Cunha, Costa & Martelotta (2013) Linguística

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Lingufstica

Angelica Furtado da Cunha


Marcos Antonio Costa
Mdrio Eduardo Mart~locca

Conceituac;ao
A linguisrica e definida, na maioria dos manuais especializados, como a
disci piina que esruda cienrificamenre a linguagem. Essa definic;ao, pouco elucidativa por
sua simplicidade, nos obriga a fazer algumas consideracroes importanres. Primeiramenre,
precisamos dererminar o que esramos enrendendo pelo rermo "linguagem", que nem
sempre e empregado com o mesmo senrido. Precisamos rambem delimirar o que
significa esrudar cientificamente a linguagem.
Alem disso, nao podemos esquecer que exisrem ourros ramos do conhecimento
que, a sua maneira, rambem se interessam pelo esrudo da linguagem. Isso nos leva a
esrabelecer alguns contrasres entre a linguisrica e algumas ciencias ou disciplinas afins,
de modo a delimirar seu campo de aruac;:ao.
A partir de agora rentaremos desenvolver algumas observacroes sobre os conceiros
de linguagem e de lingua, esrabelecendo o que hade cientifico nos esrudos elaborados
na area da linguisrica. Alem disso, buscaremos esrabelecer d iferencras entre essa
disciplina e ourros ramos do conhecimento que ram bern se inreressam em compreender
a linguagem, bern como apresenrar algumas areas de aplicacrao das reorias linguisricas.

Linguage m e lfngua
0 rermo "linguagem" apresenra mais de urn sentido. Ele e mais com umenre
empregado para referir-se a qualquer processo de comunicacrao, como a linguagem dos
animais, a linguagem corporal, a linguagem das artes, a linguagem da sinalizac;ao, a

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linguagem escrita, entre outras. Nessa acepc,:ao, as linguas narurais, como o portugues ou
o iraliano, por exemplo, sao formas de linguagem, ja que consriruem insrrumenros que
possibilitam o processo de comunicac,:ao entre os membros de uma comunidade.
Entretanto, OS linguisras - cientistas que se dedicam a lingufstica - costumam
estabelecer uma relayao diferente entre os conceitos de linguagem e lingua. Enrendendo
linguagem como uma habilidade, os linguistas definem o termo como a capacidade
que apenas os seres humanos possuem de se comunicar por meio de linguas. Por sua
vez, o rermo "lingua" e normalmenre definido como urn sistema de signos vocais 1
utilizado como meio de comunicac,:ao entre os membros de urn grupo social ou de
uma comunidade lingufstica.
Quando falamos, en tao, que os linguistas estudam a linguagem, queremos dizer
que, embora observem a esrrurura das lfnguas narurais, eles nao estao interessados
apenas na estrurura particular dessas llnguas, mas nos processes que esrao na base da
sua urilizac,:ao como insrrumentos de comunicac,:ao. Em ourras palavras, o linguisra
nao e necessariamente urn poliglora ou urn conhecedor do funcionamento especffico
de varias linguas, mas urn estudioso dos processes atraves dos quais essas varias lfnguas
reAerem, em sua esuurura, aspectos universais essencialmenre humanos.
A lingufsrica, como ocorre com ourras ciencias, apresenra diferenres escolas
te6ricas que diferem na sua maneira de compreender o fenomeno da linguagem. Em
uma tenrariva de apresentar uma visao mais geral e, sobrerudo, imparcial em relac;:ao
a essas escolas, propomos que a capacidade da linguagem, eminenremente humana,
parece implicar urn conjunro de caracrerfsticas. Vejamos algumas delas:
a) Uma tecnica arricular6ria complexa
Quando falamos em tecnica articular6ria, nos referimos a urn conjunto de
movimentos corporais necessaries para a prodU<;:ao dos sons que comp6em a fala.
Esses movimentos envolvem desde a expulsao de ar a partir dos pulm6es - arraves
dos bronquios, da rraqueia e da laringe- are sua safda pelas cavidades bucal e nasal.
A sucileza que caracteriza esses movimenros e, sobrerudo, a particularidade que
distingue os varios sons e sua func;:ao no sistem a da lfngua fazem com que o domfnio
desse processo de produc,:ao vocal seja uma tarefa de complexidade tal que apenas a
especie humana parece ser capaz de realizar.
No que diz respeito a produc;:ao sonora dos elementos fonericos , vejamos, por
exemplo, a distinc;:ao entre / b/ e /p/ . Ambos sao oclusivos, bilabiais, orais. A t.'mica
diferenc;:aentre eles e que /b/ esonoro e /pi e surdo. Ou seja, na pron uncia do / b/ a glore
(espac;:o entre as cordasvocais) esrasemifechada, fazendo com que oar, ao passar, ponhaas
cordasvocais em vibrac;:ao. No casode/p/, agloreesraaberta, oque fazcom queo arpasse
sem dificuldade e sem causar a vibrac;:ao das cordas vocais. Essa diferenc;:a aniculat6ria

