Cinema Gay Brasileiro (PPGCOM, 2015)
Cinema Gay Brasileiro (PPGCOM, 2015)
Cinema Gay Brasileiro (PPGCOM, 2015)
FEDERAL
DE
PERNAMBUCO
CENTRO
DE
ARTES
E
COMUNICAO
PROGRAMA
DE
PS-GRADUAO
EM
COMUNICAO
Luiz
Francisco
Buarque
de
Lacerda
Jnior
Catalogao
na
fonte
Bibliotecria
Maria
Valria
Baltar
de
Abreu
Vasconcelos,
CRB4-439
L131c
302.23
CDD (22.ed.)
AGRADECIMENTOS
Agradeo
ainda
a
Ilka
Tavares,
minha
me,
que
mesmo
em
condies
difceis,
elegeu
a
nossa
educao
minha
e
de
meu
irmo
como
prioridade,
o
que
fez
e
faz
uma
enorme
diferena
ainda
hoje,
especialmente
no
que
diz
respeito
gama
de
oportunidades
que
temos
frente.
Por
fim,
agradeo
a
Joo
Vigo,
meu
marido
e
companheiro
h
dez
anos,
e
que
nos
ltimos
quatro
teve
que
lidar
com
a
fase
doutorado,
que
contou,
de
minha
parte,
com
uma
brusca
queda
de
renda
e
um
repentino
aumento
da
irritabilidade.
Sou
grato
por
seu
apoio
em
todos
os
nveis
e
pela
segurana
e
tranquilidade
que
sua
presena
traz,
sempre.
RESUMO
Grande
parte
dos
estudos
a
respeito
do
homoerotismo
no
cinema
brasileiro
teve
como
norte,
at
ento,
as
polticas
de
representao
e
sua
anlise
do
potencial
dos
filmes
de
conservao
ou
transgresso
dos
discursos
heteronormativos
hegemnicos.
No
perdendo
de
vista
essa
questo,
mas
ampliando
o
leque
de
abordagens,
esta
tese
passa
em
revista
a
histria
do
cinema
brasileiro
e
seu
tratamento
do
homoerotismo
masculino,
buscando
analisar,
por
meio
de
um
formato
panormico,
diferentes
questes
em
torno
do
tema.
Assim,
as
chanchadas
das
dcadas
de
1930,
40
e
50
so
investigadas
a
partir
de
dois
elementos:
seu
uso
cmico
de
esteretipos
e
sua
relao
com
a
cultura
homoertica
da
poca
atravs
do
conceito
de
espectatorialidade
queer.
J
os
primeiros
filmes
que
abordaram
o
tema
de
forma
direta,
na
dcada
de
60,
so
analisados
a
partir
de
sua
relao
com
a
homofobia
enquanto
elemento
constitutivo
da
masculinidade
nacional.
As
pornochanchadas
e
o
cinema
da
Retomada,
por
sua
vez,
so
examinados
a
partir
de
sua
relao
com
as
identidades
homoerticas
vigentes
em
cada
perodo,
sejam
a
bicha,
o
bofe
e
o
entendido
do
primeiro
caso,
seja
o
gay
do
segundo.
Os
curtas-metragens
das
dcadas
de
1990
e
2000
e
os
festivais
de
cinema
LGBT
so
descritos
luz
da
emergncia
da
concepo
de
um
cinema
gay
brasileiro.
Por
fim,
o
cinema
contemporneo
interpelado
tanto
a
partir
de
sua
relao
com
duas
diferentes
tendncias
do
ativismo
LGBT
o
assimilacionismo
e
o
liberacionismo
quanto
por
sua
aproximao
da
sensibilidade
camp
e
dos
fundamentos
dos
estudos
queer.
ABSTRACT
So
far,
most
of
the
research
on
Brazilian
queer
cinema
was
based
on
the
politics
of
representation,
i.e.,
on
the
potential
(or
lack
thereof)
of
movies
in
disrupting
the
hegemonic
heteronormative
discourses.
Keeping
an
eye
on
this
issue,
but
also
trying
to
broaden
the
range
of
approaches,
this
thesis
reviews
the
history
of
Brazilian
cinema
and
its
representation
of
male
homoeroticism,
trying
to
analyze
a
diverse
array
of
issues
surrounding
the
topic.
In
this
sense,
the
chanchadas
of
the
1930s,
40s
and
50s
are
analyzed
from
two
different
perspectives:
its
comical
usage
of
homoerotic
stereotypes
and
its
relation
to
the
homoerotic
culture
of
its
time.
The
first
movies
that
dealt
directly
with
male
homoeroticism,
in
the
60s,
are
scrutinized
on
their
relation
to
homophobic
discourses
that
are
constitutive
of
the
national
masculinity.
The
pornochanchadas
and
the
Retomada
cinema
are
examined
in
relation
to
the
male
homoerotic
identities
particular
to
each
period,
such
as
the
bicha,
the
bofe
and
the
entendido
of
the
former,
and
the
gay
of
the
later.
The
short
films
of
the
90s
and
2000s
and
the
LGBT
film
festivals
are
considered
in
the
light
of
the
emergence
of
the
concept
of
a
Brazilian
gay
cinema.
Finally,
Brazilian
contemporary
cinema
is
analyzed
from
its
relation
to
two
different
trends
of
LGBT
activism
-
assimilationism
and
liberationism
-
and
also
from
its
use
of
both
the
camp
sensibility
and
the
assumptions
of
queer
theory.
Keywords:
Brazilian
cinema.
Gay
cinema.
Queer
cinema.
LISTA DE FIGURAS
Figura
19
Figurino
mais
discreto
mas
ainda
assim
caracterstico
dos
entendidos
em
Anjos
e
Demnios,
Estranho
Tringulo,
A
Morte
Transparente
e
As
Confisses
do
Frei
Abbora.
..................................................................................................................................
107
Figura
20
Carlinhos
e
Elona
danam
abraados
ao
som
de
Outra
Vez,
de
Roberto
Carlos.
...............................................................................................................................................
110
Figura
21
Elona
vinga-se
de
Mateus
Romeiro
entre
declaraes
debochadas
de
amor.
..............................................................................................................................................................
112
Figura
22
A
apresentao
das
trs
verses
de
Carlos:
na
primeira
linha
com
Maria,
na
segunda
com
Pedro
e
na
terceira
solteiro
(mas
no
sozinho;
uma
ficante
dorme
embaixo
do
cobertor).
...............................................................................................................
134
Figura
23
Francisco
e
Tomaz
se
abraam
e
lembram
da
me
ao
saberem
da
ida
do
segundo
Rssia.
.........................................................................................................................
137
Figura
24
Francisco
e
Tomaz
noivam,
voc
no
acha
que
eu
deixar
voc
viajar
pra
l
sem
uma
aliana,
n?
................................................................................................................
137
Figura
25
Joo
Francisco
dos
Santos
ouve
os
crimes
dos
quais
acusado.
.....................
146
Figura
26
Os
extremos
feminino
(
esquerda)
e
masculino
(
direita)
de
Joo
Francisco.
..............................................................................................................................................................
147
Figura
27
Artificialismo
em
Doce
Amianto.
....................................................................................
155
Figura
28
Artificialismo
em
Batguano.
.............................................................................................
156
Figura
29
Retroprojeo
assumida.
...................................................................................................
157
Figura
30
Mistura
indistinta
entre
frvolo
e
srio,
alto
e
baixo.
............................................
159
Figura
31
Vrios
estgios
do
relacionamento
entre
Elvis
e
Madona.
.................................
167
SUMRIO
1
Introduo
.......................................................................................................................................................
10
2
O
tipo
efeminado
e
a
transgeneridade
farsesca
..............................................................................
31
3
Prticas
de
conotao
e
espectatorialidade
queer
.........................................................................
53
4
Homofobia
.......................................................................................................................................................
72
5
A
bicha,
o
bofe
e
o
entendido
..................................................................................................................
91
6
Cinema
gay
brasileiro
..............................................................................................................................
114
7
Igualdade
vs.
diferena
...........................................................................................................................
129
8
Camp,
queer
..................................................................................................................................................
150
9
Consideraes
finais
................................................................................................................................
172
REFERNCIAS
.................................................................................................................................................
175
APNDICE
A
Filmes
abordados
por
captulo
.................................................................................
183
10
1 Introduo
O
poder
dos
meios
de
comunicao
de
massa
foi
alvo
de
estudos
ao
longo
de
todo
o
sculo
XX,
em
geral
a
partir
de
uma
perspectiva
marxista,
ou
seja,
pensando
a
comunicao
de
massa
no
contexto
da
luta
de
classes.
Na
Escola
de
Frankfurt,
a
partir
dos
anos
1930,
Walter
Benjamin
e
Theodor
Adorno
assumiram
posies
antagnicas
no
debate.
Para
Benjamin,
meios
como
a
fotografia,
o
rdio
e
principalmente
o
cinema
traziam
um
potencial
revolucionrio.
Por
um
lado,
em
comparao
com
as
artes
clssicas,
a
capacidade
expressiva
dos
novos
meios
abriria
maiores
possibilidades
de
dilogo
com
a
sensibilidade
do
indivduo
moderno.
Por
outro,
o
declnio
da
aura
prpria
s
obras
clssicas
deslocaria
a
experincia
de
venerao
para
uma
relao
muito
mais
prxima
entre
espectador
e
obra.
Havia,
porm,
um
obstculo:
No
se
deve,
evidentemente,
esquecer
que
a
utilizao
poltica
desse
controle
ter
que
esperar
at
que
o
cinema
se
liberte
da
sua
explorao
pelo
capitalismo.
Pois
o
capital
cinematogrfico
d
um
carter
contra-
revolucionrio
s
oportunidades
revolucionrias
imanentes
a
esse
controle.
(BENJAMIN,
1986
[1936],
p.
180)
11
12
4
Dois
fatores
foram
fundamentais
para
disparar
essa
crise:
por
um
lado
a
descrena
com
o
comunismo
trazida
tanto
pelo
reconhecimento
pelo
Partido
Comunista
Sovitico
dos
crimes
perpetrados
por
Stalin
quanto
pela
violenta
supresso
da
revoluo
Hngara,
em
1956;
por
outro,
o
crescente
ceticismo
em
relao
a
teorias
totalizantes
trazido
pelos
diversos
autores
ps-
estruturalistas.
5
Para
mais
detalhes
a
respeito
do
chamado
movimento
homfilo
pr-Stonewall,
ver
o
captulo
3
do
livro
Queer
Theory:
an
introduction
(JAGOSE,
1996,
pp.
93-95).
13
6
No
original:
As
I
say
in
subsequent
pages,
the
sex
organs
themselves,
as
exclusive
natural
categories,
pertain
only
the
fact
of
reproduction.
As
reproductive
organs,
they
exist
apart
from
14
No
livro,
Tyler
optou
por
trazer
tona
o
que
ele
identifica
como
expresses
de
uma
sensibilidade
homoertica
em
inmeros
filmes,
ao
longo
de
toda
a
histria
do
cinema.
Ele
parte
da
invisibilidade
histrica
qual
tais
expresses
foram
submetidas
pela
cultura
oficial,
sublinhando
os
subterfgios
e
as
brechas
utilizadas
por
elas
para,
ainda
assim,
manifestarem-se.
Nove
anos
aps
Tyler,
em
1981,
Vito
Russo
lanou
The
Celluloid
Closet:
Homosexuality
in
the
Movies,
at
hoje
o
mais
conhecido
estudo
sobre
do
tema.
Se
o
diagnstico
a
respeito
do
tratamento
dado
pelo
cinema
questo
similar
ao
de
Tyler,
sua
abordagem
oposta:
no
lugar
de
valorizar
as
excees
e
seu
potencial
subversivo,
ele
parte
para
uma
crtica
feroz
de
toda
e
qualquer
representao
homossexual,
como
resume:
A
histria
da
representao
de
lsbicas
e
gays
no
cinema
mainstream
politicamente
indefensvel
e
esteticamente
revoltante.
Podem
haver
muitos
personagens
gays
flutuando
pelas
telas
atualmente,
mas
quanto
mais
as
coisas
mudam...
[mais
permanecem
as
mesmas.]
A
visibilidade
gay
nunca
foi
realmente
uma
questo
nos
filmes.
Os
gays
sempre
foram
visveis.
a
forma
como
eles
so
mostrados
que
permanece
ofensiva
por
quase
um
sculo.7
(RUSSO,
1987
[1981],
p.
325,
traduo
minha,
grifos
no
original)
original:
The
history
of
the
portrayal
of
lesbians
and
gay
men
in
mainstream
cinema
is
politically
indefensible
and
aesthetically
revolting.
There
may
be
an
abundance
of
gay
characters
floating
around
on
various
screens
these
days
but
plus
a
change....
Gay
visibility
has
never
really
been
an
issue
in
the
movies.
Gays
have
always
been
visible.
It's
how
they
have
been
visible
that
has
remained
offensive
for
almost
a
century.
8
o
caso,
por
exemplo,
de
uma
crtica
da
poca
de
lanamento
do
livro
(ROSENBAUM,
2014
[1981])
e
de
outra
nos
30
anos
de
aniversrio
da
obra
(ADNUM,
2014
[2011]).
15
16
17
durante
a
dcada
de
1970,
assumida
inspirao
para
a
verso
brasileira
(GREEN,
2000,
pp.
427-436).
Porm,
foi
somente
na
dcada
de
1990,
no
que
Regina
Facchini
(2005)
denominou
terceira
onda
do
movimento
homossexual
brasileiro,
que
a
representao
de
lsbicas
e
gays
pelos
meios
de
comunicao
de
massa
tornou-se
uma
pauta
para
o
movimento.
compreensvel,
assim,
que
o
primeiro
e
at
hoje
mais
significativo
estudo
a
respeito
da
representao
lsbica
e
gay
pelo
cinema
brasileiro,
A
Personagem
Homossexual
no
Cinema
Brasileiro,
de
Antnio
Moreno
(2001),
tenha
surgindo
somente
em
199611.
O
livro
muito
prximo
ao
trabalho
de
Vito
Russo
em
dois
aspectos:
em
primeiro
lugar,
na
amplitude
da
pesquisa,
que
se
prope
a
abarcar
toda
a
cinematografia
brasileira
de
longa
metragem,
da
mesma
forma
que
Russo
havia
se
debruado
sobre
toda
a
histria
do
cinema
estadunidense.
Em
segundo,
pela
nfase
na
crtica
ao
que
ele
considera
esteretipos
depreciativos
aos
homossexuais,
apresentando,
ao
seu
final,
um
quadro
de
preocupao:
Do
exposto,
conclui-se
que
o
retrato
existencial,
social
e
cultural
do
homossexual
feito
pelo
cinema
brasileiro
,
no
mnimo,
deformante.
No
aspecto
dos
filmes
analisados,
raros
demonstram
um
tratamento
humanstico
ou
tico
do
homossexual,
um
ser
que
tem
direito
de
escolha
sexual
[sic].
Pelo
retrato
social
oferecido
nesses
filmes,
o
homossexual
seria,
em
sntese:
um
sujeito
alienado
politicamente;
existente
em
todas
as
classes
sociais,
com
preponderncia
na
classe
mdia
baixa,
onde
geralmente
tem
um
subemprego;
de
comportamento
agressivo
e
que
usa,
frequentemente,
um
gestual
feminino
e
exacerbado,
o
que
se
estende
ao
gosto
pelo
vesturio;
e
que,
nos
relacionamentos
interpessoais,
mostra
tendncia
solido
e
incapaz
de
uma
relao
monogmica,
pois
utiliza-se
de
vrios
parceiros,
geralmente
pagos,
para
ter
companhia.
(MORENO,
2001,
p.
291)
Apesar
das
diferentes
estratgias
empregadas
pelos
autores
citados,
todos
os
estudos
apresentam
uma
mesma
postura
poltica
ao
posicionar-se
na
perspectiva
da
luta
ativista,
ou
seja,
tendo
como
horizonte
a
libertao
da
opresso
de
uma
ideologia
hegemnica
em
termos
sexuais.
Nesse
sentido,
os
filmes
so
sempre
analisados
pelo
seu
suposto
retrato
negativo
ou
positivo
feito
das
identidades
e
da
prtica
homoertica,
pela
sua
ratificao
ou
transgresso
da
ideologia
dominante,
enfim,
pelo
seu
potencial
de
conservao
ou
mudana
do
desequilbrio
histrico
entre
homo
e
heterossexuais.
Com
essa
postura,
os
11
Primeiramente
na
forma
de
dissertao
de
mestrado
e
cinco
anos
mais
tarde
como
livro.
18
autores
assumem
seu
lugar
dentro
da
prpria
luta,
numa
estratgia
de
crtica
produo
cinematogrfica
passada
e
presente
de
forma
a
influenciar
os
caminhos
da
futura.
O
prprio
Waugh,
ao
voltar
aos
seus
textos
das
dcadas
de
1970
e
80,
identifica
essa
disposio
eminentemente
ativista,
que
ele
justifica
atravs
do
contexto
da
poca:
claro
que
esse
clima
de
crise
permanente,
que
foi
o
pano
de
fundo
para
esses
vinte
anos
de
crticas
cinematogrficas,
incentivou
meu
tom
incisivo/pedaggico.
Estrear
numa
revista
da
comunidade
ativista
como
The
Body
Politic,
enraizada
no
ramo
mais
esquerda
do
liberacionismo
gay,
ou
num
peridico
cientfico
radical
de
crtica
miditica
como
Jump
Cut,
nascido
do
casamento
entre
marxismo
e
feminismo,
certamente
me
incutiu
o
hbito
de
ver
politicamente
filmes,
imagens
e
o
mundo.
No
final
dos
anos
1970,
havia
essa
expectativa
ingnua
no
ar
de
que
o
clima
de
urgncia
a
crise
de
Anita
Bryant
[que
tentava
revogar
leis
anti-
discriminao],
a
perseguio
da
revista
The
Body
Politic
em
Toronto,
as
batidas
policias
nos
bares
de
Montreal,
a
Proposta
Briggs
na
Califrnia
[de
demisso
de
professores
homossexuais
das
escolas
pblicas]
no
duraria
muito.
Imaginvamos
que
ao
desmascarar
e
desafiar
o
sistema,
iramos
seno
derrot-lo,
pelo
menos
empurr-lo
na
direo
certa.12
(WAUGH,
2000,
p.
2,
traduo
minha)
Esse
modelo
de
abordagem
e
crtica
foi
pouco
a
pouco
abandonado
por
vrios
dos
antigos
e
boa
parte
dos
novos
pesquisadores,
devido
a
algumas
mudanas
no
mbito
da
academia,
do
ativismo
e
dos
prprios
meios
de
comunicao
de
massa.
Uma
delas
diz
respeito
compreenso
da
relao
entre
espectador
e
meio:
um
nmero
de
pesquisas
etnogrficas
de
recepo
nas
dcadas
de
1970
e
80,
ligadas
principalmente
aos
Estudos
Culturais,
comeou
a
identificar
no
espectador
no
um
receptculo
passivo
de
tudo
que
o
meio
lhe
transmitia.
Pelo
contrrio,
percebia-se
que
a
espectatorialidade
compunha-se
de
uma
elaborao
ativa
daquilo
que
era
recebido,
a
partir
das
condies
materiais
e
bagagem
ideolgico-cultural
do
espectador,
constitudas
a
partir
de
fatores
como
nao,
raa,
classe,
gnero,
orientao
sexual,
entre
muitos
outros.
No
influente
artigo
Encoding/Decoding,
Stuart
Hall
(2006
[1980]),
sem
pretender
esgotar
a
questo,
identificou
trs
possveis
modos
de
recepo:
na
dominante/hegemnica,
o
discurso
12
No
original:
Of
course
the
atmosphere
of
permanent
crisis
that
has
been
the
backdrop
to
these
twenty
years
of
film
writings
has
encouraged
the
homiletic/pedagogical
tone.
Starting
out
writing
for
an
activist
community
paper
like
The
Body
Politic,
rooted
in
the
leftist
branch
of
gay
liberation,
or
a
radical
journal
of
media
criticism
like
Jump
Cut,
borne
out
of
the
marriage
of
Marxism
and
feminism,
certainly
imprinted
a
habit
of
seeing
movies,
images,
and
the
world
politically.
There
was
a
nave
assumption
in
the
air
in
the
late
seventies
that
the
feeling
of
urgency
the
Anita
Bryant
crisis,
the
Toronto
prosecution
of
the
TBP
[The
Body
Politic],
the
Montreal
bar
raids,
the
Briggs
Initiative
in
California
wasnt
going
to
last.
We
assumed
that
unmasking
and
challenging
the
system
would,
if
not
bring
it
to
its
knees,
at
least
nudge
the
world
in
the
right
direction.
19
20
For
example,
in
1980
and
1981,
Pope
John
Paul
II
delivered
a
series
of
pronouncements
reaffirming
his
commitment
to
the
most
conservative
and
Pauline
understandings
of
human
sexuality.
In
condemning
divorce,
abortion,
trial
marriage,
pornography,
prostitution,
birth
control,
unbridled
hedonism,
and
lust,
the
pope
employed
a
great
deal
of
feminist
rhetoric
about
sexual
objectification.
Sounding
like
lesbian
feminist
polemicist
Julia
Penelope,
His
Holiness
explained
that
considering
anyone
in
a
lustful
way
makes
that
person
a
sexual
object
rather
than
a
human
being
worthy
of
dignity.
14
No
original:
The
dangerous
complicity
between
progressives
dedicated
to
visibility
politics
and
conservatives
patrolling
the
borders
of
museums,
movie
houses,
and
mainstream
broadcasting
is
based
on
their
mutual
belief
that
representations
can
be
treated
as
real
truths
and
guarded
or
championed
accordingly.
Both
sides
believe
that
greater
visibility
of
the
hitherto
under-represented
leads
to
enhanced
political
power.
The
progressives
want
to
share
this
power
with
others;
conservatives
want
to
reserve
this
power
for
themselves.
Insufficient
understanding
of
the
relationship
between
visibility,
power,
identity,
and
liberation
has
led
both
groups
to
mistake
the
relation
between
the
real
and
the
representational.
21
com
o
que
a
sociedade
espera
do
sexo
que
foi
designado
ao
indivduo
(fmea
ou
macho).
um
conceito
que
se
contrape
ao
de
transgeneridade.
16
Para
mais
detalhes
a
respeito
do
movimento
queer,
ver
o
captulo
7,
seo
HIV/Aids
discourse
22
23
Assim,
nesse
novo
cenrio
de
identidades
sexuais
menos
slidas,
certas
contradies
dos
estudos
de
representao
da
primeira
gerao
em
especial
os
de
Russo
e
Moreno
tornaram-se
patentes.
Em
primeiro
lugar,
a
partir
da
concepo
das
identidades
sexuais
como
produes
histrica
e
culturalmente
localizadas,
ficou
mais
clara
a
necessidade
da
contextualizao
das
representaes
passadas.
No
caso
de
Russo,
os
vrios
perodos
da
histria
do
cinema
americano
foram
todos
julgados
a
partir
das
identidades
lsbica
e
gay,
disseminadas
somente
a
partir
do
movimento
liberacionista
da
dcada
de
1970.
Isso
no
s
explica,
mas
tambm
fragiliza
suas
crticas
eminentemente
condenatrias,
uma
vez
que
boa
parte
das
obras
foram
julgadas
por
parmetros
ento
inacessveis
a
elas18.
Adicionalmente,
a
demanda
por
uma
representao
positiva
ou
ideal
foi
tambm
problematizada,
j
que,
pelas
mesmas
razes,
esta
seria
sempre
arbitrria
e
excludente.
O
prprio
Russo
pareceu
ter
identificado
esse
problema,
o
que
fez
com
que
a
edio
revisada
de
seu
livro,
apesar
de
contar
com
poucas
alteraes
nas
anlises,
viesse
com
um
posfcio
onde
ele,
ao
sugerir
uma
soluo
geral
para
as
representaes,
evitou
recorrer
s
identidades
lsbica
e
gay:
Da
mesma
forma
que
Shes
Gotta
Have
It,
de
Spike
Lee,
no
sobre
negros,
e
Chan
Is
Missing
no
sobre
chineses,
Desert
Hearts,
Parting
Glances
e
Prick
Up
Your
Ears
no
so
sobre
lsbicas
e
gays.
verdade
que
cada
um
desse
filmes
oferece
uma
perspectiva
cultural
nica
definida
pela
experincia
de
sua
minoria,
mas
eles
no
so
sobre
ser
diferente.
Eles
superaram
a
diferena.
As
nicas
vezes
em
que
tivemos
personagens
gays
interessantes
no
mainstream
foi
quando
os
diretores
tiverem
coragem
de
mostr-los
de
forma
casual,
quando
eles
eram
implicitamente
gays
num
filme
que
no
era
sobre
homossexualidade.
Assim,
defendo
o
fim
de
filmes
sobre
a
homossexualidade.
No
lugar,
mais
filmes
que
explorem
personagens
que
por
acaso
sejam
gays
e
como
17
No
original:
It
is
a
rather
amazing
fact
that,
of
the
very
many
dimensions
along
which
the
genital
activity
of
one
person
can
be
differentiated
from
that
of
another
(dimensions
that
include
preference
for
certain
acts,
certain
zones
or
sensations,
certain
physical
types,
a
certain
frequency,
certain
symbolic
investments,
certain
relations
of
age
or
power,
a
certain
species,
a
certain
number
of
participants,
etc.
etc.
etc.),
precisely
one,
the
gender
of
object
choice,
emerged
from
the
turn
of
the
century,
and
has
remained,
as
the
dimension
denoted
by
the
now
ubiquitous
category
of
'sexual
orientation'.
18
importante
ressaltar
que
no
defendo
que
a
contextualizao
deva
servir
de
absolvio
de
24
No
caso
de
Moreno
o
problema
mais
evidente,
uma
vez
que
o
Brasil
apresentou
uma
ruptura
mais
acentuada
entre
dois
diferentes
modelos
de
inteligibilidade
das
prticas
homoerticas
masculinas:
at
o
final
da
dcada
de
1980,
a
hegemonia
pertencia
ao
modelo
denominado
hierrquico,
onde
a
homossexualidade
masculina
era
definida
menos
em
termos
do
gnero
do
objeto
de
desejo
e
mais
pela
expresso
de
gnero
do
prprio
indivduo.
Assim,
certos
homens
popularmente
denominados
bofes
podiam
praticar
sexo
com
outros
homens
e
ainda
assim
salvaguardar
seu
status
heterossexual,
desde
que
mantivessem
uma
postura
masculina
e
o
papel
ativo
no
ato.
J
outros
as
bichas
tinham
seu
status
homossexual
eminentemente
definido
pela
postura
feminina,
em
detrimento
do
direcionamento
do
desejo
sexual
em
si.
Quando
Moreno
escreveu
sua
dissertao,
em
1996,
o
modelo
igualitrio
muito
prximo
do
modelo
estadunidense
das
lsbicas
e
gays
assimilacionistas,
definido
pelo
gnero
do
objeto
de
desejo
e
seguindo
um
padro
eminentemente
branco,
de
classe
mdia,
cisgnero
e
monogmico
estava
em
amplo
processo
de
disseminao,
atravs
da
conjuno
entre
mercado
e
movimento
ativista.
A
popularizao
do
modelo
igualitrio
contou,
alm
disso,
com
uma
estratgia
de
descolamento
e
negao
do
modelo
anterior,
dada
a
imensa
carga
de
rejeio
que
sofria
a
figura
da
bicha.20
Assim,
tanto
a
falta
de
contextualizao
para
julgar
toda
a
cinematografia
brasileira
de
antes
de
1990,
quanto
uma
postura
de
adeso
estratgia
de
distanciamento
do
modelo
hierrquico
e,
especialmente,
da
figura
da
bicha,
podem
explicar
o
fato
de
Moreno
ter
eleito
certas
caractersticas
a
ligao
com
a
marginlia,
a
ausncia
de
conjugalidades
heteronormativas
e,
especialmente,
a
efeminao
masculina
como
elementos
definidores
de
uma
representao
negativa.
Isso
pode
ser
percebido
nos
seguintes
19
No
original:
In
the
same
way
that
Spike
Lee's
She's
Gotta
Have
It
is
not
about
black
people
and
Chan
Is
Missing
is
not
about
Chinese
people,
so
Desert
Hearts
and
Parting
Glances
and
Prick
Up
Your
Ears
are
not
about
lesbians
and
gay
men.
True,
each
of
these
films
offers
a
unique
cultural
perspective
defined
by
minority
experience,
but
they
are
not
about
the
issue
of
being
different.
They
take
difference
for
granted.
The
few
times
gay
characters
have
worked
well
in
mainstream
film
have
been
when
filmmakers
have
had
the
courage
to
make
no
big
deal
out
of
them,
when
they
have
been
implicitly
gay
in
a
film
that
was
not
about
homosexuality.
So
no
more
films
about
homosexuality.
Instead,
more
films
that
explore
people
who
happen
to
be
gay
in
America
and
how
their
lives
intersect
with
the
dominant
culture.
20
Abordo
em
detalhes
os
dois
modelos
e
a
passagem
de
um
ao
outro
nos
captulos
5
e
6.
25
21
O
camp
considerado
um
estilo
ou
sensibilidade
eminentemente
homossexual,
caracterizado
conceito no captulo 8.
22
Como
mostram
as
pesquisas
histricas
de
Joo
Silvrio
Trevisan
(2000)
e
James
Green
(2000),
por
exemplo.
26
Por
fim,
talvez
o
fator
mais
importante
na
mudana
pela
qual
passaram
os
estudos
das
representaes
lsbicas
e
gays
tenha
sido
a
prpria
transformao
dos
meios
de
comunicao
em
geral
e
do
cinema
em
particular.
A
escassez
de
outrora
foi
substituda
por
uma
quantidade
cada
vez
maior
de
personagens
e
temas
homoerticos;
o
uso
majoritrio
de
esteretipos
deu
lugar
a
uma
diversidade
de
abordagens;
as
prprias
lsbicas
e
gays
comearam
a
produzir
suas
representaes
de
forma
mais
frequente
e
manifesta.
Assim,
esse
novo
contexto
pareceu
no
mais
exigir
uma
crtica
incisiva,
no
molde
das
anteriores,
e
trouxe
tona,
por
sua
vez,
um
nmero
de
outras
questes
que
passaram
disputar
o
foco
dos
pesquisadores.
Thomas
Waugh,
analisando
o
histrico
de
sua
prpria
produo
crtica,
identifica
essas
mudanas:
[Com
o
passar
do
tempo,
houve]
uma
alterao
de
tom,
menos
reativo,
espero
que
mais
profundo,
menos
prescritivo,
mais
tolerante,
mais
disposto
a
perceber
prazer
e
contradio
nas
formas
culturais.
[...]
