Os Causos de Pereiropolis D
Os Causos de Pereiropolis D
Os Causos de Pereiropolis D
OS CAUSOS DE
PEREIRÓPOLIS
Volmar Camargo Junior
OS CAUSOS DE PEREIRÓPOLIS
Contos
Estes causos foram escritos entre novembro de 2007 e maio de
2008, a maior parte submetidos à avaliação crítica dos participantes da
Oficina de Escritores e Teoria Literária e publicados na Revista
Eletrônica Samizdat.
A galinha e o lobisomem 7
Aposentadoria 13
Arte 17
Botões 21
O causo do dilúvio 29
O caso Jersey 33
Os gatos de Pereirópolis 49
Causos miúdos 57
A galinha e o lobisomem
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“sim-senhora”, com cara de quem estava pronta para me passar um
sermão. Foi a primeira vez que ela falou comigo
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terminando na Zenaide, todas puseram seus ovos naquela manhã. De
repente, depois que todas já tinham feito seu serviço, e algumas até
voltaram a dar uma cochilada, uma galinha vermelha e gorda entrou no
galinheiro rebolando. A galinha estava com cara de quem acordara
muito bem-disposta e estava pronta para sua primeira refeição. Seguindo
a mesma ordem, lá foi a ruiva rebolando, no primeiro ninho: quebrou a
casca com uma única bicada e bebeu o ovo da Amália. O segundo
ninho, nós sabemos de quem era. Encantada com o tamanho do ovo de
Berenice, a gorducha penosa dá-lhe uma bicada com vontade. Claro que
a casca não quebrou, afinal, era uma pedra pintada de branco, mas a
malvada não sabia disso e continuou. Bicou, bicou, bicou até ficar com
o bico todo torto e virado para a esquerda. Só então que a gulosa notou
que tinha sido enganada. A essa altura todas as galinhas tinham
acordado outra vez e estavam fazendo um círculo em volta do ninho da
Berê. A vermelha ficou muito contrariada por ter sido tão estúpida. Foi
aí que me assustei de verdade.
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Anhangá-Pitã saiu pela escadinha do galinheiro, pulou a cerca, enfiou-se
no mato e nunca mais foi visto.
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Aposentadoria
Era chuva que Deus mandava, e parecia que São Pedro tinha
aberto as cancelas do céu e deixado a rolar água. No micro-ônibus da
prefeitura onde, por lei nem poderíamos viajar, estava todo o plantel de
professores da Escola Municipal Getúlio Vargas. O carro era muito
velho, mas ainda na ativa. Chamavam-no carinhosamente, em honra do
estado dos faróis, “Fonforéco d’um zóio só”. E em dia de chuva, como
era o caso, os passageiros precisavam esquivar-se das goteiras.
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Eu poderia apostar que Seu Gringo tinha um tanto de sangue
germânico, porque não raro, o homem tinha uns acessos de “alemoíce”.
Encasquetou na idéia, e meteu-se pelo caminho mais curto. É da
sabedoria popular nos cinco continentes que atalhos não são
aconselháveis. Hans Christian Andersen e os Irmãos Grimm estão aí
para não me deixar mentir.
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Para quem não sabe como é uma estrada de fazenda, eis a
descrição: em geral é de terra, ladeada por valetas fundas o suficiente
para a água da chuva não “empoçar”. Algumas têm, em uma ou nas
duas margens, um barranco. Aquele trecho tinha, pelo que ficamos
muito gratos. O normal dessas vias é serem “cascalhadas” ou
“empedradas” — dá no mesmo — mas em situações como aquela, não
serviriam para nada nem cascalho, nem valeta. Ficou só o barro e o
aguaceiro.
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Arte
17
Não teria problemas em evitar os intrometidos, os que sempre
investigavam-no sobre o que fazia como se tudo fosse condenável.
Tinha em abundância o que mais necessitava: criatividade e tempo. A
casa era cercada por um arvoredo sombrio. O que desejasse ocultar aos
curiosos tinha naquele labirinto de troncos, folhas, arbustos, sombras,
formigas e terra o esconderijo perfeito. Especialmente o que fosse
preciso manter em sigilo. Arrastou para lá sua última obra.
