito. 4. Fabre, Michel. Op. cit, p. 177. A educagao 6, assim, processo oscilatério de formagao 1ujeito e do objeto, um processo arduo e dificil que exige consciéncia e fundamentalmente trabalho, um trabalho penoso de negacdo do saber que acreditavamos sélido e verdadeiro e a negagao do préprio sujeito, das ilusdes e crengas que tinhamos arraigadas no nosso eu mais profun- do. Isso nos leva a concluir que a educagdo e a formagao implicam primordialmente na desconstrugao e reforma do \jeito que se refaz, refazendo suas préprias idéias, retifi- cando conceitos aprendidos anteriormente, fazendo, as- sim, de seu dinamismo e de sua inconstancia o requisito pedagégico mais importante e mais fundamental. 2. Uma pedagogia intersubjetiva: racionalismo docente/discente Preocupado em mostrar a especificidade do raciona- mo contempordneo, Bachelard mostra a necessidade nerente ciéncia atual de fundamentar o processo de co- nhecimento na intersubjetividade. A nosso ver, a nogao de intersubjetividade traz no seu bojo os germes de uma nova pedagogia que mostra que o racionalismo atual 6, damentalmente, um racionalismo docente e discente. Para Descartes, trata-se de encontrar uma certeza primeira sobre a qual se poderia empreender a constru- gao do saber. Conforme afirma Bachelard, 0 idealismo cartesiano é imediato e monétono, pois, ao colocar como ponto de partida uma intuigéo primeira e global, nao con- segue dar conta da dinamicidade do espirito que sé se manifesta a partir de um trabalho. Como vimos anterior- mente, na epistemologia bachelardiana, o sujeito sé tem ponsciéncia de sua poténcia espiritual através de um tra- batho ativo. Este trabalho implica, de um lado, em viver fa retificagao objetiva e, de outro, em afastar suas ilu- noes imediatas. Enquanto, para Descartes, o desejo de alcangar uma certeza absoluta nos instala no “eu penso”, para Bache- lard, a ciéncia exige, além do trabalho ativo do sujeito, co- municagao e controle social. Oracionalismo uma filosofia tardia que se desenvol- ve através da critica das idéias anteriores, do afastamen- to das ilusées do sujeito e isso sé pode ser feito através d uma dinamica social, na qual diversos sujeitos empreen: dem uma argumentacao efetiva e dialégica. O raciona: lismo pressupée a polémica, 0 intercdmbio de idéias e critica da cidade cientifica que, num trabalho conjunto di reflexao, conseguem instaurar um conhecimento verdadel ramente objetivo. Para Bachelard, 0 racionalismo nao p como queria Descartes, ter origem numa consciéncia soliti tia, no cogito, mas sim no cogitamus, fundamento da di gia que é inerente as comunidades de sdbios. A certeza vada esclarece a verdade que venceu uma polémica € pode, por conseguinte, se impor como verdade. A intersubjetividade que se impde como fundament da objetividade tem como modelo, segundo Bachelard, escola. Partindo do principio de que oracionalismo nao fundamenta em certezas ou em idéias absolutas que riam repetidas com freqiiéncia, mas constitui ativid: constante de recomego e de reconstrugao do saber, chelard chega & conclusao de que o racionalismo atu essencialmente um racionalismo docente-discente, pi 6na escola que o ato de pensar se desenvolve através uma troca ininterrupta de idéias, na qual um sujeito aj rece como aquele que ensina e um outro tem como pi ser ensinado. A idéia nova alcangada que, de inicio, impée como absurdo, sé pode ser acatada depois de gumentago e de demonstragao convincentes que tram em que sentido esta idéia ¢ coerente e pode lugar a um novo conhecimento. O racionalismo 6, de tudo, fiel 4 sua missao de ensinar e tem como pret maior partilhar idéias que de in{cio pareciam abs} 58 aprender’ por sua novidade em relagao as idéias do passado de co- nhecimento. Conforme diz Bachelard, “o racionalista nao pode se arrogar o direito a contemplagéo de idéias, como se fosse um ‘ser cofre' repositério de riquezas e de ver- lades validas para sempre. A meta do racionalista é fa- ver com crane) possam compreender e aceitar as novas verdat novas verdades que se abrem para um futuro promissor Quando Léon Brunschvicg estranhou 0 fato de Bache- ard ter atribufdo tanta