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e urn tra~o disrinrivo no sistema da lingua porruguesa, pois a troca de /p/ por /b/ (e
vice-versa) leva a uma mudan~a de significado das palavras, como em "bore" e "pore" .
A esse faro esra. associado o domfnio que o falanre rem sobre complexos
fenomenos de ordem fonologica que caracterizam o uso diario de uma lingua. Nesse
sentido, sao inreressanres fatos como a troca de /e/ por /i/, por exemplo, que na
oposi~ao entre "pera" e "pira" causa uma modifica~ao de sentido, mas na oposi~ao
entre lmeninol e lmininol nao.
Esses fenomenos demonstram que o uso da linguagem implica o domfnio de
urn conjunto de procedimemos bastante complexos, associados nao apenas aprodu~ao
e percep~ao dos diferenres sons da fala, mas rambem aos efeiros caracreristicos da
disrribui~ao funcional desses sons pela cadeia sonora.
b) Uma base neurobiol6gica composra de centros nervosos que sao utilizados na
verbal

comunica~ao

Urn exemplo que ilusrra bern essa rela~ao entre a linguagem e nossa estrurura
neurobiol6gica pode ser visto nas afasias, que se caracterizam como disturbios de
linguagem proveniences de acidentes cardiovasculares ou lesoes no cerebra. Desde
meados do seculo XIX, a partir dos escudos de cientistas como Paul Broca e Karl
Wernicke, ficou esrabelecido que lesoes ou rraumarismos em determinadas areas do
cerebra provocam problemas de Linguagem.
Broca propos que, seas lesoes ocorrem na pane frontal do hemisferio esquerdo
do cerebra, elas causam, nas pessoas afetadas, uma articula~ao deficiente e uma seria
dificuldade de formar frases sem que, no entanto, sua compreensao daquilo que as
outras pessoas falam seja comprometida. Diz-se que os pacientes que apresentam esse
problema sofrem de afasia de Broca.
Wernicke, por sua vez, percebeu que pacientes com lesao na parte posterior
do lobulo temporal esquerdo ap resentavam problemas de linguagem diferentes dos
descobertos por Broca. Embora conseguissem falar fluentemente, com boa pronuncia
e com frases sintaticamente bern formadas, esses pacientes perdiam a capacidade de
produzir enunciados com significado, assim como a capacidade de compreender
a fala de outras pessoas. Costuma-se caracterizar essa deficiencia como afasia de
Wernicke.2 A partir de enrao vern sendo desenvolvidos esrudos acerca da interface entre
cerebra/ mente/linguagem, caracterizando uma area de pesquisa normalmenre chamada
de neurolingufstica ou afasiologia. Descobriu-se, por exemplo, que as areas de Broca
e de Wernicke sao conecradas por urn feixe de fibras chamado fasciculus arcuatus, cuja
lesao gera urn terceiro ri po de afasia chamado de afasia de condurao.
0 que queremos demonsrrar com essas informa~6es sobre as rela~6es entre
linguagem e estrutura neurobiol6gica eque 0 funcionamento da linguagem, tal como
ocorre, esta relacionado a uma estrurura biologica que o veicula.

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c) Uma base cogniriva, que rege as relac;:6es entre o homem eo mundo biossocial e,
consequenremenre, a simbolizac;:ao ou represenrac;:ao desse m undo em rermos Iinguisricos
Associado a essa base neurobiol6gica esd. o que poderiamos chamar, para
usar uma expressao simplificada, de foncionamento mental, ou seja, os processes
associados a nossa capacidade de compreender a realidade q ue nos cerca, armazenar
organizadamenre na memoria as informac;:6es consequences dessa compreensao e
transmiri-las aos nossos semelhantes em siruac;:6es reais de comunicac;:ao. Podemos dizer
que o termo cogniriio se relaciona a esse funcionamenro mental e que, em linguisrica,
existem diferenres reorias que descrevem esse funcionamenro.
Para formarmos uma ideia bern ge ral de como a lingufsrica trata esses
fenomenos, e inreressanre tra<;armos urn breve hist6rico do modo como OS linguistas
compreenderam a relac;:ao enrre o uso da linguagem e o funcionamenro da mente ao
Iongo da evoluc;:ao dos escudos lingufsricos. Comec;:arem os da chamada hipotese do
relativismo linguistico, que pode ser vista nas ideias apresenradas no infcio do seculo
XX por Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf.3
Segundo essa hip6rese, cada lingua segmenra a realidade de urn modo peculiar e
imp6e tal segmenrac;:ao a rodos os que a falam. Isso significa que a linguagem
e importante nao s6 para a organizac;:ao do pensamento, como rambem para a
compreensao e categorizac;:ao do mundo que nos cerca.
Vejamos urn exemplo de como isso ocorre. Algumas lfnguas indigenas apresenram o
mesmo termo para designar o sole a lua.lsso significa, segundo essa reo ria, que os falantes
dessas linguas idenrificam esses do is objeros celestes como perrencenres a uma mesma categoria de coisas. Em nossa culrura, isso nao aconrece: temos nomes disrinros para designalos: "sol" e "lua" . Isso se da porque acrediramos se tratar de duas coisas de natmeza diferenre.
Assim, a linguagem dererminaria a percepc;:ao eo pensamento: as pessoas que
falam diferenres linguas veem o m undo de modos disrinros. Por sua vez, as diferenc;:as
de significados existentes numa lingua sao relativas as diferenc;:as culrurais relevances
para o povo q ue usa essa lingua. Os aurores procuram mostrar, portanro, a impord.ncia
q ue a linguagem rem na com preensao e na consrruc;:ao da realidade.
Essa forma de ver a linguagem foi mais tarde severamenre criricada por
Noam C homsky e pelos linguistas gerativisras (ver o capitulo "Gerarivismo"), os
quais prop6em uma visao de que o pensamenro humano apresenra uma especie de
organizac;:ao inrerna e universal , que, pelo m enos em sua essencia, pouco rem a ver
com quesr6es de cararer sociocultural.
Por sua vez, os linguisras sociocognirivistas (ver o capfrulo "Linguisrica
cogniriva'') retomam a proposra relarivisra, atribuindo-lhe argumenros m ais modernos:
adotam a hip6tese de que existem universais concepruais que apenas motivam os
conceiros humanos, m as que nao rem a capacidade de preve-los de modo definitive.
Segundo essa visao, os universais concepruais nao determinam o pensamenro humano,
pais sofrem a influencia de fatores socioculrurais.

