Os Causos de Pereiropolis D

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Volmar Camargo Jr.

OS CAUSOS DE
PEREIRÓPOLIS
Volmar Camargo Junior

OS CAUSOS DE PEREIRÓPOLIS

Contos
Estes causos foram escritos entre novembro de 2007 e maio de
2008, a maior parte submetidos à avaliação crítica dos participantes da
Oficina de Escritores e Teoria Literária e publicados na Revista
Eletrônica Samizdat.

Dedico este livro à paciente leitura e às incomensuráveis dicas


de meus caríssimos colegas “oficineiros”.

E à Natascha, a primeira ouvinte e leitora das minhas histórias.


Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-
Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil. Para
ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-
nd/2.5/br/ ou envie uma carta para Creative Commons, 171 Second Street,
Suite 300, San Francisco, California 94105, USA.
Índice

A galinha e o lobisomem 7

Aposentadoria 13

Arte 17

Botões 21

O causo do dilúvio 29

O caso Jersey 33

Os gatos de Pereirópolis 49

O causo da primeira festa 53

Causos miúdos 57
A galinha e o lobisomem

Há muito tempo, quando o Ariri Pistola ainda era um gurizinho


ranhento, morava no meu galinheiro uma galinha garnizé muito
bonitinha, preta e branca, chamada Berenice. Berenice era a criatura
mais justa daqui até Passo Fundo, porque lá é que tinha um juiz federal,
mas só por isso. De manhã cedo, a Berenice, que era uma tremenda de
uma poedeira, olhava os ninhos das outras colegas de galinheiro. Se
tivesse uma que não houvesse posto um ovo, lá ia a garnizé, e deixava
um no ninho da outra — galinha que não bota ovo, vira canja! No
terreiro também tinha um galo enorme, muito garboso e exibido,
chamado Euclides. O galo exigia que a maior parte da quirera fosse pra
ele (quirera é milho, só que quebradinho). Ele tinha uma quedinha pela
Berê, e ela sabia disso. Quando eu ia lá jogar a comidinha delas, a
garnizezinha, toda charmosa, ia até o poleiro do Euclides pra conversar
com ele. O galo, derretido, arrastava as duas asas pra ela, enquanto as
companheiras comiam. Só depois disso é que a Berê convidava-o para
comer. Distraído, ele nem percebia que comia o mesmo que todas as
outras penosas (até um pouquinho menos).
Pois, nessa época do Euclides e da Berenice, dizia-se na vila que
rondava as chácaras um certo lobisomem. Todo mundo, gente ou bicho,
sabe que o prato preferido de lobisomem é ovo de galinha, e que esses
bichos são danados de espertos. O Seu Figueira, que morava depois da
Dona Gerda, que morava depois do Gringo, que era meu vizinho de
cercado, tinha um galinheiro dez vezes maior que o meu. As galinhas
dele davam tanto ovo que nem precisava uma Berenice pra ajudar as
outras, e eram tantas que duvido que ele soubesse o nome de todas elas.
Seu galinheiro foi o primeiro onde o tal lobisomem atacou. Numa
manhã, quando o coitado do Seu Figueira foi fazer a coleta, só tinham
ficado as cascas dos ovinhos.

No dia seguinte, aconteceu a mesma coisa no galinheiro da


Dona Gerda, que não soube mais o que fazer a não ser chorar. Dois dias
depois, foi a vez das frangas do Gringo terem a produção de uma manhã
toda perdida para o alcaide do lobisomem. Foi uma choradeira. O que
todo mundo achava estranho era que as galinhas, que sabem ser muito
barulhentas quando vêem alguma coisa que não conhecem, não deram
sequer um pio.

A vizinhança começou a se preparar pra caçar o bicho. Já era


bem de madrugada, e aquele pessoal todo saiu a procurar um rastro do
dito-cujo. Claro que eu também estava assustado, e me arrumava para
sair às catas do infeliz. Se as minhas contas estavam certas, o próximo
galinheiro a receber o visitante indesejado seria o meu.

Quando eu estava calçando minhas botas, e a espingarda já


estava pendurada no prego ao lado da porta, vi que entrou alguém pelos
fundos, bem de mansinho. Era a galinha Berenice. Ela olhou-me muito

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“sim-senhora”, com cara de quem estava pronta para me passar um
sermão. Foi a primeira vez que ela falou comigo

— Horácio, por acaso tu tens aí uma pedra de rio? —


perguntou-me a galinha. Tomei um susto, e acho que até por causa
disso, respondi de imediato:

— Tenho, Berenice! Está em cima da escrivaninha.

— Pois então, pega aquela cal que tu tens no porão e pinta a


pedra de branco. Depois, leva-a pintada para mim, lá no galinheiro. — e
saiu.

Eu sabia da ligeireza da Berê, mas aquilo era demais. Mas você


sabe que eu sou curioso, e tive que pagar para ver o que ela estava
tramando. Fiz exatamente como ela disse: peguei a pedra de rio,
daquelas que ficam bem redondinhas. Fui até o porão e pintei-a com a
cal que uso para passar nas laranjeiras. Comecei a entender o que é que
a garnizé planejava.

Entrei no galinheiro muito em silêncio. A galinhazinha já


esperava no seu ninho. Disse assim:

— Deixa a pedra aí e te esconde. Só cuida!

Pus a pedra branca no ninho da garnizé e escondi-me nas palhas


o melhor que pude. O sol ia começando a levantar pras bandas da
Capital, quando as funcionárias acordam e começaram a trabalhar. Uma
a uma, começando por Amália, passando pela Berenice, a Creuza,

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terminando na Zenaide, todas puseram seus ovos naquela manhã. De
repente, depois que todas já tinham feito seu serviço, e algumas até
voltaram a dar uma cochilada, uma galinha vermelha e gorda entrou no
galinheiro rebolando. A galinha estava com cara de quem acordara
muito bem-disposta e estava pronta para sua primeira refeição. Seguindo
a mesma ordem, lá foi a ruiva rebolando, no primeiro ninho: quebrou a
casca com uma única bicada e bebeu o ovo da Amália. O segundo
ninho, nós sabemos de quem era. Encantada com o tamanho do ovo de
Berenice, a gorducha penosa dá-lhe uma bicada com vontade. Claro que
a casca não quebrou, afinal, era uma pedra pintada de branco, mas a
malvada não sabia disso e continuou. Bicou, bicou, bicou até ficar com
o bico todo torto e virado para a esquerda. Só então que a gulosa notou
que tinha sido enganada. A essa altura todas as galinhas tinham
acordado outra vez e estavam fazendo um círculo em volta do ninho da
Berê. A vermelha ficou muito contrariada por ter sido tão estúpida. Foi
aí que me assustei de verdade.

A galinha ruiva deu um pulo no meio do galinheiro espantando


todas as outras. Deu um giro sobre uma das patas, depois outro e mais
outro até estar rodopiando feito um pião. Quando parou, senti um cheiro
horrível, e no lugar da galinha estava outra criatura, também vermelha:
era o Anhangá-Pitã! O Anhangá-Pitã é um tinhoso, primo do Saci e
muito amigo do Curupira. Ouvi uma vez falar que ele era enorme e
muito mau. Aquele dia, porém, apareceu nanico, pouca coisa maior que
uma galinha, com os cabelos eriçados como um ouriço, e uns dentinhos
pontudos como um serrote. E agora, depois do acontecido, estava com o
nariz que antigamente era grande e pontudo, inteiramente virado para a
esquerda. Berrando de raiva porque seu disfarce foi descoberto, o

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Anhangá-Pitã saiu pela escadinha do galinheiro, pulou a cerca, enfiou-se
no mato e nunca mais foi visto.

A vida voltou ao normal depois disso. Os vizinhos trouxeram


quirerinha de várias qualidades para a Berenice. O Gringo, o melhor dos
pescadores da vila, encontrou uma porção de minhocas da melhor
qualidade para ela. Dona Gerda fez um ninho novo, bordado em ponto-
cruz. E o Seu Figueira espalhou a notícia por toda a Linha Bonita.
Agora, todos os donos de galinheiro têm uma pedra de rio pintada de
branco. Claro que o desavergonhado do Anhangá-Pitã não cairia outra
vez no mesmo truque, mas dizem que ele ficou com tanta vergonha de
ter sido passado para trás por uma garnizé que basta ver uma pedra de
rio pintada à cal que o monstrinho desaparece num piscar de olhos.

Ah?! O que aconteceu ao lobisomem? Pois ouvi um boato entre


as funcionárias do galinheiro que ele, volta e meia, manda uns presentes
pra garnizé. Enfim, descobriram que nem era ele quem gostava de
comer ovo de galinha.

E a Berenice? Bem, a Berê casou com o Euclides, tiveram uma


porção de pintinhos preto-e-brancos e foram daqui para Garibaldi, lá na
Serra, perto da família dele. Mês passado ela mandou uma carta, e disse
que faltam só dois anos para ela se aposentar.