importéncia ao aspecto pedagé- ico das nogées cientificas, este Ihe respondeu que se nsiderava muito mais como professor do que como fi- »sofo, pois achava que a melhor forma de avaliar suas rOprias idéias era ensinando-as. Conforme afirma para- loxalmente Bachelard, “ensinar é a melhor maneira de ler"®. O que Bachelard pretende mostrar 6 que a ‘consciénia de saber” esté diretamente relacionada com ‘ato de ensinar”, ja que a objetividade sé pode se funda- jnentar numa intersubjetividade. Se o professor é aquele fue faz compreender eo aluno aquele que sé compreende ® partir da argumentagao do primeiro, o racionalismo é a sofia que expressa 0 transformar-se das idéias na di- nica de pensar, ou melhor, na dinamica de ensinar. ‘a Bachelard, o racionalismo exige a “aplicagéo” de um ypirito a outro, pois s6 se verifica a coeréncia de uma quando se 6 capaz de demonstrar ao out ° 10 a verda- desta idéia. “ importante ressaltar que o racionalismo que pode- s captar na dialética professor-aluno é um raciona- no em formago bastante diferente do racionalismo ssico, cujo objetivo primordial é fundamentar a cién- em certezas e evidéncias primeiras que, uma vez al- ngadas, se impunham como absolutas e definitivas. lard, Gaston. Le rationalisme appliqué. Op. cit., p. 12. 59 Bachelard se preocupa muito mais em descrever o traba: iho inerente ao racionalismo do que com a fundamenta; gao deste. O racionalismo da ciéncia contemporanea é, pois, d cente e discente e se fundamenta numa atividade essenci almente pedagégica, na qual o ato de pensar e de reflexa¢ faz parte da propria dindmica de formagaoe de educagao. Apesar de a “escola” constituir, para Bachelard, modelo mais elevado de vida social, dois aspectos mere: cem ser destacados nesta pedagogia da razao. Oprimeiro diz respeito ao caréter de inversao da dialé: tica do mestre e do aluno que, pelo fato de ser essen: cialmente dinamica, pressupée a troca constante di posigdes, fazendo com que o professor se torne, muitas ve zes, 0 aluno e vice-versa. E por isso que, segundo Bache! lard, continuar estudante deve ser 0 voto secreto de to professor. O outro aspecto diz respeito ao processo mesmo dk desenvolvimento do racionalismo. Dizer que 0 racion: mo deve ter como fundamento primordial a intersubjetit dade nao significa situar a origem de novas idéias ni trabalho consensual da cidade cientifica. Como mostr Bachelard, de inicio a idéia nova se forma na solidao d um espirito que, preocupado em resolver determinad problemas, retifica o saber, negando as bases da ciénci anterior. Para que se possa compreender bem esse p! cesso, torna-se necessario avaliar a solidao de um per samento, como, por exemplo, o de Einstein quando, n« gando a simplicidade da idéia de simultaneidade, afast 0 saber newtoniano aceito pela tradigéo, rompendo, sim, com a comunidade cientifica de seu tempo. A idé de que a simultaneidade de dois acontecimentos que produzem em dois lugares diferentes nao é uma idéia cl ra e distinta e depende de onde se situa o observador choca com a nogao newtoniana de tempo absoluto. C 60 6 possivel este novo racionalismo que procura complicar nogao simples de simultaneidade e de tempo, base da ecnica de Newton? De onde vem a audacia deste novo racionalismo que pretende afastar idéias tao simples e tas de forma trangliila pela comunidade cientifica da poca? No primeiro momento, a idéia nova tem origem, ortanto, num espirito solitério, para, em seguida, no en- nto, esta idéia ser inserida num processo discursivo e jalégico que vai corroborar sua coeréncia. Cabe ressal- 1, entretanto, que, pelo fato de ter situado a origem do nhecimento no sujeito solitério, Bachelard nao perdeu dimensao pedagégica do processo de construgao do sa- Em Le rationalisme appliqué aparece de forma clara necessidade do sujeito do conhecimento se dividir em »is, aparecendo como um “eu" e um "tu", que, dialogan- entre si, elaboram um saber mais abrangente e mais yerente que o anterior. Pensar, diz Bachelard, "6 colocar © objeto de pensamento diante de um sujeito dividido”®. justamente porque esta primeira forma de racionalis- mo ja se apresenta como um racionalismo