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Nao e nosso objerivo, no momenta, enrrar nos deralhes associados as discussoes


sabre a natureza da esrrurura cogniriva humana, e sim registrar o faro de que a
capacidade da linguagem implica urn ripo de organizac;:ao mental sem a qual ela nao
exisriria ou, pelo menos, nao reria as caracterfsricas que rem.
d) Uma base sociocultural que atribui a linguagem humana OS aspectos vari:iveis que
ela apresenra no tempo e no espac;:o
A linguagem e urn dos ingredientes fundamenrais para a vida em sociedade.
Desse modo, ela est:i relacionada a maneira como inreragimos com nossos semelhantes,
refl.etindo tendencias de comportamento delimitadas socialmente. Cada grupo social
tern urn comporramento que lhe e peculiar e isso vai se manifesrar tam bern na maneira
de falar de seus represenrantes: os cariocas nao falam como os gauchos ou como os
mineiros e, do mesmo modo, indivfduos perrencenres a urn grupo social menos
favorecido rem caracterfsricas de fala distinras dos indivfduos de classes favorecidas.
Alem disso, urn mesmo indivfduo em situac,:6es diferenres usa a linguagem de
formas diferenres. Quando est:i no rrabalho, discutindo quest6es profissionais com seu
chefe, por exemplo, o falanre tende a empregar uma linguagem mais formal, mas em
casa, conversando com os fam iliares, a tendencia eo falanre urilizar uma linguagem
mais simples, com rermos mais corriqueiros e populares.
Erambem imporrante registrar que nossas vidas, em func;:ao da evoluc;:ao cultural,
mudam com o tempo. Assim, as lfnguas acabam sofrendo mudanyas decorremes de
modificac,:oes nas esrrururas sociais e poliricas. Podemos perceber isso com facilidade
no vocabulario. Palavras references a objeros que nao sao mais urilizados desaparecem:
eo caso de "mara-borrao", 4 por exemplo. Por outre lado , termos novas aparecem para
designar novas arividades ou novas aparelhos surgem com o desenvolvimento cultural
ou tecnol6gico: e 0 case de uma serie de termos utilizados na area da compurac;:ao,
como impressora, scanner, software, pen drive, entre ourros.
Desse modo, podemos dizer que as lfnguas variam e mudam ao saber dos
fenomenos de natureza sociocultural que caracterizam a vida na sociedade. Variam pela
VOntade que OS indivfduos OU OS grupos tern de se identificar por meio da linguagem e
mudam em func;:ao da necessidade de se buscar novas expressoes para designar novas
objetos, novas conceitos ou novas formas de relac;:ao social.
e) Uma base comunicativa que fornece os dados que regulam a interac;:iio entre os falanres
Como a linguagem se manifesta no exerdcio da comunicac;:ao, existem aspectos
proveniences da inrerac;:ao entre os indivfduos que se revelam na estrutura das linguas.
Urn born exemplo disso pode ser vista no processo de criac;:ao de formas novas e mais
expressivas para subsriruir construc;:oes que perderam sua expressividade em func;:ao
da alta frequencia de uso.

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Manual de lingufstica

A construc,:ao negariva dupla, como em "Nao quero isso, nao", ilustra bern esse
pomo. No d.iscurso falado no porrugues do Brasil, a pronuncia do "nao" ronico que
precede o verbo frequentemenre se reduz a urn "num" :itono, ou ate mesmo a uma
simples nasalizac,:ao. Para reforc,:ar a ideia de negac,:ao, o falanre utiliza urn segundo
"nao" no fim da orac,:iio, como uma esrraregia para suprir o enfraquecimenro fo netico
do "nao" pre-verbal e 0 consequenre esvaziarnento do seu conreudo semanrico. Assim,
o acrescimo do segundo "nao" rem morivac,:ao comunicariva.
E interessante o faro de que em algumas areas do Brasil, mais especificamente
no Nordeste, desenvolveu-se uma tendencia de utilizar apenas o segundo "nao": "quero
nao", "sei nao", e assim por dianre. Essa estrutura frasal so e posslvel pela exisrencia
de urn esra.gio imermediario em que, por motivos comunicarivos, ocorre a negativa
dupla mencionada ameriormenre.

A lingufstica como estudo cientffico


Para proceder ao esrudo ciendfico da linguagem e necessaria que se construa
uma teoria geral sobre o modo como ela se estrurura e/ou funciona. 0 linguista
busca sistemarizar suas observac,:6es sobre a li nguagem, relacionando-as a uma reoria
lingulstica construfda para esse proposiro. A partir dessa reoria, criam-se metodos
rigorosos para a descric,:ao das Hnguas.
0 estatuto cien dfico da lingulstica deve-se, portanro, a observancia de cerros
requisiros que caracterizam as ciencias de urn modo geral. Em primeiro Iugar, a
lingulsrica rem urn objero de esrudo proprio: a capacidade da linguagem, que e
observada a partir dos enunciados falados e escriros. Esses enunciados sao invesrigados
e descri ros a luz de prindpios teoricos e de acordo com uma terminologia especffi ca e
apropriada. A universalidade desses princfpios reoricos e restada arraves da analise de
enunciados em varias lfnguas.
Em segundo Iugar, a lingulstica rende a ser empfrica,5 e nao especulariva ou
inruiriva, ou seja, rende a basear suas descobertas em metodos rigidos de observac,:ao.
Ou seja, a maioria dos modelos lingulsticos comempodneos trabalha com dados
publicameme verifidveis por meio de observac,:6es e experiencias.
Estreitamente relacionada ao carater emplrico da lingufsrica esta a atirude nao
preconceituosa em relac,:ao aos diferemes usos da lingua. Essa atirude rorna a lingufsrica,
primordialmenre, uma ciencia descritiva, analftica e, sobrerudo, nao prescritiva. Para
tanto, examina e analisa as lfnguas sem preconceiros sociais, culturais e nacionalistas,
normalmeme ligados a uma visao leiga acerca do funcionamem o das linguas.
Alingufsrica considera, pois, que nenhuma linguae inrrinsecamenre melhor ou pior
do que ourra, uma vez que rodo sistema lingulsrico e capaz de expressar adequadamenre
a cultura do povo que a fala. D esse modo, uma lingua indfgena, por exemplo, nao e
inferior a lfnguas de povos considerados "mais desenvolvidos", como o porrugues, o ingles
ou o frances.