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Aposentadoria

Voltávamos para a sede de Pereirópolis. A escola onde


lecionávamos ficava dentro da jurisdição do município, mas fazíamos,
entre ida e volta, quase quarenta quilômetros de estrada de chão todos os
dias.

Era chuva que Deus mandava, e parecia que São Pedro tinha
aberto as cancelas do céu e deixado a rolar água. No micro-ônibus da
prefeitura onde, por lei nem poderíamos viajar, estava todo o plantel de
professores da Escola Municipal Getúlio Vargas. O carro era muito
velho, mas ainda na ativa. Chamavam-no carinhosamente, em honra do
estado dos faróis, “Fonforéco d’um zóio só”. E em dia de chuva, como
era o caso, os passageiros precisavam esquivar-se das goteiras.

O motorista, vamos chamá-lo Gringo, — ou melhor, “Seu”


Gringo — conhecia aquelas estradas de fazenda como ninguém. Já era
adiantado da noite, e, segundo ele, havia grande chance de a chuva
engrossar ainda mais. Por uma boca só, todo mundo votou contra
quando o Seu Gringo disse que achava bom tomarmos um atalho.

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Eu poderia apostar que Seu Gringo tinha um tanto de sangue
germânico, porque não raro, o homem tinha uns acessos de “alemoíce”.
Encasquetou na idéia, e meteu-se pelo caminho mais curto. É da
sabedoria popular nos cinco continentes que atalhos não são
aconselháveis. Hans Christian Andersen e os Irmãos Grimm estão aí
para não me deixar mentir.

A estradinha, de fato, não era das piores. Quando já estávamos


quase nos arrependendo de duvidar do “motora”, e ele, exibindo seu
modo muito particular de mostrar a todos que ele é quem estava com a
razão, justamente nesse momento aconteceu o que era visto. O
“Fonforeco” apagou. Bem numa subida. E São Pedro, nada de dar
arrego.

Era para ser apavorante, um grupo de dez pessoas no meio do


nada (na verdade, estávamos, sim, no meio de uma fazenda, a Granja
Santa Bárbara), a quilômetros de qualquer coisa, debaixo da maior
chuva. Estava muito, muito escuro. O Gringo, por acaso, não tinha uma
lanterna no ônibus. Foi então que alguém lembrou da única utilidade de
um celular em uma estrada de colônia: a luz.

Confirmando a previsão do experiente italiano com sangue (e


teimosia) de alemão, a chuva aumentou. Como já dito, era uma subida,
que por aqui chamamos muito por “perambeira” ou “perau”. A torrente
descia por aquela estrada barrenta feito uma cachoeira. O veículo
começou a se mexer sozinho. Alguém falou, meio em tom de ordem,
“vamo descer, gente”. E outro, decididamente imperativo, e gritando,
disse “Devagar!”. Um a um, os professores e o motorista desceram a
escadinha, enfiando em seguida o pé no barro.

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Para quem não sabe como é uma estrada de fazenda, eis a
descrição: em geral é de terra, ladeada por valetas fundas o suficiente
para a água da chuva não “empoçar”. Algumas têm, em uma ou nas
duas margens, um barranco. Aquele trecho tinha, pelo que ficamos
muito gratos. O normal dessas vias é serem “cascalhadas” ou
“empedradas” — dá no mesmo — mas em situações como aquela, não
serviriam para nada nem cascalho, nem valeta. Ficou só o barro e o
aguaceiro.

Descemos, e a água não nos arrastava por pouco. Conseguimos


subir no tal barranco para, com a pouquíssima luz dos aparelhos de
telefonia móvel, assistirmos ao espetáculo de camarote. Em instantes, o
Fonforéco deslizou um pouco; depois mais um pouco; na terceira,
deslanchou de vez em uma ré sem controle ladeira abaixo. Pendeu para
a direita, escorregou e acabou com as rodas enfiadas na valeta, fazendo
com que o corpo do carro pendesse para aquele lado até, finalmente,
tombar. Breve silêncio. Era aterrador. Alguém soltou um “Puta Merda!”
tão sentido que não deu pra agüentar. Caímos na gargalhada.

Foi aí que alguém teve a idéia de olhar para os celulares. Pois


um deles estava mostrando, com costumava-se dizer, “um pauzinho de
sinal”. Por acaso, era o meu. Disquei o número de alguém conhecido da
prefeitura. A bateria do aparelho só deu tempo para dizer “Busca a gente
na subida da Granja Santa Bárbara”. Como se vê, o lugar já tinha fama.

Pra encurtar a conversa: voltamos para Pereirópolis na Kombi


da Secretaria de Obras. Tivemos que descer para empurrar duas vezes.
A chuva? Essa só parou uns dois dias depois. Depois dessa, o
“Fonforeco d’um zóio só” finalmente foi aposentado.

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Arte

Um par de olhos observava por detrás do vidro uma silhueta


feminina deformar-se lentamente. Encontrou-a escondida em um dos
cômodos da própria casa. Estava nua. Assistia às pequenas mãos e os
pés, delicados, minúsculos, tocando o aço fervente, e em pouco tempo,
queimando. Os braços e as pernas, curvando-se em direções não-
naturais sob os efeitos da temperatura. O cabelo, antes louro e sedoso,
misturando-se indistintamente a todo o resto. Ele achava curioso: a
vítima era em tudo semelhante a uma mulher adulta, porém, em
tamanho menor. Definitivamente, concluiu o carrasco, ela não era como
uma mulher, pois ele sabia que um tanto abaixo do umbigo, na parte
onde as pernas se uniam, nas mulheres mais velhas havia pêlos. Na da
pequena que o calor consumia, era lisa como o resto. Os olhos
aproximaram-se do vidro – ansiavam pelo desfecho. Admirou-se ao
notar que o rosto de sua cativa foi a última porção a desintegrar-se pelo
fogo, conservando até o fim um sorriso casto e estúpido. Já não era mais
um corpo, mas uma massa amorfa e enegrecida. Sem pressa, o algoz
levou os dedos até um dos dispositivos do instrumento de sua arte,
interrompendo gradualmente o alento do fogo até as chamas azuladas
extinguirem. Riu. Em silêncio, para não despertar a atenção da
vizinhança. Esqueceu-se de que o cheiro poderia atrair mais
curiosidades que qualquer gargalhada. Assim mesmo, riu satisfeito e
sem fazer ruído por longos instantes.

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Não teria problemas em evitar os intrometidos, os que sempre
investigavam-no sobre o que fazia como se tudo fosse condenável.
Tinha em abundância o que mais necessitava: criatividade e tempo. A
casa era cercada por um arvoredo sombrio. O que desejasse ocultar aos
curiosos tinha naquele labirinto de troncos, folhas, arbustos, sombras,
formigas e terra o esconderijo perfeito. Especialmente o que fosse
preciso manter em sigilo. Arrastou para lá sua última obra.

Despreocupado, percorreu o espaço entre a casa e o bosque até


mergulhar em sua sombra. A terra não era dura, e ele era habituado a
ocultar coisas sob o solo. Assim, com as mãos, cavou. Jogou no buraco
o pouco que restou da loura. Sorriu, contemplando-a. Lembrou-se que
ali mesmo, a poucos metros, ocultara outras artes suas: a ruiva, que
atropelou; a negra, que usou em seus experimentos com água sanitária;
até mesmo o moço que serviu de alvo para a prática de tiro com arco.
Ninguém jamais soube o que lhes aconteceu. Tinha as mãos,
principalmente as reentrâncias debaixo das unhas, encardidas pelo
negrume da terra do bosque, tantas vezes havia ali enterrado seus
segredos. Atravessou, imundo, o caminho de volta. À distância, vê
alguém chegar em casa pelo portão da rua. Abalou-se no mesmo
instante. Novamente, teria de responder perguntas.

***

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Cássia chega da escola. O irmão está no gramado, com as mãos,
os pés, a camisa, tudo sujo de terra.

— E daí, porquinho?!

Antes da resposta, a menina percebe algo, e apruma o nariz


como quem está farejando.

— Que cheiro de queimado!

— Bah, nem senti. — responde o menino, escondendo as mãos


instintivamente.

— Credo, piá! Como não? — diz Cássia ao abrir a portinhola do


forno do fogão a gás. Dentro há tanto o cheiro quanto uns restos de
plástico derretido. — Acho que a vó esqueceu alguma coisa no forno de
novo. O que será que era?

— Acho que era um pote — diz o menino, olhando curioso,


como se realmente não soubesse de que se trata.

— Bom, seja o que for, Eninho, vai brincar lá fora, vai. Eu vou
limpar isso daqui antes que a vó ou a... — faz uma careta de desdém —
... Luciana cheguem. Ah, melhor!, vai tomar um banho. Tu ta podre de
sujo, guri!

— Ah, não. Eu tomei banho ontem.