Enquanto
amos
da
escassez
abundncia
[de
representaes
lsbicas
e
gays]
e
eu
ia
da
crtica
cultural
ao
texto
acadmico
(paradoxalmente,
agora
que
h
tanto
a
se
criticar
e
tantas
pessoas
fazendo-o
to
mal),
eu
tambm
estava
indo
de
um
rgido
essencialismo
a
um
relativismo
ambivalente,
do
autorismo
cinfilo
ao
ecletismo
ps-moderno,
do
Stalinismo
de
imagens
positivas
a
uma
indiferena
benfica
com
relao
a
doutrinas
de
danos
sociais
causados
por
esteretipos
negativos
(em
parte
pelo
fato
da
doutrina
de
danos
sociais
do
movimento
anti-pornografia
ter
permanentemente
devastado
as
j
frgeis
garantias
constitucionais
de
liberdade
de
expresso
no
Canad).
23
(WAUGH,
2000,
pp.
3-4,
traduo
minha)
Os
artigos
da
coletnea
Queer
Cinema:
The
Film
Reader
(BENSHOFF;
GRIFFIN,
2004)
so
exemplares
das
inmeras
direes
que
tomaram
os
estudos
cinematogrficos
queer
uma
vez
ultrapassado
o
contexto
das
polticas
de
representao
da
primeira
gerao.
H,
por
exemplo,
estudos
que
se
dedicam
a
uma
abordagem
mais
autorista,
onde
a
suposta
homossexualidade
de
diretores
como
Dorothy
Arzner
e
George
Cuckor,
ou
dos
diversos
produtores
de
filmes
de
fisiculturismo
estadunidenses
das
dcadas
de
1940
a
1960,
levam
reviso
de
suas
obras
atravs
de
um
vis
queer.
H
tambm
anlises
mais
23
No
original:
There
has
also
been
a
changed
tone,
less
reactive,
hopefully
more
profound,
less
prescriptive,
more
tolerant,
more
willing
to
see
pleasure
and
contradiction
in
cultural
forms.
[]
As
I
was
moving
from
famine
to
feast,
and
as
I
moved
away
from
criticism
(paradoxically,
now
that
there
was
so
much
out
there
to
criticize
and
so
many
people
doing
it
so
badly),
I
was
moving
also
from
a
rigid
essentialism
to
an
ambivalent
relativism,
from
cinephile
auteurism
to
pomo
ecletism,
from
positive
image
Stalinism
to
a
benign
indifference
to
doctrines
of
social
harm
caused
by
negative
stereotypes
(in
part
because
the
antipornography
movements
doctrine
of
social
harm
has
permanently
devastated
our
already
shaken
constitutional
guarantees
of
freedom
of
speech
in
Canada).
27
primeiro
lugar,
devido
ao
meu
interesse
pessoal,
enquanto
gay,
pelo
tema,
o
que
me
levou
a
ter
um
contato
pregresso
com
boa
parte
dos
filmes
que
analiso
e
das
questes
que
identifico;
em
segundo,
pela
impossibilidade
de
tratar
tanto
do
homoerotismo
masculino
quanto
do
feminino
com
tal
abrangncia
no
tempo
que
o
doutorado
disponibiliza,
em
especial
pelo
fato
do
segundo
implicar
em
questes
bastante
diversas
das
que
trato
aqui.
26
A
lista
de
todos
os
filmes
de
meu
recorte
inicial
encontra-se
no
Apndice
A.
28
programas
dos
festivais
de
cinema
LGBT27
foram
a
principal
fonte
para
a
seleo
dos
16
longas
que
representam
o
perodo
que
vai
de
1996
a
2014.
Somando-se
a
isso,
utilizei
ainda
a
Mostra
Competitiva
do
Festival
Mix
Brasil
de
Cinema
da
Diversidade
Sexual
para
ter
um
retrato
condensado
da
produo
em
curta-metragem
das
duas
ltimas
dcadas,
formato
que
tambm
abordo
junto
com
os
longas
do
mesmo
perodo.28
Esse
recorte
inicial
me
permitiu
identificar
diferentes
questes
ligadas
a
perodos
ou
gneros
cinematogrficos
especficos
das
chanchadas
s
pornochanchadas,
do
cinema
dos
anos
60
ao
chamado
cinema
contemporneo
que
mostraram-se
relevantes
para
a
discusso
do
homoerotismo
masculino
no
cinema
nacional,
emprestando
tese
um
formato
panormico
onde
cada
captulo
centra-se
em
uma
questo
particular.
Nesse
sentido,
se
eu
tinha
a
inteno
inicial
de
me
afastar
da
problemtica
da
representao,
influenciado
pelo
contexto
que
sugeria
a
sua
superao
e
propunha
uma
multiplicidade
de
outras
perspectivas,
o
contato
direto
com
os
filmes
fez
emergir
algumas
discusses
que
diziam
ainda
respeito
ao
tema
e
que
no
haviam
sido
endereadas
por
estudos
anteriores.
O
segundo
captulo,
por
exemplo,
se
dedica
a
investigar
as
chanchadas
das
dcadas
de
1930,
45
e
50
e
sua
explorao
cmica
de
elementos
e
identidades
prprios
da
cultura
homoertica
masculina
da
poca
caso
do
tipo
efeminado
e
da
transgeneridade
farsesca
buscando
entender
seu
impacto
sobre
os
discursos
hegemnicos
a
respeito
de
gnero
e
sexualidade.
J
o
terceiro
captulo,
fugindo
um
pouco
da
questo
da
representao,
estende
a
investigao
do
primeiro,
retomando
as
chanchadas
a
partir
da
perspectiva
da
espectatorialidade
queer,
ou
seja,
a
partir
do
suposto
olhar
do
espectador
queer
da
poca.
Busca,
assim,
pontos
de
dilogo
e
no
somente
de
explorao,
como
no
captulo
anterior
entre
os
filmes
e
a
cultura
homoertica
de
ento
a
partir
da
relao
de
ambos
com
o
carnaval
e
com
as
divas
do
rdio.
27
Dentre
os
quais
o
Festival
Mix
Brasil
de
Cinema
da
Diversidade
Sexual,
For
Rainbow
Festival
29
O
quarto
captulo,
por
sua
vez,
debrua-se
sobre
dois
filmes
da
dcada
de
1960
O
Beijo
(Flvio
Tambellini,
1964)
e
O
Menino
e
o
Vento
(Carlos
Hugo
Christensen,
1966)
que
pela
primeira
vez
retrataram
a
homossexualidade
de
forma
direta,
investigando
como
tal
abertura
teve
que
passar
necessariamente
pela
homofobia
enquanto
elemento
intrnseco
construo
da
masculinidade
nacional.
O
quinto
captulo
investiga
as
pornochanchadas
das
dcadas
de
1970
e
80
e
como
sua
recorrente
representao
da
homossexualidade
masculina
espelhou
a
lgica
e
identidades
homoerticas
vigentes
poca,
caso
do
modelo
hierrquico
da
bicha
e
do
bofe
e
da
mudana
trazida
pelo
entendido.
Analisa
ainda
as
formas
com
que
os
filmes
autorizavam
ou
deslegitimavam
o
homoerotismo
retratado.
No
sexto
captulo,
as
anlises
flmicas
do
lugar
a
uma
abordagem
histrica
da
emergncia
de
um
novo
modelo
de
organizao
das
prticas
homoerticas
masculinas
a
partir
dos
anos
1990,
denominado
igualitrio.
Nesse
sentido,
ele
analisa
o
surgimento
da
identidade
gay,
do
ativismo
centrado
nas
polticas
de
representao,
dos
festivais
de
cinema
LGBT
e
da
prpria
ideia
de
um
cinema
gay
brasileiro,
elementos
importantes
para
o
entendimento
do
cinema
nacional
produzido
a
partir
da
Retomada,
que
abordo
nos
dois
ltimos
captulos.
o
caso
do
stimo
captulo,
que
investiga
o
chamado
cinema
brasileiro
contemporneo
a
partir
de
sua
relao
com
duas
tendncias
antagnicas
do
ativismo
LGBT:
o
assimilacionismo
e
o
liberacionismo.
Por
fim,
o
caso
tambm
do
oitavo
captulo
que,
centrando-se
novamente
no
cinema
brasileiro
contemporneo,
analisa
a
adoo
por
parte
de
alguns
filmes
de
elementos
que
tensionam
o
modelo
igualitrio
e
a
identidade
gay,
seja
a
sensibilidade,
postura
e
estilo
camp,
sejam
as
prticas
desconstrucionistas
dos
estudos
queer.
Se
parto
de
um
recorte
inicial
bastante
amplo,
restrinjo
as
anlises
de
cada
captulo
a
um
nmero
reduzidos
de
filmes,
citando
o
restante
da
produo
somente
a
ttulo
de
mapeamento
ou
como
base
de
comparao,
seja
dos
elementos
comuns
a
todos
os
filmes
do
conjunto,
seja
das
variaes
que
os
filmes
apresentam
com
relao
questo
sendo
abordada.
Nesse
sentido,
o
principal
critrio
de
seleo
das
obras
que
compuseram
as
anlises
foi
a
sua
relevncia
para
o
desenvolvimento
da
questo
tratada,
fazendo
com
30
que,
em
certos
captulos,
alguns
ttulos
mais
conhecidos
fossem
apenas
citados,
enquanto
outros
mais
obscuros
recebessem
anlises
mais
detalhadas.
Por
fim,
tambm
perceptvel
a
partir
da
descrio
dos
captulos
que
fundamento
minha
pesquisa
na
premissa
do
ps-estruturalismo
e
dos
estudos
queer
no
que
diz
respeito
s
identidades
sexuais,
ou
seja,
assumo
seu
carter
histrica
e
culturalmente
produzido,
condicionando
as
anlises
dos
filmes
ao
seu
contexto
e
buscando
entend-los
luz
dos
discursos
a
respeito
das
prticas
e
identidades
homoerticas
vigentes
em
cada
poca.
Nesse
sentido,
utilizo,
por
um
lado,
os
termos
homoerotismo,
homoertico,
homossexualidade
e
homossexual
(abstraindo,
nos
dois
ltimos,
o
carter
patolgico
presente
em
sua
origem)
para
descrever
as
prticas
e
identidades
afetivo-sexuais
entre
indivduos
do
mesmo
sexo
de
forma
geral.
Por
outro,
utilizo
termos
particulares
fresco,
bicha,
bofe,
entendido
e
gay,
entre
outros
para
fazer
referncia
a
identidades
e
vivncias
homoerticas
especficas
de
determinado
perodo,
esquadrinhando
sua
lgica
e
suas
particularidades
sempre
que
necessrio.
31
32
queria
polo
turstico.
Neto
foi
inclusive
retratado
pela
charge
do
Jornal
da
Bahia
em
trajes
de
Carmen
Miranda
numa
insinuao
a
respeito
de
sua
sexualidade
correndo
de
uma
multido
enfurecida
que
o
tentava
apedrejar30.
Essa
moral
que
condenava
sumariamente
as
prticas
homoerticas
era
fundamentada,
na
poca,
no
s
no
discurso
religioso,
mas
tambm
no
legal
e
mdico-cientfico.
De
acordo
com
Byrne
Fone,
em
seu
Homophobia:
a
history
(2000),
a
deslegitimao
em
grande
escala
das
prticas
homoerticas
no
Ocidente
teve
como
origem
a
Igreja
Catlica.
Sua
regulao
das
prticas
sexuais
apoiava-se
no
dever
auto-atribudo
de
proteger
o
indivduo
das
tentaes
mundanas
s
quais
a
carne
estava
exposta,
guiando
assim
sua
alma
em
direo
salvao
ps-morte.
Nesse
sentido,
a
nica
prtica
sexual
legtima
seria
aquela
consumada
entre
um
homem
e
uma
mulher,
dentro
de
uma
relao
sacramentada
pelo
matrimnio
e
unicamente
com
vistas
reproduo
(crescei
e
multiplicai-vos),
ou
seja,
pressupondo
uma
atitude
de
abnegao
do
desejo
e
do
prazer
carnal.
Se
toda
uma
variedade
de
prticas
sexuais
passou
a
ser
julgada
e
punida
de
acordo
com
essa
perspectiva,
as
prticas
homoerticas
receberam
um
tratamento
especial
devido
popularizao
de
determinada
leitura
da
parbola
bblica
sobre
as
cidades
de
Sodoma
e
Gomorra,
destrudas
pelo
fogo
sagrado
devido
iniquidade
de
seus
habitantes.
Foi
o
filsofo
helenista
Philo,
no
sculo
I,
quem
primeiro
defendeu
que
a
natureza
desta
iniquidade
estava
ligada
a
prticas
homoerticas,
a
partir
da
interpretao
de
um
trecho
originalmente
ambguo
do
relato 31 .
Tal
leitura,
disseminada
pelo
discpulo
Paulo,
tornou-se,
a
partir
da,
a
justificativa
primordial
para
a
perseguio
aos
sodomitas,
sendo
alada
ao
status
de
lei
pelo
Imprio
Romano,
no
sculo
VI.
30
Se
nos
perodos
citados
a
crtica
e
a
imprensa,
embasadas
pela
opinio
pblica,
eram
um
dos
mais
eficazes
aparatos
de
controle
moral
da
produo
cultural
do
pas,
em
contextos
ditatoriais
esse
controle
passava
a
ser
exercido
com
mais
proeminncia
pelo
Estado.
o
caso,
por
exemplo,
na
ditadura
de
Getlio
Vargas,
entre
1930
e
1945,
em
especial
devido
a
seu
projeto
de
construo
e
disseminao
de
uma
identidade
nacional,
o
que
levou
a
um
maior
controle
da
cultura
produzida
e
difundida.
Foi
nesse
contexto
que
o
Bom-Crioulo
teve
sua
reedio
interditada
pelo
governo,
em
1937,
a
pedido
da
Marinha,
que
apreendeu
os
livros
antes
mesmo
de
serem
comercializados
(TREVISAN,
2000,
p.
263).
31
Para
mais
detalhes
a
respeito
da
disputa
de
interpretaes
sobre
a
parbola
de
Sodoma
e
Gomorra,
ver
o
captulo
5
do
livro
de
Byrne
(2000).
33
ou
foram
denunciados
por
sodomia
no
Brasil,
das
quais
394
foram
condenadas
a
penas
que
variavam
entre
aoitamentos
pblicos,
confisco
de
bens,
trabalho
forado
em
navios
e
at
morte
na
fogueira,
em
trs
casos
33
Para
uma
descrio
pormenorizada
destes
estudos,
ver
o
captulo
3
de
(GREEN,
2000).
34
que
os
dois
se
casam,
para
a
diverso
do
grupo.
o
caso
tambm
da
primeira
adaptao
cinematogrfica
de
O
Cortio
(Luiz
de
Barros,
1946),
romance
naturalista
de
Alusio
Azevedo,
que
transpe
para
as
telas
o
personagem
secundrio
Albino,
empregado
domstico
efeminado
que
vive
em
meio
s
lavadeiras.
Por
fim,
ele
cita
tambm
duas
comdias
em
que
os
personagens
representados
pela
dupla
de
comediantes
Oscarito
e
Grande
Otelo
disfaram-se
em
trajes
femininos
devido
a
imperativos
do
enredo
dos
filmes,
que
tm
o
cuidado,
porm,
de
sublinhar
a
heterossexualidade
dos
personagens:
Carnaval
no
Fogo
(Watson
Macedo,
1949)
e
Carnaval
Atlntida
(Jos
Carlos
Burle,
1952).
preciso
levar
em
conta,
porm,
que
a
pesquisa
de
Moreno,
feita
em
meados
da
dcada
de
1990,
no
contou
com
os
frutos
da
multiplicao
e
sistematizao
dos
projetos
de
restaurao
de
filmes
brasileiros
mais
antigos,
que
ocorreram
somente
a
partir
da
dcada
de
2000
(BUARQUE,
2011).
Assim,
a
partir
do
atual
acesso
a
um
conjunto
mais
amplo
de
filmes
do
perodo 34 ,
possvel
perceber
uma
utilizao
recorrente
e
sistemtica
no
somente
do
que
chamo
de
transgeneridade
farsesca,
mas
tambm
do
tipo
afeminado,
como
recurso
cmico
das
chanchadas.
O
termo
chanchada
aportuguesamento
do
italiano
cianciata,
que
indica
um
discurso
sem
sentido,
uma
espcie
de
arremedo
vulgar,
argumento
falso
(VIEIRA,
2003,
p.
46)
e
que
foi
popularizado
por
crticos
brasileiros
como
epteto
depreciativo
se
refere
a
um
conjunto
de
filmes
nacionais
das
dcadas
de
1930,
40
e
50,
produzidos
majoritariamente
no
Rio
de
Janeiro,
que
uniam
nmeros
musicais
a
enredos
cmicos.
Desde
a
hegemonia
do
cinema
industrial
estadunidense
no
mercado
mundial,
na
dcada
de
1910,
o
cinema
brasileiro
passou
a
contar
com
espao
mnimo
nas
telas
nacionais.
Isso
explica
a
aliana
das
chanchadas
a
formas
culturais
j
estabelecidas
no
caso
o
teatro
de
revista,
o
rdio
e
o
carnaval
como
forma
de
atrair
pblico
e
assim
furar
o
bloqueio
do
cinema
hollywoodiano.
O
formato
das
chanchadas,
em
especial
de
sua
primeira
fase,
descendia
diretamente
dos
espetculos
de
revista,
estruturando-se
em
torno
de
nmeros
musicais
e
esquetes
de
humor,
ligados
por
uma
narrativa
mnima
que
buscava
dar
unidade
ao
conjunto.
34
Em
especial
atravs
dos
j
citados
canais
no
oficiais
de
circulao
do
cinema
brasileiro
na
internet.
35
Tal
estrutura
pode
ser
vista
em
Al,
Al
Carnaval
(Adhemar
Gonzaga,
1936),
o
nico
filme
da
primeira
fase
que
existe
integralmente
at
hoje,
sendo,
de
acordo
com
Joo
Luiz
Vieira
(1989,
p.
49),
representativo
do
modelo
que
vigorou
entre
os
anos
de
1933
e
1946
e
produziu
em
torno
de
35
obras.
O
filme
acompanha
as
peripcias
de
Tom
(Pinto
Filho)
e
Prata
(Barbosa
Jnior),
dois
revisteiros
produtores
de
espetculos
do
teatro
de
revista
em
busca
de
financiadores
para
sua
montagem,
supostamente
ensaiada
e
pronta.
De
perfil
malandro,
eles
passam
a
primeira
metade
do
filme
visitando
diversos
lugares,
de
boates
a
cassinos,
em
busca
de
um
financiador.
Uma
vez
encontrado,
passam
a
segunda
metade
do
filme
tentando
montar
s
pressas
o
espetculo
que
haviam
prometido.
No
s
sua
estrutura
remete
ao
teatro
de
revista
intercalao
de,
por
um
lado,
esquetes
de
humor
de
certa
autonomia
entre
si
e,
por
outro,
nmeros
musicais
justificados
pelos
ambientes
explorados
(boates,
cassinos,
bastidores
do
teatro)
mas
a
prpria
decupagem
das
cenas
reproduz
a
perspectiva
do
espectador
do
palco
teatral
italiano:
a
cmera
observa
frontalmente
a
ao,
mantendo-se
na
mesma
posio
durante
toda
a
sequncia,
com
a
decupagem
alternando
entre
planos
gerais
e
prximos.
Os
personagens,
com
pouco
ou
nenhum
aprofundamento
psicolgico,
remetem
mais
a
tipos,
caracterstica
prpria
do
gnero
teatral:
Os
tipos
compe
uma
conveno
do
Teatro
de
Revista
e
diferem-se
dos
indivduos,
pois
enquanto
estes
tem
um
nome,
um
passado,
conflitos,
so
imprevisveis,
aqueles
(os
tipos)
so
quantidades
fixas,
construdos
sobre
atitudes
externas.
A
tipificao
est
na
forma
da
Revista,
como
o
no
aprofundamento
dos
temas,
a
mistura
dos
gneros
e
o
desinteresse
pelo
enredo
contnuo,
o
que
possibilitava
ao
enredo
da
pea
ser
formado
de
compartimentos
e
sees.
(CORDEIRO
e
COLLAO,
2007,
p.
3)
36
O
homem
efeminado
um
outro
tipo
que
marcou
presena
em
muitas
das
chanchadas,
sempre
em
apario
pontual,
sem
qualquer
desenvolvimento
ou
ligao
com
esquetes
anteriores
ou
posteriores
ou
com
o
enredo
principal,
seu
elemento
cmico
fundamentando-se
nos
seus
prprios
trejeitos.
Em
Al,
Al
Carnaval,
o
tipo
surge
na
segunda
metade
do
filme,
quando
os
revisteiros
tentam
arregimentar
de
ltima
hora
todos
os
artistas
e
elenco
para
o
espetculo.
Em
determinado
momento,
Tom
recebe
uma
ligao
telefnica,
que
passa
para
Prata:
Prata:
comigo?
mulher
ou
homem?
Tom:
mulher.
Prata:
mulher?
Ah,
que
beleza!
[Ao
telefone]
Pronto?
[Voltando-se
para
Tom,
aps
ouvir
a
resposta]
Isso
mulher-homem!
(AL...,
1936,
00:39:05)
uso
implica
em
determinados
efeitos
e
engajamentos
do
espectador
que
so
previstos
e
pretendidos
pelo
prprio
gnero.
37
Se,
como
defende
Joo
Luiz
Vieira,
Al,
Al
Carnaval
representativo
da
primeira
fase
das
chanchadas,
pode-se
imaginar
que
o
tipo
efeminado
tinha
presena
frequente
no
restante
da
produo,
cujas
cpias
inexistem
atualmente.
O
fato
que
na
segunda
fase
do
gnero,
que
vai
de
1947
ao
incio
da
dcada
de
1960,
o
tipo
se
fez
presente
em
vrios
filmes.
Esta
nova
fase,
inaugurada
por
Este
Mundo
um
Pandeiro
(Watson
Macedo,
1947),
apresentou
uma
mudana
substancial
de
formato
das
chanchadas36.
As
esquetes
de
humor
e
os
nmeros
musicais
continuaram
a
se
fazer
presentes,
mas
os
filmes
passaram
a
dar
maior
nfase
narrativa,
mais
slida
e
desenvolvida,
em
geral
baseada
em
tramas
de
teor
pardico.
A
decupagem
das
cenas
aproximou-se
do
formato
narrativo
clssico,
com
as
diferentes
posies
e
distncias
de
cmera
construindo
um
espao
diegtico
mais
complexo
do
que
o
anterior.
Os
personagens
principais
adquiriram
uma
maior
36
O
pesquisador
Srgio
Augusto
(1989,
p.
93)
defende
que
essa
nova
fase
representa
a
forma
clssica
da
chanchada,
denominando
pr-chanchadas
as
comdias
musicais
de
antes
de
1947.
38
39
girando
em
torno
do
formato
flico
do
pepino,
colocada
no
dilogo
inicial
entre
eles,
sublinhando
o
carter
homoertico
do
tipo
efeminado:
Recepcionista:
Minha
senhora,
ns
temos
tudo
para
um
perfeito
tratamento
de
beleza.
Banhos
a
vapor,
sauna,
duchas
escocesas,
massagens
finlandesas,
tratamento
a
base
de
pepino-
Jonjoca:
A
base
de
pepino?
E
esse
tratamento
bom?
Recepcionista:
Ah,
o
meu
preferido,
minha
senhora...
Jonjoca:
Guloso!!
(DOIS...,
1960,
01:06:50)
Ao
final
da
cena,
Jonjoca,
com
um
meneio
de
mos,
ainda
zomba
dos
movimentos
delicados
do
recepcionista.
Virou
Baguna
(Watson
Macedo,
1960),
conta
tambm
com
um
tipo
efeminado
nos
bastidores
de
uma
rede
de
TV.
Ademar
(Adolfo
Machado)
assistente
da
vedete
Marli
(Ndia
Maria),
e
sua
primeira
cena
no
filme
mostra-o
ensinando
a
algumas
modelos
como
desfilar:
No,
menina!
No
nada
disso,
desce!
Me
d
esse
leno
aqui,
eu
vou
te
mostrar,
voc
est
muito
masculina!
(VIROU...,
1960,
00:28:40).
Alm
de
sua
postura
efeminada,
usa
tambm
uma
blusa
estampada,
o
que
o
destaca
em
relao
a
todo
o
restante
do
elenco
do
filme
(Figura
2).
Seu
papel
mais
extenso
do
que
os
tipos
dos
exemplos
anteriores
e
ele
aparece
em
diversas
cenas,
sendo
ainda
alvo
de
uma
piada
do
secretrio
de
Marli,
que
pede
para
que
ele
guarde
o
chapu
de
plumas
dela:
Mas
cuidado,
hein?
No
vai
soltando
plumas
por
a
no!
(VIROU...,
1960,
00:36:50).
40
Figura
2
Da
esquerda
para
a
direita,
de
cima
para
baixo,
o
tipo
efeminado
em
Carnaval
no
Fogo,
Garotas
e,
Os
Dois
Ladres
e
Virou
Baguna.
Fonte: Carnaval no Fogo (Jos Carlos Burle, 1949), Garotas e Samba (Carlos Manga, 1957), Os Dois Ladres
(Carlos Manga, 1960) e Virou Baguna (Watson Macedo, 1960).
37
O
termo
puto
era
tambm
bastante
utilizado
no
mesmo
perodo
para
designar
tal
identidade,
vindo
juntar-se
a
ele
veado
e
bicha,
em
meados
da
dcada
de
1940.
No
se
sabe
ao
certo
se
o
uso
inicial
de
cada
termo
remete
a
um
teor
pejorativo
ou
de
identificao
interna
da
subcultura
qual
se
refere.
Porm,
mesmo
no
tendo
surgindo
internamente,
alguns
termos,
com
o
tempo,
foram
apropriados
pela
subcultura,
que
subverteu
seu
teor
negativo,
passando
a
utiliz-los
como
forma
de
referncia
ao
grupo
(GREEN,
2000,
pp.
143-147).
41
Uma
das
principais
fontes
da
pesquisa
de
Green
para
essa
poca
so
os
estudos
feitos
nos
campos
mdico
e
legal
a
respeito
da
pederastia
termo
comumente
utilizado
pela
comunidade
cientfica
brasileira
para
designar
o
homoerotismo
masculino
no
Rio
de
Janeiro
e
em
So
Paulo,
que
produziram
registros
a
respeito
da
vida
e
dos
hbitos
de
inmeros
pederastas,
em
geral
selecionados
nas
ruas
e
constrangidos
a
participar
das
pesquisas
atravs
de
coero
policial.
Ao
analisar
o
mtodo
de
seleo
dos
entrevistados,
Green
observa
um
vis
na
amostragem
tanto
em
termos
de
classe
social
as
classes
baixas
eram
mais
vulnerveis
coero
policial
quanto
de
expresso
de
gnero.
Sobre
esta
segunda
questo,
comenta:
Homens
como
Alfredinho
[um
dos
indivduos
estudados],
que
gostavam
de
dormir
com
outros
homens
mas
no
se
encaixavam
nos
esteretipos
comuns
dos
pederastas
efeminados,
so
apenas
raramente
representados
nos
estudos
sobre
a
subcultura
homossexual
de
So
Paulo
nos
anos
30.
possvel
supor
que
o
nmero
desses
homens
era
relativamente
pequeno.
Contudo,
mais
provvel
que
homossexuais
como
Alfredinho,
que
no
se
vestiam
de
modo
efeminado
e
que
evitavam
essas
reas
da
cidade
onde
podiam
ser
reconhecidos
e
associados
com
um
comportamento
imoral
e
imprprio,
eram
em
geral
invisveis
para
observadores
externos,
que
procuravam
marcadores
bvios
para
identificar
pederastas,
em
lugares
onde
eles
notoriamente
se
reuniam.
De
fato,
Alfredinho
s
apareceu
nesse
estudo
de
1939
por
acaso
[estava
em
companhia
de
outro
indivduo,
este
sim
prximo
ao
esteretipo],
e
no
por
meio
de
uma
amostragem
sistematizada
efetuada
pelos
estudantes
de
criminologia.
(GREEN,
pp.
173-174)
42
O
artigo
379
do
cdigo
penal
que
criminalizava
o
uso
de
disfarces,
servia
tanto
para
controlar
a
transgeneridade
pblica
quanto
para
fundamentar
uma
postura
eminentemente
condenatria
a
ela
por
parte
do
senso
comum.
Assim,
se
os
frescos
tinham
relativa
liberdade
para
travestir-se
privadamente,
sozinhos
ou
entre
amigos,
essa
prtica
tinha
que
ser
exercida
de
forma
prudente
em
pblico.
Os
estudos
da
poca
analisados
por
Green
do
a
medida
dessa
opresso,
como
no
caso
de
Gilda,
que
[p]referia
no
andar
nas
ruas
durante
o
dia,
porque
tirava
as
sobrancelhas
e
seus
cabelos
eram
longos
como
os
de
uma
mulher.
[...]
Seu
jeito
exagerado
de
se
vestir
geralmente
era
notado
e
provocava
escndalos,
vaias,
palavres
e
perseguies
da
polcia
(GREEN,
2000,
p.
171).
Quando
tinha
que
sair,
a
exemplo
de
outros
frescos,
adotava
uma
postura
mais
masculina,
mas
sempre
mantendo
um
certo
grau
de
ambiguidade:
Gilda,
por
exemplo,
vestia
um
palet
curto
e
acinturado.
Zaz,
quando
usava
terno,
tambm
optava
por
um
estilo
exagerado.
Ele
usava
um
palet
curto
e
calas
de
cintura
alta,
que
eram
justas
nos
quadris
e
largas
nas
barras.
Quando
descreveram
Conchita,
um
alfaiate
de
profisso,
os
alunos
do
Instituto
de
Criminologia
notaram
que
sua
indumentria
era
menos
exagerada
que
a
dos
seus
amigos,
com
uma
pequena
exceo:
[...]
No
usa
pinturas,
no
depila
as
sobrancelhas,
43
44
45
princesa
Zuleima
(Fada
Santoro).
Em
Carnaval
Atlntida
(Carlos
Manga
e
Jos
Carlos
Burle,
1952),
o
professor
Xenofontes
(Oscarito)
fantasia-se
de
Helena
de
Tria
para
fazer
um
teste
em
um
filme,
j
que
o
nico
que
tem
os
dilogos
decorados.
Em
A
Dupla
do
Barulho,
Tio
(Grande
Otelo)
faz
um
papel
feminino
em
um
nmero
de
comdia
de
um
dos
espetculos
em
que
a
dupla
participa.
Em
Entrei
de
Gaiato
(J.
B.
Tanko,
1959),
Grande
Otelo,
vestido
de
vedete,
novamente
participa
de
um
nmero
de
dana
que
faz
aluso
transgeneridade
prpria
do
carnaval.
Em
Virou
Baguna
(Watson
Macedo,
1960),
Chico
(Edison
Reis
Frana)
disfara-se
de
odalisca
para
fugir
do
grupo
de
comunistas
barbudos,
aps
descobrir
seus
planos
de
revoluo
(Figura
3).
