O CONTENCIOSO ELEITORAL PORTUGUÊS Jor Ge MIRANDA

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

O CONTENCIOSO ELEITORAL PORTUGUS

Jorge MIRANDA*
SUMARIO. I. Evoluo do contencioso eleitoral poltico. II. mbito do
contencioso eleitoral poltico. III. Contencioso eleitoral poltico e contencioso administrativo. IV. Caractersticas do contencioso eleitoral
poltico. V. O regime processual.

I. EVOLUO DO CONTENCIOSO ELEITORAL POLTICO


1. Existe um paralelo muito significativo entre a fiscalizao de constitucionalidade de leis e o contencioso eleitoral poltico, um paralelo quer de
origem dos sistemas, quer de desenvolvimento.1
*

Professor da Universidade de Lisboa e da Universidade Catlica Portuguesa.


Cfr., a ttulo comparativo, Forlani, Silvio, Contenzioso elettorale, Novissimo Digesto Italiano, IV, 1959, pp. 395 e ss.; Jean-Paul Charnay, Le contrle de la rgularit des
lections parlementaires, Paris, 1964, pp. 327 e ss.; Elia, Leopoldo, Elezione politiche
(contenzioso), Enciclopedia del Diritto, XIV, 1965, pp. 747 e ss.; Philip, Loc, Le contentiex des lections aux assembles politiques franaises, Paris, 1971; Ribeiro, Favila, Direito Eleitoral, 2a. ed., Rio de Janeiro, 1986, pp. 421 e ss.; Luther, Jrg, La giurisdizione costituzionale sul contenzioso elettorale politico in Germania e Austria, Giurisprudenza
Costituzionale, 1990, pp. 532 e ss.; Martins Rebollo, Luis, Notas sobre el recurso contencioso-electoral y otros temas de derecho electoral, La proteccin jurdica del ciudadano.
Estudios en homenaje al profesor Jess Gonzlez Prez, obra colectiva, Madrid, 1993, t. II,
pp. 1289 e ss.; Fernndez Segado, Francisco, Los recursos contra la proclamacin de candidaturas y candidatos en la Ley Orgnica de 1985, del Rgimen Electoral General, Poder
Judicial, 31, setembro de 1993, pp. 59 e ss.; Ghevontian, Richard, Un labyrinthe juridique:
le contentieux des actes prparatoires dlections politiques, Revue du Droit Administratif,
agosto de 1994, pp. 793 e ss.; Desmoulin, Gil, Le contentieux des lections lgislatives:
vers une application de la Convention europenne des droits de lhomme, Revue du Droit
Public, 1997, pp. 143 e ss.; Jardim, Torquato, Direito eleitoral positivo, 2a. ed., Braslia,
1998, pp. 143 e ss.; Fichtner, Jos Antnio, Impugnao de mandato electivo, Rio de Janeiro, 1998; Dlpere, Francis, Le contentieux lectoral, Paris, 1998; Camargo Gomes, Suzana, A justia eleitoral e a sua competncia, So Paulo, 1998; Pardo Falcn, Javier, Algunas consideraciones sobre el control de los actos electorales en el derecho comparado y en
1

693

694

JORGE MIRANDA

Assim como o progresso do Estado de direito tem vindo a manifestar-se,


em quase todos os pases europeus, nos ltimos anos, na criao de tribunais constitucionais, tambm no domnio da apreciao da validade e da regularidade das eleies uma verdadeira e prpria justia eleitoral (utilize-se ou no esse nome) que tem vindo a emergir, ultrapassando, de vez, os
controlos administrativos e o sentido constitutivo da verificao de poderes pelos Parlamentos.
Hoje, tudo est em optar entre um de trs caminhos possveis:
Atribuio aos tribunais comuns, em moldes prximos do controlo
difuso;
Atribuio ao Tribunal Constitucional ou a rgo homlogo, jurisdicionalizado (como o Conselho Constitucional francs);
Criao de tribunais especializados.2