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— ‘Tão ta, Cascão. Tu que te entenda com a vó, daí. Agora,
xispa!

— Por que tu quer que eu saia? Vai brincar de boneca?

— Eu não brinco de boneca, pirralho!

— Ah, é verdade! Tu tem catorze, né?! Esqueci que tu “já é


mocinha” — ri.

— Sai daqui, merda! Vai achar o que fazer! Olha aí, ta sujando
todo o chão da cozinha! — Cássia pega uma vassoura, brandindo-a na
direção do caçula. — Sai!

Enio sai, sem reclamar muito. Até à tardinha, o menino atira


pedras nas pombas com o bodoque. Ao cair da noite, janta e faz suas
preces. Já deitado, ganha um beijo e um “Boa Noite” da avó. De olhos
fechados, quase dormindo, planeja o que fará no dia seguinte com outra
das bonecas da irmã.

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Botões

Como de costume, por volta de seis e meia da tarde, Marta abre


o portão de ferro da casa do pai, Seu Ernesto, que depois de viúvo
preferiu viver sozinho. A chaminé de tijolos, mais alta que o telhado da
casa, expelia fumaça. A jovem advogada entra pela porta dos fundos
com a sacola de supermercado. Vê o velhote sentado em um banquinho,
mexendo com as mãos em um dos canteiros de sua horta.

— Vai assar carne hoje, pai?

— Por quê?

— A churrasqueira tá acesa...

— Ah. É só um monte de lixo que eu botei pra queimar.

— Ô, pai... mas quantas vezes eu tenho que falar pro senhor? A


gente não queima mais lixo em casa. O caminhão da coleta passa aqui
três vezes por semana. Além de ser ruim pra natureza, é até proibido! O
senhor não ouve mais o rádio, Seu Ernesto?

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— Não.

— Não? Ué, por quê não?

Ele não responde. Em instantes, a moça surge diante da porta


com as duas mãos na cabeça.

— Pai!! Deus... o senhor foi roubado! Assaltaram a casa, pai! O


senhor nem me ligou! A casa tá vazia e...

O homem permaneceu em silêncio, sem voltar os olhos em


direção à filha. Enquanto arranca a tiririca do canteiro com ajuda de
uma velha faca de mesa, Seu Ernesto lembra-se de como foi seu dia.

***

Dia de pagamento da aposentadoria. Semana antes, a filha


comprou para ele um aparelho de telefone celular. Disse, meio em tom
de ordem – essas coisas que os advogados aprendem uns com os outros
– que ele devia ligar quando quisesse. Ela mesma poderia ir receber por
ele, pagar as contas; bastava ligar e pedir. O máximo que conseguiu foi,
a muito custo, fazê-lo atender o dito cujo quando ela telefonava. Quanto
ao benefício da previdência social, ele mesmo preferia ir buscar. Já
estava mais do que habituado.

Antes de abrir o banco, Ernesto aguardava diante da porta.


Assistiu à fila formando-se logo depois dele. Às dez da manhã, um
rapazinho, desses estagiários magricelos, disse que a partir daquela data

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os pagamentos seriam feitos através dos caixas eletrônicos, para não
haver acúmulo de fila nos guichês. Foi uma choradeira de velhinhos
reclamando, maldizendo o banco, o governo, o gerente e o estagiário,
coitado.

Seu Ernesto, o primeiro da fila, recebe a ajuda paciente do


moço. Inseriu o cartão magnético na máquina que só havia visto de
passagem.

“Qual o valor?” perguntou o rapaz.

“Dois salários”

“Senha” disse, apontando para o teclado da máquina

“Só um pouquinho” falou o velho, abrindo outra vez a carteira,


procurando a papeleta que ele havia recebido no mês anterior das mãos
desse mesmo jovem. Encontrou e deu-lhe o papel com alguns números
escritos à caneta.

“Desculpe. É o senhor mesmo que deve digitar”.

Tremendo um pouco, os dedos ossudos acompanharam o trajeto


dos olhos: papel-teclado-papel-teclado até o último dos algarismos.

“A tecla verde, vô”.

Apertou o botão, já mais seguro.

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“Senha inválida, seu Ernesto”.

Novamente, todos os dígitos saíram da papeleta para as teclas.

“Não deu. Tem certeza de que é essa a sua senha?”

Copiou mais uma vez, e mensagem se repetiu.

“Senhor, a sua senha foi cancelada. Agora o senhor vai ter


que...”

Sem esperar, Ernesto guardou o pedaço de plástico azul, o papel


e a paciência. Virou as costas e ia saindo porta a fora. Atendendo ao
pedido de outros antigos companheiros de fila, engoliu o orgulho e foi
receber seu dinheiro do caixa de carne e osso.

Atravessou a praça procurando desanuviar a cabeça. Entrou na


agência dos correios para esvaziar a caixa postal. Como aceitavam o
pagamento de contas, era uma viagem a menos. Abriu a portinhola,
retirou de lá as correspondências: as que não eram faturas, eram malas-
diretas de cartões de crédito com fotos de pessoas sorridentes de cabelos
brancos. Sentado, descolou as laterais das cartas uma a uma, aguardando
pacientemente a sua vez. Depois de algum tempo, percebeu que todas as
outras pessoas eram chamadas, menos ele. Foi então que uma das
moças-do-correio, a sua preferida, perguntou

“O senhor pegou a sua senha?” apontando em direção à entrada.

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Lá estava, ao lado da porta, uma maquina com botões verdes
onde o povo espiava, escolhia, apertava e sacava um tíquete cuspido por
ela. Amassou as contas, enfiou num dos bolsos e ganhou a rua outra vez.

Estava chateado. Resolveu voltar para casa antes que perdesse a


boa imagem e o autocontrole pelos quais era conhecido. O ponto do
ônibus ficava do outro lado da avenida, defronte à prefeitura. Os carros
passavam sem parar. “Será que deu defeito nessa sinaleira?”. Muitos
minutos depois, um rapaz, soldado do exército, deu um tapinha no
ombro do homem.

“Vô, tem que apertar esse botão aqui pra poder passar”
enquanto fez exatamente o que descreveu. O sinal luminoso mostrou um
homenzinho verde caminhando. Os carros pararam. Ernesto agradeceu,
e atravessou a rua pisando duro.

No ponto de ônibus havia outras pessoas. Jovem ouvia música,


o fone de ouvido ligado a um aparelho menor que seu polegar. Ouviu-se
um trecho de “Pour Elise” e mulher tirou um telefone de dentro da
bolsa. Menininho, alheio a tudo, jogava videogame. Chegou o coletivo,
e todos embarcaram. Era um desses modernos – estavam renovando a
frota.

Aproximando-se do seu ponto, o velhote levantou-se para puxar


a cordinha; surpreso, não a encontrou. Apressou-se para o lado da porta,
pedindo ao motorista que parasse adiante. Ao descer, Seu Ernesto
segurou-se na haste metálica diante dos degraus e, sem querer, meteu o
dedo em um botão vermelho onde lia-se “Pare” que ali estava,

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produzindo exatamente o mesmo som que fazia quando acionava a
obsoleta cordinha. Já estava furioso. Continuou calado.

Desceu. Virou a esquina, andou mais vinte metros e, enfim,


portão de casa. Junto dele chegou o rapaz que faz a leitura do registro da
água, segurando uma parafernalha preta repleta de botões coloridos.

“Boa tarde, seu Ernesto. Olha a sua fatura.” E com um toque, o


trambolho expeliu a conta no mesmo instante. Ernesto respirou
profundamente.

Naquela hora, despencou sobre ele uma idéia, dessas idéias


repentinas e traiçoeiras que chegam sem aviso prévio. Deu meia volta e
foi até o mercadinho da esquina.

“Bom dia, Seu Ernesto.”

“Bom dia, Ataliba.”

“O que era para o senhor?”

“Vê pra mim uma caixa de fósforos. E um litro de querosene.”

***

— Ouviu o que eu disse, pai? Sumiu tudo: rádio, tevê, cafeteira,


torradeira, liquidificador... O senhor tem que registrar uma ocorrência.
E...Minha Nossa! O que é isso? Não tem luz?! Cortaram os fios! Ta me
ouvindo? Pai! PAI!!!

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O homem levanta-se de onde está. Calmamente caminha na
direção da filha. Parado diante dela, enfia dois dedos no bolso da
camisa.

— Abre a mão. – em um tom de ordem que advogado nenhum


consegue impor. A filha obedece. Sobre a palma branca e macia da mão
de Marta, Ernesto deposita um pequeno pedaço de plástico chamuscado:
um botão com os símbolos “O/I”.

— Que é isso?

— Guardei pra ti. Foi o que sobrou daquele telefonezinho que tu


me deu.

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O Causo do Dilúvio

O Patrão criou o homem com a tabatinga da beira de um açude.