46
Figura
3
Da
esquerda
para
a
direita,
de
cima
para
baixo,
a
transgeneridade
farsesca
em
Al,
Al
Carnaval,
Carnaval
no
Fogo,
Aviso
aos
Navegantes,
Barnab,
Tu
s
Meu,
Carnaval
Atlntida,
A
Dupla
do
Barulho,
Entrei
de
Gaiato
e
Virou
Baguna.
Fonte: Al, Al Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), Carnaval no Fogo (Watson Macedo, 1949), Aviso aos
Navegantes (Watson Macedo, 1950), Barnab, Tu s Meu (Jos Carlos Burle, 1951), Carnaval Atlntida (Carlos
Manga e Jos Carlos Burle, 1952), A Dupla do Barulho (Carlos Manga, 1953), Entrei de Gaiato (J. B. Tanko,
1959) e Virou Baguna (Watson Macedo, 1960).
47
Nos
caso
citados,
a
exemplo
das
outras
trocas
de
identidade,
a
comicidade
surge
tanto
do
conflito
a
ser
continuamente
gerenciado
entre
a
essncia
masculina
do
personagem
e
o
papel
feminino
que
ele
deve
representar,
quanto
da
incongruncia
gerada
pela
coexistncia
de
elementos
femininos
e
masculinos
na
representao.
Nesse
sentido,
a
iluso
do
feminino
mostra-se
sempre
falha,
o
que
geralmente
ocorre
a
partir
de
dois
elementos:
por
um
lado,
uma
performance
deficiente,
com
voz
e
trejeitos
masculinos
constantemente
escapando
pelas
brechas
da
representao
do
feminino;
por
outro,
uma
caracterizao
visual
precria,
deixando
traos
masculinos
expostos
sob
a
superfcie
feminina.
O
nico
filme
que
utiliza
uma
estratgia
diferente
Os
Dois
Ladres
(Carlos
Manga,
1960),
onde
no
somente
a
transgeneridade
no
utilizada
pontualmente
em
uma
esquete,
e
sim
como
mote
para
o
enredo
como
um
todo,
mas
a
prpria
iluso
do
feminino
bem
sucedida,
atravs
de
uma
personificao
fiel
ao
original.
O
filme
gira
em
torno
de
um
golpe
que
Jonjoca
(Oscarito),
mestre
dos
disfarces
contratado
por
Mo
Leve
(Cyl
Farney),
tenta
aplicar
em
Madame
Gaby
(Eva
Todor).
Jonjoca
deve
fingir
ser
a
prpria
Madame
Gaby
para
conseguir
as
chaves
de
seu
cofre,
entrar
em
seu
quarto
de
hotel
e
roubar-lhe
as
joias.
No
tendo
como
contar
com
a
tenso
e
a
incongruncia
da
performance
feminina
precria
Jonjoca
imita
Madame
Gaby
com
perfeio,
do
figurino
aos
trejeitos
o
filme
se
utiliza
de
outros
artifcios
para
extrair
comicidade
das
situaes.
Em
primeiro
lugar,
a
prpria
Madame
Gaby
um
tipo
cmico
uma
dondoca
de
meia
idade
espontnea
e
espevitada
o
que
torna
cmica
simplesmente
a
reproduo
do
tipo
por
seu
duplo.
Em
segundo,
Jonjoca
tem
que
evitar
a
todo
custo
ser
visto
pela
prpria
Madame
Gaby,
o
que
leva,
dentre
outros
momentos
cmicos
de
tenso,
a
uma
das
mais
famosas
cenas
do
filme,
onde,
quando
inevitavelmente
a
encontra,
finge
ser
seu
reflexo
em
um
espelho
imaginrio.
Por
fim,
Jonjoca
(vestido
de
Madame
Gaby)
cortejado
ao
longo
de
todo
o
filme
por
outro
hspede
do
hotel,
Panario
(Jaime
Costa),
e
precisa
responder
s
suas
investidas
de
forma
a,
por
um
lado,
no
ser
descoberto
e,
por
outro,
no
deixar
o
flerte
consumar-se,
j
isto
colocaria
em
risco
a
sua
masculinidade
(o
que
ironicamente
expe
a
nica
falha
em
sua
imitao,
de
resto
perfeita,
de
Madame
Gaby).
Ainda
assim,
quando
no
est
vista
de
outros
personagens,
Jonjoca
permite
sua
essncia
masculina
libertar-se,
no
mais
das
vezes
de
forma
exasperada,
aps
longos
48
49
50
do
tipo
efeminado,
como
na
relao
ambgua
do
pianista
de
Al,
Al
Carnaval,
no
desejo
mal
disfarado
pelos
tarados
da
testemunha
em
A
Dupla
do
Barulho,
ou
na
aluso
ao
teor
flico
do
pepino
em
Dois
Ladres,
possivelmente
devido
ao
carter
pontual
e
isolado
do
tipo,
minimamente
desenvolvido
em
relao
ao
personagem
cmico.
51
52
43
A
franquia
cinematogrfica
inaugurada
com
Se
Eu
Fosse
Voc
(Daniel
Filho,
2006),
por
exemplo,
fundada
sobre
a
transgeneridade
farsesca.
J
o
quadro
Lobichomem,
parte
do
programa
televisivo
de
humor
Zorra
Total
(Rede
Globo,
2013),
gira
em
torno
do
tipo
efeminado.
53
54
Se
essa
inclinao,
junto
com
seus
modos
singulares,
coloca
Crispim
num
patamar
diferente
de
seus
pares,
o
filme
tambm
sugere
uma
relao
particular
entre
ele
e
Pitanga,
outro
membro
do
grupo.
Isso
ocorre
por
volta
da
metade
do
filme,
quando
Pitanga
tem
que
fugir
da
cidade
aps
se
envolver
em
um
confronto
durante
a
greve
dos
estivadores
que
resulta
em
duas
mortes.
Ao
saber
da
partida
de
Pitanga,
Crispim,
na
frente
de
todos,
reage
de
forma
exaltada:
Crispim:
Vai
embora,
vai!
Voc
aqui
no
consegue
mesmo
nada,
nunca
vai
conseguir.
Voc
no
d
pra
nada,
nem
mesmo
a
gente
ajudando.
Voc
no
esperto?
Melhor
mesmo
voc
ir
embora,
assim
resolve
seu
problema
e
pronto.
Pitanga:
Aqui
ningum
esperto.
Eu
preciso
sair
daqui,
s
isso.
E
voc
por
que
no
vai
embora
tambm?
O
que
te
segura?
Crispim:
Ningum!
Pitanga:
Ento
melhor
voc
calar
a
boca!
Crispim:
No
precisa
gritar.
Gritar
no
adianta.
Voc
sabe
muito
bem
que
eu
podia
ter
indo
embora
daqui
se
quisesse.
Se
no
dei
o
fora
foi
porque
no
queria
deixar
tudo
isso.
Que
cretino
que
eu
fui
Mas
eu
tambm
vou
aprender
a
viver
daqui
por
diante.
Pitanga:
Fora
daqui!
Patife!
(BAHIA...,
1960,
00:45:15)
Se,
por
um
lado,
o
filme
no
havia
desenvolvido
uma
relao
entre
os
dois
personagens
que
justificasse
a
reao
extremada
de
Crispim,
anloga
a
de
um
amante
abandonado,
por
outro,
exatamente
a
incongruncia
da
reao
que
ressalta
o
no
dito
da
relao
entre
eles.
No
por
coincidncia,
o
par
desfeito
no
momento
em
que
seu
teor
homoertico
sugerido
e
ambos
deixam
o
grupo.
Crispim
s
reaparece
no
final
do
filme,
quando
Manuel,
outro
membro
do
grupo,
o
procura,
pedindo
sua
ajuda
para
livrar
Tnio,
o
protagonista
do
filme,
da
cadeia.
Na
cena,
Crispim
est
pintando
um
quadro
em
um
grande
apartamento
pouco
mobiliado,
mas
com
obras
de
arte
espalhadas
pelo
espao,
que
supostamente
pertence
a
um
personagem
misterioso
que
torna-se
seu
protetor.
Crispim
conta
a
Manuel
que
est
de
partida
para
o
Rio
e
recusa-se
a
ajudar
Tnio,
j
que
ningum
o
ajudou
quando
ele
foi
expulso
do
grupo
por
Pitanga.
Antes
de
sair,
Manuel
pergunta
quando
ele
vai
para
o
Rio,
ao
que
Crispim
responde:
Ah,
j.
Mas
no
desmancho
a
casa.
D
pena,
to
bonita...
Olha
55
ento
Manuel
de
cima
abaixo,
enquanto
este
est
de
costas,
e
completa:
Por
que...
por
que
voc
no
fica
pro
caf?
(BAHIA...,
1960,
01:26:20).
Sem
torn-lo
explcito,
a
cena
estabelece
o
desejo
de
Crispim
por
Manuel
e
um
flerte
na
forma
de
um
convite
aparentemente
inocente,
que
Manuel
rechaa
ao
sair
do
apartamento
sem
dizer
uma
palavra,
batendo
a
porta
atrs
de
si
(Figura
5).
Figura
5
Da
esquerda
para
a
direita,
de
cima
para
baixo:
1)
Crispim
desenha
Pitanga;
2)
Crispim
e
Pitanga
se
desentendem;
3
e
4)
Crispim
olha
Manuel
de
cima
a
baixo
e
convida-o
para
um
caf;
Manuel
sai
sem
responder,
deixando
Crispim
irritado.
56
que
buscavam
restituir
seu
suposto
sentido
original
(o
que
torna
o
Bom-Crioulo
ainda
mais
admirvel,
dada
a
sua
frontalidade
ao
tratar
do
tema).
44
De
acordo
com
Roland
Barthes
(1974
[1973],
pp.
6-9),
a
conotao
caracterizada
como
uma
significao
secundria,
sobreposta
a
um
significante
que
tem
uma
significao
primria
ou
hegemnica,
a
denotativa.
Nesse
sentido,
a
recorrncia
da
conotao
em
um
texto,
de
determinada
forma
e
em
determinado
grau,
pode
torn-la
parte
estruturante
deste,
fazendo
emergir
dele
um
outro
sentido
simultneo
ao
primrio.
Ao
mesmo
tempo,
o
sentido
primrio,
ou
seja,
a
denotao,
um
elemento
estratgico
na
operao
de
conotao,
pois
acoberta
o
sentido
conotativo,
jogando
a
responsabilidade
da
conotao
para
o
leitor
e
tornando-se,
por
exemplo,
um
escudo
contra
o
controle
moral
do
texto.
significativo,
assim,
que
Byrne
Fone
tenha
identificado
uma
atitude
recorrente
em
vrios
escritores
europeus
e
estadunidenses
do
sculo
XIX
que
abordaram
o
homoerotismo
de
forma
velada:
quando
confrontados
pela
moral
vigente,
a
grande
maioria
negou
o
contedo
homoertico
de
suas
obras,
responsabilizando,
no
lugar,
interpretaes
e
mentes
pervertidas
(FONE,
2000,
pp.
333-344).
Como
observa
D.
A.
Miller,
a
possibilidade
desse
uso
estratgico
da
conotao
se
deve
prpria
ambiguidade
que
parte
constituinte
dela:
Comparada
com
a
auto-evidncia
imediata
(embora
passvel
de
desconstruo)
da
denotao,
a
conotao
sempre
vai
apresentar
uma
certa
insuficincia
semitica.
A
primeira
sempre
parece
nos
dizer,
como
afirma
Barthes,
algo
simples,
literal,
primitivo:
algo
verdadeiro,
enquanto
a
segunda
inevitavelmente
soa
duvidosa,
discutvel,
possivelmente
produto
de
uma
mera
especulao
(estereotipicamente
aquela
do
professor
de
literatura)
interessada
em
descobrir
no
que
est
l
algo
que
no
est.
A
ambiguidade,
sendo
constitutiva
[da
conotao],
nunca
pode
ser
desfeita.45
(MILLER,
1991
[1990],
pp.
149-150,
traduo
minha,
grifo
no
original)
Nesse
sentido,
muitos
dos
estudos
que
apontaram
o
carter
homoertico
latente
em
certas
obras
buscaram
armar-se
com
informaes
extratextuais,
em
geral
a
respeito
da
44
Para
57
58
ones
for
me,
and
they
often
seem
like
desperate
attempts
to
deny
the
queerness
that
is
so
clearly
a
part
of
mass
culture.
The
day
someone
can
establish
without
a
doubt
that
images
and
other
representations
of
men
and
women
getting
married,
with
their
children,
or
even
having
sex,
undeniably
depict
"straightness,"
is
the
day
someone
can
say
no
lesbian
or
gay
has
ever
been
married,
had
children
from
heterosexual
intercourse,
or
had
sex
with
someone
of
the
other
gender
for
any
reason.
48
Dados
os
diferentes
usos
do
termo
queer
desde
a
sua
popularizao,
cabe
sempre
deixar
claro
o
sentido
que
se
utiliza.
No
caso
do
estudo
de
Doty,
o
termo
se
refere
qualidade
de
qualquer
expresso
[cultural]
que
possa
ser
identificada
como
contra-,
no-,
ou
anti-htero
(DOTY,
1993,
p.
xv,
traduo
minha).
No
original:
is
a
quality
related
to
any
expression
that
can
be
marked
as
contra-,
non-,
or
anti-straight.
49
No
documentrio
The
Celluloid
Closet
(Rob
Epstein
e
Jeffrey
Friedman,
1995),
baseado
do
livro
de
Vito
Russo
(1987),
diversas
pessoas
que
viveram
os
anos
de
censura
do
cinema
hollywoodiano
comentam
essa
prtica
de
leitura
contra-hegemnica
instintiva,
baseada
na
vontade
de
ver
suas
prprias
experincias
e
desejos
homoerticos
expressos
na
tela.
59
60
Apesar
da
mudana
na
chanchada
a
partir
de
meados
dos
anos
1940,
com
uma
maior
nfase
no
carter
narrativo
em
detrimento
do
formato
mais
fragmentado
em
esquetes
da
fase
anterior,
o
tema
carnavalesco
continuou
bastante
presente
nos
filmes,
tanto
atravs
da
ambientao
e
enredo
quanto
do
repertrio
musical,
como,
por
exemplo,
em
Carnaval
no
Fogo
(1949,
Watson
Macedo)
e
Carnaval
Atlntida
(1952,
Jos
Carlos
Burle).
O
prprio
uso
do
termo
carnaval
no
ttulo
dos
filmes,
guisa
de
chamariz,
j
indica
o
sucesso
que
o
tema
fazia
entre
o
pblico
(Figura
6).
61
Figura
6
Nmeros
de
carnaval
em
Al,
Al
Carnaval
(primeira
imagem),
Carnaval
no
Fogo
(segunda)
e
Carnaval
Atlntida
(duas
ltimas).
Fonte: Al, Al Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), Carnaval no Fogo (1949, Watson Macedo) e Carnaval
Atlntida (1952, Jos Carlos Burle).
62
XIX
que
o
uso
de
fantasias
difundiu-se
na
festa,
a
partir
da
importao
pela
elite
da
tradio
europeia
dos
bailes
de
mscaras
e
sua
popularizao
nos
blocos
e
desfiles
de
rua
brasileiros.
Com
a
criminalizao
do
uso
de
disfarces
suspensa
temporariamente
durante
a
festa,
muitos
indivduos
afeitos
s
prticas
de
transgeneridade
prprias
da
cultura
homoertica
masculina
aproveitavam
a
oportunidade
para
exerc-las
em
pblico.
Em
1930,
por
exemplo,
Antnio
Setta,
fresco
notrio
do
Rio
de
Janeiro
conhecido
popularmente
como
Rainha,
organizou
o
bloco
Caadores
de
Veados,
que
reuniu
por
vrios
carnavais
grupos
cada
vez
maiores
de
homens
vestidos
em
trajes
femininos,
em
estilos
que
iam
do
glamour
caricatura,
e
incluindo
outro
fresco
notrio
da
poca,
Joo
Francisco
dos
Santos,
mais
conhecido
como
Madame
Sat
(GREEN,
2000,
p.
340).
No
mesmo
perodo,
bailes
que
promoviam
concursos
de
fantasias
tornaram-se
redutos
notrios
de
frescos
no
carnaval,
que
passaram
a
se
apropriar
de
tais
eventos
ao
longo
das
dcadas
de
1930
e
40.
Nos
anos
1950,
os
prprios
organizadores
dos
bailes
comearam
a
direcion-los
ao
pblico
homossexual
a
partir
do
uso
de
termos
cifrados,
que
davam
a
entender
qual
se
tratava
seu
pblico
alvo
sem
causar
muito
alarde,
caso
do
Baile
dos
Enxutos51.
De
acordo
James
Green:
O
travestismo
[sic]
no
era
obrigatrio
nesses
eventos.
Na
verdade,
baseado
no
exame
de
fotos
tiradas
dentro
dos
bailes
na
dcada
de
1950,
a
maior
parte
dos
homens
no
usava
nenhum
tipo
de
fantasia.
Entre
os
que
escolhiam
vestir-se
com
uma
fantasia
para
a
ocasio,
um
bom
nmero
no
abria
mo
de
trajes
masculinos
a
maioria
uniformes
de
marinheiros,
camisas
bufantes
de
piratas
ou
togas
de
soldados
romanos.
Esses
trajes
tinham
um
toque
de
ousadia
e
excentricidade,
mas
permaneciam
dentro
dos
limites
do
que
era
apropriado
para
homens.
Do
mesmo
modo,
alguns
vestiam-se
como
mulheres
no
para
rivalizar
em
beleza
com
rainhas,
coristas
ou
femme-fatales,
mas
antes
para
ironizar
as
rgidas
regras
de
gnero
sociais
por
meio
de
gestos
efeminados,
maquiagem
e
roupas.
Contudo,
as
bonecas
[termo
popular
j
nos
anos
1950
para
designar
os
homossexuais
mais
afeitos
transgeneridade]
com
suas
plumas
e
paets
eram
sempre
a
atrao
principal.
(GREEN,
2000,
pp.
345-346)
De
fato,
os
bailes
de
travestis
realizados
nos
teatros
e
cinemas
na
Praa
Tiradentes
e
nas
imediaes
eram
provavelmente
os
eventos
carnavalescos
mais
socialmente
integrados
do
Rio
de
Janeiro
na
dcada
de
1950.
Tanto
o
efeminado
como
o
discreto,
tanto
o
despudorado
como
51
Para
um
relato
mais
detalhado
a
respeito
da
presena
homossexual
masculina
no
carnaval
brasileiro
ao
longo
do
sculo
XX,
ver
o
captulo
5
de
(GREEN,
2000).
63
Desse
retrato
no
se
pode
concluir
que
durante
o
carnaval
havia
uma
tolerncia
irrestrita.
Roberto
DaMatta,
em
uma
adaptao
para
a
festa
brasileira
do
princpio
da
inverso
da
teoria
bakthiniana
a
respeito
do
carnaval
medieval,
afirma
que:
No
carnaval,
a
ocasio
de
desmanchar
os
grupos
elementares.
Nesse
ritual,
sem
donos,
o
indivduo
desgarrado
que
tomado
como
ponto
de
partida.
o
folio
que
conta.
o
folio
que
decidir
o
modo
como
ir
brincar
o
carnaval:
se
s
ou
acompanhado,
se
permanentemente
acasalado
ou
buscando
a
cada
dia
uma
nova
parceira,
se
com
roupa
ou
sem
roupa,
se
usando
vestes
cotidianas
ou
uma
fantasia,
se
individualmente
ou
incorporado
a
uma
individualidade
maior:
um
clube,
um
bloco,
uma
escola
de
samba.
A
regra,
como
j
procurei
demonstrar,
no
ter
regra.
(DAMATTA,
1978,
p.
147)
64
A
polcia,
por
sua
vez,
reprimia
diretamente
qualquer
atitude
que
considerasse
atentar
ao
pudor,
prendendo
seu
autor
at
o
fim
do
carnaval.
Tal
era
o
nmero
de
presos
por
prticas
ligadas
ao
homoerotismo
e
transgeneridade
que
improvisou-se
ao
longo
da
dcada
de
1950
o
bloco
O
que
que
eu
vou
dizer
em
casa?,
composto
majoritariamente
por
homossexuais,
que
desfilavam
pelas
ruas
do
Rio
de
Janeiro
no
momento
em
que
eram
liberados
da
delegacia
central,
na
quarta-feira
de
cinzas,
buscando
no
s
debochar
da
represso,
mas
tambm
aproveitar
os
ltimos
instantes
da
folia
interrompida.
Apesar
disso,
o
carnaval
ainda
assim
mantinha-se
como
um
momento
nico
em
que
as
prticas
coibidas
e
sublimadas
durante
o
restante
do
ano
podiam
ter
alguma
vazo
na
arena
pblica.
Para
ns,
o
carnaval
era
muito
importante,
porque
a
gente
se
realizava,
se
vestindo,
se
maquiando,
fazendo
bonito,
porque
durante
o
ano
inteiro
no
podia
fazer
isso,
afirma
Joo
Rodrigues,
recifense
que
foi
morar
no
Rio
de
Janeiro
em
1952
(GREEN,
2000,
p.
350).
Como
resume
Green:
A
experincia
coletiva
de
milhares
de
folies
pulando
no
salo,
cantando
as
mesmas
marchinhas
de
carnaval
aprendidas
com
seus
artistas
favoritos
do
rdio,
criava
um
sentimento
de
comunidade
e
unicidade
nesse
espao
particular
em
que
todos
eram
livres
para
agir
e
se
vestir
de
modo
camp,
paquerar
ou
simplesmente
se
divertir
vontade.
(GREEN,
2000,
p.
363)
Se
o
carnaval
um
dos
elementos
que
faz
uma
ponte
entre
a
cultura
homoertica
da
poca
e
as
chanchadas,
o
outro
o
universo
do
rdio,
especialmente
as
divas
popularizadas
pelo
meio.
Nesse
sentido,
se
a
primeira
transmisso
radiofnica
no
Brasil
se
deu
em
1922,
foi
somente
na
dcada
de
1930,
impulsionado
pelo
governo
de
Getlio
Vargas
e
seu
projeto
de
construo
de
uma
identidade
nacional,
que
o
rdio
se
tornou
o
meio
de
comunicao
de
massa
de
maior
abrangncia
no
pas,
apresentando
uma
capacidade
de
alcance
indita
e
s
suplantada
pela
popularizao
da
TV
algumas
dcadas
depois.
Apesar
de
apresentar
uma
variedade
de
atraes,
que
iam
de
notcias
a
radionovelas,
passando
pelos
programas
de
humor,
de
calouros
e
variedades,
dois
teros
do
seu
tempo
de
transmisso
eram
dedicados
msica.
O
novo
meio
levou,
assim,
a
uma
popularizao
e
massificao
inditas
de
certa
msica
popular
brasileira,
produzindo,
junto
com
isso,
um
star
system
de
cantoras
e
cantores,
alimentado
por
uma
rede
de
65
Num
dos
estudos
mais
clebres
sobre
a
questo,
Judy
Garland
and
gay
men,
Richard
Dyer
(1986)
observa
que
a
devoo
dos
gays
diva
do
cinema
e
da
msica
passava
pelo
compartilhamento
de
dois
elementos
especficos:
da
condio
de
marginalidade
em
relao
a
certa
norma
dos
gays
em
relao
heterossexualidade;
de
Garland
em
relao
aos
ditames
do
star
system
e
do
drama
e
dignidade
envolvidos
na
obrigao
da
66
Os
relatos
de
alguns
dos
antigos
fs
das
estrelas
do
rdio
brasileiro
mostram,
na
prtica,
motivos
os
mais
diversos
dentre
os
quais
os
apontados
por
Dyer
e
por
Harris
para
a
sua
devoo,
confirmando
ainda
assim
a
relao
muito
especfica
entre
a
cultura
homoertica
da
poca
e
as
divas:
Baptista,
por
exemplo,
preferia
Marlene
porque
ela
projetava
a
imagem
de
uma
das
mulheres
mais
elegantes
do
pas.
Ela
lanou
novos
estilos
de
cabelo,
trouxe
as
ltimas
modas
de
Paris
e,
segundo
Baptista,
introduziu
at
mesmo
o
uso
de
calas
compridas
para
as
mulheres,
o
que
resultou
em
trs
meses
de
suspenso
da
Rdio
Nacional.
Lenharo
identificava-se
com
Nora
Ney
por
seu
estilo
musical
profundamente
trgico
e
emocional,
que
se
equiparava
sua
vida
real.
Ele
tambm
admirava
seu
compromisso
poltico
com
as
causas
esquerdistas.
Todos,
acima
de
tudo,
tinham
uma
opinio
sobre
a
rivalidade
pblica
entre
Marlene
e
Emilinha,
uma
inimizade
promovida
pelos
dirigentes
da
rdio
para
incentivar
o
envolvimento
do
pblico
na
vida
e
carreira
das
cantoras.
O
drama
de
sua
constante
disputa
fomentou
as
paixes
e
interesses
de
seus
seguidores,
que
at
mesmo
recorriam
violncia
contra
defensores
de
sua
rival.
(GREEN,
2000,
pp.
271-272)
52
No
original:
This
strange
act
of
ventriloquism
represents
the
highest
form
of
diva
worship
and
is
the
indirect
outcome
of
my
perception
in
my
youth
that,
as
a
homosexual,
I
did
not
belong
in
the
community
in
which
I
lived.
[]
In
my
unconscious
imitation
of
the
voices
of
the
great
film
stars,
I
was
seeking
to
demonstrate
my
separateness,
to
show
others
how
out
of
place
I
felt,
and,
moreover,
to
fight
back
against
the
hostility
I
sensed
from
homophobic
rednecks
by
belittling
their
crudeness
through
unremitting
displays
of
my
own
polish
and
sophistication.
67
68
Figura
7
Carmem
Miranda
em
Al,
Al
Carnaval,
Emilinha
Borba,
Eliana
Macedo
e
Adelaide
Chiozzo
em
Aviso
aos
Navegantes
e
Virgnia
Lane,
Marlene
e
Dalva
de
Oliveira
em
Tudo
Azul.
Fonte: Al, Al Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936, primeira imagem), Aviso aos Navegantes (Watson Macedo,
1950, segunda e terceira imagens) e Tudo Azul (Moacyr Fenelon, 1952, trs ltimas imagens).
69
possvel
imaginar,
assim,
que
para
um
pblico
que
tinha
em
larga
conta
tanto
o
carnaval
quanto
as
divas
do
rdio,
caso
dos
frescos,
as
chanchadas
oferecessem
uma
oportunidade
de
contato
com
essas
expresses
que,
por
um
lado,
transcendia
os
quatro
dias
anuais
de
folia
e,
por
outro,
somava-se
rede
de
circulao
do
star
system
radiofnico,
junto
com
revistas,
f-clubes
e
apresentaes
ao
vivo.
Em
uma
perspectiva
das
polticas
de
representao,
que
centra
suas
anlises
e
crticas
na
representao
(ou
invisibilizao)
das
identidades
e
prticas
do
homoerotismo
e
da
transgeneridade,
elementos
marginais
como
os
apresentados
neste
captulo
tendem
a
ser
ignorados,
visto
que
nem
passam
pela
representao
das
expresses
em
si
nem
apresentam,
em
um
primeiro
olhar,
um
potencial
poltico
disruptivo
claro.
Olhando-os,
porm,
a
partir
da
ideia
de
uma
espectatorialidade
queer,
que
nos
convida
a
colocarmo-
nos
no
contexto
e
na
perspectiva
dos
espectadores
queer
da
poca,
possvel
vislumbrar
o
potencial
poltico
das
chanchadas
enquanto
disseminadoras
de
expresses
culturais
que
tiveram
um
papel
considervel
na
produo
de
uma
comunidade
baseada
em
uma
cultura
compartilhada.
o
caso
dos
frescos,
como
afirma
Green
ao
observar
que
o
carnaval
criava
um
sentimento
de
comunidade
e
unicidade
nesse
espao
particular
(GREEN,
2000,
p.
363),
ou
que
a
devoo
pelas
divas
colocava
os
homossexuais
em
contato
prximo
com
outros
que
compartilhavam
das
mesmas
paixes
e
interesses.
Amizades
eram
estabelecidas,
e
aqueles
que
desconheciam
a
topografia
homossexual
do
Rio
de
Janeiro
ou
de
So
Paulo
[e
supe-se
que
o
exemplo
posse
ser
estendido
para
outras
cidades]
eram
iniciados
numa
subcultura
por
meio
desses
contatos.
[...]
A
coeso
social
formada
nesses
clubes
e
plateias,
assim
como
a
adorao
coletiva
de
seus
dolos
ajudaram
muitos
homossexuais
a
enfrentar
o
isolamento
que
a
hostilidade
social
lhes
impunha
com
tanta
frequncia.
(GREEN,
2000,
p.
272)
70
formou
a
base
identitria
necessria
aos
movimentos
ativistas
que
surgiram
no
final
dos
anos
1970,
o
que
abordo
no
captulo
5.
Ao
mesmo
tempo,
uma
possvel
recepo
das
chanchadas
nesses
termos
no
se
faria
sem
certo
grau
de
negociao,
uma
vez
que
tanto
elementos
como
o
tipo
efeminado
e
a
transgeneridade
farsesca
jogavam
no
campo
do
discurso
hegemnico,
reafirmando-o,
quanto
discursos
explicitamente
depreciativos
em
relao
ao
homoerotismo
e
transgeneridade,
apesar
de
pouco
frequentes,
estavam
presentes
em
alguns
exemplares
do
gnero.
Dos
filmes
analisados,
um
dos
que
conta
com
mais
piadas
de
teor
depreciativo
ao
homoerotismo
e
transgeneridade
tambm
o
mais
antigo:
Al,
Al
Carnaval.
Nele,
como
vimos,
a
dupla
protagonista
de
aspirantes
a
empresrios
do
teatro
de
revista
Tom
e
Prata
comentam,
ao
longo
de
todo
o
filme,
os
nmeros
musicais
e
de
humor
que
so
apresentados,
tornando-se
eles
prprios
o
eixo
de
ligao
dos
esquetes,
na
falta
de
um
motivo
narrativo
mais
slido.
Logo
na
primeira
cena,
em
que
a
dupla
busca
financiamento
para
seu
espetculo
na
casa
de
um
magnata,
Tom
apresenta-se
como
o
que
cuida
das
girls
ou
seja,
da
contratao
das
coristas
e
vedetes
enquanto
Prata
afirma
ser
responsvel
pelos
boys
cantores
e
musicistas.
Ao
ouvir
a
segunda
afirmao,
o
magnata
olha
com
desprezo
para
Prata
e
comenta,
em
tom
jocoso:
,
o
senhor
tem
cara
disso.
A
sua
cara
no
nega,
o
senhor
tem
cara
de
revistgrafo
(AL...,
1936,
00:03:10),
sugerindo
a
homossexualidade
deste.