Na maior parte das experincias mais recentes, domina o segundo modelo. Tanto quanto sabemos, s no Brasil, desde 1934, existem tribunais
eleitorais, com jurisdio prpria, embora compostos, na sua maior parte,
la historia constitucional espaola, Revista de Estudios Polticos, no. 99, Janeiro-Maro de
2000, pp. 175 e ss.; Ghevontian, Richard et al., Actualit du Droit constitutionnel lectoral-Le contentieux de llection prsidentielle des 21 avril et 5 mai 2002, Revue Franaise
de Droit Constitutionnel, 2002, pp. 615 e ss.; Rosenfeld, Michel, Bush contre Gore: trois
mauvais coups politiques la Constitution, la Cour et la Dmocratie, Les Cahiers du
Conseil Constitutionnel, 13, 2002, pp. 81 e ss.; Rosas, Roberto, Justia eleitoral: rapidez e
eficcia, Direito Pblico, Julho-Setembro de 2003, pp. 83 e ss.; Torgol, Sylvie, Le contentieux des lections lgislatives: rflexions autour dun contentieux risques, Revue du
Droit Public, 2004, pp. 1211 e ss.
Quanto a Portugal, vid. Atade Amaro, Maria, Contencioso eleitoral no Direito
constitucional portugus, Estudos de direito eleitoral, obra colectiva, Lisboa, 1996, pp.
577 e ss.; Fraga, Carlos, Contencioso eleitoral, Coimbra, 1997; Ribeiro Mendes, Armindo,
A jurisprudncia do Tribunal Constitucional em matria eleitoral, Eleies, no. 4, dezembro de 1997, pp. 9 e ss.; Freire Barros, Manuel, Natureza jurdica do recurso contencioso
eleitoral, Coimbra, 1998; Miguis, Jorge, O contencioso e a jurisprudncia eleitoral em
Portugal, Eleies, no. 9, setembro de 2005, pp. 59 e ss.; Gomes, Carla, Quem tem medo
do Tribunal Constitucional? A propsito dos artigos 103-C, 103-D e 103-E da LOTC,
Estudos em homenagem ao Conselheiro Jos Manuel Cardoso da Costa, obra colectiva,
Coimbra, 2003, I, pp. 585 e ss.
2 Tambm j houve sistemas mistos. Na Constituio de Weimar previa-se um tribunal
de verificao das eleies (que tambm decidia da perda da qualidade de deputado), composto por membros do Parlamento, eleito por toda a legislatura e membros do Tribunal
Administrativo do Reich, nomeados pelo presidente do Reich, sob proposta do presidente
deste tribunal (artigo 31).