Depois, para o índio ter o que fazer, resolveu criar a mulher, rachando o
bonequinho de barro no meio (aquela história de costela e de “imagem e
semelhança” são só algumas das teorias). Deu um assoprão e saíram
andando. Batizou os bonequinhos de Adão e Eva. Daí por diante, os
dois trataram de se conhecer e de dar cagada. Desobedeceram o Criador,
se incomodaram com os filhos, tiveram uma porção de netos flor de
bagaceiros, e por aí vai. Entre a peonada celestial, que muita gente
chama de anjos, corria o boato de que aquele bicho novo, o tal de ser
humano, não ia prestar pra nada.

Quem não gostou nada dessas conversas foi o Dono da


Querência. Mandou chamar os linguarudos que passavam mais tempo
proseando do que nas lides do Universo. Já que a indiada terrena estava
ficando sem-modos, o Altíssimo deu aos anjos a incumbência de
encontrar, no meio da criação, um bicho que fosse bom o suficiente para
ajudar a endireitar a tribo dos filhos de Adão. Muito dotados nas artes da
conversa-fiada, a peonada não hesitou em pedir a Ele que elegesse o
mais eloqüente para ser o embaixador do céu entre a bicharada. A
proposta pareceu justa, e de pronto, escolheu-se um capataz mui
conhecedor da Estância chamado Gabriel. Os outros foram enviados
para arrumar o alambrado da Via-Láctea que andava caótico uma
barbaridade.

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O diplomata foi sem reclamar. Apreciava a campereada, e
sobretudo, andar solito pela imensidão do pago, que naqueles tempos
era muito maior. Caminhando a despacito, mascando uma folhinha de
hortelã, Gabriel teve uma idéia. Fez um chamado, desses que só o
pessoal que trabalha pra Ele consegue. Num vá, apareceram três bichos
detrás de uma macega: um gato-do-mato, um cachorro e um cavalo.
Sentaram e prosearam — dizem que o gato conhecia a erva-mate, e essa
pode ter sido a primeira roda de chimarrão da história. O Emissário, mui
respeitoso, disse-lhes: “O Patrão quer que um de vocês seja o camarada
do homem e da mulher”. Bicho é um tipo de gente muito honesta, e se
gosta ou não da proposta, já mostra logo de cara. Pois aceitaram os três.
O capataz passou a tarefa, e lá se foram pra onde os homens moravam.

Em pouco tempo, a parentada dos que gostam de comer maçã


afeiçoou-se muito aos animais. Os homens, porque eram úteis: o
cachorro era companheiro pra caça, o gato limpava a casa dos roedores
e o cavalo, mesmo precisando domar antes, virou instrumento de
trabalho. As mulheres, porque os bichos eram fofinhos, dava pra
pentear, botar fita mimosa, vestir aquelas roupinhas e dar nomes para
eles. A coisa desembestou quando os “camaradas” se acostumaram com
o jeito de viver dos donos. O gato virou num inútil que só dormia e
ainda se sentia o dono da casa. O cachorro só fazia o que mandavam se
lhe dessem comida ou brincassem com ele (em geral as duas coisas). E o
cavalo, bem, o cavalo continuou trabalhando; porém a indiada se coçava
e puxava o ferro branco, e descobriram que guerrear montado era muito
mais divertido.

30
Gabriel ficou guspindo formiga de tão brabo. Resolveu mudar
de tática. Enveredou-se pra cidade mais próxima. Saiu perguntando se
alguém conhecia um único homem que valesse a bóia que comia. Pra
sua surpresa, existia um: o Seu Noé. Este o recebeu muito bem, ofereceu
um mate — ah, sim; o gato ensinou pra todo mundo o hábito de tomar
chimarrão — proseou um pouco sobre seus guris, Sem, Cam e Jafé,
sobre a morte do Seu Abel, contra-parente que foi morto ainda moço
pelo irmão — tem gente que gosta de uma desgraça... O Embaixador
Gabriel, firme no seu propósito, botou o talento à prova e inventou, na
hora, uma história do arco da velha. Disse mais ou menos assim:

“Olha, Seu Noé. A coisa não ta fácil pros lados de vocês, os


herdeiros do Seu Adão. O Patrão Velho anda indignado com as
malcriações da humanidade e resolveu botar a casa abaixo. Só que tu,
vivente, tem crédito com o Altíssimo! Ele sabe que tu é bom, generoso,
correto e tem uma mão boa pra cuidar da criação. Entonces, sem
delongas, Deus quer que tu faça o seguinte: junta um casal de cada tipo
de bicho, acolhera todos eles mais tu, tua mulher e os teus piá e as
prenda deles, constrói uma balsa de madeira de lei que caiba esse povo
todo. Despois, pinta a dita com betume pra cobrir as fresta. E
providencia umas galocha, porque ta vindo uma tormenta daquelas.”

Inflaram-se feito uns perus, de orgulho de si mesmos. O Noé


porque tava grandão com Jeová, e o querubim, porque daquela vez
parecia que o plano ia dar certo. Ora, se passar dias e dias enfurnado só
com os bichos e a família não endireitasse o homem, então era porque
não tinha jeito mesmo. Dias depois sucedeu o tal do Dilúvio que tanto
falam. Há quem diga que foi mais ou menos por essa época que nasceu
o Ariri Pistola, que não viu o Dilúvio, mas pisou no barro.

31
O resultado da empreitada foi que o Gabriel, além de tomar uma
baita mijada, deixou de ser capataz e virou estafeta. Ninguém mandou
sair inventando história e inundando mundo por conta. Depois disso,
cada vez que tinha que mandar um recado pra gauderiada cá na Terra, o
Patrão Velho mandava o Gabriel falar timtim por timtim o que Ele tinha
dito.

32
O Caso Jersey

Meu nome é Rafaela M. Sou médica veterinária, sócia-


proprietária de uma petshop e clínica de pequenos animais, junto com
meu marido Breno S, jornalista e fotógrafo. A história de como nasceu
essa empresa é bastante curiosa, e pode parecer até um pouco absurda.
Para quem quiser conferir, temos ainda todas as provas de que tudo o
que vou contar é a mais absoluta verdade.

Foi em 1995, no mês de outubro. Lembro que o assunto do dia


era aquele pastor que chutou uma imagem de Nossa Senhora em um
programa de TV. Eu estava no terceiro semestre da faculdade. Breno, a
esta época, estava quase no final do curso de Jornalismo. Fazia um
estágio no Diário Pereiropolitano para o qual escrevia como “freela”
desde o segundo grau – essas coisas de padrinhos. Em todo caso, ele já
era bastante conhecido por parecer mais um detetive que um repórter.
Nós ainda não namorávamos; eu, tremenda CDF, bolsista, certinha. Ele,
popular na universidade, na redação, na rua, no diretório acadêmico.
Mas morávamos no mesmo prédio, e éramos muito amigos.

33
Aconteceu por aqueles dias um evento curioso, um crime
insolúvel para o qual a polícia não apresentava conclusões – o tipo de
caso preferido do Breno. O agricultor Ari F. era um funcionário público
aposentado (ou um político, não lembro bem) que tinha uma
propriedade na zona rural de Pereirópolis. Era uma fazendinha tão
bonita e bem cuidada que parecia de brinquedo. Sua generosa
aposentadoria era toda investida naquele lugar. O que mais lhe dava
prazer adquirir eram os animais. Não eram bichos quaisquer, mas
verdadeiros campeões de suas raças. Eram ovelhas, galinhas, cavalos,
canários, cães e gatos, uma verdadeira Arca de Noé. De todos estes, seu
xodó era Princesa, uma vaquinha Jersey que – segundo os relatos dos
concursos que ela venceu – chegou a dar cinqüenta litros de leite em um
único dia. Um luxo de vaca.

Naquela sexta-feira treze, o seu Ari registrou a ocorrência logo


de manhã na D.P. de Pereirópolis: Princesa fora encontrada morta com
um tiro na cabeça. O Inspetor Silva acompanharia o inconsolável
proprietário da vítima até sua idílica fazenda. O fotógrafo que prestava
serviço para a Delegacia – para o total desgosto do policial – era o
Breno.

Foi difícil chegar até a fazenda por causa da estrada, que virou
um barro só com a chuva da véspera. A cena do crime era a seguinte: a
vaquinha estava caída de lado dentro do curral, com as pernas
estendidas. Havia um buraco escuro na testa e uma poça de sangue no
chão, ao seu redor. Não havia nenhum outro indício da autoria, nenhuma
marca de pneu, nenhuma pegada. Nada. Breno começou a reportagem
ali mesmo. Seu Ari não se importou, mostrando-se muito solícito às
suas perguntas – diferente de Inspetor Silva, que o achava um estorvo.

34
Segundo o dono da propriedade, não aconteceu nada
extraordinário, além da forte chuva de granizo e a tempestade de raios,
entre as onze a meia-noite. O disparo só pode ter acontecido nesse
horário, porque o barulho das trovoadas certamente abafaram o estouro
da arma.