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Alem disso, a lingufstica respeita qualquer variac;:ao que uma lingua apresenre,
independenremenre da regiao e do grupo social que a utilize. Isso porque e natural que
roda lingua apreseme variac;:6es- de pronuncia lfalar vs. fold; bicicleta vs. bicicreta), de
vocabuhirio (aipim/macaxeira; ab6bora/jerimum) ou de sinraxe (casa de Paulo/casa do
Paulo) -que manifestam nfveis semelhantes de complexidade estrutural e funcional.
Oesse modo, ao observar essas variedades da lingua, os linguistas reconhecem sua
relac;:ao com diferenres regi6es do pafs, grupos sociais, ed.rios e assim por diante.
A postura metodol6gica adotada na lingufstica, portanto, decorre natural mente
da definic;:ao do seu objero e considera, sobretudo, que:
rodas as lfnguas e rodas as variedades de uma mesma lingua sao igualmente
apropriadas ao estudo, urna vez que imeressa ao linguista a construc;:io de uma
teoria geral sobre a linguagem humana. Cabe ao pesquisador descrever com
objetividade o modo como as pessoas realmenre usan1 a sua lingua, falando ou
escrevendo, sem atribuir as formas linguiscicas qualquer julgamento de valor,
como certo ou errado. lsso significa dizer que a lingufscica e nao prescritiva.
a lfngua falada, exclufda durante muiro tempo como objero de pesquisa,
tern caracterfsticas pr6prias que a distinguem da escrita e constitui foco de
interesse de invesrigac;:ao. Ou seja, a lingufstica, apesar de se inreressar tam bern
pela escrita, apresenta interesse especial pcla fala, uma vez que e nesse meio
que a linguagem se manifesta de modo mais natural.
Como se pode concluir a partir do que foi vis to are aqui, a lingufsrica rem como
objero de estudo a linguagem humana arraves da observac;:ao de sua manifesrac;:ao oral
ou escrita (ou gesrual, no caso da lingua dos sinais). Seu objetivo final e depreender
os prindpios fundamentais que regem essa capacidade exclusivamenre humana de
expressao par meio de linguas. Para atingir esse objetivo, os linguistas analisam como
as lfnguas naturais se estruturam e funcionam. A invesriga<;:ao de diferenres aspectos das
diversas linguas do mundo eo procedimento seguido para derectar as caracterfsricas
da faculdade da linguagem: o que ha de universal e inato, o que ha de cultural e
adquirido, entre ourras coisas.
Pode-se, porranro, dizer que a linguiscica executa duas rarefas principais: o estudo
das lfnguas paniculares como urn fim em si mesmo, com o prop6sito de produzir
descri<;:6es adequadas de cada uma delas, e o estudo das llnguas como urn meio para
obter informac;:6es sobre a natureza da linguagem de urn modo geral.

Ling ufstica e sua relac;ao com outras cimcias


Uma vez afirmada como ciencia, delimitando objeto e merodologia pr6prios,
a lingufstica reivindica sua auronomia em relac;:ao as ourras areas do conhecimento.
No passado, o estudo da linguagem se subordinava, por exemplo, as invesrigac;:oes da

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Filosofia atraves da Logica. Sobrerudo a partir do inkio do seculo XX, com a publicayao
do Curso de linguistica geral (marco inicial da chamada lingufstica moderna), obra
posruma do linguista sui<;o Ferdinand de Saussure, instaura-se uma nova posrura, e
os esrudiosos da linguagem adquirem consciencia da tarefa que lhes cabe: utilizandose de uma metodologia adequada, esrudar, analisar e descrever as linguas a partir dos
elementos formais que lhes sao proprios.
Entretanto, isso nao significa dizer que a lingwstica encontra-se isolada das demais
ciencias e de ourras areas de pesquisa. Ao contrario, existem rela<;6es bastante esueitas
entre elas, o que faz com que, algumasvezes, seus limites nao se apresentem nitidamente.
Desse modo, a caracteriz.ayao dessas disciplinas e util na medida em que permite delimitar
mais claramente o campo de atua<;ao da linguisrica, comrasrando-o com o de outras
ciencias. Temos, assim, duas faces da rela<;ao entre linguistica e as demais ciencias.
Por urn !ado, essa relayao ede interface: ciencias que nao rem a linguagem como
seu objeto de estudo espedfico passam a se interessar por ela, porque a linguagem
faz parte de alguns aspectos do seu objeto de esrudo. Ou seja, quando falamos em
imerface, nos referimos a pomos de imerse<;ao entre a lingufsrica e ourras ciencias. A
sociologia, por exemplo, se interessa pelo estudo da linguagem, uma vez que a vida
em sociedade so e possivel em funyao da comunica<;ao entre os indivfduos. Ourros
exemplos podem ser vistos na filosofia, que se ocupa da natureza da relayao entre
linguagem e realidade, e na psicologia, que, esrudando o funcionamento da mente,
interessa-se por essa habilidade essencialmeme humana que e a linguagem.
Par ourro !ado, essa rela<;ao e de proximidade ou semelhan<;a: lingufstica,
gramatica tradicional, filologia e, em menor grau, semiologia esrudam espedfica e
exclusivamente a linguagem, diferindo na concep<;ao que possuem da natureza da
linguagem, do foco que dao aos seus diferentes aspectos, dos objetivos a que se propoem
e da merodologia que adotam. Vejamos, com mais detalhes, essa relayao de proximidade
ou semelhan<;a enue a linguistica e ourras ciencias, sem perder de vista o faro de que e
extremamente dificil estabelecer uma fronteira clara entre duas areas de conhecimento.