O CONTENCIOSO ELEITORAL PORTUGUS

695

por juzes provenientes de outros tribunais (cfr. artigos 92 e 118 e segs. da


Constituio).
2. No caso portugus, tradicionalmente o contencioso do recenseamento
eleitoral cabia aos tribunais judiciais e o das candidaturas (quando objecto
de normas ex professo) e o da votao nas assembleias de voto aos tribunais administrativos (cfr., por ltimo, os artigos 20, 21 e 75 e segs., do decreto no. 37.570).
Havia, alm disso, a verificao de poderes de membros do Parlamento
sempre a cargo das prprias cmaras, salvo no breve perodo entre a lei de
21 de maio de 1884 e o decreto de 5 de abril de 1911, em que existiu um tribunal de verificao de poderes, presidido pelo presidente do Supremo
Tribunal de Justia e composto por juzes deste Tribunal e dos tribunais da
relao;3 e este tribunal, de certo modo, preludiava os tribunais eleitorais
do Brasil.
A lei eleitoral para a Assembleia Constituinte reservou todo o contencioso eleitoral aos tribunais comuns, aos tribunais judiciais (artigos 35, 38
e 120 do decreto-lei no. 621-C/74, de 15 de novembro).4 E a Constituio
de 1976 viria prescrever que o julgamento da regularidade e da validade
dos actos de processo eleitoral competia aos tribunais (artigo 116, hoje
113, no. 7). Finalmente, com a criao do Tribunal Constitucional ele passaria para este tribunal primeiro, apenas de harmonia com a Lei no.
28/82 e, depois, em 1989, com consignao expressa no texto constitucional [artigo 225, o hoje 223, no. 2, alnea c)].5
De notar que o preceito da Constituio fala em julgar em ltima
instncia a regularidade e a validade de actos de processo eleitoral, nos termos da lei e as diversas leis desde a Lei no. 28/82 s leis de referendo
tm vindo a cometer ao Tribunal Constitucional o conhecimento de todos
os recursos de decises tomadas em procedimentos eleitorais e referendrios.
A nica excepo refere-se s decises das comisses recenseadoras a
respeito de reclamaes sobre a inscrio dos cidados no recenseamento,
de que cabe recurso para os tribunais de comarca e apenas das decises des3 Cfr. Marnoco e Sousa, Direito Poltico. Poderes do Estado, Coimbra, 1910, pp. 569 e
ss.; Mourisca, Jos, Cdigo Eleitoral, Lisboa, 1914, pp. 321 e ss.
4 Cfr. o relatrio do projecto de lei eleitoral, in Boletim do Ministrio da Justia, no.
241, dezembro de 1974, pp. 16-17.
5 Sobre a prtica jurisprudencial do Tribunal Constitucional, vid. Ribeiro Mendes,
Armindo op. cit., nota 1, loc.cit., pp. 18 e ss. e 21 e ss.

696

JORGE MIRANDA

tes para o Tribunal Constitucional (artigo 61o. da Lei no. 13/99, de 22 de


maro).6
Mas estas normas de direito ordinrio no so inconstitucionais, porque
h uma clusula aberta de competncia na Constituio: a lei pode atribuir-lhe outras funes em matrias de natureza jurdico-constitucional
(artigo 223, no. 3) e, portanto, pode tambm alargar as funes que a Constituio j lhe confira.
II. MBITO DO CONTENCIOSO ELEITORAL POLTICO
1. O contencioso eleitoral tem por objecto todos os actos e procedimentos atinentes realizao das eleies:7
a) Contencioso do recenseamento, respeitante criao e extino de
postos de recenseamento (artigo 26 da Lei no. 13/99) e inscrio dos cidados eleitores (artigo 61);
b) Contencioso relativo aos boletins de voto (apesar de no expressamente previsto);
c) Contencioso dos procedimentos eleitorais stricto sensu:
Contencioso das candidaturas (por toda a legislao eleitoral, artigos
32 e segs. da Lei no. 14/79, e artigos 101 e 102-A, assim como artigo
94 da Lei no. 28/82);
Contencioso do desdobramento das assembleias de voto (tambm
no expressamente previsto);
Contencioso da votao e do apuramento (artigos 117 e segs. da Lei
n 14/79 e artigos 102 e 102-A, bem como artigo 98 da Lei no. 28/82),

6 A excepo justifica-se, por estar em causa o direito de sufrgio e serem os tribunais


judiciais, dentro do sistema da Constituio, que devem decidir sobre questes pertinentes a
direitos, liberdades e garantias: assim, Miguis, Jorge, Lei de recenseamento eleitoral actualizada e anotada, Lisboa, 2002, p. 107. Cfr. o nosso Manual de direito constitucional,
3a. ed., Coimbra, 2000, IV, pp. 356 e 357.
7 Conceitualmente, poderia distinguir-se:
contencioso activo o relativo aos cidados eleitores; e contencioso passivo o relativo s candidaturas;
contencioso pr-eleitoral o atinente ao recenseamento, e contencioso eleitoral
propriamente dito o relativo a cada eleio em concreto.