A primeira coisa que o jovem jornalista lembrou foi o fato de,


na área rural, os moradores terem armas de fogo e cães de guarda. As
armas de seu Ari, um revólver .38 e uma espingarda calibre .12, não
eram usadas havia muito tempo. Mostrou-as: estavam empoeiradas,
guardadas na parte mais alta de um armário. Quanto aos cachorros, estes
deviam ter contraído alguma virose, pois desde o começo da semana
passavam a maior parte do tempo dormindo. Seria tristeza demais para
ele se seus cães também morressem.

Inspetor Silva pediu para falar com as outras pessoas da casa,


em caráter informal, uma vez que aquilo não constituía um depoimento.
Na Granja Itália viviam Seu Ari, sua esposa Teresinha, o filho mais
velho Tomás, e a caçula Tatiana.

A esposa não pareceu nada abalada com a morte da vaca


Princesa. Respondeu às perguntas sem titubear, mas acrescentou pouco
ao que já havia sido dito pelo marido. Disse apenas que só conseguiu
dormir depois que a chuva terminou. Era uma mulher bonitona, muito
bem tratada, com as unhas e os cabelos arrumados. Pelo que aparentava,
Dona Teresinha não passava nem perto de uma estrebaria. E,
provavelmente, seria ainda menos provável que empunhasse uma arma
para matar uma vaca a sangue frio.

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O rapaz, por outro lado, era bem mais rude. Suas respostas eram
monossilábicas e algumas questões sequer dignou-se a responder. Por
fim, já irritado, saiu da sala batendo a porta, falando em alto e em bom
som “Quem se importa com essa vaca de merda?”.

A moça estava em estado de choque. A despeito dos cuidados


que a mãe teve para tentar acalma-la, e talvez silenciá-la, Tatiana tinha
certeza de que o assassinato de Princesa só poderia ser um aviso de seu
ex-namorado. O tal era o estereótipo do rapaz rico e mimado, herdeiro
de uma fazenda gigantesca (que, muito apropriadamente, os jovens
menos abastados chamam agro-boy). Aquilo seria um aviso, ou uma
ameaça a ela e à família. Esta foi a declaração que pareceu a mais
plausível ao policial. Breno preferiu não apressar seu julgamento.

Seu Ari estava bastante emocionado. Já se aproximava do meio-


dia, quando recebeu uma ligação que estava esperando: um comerciante
local aceitou pagar pela carne da premiada vaca uma cifra nada
desanimadora. Seu Ari queria mesmo era enterrar a pobrezinha à beira
do açude de que ela tanto gostava.

Por fim, Silva questionou se a família tinha algum outro


suspeito além do ex-namorado da caçula. O homem afirmou que não
cultivava inimizade com ninguém. Todos na cidade sabiam disso: Seu
Ari era (e ainda é) uma doce criatura. Breno, enquanto o policial fazia as
últimas perguntas, observou discretamente os outros familiares. Quando
o dono da casa asseverou não possuir nenhum inimigo, notou que sua
esposa ficou com o olhar distante, voltado para o chão, dando um longo
suspiro.

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Assim que chegaram de volta na cidade, Breno correu para seu
laboratório fotográfico. Silva dispensou-o (proibiu-o) de averiguar o
suspeito. Na verdade, Breno estava com uma outra idéia, que não o
abandonou desde a hora que tirou as fotografias. Seu laboratório era o
mais artesanal possível – que ainda hoje ele conserva com muito
carinho, apesar de já ter equipamento bem mais sofisticado. O fato é que
as fotos só estariam prontas em algumas horas. Neste intervalo, o
fotógrafo deu lugar ao detetive-amador.

É nesse ponto que eu entro na história. Eu costumava ser, de


certa forma, a mãe dele. Ou, no mínimo, a pessoa que o alimentava.
Breno é o tipo de pessoa totalmente inepta na cozinha, capaz de cortar a
própria jugular com uma faca sem ponta tentando fazer um sanduíche.
Sendo sua vizinha de porta, seu apartamento era, o mais das vezes, um
dormitório. Isso quando ele não se passava na hora – ou no álcool – e
dormia no meu sofá. Estava “vesgo” de fome, e só então deu-se conta
que eram quase cinco da tarde e ele não havia comido nada. No tempo
em que preparei o lanche e enquanto o mesmo era devorado, Breno
contou-me tudo o que já contei a vocês. E, em seguida, quis saber
algumas coisas sobre minha área.

“Dá para matar uma vaca de quase uma tonelada só com um


tiro”, ele perguntou.
“Sim. Há alguns abatedouros que preferem dar um tiro com uma
arma de alta-pressão para que o animal não fique estressado”, respondi,
quase entendendo onde ele queria chegar.
“Pois, eu tenho uma suspeita de quem seja o autor”
“Quem?”

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Breno me olhou bem nos olhos, e assim ficou por alguns
segundos intermináveis, com uma expressão enigmática, indecifrável.
Ele riu com o canto da boca. Da cadeira onde estava, pulou na direção
do telefone. Discou consultando uma agendinha minúscula.

“Alô, Seu Ari. Ah... Tomas. Desculpe, as vozes são parecidas.


Aqui é o Breno, o fotógrafo da pol... sim, isso. Era eu mesmo. Não...
não..., não é isso. Olhe, eu tenho uma amiga que é veterinária. Ela disse
que não se importaria de dar uma olhada nos cachorros de vocês.
Quando? Domingo, pela manhã? Claro, sem problemas. Ah... não, não.
Ela não vai cobrar nada, não. Até domingo, então. Um abraço.”

Era óbvio que eu já havia sido envolvida nos planos dele. Isso
não era raro. Teve uma vez que ele pediu para eu fazer um corte com
um bisturi em sua perna só para ele ser atendido no pronto-socorro, e
fotografar os pacientes sendo atendidos no corredor. O sábado passou
muito rapidamente, e eu não o vi o dia inteiro. No domingo, saímos
cedo de casa. Fomos no seu Fusca 76 até a sede da Granja Itália. Dentro
do porta-luvas encontrei um pacotinho da farmácia, contendo seringas,
luvas descartáveis, tubos plásticos para coleta de sangue, daqueles de
laboratório de análises clínicas. Ele me olhou e riu

“Ué, temos que prestar um serviço de qualidade, doutora Rafa!”

Fomos conversando amenidades. O pastor que chutava santas


fora totalmente esquecido; pelas esquinas, só se falava na morte da
Princesa.

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“Você lembra de uma notícia, há uns cinco anos atrás, mais ou
menos depois do impeachment do Collor, que o governador do estado
viria para um almoço com os criadores daqui da cidade?” ele perguntou
enquanto sintonizava uma estação de rádio.
“Não muito bem. Por quê?”
“Lembra onde foi que ele se hospedou?”
“Ah, sim. Lembro sim. Ele ficou justamente na Granja Itália,
porque o Seu Ari era seu amigo.”
“Exato. E lembra também o que aconteceu depois dessa visita?”
“Cara, não recordo. Eu sempre fui desligada das notícias...”
“Pois começaram a construir o Frigorífico Pereirópolis S.A.
pouco tempo depois. Um monte de gente conseguiu emprego, e os
granjeiros da região só tiveram lucro com isso. Muitos pequenos
empresários e comerciantes começaram a depender do Frigorífico.”
“Sim, e daí? Não to conseguindo entender.”
“Calma... já chego lá. Teve bastante gente que prosperou com a
vinda dessa empresa. Mas teve gente que não gostou nem um pouco
disso.”
“Quem?”

Não deu tempo de ele terminar. Havíamos chegado à entrada da


granja.

Nosso anfitrião foi Tomas, que ficou em casa. Os pais e a irmã


foram à missa. Diferente dos modos que teve quando recebeu Breno e o
Inspetor Silva na sexta, o rapaz tratou-me com muita distinção e
cordialidade. Muito educado, conduziu-nos até o canil.

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O canil era espetacular, um primor de organização do espaço e
limpeza. Nem parecia que cães moravam ali – talvez uma limpeza
recente feita por Tomas, mas, mesmo assim, o espaço era um luxo.
Coisa de revista. Havia ali sete cães, enormes. Seu ari, pelo visto,
apreciava os molossos: um casal de Rottweillers, um Dogue Alemão,
um Mastiff e uma cadela Boxer com dois filhotes. Fiquei consternada
com aqueles cachorrões, dormindo pelos cantos. Bem, eu sabia que
sonolência nos cães é, de fato, sintoma de uma virose até bem comum, a
parvovirose – um tipo de gastro-enterite. Comecei a especular

“O que eles costumam comer, Tomas?”