Linguistica e semiologia
Comecemos esrabelecendo uma di.stin<;ao entre a linguisti.ca e a semiologi.a
ou semi6tica. 6 E difkil delimitar o campo de atua<;ao da semiologia, mas cosruma-se
caracterizar esse campo de pesquisa como a ciencia geral dos signos. Ou seja, asemiologia
nao se interessa apenas pela linguagem humana de natureza verbal, mas por qualquer
sistema de signos narurais (a fuma<;a e urn sinal de fogo, nuvens negras sao urn sinal de
chuva, etc.) ou culturais (sinais de transito, gestos, formas de dan<;a, etc.).
A semiologia surgiu a partir das ideias do linguista sui<;o Ferdinand de Saussure,
para quem essa disciplina deveria se inreressar pela relayao entre linguagem e realidade
e pela natureza da intermedia<;ao que os sistemas de signos fazem entre os individuos.

Linguistica

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Para o linguista sulc;o, a lingufstica seria urn ramo da semiologia, apresentando urn
carater mais espedfico em fun<;:ao de seu particular interesse pela linguagem verbal. Na
pratica, enrretanro, a semiologia vern se desenvolvendo separadamente da lingulstica
como consequencia do trabalho de nao linguistas, sobretudo na Frans;a.
Independememence da dificuldade de delimitar o campo dessas duas disciplinas,
podemos apontar, como fator de diferencia<;:iio, urn aspecro q ue parece estar presence na
maio ria dos manuais da disciplina: a linguistica estuda a linguagem verbal, enquamo a
semiologia, com seu carater mais geral, imeressa-se por rodas as formas de linguagem.

Lingufstica e filologia
Quanro a diferenc;:a entre lingu!stica e filologia, podemos dizer que a ultima
e uma ciencia eminememenre hisrorica, que por u adi<;:ao se ocupa do estudo de
civilizac;:oes passadas auaves da observa<;:iio dos texros escriros que elas nos deixaram,
como intuito de inrerpreta-los, comenra-los, fixa-los e de esclarecer ao leiror o processo
de transmissao textual.
Como ocorre com codas as ciencias, o que e considerado campo de atua<;:iio
dos estudos fi lologicos pode variar de acordo com diferentes aurores. Alguns
incluem no campo dessa ciencia, por exemplo, o estudo da evolu<;:iio das lfnguas,
observando, entre outras coisas, as rransfo rmas;oes sofridas pel as form as da lingua- as
palavras, seu emprego, a constru<;:iio da frase- arraves da verificas;ao de documenros
cronologicamen te sucessivos.
Urn exemplo eo escudo da evolus;ao do latim em dire<;:iio as diferenres linguas
rominicas, tanto nos seus aspectos historicos (historia exrerna) quan to esrrururais (historia
inrerna). Esse campo de estudo rem sido chamado de filologia rominica e busca descrever,
de urn lado, os aspecros politicos, sociais e hisroricos caracter!sticos do crescimenro do
Imperio Romano que tiveram influencia na evolu<;:iio da lingua e, de outro, os aspecros
lingu!sticos associados amudan<;:a fonetica, morfossimatica e semamica.
Nesse semido, alguns auto res idenrificam a filologia com a lingulstica historica,?
cujo objetivo basico eo estudo comparativo entre as linguas a fim de classifici-las de
acordo com as semelhan<;:as que elas apresentam. Essa identificas;ao, entretanro, nao e
consensual. Muiros autores veem o surgimenro da linguistica historica como o advemo
da propria lingulstica, ja que marca o desenvolvimento de uma analise voltada para a
compreensao da propria estrutura das linguas, bern como o aparecimento de teorias
m ais consistentes acerca da mudan<;:a lingulstica.
Segundo essa visao, o campo de aruas;ao da filologia se resrringe ao esrudo do
texto escrito. Esse estudo engloba a exploras;ao exaustiva dos mais variados aspectos do
texto: lingu!stico, literario, cdtico-textual, socio-hisrorico, entre OlltrOS. Cabe afilologia
inrerpretar e comentar os textos anrigos a fim de fornecer as informas;6es necessarias
para sua compreensao: senridos que, por ventura, as palavras possulam num passado