***
18
Cássia chega da escola. O irmão está no gramado, com as mãos,
os pés, a camisa, tudo sujo de terra.
— E daí, porquinho?!
— Bom, seja o que for, Eninho, vai brincar lá fora, vai. Eu vou
limpar isso daqui antes que a vó ou a... — faz uma careta de desdém —
... Luciana cheguem. Ah, melhor!, vai tomar um banho. Tu ta podre de
sujo, guri!
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— ‘Tão ta, Cascão. Tu que te entenda com a vó, daí. Agora,
xispa!
— Sai daqui, merda! Vai achar o que fazer! Olha aí, ta sujando
todo o chão da cozinha! — Cássia pega uma vassoura, brandindo-a na
direção do caçula. — Sai!
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Botões
— Por quê?
— A churrasqueira tá acesa...
21
— Não.
***
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os pagamentos seriam feitos através dos caixas eletrônicos, para não
haver acúmulo de fila nos guichês. Foi uma choradeira de velhinhos
reclamando, maldizendo o banco, o governo, o gerente e o estagiário,
coitado.
“Dois salários”
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“Senha inválida, seu Ernesto”.
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Lá estava, ao lado da porta, uma maquina com botões verdes
onde o povo espiava, escolhia, apertava e sacava um tíquete cuspido por
ela. Amassou as contas, enfiou num dos bolsos e ganhou a rua outra vez.
“Vô, tem que apertar esse botão aqui pra poder passar”
enquanto fez exatamente o que descreveu. O sinal luminoso mostrou um
homenzinho verde caminhando. Os carros pararam. Ernesto agradeceu,
e atravessou a rua pisando duro.
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produzindo exatamente o mesmo som que fazia quando acionava a
obsoleta cordinha. Já estava furioso. Continuou calado.
***
26
O homem levanta-se de onde está. Calmamente caminha na
direção da filha. Parado diante dela, enfia dois dedos no bolso da
camisa.
— Que é isso?
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O Causo do Dilúvio
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O diplomata foi sem reclamar. Apreciava a campereada, e
sobretudo, andar solito pela imensidão do pago, que naqueles tempos
era muito maior. Caminhando a despacito, mascando uma folhinha de
hortelã, Gabriel teve uma idéia. Fez um chamado, desses que só o
pessoal que trabalha pra Ele consegue. Num vá, apareceram três bichos
detrás de uma macega: um gato-do-mato, um cachorro e um cavalo.
Sentaram e prosearam — dizem que o gato conhecia a erva-mate, e essa
pode ter sido a primeira roda de chimarrão da história. O Emissário, mui
respeitoso, disse-lhes: “O Patrão quer que um de vocês seja o camarada
do homem e da mulher”. Bicho é um tipo de gente muito honesta, e se
gosta ou não da proposta, já mostra logo de cara. Pois aceitaram os três.
O capataz passou a tarefa, e lá se foram pra onde os homens moravam.
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Gabriel ficou guspindo formiga de tão brabo. Resolveu mudar
de tática. Enveredou-se pra cidade mais próxima. Saiu perguntando se
alguém conhecia um único homem que valesse a bóia que comia. Pra
sua surpresa, existia um: o Seu Noé. Este o recebeu muito bem, ofereceu
um mate — ah, sim; o gato ensinou pra todo mundo o hábito de tomar
chimarrão — proseou um pouco sobre seus guris, Sem, Cam e Jafé,
sobre a morte do Seu Abel, contra-parente que foi morto ainda moço
pelo irmão — tem gente que gosta de uma desgraça... O Embaixador
Gabriel, firme no seu propósito, botou o talento à prova e inventou, na
hora, uma história do arco da velha. Disse mais ou menos assim:
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O resultado da empreitada foi que o Gabriel, além de tomar uma
baita mijada, deixou de ser capataz e virou estafeta. Ninguém mandou
sair inventando história e inundando mundo por conta. Depois disso,
cada vez que tinha que mandar um recado pra gauderiada cá na Terra, o
Patrão Velho mandava o Gabriel falar timtim por timtim o que Ele tinha
dito.