O CONTENCIOSO ELEITORAL PORTUGUS

697

inclusive nas eleies efectuadas por plenrios de cidados eleitores


em freguesias de populao diminuta.8
Em contrapartida, o contencioso eleitoral no abrange actos subsequentes ao apuramento, sindicveis, sim, em contencioso administrativo.9
d) Contencioso dos actos quase todos correspondentes a decises relativas campanha eleitoral da Comisso Nacional de Eleies (artigos
102-B e 102-C da Lei no. 28/82, aps a Lei no. 85/89, de 7 de Setembro)10 e
de quaisquer outros rgos da administrao eleitoral (artigo 102-B, no.
7).11
Como se viu, a Constituio fala em regularidade e em validade dos
actos do processo eleitoral, sendo requisitos de validade de um acto jurdico os de perfeio desse acto ou de plena virtualidade de produzir os seus
efeitos jurdicos tpicos e requisitos de regularidade os de adequao s regras constitucionais ou legais, independentemente da possibilidade de produzir os seus efeitos.12 Importante no plano substantivo, no plano da competncia do Tribunal Constitucional a distino afigura-se de relevncia
menor.
2. H depois:
Contencioso das eleies realizadas na Assembleia da Repblica e
nas assembleias legislativas regionais [artigo 223, no. 2, alnea g),
2a. parte, da Constituio e artigo 102-D da Lei no. 28/82, aps a Lei
no. 13-A/98, de 16 de Fevereiro];
Contencioso das eleies partidrias [artigo 223 no. 2, alnea h), 1a.
parte, da Constituio e artigo 103-C da Lei no. 28/82, aps a Lei no.
13-A/98].

Cfr. acrdo no. 575/2005, de 28 de outubro, do Tribunal Constitucional, in Dirio


da Repblica, 2a. srie, no. 224, de 22 de Novembro de 2005.
9 Cfr. acrdo no. 88/94 do Tribunal Constitucional, de 20 de Janeiro, in Dirio da Repblica, 2a. srie, no. 111 de 13 de Maio de 1994; ou acrdo no. 34/98, de 3 de fevereiro,
ibidem, no. 67, de 20 de maro dc 1998.
10 E, antes, os atrs citados acrdos nos. 165/85 e 163/87.
11 Seja no procedimento das candidaturas, seja no da constituio das assembleias de
voto, seja nas campanhas eleitorais (v. gr., dos governadores civis).
12 Cfr. Manual, 3a. ed., Coimbra, 2004, V, pp. 101 e 102, e VI, 2a. ed., Coimbra,
2005, pp. 90 e ss. e autores citados.

698

JORGE MIRANDA

3. As leis do referendo tambm atribuem ao Tribunal Constitucional


o julgamento de recursos de decises tomadas nos respectivos procedimentos:
Contencioso do desdobramento de assembleias de voto (artigo 77,
no. 4, da Lei no. 15-A/98, de 3 de Abril, e artigo 67, no. 5 da Lei
Orgnica no. 4/2000, de 24 de Agosto);
Contencioso da votao e do apuramento (artigos 172 e segs., da Lei
no. 15-A/98 e artigos 151 e segs., da Lei Orgnica no. 4/2000).

Por sinal, as leis eleitorais no prevem aquela primeira modalidade,


mas dever ter-se por admitida com base no princpio geral da tutela jurisdicional respeitante a actos administrativos (artigos 20 e 268, no. 5, da Lei
Fundamental).
4. O artigo 2o. do Regimento da Assembleia da Repblica estatui que os
poderes dos Deputados so verificados pela prpria Assembleia; a verificao consiste na apreciao da regularidade formal dos mandatos e na
apreciao da elegibilidade dos Deputados cujos mandatos sejam impugnados por facto que no tenha sido objecto de deciso judicial com trnsito
em julgado.13
O direito de impugnao cabe a qualquer Deputado (no. 3) e o Deputado
cujo mandato seja impugnado tem o direito de defesa e o de exercer as suas
funes at deliberao definitiva da Assembleia, por escrutnio secreto
(no. 4).
Tambm, mesmo no silncio da Constituio e da lei (porque, em rigor,
no se trata de perda de mandato, mas sim de determinao da sua existncia), deve entender-se aberta a via do recurso para o Tribunal Constitucional e, desde logo, por fora do artigo 223 no. 2, alnea c). Doutro
modo, haveria a uma flagrante inconstitucionalidade, at porque a Constituio no contempla tal faculdade do Parlamento.
5. Fora da competncia do Tribunal Constitucional ficam o contencioso
concernente:

13 Sobre a verificao de poderes v., a ttulo histrico, Rossi, Pellegrino, Cours de Droit
Constitutionnel, 2a. ed., Paris, 1877, p. 436; e em direito comparado, por todos, Delpre,
Francis, op. cit., nota 1, pp. 54 e ss.

O CONTENCIOSO ELEITORAL PORTUGUS

699

s eleies dos vogais juzes do Conselho Superior da Magistratura,


atribudo a uma comisso de eleies, composta pelos presidentes do
Supremo Tribunal de Justia e pelos presidentes dos tribunais da relao (artigo 143 da Lei no. 21/85, de 30 de Julho);
s eleies dos vogais juzes do Conselho Superior dos Tribunais
administrativos e fiscais, atribudo Seco do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo [artigos 24, no. 1,
alnea b), 33 e 75 do estatuto aprovado pela Lei no. 13/2002, de 19 de
Fevereiro];
s eleies dos vogais do Conselho Superior do Ministrio Pblico
eleitos entre os magistrados do Ministrio Pblico, atribudo a uma
comisso de eleies, composta pelo Procurador-Geral da Repblica
e pelos procuradores-gerais-adjuntos nos distritos judiciais (artigo
19 da Lei no. 47/86, de 15 de Outubro).

Como se trata de rgos constitucionais e tendo em conta a relativa fragilidade das solues at agora adoptadas, de jure condendo seria prefervel tambm conferir estas matrias ao Tribunal Constitucional.14
III. CONTENCIOSO ELEITORAL POLTICO E CONTENCIOSO
ADMINISTRATIVO

1. Se a eleio no se circunscreve ao direito constitucional, antes se encontra analogamente noutros sectores de ordem jurdica, tambm o contencioso eleitoral no se reduz ao contencioso eleitoral poltico: h tambm
contencioso eleitoral administrativo, civil, comercial, internacional, etc.
H quem faa a destrina ente contencioso eleitoral poltico e contencioso eleitoral administrativo em razo da qualidade do eleitor: entrariam no
primeiro os litgios surgidos em eleies em que a capacidade eleitoral, activa e passiva, radicasse exclusivamente na qualidade de cidado; ao passo
que na segunda a capacidade eleitoral seria aferida pela posse de um status,
a pertena a uma dada categoria profissional ou corporacional, uma qualidade jurdica especfica a averiguar em cada eleio.15 Embora sugestivo,
14 Diverso, evidentemente, o contencioso eleitoral relativo a pessoas colectivas de direito pblico, pertencentes administrao, o qual recai sobre os tribunais administrativos
[artigo 4o., no. 1, alnea m) do estatuto].
15 Freire Barros, Manuel, op. cit., nota 1, pp. 65 e ss.

