Educação Sem Escolas
Educação Sem Escolas
Educação Sem Escolas
EDUCAÇÃO
SEM ESCOLAS
Tradução de
ÁLVARO CABRAL
CP
eldorado
A SOCIEDADE DESESCOLARIZADA
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para o homem, ou podemos estabelecer as condições para
uma nova era em que a tecnologia seria utilizada para tornar
a sociedade mais simples e transparente, de modo que todos
os homens possam voltar, uma vez mais, a conhecer os fatos
e usar os instrumentos que moldam suas vidas. Em resumo,
A SOCIEDADE DESESCOLARIZADA podemos desinstitucionalizar as escolas ou podemos descola-
rizar a cultura.^
IVAN ILLICH
mercadoria adquiriu as proteções dispensadas à propriedade intensamente capitalizada, que torne temível e proibitivo o
privada e, assim, um princípio destinado a preservar a inti- sso ao know-how.
midade pessoal passou a constituir um fundamento lógico A/7 Q_aprendiz interessado _não_leva muito tempo para ad-,
para declarar que certos fatos estão fora dos limites permi- 'quirir quase qualquer-.aptidão..que,_pretenda..usac» Somos
tidos a pessoas sem adequadas credenciais. Nas^sçolas,_ps 1 propensos a esquecer que esta é uma sociedade em que os
professores guardam jw conhecimentos _para si próprios^ a professores diplomados monopolizam o ingresso em todos os
menos que se-ajustem ao programa do dia. Os veículos de campos e, por conseguinte, condenam todo o,ensino por indi-
comunicação informam mas excluem aquelas coisas que con- víduos não-diplomados como charlatanismçw\Existem poucas
sideram inadequadas para impressão ou divulgação. A infor- aptidões mecânicas utilizadas na indústria ou pesquisa que
mação é encerrada em linguagens especiais e professores sejam tão exigentes, complexas e perigosas quanto dirigir um
especializados ganham a vida retraduzindo-as. As patentes automóvel, uma habilitação que, não obstante, a maioria das
são protegidas por corporações, os segredos são guardados pessoas adquire rapidamente de um igual. Nem todas as
por burocracias e o poder para manter os outros fora dos pessoas têm dotes adequados para a lógica avançada mas
territórios privados — sejam guaritas, cartórios, armazéns de aquelas que os possuem realizam rápidos progressos, se forem
sucata ou clínicas — é ciosamente guardado por profissões, desafiadas a fazer jogos matemáticos numa fase relativamente
instituições e nações. Tanto a estrutura política como pro- precoce. Um em cada vinte rapazes em Cuernavaca pode me
fissional de nossa sociedade, no Oriente e no Ocidente, não derrotar em Wiff "n" Proof depois de um par de semanas
poderiam suportar a eliminação do poder para manter classes de adestramento. Em quatro meses, todos os adultos moti-
inteiras de pessoas alheias aos fatos que poderiam servir-lhes. vàdos, com exceção de uma pequena porcentagem, no nosso
O acesso aos fatos, que eu defendo, vai muito além da ver- centro CIDOC, aprende espanhol suficientemente bem para
dade nos rótulos. O acesso deve ser integrado na realidade, realizar suas tarefas acadêmicas no novo idioma.