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O Caso Jersey
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Aconteceu por aqueles dias um evento curioso, um crime
insolúvel para o qual a polícia não apresentava conclusões – o tipo de
caso preferido do Breno. O agricultor Ari F. era um funcionário público
aposentado (ou um político, não lembro bem) que tinha uma
propriedade na zona rural de Pereirópolis. Era uma fazendinha tão
bonita e bem cuidada que parecia de brinquedo. Sua generosa
aposentadoria era toda investida naquele lugar. O que mais lhe dava
prazer adquirir eram os animais. Não eram bichos quaisquer, mas
verdadeiros campeões de suas raças. Eram ovelhas, galinhas, cavalos,
canários, cães e gatos, uma verdadeira Arca de Noé. De todos estes, seu
xodó era Princesa, uma vaquinha Jersey que – segundo os relatos dos
concursos que ela venceu – chegou a dar cinqüenta litros de leite em um
único dia. Um luxo de vaca.
Foi difícil chegar até a fazenda por causa da estrada, que virou
um barro só com a chuva da véspera. A cena do crime era a seguinte: a
vaquinha estava caída de lado dentro do curral, com as pernas
estendidas. Havia um buraco escuro na testa e uma poça de sangue no
chão, ao seu redor. Não havia nenhum outro indício da autoria, nenhuma
marca de pneu, nenhuma pegada. Nada. Breno começou a reportagem
ali mesmo. Seu Ari não se importou, mostrando-se muito solícito às
suas perguntas – diferente de Inspetor Silva, que o achava um estorvo.
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Segundo o dono da propriedade, não aconteceu nada
extraordinário, além da forte chuva de granizo e a tempestade de raios,
entre as onze a meia-noite. O disparo só pode ter acontecido nesse
horário, porque o barulho das trovoadas certamente abafaram o estouro
da arma.
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O rapaz, por outro lado, era bem mais rude. Suas respostas eram
monossilábicas e algumas questões sequer dignou-se a responder. Por
fim, já irritado, saiu da sala batendo a porta, falando em alto e em bom
som “Quem se importa com essa vaca de merda?”.
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Assim que chegaram de volta na cidade, Breno correu para seu
laboratório fotográfico. Silva dispensou-o (proibiu-o) de averiguar o
suspeito. Na verdade, Breno estava com uma outra idéia, que não o
abandonou desde a hora que tirou as fotografias. Seu laboratório era o
mais artesanal possível – que ainda hoje ele conserva com muito
carinho, apesar de já ter equipamento bem mais sofisticado. O fato é que
as fotos só estariam prontas em algumas horas. Neste intervalo, o
fotógrafo deu lugar ao detetive-amador.
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Breno me olhou bem nos olhos, e assim ficou por alguns
segundos intermináveis, com uma expressão enigmática, indecifrável.
Ele riu com o canto da boca. Da cadeira onde estava, pulou na direção
do telefone. Discou consultando uma agendinha minúscula.
Era óbvio que eu já havia sido envolvida nos planos dele. Isso
não era raro. Teve uma vez que ele pediu para eu fazer um corte com
um bisturi em sua perna só para ele ser atendido no pronto-socorro, e
fotografar os pacientes sendo atendidos no corredor. O sábado passou
muito rapidamente, e eu não o vi o dia inteiro. No domingo, saímos
cedo de casa. Fomos no seu Fusca 76 até a sede da Granja Itália. Dentro
do porta-luvas encontrei um pacotinho da farmácia, contendo seringas,
luvas descartáveis, tubos plásticos para coleta de sangue, daqueles de
laboratório de análises clínicas. Ele me olhou e riu
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“Você lembra de uma notícia, há uns cinco anos atrás, mais ou
menos depois do impeachment do Collor, que o governador do estado
viria para um almoço com os criadores daqui da cidade?” ele perguntou
enquanto sintonizava uma estação de rádio.
“Não muito bem. Por quê?”