dialogado, dis- conte @ docente que se trava na interioridade do sujeito que é possivel, num segundo momento, o sdbio desen- volver uma argumentagaio e uma demonstragao coerente que vao ser a garantia do acordo alcangado na comunida- de sabios. Voltando ao exemplo citado anteriormen- pode-se concluir que a solidao de Einstein se segue o acordo dos membros da cidade cientifica, que, instrufdos la coeréncia demonstrada da nova teoria, a acolhem mo parte integrante de um racionalismo trabalhado, ndado na unio dos “trabalhadores da prova”. Anogao bachelardiana de histéria das ciéncias serve 1ra reforgar a idéia de racionalismo dialogado, pois traz eu bojo o verdadeiro sentido de racionalismo e de es- ‘a. Conforme mostra Bachelard, 0 racionalismo é um exer- 8. Id, ibid, p. 63-66. cicio vivo de pensar, um processo ininterrupto de reflexao e de didlogo que caracteriza a verdadeira escola. Numa conferéncia realizada no Palais de la Découver- te, em Paris, Bachelard assume posigdo ousada, contes- tando a nogdo vigente de histéria das ciéncias que se fun- damentava numa perspectiva factual e descritiva. Apre: senta, entdo, uma nova concepgao de histéria das ciénciag que, além de inovadora, contribui com diretrizes para umé nova forma de pensar e de conceber a atividade de conhe- cimento e conseqiientemente para a elaboragao de novo: princfpios pedagégicos. Nessa conferéncia, Bachelard afirma que a histérii das ciéncias nao deve ser factual como queriam os histo: Tiadores da época. Nao deve ter como preocupagao o re: gistro cronolégico de fatos, constituindo, assim, uma sim- ples crénica das descobertas cientificas. Alguns aspecto: da nova concepgao de histéria das ciéncias apresenta por Bachelard devem ser aqui salientados. E, em primei lugar, uma disciplina cujo propésito primordial é trag: uma linha de progresso, o que a faz diferente das demais, Com o intuito de descrever o progresso, a historia di ciéncias deve se tomar judicativa, isto é, deve emitir jul z08 de valor, impondo-se como fundamentalmente criti ca. Deixando de lado as prescrigdes que norteavam o} historiadores de sua época de serem neutros e de nao j garem os fatos, Bachelard mostra que nao pode haver his: t6ria das ciéncias sem interpretagéo e julgamento. A p' cipal caracterfstica apontada na conferéncia 6, entri tanto, a da recoméncia. Considerando que para haver j gamento é necessério haver critérios, a verdadeira histori das ciéncias deve iluminar 0 passado através da luz presente, ou seja, deve analisar o passado da ciéncia partir dos critérios de racionalidade inerentes as teori que vigoram na atualidade. A originalidade e a ousadia da posicao assumida Bachelard, ao mesmo tempo em que justificam a imp\ 62 icia de sua tese, acarretaram na época muitas criticas e polémicas. A obrigagao de iluminar a historicidade das ciéncias pela atualidade faz da histéria das ciéncias um ‘studo por demais efémero. Partindo do principio de que aciéncia é dinamica e inconstante e de que suas teorias e nétodos se transformam ao longo de seu desenvolvimen- toe que, portanto, os valores de racionalidade também se nodificam, chega-se & conclusao de que a histéria das ciéncias 6 uma disciplina sempre jovem que deve ser re- feita constantemente, A nocao bachelardiana de histéria das ciéncias traz no seu bojo 0 verdadeiro sentido de racionalismo e de es- ‘ola. Mostra que 0 ato de pensar deve ser dinamico e vivo. Ahistéria das ciéncias como exercicio permanente de re- lexio e de didlogo, como proceso ininterrupto de reti- icagao, representa a verdadeira escola e leva, assim, & formagéo plena do individuo, através da dinamica de re- ‘onstrugao de novas idéias. A filosofia bachelardiana da formagao e da reforma do espirito inerente 4 sua concepgao de racionalismo 6 centrada, pois, na idéia de escola, de uma escola perma- ente, na qual o ato de pensar é dindmico, constante e dia- gico, promovendo, assim, através do exercicio do racio- alismo docente/discente, o progresso espiritual do ser jumano. Poética, imaginacao e instante Aproblematica da educagao em Bachelard se desen- volve a partir dos dois eixos distintos presentes em sua