enquanto que tudo o que pedimos à publicidade é uma //\Jm primeiro passo para estabelecer o acesso a aptidões
garantia de que não nos ludibrie. O acesso à realidade cons- seria proporcionar vários incentivos para que os indivíduos
titui uma alternativa fundamental em educação, para um habilitados dividissem seus conhecimentos. Inevitavelmente,
sistema que apenas pretende ensinar sobre ela. isso seria contra os interesses das corporações, das classes
Abolir o direito ao sigilo da corporação — mesmo quando profissionais e dos sindicatos. Entretanto, o aprendizado múl-
a opinião profissional sustenta que esse sigilo serve ao bem tiplo é atraente. Fornece a todo mundo uma oportunidade
comum — é, como se verá em breve, uma meta política muito para aprender algo sobre quase tudo. Não há razão alguma
mais radical do que a tradicional exigência de propriedade por que uma pessoa não deva combinar a aptidão para con-
ou controle público dos meios de produção. A socialização duzir um carro, reparar telefones e caixas de descarga, atuar
dos meios de produção sem a socialização efetiva do know- como parteiro e funcionar como desenhista num escritório de
-how em seu uso tende a colocar o capitalista do saber na arquitetura. Os grupos de interesses especiais e seus disci-
posição anteriormente mantida pelo financeiro. A única pre- plinados consumidores reclamariam, é claro, que o público
tensão do tecnocrata ao poder é o capital que possui em necessita da proteção de uma garantia profissionaL^Mas este
alguma classe de conhecimentos raros e secretos; e o melhor argumento está sendo hoje firmemente contestado pelas asso-
meio de proteger o seu patrimônio é uma vasta organização, ciações de proteção ao consumidor. Temos de considerar
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muito mais seriamente a objeção que os economistas levantam pessoas que querem ter acesso à ciência. Se essa exigência
contra a socialização radical das aptidões: esse "progresso" fosse acatada, todos os homens poderiam aprender a usar os
será impedido se o saber — patentes, habilitações e tudo o instrumentos de ontem, tornados mais eficazes e duradouros
mais — for democratizado. Tais argumentos só podem ser pela ciência moderna, para criar o mundo de amanhã.
contraditados se demonstrarmos a taxa de crescimento de Lamentavelmente, é a tendência contrária à que hoje
deseoonomias fúfceis que são geradas por qualquer sistema prevalece. Conheço uma área costeira na América do Sul em
educacional existente. que a maioria das pessoas se sustenta pescando em pequenas
O acesso a pessoas dispostas a partilhar seus conheci- embarcações. O motor de popa foi certamente o instrumento
mentos e habilitações não é uma garantia de aprendizagem. que mudou mais espetacularmente a vida desses pescadores.
Um tal acesso é restringido não só pelo monopólio dos pro- Mas, na área que eu pesquisei, metade de todos os motores
gramas educacionais sobre a aprendizagem e dos sindicatos de popa que foram comprados entre 1945 e 1950 ainda está
sobre as licenças mas também por uma tecnologia da escas- funcionando, graças a constantes remendos e consertos, ao
sez. As aptidões que hoje contam são o knotü-how no uso de passo que metade dos motores comprados em 1965 já não
instrumentos qüe são deliberadamente escassos. Esses instru- funciona, pois não foram construídos de modo a permitir
mentos produzem bens ou prestam serviços que todo mundo reparos. 0_ progresso tecnológico . fornece à maioria ., das
quer mas de que unicamente alguns podem fruir, e que pessoas aparelhos _que_. elas não têm. meios de_ adquirir _e
apenas um limitado número de pessoas sabe como usar. Só priva-as das ferramentas mais simples de que necessitam.
alguns indivíduos privilegiados, no número total de pessoas Metais, plásticos êTconcreto armado, utilizados na cons-
que têm uma determinada doença, podem beneficiar-se dos trução, passaram por grandes aperfeiçoamentos desde a
resultados da sofisticada tecnologia médica e ainda menos década de 1940 e deveriam propiciar a mais pessoas a opor-
médicos desenvolveram sua capacidade pessoal para usá-la. tunidade de criarem seus próprios lares. Mas, nos Estados
Contudo, os mesmos resultados de pesquisa médica Unidos, enquanto que em 1948 mais de 30% de todas as
foram também empregados para criar um instrumental básico moradias de família eram construídas pelos seus proprietá-
que permite aos médicos do Exército e da Marinha, com rios, no final da década de 1960 a porcentagem dos que
apenas alguns meses de treino, obterem resultados, em con- atuaram como construtores de sua própria casa tinha baixado
dições de combate, que teriam estado muito além das expec- para menos de 20%.
tativas dos médicos mais experimentados durante a II Guerra O declínio do nível de aptidões, através do chamado
Mundial. Num nível ainda mais simples, qualquer moça do desenvolvimento econômico, é ainda mais visível na América
campo poderia aprender como diagnosticar e tratar a maioria Latina. Aí, a maioria das pessoas ainda constrói suas próprias
das infecções se cientistas médicos preparassem dosagens e casas desde o chão ao telhado. Com freqüência, empregam
instruções, especificamente, para uma determinada área geo- lama, em forma de adobe, e colmo, de uma utilidade inul-
gráfica. trapassável no clima úmido, quente e ventoso. Em outros
Todos estes exemplos ilustram o fato de que conside- lugares, constroem suas moradias de cartão corrugado, lataria
rações educacionais são suficientes, por si só, para exigir aproveitada de tambores de óleo e outros refugos industriais.