700

JORGE MIRANDA

este critrio afigura-se demasiado formal, parece subalternizar os sujeitos


das candidaturas e s, remota ou indirectamente, permitiria explicar a
insero no contencioso eleitoral poltico das eleies intraparlamentares e
intrapartidrias.
Mais adequado afigura-se falar em actos materialmente jurdico-constitucionais16 ou em, simplesmente, considerar o contencioso eleitoral poltico instrumental em face da formao da vontade poltica do povo a nvel
nacional, regional e local formao essa que se d quer atravs do sufrgio universal, individual e directo, quer atravs das assembleias com funes de natureza poltica (a Assembleia da Repblica e as Assembleias Legislativas Regionais), quer no seio das associaes qualificadas para
esse efeito (os partidos polticos).17 J o contencioso eleitoral administrativo ter que ver com actos de segundo grau em face dos actos eleitorais polticos, ocupando-se de rgos electivos da administrao, designadamente
da autnoma.
2. O contencioso eleitoral poltico , por isso, um contencioso constitucional e, por isso, tambm se compreende a opo por o confiar ao Tribunal
Constitucional.
A sua estrutura, no entanto, no deixa de ser a de um contencioso administrativo18, porque tem por objecto conflitos decorrentes de uma actividade administrativa, mesmo se sui generis, e porque os chamados recursos
eleitorais seguem, no essencial, o processo das aces contenciosas administrativas. Uma coisa a competncia jurisdicional, outra coisa a natureza
em si das questes e dos meios processuais correspondentes.19
J no pode reconduzir-se a contencioso administrativo o das eleies
em partidos polticos, tendo em conta a natureza jurdica destes.

16

Ibidem, p. 166.
Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, 3a. ed., Coimbra, 1993, pp. 523-524.
18 Assim, Vital Moreira, O direito administrativo na Constituio, AB UNO AD
OMNES 75 anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 1151.
19 De resto, a norma constitucional de competncia dos tribunais administrativos (artigo
212, no. 2) pode e deve ser lida em termos de razoabilidade, sem implicar exclusividade rgida. A doutrina praticamente unnime.
17

O CONTENCIOSO ELEITORAL PORTUGUS

701

IV. CARACTERSTICAS DO CONTENCIOSO ELEITORAL POLTICO


1. O contencioso eleitoral tem de dar resposta a uma trplice demanda de
garantia dos direitos fundamentais de eleger e de ser eleito, de garantia da
periodicidade da eleio e da renovao dos titulares dos rgos nos prazos
constitucionais e de legitimao dos resultados eleitorais.
Donde, certas caractersticas:
1. Dependncia do tempo20 no sentido de, salvo o contencioso do recenseamento, ser um contencioso ocasional ou sazonal, s actuvel
quando h eleies (ou referendos);
2. Dependncia do tempo no sentido da mxima celeridade processual
por causa da sucesso de actos e procedimentos com datas pr-marcadas ou inadiveis;
3. Donde, existncia de um s grau de jurisdio, salvo no caso do contencioso de inscrio no recenseamento eleitoral (artigo 61o. da Lei
no. 13/99, de novo);
4. Princpio da precluso ou da aquisio sucessiva.
Conforme tem reiterado o Tribunal Constitucional, todos os actos dos
procedimentos eleitorais so impugnveis e no possvel passar de uma
fase a outra sem que a primeira esteja definitivamente consolidada. Porm,
no sendo os actos correspondentes a uma dada fase objecto de reclamao
ou recurso no prazo legal ou, tendo-o sido, no sendo declarada a invalidade ou a irregularidade, j no mais podero esses actos ser contestados no
futuro.
A no ser assim, o processo eleitoral, delimitado por uma calendarizao rigorosa, acabaria por ser subvertido merc de decises extemporneas,
que, em muitos casos, determinariam a impossibilidade de realizao dos
actos eleitorais.21
Mas este no um princpio absoluto, pois h vcios de tal maneira graves, insanveis, que impedem a precluso (como, por exemplo, um candidato a presidente da Repblica no ser portugus ou, na realidade, no ter
ainda completado 35 anos);
20

Cfr. Delpre, Francis, op. cit., nota 1, p. 5.