obra, considerados como opostos e contraditérios: 0 eixo razo e o da imaginagao. Estes eixos, apesar de opos- tos, séo complementares, néo comprometendo a unidade dla obra, pois todos dois especificamente ontogénicos ul- trapassam e renovam o mundo, substituindo-o por uma 63 surtealidade e, o que é mais primordial, contribuem, assim, para o desenvolvimento pleno do espirito humano. Vamos, pois, procurar mostrar neste capitulo as contribuices pe- dagégicas inerentes as duas vertentes bachelardianas, apon- tando de que forma os caminhos do racionalismo e da poé- tica levam a formacao plena do individuo. Depois de termos visto os aspectos pedagégicos ine- rentes a prdtica do racionalismo, vamos nos deter agora na andlise da poética bachelardiana com 0 intuito de de- duzir desta vertente sua contribuigao para a formaga plena do individuo. Para isso torna-se imprescindivel analisar a nogéo di tempo como instante que serve de fundamento a obra bai chelardiana, pois, em Bachelard, a nogao de formagao tributéria da dimensao ontolégica do tempo como inst te. A nogéo bachelardiana de tempo é desenvolvida no livros: L intuition de instant e La dialectique de la di Ahist6ria das ciéncias, exaltando a novidade do instant mostra que a atualidade é uma ruptura com 0 passado ciéncia, fundamentando-se, assim, na nogao de descont nuidade temporal. Mas é na vertente poética que a no de instante se torna primordial, pois, para Bachelard, imagens poéticas emergem e se proliferam na consciét cia, na solidao do instante. Daf a necessidade de se r tir sobre a nogao bachelardiana de tempo como instal para melhor compreender o verdadeiro sentido do v6o censional de que falaremos mais adiante e que é prop! da imaginagao criadora. Atese bachelardiana do tempo como instante resi de uma polémica que Bachelard trava com Bergson. criticar a nog&o bergsoniana de duragao, Bachelard ¢ trapée a esta a nogao de instante apresentada por nel em sua obra literdria Silée. Para Bergson, o verdadeiro tempo é a duracéo, seja, o tempo vivido pela consciéncia. Em sua obra 64 sur les donnés imédiates de la conscience afirma: “E, pois, no fluir da consciéncia que devemos apreender o tempo’ “6 no dinamismo da consciéncia que vamos apreender a duragao”’. Para Bergson, a inteligéncia nao consegue aprender a duragao, pois, como é analitica, acabaria por fragmentar a consciéncia. A intuicao, ao contrario, permi- te 0 contato do eu consigo mesmo, um contato imediato através do qual o eu se apreende como duragao. Ao se opor a tese bergsoniana da duragdo, Bachelard afirma enfaticamente algumas teses. Diz ele: “o tinico tempo real 6 o instante,” “o instante se impée de um gol- pe de forma completa para logo em seguida morrer, instante é, portanto, uma realidade entre dois nadas"*, A partir destas teses, conclui que o instante é solidao, pois ¢impossivel passar de um instante a outro. Abandona-so um instante para, em seguida, viver-se um outro. Dessa forma, o instante conserva sua novidade, sua individuali- dade, sua especificidade. Conforme mostra Bachelard, homem sé consegue tomar consciéncia de sino instante tra que é no instante presente que a atencao da conscién- via recebe todo seu valor de intensidade, refazendo-se ‘ara, em seguida, viver um novo instante. Pode-se, entao, izer que a atengao esté constituida destes renascimen- os do espirito que surgem na consciéncia quando o tem- po Se manifesta fragmentado em instantes. Estas teses Jevam Bachelard a conclusao final de que tempo é descontinuo, constituido por instantes pon- ‘is. Mostra que a continuidade temporal nada mais 6 do que uma construgao da inteligéncia que une de forma rgson, Henry. Essai sur les donnésimédiates dela conscience. 