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Manual de lingufstica

remoro ou recenre, mas que se perderam; formas e usos lingufsticos amalmenre nao
urilizados, mas necessaries para esclarecer-nos eventuais passagens obscuras de urn
texto. Alem disso, a disciplina visa apresentar ao leiror o texto que mais se aproxima
da ultima forma materializada pelo seu autor.
Assim, quando observa urn determinado manuscrito, o fil6logo deve saber
de que epoca e a lerra, se e texto o riginal ou c6pia, se 0 copista foi fiel ou se inseriu
modernismos. Deve observar nao apenas aspectos linguisticos, como, por exemplo, as
caracterisricas ortograficas, mas tambem aspectos nao lingufsticos, como a disposi<;:ao
da mancha, dos ritulos, do uso diferenciado dos caracteres graficos, do conjunro de
ilustra<;:oes, entre ouuos fato res. Nesse senrido, a filologia busca levanrar o contexte
em que o texto foi produzido, o que inclui seu auror, sua epoca exata, suas condi<;:oes
de produc;:ao e tudo o que ajuda a compreender a sua estrutura.
Todo esse material desenvolvido pela filologia e muito importance para ciemisras
de outras areas. Por exemplo, e fundamental para o esrudioso da literatura porque
fornece as informa<;:oes necessarias para a caracteriza<;:ao do texto por ele esrudado.
E fundamental tambem para o linguisra ja que fornece para analise urn material
constitufdo de texros fidedignos , que refletem, com maior precisao, os diferentes
mementos da evolu<;:ao hist6rica de uma lingua.
Podemos dizer, entao, resumindo o que foi visro are aqui, que a filologia e
uma ciencia eminememente hist6rica, ao comrario da linguisrica, cujo interesse
e a compreensao do fenomeno da linguagem arraves da observa<;:ao dos mecanismos
universais que estao na base da uriliza<;:ao das lfnguas. Isso significa que o esrudo chamado
sincronico, 8 desde Ferdinand de Saussure, e urn procedimen to valido entre OS linguistas.
A filologia se interessa pelo esrudo do texto escrito, enquanro a linguistica,
em bora nao despreze a escrita, se volta para a linguagem oral. Essa estrategia se justifica
pelo faro de a fala reAetir o funcionamenro da linguagem de modo mais natural e
espontaneo do que a escrira, que e mais planejada e, muitas vezes, retificada em nome
de urn texto mais elaborado. Isso faz da fala urn material mais interessante para que
se possa compreender o funcionamento da linguagem humana.
No campo da hist6ria das lfnguas, a filologia se limita a descrever as formas
caracreristicas das diferemes epocas da evolu<;:ao historica das lfnguas, tendo urn cararer
mais didarico no semido de que oferece informa<;:oes basicas para a compreensao dessas
formas. A lingufstica, por ourro !ado, ao desenvolver teorias mais consistences com rela<;:ao
ao funcionamento da linguagem, tende a dar coma de alguns aspectos universais da
mudan<;:a, rranscendendo o nfvel merameme descritivo. Os linguisras nao querem apenas
saber como o latim gerou o porrugues, o frances ou o italiano, por exemplo. Seu interesse
recai sob re os mecanismos universais que regem a mudan<;:a lingufsrica, procurando
saber sea mudan<;:a ocorre, por exemplo, de gera<;:ao para gera<;:ao, se os fatores sociais
ou interativos influenciam o processo. A rela<;:ao entre mudan<;:a e varia<;:ao demonstrada

Linguistica

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pela sociolingwsrica e a reoria da grarnaticalizayao reromada no final do seculo xx pelos


linguistas funcionalisrassao exemplos de propostas mais universais de mudanya.lingwstica.

Linguistica e gram6tica tradicional


Cabe agora diferenciar a linguisrica da chamadagramdtica tradicionaL. As pessoas
frequemememe pensam que a linguisrica e a velha gramatica ensinada nas escolas,
avivada com alguns termos novos. Porem, a diferenc;:a entre arnbas se manifesta em
varios aspectos basicos.
Em primeiro Iugar, devemos registrar que a grarnatica cradicional foi criada
e desenvolvida por fil6sofos gregos. Representa uma tradic;:ao, que se iniciou em
Arist6teles, de esrabelecer uma relac;:ao entre linguagem e 16gica, buscando sistematizar,
atraves da observac;:ao das formas lingufsticas, as leis de elaborac;:ao do raciodnio. Essa
tradic;:ao rem, portanro, suas rafzes na filosofia e predominou na base dos esmdos
gramaticais are o seculo XIX, quando se desenvolverarn novas reorias sobre a linguagem
que caracterizariam o surgimenro de uma nova ciencia: a lingufsrica. 9
Alem disso, essa tradis:ao gramatical se caracrerizava por uma oriemas:ao
normativa, ja que, ao tenrar impor o dialeto atico como ideal, buscou instimir uma
maneira correta de usar a lingua. Vale ressalrar que essa concepc;:ao normariva e estranha
alingufsrica, ciencia que se prop6e a analisar e descrever a esuutura eo funcionamemo
dos sistemas de llngua, e nao prescrever regras de uso para esses sistemas.
Os linguisras, portamo, esrao interessados no que edito, e nao no que alguns
acharn que deveria ser dito. Eles descrevem a lingua em rodos os seus aspectos, mas
nao prescrevem regras de corres:ao. E urn equfvoco comum achar que ha urn padrao
absoluto de corres:ao que e clever de linguisras, professores, grarnaticos e dicionaristas
manter. A noc;:ao de corres:ao absolura e imuravel e alheia aos linguistas.
E verdade que, atraves da roda do tempo, urn tipo de fala pode ser mais
prestigiado do que outros, mas isso nao torna a variedade socialmente aceiravel mais
interessante para os linguistas do que as outras. Tomemos como exemplo a variac;:ao
na regencia do verbo "assisrir" quando ele significa "ver". Na lfngua falada usa-se
comumente "assistir o jogo", e nao "assistir ao jogo", que representa a forma-padrao
utilizada preferencialmente na escrita.
Eimportance observar que os criterios de correyao que privilegiarn aforma-padrao
em detrimenro da coloquial nao sao esuitarnente lingufsticos, mas decorrem de press6es
pollticas e/ou socioculturais. lsso significa que, em termos lingufsricos, nao ha nada em
uma forma de falar que a caracrerize como correra ou errada. As formas consideradas
corretas sao, na realidade, aquelas utilizadas pelos grupos sociais predominances.
Cabe ainda mencionar que essa posis:ao dos linguistas em relac;:ao a noc;:ao de
corres:ao e urn reflexo de seu trabalho como ciemisras da linguagem, que observam,
sem preconceitos, codas as formas de expressao a fim de compreender a natureza da