“Lembra onde foi que ele se hospedou?”
“Ah, sim. Lembro sim. Ele ficou justamente na Granja Itália,
porque o Seu Ari era seu amigo.”
“Exato. E lembra também o que aconteceu depois dessa visita?”
“Cara, não recordo. Eu sempre fui desligada das notícias...”
“Pois começaram a construir o Frigorífico Pereirópolis S.A.
pouco tempo depois. Um monte de gente conseguiu emprego, e os
granjeiros da região só tiveram lucro com isso. Muitos pequenos
empresários e comerciantes começaram a depender do Frigorífico.”
“Sim, e daí? Não to conseguindo entender.”
“Calma... já chego lá. Teve bastante gente que prosperou com a
vinda dessa empresa. Mas teve gente que não gostou nem um pouco
disso.”
“Quem?”
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O canil era espetacular, um primor de organização do espaço e
limpeza. Nem parecia que cães moravam ali – talvez uma limpeza
recente feita por Tomas, mas, mesmo assim, o espaço era um luxo.
Coisa de revista. Havia ali sete cães, enormes. Seu ari, pelo visto,
apreciava os molossos: um casal de Rottweillers, um Dogue Alemão,
um Mastiff e uma cadela Boxer com dois filhotes. Fiquei consternada
com aqueles cachorrões, dormindo pelos cantos. Bem, eu sabia que
sonolência nos cães é, de fato, sintoma de uma virose até bem comum, a
parvovirose – um tipo de gastro-enterite. Comecei a especular
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Fiz a coleta de sangue, de fezes, até da ração dos cães,
exatamente como Breno queria. Voltamos para a cidade. No caminho,
notei que ele estava mais calado que o costumeiro, com a cara fechada,
cenho cerrado. Tentei puxar conversa. Estava emburrado. Deixei-o
quieto, porque era provável que ficasse ainda mais aborrecido.
Perto de casa, já estava mais calmo. Acho que ele tinha a cabeça
tão ocupada pensando nas mil e uma possibilidades de aplicação de suas
teorias que acabou esquecendo que estava bravo comigo. Quando
paramos, ele foi diretamente para o orelhão defronte ao edifício. Não
pude ouvir a conversa, mas pela expressão que ele fez, parece que sua
conversa mole teve efeito. Voltou rapidamente para o carro,
perguntando
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Em casa, começamos a divagar sobre os suspeitos. A partir do
que ele havia me contado, Breno quis que eu fizesse uma análise de
quem eu achava ser o culpado. Enquanto eu falava, fiz algumas
anotações em um caderno. Ele não interferiu em nada.
Tomas tinha ciúme da vaca. Ele teria ciúme dos outros bichos
também, e pelo que parece, ele gosta apenas dos cães. Teria sido um
crime passional? Será que os outros bichos não estavam sob uma
ameaça, com o assassino dentro de casa?
Por último eu coloco a Tatiana. Ela era a que, a meu ver, tinha
menos motivos para atirar na Jersey.
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Breno ouviu-me pacientemente, silenciosamente. E assim ficou
por mais alguns minutos, como se estivesse ruminando o que eu havia
dito.
“Bem...” disse ele, me deixando apreensiva. “Há algumas coisas
que eu descobri, e outras que eu fiz algumas ligações que você não
poderia ter levado em conta porque não tinha conhecimento”.
“É mesmo? E sobre quem recai sua suspeita?” eu perguntei,
fingindo estar ofendida por não ter minha excelente capacidade dedutiva
valorizada.
“Quer saber mesmo? Acho que nenhuma dessas pessoas que
você citou matou a Princesa.”
“Ué? Há mais alguém envolvido?”
“Vamos esperar o resultado dos exames. Amanhã eu conto
quem é o culpado.”
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Era cedinho da manhã de segunda. Nas segundas eu costumava
dormir um pouco mais, já que minhas aulas eram somente à tarde. Nem
percebi que ele havia saído e já estava de volta. Estava com as mãos
para trás.