Mais
adiante,
uma
dupla
de
cantores
de
modos
delicados
apresenta-se
cantando
O
carnaval
da
minha
dor,
ao
que
os
protagonistas
comentam,
novamente
sugerindo
de
forma
debochada
a
suposta
homossexualidade
da
dupla:
Prata:
Gostaste,
hein?
Tom:
Gostei,
mas
gostei
mais
desse
casal
que
cantou
agora.
Prata:
Casal?
Tom:
Ah,
quero
dizer,
essa
dupla!
(AL...,
1936,
00:10:20)
71
72
4 Homofobia
A
dcada
de
1960
pode
ser
entendida
como
um
perodo
de
transio:
por
um
lado,
os
filmes
brasileiros
ainda
no
traziam
de
forma
recorrente
personagens
abertamente
homossexuais,
como
ocorreria
nos
anos
70;
por
outro,
pelo
menos
dois
filmes
quebraram
com
as
representaes
veladas
das
dcadas
anteriores:
O
Beijo
(Flvio
Tambellini,
1964)
e
O
Menino
e
o
Vento
(Carlos
Hugo
Christensen,
1966).
Diferentemente
de
Bahia
de
Todos
os
Santos,
que
abre
a
dcada,
esses
filmes
no
se
utilizaram
da
conotao
para
tratar
de
temas
ligados
ao
homoerotismo.
Pelo
contrrio,
ambos
no
s
abordaram
abertamente
a
possvel
homossexualidade
de
seus
protagonistas
como
ainda
investigaram
a
homofobia
de
que
eles
so
vtimas
em
decorrncia
de
tal
hiptese.
O
Beijo
a
primeira
adaptao
cinematogrfica
da
pea
O
Beijo
no
Asfalto
(Nelson
Rodrigues,
1960).
Fiel
ao
texto
original,
o
filme
acompanha
os
infortnios
de
Arandir
(Reginaldo
Faria),
trabalhador
e
marido
exemplar,
que
comea
a
ser
condenado
por
todos
sua
volta
em
razo
de
um
beijo
que
deu
em
um
desconhecido
supostamente
a
pedido
deste
que
agonizava
na
rua
aps
ser
atropelado.
J
O
Menino
e
o
Vento
acompanha
o
julgamento
de
Jos
Roberto
(nio
Gonalves),
um
jovem
engenheiro
que,
durante
frias
na
pequena
cidade
de
Bela
Vista,
interior
de
Minas
Gerais,
constri
uma
estreita
amizade
com
o
adolescente
Zeca
da
Curva
(Luiz
Fernando
Ianelli).
Com
o
desaparecimento
deste,
Jos
Roberto
passa
a
ser
acusado
no
s
de
seu
assassinato,
mas
de
ter
mantido
um
caso
amoroso/sexual
com
ele,
sendo
hostilizado
por
todos
os
habitantes
da
cidade
em
razo
disto.
Se,
em
seu
sentido
original,
a
homofobia
definida
como
uma
expresso
individual
e
de
teor
fbico,
a
homofobia
encontrada
nos
filmes
citados
diz
respeito
muito
mais
a
uma
manifestao
de
carter
cultural.
O
termo,
inicialmente
utilizado
pelo
ativismo
homfilo
estadunidense
da
dcada
de
1960
como
forma
de
desnaturalizao
da
violncia
e
discriminao
a
que
eram
submetidos,
foi
logo
apropriado
pela
psicologia.
Foi
o
psiclogo
clnico
George
Weinberg,
em
1972,
que
primeiro
conceituou-o
formalmente,
descrevendo
a
homofobia
um
conjunto
de
emoes
negativas
em
relao
a
homossexuais
ou
a
pessoas
assim
identificadas,
tais
como
averso,
desprezo,
dio,
73
74
53
No
original:
Kruisdraging.
75
Fonte: Wikipedia.
76
Figura
10
Figuras
fofocando
em
detalhes
do
quadro
de
Bosch.
77
que
um
homem
pode
desejar
outro
homem?,
comenta
ela
com
a
irm
(BEIJO,
1964,
00:27:50))
(Figura
11).
Fotografia
expressionista
e
atuaes
histrinicas
do
o
tom
de
pesadelo
trajetria
paranoica
de
Arandir
que,
aps
ter
sua
foto
publicada
no
jornal,
passa
a
transitar
em
meio
a
um
clima
linchamento
que
se
instala
na
cidade.
Figura
11
Reaes
do
delegado
e
seu
assistente,
dos
vizinhos,
dos
colegas
de
trabalho
e
da
esposa
ao
beijo
dado
por
Arandir.
78
Figura 12 Clima de linchamento em Bela Vista ante o retorno do engenheiro Jos Roberto.
Em
conversa
com
o
defensor
pblico
(Germano
Filho),
ele
entende
porque
se
tornou
o
principal
suspeito
do
crime:
Jos:
Mas
eu
conhecia
o
menino.
Gostava
dele.
Vivi
com
ele
mais
de
trs
semanas.
Tnhamos
uma
enorme
afinidade.
Defensor:
Assim
vai
ser
difcil
o
senhor
convencer
algum
da
sua
inocncia.
Que
afinidade
o
senhor
podia
ter
com
um
moleque
esfarrapado?
O
senhor,
um
engenheiro
rico,
que
trabalha
apenas
porque
quer.
Eu
sei.
Que
afinidade
poderia
haver
seno
Jos:
Seno?
Defensor:
Sexual.
[Jos
retorna
um
olhar
surpreso
e
indignado
pela
suposio.]
(O
MENINO,
1966,
00:16:30)
A
partir
desse
ponto
o
filme
se
torna
um
drama
de
tribunal
onde
Jos,
dispensando
o
defensor
pblico,
passa
a
relatar
como
se
deu
todo
o
processo
de
aproximao
e
estreitamento
da
amizade
entre
ele
e
Zeca
da
Curva
a
partir
do
mtuo
interesse
pelo
vento,
processo
que
o
filme
mostra
em
flashback.
tambm
quando
fica
claro
que
o
clima
de
linchamento
na
cidade
devia-se
menos
suspeita
de
assassinato
do
que
possibilidade
de
envolvimento
afetivo
e
sexual
entre
Jos
e
Zeca.
J
o
caso
da
conversa
79
inicial
com
o
defensor
pblico,
onde
a
suspeita
de
ligao
sexual
parece
necessitar
de
maior
defesa
do
que
a
prpria
acusao
de
assassinato,
nem
mesmo
citada.
tambm
o
que
continua
a
ocorrer
no
tribunal,
no
confronto
entre
os
relatos
das
testemunhas
e
o
de
Jos
Roberto,
sempre
centrados
na
existncia
ou
no
de
tal
ligao.
Alm
disso,
os
depoimentos
que
alimentam
esta
hiptese
so
sempre
recebidos
com
grande
revolta
pelo
pblico
do
julgamento,
reafirmando
o
local
central
que
a
homofobia
ocupa
naquela
sociedade
e
na
narrativa.
o
que
acontece,
por
exemplo,
diante
do
testemunho
de
Isaura
Lessa,
namorada
de
Zeca,
que
afirma
que
o
engenheiro
uma
vez
ficou
furioso
com
Zeca
porque
encontrou
ele
agarrado
comigo
perto
da
minha
casa.
Nunca
vi
ele
to
zangado,
nem
parecia
o
mesmo
(MENINO...,
1964,
00:48:50),
causando
comoo
na
plateia
ao
dar
indcios
do
suposto
cime
que
Jos
Roberto
sentia
do
adolescente.
A
revolta
atinge
seu
pice
quanto
o
peo
Aparecido
Teles
conta
que
viu
ambos
no
alto
da
montanha
durante
um
grande
vendaval
(aps
o
qual
Zeca
teria
desaparecido)
e
que
naquele
momento
o
menino
teria
comeado
a
tirar
a
roupa:
Promotor:
Continue.
Aparecido:
O
menino
ficou
nu.
[Gritos
de
revolta
do
pblico.]
Juiz:
Silncio!
Silncio!
Pode
continuar.
Promotor:
Voc
disse
que
o
menino
ficou
nu.
Conte
o
que
aconteceu
depois.
[Aparecido
hesita.]
Fale!
O
que
foi
que
aconteceu
depois!
Aparecido:
Eles
se
abraaram.
[Revolta
ainda
maior
da
plateia.]
Juiz:
Silncio!
Silncio!
Ou
mandarei
evacuar
a
sala
at
o
fim
do
processo!
Promotor:
Voc
disse
que
eles
se
abraaram.
E
depois?
Peo:
No
sei
no,
senhor.
Um
trovo
espantou
a
mansinha
e
eu
tive
que
correr
atrs
dela.
(MENINO...,
1966,
00:44:10)
Do
mesmo
modo
que
Arandir
em
O
Beijo,
O
Menino
e
o
Vento
acompanha
o
drama
vivido
por
Jos
Roberto
em
razo
de
uma
presumida
relao
afetiva
e
sexual
com
algum
do
mesmo
sexo,
por
um
lado
abordando
a
homossexualidade
de
forma
direta
e
central,
algo
indito
no
cinema
brasileiro
de
ento
e,
por
outro,
o
que
mais
inusitado,
usando
a
homofobia
como
recurso
dramtico.
A
surpresa
que
causa
essa
postura
vem
especialmente
do
fato
dos
filmes
terem
sido
feitos
em
uma
poca
em
que
as
discusses
a
respeito
da
homofobia
eram
nulas.
Por
um
80
Nesse
sentido,
a
homofobia
foi,
durante
muito
tempo,
um
fato
naturalizado,
justificado
e
legtimo
na
cultura
brasileira.
Como
afirma
Jos
Reinaldo
de
Lima
Lopes
a
respeito
das
dcadas
de
1960
e
70:
[Os
homossexuais]
estavam
sujeitos
a
abusos
de
toda
sorte,
e
os
abusos
no
eram
nem
mesmo
percebidos
como
abusos:
nem
por
muitos
deles,
nem
por
parte
de
quem
deles
abusava.
E
esses
abusos
eram
fundados
em
uma
percepo
social
dos
homossexuais:
doentes,
pervertidos,
corruptores
de
menores,
imprestveis
para
funes
sociais
dignas,
a
lista
seria
enorme.
(LOPES,
2014,
p.
280)
Como
possvel,
ento,
explicar
o
tratamento
dado
homofobia
pelos
filmes
O
Beijo
e
O
Menino
e
o
Vento
numa
poca
em
que
as
expresses
homofbicas
inclusive
as
mais
violentas
no
eram
nomeadas
nem
problematizadas,
mas
pelo
contrrio,
estavam
completamente
naturalizadas
no
senso
comum?
Seriam
eles
exemplos
mpares
de
filmes
que
trouxeram
a
discusso
a
respeito
de
seu
carter
opressor
avant
la
lettre?
Se,
por
um
lado,
inegvel
o
ineditismo
na
frontalidade
da
abordagem
no
s
da
homofobia,
mas
tambm
da
homossexualidade,
por
outro,
no
parece
ser
o
caso
dos
filmes
desvelarem
o
carter
opressor
da
homofobia
em
si,
por
um
detalhe
bastante
significativo:
seus
protagonistas
passam
por
um
calvrio
de
sofrimento
no
em
razo
de
serem
homossexuais,
mas
de
serem
identificados
como
tal.
Nesse
sentido,
interessante
aprofundar
a
anlise
do
funcionamento
da
homofobia
em
um
campo
especfico,
onde
ela
no
s
naturalizada,
mas
elemento
constituinte:
a
masculinidade
hegemnica.
81
Michael
Kimmel,
por
sua
vez,
em
Masculinity
as
Homophobia:
Fear,
Shame
and
Silence
in
the
Construction
of
Gender
Identity,
debrua-se
sobre
as
operaes
a
partir
das
quais
esta
masculinidade
regulada
e
controlada
na
sociedade
estadunidense:
A
masculinidade
deve
ser
posta
prova,
e
uma
vez
comprovada,
novamente
questionada
e
mais
uma
vez
posta
prova
de
forma
constante,
incessante,
irrealizvel,
tornando
a
busca
pela
comprovao
algo
to
sem
sentido
que
iguala-se,
como
disse
Weber,
a
um
esporte.
[...]
A
homofobia
o
esforo
de
suprimir
o
desejo
[homoertico],
de
purificar
todas
as
relaes
com
outros
homens,
com
mulheres,
com
crianas,
de
sua
mcula,
para
garantir
que
ningum
jamais
confunda
o
indivduo
com
um
homossexual.
[...]
A
vida
da
maioria
dos
homens
americanos
cerceada,
e
seus
interesse
diariamente
limitados
pela
necessidade
constante
de
provar
a
seus
pares
e
a
si
mesmos
que
eles
no
so
mulherzinhas,
que
no
so
homossexuais,
escreve
o
historiador
da
psicanlise
Geoffrey
Gorer
(1964).
Qualquer
interesse
considerado
feminino
torna-se
profundamente
suspeito.
[...]
Nunca
vista-se
assim.
Nunca
fale
ou
ande
assim.
Nunca
demonstre
seus
sentimentos.
Esteja
sempre
preparado
para
demonstrar
interesse
sexual
pelas
mulheres
que
voc
encontra,
de
modo
a
evitar
qualquer
dvida
a
respeito
de
sua
sexualidade.
Nesse
sentido,
a
homofobia,
ou
o
medo
de
ser
percebido
como
gay
e
no
como
um
homem
de
verdade
[sic],
faz
com
que
os
homens
acentuem
todas
as
regras
tradicionais
de
masculinidade,
incluindo
a
postura
predatria
em
relao
s
mulheres.
Homofobia
e
82
Essa
face
da
homofobia,
em
que
ela
constitui-se
menos
como
uma
postura
de
deslegitimao
do
homossexual
e
mais
como
o
medo
de
ser
percebido
como
gay,
como
descreve
Kimmel,
identificada
tambm
por
Eve
Kosofsky
Sedgwick
na
introduo
de
seu
Between
Men:
English
Literature
and
Male
Homosocial
Desire
(1985).
Para
Sedgwick,
isso
deve-se
ao
fato
de
que
no
h
uma
diviso
natural
entre
homossocialidade
e
homossexualidade,
ou
seja,
de
que
a
homossocialidade
,
na
prtica,
um
continuum
que
engloba
a
homossexualidade.
Dito
de
outra
forma,
as
regras
que
definem
se
determinado
contato
entre
duas
pessoas
do
mesmo
sexo
meramente
homossocial
ou
se
ultrapassa
determinada
fronteira,
passando
a
ser
considerado
homossexual,
so
arbitrrias
e
localizadas
geogrfica
e
historicamente.
Um
exemplo
claro
disso
o
beijo
na
boca
entre
homens,
considerado
em
certos
locais
e
ocasies
como
um
mero
cumprimento
e
em
outros,
um
indicativo
inequvoco
de
homossexualidade.
nesse
sentido
que
ambientes
eminentemente
homossociais
especialmente
masculinos
representam
um
maior
risco
de
confuso
entre
homossocialidade
e
homossexualidade
e,
logo,
requerem
um
cuidado
exacerbado
na
separao
estrita
e
ansiosa
entre
os
dois,
postura
que
tanto
Sedgwick
quanto
Kimmel
identificam
como
constituinte
primordial
da
homofobia.
A
partir
desta
perspectiva,
interessante
notar
como
a
homofobia
no
afeta
somente
os
homossexuais,
mas
constitui-se
como
uma
ansiedade
prpria
das
masculinidades
hegemnicas
contemporneas,
igualmente
disciplinando
o
comportamento
de
homens
heterossexuais.
Nesse
sentido,
tanto
O
Beijo
quanto
O
Menino
e
o
Vento
parecem
abordar
54
No
original:
Masculinity
must
be
proved,
and
no
sooner
is
it
proved
that
it
is
again
questioned
and
must
be
proved
again
constant,
relentless,
unachievable,
and
ultimately
the
quest
for
proof
becomes
so
meaningless
that
it
takes
the
characteristics,
as
Weber
said,
of
a
sport.
[]
Homophobia
is
the
effort
to
suppress
that
[homoerotic]
desire,
to
purify
all
relationships
with
other
men,
with
women,
with
children
of
its
taint,
and
to
ensure
that
no
one
could
possibly
ever
mistake
one
for
a
homosexual.
[...]
The
lives
of
most
American
men
are
bounded,
and
their
interests
daily
curtailed
by
the
constant
necessity
to
prove
to
their
fellows,
and
to
themselves,
that
they
are
not
sissies,
not
homosexuals,
writes
psychoanalytic
historian
Geoffrey
Gorer
(1964).
Any
interest
or
pursuit
which
is
identified
as
a
feminine
interest
or
pursuit
becomes
deeply
suspect
for
men.
[]
Never
dress
that
way.
Never
talk
or
walk
that
way.
Never
show
your
feelings
or
get
emotional.
Always
be
prepared
to
demonstrate
sexual
interest
in
women
that
you
meet,
so
it
is
impossible
for
any
woman
to
get
the
wrong
idea
about
you.
In
this
sense,
homophobia,
the
fear
of
being
perceived
as
gay,
as
not
a
real
man,
keeps
men
exaggerating
all
the
traditional
rules
of
masculinity,
including
sexual
predation
with
woman.
Homophobia
and
sexism
go
hand
in
hand.
83
esse
ponto
onde
a
homofobia
torna-se
problemtica
exatamente
por
afetar
o
homem
heterossexual.
Tanto
assim
que,
se
ambos
os
filmes
alimentam
uma
permanente
dvida
a
respeito
da
sexualidade
de
seus
protagonistas,
esta
devidamente
esclarecida
ao
final
de
cada
um.
No
caso
de
Arandir,
se
o
beijo
inicial
interpretado
por
todos
como
um
ndice
de
sua
homossexualidade,
o
filme
apresenta
vrios
elementos
que,
pouco
a
pouco,
complexificam
tal
leitura.
O
prprio
protagonista
caracterizado
como
um
homem
de
inocncia
e
bondade
inusuais,
contrastando
com
a
masculinidade
abertamente
maliciosa
do
tipo
cafajeste
dos
outros
personagens,
explorada
de
forma
recorrente
na
obra
de
Nelson
Rodrigues.
Essa
ndole
ilustrada
nos
vrios
momentos
do
filme
em
que
Arandir
rebate
o
tom
acusatrio
a
respeito
do
beijo
tentado
explicar
suas
razes,
como
ao
delegado
e
ao
jornalista:
Era
algum,
algum!
Que
morria
pedindo!
Algum
que
eu
vi
morrer!
(BEIJO,
1964,
00:19:30);
esposa:
Escuta:
sim,
vi
o
homem
morrer.
Vi.
Morria
diante
de
mim.
Mas
ainda
teve
voz,
teve,
teve.
Deus
sabe,
pra
pedir
um
beijo.
Agonizava
pedindo
um
beijo.
(BEIJO,
1964,
00:24:40);
Dlia,
sua
cunhada
(Norma
Blum):
Mas
eu
sei
o
que
eles
querem.
Querem
que
eu
duvide
de
mim
mesmo.
Beijei
porque
algum
morria
(BEIJO,
1964,
01:16:40).
Ao
mesmo
tempo,
seu
desejo
por
mulheres
ressaltado
tanto
pelos
testemunhos
de
Selminha,
sua
esposa,
quanto
pela
atrao
que
Arandir
sente
(e
reprime)
por
sua
cunhada,
Dlia,
em
uma
subtrama
desenvolvida
ao
longo
do
filme.
Diz
Selminha
em
resposta
s
acusaes
do
delegado
e
do
jornalista:
No
admito!
O
senhor
quer
dizer
que
meu
marido?
Agora
vocs
vo
me
ouvir.
O
senhor
no
entende
que...
eu
conheo
muitas
que
uma
vez
por
semana,
duas,
at
de
quinze
em
quinze
dias.
Mas
meu
marido
todo
dia,
todo
dia,
todo
dia!
Meu
marido
homem,
homem!
(BEIJO,
1964,
01:01:25)
Alm
disso,
o
filme
deixa
claro
que
o
jornalista
Mrio
Ribeiro
o
responsvel
pela
manipulao
das
informaes
de
forma
a
extrair
o
mximo
de
sensacionalismo
do
incidente.
Em
dois
momentos
do
filme,
dado
a
Mrio
um
monlogo
onde
ele
tenta
se
convencer
das
inferncias
que
faz
para
as
matrias
que
est
prestes
a
publicar:
Um
morto
no
beija,
eu
vi.
Empurrou
sim.
Acho
que
esbarrou
sem
querer,
que
nem
sabe
se...
esbarrou
mas
eu
vi.
Empurrou
sim!
(BEIJO,
1964,
00:26:00)
84
Ele
empurrou
para
a
morte
o
seu
amor
degradante.
Seu
rosto
juvenil
a
mscara
de
uma
tara.
O
beijo
foi
crime
sim,
eu
vi.
No
foi
o
primeiro
beijo,
no
foi
a
primeira
vez.
(BEIJO,
1964,
00:44:00)
85
86
55
Ligados
disseminao
tanto
da
crena
da
homossexualidade
enquanto
distrbio
psquico
87
Um
filme
que
torna
essa
operao
ainda
mais
ntida
Os
Maches
(Reginaldo
Faria,
1972),
que
conta
com
expresses
de
homofobia
dirigidas
tanto
a
homossexuais
quando
a
hteros
tomados
por
homossexuais,
permitindo
assim
a
comparao
entre
os
diferentes
tratamentos
dados
a
cada
uma
delas.
Esta
comdia
tpica
das
pornochanchadas
gnero
que
exploro
mais
detidamente
no
captulo
seguinte
acompanha
as
peripcias
de
Didi
(Reginaldo
Faria),
Teleco
(Erasmo
Carlos)
e
Chuca
(Flvio
Migliaccio),
trs
malandros
cariocas
que,
passando-se
por
homossexuais,
conseguem
emprego
em
um
famoso
salo
de
beleza
que
os
permite
ter
acesso
tanto
a
um
bom
salrio
quanto
s
mulheres
da
high
society
carioca.
Logo
de
incio
o
trio,
sem
dinheiro
e
com
poucas
perspectivas,
seduzido
pela
rica
Denise,
que
os
leva
para
sua
cobertura
beira-mar.
No
correr
da
noite,
eles
descobrem
que
Denise
na
verdade
Dnis,
homossexual
travestido,
que
se
torna
ento
alvo
de
um
violento
ataque
homofbico
por
parte
de
Teleco,
chegando
a
desfalecer.
Aps
fazerem
as
pazes,
Dnis
tem
a
ideia
de
introduzir
o
trio
indstria
da
beleza,
ensinando-os
o
bsico
do
tratamento
de
cabelos,
da
pinta
e
da
efeminao.
Os
trs,
fingindo-se
de
homossexuais,
conseguem
um
emprego
no
salo
em
que
Dnis
trabalha.
Didi,
em
seu
disfarce
homossexual,
que
se
torna
alvo
da
segunda
agresso
homofbica
mostrada
no
filme.
Da
mesma
forma
que
Teleco
e
Chuca,
ele
vira
amante
de
uma
de
suas
clientes,
a
viva
Madame
Ribeiro
(Neuza
Amaral).
Ao
passar
um
fim
de
semana
na
chcara
desta,
Didi
confrontado
pelos
amigos
da
filha
da
viva
e,
aps
uma
aposta
perdida,
obrigado
a
vestir
roupas
de
mulher
e
usar
peruca
e
maquiagem
enquanto
xingado
e
agredido
pelo
grupo.
No
primeiro
caso
o
ataque
a
Dnis
a
cmera
escolhe
focar
no
rosto
e
do
agressor
Teleco
mantendo-se
sua
altura
enquanto
ele
bate
em
Dnis
e
chuta
seu
corpo
desfalecido,
que
est
sempre
fora
de
campo
(
exceo
de
um
nico
plano
do
corpo,
logo
que
ele
cai
no
cho).
Essa
configurao
direciona
a
ateno
ao
agressor
e
sua
raiva
e
desprezo,
subtraindo
da
cena
a
vtima
e
sua
dor
(Figura
13).
No
segundo
caso
o
ataque
a
Didi
pelos
amigos
de
Madame
Ribeiro
ao
contrrio,
sempre
o
sofrimento
do
agredido,
que
destacado
pela
cena,
estruturada
primordialmente
a
partir
de
planos
mdios
e
prximos
de
seu
rosto
enquanto
ele
maquiado,
xingado
e
agredido
(Figura
14).
88
Figura
13
Dnis
recebe
um
soco
de
Teleco
e
desmaia.
No
cho,
fora
de
campo,
recebe
ainda
vrios
chutes
deste.
89
Figura
14
Didi
obrigado
a
vestir-se
de
mulher,
usar
peruca
e
maquiagem,
enquanto
xingado
e
agredido
pelo
grupo.
O
dilogo
expe
tanto
a
crise
provocada
pelo
ataque
homofbico
a
Didi,
que
tem
sua
masculinidade
ferida,
quanto
a
aceitao
da
agresso
sofrida
por
Dnis,
j
que
boneca
sofredora
assim
mesmo.
Fica
clara,
assim,
a
naturalizao
da
homofobia
dirigida
a
90
homossexuais
que,
pelo
que
os
filmes
indicam,
somente
se
torna
uma
questo
e
um
recurso
dramtico
quando
afeta
personagens
heterossexuais.57
No
o
caso,
porm,
seguindo
a
lgica
das
polticas
de
representao,
de
condenar
os
filmes
pelo
fato
de
eles
no
apresentarem
uma
postura
progressista
de
crtica
homofobia
em
si.
Pelo
contrrio,
parece-me
interessante
traz-los
para
a
discusso
exatamente
porque,
ao
permitirem-se
abordar
o
tema,
eles
se
tornam
um
importante
registro
tanto
das
formas
que
a
homofobia
assumia
quando
do
modo
como
ela
operava
na
poca.
Alm
disso,
ao
utilizar
esses
exemplos
como
ilustrao
da
afirmao
de
que
a
postura
homofbica
endereada
a
homossexuais
estava
naturalizada
no
cinema
nacional
das
dcadas
de
1960,
70
e
80
assim
como
no
senso
comum
no
quero
dizer
que
os
filmes
necessariamente
corroboravam
com
a
homofobia.
Observando
a
produo
dessas
trs
dcadas,
possvel
identificar,
pelo
contrrio,
uma
diversidade
de
posturas
frente
questo,
como
analiso
no
captulo
seguinte.
57
A
ttulo
de
mapeamento,
cabe
citar
ainda
outros
dois
filmes
que,
como
os
analisados
mais
91
Podemos
afirmar,
com
uma
pequena
dose
de
generalizao,
que
at
os
anos
1950,
as
expresses
mais
visveis
do
homoerotismo
masculino
no
cinema
brasileiro
resumiam-se
ao
tipo
efeminado
e
transgeneridade
farsesca,
o
primeiro
emprestando
sua
afetao
e
a
segunda
sua
suposta
incongruncia
de
gnero
para
fazer
rir.
Os
anos
60,
por
sua
vez,
trouxeram
o
fantasma
da
homossexualidade
atravs
da
homofobia
prpria
da
masculinidade
hegemnica,
ou
seja,
o
medo
de
ser
tomado
como
homossexual.
Nessa
perspectiva,
o
final
dos
anos
60
e
as
dcadas
de
70
e
80
apresentaram
um
quadro
significativamente
diferente:
o
homoerotismo
masculino
passou
a
ser
apresentado
de
forma
recorrente,
recebendo
um
tratamento
mais
direto
e
maior
espao
nos
filmes
dessa
poca.
Essa
mudana,
na
prtica,
foi
tanto
um
reflexo
quanto
tambm
ela
prpria
propulsora
de
toda
uma
revoluo
no
campo
dos
costumes
no
pas,
como
resume
Green:
O
fim
dos
anos
60
e
o
incio
da
dcada
de
1970
foram
uma
poca
de
revolta
poltica
e
social.
As
ideias
da
contracultura
haviam
penetrado
no
Brasil
e
influenciavam
muitos
jovens
de
classe
mdia.
Entre
os
novos
desafios
aos
valores
hegemnicos
estavam
o
uso
de
drogas,
uma
rejeio
sociedade
de
consumo
que
era
promulgada
pela
poltica
oficial
e
a
desestabilizao
dos
cdigos
sexuais,
especialmente
nas
questes
da
virgindade
feminina
antes
do
casamento
e
da
heterossexualidade
normativa
para
homens
e
mulheres.
Os
grupos
teatrais,
como
o
Teatro
Oficina,
faziam
o
pblico
de
classe
mdia
confrontar-se
com
cenas
sexualmente
explcitas
que,
de
alguma
forma,
conseguiam
passar
pela
censura.
O
tropicalismo,
com
Gil,
Caetano,
Maria
Bethnia
e
Gal
Costa,
trazia
cena
a
imagem
de
uma
sensualidade
despudorada,
e
seus
membros
no
faziam
questo
de
desmentir
as
especulaes
sobre
suas
relaes
homossexuais.
Todas
essas
mudanas
ajudaram
a
criar
um
clima
favorvel
ao
questionamento
de
conceitos
de
gnero
tradicionais.
No
comeo
da
dcada
de
1970,
a
figura
unissex
popularizada
por
Caetano
e
outros
em
1968
foi
levada
ainda
mais
longe
por
outros
artistas,
de
modo
mais
notvel
pelo
grupo
de
teatro
Dzi
Croquettes
e
o
cantor
Ney
Matogrosso.
Ambos
usavam
o
desvio
de
gnero
e
a
androginia
para
desestabilizar
as
representaes
padronizadas
do
masculino
e
do
feminino.
Seus
shows
refletiam
uma
ampla
aceitao
social,
entre
o
pblico
de
classe
mdia,
de
representaes
provocativas
de
papis
e
identidades
de
gnero.
(GREEN,
2000,
p.
409,
grifo
no
original)
interessante
notar
como
essa
poca
coincide
com
os
anos
de
maior
represso
por
parte
do
regime
ditatorial
militar,
que
havia
tomado
o
poder
atravs
de
um
golpe
em
92
93
Era
esse
o
caso
tambm
das
popularmente
denominadas
pornochanchadas,
filmes
que
compuseram
a
tendncia
majoritria
do
cinema
brasileiro
das
dcadas
de
1970
e
80.
O
rtulo,
que
a
exemplo
das
chanchadas
das
dcadas
anteriores,
foi
criado
e
disseminado
pela
crtica
e
imprensa
como
epteto
depreciativo,
insuficiente
para
descrever
o
conjunto
de
filmes
que
o
compe.
Se,
como
afirma
Nuno
Cesar
Pereira
de
Abreu
(2002,
p.
51),
as
pornochanchadas
tiveram
origem
em
trs
comdias
de
costumes
nacionais
de
grande
xito
comercial
Os
Paqueras
(Reginaldo
Faria,
1969),
Adultrio
Brasileira
(Pedro
Carlos
Rovar,
1969)
e
Memrias
de
um
Gigol
(Alberto
Pieralise,
1970)
(ABREU,
2002,
p.