6. Poris: PUF, 1993, p. 74-75. ° oa ichelard, Gaston. La intuition de!'instant, Paris: Dencel, 1985, p. 13, 65 linear a pluralidade de instantes, dando-nos a impressao de continuidade intima. A duragéo, para Bachelard, nao 6, portanto, um dado imediato da consciéncia como afir~ mava Bergson, mas 6, ao contrario, uma construgao do es- pirito e tem, assim, um caréter mediato e indireto. Partindo da questao: O que confere ao tempo sua aparéncia de continuidade? Bachelard vai mostrar que a duragao nada mais é do que uma reconstrugao psicolégi- ca que nasce da repetigao de ritmos. O ritmo é que dé a continuidade da duragao, pois o passado 6 um habito pre- sente e o futuro um ritmo antecipado. Em suas obras poéticas, Bachelard vai mostrar que a imaginagao e o poema permitem ao homem viver o tempo do instante, afastando-o do tempo da vida, do tempo do senso comum, do tempo que pressupée a medida ea con- tinuidade, de um tempo que corre horizontalmente. ino instante que as imagens emergem no eu do poe- ta, permitindo que este viva no instante presente todas as ambivaléncias da vida. A imagem vivida pelo poeta, fruto do instante, é tnica,ndo tem passado, nao tem ante- cedentes, nao possui causa, pois nada a determina, nem nada a continua. Como o instante, a imagem emerge para Jogo em seguida morrer. Viver uma imagem é ter num tni- co instante uma visdo plena e total do universo. essa forma, para que o homem possa vivenciar o ins- tante poético, é necessério nao aceitar o tempo do mundo, © tempo da vida que rege nossas agées pragmaticas, 0 tempo sucessivo, continuo e horizontal. Ao vivenciar num tinico instante as ambivaléncias e as antiteses, o eu do poeta consegue se elevar numa ascensao vertical que 0 Jeva até o centro de si mesmo. Rompendo os quadros da duragao horizontal, afastando-se da vida periférica, o poe- ta atinge através da imaginagao criadora a referéncia au- to-sincrénica. Apaga-se, assim, subitamente, a achatada horizontalidade e o tempo deixa de correr, passando a jor- rar como a eterna fonte da juventude de Silée. 66 Para Bachelard, a metafisica do tempo como instante se dé no momento em que o homem vive a imaginagao cria- dora, no momento em que este se entrega a proliferacao ininterrupta de imagens, fazendo existir em torno de si um mundo surreal. ____ Quando refletimos sobre esta metafisica do tempo como instante, podemos melhor discernir em que sentido a for- macao é tributéria da imaginagao criadora e do instante. 4. Imaginacdo, verticalidade e formacao & possivel depreender da vertente poética de Bache- lard dois aspectos que, a nosso ver, contribuem para uma pedagogia da imaginagao e para a formagao do su- jeito. O primeiro desses aspectos é a distingao feita por Bachelard entre imaginagao formal e imaginacao mate- rial e o segundo diz respeito ao véo ascendente da imagi- nagao criadora que tem como fundamento a nogao temporal de instante. ___ Vamos primeiramente nos deter na distingao entre imaginagao formal e imaginagao material, pois, a partir desta distingao, 6 possivel retirar aspectos pedagégicos de importancia capital para o processo educativo. Em L’air et les songes, Bachelard vai mostrar que exis- tem dois tipos de imaginagao: a imaginagao formal e a imaginagao material. A primeira conduz & geometrizagao e se fundamenta na visao e na contemplagao do mundo, permanecendo, assim, nas arestas exteriores do objeto. A imaginagao material, ao contrério, instaura uma psicolo- gia do contra, impondo-se como um convite ao dominio sobre a intimidade mesma da matéria, Recuperando o mun- do como resisténcia, a imaginacao material funciona como acelerador do psiquismo, provocando um fluxo ininter- rupto de imagens sempre novas. 67 Esta distingao se fundamenta na critica ao vicio de ocularidade que aparece de forma esparsa ao longo da obra bachelardiana. O ocularismo é, segundo Bachelard, uma atitude que tem predominado na civilizagao ociden- tale que, exaltando o olhar, reduz 0 conhecimento a visao. A concepgao de imaginagao formal como sendo, em ulti- ma instancia, uma faculdade meramente copiadora do real, 6, para ele, uma decorréncia da atitude ocularista. Para Bachelard, a verdadeira imaginagao é a imagina- go material, pois enquanto a imaginagéo formal é pura- mente contemplativa e opera a partir de um distanciamento do mundo, a imaginagao material, ao contrario, resulta de um corpo-a-corpo com a materialidade do mundo, tornan- do-se, assim, dinémica e transformadora. Significativas sao as criticas de Bachelard aFreude a Sartre, cujas tendéncias intelectualistas e ocularistas fa- zem