“Ah, essa ração aqui”, respondeu ele, pegando o saco quase
vazio em uma guarita de tijolos, onde ficavam os apetrechos do canil
(que capricho!). Era uma ração tradicional, até um pouco cara por causa
da marca. Olhei a data de validade, os componentes... tudo normal.
“E é você mesmo que compra a comida deles?”
“Normalmente o pai ou a mãe, não sei. Esse mês foi a mãe,
porque o pai estava em Esteio com a Princesa, numa mostra
internacional de gado leiteiro.”
“Outro prêmio?” interveio o Breno, que eu já havia até
esquecido.
“Ah, sim.” Respondeu o rapaz, sem entusiasmo.
“E quem trata os cachorros?” perguntou outra vez o jornalista-
detetive.
“Só eu.” devolveu seco. Deu para perceber que os dois
exemplares machos da nossa espécie não se davam bem desde que se
conheceram. A minha ficha demorou a cair que, na presença de um
exemplar fêmea, eles tendem a competir por atenção. Nesse caso, a
fêmea era eu. Que burra! Nem notei.

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Fiz a coleta de sangue, de fezes, até da ração dos cães,
exatamente como Breno queria. Voltamos para a cidade. No caminho,
notei que ele estava mais calado que o costumeiro, com a cara fechada,
cenho cerrado. Tentei puxar conversa. Estava emburrado. Deixei-o
quieto, porque era provável que ficasse ainda mais aborrecido.

Perto de casa, já estava mais calmo. Acho que ele tinha a cabeça
tão ocupada pensando nas mil e uma possibilidades de aplicação de suas
teorias que acabou esquecendo que estava bravo comigo. Quando
paramos, ele foi diretamente para o orelhão defronte ao edifício. Não
pude ouvir a conversa, mas pela expressão que ele fez, parece que sua
conversa mole teve efeito. Voltou rapidamente para o carro,
perguntando

“Vai fazer o que hoje, doutora?”


“Se você deixar, vou continuar escrevendo meu artigo.”
“Então, você vai fazer uma extra-curricular hoje. Vamos pro
laboratório da Élida.”
“O quê? Hoje é domingo, esqueceu?”
“Pois domingo é o dia perfeito para cobrar uns favores”, disse
ele, arrancando o Volkswagen rumo ao centro.

Sim, a Élida, dona do laboratório, devia um favor para Breno,


sobre o que preferi nem questionar. Entregamos o material, sem dizer
que era de cachorro. Ruim foi explicar a ração. A moça deu a previsão
de que o resultado só sairia na manhã seguinte. O trabalho de conter a
ansiedade evidente de meu amigo, agora, seria meu.

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Em casa, começamos a divagar sobre os suspeitos. A partir do
que ele havia me contado, Breno quis que eu fizesse uma análise de
quem eu achava ser o culpado. Enquanto eu falava, fiz algumas
anotações em um caderno. Ele não interferiu em nada.

O ex-namorado de Tatiana era minha principal suspeita.


Ameaçar a família tirando a vida do bicho mais querido do Seu Ari pode
ser uma boa forma de intimidação. Eu concordo com o Silva nesse
aspecto: acho que ele, o agro-boy, é o número um.

Tomas tinha ciúme da vaca. Ele teria ciúme dos outros bichos
também, e pelo que parece, ele gosta apenas dos cães. Teria sido um
crime passional? Será que os outros bichos não estavam sob uma
ameaça, com o assassino dentro de casa?

Dona Teresinha pode tê-lo feito – ou mandado fazer, o que é


mais provável. Ela parece ser bem materialista. Afinal, uma vaca que
devia custar algumas dezenas de milhares de reais – ou dólares, não
entendia bem a cotação das vacas – certamente renderia, com sua morte,
uma boa grana do seguro.

Seu Ari também teria motivos para atirar em Princesa. Talvez os


mesmos de Dona Teresinha. Entretanto, acho que ele era apaixonado
pela mimosa. Duvido que ele tenha cometido o bovicídio.

Por último eu coloco a Tatiana. Ela era a que, a meu ver, tinha
menos motivos para atirar na Jersey.

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Breno ouviu-me pacientemente, silenciosamente. E assim ficou
por mais alguns minutos, como se estivesse ruminando o que eu havia
dito.
“Bem...” disse ele, me deixando apreensiva. “Há algumas coisas
que eu descobri, e outras que eu fiz algumas ligações que você não
poderia ter levado em conta porque não tinha conhecimento”.
“É mesmo? E sobre quem recai sua suspeita?” eu perguntei,
fingindo estar ofendida por não ter minha excelente capacidade dedutiva
valorizada.
“Quer saber mesmo? Acho que nenhuma dessas pessoas que
você citou matou a Princesa.”
“Ué? Há mais alguém envolvido?”
“Vamos esperar o resultado dos exames. Amanhã eu conto
quem é o culpado.”

Fiquei morrendo de curiosidade. Pra falar a verdade, fiquei até


furiosa porque, no fim das contas, Breno conseguiu conquistar meu
interesse para esse caso. Já estava ficando tarde, eu tinha sono, os
trabalhos da faculdade ainda me esperavam. Mandei-o pra casa. Mesmo
que ficasse a uma parede de distância, eu precisava ficar um pouco
sozinha. Quando fui fechar a porta, como se fosse a coisa mais natural
do mundo, Breno me beijou. Assim, sem mais nem menos. Foi nesse
exato instante que começamos a namorar. Acabei não retomando meu
artigo, e o Breno também não foi pro apartamento dele.

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Era cedinho da manhã de segunda. Nas segundas eu costumava
dormir um pouco mais, já que minhas aulas eram somente à tarde. Nem
percebi que ele havia saído e já estava de volta. Estava com as mãos
para trás.

“Nós temos o nosso culpado”, disse, entregando-me dois


envelopes, um branco e um pardo.

No primeiro estava o resultado dos exames de sangue, de fezes,


e o da ração (!) do cachorro. Havia uma substância química incomum.
Ou melhor, comum apenas em pessoas que estão sob efeito de
sedativos.

“Isso quer dizer que...”


“... quer dizer que os cachorros não estão doentes, Rafa. Estão
dopados!”
“E então? Alguém misturou anestésico na comida deles. Mas só
pode ter sido alguém da família, certo?”
“Não necessariamente. Você se lembra que eu comentei sobre
um cara que não gostou nada da vinda do frigorífico aqui pra
Pereirópolis? Esse cara é um certo Doutor Orlando.”
“Doutor Orlando... nunca ouvi falar”
“Deve ter ouvido sim. Pois esse Seu Orlando era podre de rico
antes do Frigorífico instalar-se aqui. Dizem que ele ganhava rios de
dinheiro vendendo uma ração para bovinos que só a empresa dele tinha
a fórmula. Quando veio a empresa grande, e que começaram a fazer
uma inspeção pra valer no rebanho bovino local, acabou-se descobrindo
que a ração que o tal Doutor Orlando produzia tinha uns metais pesados
que podiam causar câncer em quem consumia a carne proveniente dos

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bois que se alimentavam dela. Não precisa nem dizer que a fabriqueta
do Doutor faliu. Com isso, ele tinha mais de um motivo para detestar o
Seu Ari, já que todo mundo diz que o Frigorífico só veio para cá porque
o governador, amigo dele, facilitou as coisas. Hoje em dia, o homem
tem um mini-mercado, perto da praça do hospital.”
“Que história mais maluca, Breno. Mas e aí? Você está achando
que esse Doutor Orlando foi quem matou a vaquinha.”
“Quer mais algumas evidências? Os cachorros da fazenda não
estavam contaminados por virose nenhuma, mas dopados, anestesiados
por causa de uma substância tranqüilizante que estava onde? Na ração
que eles comiam. E o tal Seu Orlando pode, perfeitamente, ter fabricado
a tal ração.”
“Certo, mas... e como é que ela chegou lá?”
“Como? Quem foi que comprou a ração para os cachorros da
Granja Itália nesse último mês?”
“Segundo o Tomas, foi a mãe dele, Dona Teresinha. E o que
isso tem demais?”
“Aí está o coice da vaca! Você lembra que eu achei muito
estranha a reação da Dona Teresinha quando o Seu Ari falou para o
Inspetor Silva que não tinha inimigos?”
“Lembro, sim. Você disse que ela estava com o olhar perdido,
deu um suspiro profundo e tudo mais.”
“Pois você não sabe o que eu descobri. Sábado eu fui visitar a
minha mãe, que tem uma memória de elefante...”
“Foi por isso que eu não te vi o dia inteiro.”
“Pois então. A mãe lembra direitinho de um “bafafá” que
aconteceu aqui em Pereirópolis, quando ainda se chamava Vila da
Pereira, distrito de Araucária. Pois o Seu Ari veio trabalhar aqui,
representando algum órgão do governo – ela acha que ele era militar. E

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ele já estava ficando rico, e comprou as terras onde hoje é a Granja
Itália. E foi nessa época que ele conheceu a Teresinha, que veio a se
casar com ele e dar-lhe um casal de filhos.”
“Que bonitinho... ta. E daí?”
“E daí que a Dona Teresinha, na época, era noiva de outro cara.
Chuta quem era o cara?”
“Não! O Doutor Orlando?”
“Sim. O Doutor Orlando! A mãe diz que eles nunca deixaram de
se ver, e que, volta e meia, quando o Seu Ari viajava pras exposições de
sua bicharada, ela ia até o mercadinho do Orlando para vê-lo. É
provável que a ração que deixou os cachorros meio grogues foi
comprada lá.”
“Mas é claro! Ele tinha todos os motivos pra se vingar do Seu
Ari! Foi lá e matou a Princesa, a vaca premiada do Seu Ari! Breno, meu
Deus, você é um gênio!”
“Ei. Eu nunca disse que o cara matou a vaca.”
“Hein? Agora é que eu não entendi mais nada!”
“Olha isso”

E deu-me o segundo envelope. Dentro dele, havia as fotos que


ele tirou da cena do crime. Princesa, de língua de fora, com a cabeça
ensangüentada e um buraco no meio da testa. Uma poça vermelha ao
redor da pobre vaquinha Jersey. Outras fotos mostravam o lombo da
vaca, o curral e os arredores. E duas ampliações enormes. A primeira
era da bunda da vaca. A segunda, do furo feito pela bala.