Acrdo no. 322/85, de 26 de dezembro, in Dirio da Repblica, 2a. srie, no. 88, de
16 de abril de 1986. vid., tambm, entre outros, o Acrdo no. 698/93, de 10 de novembro,
ibidem, 2a. srie, no. 16, de 20 de janeiro de 1994.
21

702

JORGE MIRANDA

5. Prevalncia dos elementos objectivistas sobre os elementos subjectivistas,22 excepto no contencioso de inscrio no recenseamento e no
das candidaturas;23
6. Contencioso de plena jurisdio, porque, independentemente da anulao ou declarao de nulidade de um acto, o Tribunal Constitucional pode decretar uma providncia adequada a cada caso, com vista
plena regularidade e validade dos procedimentos24 e at substituir-se
entidade recorrida na prtica de um acto de processo sempre que tal
se torne necessrio;25 26
7. A j referida regra da no repetio da votao em assembleia de voto
(ou em crculo eleitoral), quando a nulidade verificada no afecte o
resultado da eleio.
V. O REGIME PROCESSUAL
1. Tm legitimidade para interpor recursos eleitorais:
a) No contencioso do recenseamento, qualquer cidado eleitor, partido
poltico ou grupo de cidado com assento nos rgos autrquicos da rea
do recenseamento27 (artigos 60, no. 1 e 63 da Lei no. 13/99);
b) No contencioso das candidaturas, os candidatos e os mandatrios,
bem como, nas eleies parlamentares, os partidos polticos concorrentes
eleio e, nas eleies locais, os partidos e os grupos de cidados concorrentes (artigos 30, no. 1 e 32 da Lei no. 14/79, artigo 34 do Decreto-lei no.

22

Algo diferentemente, Freire Barros, Manuel, op.cit., nota 1, pp. 142 e ss.
Cfr. quanto Frana, Sylvie Torcot, op.cit., loc. cit., pp. 1215 e ss.
24 Cfr. Freire Barros, Manuel, op. cit., nota 1, pp. 137 e 149 e ss. e 166, notando que o
Tribunal pode admitir uma candidatura com substituio de um candidato por outro, ordenar alteraes na contagem dos votos, reformar o apuramento geral, etc. V., alm dos acrdos a mencionados (pp. 150 e 151), o acrdo no. 258/85, de 26 de novembro (in Dirio da
Repblica, 2a. srie, de 18 de maro de 1986), considerando que a deciso de recurso relativo s provas dos boletins de voto no pode limitar-se a revogar, se for caso disso, a deciso
em causa, devendo proceder igualmente definio do que haja de corrigir no caso.
25 Assim, Ribeiro Mendes, Armindo, op. cit., nota 1, loc. cit., p. 18, e acrdos citados.
26 Tambm de plena jurisdio o processo de contencioso eleitoral administrativo (artigo 97, no. 2, 2a. parte do Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais).
27 No contencioso eleitoral administrativa tm legitimidade qualquer eleitor ou elegvel
e, quanto s omisses nas listas eleitorais, qualquer pessoa cuja inscrio haja sita omitida
(artigo 98, no. 1 do Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais.
23