com que estes pensadores desprezem os aspectos materiais da imaginagao e passem a encarar o mundo como simples espetdculo oferecido a visdo. Isso fica claro na obra sartriana La nausée, quando Roquetin mostra sua repugnancia pelo viscoso. Para Bachelard, 0 viscoso, em lugar de ser repugnante, representa um desafio, uma pro- vocago para a mao que, ansiosa, deseja trabalhar a ma- téria pegajosa, impondo-Ihe uma forma. Partindo da distingao entre imaginagao formal e ima- ginagao material e da exaltagao desta Ultima, Bachelard vai mostrar os beneficios do trabalho da matéria para a formagao plena do homem. Conforme mostra Bachelard, & trabalhando a adversidade e a resisténcia do mundo que tomamos consciéncia da plenitude e do dinamismo de nosso ser. A imaginagao material, proveniente do contato com a materialidade do mundo, promove um vaivém ener gético, impondo, assim, um progresso e um crescimento espiritual. Nesse sentido, a fungao do irreal, prépria da imaginagao material, é de estrutura artesanal, pois como verdadeiro instrumento trabalha e molda o inconsciente, nutrindo como uma raiz oculta a psique do individuo. 68 Em Bachelard, o trabalho deixa de ser considerado como fadiga ou como algo cansativo. Voltando-se sempre para o trabalho do artista, o considera como meio de reali- zagao pessoal. E apontado na obra bachelardiana como sendo a verdadeira forma de psicanillise, pois leva a de- vaneios de vontade e promove 0 bem-estar, a realizagao pessoal e o progresso do espirito. Conforme diz Bache- lard, “a mao animada pelos devaneios do trabalho, enga- ja-se. Vai impor a matéria pegajosa um devir de firmeza, segue 0 esquema temporal das ages que impéem um progresso” A imaginagao material, liberando o espirito do peso do passado, se abre para o futuro e, estimulando no espi- rito devaneios de vontade, contribui para a dinamizagao do nosso eu mais profundo. ‘Tendo nos detido no item anterior na concepgao ba- chelardiana de tempo como instante, podemos agora re- tomé-la para analisar o segundo aspecto da vertente poé- tica de Bachelard que se refere ao do véo de verticalidade para, assim, apontar outras contribuigdes da imaginagao para a formagao plena do individuo. Vamos, entao, com- preender melhor em que consiste a dimenséo temporal do processo de formagao e de que forma esta pode se rela- cionar com a tese da descontinuidade do tempo que rege nao sé os atos epistemolégicos, mas, principalmente, as emergéncias potticas. Em 1998, Bachelard recebe um convite de um jovem poeta, Jean Lescure, para escrever um artigo sobre poe- sia, no qual elabora um texto fundamental para a compre- enséo do universo poético e que se denomina Instant poé- tique, instant metaphisique. Neste texto, Bachelard con- quista a legitimidade do devaneio e 0 direito de sonhar. 9 Bachelasd, Gaston. Laerreet es réveries dela volonté Op, ct. P.116/ 69 Mostra que a poesia 6 uma metafisica instantanea, pois um poema contém, aomesmo tempo, uma visao plena do universo e o segredo de uma alma. Ao afirmar que as experiéncias metafisicas so nor- malmente preparadas por intermindveis prdlogos, Bache- lard ressalta que a poesia, recusando preémbulos, princfpios, métodos e provas, permite que se viva num tinico instante numerosas simultaneidades, destruindo, assim, a conti- nuidade temporal do tempo da vida. Na pottica, a meta 6, pois, a verticalidade. Os instan- tes poéticos s40 como cintilagdes de uma linguagem que nos impulsiona num véo ascendente e vertical, negando, assim, o tempo linear que corre horizontalmente. Em L’air et les songes, Bachelard fala dos sonhos de véo e das imagens ascensionais, mostrando 0 beneficio destas para a satide espiritual e para a formagao do ho- mem. Em La flamme d’une chandelle, ressalta que a cha- ma da vela nos faz sonhar, provocando proliferagoes de imagens felizes. A chama da vela 6, para Bachelard, um convite a verticalidade, conduzindo o ser “em tensao para um adiante, um mais adiante, um acima”, que representa um acréscimo da psique humana. Bachelard associa o habito, a repeticao e o recomego ao tempo horizontal e continuo, apontando-lhe o sentido pejorativo. Mostra