51)
ao
longo
dos
anos,
sua
produo
diversificou-se
de
tal
forma
que
transcendeu
o
gnero
da
comdia
indicado
pelo
sufixo
chanchada,
passando
a
explorar
do
drama
psicolgico
ao
filme
policial,
do
faroeste
ao
horror.
Por
outro
lado,
o
prefixo
porno
do
rtulo
mostrou-se,
se
no
exato,
ao
menos
conveniente
para
descrever
a
operao
comum
a
todos
os
filmes:
a
explorao
recorrente
do
sexo
e
do
erotismo
(e
da
pornografia
em
si,
a
partir
de
meados
dos
anos
80).
O
carter
comercial
e
popular
dos
filmes
outro
elemento
que
os
conecta.
A
criao
por
parte
do
governo
de
medidas
protecionistas
que
instituram,
por
um
lado,
a
obrigatoriedade
da
exibio
de
uma
cota
de
filmes
nacionais
nos
cinemas
e,
por
outro,
a
criao
de
incentivos
em
dinheiro
para
as
maiores
bilheterias,
impulsionou
a
formao
de
esquemas
industriais
de
produo,
tanto
no
Rio
de
Janeiro
quanto
principalmente
em
So
Paulo,
no
entorno
da
chamada
Boca
do
Lixo,
incentivando
inclusive
uma
aliana
entre
produtores,
distribuidores
e
exibidores
como
forma
de
subvencionar
novos
sucessos
de
bilheteria.
94
95
apelidos
femininos,
trejeitos
afetados,
grias
prprias
e
um
humor
mordaz.
Alm
disso,
no
campo
das
prticas
sexuais,
bicha
era
historicamente
atribudo
o
papel
passivo,
ou
seja,
receptor
do
pnis,
reafirmando
seu
carter
feminino.
Por
fim,
da
mesma
forma
que
o
fresco,
havia
tambm
uma
clara
ligao
da
bicha
com
as
classes
baixas,
pois
o
comportamento
das
classes
mdias
tendia
a
ser
mais
discreto
e,
logo,
passar
desapercebido:
O
estudo
de
Barbosa
da
Silva
tambm
indica
uma
correlao
entre
o
comportamento
discreto
reportado
por
muitos
de
seus
informantes
e
sua
classe
social.
Embora
fizessem
parte
da
subcultura
homossexual
de
So
Paulo,
homens
de
classe
mdia
que
possuam
bons
empregos
e
reputao
familiar
a
proteger
muitas
vezes
escolhiam
comportamentos
mais
circunspectos
para
no
ameaar
seu
status
social.
(GREEN,
2000,
p.
275,
grifo
no
original)
96
Green
que
viveu
de
perto
o
modelo
hierrquico
nos
anos
1960
e
70,
comenta:
[a]
diviso
entre
os
ativos,
os
bofes,
os
homens
e
as
passivas,
as
bichas,
era
uma
questo
de
nossa
formao.
Bicha
era
bicha,
bofe
era
bofe.
Bicha
no
podia
ser
bofe
e
bofe
no
podia
ser
bicha
(GREEN,
2000,
p.
302).
O
prprio
Green
sintetiza
a
questo:
Segundo
esse
modelo,
em
atividades
erticas
homossexuais
tradicionais,
o
homem,
ou,
na
gria,
o
bofe,
assume
o
papel
ativo
no
ato
sexual
e
pratica
a
penetrao
anal
em
seu
parceiro.
O
efeminado
(bicha)
o
passivo,
o
que
penetrado.
A
passividade
sexual
desse
ltimo
atribui-lhe
a
posio
social
inferior
da
mulher.
Enquanto
o
homem
passivo,
sexualmente
penetrado,
estigmatizado,
aquele
que
assume
o
papel
pblico
(e
supostamente
privado)
do
homem,
que
penetra,
no
o
.
Desde
que
ele
mantenha
o
papel
sexual
atribudo
ao
homem
verdadeiro,
ele
pode
ter
relaes
sexuais
com
outros
homens
sem
perder
o
status
social
de
homem
(2000,
p.
28,
grifos
no
original).
97
Vado:
Voc
no
vai
sair
vivo
daqui,
sua
bicha
danada!
Bichona!
Veludo[novamente
chorando]:
Seu
Vado,
deixe
eu
ir
mimbora
pro
meu
quarto!
Pelo
amor
de
Deus,
seu
Vado,
deixa
eu
ir!
Deixa
eu
ir!
(NAVALHA...,
1969,
00:46:10)
Mais
frente,
Vado
obriga
Veludo
a
rastejar
no
cho
em
troca
de
uma
tragada
de
maconha.
Este,
rindo
do
teor
sexual
a
que
a
situao
leva,
submete-se
novamente
sem
questionamentos
(Figura
15).
Figura
15
Vado
e
Neusa
atacam
Veludo;
Vado
oferece
maconha
e
faz
Veludo
rastejar
no
cho.
98
Veludo
parece
resumir
em
um
s
personagem
toda
a
crtica
que
Antnio
Moreno
faz
representao
da
homossexualidade
pelo
cinema
brasileiro
em
geral:
Pelo
retrato
social
oferecido
nesses
filmes,
o
homossexual
seria,
em
sntese:
um
sujeito
alienado
politicamente;
existente
em
todas
as
classes
sociais,
com
preponderncia
na
classe
mdia
baixa,
onde,
geralmente,
tem
um
subemprego;
de
comportamento
agressivo
e
que
usa,
frequentemente,
um
gestual
feminino
exacerbado,
o
que
se
estende
ao
gosto
pelo
vesturio;
e
que,
nos
relacionamentos
interpessoais,
mostra
tendncia
solido
e
incapaz
de
uma
relao
monogmica,
pois
utiliza-se
de
vrios
parceiros,
geralmente
pagos,
para
ter
companhia.
(MORENO,
2001,
p.
291)
Cabe
notar,
porm,
que
esse
retrato
s
se
torna
deformante
se
confrontado
com
o
modelo
igualitrio
de
organizao
das
prticas
homoerticas
masculinas
prprio
da
identidade
gay
(que
abordo
nos
captulos
6
e
7),
contempornea
pesquisa
de
Moreno
e
minha
prpria.
Ao
colocar
Veludo
em
seu
prprio
contexto,
possvel
perceber
que
o
personagem
dialoga
de
forma
transparente
com
a
identidade
da
bicha,
inclusive
na
suposta
incapacidade
de
uma
relao
monogmica
e
na
utilizao
de
parceiros
geralmente
pagos.
60
60
Outros
personagens
que,
em
maior
ou
menor
nvel,
dialogavam
tambm
com
a
identidade
da
bicha
so:
o
coronel
(Chico
Ansio)
em
O
Doce
Esporte
do
Sexo
(Zelito
Viana,
1971),
Timteo
(Carlos
Kroeber)
em
A
Casa
Assassinada
(Paulo
Cesar
Saraceni,
1971),
Dnis
(Mrcio
Hathay)
em
Os
Maches
(Reginaldo
Faria,
1972),
Odsio
(Srgio
Mamberti)
em
Toda
Nudez
Ser
Castigada
(Arnaldo
Jabor,
1972),
Gilda
(Carlos
Leite)
em
Ainda
Agarro
esta
Vizinha
(Pedro
Carlos
Rovai,
1974),
Diaba
(Milton
Gonalves)
em
A
Rainha
Diaba
(Antnio
Carlos
Fontoura,
1974),
Z
Honrio
(Andr
Valli)
em
O
Casamento
(Arnaldo
Jabor,
1976),
Fada
(Nestor
Montemar)
em
Marlia
e
Marina
(Luiz
Fernando
Goulart,
1976),
Nan
(Eliseu
Paranhos)
em
Barra
Pesada
(Reginaldo
Faria,
1977),
Albino
(Marco
Rebu)
em
O
Cortio
(Francisco
Ramalho
Jr.,
1978),
Marlene
em
Amor
Bandido
(Bruno
Barreto,
1978),
Elona
(Anselmo
Vasconcelos)
em
Repblica
dos
Assassinos
(Miguel
Faria
Jr.,
1979)
Lilica
(Jorge
Julio)
em
Pixote
(Hector
Babenco,
1981),
99
Nesse
sentido,
vlido
atentar
para
o
fato
que,
de
acordo
Carmem
Dora
Guimares
(2004,
p.
18),
a
relao
entre
bichas
e
bofes
contava
com
um
modelo
de
conjugalidade
especfico,
definido
pelos
rtulos
de
transa
e
caso.
O
primeiro
descrevia
uma
relao
de
carter
sexual
e
efmero,
com
poucas
possibilidades
de
conservao
ou
aprofundamento.
J
o
segundo
tendia
a
uma
maior
durao,
o
que
colocava
em
jogo
certa
dimenso
afetiva
que,
apesar
disso,
no
implicava
em
exclusividade,
e
o
bofe
especialmente
mas
no
s
podia
ter
outros
relacionamentos
em
paralelo,
inclusive
com
mulheres
(GUIMARES,
2004,
p.
18).
Se
a
bicha
tinha
no
fresco
um
antecessor
no
cinema
brasileiro,
a
abordagem
do
bofe,
por
outro
lado,
era
indita
e
particularmente
inquietante
para
os
olhos
de
hoje,
acostumados
com
a
diviso
estrita
entre
homo
e
heterossexuais
baseada
no
desejo
direcionado
ao
mesmo
sexo
ou
ao
sexo
oposto.
Nesse
sentido,
interessante
notar
como
essa
figura
limtrofe
que
ao
mesmo
tempo
em
que
se
relaciona
com
as
bichas,
reivindica
uma
identidade
heterossexual,
pondo
em
cheque
as
categorias
contemporneas
era
completamente
integrada
ao
cenrio
da
poca,
a
ponto
de
sua
sexualidade
no
despertar
qualquer
questionamento
por
parte
dos
filmes.
Um
bom
exemplo
disso
pode
ser
encontrado
no
suspense
com
toques
de
film
noir
A
Morte
Transparente
(Carlos
Hugo
Christensen,
1979),
que
acompanha
a
histria
de
Beto
(Wagner
Montes)
um
playboy
rico
e
inconsequente
que,
junto
com
amigos,
invade
a
casa
de
Marlene
(Bibi
Vogel)
e
afoga-a
por
acidente.
Pouco
tempo
depois,
Beto
descobre
que
Marlene
forjou
o
prprio
afogamento,
comea
a
ter
um
caso
com
ela
e
passa
a
ajud-la
em
seus
planos
de
matar
seu
amante
rico.
Ao
longo
de
toda
a
trama,
Beto
se
relaciona
tambm
com
Ramiro
(Fernando
de
Almeida),
um
homossexual
mais
velho
a
quem
ele
visita
sempre
que
precisa
de
dinheiro
e
conselhos.
Um
dilogo
especfico
em
que
Ramiro
e
Beto,
deitados
na
cama
aps
transarem,
discutem
a
paixo
deste
por
Marlene,
significativo
do
carter
corriqueiro
de
tal
relao
dupla
(Figura
16):
Ramiro:
Que
dia
hoje?
Luis
Molina
(William
Hurt)
em
The
Kiss
of
the
Spider
Woman
(Hector
Babenco,
1985)
e
Geni
(J.
C.
Violla)
em
A
pera
do
Malandro
(Ruy
Guerra,
1986).
100
Beto:
Quarta-feira.
Ramiro:
Trs
dias
trepando?
O
coroa
[amante
de
Marlene]
bom
de
cama!
Beto:
Corta
essa,
t
bom?
Ramiro:
Voc
tambm
estava
pensando
a
mesma
coisa?
Beto:
Parece
at
que
t
vendo.
Ramiro:
Sabe
de
uma
coisa,
Beto?
Voc
est
apaixonado.
Beto:
Estou.
Ramiro:
E
como
se
sente?
Beto:
Podre.
Ramiro:
Eu
sei
o
que
isso.
Agora
me
diga
uma
coisa:
voc
j
teve
ao
menos
curiosidade
de
espiar?
Beto:
O
qu?
Ramiro:
Espiar
o
cara.
Beto:
No
devia,
mas
fui.
Ramiro:
E
da?
Beto:
No
larga
a
guria
um
minuto!
De
casa
pra
piscina.
O
sacana
tem
uma
cara
assim
cheia
de
dentes.
Uma
alegria
imoral!
Ramiro:
Voc
est
mesmo
gamado!
Ou
est
planejando
o
golpe
do
ba?
Beto:
As
duas
coisas,
veado!
(MORTE...,
1979,
00:36:40)
Figura
16
Beto
e
Marlene,
Beto
e
Ramiro.
101
A
figura
do
bofe
tanto
quanto
a
da
bicha
indicativa
de
como
a
diviso
estrita
entre
homo
e
heterossexualidade
era
pouco
significativa
para
a
poca.
Pelo
contrrio,
era
a
adeso
ou
transgresso
do
gnero
que
servia
de
marcador,
e
dado
que
o
bofe
respeitava
seu
papel
de
gnero
(em
termos
de
postura
masculina
e
papel
ativo
no
ato
sexual),
podia
relacionar-se
tanto
com
mulheres
quanto
com
bichas
sem
inscrever-se
em
uma
posio
de
abjeo.
importante
ressaltar,
porm,
que
se
identidade
do
bofe
no
estava
marcada
pela
abjeo,
relacionar-se
com
algum
que
estava
a
bicha,
no
caso
no
era
algo
completamente
bem
resolvido:
Como
lembrou
Jos
Rodrigues:
Tinha
homem
que
saa
da
casa
da
namorada,
depois
chegava
na
casa
da
bicha
para
trepar,
vinha
excitado.
Esses
homens
apreciavam
a
companhia
e
os
prazeres
sexuais
das
bonecas,
mas
frequentemente
esquivavam-se
deles
nas
ruas
para
evitar
que
suas
escapadas
chegassem
ao
conhecimento
pblico.
Embora
seu
papel
sexual
como
penetradores
assegurasse
sua
masculinidade
e
os
tornasse
o
objeto
de
desejo
dos
[sic]
bichas,
eles
tentavam
confinar
suas
aventuras
aos
seus
crculos
sociais
restritos.
(GREEN,
2000,
p.
302)
por
isso
que,
como
analisa
Nstor
Perlongher
em
seu
estudo
etnogrfico
O
Negcio
do
Mich:
A
prostituio
viril
em
So
Paulo,
no
era
infrequente
o
fato
da
relao
entre
a
bicha
e
o
bofe
contar
com
mediao
financeira,
fosse
atravs
de
um
pagamento
previamente
combinado,
fosse
a
partir
de
ajudas,
presentes
e
abrigo
oferecidos
por
ela,
que
funcionavam
como
justificativa
pblica
do
bofe
tanto
para
a
sua
aproximao
da
bicha
quanto
para
a
manuteno
da
relao
entre
eles
(PERLONGHER,
2008
[1987],
pp.
205-208).
A
perspectiva
da
relao
com
uma
bicha
motivada
pela
necessidade
financeira,
e
logo
tratada
como
algo
em
certa
medida
degradante,
foi
utilizada
como
recurso
dramtico
de
alguns
filmes,
sendo
um
dos
mais
notrios
Andr,
a
Cara
e
a
Coragem
(Xavier
de
Oliveira,
1971),
que
conta
a
histria
de
Andr
(Stepan
Nercessian),
um
jovem
ingnuo
do
interior
de
Minas
que
se
muda
para
o
Rio
de
Janeiro
em
busca
de
trabalho
e
de
uma
vida
melhor.
Aps
inmeros
infortnios,
quando
est
prestes
a
se
ver
obrigado
a
voltar
para
sua
cidade
natal,
Andr
recorre
a
um
gerente
de
banco
que
havia
tentado
seduzi-lo
anteriormente,
em
busca
de
abrigo
e
comida.
A
trilha
sonora
d
cena
um
tom
solene
e
fnebre,
sublinhando
o
peso
do
momento
em
que
Andr
se
v
obrigado
a
renunciar
o
que
resta
de
sua
dignidade
para
continuar
vivendo
na
cidade
grande
(Figura
17).
102
Estranho
Tringulo
(Pedro
Camargo,
1970)
parte
da
mesma
premissa:
Durval
(Carlos
Mossy)
chega
ao
Rio
de
Janeiro
vindo
do
interior
em
busca
de
uma
vida
melhor.
Conhece
ento
Werner
(Jos
Augusto
Branco),
dono
de
uma
empresa
de
importao
e
torna-se
seu
amante
(e
mais
frente,
tambm
amante
da
esposa
de
Werner,
Susana
(Leila
Santos))
em
troca
de
emprego
e
ajuda
para
subir
na
vida.
Se
neste
filme,
a
perda
da
inocncia
e
a
degradao
moral
no
so
exatamente
o
foco
pelo
contrrio,
o
envolvimento
de
Durval
com
Werner
tratado
de
forma
natural
uma
outra
questo
est
envolvida
na
relao:
a
perda
dos
ideais.
No
Rio
de
Janeiro,
Durval
recebido
pelo
amigo
de
infncia
Valter
(Jos
Wilker),
que
est
envolvido
com
lutas
estudantis
e
o
apresenta
ao
movimento.
Ao
envolver-se
com
Werner,
ao
contrrio,
instado
a
desistir
de
seus
ideais
polticos
e
assumir
uma
postura
individualista:
Durval:
Pra
falar
a
verdade,
tenho
vontade
de
fazer
alguma
coisa
por
tudo
isso
que
t
a.
103
Tal
abordagem
no
soa
estranha
se
pensarmos
que
a
homossexualidade
era
mal
vista
por
parte
da
esquerda
oficial,
como
nota
Green:
O
Partido
Comunista
Brasileiro
foi
a
organizao
de
esquerda
hegemnica
at
o
comeo
dos
anos
60
e
exercia
uma
tremenda
influncia
entre
os
artistas
e
intelectuais
do
pas.
Ela
defendia
a
posio
tradicional
stalinista,
de
que
a
homossexualidade
era
um
produto
da
decadncia
burguesa.
O
PCB
sofreu
uma
fratura
em
razo
do
conflito
sino-sovitico
iniciado
em
1962
e
das
disputas
internas
quanto
a
apoiar
ou
no
a
luta
armada
contra
a
ditadura,
mas
a
averso
ideolgica
homossexualidade
continuou
a
existir
em
todas
as
organizaes
que
emergiram
do
Partido.
(GREEN,
2001,
p.
428)
Se
esse
o
conflito
que
o
filme
busca
reencenar,
como
mostra
a
escolha
dos
termos
utilizados
por
Werner,
por
outro
lado,
ele
naturaliza
o
envolvimento
sexual
entre
os
dois,
como
o
fazia
a
prpria
lgica
que
guiava
o
bofe.
Se
as
identidades
bicha
e
o
bofe,
malgrado
terem
ganhado
espaos
na
tela
somente
a
partir
do
final
dos
anos
1960,
tm
um
histrico
mais
antigo
na
organizao
das
relaes
homoerticas
masculinas
no
pas,
uma
outra
identidade
que
comeou
a
se
popularizar
apenas
nesse
perodo,
em
especial
nas
classes
mdia
e
alta
urbanas,
a
do
entendido61.
Alm
de
distanciar-se
de
seus
trejeitos
femininos
mais
afetados,
o
entendido
61
Que
tambm
era
referido
simplesmente
como
homossexual,
numa
apropriao
e
popularizao
do
termo
cientfico.
104
Guimares
conclui:
Nesta
acusao,
estabelece-se
uma
relao
entre
o
comportamento
social
excessivo,
vulgar,
anti-requinte
da
bicha
e
a
categoria
da
105
106
Figura
18
Decorao
excessiva
kitsch
ou
clssica,
a
depender
da
posio
social
da
bicha
e
do
entendido.
Filmes:
A
Navalha
na
Carne,
Os
Imorais,
A
Rainha
Diaba,
Barra
Pesada,
Bahia
de
Todos
os
Santos,
Estranho
Tringulo,
A
Casa
Assassinada
e
O
Casamento.
Fonte: A Navalha na Carne (Braz Chediak, 1969), Os Imorais (Geraldo Vietri, 1979), A Rainha Diaba (Carlos
Antnio Fontoura, 1974), Barra Pesada (Reginaldo Faria, 1977), Bahia de Todos os Santos (Trigueirinho Neto,
1960), Estranho Tringulo (Pedro Camargo, 1970), A Casa Assassinada (Paulo Cesar Saraceni, 1971) e O
Casamento (Arnaldo Jabor, 1976).
107
Figura
19
Figurino
mais
discreto
mas
ainda
assim
caracterstico
dos
entendidos
em
Anjos
e
Demnios,
Estranho
Tringulo,
A
Morte
Transparente
e
As
Confisses
do
Frei
Abbora.
Fonte: Anjos e Demnios (Carlos Hugo Christensen, 1970), Estranho Tringulo (Pedro Camargo, 1970), A
Morte Transparente (Carlos Hugo Christensen, 1978) e As Confisses do Frei Abbora (Braz Chediak, 1971).
Se
a
figura
do
entendido
adotou
uma
postura
mais
discreta,
menos
afetada
e
identificada
com
o
feminino,
ainda
assim
o
outro
polo
da
relao,
em
geral,
se
manteve:
foi
com
o
bofe
que
o
entendido,
seguindo
o
padro
da
bicha,
continuou
se
relacionando
atravs
de
transas
e
casos,
que
contavam
frequentemente
com
mediao
financeira.
Tomando
pelas
relaes
mostradas
nos
filmes,
tal
estratgia
de
distanciamento
do
carter
abjeto
da
bicha
foi
bem
sucedida,
pois
clara
a
diferena
de
tratamento
reservada
por
parte
dos
bofes,
por
um
lado,
s
bichas
e,
por
outro,
aos
entendidos.
Se
no
primeiro
caso,
a
hierarquizao
das
identidades
dada
a
ver
atravs
de
uma
postura
eminentemente
depreciativa
e
violenta
por
parte
dos
bofes
caso
de
Vado
e
Veludo
em
A
Navalha
na
Carne,
Jlio
(Stepan
Nercessian)
e
Fada
(Nestor
Montemar)
em
Marlia
e
Marina
(Luiz
Fernando
Goulart,
1976)
e
Quer
(Stepan
Nercessian)
e
Nan
(Eliseu
Paranhos)
em
Barra
Pesada
(Reginaldo
Faria,
1977)
uma
maior
igualdade
e
respeito
mtuo
so
encontrados
no
segundo
caso
Paulo
(Luiz
Fernando
Ianelli)
e
o
entendido
no
creditado
em
Anjos
e
Demnios
(Carlos
Hugo
Christensen,
1970),
Mauro
(Tarcsio
Meira)
e
o
entendido
no
creditado
em
As
Confisses
do
Frei
Abbora
(Braz
Chediak,
1971),
108
109
110
por
fim,
se
o
carter
sexual
da
relao
no
negado,
existe
uma
nfase
clara
no
afeto
e
amor
entre
os
dois,
que
inclusive
o
motor
da
narrativa.
exemplar,
nesse
sentido,
sua
cena
de
apresentao
onde,
aps
uma
pequena
discusso
devido
difcil
situao
financeira
pela
qual
passam,
ambos
terminam
danando
abraados
ao
som
de
Outra
Vez,
de
Roberto
Carlos,
trazendo
ainda
um
dos
poucos
beijos
entre
homens
do
perodo
(Figura
20).
Figura
20
Carlinhos
e
Elona
danam
abraados
ao
som
de
Outra
Vez,
de
Roberto
Carlos.
Alm
disso,
o
ponto
mais
interessante:
Elona,
mesmo
identificando-se
com
a
posio
de
bicha,
no
introjeta
um
local
de
submisso,
seja
em
relao
aos
bofes,
seja
em
relao
ao
restante
da
sociedade.
Pelo
contrrio,
um
dos
personagens
de
maior
fora
e
orgulho
do
perodo.
O
filme,
baseado
em
no
livro
de
mesmo
nome
de
Aguinaldo
Silva,
centra
sua
narrativa
na
histria
real
do
policial
Mateus
Romeiro
(Tarcsio
Meira),
integrante
do
Esquadro
da
Morte,
grupo
paramilitar
que
reclamava
a
tarefa
de,
frente
a
impunidade
do
pas,
capturar
e
matar
supostos
criminosos,
embora
o
grupo
estivesse
ele
prprio
envolvido
em
toda
a
sorte
de
crimes.
Quando
a
sua
atuao
comea
a
se
tornar
incmoda,
devido
tanto
aos
excessos
cometidos
nos
assassinatos
quanto
aos
indcios
dos
outros
crimes
111
que
praticava,
polticos
e
a
justia,
que
antes
mantinham
uma
relao
dbia
com
o
grupo,
tratam
de
tentar
desmantel-lo
atravs
da
abertura
de
um
processo
de
investigao.
Carlinhos,
parceiro
de
Elona,
uma
das
vtimas
do
grupo,
morto
brutalmente
na
beira
de
uma
estrada
por
Mateus
Romeiro,
para
quem
passou
a
trabalhar
em
determinando
momento,
levando
carros
roubados
para
a
fronteira
do
pas.
quando
Elona
v-se
envolvida
no
processo,
como
testemunha
da
ligao
entre
Romeiro
e
Carlinhos.
Seu
depoimento
no
tribunal
exemplar
no
s
da
fora
da
personagem,
mas
principalmente
de
sua
postura
frente
prpria
condio:
O
senhor
no
est
aqui
para
ouvir
coisas
escabrosas?
Mas
doutor,
olhe
para
mim,
eu
sou
uma
coisa
escabrosa.
Pra
que
ento
que
o
senhor
me
mandou
vir
aqui,
nesse
tribunal?
Mateus
Romeiro?
No,
o
Carlinhos
nunca
me
falou
dele.
Mas
eu
o
conhecia.
Alis,
todo
mundo
conhecia
ele.
Na
Lapa,
na
Prado
Jnior.
S
que
eu
tinha
muito
medo
dele,
doutor.
Sei
que
ele
um
cana.
E
eu
sou
um
travesti.
Doutor,
eu
no
t
aqui
a
fim
de
acusar
ningum.
Eu
quero
mais
curtir
muito
a
minha
vida.
[...]
Sim,
ele
morreu.
Isso
infelizmente
a
gente
no
pode
negar.
Mas
doutor,
quantos
morreram
como
ele,
doutor?
Dessa
maneira
horrvel,
com
as
mos
algemadas,
nuas,
numa
estrada
deserta?
O
senhor,
doutor,
tem
um
ttulo,
uma
carteirinha,
uma
vida
certinha.
Olha,
o
senhor
me
desculpe
a
ousadia,
viu,
mas
no
seria
melhor
a
gente
procurar
saber
porque
as
pessoas
morrem
desse
jeito?
Talvez
o
senhor
no
consiga
imaginar
o
medo
que
a
gente
sente
quando
l
nas
notcias
de
jornais
que
as
pessoas
morrem
dessa
maneira.
Carlinhos,
qualquer
um.
Sabe,
doutor,
faz
parte
da
nossa
rotina.
A
gente
imaginar
que
pode
ser
a
prxima
vtima.
O
senhor
t
me
entendendo
bem?
Doutor
promotor,
eu
no
cometi
crime
nenhum
e
nada
ficou
provado
contra
mim.
E
depois
eu
no
conhecia
esse
Mateus
Romeiro
como
o
senhor
quer.
E
acima
de
tudo,
eu
nada
posso
fazer
para
devolver
a
vida
a
Carlinhos,
pessoa
a
quem
eu
amava
muito.
Doutor
promotor,
eu
no
tenho
nada
que
ver
com
a
sua
justia.
Por
isso
eu
peo
que
o
senhor
me
dispense.
(REPBLICA...,
1979,
01:27:50)
No
depoimento,
Elona
impe
com
orgulho
sua
figura
escabrosa
enquanto
rejeita
a
justia
dos
outros,
dos
normais.
Em
resposta
aos
anseios
das
polticas
de
representao
por
personagens
positivos,
o
filme
traz,
ao
contrrio,
uma
bicha
efeminada,
de
classe
baixa,
ligada
marginalidade
e
sem
nenhum
desejo
de
assimilao,
postura
a
que
o
filme
adere
e
endossa
completamente.
Alm
de
tudo
isso,
ao
negar-se
a
ser
testemunha
de
acusao
contra
Mateus
Romeiro
apesar
de
saber
da
ligao
entre
ele
e
Carlinhos
e
de
sua
culpa
pelo
assassinato
deste
112
Elona
finca
o
p
em
sua
posio
margem
das
instituies
oficiais,
elas
prprias
cmplices
dos
crimes
do
Esquadro
da
Morte
e,
logo,
do
assassinato
de
Carlinhos,
quando
lhes
era
vantajoso.
Ao
invs
disso,
o
filme
fecha
com
a
vingana
da
prpria
Elona,
que
mata
Mateus
Romeiro
com
um
tiro
no
peito,
entre
declaraes
debochadas
de
amor,
para
ento
fugir
maravilhosa
de
barco
ao
som
de
Elba
Ramalho
e
Chico
Buarque
cantando
No
Sonho
Mais,
msica
tema
do
filme.
Figura
21
Elona
vinga-se
de
Mateus
Romeiro
entre
declaraes
debochadas
de
amor.
Nuno
Cesar
Pereira
de
Abreu,
em
sua
anlise
crtica
das
pornochanchadas
e
do
cinema
da
Boca
do
Lixo,
buscou
entender
de
que
modo
esse
conjunto
de
filme
poderia
ter
alguma
potncia
poltica
ou
se
era
o
caso,
como
acreditavam
as
instncias
oficiais
de
controle,
que
tais
produtos
da
cultura
de
massa
tinham
como
efeito
apenas
a
alienao
de
seu
pblico
e,
logo,
seu
afastamento
das
questes
polticas
que
tais
grupos
buscavam
monopolizar.
No
cmputo
geral,
ele
acredita
que,
apesar
de
abordar
o
sexo
com
uma
liberdade
at
ento
indita
algo
positivo
esta
abordagem
era
eminentemente
conservadora:
Se
a
pornochanchada,
em
seu
conjunto
(abrigando
todos
os
gneros),
podia
ser
cinema
mal
feito
voltado
a
um
segmento
forado
a
manter-se
sem
contato
crtico
com
a
realidade
do
pas,
por
outro
lado,
respondia
a
113
114
62
Empresa
Brasileira
de
Filmes
S/A,
gradual
desmonte.
J
o
COCINE,
ou
Conselho
Nacional
de
Cinema,
foi
criado
em
1976
para
normatizar
e
fiscalizar
as
atividades
cinematogrficas
no
pas.
115
homoerotismo
masculino
antes
e
depois
da
Retomada,
no
posso
deixar
de
notar
que
essa
mudana
j
pode
ser
vislumbrada
atravs
de
alguns
longas
de
1987
como
Romance
(Srgio
Bianchi),
A
Menina
do
Lado
(Alberto
Salv),
Anjos
do
Arrabalde
(Carlos
Reichenbach),
Anjos
da
Noite
(Wilson
Barros)
e
Leila
Diniz
(Luiz
Carlos
Lacerda).