O CONTENCIOSO ELEITORAL PORTUGUS

703

267/80, artigo 32 da Lei Orgnica no. 1/2001, artigo 36 da Lei Orgnica


no. 1/2006);
c) No contencioso da votao e do apuramento, qualquer cidado eleitor
da assembleia de voto e qualquer dos candidatos ou dos mandatrios, alm
de partidos e grupos de cidados (artigo 114 do Decreto-lei no. 319-A/76,
artigos 99, no. 1 e 117 da Lei no. 14/79, artigo 119 do Decreto-lei no.
267/80, artigo l57 da Lei Orgnica no. 1/2001, artigo 124, no. 2 da Lei
Orgnica no. 1/2006).
to ampla a legitimidade processual activa no contencioso do recenseamento e no da votao e do apuramento que parece estar-se diante de
aco popular.28
2. Em regra, o recurso requer prvia formulao de reclamao, protesto
ou contraprotesto. da deciso (de indeferimento) sobre esta e no duma
primeira deciso, que pode vir a recorrer-se (artigos 30, 31 e 117, no. 1 da
Lei no. 14/79).29
S no assim na admisso das candidaturas a presidente da Repblica,
em que cabe logo recurso da deciso da seco para o plenrio do Tribunal
Constitucional (artigos 93 e 94 da Lei no. 28/82).
3. Existe apenas uma instncia de recurso: o Tribunal Constitucional em
plenrio (artigos 35, no. 1 e 118, no. 4 da Lei no. 14/79, artigos 33 e 120 do
Decreto-lei no. 267/80, artigos 94, nos. 1, 34 e 5, 98, no. 2, 101, no. 1,
102-B, no. 5 e 102-C, no. 4 da Lei no. 28/82, artigo 158 da Lei Orgnica no.
1/2001).
S no assim, como j se disse, relativamente inscrio de cidados
no recenseamento eleitoral.
4. Os processos eleitorais so processos urgentes3 pela natureza das coisas, como intuitivo.30
Tomando como referncia as eleies para a Assembleia da Repblica,
verifica-se:

28 Cfr., entre tantos, acrdo no. 262/85, de 29 de novembro, in Dirio da Repblica, 2a.
srie, no. 64, de 18 de maro de 1986.
29 E conforme se declara no Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais
[artigo 36, no. 1, alnea a)].
30 Cfr. tambm artigo 97, no. 2, 1a. parte, do Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais.

704

JORGE MIRANDA

de dois dias o prazo de resposta das candidaturas aps a publicao


das listas pelo tribunal (artigo 30, no. 1 da Lei no. 14/79);
A resposta dos mandatrios deve ser dada no prazo de vinte e quatro
horas (artigo 30, nos. 2 e 3);
O juiz deve decidir dentro de vinte e quatro horas (artigo 30, no. 4);
O recurso da deciso do juiz deve ser interposto at dois dias a contar
da data de afixao das listas (artigo 32, no. 2);
A resposta das candidaturas perante o Tribunal Constitucional deve
ser emitida no prazo de 24 horas (artigo 34, nos. 2 e 3);
O Tribunal Constitucional dispe de 48 horas para decidir (artigo 35,
no. 1) todos os recursos respeitantes a cada crculo eleitoral, atravs
de um mesmo acrdo (artigo 35, no. 2);
Nas assembleias de voto, as reclamaes, os protestos e os contraprotestos tm de ser apresentados perante os actos a que se referem (artigo 117, no. 1);
O recurso de deciso que ento seja tomada tem de se interpor nas 24
horas imediatas (artigo 118, no. 1);
A resposta dos mandatrios dada nas 24 horas seguintes (artigo
118, no. 2);
O Tribunal Constitucional decide o recurso no prazo de 48 horas (artigo 118, no. 3).

5. Os processos eleitorais esto sujeitos ao princpio do contraditrio


(por exemplo, artigos 34, nos. 2 e 3 e 118, no. 3 da Lei no. 14/79, artigo 64,
no. 2 da Lei no. 13/99, artigos 94, nos. 3 e 4, e 100, no. 2 da Lei no. 28/82).
E, evidentemente, esto sujeitos outrossim aos demais princpios inerentes tutela jurisdicional efectiva (artigos 20, 32, 202 e seguintes da
Constituio), tais como da fundamentao das decises que no sejam de
mero expediente, o da sua obrigatoriedade e executoriedade e o do respeito
pelo caso julgado.31
6. As irregularidades processuais que no possam influir na deciso dos
recursos eleitorais devem ter-se por sanadas quando no sejam do conhecimento oficioso do juiz e nenhum dos interessados tenha invocado qualquer
nulidade.32
31

Cfr. Manual..., cit., nota 6, IV, pp. 258 e ss.


Acrdo no. 263/85 de 29 de novembro, in Dirio da Repblica, 2a. srie, de 18 de
maro de 1986.
32

Você também pode gostar