que o tempo da imaginagao que ecoa verticalmente promove a liberagao espiritual, fazendo do ser pura energia de criagao. Nesse sentido, contribuipara a formagao plena do homem. Anogao de verticalidade esta relacionada & nogéo de soliddo, pois o instante, rompendo com o passado e o fu- turo, toma-se solidao. Nao estamos dizendo, com isso, que Bachelard era um adepto do isolamento, pois em sua vida cotidiana sempre esteve rodeado de amigos, disci- pulos e leitores. Ao exaltar o instante de solidao, Bache- 70 lard quer mostrar, a nosso ver, que a relagao com 0 outro, por exemplo a relagao docente/discente, da qual fala- mos anteriormente, é importante, mas representa, ape- nas, uma parte da formagao que sé se torna completa quando o homem vive o instante de solidao que o impul- siona num véo ascensional e fecundo, fazendo-o vivenciar a imaginagao criadora, assegurando, assim, o verdadeiro crescimento espiritual. Em L’air et les songes, Bachelard evoca o psiquismo ascensional da pratica psicoterapica da escola junguiana e do método de fantasia de Desoille, que constitui uma verdadeira propedéutica que beneficia o individuo. Exal- ta, também, nesta obra, o impulso ascendente e vertical de Nietzsche como forma de crescimento espiritual. Nao se pode deixar de ressaltar que, na obra bache- lardiana, a imaginagao criadora também alimenta a cién- cia e que nos momentos de crise e de recomego da historia cientifica a racionalidade fisico-matematica se nutre da imaginagao, afastando-se, assim, do exercicio darazao de- dutiva, unidirecional e disciplinada que Ihe é habitual. Conforme mostra Bachelard, Lobatchevski, ao formular uma geometria ndo-euclidiana, estava aliando o esprit de finesse ao esprit géométrique, o que significa dizer que es- tava ousadamente introduzindo a alegria e o Itidico na imaginagao matemética. O mesmo se deu com a elabora- go da fisica relativista de Einstein e o princfpio de incer- teza de Heisemberg. Estes cientistas, como verdadeiros artistas, vivenciaram em toda a sua intensidade o instan- te de solidao e de criagao. Em La dialectique de la durée, Bachelard retoma a no- gao de ritmo para reforgar a idéia de descontinuidade temporal. Viver o impulso de verticalidade e ascensao 6 se introduzir no ela “survital”, no eld que nos conduz para além da vida e nos permite vivenciar plenamente os ins- tantes sobre diferentes ritmos temporais. Retomando a tese da Ritmoandlise que atribui a um brasileiro, Bache- n lard mostra que, segundo essa teoria, a consciéncia 6 constituida de ritmos e as neuroses so conseqiiéncias de uma desarmonia ritmica. O objetivo terapéutico da Rit- moanilise 6, pois, o de desembaracar o eu das duragdes mal feitas, das falsas permanéncias, procurando, assim, desorganizar temporalmente a consciéncia, através da formacao e da reforma do tempo vivido pelo eu espiritual. A nogao de ritmo vem corroborar a idéia de tempo como instante, tao fundamental na obra bachelardiana. Pode-se concluir que os elementos temporais sao, para Bachelard, o instante, o ritmo e 0 progresso, pois, em nés mesmos, 0 tempo experienciado sob a forma de instan- tes, de ritmos, de impulsos e de elas, ou seja, de forma des- continua. Mas os instantes nao acontecem ao acaso. Estes desenham uma trajetéria de progresso e é justamente isso que nos leva a concluir sobre a contribuicao do instante e da verticalidade para a formagao plena do sujeito. Conforme mostra Bachelard, 0 progresso se dé a par- tirde uma retomada de si que nos leva anos construir en- quanto pessoas. Esta retomada nao pode ser compreendi- da, entretanto, como uma simples repeticao de um pas- sado vivenciado pelo eu. Representa, ao contrério, um acrés- cimo do sujeito, pois a verticalidade é uma trajetéria em diregao ao progresso. Nesse sentido, 0 eu nao deve ser apenas meméria, mas deve, sim, caminhar em diregao ao futuro, actescentando sempre a si mesmo algo novo, ou seja, instruindo-se. O véo ascensional de verticalidade permite, pois, a consciéncia viver o novo e 0 abrupt, acrescendo 0 eu de novas vivéncias, o que leva ao progresso espiritual. Bachelard, numa visao otimista, preconiza que a ju- ventude