Em
todos
esses
h
uma
maior
nfase
tanto
na
cisgeneridade
de
seus
personagens
homossexuais
quanto
em
seu
posicionamento
nos
estratos
mdios
da
sociedade,
o
que
j
indica
as
mudanas
que
se
concretizariam
em
meados
dos
anos
90.
116
feminino
e
masculino
(nas
figuras
da
bicha
e
do
bofe)
pela
oposio
entre
homo
e
heterossexual.
Se
o
modelo
igualitrio
j
vinha
sendo
adotado
pelos
entendidos
em
meados
dos
anos
1970,
especialmente
como
uma
forma
de
distanciamento
da
abjeo
da
bicha
e
de
sua
transgresso
de
gnero,
ele
foi
tambm
utilizado
no
final
da
mesma
dcada
pelo
nascente
movimento
homossexual
brasileiro.
Criado
em
torno
do
Somos
Grupo
de
Afirmao
Homossexual
e
da
revista
Lampio
da
Esquina,
um
dos
principais
objetivos
do
movimento
foi
difundir
a
identidade
homossexual.
No
aquela
patologizada
pelos
saberes
cientficos,
mas
um
novo
homossexual,
embasado
politicamente
por
uma
perspectiva
marxista,
que
identificava
a
heterossexualidade
compulsria
(RICH,
2010
[1980]),
o
machismo
e
o
patriarcalismo
como
ideologias
opressoras
responsveis
por
marginalizar
expresses
dissidentes.
A
influncia
fundamental
para
essa
operao
veio,
como
visto
na
introduo,
do
movimento
liberacionista
gay
americano
(JAGOSE,
1996,
pp.
30-43)
com
o
qual
haviam
travado
contato
tanto
Joo
Silvrio
Trevisan
quanto
Joo
Antnio
Mascarenhas,
dois
dos
fundadores
do
Somos
e
da
Lampio
da
Esquina.
Tal
abordagem
da
identidade
homossexual
fica
clara
j
no
editorial
do
primeiro
nmero
da
Lampio
da
Esquina,
de
abril
de
1978:
O
que
nos
interessa
destruir
a
imagem
padro
do
homossexual,
segundo
a
qual
ele
um
ser
que
vive
nas
sombras,
que
prefere
a
noite,
que
encara
a
sua
preferncia
sexual
como
uma
espcie
de
maldio,
que
dado
aos
ademanes
e
que
sempre
esbarra
em
qualquer
tentativa
de
se
realizar
mais
amplamente
enquanto
ser
humano,
neste
fator
capital:
seu
sexo
no
aquele
que
ele
desejaria
ter.
[...]
A
essa
minoria,
no
interessam
posies
como
as
dos
que,
aderindo
ao
sistema
do
qual
se
tornaram
apenas
bobos
da
corte
declaram-se,
por
ledo
engano,
livres
de
toda
discriminao
e
com
acesso
a
amplas
oportunidades;
o
que
LAMPIO
reivindica
em
nome
dessa
minoria
no
apenas
se
assumir
e
ser
aceito
o
que
ns
queremos
resgatar
essa
condio
que
todas
as
sociedades
construdas
em
bases
machistas
lhes
negou:
o
fato
de
que
os
homossexuais
so
seres
humanos
e
que,
portanto,
tm
todo
o
direito
de
lutar
por
sua
plena
realizao,
enquanto
tal
(SAINDO...,
1978,
p.
2,
grifos
no
original).
O
mesmo
propsito
pode
ser
percebido
na
descrio
e
anlise
de
Edward
MacRae
dos
subgrupos
de
identificao,
reunies
organizadas
pelo
grupo
Somos,
em
que
os
membros,
especialmente
os
recm-chegados,
tinham
a
oportunidade
de
revelar
suas
concepes
a
respeito
da
sexualidade
em
geral
e
da
homossexualidade
em
particular.
Para
117
118
119
65
Para
mais
detalhes
a
respeito
da
histria
e
das
ondas
do
movimento
homossexual
brasileiro,
ver
Sopa
de
letrinhas,
de
Regina
Fachinni
(2005).
66
Cabe
lembrar
que
o
homossexualismo
somente
deixou
de
figurar
na
lista
internacional
de
doenas
da
Organizao
Mundial
da
Sade
em
1990,
por
exemplo.
120
O
mercado
dirigido
ao
pblico
homossexual
passou
por
vrias
fases
com
caractersticas
distintas.
At
os
anos
1970,
os
espaos
de
socializao
consistiam
em
locais
de
perambulao
(ruas
do
centro,
cinemas,
parques,
praias,
banheiros
pblicos)
ou
bares
e
boates
que
contavam
com
grande
frequncia
homossexual,
apesar
de
no
haver,
na
maioria
das
vezes,
um
direcionamento
dos
estabelecimentos
para
tal
pblico.
Nessa
67
Essa
diviso
da
identidade
homossexual
a
partir
dos
gneros
masculino
e
feminino
gay
e
lsbica
fruto
de
uma
demanda
antiga
das
mulheres
do
movimento
homossexual
brasileiro,
que
viam
suas
questes
especficas
serem
obscurecidas
por
um
rtulo
homossexual
de
cunho
eminentemente
masculino
121
122
rtulo
GLS
(gays,
lsbicas
e
simpatizantes)
podem
ser
lidos
como
tentativas
tanto
de
opor-se
a
um
suposto
carter
excludente
e
isolacionista
do
gueto
lsbico
e
gay,
quanto
de
ampliar
o
pblico
em
potencial
de
seus
produtos.
69
Utilizo
123
70
Nesse
sentido,
a
essa
definio
que
fao
referncia
no
ttulo
da
tese.
124
como
Estados
Unidos,
Canad,
Inglaterra,
Frana
e
Austrlia71.
Esses
filmes,
assim
como
outros
que
se
enquadram
nessa
definio
mais
restrita,
apresentam
um
constante
dilogo
com
estratgias
ativistas,
em
especial
as
polticas
de
representao,
muitas
vezes
tornando-se
um
complemento
ou
alternativa
a
estas.
De
acordo
com
Thomas
Waugh
,
a
respeito
dos
documentrios
citados:
Ao
invs
de
submeterem-se
s
regras
da
mdia
dominante,
documentaristas
lsbicas
e
gays
devem
desenvolver
um
conjunto
de
princpios
ticos
adequados
a
uma
prtica
flmica
de
oposio
ou
radical.
Tais
princpios
aplicam-se
independentemente
dos
documentrios
visarem
simplesmente
preencher
um
vcuo
representacional
deixado
pela
mdia
dominante,
proporem
uma
reforma
ou
integrao
poltica
ou
at
buscarem
uma
transformao
social
estrutural.72
(WAUGH,
1988,
p.
249,
traduo
minha)
Como
resume
Marcos
Aurlio
da
Silva,
esse
cinema
gay
encerraria
peas
artsticas
produzidas
de
uma
perspectiva
de
dentro,
e
que
foram
desde
sempre
o
principal
alvo
dos
curadores
e
programadores
dos
gay
and
lesbian
film
festivals
(SILVA,
2012,
p.
32,
grifo
no
original).
A
referncia
a
uma
perspectiva
de
dentro
ressalta
o
fato
da
abordagem
do
homoerotismo
e
da
transgeneridade
pela
mdia
dominante
ter
sido
feita,
ao
longo
da
histria,
eminentemente
a
partir
de
uma
perspectiva
de
fora,
ou
seja,
a
partir
de
uma
lgica
heteronormativa
a
que
esse
cinema
gay
se
oporia.
Alm
disso,
a
citao
aos
gays
and
lesbian
film
festivals
torna
aparente
a
questo
das
condies
de
possibilidade
de
tal
cinema,
especialmente
se
atentarmos
para
as
dificuldades
inerentes
produo
cinematogrfica
como
um
todo,
seja
relativo
aos
custos
de
produo,
seja
em
relao
entrada
no
circuito
exibidor.
71
Alguns
deles
so:
In
the
Best
Interest
of
Our
Children
(Frances
Reid
e
Elizabeth
Stevens,
1977),
Word
Is
Out
(Mariposa
Film
Group,
1977),
Un
Sicle
dImages
dHomosexualit
(Lionel
Soukaz
e
Guy
Hocquenghem,
1979),
Witches
and
Faggots
Dykes
and
Poofters
(One
in
Seven
Collective,
1979),
Track
Two
(Harry
Sutherland,
Gordon
Keith
e
Jack
Lemmon,
1981),
Breaking
the
Silence
(Melanie
Chait,
1984)
e
The
Times
of
Harvey
Milk
(Robert
Epstein
e
Richard
Schmiechen,
1984).
72
No
original:
Rather
than
playing
by
the
rules
of
the
dominant
media,
lesbian
and
gay
documentarists
must
develop
an
independent
set
of
ethical
principles
suitable
to
an
oppositional
or
radical
film
practice.
Such
principles
apply
regardless
of
whether
the
documentaries
aim
simply
at
filling
the
representation
vacuum
left
by
the
dominant
media,
whether
they
aim
at
political
reform
or
integration,
or
whether
they
aim
at
fundamental
societal
transformation.
125
Kenneth
Anger
e
John
Waters,
tomado
hoje
como
precursor
de
um
cinema
gay.
74
Lembrando,
claro,
de
alguns
ttulo
precursores,
que
j
se
debruavam
de
forma
consciente
e
126
respeito
das
edies
anuais
do
festival,
ver:
127
76
o
caso,
por
exemplo,
do
For
Rainbow
Festival
de
Cinema
e
Cultura
da
Diversidade
Sexual,
que
ocorre
anualmente
em
Fortaleza
desde
2007;
o
Close
Festival
Nacional
de
Cinema
da
Diversidade
Sexual,
que
ocorre
anualmente
em
Porto
Alegre
desde
2010;
o
Rio
Festival
Gay
de
Cinema,
ocorrendo
no
Rio
de
Janeiro
desde
2011
e
o
Recifest
Festival
de
Cinema
da
Diversidade
Sexual,
ocorrendo
em
Recife
desde
2013.
128
129
A
partir
deste
recorte78,
possvel
identificar
tal
abordagem
de
dentro
que
caracteriza
o
cinema
gay,
ou
seja,
um
grande
nmero
de
curtas
que
tratam
questes,
conflitos
e
dramas
especficos
da
vivncia
homoertica
masculina
de
ento.
Dentre
estes,
um
dos
temas
mais
recorrentes
o
da
descoberta
do
desejo
homoertico
especialmente
na
adolescncia
e
dos
conflitos
de
aceitao
e
auto-aceitao
trazidos
por
essa
conscincia
e
pela
necessidade
de
expressar
tal
desejo.
o
que
abordam,
por
exemplo,
curtas
como
Gax?
(Alexandre
Alencar
e
Camila
Ribas,
1995),
Sargento
Garcia
(Tutti
Gregianin,
2000),
A
Vida
ntima
de
Ccero
e
Clvis
(Thiago
Villas
Boas,
2002),
Verdade
ou
Consequncia?
(Aleques
Eiterer,
2002),
Captulo
Primeiro
(Roberto
Maxwell,
2005),
Doce
77
Como
visto
no
captulo
anterior,
tal
perspectiva
de
dentro
implica
em
uma
produo
que
em
conta,
na
minha
anlise,
a
totalidade
dos
curtas
brasileiros
exibidos
no
Mix
Brasil
nestes
anos.
A
partir
de
1999,
centro
a
anlise
apenas
na
mostra
competitiva.
130
e
Salgado
(Chico
Lacerda,
2007),
T
(Felipe
Scholl,
2008),
Depois
da
Curva
(Helton
Paulino,
2009),
Suspeito
(Eduardo
Mattos,
2009)
Eu
No
Quero
Voltar
Sozinho
(Daniel
Ribeiro,
2010),
Assunto
de
Famlia
(Caru
Alves
de
Souza,
2011)
e
O
Melhor
Amigo
(Allan
Deberton,
2013).
Alm
deste,
outro
tema
recorrente
diz
respeito
experincia
da
homofobia
internalizada
ou
no
e
a
necessidade
de
se
manter
uma
vida
dupla,
caso
de
Vox
Populi
(Marcelo
Laffitte,
1998),
Homofobia
(Gensio
Marcondes,
2005)
e
Depois
de
Tudo
(Rafael
Saar,
2008).
Os
conflitos
inerentes
relao
conjugal
a
dois
o
drama
do
fim
de
um
relacionamento,
as
dificuldades
em
se
iniciar
um,
a
solido
das
grandes
metrpoles,
entre
outros
so
tambm
explorados
por
um
grande
nmero
de
curtas.
Porm,
longe
de
ser
uma
problemtica
especfica
da
vivncia
homoertica
masculina
da
poca,
essas
so
questes
universalizadas
pelo
modelo
heteronormativo
de
conjugalidade,
ou
seja,
so
dramas
compartilhados
tanto
por
heterossexuais
quanto
pelos
gays
de
ento.
o
que
abordam
O
Estranho
(Orlando
Maneschy,
1994),
Dama
da
Noite
(Mrio
Diamante,
1999),
Os
Amantes
ou
da
Incomum
Arte
de
Se
Achar
Sem
Se
Perder
(Guga
Barros,
2003),
Se
Voc
o
Cara
que
Flertava
Comigo
no
Ponto
de
nibus,
Veja
Este
Filme
(Thiago
Alcntara,
2005),
Meu
Co
Me
Ensina
a
Viver
(Filipe
Moura,
2007),
Caf
com
Leite
(Daniel
Ribeiro,
2007),
Noite
Fria
(Felipe
Camargo
Adami,
2008),
O
Menino
Japons
(Caetano
Gotardo,
2009),
Professor
Godoy
(Gui
Ashcar,
2009),
Eu
e
o
Cara
da
Piscina
(William
Mayer,
2010)
e
Quando
a
Noite
Acaba
em
Silncio
(Herbert
Bianchi,
2011).
Se
entre
essas
duas
abordagens
h
uma
diferena
clara,
com
a
primeira
tematizando
questes
especficas
do
homoerotismo
masculino
contemporneo
e
a
segunda
buscando
dramas
mais
universais,
uma
coisa
as
conecta:
ambas
se
utilizam
do
modelo
igualitrio
e
da
identidade
gay.
Ou
seja,
ambas
trazem
uma
homossexualidade
definida
a
partir
do
desejo
direcionado
ao
mesmo
sexo
e
no
da
transgresso
de
gnero.
No
toa
todos
os
filmes
retratam
personagens
gays
cisgneros,
de
postura
masculina,
sem
qualquer
trao
da
efeminao
e
pinta
das
dcadas
anteriores,
indicando
a
culminao
do
projeto
que
havia
se
iniciado
ainda
com
o
entendido
e
seu
desprezo
pela
figura
da
bicha,
seguido
adiante
com
o
homossexual
ativista
e
desembocando
no
gay
contemporneo.
Essa
conjuntura
claramente
ilustrada
pela
compartimentalizao
das
identidades
do
gay
e
do
transgnero
em
duas
diferentes
letras
da
sigla
LGBT
o
G
e
o
T
separao
que
131
mdia,
algo
que
percebo
a
partir
de
minha
experincia
como
realizador
e
frequentador
de
festivais
LGBT,
o
que
indica
um
elemento
adicional
de
identificao
entre
eles
e
os
personagens
que
resolvem
levar
para
as
telas.
Tal
fato,
porm,
parece
estar
condicionado,
em
primeiro
lugar,
existncia
de
uma
identidade
culturalmente
compartilhada
que
possa
ser
utilizada
para
tal
fim,
caso
do
gay.
132
Tanto
o
entendido
quanto
o
andrgino80,
influenciados
tambm
pelo
desbunde
dos
anos
1970,
continuaram
privilegiando
o
carter
sexual
e
de
amizade
desse
modelo,
subtraindo
dele
a
dicotomizao
dos
parceiros
em
gneros
feminino
e
masculino.
Esses
foram,
inclusive,
valores
exaltados
pela
primeira
onda
do
movimento
homossexual
brasileiro,
que
via
na
conjugalidade
homoertica
um
carter
revolucionrio
em
sua
transgresso
do
ncleo
familiar
heterossexual
fechado,
conservador,
individualista
e
um
dos
grandes
sustentculos
do
sistema
capitalista
(MACRAE,
1990,
p.
144-145).
A
epidemia
de
Aids,
porm,
colocou
em
risco
uma
atitude
mais
liberal
frente
ao
sexo.
Segundo
Nestor
Perlongher,
em
seu
ensaio
O
desaparecimento
da
homossexualidade
(1992),
ao
invs
da
postura
libertria
ter
permanecido,
auxiliada
por
medidas
de
preveno,
como
a
camisinha,
o
trauma
causado
pela
epidemia
levou,
pelo
contrrio,
a
uma
guinada
conservadora
no
valor
dado
liberdade
sexual,
transformada
ento
em
promiscuidade,
em
seu
sentido
mais
negativo.
Maria
Luiza
Heilborn,
a
partir
de
seu
estudo
etnogrfico
a
respeito
de
modos
de
conjugalidade
de
lsbicas
e
gays,
identificou
tambm
que
"[a]
Aids
[atuou]
no
sentido
de
uma
valorizao
relativa
do
elo
conjugal,
fato
que
[adquiriu]
particular
visibilidade
entre
os
homens
gays"
(2004,
p.
162).
Junto
a
isso,
[n]a
dcada
de
1990,
construir
uma
imagem
positiva
da
homossexualidade,
longe
da
imagem
de
promiscuidade
e
libertinagem,
[passou]
a
ser
importante
para
o
movimento
ativista,
que
teria
na
visibilidade
uma
palavra-chave
(FRANA,
2010,
p.
55).
Tudo
isso
levou
a
identidade
gay
a
se
afastar
dos
modelos
de
conjugalidade
anteriores,
aproximando-se
do
modelo
heteronormativo.
A
prpria
defesa
de
uma
equivalncia
entre
homo
e
heterossexuais
reforou
essa
mudana
e
no
por
acaso,
atingiu-se
um
estgio
em
que
duas
das
maiores
bandeiras
do
movimento
so
as
lutas
pelos
direitos
ao
casamento
e
adoo.
Assim,
na
prtica,
partiu-se
de
um
modelo
que
privilegiava
laos
80
Identidade
prpria
do
meio
artstico
da
dcada
de
70.
133
comunitrios
de
amizade
e
uma
vida
afetiva
e
sexual
de
carter
mais
poligmico
para
chegar,
com
a
identidade
gay,
a
um
modelo
baseado
na
conjugalidade
heteronormativa,
centrado
no
ncleo
familiar
e
no
casal
de
carter
individualista
e
monogmico.
Todas
essas
caractersticas
esto
presente
nos
curtas
citados,
especialmente
os
do
segundo
grupo,
onde
especificidades
prprias
do
homoerotismo
so
deixadas
de
lado
em
benefcio
da
abordagem
de
questes
universais
que,
na
prtica,
dizem
respeito
especificamente
heteronormatividade.
Todo
esse
perfil
da
cisgeneridade
branquitude,
da
representao
dos
extratos
sociais
mdios
conjugalidade
heteronormativa
contrastou
de
forma
clara
com
o
cinema
de
antes
da
Retomada
que,
como
identificado
por
Moreno
e
visto
em
captulos
anteriores,
apresentou
eminentemente
classe
baixa,
subemprego,
ligao
com
a
marginlia,
comportamento
feminino,
tendncia
solido
e
incapacidade
de
relao
monogmica
(2001,
p.
291).
Essa
mudana
refletiu-se
tambm
nos
longas-metragens,
especialmente
a
partir
dos
anos
2000,
quando
o
formato
retomou
um
ritmo
constante
de
produo81.
o
caso,
por
exemplo,
de
Amores
Possveis
(Sandra
Werneck,
2001),
onde
a
questo
da
equivalncia
entre
homo
e
heterossexualidade
parte
estruturante
do
filme.
O
enredo
conta
trs
diferentes
verses
como
que
se
desenrolando
em
universos
paralelos
da
relao
entre
Carlos
(Murilo
Bencio)
e
seu
amor
da
juventude,
Jlia
(Carolina
Ferraz).
Na
primeira,
Carlos
e
Jlia
afastam-se
aps
um
encontro
malsucedido
e
ele
se
casa
com
Maria
(Beth
Goulart),
com
quem
tem
uma
vida
luxuosa
aps
sucesso
na
carreira
de
advogado;
anos
depois,
o
reencontro
com
Jlia
instala
uma
crise
em
seu
casamento
aparentemente
satisfatrio.
Na
segunda
histria,
Carlos
e
Jlia
casam-se,
tm
um
filho,
mas
separam-se
quando
Carlos
descobre-se
apaixonado
por
Pedro
(Emlio
de
Mello),
colega
de
futebol;
o
convvio
de
Carlos
com
o
filho
leva
ele
e
Jlia
a
tentarem
lidar
com
o
rancor
desta,
aps
a
separao.
Por
fim,
na
terceira
histria,
Carlos
permanece
solteiro
e
inconsequente
at
encontrar
uma
verso
artista-hippie
de
Jlia,
o
que
coloca
em
crise
a
relao
com
sua
me
superprotetora
(Irene
Ravache).
81
Sem
esquecer
de
alguns
longas
que
trouxeram
a
mesma
abordagem
ainda
na
dcada
de
1990,
caso
de
Cinema
de
Lgrimas
(Nelson
Pereira
dos
Santos,
1995),
Jenipapo
(Monique
Gardenberg,
1995),
citado
no
captulo
anterior,
For
All
(Luiz
Carlos
Lacerda,
1997)
e
Amores
(Domingos
de
Oliveira,
1998).
O
primeiro
e
o
ultimo,
inclusive,
tematizam
a
Aids
atravs
de
personagens
homossexuais,
questo
que
praticamente
some
do
espectro
dos
filmes
nas
dcadas
seguintes.
134
135
Jlia:
No
precisa.
Carlos:
Mas
t
pesado.
A
gente
no
conversa
mais...
Jlia:
Olha,
Carlos,
por
mim
a
gente
pode
passar
o
resto
da
vida
sem
se
falar.
Carlos:
Olha,
pra
que
tanto
ressentimento?
No
te
faz
bem
no,
sabia?
Jlia:
Engraado
voc
se
preocupar
comigo
depois
de
tanto
mal
que
voc
me
causou.
Carlos:
Olha,
Jlia,
no
vamos
brigar
na
frente
do
Lucas
no,
t?
Ele
fica
triste,
ele
sabe
que
a
gente
no
consegue
ser
amigo.
Jlia:
Carlos,
...
eu
queria
te
fazer
uma
pergunta.
Quanto
voc
trepa
com
o
seu
parceiro...
voc
usa
camisinha
quando
voc
trepa
com
ele?
Carlos:
Claro.
Jlia:
Que
pena.
Porque
eu
sonho
todas
as
noites,
Carlos,
meu
desejo
secreto
que
voc
morra
de
Aids.
A,
sacou
a
animosidade?
Ou
ainda
acha
que
d
pra
a
gente
ser
amiguinho?
(AMORES...,
00:16:30)
Um
outro
longa
que
tem
como
tema
central
uma
relao
homossexual
mas
que,
desta
vez,
a
exemplo
do
segundo
grupo
de
curtas
citado,
opera
um
apagamento
de
quaisquer
questes
especficas
do
homoerotismo
Do
Comeo
ao
Fim
(Aluzio
Abranches,
2009).
O
filme
conta
a
histria
de
Francisco
(Joo
Gabriel
Vasconcellos)
e
Tomaz
(Rafael
Cardoso),
irmos
por
parte
de
me
que,
desde
pequenos,
demonstram
de
forma
natural
uma
grande
afeio
um
pelo
outro,
o
que,
com
o
tempo,
evolui
para
uma
relao
conjugal.
A
primeira
metade
do
filme,
dedicada
infncia
e
adolescncia
deles,
alimenta
um
constante
suspense
a
respeito
da
reao
das
pessoas
sua
volta
ante
tal
ligao.
Se
a
me
de
ambos,
Julieta
(Jlia
Lemmertz),
inquieta-se
com
a
intimidade
que
os
irmos
compartilham
e
Pedro
(Jean
Pierre
Noher),
pai
de
Francisco
e
ex-marido
de
Julieta,
questiona-a
sobre
o
mesmo
tema,
esses
questionamentos
nunca
chegam
aos
garotos,
que
vivem
o
afeto
que
sentem
um
pelo
outro
com
liberdade.
somente
com
a
morte
de
Julieta
que
os
dois,
j
adultos,
assumem
uma
relao
conjugal,
o
que
fica
explcito
a
partir
de
uma
longa
cena
de
sexo
(sugerido)
entre
eles
que
se
segue
ao
enterro
da
me.
nessa
segunda
metade
que
fica
patente
a
deciso
do
filme
por
deixar
de
fora
quaisquer
questionamentos
a
respeito
da
relao
entre
os
protagonistas,
seja
devido
a
seu
teor
homoertico,
seja
pelo
fato
de
serem
irmos.
Uma
sequncia
especfica
de
cenas
torna
isso
claro:
aps
a
explicitao
do
cunho
afetivo-sexual
da
relao,
na
cena
citada
no
pargrafo
anterior,
segue-se
outra
em
que
o
treinador
de
Tomaz
informa
que
ele
conseguiu
uma
bolsa
para
treinar
natao
na
Rssia;
na
cena
seguinte,
Tomaz
conversa
136
137
O
dilogo
deixa
clara
a
adeso
do
filme
a
uma
construo
clssica
do
amor
romntico,
contando
no
somente
com
a
exclusividade
do
modelo
monogmico
mas
at
com
certo
teor
de
posse
(eu
te
amo
porque
voc
meu,
voc
me
ama,
s
a
mim,
s
voc).
Essa
caracterstica
confirmada
pelo
restante
do
enredo,
que
se
dedica
a
esquadrinhar
uma
relao
de
tal
modo
conservadora
que
soa
at
anacrnica
para
a
poca.
o
caso
da
separao
temporria
devido
a
ida
de
Tomaz
Rssia,
tratada
inicialmente
com
o
peso
de
uma
morte
(eles
se
abraam
com
desespero,
banhados
por
uma
luz
crepuscular
e
ao
som
de
um
tema
dramtico
grave,
imagem
que
substituda
por
um
flashback
em
cmera
lenta
da
relao
de
ambos
com
a
me
(Figura
23))
e,
logo,
com
reforo
posse
(em
casa,
Francisco
surpreende
Tomaz
servindo
champanhe
para
ambos
e
pedindo-lhe
em
noivado
voc
no
acha
que
eu
ia
deixar
voc
viajar
pra
l
sem
uma
aliana,
n?,
ao
que
Tomaz
retruca
e
cad
a
que
eu
vou
colocar
em
voc?
Ou
voc
acha
que
eu
vou
embora
e
deixar
voc
assim?
(01:01:40)
(Figura
24)).
Figura
24
Francisco
e
Tomaz
noivam,
voc
no
acha
que
eu
deixar
voc
viajar
pra
l
sem
uma
aliana,
n?
Antes
da
viagem,
ambos
organizam
ainda
uma
lua
de
mel
em
Buenos
Aires
para
formalizar
o
casamento,
onde
outro
dilogo
refora
a
relao
de
posse:
138
Francisco:
E
a,
gostou?
Tomaz:
Gostei.
Francisco:
Bom,
n?
Tomaz:
So
lindos,
no?
Francisco:
Quem?
Tomaz:
Os
argentinos.
A
mi
me
gustan.
Francisco:
S
no
enxergo
a
graa.
Tomaz:
Como
no?
legtima!
Francisco:
Pra
quem?
Tomaz:
Ah,
voc
ficou
com
cimes,
n?
Ficou
com
cimes.
Francisco:
No
cime,
s
no
achei
o
comentrio
apropriado.
Tomaz:
Que
comentrio?
Francisco:
Sobre
a
beleza
dos
argentinos.
Tomaz:
Voc
no
entendeu,
voc
argentino
[referindo-se
ao
fato
do
pai
de
Francisco
ser
argentino].
o
meu
argentino.
(COMEO...,
01:04:40,
grifo
meu)
Por
fim,
a
prpria
narrao
de
Tomaz,
refletindo
sobre
sua
partida,
termina
por
definir
textualmente
o
modelo
de
relao
sendo
representado
e
fundamenta
a
crise
surgida
devido
ao
afastamento
e
ao
cime
de
ambos
a
que
o
filme
se
dedica
em
sua
parte
final,
crise
que
s
resolvida
com
a
deciso
de
Francisco
de
ir
tambm
para
a
Rssia,
passar
o
ano
junto
ao
outro:
Ser
capaz
de
se
entregar
inteiro
e
completamente
a
outra
pessoa
a
melhor
coisa
da
vida.
O
amor
verdadeiro
comea
a,
nessa
entrega
incondicional.
A
vida
pessoal
s
vale
a
pena
quando
se
acredita
na
dependncia
mtua.
Comigo
e
o
Francisco
era
assim.
(COMEO...,
01:08:20,
grifo
meu)
139
podem
ser
resumidas
da
seguinte
forma:
enquanto
a
primeira
assume
como
objetivo
final
a
assimilao
ou
integrao
dos
homossexuais
sociedade,
advogando
pela
igualdade
entre
a
homo
e
heterossexualidade
e,
na
prtica,
promovendo
uma
normalizao
da
homossexualidade
de
forma
que
esta
se
adeque
aos
valores
exigidos
por
aquela,
a
segunda
busca
derrubar
as
prprias
prticas
de
normalizao,
assumindo,
pelo
contrrio,
a
diferena
que
existe
entre
homo
e
heterossexualidade
e
advogando
pela
legitimidade
de
se
viver
essa
diferena.
Assim,
se
o
assimilacionismo
defende
uma
ideia
de
igualdade
e
luta
por
tolerncia,
o
liberacionismo
sublinha
a
diferena
e
adota
uma
postura
oposicionista,
de
confrontao
e
resistncia.
Se
o
motim
de
Stonewall,
em
1969,
fundou
um
perodo
liberacionista
aps
alguns
anos
de
pendor
assimilacionista
(de
grupos
como
Mattachine
Society
e
Daughters
of
Bilitis,
ambos
fundados
na
dcada
de
1950),
o
ativismo
chegou
dcada
de
1980
com
uma
volta
ao
assimilacionismo,
o
que
se
refletiu
nas
polticas
de
representao
vigentes
poca82.
o
que
pode
ser
visto,
por
exemplo,
no
memorando
emitido
pelo
National
Gay
Task
Force
em
1978,
que
determinava
um
modelo
positivo
a
ser
seguido
na
representao
de
gays
pela
mdia,
sugerindo
que
as
TVs
e
o
cinema
devessem
evitar
promiscuidade,
relaes
efmeras,
vidas
vazias;
homossexuais
estridentes,
desmunhecados,
efeminados
e
com
desejo
de
se
efeminar;
travestis,
transexuais
e
personagens
involuntariamente
cmicos
e,
por
outro
lado,
privilegiar
nas
representaes
pessoas
com
bons
empregos
policiais,
executivos,
esportistas,
psiquiatras;
pessoas
autossuficientes,
corajosas;
heris
sensveis,
compassivos,
ticos,
bem-apessoados;
casais
gays
amorosos
e
afetuosos;
homossexualidade
apenas
incidental 83
(MONTGOMERY,
1989,
p.