iuma redução radical da estrutura profissional que hoje im- Em vez de fornecerem às pessoas ferramentas simples e
Ipede as relações mútuas entre o cientista e a maioria das componentes altamente padronizados, duradouros e de fácil
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reparo, todos os governos enveredaram pela produção em (Educação Nacional Bruta — usualmente concebida como
massa de edifícios pré-fabricados e de baixo custo. É claro capitalização de recursos humanos). Uma economia iguali-
que nem um só desses países pode se dar ao luxo de fornecer tária não pode existir numa sociedade em que o direito de
unidades residenciais modernas e satisfatórias para a maioria produzir é conferido pelas escolas.
da sua população economicamente desfavorecida. Por toda A viabilidade de uma moderna economia de subsistência
parte, entretanto, essa política torna progressivamente mais não depende de novos inventos científicos. Depende, primor-
difícil, para a maioria, adquirir os conhecimentos e aptidões dialmente, da capacidade de uma sociedade em concordar
de que necessitam para construir melhores casas para si com restrições antiburocráticas e antitecnocráticas fundamen-
próprios. tais e voluntariamente adotadas.
Essas restrições podem assumir muitas formas; mas só
funcionarão se afetarem as dimensões básicas da vida. A
"Pobreza" voluntária
substância dessas restrições sociais voluntárias seria uma
matéria muito simples que pode ser plenamente entendida
As considerações educacionais permitem-nos formular
e julgada por qualquer homem prudente. Todas essas restri-
uma segunda característica fundamental que qualquer socie-
ções seriam escolhidas para promover uma fruição estável e
dade pós-industrial deve possuir: um instrumental básico
igual do know-how científico. Os franceses dizem que são
que, pela sua própria natureza, se oponha ao controle tecno-
necessários mil anos para ensinar um camponês a lidar com
crático. Por razões educacionais, devemos trabalhar por uma
uma vaca. Não seriam necessárias duas gerações para ajudar
sociedade em que o conhecimento científico seja incorporado
toda a gente na América Latina e na África a usar e reparar
a ferramentas e componentes que possam ser significativa-
motores de popa, carros simples, bombas, estojos de medicina
mente usados em unidades suficientemente pequenas para
e máquinas de concreto armado, se os seus modelos não
estar ao alcance de todos. Só essas ferramentas podem socia-
mudassem quase de ano para ano. E como uma vida aprazível
lizar o acesso às aptidões. Só essas ferramentas favorecem
é uma de constante e significativo intercurso com outros, num
associações temporárias entre aqueles que querem utilizá-las
meio significativo, prazer igual traduz-se em educação.
para ocasiões específicas. Só essas ferramentas permitem que
surjam metas específicas durante o seu uso, como qualquer Atualmente, é difícil imaginar um consenso sobre a aus-
curioso sabe. Só a combinação do acesso garantido aos fatos teridade. A razão usualmente dada para a impotência da
e do limitado poder na maioria das ferramentas torna possí- maioria é formulada em termos de classe política ou econô-
vel vislumbrar uma economia de subsistência capaz de incor- mica. O que usualmente não se compreende é que a nova
porar os frutos da ciência moderna. estrutura de classes de uma sociedade escolarizada é ainda
mais poderosamente controlada por interesses estabelecidos.
O desenvolvimento de tal economia científica de subsis- Sem dúvida, uma organização imperialista e capitalista da
tência é, indiscutivelmente, vantajosa para a esmagadora sociedade proporciona a estrutura social em que uma minoria
maioria da população nos países pobres. Também é a única pode exercer uma influência desproporcional sobre a opinião
alternativa à crescente poluição, exploração e opacidade nos efetiva da maioria. Mas, numa sociedade tecnocrática, o
países ricos. Mas, como vimos, o destronamento do PNB não poder de uma minoria de capitalistas do saber pode impedir
pode ser realizado sem derrubar simultaneamente a ENB a formação de uma autêntica opinião pública, através do
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