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bois que se alimentavam dela. Não precisa nem dizer que a fabriqueta
do Doutor faliu. Com isso, ele tinha mais de um motivo para detestar o
Seu Ari, já que todo mundo diz que o Frigorífico só veio para cá porque
o governador, amigo dele, facilitou as coisas. Hoje em dia, o homem
tem um mini-mercado, perto da praça do hospital.”
“Que história mais maluca, Breno. Mas e aí? Você está achando
que esse Doutor Orlando foi quem matou a vaquinha.”
“Quer mais algumas evidências? Os cachorros da fazenda não
estavam contaminados por virose nenhuma, mas dopados, anestesiados
por causa de uma substância tranqüilizante que estava onde? Na ração
que eles comiam. E o tal Seu Orlando pode, perfeitamente, ter fabricado
a tal ração.”
“Certo, mas... e como é que ela chegou lá?”
“Como? Quem foi que comprou a ração para os cachorros da
Granja Itália nesse último mês?”
“Segundo o Tomas, foi a mãe dele, Dona Teresinha. E o que
isso tem demais?”
“Aí está o coice da vaca! Você lembra que eu achei muito
estranha a reação da Dona Teresinha quando o Seu Ari falou para o
Inspetor Silva que não tinha inimigos?”
“Lembro, sim. Você disse que ela estava com o olhar perdido,
deu um suspiro profundo e tudo mais.”
“Pois você não sabe o que eu descobri. Sábado eu fui visitar a
minha mãe, que tem uma memória de elefante...”
“Foi por isso que eu não te vi o dia inteiro.”
“Pois então. A mãe lembra direitinho de um “bafafá” que
aconteceu aqui em Pereirópolis, quando ainda se chamava Vila da
Pereira, distrito de Araucária. Pois o Seu Ari veio trabalhar aqui,
representando algum órgão do governo – ela acha que ele era militar. E
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ele já estava ficando rico, e comprou as terras onde hoje é a Granja
Itália. E foi nessa época que ele conheceu a Teresinha, que veio a se
casar com ele e dar-lhe um casal de filhos.”
“Que bonitinho... ta. E daí?”
“E daí que a Dona Teresinha, na época, era noiva de outro cara.
Chuta quem era o cara?”
“Não! O Doutor Orlando?”
“Sim. O Doutor Orlando! A mãe diz que eles nunca deixaram de
se ver, e que, volta e meia, quando o Seu Ari viajava pras exposições de
sua bicharada, ela ia até o mercadinho do Orlando para vê-lo. É
provável que a ração que deixou os cachorros meio grogues foi
comprada lá.”
“Mas é claro! Ele tinha todos os motivos pra se vingar do Seu
Ari! Foi lá e matou a Princesa, a vaca premiada do Seu Ari! Breno, meu
Deus, você é um gênio!”
“Ei. Eu nunca disse que o cara matou a vaca.”
“Hein? Agora é que eu não entendi mais nada!”
“Olha isso”
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“Qual é, Breno” eu reclamei “precisava ampliar essa? Que foto
mais feia...”
“Rafa. Você conhece isso muito melhor do que eu. É um animal
morto”
“Mas isso é o tiro na cabeça da pobrezinha.”
“Olha melhor.” disse, confiante. E eu olhei. Prestando atenção,
dava para perceber que aquele buraco de bala era, de fato, muito
esquisito. Então eu percebi o quanto aquilo era absurdamente ridículo. E
gritei, com o dedo em riste para a foto “Rá! É maquiagem! Isso aqui é
maquiagem”
“Agora olha a foto da bunda da Princesa” ele falou, pondo a
outra fotografia diante de mim. Perto das ancas, no lugar bem escolhido,
havia dois pequenos pontos vermelhos sob o pelo.
“Então isso quer dizer que...”
“Quer dizer que a Princesa não foi morta. Isso foi um golpe. Ela
recebeu duas injeções, de algum anestésico muito potente, ou uma dose
muito alta. A vaquinha estava tão dopada que pareceu morta. Ela não foi
assassinada, Rafa. Foi roubada debaixo dos bigodes do Seu Ari.”