racional e postica promovida pelo eterno reco- meco da razao e da imaginacéo levam a retomada e ao. aprimoramento da prépria consciéncia. Mostra que a re- tomada de si néo se dé sobre um tempo tinico, pois ha um tempo da vida biolégica, um tempo da vida cotidia- na, um tempo da vida racional e um tempo da vida estéti- ca. Estes tempos obedecem a uma hierarquizagao. Para Bachelard, o tempo da razao e o tempo da imaginagao sao superiores ao tempo da vida. Nesse sentido é otempo da razao e da imaginacao que comandam o tempo da vida, pois enquanto este tiltimo ecoa horizontalmente, o da ci cia e da poética elevam o espirito verticalmente, permitin- do que o homem tenha um crescimento espiritual. Pode-se, entéo, concluir que os caminhos de sobre- humanidade da poética e da ciéncia conduzem ao instan- te de criagao que, elevando o espirito num véo ascensio- nal, conseguem desconstruir a continuidade simples do tempo cotidiano. Bachelard nos convida a caminhar num sentido con- trério ao da continuidade horizontal da duragao. O filésofo da imaginacao criadora nos convida a viver, pois, a "con- tratempo”, desconstruindo o tempo linear e pragmatico da vida cotidiana, a partir do maravilhamento que uma experiéncia do instante fecundo de criagao racional e es- tética pode proporcionar. Viver a ascensao vertical do momento de criagéo cien- tifica e postica 6, portanto, para Bachelard, o melhor meio de instrugo e de formagao espiritual na medida em que nos afasta da rotina monétona e repetitiva que nos impede de crescer, elevando-nos, através da imaginagao criadora, s alturas num véo ascensional de liberdade plena. Ao se pensar a relagéo entre escola e vida, pode-se deduzir dai a grande contribuigéo de Bachelard para os debates pedagégicos contemporaneos. A obra de Bachelard é um convite para se viver a “contratempo" ea “contra-senso”. Isto significa que a es- cola nao deve ser um simples prolongamento da vida e do senso comum social. Nesse sentido, para aprender é ne- cessario ser dinAmico e resistir a tudo aquilo que repre- 3 senta passividade e acomodacao. O conhecimento nao Pode ser jamais contemplativo e ocioso, mas implica em trabalho, em retificagéo, em mudanga. __ Aescola como lugar de cultura deve exigir que a apren- dizagem seja um trabalho do mundo e principalmente so- bre simesmo. Enecessério a retificacdo dos conceitos an- teriores, a renovagéo constante das imagens e o desejo de instaurar 0 novo. A escola 6, pois, um lugar de for- magao, mas principalmente de deformagao e de reforma, no qual o sujeito, em construgao permanente, renasce a cada instante como um ser renovado. Dessa forma, o homem consegue, através da dialogia da razao e do véo ascensional e fecundo da imaginagao, trilhar os caminhos de sobre-humanidade que, elevando- 0 espiritualmente, o tornam um sur-homme, promovendo, assim, a verdadeira sur-existence que deve ser ameta pri mordial de toda educagao. 74 Conc.iusAo Oprojeto bachelardiano de expressar adequadamen- te 0 novo espirito cientifico e de elaborar uma fenomeno- logia do imagindrio deixa entrever o papel estrutural arquitet6nico da razdo e da imaginagéo que, na produgao de conceitos ou de imagens, faz do ato criador o objetivo primordial da vida humana. Uma idéia central serve de forga diretriz ao projeto do filésofo do nao. Trata-se da idéia de que a imaginagao conduz a liberdade, pois permite o surgimento do novo e do inesperado. A preocupacao primordial de Bachelard 6, pois, mostrar como se dé a instauracao do novo e do abrupto que irrompem de forma imprevista em nosso ca- minho. Tanto na epistemologia como na poética esta pre- sente a idéia de imaginagao como fonte de produgao de conceitos e geradora de imagens que brotam no amago da consciéncia. Mas como diz Margolin: “A ciéncia e a poesia, por mais proliferantes e imprevisiveis que sejam, nao sao fru- tos de uma geracao espontnea; elas tém um criador, em- bora sejam também criadoras, ¢ este criador éo homem, 0 homem que fala"?. Nesse sentido, pode-se denotar aolon- 1. Margolin, Jean-Claude. Bachelard. Paris: Seuil, 1974, p. 86. 78

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