89,
traduo
minha).
O
mesmo
tipo
de
recomendao
que
propunha
uma
suavizao
da
homossexualidade
encontrado
em
alguns
estudos
crticos,
caso
do
notrio
The
Cellulloid
Closet,
de
Vito
Russo,
como
visto
na
introduo:
82
Para
mais
detalhes
a
respeito
da
histria
do
movimento
lsbico
e
gay
estadunidense,
ver
os
140
84
No
original:
The
few
times
gay
characters
have
worked
well
in
mainstream
film
have
been
when
filmmakers
have
had
the
courage
to
make
no
big
deal
out
of
them,
when
they
have
been
implicitly
gay
in
a
film
that
was
not
about
homosexuality.
So
no
more
films
about
homosexuality.
Instead,
more
films
that
explore
people
who
happen
to
be
gay
in
America
and
how
their
lives
intersect
with
the
dominant
culture.
141
Nesse
sentido,
Do
Comeo
ao
Fim
encaixa-se
com
perfeio
nas
demandas
das
polticas
de
representao
fundamentadas
no
assimilacionismo,
ou
seja,
traz
um
casal
de
homens
brancos,
cisgneros,
de
classe
mdia-alta,
dentro
de
uma
relao
conjugal
heteronormativa
e
de
construo
romntica
clssica
e
at
conservadora.
Quaisquer
especificidades
historicamente
ligadas
homossexualidade
foram
apagadas
em
benefcio
da
noo
de
equivalncia
e
igualdade
entre
homo
e
heterossexualidade.
No
se
pode
negar,
no
entanto,
que
o
assimilacionismo
e
as
polticas
de
representao
atreladas
a
ele
no
tenham
potencial
poltico
de
rompimento
com
noes
de
anormalidade,
doena
e
abjeo
ligadas
ao
homoerotismo
(ou
a
certo
homoerotismo,
como
veremos).
Pelo
contrrio,
o
potencial
existe
e
o
processo
de
disseminao
da
identidade
gay
atravs
de
inmeros
canais,
seja
atrelados
s
estratgias
ativistas,
ao
Estado,
ao
mercado
ou
mdia,
como
visto
no
captulo
anterior,
foi
capaz
de
gerar
mudanas
palpveis
no
contexto
brasileiro.
Ao
mesmo
tempo,
uma
anlise
mais
cuidadosa
consegue
identificar
tambm
os
limites
e
contradies
inscritos
nessas
estratgias85.
A
principal
delas,
para
as
questes
aqui
discutidas,
diz
respeito
normalizao
do
homoerotismo
decorrente
da
hegemonizao
da
identidade
gay.
Se
indiscutvel
que
h
uma
maior
tolerncia
em
relao
aos
gays,
essa
tolerncia
passa
precisamente
pelo
que
o
gay
representa
cisgeneridade,
branquitude,
extratos
mdios,
conjugalidade
heteronormativa
,
ou
seja,
ela
apenas
desloca
a
abjeo
em
direo
a
outros
sujeitos
e
prticas
que
no
se
enquadram
nesses
requisitos,
promovendo
assim
uma
nova
excluso.
Como
nota
Srgio
Carrara:
85
Para
uma
anlise
mais
detalhada
das
estratgias
polticas
ativistas
da
terceira
onda
do
movimento
homossexual
brasileiro,
ver
Carrara
(2010).
142
Nesse
sentido,
uma
questo
exemplar
de
tal
normalizao
e
que
tem
sido
bastante
discutida
recentemente
(ANGELO,
2013;
CAPARICA,
2014;
NOGUEIRA,
2013;
NUNES,
2014)
tm
sido
a
rejeio
que
gays
eles
prprios
tm
demonstrado
em
relao
a
gays
efeminados,
problema
muito
mais
visvel
a
partir
da
emergncia
de
websites
e
aplicativos
dedicados
busca
de
relacionamentos
e
sexo
entre
homens,
onde
a
possibilidade
de
se
determinar
o
perfil
buscado
torna
evidente
o
grau
de
rejeio
a
tal
postura.
O
prprio
Carrara,
em
2005,
j
havia
identificado
tal
situao
atravs
de
uma
pesquisa
aplicada
aos
participantes
das
paradas
LGBT
do
Rio
de
Janeiro
e
So
Paulo
no
ano
anterior:
Na
pesquisa
do
Datafolha,
chamou
a
ateno
o
fato
de
76%
dos
entrevistados
concordarem,
total
ou
parcialmente,
com
a
idia
de
que
"alguns
homossexuais
exageram
nos
trejeitos,
o
que
alimenta
o
preconceito
contra
os
gays".
A
pesquisa
do
Rio
revelou
que,
entre
os
homens
homossexuais,
44,6%
preferem
parceiros
"mais
masculinos",
contra
apenas
1,9%
que
os
preferem
"mais
femininos"
(para
ntegra
dos
resultados
ver
www.clam.org.br).
Para
alguns,
por
aumentar
o
preconceito,
a
feminilidade
parece
politicamente
incorreta
nos
homens.
Para
outros,
deve
ser
cuidadosamente
policiada
pelos
que
se
aventuram
no
mercado
dos
afetos
e
paixes.
(2005)
143
Por
fim,
a
prpria
aspirao
a
dita
universalidade,
ou
seja,
a
somente
contar
uma
histria
de
amor
camufla
a
arbitrariedade
com
que
eleito
como
universal
tal
modelo
romntico
(assim
como
elementos
de
cisgeneridade,
branquitude
e
extratos
sociais
mdios)
enquanto
a
outros
relegada
a
posio
de
especificidade
e,
muito
frequentemente,
subalternidade.
Logo,
a
adeso
acrtica
a
tal
perfil
termina
por
reforar
essa
hierarquizao.
Como
comenta
Roland
Barthes
em
relao
ao
processo
de
naturalizao
e
universalizao
da
ideologia
burguesa,
que
engloba
tais
caractersticas,
dentre
diversas
outras:
A
Frana
inteira
est
mergulhada
nessa
ideologia
annima:
a
nossa
imprensa,
o
nosso
cinema,
o
nosso
teatro,
a
nossa
Literatura
de
grande
divulgao,
os
nossos
cerimoniais,
a
nossa
Justia,
a
nossa
diplomacia,
as
nossas
conversas,
o
tempo
que
faz,
o
crime
que
julgamos,
o
casamento
com
que
nos
comovemos,
a
cozinha
com
que
sonhamos,
o
vesturio
que
usamos,
tudo,
na
nossa
vida
cotidiana,
tributrio
da
representao
que
a
burguesia
criou
para
ela
e
para
ns
nas
relaes
entre
o
homem
e
o
mundo.
Estas
formas
"normalizadas"
chamam
pouca
ateno,
devido,
justamente,
ao
seu
enorme
tamanho;
a
sua
origem
pode
se
perder
vontade;
elas
gozam
de
uma
posio
intermediria;
no
sendo
diretamente
polticas
nem
diretamente
ideolgicas,
vivem
pacificamente
entre
a
ao
dos
militantes
e
o
contencioso
dos
intelectuais:
mais
ou
menos
abandonadas
por
uns
e
por
outros,
juntam-
se
massa
enorme
do
indiferenciado,
do
insignificante,
em
suma,
da
natureza.
,
no
entanto,
por
meio
da
sua
tica
que
a
burguesia
impregna
a
Frana:
praticadas
no
nvel
nacional,
as
normas
burguesas
so
vividas
como
leis
evidentes
de
uma
ordem
natural:
quanto
mais
a
classe
burguesa
propaga
as
suas
representaes,
mais
elas
se
tornam
naturais.
(2009
[1957],
p.
232)
144
como
Queer
Nation
e
Act
Up86.
Queer
reapropriao
de
uma
expresso
originalmente
ofensiva
a
lsbicas,
gays
e
transgneros
e
que
pode
ser
traduzida
sem
muito
rigor
por
estranho
ou
esquisito
surgiu,
assim,
como
uma
identidade
que
buscava
abarcar
mltiplas
expresses
sexuais
e
de
gnero,
rechaando
o
carter
assimilacionista
que
o
termo
gay
havia
adquirido
e
abraando,
ao
invs
disso,
o
orgulho
pela
diferena
e
pelo
seu
carter
transgressor
em
relao
norma.
Nesse
sentido,
a
dcada
de
1990
trouxe
um
conjunto
de
filmes
estadunidenses
e
ingleses
que,
ao
contrrio
de
obras
mais
alinhadas
s
polticas
de
representao
assimilacionistas,
pareciam
responder
diretamente
s
demandas
do
liberacionista
ativismo
queer.
Batizado
por
B.
Ruby
Rich
(2004,
[1992])
de
New
Queer
Cinema,
tal
grupo,
captando
o
momentum
da
poca,
trouxe
personagens
que
rejeitavam
as
demandas
por
representaes
positivas
e
abraavam,
pelo
contrrio,
esteretipos
considerados
incmodos,
insuflando-os
com
agncia
e
empoderamento.
Temos,
assim,
os
bailes
de
voguing
da
comunidade
negra
e
latina
de
New
York
apresentados
no
documentrio
Paris
Is
Burning
(Jennie
Livingston,
1991);
a
desero
da
sociedade
feita
pelo
casal
Jon
e
Luke
em
uma
jornada
de
flerte
com
a
pulso
de
morte
em
The
Living
End
(Gregg
Araki,
1991);
as
interseces
das
identidades
e
ativismos
negro
e
queer
em
Young
Soul
Rebels
(Isaac
Julien,
1991);
a
reencenao
dos
crimes
cometidos
pelo
casal
Leopold
e
Loeb
em
Swoon
(Tom
Kalin,
1992),
desta
vez
sem
a
salvaguarda
do
discurso
moralista
presente
na
primeira
adaptao
feita
por
Alfred
Hitchcock
(The
Rope,
1948);
a
investigao
afetiva
do
submundo
marginal
em
Poison
(Todd
Haynes,
1991),
fortemente
influenciado
pela
obra
de
Jean
Genet;
o
abrao
a
modos
de
vida
alternativos
de
My
Own
Private
Idaho
(Gus
Van
Sant,
1991);
e
a
prpria
luta
poltica
queer
reencenada
anacronicamente
na
corte
de
Edward
II
(Derek
Jarman,
1991).
Se,
por
um
lado,
inegvel
a
influncia
do
ativismo
lsbico
e
gay
estadunidense
no
movimento
brasileiro,
como
mostra
a
emergncia
deste
a
partir
do
contato
com
aquele,
como
visto
no
captulo
anterior,
por
outro,
no
possvel
traar
um
paralelo
entre
as
diversas
fases
de
ambos.
Assim,
se
a
resposta
daquele
crise
de
Aids
e
respectiva
inao
governamental
foi
uma
virada
liberacionista,
o
contexto
brasileiro
buscou,
ao
contrrio,
86
Para
mais
detalhes
a
respeito
do
ativismo
queer
estadunidense,
ver
o
captulo
7
do
livro
Queer
Theory:
an
introduction
(JAGOSE,
1996).
145
87
Para
mais
detalhes
a
respeito
das
polticas
e
da
parceria
ativismo-Estado
no
enfrentamento
da
Aids
no
Brasil,
ver
(PARKER,
1997).
146
Figura 25 Joo Francisco dos Santos ouve os crimes dos quais acusado.
O
filme
elege
Joo
Francisco
como
seu
heri,
aderindo
a
um
perfil
diametralmente
oposto
ao
encontrado
na
maior
parte
no
cinema
gay
brasileiro
ps-Retomada.
O
enredo
acompanha
uma
trajetria
marcada
por
repetidos
confrontos
com
os
cdigos
de
conduta
vigentes
que
restringiam
as
aes
e
desejos
de
Joo
Francisco
no
somente
no
mbito
sexual
e
de
gnero,
mas
tambm
no
que
diz
respeito
a
raa
e
classe
social.
Essa
abrao
insubordinao
do
personagem
tem
ligaes
estreitas
tanto
com
as
estratgias
do
liberacionismo
quanto
com
a
postura
do
New
Queer
Cinema,
algo
que
fica
mais
patente
ao
sabermos
que
Karm
Ainouz
havia
ele
prprio,
aps
um
curso
de
Cinema
Studies
na
New
York
University,
travado
contato
direto
com
o
movimento,
trabalhando,
por
exemplo,
como
diretor
de
elenco
em
Poison
e
assistente
de
edio
em
Swoon.
Alm
disso,
seu
personagem
atravessado
por
contradies
e
ambiguidades
coloca
em
cheque
as
identidades
precisas
e
bem
resolvidas
do
movimento
LGBT,
especialmente
em
sua
ciso
entre
homoerotismo
e
transgeneridade.
O
filme
traz,
pelo
contrrio,
posturas
extremas
de
ambos
os
gneros
coabitando
o
personagem
de
Joo
Francisco:
por
um
lado,
malandro
violento
e
chefe
de
famlia
rgido;
por
outro,
danarina
sensual
e
sofisticada
em
suas
diversas
personas
apresentadas
no
palco
e
fora
dele
(Figura
26).
147
Tais
contradies
tornam-se
particularmente
visveis
na
relao
dele
com
Tabu
(Flvio
Bauraqui),
fresco
amigo
e
protegido
de
Joo
e
que
trabalha
tambm
como
empregado
domstico
para
ele.
A
relao
entre
os
dois
conta
com
repetidas
e
repentinas
passagens
de
um
extremo
a
outro,
com
o
desconforto
causado
pelo
chefe
de
famlia
e
patro
que
faz
cobranas
de
forma
desptica
e
violenta
sendo
sempre,
de
sbito,
substitudo
pela
cumplicidade
afetada
e
afetiva
da
troca
de
confidncias
entre
os
dois
frescos,
como
mostra
o
seguinte
dilogo:
Joo:
Que
cho
imundo
esse,
Laurita?
Termina
de
limpar
essa
porcaria.
[Para
Tabu]
J
terminou
de
costurar
o
vestido
da
vitria?
Tabu:
J.
Joo:
E
as
toalhas
do
Amador,
j
lavou?
Tabu:
Tudo.
Joo:
Ento
j
podia
ter
lavado
o
vestido
da
Madame
tambm.
148
Tabu:
Eu
j
lavei.
Joo:
J
secou?
Tabu:
Meu
nome
no
sol!
Joo
[arremetendo
contra
Tabu
e
jogando-o
no
cho]:
Teu
nome
trovo,
desgraado!
Tabu:
Ai!
Joo
[acalmando-se,
suavizando
a
expresso
e
afetando
a
voz]:
E
o
cu,
j
deu
hoje?
Tabu
[sorrindo
malicioso]:
Hoje
ainda
no...
(MADAME
SAT,
00:10:50)
149
mais
transgressores
caso
dos
curtas
Amor
de
Palhao
(Armando
Praa,
2005)
e
Na
Sua
Companhia
(Marcelo
Caetano,
2011),
do
mdia
Nova
Dubi
(Gustavo
Vinagre,
2014)
e
dos
longas
Tudo
o
que
Deus
Criou
(Andr
da
Costa
Pinto,
2012)
e
Tatuagem
(Hilton
Lacerda,
2013)
cada
filme
solicita
uma
anlise
particular
no
esquadrinhamento
de
seu
potencial
poltico.
Por
outro
lado,
a
investigao
da
relao
mais
geral
entre
as
estratgias
polticas,
o
cinema
brasileiro
e
seu
contexto
algo
que
tento
fazer
aqui
que
pode
fornecer
subsdios
para
enriquecer
tais
anlises
no
que
tange
o
tema.
150
8 Camp, queer
Tal
postura,
segundo
ela,
estaria
intimamente
ligada
cultura
homoertica
de
ento,
apesar
de
notar
que
se
os
homossexuais
no
tivessem
mais
ou
menos
inventado
o
Camp,
outros
teriam.
(SONTAG,
2015
[1964],
p.
12)
A
conceituao
de
Richard
Dyer,
por
sua
vez,
dialoga
com
diversos
elementos
levantados
por
Sontag,
mas
localizando-os
eminentemente
no
comportamento,
ou
seja,
em
um
conjunto
de
gestos,
posturas,
expresses,
grias
e
tons
de
fala
baseados
em
atributos
como
teatralidade,
exagero,
drama,
humor
afiado
e
efeminao,
bem
resumidos
pela
151
expresso
brasileira
de
dar
pinta.
De
acordo
com
ele,
essa
prtica
cultural
teria
sido
uma
forma
de
resistncia
prpria
do
homoerotismo
masculino
pr-Stonewall,
que
ajudou
a
criar
uma
cultura
e
senso
de
comunidade
imprescindveis
em
meio
a
um
ambiente
eminentemente
opressor:
H
muito
o
que
se
defender
na
prtica
do
camp.
Primeiro
e
acima
de
tudo,
algo
muito
nosso.
um
modo
diferente
de
nos
comportar
e
de
nos
relacionar
entre
ns
que
desenvolvemos
ao
longo
do
tempo.
Dar
pinta
juntos
nos
d
um
tremendo
sentimento
de
identificao
e
pertencimento.
o
nico
estilo,
linguagem
e
cultura
inequivocamente
gay.
[...]
Identidade
e
unio,
diverso
e
perspiccia,
auto-proteo
e
veneno
direcionado
sociedade
htero
estas
so
as
vantagens
do
camp.88
(DYER,
1999
[1976],
pp.
110-111,
traduo
minha,
grifos
meus)
88
No
original:
Camping
about
has
a
lot
to
be
said
for
it.
First
of
all
and
above
all,
its
very
us.
It
is
a
distinctive
way
of
behaving
and
of
relating
to
each
other
that
we
have
evolved.
To
have
a
good
camp
together
gives
you
a
tremendous
sense
of
identification
and
belonging.
It
is
just
about
the
only
style,
language
and
culture
that
is
distinctively
and
unambiguously
gay
male.
[]
Identity
and
togetherness,
fun
and
wit,
self-protection
and
thorns
in
the
flesh
of
straight
society
these
are
the
pluses
of
camp.
89
No
original:
[Mollies]
are
so
far
degenerated
from
all
Masculine
Department
or
Manly
exercises
that
they
rather
fancy
themselves
Women,
imitating
the
little
Vanities
that
Custom
has
reconcil'd
to
the
Female
sex,
affecting
to
speak
walk,
tattle,
curtsy,
cry,
scold
&
mimick
all
the
manner
of
Effeminacy.
[...]
It
seems
the
greater
part
of
these
reptiles
assume
feigned
names,
though
not
very
appropriate
to
their
calling
in
life:
for
instance,
Kitty
Cambric
is
a
Coal
Merchant;
Miss
Selina,
a
Runner
at
a
Police
office;
Black-eyed
Leonora,
a
Drummer;
Pretty
Harriet,
a
Butcher;
Lady
Godina,
a
Waiter;
the
Duchess
of
Gloucester,
a
gentleman's
servant;
Duchess
of
Devonshire,
a
Blacksmith;
and
Miss
Sweet
Lips,
a
Country
Grocer.
152
Sontag
prope
uma
distino
clara
entre
o
camp
involuntrio
e
o
proposital:
[o]
camp
puro
sempre
ingnuo.
O
Camp
que
se
reconhece
como
Camp
em
geral
menos
prazeroso
(SONTAG,
2015
[1964],
p.
5),
e
cita
alguns
nomes
do
cinema
que,
atravs
de
um
estilo
involuntariamente
excessivo,
tornaram-se,
para
ela,
objetos
de
uma
especial
afeio
camp,
caso
de
Bubsy
Berkeley,
Josef
von
Sternberg,
King
Vidor,
Ernst
Lubitsch,
o
horror
hollywoodiano
clssico,
os
nmeros
musicais
de
Carmem
Miranda
e
os
picos
histricos
italianos,
entre
outros.
Tal
diviso,
porm,
rejeitada
por
Jack
Babuscio
em
seu
Camp
and
the
Gay
Sensibility
(BABUSCIO,
1999
[1997]).
Talvez
por
ter
tido
acesso
obra
cinematogrfica
de
John
Waters,
Jack
Smith,
Rosa
von
Praunheim,
Rainer
Werner
Fassbinder
e
Ken
Russel,
nomes
que,
ao
longo
dos
anos
1970,
deliberadamente
transformaram
a
sensibilidade
camp
em
um
estilo,
seu
interesse
tenha
se
voltado,
ao
contrrio
de
Sontag,
exatamente
para
o
uso
intencional
de
tais
expresses.
Nesse
sentido,
ele
defende
que
o
estilo
camp
seria
conscientemente
caracterizado
por
quatro
elementos
principais:
ironia,
esteticismo,
teatralidade
e
humor.
O
apego
a
tais
elementos
originaria-se,
de
acordo
com
Babuscio,
das
estratgias
de
invisibilizao
da
prpria
cultura
homoertica
pr-Stonewall,
exemplificadas
pela
operao
de
pagar
de
htero,
um
fenmeno
geralmente
definido
pela
metfora
do
teatro,
isto
,
interpretar
um
papel:
fingir
ser
algo
que
no
se
;
ou
camuflar
nossa
homossexualidade
escondendo
fatos
sobre
ns
que
possam
levar
os
outros
a
uma
correta
concluso
sobre
nossa
orientao
sexual.
[...]
Tal
prtica
(que
pode
ser
ocasional,
contnua,
no
passado
ou
presente)
significa
que
o
indivduo
deve
estar
sempre
na
defensiva,
de
forma
a
no
ser
pego
desviando
dos
padres
culturais
de
gosto,
comportamento,
fala
etc.,
que
so
geralmente
associados
aos
papis
masculino
e
feminino
definidos
pela
nossa
sociedade.
[...]
essa
experincia
que
produz
tal
sensibilidade,
que
leva
geralmente
tanto
a
uma
elevada
conscincia
quanto
a
uma
apreciao
pelo
disfarce,
atuao,
projeo
de
personalidade
e
distino
entre
comportamentos
instintivos
e
teatrais.90
(BABUSCIO,
1999
[1977],
pp.
123-124,
traduo
minha)
90
No
original:
This
crucial
fact
of
our
existence
is
called
passing
for
straight,
a
phenomenon
generally
defined
in
the
metaphor
of
theater,
that
is,
playing
a
role:
pretending
to
be
something
that
one
is
not;
or,
to
shift
the
motive
somewhat,
to
camouflage
our
gayness
by
withholding
facts
about
ourselves
which
might
lead
others
to
the
correct
conclusion
about
our
sexual
orientation.
[]
Such
practice
of
passing
(which
can
be
occasional,
continuous,
in
the
past
or
present)
means,
in
effect,
that
one
must
be
always
on
ones
guard
lest
one
be
seen
to
deviate
from
those
culturally
standardized
canons
of
taste,
behavior,
speech,
and
so
forth,
that
are
generally
associated
with
the
male
and
female
roles
as
defined
by
the
society
in
which
we
live.
[...]
The
experience
of
passing
is
often
productive
of
a
gay
sensibility.
It
can,
and
often
does,
lead
to
a
heightened
awareness
and
153
possvel
encontrar
entre
os
filmes
exibidos
pelo
Mix
Brasil,
ano
aps
ano,
vrios
curtas
que
dialogam
com
elementos
da
sensibilidade,
das
prticas
e
do
estilo
camp.
o
caso,
por
exemplo,
de
Conceio
(Roberto
Jabor,
1993),
onde
duas
travestis
adotam
uma
gatinha
(de
pelcia)
grvida
e
buscam
adaptar-se
futura
vida
de
avs;
ou
Serial
Clubber
Killer
(Duda
Leite
e
Gisele
Matias,
1994),
uma
pardia
aos
suspenses
de
assassinos
em
srie,
onde
um
assassino
clubber 93
seduz
e
mata
debochadamente
vrios
tipos
reconhecveis
da
noite
gay;
ou
Ordinria
(Billy
Castilho,
1997),
pardia
aos
filmes
de
investigao
do
tipo
whodunit94
que
se
passa
em
uma
boate
gay,
novamente
retratando
os
tipos
mais
reconhecveis
de
tal
universo;
ou
Os
Clubbers
Tambm
Comem
(Lufe
Steffen,
1998),
comdia
que
satiriza
os
fashionistas
e
sua
necessidade
de
manter-se
sempre
a
par
da
ltima
moda,
seja
ela
qual
for;
ou
As
Aventuras
dos
Super
Poderosos
(Lico
Queiroz
e
Jlia
Jordo,
2001),
curta
em
trs
pequenos
episdios
que
traz
dois
super
heris
gays
encarnados
com
muita
pinta
por
Johnny
Luxo,
nome
conhecido
da
noite
gay
de
So
appreciation
for
disguise,
impersonation,
the
projection
of
personality,
and
the
distinctions
to
be
made
between
instinctive
and
theatrical
behavior.
91
No
original:
Or
rather,
and
this
is
the
point,
we
find
it
easy
to
appear
to
fit
in,
we
are
good
at
picking
up
the
roles,
conventions,
forms
and
appearances
of
different
social
circles.
And
why?
Because
weve
had
to
be
good
at
it,
weve
had
to
be
good
at
disguise,
at
appearing
to
be
one
of
the
crowd,
the
same
as
everyone
else.
[]
So
we
have
developed
an
eye
and
an
ear
for
surfaces,
appearances,
forms:
style.
[]
Looked
at
in
this
way,
the
camp
sensibility
is
very
much
a
product
of
our
oppression.
92
Trazendo
essas
afirmaes,
no
quero
defender
um
carter
essencialista
do
camp,
longe
disso.
154
da
Mostra
Competitiva
do
Mix
Brasil,
h
ainda
duas
sesses
especficas
do
festival
que
abraam
especificamente
o
estilo:
a
Trash-o-rama,
dedicada
ao
chamado
cinema
trash
(para
detalhes
a
respeito
da
relao
entre
o
camp
e
o
trash,
ver
(LACERDA,
2012))
e
o
Show
do
Gongo,
sesso
especial
formada
por
curtas
inscritos
imediatamente
antes
da
exibio,
sem
qualquer
curadoria,
e
contando
com
Marisa
Orth
como
apresentadora,
que
gonga
(fazendo
soar
um
grande
gongo
no
palco)
e
interrompe
a
exibio
dos
filmes
de
acordo
com
o
grau
de
rejeio
sob
a
forma
de
comentrios
jocosos,
gritos
e
vaias
do
pblico
(para
detalhes,
ver
(SILVA,
2012,
pp.
261-266)).
96
Vale
lembrar
tambm
de
Onde
Andar
Dulce
Veiga?
(Guilherme
de
Almeida
Prado,
2008)
e
Pinta
(Jorge
Alencar,
2013),
outros
dois
bons
exemplos
do
camp
no
cinema
brasileiro
contemporneo.
155
o
filme
em
busca
de
seu
grande
amor,
apesar
das
repetidas
decepes
que
sofre
nas
mos
de
cada
homem
com
quem
se
relaciona,
desabafando
suas
tristezas
nos
ombros
de
sua
fada
madrinha,
Blanche
(Uir
dos
Reis).
J
o
segundo
traz
como
personagens
Batman
(Everaldo
Pontes)
e
Robin
(Tavinho
Teixeira),
os
protagonistas
da
srie
de
TV
da
dcada
de
1960
que,
em
um
futuro
ps-apocalptico,
distante
da
fama
e
glria
de
seus
dias
de
juventude,
moram
dentro
de
uma
fbrica
abandonada
e
tentam
manter
viva
a
antiga
relao
conjugal
em
meio
ao
tdio
e
a
repetidas
crises.
O
abrao
ao
artificial
est
nos
mais
variados
elementos
de
ambos
os
filmes,
a
comear
pela
cenografia.
No
caso
de
Doce
Amianto,
todos
os
cenrios
so
carregados
de
elementos
kitsch.
Algumas
cenas
contam
com
o
uso
assumido
da
tecnologia
chroma
key
(imagens
digitalmente
adicionadas
ao
fundo
da
cena),
caso
da
abertura,
onde
Amianto
corre
por
uma
estrada
enquanto
seus
vestidos
mudam.
Outras
contam
com
cores
digitalmente
distorcidas,
caso
da
cena
onde
uma
personagem
misteriosa
canta
uma
pera
na
praia.
O
prprio
figurino
elevado
abertamente
ao
plano
narrativo,
com
as
mudanas
sbitas
de
roupa
dentro
da
mesma
cena
indicando
as
variaes
emocionais
da
prpria
personagem
(Figura
27).
Figura
27
Artificialismo
em
Doce
Amianto.
Em
Batguano,
por
sua
vez,
a
fbrica
abandonada
ganha
ares
de
estdio
de
cinema,
contando
uma
floresta
feita
de
um
ajuntado
de
imensas
plantas
em
jarros,
um
trailer
que
serve
de
quarto
aos
protagonistas,
salas
de
jantar
e
estar
montadas
no
espao
vazio,
um
156
buraco
que
faz
as
vezes
de
piscina
e
at
uma
tela
de
retroprojeo
posicionada
atrs
do
carro
dos
protagonistas.
Todo
o
cenrio
iluminado
por
holofotes
cinematogrficos
visveis
em
cena
e
decorado,
novamente,
com
toda
uma
gama
de
elementos
kitsch,
estilo
que
est
tambm
presente
no
udio
incessante
da
televiso
da
sala
ligada,
que
passa
programas,
filmes
e
comerciais
antigos
(Figura
28).
Figura
28
Artificialismo
em
Batguano.
157
O
tom
das
atuaes
e
do
texto,
por
sua
vez,
ressaltam
uma
teatralidade
novamente
devedora
do
camp.
No
caso
de
Amianto,
tais
escolhas
fazem
referncia
clara
aos
contos
de
fada,
seja
na
construo
das
frases,
na
escolha
dos
termos
utilizados
e
no
tom
declamativo
e
infantil
com
que
o
texto
falado.
Alguns
desses
elementos
podem
ser
percebidos
na
transcrio
de
uma
das
conversas
de
Amianto
com
Blanche:
Amianto:
Mas
de
que
adianta
viver?
Eu
estou
viva,
voc
est
morta.
E
na
verdade,
quem
cuida
de
mim
voc,
minha
amiga
Blanche!
Blanche:
No
fique
assim
doce
Amianto,
os
dias
ruins
ho
de
passar.
Oh,
no
fiquei
assim,
tudo
poderia
ser
pior.
Voc
est
viva
e
pode
escolher
que
caminho
seguir.
Oh
no,
no
fique
assim,
beb!
Amianto:
Voc
me
acha
bonita,
minha
querida
Blanche?
Blanche:
Oh,
sim,
claro!
Por
que
uma
menininha
to
bonitinha
faz
uma
pergunta
como
essa,
hein?
Amianto:
Ele
no
me
quer...
Blanche:
Ora,
doce
Amianto,
ele
no
quer
ningum.
Nem
mesmo
sorvete
de
creme
derretido
sobre
a
pera
mais
gostosa!