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por ele para um fazendeiro uruguaio, tão dado a falcatruas quanto
Doutor Orlando, por aproximadamente quinze mil reais. Seu Ari não
teve dúvidas. Mandou buscar sua Jersey campeã de volta. O caso teve
alguma notoriedade no estado, e acabou, depois, virando piada em
Pereirópolis. Doutor Orlando acabou condenado por quase uma dezena
de crimes contra o patrimônio e a saúde pública, sendo obrigado a pagar
uma indenização por danos materiais e morais ao proprietário da vaca.
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Os Gatos de Pereirópolis
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para ser benzido pela velha. Ela fazia o serviço com brasa na ponta de
uma tesoura. Fazia também umas chapoeiradas de plantas que ela
sempre tinha no casebre de pau-a-pique. Quando não estava benzendo
ou ajudando uma mãezinha a parir, a velha estava ao redor da casa,
fazendo suas medicinas. Moía ervas, folhas e raízes num pilão feito de
toco com um socador duas vezes maior que ela. Dona Divige era a
médica, a farmacêutica e a farmácia da Vila da Pereira.
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não escapariam vivos. Numa tentativa de defesa, o chefe do bando
levantou a suspeita de que Dona Divige, a benzedeira, era a responsável
pela desgraça. Segundo ele, a velha era uma bruxa, e eles, na verdade,
eram os encarregados de capturá-la. A prova da culpa eram os gatos. Os
animais eram os companheiros da feiticeira, criaturas vindas do inferno
que, a cada década, precisavam alimentar-se de uma virgem em uma
sexta-feira de lua cheia.
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Assim que o dia nasceu, os que haviam ficado de guarda
correram chamar todos para ver o inesperado. A rapariga, que todos
julgavam morta, apareceu com a cara amassada de quem acabou de
acordar. Disse que havia comido umas frutinhas diferentes perto do
açude e pegou no sono. Foi grande a comoção pela volta da mocinha,
todos dando graças a Deus. Porém, o mal já estava feito. A casa da
benzedeira ainda fumegou por muitas horas.
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O Causo da Primeira Festa
Prólogo: A Formatura
A Festa
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instantes já havia mais um convidado: a Serpente. Esses três chamaram
mais um, e já eram quatro. Em um minuto, esses quatro viraram sete.
Nos sessenta segundos seguintes, sete viraram onze; onze viraram
dezoito; dezoito viraram vinte e nove. Era tanto bafafá que em dez
minutos o Salão do Éden já tinha cento e vinte e três. Quando já batia
vinte e cinco pras sete, o Salão contava com trinta e três milhões,
trezentos e oitenta e cinco mil, duzentos e oitenta e dois convidados.
O Criador riu sozinho, e viu que aquilo era bom. Loco de bom!
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Epílogo: a Matemática dos banquetes
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Causos miúdos
Assédio
Olhei. Ele não viu. Mexi o cabelo. Nem notou. Sorri, tossi,
deixei cair o celular. Nada. “Oi!” Será que é surdo? Chamei um
brigadiano. “Foi esse aí!”. Levaram. Voltei para casa realizada.
Olho-gordo
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Má Sorte
Dívidas
Demorou
— Amor...
— Quê?
— Broxei.
— Qual é a novidade? Tu é broxa!
— É, mas ele tava duro agorinha.
— E por que tu não me chamou?
— Eu chamei. Não viu quando eu disse: “Amor...”?
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... para entrar para a História.
Tiroteio
Ponto de vista
Sabe, a praça fica bonita à noite. Quer dizer, quando não chove.
E quando não tem nevoeiro. Ah, e quando não está tomada pelos
cachorros de rua. E também, quando não tem feira de dia. Na verdade,
era mais bonita quando não tinha esse bando de camelô. Também era
melhor quando não tinha essas piranhas. E o chafariz também já teve os
seus dias. E sem as pichações também não era nada mal. É... a praça tá
feia!
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Um belo dia...
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Sobre a Oficina de Escritores e a Revista SAMIZDAT
Sobre o autor
Sobre os Causos
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