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Manual de linguistica

linguagern. Entretanro, e evidente que essa posis:ao nao deve ser esrendida para o
ensino de lingua materna sem urn mfnimo de reflexao.
Os linguistas rem plena consciencia da imporrancia da norrna-padrao para
o ensino do porrugues e reconhecern que o aprendizado ou nao desse padrao tern
irnplicary6es importances no desenvolvirnento sociocultural dos indivfduos.
Nesse semido, e valido dizer que para a lingufstica nao ha forrnas de expressao
correras ou erradas, m as adequadas ou nao aos diferentes contexros de uso. E tao
inadequado 0 uso de formas nao padronizadas da lingua por parte de urn deputado
ao discursar na Camara, por exernplo, quanto a urilizayao por parte desse rnesrno
depurado de urna linguagern formal, marcada pelas regras do padrao culto, quando
ele estiver nas ruas pedindo voros para as pessoas humildes.
Uma segunda diferenrya importance entre a lingufstica e a grarn:itica tradicional
eque os linguistas considerarn a lingua falada, e nao a escrita, como primiria. Qualquer
atividade de escrita representa urn processo mais sofisticado e adquirido mais tardiarnente,
como comprovarn as seguinres observary6es gerais: corneyarnos a falar antes de aprender a
escrever, falarnos rnais do que escrevemos em nossa rotina diaria, todas as linguas natura is
foram faladas antes de serem escri tas. Ao Iongo dos anos, os grarnaticos tern enfatizado a
importancia da lfngua escrita, em parte por causa de seu carater permanente reforryado
pela padronizaryao da ortografia e pelo advemo da imprensa.
A pd.tica educativa rradicional insisre em moldar a lfngua de acordo corn o
uso dos mefhores autores cldssicos, mas os linguistas olharn primeiro para a fala, que
cronologicamente precedeu a escrira ern rodas as partes do mundo. Vale notar que,
enquamo codas as comunidades humanas existentes, ou que ja exisrirarn, possuem a
capacidade de se comunicar arraves da fala, o sistema de escrita, pelo que se sabe, existe
ha seis ou sere mil anos no maximo. Por ourro !ado, ha ainda hoje lfnguas desprovidas
de tradiryao escrita, as cham adas IJnguas agrafas, como, por exemplo, algumas linguas
indfgenas brasileiras e algumas lfnguas africanas.
Os linguisras, porranro, considerarn as formas faladas e escriras perrencemes
a sistemas disrin ros, ja que exibem diferemes padr6es de grarnacica e vocabulario e
seguem regras de uso que lhes sao espedficas. Logo, em bora sobrepostos, esses sistemas
devem ser analisados separadarneme: a fala primeiro, depois a escrita.
Do que foi exposto, podemos conduir que, em virrude da natureza complexa do
objeto de escudo da lingu.fscica, rorna-se diffcil - se nao imposs.fvel- uaryar com clareza os
limites dessa disciplina ou mesmo enumerar com seguranyasuas rendencias de analise que,
como ecomum em qualquer ciencia, variarn de acordo com diferentes autores ou escolas.

Aplica<;6es
A lingufscica est:i Ionge de ser uma disciplina hornogenea; ao comrario, eurn vasto
rerrir6rio com muitas nory6es e orientary6es re6ricas em competiryao. Assim sendo, ela

Lingufstico

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oferece muiras opc;6es para a pesquisa aplicada, e muiros ramos ou reorias lingufsticas sao
fortememe oriemados para a resoluc;ao de quest6es praticas que envolvem a linguagem.
Nos tiltimos anos, rem-se registrado o crescimemo de uma tendencia aplicada,
comprometida com a urilizac;ao dos resultados da pesquisa lingulstica e de outras areas
do conhecimento com vistas aresoluc;ao de problemas da vida cotidiana que envolvem
o usa da linguagem.
Comecemos pela chamada lingu!stica aplicada. Segundo alguns autores, o
termo "lingulsrica aplicada" surgiu na metade da decada de 50 do seculo passado,
quase simultaneameme na Inglaterra e nos Estados Unidos, mocivado talvez pelo
desejo dos professores de lfngua de se distinguirem dos professores de lireratura e de
se associarem a alga mais ciemlfico e objetivo, como a lingulsrica.
Embora ainda nao haja urn consenso quanta ao escopo e crirerios definidores
dessa area do conhecimento, e evidence que ela esra se tornando uma disciplina
reconhecida que vern ampliando seus domfnios. Em sua origem, a lingulstica aplicada
rem sua aruac;ao volrada para o ensino de linguas, especialmente de linguas estrangeiras,
buscando, para isso, subsfdios de teorias references alinguagem, sejam elas proveniemes
da lingulstica, da filosofia da linguagem ou de qualquer outra area afim.
A lirerarura especializada frequemememe emprega uma definic;ao operacional
de lingulstica aplicada: a lingulstica aplicada e urna abordagem multidisciplinar para a
soluc;ao de problemas associados alinguagem. Logo, e uma caracrerisrica central dessa
disciplina o faro de que ela esd. relacionada a tarefas, oriemada para problemas, cemrada
em projetos e guiada para a demanda. Para cumprir seus objetivos, ela se fundamema
primeiramente, mas nao exclusivamente, na lingufstica, ja que esta e a disciplina que
fornece informac;6es que tratam exclusivamente da linguagem. Comudo, a lingufstica
aplicada nao esra preocupada em descrever a linguagem em si mesma e, portanto, busca
conhecimento rambem em urna variedade de ourras ciencias sociais, indo da antropologia,
reoria educacional, psicologia esociologia are asociologia da aprendizagem, asociologiada
informac;ao, a sociologia do conhecimento, etc. E, porranto, urn campo interdisciplinar.
Para temar descrever a que tipos de aplicac;ao a lingufstica se pode prestar, duas
quesr6es amplas devem ser respondidas: primeiro, que parte da lingufstica pode ser
utilizada nos problemas baseados na linguagem que a lingulsrica aplicada se prop6e a
mediar? Segundo, que tipos de problemas podem ser resolvidos atraves da mediac;ao
da lingufstica aplicada? Pode-se dizer que virtualmente todas as areas da linguistica
contribuem para a linguistica aplicada. Nesse sentido, informac;ao relevante pode vir
da fonologia, simaxe, semantica, lingufstica textual, sociolingulstica e psicolingufstica,
par exemplo. Os ripos de problemas com os quais a lingufstica aplicada esra envolvida
podem ser idemificados como problemas de comunicac;ao de urn modo geral, sejam
des entre indivfduos, comunidades de indivfduos ou nac;oes.
Urn exame superficial dos titulos dos artigos publicados nas revisras de linguistica
aplicada revela algumas rendencias. Grande volume desses rrabalhos esra relacionado,