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“Qual é, Breno” eu reclamei “precisava ampliar essa? Que foto
mais feia...”
“Rafa. Você conhece isso muito melhor do que eu. É um animal
morto”
“Mas isso é o tiro na cabeça da pobrezinha.”
“Olha melhor.” disse, confiante. E eu olhei. Prestando atenção,
dava para perceber que aquele buraco de bala era, de fato, muito
esquisito. Então eu percebi o quanto aquilo era absurdamente ridículo. E
gritei, com o dedo em riste para a foto “Rá! É maquiagem! Isso aqui é
maquiagem”
“Agora olha a foto da bunda da Princesa” ele falou, pondo a
outra fotografia diante de mim. Perto das ancas, no lugar bem escolhido,
havia dois pequenos pontos vermelhos sob o pelo.
“Então isso quer dizer que...”
“Quer dizer que a Princesa não foi morta. Isso foi um golpe. Ela
recebeu duas injeções, de algum anestésico muito potente, ou uma dose
muito alta. A vaquinha estava tão dopada que pareceu morta. Ela não foi
assassinada, Rafa. Foi roubada debaixo dos bigodes do Seu Ari.”

Eu fiquei estática. Abismada. Boquiaberta. Afônica. Tudo fazia


sentido. Breno desvendou o quebra-cabeças em três dias, coisa que
poderia levar anos sem nunca ter uma solução pela polícia.

Levamos essas conclusões para a polícia, ou melhor, para o


Inspetor Silva, além dos resultados dos exames, as fotos – que ele
mesmo não havia olhado com a atenção devida. Depois disso, bastou
uma das “conversas informais” do Silva para fazer o Seu Orlando cair
na armadilha. Quando o processo contra ele foi aberto, e suas contas
bancárias investigadas, descobriu-se que Princesa havia sido vendida

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por ele para um fazendeiro uruguaio, tão dado a falcatruas quanto
Doutor Orlando, por aproximadamente quinze mil reais. Seu Ari não
teve dúvidas. Mandou buscar sua Jersey campeã de volta. O caso teve
alguma notoriedade no estado, e acabou, depois, virando piada em
Pereirópolis. Doutor Orlando acabou condenado por quase uma dezena
de crimes contra o patrimônio e a saúde pública, sendo obrigado a pagar
uma indenização por danos materiais e morais ao proprietário da vaca.

A propósito, foi com essa indenização que o Seu Ari montou a


clínica e deu-a de presente para mim e o Breno. O nome, obviamente,
foi ele quem escolheu: Clínica Veterinária Princesa.

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Os Gatos de Pereirópolis

Há muito tempo, mais ou menos na época em que o Ariri Pistola


estava ficando rico levando mulas para São Paulo, aconteceu essa
história. Pereirópolis ainda se chamava Vila da Pereira. Era um lugar
tranqüilo, e ninguém tinha motivo para desconfiar ou querer mal aos
seus vizinhos. Aliás, todo mundo era vizinho, já que viviam por aqui
apenas trinta famílias. Todos se conheciam e, como se pode imaginar,
um sabia da vida do outro.

Quando os tropeiros fundaram a vila, morava aqui uma


benzedeira, muito, muito velha, miudinha, de cabeça branca e pele
enrugada como uma uva passa. Não era bugra, nem correntina, gringa
ou alemoa, e também não falava o português. Apesar disso, entendia
tudo o que lhe diziam e, do seu jeito, se fazia entender — tanto que até
hoje se sabe o nome que ela usava: Divige. Outra coisa sobre a velha
benzedeira que virou lenda eram os seus gatos. Pelo que ouvi falar, a
mulher vivia com mais de cem gatos dentro de casa, de todos os tipos,
cores e tamanhos. Mas a gente sabe que os números de uma história
contada de boca em boca tendem a aumentar.

Não havia hospital por perto — e olhe que perto naqueles


tempos era bem diferente do que é hoje. As primeiras crianças nascidas
aqui vieram ao mundo com a ajuda da Véia Divige, que era uma ótima
parteira. Além disso, quem sofresse de alguma mazela, bicheira, mal-
estar, diarréia, dor, machucadura ou torção era levado imediatamente

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para ser benzido pela velha. Ela fazia o serviço com brasa na ponta de
uma tesoura. Fazia também umas chapoeiradas de plantas que ela
sempre tinha no casebre de pau-a-pique. Quando não estava benzendo
ou ajudando uma mãezinha a parir, a velha estava ao redor da casa,
fazendo suas medicinas. Moía ervas, folhas e raízes num pilão feito de
toco com um socador duas vezes maior que ela. Dona Divige era a
médica, a farmacêutica e a farmácia da Vila da Pereira.

Nessa época, chegou à cidade um grupo de andarilhos que veio


dos lados de Passo Fundo. Ninguém soube dizer se eram ciganos,
artistas de circo, comerciantes, ou só vagabundos mesmo. Logo que
chegaram, um rebuliço de opiniões controversas correu pela vizinhança.
Permitiram que ficassem nos arredores da vila, com a condição de não
causarem transtornos.

Dentro de pouco tempo, os moradores começaram a perceber


coisas erradas. No início, sumiram miudezas como roupas de varais,
galinhas dos terreiros, ovelhas do pasto. Depois, objetos de valor,
subtraídos de dentro das casas: moedas, jóias, facas de prata. Até o
ostensório da capelinha desapareceu sem qualquer vestígio do ladrão.
As suspeitas, naturalmente, recaíram sobre os forasteiros. Apesar de
abrirem seus casebres para quem quisesse procurar os objetos roubados,
nada era encontrado, e a desconfiança contra os tais só aumentava.

Num certo fim de tarde de sexta-feira, uma das moças da vila


não voltou para casa. A comunidade, posta em polvorosa pelos pais da
menina, armou-se com paus, pedras e ferramentas de trabalho e
arremeteu em peso contra os estrangeiros. Pegos de surpresa, os
forasteiros não puderam reagir a tempo. Tudo indicava que os fulanos

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não escapariam vivos. Numa tentativa de defesa, o chefe do bando
levantou a suspeita de que Dona Divige, a benzedeira, era a responsável
pela desgraça. Segundo ele, a velha era uma bruxa, e eles, na verdade,
eram os encarregados de capturá-la. A prova da culpa eram os gatos. Os
animais eram os companheiros da feiticeira, criaturas vindas do inferno
que, a cada década, precisavam alimentar-se de uma virgem em uma
sexta-feira de lua cheia.

Convencida pelos argumentos do homem, e incentivada por ele,


a turba de aldeões mudou de direção. Em minutos, acometidos pela
fúria, homens, mulheres e crianças da Vila da Pereira investiram contra
a minúscula casa da rezadeira. Misteriosamente, nem a velha nem os
gatos estavam mais lá, o que, para todos, foi a prova necessária para
condená-la. Atearam fogo em seus míseros pertences, acompanhados de
gritos e expurgos contra os maus espíritos, entoados pelos que se diziam
caçadores de bruxas.

Uma busca durante toda a noite foi conduzida pelos maridos e


primogênitos da aldeia nos matos das redondezas. Os forasteiros,
rapidamente promovidos a heróis, foram com eles. Hora após hora, e
nenhum sinal da Véia Divige. Quando a madrugada ia avançada e a lua
cheia estava no meio do céu, ouviu-se um grito medonho, de gente
sentindo muita dor, “Acuda!”, seguido de uma barulheira, como se fosse
uma briga de gatos por um pedaço de carne. Em seguida, outro berro,
ainda mais terrível. Depois outro, e mais gatos, e outro, e muito mais
gatos. Foi o horror! Os homens da vila estavam embolados,
amedrontados, acuados feito bichos indefesos. Findos os gritos, os
valentes correram a toda velocidade de volta para casa. Ninguém
dormiu aquela noite.