(DOCE...,
00:08:50)
158
159
160
Nesse
sentido,
o
modelo
conjugal
heteronormativo
que
parece
ser
o
principal
alvo
de
deboche
de
Batguano.
Por
um
lado,
sua
construo
calcada
no
artifcio
e
na
teatralidade
ressaltam
o
carter
arbitrrio
e
culturalmente
produzido
do
modelo.
Por
outro,
seu
retrato
eminentemente
negativo,
que
sublinha
o
tdio
e
a
estagnao
da
relao,
d
a
tnica
da
crtica,
algo
que
fica
claro
na
mudana
pela
qual
Batman
e
Robin
passam
ao
final
do
filme:
se
eles
continuam
no
mesmo
sof,
assistindo
letrgicos
mesma
TV,
desta
vez
embalam
um
beb
e
tm
animais
sua
volta,
em
um
tableau
que
remete
a
um
prespio.
Esse
desfecho
parece
coroar
com
ironia
o
caminho
do
casal,
que
teria
se
iniciado
nos
anos
1960
(poca
urea
do
seriado
de
TV
a
que
o
filme
faz
referncia),
quando
a
conjugalidade
homoertica
tinha
um
carter
mais
comunitrio
e
livre,
e
alcanado
um
futuro
ps-apocalptico
de
conjugalidade
heteronormativa
e
anseios
pelo
casamento
e
pela
adoo.
Essa
crtica,
porm,
complexificada
pelos
pequenos
e
discretos
momentos
de
alegria
em
que
o
filme
parece
encontrar
o
seu
verdadeiro
e
o
seu
belo.
Seja
na
cumplicidade
afetiva
do
casal
que
sai
caa
junto,
bebendo
e
mexendo
com
os
rapazes
que
passam;
seja
na
risada
compartilhada
surgida
de
uma
bobagem
qualquer
da
TV;
seja
no
nmero
musical
onde
Robin
se
entrega
de
alma
msica
Encanto,
verso
de
Ney
Matogrosso
para
Nature
Boy,
de
Nat
King
Cole;
seja
ainda
na
familiaridade
de
corpos
que
se
reconhecem,
dormindo
encaixados
(no
toa,
alguns
desses
momentos
remetem
ao
modelo
conjugal
prvio,
como
a
caa
em
grupo
e
o
nmero
musical
que
alude
aos
shows
de
drag).
Com
isso,
o
filme
transcende
a
crtica
unilateral,
apresentando
brechas
e
pontos
de
fuga
sob
a
superfcie
do
modelo
conjugal
em
questo.
Doce
Amianto,
por
seu
turno,
estruturado
a
partir
de
momentos
de
enamoramento
e
decepo,
em
uma
abordagem
jocosa
que
tem
como
alvo
o
ideal
de
amor
romntico
de
sua
protagonista,
operao
que
tanto
o
prlogo
onde
Amianto
tenta
fazer
as
pazes
com
161
seu
amor
e
rejeitada
por
ele
de
forma
violenta
quanto
a
narrao
inicial
de
Blanche
imaginar
o
amor
potico.
Amar
pr
a
poesia
em
risco
(DOCE...,
00:08:40)
j
antecipam.
Novamente,
o
artifcio
e
a
teatralidade
parecem
operar
uma
desnaturalizao
do
modelo,
que
tambm
continuamente
solapado
pela
no
conformidade
entre
as
expectativas
ingnuas
de
Amianto
e
realidade
cruel
que
ela
encontra.
Nesse
sentido,
somente
aps
sucessivas
frustraes
que
ela
inicia
um
processo
de
superao
de
seus
devaneios,
e
a
longa
cena
de
sexo
que
fecha
o
filme
termina
por
introduzir
uma
nova
Amianto,
distante
amor
romntico
transcendente
e
prxima
do
prazer
carnal
e
sem
maiores
expectativas.
Sua
narrao
final
deixa
claro
esse
processo
de
amadurecimento:
Somos
desimportantes,
talvez,
e
isso
me
engasga.
Saber
que
traremos
nos
ombros
somente
o
sabor
da
falta
algo
que
me
deixa
tensa,
que
insurge
em
combusto
aqui
dentro.
E
a
vontade
de
acertar
no
grito
e
no
caminho
cada
vez
maior.
Preciso
mudar
o
mundo.
Preciso
mudar
o
mundo,
embora
prefira
um
segundo
contigo,
meu
amor.
(DOCE,
01:05:00)
Esse
sequncia
final
parece
trair
a
essncia
do
camp,
com
a
frivolidade
prpria
dos
devaneios
da
protagonista
sendo
finalmente
superada,
dando
lugar
a
uma
postura
mais
prtica
e
explicitamente
poltica,
j
que
preciso
mudar
o
mundo.
No
toa,
na
cena
anterior
que
a
fada
Blanche,
parceira
de
suspiros
e
fantasias
e
que
alimenta
durante
todo
o
filme
o
romantismo
de
Amianto,
despede-se
dela
para
sempre.
Tal
leitura,
porm,
complexificada
pelo
eplogo
do
filme,
onde
o
esteticismo,
o
artifcio
e
a
ludicidade
so
reafirmados
na
longa
cena
em
que
Amianto
dana
sob
luzes
mveis
e
multicoloridas,
quebrando
qualquer
tom
de
seriedade
que
o
distanciamento
de
seus
sonhos
romnticos
poderia
sugerir.
Afinal
de
contas,
mesmo
que
seja
preciso
mudar
o
mundo,
ainda
assim
prefervel
um
segundo
contigo,
meu
amor.
***
Se
no
algo
a
que
Doce
Amianto
e
Batguano
se
dedicam
especificamente,
a
crtica
ao
carter
normativo
das
identidades
sexuais
e
de
gnero
foi
tratada
diretamente
por
um
162
outro
grupo
de
filmes,
em
consonncia
com
a
popularizao
dos
estudos
queer
ao
longo
da
dcada
de
1990.
A
perspectiva
ps-estruturalista
foi
a
principal
responsvel
por
desafiar
o
conceito
clssico
de
identidade,
desenvolvido
a
partir
da
lgica
do
sujeito
moderno
ps-
cartesiano,
portador
de
certa
essncia
pessoal
e
intransfervel,
que
definiria
quem
ele
,
notadamente
em
termos
de
raa,
etnia,
gnero
e
orientao
sexual.
Tomando
de
emprstimo
elementos
das
obras
de
Michel
Foucault
e
Jacques
Derrida,
Judith
Butler
defendeu
que,
ao
contrrio,
as
identidades
seriam
produzidas
no
e
pelo
discurso,
ou
seja,
que
rtulos
como
negro,
lsbica,
gay
ou
mulher,
mais
que
descreverem
identidades,
produziriam-nas,
determinando
certos
modelos
de
conduta.
Nesse
sentido,
as
identidades
em
especial
as
de
gnero
seriam
constitudas
performativamente,
ou
seja,
os
indivduos
amoldariam-se
a
determinada
identidade
a
partir
da
citao
e
repetio
regulada
pela
sociedade
daquilo
que
se
considera
o
seu
ideal:
No
desafio
de
repensar
as
categorias
do
gnero
fora
da
metafsica
da
substncia,
mister
considerar
a
relevncia
da
afirmao
de
Nietzsche,
em
A
genealogia
da
moral,
de
que
no
h
ser
por
trs
do
fazer,
do
realizar
e
do
tornar-se;
o
fazedor
uma
mera
fico
acrescentada
obra
a
obra
tudo.
Numa
aplicao
que
o
prprio
Nietzsche
no
teria
antecipado
ou
aprovado,
ns
afirmaramos
como
corolrio:
no
h
identidade
de
gnero
por
trs
das
expresses
de
gnero;
essa
identidade
performativamente
constituda,
pelas
prprias
expresses
tidas
como
seus
resultados
(2008
[1990],
p.
48,
grifo
no
original).
Os
vrios
atos
de
gnero
criam
a
ideia
de
gnero,
e
sem
esses
atos,
no
haveria
gnero
algum,
pois
no
h
nenhuma
essncia
que
o
gnero
expresse
ou
exteriorize,
nem
tampouco
um
ideal
objetivo
ao
qual
aspire
e
porque
o
gnero
no
um
dado
da
realidade.
Assim,
o
gnero
uma
construo
que
oculta
normalmente
a
sua
gnese;
o
acordo
coletivo
tcito
de
exercer,
produzir
e
sustentar
gneros
distintos
e
polarizados
como
fices
culturais
obscurecido
pela
credibilidade
dessas
produes
e
pelas
punies
que
penalizam
a
recusa
a
acreditar
nelas;
a
construo
obriga
a
nossa
crena
em
sua
necessidade
e
naturalidade.
As
possibilidades
histricas
materializadas
por
meio
dos
vrios
estilos
corporais
nada
mais
so
do
que
fices
culturais
punitivamente
reguladas,
alternadamente
incorporadas
e
desviadas
sob
coao
(2008
[1990],
p.
199).
163
As
prticas
sexuais,
porm,
apontam
para
uma
situao
muito
mais
complexa
e
fluida
do
que
o
tratamento
essencialista
permite
conceber.
J
em
fins
da
dcada
de
1940,
por
exemplo,
o
popular
estudo
estatstico
do
bilogo
e
sexlogo
Alfred
Kinsey
intitulado
Sexual
Behavior
in
the
Human
Male,
que
abordou
os
hbitos
sexuais
estadunidenses
a
partir
de
milhares
de
entrevistas,
classificou
o
direcionamento
do
desejo
masculino
a
partir
de
uma
escala
de
sete
nveis.
No
primeiro
nvel,
estavam
os
indivduos
que
tinham
97
No
original:
It
is
a
rather
amazing
fact
that,
of
the
very
many
dimensions
along
which
the
genital
activity
of
one
person
can
be
differentiated
from
that
of
another
(dimensions
that
include
preference
for
certain
acts,
certain
zones
or
sensations,
certain
physical
types,
a
certain
frequency,
certain
symbolic
investments,
certain
relations
of
age
or
power,
a
certain
species,
a
certain
number
of
participants,
etc.
etc.
etc.),
precisely
one,
the
gender
of
object
choice,
emerged
from
the
turn
of
the
century,
and
has
remained,
as
the
dimension
denoted
by
the
now
ubiquitous
category
of
sexual
orientation.'
164
165
Alguma
Coisa
Assim
(Esmir
Filho,
2006),
da
mesma
forma,
acompanha
o
incmodo
de
Mari
com
a
indefinio
da
sexualidade
de
seu
amigo,
Caio,
que
nunca
havia
ficado
com
ningum.
Leva-o
ento,
a
uma
boate
gay,
incentivando-o
a
assumir-se.
Ironicamente,
quando
ele
fica
com
um
rapaz
e
comea
a
se
sentir
confortvel
na
identidade
gay
que
ela,
temendo
perder
a
chance
de
envolver-se
afetivamente
com
ele,
comea
a
listar
todas
as
desvantagens
de
se
enquadrar
numa
categoria
estanque
e
se
fechar
para
as
mltiplas
possibilidades
que
a
vivncia
de
um
desejo
mais
livre
pode
trazer.
Questes
similares
so
tratadas
ainda
pelos
curtas
pera
Curta
(Marcelo
Laffitte,
2004),
que
acompanha
os
encontros,
desencontros
e
confrontos
entre
um
casal
de
lsbicas
e
uma
mulher
trans
durante
a
parada
da
diversidade
sexual
do
Rio,
terminando
com
as
trs
fazendo
as
pazes
e
partindo
juntas;
Beijo
de
Sal
(Felipe
Barbosa,
2006),
que
apresenta
uma
relao
de
amizade
entre
dois
velhos
amigos
que,
dada
a
sua
peculiar
intimidade,
comea
a
interferir
no
noivado
de
um
deles;
Entre
Cores
e
Navalhas
(Catarina
Accioly
e
Iber
Carvalho,
2007),
que
retrata
a
fluidez
de
desejo
e
gnero
de
seu
protagonista,
Antony;
este,
ao
se
apaixonar
por
Esperana,
cobradora
do
nibus
que
pega
todos
os
dias,
decide
deixar
seu
namorado
e
fazer
uma
cirurgia
de
redesignao
genital,
passando
a
viver
com
ela
como
mulher;
e
ainda
O
Amor
que
No
Ousa
Dizer
Seu
Nome
(Brbara
Roma,
2013),
que
acompanha
o
incio
do
relacionamento
entre
Leila,
cabeleireira
e
mulher
cis
e
Michela,
sua
cliente
e
mulher
trans.
Toda
essa
produo
joga
luz
no
carter
regulador
e
nas
contradies
das
identidades
htero
e
LGBT
que,
em
seu
enquadramento
tanto
do
desejo
de
teor
estanque
e
configurao
dirigida
exclusivamente
ao
sexo
oposto
ou
ao
mesmo
sexo
quanto
do
gnero
tambm
estacionado
em
um
dos
extremos
entre
cis
e
transgeneridade
deslegitima
vivncias
que
os
transcendam.
O
exemplo
mais
claro
disso
est
na
bissexualidade
que,
mesmo
estando
representada
pela
letra
B
na
sigla
LGBT,
ainda
assim
tem
muitas
vezes
sua
legitimidade
questionada
a
partir
da
defesa
de
seu
carter
temporrio,
que
dever
ser
obrigatoriamente
superado
em
benefcio
de
uma
postura
propriamente
homo
ou
heterossexual.98
Foi
somente
com
Elvis
&
Madona
(Marcelo
Laffitte,
2010)
que
uma
relao
conjugal
queer
chegou
ao
longa-metragem,
atravs
do
relacionamento
entre
Elvis
(Simone
98
Para
detalhes
a
respeito
de
tal
postura
dentro
do
ativismo
LGBT
brasileiro,
ver
(LEWIS,
2012).
166
A
prpria
relao
conjugal
entre
as
identidades
da
lsbica
e
da
travesti
foge
aos
arranjos
vislumbrados
tanto
pela
matriz
heterossexual
de
inteligibilidade
quanto
pela
homonormatividade
prpria
do
assimilacionismo.
No
primeiro
caso,
se
h
uma
defesa
do
enlace
entre
mulher
e
homem,
este
passa
obrigatoriamente
pela
cisgeneridade,
condio
que
exclui
o
casal
j
de
incio.
O
segundo,
por
sua
vez,
privilegia
as
unies
homoerticas,
novamente
tornando
ininteligvel
a
relao
entre
Elvis
e
Madona,
seja
baseando-se
no
gnero
que
lhes
atribudo
pelo
discurso
hegemnico
mulher
e
homem
seja
baseando-se
no
gnero
que
elas
adotam
em
seu
comportamento
cotidiano
167
homem
e
mulher.
Como
comenta
Pat
Califia
a
respeito
de
uma
vivncia
similar:
Eu
me
considero
lsbica
[]
e
eu
me
relaciono
tambm
com
gays,
e
sexo
com
homens
fora
do
contexto
da
comunidade
gay
no
me
desperta
o
mnimo
interesse.
engraado
que
quando
dois
homossexuais
de
sexos
opostos
fazem
sexo,
ainda
assim
sexo
homossexual
(CALIFIA,
1983,
p.
25,
traduo
minha,
grifo
meu).
Tivesse
tal
relato
sido
escrito
alguns
anos
depois,
Califia
provavelmente
teria
utilizado
a
expresso
sexo
queer.
Se
as
identidades
e
o
relacionamento
entre
Elvis
e
Madona
apresentam
um
carter
eminentemente
transgressor
em
relao
aos
discursos
hegemnicos,
o
filme
opta
por
abord-las
atravs
de
sua
completa
naturalizao.
Isso
pode
ser
percebido
j
no
momento
em
que
elas
se
conhecem,
quando
Elvis,
em
seu
primeiro
dia
de
trabalho,
entrega
uma
pizza
no
apartamento
de
Madona,
que
se
encontra
ferida
no
cho
aps
ter
levado
uma
surra
de
Joo
Trip
(Srgio
Bezerra),
antigo
parceiro
de
trabalho
na
indstria
pornogrfica,
que
rouba
tambm
o
dinheiro
que
ela
havia
juntado
para
montar
um
espetculo.
Desde
o
encantamento
inicial
de
uma
pela
outra,
passando
pelo
flerte
mtuo
at
a
concretizao
da
relao
e
do
sexo
entre
elas,
nem
elas
prprias
nem
tampouco
os
personagens
que
as
rodeiam
levantam
quaisquer
questionamentos
a
respeito
da
suposta
incongruncia
do
enlace
(Figura
31).
Figura
31
Vrios
estgios
do
relacionamento
entre
Elvis
e
Madona.
168
99
Um
dos
subgneros
que
provocou
certo
tensionamento
do
modelo
conjugal,
por
exemplo,
o
169
170
Porm,
da
mesma
forma
que
ocorre
com
a
adoo
da
estrutura
da
comdia
romntica,
o
uso
dos
esteretipos
pensado
de
forma
a
complexific-los
e
subvert-los.
Wendell
(Karan
Machado),
o
motoboy
carioca
suburbano
que
passa
cantadas
infames
para
Elvis
durante
boa
parte
do
filme,
por
exemplo,
mostra-se
sensvel
e
torna-se
um
apoio
para
ela
ao
saber
de
sua
gravidez.
Os
comentrios
preconceituosos
de
Carlos,
o
dono
nordestino
da
pizzaria,
so
sempre
confrontados
pelas
crticas
de
sua
esposa
(Pia
Manfroni)
sua
postura.
O
estilo
camp
e
afetado
do
salo
de
beleza
onde
Madona
trabalha,
seja
partindo
do
dono
e
do
maquiador
gays,
seja
das
cabeleireiras,
no
objeto
como
em
boa
parte
do
humor
chanchadesco
mas
sujeito
do
humor,
feito
eminentemente
a
partir
de
uma
linguagem
e
veneno
prprios
das
bichas
que,
junto
com
as
mulheres,
servem
ainda
de
rede
de
apoio
prpria
Madona.
Exemplar
dessa
subverso
a
prpria
famlia
conservadora
de
Elvis.
Por
um
lado,
ela
serve
de
contraponto
naturalizao
do
casal
de
protagonistas,
sendo
um
emblema
de
uma
heteronormatividade
fraturada,
que
tudo,
menos
normal:
pai
submisso,
me
dominadora
e
histrica,
irm
invejosa
e
dissimulada,
av
desbocada.
Por
outro,
tal
operao
ela
prpria
subvertida
quando
o
filme
deixa
que
os
afetos
surjam
mesmo
dentro
das
relaes
mais
conflituosas,
como
no
caso
da
seguinte
conversa
entre
Elvis
e
100
No
original:
In
stereotyping
the
dominant
group
apply
their
norms
to
subordinated
groups,
find
the
latter
wanting,
hence
inadequate,
inferior,
sick
or
grotesque
and
hence
reinforcing
the
dominant
groups
own
sense
of
the
legitimacy
of
their
domination.
171
Soraya
(Mait
Proena),
sua
me,
quando
aquela
vai
visit-la
junto
com
Madona
para
contar
que
est
grvida:
Soraya:
Quem
voc
pensa
que
,
Elvira.
Quem
voc
pensa
que
?
Voc
pensa
que
voc
o
Elvis,
mas
voc
no
o
Elvis.
Elvis
um
personagem
que
voc
inventou.
Voc
Elvira,
El-vi-ra!
Olha,
voc
olhe
pra
mim
quando
eu
estiver
falando,
Elvira.
Elvis:
Caralho...
Soraya:
O
qu?
Olhe
aqui,
vou
te
dizer
uma
coisa.
Eu
pareo
louca,
mas
eu
no
sou
louca.
Apesar
de
todos
os
problemas
que
existem
nessa
famlia,
ns
ainda
somos
uma
fa-m-lia.
Graas
a
Deus...
E
a
mim,
claro.
Voc
nunca
teve
amigos,
Elvira.
No
colgio
as
meninas
tinham
medo
de
voc.
E
os
meninos,
voc
esmurrava.
Voc
se
lembra
daquela
vez
que
voc
chutou
o
olho
de
um
garoto
por
causa
de
um
jogo
de
futebol
de
boto?
[Elvis
cruza
os
braos,
sem
pacincia.]
O
menino
ficou
uma
semana
com
o
olho
inchado,
deste
tamanho,
roxo.
Voc
quase
foi
expulsa
do
colgio!
Que
vergonha,
meu
Deus
do
cu!
O
padre
Gregrio
gritando
delinquente,
deliquente!
E
agora
voc
me
aparece
dizendo
que
est
vivendo
com
esta...
err...
pessoa...
E
que
voc
est
grvida?
No
?
Olha
aqui,
a
sua
av
uma
demente,
o
seu
pai
est
na
merda,
a
sua
irm
uma
dbil
mental,
e
voc
est
grvida.
E
eu
estou
fodida,
no
?
[A
expresso
de
Soraya
suaviza-se.
Elvis
ri,
demonstrando
familiaridade
com
o
sermo.
Elas
do-se
as
mos.]
Meu
amorzinho,
eu
estou
to
orgulhosa
de
voc!
(ELVIS...,
01:12:30)
101
Quando
usado
como
um
indicativo
de
ao
(to
queer,
queering),
a
expresso
refere-se
a
uma
172
9 Consideraes finais
173
174
perodos,
como
mostra
Repblica
dos
Assassinos
(Miguel
Faria
Jr.,
1979),
abordado
no
captulo
5.
Ou
a
abordagem
assimilacionista
que,
se
est
bastante
atrelada
emergncia
do
modelo
igualitrio
e
da
identidade
gay,
como
visto
tambm
no
captulo
7,
pode
ser
encontrada
pontualmente
em
filmes
de
outros
perodos,
caso
de
Os
Imorais
(Geraldo
Vietri,
1979)
e
Aqueles
Dois
(Srgio
Amon,
1985).
H
ainda
movimentos
no
tratados
aqui
mas
que
apresentam,
primeira
vista,
grande
potencial
para
discusses
a
respeito
da
representao
e
uso
do
homoerotismo
e
da
transgeneridade.
o
caso,
por
exemplo,
do
Cinema
Marginal,
do
ciclo
do
Super
8
e
do
cinema
juvenil
da
dcada
de
1980,
que
trazem
a
abordagens
singulares
dos
temas.
Ou
do
Cinema
Novo,
neste
caso
devido
a
uma
ausncia
manifesta
de
tais
representaes.
Em
resumo,
alm
contribuir
atravs
das
questes
aqui
desenvolvidas,
espero
que
esta
tese
sirva
ainda
de
ponto
de
partida
para
caminhos
no
trilhados
na
investigao
do
homoerotismo
e
da
transgeneridade
na
cultura
de
massa
do
pas
e,
especificamente,
no
cinema
brasileiro.
175
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Al,
Al
Carnaval
(Adhemar
Gonzaga,
1936),
O
Cortio
(Luiz
de
Barros,
1946),
Carnaval
no
Fogo
(Watson
Macedo,
1949),
Aviso
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Navegantes
(Watson
Macedo,
1950),
Barnab,
Tu
s
Meu
(Jos
Carlos
Burle,
1951),
Carnaval
Atlntida
(Jos
Carlos
Burle,
1952),
Tudo
Azul
(Moacyr
Fenelon,
1952),
Dupla
do
Barulho
(Carlos
Manga,
1953),
Garotas
e
Samba
(Carlos
Manga,
1957),
Entrei
de
Gaiato
(J.B.
Tanko,
1959),
Bahia
de
Todos
os
Santos
(Trigueirinho
Neto,
1960),
Os
Dois
Ladres
(Carlos
Manga,
1960),
Virou
Baguna
(Watson
Macedo,
1960).
Captulo
4:
Longas:
O
Beijo
(Flvio
Tambellini,
1964),
O
Menino
e
o
Vento
(Carlos
Hugo
Christensen,
1966),
Cio,
uma
Verdadeira
Histria
de
Amor
(Fauzi
Mansur,
1971),
Dois
Perdidos
numa
Noite
Suja
(Braz
Chediak,
1971),
Os
Maches
(Reginaldo
Faria,
1972).
Captulo
5:
Longas:
A
Navalha
na
Carne
(Braz
Chediak,
1969),
Anjos
e
Demnios
(Carlos
Hugo
Christensen,
1970),
Estranho
Tringulo
(Pedro
Camargo,
1970),
A
Casa
Assassinada
(Paulo
Cesar
Saraceni,
1971),
As
Confisses
do
Frei
Abbora
(Braz
Chediak,
1971),
Andr,
a
Cara
e
a
Coragem
(Xavier
de
Oliveira,
1971),
Na
Boca
da
Noite
(Walter
Lima
Jr.,
1971),
O
Doce
Esporte
do
Sexo
(Zelito
Viana,
1971),
Toda
Nudez
Ser
Castigada
(Arnaldo
Jabor,
1972),
Ainda
Agarro
esta
Vizinha
(Pedro
Carlos
Rovai,
1974),
A
Rainha
Diaba
(Antnio
Carlos
Fontoura,
1974),
Marlia
e
Marina
(Luiz
Fernando
Goulart,
1976),
O
Casamento
(Arnaldo
Jabor,
1976),
Barra
Pesada
(Reginaldo
Faria,
1977),
Amor
Bandido
(Bruno
Barreto,
1978),
Chuvas
de
Vero
(Cac
Diegues,
1978),
O
Cortio
(Francisco
Ramalho
Jr.,
1978),
A
Morte
Transparente
(Carlos
Hugo
Christensen,
1979),
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Imorais
(Geraldo
Vietri,
1979),
Repblica
dos
Assassinos
(Miguel
Faria
Jr.,
1979),
Giselle
(Victor
di
Mello,
1980),
Pixote
(Hector
Babenco,
1981),
Das
Tripas
Corao
(Ana
Carolina,
1983),
Aqueles
Dois
(Srgio
Amon,
1985),
The
Kiss
of
the
Spider
Woman
(Hector
Babenco,
1985),
A
pera
do
Malandro
(Ruy
Guerra,
1986).
184
Captulo
6:
Longas:
A
Menina
do
Lado
(Alberto
Salv,
1987),
Anjos
da
Noite
(Wilson
Barros,
1987),
Anjos
do
Arrabalde
(Carlos
Reichenbach,
1987),
Jenipapo
(Monique
Gardenberg,
1995),
Leila
Diniz
(Luiz
Carlos
Lacerda,
1987),
Romance
(Srgio
Bianchi,
1987).
Captulo
7:
Curtas:
O
Estranho
(Orlando
Maneschy,
1994),
Gax?
(Alexandre
Alencar
e
Camila
Ribas,
1995),
Vox
Populi
(Marcelo
Laffitte,
1998),
Dama
da
Noite
(Mrio
Diamante,
1999),
A
Vida
ntima
de
Ccero
e
Clvis
(Thiago
Villas
Boas,
2002),
Sargento
Garcia
(Tutti
Gregianin,
2000),
Verdade
ou
Consequncia?
(Aleques
Eiterer,
2002),
Os
Amantes
ou
da
Incomum
Arte
de
Se
Achar
Sem
Se
Perder
(Guga
Barros,
2003),
Amor
de
Palhao
(Armando
Praa,
2005),
Captulo
Primeiro
(Roberto
Maxwell,
2005),
Homofobia
(Gensio
Marcondes,
2005),
Se
Voc
o
Cara
que
Flertava
Comigo
no
Ponto
de
nibus,
Veja
Este
Filme
(Thiago
Alcntara,
2005),
Caf
com
Leite
(Daniel
Ribeiro,
2007),
Doce
e
Salgado
(Chico
Lacerda,
2007),
Meu
Co
Me
Ensina
a
Viver
(Filipe
Moura,
2007),
Depois
de
Tudo
(Rafael
Saar,
2008),
Noite
Fria
(Felipe
Camargo
Adami,
2008),
T
(Felipe
Scholl,
2008),
Depois
da
Curva
(Helton
Paulino,
2009),
O
Menino
Japons
(Caetano
Gotardo,
2009),
Professor
Godoy
(Gui
Ashcar,
2009),
Suspeito
(Eduardo
Mattos,
2009),
Eu
e
o
Cara
da
Piscina
(William
Mayer,
2010),
Eu
No
Quero
Voltar
Sozinho
(Daniel
Ribeiro,
2010),
Assunto
de
Famlia
(Caru
Alves
de
Souza,
2011),
Na
Sua
Companhia
(Marcelo
Caetano,
2011),
Quando
a
Noite
Acaba
em
Silncio
(Herbert
Bianchi,
2011),
O
Melhor
Amigo
(Allan
Deberton,
2013).
Mdia:
Nova
Dubi
(Gustavo
Vinagre,
2014).
Longas:
Cinema
de
Lgrimas
(Nelson
Pereira
dos
Santos,
1995),
For
All
(Luiz
Carlos
Lacerda,
1997),
Amores
(Domingos
de
Oliveira,
1998),
Amores
Possveis
(Sandra
Werneck,
2001),
Madame
Sat
(Karm
Ainouz,
2002),
Do
Comeo
ao
Fim
(Aluzio
Abranches,
2009),
As
Melhores
Coisas
do
Mundo
(Laiz
Bodanzki,
2010),
Teus
Olhos
Meus
(Caio
Sh,
2011),
Tudo
o
que
Deus
Criou
(Andr
da
Costa
Pinto,
2012),
Praia
do
Futuro
(Karim
Anouz,
2013),
Tatuagem
(Hilton
Lacerda,
2013),
Hoje
Eu
Quero
Voltar
Sozinho
(Daniel
Ribeiro,
2014).
Captulo
8:
185
Curtas:
Conceio
(Roberto
Jabor,
1993),
Serial
Clubber
Killer
(Duda
Leite
e
Gisele
Matias,
1994),
Ordinria
(Billy
Castilho,
1997),
Os
Clubbers
Tambm
Comem
(Lufe
Steffen,
1998),
Verit
(Marcos
Farinha,
1999),
As
Aventuras
dos
Super
Poderosos
(Lico
Queiroz
e
Jlia
Jordo,
2001),
Nervos
de
Ao
(Ed
Andrade,
2001),
2
Filhos
de
Francisco
(Breno
Silveira,
2005),
pera
Curta
(Marcelo
Laffitte,
2004),
A
Outra
Filha
de
Francisco
(Eduardo
Mattos
e
Daniel
Ribeiro,
2005),
Alguma
Coisa
Assim
(Esmir
Filho,
2006),
Beijo
de
Sal
(Felipe
Barbosa,
2006),
Entre
Cores
e
Navalhas
(Catarina
Accioly
e
Iber
Carvalho,
2007),
O
Amor
que
No
Ousa
Dizer
Seu
Nome
(Brbara
Roma,
2013),
Rtulo
(Felipe
Cabral,
2013),
Um
Estranho
Ninho
(Matheus
Heinz,
2013).
Longas:
Onde
Andar
Dulce
Veiga?
(Guilherme
de
Almeida
Prado,
2008),
Elvis
&
Madona
(Marcelo
Laffitte,
2010),
Doce
Amianto
(Guto
Parente
e
Uir
dos
Reis,
2013),
Pinta
(Jorge
Alencar,
2013),
Batguano
(Tavinho
Teixeira,
2014).