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Manual de linguistica

de urn modo ou de outro, ao ensino e aprend.izagem de lfngua, incluindo aspectos de


alfabetiza~o, letramenro, 10 aquisi~o e aprendizagem de linguas estrangeiras, elabora~o
de testes e material educacional de lingua. A parte remanescenre se divide em quatro
categorias amplas, que incluem polftica e planejamenro lingufsticos, usos profissionais
da linguagem, comportamento lingulstico desvianre e bilinguismo, multilinguismo
e multiculturalismo. Sao essas as areas em que a linguistica aplicada tern estado ativa,
inrervindo nos modelos te6ricos enos praticanres, numa via de mao dupla, ajudando
a trazer preocupas:oes te6ricas a siruas:oes concretas e, ao mesmo tempo, expandindo a
teoria ao trazer essas situas:oes problemas e questoes que nao foram (ou nao foram
adequadamenre) focalizados pela teo ria. A rela<;:ao entre linguisrica e linguistica aplicada
e, pais, simbi6tica. 11 A colaboras:ao da linguistica aplicada em projetos lingufsticos
tern conrribuido para disseminar urn maior conhecimento na comunidade letrada da
natureza da linguagem e do seu papel na sociedade, alem de ter despertado uma
disposis:ao entre os linguisras aplicados de examinar conceitos de ourras disciplinas
e determinar sua relevancia para a linguistica aplicada.
Num conrexto em que o ensino de lfnguas tern sido encarregado da proterao
ou defesa da linguagem correta, a lingufsrica rem sido aplicada, em maior ou menor
grau, em contextos de aprendizagem de lfngua (ver o capitulo "Lingulstica e ensino").
Os estudiosos da lfngua tern usado informas:oes lingufsticas em tarefas educacionais,
e os professores de lingua tern se debrus:ado sabre as descoberras dos estudiosos para
definir tanto o que sera ensinado em sala de aula quanto o modo como sera. ensinado.
Nesse senrido, a aplicas:ao de informas:oes lingulsticas na resolus:ao de problemas reais
nao pode ser considerada uma orienra~o recenre.
As aplicas:oes da linguistica nao se resrringem, porem, ao domfnio do ensino de
linguas ou ao campo de aruas:ao da disciplina denominada lingufsrica aplicada; outras
areas urilizam, produtivamenre, as descobertas te6ricas da pesquisa lingufstica para
fins praricos, como a afasiologia, a inteligencia artificial, a rradus:ao automarica eo
desenvolvimenro de softwares capazes de traduzir a fala hum ana em escrita e vice-versa.
Em quesroes de natureza clinica, o tratamenro e reabilitas:ao de pacientes com
problemas de fala, como afasia ou mal de Alzheimer, por exemplo, rem se beneficiado
recenremente com a incorporas:ao de conreudos lingulsricos em curses que formam
terapeutas da fala. Psicolinguistas e neurolinguisras tern procurado entender como a
Ji nguagem e processada no cerebra e COIDO OS varies danos cerebrais afetam tantO a
memoria linguistica quanta a produs:ao linguisrica.
Em contextos forenses, a linguagem tern se tornado urn campo de estudo em
ascensao. Analisam-se conversas:oes para descobrir conspiras:ao, ameas:as, difamas:ao
e ourras quesroes perrinentes alei. 0 uso da linguagem em conrextos legais afera nao
apenas como urn advogado apresenra seu caso a corte, mas tambem como se percebe
a veracidade de urn resremunho, a escolha dos membros do juri, a compreensao das

Lingufstico

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insrruc;:6es para os jurados, a rranscric;:ao de regisrros de julgamenros, a admissao de


evidencias no julgamenro e a forc;:a do resremunho de especialisras.
Os progressos na area da recnologia d a comunicac;:ao ra mbem requerem
informac;:ao lingu!srica sofisricada. Na area das relecomunicac;:6es, engenheiros
elerricos e elerronicos conram com a colaborac;:ao de especialisras em fonerica para,
por exemplo, aumenrar o nllinero de conversac;:6es em urn unico circuito de telefone.
A participac;:iio da linguistica aplicada e especialmente noravel em projetos que lidam
com o reconhecimenro autom::irico da fala, a s!nrese automarica do discurso, traduc;:ao
auromatica, inreligencia artificial e campos afins.
Em resumo, ha varios dominios em que a linguisri ca pode ser aplicada
produrivamenre. Dependendo do proposiro da aplicac;:ao, as disciplinas relevanres a
esses propositos vao variar. A relac;:iio entre disciplinas e os domfnios da linguistica
aplicada e paralela a relac;:ao entre, por exemplo, de urn !ado, a engenharia, a
maremarica, a fisica, a quimica, ere., e, de ourro !ado, os objerivos do engenheiro em
determinadas circunstancias praticas.

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