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Assim que o dia nasceu, os que haviam ficado de guarda
correram chamar todos para ver o inesperado. A rapariga, que todos
julgavam morta, apareceu com a cara amassada de quem acabou de
acordar. Disse que havia comido umas frutinhas diferentes perto do
açude e pegou no sono. Foi grande a comoção pela volta da mocinha,
todos dando graças a Deus. Porém, o mal já estava feito. A casa da
benzedeira ainda fumegou por muitas horas.

Passado o susto, perceberam que, depois da incursão ao mato,


nenhum dos forasteiros retornou. Protegidos pela luz do dia, os
moradores percorreram o mesmo caminho feito na madrugada. Nem é
preciso dizer que dos estranhos “caçadores de bruxa” restou muito
pouco. Cena feia uma barbaridade. No lugar onde os ditos cujos
montaram suas taperas, foi fácil encontrar o buraco onde haviam
enterrado um baú, cheio de tudo o que roubaram naquela e, muito
provavelmente, em outras vilas.

A Véia Divige, essa sim desapareceu junto com seus bichanos.


Ninguém conseguiu mais encontrá-la para pedir pelo menos um “me
desculpe”.

Hoje em dia, aqui em Pereirópolis, quando um gato


desconhecido aparece em roda de casa, é costume dar de comer e tratar
o bicho muito bem. E se cuidar para não fazer nenhuma besteira com
pessoas idosas, ou com crianças, ou cometer alguma injustiça. Nunca se
sabe quando é que a Véia Divige vai voltar para cobrar o que fizeram
com ela.

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O Causo da Primeira Festa

Prólogo: A Formatura

Antes do princípio, o Patrão colou grau na Faculdade de


Arquitetura. Deixou a toga dependurada em Alfa-Centauro e jogou o
capelo, dando origem à Via-láctea. Arremangou a camisa e foi criar o
mundo. Aí sim, no princípio, criou o céu e a terra.

A Festa

Naquela época, o Criador ainda enfiava, ele mesmo, a mão na


massa. Por seis dias inteiros, trabalhou feito uma mula – que só é o que
é em homenagem a Ele – entreverado no monte de lama que era a Terra.
Bem de tardezinha, Deus se lavou num açude e, para descontrair, fez um
bonequinho de barro e lhe assoprou o nariz. Depois do trabalho feito, o
Patrão admirou o mundo com aquela pose de açucareiro, mui satisfeito
com o resultado. Bateu nEle uma baita vontade de comemorar. Por não
ter muita companhia, chamou a bicharada para, juntos, fazerem aquele
baile.

Como ainda não havia papel-cartão nem impressora off-set para


fazer os convites, O Patrão resolveu pôr em prática uma teoria dos
tempos da faculdade. Ali por seis da tarde, chamou o bonequinho-de-
barro para espraiarem eles dois a notícia da festa no boca-a-boca. Em

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instantes já havia mais um convidado: a Serpente. Esses três chamaram
mais um, e já eram quatro. Em um minuto, esses quatro viraram sete.
Nos sessenta segundos seguintes, sete viraram onze; onze viraram
dezoito; dezoito viraram vinte e nove. Era tanto bafafá que em dez
minutos o Salão do Éden já tinha cento e vinte e três. Quando já batia
vinte e cinco pras sete, o Salão contava com trinta e três milhões,
trezentos e oitenta e cinco mil, duzentos e oitenta e dois convidados.

Foi um verdadeiro banquete: fartura de leite e mel, erva verde,


erva que dava semente e frutos de árvores frutíferas segundo suas
espécies. Até hoje, quando alguém ainda faz um baile, um jantar ou um
churrasquinho no fim de semana, o faz tentando imitar a festa da
primeira e melhor sexta-feira de todos os tempos.

Conclusão: Fazendo as contas

No sábado, O Patrão se entregou ao ócio. Com os pés enfiados


no açude – não era sempre que Ele gostava de se mover sobre a face das
águas – pensou na festa e nas maravilhas da Matemática. Fazendo as
contas, assim meio de cabeça, rabiscando na areia com um pauzito, foi
pra já que entendeu como a notícia do baile se espalhou tão rápido.
Arredondando a conta, o Patrãozinho encarreirou os números assim:

2+ 1 (a Serpente) = 3, e daí por diante: 4, 7, 11, 18, 29, 47, 76,


123, 199, 322, ... 33385282

O Criador riu sozinho, e viu que aquilo era bom. Loco de bom!

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Epílogo: a Matemática dos banquetes

Muito tempo depois, um certo matemático chamado François


Édouard Lucas passou a vida querendo entender essa e outras contas do
Patrão Velho. O coitado do Lucas morreu por causa de uma ferida no
queixo, conseguida por acidente em um banquete para muitos
convidados. Coisa de doido, tchê!

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Causos miúdos

Assédio

Olhei. Ele não viu. Mexi o cabelo. Nem notou. Sorri, tossi,
deixei cair o celular. Nada. “Oi!” Será que é surdo? Chamei um
brigadiano. “Foi esse aí!”. Levaram. Voltei para casa realizada.

Olho-gordo

— Que cachorro lindo, Ju!


— É, né Pa?
— Muito. Só que...
— O quê?
— Nada.
— Fala!
— Bobagem.
— Ó, preciso ir. Se cuida.
— Tchau...
À tarde, Ju foi atropelada. Amigos e parentes comovidos: Pa
adotou o cão.

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Má Sorte

— Joguei no bicho: galo na cabeça. Gato preto cruzou meu


caminho. Chutei. Dono do gato me acertou uma paulada. Deu galo.
— Na cabeça?
— É. Na minha.

Dívidas

Terêncio estava endividado e sem trabalho. Sacou a última


parcela do seguro-desemprego, rasgou as faturas atrasadas e comprou
um revólver. A mulher teve que vender a arma para pagar a fiança.

Demorou

— Amor...
— Quê?
— Broxei.
— Qual é a novidade? Tu é broxa!
— É, mas ele tava duro agorinha.
— E por que tu não me chamou?
— Eu chamei. Não viu quando eu disse: “Amor...”?

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... para entrar para a História.

Seu Nestor, oitenta e um anos, implicou com o busto do Getúlio


na praça: achou que o nariz estava torto. No meio da madrugada, com
um torquês, tentou endireitar a escultura. Acabou deixando o Getúlio
sem nariz.

De manhã, a manchete do jornal dizia: “Octogenário é


encontrado morto com um alicate na mão direita e um nariz de bronze
na esquerda”. E, no final da matéria: “Vandalismo não tem idade”.

Tiroteio

— Ouvi dizer é aqui que estão os valentes da cidade.


— Pois ouviu certo. Veio conferir?
— Não... é que eu não tinha mais onde me esconder do tiroteio.

Ponto de vista

Sabe, a praça fica bonita à noite. Quer dizer, quando não chove.
E quando não tem nevoeiro. Ah, e quando não está tomada pelos
cachorros de rua. E também, quando não tem feira de dia. Na verdade,
era mais bonita quando não tinha esse bando de camelô. Também era
melhor quando não tinha essas piranhas. E o chafariz também já teve os
seus dias. E sem as pichações também não era nada mal. É... a praça tá
feia!

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Um belo dia...

... começou a chover. Acabou-se o belo dia.

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Sobre a Oficina de Escritores e a Revista SAMIZDAT

A Oficina existe desde agosto de 2007, inteiramente no não-lugar


chamado internet: primeiro no orkut, depois em um blog próprio.
Tem por objetivo o auto-aperfeiçoamento de jovens escritores
através de atividades formais e organizadas, ou algo próximo
disso. A Revista SAMIZDAT surgiu da necessidade e o desejo de
mostrar o trabalho dos jovens autores para além dos limites do
pequeno grupo. Para ler, ver e entender o que é SAMIZDAT,
basta acessar www.samizdat-pt.blogspot.com .

Sobre o autor

Volmar Camargo Junior é gaúcho. Formado em Letras pela


Universidade de Cruz Alta, não leciona por sua própria vontade.
É funcionário da ECT desde 2004, e desde então já morou em
meia dúzia de “Pereirópolis” pelo Rio Grande. Atualmente mora
com a esposa Natascha em Canela, na Serra Gaúcha. Dividem o
apartamento com Marie, uma gata voluntariosa e cínica.

Sobre os Causos

Os textos reunidos neste volume são causos, contos e micro-


contos que contam um pouco da história, dos costumes e do
folclore da cidade fictícia de Pereirópolis, no interior do Rio
Grande do Sul. São dezessete textos que têm por característica
a linguagem oral, muito semelhante ao jeito gaúcho de falar e,
principalmente, ao apreço desse povo por contar histórias.

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